Financiamento da Inovação Urbana
José Roberto Afonso Dezembro/2016
Introdução ´ As cidades e seus cidadãos demandam cada vez mais e melhores serviços públicos, mas sua prestação pelos governos, sobretudo os locais, bem como sua forma de financiamento, continua presa a modelos antigos e relativamente limitados. ´ Há ainda um enorme potencial de geração própria de recursos por explorar na maioria das cidades brasileiras, sobretudo em torno da mais tradicional fonte de financiamento dos governos locais – o imposto sobre a propriedade. Até mesmo o endividamento público encontra largo espaço na maioria dos municípios (a prefeitura de São Paulo é uma exceção notável por estar mais endividada até que a maioria dos estados). ´ Apesar da criatividade e da rápida capacidade de resposta à crise atribuídas ao brasileiro, o desafio do financiamento urbano no País depende de reformas institucionais, inegavelmente de elevada complexidade, e de mudanças profundas em políticas e práticas federativas e fiscais.
A inovação urbana, por princípio, deveria ser acompanhada também de inovação profunda nos mecanismos de financiamentos das cidades, sem contar aproveitar melhor o potencial das fontes tradicionais, como IPTU.
Sobre as fontes tradicionais de custeio ´ “Nunca na história” federativa brasileira os municípios tiveram um peso relativo tão grande na distribuição e na aplicação dos recursos tributários e públicos em geral. Dispõem de autonomia sem paralelo, inclusive para governos locais de federações tradicionais e economias avançadas. ´ Os municípios brasileiros ganharam espaço relativo expressivo desde a década de 1960: a carga tributária municipal quase triplicou e a receita disponível das prefeituras (computadas as transferências constitucionais) aumentou em seis vezes. ´ A Constituição de 1988 beneficiou os municípios na mesma medida em que foi pouco favorável à receita final dos estados (ganharam autonomia para cobrar o ICMS mas não tanto de sua receita). Governos locais ganharam com o aumento da cota-parte do FPM e também do ICMS (em troca da extinção do ISS que não se concretizou). Depois, a criação e expansão do Fundef/Fundeb, e mesmo a gestão plena do SUS, vieram a consolidar a municipalização dos recursos aplicados em funções sociais, em detrimento dos estados.
Mais que descentralização, a federação brasileira experimentou um forte processo de municipalização. Passou a operar uma ligação cada vez mais direta entre Brasília e as prefeituras de todo o país, sem passar pelos governos estaduais.
Sobre a aplicação dos recursos ´ Pelo lado da despesa consolidada do governo geral brasileiro, os municípios também aparecem em destaque crescente. Quase um quarto dos dispêndios couberam às prefeituras em 2012. ´ Quando computado o bloco de gastos com serviços sociais universais, desconsiderando os benefícios de proteção social, as prefeituras contribuem com metade do total dispendido, superando com folga o governo central e os estaduais. A participação relativa chega a 47% na educação, 51% na saúde, 62% na habitação e 81% no saneamento; fora o monopólio natural de programas urbanos clássicos, como coleta de lixo e manutenção das vias, cuja proporção se aproxima do total de recursos. ´ Para fechar o orçamento, chama a atenção que a quase totalidade das prefeituras dispõem de enorme espaço para tomar financiamentos. Na conta oficial da dívida pública, a fatia municipal mal chega a 2% do PIB ou 5% do total. A maior parte dessa dívida foi contraída com o próprio Tesouro Nacional, por conta da rolagem da dívida no final do século passado, que, por sua vez, é extremamente concentrada em poucas cidades, notadamente na capital de São Paulo – uma notória exceção.
Os municípios se tornaram os principais executores dos serviços públicos sociais universais ou estruturais. E a maioria absoluta das prefeituras de menor porte sequer possuem dívidas bancárias.
Avançado mas não consolidado ´ Num passado muito distante, os governos estaduais lideraram o enfrentamento das questões metropolitanas, em especial porque detinham uma capacidade de investimento muito superior à atual, impunham ações e soluções facilmente aderidas pelos municípios de cada região. Como a divisão de poderes na federação se inverteu radicalmente e os governos locais se tornaram os grandes ganhadores no longo prazo, os estaduais se apequenaram e perderam sua capacidade própria de investimento. ´ A municipalização avançou fortemente e não há no horizonte menor hipótese de retrocesso – quando muito estagnada, ao sabor de uma recentralização de poderes e recursos, em troca de maiores transferências voluntárias. Mesmo com essa inovação histórica e federativa dos laços diretos entre governos federais e municipais, não se pode dizer que se encontrou um novo equilíbrio federativo. A atuação discricionária do governo central não deixa de ser limitada e, sobretudo, descontinuada. ´ Sobre os arranjos no sentido horizontal (ou seja, os acordos entre municípios, como no caso dos consórcios), sempre está presente a hipótese de que, por iniciativa própria ou disposição comum, se unam para construir soluções localizadas e que dependam o mínimo ou em nada das esferas superiores de governo. Onde isso vem ocorrendo é mais por imposição das circunstâncias e não há garantia de continuidade depois da troca de governos – isto é, uma união de municípios por adesão é insuficiente e está longe de resolver os enormes desafios que enfrentam as grandes cidades.
Por mais que venham ocorrendo mais ações articuladas intermunicipais, a história, a institucionalidade e o costume nas administrações públicas brasileiras não são pródigos nessa direção, e não permitem maior otimismo.
Enorme potencial do IPTU ´ O fato de o IPTU arrecadar menos que o IPVA estadual no mesmo território, além de ser inferior ao ITBI recolhido pela mesma prefeitura, são inadmissíveis. Poderia ser previsto que o IPTU correspondesse a uma proporção mínima e crescente daqueles outros dois impostos, até que se chegasse a um referencial mínimo igual ao IPVA e ao triplo do ITBI (a proporção ideal seria cinco vezes na hipótese de que 10% dos imóveis sejam transacionados por ano e as alíquotas médias sejam de 1% sobre a propriedade e 2% sobre a transmissão). Se o IPTU arrecadasse a maior das duas hipóteses citadas, resultaria em um incremento da ordem de R$ 13 bilhões na sua receita nacional, ou seja, esta poderia aumentar em 65% em cerca de 95% das cidades brasileiras. Nem é preciso argumentar que, mesmo depois de atendidas as vinculações constitucionais para ensino básico e saúde pública, ainda seria enorme o espaço fiscal aberto para mais investimentos urbanos. ´
A cobrança adequada do IPTU não deve ser tomada apenas como forma de obter maior potencial de receita por explorar; ela pode e deve ser usada em caráter regulatório para fins da política urbana em cada cidade. Uma emenda à Constituição já autorizou que o imposto seja aplicado de forma progressiva, o que reforça o seu componente de justiça social; podendo punir a posse de terrenos vazios quando há um enorme déficit habitacional e taxar proporcionalmente mais aqueles imóveis das regiões que mais se valorizaram.
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A valorização imobiliária decorrente de intervenções públicas seria a motivação básica para cobrar a contribuição de melhoria, um tributo previsto na Constituição mas raramente cobrado no País
´ O governo federal, poderia ajudar prefeituras a cumprir tal objetivo ao ofertar de forma mais ostensiva os programas de financiamentos para modernização das administrações fazendárias e melhor eficiência do gasto, programas já existentes no BNDES (PMAT) e na Caixa/BID/Ministério da Fazenda (PNAFM)
O governo federal pode patrocinar a agenda urbana condicionando a concessão de transferências de recursos de forma discricionária e também de avais a empréstimos à atuação voltada especificamente para inovações urbanas. O apoio federal seria como uma contrapartida, um complemento, às ações locais, inclusive de financiamento igualmente local. Uma boa exigência seria o desempenho mínimo do IPTU.
Pela inovação já no financiamento ´ O ideal para a inovação urbana das cidades seria começar a inovar já pelo modelo de financiamento, o que prescinde de reformas verdadeiramente estruturais na federação e nas finanças públicas brasileiros. ´ Preceito básico seria mudar a ideia de unidade para que não seja uniformidade mas sim uma forma de união na diversidade. Traduzindo em termos fiscais, exigiria mudanças constitucionais para autorizar cidades de maior porte adotarem regras, leis e práticas administrativas diferenciadas ou excepcionais em relação às pequenas cidades. Isso porque em nossa federação, predomina a legislação nacional e única, com pouco ou nenhum espaço para competências regionais e locais. ´ Outro preceito passa por reconhecer que muitas das questões que atrapalham ou travam o urbanismo nas grandes cidades exigem articulações com as cidades dos entornos. Construir soluções conjuntas, inclusive projetos de investimentos, é imperioso para equacionar questões típicas de mobilidade urbana, saneamento e demais serviços de caráter metropolitano ou inter-municipal.
É compreensível que na federação todos os membros devam merecer o mesmo tratamento, mas essa igualdade deveria se ater aos princípios ou preceitos da administração pública, sem descer aos detalhes da organização e funcionamento de cada governo.
Novos arranjos? ´ Houve uma tentativa de institucionalizar o fomento da cooperação intermunicipal através das leis dos consórcios públicos. Muitos, em várias áreas, com maior sucesso na saúde pública (na qual, é mais forte a presença federal no financiamento do sistema). Mas o sucesso dessa parceria depende quase exclusivamente do ativismo dos consorciados, que pode se desfazer entre uma eleição e outra. ´ Se não há uma lei que possa forçar a entrada e a permanência em um consórcio, também o governo federal e os estaduais não se interessam ou não dispõem de recursos para apoiar as iniciativas. ´ Alternativa que pode ser considerada mais ousada: alterar a organização do Estado e facultar que governos das cidades de maior porte possam ter um tratamento diferenciado em termos de suas competências, seja para agir e gastar, seja para se financiar. O ideal seria que as maiores cidades tivessem a possibilidade de criar impostos ou taxas sem que houvesse a obrigação de que as menores cidades também os cobrassem. Mais que isso: que a forma de cobrar tais tributos fosse um meio não apenas de arrecadar, mas também de tentar regular e equacionar questões urbanas.
O motivo pelo qual Brasília deveria participar das agendas urbanas regionais ficou claro com as reivindicações de Junho de 2013. Há precedentes: houve intenso apoio federal na estruturação de serviços públicos universais com gestão municipal. Contudo, a flexibilização das leis municipais representa um avanço estrutural no equacionamento e solução dos problemas urbanos.
Tributação de combustíveis? ´ Um imposto local sobre combustíveis tem sido defendido por prefeitos das maiores cidades do país e, mais importante, já foi cobrado por pouco tempo depois da Constituição de 1988. Mas, no lugar do antigo tributo nacional, poderia ter aplicação diferenciada entre regiões de um mesmo estado ou entre produtos. ´ Por exemplo: sendo cobrado nas grandes cidades, com alíquotas tanto maiores quanto mais intenso o seu fluxo de veículos, e menores ou até mesmo ausentes nas pequenas cidades do interior, bem como podendo distinguir incidência ou alíquota entre combustíveis - como ao tributar a gasolina, menos o álcool e isentando o diesel. ´ Com a premente questão da mobilidade urbana, também poderia ser um imposto mais regulatório que arrecadador: no lugar de um clássico imposto ou taxa, se pudesse instituir no âmbito local uma contribuição de intervenção no domínio econômico - hoje de exclusiva competência da União, mas com uma exceção já na direção aqui proposta, a contribuição municipal sobre iluminação pública que substituiu a antiga taxa sobre a mesma base.
Se for de fato instituído o imposto com essa diferenciação, seria necessário um mecanismo que evitasse mais um capítulo da guerra fiscal.Ou seja, ele não seria mais um típico imposto municipal, mas sim uma forma de imposto metropolitano ou de pólo de cidades, aplicado igualmente a cada uma dessas regiões.
Propostas mais ousadas... ´
Uma hipótese baseada na experiência de grandes capitais no exterior seria a cobrança de um pedágio urbano. Apesar de as determinações do perímetro, horário e taxas só podem ser tomadas no âmbito municipal, o governo federal, mais uma vez, poderia ser o indutor da criação desse sistema, oferecendo financiamentos melhores para expansão de metrô e transportes urbanos aos governos das cidades enquadradas em um certo e prévio índice técnico de conurbação ou congestionamento. Outra vantagem do pedágio é a possibilidade de vincular o volume arrecadado à melhoria do transporte público, inclusive barateando passagens.
´ Apesar de não corresponder a uma inovação, a desestatização, por meio de concessões e parcerias público-privadas, instrumentos já consolidados e nacionalmente legislados, pode expandir sua aplicação no âmbito municipal. Infelizmente, talvez haja barreiras ideológicas ou mesmo falta interesse na construção do aparato regulatório do qual depende a desestatização. Para aplicações em aparelhos urbanos, é possível que a legislação nacional ainda careça de ajustes, sobretudo visando ao melhor funcionamento dos fundos públicos garantidores das parcerias e demais garantias que as fomentem e destravem o crédito para esses projetos.
O governo fomenta o transporte coletivo e o habitante que optar pelo individual deverá pagar mais por tal finalidade.
O apoio federal às PPPs vai além da disseminação de informação dos casos de sucesso: é ´ O fomento do governo federal, mais uma vez, poderia passar a condicionar o suporte possível declarar financeiro aos governos locais, sobretudo quando envolver investimentos em obras preferência às que poderiam ser concedidas ou geridas em parceria – como no caso de metrô ou do saneamento. Já existem algumas experiências no país, aparentemente bem parcerias, sempre sucedidas, mas ainda em pequeno número, que poderiam ser adotadas por muitos que houver outros governos com condições econômicas e sociais semelhantes. potencial para a exploração privada.
Crédito travado ´ É importante sublinhar que, no caso da oferta de crédito, o maior entrave ao financiamento de obras públicas é, em ordem, a disponibilidade de fontes de recursos, depois a falta de bons projetos de investimentos e, o mais importante, a carência de garantias. Tradicionalmente, os governos oferecem cotas-parte de transferências de impostos das esferas superiores de governo, porém, nem sempre é simples e fácil para os financiadores conseguir reter ou sequestrar tais recursos. ´ O melhor caminho para destravar o crédito é montar operações estruturadas em que se possa tomar como garantia as receitas futuras dos empreendimentos – como o faturamento das empresas de transporte ou de saneamento -, que, paradoxalmente, são mais acessíveis que as cotas dos fundos de participação. Esta é uma alternativa à recorrente e antiga prática do sistema bancário brasileiro, em especial do estatal, de rejeitar os ativos do próprio empreendimento como garantia básica dos empréstimos – e, na sequência, demandar ativos e reais dos proprietários. ´ Uma alternativa interessante para destravar o crédito para obras urbanas seria – sob a liderança do governo federal – transformar o aumento do investimento das prefeituras endividadas em uma espécie de meio de pagamento que cobrisse uma parcela, se possível importante, da prestação mensal da rolagem da dívida. Essa medida promoveria um grande estímulo ao equacionamento dos problemas das grandes metrópoles – que são justamente as mais endividadas. Não obstante, o governo central poderia incentivar a expansão do mercado privado dos certificados conhecidos como CEPACS, auxiliando as prefeituras com recursos complementares, mas evitando uma concentração desses papeis nos bancos públicos.
Se até um fundo de previdência de um governo estadual conseguiu antecipar e colocar no exterior as receitas futuras de royalties da extração de petróleo e gás, por que não se poderia tentar o mesmo processo em relação às receitas comercializáveis de alguns dos serviços urbanos e públicos?
José Roberto Afonso Economista e contabilista, doutor pela Unicamp, mestre pela UFRJ, pesquisador do IBRE/FGV e consultor em finanças públicas. Opiniões de exclusiva responsabilidade do palestrante. Kleber Castro, Felipe de Azevedo e Rafael Lucas deram suporte às pesquisas.
As estatísticas e informações que sustentam a argumentação aqui desenvolvida estão disponíveis em trabalhos do autor em seu portal na internet: http://bit.ly/PoJV1Z .