THEDY CORRÊA

Livro de Astro-ajuda

L&PM EDITORES

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UMA HISTÓRIA Estávamos na cidade catarinense de São Miguel D’Oeste para um show em uma casa noturna. Nesse tipo de espaço os shows geralmente começam muito tarde. Obviamente, terminam mais tarde ainda. Mesmo terminando assim tão tarde, nós, como de costume, decidimos receber as pessoas no camarim para fotos-autógrafosbate-papo. Quando entrou o último grupo, um rapaz ficou esperando que todos fossem atendidos para só então vir conversar comigo. Ficou evidente que ele queria uma certa privacidade para relatar sua história. – Cara, aquela música de vocês, “O astronauta de mármore”, salvou minha vida! Minha reação, a princípio, foi de incredulidade. Àquela hora da madrugada e depois de duas horas de show, confesso que minha capacidade de avaliação estava um tanto prejudicada. Meu “como assim?” saiu ao natural. Ele me disse que acabara de se formar. Em seu período ainda na universidade, morava em um pequeno prédio onde só havia estudantes. Ali mesmo na cidade. O primeiro ano de estudos havia sido muito complicado. Ele não tinha atingido os objetivos que havia se proposto no início da faculdade. Também não tinha cativado quem ele desejava cativar. Não havia feito amigos de verdade e portanto, preferia morar sozinho. A sua família não via com bons olhos seu desempenho até o momento e o questionava bastante sobre a validade do investimento que realizavam em sua formação. Isolado, frustrado e deprimido, ele não se sentia nem um pouco confortável na cidade. Talvez o problema nem fosse a cidade, ou as pessoas de lá. Aquele não era o seu lugar... Então, em um sábado à noite – semelhante a este em que ele narrava a história – ele chegou no seu limite emocional. Julgando não haver uma solução para a crise em que se encontrava, ele redigiu uma “carta de despedida”. Achava que era justo explicar a todos aqueles que se importavam os motivos que o levariam a fazer o que pretendia fazer. Colocou a carta em um local bem visível e 10

fácil de se encontrar. Buscou uma arma que havia trazido de casa para alguma “eventualidade”. Tomou o que restava de uma garrafa de uísque que estava esquecida dentro de um armário e começou a reunir forças para consumar seu propósito. Sua sofrida concentração foi subitamente interrompida por uma música que vinha do apartamento ao lado. O volume era escandalosamente alto. A música o atingiu como um murro na cara. Mais do que o som, sem que ele tivesse como impedir, foram as palavras que penetraram mais fundo em sua cabeça. De uma maneira toda sua, os versos começaram a ter um sentido único. Quando chegou o refrão tudo adquiriu uma clareza incontestável. Era o ponto alto de sua viagem íntima que vinha agora com toda a força amparado na voz do vizinho – bastante desafinada, é bom que se diga – que a plenos pulmões começou a cantar: – SEMPRE ESTAR LÁ, E VER ELE VOLTAR... Ele tinha total noção de que a canção não havia sido feita para embalar um momento como aquele. Sabia que a letra tinha uma história que passava a léguas de distância da interpretação que ele agora encontrava. Tinha consciência de que não se tratava de nenhuma mensagem subliminar. Era, simplesmente, a conexão com uma certeza: era ELE que sempre deveria “estar lá”. ELE quem deveria assumir seu lugar. Quem deveria estar presente. Quem deveria continuar! Pode ser que o seu inconsciente tivesse transformado aquelas palavras – que ele já conhecia – em algo novo. Algo que ele desejava ouvir. Se fosse qualquer outra canção, ele talvez tivesse encontrado o mesmo significado, a mesma mensagem. Mas o fato era que nossa canção, a minha voz – e não a do vizinho – tinha despertado nele a vontade de retomar sua vida. A canção havia apontado uma saída. Ele guardou a arma. Rasgou a carta. Tomou um banho. Colocou sua melhor roupa e saiu para aproveitar a noite. Daquele dia em diante, tudo mudou. E não se trata de atribuir a mudança ao destino. Foi ele que mudou seu estado de espírito e, da mesma forma que alguém encontra a inspiração para compor uma canção, ele encontrou a inspiração para continuar levando sua vida.

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OUTRA HISTÓRIA Numa tarde estávamos no local onde faríamos o show de lançamento de nosso disco Pequeno universo em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Eu chegava para fazer o ajuste do som, mais conhecido como sound check ou passagem de som. Uma garota se aproximou timidamente e perguntou se poderia me entregar uma carta. Eu concordei com um simpático “claro que sim”. Ela estendeu sua mão com a carta e pediu apenas que eu a lesse depois que ela fosse embora. “Tu vai fazer isso?” Prometi que só leria depois. Ela era pequena. Rosto expressivo. Aparentava ter cerca de onze anos. Tinha uma voz doce e baixa e estava vestida de maneira bastante sóbria para alguém que aparentava essa idade. Eu a convidei para assistir a passagem de som, pois sempre tocamos algumas canções, o que é uma boa prévia do show. Ela aceitou com uma felicidade contida, pelo menos foi esta a impressão que ela me causou: não queria reagir como uma criança que acabara de ganhar um doce. Durante o tempo em que passamos o som, ela assistiu de maneira atenta e emocionada. No final perguntei se ela viria ao show. Ela disse não ter certeza. Eu lhe dei um par de convites, nos despedimos e não a vi mais. Bem mais tarde, depois do show, meti a mão no bolso do casaco em busca da carta. Li com muita atenção. Meu coração apertou. Apertou forte. Era uma história terrível e impressionante. Os pais da garota se divorciaram quando ela tinha sete anos. Aos oito, a sua mãe convidou seu novo namorado a viver com elas. Foi quando todo o problema começou: o padrasto começou a assediá-la. Logo ele também começou a fazer ameaças terríveis caso ela contasse o que ocorria. Essa situação ainda durou algum tempo, até que a mãe ficou sabendo de tudo e decidiu expulsar o sujeito de sua casa. Com a garota, ela agiu com hostilidade. Não sabia como lidar com a situação. A menina passou a sentirse isolada. Desamparada. Não entrarei em mais detalhes, mas é 12

relevante que eu diga que à violência sexual seguiu-se um crime violento. Ela narrava o que havia acontecido com a serenidade e o alívio de quem já havia deixado tudo aquilo no passado. A dor e o isolamento impostos pelos terríveis fatos continham trechos que nos faziam referência. “Eu fiquei uma menina fechada. Não saía, não me divertia, não ia na casa de amigos. Não fazia nada a não ser ouvir Nenhum de Nós.” A tudo que aconteceu até então e ao desfecho brutal que se seguiu ela se referiu como um terrível pesadelo do qual ela queria “acordar com um caloroso beijo de minha mãe”. “É nessas horas que se mostram os verdadeiros amigos, e poucos ficaram ao meu lado... Hoje tenho doze anos e amo minha mãe e minha família. Me divirto e continuo tirando boas notas na escola. Sei que só o que tenho que fazer agora é deixar florescer a menina que ainda dorme dentro de mim e esquecer a mulher que nasceu prematura. Amo muito o Nenhum de Nós. Foi uma banda que, apesar de nem saber de minha existência, sempre esteve ao meu lado através das músicas, das palavras, das letras, de uma combinação de notas benfeita. Só por eu ter o prazer de ouvir os CDs de vocês várias vezes, sem enjoar, eu já me sentia bem. Eu só queria expor meus sentimentos por vocês e agradecer por tudo o que fizeram por mim, sem ao menos saberem que faziam bem a alguém...” Fiquei muito triste ao saber de todo o sofrimento da garota, mas ao mesmo tempo me senti feliz por ter, de alguma maneira, ajudado ela a atravessar tudo isso. Imagino que alguém que enfrentou tamanha dificuldade e não manifestou revolta saiba encontrar um caminho de felicidade logo ali adiante. Esse é meu mais profundo desejo.

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E AINDA MAIS UMA HISTÓRIA A internet é uma poderosa ferramenta que nos possibilita um maior contato com o nosso público. Seja através dos comentários em meu blog – de onde saíram muitos dos textos deste livro –, do nosso site ou das redes sociais, chegam até nós muitos depoimentos e histórias. Um desses depoimentos me chamou a atenção. Numa noite, uma jovem, de cerca de 24 anos, acabara de colocar seu pequeno filho para dormir quando “um fantasma” lhe disse baixinho, ao pé do ouvido: “Liga o rádio e vai escutar o Pijama Show” (programa que vai ao ar nas madrugadas, transmitido de Porto Alegre para todo o Sul do país). Ela resolveu não contrariar o fantasma e ligou o rádio. Pouco tempo depois que ela começou a escutá-lo, eu comecei a dar uma entrevista no programa. Ela fazia parte do trabalho de divulgação de meu primeiro livro. Como o programa é transmitido na madrugada, tem uma dinâmica diferente do que se está acostumado a ouvir nas rádios durante o dia. As coisas acontecem sem pressa. As entrevistas são mais longas e pode-se aprofundar mais o papo. Claro que esse bom astral é mérito exclusivo do condutor do programa, o Everton Cunha – conhecido como Mister Pi. A entrevista, portanto, transcorria dentro desse clima... Lemos alguns poemas no ar e eu conversei-filosofei bastante com o Everton sobre o conteúdo e a fonte de inspiração desses poemas. Falamos sobre pais, filhos e mães, especialmente as solteiras. A nossa ouvinte em questão era, justamente, uma mãe solteira. Sua gravidez havia sido muito complicada. O seu próprio pai não aceitou a gravidez. Brigava com ela o tempo todo e acabou dizendo a ela que fosse embora de casa. O pai do bebê mal esperou o seu nascimento para começar a inventar desculpas para não ir vê-lo. Por tudo isso, no aniversário de um ano do pequeno, ela já se encontrava em depressão profunda. Considerava que ela e seu filhinho levavam uma vida muito triste e sofrida. Ela era mãe e pai ao mesmo tempo. Além de ter todas as responsabilidades com os cuidados com a criança – contando apenas com a ajuda de sua mãe –, ela desistiu de “investir” afetivamente 14

no pai de seu filho. A mágoa, a frigidez e a “secura amorosa” foram muito grandes. Não havia amor que resistisse a tamanho desapontamento... Sua força de vontade vinha de seu pequeno garoto e em pouco tempo, por conta disso, ela conseguiu voltar a estudar. Para sustentar esses estudos ela precisou ter dois empregos – motivo pelo qual dizia não ter tempo para “pensar em besteiras”. Ela hoje pouco fala com o pai do menino, pois os assuntos sempre acabam em brigas – que ela não revela ao filho para que ele tenha uma boa imagem do pai. Tipo pai-herói. Essa intenção de, apesar de tudo, preservar a relação pai&filho funciona perfeitamente. Os olhinhos do pequeno brilham sempre que os dois se encontram! Ela se sente feliz e mais forte com isso. Ao ouvir os poemas no rádio ela sentiu uma forte emoção e, mesmo que isso a tivesse feito chorar, o fato é que ela sentiu-se amparada. Ela reconhece, com tristeza, que existe um grande preconceito contra essa classe “tão lutadora das mães solteiras”. Algumas pessoas a olham como se ela tivesse cometido um crime. Pediu desculpas por me “incomodar” com seu relato, mas é que ela estava engasgada e precisava me contar que os poemas haviam tirado o aperto de seu peito. O fantasma tinha razão.

MINHA HISTÓRIA Nós apenas imaginamos o poder que as palavras podem exercer na vida de alguém. Escrevemos canções, gravamos discos, fazemos shows, mas não ficamos esperando por comprovações desse poder. Independente de nossa vontade ou expectativa, essas comprovações aparecem. Cartas, e-mails, relatos, comentários em blogs, posts no twitter – o veículo, ou a ferramenta, em si, não faz diferença – pois tomar contato com essas histórias que atestam esse poder é o que realmente importa. Desculpem o clichê, mas é mesmo um momento mágico. Difícil de explicar ou definir. Bem que eu estou tentando fazer isso... Vou me socorrer em mais uma carta.

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“É difícil explicar o carinho que se tem por algumas pessoas, pessoas que se encontram tão distantes, mas que às vezes são as melhores solucionadoras de nossos problemas. Pessoas que já fazem parte de nossa vida de algum modo. A voz é familiar, nos complementa, faz a perfeita tradução de nossas alegrias e tristezas com as melhores palavras. Posso afirmar que em alguns casos, alguns problemas, não existe melhor solução do que escutar sua música. E quando não há solução, ou até mesmo não existe o problema, ainda assim encontro um sentido para minha vida em suas letras. Saibam que eu ficaria horas e horas escrevendo páginas e páginas para demonstrar todo meu sentimento que suas músicas despertam em mim.” Então, escrever é como estender a mão? É oferecer o ombro amigo? Sei que não é apenas isso, mas pode ser sim. Eis o porquê deste pequeno livro.

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ÓRBITA DA PERCEPÇÃO

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INSPIRAÇÃO De onde vem a inspiração? Madrugada. Silêncio. Solidão. Parecem os componentes ideais para a inspiração ou para uma boa noite de estudos. Pouca, ou quase nenhuma, interferência. Longos diálogos com uma folha de papel em branco e algum ingrediente externo para criar um clima: incenso, chimarrão, música... Sim, música servindo de inspiração para criar música. Não uma cópia ou um plágio, mas uma nova composição, em que o ponto de partida pode ter sido uma única frase de outra canção. Na verdade, a matéria-prima da maioria dos poetas é a emoção. Para se escrever uma boa letra, um bom poema, é preciso sensibilidade e a capacidade de servir de antena do que rola ao redor do artista. Aquele papo de transformar aquilo que nos emociona em algo que se traduz em palavras que podem ser cantadas nas ruas, bares, festas e nos chuveiros – quem não canta no chuveiro? Bem, eu não... Quando os Beatles produziram álbuns geniais e reconheceram a influência das drogas no processo, criou-se o álibi que muitos desejavam: para se realizar um outro Sgt. Peppers é necessário o consumo de LSD! A história não confirma isso. Pior. Muitos artistas promissores, buscando trilhar os mesmos caminhos dos caras de Liverpool, acabaram afundando suas carreiras em discos herméticos e mal-acabados, que, supostamente, continham a genialidade sonhada – tudo isso turbinado pelo ácido lisérgico. É bem verdade que alguns outros artistas realmente geniais tiveram não apenas a carreira, mas a própria vida, interrompida pelas drogas. Jimi Hendrix, para citar um. Jim Morrisson, para citar outro... Mas eu quero deixar bem claro que não acredito que exista relação entre talento e consumo massivo de substâncias alucinógenas. Creio, sim, na liberdade que cada um tem de fazer de sua vida o que quiser – desde que não prejudique a ninguém além dele 19

próprio. Só não apoio aqueles que sugerem em suas músicas que a opção pelo uso de qualquer coisa – ou postura – seja “o grande lance” para se encontrar o caminho da felicidade ou, simplesmente, para ser “cool” e bem-aceito em todas as rodas. Que ninguém se iluda: é tudo marketing! Mas voltando à inspiração, não é nova a expressão que diz que, para se ter uma obra-prima, é preciso noventa por cento de transpiração e apenas dez por cento de inspiração. Não são apenas números e estatísticas. Por trás disso, existe um conceito bastante verdadeiro e de aplicação prática em tudo na vida. A transpiração se traduz no trabalho árduo para alcançar habilidade e capacidade necessárias quando a oportunidade – ou a inspiração – aparecer. Serve também, e muito, para os casos em que a inspiração justamente não dá o ar da graça... aí, só suando muito para resultar em algo satisfatório. Estou falando daqueles momentos raros na vida de cada um em que a oportunidade aparece e a gente tem que estar preparado para agarrá-la. Algumas pessoas subestimam essa possibilidade e nem percebem quando perderam essa oportunidade. Não estão preparadas nem para enxergar quando uma porta se abre... Em um primeiro momento, pode parecer confusa a mistura de inspiração e oportunidades. Uma coisa parece que parte de nós e a outra pode ser algo que nos apresentam de alguma maneira – ou o destino apresenta, sem querer ser “viajandão” demais. Vamos imaginar então que a inspiração é uma janela que se abre. Uma oportunidade. É preciso saber reconhecer, identificar a inspiração. Como se fosse uma nota de dinheiro que passa voando em nossa frente. Putz, que exemplo... Mas é só para pensar que devemos saber aproveitá-la. Ok, vá lá. Agora vamos imaginar que alguma oportunidade se apresenta em nossas vidas. Como uma oferta de emprego, para usar um exemplo bem prosaico. A inspiração pode fazer toda a diferença na hora de alguém se apresentar como a melhor opção para essa oportunidade. Daí a gente volta para a arte e fecha o raciocínio. A inspiração depende do desenvolvimento da sensibilidade. A sensibilidade

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aumenta com o trabalho, com o acúmulo de conhecimento e vivências. Então, quando me perguntam de onde vem a inspiração para escrever nossas letras, falo do dia a dia, do cotidiano, da sociedade, das relações afetivas, dos amigos... resumindo: da vida. Algo concreto. Isso tudo tem relação com o trabalho e as vivências, a tal transpiração, porque a inspiração mesmo... confesso que não sei de onde vem.

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