Trilogia de Merlin

Mary Stewart A GRUTA DE CRISTAL TRILOGIA DE MERLIN – LIVRO 1 Tradução de ISABEL PAQUET DE ARARIPE Título Original: The Crystal Cave Ín...
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Mary Stewart A GRUTA DE CRISTAL TRILOGIA DE MERLIN – LIVRO 1



Tradução de ISABEL PAQUET DE ARARIPE Título Original: The Crystal Cave



Índice

A GRUTA DE CRISTAL Prólogo - O PRÍNCIPE DAS TREVAS Livro 1 – A POMBA Livro 3 - O LOBO Livro 4 - O DRAGÃO VERMELHO A lenda de Merlin Nota da Autora AS COLINAS VAZIAS Livro 1 - A ESPERA Livro 2 - A PROCURA Livro 3 - A ESPADA Livro 4 - O REI A Lenda Comentário da Autora Outros Comentários Curtos O ÚLTIMO ENCANTAMENTO Livro 1 – DUNPELDYR Livro 2 – CAMELOT Livro 3 – APPLEGARTH Notas da Autora

MERLIN Ó Merlin, no fundo de tua gruta, Imerso no esplendor do cristal, Haverá um dia um cantador, Cuja música possa acariciar Os vincos moldados pelo dedo de Adão Nas ondas e nas campinas? Ou um corredor que passe além Da longa sombra que o homem gerou, Ao irromper pelo portal da história, E devolva a maçã à árvore do bem? Deixará tua mágica um dia entrever A noiva adormecida no leito, O dia em guirlandas no seu túmulo de neve E o Tempo encerrado na própria torre? EDWIN MUIR

Prólogo - O PRÍNCIPE DAS TREVAS Sou AGORA UM VELHO, mas já havia passado, então, o vigor da mocidade quando Arthur foi coroado rei. Os anos que se sucederam parecem-me agora mais vagos e esmaecidos que os primeiros, como se minha vida fosse uma árvore em crescimento que com ele houvesse desabrochado em flores e folhas e agora nada mais lhe restasse que murchar e morrer. Isto acontece com todos os velhos. O passado recente torna-se impreciso, enquanto que as cenas distantes da memória permanecem nítidas e vivamente coloridas. Até mesmo os acontecimentos da minha infância longínqua voltam-me agora mais claros e intensos, destacando-se contra a luz, como o desenho de uma árvore frutífera numa parede branca, ou bandeiras ao sol num céu de tempestade. As cores são mais vivas do que eram, disso tenho certeza. As recordações que me ocorrem aqui na escuridão são vistas com os olhos inexperientes da infância; estão tão distantes de mim, a dor ausente, já que se desenrolam como passagens de algo que aconteceu, não comigo, não com o feixe de ossos que essas recordações habitavam, mas com um outro Merlin, jovem, ágil e livre no ar e nos ventos de primavera, como a ave que inspirou meu nome. Com as recordações posteriores é diferente; voltam-me algumas delas, quentes e sombreadas, cenas vistas nas chamas, pois é aí que as recolho. Este é um dos truques corriqueiros — não posso chamar a isso de poder — que ainda me restam, agora que estou velho e finalmente reduzido à estatura de um homem. Posso ainda vislumbrar... não claramente ou com o toque das trombetas como outrora, mas como um sonho de criança e visões no fogo. Posso ainda fazer com que as chamas se avivem ou se apaguem; é uma das mágicas mais simples, a que se aprende mais facilmente, a última que se esquece. O que não consigo recordar em sonho, vejo nas chamas, no coração rubro do fogo, ou nos inumeráveis reflexos da gruta de cristal. A primeira recordação é obscura e fugaz. Não é uma recordação propriamente minha, porém mais tarde vocês compreenderão como sei disso. Vocês a chamariam não de uma recordação, antes de um sonho do passado, algo no sangue, algo retirado "dele", talvez, enquanto ainda me guardava no seu corpo. Creio que essas coisas podem ocorrer. Portanto, parece-me certo que deva começar por ele, que estava diante de mim, e estará mais uma vez quando eu me for. Isto foi o que aconteceu naquela noite. Eu vi, e é uma historia verdadeira. Estava escuro e o lugar era frio, mas ele acendera uma pequena fogueira de gravetos, que fumegava lenta, mas produzia um pouco de calor. Chovera o dia todo; dos galhos junto à entrada da caverna a água ainda escorria, e um filete insistente caía da borda do poço, encharcando a terra. Diversas vezes, inquieto, ele saíra da gruta, e agora caminhava sob o rochedo na direção do arvoredo onde prendera seu cavalo.. À aproximação do anoitecer, a chuva cessara, mas erguera-se uma névoa, que avançava pelas árvores à altura dos joelhos, fazendo-se parecerem fantasmas, e o cavalo que pastava parecia flutuar como um cisne. Este era cinzento e mais que nunca fantasmagórico, porque pastava tão quieto; ele rasgara um lenço e envolvera o freio com tiras para que o tilintar dos guizos não o traísse. O freio era dourado e as tiras eram de seda, pois ele era filho de um rei. Se o tivessem apanhado, estaria morto. Tinha apenas dezoito anos. Ouviu o ruído dos cascos de um cavalo que subia do vale. Sua cabeça voltou-se e a respiração

tornou-se-lhe ofegante. A espada reluziu ao ser desembainhada. O cavalo cinzento parou de pastar e ergueu a cabeça para fora da névoa. As narinas estremeceram, mas não emitiu nenhum som. O homem sorriu. O tropel aproximou-se e então, mergulhado até os ombros na névoa, emergiu da penumbra um pônei castanho. Seu cavaleiro, pequeno e esguio, estava envolvido numa capa escura para resguardar-se do sereno. O pônei parou, levantou a cabeça e soltou um longo relincho. O cavaleiro, com uma exclamação de desalento, escorregou da sela e puxou o freio para abafar o som contra a própria capa. Era uma moça, muito jovem, que correu os olhos ao redor, ansiosa, até ver o rapaz de espada na mão, junto às árvores. — Você parecia uma tropa de cavalaria — disse ele. — Cheguei aqui antes de dar por mim. Tudo parece estranho, no nevoeiro. — Ninguém a viu? Chegou a salvo? — Razoavelmente a salvo. Foi impossível nos últimos dois dias. Eles estavam nas estradas dia e noite. — Foi o que imaginei. — Sorriu. — Bem, você está aqui, agora. Dê-me as rédeas. Conduziu o pônei para baixo das árvores e amarrou-o. Então beijou-a. Passados uns instantes, ela o afastou. — Eu não deveria ficar. Trouxe as coisas; assim, mesmo que eu não possa vir amanhã... — Ela parou. Tinha visto a sela no cavalo dele, o freio abafado, a mochila pronta. Suas mãos moveram-se bruscamente apoiando-se no peito do rapaz, que as cobriu com as suas e as apertou. — Ah! — exclamou ela. — Eu sabia. Mesmo em sonho eu já sabia, a noite passada. Você vai partir. — É preciso. Hoje à noite. Ela permaneceu silenciosa por um minuto. Então tudo o que disse foi: — Quanto tempo? Ele não fingiu não tê-la compreendido. — Temos uma, duas horas, não mais. Ela declarou, positiva: — Você voltará. — E quando ele começava a falar: — Não. Não agora, não mais. Já dissemos tudo e já não há muito tempo. Só quis dizer que você estará a salvo e voltará a salvo. Estou-lhe dizendo, sei essas coisas. Tenho vidência. Você voltará. — Quase não é preciso vidência para me dizer isso. Tenho que voltar. E então talvez você me dê ouvidos... — Não. — Ela o interrompeu novamente, quase zangada. — Não faz mal. Que importância tem? Só dispomos de uma hora e estamos a desperdiçá-la. Vamos entrar. Ele já estava retirando a jóia que lhe prendia a capa, ao envolve-la com os braços e conduzi-la na direção da gruta. — Sim, vamos entrar.

Livro 1 – A POMBA



1 No DIA em que o meu tio Camlach voltou para casa, eu tinha apenas seis anos de idade. Lembro-me bem dele como o vi pela primeira vez. Um rapaz alto, irritável como meu avô, olhos azuis e os belos cabelos avermelhados que eu achava tão lindos em minha mãe. Chegou a Maridunum próximo ao pôr do sol, numa tarde de setembro, com uma pequena tropa. Sendo ainda criança, encontrava-me em companhia das mulheres na sala comprida e antiga onde elas teciam. Minha mãe estava ao tear. Lembro-me da fazenda: era púrpura, orlada com um desenho verde e estreito. Eu estava sentado perto dela, no chão, jogando três-marias, a mão direita contra a esquerda. O sol penetrava de viés pelas janelas, formando poças de ouro oblongas no mosaico quebrado do piso; abelhas zumbiam nas plantas do lado de fora e até o ruído do tear parecia sonolento. As mulheres conversavam entre si por sobre os fusos, mas baixinho, as cabeças juntas, e Moravik, minha ama, estava francamente adormecida no seu banquinho, numa das poças de luz solar. Quando o tropel e a seguir o vozerio se ergueram do pátio, o tear parou abruptamente e com ele a conversa à meia-voz das mulheres. Moravik acordou com um resfôlego, os olhos arregalados. Minha mãe sentou-se muito empertigada, a cabeça erguida, escutando. Deixara cair a lançadeira. Vi seus olhos encontrarem os de Moravik. Estava a meio caminho da janela quando Moravik me chamou ríspida, e havia alguma coisa na sua voz que me fez parar e voltar sem protesto. Ela começou a remexer na minha roupa, endireitando a túnica e alisando meu cabelo, e isso me fez compreender que o visitante era alguém de importância. Senti-me ansioso e também surpreso de que aparentemente fosse ser apresentado a ele; estava acostumado a ser mantido fora de vista, naquele tempo. Permaneci de pé pacientemente enquanto Moravik passava o pente pelo meu cabelo; sobre minha cabeça ela e minha mãe trocaram palavras rápidas e ofegantes que, mal prestando atenção, não compreendi. Eu estava escutando o tropel dos cavalos no pátio e os gritos dos homens, e aqui e ali chegavam-me claramente palavras numa língua que não era nem gaélico nem latim, mas celta com um certo sotaque da Bretanha Menor, que eu entendia porque minha ama, Moravik, era bretã e sua língua me ocorria tão prontamente quanto a minha própria. Ouvi a gargalhada ruidosa do meu avô e outra voz a responder. Então ele devia ter levado o recémchegado para dentro porque as vozes se distanciaram, deixando apenas o tilintar e o pisotear dos cavalos que eram conduzidos aos estábulos. Desvencilhei-me de Moravik e corri para minha mãe. — Quem é? — Meu irmão Camlach, filho do Rei. — Ela não olhou para mim, mas apontou para a lançadeira caída. Apanhei-a e entreguei-lha. Lenta e um tanto mecanicamente, ela pôs o tear outra vez em movimento. — A guerra terminou então? — A guerra terminou há muito tempo. Seu tio tem estado com o Suserano, no Sul. — E agora ele precisa voltar para casa, porque o meu tio Dyved morreu? — Dyved fora o

herdeiro, o filho mais velho do Rei. Morrera subitamente e em meio a grande sofrimento, de cãibras no estômago e Elen, sua viúva, que não tinha filhos, voltara para junto do pai. Naturalmente houvera a costumeira conversa sobre envenenamento, mas ninguém a levara a sério. Dyved era muito querido, um guerreiro destemido e um homem prudente e generoso quando devia. — Dizem que ele vai ter de casarse. — Vai, mãe? — Eu estava empolgado, sentindo-me importante em saber tanto, pensando na festa de casamento. — Vai-se casar com Keridwen, agora que o tio Dyved... — O quê? — A lançadeira parou e ela voltou-se espantada. Mas o que viu no meu rosto acalmoua, porque a raiva desapareceu de sua voz, ainda que mantivesse o cenho franzido, e ouvi Moravik casquinar e mexer-se atrás de mim. — Onde foi descobrir isso? Você ouve demais, quer entenda ou não. Esqueça-se desses assuntos e fique calado. — A lançadeira moveu-se outra vez, lentamente. — Ouça, Merlin. Quando eles vierem vê-lo, você fará melhor se ficar calado. Compreende? — Sim, mãe — Compreendera muito bem. Eu estava bastante habituado a me manter fora do caminho do Rei. — Mas eles virão ver-me? Por que a mim? Ela respondeu com uma ponta de amargura que a fez parecer A repente mais velha, quase tão velha quanto Moravik: — Por que você acha que é? O tear bateu outra vez com força. Ela estava colocando o fio de e eu via que estava cometendo um engano, mas parecia boto de modo que não disse nada, observando-a e mantendo-me junto a ela, até que finalmente a cortina do portal foi puxada para um lado e os dois homens entraram. Pareciam encher o aposento, a cabeça ruiva e a grisalha a trinta centímetros das vigas. Meu avô usava um traje azul orlado de ouro. Camlach estava de preto. Mais tarde, eu iria descobrir que ele sempre se vestia de preto; trazia jóias nas mãos e no ombro e junto ao pai parecia franzino e jovem, mas astucioso e vivo como uma raposa. Minha mãe ergueu-se. Trajava um vestido caseiro castanho-escuro, cor de turfa e, em contraste, seu cabelo brilhava como barba de milho. Mas nenhum dos dois homens olhou para ela. Pensar-se-ia que não havia ninguém na sala exceto eu, pequeno como era, junto ao tear. Meu avô sacudiu a cabeça e disse uma palavra: — "Fora", e as mulheres se apressaram num grupo farfalhante e mudo para fora do quarto. Moravik manteve-se firme, impada de coragem como uma perdiz, mas os aterradores olhos azuis faiscaram na sua direção por um segundo e ela partiu. Uma fungadela ao passar por eles foi tudo o que ousou. Os olhos voltaram-se para mim. — O bastardo de sua irmã — disse o Rei. — Aí está. Faz seis anos este mês, alto como um coqueiro e nada parecido com nenhum de nós, como seria de esperar de um filho maldito do diabo. Olhe para ele! Cabelos pretos, olhos pretos e com tanto medo de ferro frio quanto um aleijão das montanhas ocas({1}). Se você me disser que o próprio diabo gerou esse aí, eu acreditarei! Meu tio só disse uma palavra, diretamente a ela: — De quem? — Você acha que não perguntamos, seu idiota? — exclamou meu avô. — Ela foi chicoteada até que as mulheres disseram que abortaria, mas nunca extraímos uma só palavra dela. Era melhor que tivesse falado, talvez...e quanta tolice diziam, histórias da carochinha sobre demônios que aparecem na escuridão para se deitarem com jovens donzelas...e pelo aspecto dele bem poderiam ter razão.

Camlach, um metro e oitenta, louro, baixou os olhos para mim. Eram azuis, claros como os de minha mãe, o colorido vivo. A lama de suas botas macias de couro de corça secara, tornando-se amarelada e ele cheirava a suor e a cavalos. Viera ver-me, mesmo antes de sacudir a poeira da viagem. Lembro-me de como me observou, enquanto minha mãe se mantinha silenciosa e meu avô carregava o sobrolho, a respiração dissonante e acelerada, como sempre fazia quando se deixava arrebatar. — Venha aqui — disse meu tio. Adiantei-me meia dúzia de passos. Não ousava chegar mais perto. Parei. A três passos de distância ele parecia mais alto que nunca. Erguia-se acima de mim até às vigas do teto. — Qual é o seu nome? — Myrddin Emrys. — Emrys? Filho da luz, propriedade dos deuses...? Isto dificilmente seria o nome para um filho do demônio. A suavidade do seu tom encorajou-me. — Chamam-me de Merlinus — aventurei. — É o nome romano do falcão, o cornwalch. Meu avô vociferou: — Falcão! — e fez um som de desprezo sacudindo seus braceletes, fazendo-os tilintar. — Um pequenininho — disse eu, defensivo. Então, calei sob o olhar pensativo do meu tio. Ele alisou o queixo, olhando para minha mãe com as sobrancelhas erguidas. — Escolhas estranhas, todas elas, para um lar cristão. Um demônio romano, talvez, Niniane? Ela ergueu o queixo. — Talvez. Como posso saber? Estava escuro. Achei que um ar divertido passou fugaz pelo rosto dele, mas o Rei baixou o braço, num gesto violento. — Você vê? É tudo o que vai obter: mentiras, contos de bruxaria, insolência! Volte para o seu trabalho, menina, e mantenha esse bastardo fora da minha vista! Agora que seu irmão está em casa, vamos arranjar um homem que tire vocês dois do meu caminho e do dele! Camlach, espero que você perceba a sensatez de arranjar uma esposa e um filho ou dois, já que é só isso que me restou! — Oh, eu sou a favor — disse Camlach, de boa vontade. A atenção deles desviou-se de mim. Iamse embora e nenhum dos dois me tocara. Descerrei as mãos e recuei devagarinho, meio passo, depois outro. — Mas o senhor arranjou uma nova rainha nesse meio tempo, senhor, e dizem-me que está grávida. — Não se importe com isso. Você deverá casar, e logo. Sou homem velho, e estes são tempos tumultuados. Quanto ao to _ fiquei gelado outra vez — esqueça-o. Quem quer que o tenha gerado, se não apareceu em seis anos, não vai fazê-lo agora. E se tivesse sido o próprio Vortigern,. o Suserano, não poderia fazer nada com ele. Um pirralho intratável que se esquiva sozinho pelos cantos. Nem mesmo brinca com os outros meninos tem medo, provavelmente. Medo da própria sombra. Afastou-se. Os olhos de Camlach encontraram os de minha mãe sobre minha cabeça. Trocaram alguma mensagem. Então ele olhou para mim novamente e sorriu. Ainda me lembro de como a sala pareceu iluminar-se, embora o sol já tivesse desaparecido e com ele o seu calor. Logo estariam trazendo as lamparinas.

— Bem, — disse Camlach, — não passa de um falcão implume, afinal de contas. Não seja muito severo com ele, senhor. O senhor já assustou homens maiores que ele durante a vida. — Refere-se a si próprio? Hah! — Asseguro-lhe que sim. O Rei, no portal, encarou-me por um instante com o cenho franzido, e então com um bufo de impaciência ajeitou o manto sobre o braço. — Bem, deixe estar. Deus meu, como estou faminto! Já passa muito da hora da ceia. Mas suponho que vá querer-se meter de molho primeiro, nessa maldita moda romana. Previno-o de que nunca mandei acender as caldeiras desde que partiu... Voltou-se com um rodopio do manto azul e saiu, ainda falando. Atrás de mim, ouvi minha mãe suspirar e o farfalhar do seu vestido ao sentar-se. Meu tio estendeu a mão para mim. — Venha, Merlinus, e converse comigo enquanto me banho nessa sua água fria galesa. Nós, príncipes, precisamos conhecer-nos um ao outro. Continuei pregado no chão. Estava consciente do silêncio de minha mãe e de quão imóvel ela se mantinha. Venha — disse meu tio, carinhoso, e sorriu-me outra vez. Corri para ele. Estive no hipocausto aquela noite. Era o meu caminho particular, meu esconderijo secreto, para onde podia fugir dos meninos maiores e entregar-me às minhas brincadeiras solitárias. Meu avô acertara quando dissera que eu me "esquivava sozinho pelos cantos", mas isso não era por medo, embora os filhos dos seus fidalgos seguissem seu exemplo — como fazem as crianças — tornando-me o alvo dos seus jogos de guerra violentos, sempre que conseguiam apanhar-me. A princípio, é verdade, os túneis do sistema de aquecimento em desuso eram um refúgio, um lugar secreto onde podia esconder-me e ficar sozinho; mas logo descobrira um prazer curiosamente intenso em explorar o grande sistema de câmaras escuras, cheirando a terra, sob o assoalho do palácio. O palácio do meu avô fora em tempos passados uma grande casa de campo, propriedade de algum notável romano que possuíra e levara a terra por diversas milhas ao longo do vale do rio. A parte principal da casa permanecia de pé, embora muito marcada pelo tempo e pela guerra, e por, no mínimo, um incêndio desastroso que destruíra uma extremidade do bloco principal e parte de uma ala. O antigo alojamento dos escravos ainda se conservava intacto ao redor do pátio, onde os cozinheiros e os criados da casa trabalhavam, e a casa de banho ainda existia, apesar de remendada e rebocada, e com o telhado colmado nas partes mais estragadas. Nunca me lembro de ter visto a caldeira funcionar; a água era aquecida nos fogos do pátio. A entrada para o meu labirinto secreto era a abertura da fornalha: um alçapão na parede sob a caldeira rachada e enferrujada, que mal chegava aos joelhos de um homem adulto, e oculto por gravetos e urtigas e um grande pedaço de metal curvo desprendido da própria caldeira. Uma vez no interior, podia-se penetrar sob os quartos da casa de banho, mas esta estivera fora de uso por tanto tempo que o espaço sob o piso estava entulhado e malcheiroso demais até para mim. Segui para o outro lado sob o bloco principal do palácio. Ali o velho sistema de ar quente fora tão bem construído e conservado que, mesmo agora, o espaço da altura dos joelhos sob o assoalho era seco e arejado e o reboco ainda aderia às pilastras de tijolos que sustentavam o piso superior. Em alguns lugares, naturalmente, uma pilastra ruíra ou havia destroços caídos, mas os alçapões que levavam de uma câmara para outra estavam

solidamente arqueados e seguros e eu podia engatinhar livremente, sem ser visto ou ouvido, até à própria câmara do Rei. Se algum dia me tivessem descoberto, creio que receberia um castigo muito pior que uma surra: devo ter ouvido, bastante inocentemente, dezenas de conselhos secretos e com certeza ocorrências muito privadas, mas esta faceta nunca me ocorreu. E era bastante natural que não se pensasse nos perigos de alguém estar à escuta; antigamente as tubulações eram limpas por escravos-meninos e ninguém muito acima de dez anos poderia jamais ter passado por algumas das partes da construção; havia um ou dois lugares onde a esmo eu tinha dificuldade em me esgueirar. Só uma vez estive em perigo de ser descoberto: uma tarde em que Moravik supôs e que eu estivesse brincando com os garotos e eles por sua vez pensaram que eu estivesse a salvo em companhia dela. O ruivo Dinias, meu principal atormentador, deu tal empurrão num menino mais novo da viga central do telhado onde brincavam, que este caiu e partiu uma perna, fazendo um alarido tal que Moravik, acorrendo à cena, notou minha ausência e pôs o palácio em polvorosa. Ouvi o barulho e emergi sem fôlego e sujo, de sob a caldeira, na hora em que ela começava uma busca pela ala da casa de banho. Preguei uma mentira e escapei com uns sopapos e uma reprimenda, mas aquilo foi um aviso; nunca mais fui ao hipocausto durante o dia, somente à noite antes que Moravik fosse deitar-se, ou uma ou duas vezes quando eu estava sem sono e ela já estava na cama a ressonar. A maior parte do palácio estaria também já deitada, então, mas quando havia festa, ou quando meu avô recebia convidados, eu escutava o barulho das vozes e os cantos; e às vezes arrastava-me até à câmara de minha mãe para ouvir o som de sua voz quando conversava com as mulheres. Uma noite ouvi-a rezar, alto, como fazemos às vezes a sós, e na oração aparecia o meu nome "Emrys" e a seguir suas lágrimas. Depois disso, mudei de rumo, passando pelos aposentos da Rainha, onde quase todas as noites Olwen, a jovem Rainha, cantava com suas damas acompanhando-se na harpa, até que os passos pesados do Rei fossem ouvidos no corredor; aí a música parava. Mas não era por nenhuma dessas coisas que eu ia lá. O que me importava — vejo claramente agora — era estar sozinho na escuridão secreta, onde um homem é senhor de si mesmo, e de tudo, exceto da morte. A maioria das vezes eu me dirigia ao que denominava minha “gruta”. Esta fizera parte de alguma chaminé principal e seu topo ruíra, deixando entrever o céu. Exercia uma certa magia sobre mim desde o dia em que eu olhara para cima ao meio-dia e vira, pálida mas inconfundível, uma estrela. Agora, quando entrava lá, a noite, enroscava-me na cama de palha roubada aos estábulos e contemplava as estrelas a deslocarem-se lentamente pelo firmamento, e fazia minha aposta com o céu: se a lua aparecesse sobre a chaminé enquanto eu estava ali, o dia seguinte me traria a realização do meu maior desejo. A lua estava lá aquela noite. Cheia e brilhante, aparecia nítida bem no centro da chaminé, a claridade a cair sobre o meu rosto voltado para cima; tão branca e pura que parecia que eu a sorvia como água. Não me movi até que desaparecesse, assim como a pequena estrela que a acompanha. No caminho de volta, passei sob um aposento que estivera vazio anteriormente e que agora continha vozes. O quarto de Camlach, com certeza. Ele e outro homem cujo nome eu desconhecia, mas que pelo sotaque era um dos que chegaram naquele dia; e eu descobrira que tinham vindo de Cornwall. Possuía uma dessas vozes grossas e retumbantes das quais eu só apanhava uma palavra aqui, outra ali, enquanto engatinhava, rápido, insinuando-me entre as pilastras, preocupado apenas em não ser ouvido. Estava mesmo na parede do fundo, apalpando-a à procura da brecha em arco que dava para a câmara seguinte, quando meu ombro bateu numa seção quebrada de chaminé e um pedaço de barro

solto caiu com um ruído. A voz que falava córnico parou abruptamente: — O que é isso? Então a voz do meu tio veio tão clara pela chaminé partida que se poderia pensar que falava ao meu ouvido: — Nada. Um rato. Veio de baixo do assoalho. Pode crer que este lugar está caindo aos pedaços. Ouvi o som de uma cadeira sendo arrastada e passos que atravessavam o quarto afastando-se de mim. A voz distanciou-se. Pensei ouvir o tinido e o borbulhar de uma bebida ao ser servida. Comecei a avançar muito devagarinho ao longo da parede em direção ao alçapão. Ele voltava. —... E mesmo se ela o recusar, não fará diferença alguma. Ela não vai ficar aqui. Seja como for, não por mais tempo do que meu pai consiga afastar o bispo e mantê-la junto a si. Pode estar certo de que, tendo ela o pensamento fixo como tem naquilo que denomina uma corte mais alta, nada tenho a temer, mesmo se ele próprio aparecesse. — Conquanto você acredite nela. — Oh, acredito nela! Estive indagando aqui e ali e todos dizem o mesmo. — Riu. — Quem sabe, talvez ainda venhamos a agradecer o fato de termos uma voz nessa corte celestial antes que nosso jogo chegue ao fim. E ela é bastante devota para nos salvar a todos, dizem, se ao menos se dispuser a fazê-lo. — Talvez você ainda venha a precisar — disse o homem de Cornwall. — Talvez. — E o menino? — O menino? — repetiu meu tio. Fez uma pausa, e em seguida os passos leves retomaram seu passeio. Esforcei-me por ouvir. Precisava ouvir. Por que teria importância, eu mal sabia. Não me preocupava muito em ser chamado de bastardo ou covarde, ou de cria do diabo. Mas naquela noite aparecera aquela lua cheia. Ele fizera meia-volta. Sua voz me chegava clara, descuidada, mesmo indulgente. — Ah, sim, o menino. Uma criança inteligente, pode-se ver, com mais capacidade do que lhe atribuem... é bastante simpático, se lhe falam como devem. Vou mantê-lo junto a mim. Lembre-se disso, Alun. Gosto do menino... Chamou então um criado para reabastecer a jarra de vinho e, aproveitando a cobertura, arrastei-me para fora. Aquilo foi o começo. Durante dias segui-o por toda parte e ele tolerava e até me encorajava, e nunca me ocorreu que um homem de vinte e um anos nem sempre apreciaria ter um filhote de seis a trotar a seu lado. Moravik ralhava-me quando conseguia apanhar-me mas minha mãe parecia satisfeita e aliviada, e disse a ela que me deixasse em paz.

2 Fora um verão quente e havia paz aquele ano; assim, nos primeiros dias do seu regresso, Camlach ficou descansando ou passeando a cavalo com o pai ou com seus homens, pelas plantações e pelos vales onde as maçãs caíam maduras das árvores. O Sul do País de Gales é uma terra linda, com montanhas verdejantes e vales profundos, baixadas douradas de flores onde o gado prospera, florestas de carvalho coalhadas de veados, e terras altas azuladas onde o cuco canta na primavera, mas onde, chegado o inverno, correm os lobos, em meio à neve. Maridunum encontra-se no ponto onde o estuário se abre para o mar, às margens do rio denominado Tobius nos mapas militares mas que os galeses chamam de Tywy. Ali o vale é plano e extenso, e o Tywy corre em meandros profundos e tranqüilos por brejos e baixadas entre suaves colinas. A cidade ergue-se no terreno elevado da margem norte, onde a terra é drenada e seca; é ligada ao interior pela estrada militar de Caerleon e ao sul por uma boa ponte de pedra de três vãos da qual sai uma rua pavimentada que sobe à praça, passando pelo palácio do Rei. Além da casa do meu avô e da caserna da fortaleza romana onde alojava seus soldados, e que mantinha em bom estado, o melhor prédio de Maridunum era o convento cristão próximo ao palácio, sobre a margem do rio. Algumas mulheres santas ali viviam, denominando-o Comunidade de São Pedro, embora a maioria da gente da cidade conhecesse o local como Tyr Myrddin, nome derivado do velho santuário do deus que existia desde tempos imemoráveis, sob um carvalho, não longe do portão de São Pedro. Mesmo quando eu era criança ouvi a própria cidade ser chamada de Caer-Myrddin. Não é verdade (como dizem agora) que lhe tenham dado esse nome em minha homenagem. O fato é que tanto eu quanto a cidade, a colina além e a fonte sagrada recebemos o nome do deus que é cultuado nos lugares altos. A partir dos acontecimentos que irei descrever, o nome da cidade foi publicamente mudado em minha honra, mas o deus já lá estava, e se agora tenho a sua colina é porque a compartilho com ele. A casa do meu avô erguia-se em meio a um pomar ao lado do rio. Subindo-se por uma macieira curvada ao topo da muralha, podia-se sentar acima do caminho de reboque e observar a ponte fluvial, ver as pessoas que chegavam do sul ou os navios que subiam com a maré. Ainda que não me fosse permitido subir nas árvores para colher maças — devendo contentar-me com as frutas derrubadas pelo vento — Moravik nunca me impediu de subir ao alto da muralha. Quando mandava que me postasse ali de sentinela, significava que ouvira falar de visitas antes de qualquer outra pessoa do lugar. Havia um pequeno terraço elevado ao fim do pomar com um muro arredondado ao fundo, e um banco de pedra abrigado do vento — onde ela se sentava cochilando sobre o fuso, enquanto o sol batia no canto com tanta intensidade, que os lagartos fugiam para debaixo das pedras, e eu gritavalhe as notícias do alto da muralha. Numa tarde quente, cerca de oito dias após a chegada de Camlach a Maridunum, estava eu no meu posto, como de costume. Não havia movimento na ponte ou na estrada do vale, apenas uma barcaça local de cereais carregando no cais, observada por um punhado de desocupados, e um velho com um capuz que por ali se achava apanhando as frutas caídas junto à muralha. Olhei de esguelha para o canto de Moravik. Estava adormecida, o fuso caído ao colo, mais parecendo um junco aberto com sua lã felpuda. Atirei fora a fruta mordida, que estivera comendo e inclinei a cabeça para estudar os galhos proibidos do topo da árvore, onde bolas amarelas pendiam em

cachos contra o céu. Havia uma que eu pensava poder alcançar. O fruto era redondo e lustroso, amadurecendo quase visivelmente ao calor do sol. Fiquei com a boca cheia de água. Procurei um apoio para o pé e comecei a subir. Estava a dois galhos de distância da fruta quando um grito vindo da ponte, seguido de um tropel rápido e um tilintar de metais me fez parar. Agarrando-me como um macaco, certifiquei-me da posição dos pés, então estendi o braço para afastar as folhas, espreitando na direção da ponte. Um grupo de homens a cavalo lha sobre a ponte, na direção da cidade. Um deles, montado mm grande cavalo castanho, vinha sozinho à frente, a cabeça descoberta. Não era Camlach, nem meu avô; e nenhum dos fidalgos, pois aqueles homens usavam cores que eu desconhecia. Então, ao alcançarem a extremidade mais próxima da ponte, vi que o que vinha à frente era um estranho de cabelos e barba pretos, parecendo pelas roupas estrangeiro, e algo de ouro cintilavalhe no peito. As guarnições de seus punhos, de um palmo de comprimento, também eram de ouro. Sua tropa, segundo calculei, teria uns cinquenta homens. O rei Gorlan de Lanascol. De onde me veio o nome claro, isento de dúvida, não tenho idéia. Algo ouvido no meu labirinto, talvez? Uma palavra descuidada ao alcance dos ouvidos de uma criança, um sonho talvez? Os escudos e as pontas das lanças, refletidos ao sol, cegaram-me os olhos. Gorlan de Lanascol. Um rei. Vindo para casar com minha mãe e levar-me com ele para além-raar. Ela seria rainha. E eu... Ele já conduzia o cavalo para a colina. Comecei a escorregai e debater-me pela árvore abaixo. E se ela o recusar? Reconhecia aquela voz; era a do homem de Cornwall. E a seguir a do meu tio: Mesmo que ela o faça, não fará muita diferença... Nada tenho a temer, mesmo se ele próprio viesse... A tropa atravessava calmamente a ponte. O tilintar das armas e o martelar dos cascos ecoavam na quietude da tarde. Ele viera pessoalmente. Estava ali. A uns trinta centímetros do cimo da muralha perdi pé e quase caí. Felizmente consegui agarrar-me e escorreguei a salvo para o topo, numa chuva de folhas e musgo no momento em que a voz de minha ama gritava aguda: — Merlin? Merlin? Deus nos salve, onde está o menino? — Aqui, aqui, Moravik, estou descendo. Aterrissei na grama alta. Ela largara o fuso e, arrepanhando as saias, veio a correr. — O que é que está acontecendo na estrada do rio? Ouvi cavalos, uma tropa inteira, pelo barulho... Por todos os santos, criança, olhe sua roupa! E consertei sua túnica ainda esta semana e olhe agora para ela! Um rasgão em que se poderia enfiar uni braço e sujeira da cabeça aos pés como um filho de mendigo! Desviei-me quando ela avançou para mim. — Caí. Sinto muito. Estava descendo para lhe vir contar. K uma tropa montada. Estrangeiros! Moravik, é o rei Gorlan de Lanascol! Ele tem uma capa vermelha e a barba preta! — Gorlan de Lanascol? Ora, não são nem vinte milhas do lugar onde nasci! Para que estaria ele aqui, pergunto eu? Arregalei os olhos.

— Você não sabe? Veio para casar com minha mãe. — Tolices! — É verdade! — Claro que não é verdade! Você acha que eu não saberia? Você não deve dizer essas coisas, Merlin, poderia criar problemas. Onde foi que ouviu isso? — Não me lembro. Alguém me disse. Minha mãe, acho eu. _ Não é verdade e você sabe disso. — Então devo ter ouvido alguma coisa. — Ouvido alguma coisa, ouvido alguma coisa. Coelhinhos têm relhas compridas, dizem. As suas devem estar sempre no chão, você ouve tanto! De que é que está rindo? _ De nada. Ela pôs as mãos nos quadris. — Você tem estado a escutar o que não devia. Já lhe disse isso antes. Não admira que as pessoas digam o que dizem. Geralmente eu desistia e saía devagarinho do terreno perigoso quando deixava escapar demais, mas a excitação me tornara imprudente. — É verdade, você vai ver como é verdade! Faz diferença onde foi que ouvi? De fato, não consigo lembrar-me agora, mas sei que é verdade! Moravik... — Que é? — O rei Gorlan é meu pai, o meu pai de verdade. — O quê? Desta vez a exclamação saiu afiada como o dente de uma serra. — Você não sabia? Nem você? — Não, não sabia. Nem você tampouco. E se você pensar em dizer isso a alguém... E como é que sabe o nome? — Ela agarrou-me pelos ombros e me deu uma sacudidela. — Como é que você sabe que esse é o rei Gorlan? Nada se disse sobre a sua vinda, nem para mim. — Já lhe disse. Não me lembro o que ouvi nem onde. Ouvi o nome dele em algum lugar, é só isso, e sei que ele vem visitar o Rei por causa de minha mãe. Vamos para a Bretanha Menor, Moravik, e você pode vir conosco. Você gostará, não? Talvez fiquemos perto Seu aperto intensificou-se e eu parei. Com alívio vi um dos criados do Rei vir correndo em nossa direção, sob as macieiras. Chegou arquejando. — É para ele comparecer perante o Rei. O menino. Na grande sala. E depressa! — Quem é? — perguntou Moravik. — O Rei disse para se apressar. Procurei o menino por toda parte... — Quem é? — O rei Gorlan da Bretanha. Ela deixou escapar um assovio como o de um ganso assustado e baixou os braços. — O que é que ele quer com o menino? — Como vou saber? — O homem estava sem fôlego, fazia calor e ele era corpulento. Foi ríspido com Moravik, cuja condição como minha ama era apenas um pouquinho superior à dos criados, que a

minha própria. — Só o que sei é que mandaram chamar Ladv Niniane e o menino, e no meu entender haverá pancadaria para alguém, se ele não estiver lá na hora em que o Rei o procurar. Ele está muito agitado desde que os forasteiros chegaram, isso eu lhe posso garantir. — Está bem, está bem. Volte e diga que estaremos lá em poucos minutos. O homem saiu a correr. Ela voltou-se para mim e segurou-me pelo braço. — Queridos santos do céu! — Moravik possuía a maior coleção de amuletos e talismãs de Maridunum, e eu nunca a vira passar por um santuário na estrada sem prestar a sua homenagem a qualquer que fosse a imagem que o habitasse, mas oficialmente era cristã e, quando em dificuldades, uma cristã das mais devotas. — Doce querubim! E a criança teve que escolher esta tarde para vestir esses andrajos! Ande depressa agora, senão haverá confusão para nós dois. — Empurrou-me pelo caminho que conduzia à casa, ocupando-se em apelar para os seus santos e a apressar-me, recusando-se sequer a comentar o fato de que eu estava certo quanto ao recém-chegado. — Querido, querido São Pedro, por que fui comer aquelas enguias no almoço e dormir um sono tão pesado? Logo hoje! Vamos... — ela me empurrou à sua frente para o quarto. — Tire esses farrapos e vista sua túnica boa e logo saberemos para que o Lorde mandou chamá-lo. Depressa, criança! O quarto que eu compartilhava com Moravik era pequeno, escuro e próximo aos aposentos dos criados. Cheirava sempre a comida em preparação na cozinha, mas eu gostava, assim como gostava da velha pereira coberta de liquens que pendia junto à minha janela, onde os passarinhos se balançavam a cantar nas manhãs de verão. Minha cama ficava sob a janela. A cama não passava de tábuas simples colocadas sobre blocos de madeira, sem entalhes, e não tinha cabeceira ou pés. Eu ouvira Moravik para os outros criados, quando pensava que eu não estivesse ouvindo, que aquilo dificilmente seria um lugar próprio para alojar o neto de um rei, mas para mim ela apenas dizia que lhe era conveniente estar perto dos outros criados; e realmente era bastante confortável, pois ela providenciara para que eu tivesse colchão de palha limpa e uma colcha de lã tão boa quanto as da cama de minha mãe no grande quarto pegado ao do meu a avô. A própria Moravik tinha um colchão no chão, próximo à porta que era às vezes compartilhado por um grande cão-lobo, que e remexia e coçava as pulgas aos seus pés e, às vezes, por Cerdic, um dos valetes, saxão aprisionado numa sortida há muito tempo que se acomodara casandose com uma das moças locais. Ela morrera ao dar à luz um ano mais tarde, e a criança com ela, mas ele continuava, aparentemente, bastante satisfeito. Certa vez, perguntei a Moravik por que permitia que o cão dormisse no quarto, quando ela reclamava tanto do cheiro e das pulgas; não me lembro o que respondeu, mas sabia sem precisar que me dissessem que ele estava ali para dar aviso se alguém entrasse no quarto durante a noite. Cerdic, naturalmente, era exceção; o cão o aceitava sem maior acolhida que o bater de sua cauda no chão e cedia-lhe seu lugar na cama. De certa maneira, suponho eu, Cerdic preenchia a mesma função que o cão de guarda, além de outras. Moravik nunca o mencionava, e nem eu tampouco. Supõe-se que uma criança pequena tenha sono muito pesado, mas mesmo então, novo como eu era, acordava às vezes no meio da noite, e ficava muito quieto, observando as estrelas pela janela, engastadas como peixes de prata cintilantes na rede dos galhos da pereira. O que se passava entre Cerdic e Moravik nada mais significava para mim, além do fato de que ele ajudava a guardar minhas noites, como ela o fazia durante o dia. Minhas roupas eram guardadas numa arca de madeira colocada junto à parede. Era muito velha e formada por painéis pintados com cenas de deuses e deusas, e acho que originalmente viera de Roma. Agora a pintura estava suja, desbotada e descascada, mas sobre a tampa ainda se podia ver, como sombras, uma cena num lugar que parecia uma gruta; havia um touro e um homem com uma faca e alguém segurando um feixe de milho e, a um canto, outra figura quase apagada com raios em volta da cabeça como o sol e um cajado na mão. A arca era revestida de cedro, Moravik lavava ela própria

minhas roupas, guardando-as com ervas perfumadas do jardim Ela levantou com tanta força a tampa que esta bateu contra a parede, e retirou a melhor das minhas duas túnicas, a verde orlada de púrpura. Gritou pedindo água, e uma das criadas veio correndo, e foi repreendida por derramá-la no chão. O criado gordo chegou arquejante outra vez para nos dizer que devíamos-nos apressar, e foi repreendido pelo seu zelo, mas em poucos instantes fui outra vez empurrado pela colunata e pelo grande portal em arco até à parte principal da casa. O salão onde o Rei recebia visitas era comprido e alto, e o chão de pedra preta e branca emoldurava um mosaico de um deus com um leopardo. Estava muito marcado e partido pelo arrastar da mobília pesada e o constante vaivém das botas. Um lado do salão abria para a colunata e no inverno era ali acesa uma fogueira no chão nu, dentro de uma cerca solta de pedras. O chão e as pilastras próximas estavam enegrecidos de fumaça. Na extremidade mais distante da sala erguia-se uma plataforma com a grande cadeira do meu avô e, ao lado, uma menor para a Rainha. Ele estava sentado lá agora com Camlach de pé à sua direita e a esposa, Olwen, sentada à esquerda. Era sua terceira esposa e mais jovem que minha mãe, uma moça de cabelos escuros, calada e um tanto estúpida, a pele como leite novo, as tranças a caírem-lhe pelos joelhos, que sabia cantar como um pássaro e fazer lindos trabalhos de agulha, mas pouco mais que isso. Minha mãe, creio eu, a apreciava tanto quanto a desprezava. De qualquer forma, contra todas as expectativas, davam-se toleravelmente bem, e eu ouvira Moravik dizer que a vida para minha mãe tornara-se bem mais fácil desde que a segunda mulher do Rei, Gwynneth, falecera há um ano atrás, e, em menos de um mês, Olwen tomara seu lugar na cama do Rei. Ainda que Olwen me desse uns tapas e caçoasse de mim como Gwynneth fazia, eu teria gostado dela por sua música; mas era sempre gentil no seu modo distante e plácido, e quando o Rei estava fora do caminho ensinava-me algumas notas e deixara-me mesmo usar sua harpa até que eu aprendesse a tocar alguma coisa. Eu tinha sensibilidade, dissera ela, mas ambos sabíamos o que o Rei diria de tal loucura, de modo que sua bondade era segredo até para minha mãe. Ele não reparou em mim agora. Ninguém reparou, exceto meu primo Dinias, que estava postado junto à cadeira de Olwen na plataforma. Dinias era filho bastardo de meu avô com uma escrava. Era um menino grande, de sete anos, com os cabelos do pai e o mesmo gênio explosivo, forte para sua idade e bastante valente, e sempre gozara da preferência do Rei desde o dia em que, com cinco anos, cavalgara escondido um dos cavalos do pai, um potro castanho selvagem que desembestara com ele pela cidade e que só se livrara do menino quando este conseguiu dominá-lo passando por um barranco que lhe chegava à altura do peito. O pai surrará-o pessoalmente e depois presenteara-o com uma adaga de punho dourado. Dinias reivindicara o título de príncipe — pelo menos entre o resto da criançada — desde então, e tratava-me a mim seu companheiro de bastardia, com o máximo desprezo. Encarava-me agora tão impassível quanto uma pedra, mas sua mão esquerda — a mais distante do pai — fez um gesto grosseiro, e então deu um corte para baixo, silencioso e expressivo. Eu parara no portal, e por trás de mim minha ama ajeitou-me a túnica e deu-me um empurrão entre as espáduas. — Vá agora. Endireite-se. Ele não vai comê-lo. E como a desmentir isso ouvi o tilintar dos amuletos e o começo de uma prece murmurada. A sala estava repleta. Muitos eu conhecia mas havia ali estranhos que deviam fazer parte da comitiva que eu vira chegar. O líder sentava-se próximo à direita do Rei, cercado por seus homens. Era o homem corpulento e escuro que eu vira na ponte, barbudo, com um nariz agressivo e adunco e pernas

grossas envoltas numa capa de púrpura. Do outro lado do Rei, mas de pé, abaixo do estrado, minha mãe com duas das suas damas. Eu adorava vê-la como agora, vestida como uma princesa, a túnica longa de lã cremosa caindo até o chão como uma escultura de madeira verde. O cabelo solto cascateava-lhe pelos ombros como chuva. Trazia um manto azul com um broche de cobre. Seu rosto estava pálido e completamente imóvel. Eu, preocupado com os próprios receios — o gesto de Dinias, o rosto desviado e os olhos baixos de minha mãe, o silêncio dos presentes, e o centro vazio da sala por onde devia passar, — nem olhara para o meu avô. Dera um passo à frente ainda sem ser notado, quando subitamente, com um estrondo de um cavalo que escoiceasse, ele bateu com as palmas das mãos contra os braços da cadeira e pôs-se de pé tão violentamente que fez a pesada peça recuar e os pés arranharem as pranchas de carvalho da plataforma. — Pela luz! — Seu rosto estava malhado de vermelho e as sombrancelhas ruivas franzidas em nós de carne acima dos olhos azuis miúdos e furiosos. Encarou minha mãe e tomou tal fôlego para falar que podia ser distintamente ouvido na porta onde eu parara, receoso. Então, o homem barbudo, que se erguera ao mesmo tempo, disse alguma coisa com um sotaque que não percebi, e Camlach segurou-lhe o braço com um cochicho. O Rei parou, e exclamou numa voz pastosa: — Como quiser. Mais tarde. Leve-os daqui. — Então, claramente para minha mãe: — Isto ainda não é o fim, Niniane, prometo-lhe. Seis anos. É demais, por Deus! Venha, senhor. Recolheu a capa com um braço, acenou com a cabeça para o filho ao descer do estrado e, tomando o braço do homem barbudo, encaminhou-se para a porta. Atrás dele, humilde como um cordeirinho, seguia a esposa, Ohven, com as damas e por último Dinias, que sorria. Minha mãe não se moveu. O Rei passou por ela sem olhar ou dizer palavra, e os presentes se dividiram entre ele e a porta como um restolhal sob a relha do arado. Aquilo me deixou postado sozinho, pregado ao chão, os olhos arregalados, a três passos da porta. Quando o Rei avançou para mim, despertei e voltei-me para escapulir para a sala de espera, mas não fui suficientemente rápido. Ele parou abruptamente, largando o braço de Gorlan e virou-se para mim. A capa azul rodopiou e uma ponta do tecido atingiu-me o olho, fazendo-o lacrimejar. Pisquei para ele. Gorlan parara ao seu lado. Ele era mais novo que meu tio Dyved. Estava com raiva também, mas ocultava-a, e a raiva não era dirigida a mim. Parecia surpreso quando o Rei parou, e perguntou: — Quem é esse? — O filho dela, a que Sua Alteza iria dar um nome — respondeu meu avô, e o ouro do seu bracelete faiscou ao levantar a grande mão e derrubar-me ao chão, com a facilidade com que um menino achataria uma mosca. Então o manto azul passou por mim, e as botas do Rei, e logo a seguir as de Gorlan, sem parar. Olwen disse alguma coisa na sua voz meiga e curvou-se para mim, mas o Rei chamou-a zangado, e a mão dela recuou e ela apressou-se a segui-lo com os outros. Levantei-me do chão e procurei Moravik com o olhar, mas ela não estava lá. Encaminhara-se diretamente para minha mãe e nem mesmo me vira. Comecei a abrir caminho pelo rebuliço do salão, mas antes que pudesse alcançar minha mãe, as mulheres, num grupo compacto e silencioso ao seu redor, saíram pela outra porta. Ninguém olhou para trás. Alguém falou comigo, mas não respondi. Corri pela colunata, atravessei o pátio principal e saí novamente para a luz e o silencio do pomar.

Meu tio encontrou-me no terraço de Moravik. Eu estava deitado de bruços sobre as lajotas quentes, observando um lagarto. De todo aquele dia essa é minha lembrança mais forte; o lagarto, esticado na pedra quente a poucos centímetros do meu rosto, o corpo imóvel como o bronze esverdeado, exceto pela garganta que pulsava. Tinha olhos pequenos e escuros, não mais brilhantes que a ardósia e o interior da boca era da cor de melão. A língua, comprida e pontuda, projetava-se para fora, rápida como um chicote, e seus pés produziram um ruído miúdo e farfalhante nas pedras ao passar sobre meu dedo e desaparecer numa brecha das lajotas. Virei a cabeça. Meu tio Camlach vinha pelo pomar. Subiu os três degraus rasos que levavam ao terraço, os passos macios nas elegantes sandálias de tirantes, e ficou parado a observar-me. Afastei o olhar. Do musgo, entre as pedras, saíam florinhas minúsculas, não maiores que os olhos do lagarto, e perfeitas como um cálice esculpido. Até hoje me lembro do seu desenho tão bem como se eu próprio as tivesse esculpido. — Deixe-me ver — disse ele. Não me movi. Ele atravessou o terraço para o banco de pedras e sentou-se de frente para mim, os joelhos afastados, as mãos pendendo entrelaçadas. — Olhe para mim, Merlin. Obedeci. Ele estudou-me em silêncio por algum tempo. — Estou sempre ouvindo dizer que você não gosta de brincadeiras violentas, que foge de Dinias, que nunca se tornará um soldado, nem mesmo um homem. No entanto, quando o Rei o derruba com um tapa que teria mandado um dos seus veadeiros a ganir para o canil, você não solta um ai nem derrama uma lágrima. Não respondi. — Acho que talvez você não seja exatamente o que dizem, Merlin. Ainda nada. — Sabe por que Gorlan veio hoje? Achei melhor mentir. — Não. — Veio pedir a mão de sua mãe. Se ela tivesse consentido, você teria ido com ele para a Bretanha. Encostei o dedo numa das florinhas. Desmanchou-se como uma esponjinha e desapareceu. Experimentalmente, toquei noutra. Camlach disse, então, com mais rispidez do que a que geralmente usava comigo. — Você está-me ouvindo? — Estou. Mas, se ela o recusou, isso não fará diferença. — Ergui os olhos. — Fará? — Você quer dizer que não quer ir? Eu teria pensado... — Franziu as sobrancelhas claras, tão parecidas com as do meu avô. — Você seria tratado com todas as honrarias, seria um príncipe. — Sou um príncipe agora. Tão príncipe quanto jamais poderei ser. — O que quer dizer com isso? — Se ela o recusou, — disse eu, — ele não deve ser meu pai. Pensei que era. Pensei que fosse por

isso que ele tinha vindo. — O que o fez pensar isso? — Não sei. Parecia... — Parei. Não podia explicar a Camlach o clarão de luz em que o nome de Gorlan me ocorrera. — Apenas pensei que deveria ser. — Só porque você tem estado à espera dele todo esse tempo. — Sua voz era calma. — Essa espera é insensata, Merlin. Já é tempo de enfrentar a verdade. Seu pai está morto. Deixei cair a mão sobre o tufo de musgo, esmagando-o. Vi a carne dos meus dedos empalidecer com a pressão. — Ela lhe disse isso? — Não. — Ele ergueu os ombros. — Mas, se ainda estivesse vivo, teria aparecido há muito tempo. Você deve saber disso. Fiquei calado. — E se não estiver morto — continuou meu tio, observando-me — e ainda assim nunca apareceu, certamente não poderá constituir motivo de dor para ninguém. — Não, exceto que, por mais indigno que fosse, poderia ter poupado alguma coisa à minha mãe. E a mini. Ao mover minha mão, o musgo aprumou-se outra vez como se crescesse. Mas as florinhas tinham desaparecido. Meu tio concordou. — Ela teria sido mais inteligente, talvez, em ter aceito Gorlan ou outro príncipe. — O que acontecerá conosco? — perguntei. — Sua mãe deseja entrar para o Convento de São Pedro. E você... você é perspicaz e inteligente e me disseram que sabe ler um pouco. Poderia ser padre. — Não! Suas sobrancelhas cerraram outra vez sobre a ponte estreita do nariz. — É uma vida bastante boa. Você não tem fibra de guerreiro, isto é certo. Por que não abraçar uma vida que lhe assente e onde estará seguro? — Não preciso ser guerreiro para querer permanecer livre! Ficar trancado num lugar como São Pedro — não é a maneira...— Parei. Falava com veemência, mas senti faltarem-me as palavras. Não conseguia explicar uma coisa que eu próprio ignorava. Ergui os olhos, ansioso. — Ficarei com o senhor. Se não me puder usar, eu... eu fugirei para servir um outro príncipe. Mas preferia ficar com o senhor. — Bem, ainda é cedo para falar dessas coisas. Você é muito nova — Levantou-se. — Seu rosto está doendo? — Não. — Deveria mandar examiná-lo. Venha comigo agora. Estendeu a mão e eu o acompanhei. Conduziu-me pelo pomar e então atravessou o arco que abria para o jardim particular do meu avô. Resisti, puxando sua mão para trás.

— Não tenho permissão para entrar aí. — Comigo, certamente. Seu avô está com os hóspedes, não o verá. Venha. Tenho uma coisa melhor para você do que frutas derrubadas pelo vento. Eles estiveram a colher os damascos e separei os melhores das cestas quando desci. Ele seguiu em frente com seu andar gracioso de felino, pelas limas e a lavanda, até onde se encontravam os damasqueiros e os pessegueiros crucificados contra a muralha alta, frente ao sol. O local tinha um cheiro soporífico de ervas e frutos e os pombos arrulhavam no pombal. Aos meus pés achava-se um damasco maduro, como um pedaço de veludo ao sol. Empurrei-o com o dedão até conseguir rolá-lo e do outro lado havia um grande furo apodrecido, cheio de vespas. Uma sombra projetou-se sobre ele. Meu tio agigantava-se junto a mim com um damasco em cada mão. — Disse-lhe que tinha algo melhor que frutas caídas. Aqui. — E me deu um. — E, se lhe baterem por ter roubado, terão que me bater também. — Sorriu e mordeu o fruto que segurava. Fiquei parado com o damasco grande e brilhante seguro na concha da mão. O jardim estava muito quente, parado e silencioso, exceto pelo zumbido dos insetos. O fruto refulgia como ouro e cheirava a sol e sumo doce. A casca parecia a penugem de uma abelha dourada. Fiquei com a boca cheia dágua. — O que foi? — perguntou meu tio. Parecia nervoso e impaciente. O sumo do seu damasco escorria-lhe pelo queixo. — Não fique aí olhando, menino! Não há nada de errado com o damasco, há? Olhei para cima. Os olhos azuis, astutos como os de uma raposa, fitaram os meus. Encarei-o de volta. — Não quero. Está preto por dentro. Olhe, pode ver-se como se fosse transparente. Ele inspirou com força como se fosse falar. Então ouviram-se vozes do outro lado da muralha; eram os jardineiros, provavelmente trazendo as cestas de frutas vazias prontas para o dia seguinte. Meu tio, curvando-se, arrebatou a fruta de minha mão e atirou-a para longe contra a parede. Ela abriu-se num esparramar de polpa dourada contra os tijolos e o sumo escorreu. Uma vespa espantada de uma árvore passou zumbindo por nós. Camlach afugentou-a com a mão num gesto estranho e brusco e exclamou numa voz que subitamente destilava veneno: — Afaste-se de mim depois disso, seu filho do demônio. Está-me ouvindo? Afaste-se de mim. Passou as costas das mãos pela boca e retirou-se a passos largos em direção à casa. Fiquei onde estava, contemplando o sumo do damasco escorrer pela parede quente. Uma vespa pousou sobre o filete, arrastou-se pegajosamente, e de repente caiu de costas no chão, a zumbir. Seu corpo dobrou-se, o zumbido aumentou num lamento enquanto ela se debatia e então imobilizou-se. Eu mal vi, porque alguma coisa crescera em minha garganta até parecer sufocar-me e a tarde dourada flutuou brilhante nas minhas lágrimas. Essa foi a primeira vez na minha vida que me lembro de ter chorado. Os jardineiros passavam pelas roseiras com as cestas à cabeça. Voltei-me e corri para fora do jardim.

3 Meu quarto estava vazio, e nem mesmo o cão-lobo lá estava. Subi na cama e apoiei os cotovelos no peitoril da janela, ficando ali por longo tempo, sozinho, enquanto do lado de fora os tordos cantavam nos galhos da pereira, e através da porta fechada chegava-me do pátio o martelar do ferreiro e o rangido do sarilho produzido pela mula ao rodear o poço. Falha-me a memória neste ponto. Não consigo lembrar-me quanto tempo se passou até que a bulha e o zumbido de vozes me disseram que a refeição da noite estava sendo preparada. Tampouco consigo lembrar-me o quanto estava magoado, mas quando Cerdic, o valete, empurrou a porta e eu voltei a cabeça, ele parou assustado, exclamando: — Senhor, tende piedade de nós! O que andou fazendo? Brincando no curral? — Caí. — Oh, eu sei, você caiu. Não entendo por que o chão é sempre duas vezes mais duro para você do que para os outros! Quem foi? Aquele porquinho selvagem do Dinias? Como não respondi, ele acercou-se da cama. Era um homem pequeno de pernas arqueadas, o rosto moreno vincado e um tufo de cabelo claro. De pé na cama, como estava, meus olhos ficaram quase ao nível dos dele. — Vou-lhe dizer uma coisa — continuou ele. — Quando você for um tiquinho maior, vou-lhe ensinar umas duas coisas. Não é preciso ser grande para ganhar uma briga. Tenho uns truques que vale a pena conhecer, posso-lhe assegurar. É preciso, quando se é nanico. Digo-lhe que derrubo qualquer sujeito que tenha duas vezes o meu peso... e qualquer mulher também, é claro. — Ele riu, voltou a cabeça para cuspir, lembrou-se onde estava e, ao invés, pigarreou. — Não que você vá precisar dos meus truques uma vez crescido, um rapaz alto como é, nem para as moças tampouco. Mas é melhor dar uma olhada nesse seu rosto, se não quer assustar ninguém. Parece que vai ficar marcado. — Acenou a cabeça na direção do catre vazio de Moravik. — Onde está ela? — Foi com minha mãe. — Então é melhor você vir comigo. Vou dar um jeito nisso. Assim foi que o corte no malar foi tratado com ungüento, e partilhei do jantar de Cerdic nos estábulos, sentado na palha, enquanto uma mula castanha me focinhava à procura de forragem e o meu pônei gorducho, com a corda toda esticada, acompanhava cada bocado que levávamos à boca. Cerdic devia ter um método próprio para as cozinhas também; os bolos estavam frescos, havia metade de uma perna de galinha para cada um, assim como toucinho salgado e cerveja saborosa e refrescante. Quando voltou com a comida, vi pelo seu olhar que soubera de tudo. O palácio inteiro devia estar fervilhando. Mas ele nada disse, apenas me entregou a comida e sentou-se ao meu lado na palha. — Contaram-lhe? — perguntei. Ele assentiu com a cabeça, mastigando, e acrescentou com a boca cheia de pão e carne: — Ele tem a mão pesada. — Estava furioso porque ela se recusou a casar com Gorlan. Quer vê-la casada por minha causa, mas até hoje ela vem-se recusando a casar com todos os homens. E agora, desde que meu tio Dyved

morreu e Camlach é o único que resta, eles convidaram Gorlan, da Bretanha Menor. Acho que meu tio Camlach persuadiu meu avô a convidá-lo, porque receia que ela se case com um príncipe galês... Ele me interrompeu nesse ponto, parecendo surpreso e amedrontado. — Psiu, criança! Como sabe de tudo isso? Tenho certeza de que os mais velhos não falam de assuntos de tal importância em sua presença. Só se é Moravik que fala o que não devia... — Não. Não é Moravik. Mas sei que é verdade. — Como, em nome do Trovão, você sabe tal coisa? Mexericos de escravos? Dei o meu último pedaço de pão à mula. — Se você jurar pelos deuses pagãos, Cerdic, você é que estará em apuros com Moravik. — É mesmo. Essa espécie de apuros é muito fácil de arranjar. Vamos, quem é que tem estado a falar com você? — Ninguém. Eu sei, é só. Não posso explicar como... E, quando ela recusou Gorlan, meu tio Camlach ficou tão furioso quanto meu avô. Teme que meu pai volte, case-se com ela e o expulse. Ele não admite isso para o meu avô, naturalmente. — Naturalmente. — Ele estava com o olhar fixo e esquecera-se de mastigar, de modo que a saliva escorria-lhe pelo canto da h aberta. Engoliu apressado. — Os deuses sabem... Deus sabe de você ouviu tudo isso, mas poderia ser verdade. Bem, continue. A mula castanha me cutucava, fungando no meu pescoço. Afastei-a com a mão. — É só isso. Gorlan está aborrecido, mas eles lhe darão alguma coisa E minha mãe acabará indo para São Pedro. Você vai ver. Fez-se breve silêncio. Cerdic engoliu a carne e atirou o osso para o lado de fora do estábulo, onde uns vira-latas precipitaram-se sobre ele e saíram a correr numa luta de rosnados. — Merlin... — Que é? — Seria prudente você não falar disso com mais ninguém. Ninguém. Entendeu? Não respondi. — Esses são assuntos que uma criança não compreende. Assuntos de alta importância. Bem, alguns são voz corrente, concordo com você, mas isso do príncipe Camlach... — Ele apoiou a mão no meu joelho, apertou-o e sacudiu-o. — Vou-lhe dizer, ele é perigoso, aquele ali. Deixe estar e fique fora de vista. Não vou contar a ninguém, pode confiar em mim. Mas, você, você não deve falar mais. Já seria bastante ruim se você fosse um príncipe por direito de nascença, ou mesmo um favorito do Rei como aquela cria ruiva do Dinias, mas para você... — Sacudiu meu joelho outra vez. — Está prestando atenção, Merlin? Pela sua própria pele, fique calado e fora do caminho deles. E diga-me quem lhe contou tudo isso. Pensei na gruta escura do hipocausto e no céu distante acima da chaminé. — Ninguém me disse. Juro. — Quando ele emitiu um som de impaciência e preocupação, encareio de frente e contei-lhe tanto da verdade quanto ousei. — Tenho ouvido coisas, admito, às vezes, as pessoas falam sobre a nossa cabeça sem reparar que estamos presentes ou sem pensar que compreendemos. Mas outras vezes... — Fiz uma pausa... — É como se alguém falasse comigo, como se eu visse as coisas... E às vezes as estrelas me contam... e há músicas e vozes na escuridão. Como

sonhos... Sua mão ergueu-se num gesto de proteção. Pensei que se fosse persignar, mas logo vi o sinal contra o mau-olhado. Ele pareceu envergonhado disso e deixou cair a mão. — Sonhos, é o que são. Você tem razão. Você dormiu em algum canto, provavelmente, e conversaram sobre sua cabeça quando não deviam e você ouviu coisas que não devia. Estava-me esquecendo de que é apenas uma criança. Quando me encara com esses olhos... — Ele parou e encolheu os ombros. — Mas vai-me prometer que não vai falar mais sobre o que ouviu. — Está bem, Cerdic. Prometo-lhe. Se você prometer contar-me uma coisa em troca. — O que é? — Quem era meu pai. Ele engasgou com a cerveja. Então deliberadamente limpou a espuma, pousou o chifre e me encarou exasperado. — Ora, como pôde pensar que sei isso? — Achei que Moravik poderia ter-lhe contado. — E ela sabe? — Pareceu tão surpreso que vi que dizia a verdade. — Quando perguntei, ela apenas disse que havia coisas sobre as quais era melhor não falar. — Ela tem razão. Mas, se você me perguntar, essa é a maneira dela de dizer que não sabe mais que o vizinho. E se me perguntar, jovem Merlin, embora você não o faça, isso é outra das coisas em que é melhor não se meter. Se a senhora sua mãe quisesse que você soubesse, ela lhe diria. Você vai descobrir bem cedo, imagino eu. Vi que estava fazendo o sinal novamente, embora desta vez escondesse a mão. Abri a boca para perguntar se dava crédito às histórias, mas ele apanhou o chifre em que bebia e pôs-se de pé. — Tenho a sua promessa. Lembra-se? — Sim. — Venho observando você. Você segue seu caminho e às vezes penso que está mais perto da natureza dos homens. Sabe que ela lhe deu o nome de um falcão? Acenei a cabeça. — Bem, aí está uma coisa para você refletir. É melhor esquecei-os falcões, por ora. Há muitos por aí, demais, verdade seja dita. Você já observou o pombo torcaz, Merlin? — Esses que bebem na fonte com os pombos brancos e voam livremente? Claro que sim. Dou-lhes comida no inverno juntamente com os outros pombos. — Costumavam dizer no meu país que o pombo torcaz tem muitos inimigos, porque sua carne é doce e seus ovos, saborosos. Mas ele vive e prospera porque foge. Lady Niniane pode tê-lo chamado de pequeno falcão, mas você ainda não é um falcão, jovem Merlin. É apenas um pombo. Lembre-se disso. Viva, mantendo-se quieto e fugindo. Anote minhas palavras. - Ele acenou a cabeça ti e estendeu a mão para erguer-me. . O corte ainda dói? — Arde. — Então está sarando. O ferimento não é de causar preocupação, vai passar logo.

E passou realmente, sem infeccionar, nem deixar marca. Mas lembro-me de como doeu aquela noite, deixando-me acordado, de modo que Cerdic e Moravik ficaram quietos no outro canto do quarto, receosos, suponho eu, de que fosse devido aos seus murmúrios que eu colhesse minhas informações. Depois que adormeceram, saí devagarinho, passei pelo cão-lobo que sorria e corri para o hipocausto. Mas naquela noite não ouvi nada que valesse a pena lembrar, exceto a voz de Olwen, meiga como a de um melro, entoando uma canção que eu nunca ouvira antes, sobre um ganso selvagem e um caçador com uma rede de ouro.

4 Depois disso, a vida voltou à sua tranqüilidade rotineira e creio que meu avô deve ter finalmente aceitado a recusa de minha mãe de casar-se. As coisas permaneceram tensas entre eles por uma semana, se tanto, mas com Camlach em casa, e acomodado como se nunca tivesse deixado o local — e com a aproximação de uma boa temporada de caça — o Rei esqueceu os ressentimentos e as coisas se normalizaram. Exceto talvez para mim. Depois do incidente no pomar. Camlach já não saía do seu caminho para me favorecer, nem eu para segui-lo. Mas ele não era de todo mau para comigo, e uma ou duas vezes defendeu-me em brigas com os outros meninos e tomou mesmo o meu partido contra Dinias, que me substituíra nas suas graças. Mas eu já não precisava dessa espécie de proteção. Aquele dia de setembro ensinara-me outras lições além das de Cerdic sobre o pombo torcaz. Eu me encarregava de Dinias sozinho. Certa noite, engatinhando sob seu quarto, a caminho da minha gruta, aconteceu-me ouvi-lo e a seu companheiro Brys rirem-se a propósito de uma incursão naquela tarde em que os dois haviam seguido o amigo de Camlach, Alun, num encontro com uma das criadas, e ficaram escondidos espreitando e escutando até o doce final. Quando Dinias me atacou de surpresa na manhã seguinte, enfrentei-o e — citando uma frase ou outra — perguntei-lhe se já teria visto Alun naquele dia. Ele arregalou os olhos, enrubesceu, empalidecendo em seguida (pois Alun tinha a mão pesada e um gênio à altura), e então saiu sorrateiramente, fazendo o sinal às suas costas. Se ele preferia pensar que era mágica em vez de simples chantagem, que pensasse. Depois disso, se o Suserano em pessoa tivesse reivindicado a minha paternidade, nenhuma das crianças lhe teria dado crédito. Deixaram-me em paz. O que era tanto melhor, pois durante aquele inverno parte do assoalho da casa de banhos desmoronou, e meu avô, considerando a coisa toda perigosa, mandou aterrá-la e deitar veneno contra ratos. Portanto, como um lobinho desentocado da terra, com fumaça, tive que me defender sozinho na superfície. Cerca de seis meses após a visita de Gorlan, entre o fim de um fevereiro frio e o desabrochar de março, Camlach começou a insistir primeiro com minha mãe e a seguir com meu avô, em que me fosse ensinado a ler e escrever. Minha mãe, creio eu, ficou agradecida por essa evidência do seu interesse por mim; eu próprio me alegrei e tive o cuidado de demonstrá-lo, embora depois do incidente no pomar não pudesse guardar ilusões sobre seus motivos. Mas não fazia mal algum deixar Camlach pensar que meus sentimentos a respeito da vida sacerdotal tivessem sofrido uma mudança. A declaração de minha mãe de que nunca se casaria, a par de um maior retiro junto às suas damas e as visitas frequentes a São Pedro para conversar com a Abadessa e os padres que visitavam a comunidade, eliminaram seus piores receios de que ela viesse a casar-se com um príncipe galês que pudesse alimentar esperanças de conquistar o reino por direito de casamento, ou que o meu pai desconhecido viesse reivindicá-la, legitimar-me e provar ser um homem de posição e poder que o pudesse suplantar pela força. Não se preocupava Camlach com que, em qualquer dos casos, eu representasse algum perigo para si, e agora menos que nunca, visto que ele tomara uma esposa antes do Natal, a qual já em princípios de março aparentava estar grávida. Mesmo a gravidez cada vez mais óbvia de Olwen não o ameaçava, pois Camlach gozava de alto conceito junto ao Rei e não era provável que um irmão tão mais novo viesse a representar grave perigo. Não poderia haver dúvidas, Camlach tinha um passado de lutas, sabia fazer com que os homens o apreciassem, era implacável e ao mesmo tempo sensato. A crueldade transparecia no que tentara fazer

comigo no pomar; a sensatez, na sua bondade indiferente, uma vez que a decisão de minha mãe removera uma ameaça para ele. Mas reparei isso nos homens ambiciosos ou de poder: temem até a menor e mais improvável das ameaças. Ele nunca teria descanso enquanto não me visse ordenado e seguro fora do palácio. Quaisquer que fossem seus motivos, fiquei satisfeito quando chegou o meu preceptor. Era um grego que fora escriba em Massília até que, endividando-se com a bebida, se tornara escravo; agora tora destacado para o meu serviço e, como estivesse grato pela mudança de condição e aliviado do trabalho braçal, ensinava-me bem, sem a parcialidade religiosa que prejudicava os ensinamentos dos padres amigos de minha mãe. Demetrius era um homem agradável e inteligente, com talento para as línguas e cujas únicas diversões eram o jogo de dados e, quando ganhava, a bebida. Às vezes, quando ganhava o bastante, eu o encontrava feliz e inutilizado a dormir sobre os livros. Nunca falei a ninguém dessas ocasiões e, na verdade, ficava satisfeito com a oportunidade de tratar dos meus próprios assuntos; ele, por sua vez, era grato pelo meu silêncio, e quando eu, alguma vez, fazia gazeta, ele se calava e não procurava saber onde eu estivera. Eu era rápido em recuperar-me nos estudos e apresentava um progresso mais do que suficiente para satisfazer minha mãe e Camlach, de modo que Demetrius e eu respeitávamos os nossos segredos mútuos e nos dávamos toleravelmente bem. Certo dia de agosto, quase um ano depois da visita de Gorlan à corte do meu avô, deixei Demetrius curando tranqüilamente sua ressaca e cavalguei sozinho pelas montanhas atrás da cidade. Estivera por aqueles lados diversas vezes. Era mais rápido subir passando pelas muralhas do quartel e então tomar a estrada militar para leste através das montanhas para Caerleon, mas isso significava atravessar a cidade e talvez ser visto e interpelado. O caminho que tomei seguia margeando o rio. Havia um portão não muito usado. que saía diretamente dos nossos estábulos para a trilha larga e plana por onde passavam os cavalos que rebocavam as barcaças e que acompanhava o rio por longa distância; passava por São Pedro e contornava os meandros tranqüilos do Tywy até o moinho, onde chegavam as barcaças. Eu nunca passara desse ponto, mas havia uma trilha que continuava além do moinho até à estrada e seguia pelo vale do rio tributário que ajudava a mover o moinho. Era um dia quente e sonolento, com o ar cheirando a mato. Libélulas azuis esvoaçavam brilhantes sobre o rio e as grinaldas-de-noiva formavam um tapete espesso sob as nuvens de moscas. As patas seguras do meu pônei batiam de leve na argila cozida do caminho de reboque. Encontramos um grande cavalo malhado a arrastar vagaroso uma barcaça vazia do moinho a favor da corrente. O menino encarrapitado no seu lombo gritou um cumprimento e o homem da barcaça fez com a mão um aceno. Quando alcancei o moinho, não havia ninguém à vista. Sacos de grão, recém-descarregados, empilhavam-se no cais estreito. Ao lado deles, deitara-se esparramado sob o sol quente o cão do moleiro, que mal abriu um olho quando parei o cavalo à sombra da casa. No alto, o estirão longo e reto da estrada militar estava vazio. A corrente precipitava-se por uma galeria subterrânea e vi uma truta saltar brilhante em meio à espuma. Passar-se-iam horas antes que dessem pela minha ausência. Coloquei o pônei no barranco apontado para a estrada, venci a breve luta quando ele tentou virar-se para voltar para casa, e então incitei-o a um meio galope pela trilha que seguia rio acima para as colinas. A trilha dava voltas e mais voltas a princípio, galgando o lado íngrime do rio, e então deixava para trás as figueiras e carvalhos finos que cobriam a ravina e continuava em direção ao norte, numa curva suave e plana, ao longo da encosta descampada.

Ali os aldeões apascentavam seu gado, de modo que o capim era macio e rente. Passei a trote por um pastorzinho sonolento sob uma moita de espinheiro, perto das ovelhas; era um menino simples e humilde e apenas me olhou, distraído, tateando a pilha de seixos com os quais controlava suas ovelhas. Quando passamos, apanhou um deles, um seixo liso e verde, e fiquei a imaginar se o iria atirar em mim, mas ao invés usou-o para fazer voltar umas ovelhas gordas que e se afastavam demasiado enquanto pastavam e retomou os seus sonhos. Havia algum gado negro um pouco adiante no pasto, mais abaixo junto ao rio, onde o capim crescia alto, mas não consegui ver o peão. Distante, ao pé da montanha, minúscula ao lado de um casebre minúsculo, vi uma moça com um bando de gansos. Daí a pouco, a trilha começou a subir novamente, e meu pônei diminuiu a marcha, escolhendo o caminho por entre árvores esparsas. As aveleiras estavam coalhadas de frutos, sorveiras e urzes cresciam entre pedras cobertas de musgo e as samambaias chegavam à altura do peito. Coelhos corriam por toda parte, disparando por entre os fetos e dois gaios ralhavam com uma raposa, seguros no alto de um carpino balouçante. A terra estava dura demais, suponho eu, para se deixarem rastos, mas não vi nenhum sinal de samambaias esmagadas nem de galhos partidos que indicasse ter qualquer outro cavaleiro passado recentemente por aquelas paragens. O sol ia alto. Uma brisa leve passava pelos espinheiros, fazendo chocalhar os frutinhos verdes e duros. Incitei o pônei a prosseguir. Agora, entre os carvalhos e azevinhos surgiam pinheiros, os troncos avermelhados à luz do sol. O chão tornava-se mais acidentado à medida que a trilha subia, projetandose do relvado pedras cinzentas e nuas e um rendilhado de tocas de coelho. Eu não sabia onde terminaria a trilha, não sabia coisa alguma, exceto que estava só e livre. Nada havia que me indicasse que espécie de dia seria aquele ou que estrela me guiaria montanha acima. Isto aconteceu em época anterior àquela em que o futuro se tornou claro para mim. O pônei hesitou, e voltei a mim. Havia uma bifurcação na trilha sem nenhuma indicação de qual seria a melhor a seguir. Tanto a direita quanto a esquerda contornavam um bosque. O pônei voltou-se decidido para a esquerda, já que era uma descida. Eu o teria deixado prosseguir, só que naquele instante um pássaro passou voando baixo pela trilha à minha frente, da esquerda para a direita, e desapareceu entre as árvores. Asas pontiagudas, um relampejo de ferrugem e azul acinzentado, os olhos escuros e intensos, o bico curvado de um falcão. Sem razão alguma, exceto que aquela seria melhor que nenhuma razão, voltei a cabeça do pônei naquela direção e meti os calcanhares no animal. A trilha subia numa curva suave, deixando o bosque para a esquerda. Ali a vegetação era principalmente formada por pinheiros, densamente agrupados e escuros, e tão maciços que uma pessoa só poderia abrir caminho pela mata com um machado. Ouvi um bater de asas quando um pombo torcaz saiu do abrigo, mergulhando invisível para o lado mais distante das árvores. Seguira para a esquerda. Desta vez, segui o falcão. Estávamos agora fora do campo de visão do vale e da cidade. O pônei escolhia o caminho pelo lado de um vale raso, ao pé do qual corria um riacho estreito e rápido. Do lado oposto da corrente a encosta relvada subia até os seixos e acima apareciam as rochas azuis e cinzentas ao sol. A encosta por onde eu cavalgava estava pontilhada de espinheiros que projetavam poças de sombra oblíqua e, mais acima, outra vez seixos e rochedos cobertos de hera, onde as gralhas rodopiavam e gritavam na luminosidade do ar. Afora a algazarra dos pássaros, o vale apresentava a mais completa quietude. Os cascos do pônei ecoavam na terra cozida. Fazia calor e eu sentia sede. Agora a trilha corria sob um rochedo baixo, de uns seis metros, talvez, enquanto na sua base uma moita de espinheiros projetava sombras no caminho. Em algum lugar próximo, acima de mim, eu ouvia um filete de água a correr. Parei o pônei e desci. Levei-o para a sombra do espinheiro e amarrei-o; então, corri os olhos ao

redor à procura da fonte de água. A rocha junto à trilha estava seca e abaixo da trilha não havia sinal algum de água que corresse para engrossar o rio ao pé do vale. Mas o som de água corrente era contínuo e inconfundível. Deixei a trilha e subi pelo relvado que ladeava a pedra para encontrar-me num pequeno relvado seco, salpicado de dejetos de coelhos, e ao fundo outra face de rochedo. Nessa face do rochedo havia uma gruta. A entrada arredondada era um tanto pequena e bastante regular, quase como um arco construído. Do lado direito, estando eu de frente, havia uma encosta de pedras há muito caídas do alto, coberta de carvalhos e sorveiras cujos galhos pendentes sombreavam a gruta. Do outro lado, a pouca distância do arco, encontrava-se a fonte. Aproximei-me. Era pequenina, um movimento quase imperceptível de água a escorrer de um sulco na face do rochedo, caindo por um filete contínuo numa bacia redonda de pedra. Não transbordava. Provavelmente a água saía da rocha, caía na bacia e escorria por outra brecha, indo juntar-se por fim ao rio lá embaixo. Através da água transparente eu via cada seixinho, cada grão de areia no fundo da bacia. Fetos cresciam no alto, havia musgo na horda e relva verde e úmida na base. Ajoelhei-me na relva e já aproximava os lábios da água quando -' uma caneca. Estava metida num pequeno nicho entre os fetos. Media um palmo e era feita de chifre marrom. Ao erguê-la, vi acima, semi-oculta pelos fetos, uma pequena escultura de madeira representando um deus. Reconheci-o. Já o vira sob o carvalho em Tyr Myrddin. Ali estava ele, no alto de sua colina, ao ar livre. Enchi a caneca e bebi, deixando cair no chão algumas gotas para o deus. E entrei na gruta.

5 Era maior do que parecera do exterior. A apenas alguns passos do arco — e meus passos eram muito curtos — a gruta abría-se numa câmara aparentemente ampla cujo teto se perdia nas sombras. Estava escura, mas, ainda que a princípio eu não tivesse notado, nem procurado a causa, havia uma fonte de luz que lhe emprestava uma claridade ténue e mostrava o chão liso e livre de obstáculos. Prossegui muito lentamente, apurando a vista e sentindo bem no íntimo o começo daquela onda de excitação que as grutas sempre provocaram em mim. Alguns homens experimentam isso com a água; outros, eu sei, com lugares altos; outros ateiam fogo pelo mesmo prazer; comigo tem sempre sido as profundezas cia floresta ou as profundezas da terra. Agora, sei por quê; mas, então, eu apenas sabia que era um menino que encontrara um lugar novo, algo que talvez pudesse transformar em sua propriedade num mundo em que nada possuía. No momento seguinte estaquei, abatido pelo choque que me esvaziou a excitação das entranhas como se fosse água. Alguma coisa se movera nas sombras logo à minha direita. Fiquei imóvel, esforçando-me por ver. Não havia movimento algum. Prendi a respiração, à escuta. Não havia som algum. Apurei as narinas, testando cautelosamente o ar ao meu redor. Não havia cheiro, nem animal, nem humano; a gruta cheirava, achei eu, a fumaça, rocha úmida, à própria terra, um cheiro estranho, enfim, que eu não conseguia identificar. Eu sabia, sem racionalizar, que se tivesse estado outra criatura perto de mim o ar teria um odor diferente, menos vazio. Não havia ninguém ali. Experimentei dizer uma palavra baixinho, em galês. "Saudações." O sussurro voltou direto para mim num eco tão veloz que percebi estar eu muito próximo à parede da caverna, indo perder-se, sibilando, no teto. Havia um movimento ali: a princípio, pensei, apenas uma intensificação do eco do sussurro, então o farfalhar aumentou cada vez mais como o farfalhar de um vestido de mulher ou de uma cortina agitada pelo vento. Algo passou pelo meu rosto com um guincho débil, quase sem som. Outro se seguiu, e acompanhando-os, como flocos sucessivos, as sombras e guinchos, caindo do teto como folhas num pé-de-vento, ou peixes numa cachoeira. Eram morcegos que, espantados do seu abrigo no alto da caverna, se precipitavam agora para o vale iluminado. Estariam saindo pelo arco baixo como um rolo de fumaça. Permaneci imóvel imaginando se seriam eles os responsáveis pelo curioso odor de mofo. Pensei poder senti-lo agora à sua passagem, mas não era o mesmo. Não tinha medo de que me tocassem; na escuridão ou na luz, qualquer que seja a velocidade, morcegos não batem em nada. São criaturas do ar a tal ponto, creio eu, que à medida que o ar se move à frente de um obstáculo, o morcego é varrido para o lado no mesmo movimento, como uma pétala na correnteza de um rio. Mergulharam passando por mim, numa maré de guinchos agudos, entre mim e a parede. Infantilmente, para ver o que ocorreria à torrente — como se desviaria — aproximei-me mais um passo da parede. Nada me tocou. A corrente se dividiu e continuou caminho, o vento roçando-me ambas as faces. Era como se eu não existisse. Mas, no momento exato em que me mexi, a criatura que eu vira mexeu-se também. Então minha mão estendida encontrou, não a rocha, mas metal, e percebi quem era a criatura. Era meu próprio reflexo. Pendurada na parede estava uma folha de metal fracamente polida. Era essa, então, a fonte de luz

difusa no interior da caverna; a superfície sedosa do espelho apanhava obliquamente a luz da entrada da gruta e a refletia para a escuridão. Podia ver-me movendo no espelho como um fantasma, ao recuar e deixar cair a mão que segurara instintivamente a faca na cintura. Às minhas costas o fluxo de morcegos cessara e a gruta voltara ao silêncio. Reconfortado, permaneci onde estava, estudando com interesse a imagem no espelho. Minha mãe possuíra um desses, uma antiguidade egípcia, mas julgando tais coisas vaidade, guardara-o. Naturalmente eu via com frequência meu rosto refletido na água, mas nunca, até então, meu corpo. Vi um menino moreno, desconfiado, todo olhos de curiosidade, nervos e excitação. Naquela luz meus olhos pareciam bem pretos; meu cabelo era preto também, espesso e limpo, mas mais mal cortado e cuidado do que o do meu pônei; a túnica e as sandálias eram uma desgraça. Sorri e o espelho refletiu num clarão um sorriso súbito que mudou a figura completa e instantaneamente; do pequeno animalzinho circunspecto e preparado para correr ou lutar, para algo rápido, meigo e abordável; algo que eu percebi mesmo então, que poucas pessoas jamais teriam visto. Então desapareceu, e o animal desconfiado voltou, ao curvar-me para correr a mão pelo metal. Era frio, liso e recém-polido. Quem quer que o tivesse pendurado — e deveria ser a mesma pessoa que usava a caneca de chifre do lado de fora — ou estivera ali muito recentemente ou ainda ali morava, e poderia voltar a qualquer momento e surpreender-me. Eu não estava especialmente receoso. Pusera-me em guarda quando vira a caneca, mas aprendi muito cedo a cuidar de mim mesmo e a época em que fora criado era bastante tranqüila, ao menos no nosso vale; mas havia sempre homens selvagens, cruéis, desesperados e vagabundos para enfrentar, e qualquer menino que gostasse de andar só, como eu, devia estar preparado para defender a própria pele. Eu era musculoso e forte para a idade e trazia uma adaga. Que tivesse apenas sete anos de idade nunca me passara pela cabeça; eu era Merlin e, bastardo ou não, o neto do Rei. Continuei minha exploração. A próxima coisa que encontrei, a um passo da parede, foi uma caixa, e sobre ela formas que minhas mãos identificaram imediatamente como sílex, ferro e isqueiro ({2}), e uma vela grande e tosca que cheirava a sebo de carneiro. Ao lado desses objetos, outra forma que, incredulamente, centímetro por centímetro, identifiquei como o crânio de um carneiro. Aqui e ali havia tachas cravadas na superfície da caixa que aparentemente prendiam fragmentos de couro. Ao tocá-los, cuidadoso, descobri no couro desgastado o arcabouço de ossos delicados; eram morcegos mortos, esticados e pregados à madeira. Aquela era na verdade a gruta do tesouro. Nenhuma descoberta de ouro ou armas poderia ter-me excitado mais. Cheio de curiosidade, apanhei o isqueiro. Então ouvi-o regressar. Meu primeiro pensamento foi de que ele deveria ter visto meu pônei, mas então percebi que ele vinha do alto da colina. Podia ouvir as pedrinhas batendo e rolando à medida que descia a ladeira acima da caverna. Uma das pedrinhas caiu na fonte do lado de fora e então já era tarde demais. Ouvi-o pular sobre o relvado plano junto à água. Era hora do pombo torcaz outra vez; o falcão foi esquecido. Corri para o fundo da gruta. Quando ele afastou os galhos que obscureciam a gruta, a luz aumentou momentaneamente, o suficiente para mostrar-me o caminho. Ao fundo da gruta havia uma inclinação e um ressalto na rocha e, a uma altura duas vezes a minha, um degrau meio largo. Um raio de sol refletido no espelho bateu numa parte escura da rocha, acima do degrau, que seria suficientemente grande para ocultar-me. Silencioso nas minhas

sandálias rotas, trepei no degrau e espremi-me no canto escuro, descobrindo que na verdade se tratava de uma brecha na rocha que se abria aparentemente para uma segunda gruta, menor. Escorreguei pela brecha como uma lontra no barranco do rio. Parecia que ele não ouvira nada. A luz foi cortada outra vez quando os galhos voltaram à posição original e ele entrou na gruta. Eram passos de homem, medidos e lentos. Se eu me tivesse dado ao trabalho de pensar, creio que teria presumido que a gruta estaria desabitada pelo menos até o pôr do sol, e que quem quer que fosse o dono do lugar estaria fora caçando ou tratando da vida e só voltaria ao cair da noite. Não havia necessidade de gastar velas quando o sol brilhava lá fora. Talvez ele estivesse ali apenas trazendo a caça e se iria embora outra vez, deixando-me a oportunidade de escapar. Esperava que ele não visse o pônei amarrado na moita de espinheiro. Então ouvi-o mover-se, com os passos firmes de alguém que conhece o caminho de olhos vendados, na direção da vela e do isqueiro. Mesmo agora eu não tinha motivo para apreensões, nenhum motivo para nada a não ser um pensamento ou sensação: o extremo desconforto da gruta em que me metera. Era aparentemente pequena, não muito maior que uma tina dessas que se usam para tingir, e de forma bem semelhante. Chão, teto e paredes envolviam-me numa curva contínua. Era como se eu estivesse no interior de um grande globo — mas um globo cravejado de pregos ou com a superfície interna toda coberta de pedacinhos de pedra lascada. Não parecia haver um centímetro da superfície que não estivesse eriçada como um leito de sílex e apenas o meu pouco peso, creio eu, poupava-me o ser cortado, enquanto procurava às cegas um espaço desimpedido para deitar-me. Encontrei um lugar mais liso que o resto e enrosquei-me ali o mais que pude, vigiando a abertura mal delineada e passando silenciosamente a adaga da bainha para a mão. Ouvi o sibilar curto e o tinir do sílex contra o ferro e então um clarão de luz intensa na escuridão, quando a isca pegou. E a seguir, o brilho firme e céreo da vela acesa. Ou antes, deveria ter sido um clarão de intensidade crescente da luz de uma vela o que vi, mas ao invés houve um clarão, uma fagulha e uma conflagração como se um farol embebido em resina estivesse rugindo em chamas. A luz piscava carmim, ouro, branco, vermelho, intolerável na minha gruta. Apertei os olhos para evitá-la, assustado agora, sem pensar na dor e na pele cortada ao encolherme contra as paredes aguçadas. O globo inteiro onde me encontrava deitado parecia em chamas. Era na verdade um globo, uma câmara arredondada de chão, teto e paredes revestidos de cristais. Eram finos como vidro, e lisos como vidro, mas mais transparentes que qualquer vidro que eu tivesse visto, faiscantes como diamantes. Isto, na realidade, foi o que pareceram, a princípio, à minha mente infantil. Eu estava num globo revestido de diamantes, um milhão de diamantes incandescentes, a face de cada gema a piscar com a luz, refletindo-se de uma para outra, de diamante para diamante e de volta novamente, com arco-íris, rios e estrelas a explodir, e a forma como de um dragão carmim a galgar as paredes, enquanto, abaixo dele, o rosto de uma moça flutuava, lânguido, de olhos fechados, e a luz dirigida bem para o meu corpo como se quisesse fender-me. Fechei os olhos. Quando os abri outra vez, vi que a luz dourada encolhera e se concentrara numa única parte da parede não maior que minha cabeça, e dali, despojada de visões, irradiava fachos entrecortados e brilhantes. Reinava o silêncio na gruta abaixo. Ele não se movera. Não se ouvia nem o farfalhar das suas vestes. Então a luz se moveu. O disco luminoso começou a deslizar lentamente pela parede de cristal. Eu

tremia. Aconcheguei-me mais às pedras pontiagudas, tentando evitá-lo. Não havia para onde ir. Avançou lentamente pela curva. Tocou o meu ombro, minha cabeça, e eu abaixei-me, encolhendo-me. A sombra do meu movimento perpassou pelo globo como um redemoinho produzido pelo vento num lago. A luz parou, recuou, fixou-se coruscante em seu lugar. Então desapareceu. Mas o brilho da vela, estranhamente, permaneceu; um brilho comum, firme e amarelo para além da abertura da parede do meu refúgio. — Saia. A voz do homem, não alta, não levantada para gritar ordens como a de meu avô, era clara e concisa com todo o mistério do comando. Não me ocorreria desobedecê-la. Arrastei-me para a frente, sobre os cristais pontiagudos, e pela abertura. Então, lentamente, pus-me de pé no degrau, as costas contra a parede da gruta exterior, a adaga pronta na mão direita, e olhei para baixo.

6 Ele estava de pé entre mim e a vela; uma figura imensamente alta (ou pelo menos assim me parecia), numa veste longa de tecido grosseiro marrom. A vela transformava-lhe o cabelo numa nuvem que parecia cinzenta e ele usava barba. Não conseguia ver-lhe a expressão, e a mão direita dele encontrava-se oculta nas dobras da veste. Esperei, numa atitude cautelosa. Ele voltou a falar no mesmo tom. — Guarde sua adaga e desça. — Quando eu vir sua mão direita — respondi-lhe. Mostrou-a, de palma para cima. Estava vazia. E disse, em tom sério: — Estou desarmado. — Então fique fora do caminho — disse eu e pulei. A gruta era larga, e ele estava parado num dos lados. Meu pulo levou-me três ou quatro passos adiante, e já o passara e achava-me perto da entrada, antes que ele tivesse podido dar mais que um passo. Mas, na verdade, ele nem se moveu. Quando alcancei a entrada da gruta e afastei os galhos pendentes, ouvi-o rir-se. O som me fez parar. Voltei-me. Dali, à luz que agora invadia a gruta, vi-o claramente. Era velho, o cabelo grisalho rareando no alto da cabeça e caindo liso pelas orelhas, e um tufo de barba grisalha irregularmente aparada. Suas mãos eram calosas e encardidas, mas percebia-se que tinham sido delicadas, e os dedos, longos. Agora, as veias do velho cruzavam-se e entrecruzavam-se sobre elas, dilatadas como vermes. Mas foi o seu rosto que me prendeu; era magro, cavernoso, quase como um crânio, a testa alta e as sobrancelhas espessas que se juntavam sobre os olhos, onde não se viam quaisquer traços de idade. Os olhos eram muito próximos, grandes e de um cinzento curiosamente transparente e flutuante. O nariz era fino e adunco; a boca, agora sem lábios, alargava-se num imenso sorriso, deixando entrever dentes surpreendentemente bons. — Volte. Não precisa ter medo. — Não estou com medo. — Deixei os galhos cairem e, não sem um pouco de bravata, caminhei em sua direção. Parei a alguns passos de distância. — Por que deveria temê-lo? Sabe quem eu sou? Ele fitou-me por uns instantes, parecendo refletir. — Deixe-me ver. Cabelos escuros, olhos escuros, corpo de bailarino e modos de um jovem lobo... ou deveria dizer de um jovem falcão? Minha adaga escorregou pelo lado. — Então o senhor me conhece? — Digamos que eu sabia que viria um dia e hoje eu sabia que havia alguém aqui O que acha que me trouxe de volta tão cedo? — Como sabia que havia alguém aqui? Oh, naturalmente o senhor viu os morcegos. — Talvez.

— Eles sempre saem voando assim? — Só com estranhos. A sua adaga, senhor. Coloquei-a de volta no cinto. — Ninguém me chama de senhor. Sou bastardo. Isto quer dizer que pertenço a mim mesmo, a ninguém mais. Meu nome é Merlin, mas o senhor sabia disso. — E o meu é Galapas. Está com fome? — Estou — respondi. Mas disse-o um tanto duvidoso, pensando no crânio e nos morcegos mortos. Surpreendentemente ele entendeu. Os olhos cinzentos piscaram. — Fruta e bolos de mel? E água doce da fonte? Que melhor comida obteria mesmo na casa do Rei? — Eu não obteria isso na casa do Rei a esta hora do dia — respondi-lhe com sinceridade. — Muito obrigado, senhor, terei prazer em comer em sua companhia. Ele sorriu. — Ninguém me chama de senhor. Eu também não pertenço a ninguém. Saia e sente-se ao sol que eu lhe levarei a comida. A fruta eram maçãs que tinham a aparência e o sabor exata-mente iguais às do pomar do meu avô, de modo que lancei um olhar de esguelha ao meu anfitrião, estudando-o à luz do dia, imaginando se alguma vez o teria visto à beira do rio ou em qualquer outra parte da cidade. — O senhor tem esposa? — perguntei. — Quem faz os bolos de mel? Estão muito bons. — Não tenho esposa. Disse-lhe que não pertencia a nenhum homem, e tampouco a nenhuma mulher. Você verá, Merlin, como toda a sua vida homens e mulheres também tentarão colocar grades à sua volta, mas você escapará dessas grades, ou as dobrará, ou as derreterá à sua vontade até que, quando desejar, os aceite à sua volta e fique por trás deles, nas sombras. Consigo os bolos de mel com a mulher do pastor; ela faz o suficiente para três, e é bastante bondosa em separar alguns para fazer caridade. — Então, é um ermitão? Um homem santo? — Pareço um homem santo? — Não. — Isto era verdade. As únicas pessoas que me lembro de temer naquela época eram os homens santos, solitários, que às vezes vagueavam, pregando e mendigando, pela cidade; homens estranhos, arrogantes e barulhentos, com um brilho de loucura no olhar e um cheiro que eu associava aos montes de detritos junto aos matadouros. Era às vezes difícil saber a que deus professavam servir. Alguns deles, murmurava-se, eram druidas que continuavam oficialmente fora da lei, embora no País de Gales, em certos lugares do campo, ainda praticassem seus ritos sem muita interferência. Muitos eram seguidores dos antigos deuses — as divindades locais — e já que estas variavam de popularidade de acordo com a estação, os respectivos sacerdotes tendiam a trocar a lealdade de tempos em tempos para aqueles cuja coleta fosse mais rica. Mesmo os cristãos procediam assim às vezes, mas podiam-se em geral reconhecer os verdadeiros cristãos porque eram os mais sujos. Os deuses romanos e seus sacerdotes ficavam solidamente entrincheirados nos seus templos em ruínas, mas faziam igualmente uma boa coleta. A Igreja reprovava-os, mas não havia muito o que pudesse fazer. — Vi um deus naquela fonte do lado de fora — aventurei. — Sim. É Myrddin. Ele me empresta sua fonte, sua montanha oca e o seu céu tecido de luz e em retribuição entrego-lhe o que lhe é devido. Não se devem negligenciar os deuses de um local, quaisquer que sejam. No fundo, são todos um só.

— Se o senhor não é ermitão, então o que é? — No momento, um professor. — Eu tenho um preceptor. Ele é de Massília, mas na realidade já esteve em Roma. A quem é que o senhor ensina? — Até agora ninguém. Estou velho e cansado e vim para cá morar sozinho e estudar. — Por que é que o senhor tem morcegos mortos lá na caixa? — Estava a estudá-los. Arregalei os olhos. — Estudar morcegos? Como pode estudar morcegos? — Estudo a maneira como são feitos, a maneira como voam, se reproduzem e se alimentam. A maneira como vivem. Não só morcegos, mas animais e peixes, e plantas e pássaros, tantos quantos vejo. — Mas isso não é estudo! — Olhei-o admirado. — Demetrius, o meu preceptor, diz que observar os lagartos e os pássaros é sonhar e perder tempo, embora Cerdic, um amigo, me tenha aconselhado a estudar os pombos torcazes. — Por quê? — Porque são velozes, sossegados e permanecem fora de vista. Porque põem apenas dois ovos, mas ainda que toda a gente os cace, homens, feras e falcões, há mais pombos torcazes que qualquer outra coisa. — E não se deixam prender em gaiolas. — Tomou um gole de água, observando-me. — Então, você tem um preceptor. Sabe ler? — Naturalmente. — Sabe ler grego? — Um pouquinho. — Então venha comigo. Ele levantou-se e entrou na caverna. Segui-o. Acendeu a luz mais uma vez — apagara-a para poupar o sebo — e à sua claridade abriu a tampa da caixa. No seu interior vi livros em rolos, mais livros juntos do que eu jamais imaginara que existissem no mundo. Observei-o enquanto escolhia um, fechava a tampa cuidadosamente e o desenrolava. — Veja. Com prazer, vi o que era. Um desenho garatujado, mas claro, do esqueleto de um morcego. E do lado, em letras gregas bem desenhadas, frases que eu, imediatamente, esquecendo-me da presença de Galapas, comecei a soletrar para mim mesmo. Passados um minuto ou dois, sua mão tocou-me o ombro. — Traga-o para fora. — Arrancou das tachas que prendiam um dos corpos secos e duros à tampa da caixa e ergueu-o cuidadosamente na palma da mão. — Sopre a vela. Vamos examinar isto juntos. E assim, sem mais perguntas, e sem mais cerimônia, começou minha primeira lição com Galapas. Somente quando o sol, já baixo sobre um lado do vale, projetava uma sombra alongada pela encosta acima, me lembrei da outra vida que me esperava e da distância que teria de percorrer. Pus-me de pé.

— Tenho que ir! Demetrius não dirá nada, mas se eu chegar atrasado para a ceia perguntarão o motivo. — E você não pretende dizer-lhes? — Não, do contrário me impediriam de vir novamente. Ele sorriu sem fazer comentários. Duvido que eu tenha notado, então, a tranqüila presunção em que se baseara o nosso encontro; ele não perguntara como eu viera nem por quê. E por ser apenas uma criança tomei-o como certo também, embora por polidez perguntasse: — Posso vir novamente, não posso? — Naturalmente. — É... é difícil dizer quando. Nunca sei quando poderei escapar... quero dizer quando estarei livre. — Não se preocupe. Saberei quando você vem. E estarei aqui. Ele enrolava o livro com os dedos longos e finos. — Da mesma forma que soube hoje. — Oh! Estava esquecendo. O senhor quer dizer que eu entro na caverna e espanto os morcegos? — Se quiser. Ri com prazer. — Nunca encontrei ninguém igual ao senhor! Fazer sinais de fumaça com morcegos! Se eu contasse isso, nunca me dariam crédito, nem mesmo Cerdic. — Você não contará nem mesmo a Cerdic. Assenti. — Isso mesmo. A ninguém. Agora preciso ir-me. Até logo, Galapas. — Até logo. E assim foi nos dias e nos meses que se seguiram. Sempre que podia, uma vez e, ocasionalmente, duas vezes por semana, subia o vale em demanda da gruta. Ele certamente parecia saber quando eu vinha, pois quase sempre se encontrava à minha espera com os livros separados; mas quando não havia sinal dele, eu fazia conforme combináramos, e espantava os morcegos como um sinal de fumaça para chamá-lo. À medida que as semanas transcorriam, eles habituaram-se a mim e eram precisas duas ou três pedras bem miradas contra o teto para fazê-los sair; mas depois de algum tempo isso se tornou desnecessário; a gente do palácio acostumou-se às minhas ausências, e parou de indagar, e foi possível combinar encontros com Galapas de um dia para o outro. Moravik deixara-me cada vez mais seguir meu próprio caminho, já que o bebe de Olwen nascera em fins de maio e, quando o filho de Camlach chegou, em setembro, ela se fixou nos aposentos dos bebes reais como a governanta oficial, abandonando-me tão subitamente quanto um pássaro abandona o ninho. Via minha mãe cada vez menos e ela parecia satisfeita em passar o tempo com suas aias, de modo que fiquei entregue a Demetrius e a Cerdic. Demetrius tinha razões próprias para apreciar um dia livre de quando em quando e Cerdic era meu amigo. Desencilhava o pônei enlameado e suarento sem perguntas ou com uma piscadela e um comentário lascivo a propósito de onde eu estivera, à guisa de piada, e como tal era tomado. Tinha o meu quarto só para mim agora, exceto pelo cão-lobo; ele passava as noites comigo em atenção aos velhos tempos, mas se representava alguma segurança não faço idéia. Suspeito que não; eu estava bastante seguro. O país gozava de paz, salvo pelos perenes rumores de uma

invasão da Bretanha Menor. Camlach e o pai estavam de acordo; segundo todas as aparências, eu caminhava voluntária e rapidamente para a prisão do sacerdócio e assim, quando as lições com Demetrius foram oficialmente terminadas, fiquei livre para andar por onde me aprouvesse. Nunca mais vi ninguém no vale. O pastor só morava lá no verão, num casebre miserável abaixo da floresta. Não havia outras habitações ali, e para além da gruta de Galapas a trilha era usada apenas pelas ovelhas e veados. Não levava a parte alguma. Ele era um bom mestre e eu rápido, mas na verdade mal considerava o tempo que passava com ele como uma lição. Deixamos as línguas e a geometria com Demetrius e a religião com os padres de minha mãe; com Galapas, de início, era apenas como escutar um contador de histórias. Ele viajara, quando jovem, pelo outro lado do mundo, Etiópia, Grécia, Alemanha e em torno do Mediterrâneo, e vira e aprendera coisas estranhas. Ensinou-me coisas práticas também: como colher ervas e secá-las para guardar, como empregá-las em remédios, e como destilar determinadas drogas sutis, e mesmo venenos. Fez-me estudar os animais selvagens e os pássaros e — com as aves e ovelhas mortas que encontrávamos nas montanhas, e certa vez com um veado morto — estudei os órgãos e os ossos do corpo. Ensinou-me a estancar uma hemorragia, a emendar um osso quebrado, a cortar a carne ferida e limpá-la para que sarasse sem infeccionar, e mesmo — embora isso tivesse vindo mais tarde — a unir carne e músculos no lugar com uma linha enquanto o animal está atordoado com vapores. Lembro-me de que o primeiro encantamento que me ensinou foi o feitiço das verrugas. É tão fácil que até uma mulher pode fazer. Certo dia, tirou um livro da caixa e desenrolou-o. — Você sabe o que é isso? Eu estava acostumado a diagramas e desenhos, mas aquilo não era um desenho de nada que eu pudesse reconhecer. O texto estava em latim e vi as palavras Etiópia e, fora, a um canto, Bretanha. As linhas pareciam estar rabiscadas por toda a parte e na figura havia linhas de nível desenhadas parecendo um campo escavado por toupeiras. — Estas aqui, são montanhas? — São. — Então é um mapa do mundo? — Um mapa. Eu nunca vira um mapa antes. A princípio não consegui compreender como funcionava, mas em pouco tempo, à medida que ele explicava, vi como o mundo se espraiava ali como um pássaro o vê, com estradas e rios como círculos numa teia de aranha, ou as linhas-mestras que conduzem uma abelha a uma flor. Como um homem que encontra um curso dágua conhecido e o segue através da charneca, assim, com um mapa, é possível cavalgar de Roma a Massília, ou de Londres a Caerleon, sem perguntar uma só vez a direção ou procurar marcos no caminho. Esta arte foi descoberta pelo grego Anaximandro, embora alguns digam que os egípcios já a conheciam. O mapa que Galapas me mostrou era uma cópia de um livro de Ptolomeu de Alexandria. Depois de ter-me explicado e estudado o mapa comigo, ele mandou que eu apanhasse uma tábua e sozinho fizesse um mapa do meu próprio país. Quando terminei, ele o examinou. — Isto no centro o que é? — Maridunum — disse eu, surpreso. — Veja, aí está a ponte e o rio, e esta é a estrada que passa pelo mercado, e os portões do aquartelamento estão aqui.

— Estou vendo isso. Eu não falei da sua cidade, Merlin, mas sim do seu país. — O País de Gales todo? Como posso saber o que existe ao norte das montanhas? Nunca fui mais longe que isso. — Vou-lhe mostrar. Ele pôs a tábua de lado e, apanhando uma varinha pontuda, começou a desenhar na areia, explicando à medida que desenhava. O que desenhou para mim foi um mapa do formato de um grande triângulo, não apenas de Gales, mas da Bretanha toda, até mesmo das terras selvagens para além da muralha onde vivem os bárbaros. Mostrou-me montanhas, estradas e cidades, Londres, Calleva e os densos aglomerados ao sul, até as cidades e fortalezas nos extremos da teia de estradas, Segontium, Caerleon e Eboracum e as povoações ao longo da própria muralha. Falava como se fossem todas um só país, embora eu pudesse ter enumerado para ele os nomes dos reis de uma dúzia dos lugares mencionados. Só me lembro disso pelos acontecimentos que sobrevieram. Logo depois, quando o inverno chegou e as estrelas apareciam mais cedo, ele ensinou-me seus nomes e seus poderes e como um homem podia mapeá-las do mesmo modo que fazia com as estradas e cidades. Elas produziam música, disse-me ele, ao se moverem. Ele próprio não sabia música, mas quando descobriu que Olwen havia-me ensinado, ajudou-me a construir uma harpa. Era um instrumento bastante tosco, suponho eu, e pequeno, feito de chifre, a curvatura e a coluna em salgueiro do Tywy e encordoada com fios de cabelo da cauda do meu pônei, enquanto que a harpa de um príncipe (disse Galapas) deveria ser encordoada com fios de ouro e prata. Mas eu fiz a base das cordas com moedas de cobre vazadas, o pedal e as cravelhas de osso polido, esculpi um falcão na caixa acústica e considerei-o um instrumento melhor que o de Olwen. Na verdade, era tão fiel quanto o dela, produzindo uma espécie de som doce e sussurrante que parecia arrancar a música do próprio éter. Guardei-a na gruta; embora Dinias me deixasse em paz nesses dias, por ser um guerreiro, enquanto eu não passava de um clérigo parasita, não guardaria nada que prezasse no palácio a não ser que pudesse trancá-lo na minha arca de roupa, e a harpa era muito grande para isso. Em casa, como música, eu possuía os pássaros da pereira e Olwen ainda cantava de vez em quando. E quando os pássaros emudeciam, e o céu da noite pontilhava de luz, eu procurava escutar a música das estrelas. Mas nunca consegui ouvi-la. Então, certo dia, quando eu estava com doze anos, Galapas falou da gruta de cristal.

7 É fato sabido que, em se tratando de crianças, as coisas mais importantes passam, freqüentemente, sem menção. É como se a criança reconhecesse por instinto aquilo que é grande demais para ela e o guardasse na mente, alimentando-o com sua imaginação até assumir proporções tão extensas ou grotescas que possa ser tomado, igualmente, por mágica ou pesadelo. Assim foi com a gruta de cristal. Nunca mencionei a Galapas minha primeira experiência ali. Mesmo para mim próprio, eu dificilmente admitia o que me ocorria às vezes com a luz e o som; sonhos, dizia a mim mesmo, memórias de uma sub-memória, produtos da minha mente apenas, como a voz que me contara a respeito de Gorlan ou a visão do veneno no damasco. E quando descobri que Galapas nunca mencionava a gruta interior, e que o espelho era mantido coberto sempre que eu estava presente, caleime. Fui vê-lo num dia de inverno em que a geada fazia o chão faiscar e retinir e meu pônei soprava vapor como um dragão. Ele seguia veloz, agitando a cabeça e repuxando um pouco o freio e abriu num galope assim que saí da floresta e entrei no vale alto. Com o tempo eu me tornara muito crescido para o manso pônei creme da minha infância, mas orgulhava-me do meu cinzento, galés, que chamei de Aster. Há uma raça de pônei montanhês no País de Gales, robusta, veloz e muito bonita, com a cabeça delicada e estreita, orelhas pequenas e o pescoço bem arqueado. Correm selvagens nas montanhas e em tempos remotos se misturaram aos cavalos que os romanos trouxeram do Oriente. Aster tinha sido laçado e domado por meu primo Dinias, que o montara por uns dois anos e então 0 descartara por um verdadeiro cavalo de guerra. Achei-o difícil de lidar, os modos bruscos e a boca arruinada, mas o seu passo era de seda comparado aos sacolejões a que eu estava habituado, e uma vez perdido o medo de mim tornou-se carinhoso. Eu já tinha há muito idealizado um abrigo para o meu pônei para quando fosse até lá no inverno. A moita de espinheiros crescia de encontro ao rochedo sob a gruta e no seu recôncavo, na parte mais espessa, Galapas e eu tínhamos carregado pedras para formar um cercado cuja parede do fundo era o próprio rochedo. Depois que pusemos galhos secos contra as paredes e o topo, e forrado com algumas braçadas de samambaias, o Cercado tornou-se não só um abrigo sólido e quente mas invisível aos olhos de quem passasse. A necessidade de segredo era outra das coisas que nunca discutíramos abertamente; eu compreendia, sem que me fosse dito, que Galapas de alguma forma me ajudava a contrariar os planos de Camlach para mim. Assim — embora à medida que o tempo passasse eu fosse deixado mais totalmente entregue aos meus próprios planos — tomava todas as precauções para evitar ser descoberto, encontrando meia dúzia de caminhos diferentes para me aproximar do vale, e uma vintena de histórias para justificar o tempo que passava lá. Levei Aster para o cercado, retirei a sela e os arreios, pendurei-os, atirei no chão um pouco de ferragem de uma mochila, barrei a entrada com um galho forte e caminhei rapidamente para a gruta. Galapas não estava lá, mas que tinha saído há pouco tempo era atestado pelo fato de que o braseiro no interior da gruta, junto à entrada, tinha sido abafado, vendo-se apenas uma pequena chama. Aticei-o até que as chamas crescessem e sentei-me ao lado com um livro. Não havia combinado vir, mas dispunha de bastante vagar e, deixando os morcegos sossegados, li tranqüilamente por algum tempo.

Não sei o que me fez, naquele dia dentre todos os outros que ali estivera sozinho, pôr subitamente o livro de lado e encaminhar-me para além do espelho velado para examinar a brecha pela qual havia fugido cinco anos antes. Dizia a mim mesmo que estava apenas curioso em verificar se era realmente como me lembrava, ou se os cristais, como as visões, eram produto da minha imaginação; qualquer que fosse a razão, trepei rapidamente para o degrau, e acocorado junto à brecha pus-me a espreitar. A gruta interior estava silenciosa e escura, sem nenhum brilho de chamas a iluminá-la. Arrastei-me para diante com cautela até que minhas mãos encontraram os cristais pontiagudos. Eram muito reais. Mesmo agora, sem admitir para mim mesmo por que me apressava, com um olho na boca da gruta principal e o ouvido apurado para a volta de Galapas, escorreguei pela beirada, apanhei a jaqueta de couro de montaria que despira e, correndo de volta, atirei-a à minha frente pela brecha. Então engatinhei atrás dela. Com a jaqueta de couro esticada no chão, o globo era relativamente confortável. Fiquei imóvel. O silêncio era completo. À medida que meus olhos se acostumavam à escuridão, pude perceber um brilho débil e cinzento nos cristais, mas da mágica que a luz produzira não havia sinal. Deveria haver alguma brecha aberta para o exterior, porque mesmo naquele canto escuro havia uma ligeira corrente, o filete frio de uma corrente de ar. E com ele vinha o som pelo qual eu esperara, vinham os passos de alguém que se aproximava por sobre o rochedo gelado... Quando Galapas entrou na gruta alguns minutos mais tarde, eu estava sentado ao pé do fogo, minha jaqueta enrolada de um lado, mergulhado no livro. Meia hora antes do crepúsculo, pusemos os livros de parte. Mas, ainda assim, eu não fiz menção de sair. O fogo brilhava agora, enchendo a gruta de calor e luz trêmula. Ficamos um momento sentados em silêncio. — Galapas, há uma coisa que quero perguntar-lhe. — Sim? — Lembra-se do primeiro dia que vim aqui? — Muito claramente. — Você sabia que eu viria. Estava à minha espera? — Eu lhe disse isso? — Você sabe que disse. Como soube que eu viria aqui? — Vi na gruta de cristal. — Oh, isso? Você moveu o espelho para que a luz da vela me apanhasse e viu minha sombra. Mas não era isso que estava perguntando. E sim como soube que eu ia subir o vale naquele dia? — Foi essa a pergunta a que respondi, Merlin. Eu sabia que você ia subir o vale naquele dia, porque, antes de você chegar, eu o vi na gruta. Fitamo-nos em silêncio. As chamas luziam e sussurravam entre nós, encolhidas pela fraca corrente que levava a fumaça para fora da gruta. Não creio que tenha respondido de pronto, apenas assenti. Era uma coisa que já sabia. Passados uns instantes, pedi-lhe com simplicidade: — Quer-me mostrar? Ele encarou-me por um momento e pôs-se de pé.

— Já é tempo. Acenda a vela. Obedeci. A pequenina chama tornou-se dourada, alcançando as sombras projetadas pela luz trêmula do braseiro. — Tire o tapete do espelho. Puxei-o e ele caiu-me nos braços formando um monte de lã. Atirei-o na cama junto à parede. — Agora suba para o degrau e deite-se. — No degrau? — É. Deite-se de bruços, com a cabeça na direção da brecha, para que possa ver o interior. — Não quer que entre de uma vez? — E leve sua jaqueta para deitar-se sobre ela? Eu já estava a meio caminho do degrau. Voltei-me e vi-o sorrindo. — Não adianta, Galapas, você sabe tudo. — Algum dia você chegará aonde nem com a vidência poderei segui-lo. Agora deite-se imóvel e observe. Deitei-me no degrau. Era largo e plano e me mantinha bastante confortavelmente de bruços, a cabeça nos braços dobrados, voltada para a entrada. Abaixo, Galapas disse baixinho: — Não pense em nada. Tenho as rédeas nas mãos; isto não é para você, ainda. Apenas observe. Ouvi-o recuar, atravessando a gruta, na direção do espelho. A gruta era muito maior do que eu imaginara. Alongava-se para o alto, mais alto do que eu conseguia enxergar e o chão desgastara-se até tornar-se liso. Eu estivera enganado até a respeito dos cristais; o brilho que refletia a tocha vinha apenas das poças no chão, e de um ponto numa das paredes onde uma fina camada de umidade denunciava uma mina em algum lugar no alto. As tochas, metidas em fendas na parede da caverna, eram ordinárias, de chifres rachados e enchidos de trapos — o refugo das oficinas. Queimavam mortiças no ar viciado. Embora o lugar fosse frio, os homens trabalhavam nus exceto pelas tangas e o suor escorria-lhes pelas costas enquanto talhavam a face da rocha, em golpes firmes e contínuos, que não produziam ruído, mas podiam-se ver os músculos contraírem-se e distenderem-se no suor iluminado pelos archotes. Sob uma protuberância da altura dos joelhos na base da parede, deitados de costas numa poça de água infiltrada, dois homens martelavam para o alto, em golpes curtos e sofridos, a rocha a centímetros dos seus rostos. No pulso de um deles vi a ruga brilhante de uma cicatriz antiga. Um dos pedreiros curvou-se para a frente, tossindo, e com um olhar de esguelha sufocou a tosse e voltou ao trabalho. A luz da gruta tornou-se mais intensa através de uma abertura quadrada como um portal, que dava para um túnel curvo de onde vinha uma nova tocha, uma tocha melhor. Quatro rapazes surgiram, imundos de poeira e nus como os outros, carregando cestas fundas, e atrás deles um homem com uma túnica marrom manchada e úmida. Trazia a tocha numa mão e na outra uma tabuinha que parou para estudar franzindo o cenho, enquanto os rapazes corriam com as cestas para

a face da rocha e começavam a enchê-las com pás de pedras caídas. Passado algum tempo, o capataz adiantou-se para a face da rocha e estudou-a levantando a tocha mais alto. Os homens recuaram, parecendo agradecidos pela trégua, e um deles dirigiu-se ao capataz, apontando primeiro para o trabalho e a seguir para a umidade que se infiltrava na parte mais afastada da gruta. Os rapazes tinham enchido as cestas completamente e as haviam arrastado para longe da face. O capataz, num encolher de ombros, sorrindo, tirou uma moeda de prata da bolsa e, com um piparote de jogador experiente, atirou-a ao ar. Os trabalhadores espicharam o pescoço para vê-lo. Então o homem que falara tornou a voltar-se para a face e golpeou-a com a picareta. A fenda alargou-se, e a poeira caiu empanando a luz. Em seguida à poeira, veio a água. — Beba isto — disse Galapas. — O que é? — Uma das minhas beberagens, não é das suas; não tem perigo. Beba-a. — Obrigado, Galapas, a gruta é de cristal ainda. Sonhei que era diferente. — Não pense nisso agora. Como se sente? — Esquisito... Não sei explicar. Sinto-me bem, apenas uma dor de cabeça, mas... vazio como uma concha sem o caramujo. Não, como um junco ao qual arrancaram a medula. — Um assovio no vento. Sim. Venha até o braseiro. Quando sentei no meu lugar com um caneco de vinho aquecido nas mãos, ele indagou: — Onde esteve? Contei-lhe o que vira, mas quando comecei a perguntar o que significava e o quanto sabia, ele sacudiu a cabeça. — Acho que isso já está além de mim. Não sei. Só o que sei é que você precisa terminar esse vinho depressa e ir para casa. Tem idéia de quanto tempo ficou ali sonhando? A lua já nasceu. Pus-me de pé, assustado. — Já? Devo ter passado de muito a hora da ceia. Se estiverem à minha procura... — Não estarão à sua procura. Outras coisas estão acontecendo. Vá e veja por si mesmo — e assegure-se de tomar parte nelas. — O que quer dizer? — Só o que disse. Quaisquer que sejam os meios que precise empregar, vá com o Rei. Olhe, não se esqueça disto. — E atirou-me a jaqueta nos braços. Apanhei-a às cegas, encarando-o. — Ele vai sair de Maridunum? — Vai. Apenas por algum tempo. Não sei quanto tempo. — Ele nunca me levará. — Isso depende de você. Os deuses só o acompanham, Myrddin Emrys, se você se puser no

caminho deles. E isso requer coragem. Vista a jaqueta antes de sair, está frio. < Meti o braço na manga, aborrecido. — Você viu tudo isso, coisas que estão realmente acontecendo e eu... eu estava olhando para os cristais com o fogo, e aqui estou com uma bruta dor de cabeça, à toa... um sonho idiota de escravos numa mina velha. Galapas, quando é que você me vai ensinar a ver como você? — Para começar, posso ver os lobos a devorá-lo e ao Aster, se você não se apressar. Ele ria consigo mesmo, como se tivesse dito algo muito engraçado, enquanto eu corria para fora da gruta e descia para encilhar meu pônei.

8 A lua estava no minguante e iluminava apenas o suficiente para deixar entrever o caminho. O pônei saltitava para aquecer o sangue, e repuxava, com mais força que nunca, as orelhas empinadas na direção de casa, farejando a ceia. Tive que lutar para segurá-lo, porque a trilha estava gelada e eu receava cair, mas confesso que com o último comentário de Galapas a ecoar-me desconfortavelmente na cabeça, deixei-o descer o morro, por entre as árvores, demasiado rápido para minha segurança, até alcançarmos o moinho e o nivelamento da trilha de reboque. Ali já era possível ver com clareza. Meti os calcanhares no pônei, fazendo-o galopar o resto do caminho. Assim que chegamos à vista da cidade, percebi que algo acontecia. A trilha de reboque estava deserta — os portões da cidade já deviam ter sido trancados há muito — mas a cidade estava coalhadas de luzes. No interior das muralhas, as tochas pareciam arder por toda a parte e havia gritos e correrias. Deixei-me escorregar da sela, junto ao portão dos estábulos, inteiramente preparado para encontrá-lo fechado, mas ao estender o braço para experimentá-lo, o portão abriu-se, e Cerdic, com uma lanterna na mão, fez-me sinal que entrasse. — Ouvi-o chegar. Estive à escuta desde o entardecer. Onde andava o grande amoroso? Ela devia estar ótima esta noite. — Oh, estava mesmo. Perguntaram por mim? Deram pela minha ausência? — Não que eu saiba. Têm mais com que se ocupar esta noite. Dê-me as rédeas, vamos deixá-lo no celeiro, por ora. Há muito movimento no estábulo maior. — Por quê? O que está acontecendo? Ouvi o barulho a uma milha de distância. Há alguma guerra? — Não, o que é uma pena, embora possa acabar nisso. Chegou uma mensagem esta tarde, dizendo que o Suserano vai a Segontium para ficar lá uma semana ou duas. Seu avô partirá para lá amanhã, por isso tudo deverá ficar pronto com muita urgência. — Compreendo. — Segui-o até o celeiro e observei-o desencilhar o pônei, puxando mecanicamente uma palha do monte e torcendo um facho para ele. — O rei Vortigern em Segontium? Por quê? — Contando as cabeças, dizem. — Riu com desdém ao começar a limpar o pônei. — Você quer dizer, chamando os aliados? Então há rumores de guerra? — Sempre haverá rumores de guerra, enquanto Ambrosius estiver instalado na Bretanha Menor com o rei Budec às suas costas, e os homens se lembrarem de coisas que mais vale não mencionar. Assenti. Não consegui lembrar-me exatamente de quando me haviam contado, já que ninguém comentava isso alto, mas todos sabiam como o Suserano se apossara do trono. Fora ele o regente do jovem rei Constantius, que morrera de repente. Os irmãos mais novos do Rei não quiseram esperar que se provasse se os boatos de assassinato seriam falsos ou verdadeiros; fugiram para a corte do primo Budec, na Bretanha Menor, deixando o reino para o Lobo e seus filhos. Quase todo ano os rumores ressurgiam; que o rei Budec estava armando os dois jovens príncipes; que Ambrosius partira para Roma; que Uther era um mercenário a serviço do Imperador do Oriente ou que se casara com a filha do rei da Pérsia; que os dois irmãos tinham um exército de quatrocentos mil homens e iam invadir e

queimar a Bretanha Maior de uma ponta à outra; ou que viriam em paz, como arcanjos, e expulsariam os saxões das costas orientais, sem luta. Entretanto, mais de vinte anos se haviam passado e a coisa não se concretizara. A vinda de Ambrosius era comentada agora como se já tivesse ocorrido e se houvesse transformado em lenda, assim como os homens falavam da vinda de Brutus e dos troianos, quatro gerações após a queda de Tróia, ou da viagem de Joseph a Thorny Hill, perto do Avalon; ou ainda da segunda vinda de Cristo — embora tendo eu, certa vez, dito isso à minha mãe, ela ficasse tão zangada que eu jamais tentei repetir o gracejo. — Oh, sei — disse eu. — Ambrosius aproxima-se outra vez, não é? Sério, Cerdic, por que é que o Rei está vindo para o Norte de Gales? — Já lhe disse — respondeu Cerdic. — Passando revista, aliciando apoio antes da primavera, ele e sua rainha saxônica — e, dizendo isto, cuspiu no chão. — Por que faz isso? Você também é saxão. — Isso foi há muito tempo. Vivo aqui agora. Não foi aquela cadela loura que fez com que Vortigern se vendesse, para começar? Ou de qualquer forma, e você sabe tão bem quanto eu, desde que ela anda na cama do Suserano, os vikings correm à solta pela terra como o fogo no capim seco, até que ele já não consegue combatê-los nem suborná-los. E se ela for o que os homens dizem que é, pode ter certeza de que nenhum dos filhos verdadeiros do Rei viverá para usar a coroa. — Ele falava baixinho, mas ao dizer isso olhou para o lado e cuspiu outra vez, fazendo o sinal. — Bem, você sabe disso tudo — ou deveria saber, isto é, se escutasse os mais velhos com mais freqüência, em vez de passar o tempo nos livros e coisas desse tipo, ou andar correndo atrás daquela gente das montanhas ocas. — É lá que você pensa que eu vou? — É o que dizem. Não estou perguntando nada. Não quero saber. Levante-se, vamos — disse ao pônei, dando uma volta e asso-viando, para começar a trabalhar no outro flanco. — Há rumores de que os saxões desembarcaram outra vez ao norte de Rutupiae, e estão pedindo demais desta vez até mesmo para um Vortigern engolir. Ele terá que lutar, vindo a primavera. — E o meu avô com ele? — É isso que espera, aposto. Bem, é melhor ir correndo se quiser jantar. Ninguém reparará em você. Parecia que o inferno tinha irrompido nas cozinhas, quando tentei arranjar alguma coisa para comer, há uma hora atrás. — Onde se encontra meu avô? — Como posso saber? — Inclinou a cabeça para o meu lado, por cima do traseiro do pônei. — Ora, a que propósito vem isso? — Quero ir com eles. — Hah! — exclamou ele, atirando a forragem cortada para o pônei. Não era um som muito encorajante. Continuei obstinado: — Tenho vontade de ver Segontium. — Quem não tem? Até eu tenho vontade de vê-la. Mas, se você está pensando em pedir ao Rei... — deixou a frase suspensa. — Não que não seja tempo de você sair daqui e ver alguma coisa, descontraindo-se um pouco. É do que precisa, embora eu não possa dizer que veja isso acontecer. Você

nunca irá falar com o Rei. — Por que não? O máximo que ele poderá fazer é recusar. — O máximo que poderá fazer? Ora, bolas, ouçam o menino! Tome um conselho, jante e vá dormir. E não experimente com Camlach, tampouco. Teve uma briga dos diabos com a mulher e parece um arminho com dor de dentes. Você não pode estar falando sério. — Os deuses só o acompanham, Cerdic, se você se puser no caminho deles. — Sim, está bem, mas alguns deles têm os cascos um bocado grandes para pisoteá-lo. Quer um funeral cristão? — Não faço realmente questão. Suponho que vou acabar recebendo um batismo cristão dentro em breve, se o bispo conseguir o que deseja, mas até lá ainda não me alistei oficialmente com ninguém. Ele riu. — Espero que me queimem quando a minha vez chegar. É a maneira mais limpa de partir. Bem, se não quer escutar, então não escute, mas não vá enfrentá-lo de estômago vazio, é só. — Isso eu lhe prometo — disse eu e fui arranjar comida. Depois de ter comido e trocado a túnica por outra mais decente, fui procurar meu avô. Para meu alívio, Camlach não estava com ele. O Rei encontrava-se na sua alcova, esparramado numa cadeira, à vontade, diante de uma tora em chamas, os dois cães adormecidos a seus pés. A princípio, pensei que a mulher na cadeira de espaldar alto do outro lado da lareira fosse Olwen, a Rainha, mas depois vi que era minha mãe. Estivera a coser, tinha as mãos pousadas no regaço e um pano branco caído sobre o vestido marrom. Ela voltou-se sorrindo para mim, mas seu olhar era de surpresa. Um dos cães bateu com a cauda no assoalho e o outro entreabriu um olho, girou-o e fechou-o novamente. Meu avô encarou-me com o cenho franzido, mas disse com razoável gentileza: — Bem, menino, não fique aí de pé. Entre, entre, há aqui uma maldita corrente de ar. Feche a porta. Obedeci e aproximei-me do fogo. — Posso vê-lo, senhor? — Você já me está vendo. O que quer? Apanhe um banquinho e sente-se. Havia um junto à cadeira de minha mãe. Afastei-o para mostrar que não me ia sentar à sua sombra e acomodei-me entre os dois. — Bem? Não o vejo há muito tempo, não é? Tem-se ocupado com seus livros? — Sim, senhor. — Em princípio, é melhor atacar do que defender, portanto fui direto ao assunto. — Eu... tive uma folga esta tarde e saí a cavalo, de modo que eu... — Para onde? — Ao longo da trilha do rio. Nenhum lugar em especial, apenas para melhorar minha equitação, assim... — Bem que precisa. _ Sim, senhor. De modo que perdi o mensageiro. Disseram-me que o senhor parte amanhã. _ O que tem isso a ver com você?

— Só que eu gostaria de acompanhá-lo. — Você gostaria? Você gostaria? O que é isso de repente? Uma dúzia de respostas, todas soando igualmente bem, atropelaram-se na minha cabeça, buscando expressão. Pensei ter visto minha mãe contemplar-me penalizada e sabia que meu avô esperava com indiferença e impaciência levemente tingidas pelo divertimento. Disse-lhe a verdade: — Porque estou com mais de doze anos e nunca sai de Maridunum, e sei que, se meu tio conseguir o que deseja, em breve estarei fechado neste vale, ou noutro lugar qualquer, estudando para padre. E antes que isso aconteça... As sobrancelhas aterradoras contraíram-se. — Está tentando dizer-me que não quer estudar? — Não. Isso é o que mais quero no mundo. Mas o estudo tem mais significação quando se viu ao menos um pouquinho do mundo... na verdade é assim, senhor. Se permitir que o acompanhe... — Vou a Segontium, disseram-lhe isso? Não é uma caçada de dia de festa, é uma cavalgada longa e dura, sem tréguas para maus cavaleiros. Manter os olhos nivelados com aqueles olhos azuis apavorantes foi como levantar um grande peso. — Estive praticando, senhor, e tenho um bom pônei, agora. — Hum, sim, o descarte de Dinias. Bem, essa é a sua medida. Não, Merlin, não levo crianças. — Então vai deixar Dinias para trás? Ouvi minha mãe ofegar e a cabeça de meu avô, já desviada, voltou-se para mim. Vi suas mãos fecharem-se nos braços da cadeira, mas ele não me bateu. — Dinias é um homem. — Então, Mael e Duach vão com o senhor? — Eram dois pajens, mais jovens que eu, que o acompanhavam para toda parte. Minha mãe começou a falar precipitada e ofegante, mas meu avô acenou fazendo-a parar. Havia uma expressão imponente nos olhos ferozes sob o cenho franzido. — Mael e Duach são úteis a mim. Que utilidade tem você? Encarei-o. — Até agora muito pouca. Mas não lhe disseram que eu falo saxão tão bem quanto galês, que sei ler grego e que o meu latim é melhor do que o seu? — Merlin... — começou minha mãe, mas eu a ignorei. — Eu poderia acrescentar bretão e córnico, mas duvido que precise dessas línguas em Segontium. — E pode dar-me uma boa razão — disse meu avô secamente — por que eu deveria falar ao rei Vortingern em qualquer outra língua que não o galês, visto que nasceu em Guent? Pelo tom dele fiquei sabendo que eu vencera. Deixar o meu olhar desviar-se do dele era como bater em retirada, aliviado, de um campo de batalha. Tomei fôlego e respondi muito humilde: — Não, senhor. Ele soltou uma grande gargalhada e esticou o pé para arredar dali um dos cães. — Bem, talvez haja alguma coisa da família em você, afinal de contas, apesar do seu aspecto. Pelo

menos, você tem coragem de enfrentar o velho leão no covil, quando lhe convém. Muito bem, pode vir. Quem vai servi-lo? — Cerdic. — O saxão? Diga-lhe para arrumar suas coisas. Partiremos à primeira claridade do dia. Bem, o que está esperando? — Dizer boa noite à minha mãe. Levantei-me do banquinho e beijei-a. Eu não fazia isso com freqüência e ela pareceu surpresa. Às minhas costas, meu avô disse, áspero: — Você não vai para a guerra. Estará de volta dentro de três semanas. Saia. — Sim, senhor. Muito obrigado. Boa noite. Do lado de fora da porta fiquei parado bem meio minuto, encostado à parede, enquanto meu pulso voltava lentamente ao normal e a náusea desaparecia-me da garganta. Os deuses só o acompanham se você se coloca no caminho deles, e para isso é preciso coragem. Engoli a náusea, enxuguei o suor das palmas das mãos e corri à procura de Cerdic.

9 Foi assim que deixei Maridunum pela primeira vez. Naquela época, pareceu-me a maior aventura do mundo, sair na triagem da madrugada, as estrelas ainda no céu, fazendo parte de um grupo de homens camaradas, que se atropelavam numa arrancada, para escoltar Camlach e o Rei. De início, a maioria dos homens parecia mal-humorada e sonolenta e cavalgávamos quase em silêncio, o hálito produzindo fumaça no ar gelado e os cascos dos cavalos arrancando faíscas da estrada pedregosa. Até o retinir dos arreios era frio. Eu estava tão entorpecido que mal sentia as rédeas e não conseguia concentrar-me em mais nada, exceto em manter-me no lombo do pônei excitado, para não ser mandado de volta para casa em desgraça, antes de termos percorrido a primeira milha. E agora, visto que as histórias da infância são tediosas e ainda há fatos importantes a serem narrados, vou repassar, tão rapidamente quanto possível, a nossa excursão a Segontium, a qual durou dezoito dias. Era minha primeira visão do rei Vortigern, que naquela altura era o Suserano da Bretanha há mais de vinte anos. Estejam certos de que muito ouvi falar dele, verdades e lendas igualmente. Era um homem duro, como deve ser alguém que se tenha apoderado do trono pelo assassinato e o mantenha com sangue; mas era um rei forte numa época em que havia necessidade de força e não se podia culpálo de todo pelo fato de que o estratagema de aliciar saxões como mercenários se tivesse transformado num desastre, como uma espada afiada que nos escorregasse da mão e nos cortasse até o osso. Ele pagara, e tornara a pagar, e afinal lutara; e agora passava grande parte do ano lutando como um leão para manter as hordas errantes nos limites da costa saxônica. Os homens referiam-se a ele com respeito, como um tirano feroz e sanguinário, e à sua rainha saxônica, Rowena, com ódio, considerando-a uma bruxa; mas, embora eu tivesse sido alimentado na infância com as histórias dos escravos das cozinhas, ansiava por vê-los, com mais curiosidade do que medo. De qualquer modo, não havia necessidade de temê-lo; só vi o Suserano a uma certa distância. A indulgência do meu avô estendera-se apenas a deixar-me acompanhar sua comitiva; uma vez lá, eu não contava, e na realidade contava menos que seus pajens Mael e Duach. Deixaram-me que me arranjasse sozinho entre a turba anônima de meninos e criados, e porque meus modos não tivessem conquistado amigos entre os meus contemporâneos fui deixado em paz. Mais tarde, eu deveria agradecer o fato de que nas poucas ocasiões em que estive no aglomerado que cercava os dois reis, Vortigern não tivesse pousado os olhos em mim e nem meu avô ou Camlach se lembrassem da minha existência. Permanecemos uma semana em Segontium, que os galeses chamam de Caer-yn-ar-Von, por situarse exatamente no estreito de Mona, a ilha dos druidas. A cidade, como Maridunum, encontra-se engastada nos bancos do estuário onde o rio Seint deságua no mar. Possui um porto esplêndido e uma fortaleza colocada no terreno elevado sobre o porto, talvez a meia milha de distância. A fortaleza foi construída pelos romanos para proteger o porto e a cidade, mas esteve abandonada mais de cem anos até que Vortigern mandou repará-la em parte. Um pouco mais abaixo, na encosta da montanha, havia um outro ponto fortificado, construído mais recentemente por Macsen, creio eu, avô do Constantius assassinado, contra os invasores irlandeses. O país aqui era mais grandioso que Gales do Sul, mas aos meus olhos mais agreste que belo. Talvez no verão a terra fosse verde e suave ao longo do estuário, mas quando a vi pela primeira vez as montanhas erguiam-se por trás da cidade como nuvens de tempestade, as faldas cinzentas apresentavam florestas nuas e sibilantes, e seus cumes de um azul acinzentado cobriam-se de neve. Ao fundo, sobrepondo-se a todas as elevações, o grande pico coberto de nuvens do Moel-y-Wyddfa, que hoje em

dia os saxões denominam Snowhill ou Snowdon. É a montanha mais alta de toda a Grã-Bretanha, a morada dos deuses. Vortigern instalou-se, com fantasmas ou sem eles, na Torre de Macsen. Seu exército — ele nunca saía nesses dias com menos de mil homens armados — estava alojado no forte. Quanto à comitiva de meu avô, os nobres faziam companhia ao Rei na torre, e o séquito, ao qual me incorporava, estava abrigado bastante confortavelmente, embora que um tanto gelado, junto ao portão oeste do forte. Éramos tratados com todas as honras; não somente Vortigern era um parente distante do meu avô, como parecia ser verdadeiro que o Suserano estivesse — no dizer de Cerdic — "aliciando apoio". Era um homem corpulento e moreno, de rosto largo e carnudo, e cabelos espessos, eriçados como os de um porco selvagem, que se tornavam grisalhos. Possuía pêlos negros nas costas das mãos e nas narinas. A Rainha não viera; Cerdic segredou-me que ele não ousara trazê-la já que os saxões eram tão pouco bemvindos. Quando retruquei que ele próprio só era bem-vindo porque esquecera seus hábitos saxões e tornara-se um bom galês, Cerdic riu dando-me um sopapo na orelha. Suponho que não era minha culpa que eu não fosse muito da realeza. O programa dos nossos dias era simples. A maior parte do dia era gasto em caçadas e ao entardecer voltávamos para os fogos, a bebida e uma refeição completa; então o Rei e seus conselheiros entretinham-se a conversar e seus acompanhantes a jogar, namorar, brigar ou quaisquer outros esportes que preferissem. Eu nunca caçara antes; como esporte, era estranho à minha natureza e aqui todos cavalgavam num tumulto que eu detestava. Era também perigoso: havia muita caça no sopé das montanhas e os homens arrancavam em disparada com os pescoços à venda; mas não vi nenhuma outra oportunidade de conhecer o país e além do mais precisava descobrir por que Galapas insistira em que eu viesse a Segontium. Assim, eu saía todos os dias. Dei algumas quedas, que resultaram apenas em arranhões e consegui não atrair atenções, boas ou más, de ninguém importante. Tampouco descobri o que estava procurando; nada vi e nada aconteceu exceto que minha equitação melhorou e junto com ela o comportamento de Aster. No oitavo dia da nossa permanência, iniciamos a viagem de volta e o Suserano, pessoalmente, com uma comitiva de cem homens, acompanhou-nos até a nossa estrada. A primeira parte do caminho passava por uma garganta coberta de árvores onde corria rápido e profundo um rio e onde os cavalos tinham que seguir em fila única ou dupla entre os rochedos e a água. Não havia perigo para um grupo tão numeroso, de modo que viajávamos sem pressa, a garganta a ecoar o som dos cascos, das correntes dos arreios, das vozes masculinas e do grasnido ocasional dos corvos que mergulhavam dos rochedos para nos observar. Esses pássaros não esperam, como dizem, pelo choque das batalhas; já os vi seguirem bandos armados de homens durante milhas, esperando pelo momento do embate e da matança. Mas naquele dia seguimos a salvo, e por volta do meio-dia chegamos ao local onde o Suserano deveria separar-se de nós e voltar. Era onde os dois rios se encontravam e a garganta abria-se num vale mais amplo, com penhascos de ardósia envoltos em gelo, de cada lado, e o grande rio correndo para o sul, barrento, ganhava volume com as neves que se derretiam. Há uma passagem no encontro dos rios, e rumando para o sul uma boa estrada que segue seca e direta por terreno elevado até Tomen-y-mur. Paramos mesmo ao norte da passagem. Os nossos líderes encaminharam-se para uma depressão abrigada e protegida em três lados por encostas densamente arborizadas. Grupos de amieiros nus e grossos juncos deixavam adivinhar que no verão a depressão deveria ser um alagadiço; naquele dia de dezembro, estava solidamente coberta de gelo, mas protegida do vento, e o sol dava para aquecer. Ali a

comitiva parou para comer e descansar. Os Reis sentaram-se à parte em conversa e, próximo, o resto do séquito real. Reparei que isto incluía Dinias. Eu, como de hábito, não me considerando parte do grupo real, nem "dos soldados, tampouco dos criados, entreguei Aster a Cerdic, e afastei-me subindo um pouco por entre as árvores até um pequeno vale onde podia sentar-me sozinho e fora das vistas dos outros. Às minhas costas havia um rochedo que degelava ao sol, e do lado oposto podia-se ouvir o tinido abafado dos freios dos cavalos que pastavam, as vozes dos homens e uma gargalhada ocasional, seguidos dos silêncios e murmúrios rítmicos, que me diziam estarem os dados em jogo para passar o tempo, até que os Reis completassem suas despedidas. Um milhafre inclinou-se num mergulho acima da minha cabeça, no ar frio, refletindo ao sol o bronze das suas asas. Pensei em Galapas e no espelho de bronze piscando e perguntei-me por que eu viera. A voz do rei Vortigern ergueu-se subitamente atrás de mim: — Por aqui. Você poderá dizer-me o que pensa. Voltei-me assustado antes de perceber que ele e o homem com quem falava estavam do outro lado do rochedo que me abrigava. — Cinco milhas, dizem-me, para cada direção... — A voz do Suserano foi fugindo à medida que se afastava. Ouvi passos no chão gelado, folhas secas estalando e o rangido de botas de pregos sobre a pedra. Eles se afastavam. Ergui-me com cuidado e espreitei por cima do rochedo. Vortigern e meu avô caminhavam juntos pela floresta, absorvidos na conversa. Lembro-me de ter hesitado. Afinal de contas, o que poderiam eles dizer que já não tivessem dito no isolamento da Torre de Macsen? Não podia acreditar que Galapas me tivesse enviado apenas como espião, à conferência. Mas por que outro motivo? Talvez o deus, no caminho de quem eu me colocara, me tivesse enviado aqui sozinho hoje para isso. Relutantemente, voltei-me para segui-los. Quando dei o primeiro passo, uma mão apanhou-me pelo braço, de forma pouco gentil. — E aonde pensa que vai? — perguntou Cerdic, entre dentes. Sacudi-o violentamente. — Diabos, Cerdic, você quase me faz virar pelo avesso 1 Que lhe importa aonde vou? — Estou aqui para tomar conta de você, lembra-se? — Só porque eu o trouxe. Ninguém o manda cuidar de mim nestes dias. Ou manda? — Olhei-o com dureza. — Esteve-me seguindo, antes? Ele sorriu. — Para lhe dizer a verdade, nunca me dei ao trabalho. Ou deveria ter-me dado? Mas eu insisti. — Alguém lhe disse para me vigiar hoje? — Não. Mas você não viu quem veio por esse caminho? Vortigern e seu avô. Se estivesse com idéia de ir atrás deles, eu pensaria duas vezes, em seu lugar. — Eu não ia "atrás deles" — menti. — Estava apenas passando os olhos pelos arredores. — Então eu faria isso em outra parte. Eles enfatizaram que a comitiva deveria esperar aqui embaixo. Vim para certificar-me de que você sabia disso, é só. Frisaram isso de maneira especial. Sentei-me outra vez. — Muito bem, você já se assegurou. Agora deixe-me só novamente, por favor. Pode voltar para me dizer quando estivermos de partida.

— E deixar você desobedecer no minuto em que eu virar as costas? Senti o sangue subir-me ao rosto. — Cerdic, eu lhe disse para ir embora. Ele retrucou obstinado: — Olhe, eu o conheço, e sei quando fica com essa cara. Não sei o que tem em mente, mas quando olha com essa expressão, vai haver encrenca para alguém e geralmente é para si próprio. O que vai fazer? Respondi, furioso: — A encrenca vai ser sua desta vez, se não fizer como digo. — Não se dê ares de nobreza para cima de mim. Eu estava apenas tentando poupar-lhe uma surra. — Sei disso. Perdoe-me. Eu... eu tinha algo em mente. — Pode-me contar, não pode? Eu sabia que havia alguma coisa a preocupá-lo nestes últimos dias. O que é? — Nada que eu saiba — disse eu com sinceridade. — Nada em que você possa ajudar tampouco. Esqueça-se. Olhe, os reis disseram aonde iam? Certamente poderiam ter falado até mais não poder em Segontium, ou mesmo durante o caminho. — Eles seguiam para o alto do penhasco. Há um lugar lá na ponta da crista de onde se pode descortinar o vale de todos os lados. Havia uma velha torre ali. Chamam-na Dinas Brenin. — O Forte do Rei? Que tamanho tem a torre? — Não há nada lá agora além de um monte de pedras. Por quê? — Eu... nada. — Quando voltaremos para casa? Gostaria de saber! — Dentro de mais uma hora. Olhe, por que não desce e eu o faço entrar num bom joguinho de dados? Sorri. — Obrigado por nada. Mantive-o afastado do seu jogo também? Desculpe-me. — Não faz mal. Eu estava perdendo, de qualquer maneira. Está bem, vou deixá-lo só, mas você não vai pensar em fazer nenhuma tolice agora, vai? Não vale a pena esticar o pescoço. Lembra-se do que lhe disse da pomba torcaz? E naquele momento exato uma pomba torcaz passou como uma seta, batendo asas, num zumbido que ergueu uma nuvem de gelo, qual uma onda. Logo atrás dela, um pouco acima, pronto para o ataque, seguia um falcão. A pomba subiu um pouco ao deparar com a encosta, deslizando como uma gaivota sobre a crista de uma onda, e mergulhando numa moita perto da borda da depressão. Estava a apenas alguns centímetros do chão e seria perigoso para o falcão atacá-la, mas ele devia estar faminto, porque assim que ela atingiu a beira da moita, atacou-a. Um grito, um feroz quic-ic-ic do falcão, um agitar de galhos partidos e o silêncio. Algumas penas flutuaram lentamente, caindo como neve. Avancei rápido, correndo pela beirada. — Ele apanhou-a!

Era óbvio o que acontecera; as duas aves entrelaçadas haviam mergulhado na moita e batido de encontro ao chão. Pelo silêncio era provável que ambos estivessem caídos ali, atordoados. A moita era um emaranhado profundo que encobria quase todo um lado da depressão. Afastei os galhos para os lados, abrindo caminho. A trilha de penas indicava-me a direção. Encontrei-os. A pomba estava morta, o peito para baixo, as asas abertas ao embater contra as pedras, o sangue a tingir vivamente o arco-íris de penas que lhe enfeitava o pescoço. Sobre ela, o falcão. As garras afiadas firmemente cravadas no dorso da pomba, o bico cruel meio quebrado pela colisão. Estava ainda vivo. Quando me curvei sobre ele, suas asas moveram-se e as pálpebras azuladas ergueram-se descobrindo os ferozes olhos negros. Cerdic chegou, ao meu lado, resfolegando. — Não toque nele! Estraçalhará suas mãos. Deixe-me fazê-lo. Endireitei-me. — Aí vai a sua pomba torcaz, Cerdic. Já é tempo de a esquecermos, não é? Não, deixe-os. Ainda estarão aqui quando voltarmos. — Voltarmos? De onde? Apontei silenciosamente para o que surgia à nossa frente, diretamente na trilha que as aves haviam tomado. Um buraco quadrado e escuro como uma porta no terreno íngreme por trás da moita; uma entrada escondida aos olhos do passante desinteressado, por algum motivo, só para ser vista por alguém que abrisse caminho entre os galhos emaranhados. — Que é isso? — perguntou Cerdic. — Parece a entrada de uma velha mina, pelo aspecto. — É. Foi isso o que vim ver. Arranje uma luz e venha comigo. Ele começou a protestar, mas eu o interrompi. — Você pode vir ou não, como quiser. Mas dê-me uma luz. E ande depressa, não há muito tempo. Quando comecei a abrir caminho para a entrada, ouvi-o ainda a resmungar, arrancando mancheias de mato seco para improvisar uma tocha. Logo na entrada do acesso havia uma pilha de monturo e algumas pedras caídas onde as estacas de madeiras tinham apodrecido, mas para além o poço era bastante regular, seguindo mais ou menos nivelado rumo ao coração da montanha. Eu conseguia caminhar quase completamente esticado e Cerdic, que era baixo, só precisava curvar-se ligeiramente. A chama da tocha improvisada projetava sombras grotescas à nossa frente. Mostrava sulcos no chão, onde cargas tinham sido arrastadas para a claridade do dia, e nas paredes e no teto as marcas das picaretas e talhadeiras que tinham aberto o túnel. — Aonde diabos pensa que está indo? — A voz de Cerdic às minhas costas tornava-se aguda de nervoso. — Olhe, vamos voltar. Estes lugares não são seguros. O teto pode desabar. — Não vai desabar. Mantenha a tocha acesa — disse eu, seco, prosseguindo. O túnel dobrava à direita e começava a fazer uma descida suave. Debaixo da terra, a pessoa perde todo o senso de direção; não há nem o sopro da brisa passando-nos pelo rosto, a nos indicar o rumo, como acontece mesmo nas noites mais escuras; mas eu supus que devíamos estar dando voltas em direção ao centro da montanha na qual se erguia a velha Torre do Rei. Aqui e acolá túneis menores saíam para a direita e para a esquerda, mas não havia perigo de nos perdermos; estávamos na galeria principal e a rocha parecia razoavelmente boa. Em alguns pontos, houvera desmoronamentos do teto ou da parede e uma vez fui obrigado a parar por causa de um monte de entulho que quase bloqueava o

caminho, mas galguei-o e o túnel estava desimpedido mais além. Cerdic parará na barreira de entulho. Estendeu a tocha e espreitou-me. — Ei, olhe, Merlin, volte pelo amor de Deus! Isto ultrapassa qualquer espécie de loucura. Digo-lhe que estes lugares são perigosos e estamos descendo para as próprias entranhas da rocha. Só os deuses sabem o que existe lá embaixo. Volte, menino. — Não seja covarde, Cerdic, há bastante lugar para você. Venha, passe. Depressa. — Isso é que não. Se você não sair neste minuto, juro como vou voltar e contar ao Rei... — Olhe, — disse eu, — isto é importante. Não me pergunte por quê. Mas juro-lhe que não há perigo. Se estiver com medo, dê-me a tocha e volte. — Você sabe que não posso fazer isso. — Sim, eu sei. Você não ousaria voltar para contar a ele, ousaria? E, se me largasse e acontecesse alguma coisa, o que acha que aconteceria com você? — Eles dizem a verdade quando afirmam que você é filho do diabo — exclamou Cerdic. Eu ri. — Você pode falar o que quiser quando voltarmos para fora, mas apresse-se agora por favor, Cerdic. Você está a salvo, juro. Não há perigo no ar hoje, e você viu como o falcão nos mostrou a porta. Ele veio, naturalmente. Pobre Cerdic! Não lhe restava mais nada a fazer. Mas quando se acercou de mim outra vez, com a tocha erguida, vi-o olhar-me de esguelha, a mão esquerda fazendo o sinal contra o mau-olhado. — Não se demore — disse ele. — É só. Vinte passos mais adiante, contornando uma curva, o túnel abria-se numa gruta. Fiz sinal para que ele erguesse o archote. Não conseguia falar. Aquele imenso vazio bem no coração da montanha, aquela escuridão mal afetada pela chama da tocha, aquele silêncio mortal no ar, onde eu podia ouvir e sentir minha própria pulsação — aquele era naturalmente o lugar. Reconheci cada marca dos trabalhos: a face riscada e cortada pelas picaretas e fendida pela água. Lá estava o teto abobadado desaparecendo na escuridão; num outro canto, um pedaço de metal enferrujado onde estivera a bomba. Lá estava a umidade brilhante na parede, não mais um filete, mas uma cortina de umidade faiscante. E lá onde havia as poças e a infiltração sob 3 saliência, um lago grande e parado. Um terço do chão estava sob água. O ar possuía um cheiro estranho todo seu, o sopro da água e da rocha viva. Em algum ponto do alto a água pingava, e cada pingo claro era como um pequeno martelo a bater no metal. Tirei a tocha ardente da mão de Cerdic e acerquei-me da beira da água. Segurei a tocha o mais alto que pude, bem acima da água, e olhei para baixo. Não havia nada para se ver. A luz refletiu de volta na superfície dura como um metal. Esperei. A luz correu e brilhou, mergulhando na escuridão. Não havia nada ali, além do meu reflexo, como o fantasma no espelho de Galapas. Devolvi a tocha a Cerdic. Ele não falava. Estivera a me observar todo o tempo com aquele olhar de esguelha, o branco dos olhos aparecendo. Toquei-lhe o braço. — Podemos voltar agora. Esta coisa está toda destruída, de qualquer maneira. Vamos.

Não falamos enquanto voltávamos pela galeria curva; passamos o entulho e o acesso, saindo para a tarde gelada. O céu estava claro, de um azul leitoso. As árvores de inverno erguiam-se frágeis e silenciosas contra o céu e as bétulas pareciam ossos. Do sopé uma trombeta chamou, urgente, no ar parado e metálico. — Eles estão partindo. Cerdic mergulhou a tocha no chão gelado para apagá-la. Corri pela moita abaixo. A pomba continuava lá, fria e já rígida. O falcão, também; tinha-se retirado do corpo da presa e empoleirara-se perto dela numa pedra, curvado e imóvel, mesmo quando me aproximei. Apanhei a pomba torcaz e atirei-a para Cerdic. — Meta-a na sua mochila. Não preciso recomendar-lhe para não contar o que se passou, preciso? — Não precisa. O que está fazendo? — Ele está atordoado. Se o abandonarmos aqui, congelará até morrer em menos de uma hora. Vou levá-lo. — Tome cuidado 1 É um falcão adulto... — Ele não me vai ferir. Apanhei o falcão, que arrepiara as penas para proteger-se do frio. Era macio como uma corujinha. Puxei a manga de couro sobre o pulso esquerdo, onde ele se encarapitou, agarrando-se ferozmente. As pálpebras estavam abertas agora e os olhos escuros e selvagens observavam-me. Mas ele permaneceu imóvel com as asas fechadas. Ouvi Cerdic resmungar de si para si, ao curvar-se para recolher minhas coisas no lugar onde eu fizera minha refeição. Então acrescentou uma coisa que eu nunca ouvira dele antes: — Vamos, então, jovem amo. O falcão continuava dócil no meu pulso quando eu tomei lugar no fim da comitiva de meu avô, de volta para casa, em Maridunum.

10 O falcão tampouco tentou deixar-me quando chegamos a casa. Descobri, ao examiná-lo, que algumas das penas das asas tinham sido feridas no mergulho e na queda ao atacar a pomba torcaz, de modo que as tratei conforme Galapas me ensinara. Depois disso, ele empoleirou-se na pereira do lado de fora da minha janela, aceitando a comida que eu lhe oferecia, sem tentar fugir. Levei-o comigo na próxima vez que fui ver Galapas. Estávamos no primeiro dia de fevereiro e o gelo se desfizera em chuva na noite anterior. Era um dia cinzento com nuvens baixas e um ventinho cortante em meio à chuva. Correntes de vento assoviavam por todo o palácio, as cortinas estavam corridas sobre as portas e as pessoas permaneciam envoltas nas suas capas de lã, junto aos braseiros. Pareceu-me, também, que um silêncio pesado caía sobre o palácio; mal vira meu avô desde que voltara a Maridunum, mas ele e seus nobres sentavam-se em conselho horas a fio e havia rumores de brigas e vozes erguidas quando ele e Camlach estavam fechados juntos. Certa vez, quando me dirigia ao quarto de minha mãe, disseram-me que ela estava rezando e não podia ver-me. Via-a de relance, através da porta entreaberta, e poderia jurar que, ajoelhada aos pés da imagem santa, ela chorava. Mas no vale alto nada mudara. Galapas tomou o falcão, elogiou meu trabalho nas asas, colocou-o numa saliência protegida perto da entrada da gruta, e convidou-me a acercar-me do fogo e aquecer-me. Com uma concha tirou um pouco de guisado de uma panela fumegante e fez-me comer antes de escutar minha história. Então, contei-lhe tudo, até as brigas no palácio e as lágrimas de minha mãe. — Era a mesma gruta, Galapas, isto eu juro! Mas por quê? Não havia nada lá. E nada mais aconteceu, nada mesmo. Indaguei o melhor que pude, e Cerdic perguntou entre os escravos, mas ninguém sabe o que discutiram os reis ou por que meu avô e Camlach se desentenderam. Mas ele me disse uma coisa: eu estou sendo vigiado. Pela gente de Camlach. Eu teria vindo vê-lo há mais tempo se não fosse isso. Eles saíram hoje, Camlach e Alun e o resto. Então, eu disse que ia para a beira do rio treinar o falcão e vim até aqui. Mas, como permanecesse calado, repeti preocupado, quase ansioso: — O que está acontecendo, Galapas? O que significa tudo isso? — Sobre o seu sonho e a descoberta da gruta, nada sei. Quanto à confusão no palácio, posso adivinhar. Você sabia que o Suserano teve filhos do primeiro casamento, Vortimer, Katigern e o jovem Pascentius? Assenti. — Nenhum deles estava lá em Segontium? — Não. — Dizem que eles romperam com o pai — continuou Galapas — e Vortimer está aliciando tropas próprias. Dizem que ele gostaria de ser o Suserano e que Vortigern parece estar com uma rebelião nas mãos quando menos poderia enfrentá-la. A rainha é muito odiada, você sabe disso; a mãe de Vortimer era uma boa bretã e, além disso, os jovens querem um rei jovem. — Camlach é a favor de Vortimer, então? — perguntei rápido e ele sorriu.

— Parece que sim. Refleti por uns instantes. — Bem, quando os lobos se desentendem, não dizem que os corvos recebem o que é seu? Como nascera em setembro, sob o signo de Mercúrio, o corvo era meu. — Talvez — disse Galapas. — Você, mais provavelmente, será trancado numa gaiola mais cedo do que espera. — Mas falou isso distraído, como se sua mente estivesse longe, e eu voltei para o que me preocupava mais. — Galapas, você disse que nada sabe sobre o meu sonho da gruta. Mas isto... isto deve ter sido a mão de Deus. Olhei para a saliência onde estava o falcão, sentado pacientemente, os olhos entrefechados, uma nesga de luz. — Pareceria que sim. Hesitei. — Não poderíamos descobrir o que ele... o que quer dizer? — Você quer entrar na gruta de cristal, novamente? — Não, não quero. Mas acho que talvez devesse. Certamente, você pode-me dizer isso, não? Falou apreensivo passados alguns momentos: — Acho que você deve entrar, sim. Mas, primeiro, preciso ensinar-lhe mais uma coisa. Você deverá acender o fogo por si mesmo desta vez. Não assim — disse sorrindo quando estendi a mão para apanhar um graveto e revolver as brasas. — Deixe isso. Você me pediu antes de partir que lhe mostrasse alguma coisa real. Isto é tudo que ainda tenho para ensinar-lhe. Eu não havia percebido... Bem, deixe isso para lá. Está na hora. Não, sente-se quieto, você não tem mais necessidade de livros de criança. Observe, agora. Sobre o que aconteceu a seguir eu não escreverei. Foi toda a arte que ele me transmitiu, além de certos truques de cura. Mas, como disse, foi a primeira mágica que me ocorreu, e será a última a deixarme. Achei fácil até mesmo produzir o fogo gelado e o fogo espontâneo e o fogo que salta como um látego pela escuridão; e foi melhor assim, porque eu era jovem para aprender tais coisas, e isso é uma arte que, quando se é incompetente ou se está mal preparado, pode deixar-nos cegos. Estava escuro lá fora quando terminamos. Ele pôs-se de pé. — Voltarei dentro de uma hora para acordá-lo. Puxou a capa que estava pendurada velando o espelho, agasalhou-se e saiu. As chamas lembravam o galope de um cavalo. Um língua comprida e brilhante estalava como um chicote. Uma tora caiu com um silvo que parecia o suspiro de uma mulher e, então, milhares de gravetos estalaram como pessoas falando, cochichando, pairando sobre as novidades... Tudo foi desaparecendo num brilho intenso e silencioso. O espelho piscou. Apanhei minha capa, agora confortavelmente seca, e entrei na gruta de cristal. Dobrei-a e deitei-me sobre ela, os olhos fixos na parede de cristal que abobadava sobre mim. As chamas perseguiam-me, fileiras sobre fileiras brilhantes, enchendo o ar, até que me encontrei num globo de luz que se assemelhava ao interior de uma estrela, tornando-se cada vez mais brilhante, quando de repente se partiu e sobreveio a escuridão.

Os cascos a galope faiscavam no cascalho da estrada romana. O chicote do cavaleiro estalava e voltava a estalar, mas o cavalo já corria a toda a velocidade, as narinas dilatadas e vermelhas, a respiração saindo sob forma de vapor, no ar frio. O cavaleiro era Camlach. Muito atrás dele, quase meia milha atrás, vinha o resto dos rapazes do seu grupo e muito mais atrás, levando um cavalo coxo e encharcado, vinha o mensageiro portador das notícias para o filho do Rei. A cidade estava coalhada de luzes, homens corriam para receber o cavalo que galopava, mas Camlach não fez caso deles. Meteu as esporas pontiagudas nos flancos do cavalo e atravessou direto a cidade, a galope pela rua íngreme, até o pátio externo do palácio. Havia tochas ali, também. Elas refletiram o brilho de seu cabelo ruivo quando ele desmontou e atirou as rédeas nas mãos do escravo que aguardava. As botas macias de montar não fizeram ruído quando ele correu escadas acima e ao longo da colunata que levava ao quarto do pai. A silhueta preta e veloz perdeu-se um momento na sombra do arco, então escancarou com violência a porta e passou. O mensageiro estava certo. Fora uma morte rápida. O velho estava deitado na cama romana de entalhes e sobre ele alguém colocara uma manta de seda púrpura. Tinham de alguma forma conseguido erguer seu queixo, pois a barba grisalha e agressiva apontava para o teto, e um pequeno descanso de cabeça em barro cozido, colocado sob o pescoço, mantinha-lhe a cabeça reta, enquanto o corpo lentamente adquiria a rigidez de ferro. Do modo como estava deitado, não havia sinal de que o pescoço estivesse partido. Já o velho rosto começava a definhar, a enrugar à medida que a morte desbastava a pele a partir da ponta do nariz, transformando-a em simples planos de cera fria. As moedas de ouro postas na sua boca e as pálpebras fechadas brilhavam à luz dos archotes nos quatro cantos da cama. Ao pé da cama, entre as tochas, encontrava-se Niniane. Imóvel e empertigada, vestida de branco, as mãos cruzadas no regaço apertando o crucifixo, a cabeça curvada. Quando a porta abriu, ela não ergueu os olhos, mas manteve-os fixos na manta púrpura, não de pesar, mas quase como se estivesse longe demais para pensar. O irmão veio rapidamente para o seu lado, esguio em sua roupa preta, num movimento rápido, com uma espécie de graça selvagem que pareceu chocar os presentes. Caminhou direto para a cama e ficou ali contemplando o pai. Então estendeu a mão e colocou-a sobre as mãos inertes cruzadas sobre a seda púrpura. Sua mão demorou-se ali por um momento e então retraiu-se. Olhou para Niniane. Por trás dela, a alguns passos imersos nas sombras, o pequeno grupo de homens, mulheres e criados arrastavam os pés e murmuravam. No meio deles, silenciosos e de olhos secos, Mael e Duach, de olhos arregalados. Dinias, também, toda a sua atenção fixa em Camlach. Camlach falou muito baixinho, diretamente com Niniane. — Disseram-me que foi um acidente. É verdade? Ela não se moveu nem falou. Ele fitou-a por um momento, então, com um gesto de irritação, olhou mais além e ergueu a voz. — Um de vocês, responda-me! Foi acidente? Um homem adiantou-se, um dos criados do Rei, chamado Mabon. — É verdade, my lord. — Ele passou a língua nos lábios, hesitante. Camlach mostrou os dentes. — Infernos! Que diabos está havendo com todos vocês? Então viu para onde convergiam os

olhares e baixou os olhos para o quadril direito, onde, desembainhada, se encontrava a adaga curta, metida no cinto. Estava ensangüentada até o punho. Ele fez um som de impaciência e nojo e, puxandoa, atirou-a longe. Ela passou roçando pelo chão, indo bater contra a parede com um pequeno tinido que ecoou no silêncio do quarto. — De quem pensaram que era o sangue? — perguntou ainda com o lábio torcido. — Sangue de veado, é só. Quando a notícia chegou, tínhamos acabado de matá-lo. Eu estava a doze milhas de distância, eu e meus homens. — Fitou-os como se os desafiasse a fazer comentários. Ninguém se moveu. — Continue, Mabon. Ele escorregou e caiu, disse-me o homem. Como aconteceu? O homem pigarreou. — Uma coisa estúpida, senhor, um simples acidente. Ora, ninguém estava perto dele. Foi no pequeno pátio, no caminho dos aposentos dos criados, onde os degraus estão gastos. Um dos homens estivera a carregar óleo para abastecer as lâmpadas e deixara cair um pouco nos degraus. Antes que voltasse para limpá-lo, o Rei passou, um tanto apressado. Ele não era esperado ali, àquela hora. Bem, my lord, ele pisou no óleo e caiu estatelado para trás, indo bater com a cabeça na pedra. Foi assim que aconteceu, my lord. Foi visto. Há gente que pode jurar. — E o culpado? — Um escravo, my lord. — Já trataram dele? — My lord, ele está morto. Enquanto conversavam, ouviu-se uma agitação na colunata, à chegada do grupo de Camlach, que acorreu ao quarto do Rei. Entraram juntos no quarto, enquanto Mabon falava, e agora Alun, aproximando-se do príncipe de mansinho, tocou-lhe o braço. — A notícia está por toda a cidade, Camlach. Há uma multidão juntando-se aí fora. Um milhão de histórias circulando... cedo haverá encrenca. Você terá que mostrar-se e dirigir-se a eles. Camlach deu-lhe um olhar rápido e assentiu. — Vá cuidar disso, sim? Bran, vá com ele e Ruan, também. Fechem os portões. Digam ao povo que vou sair daqui a pouco. E agora, todos vocês, fora! O quarto esvaziou-se. Dinias retardou-se no portal, não recebeu sequer um olhar e acompanhou o resto. A porta fechou-se. — Bem, Niniane? Em todo esse tempo ela não olhara para ele nem uma só vez. Agora ergueu os olhos. — O que quer de mim? É verdade o que Mabon contou. O que não disse é que o Rei estivera vadiando com uma criada e encontrava-se bêbado. Mas foi um acidente e ele está morto... E você com todos os seus amigos estavam a umas boas doze milhas de distância. Assim, você é o Rei agora, e não há nenhum homem que possa apontar o dedo para você e dizer: — Ele queria que o pai morresse. — E nenhuma mulher me pode dizer isso tampouco, Niniane. — Eu não o disse. Estou apenas comentando que as brigas aqui terminaram. O reino é seu... e

agora é como Alun disse, é melhor ir lá fora falar ao povo. — Com você primeiro. Por que fica de pé assim, como se não se importasse? Como se mal estivesse aqui conosco? — Talvez porque seja verdade. O que você é, meu irmão, e o que quer, não me interessa, exceto para pedir-lhe uma única coisa. — E o que é? — Que você me deixe partir agora. Ele nunca permitiria, mas creio que você concordará. — Para São Pedro? Ela inclinou a cabeça. — Eu lhe disse que nada aqui me interessava. Não me interessa já há algum tempo, e agora menos ainda com toda essa conversa de invasão e guerra na primavera, e os rumores sobre mudanças de poder e morte de reis... Oh, não me olhe assim; não sou tola e meu pai conversava comigo. Mas não precisa recear; nada que eu saiba ou faça poderá jamais transformar os planos que você fez para si próprio, meu irmão. Digo-lhe que não há nada que eu queira da vida, exceto ser deixada em paz e viver em paz e o mesmo para o meu filho. — Você disse "uma coisa". Aí já são duas. Pela primeira vez alguma coisa reviveu nos seus olhos; poderia ter sido medo. Disse, apressada: — Sempre existiu um plano para ele, o seu plano, antes mesmo que fosse o do meu pai. Certamente, depois que Gorlan partiu, você sabia que, ainda que o pai de Merlin pudesse aparecer com espada empunhada e três mil homens a apoiá-lo, eu não iria com ele? Merlin não pode causar-lhe nenhum mal, Camlach. Nunca passará de um bastardo sem nome e você sabe que ele não é guerreiro. Os deuses sabem que ele não pode fazer-lhe mal algum. — E menos ainda encerrado num seminário? — a voz de Camlach era insinuante. — E menos ainda encerrado num seminário. Camlach, você está brincando comigo? O que tem em mente? — Esse escravo que derramou o óleo - disse ele. - Quem foi? Aquele brilho nos olhos dela outra vez. Então as pálpebras baixaram. — O saxão, Cerdic. Ele não se moveu, mas a esmeralda no seu peito faiscou subitamente contra o preto das vestes como se seu coração saltasse. Ela exclamou arrebatada: — Não finja que adivinhou isso! Como poderia adivinhar? — Não foi adivinhação, não. Quando cheguei, o palácio ressoava de boatos como uma harpa partida. — E acrescentou numa súbita irritação: — Você fica parada como um fantasma, as mãos na barriga como se ainda tivesse aí um bastardo para proteger. Surpreendentemente ela sorriu. — Mas, eu tenho. — E como a esmeralda saltasse outra vez: — Não seja idiota. Onde arranjaria outro bastardo agora? Quis dizer que não poderia partir sem saber que ele está a salvo. E que ambos estamos a salvo do que você pretende fazer. — Do que pretendo fazer a você? Juro que não há nada... — Estou-me referindo ao reino do meu pai. Mas deixamos isso por ora. Já lhe disse que o meu

único interesse é que o Convento de São Pedro seja deixado em paz... E será. — E viu isso na bola de cristal? — É proibido a um cristão envolver-se com adivinhações — disse Niniane, mas sua voz parecia um pouco afetada demais e ele encarou-a com intensidade; então, subitamente desassossegado, deu alguns passos em direção às sombras que escureciam um lado do quarto, voltando logo para a luz. — Diga-me — falou, abrupto. — E Vortimer? — Morrerá — respondeu indiferente. — Todos morreremos um dia. Mas você sabe que me empenhei com ele. Não me poderia dizer o que acontecerá na próxima primavera? — Não vejo nada, nem posso dizer-lhe nada. Mas, quaisquer que sejam os seus planos para o reino, de nada lhe servirá deixar o menor rumor de assassinato surgir e posso-lhe dizer mais, você c um idiota se pensa que a morte do Rei foi outra coisa que não um acidente. Dois dos valetes presenciaram, e a moça com quem ele estivera. — O homem disse alguma coisa antes de ser morto? — Cerdic? Não. Só que fora um acidente. Ele parecia mais preocupado com meu filho do que consigo próprio. Foi tudo o que disse. — Foi o que ouvi — disse Camlach. O silêncio voltou. Eles encararam-se um ao outro. — Você não faria isso — disse ela. Ele não respondeu. Ficaram ali, os olhos fixos um no outro, enquanto uma corrente de ar irrompia pelo quarto, fazendo as tochas escorrerem. Então ele sorriu e saiu. Quando a porta bateu atrás dele, um golpe de ar soprou pelo quarto, cortando as chamas das tochas e fazendo a sombra e a luz andarem à roda. As chamas morriam e os cristais embaciavam. Quando engatinhei para fora da gruta e puxei a capa atrás de mim, ela rasgou-se. As brasas no fogo eram de um vermelho-escuro. Do lado de fora, estava bem escuro. Desci os degraus aos tropeções e corri para o portal. — Galapas! — gritei. — Galapas! Ele estava lá. Sua silhueta alta e curvada destacou-se na penumbra e encaminhou-se para a gruta. Os pés, seminus nas sandálias velhas, estavam azuis de frio. Parei a um metro dele, mas era como se tivesse corrido direto para os seus braços e me tivesse envolvido na sua capa. — Galapas, eles mataram Cerdic. Ele não disse nada, mas o seu silêncio era como palavras ou mãos confortadoras. Engoli para amenizar a dor na minha garganta. — Se eu não tivesse vindo aqui esta tarde... Eu o enganei, juntamente com os outros. Mas poderia ter confiado nele, até a seu respeito. Galapas, se eu tivesse ficado... se eu tivesse estado lá... talvez pudesse ter feito alguma coisa. — Não. Você de nada valeria. E sabe disso.

— Eu valho menos que nada agora. — Levei a mão à cabeça; doía brutalmente e meus olhos flutuavam, ainda meio cegos. Ele me tomou carinhosamente pelo braço e fez-me sentar junto ao fogo. — Por que diz isso? Um momento, Merlin, conte-me o que aconteceu. — Você não sabe? — perguntei, surpreso. — Ele estava reabastecendo as lâmpadas na colunata e um pouco de óleo pingou nos degraus e o Rei escorregou, caiu e partiu o pescoço. Não foi culpa de Cerdic, Galapas. Ele só deixou cair o óleo, foi só, e ia voltar, ia realmente voltar para limpá-lo quando aconteceu. De modo que o apanharam e o mataram. — E agora Camlach é o Rei. Creio que fiquei olhando fixamente para ele por algum tempo, sem vê-lo, com aqueles olhos cegos pelo sonho, o cérebro momentaneamente incapaz de absorver coisa alguma além daquele simples fato. Ele insistiu, carinhoso: — E sua mãe? O que aconteceu a ela? — O quê? Que foi que disse? A forma cálida de um copo foi colocada em minhas mãos. Podia sentir o cheiro da mesma bebida que ele me dera antes, quando eu sonhara na gruta. — Beba isto. Você deveria ter dormido até que eu viesse acordá-lo, então não sairia assim. Beba tudo. À medida que eu bebia, a dor aguda nas têmporas foi amortecendo, deixando apenas um latejamento, e as formas que dançavam ao meu redor voltaram a entrar em foco. E com elas meus pensamentos. — Sinto muito. Estou bem agora. Posso pensar novamente, já voltei a mim... Vou-lhe contar o resto. Minha mãe deverá ir para São Pedro. Ela tentou fazer Camlach prometer que me deixaria partir, também, mas ele não concordou. Creio... — Sim? Falei lentamente, pensando com esforço. — Não entendi tudo. Estava pensando em Cerdic. Mas acho que ele vai-me matar. Creio que usará a morte do meu avô para isso; dirá que foi o meu escravo quem o matou... Oh, ninguém vai acreditar que eu possa tirar alguma coisa de Camlach, mas se ele me encerrar numa casa religiosa, e então eu morrer tranqüilamente, pouco depois, até que os rumores se espalhem, ninguém erguerá a voz para denunciá-lo. E por essa altura, se minha mãe for apenas uma das mulheres santas de São Pedro e não mais a filha do Rei, também não terá voz para falar. — Aconcheguei as mãos em torno do corpo, olhando para ele. — Por que alguém teria tanto medo de mim, Galapas? Ele não respondeu, mas acenou para o copo que eu tinha nas mãos. — Acabe de beber. Depois, meu querido, você precisa partir. — Partir? Mas, se eu voltar, eles me matarão, ou me trancarão... não é? — Se eles o encontrarem, tentarão. Eu disse ansioso: — Se eu ficasse aqui com você... ninguém sabe que eu venho aqui... mesmo que me descobrissem e viessem em meu encalço, você não correria perigo! Nós os veríamos subindo o vale a milhas de distância, ou saberíamos que eles viriam, você e eu... Eles nunca me encontrariam; eu poderia esconder-

me na gruta de cristal. Ele sacudiu a cabeça. — A hora para isso ainda não chegou. Um dia, mas não agora. Você já não poderia ficar escondido agora, do mesmo modo que o seu falcão não poderia voltar para o ovo. Olhei de esguelha para a saliência onde o falcão estivera encolhido, como a coruja de Atenas. Não havia mais ave ali. Passei as costas da mão nos olhos e pisquei sem acreditar. Mas era verdade. As sombras iluminadas pelo fogo estavam vazias. — Galapas, ele foi-se embora. — Sim. — Você o viu partir? — Ele passou quando você me chamou de volta à gruta. — Eu... em que direção? — Sul. Bebi o resto da poção e virei o copo para baixo para deixar cair as últimas gotas para o deus. Então pousei-o e apanhei minha capa. — Voltarei a ver você, não? — Sim. Prometo-lhe. — Então voltarei? — Já lhe prometi isso. Algum dia esta gruta será sua com tudo que ela contém. Vindo da noite, passou por ele um vento frio que agitou minha capa e deixou-me os cabelos da nuca em pé. Minha pele arrepiou-se. Levantei-me, envolvi-me na capa e prendi-a com o broche. — Você vai, então? — Ele sorria. — Confia em mim tanto assim? Aonde pretende ir? _Não sei. Para casa, suponho eu, para começar. Terei tempo de pensar durante o caminho, se for necessário. Mas ainda estou no caminho do deus. Posso sentir o vento soprando. Por que está sorrindo, Galapas? Ele, porém não quis responder. Ergueu-se, puxou-me para si, curvou-se e me deu um beijo. Seu beijo era seco e leve, o beijo de um homem velho, como uma folha morta roçando na pele ao cair. Então empurrou-me em direção à entrada. — Vá. Já deixei o pônei selado à sua espera. Ainda chovia quando desci o vale. A chuva era miúda e fria e me deixava encharcado; juntava-se na minha capa e pesava nos ombros e misturava-se às lágrimas que escorriam pelo meu rosto. Essa foi a segunda vez na vida que chorei.

11 O portão dos estábulos estava trancado. Era o que eu já esperava. Naquele dia, eu saíra abertamente pelo pátio principal, levando o falcão, e em qualquer outra noite poderia ter arriscado voltar pelo mesmo caminho, com a história de ter perdido o falcão e ter ficado rodando até o anoitecer à sua procura. Mas não naquela noite. E naquela noite não haveria ninguém esperando por mim para abrir-me o portão. Embora a necessidade de pressa bafejasse na minha nuca, mantive o pônei impaciente, a passo, e cavalguei silencioso ao longo da muralha do palácio na direção da ponte. Esta e a estrada que dali saía regurgitavam de gente e tochas e barulho e duas vezes, nos poucos minutos desde que a avistara, passaram cavaleiros em desenfreado galope que atravessaram a ponte rumo ao sul. Agora as árvores molhadas e despidas do pomar debruçavam-se sobre o caminho de reboque. Sob a muralha alta havia um fosso onde iam bater os ramos, molhados. Escorreguei do lombo do pônei e levei-o para a minha macieira pendente, onde o amarrei. Então, subi de volta à sela e pus-me de pé sem nenhuma estabilidade, equilibrei-me por um momento e pulei para o galho alto. Eu estava encharcado e uma das mãos resvalou, mas a outra agüentou. Atirei as pernas para o alto, cruzei-as em torno do ramo e, feito isso, foi só uma questão de minutos trepar na muralha e descer pelo pomar. Para a esquerda erguia-se o muro alto que vedava o jardim do meu avô; para a direita o pombal e o terraço elevado onde Moravik costumava sentar-se com seu tear. À minha frente, a construção alongada e baixa dos aposentos da criadagem. Para meu alívio, quase não havia luz. Toda iluminação e clamor do palácio concentravam-se do outro lado do muro à minha esquerda, na ala principal. De mais além, vinha o tumulto das ruas, abafado pela chuva. Mas não havia luz na minha janela. Corri. Com o que eu não contara é que o tivessem trazido para ali, para o seu antigo lugar. O colchão estava estendido agora, não atravessado junto à porta, mas, para o fundo, no canto, junto à minha cama. Não havia púrpura, nem tochas; ele estava caído, como o haviam atirado. Só o que consegui ver na semi-obscuridade foi o corpo desajeitado, esparramado, um braço aberto e a mão espalmada no chão frio. Estava escuro para ver como morrera. Curvei-me e tomei-lhe a mão. Já estava fria e o braço começara a enrijecer. Ergui-a carinhosamente, coloquei-a junto ao corpo e corri para minha cama, arrancando a fina manta de lã. Estendi-a sobre Cerdic, e endireitei-me rápido, apurando o ouvido, quando uma voz de homem gritou alguma coisa à distância e ouvi passos na extremidade da colunata, com a resposta: — Não. Ele não passou por aqui. Estive vigiando a porta. O pônei já entrou? — Não. Nem sinal. — E então, em resposta a um outro grito: — Bem, ele não pode ter ido longe. Freqüentemente ainda está fora a estas horas. O quê? Oh, sim, está bem... Os passos afastaram-se, rápidos. Silêncio. Havia uma lâmpada num suporte em algum lugar da colunata. Irradiava luz suficiente pela porta

entreaberta, para deixar-me ver o que eu fazia. Silenciosamente, ergui a tampa da arca, tirei a pouca roupa que possuía, minha melhor capa, e um par sobressalente de sandálias. Juntei tudo isso numa mochila, juntamente com os meus outros pertences, um pente de marfim, um par de broches e uma fivela de cornalina — esses eu poderia vender. Subi na cama e atirei a mochila pela janela. Então corri de volta para Cerdic, afastei a manta e, ajoelhado, apalpei seu quadril. Tinham-lhe deixado a adaga. Puxei a fivela com os dedos, mais desajeitados do que a escuridão os tornava, e ela cedeu. Tirei-a com cinto e tudo, uma adaga de homem, duas vezes mais longa que a minha e mortalmente afiada. A minha, coloquei-a junto a ele, no colchão. Poderia precisar dela no lugar para onde fora, mas eu duvidava; suas mãos sempre lhe bastaram. Eu estava pronto. Fiquei a contemplá-lo mais uma vez, sem vê-lo, mas sim, como na gruta de cristal, à posição em que haviam colocado meu avô, com a tocha, os veladores e a púrpura. Aqui, nada havia, exceto trevas, uma morte de cão. A morte de um escravo. — Cerdic — disse eu, à meia-voz. Já não chorava. Terminara. — Cerdic, descanse agora. Vou enviá-lo da maneira como você queria, como um rei. Corri para a porta, escutei por um momento, e então me esgueirei pela colunata deserta. Tirei a lâmpada do suporte. Era pesada, lambuzada de óleo; ele a abastecera mesmo aquela tarde. De volta ao meu próprio quarto, levei a lâmpada para onde ele jazia. Agora — o que eu não previra — podia ver como ele morrera: tinham-lhe cortado a garganta. Mesmo que eu não tivesse querido, aconteceria. A lâmpada tremeu-me nas mãos e o óleo quente espalhou-se na manta. Uma fagulha desprendeu-se do pavio e caiu. Então, atirei a lâmpada ao seu corpo, e observei-o por cinco longos segundos, enquanto a chama corria para o óleo e explodia como espuma incandescente. — Vá com seus deuses, Cerdic — disse eu, saltando a janela. Caí sobre a trouxa e rolei pela grama molhada. Em seguida recolhi-a e corri para a muralha do rio. A fim de não assustar o pônei, parti para um lugar alguns metros além da macieira e atirei a trouxa no fosso por cima da muralha; voltando então para a árvore, subi até o topo. Montado ali, olhei para trás. O fogo pegara. Minha janela aclarava-se agora, com uma luz vermelha e palpitante. O alarma ainda não fora dado, mas numa questão de minutos as chamas seriam percebidas ou alguém sentiria o cheiro da fumaça. Desci rápido, fiquei pendurado pelas mãos por uns instantes e finalmente deixei-me cair. Quando me erguia, uma sombra gigantesca pulou sobre mim, derrubando-me. Caí sob o corpo pesado de um homem que me imobilizou na relva lamacenta. Uma mão espalmada cobriu-me o rosto com violência, abafando meu grito. Bem perto de mim ouvi passos rápidos, o ruído desagradável do metal desembainhado e uma voz de homem, ansiosa, que dizia, em bretão: — Espere, faça-o falar, primeiro. Fiquei completamente imóvel. Isto foi fácil, pois não somente a força do ataque do primeiro homem tirara-me todo o fôlego, como também eu sentia sua faca na minha garganta. Quando o segundo homem falou, o meu captor, com um rosnado de surpresa, aliviou seu peso e a faca afastou-se uns centímetros. Disse, num tom entre surpreso e desgostoso: — É apenas um menino. — E então para mim, asperamente, em galés: — Não faça nenhum barulho ou corto-lhe a garganta agora mesmo. Compreendeu?

Assenti. Ele retirou a mão da minha boca e, levantando-se, pôs-me de pé. Empurrou-me contra a parede, segurando-me ali, a faca ainda a espetar-me a clavícula. — O que significa tudo isso? O que está fazendo...fugindo do palácio como um rato perseguido por cães? Um ladrão? Fale, desgraçado, antes que eu o esgane. Sacudiu-me como se eu fosse realmente um rato. Consegui ofegar: — Nada, eu não estava fazendo nada de mal! Deixe-me ir! O outro homem falou baixinho, na escuridão: — Veja o que ele atirou por cima da muralha. Uma mochila cheia de coisas. — O que leva aí dentro? — perguntou-lhe meu captor. E para mim: — Fique quieto, você. Não precisava avisar-me. Pensei ter pressentido o cheiro da fumaça e o primeiro clarão de luz quando o fogo avançou pelas traves do telhado.- Encolhi-me ainda mais na sombra escura da muralha. O outro homem examinava minha trouxa. — Roupas... sandálias... pelo tato, algumas jóias... Ele se afastara para o caminho de reboque e agora, com os meus olhos habituados à escuridão, pude vê-lo. Um homem que mais parecia uma fuinha, os ombros curvados e um rosto fino e pontudo sob uns fiapos de cabelo. Ninguém que eu conhecesse. Dei um suspiro de alívio. — Vocês não são homens do Rei! Quem são, então? O que querem aqui? O homem com cara de fuinha parou de remexer em minha mochila e encarou-me. — Isto não é da sua conta — disse o grandalhão que me segurava. — Nós é que fazemos as perguntas. Por que está com tanto receio dos homens do Rei? Conhece-os, eh! — Claro que sim. Moro no palácio. Sou... escravo, lá. — Marric — era o fuinha que falava, áspero — dê uma olhada aqui, há um princípio de fogo. Estão zumbindo como numa casa de marimbondos. Não vale a pena estar a perder tempo com um escravo. Corte a garganta dele e vamos correr enquanto podemos. — Um momento — disse o grandalhão. — Ele pode saber alguma coisa. — Olhe aqui, seu... — Se vai cortar minha garganta de qualquer maneira — disse eu — por que deveria contar-lhe alguma coisa? Quem são vocês? Ele inclinou a cabeça para a frente, de súbito, espreitando-me. — Está cantando de galo de repente, não é? Não lhe interessa quem somos. Um escravo, eh? Fugindo? — É. — Andou roubando? — Não. — Não? E as jóias na trouxa? E isso? Isso não é uma capa de escravo! Ele apertou a gola da capa até que me contorci. — E aquele pônei? Vamos, a verdade!

— Está bem. — Esperei que minha voz soasse triste e acovardada, como a de um escravo. — Tirei algumas coisas. É o pônei do príncipe, de Myrddin... Eu... eu o encontrei perdido. Verdade, senhor. Ele saiu hoje e ainda não voltou. Deve ter sido atirado fora da sela, é um péssimo cavaleiro. Eu... foi uma sorte... eles não darão por falta dele até que eu já esteja longe. — Puxei-lhe a roupa, suplicante. — Por favor, senhor, deixe-me ir. Por favor! Que mal poderia eu fazer-lhe...? — Marric, pelo amor de Deus, não temos tempo. — As chamas tinham-se apoderado da construção agora e crepitavam com violência. Ouviam-se gritos no palácio e o fuinha puxou o braço do meu captor. — A maré está baixando rapidamente e só os deuses sabem se ela estará lá com este tempo. Ouça o barulho... virão para este lado a qualquer momento. — Não virão — disse eu. — Estarão muito ocupados em apagar o fogo para pensar em qualquer outra coisa. Já estava alto quando eu o deixei. — Quando o deixou?! — Marric não se mexera; olhava fixamente para mim e seu aperto era menos feroz. Você ateou aquele fogo? — Ateei. Eu tinha agora toda a atenção deles, até do fuinha. — Por quê? — Porque tenho ódio deles. Mataram o meu amigo. — Quem matou? — Camlach e sua gente. O novo Rei. Fez-se um curto silêncio. Eu podia ver Marric melhor, agora. Era um homem grande, rude, com um tufo de cabelo preto e olhos escuros que faiscavam ao fogo. — E — acrescentei — se eu ficasse, eles me teriam matado, também. Assim, pus fogo ao palácio e fugi. Deixe-me ir, agora. — Por que iriam querer matá-lo? Vão querer agora, naturalmente, com esse palácio a arder como uma tocha — mas por que antes disso? O que foi que você fez? — Nada. Mas eu era escravo do velho Rei e... creio que eu ouvia coisas. Escravos ouvem tudo. Camlach acha que eu poderia ser perigoso... Ele tem planos... Eu sabia deles. Acredite-me, senhor — disse eu, ansioso. — Eu o teria servido tão bem quanto servi ao velho Rei, mas ele matou meu amigo. — Que amigo? E por quê? — Outro escravo, um saxão, de nome Cerdic. Ele derramou um pouco de óleo nos degraus e o velho Rei caiu. Foi um acidente, mas eles cortaram-lhe a garganta. Marric voltou a cabeça para o outro. — Ouviu isso, Hanno? É verdade. Soube na cidade. — Então, voltando-se para mim: — Muito bem. Agora pode contar-nos um pouco mais. Você diz que conhece os planos de Camlach? Mas Hanno interrompeu-o novamente, desta vez desesperado. — Marric, pelo amor de Deus! Se você acha que ele tem algo a nos contar, traga-o conosco. Ele pode falar no barco, não pode? Estou-lhe dizendo: se esperarmos muito mais, vamos perder a maré e ela partirá. Pelo jeito, aproxima-se mau tempo e estou apostando que eles não irão esperar. — E em bretão: — Podemo-nos descartar dele mais tarde tão facilmente quanto agora.

— Barco? — exclamei eu. — Vocês vão pelo rio? — Que outro lugar? Acha que podemos ir pela estrada? Olhe para a ponte — acenou Marric com a cabeça. — Está bem, Hanno. Entre. Vamos. Ele começou a arrastar-me pela trilha de reboque. Eu resisti. — Aonde me vai levar? — Isto é assunto nosso. Sabe nadar? — Não. Ele riu entre dentes. Não era um som reconfortante. — Então, não lhe vai fazer diferença para que lado vamos. Venha! — E ele fechou a mão sobre minha boca mais uma vez, levantou-me debaixo do braço como se eu não fosse mais pesado que a minha trouxa e atravessou o caminho de reboque em direção ao brilho oleoso e escuro que era o rio. O barco era um bote de couro, semi-oculto pelo barranco. Hanno já estava a lançá-lo. Marric desceu o barranco com um pulo e um escorregão, jogou-me na embarcação que balançava e subiu atrás de mim. Quando o bote se afastou do barranco, fez-me sentir, novamente, a faca encostada à minha nuca. — Aqui. Está sentindo? Agora fique calado até passarmos a ponte.

Hanno impeliu o barco e com o remo levou-nos para o meio da correnteza. A alguma distância da margem senti a correnteza apanhar o barco e ganhamos velocidade. Hanno debruçou-se sobre o remo e manteve-o esticado para livrar-nos do arco sul da ponte. Seguro por Marric, eu estava sentado de frente para a popa. Quando a correnteza nos apanhou, levando-nos para o sul, ouvi o relincho de Aster, alto e assustado, ao cheirar a fumaça, e, à luz das chamas agora fragorosas, vi-o arrastar as rédeas partidas, ao emergir das sombras da muralha correndo como um fantasma pela trilha de reboque. Com fogo ou sem fogo, seguiria para o portão e para o seu estábulo e eles o encontrariam. Fiquei imaginando o que iriam pensar, onde me iriam procurar. Cerdic teria desaparecido agora, e o meu quarto com a arca pintada e a manta digna de um príncipe. Será que pensariam que eu encontrara o corpo de Cerdic e com o choque e o medo deixara cair a tocha? Que o meu próprio corpo estava lá carbonizado nos restos da ala da criadagem? Bem, o que quer que pensassem não faria diferença. Cerdic partira ao encontro dos seus deuses e eu, pelo que parecia, ia ao encontro dos meus.

12 O ARCO NEGRO DA PONTE cruzou com o barco e desapareceu. Fugia-mos a favor da correnteza. A maré estava quase mudando, mas o fim da vazante levava-nos rápido. O ar refrescava e o bote começou a jogar. A faca afastou-se da minha pele. Frente a mim, Marric falou: — Bem, até aqui tudo bem. O moleque nos ajudou com o seu incêndio. Não havia ninguém vigiando o rio para ver o bote escapulir por baixo da ponte. Agora, menino, vamos ouvir o que tem a nos contar. Qual é o seu nome? — Myrddin Emrys. — E você diz que era... ei, espere um instante! Você disse Myrddin? Não o bastardo, por acaso? — É. Ele deixou escapar um assovio e o remo de Hanno parou, para mergulhar novamente apressado, enquanto o barco girava e começava a jogar, atravessado na correnteza. — Você ouviu isso, Hanno? É o bastardo. Então, por que, em nome dos espíritos sob a terra, disse-nos que era escravo? — Eu não sabia quem eram vocês. Como não me haviam reconhecido, pensei que eram ladrões ou homens de Vortigern e assim me deixariam partir. — Mochila, pônei e todo o resto... Então era verdade que estava fugindo? Bem, — acrescentou ele, pensativo — se as histórias são verdadeiras, você não tem culpa naquilo. Mas, por que atear fogo ao palácio? — Isso também é verdade. Eu já contei. Camlach matou um amigo meu, Cerdic, o saxão, embora ele nada tivesse feito para merecê-lo. Acho que só o mataram porque era meu e pretendiam usar sua morte contra mim. Puseram o corpo no meu quarto para que eu o encontrasse. Então pus fogo ao quarto. O povo dele gosta de ir ao encontro de seus deuses assim. — E o diabo que se encarregue de todo o resto no palácio? Respondi com indiferença: — A ala da criadagem estava vazia. Estavam todos ceando, ou procurando por mim, ou servindo Camlach. É surpreendente — ou talvez não seja — como as pessoas mudam depressa sua lealdade. Imagino que eles apagarão o fogo antes que atinja os aposentos reais. Ele me fitou em silêncio por um momento. Ainda corríamos com a maré em mudança,

já agora, fora do estuário. Hanno não deu sinais de mudar o rumo para a margem mais distante. Aconcheguei-me mais à minha capa e estremeci. — Para onde fugia você? — perguntou Marric. — Para nenhum lugar. — Olhe, menino, eu quero a verdade, ou então, príncipe bastardo ou não, atiro-o na água agora. Ouviu? Não duraria uma semana se não tivesse para onde ir, ou para o serviço de quem entrar. Quem tinha em mente? Vortigern? — Seria sensato, não? Camlach está apoiando Vortimer. — Ele está o quê? — Sua voz esganiçou-se. — Tem certeza? — Toda. Ele cogitava disso antes, e foi a razão de sua briga com o velho Rei. Ele e seu grupo se teriam separado de qualquer modo, creio eu. Agora naturalmente poderá levar o reino todo com ele, e fechá-lo para Vortigern. — E abri-lo para quem? — Não ouvi isso. Quem mais há? Você pode imaginar que ele não estaria alardeando isso até hoje à noite, quando seu pai, o Rei, morreu. — Hum. — Ele refletiu um minuto. — O velho Rei deixa um segundo filho, se os nobres não desejarem essa aliança... — Um filho? Você não está sendo um pouco ingênuo? Camlach tinha um bom exemplo a sua frente: Vortimer não estaria onde está se o pai não tivesse feito exatamente o que Camlach fará. — E o que é? — Você sabe tão bem quanto eu. Olhe, por que deveria dizer mais sem saber quem é você? Não está na hora de me contar? Ele ignorou a pergunta. Parecia pensativo. — Você parece saber um bocado. Que idade tem? — Doze. Farei treze em setembro. Mas não preciso ser inteligente para saber sobre Camlach e Vortimer. Ouvi ele próprio dizê-lo. — Ouviu? Pelo Touro? E o que mais ouviu? — O bastante. Eu estava sempre no caminho. Ninguém reparava em mim. Mas minha mãe vai-se retirar agora para o convento de São Pedro e eu não daria um caracol pelas minhas chances, de modo que parti. — Para Vortigern? — Já lhe disse francamente: Não tenho idéia. Eu... eu não tenho planos. Talvez tivesse

que ser Vortigern afinal. Que escolha há além dele, e os lobos saxões pendurados às nossas gargantas o tempo todo até que tenham dilacerado e engolido a Bretanha? Quem mais há? — Bem — disse Marric — Ambrosius. — Ri. — Oh, sim, Ambrosius, pensei que você estivesse falando sério. Sei que vem da Bretanha Menor, percebo isso pela sua fala, mas... — Você perguntou quem éramos. Somos homens de Ambrosius. Fez-se silêncio. Eu percebera que os barrancos do rio haviam desaparecido. Distante na escuridão, surgiu uma luz para o norte: o farol. Há algum tempo a chuva diminuíra e parará. Agora fazia frio devido ao vento fora da costa e a água estava picada. O barco jogava e girava e senti os primeiros sinais de enjôo. Apertei as mãos contra o estômago com força, tanto devido ao frio quanto à náusea e perguntei, esganiçado. — Homens de Ambrosius? Então são espiões? Espiões dele? — Chame-nos de homens leais. — Então é verdade? É verdade que ele está esperando na Bretanha Menor? — É, é verdade. Disse, aterrado: — Então é para lá que vamos? Vocês decerto não acreditam que chegaremos lá neste barquinho horrível. Marric riu-se e Hanno disse, azedo: — Poderemos ter que fazer isso mesmo, se o navio não estiver aí. — Que navio estaria aí no inverno? — perguntei. — Não é tempo para navegar. — É tempo para navegar quando se paga bem — disse Marric, seco. — Ambrosius paga. O navio estará aí. — Sua manopla descansou no meu ombro, não sem gentileza. — Não se preocupe com isso, ainda há coisas que quero saber. Enrosquei-me, segurando a barriga, tentando inalar grandes sorvos de ar frio e puro. — Oh, sim, há muita coisa que poderia contar-lhe. Mas, se me vai atirar na água de qualquer forma, não tenho nada a perder, tenho? Faria melhor guardando o resto das minhas informações para mim mesmo... ou ver se Ambrosius pagará, para obtê-las. E lá está o seu navio. Olhe: se não consegue vê-lo ainda, deve ser cego. Agora não fale mais comigo, sinto-me mal. Ouvi-o rir-se outra vez, entre dentes.

— Você é dos calmos, não há dúvida. É, lá está o navio, posso vê-lo bastante claramente agora. Bem, sabendo quem você é, nós o levaremos a bordo. E vou dizer-lhe a outra razão: gostei do que disse a respeito do seu amigo. Parecia bastante sincero. Então, sabe ser leal, hem? E não tem razão para ser leal a Camlach, a julgar pelas histórias, ou a Vortigern. Será que poderia ser leal a Ambrosius? — Saberei quando o vir. Seu punho atirou-me esparramado no fundo do barco. — Principelho ou não, dobre a língua quando falar dele. Há muitas centenas de homens que pensam nele como seu rei, de direito. Ergui-me com ânsias de vômito. Um brado veio de muito perto e no instante seguinte estávamos balançando na sombra mais escura de um navio. — Se ele for um homem, isso será suficiente — disse eu. O navio era pequeno, compacto e pesado. Fundeado ali, sem luzes, era uma sombra no mar escuro. Eu só distinguia o caimento do seu mastro jogando — nauseantemente, parecia-me, — contra as nuvens que eram apenas um pouquinho mais claras que o céu negro, no alto. Estava equipado como os navios mercantes que entravam e saíam de Maridunum em tempo de navegação, mas achei que parecia mais bem construído e mais veloz. Marric respondeu ao brado, então uma corda desceu pela borda e Hanno, apanhando-a, amarrou-a. — Vamos, ande logo. Você sabe subir, não? De alguma forma consegui pôr-me de pé no bote balouçante. A corda estava molhada e repuxava nas minhas mãos. Do alto vinha uma voz ansiosa: — Depressa, por favor. Teremos sorte se ainda conseguirmos voltar com o tempo que se aproxima. — Para o alto, desgraçado — exclamou Marric asperamente, dando-me um empurrão. Era só o que me estava faltando. Minhas mãos escorregaram pela corda, insensíveis, e caí de volta no bote, estatelando-me meio atravessado na borda, onde fiquei ofegante a vomitar, sem ligar para o destino que me coubesse ou mesmo para uma dúzia de reinos. Se eu tivesse sido esfaqueado ou atirado ao mar naquela altura, duvido de que chegasse a notar, exceto para receber a morte como um alívio. Deixei-me ficar ali pendurado na borda do bote como um monte de trapos, a vomitar. Lembro-me muito pouco do que aconteceu a seguir. Houve um bocado de xingamento

e creio lembrar-me de Hanno a recomendar ansioso a Marric para diminuir suas perdas e atirar-me à água; mas fui apanhado e de alguma forma arremessado às mãos que esperavam no alto. A seguir, alguém entre eles carregou-me e arrastou-me para baixo e largou-me numa pilha de cobertas com um balde à mão e o ar de uma escotilha aberta a bater-me no rosto suado. Creio que a viagem levou quatro dias. Mau tempo, certamente que houve, mas finalmente deixamo-lo para trás e fizemos boa velocidade. Permaneci embaixo todo o tempo, agradecido por estar aconchegado em cobertores, sob a escotilha, mal me aventurando a erguer a cabeça. O pior do enjôo passou depois de algum tempo, mas duvido de que pudesse mover-me e felizmente ninguém tentou obrigar-me a isso. Marric desceu uma vez. Lembro-me vagamente como se tivesse sido um sonho. Abriu caminho por entre um monte de correntes de âncoras até onde eu me encontrava, parou, o corpanzil curvado, olhando-me. Então sacudiu a cabeça. — E pensar que acreditei estar fazendo uma boa coisa em trazê-lo. Devíamos tê-lo atirado na água de saída e poupado um bocado de trabalho. Acho que não deve ter muito mais para nos contar, de qualquer forma. Não dei resposta. Ele soltou um rosnado estranho que pareceu um riso e saiu. Eu dormi, exausto. Quando acordei, descobri que minha capa molhada, as sandálias e a túnica tinham sido removidas e que, seco e nu, encontrava-me embrulhado em cobertores. Próximo à minha cabeça havia um jarro de água, a boca tampada com uma rosca de trapos, e um pedaço de pão de cevada. Não teria conseguido tocar em nenhum dos dois, mas entendi o seu significado. Dormi. E, um dia, pouco antes do amanhecer, avistamos a Costa Brava e ancoramos nas águas calmas de Morbihan, que os homens chamam de Mar Pequeno.

Livro 2 - O FALCÃO

1 ASSIM QUE CHEGAMOS À TERRA fui despertado daquele pesado sono de exaustão por vozes que falavam sobre mim. — Bem, muito bem, se você acredita nele. Mas acha realmente que mesmo um príncipe bastardo estaria a bordo nessas roupas?Tudo encharcado, nem mesmo uma fivela dourada no cinto, e olhe as sandálias dele. De fato, é uma boa capa, mas está rasgada. Mais provavelmente a primeira história era a verdadeira e ele é um escravo fugindo com as coisas do dono. Era naturalmente a voz de Hanno, que estava falando em bretão. Felizmente eu tinha as costas voltadas para os dois, enroscado no monte de cobertores. Era fácil fingir que dormia. Continuei imóvel e tentei manter a respiração regular. — Não; é mesmo o bastardo. Vi-o na cidade. Eu o teria reconhecido mais cedo se tivéssemos podido acender uma luz. — A voz mais profunda era de Marric. — De qualquer modo, pouca diferença faz quem seja; escravo ou bastardo real, privou de muita coisa naquele palácio e Ambrosius quererá ouvi-lo. E é um rapaz esperto; oh, sim, é o que diz ser. Não se aprendem esses modos frios e esse tipo de conversa nas cozinhas. — Bem, mas... — A mudança na voz de Hanno me deu arrepios. Continuei imóvel. — Bem, mas o quê? O fuinha baixou ainda mais a voz. — Talvez se o fizéssemos falar antes... quero dizer, encare a coisa assim. Tudo aquilo que ele nos disse, de ter ouvido o que o rei Camlach pretendia fazer e tudo o mais... Se tivéssemos conseguido essas informações por nós mesmos e escapássemos para relatá-las, haveria uma gorda recompensa para nós, não haveria? Marric rosnou. — E quando ele desembarcar e contar a alguém de onde veio? Ambrosius saberia. Ele sabe tudo. — Está tentando ser ingênuo? A pergunta era acrimoniosa. Só me restava manter-me imóvel. Havia um espaço entre as minhas espáduas onde a pele endureceu sobre a carne como se já sentisse a faca. — Oh, não sou tão ingênuo assim. Entendo-o. Mas não vejo como... — Ninguém em Maridunum sabe para onde ele foi. — O sussurro de Hanno era apressado e ansioso. — Quanto aos homens que o viram embarcar, pensarão que o levamos conosco. De fato é o que faremos, leva-lo-emos conosco agora e há uma porção

de lugares entre aqui e a cidade... — Ouvi-o engolir. — Eu bem lhe disse antes de zarparmos que não fazia sentido gastar dinheiro com a passagem... — Se íamos livrar-nos dele — disse Marric, rude, — teríamos feito melhor em não pagar passagem alguma. Seja sensato. Afinal, vamos receber o dinheiro de volta agora e talvez um pouco mais. — Como calcula isso? — Bem, se o menino tem informações, Ambrosius pagará a passagem, pode estar seguro. E se é mesmo o bastardo — e tenho certeza de que é — haverá um extra para nós. Filhos de reis — ou netos — podem vir a ser úteis, e quem saberia melhor que Ambrosius? — Ambrosius deve saber que o menino é inútil como refém — declarou Hanno, sombrio. — Quem sabe? E se não tiver serventia para Ambrosius, então ficaremos com ele, para vender e dividir o lucro. Portanto, deixe estar como lhe digo. Vivo poderá valer alguma coisa; morto não vale nada, e poderemos ver-nos em apuros para pagar-lhe a passagem. Senti o dedão de Hanno cutucar-me, nada gentilmente. — Não parece valer para coisa alguma, no momento. Já viu alguém tão doente? Deve ter o estômago de uma menina. Supõe que ainda possa andar? — Podemos descobrir — disse Marric, sacudindo-me. — Ei, menino, levante-se. Gemi, voltando-me lentamente e mostrando-lhes o que gostaria que fosse um rosto tremendamente pálido. — O que é? Já chegamos? — perguntei em galês. — Sim, chegamos. Vamos agora, ponha-se de pé, vamos desembarcar. Gemi novamente, mais desanimado que antes, e apertei o estômago. — Oh, meu Deus, deixem-me em paz! — Um balde de água salgada — sugeriu Hanno. Marric endireitou-se. — Não há mais tempo. — Falou em bretão outra vez. — Parece que teremos de carregá-lo. Não! Teremos de deixá-lo; precisamos ir direto ao Conde. Hoje é o dia da reunião, está lembrado? Ele já deve saber que o navio atracou e estar à espera de ver-nos antes de partir. É melhor levarmos o relatório diretamente a ele, do contrário teremos encrenca. Deixaremos o menino aqui, por ora. É melhor trancá-lo e dizer ao vigia para ficar de olho nele. Pode remos estar de volta bem antes da meia-noite.

— Você pode, quer dizer — respondeu Hanno, azedo. — Eu tenho uma coisa que não pode esperar. — Ambrosius também não pode esperar. Assim, se quiser receber seu dinheiro, é melhor vir. Eles já estão quase terminando de descarregar. Quem está de vigia? Hanno disse alguma coisa, mas o rangido da pesada porta ao ser fechada à saída deles e, a seguir, a pancada das barras sendo metidas nos encaixes, abafaram a resposta. Ouvi as cunhas assentarem, e então perdi as vozes e os passos nos ruídos da operação de descarga, que sacudia o navio — o rangido dos guindastes, os gritos dos homens e, a alguma distância em terra, o sibilar e guinchar das amarras, e as batidas dos fardos içados e atirados no cais. Joguei as cobertas para o lado e sentei-me. Com o desaparecimento do horrível balanço do navio senti-me firme outra vez — até bem, com uma espécie de leveza e um vazio que me davam uma estranha sensação de bem-estar, uma sensação de flutuar, ligeiramente irreal como o poder que se tem em sonhos. Ajoelhei-me nas cobertas e corri os olhos em meu redor. Havia lanternas no cais para os homens trabalharem e a luz penetrava pela pequena escotilha. E deixava ver o jarro de boca larga, ainda no mesmo lugar, e um novo pedaço de pão de cevada. Destampei o jarro e provei a água com cautela. Estava velha e sabia a trapo, mas boa, e limpou o gosto metálico que eu trazia na boca. O pão estava duro como pedra, mas amoleci-o na água até que pudesse partir um pedaço para comer. A seguir, levantei-me e fui olhar pela escotilha. Para fazer isso, precisei esticar-me até à beirada da escotilha e içar-me com as mãos, buscando um apoio para os pés nos travessões que revestiam o tabique. Calculara pelo formato da minha prisão que o porão estava na proa, o que mais tarde vi que estava certo. O navio encontrava-se atracado ao longo de um cais de pedra, onde havia um par de lanternas penduradas em postes, e à sua claridade uns vinte homens — soldados — trabalhavam para trazer os fardos e caixas do navio. Ao fundo do cais existia uma fileira de prédios sólidos, provavelmente para armazenagem, mas aquela noite parecia que a mercadoria era destinada a outro lugar. Carroças aguardavam além dos postes, as mulas presas e pacientes. Os homens nas carroças usavam uniformes e portavam armas e havia um oficial no comando da operação de descarga. O navio estava amarrado perto do cais a meia-nau, por onde descia o passadiço. A corda fronteira corria da grade acima da minha cabeça até o cais e isso permitia à proa, ao balançar, afastar-se de terra, de modo que entre mim e o cais havia uns cinco metros de água. Não havia luzes nesta extremidade do navio; a corda corria por uma nesga confortável de escuridão que se confundia, além, com a escuridão ainda mais densa dos prédios. Mas eu teria que esperar, resolvi, até que a descarga terminasse e as carroças — e provavelmente com elas os soldados — partissem. Haveria tempo para escapar mais tarde,

tendo apenas o vigia a bordo e talvez até as lanternas retiradas do cais. Não havia dúvida de que eu precisava fugir. Se ficasse onde estava, minha única esperança de segurança estava na boa vontade de Marric e isto por sua vez dependia do resultado da sua entrevista com Ambrosius. E se por alguma razão Marric não pudesse voltar e, ao invés, voltasse Hanno... A água e a horrível refeição de pão molhado pôs os sucos gástricos em movimento num estômago ferozmente vazio e a perspectiva de esperar duas ou três horas até que alguém me viesse buscar era intolerável, mesmo sem o receio do que essa vinda pudesse ocasionar. E ainda que o melhor acontecesse, e Ambrosius mandasse buscar-me, eu não poderia estar tão certo do meu destino nas suas mãos uma vez que ele obtivesse todas as informações que eu pudesse fornecer-lhe. A despeito do blefe que me livrara de ser morto pelos espiões, minhas informações a eles eram muito parcas e Marric estivera certo em pensar — e Ambrosius saberia — que eu era um refém imprestável. Minha condição semi-real poderia impressionar Marric e Hanno, mas o fato de ser neto do aliado de Vortigern e sobrinho de Vortimer não seria muita recomendação à bondade de Ambrosius. Parecia que, real ou não, meu fim seria a escravidão, se eu tivesse sorte, e sem esta, uma morte inglória. E isso eu não tinha intenção de esperar. Não enquanto a escotilha estivesse aberta e o cabo corresse, ligeiramente frouxo, do navio ao poste de amarração no cais. Os dois espiões, supunha eu, estavam tão pouco acostumados a lidar com prisioneiros do meu tamanho, que nem lhes ocorrera pensar na escotilha. Nenhum homem, nem mesmo o fuinha do Hanno, poderia ter tentado escapar por ali, mas um menino magro, sim. E, ainda que tivessem pensado nisso, eles sabiam que eu não nadava e não teriam contado com a corda. Mas, examinando-a meticulosamente, pendurada ali na escotilha, achei que poderia utilizá-la. Se os ratos conseguiam descer por ela — e eu via um agora, um bicho grande e gordo, nédio de sobras, rastejando em direção à terra — eu também o conseguiria. Mas teria que esperar. Entrementes, fizera-se frio e eu estava nu. Deixei-me cair de leve no porão e comecei a procurar minhas roupas. A luz que vinha de terra era fraca, mas suficiente. Deixava ver o pequeno cubículo que era minha prisão, com os cobertores amontoados sobre uma pilha de sacos velhos que me servira de cama; uma arca empenada e rachada, encostada à parede; uma pilha de correntes enferrujadas, pesadas demais para que eu pudesse movê-las; o jarro de água, e num canto distante — "distante" querendo dizer a dois passos — o balde malcheiroso, ainda meio cheio de vômito. Não via nada mais. Poderia ter sido um impulso bondoso de Marric que o fizera despir-me das roupas encharcadas, mas, ou havia esquecido de devolvê-las ou as guardara para impedir que eu fizesse exatamente aquilo em que estava pensando. Cinco minutos mostraram-me que a arca nada continha, exceto tabuinhas, um caneco de bronze e algumas tiras de couro para sandálias. Pelo menos, pensei, baixando a tampa

sobre essa coleção desanimadora, tinham-me deixado as sandálias. Não que eu não estivesse acostumado a andar descalço, mas não no inverno, não nas estradas... Porque, nu ou vestido, eu ainda ia fugir. As próprias precauções de Marric tornavam-me ainda mais ansioso. O que faria, para onde iria, não tinha idéia, mas o deus me livrara das mãos de Camlach e me enviara para além do Mar Estreito, e eu confiava no destino. Até onde eu planejara, pretendia aproximar-me o mais possível de Ambrosius para julgar que espécie de homem era, e então se achasse que encontraria apoio ali, ou ao menos misericórdia, poderia abordá-lo e contar-lhe minha história e oferecer-lhe meus serviços. Nunca me passara pela cabeça que pudesse haver algo de absurdo em pedir a um príncipe para empregar um menino de doze anos. Suponho que, quanto a isso ao menos, eu fosse real. Se falhasse o serviço de Ambrosius, creio que tinha uma idéia nebulosa de dirigir-me à vila ao norte de Kerrec, onde nascera Moravik, e indagar por sua gente. Os sacos onde eu estivera deitado eram meio velhos e começavam a apodrecer. Foi bastante fácil rasgar um deles nas costuras para que a cabeça e os braços pudessem passar. Daria uma roupa horrível, mas me cobriria de algum modo. Rasguei um segundo e coloquei-o sobre a cabeça, também, para aquecer-me. Um terceiro tornar-se-ia muito volumoso. Passei os dedos pelos cobertores, anelante, mas eram cobertores bons, grossos demais para rasgar e constituiriam um estorvo imenso na minha descida do navio. Relutante, deixei-os ficar. Um par de correias de couro, amarradas uma à outra, formaram um cinto. Meti os restos do pão de cevada na frente da roupa, lavei o rosto, as mãos e o cabelo com o resto da água, então voltei à escotilha e guindei-me para espreitar lá fora. Enquanto me vestia, ouvi gritos e batidas de pés como se os homens estivessem formando para marchar. Vi então que isto havia realmente acontecido. Homens e carroças partiam. A última das carroças, com grande carga, passava rangendo pelos prédios e o chicote estalava no lombo das mulas afadigadas. Com eles, seguia a batida dos pés em marcha. Imaginei qual seria a carga; dificilmente cereais naquela época do ano. Pensei em metal ou minério para ser descarregado por tropas e enviado à cidade sob guarda. Os sons perderam-se na distância. Olhei com cuidado ao meu redor. As lanternas continuavam nos postes, mas até onde se podia ver o cais estava deserto. Era hora de partir, antes que o vigia se decidisse a vir ver o prisioneiro. Para um menino ágil foi fácil. Logo estava debruçado na beirada da escotilha, com o corpo para fora e as pernas firmes no tabique, enquanto procurava alcançar a corda. Houve um mau momento quando descobri que não podia alcançá-la, e teria que ficar de pé, segurando-me de alguma forma contra o casco do navio, acima das profundezas escuras que separavam o navio do cais, onde a água oleosa subia e descia, fazendo os detritos que flutuavam roçarem as pranchas molhadas. Mas consegui, agarrando-me ao casco do navio como se fosse mais um dos ratos que desciam, até que finalmente pude esticar-me para o

alto e segurar o cabo. Este estava esticado e seco e descia num ângulo suave em direção ao poste de amarração do cais. Segurei-me com ambas as mãos, torci-me para voltar o rosto para fora e impulsionei as pernas para longe do navio e em torno da corda. Eu pretendia descer devagarinho, palmo a palmo, para pousar nas sombras. Mas o que não calculara, não sendo marinheiro, fora a leveza do pequeno navio a flutuar. Até o meu pouco peso, ao guindar-me à corda, fez o navio sacudir forte e desconcertantemente e, inclinando-se, virar de súbito a proa na direção do cais. O cabo afrouxou, baixou com o meu peso quando a tensão diminuiu, e caiu formando uma alça. Na parte em que eu me pendurava, segurando-me como um macaco, ela de repente pendeu verticalmente. Meus pés soltaram, escorregando para baixo; minhas mãos não conseguiam sustentar-me. Deslizei pelo cabo como uma conta num fio. Se o navio tivesse virado mais lentamente, eu teria sido esmagado ,ando ele encostasse ao cais, ou afogado quando eu atingisse a parte inferior do laço, mas o navio comportou-se como um cavalo sustado Ao chocar-se contra a beirada do cais, eu estava logo ima e a sacudidela soltou o que restava do meu aperto, e atirou-me fora Errei o mastro de amarração por centímetros e caí esparramado no chão endurecido pelo gelo, à sombra de uma parede.

2 Não HAVIA TEMPO para procurar saber se me teria machucado. Ouvi o ruído de pés descalços no convés, quando o vigia acorreu para ver o que se passava. Encolhi-me, rolei e pus-me a correr, antes que o foco de sua lanterna alcançasse a borda do navio. Ouvi-o gritar alguma coisa, mas já me abaixava a um canto dos edifícios, certo de que não me vira. Mesmo que me tivesse visto, eu pensava estar seguro. Primeiramente, ele iria verificar minha prisão, e ainda assim eu duvidava que ousasse sair do navio. Descansei por um momento, apoiado na parede, comprimindo as queimaduras produzidas pela corda nas minhas mãos e tentando habituar meus olhos à escuridão da noite. Saído da semi-obscuridade de uma cela, isto não levou mais que alguns segundos e eu corri os olhos ao meu redor rapidamente, para orientar-me. O barracão que me ocultava era o da ponta da fileira, e por trás, do lado oposto ao cais, descobri a estrada, uma faixa reta de cascalho que seguia em direção a um agrupamento de luzes a alguma distância. Aquilo, sem dúvida, deveria ser a cidade. Mais próximo, no ponto em que a estrada era tragada pela escuridão, via-se um brilho fraco e trêmulo, provavelmente, a luz traseira da última carroça. Nada mais se movia. Era uma conclusão razoavelmente segura que quaisquer carroças, assim tão vigiadas, destinar-se-iam ao quartel-general de Ambrosius. Eu não fazia idéia se conseguiria chegar até lá, ou mesmo a qualquer cidade ou vila, mas tudo o que desejava, nessa altura, era encontrar alguma coisa para comer e um lugar aquecido onde pudesse esconder-me enquanto comia e esperava o amanhecer. Uma vez que eu me orientasse, o deus sem dúvida continuaria a me guiar. Teria também que alimentar-me. Originalmente eu pretendera vender um dos meus broches para comer, mas agora, pensei, enquanto me arrastava na esteira das carroças, teria que roubar alguma coisa. Na pior das hipóteses guardava ainda o pedaço de pão de cevada. A seguir, um lugar para me esconder até raiar o dia... Se Ambrosius se encontrasse em reunião, como dissera Marric, seria mais que inútil dirigir-me ao seu quartel-general e pedir para vê-lo. Qualquer que fosse o juízo que eu fizesse da minha própria importância, este não incluía um tratamento privilegiado por parte dos soldados de Ambrosius se eu aparecesse assim vestido na sua ausência. Quando amanhecesse, veríamos. Fazia frio. Minha respiração produzia uma fumaça cinzenta no ar escuro e gélido. Não havia lua, mas as estrelas faiscavam como olhos de lobo a observar-me. O gelo brilhava nas pedras do caminho e retinia sob os cascos e as rodas que seguiam à minha frente. Felizmente não ventava e meu sangue aqueceu-se na corrida, mas eu não ousava acercarme do comboio, que avançava lento. Assim, de quando em vez, eu precisava retardar-me

enquanto o ar gelado me cortava através dos sacos rasgados e eu batia os braços contra o corpo em busca de calor. Felizmente havia muito onde me abrigar; arbustos, algumas vezes em tufos, em outras, isolados, curvavam-se como se tivessem congelado à passagem do vento dominante, procurando alcançá-lo com os dedos enregelados. Em meio a eles, grandes pedras erguiam-se pontiagudas em direção às estrelas. Tomei a primeira dessas por um imenso marco, mas vi então que outras se alinhavam aprumadas entre a vegetação como avenidas de árvores açoitadas pelo vento. Ou como uma colunata onde caminhassem os deuses — mas não deuses que eu conhecesse. A luz de uma estrela bateu na superfície de uma pedra onde eu parará para esperar e alguma coisa prendeu meu olhar: uma forma toscamente esculpida no granito e como que impressa em pó preto pelo brilho frio. Um machado duplo. As pedras estendiam-se pela escuridão como um desfile de gigantes. Um cardo seco, partido pela raiz, espetou-me a perna nua. Ao desviar-me, tornei a olhar o machado. Havia desaparecido. Precipitei-me de volta à estrada, cerrando os dentes para não tremer. Era o frio que naturalmente me fazia tremer; que outra coisa? As carroças distanciaram-se outra vez e corri no seu encalço, mantendo-me na turfa à beira da estrada, embora essa, na realidade, parecesse tão dura quanto o cascalho. O gelo partia-se e rangia sob as minhas sandálias. Atrás de mim, o exército silencioso de pedras aprumadas marchava desaparecendo na escuridão, e diante de mim surgiam agora as luzes de uma cidade e o calor das casas a sair para me acolher. Creio que foi a primeira vez que eu, Merlin, precisei correr na direção da luz e das pessoas, correr da solidão como se ela fosse um círculo de olhos de lobo a empurrar-me para mais perto do fogo. Era uma cidade murada. Eu poderia ter adivinhado, estando tão próximo do mar. Havia uma elevação de terra, no topo uma paliçada e do lado externo da elevação o fosso largo e esbranquiçado de gelo. Eles haviam quebrado o gelo, a intervalos, a fim de que não suportasse peso; eu podia distinguir as estrelas negras e o mapa de rachaduras que riscavam de leve a superfície cinzenta, à medida que o novo gelo se formava. Uma ponte de madeira cruzava o fosso dando acesso ao portão e ali as carroças pararam, enquanto o oficial se adiantava para falar aos guardas. Os homens imobilizaram-se como pedras e as mulas sapateavam, sopravam e faziam retinir seus arreios, ansiando pelo calor do estábulo. Se eu tivesse tido a idéia de pular para a traseira de uma carroça e ser assim levado para dentro, teria sido forçado a abandoná-la. Durante todo o percurso para a cidade os soldados tinham sido distribuídos em filas ladeando o comboio, e o oficial cavalgava para um lado de onde podia observar o conjunto. Agora, ao dar ordem para avançar e romper cadência para atravessar a ponte, ele deu meia volta ao cavalo e recuou para o fim da coluna para ver a última carroça entrar. Vi-lhe o rosto de relance, um homem de meia-idade, mal-humorado e encatarrado de

gripe. Não era homem para ouvir-me com paciência ou mesmo sequer ouvir. Eu estaria mais seguro do lado de fora com as estrelas e as pedras aprumadas como gigantes em marcha. O portão fechou-se com um estalido seco atrás do comboio, e eu ouvi as trancas serem corridas. Havia uma trilha mal delineada que rumava para oeste ao longo do fosso. Quando me voltei para esse lado, vi que muito distante, tão distante que deveriam assinalar uma espécie de povoação ou fazenda bem além dos limites da cidade, surgiam mais luzes. Comecei a trotar pela trilha, mastigando meu pedaço de pão de cevada. As luzes pertenciam a uma casa de tamanho razoável cujas alas encerravam um pátio. A casa propriamente dita possuía dois andares e formava uma parede do pátio, cercado dos outros três lados por uma construção térrea — casas de banho, aposentos de criados, estábulos, padaria — e todo o conjunto com muros altos que exibiam apenas algumas janelas estreitas fora do meu alcance. Havia um portão em arco e ao lado deste, num suporte de ferro colocado à altura de um homem, ardia uma tocha, mortiça devido ao piche úmido. E mais luzes no interior do pátio; mas não se ouviam vozes nem movimentos. O portão, naturalmente, estava trancado. Não que eu tivesse ousado entrar por ali, e encontrar um destino sumário nas mãos do porteiro. Contornei o muro, procurando esperançoso uma maneira de penetrar. A terceira janela era a da padaria; o cheiro do pão já contava horas e estava frio, mas ainda me teria feito escalar a parede se não fosse a janela, apenas um rasgo, que não admitiria nem a mim. A próxima era a do estábulo e a seguinte também... Podia sentir a exalação dos cavalos e outros animais misturando-se à doçura da relva seca. Então vinha a residência, sem janela alguma para o exterior. A casa de banhos, a mesma coisa. E de volta ao portão. Uma corrente retiniu de súbito a poucos passos de mim, no interior dos muros, e um grande cão pôs-se a ladrar como um repique de sinos. Creio que pulei para trás quase um passo, e encostei-me rente à parede ao ouvir uma porta abrir-se ali perto. Houve uma pausa enquanto o cachorro rosnava e alguém apurava o ouvido; a seguir uma voz que dizia alguma coisa em tom seco e a porta fechando-se. O cachorro resmungou de si para si por algum tempo, farejando o pé do portão e por fim arrastou sua corrente de volta ao canil; ouvi-o acomodar-se outra vez na palha. Obviamente, não havia maneira de encontrar um abrigo. Fiquei parado uns instantes tentando raciocinar, as costas apoiadas na parede fria, que ainda assim parecia mais quente

que o ar da noite. Eu tremia agora de frio tão violentamente que sentia os meus próprios ossos chocalharem. Estava seguro de ter agido bem em abandonar o navio e não me confiar à misericórdia das tropas, mas agora começava a perguntar-me se teria coragem de bater ao portão e pedir acolhida. Receberia uma dura penitência como mendigo, isto eu sabia, mas se ficasse ao sereno poderia muito bem morrer antes de o dia clarear. Então vi, um pouco além da tocha, a forma baixa e escura de um prédio que deveria ser o galpão de gado, a uns vinte passos de distância, num canto do campo cercado por um barranco baixo e coroado de espinheiros. Eu podia ouvir o gado movendo-se ali. Ao menos haveria algum calor para compartilhar e, se conseguisse forçar meus dentes chocalhantes a morder o pão — ainda levava comigo um pedacinho de pão de cevada. Afastara-me um passo do muro, movendo-me — poderia jurar — sem ruído, quando o cão saiu do canil numa arrancada, e recomeçou seus latidos infernais. Dessa vez, a porta da casa abriu-se imediatamente e ouvi passos de homem no pátio. Encaminhavam-se para o portão. Ouvi o metal arranhar, quando ele desembainhou uma arma. Voltava-me para correr quando percebi, clara e distintamente no ar gelado, o que perturbara o cachorro. O tropel de um cavalo, a todo galope, vindo em nossa direção. Rápido como uma sombra, corri para o galpão pelo campo aberto. Junto a este, uma abertura no barranco fazia as vezes de portão e fora bloqueada com um espinheiro seco. Abri caminho precipitadamente e esgueirei-me o mais silenciosamente que pude para não perturbar os animais, indo agachar-me no portal do galpão, longe das vistas da entrada da casa. O galpão era apenas um telheiro pequeno e toscamente construído, com paredes pouco mais altas que um homem, coberto de colmo e repleto de animais. Pareciam na sua maioria novilhos castrados, demasiado amontoados para poderem deitar-se, mas aparentemente bastante satisfeitos com o calor que produziam e a forragem seca para mastigar. Uma prancha tosca atravessada no portal barrava-lhes a saída. Do lado de fora, o campo estendia-se, vazio, sob a luz das estrelas, cinzento de geada e cercado pelo barranco baixo, serrilhado pelas moitas curvadas e tortas. No centro, via-se uma das pedras aprumadas. Ouvi o homem falar no interior do pátio para silenciar o cão. O ruído dos cascos aumentou, martelando a trilha de ferro, e então, de repente, o cavaleiro estava sobre nós, emergindo do escuro e estacando o cavalo com um guincho do metal na pedra, uma chuva de cascalho e turfa gelada, e o baque dos cascos do animal contra a madeira do portão. O homem no interior gritou alguma coisa, uma pergunta e o cavaleiro respondeu-lhe ainda no ato de pular da sela. — Claro que é. Abra, sim? Ouvi a porta arranhar ao ser aberta, os dois homens conversarem, mas a não ser uma

palavra aqui e ali, não conseguia distinguir o que diziam. Parecia, pelo movimento da luz, que o porteiro (ou quem quer que tivesse vindo ao portão) retirara a tocha do suporte. E, mais, a luz movia-se na minha direção e com ela os dois homens conduzindo o cavalo. Ouvi o cavaleiro dizer com impaciência: — Oh, sim, ficará bem aqui. E, se chegar a isso, será conveniente para eu poder sair rapidamente. Há forragem? — Sim, senhor. Pus os animais novos lá para dar lugar aos cavalos. — Vem muita gente, então? — A voz era jovem, clara, um pouco ríspida, mas isso poderia ser apenas o frio e a arrogância combinados. Uma voz de patrício descuidada, como o seu modo de montar, que quase pusera o cavalo de ancas, diante do portão. — Um número razoável — disse o porteiro. — Cuidado agora, senhor, é por essa abertura. Se me deixar entrar primeiro com a luz... — Posso ver — respondeu o rapaz, irritado — se você não empurrar a tocha em cima do meu rosto. Firme agora. — Esta última recomendação foi dirigida ao cavalo, que chutara uma pedra. — É melhor deixar-me passar primeiro, senhor. Há um espinheiro atravessado na abertura, impedindo a saída. Se ficar um minuto de lado, poderei afastá-lo. Eu já tinha desaparecido do portal do galpão e contornado um canto onde a parede tosca se encontrava com o barranco do terreno. Havia turfa espetada ali e um monte de galhos cortados e mato seco, que supus destinarem-se às camas de inverno. Agachei-me por detrás do monte. Ouvi o espinheiro ser removido e atirado para um lado. — Pronto, senhor, pode trazê-lo. Não há muito espaço, mas se tem certeza de que prefere deixá-lo aqui fora... — Eu disse que serviria. Retire a prancha e deixe-o entrar. Depressa, homem, estou atrasado. — Se o deixar comigo agora, senhor, eu o desencilharei. — Não há necessidade. Estará bem por uma hora ou duas. Apenas desaperte a barrigueira. Creio que é melhor cobri-lo com minha capa. Deuses, está frio... Tire o freio, sim? Vou sair daqui... Ouvi-o afastar-se, as esporas batendo. A prancha voltou ao lugar e, a seguir, o espinheiro. Quando o porteiro correu atrás dele, pensei ter ouvido algo assim: — E deixe-me entrar pelos fundos, para que o pai não me veja. O grande portão fechou-se atrás deles. A corrente chocalhou, mas o cão manteve-se quieto. Ouvi os passos do homem cruzarem o pátio, e a seguir a porta da casa fechar-se.

3 MESMO QUE TIVESSE OUSADO arriscar-me à luz da tocha e ao cão e trepasse pelo barranco correndo uns vinte passos até o portão, teria sido desnecessário. O deus fizera sua parte; enviara-me calor e comida. Mal o portão fechou, eu já estava de volta ao galpão, reconfortando o cavalo aos sussurros enquanto me acercava dele para roubar-lhe a capa. Ele não suava muito; deveria ter galopado apenas uma milha, se tanto, vindo da cidade, e naquele galpão, entre os animais amontoados, não sofreria com o frio; de qualquer forma, minhas necessidades vinham primeiro, e eu precisava da capa. Era uma capa de oficial, grossa, macia e gostosa. Quando pus as mãos sobre ela, descobri, para meu entusiasmo, que my lord me deixara não apenas a capa, mas também uma mochila cheia. Estiquei-me nas pontas dos pés e senti o interior da mochila. Um cantil de couro, que sacudi. Estava quase cheio. Vinho, com certeza; um rapaz daqueles nunca levaria água. Um guardanapo com biscoitos, passas, e umas tiras de carneseca. Os animais empurravam-se babando e soprando o bafo quente sobre mim. A longa capa escorregara, formando uma trilha na sujeira, sob os cascos. Puxei-a, agarrei o cantil e a comida e esgueirei-me por debaixo da barreira. O monte de galhos do canto estava limpo, mas pouco me teria importado se tivesse sido um monte de estrume. Aninhei-me nele, enrolando-me confortavelmente nas dobras macias da capa de lã, e comi e bebi sem interrupção tudo o que o deus me enviara. O que quer que acontecesse, eu não podia dormir. Infelizmente parece que o rapaz não se demoraria ali mais de uma ou duas horas; e isto, acrescido do prêmio da comida, deveria ser tempo suficiente para aquecer-me e assim dormir reconfortado até o amanhecer. Ouviria os movimentos da casa em tempo de arrastar-me de volta ao galpão e repor a capa. My lord provavelmente mal notaria que suas rações de marcha tivessem desaparecido da mochila. Bebi mais um pouco de vinho. Era surpreendente que até as côdeas duras do pão de cevada adquirissem um gosto melhor. Era uma bebida boa, forte e doce, sabendo a passas. Correu quente pelo meu corpo até que as juntas entorpecidas se distenderam e como que se derreteram; parando de tremer, pude enroscar-me, aquecido e relaxado, no meu ninho escuro, com as samambaias a vedar o frio.

Devo ter dormido um pouco. Não tenho idéia do que possa ter-me acordado; não havia barulho. Até os animais no galpão estavam imóveis. Parecia mais escuro, de modo que fiquei a pensar se estaria quase amanhecendo, hora em que as estrelas desaparecem. Mas, quando afastei o mato seco e espiei lá para fora, vi que ainda estavam no céu, brilhando, brancas, contra o fundo negro. A coisa estranha é que estava mais quente. Um vento se erguera, trazendo no seu rastro nuvens, que corriam velozes no alto, e ao se dispersarem transformavam-se em fiapos, fazendo com que a sombra e a luz das estrelas se alternassem em ondas pelos campos cinzentos de geada, na paisagem silenciosa onde os cardos e a grama rígida de inverno pareciam fluir como água ou como um milharal ao vento. Não havia som no vento que soprava. Acima dos véus esvoaçantes de nuvens as estrelas faiscavam engastadas numa abóbada negra. O calor e a minha posição, encolhido no escuro, devem ter-me feito sonhar (pensei eu) com a segurança, com Galapas e o globo de cristal onde me deitara enroscado a observar a luz. Agora o arco brilhante de estrelas sobre minha cabeça era como o teto curvo da caverna com a luz a refletir-se nos cristais, e as sombras a passarem voando, perseguidas pelo fogo. Eu via pontos vermelhos e azul-safira e uma estrela fixa que irradiava ouro. Então o vento silencioso soprou outra sombra pelo céu com a luz a seguila, e os espinheiros estremeceram assim como a sombra da pedra aprumada. Eu deveria ter afundado, aconchegado demais em minha cama, para ouvir o farfalhar do vento na grama e nos espinheiros. Tampouco ouvi o rapaz passando pela barreira que o porteiro recolocara, atravessada, na abertura do barranco, porque, de repente, sem aviso, ele estava lá, a silhueta alta a caminhar pelo campo, sombria e silenciosa como a brisa. Encolhi-me, como uma lesma no caramujo. Tarde demais para correr e devolver a capa. Eu só podia esperar que ele presumisse que o ladrão fugira, e não procurasse por muito perto. Mas ele não se aproximou do galpão. Atravessava direto pelo campo, afastando-se de mim. Então eu vi, metade dentro e metade fora da sombra da pedra aprumada, o animal branco a pastar. O cavalo deveria ter-se soltado. Só os deuses sabiam o que ele encontraria para comer num campo de inverno, mas eu podia ver, fantasmagórico à distância, o animal branco pastando junto à pedra aprumada. E deveria ter sacudido a barrigueira até soltá-la; a sela também desaparecera. Pelo menos enquanto o rapaz o apanhava, eu poderia escapulir... Ou, melhor ainda, largar a capa perto do galpão onde ele pensasse que escorregara do lombo do cavalo e voltar para o meu ninho aquecido até que ele se fosse. Só poderia culpar o porteiro pela

fuga do animal; e com razão; eu não tocara na prancha que barrava a entrada. Ergui-me cauteloso, esperando minha oportunidade. O animal que pastava erguera a cabeça à aproximação do homem. Uma nuvem passou pelas estrelas, escurecendo o campo. A luz correu pelo gelo ao encalço da sombra. Bateu na pedra vertical. Vi que estivera enganado; não era o cavalo. Nem — foi meu segundo pensamento — poderia ser um dos novilhos do galpão. Era um touro, um touro branco, maciço, adulto, com imensos chifres reais e um pescoço qual uma nuvem de tempestade. Baixou a cabeça até que a barbela roçasse o chão e escavou-o com as patas uma, duas vezes. O rapaz parou. Via-o agora claramente, quando a sombra desapareceu. Era alto, de constituição robusta e o cabelo parecia descorado à luz das estrelas. Usava uma espécie de roupa estrangeira — calças atadas com tiras em cruz sob uma túnica presa por um cinto muito baixo nos quadris, e um barrete alto e descaído. Sob este, o cabelo claro esvoaçavalhe pelo rosto, como raios. Trazia uma corda frouxa nas mãos, as dobras arrastando-se pelo gelo. Sua capa agitava-se ao vento; uma capa curta, de uma cor escura, que eu não conseguia distinguir. Sua capa? Então não podia ser o meu jovem senhor. E, afinal de contas, por que viria aquele rapaz arrogante, de corda em punho, laçar um touro que se perdera durante a noite? Sem aviso e sem ruído, o touro branco arremeteu. Luz e sombra projetaram-se com ele, estremecendo, toldando a cena. A corda rodopiou formando um laço, firmou-se. O homem saltou para um lado, quando o enorme animal passou por ele e parou derrapando, a corda esticada e o gelo erguendo-se em nuvens sob os cascos do animal. O touro girou e arremeteu de novo. O homem esperou sem se mover, os pés plantados no chão, ligeiramente apartados, a postura indiferente, quase desdenhosa. Quando o touro se acercou dele, pareceu desviar-se ligeiramente para um lado, como um dançarino. O touro passou por ele tão perto, que eu vi um chifre rasgar a capa esvoaçante e o ombro do touro roçar a coxa do homem, como uma amante buscando carícias. As mãos dele moveram-se. A corda rodopiou formando um laço e mais outro, e envolveu os chifres reais. O homem debruçou-se sobre ele, e o animal parou outra vez, voltando-se, rápido, na própria fumaça. O homem pulou. Não para afastar-se. Mas em direção ao touro, direto sobre o grosso pescoço, os joelhos comprimindo a barbela, as mãos firmes usando a corda como rédeas. O touro parou de vez, as patas afastadas, a cabeça enfiada para baixo contrariando a corda com todo o peso e força. Ainda assim não produzia ruído que eu pudesse ouvir, nem de cascos, tampouco de corda partida, ou mesmo de sopro. Eu quase emergira totalmente da noite agora, imóvel, o olhar fixo, desatento a tudo, exceto à luta entre o homem e o touro.

Uma nuvem cobriu o campo de sombras. Ergui-me. Creio que pretendia apanhar a prancha e correr com ela pelo campo para oferecer a pouca ajuda que podia. Mas antes que conseguisse mover-me a nuvem fugira, deixando-me ver o touro como antes, o homem ao seu pescoço. Mas agora a cabeça do animal se erguia. O homem deixou cair a corda e as mãos agarraram os chifres do touro, puxando-os para trás... para trás... para cima... Lentamente, quase como numa rendição ritual, a cabeça do touro ergueu-se, o pescoço poderoso esticou-se para o alto, expôs-se. Apareceu um brilho na mão direita do homem. Ele curvou-se para a frente e enterrou a faca por baixo e para o lado. Ainda em silêncio, lentamente, o touro caiu de joelhos. Algo escuro escorria sobre o couro branco, o chão branco, a base branca da pedra. Saí do meu esconderijo e corri pelo campo, em direção a eles, gritando alguma coisa — não faço idéia o quê. Não sei o que pretendia fazer. O homem viu-me correr e voltou cabeça e percebi que nada mais era preciso. Ele sorria, mas seu rosto, à luz das estrelas, parecia curiosamente liso e inumano na sua inexpressividade. Não distingui nenhum sinal de tensão ou esforço. Seus olhos eram vazios também, frios e escuros, não sorriam. Tropecei, tentei parar, prendi o pé na capa que se arrastava e caí, rolando como uma trouxa, ridículo e desamparado, em direção a ele, no momento em que o touro branco, dobrando-se lentamente, caiu. Alguma coisa bateu-me no lado da cabeça. Ouvi um som agudo e infantil que era eu mesmo a gritar, e então tudo escureceu.

4 ALGUÉM ME ATINGIU NOVAMENTE, com força, nas costelas. Gemi e rolei pelo chão, tentando escapar, mas a capa me tolhia os movimentos. Um archote cheirando a fumaça foi abaixado, quase a tocar-me o rosto. Aquela voz jovem, conhecida, disse furiosa: — Minha capa, meu Deus! Agarre-o depressa. Com os diabos, se vou tocar nele, está imundo! Estavam todos à minha volta, os pés sapateando no gelo, as tochas ardendo, vozes de homem, curiosas ou zangadas ou indiferentemente divertidas. Alguns montados, seus cavalos atropelando-se na periferia do grupo, escoiceando, desassossegados, com o frio. Encolhi-me, piscando. Minha cabeça doía e a cena confusa flutuava irreal, aos bocados, como se a realidade e o sonho se interrompessem e se entremeassem para romper com meu equilíbrio. Fogo, vozes, o balanço do navio, o touro branco caindo... Uma mão arrancou-me a capa. Pedaços do saco apodrecido foram com ela, deixandome o ombro e o lado despidos até a cintura. Alguém me agarrou pelo pulso, erguendo-me com violência e imobilizando-me. A outra mão apanhou-me pelos cabelos e puxou-me o rosto para cima para encarar o homem que se agigantava. Era alto, jovem, o cabelo castanho-claro parecendo vermelho à luz da tocha, e uma barba elegante a emoldurar-lhe o queixo. Os olhos eram azuis e pareciam zangados. Estava sem capa. Trazia um chicote na mão esquerda. Encarou-me, emitindo um som de aborrecimento. — Um pirralho, mendigo, e além do mais fedorento. Terei que queimar a capa, suponho. Vou arrancar-lhe o couro por isso, seu vermezinho desgraçado. Penso também que ia roubar-me o cavalo, não? — Não, senhor. Juro que era apenas a capa. E a teria devolvido, juro. — E o broche também? — Broche? O homem que me segurava disse: — O broche ainda está na capa, my lord. Eu me interpus rapidamente: — Só a tomei de empréstimo, para aquecer-me... estava tão frio, de modo que eu... — Simplesmente despiu meu cavalo e deixou-o resfriar-se? É isso?

— Não pensei que fosse fazer-lhe mal, senhor. Estava aquecido no galpão. Eu a teria devolvido, pode crer. — Para que eu a usasse a seguir, seu rato fedorento? Deveria cortar-lhe a garganta por isso. Alguém — um dos homens montados — disse: — Oh, deixe isso para lá. Não aconteceu mal algum, a não ser que sua capa terá que ir para o lixo, amanhã. O desgraçado do menino está seminu, e está frio bastante para congelar uma salamandra. Deixe-o ir-se. — Ao menos — disse o jovem oficial, entre dentes — me aquecerá se eu lhe aplicar uma surra. Ah, não, você não vai embora... Segure-o firme, Cadal. O chicote assoviou ao subir. O homem que me prendia apertou-me mais à medida que eu lutava para livrar-me, mas antes que o chicote baixasse uma sombra adiantou-se à luz da tocha e uma mão desceu suave, não mais que um toque, sobre o pulso do rapaz. Alguém disse: — O que se passa? Os homens ficaram silenciosos como se tivessem recebido uma ordem. O rapaz deixou cair o chicote para o lado e voltou-se. O aperto do meu captor afrouxou ao ouvir o recém-chegado e eu soltei-me com uma contorção. E poderia provavelmente ter corrido agachado por entre homens e cavalos e fugir, embora eu achasse que um homem a cavalo me apanharia em questão de segundos. Mas não tentei fugir. Tinha os olhos arregalados. O recém-chegado era alto, meia cabeça mais alto que o meu jovem oficial sem capa. Interpusera-se ao archote e não pude vê-lo muito bem contra as chamas. Os clarões ainda flutuavam nublados e ofuscantes; minha cabeça doía e o frio assaltou-me novamente, como uma fera cheia de dentes. Tudo o que vi foi a silhueta alta e sombreada observandome, olhos escuros num rosto inexpressivo. Tomei ar como se ofegasse. — Era o senhor! O senhor me viu, não viu? Eu ia ajudá-lo, só que tropecei e caí. Eu não estava fugindo — diga-lhe isso, por favor, my lord. Eu pretendia devolver a capa antes que ele viesse buscá-la. Conte-lhe o que aconteceu! — De que está falando? Conte-lhe o quê? Pisquei, na claridade das tochas.

— O que acabou de acontecer. Foi... Foi o senhor que matou o touro? — Que... o quê? Tudo estivera quieto antes, mas agora havia um silêncio total, salvo pela respiração dos homens que se acercavam de mim, e o desassossego dos cavalos. O jovem oficial perguntou, áspero: — Que touro? — O touro branco — respondi. — Ele cortou a garganta do touro e o sangue esguichou como uma fonte. Foi assim que sujei a capa. Eu estava tentando... — Com os diabos, como soube do touro? Onde estava? Quem andou falando? — Ninguém — respondi, surpreso. — Eu vi tudo. É tão secreto assim? Pensei que estivesse sonhando, a princípio. Fiquei sonolento depois do pão com vinho... — Pela luz! — Era ainda o jovem oficial, mas agora os outros exclamavam juntos, a raiva explodindo ao meu redor. — Mate-o e acabe com isso... Ele está mentindo... Mentindo para salvar a maldita pele... Deve ter andado a espionar... O homem alto não falara. Nem tirara os olhos de mim. De alguma parte do meu íntimo, a raiva assaltou-me e eu explodi veemente, direto para ele: — Não sou espião, nem ladrão! Estou cansado disso! Que deveria fazer, morrer congelado para poupar a vida de um cavalo? — O homem às minhas costas pousou a mão no meu braço, mas eu o sacudi com um gesto que o meu próprio avô poderia ter feito. — Nem sou mendigo, my lord. Sou um homem livre que veio colocar-se a serviço de Ambrosius, se ele me aceitar. Foi para isso que vim, do meu próprio país, e foi... foi um acidente a perda das roupas. Eu... eu posso ser jovem, mas tenho certo conhecimento que é valioso e falo cinco línguas... — Minha voz fraquejou. Alguém emitiu um som abafado como uma risada. Firmei os dentes que chocalhavam e acrescentei com realeza: — Peço-lhes apenas que me acolham agora, my lord, e digam-me onde posso encontrá-lo amanhã de manhã. Desta vez o silêncio foi tão denso que poderia ser cortado com uma faca. Ouvi o jovem oficial tomar fôlego para falar, mas o outro ergueu a mão. Ele deveria, pela maneira como o acatavam, ser o comandante. — Espere. Ele não está sendo insolente. Olhe para ele. Levante a tocha mais alto, Lucius. Ora, como é o seu nome? — Myrddin, senhor. — Bem, Myrddin, vou escutá-lo, mas fale simples e rápido. Quero ouvir essa história

do touro. Comece pelo princípio. Você viu meu irmão guardar o cavalo naquele galpão, e tirou a capa para aquecer-se. Continue daí. — Sim, my lord — disse eu. — Tirei a comida da mochila também e vinho... — Você estava falando do meu pão e vinho? — perguntou o jovem oficial. — Sim, senhor. Desculpe, mas quase não comia há quatro dias... — Não importa isso — disse o comandante, seco. — Continue. — Escondi-me no monte de galhos a um canto do galpão, e creio que adormeci. Quando acordei, vi o touro, junto à pedra aprumada. Ele pastava ali, muito quieto. Então o senhor veio com a corda. O touro arremeteu e o senhor laçou-o e montou-lhe no lombo, puxou-lhe a cabeça para cima e matou-o com uma faca. Havia sangue por toda parte. Eu estava correndo para ajudar. Não sei o que poderia ter feito, mas corri, do mesmo jeito. Então tropecei na capa e caí. É só. Parei. Um cavalo bateu com os cascos, e um homem pigarreou. Ninguém falou. Pensei que Cadal, o criado que me segurava, se tivesse afastado mais um pouquinho. O comandante perguntou, muito suave: — Junto à pedra aprumada? — Sim, senhor. . Ele virou a cabeça. O grupo de homens e cavalos estava muito próximo à pedra. Eu podia vê-la por cima dos ombros dos cavaleiros projetando-se para o céu da noite à luz dos archotes. — Afastem-se e deixem-no ver — disse o homem alto e alguns deles abriram passagem. A pedra encontrava-se a cerca de nove metros de distância. Junto à sua base, a relva gelada parecia pisoteada por botas e cascos, mas nada mais. Onde eu vira o touro branco cair, com o sangue preto a esguichar-lhe da garganta, nada havia senão gelo revolvido e a sombra da pedra. O homem que segurava a tocha movera-a para iluminar a pedra. A luz incidia diretamente sobre o meu inquisidor e pela primeira vez pude vê-lo claramente. Não era tão jovem quanto pensara; havia linhas no seu rosto e o cenho estava franzido. Os olhos eram negros, não azuis como os do irmão e era mais corpulento do que eu imaginara. Havia um brilho de ouro nos seus punhos e na gola, e uma capa pesada caía-lhe, em linha reta e longa, dos ombros aos calcanhares. Eu disse gaguejando: — Não era o' senhor. Desculpe... vejo agora. Devo ter sonhado. Ninguém sairia com uma corda e uma faca curta sozinho para enfrentar um touro... E ninguém poderia levantar

a cabeça de um touro e cortar-lhe a garganta... Foi uma das minhas... foi um sonho. E não era o senhor, posso ver agora. Eu... eu pensei que era o homem com o barrete. Desculpe. Os homens murmuravam agora, mas já sem ameaças. O jovem oficial disse, num tom bem diferente do que usara até então: — Como era ele, o homem com o barrete? Seu irmão disse, rápido: — Não importa. Não agora. — Estendeu uma mão, segurou-me o queixo, erguendo meu rosto. — Você diz que seu nome é Myrddin? De onde vem? — De Gales, senhor. — Ah! Então você é o menino que trouxeram de Maridunum? — Sou. O senhor sabia? Oh! — Entorpecido pelo frio e pelo espanto, fiz a descoberta que deveria ter feito há mais tempo. Minha pele tremia como a de um pônei enervado com o frio, numa sensação curiosa, parte excitação, parte medo. — O senhor deve ser o Conde. Deve ser o próprio Ambrosius. Ele não se dignou responder-me. — Que idade tem? — Doze, senhor. — E quem é você, Myrddin, para falar em oferecer-me seus serviços? Que me pode oferecer, que me impeça de liquidá-lo aqui f agora, e deixar esses senhores saírem do frio? — Quem sou não faz diferença, senhor. Sou o neto do Rei de Gales do Sul, mas ele está morto. Meu tio Camlach é o rei agora, mas isto não me serve de nada, tampouco; ele me quer morto. Assim, não lhe serviria nem como refém. Não é quem sou, mas o que sou que importa. Tenho algo a oferecer-lhe, my lord. O senhor verá se me deixar viver até amanhã. — Ah, sim, informação valiosa e cinco línguas. E sonhos também, parece. — As palavras eram de troça, mas ele não sorria. — O neto do velho Rei, diz você? E Camlach não é seu pai? Nem Dyved tampouco, com certeza. Nunca soube que o velho tivesse algum neto além do bebê de Camlach. Pelo que meus espiões informaram, pensei que fosse um bastardo do Rei. — Ele costumava às vezes fazer-me passar por seu próprio bastardo — para poupar a vergonha de minha mãe, dizia ele, mas minha mãe nunca encarou isso como uma vergonha, e ela devia saber. Minha mãe é Niniane, a filha do velho Rei. — Ah! - Pausa. - É? Respondi:

— Ela ainda vive, mas está agora no convento de São Pedro. Poderia dizer-se que faz parte dele há anos, mas só teve permissão para deixar o palácio quando o velho Rei morreu. — E seu pai? — Ela nunca falou nele, para mim ou para qualquer outra pessoa. Dizem que era o Príncipe das Trevas. Esperei a reação costumeira, os dedos cruzados ou um olhar rápido por cima do ombro. Ele não fez nada disso. Riu-se. — Então não admira que você fale em ajudar reis a conquistar reinos e sonhe com deuses, sob as estrelas. — Voltou-se para um lado, fazendo revoar a grande capa. — Traga-o conosco, um de vocês. Uther, é melhor você devolver-lhe a capa, antes que morra diante dos nossos olhos. — Você acha que eu tocaria na capa depois que ele a usou, mesmo que fosse o Príncipe das Trevas em pessoa? — perguntou Uther. Ambrosius riu. — Se você cavalga o coitado do seu cavalo da forma habitual, ele estará bastante aquecido sem capa. E se ela está manchada com o sangue do touro, então não é para você esta noite, não é? — Está blasfemando? — Eu? — exclamou Ambrosius com uma espécie de frieza inexpressiva. Seu irmão abriu a boca, pensou melhor, deu de ombros e pulou para a sela do cavalo cinzento. Alguém me atirou a capa e — enquanto lutava com as mãos trêmulas para embrulhar-me — apanhou-me enrolado de qualquer maneira, e afinal arremessou-me como um embrulho para um cavaleiro que fazia meia volta. Ambrosius montou num grande cavalo preto. _ Vamos, senhores. O potro preto arremessou-se para a frente e a capa de Ambrosius voou. O cinzento seguiu atrás dele. O resto dos cavaleiros enfileirou-se a galope pela trilha, de volta à cidade.

5 O QUARTEL-GENERAL de Ambrosius ficava na cidade. Soube depois que esta última, na realidade, crescera em torno do campo onde Ambrosius e seu irmão haviam começado, nos últimos dois anos, a reunir e treinar um exército, que por tanto tempo constituíra ameaça lendária a Vortigern e agora, com a ajuda do rei Budec e tropas de metade dos países da Gália, tornava-se um fato. Budec era rei da Bretanha Menor e primo de Ambrosius e Uther. Fora ele quem acolhera os dois irmãos, vinte anos atrás, quando ambos — Ambrosius, então com dez anos e Uther, ainda nos braços da ama — foram levados para a segurança do além-mar, após Vortigern ter assassinado o irmão mais velho, o Rei. O próprio castelo de Budec ficava a uma distância mínima do campo que Ambrosius construíra; e em torno dos dois baluartes crescera a cidade, uma coleção variada de casas, lojas e barracos com uma muralha e um fosso de proteção em volta. Budec estava velho agora, e fizera de Ambrosius seu herdeiro, assim como "Comes" ou Conde de suas forças. Supunha-se no passado que os irmãos se satisfariam em permanecer na Bretanha Menor e em governá-la após a morte de Budec; mas, agora que enfraquecia o domínio de Vortigern sobre a Bretanha Maior, dinheiro e homens acorriam e era um segredo conhecido que Ambrosius tinha o olho na Bretanha do Sul e do Oeste para si mesmo, enquanto Uther — já aos vinte anos um soldado excepcional — ficaria, esperavase, com a Bretanha Menor, e assim, pelo menos por mais uma geração, estabeleceriam entre os dois reinos uma muralha romano-céltica contra os bárbaros do Norte. Logo descobri que, sob um aspecto, Ambrosius era puramente romano. A primeira coisa que me aconteceu ao ser depositado com capa e tudo no portal do vestíbulo externo foi ser apanhado, desembrulhado e, já então, exausto demais para protestar ou perguntar, metido numa banheira. O sistema de aquecimento sem dúvida alguma funcionava ali; a água fumegante descongelou-me o corpo em três dolorosos e arrebatadores segundos. O homem que me trouxera para casa — Cadal, um dos criados pessoais do Conde — disseme secamente, enquanto me esfregava, untava de óleo e me enxugava e a seguir me fazia vestir uma túnica limpa de lã branca duas vezes o meu tamanho: — Só para garantir que não fuja outra vez. Ele quer falar com você, não me pergunte por quê. Não pode usar suas sandálias nesta casa, só Dia sabe onde andou com elas. Ou antes, é evidente onde andou; vacas, não foi? Pode ficar descalço, o assoalho é aquecido. Bem, pelo menos está limpo agora. Tem fome? — Está tentando ser engraçado? — Venha, então. A cozinha é por aqui. A não ser que, sendo o neto bastardo do Rei, ou o que quer que você lhe tenha informado, seja orgulhoso demais para comer na cozinha.

— Só por está vez — respondi — não me importarei. Ele me deu uma olhada, franziu a testa e riu. — Você tem coragem, justiça seja feita. Enfrentou-os de pé. O que me admira é como pensou em tudo aquilo tão rápido. Deixou-os bem desnorteados. Eu não daria dois alfinetes pela sua sorte uma vez que Uther pusesse as mãos em você. De qualquer modo, conseguiu uma audiência. — Mas foi verdade. — Oh, claro, claro. Bem, pode contar-lhe outra vez num minuto, e faça com que valha a pena, porque ele não gosta de gente que o faz perder tempo, sabe? — Hoje à noite? — Certamente. Você vai descobrir isso se viver até amanhã; ele não perde muito tempo dormindo. Tampouco o Príncipe Uther, quanto a isso, mas Uther não está propriamente trabalhando. Não nos seus papéis, quer dizer, embora achem que ele se esforça exageradamente noutros setores. Venha. Alguns metros antes de chegarmos à porta da cozinha o cheiro de comida quente veio ao nosso encontro e com ele o chiado das frituras. A cozinha era um cômodo espaçoso e parecia, aos meus olhos, tão grandiosa como a sala de jantar de casa, o piso era de ladrilhos lisos e vermelhos, havia uma lareira elevada em cada extremidade da sala e, ao longo das paredes, tábuas de corte com odres de óleo e vinho embaixo e prateleiras de pratos acima. Numa das lareiras um menino de olhos sonolentos esquentava óleo numa frigideira; acendera carvões novos nos queimadores e num destes fervia um caldeirão de sopa, enquanto as salsichas assavam e estalavam numa grelha e eu sentia o cheiro de galinha a fritar. Reparei que, apesar da descrença de Cadal na minha história, haviam-me reservado um prato de louça de Samia tão fina que devia ser o mesmo usado na própria mesa do Conde, e o vinho veio numa taça de vidro servida de um jarro de esmalte vermelho com um selo gravado em relevo e uma etiqueta "Reserva". Havia até um fino guardanapo branco. O menino-cozinheiro, que devia ter sido acordado para preparar-me a refeição, mal se deu ao incômodo de olhar para quem trabalhava; depois de servida a refeição, raspou os queimadores, rapidamente, deixando-os limpos para o dia seguinte, fez um trabalho ainda mais sumário na limpeza das panelas e, com i^m olhar para Cadal a pedir-lhe permissão, voltou bocejando para a cama. Cadal serviume, ele próprio, e até trouxe pão fresco da padaria, onde a primeira fornada da manhã acabara de sair. A sopa era uma mistura condimentada de mariscos, que se tomava quase diariamente na Bretanha Menor. Fumegante e deliciosa, fez-me pensar que nunca comera nada tão gostoso, até que experimentei a galinha torradinha em óleo e as salsichas grelhadas, tostadas e intumescidas de carne picante e cebolas. Limpei o prato com o pão fresco e sacudi a cabeça quando Cadal me passou uma bandeja com tâmaras secas, queijo

e pães de mel. — Não, muito obrigado. — Satisfeito? — Oh, sim. — Afastei o prato. — Esta foi a melhor refeição que já comi na minha vida. Muito obrigado. — Bem, — comentou ele, — a fome é o melhor tempero, dizem, embora eu concorde em que a comida aqui é boa. — Trouxe-me água fresca e uma toalha e esperou enquanto eu lavava e enxugava as mãos. — Bem, talvez eu até dê crédito ao resto da sua história, agora. Ergui os olhos. — O que quer dizer? — Você não aprendeu esses modos na cozinha, disso tenho certeza. Pronto? Vamos, então, ele mandou-me interrompê-lo, mesmo que ele estivesse trabalhando. Ambrosius, no entanto, não estava trabalhando quando chegamos ao seu quarto. Sua mesa — um móvel enorme de mármore da Itália — estava juncada de rolos e mapas e material de escrita e o Conde sentava-se numa grande cadeira, meio de lado, o queixo apoiado nos punhos, contemplando o braseiro que enchia o quarto de calor e de um leve perfume de macieira. Não levantou a cabeça quando Cadal falou ao sentinela e com um entrechocar de armas este último deixou-me entrar. — O menino, senhor. — Esta não era a voz que Cadal usara comigo. — Muito obrigado. Pode ir dormir, Cadal. — Senhor... Ele foi-se. As cortinas de couro cerraram-se à sua passagem. Ambrosius virou a cabeça, então. Contemplou-me de alto a baixo por alguns minutos, em silêncio. Então acenou na direção de um banquinho. — Sente-se. Obedeci. — Vejo que encontraram alguma coisa para você vestir. Deram-lhe de comer? — Sim, muito obrigado, senhor. — E está bastante aquecido, agora? Puxe o banquinho para mais perto do fogo, se quiser. Endireitou-se na cadeira e recostou-se, as mãos descansando nas cabeças de leão

esculpidas nos braços. Havia uma lâmpada na mesa entre nós, e à luz brilhante e firme qualquer semelhança entre o Conde Ambrosius e o estranho do meu sonho desapareceu completamente. É difícil agora, recordando uma época tão distante, lembrar-me da minha primeira impressão real de Ambrosius. Ele teria naquele tempo pouco mais de trinta anos, mas eu estava com doze e para mim, naturalmente, ele já parecia um venerável ancião. Mas creio que de fato parecesse mais velho do que era, como resultado natural da vida que levava e da pesada responsabilidade que carregava desde que era mais novo que eu. Havia rugas em torno dos seus olhos, e duas rugas pronunciadas entre as sobrancelhas, que aparentavam decisão e talvez mau gênio; sua boca era dura e reta e habitualmente séria. As sobrancelhas, escuras como os cabelos, conseguiam sombrear-lhe o olhar. O traço branco quase imperceptível de uma cicatriz corria da orelha esquerda até à metade da maçã do rosto. O nariz parecia romano, a ponte alta, proeminente, mas a pele era bronzeada ao invés de cor de oliva, e havia alguma coisa nos seus olhos que fazia pensar num celta moreno e não num romano. Era um rosto desanimado, um rosto (como eu iria descobrir) que poderia toldar-se de frustração ou ira, apesar do rígido controle que exercia sobre esses sentimentos, mas um rosto que inspirava confiança. Não era um homem que se pudesse amar com facilidade, certamente não um homem de quem se gostasse, mas um homem para se odiar ou venerar. Para ser combatido ou seguido. Uma coisa ou outra: uma vez que a pessoa se aproximasse dele, não tinha mais paz. Tudo isso precisei aprender. Quase não me lembro do que pensei dele, exceto pelos olhos profundos que me olhavam do outro lado da luz e das mãos apoiadas nas cabeças do leão. Mas lembro-me de cada palavra pronunciada. Ele mediu-me de alto a baixo. — Myrddin, filho de Niniane, filha do rei de Gales do Sul... E conhecedor profundo, dizem-me, dos segredos do palácio de Maridunum? — Eu... disse isso? Contei-lhes que morava lá e ouvia coisas às vezes. — Meus homens trouxeram-no, atravessando o Mar Estreito, porque você disse que possuía segredos que me poderiam ser úteis. Não foi verdade? — Senhor — disse eu, um tanto desesperado — não sei o que poderia ser-lhe útil A eles falei uma linguagem que pensei entenderem. Julguei que iam matar-me. Procurava salvar minha vida. — Sei. Bem, agora você está aqui a salvo. Por que saiu de casa? — Porque, uma vez que meu avô morrera, já não era seguro que eu lá permanecesse. Minha mãe pretendia entrar para um convento e Camlach, meu tio, tentara matar-me e seus criados mataram meu amigo.

— Seu amigo? — Meu criado. Seu nome era Cerdic. Era um escravo. — Ah, sei! Contaram-me isso. Disseram-me que você ateou fogo ao palácio. Não foi talvez um pouco... drástico? — Suponho que sim. Mas alguém tinha que fazer-lhe as honras. Ele era meu. Suas sobrancelhas ergueram-se. — Você apresenta isso como uma razão, ou uma obrigação? — Senhor? — Refleti e então respondi lentamente: — Ambas, creio eu. Ele contemplou as mãos. Retirara-as dos braços da cadeira e cruzara-as à sua frente sobre a mesa. — Sua mãe, a princesa. — Ele disse isso como se o pensamento tivesse ocorrido diretamente do que estivéramos a falar: — Eles fizeram mal a ela também? — Naturalmente que não! Ele levantou os olhos com o meu tom de voz. Expliquei rapidamente. — Sinto muito, my lord, só quis dizer que, se eles fossem fazer mal a ela, como poderia eu partir? Não, Camlach nunca a tocaria. Já lhe contei que ela há anos falava em querer ir para o convento de São Pedro. Não consigo nem lembrar-me de ocasião em que ela não estivesse recebendo padres cristãos em visita a Maridunum, e o próprio bispo, quando vinha de Caerleon, costumava hospedar-se no palácio. Mas meu avô nunca a deixaria partir. Ele e o bispo costumavam discutir a respeito dela — e a meu respeito... O bispo queria que eu me batizasse, sabe, e meu avô não queria nem ouvir falar nisso. Eu... eu acho que talvez guardasse isso como um suborno para minha mãe, para que ela confessasse quem era meu pai, ou talvez para que consentisse em casar com alguém da escolha dele, mas ela nunca consentiu, nem lhe revelou coisa alguma. _ Fiz uma pausa imaginando se não estaria falando demais, mas ele me observava firme e parecia muito atento. — Meu avô jurou que ela nunca entraria para a Igreja — acrescentei — mas, assim que morreu, ela pediu a Camlach, que lhe deu consentimento. Ele me teria trancafiado também, de modo que fugi. Ele assentiu. — Aonde pretendia ir? — Eu não sabia. Era verdade, o que Marric me disse no barco, que eu teria de recorrer a alguém. Tenho apenas doze anos e, como não posso ser senhor de mim mesmo, precisaria encontrar um amo. Eu não queria Vortigern, nem Vortimer, e não sabia para onde ir. — Então persuadiu Marric e Hanno a deixarem-no vivo e trazerem-no a mim? — Não de todo — respondi com franqueza. — Eu não sabia a princípio para onde iam,

apenas disse a primeira coisa que me veio à cabeça para salvar-me. Eu me entregara nas mãos do deus, e ele me pôs no caminho dos dois e lá estava o navio. Então fiz com que me trouxessem até aqui. — A mim? Assenti. O braseiro tremeluzia, fazendo as sombras dançarem. Uma sombra deslocouse no seu rosto como se ele sorrisse. — Então por que não esperou que eles fizessem isso? Para que fugir do navio, arriscando-se a morrer de frio num campo gelado? — Porque tive receio de que afinal não pretendessem trazer-me. Pensei que poderiam ter percebido a... a pouca serventia que eu teria para o senhor. — Então desembarcou sozinho no meio de uma noite de inverno, num país estranho, e o deus atirou-o direitinho aos meus pés. Você e o deus juntos, Myrddin, formam uma aliança bastante poderosa. Vejo que não tenho escolha. — My lord? — Talvez você tenha razão, e haja maneiras de me servir. — Baixou os olhos para a mesa outra vez, apanhou uma pena e girou-a nas mãos como se a examinasse. — Mas diga-me primeiro por que lhe deram o nome de Myrddin? Você diz que sua mãe nunca lhe contou quem era seu pai? Nunca sequer insinuou? Será que lhe teria dado o nome dele? — Não me chamando de Myrddin, senhor. Este é um dos deuses antigos — há um santuário perto do portão de São Pedro. É o deus da montanha próxima e dizem que de outras partes além de Gales do Sul. Mas tenho outro nome. — Hesitei. — Nunca disse isto a ninguém, mas tenho certeza de que é o nome do meu pai. — E qual é? — Emrys. Ouvi-a falar com ele certa vez, à noite, anos atrás, quando era muito pequeno. Nunca esqueci. Havia algo na sua voz. Podia-se perceber. A pena imobilizou-se. Ele encarou-me com as sobrancelhas arqueadas. — Falando com ele? Então havia alguém no palácio? — Oh, não, não foi assim. Não era real. — Você quer dizer que era um sonho? Uma visão? Como a de hoje à noite com o touro? — Não, senhor. E não chamaria isso de sonho, tampouco — era real, de um modo diferente. Tenho isso às vezes. Mas da vez que ouvi minha mãe... Havia um velho hipocausto no palácio que estava fora de uso há muitos anos; eles o aterraram posteriormente, mas quando eu era criança — quando eu era pequenino — costumava esgueirar-me por ali para fugir das pessoas. Guardava coisas lá... a espécie de coisas que

se guardam quando se é pequeno, e que se os adultos encontram, atiram tudo fora. — Eu sei. Continue. — Sabe? Eu... bem, costumava esgueirar-me pelo hipocausto e uma noite estava sob a alcova de minha mãe, e ouvi-a falar sozinha, alto, como se faz às vezes, quando se reza. Ouvi-a dizer "Emrys", mas não me lembro do resto. — Olhei para ele. Sabe quando a gente apanha o próprio nome mesmo quando não consegue ouvir muito mais? Pensei que estivesse rezando por mim, mas quando fiquei mais velho e me lembrei, ocorreu-me que aquele '"Emrys" devia ser meu pai. Havia alguma coisa na voz dela... e, de qualquer maneira, ela nunca me chamava assim; chamava-me de Merlin. — Por quê? — Por causa do falcão. É um dos nomes do cornwalch. — Então vou chamá-lo de Merlin, também. É corajoso e parece e tem olhos que podem ver a grandes distâncias. Poderei precisar is seus olhos algum dia. Mas esta noite, pode começar pelas coisas mais simples. Você vai-me falar sobre sua casa. Bem, o que é? — Se é que vou servi-lo... Naturalmente contar-lhe-ei tudo o que sei... Mas... — Hesitei e ele tomou-me as palavras da boca. — Mas precisa ter a minha promessa de que, quando eu invadir a Bretanha, nenhum mal advirá a sua mãe? Você a tem. Ela estará segura, assim como qualquer outro homem ou mulher que você me peça para poupar por terem sido bondosos consigo. Eu devia estar com os olhos arregalados. — O senhor é... muito generoso. — Se eu conquistar a Bretanha, posso permitir-me sê-lo. Eu deveria talvez ter feito algumas exceções. — Sorriu. — Poderá ser difícil se você quiser uma anistia para seu tio Camlach. — Não acontecerá — respondi. — Quando o senhor tomar a Bretanha, ele estará morto. Silêncio. Seus lábios entreabriram-se para dizer alguma coisa, mas acho que mudou de idéia. — Eu disse que poderia usar seus olhos algum dia. Agora, você já tem a minha promessa, portanto vamos conversar. Não se preocupe se as coisas não lhe parecerem suficientemente importantes para contar-me. Deixe-me ser o juiz. Assim, conversamos. Não me pareceu estranho, então, que ele me falasse como a um igual, nem que passasse metade da noite comigo fazendo-me perguntas que em parte seus espiões poderiam ter respondido. Creio que duas vezes, enquanto falávamos, um escravo entrou silenciosamente para reabastecer o braseiro e uma vez ouvi um entrechocar de

armas e uma ordem da guarda sendo mudada do lado de fora da porta. Ambrosius interrogava, induzia, escutava, às vezes escrevendo numa tabuinha à sua frente, às vezes olhando-me fixamente, o queixo apoiado nas mãos sobre a mesa, mas, mais freqüentemente, observando-me com aquele olhar firme e sombreado. Quando eu hesitava ou me perdia em alguma coisa irrelevante, ou vacilava de pura fadiga, ele estimulava-me com suas perguntas visando a algum fim indefinido como um arrieiro incitando uma mula. — Essa fortaleza no rio Seint, onde seu avô se encontrou com Vortigern. A que distância ao norte de Caerleon? Por qual estrada? Fale-me sobre a estrada... Como se chega à fortaleza do lado do mar? E: — A torre onde o Suserano hospedou-se, Torre Maximus — Macsen, como se chama... Fale-me dela. Quantos homens estavam abrigados lá? Que estrada há para o porto...? Ou: — Você diz que a comitiva do rei parou na garganta de um vale, ao sul do Monte Snow e os reis afastaram-se juntos. O seu escravo Cerdic disse que eles estavam examinando uma velha fortaleza no penhasco. Descreva o lugar... A altura do penhasco? Do topo que distância se veria para o norte... para o sul... para leste? Ou ainda: — Agora pense nos nobres do seu avô. Quantos serão leais a Camlach? Seus nomes? Quantos homens? E dos seus aliados, quem? Efetivos... força. E então, subitamente: — Agora responda-me: Como soube que Camlach ia juntar-se a Vortimer? — Porque ele próprio o disse à minha mãe, junto do leito de morte do meu avô. Eu o ouvi. Havia rumores de que isto aconteceria e eu sabia que ele discutira com meu avô, mas ninguém sabia nada ao certo. Até minha mãe apenas suspeitava das suas intenções. Mas, assim que o rei morreu, ele contou-lhe. — E anunciou isso imediatamente? Então como é que Hanno e Marric nada ouviram além dos boatos da briga? A fadiga e o longo questionário incessante tornaram-me imprudente. Eu disse sem pensar: — Ele não anunciou. Contou apenas a ela. Estava a sós com ela. — Afora você? — Sua voz mudou, fazendo-me saltar no banquinho. Observava-me com o cenho franzido. — Pensei que você me tivesse dito que o hipocausto fora aterrado? Eu fiquei ali sentado, olhando-o. Não conseguia pensar em nada para dizer.

— Parece estranho... não? — disse ele, impassível — que ele contasse isso a sua mãe na sua frente quando devia saber que você era inimigo dele? Quando os homens dele tinham acabado de matar seu criado? E então, depois de ter-lhe contado os planos secretos, como saiu do palácio para as mãos dos meus homens, "fazendo" com que eles o trouxessem a mim? — Eu... — Gaguejei — My lord, o senhor não pode pensar que eu... my lord, eu lhe disse que não era espião. Eu... tudo que lhe contei é verdade. Ele declarou isso, juro. — Tenha cuidado. Faz diferença se isto é verdade. Sua mãe lhe contou? — Não. — Conversa de escravos, então? É só o que é? Exclamei, desesperado: — Eu próprio ouvi-o declarar. — Então onde estava você? Meus olhos encontraram os dele. Sem perceber bem por quê, disse-lhe a pura verdade. — My lord, eu estava adormecido nas montanhas, a seis milhas de distância. Fez-se silêncio, o mais longo até então. Eu podia ouvir as brasas assentando no braseiro e à distância, lá fora, um cachorro latindo. Fiquei sentado esperando sua explosão. — Merlin. Ergui os olhos. — De onde lhe vem essa Vidência? De sua mãe? Contra todas as expectativas, ele me acreditara. Respondi, ansioso: — É, mas é diferente. Ela só via coisas de mulher, coisas de amor. Então começou a temer o poder e deixou isso de lado. — E você tem medo? — Eu serei um homem. — E um homem toma o poder onde este se lhe oferece. Sim. Você compreendeu o que viu esta noite? — O touro? Não, my lord, só que era alguma coisa secreta. — Bem, você saberá um dia, mas não agora. Ouça. Algures um galo cantou, agudo e argentino como uma trompa. Ele disse: — Isto de alguma forma o reconcilia com seus fantasmas. Já era tempo de estar dormindo. Você parece semimorto por falta de sono. — Pôs-se de pé. Escorreguei

lentamente do banco e ele ficou um momento a contemplar-me. — Eu tinha dez anos quando vim de barco para a Bretanha Menor e senti-me enjoado a viagem inteira. — Eu também — respondi. Ele riu. — Então deverá estar tão exausto quanto eu fiquei. Depois que tiver descansado, decidiremos o que fazer com você. — Tocou uma campainha e um escravo abriu a porta e pôs-se de lado, esperando. — Você dormirá no meu quarto esta noite. Por aqui. O quarto de dormir era romano também. Eu iria descobrir que, comparado, digamos, ao de Uther, era bastante austero, mas aos olhos de um menino acostumado a padrões provincianos, e freqüentemente improvisados, de um pequeno país distante, parecia luxuoso, com uma grande cama coberta de mantas de lã púrpura, um tapete de peles, couros de carneiro pelo chão, e um tripé de bronze da altura de um homem onde lâmpadas triplas esculpidas como pequenos dragões expeliam línguas de fogo. Grossas cortinas castanhas vedavam a noite gelada e tudo estava quieto. Ao seguir Ambrosius e o escravo e passar pelos guardas para entrar — havia dois na porta, empertigados e imóveis, exceto pelos olhos que se voltaram, cuidadosamente vazios de especulação, de Ambrosius para mim — ocorreu-me pela primeira vez perguntar-me se ele seria talvez romano em outras coisas. Mas ele apenas apontou para o arco onde outra cortina castanha ocultava, em partes, um recesso com uma cama. Supus que um escravo dormisse ali de vez em quando, atento ao seu chamado. O criado afastou a cortina e mostrou-me os cobertores dobrados sobre o colchão e os bons travesseiros feitos de aparas de lã, e então deixou-me, para atender Ambrosius. Despi minha túnica emprestada e dobrei-a cuidadosamente. Os cobertores eram grossos, de lã nova, e cheiravam a cedro. Ambrosius e o escravo falavam, mas baixinho, e suas vozes chegavam-me como ecos dos confins de uma gruta profunda e silenciosa. Já era uma felicidade estar numa cama verdadeira outra vez, e deitar-me aquecido e alimentado num lugar distante, até mesmo do som do mar. E seguro. Creio que ele disse "Boa noite" mas eu já estava mergulhado no sono e não poderia arrastar-me à superfície para responder. A última coisa de que me lembro é do escravo movendo-se de mansinho para apagar as lâmpadas.

6 ACORDEI TARDE na manhã seguinte. As cortinas tinham sido afastadas, deixando entrever um dia cinzento e invernoso, e a cama de Ambrosius encontrava-se vazia. Pela janela vi um pequeno pátio, onde uma colunata emoldurava um jardim quadrado; ao centro uma fonte corria silenciosa, pensei eu, até perceber que ela se transformara em gelo sólido. Os ladrilhos do piso transmitiam calor aos meus pés frios. Estendi o braço para a túnica branca que deixara dobrada no banquinho junto à cama, mas vi que em seu lugar alguém pusera uma nova, de um verde-escuro como os seixos, que me assentava melhor. Encontrei também um bom cinto de couro para combinar e um par de sandálias novas para substituir as velhas. Havia até uma capa, verde-claro como as bétulas, e um broche de cobre para prendê-la. Havia alguma coisa gravada em relevo no broche: um dragão esmaltado em púrpura, um desenho igual ao que vira na noite anterior, no sinete dele. Foi a primeira vez que me lembro de ter-me sentido como um príncipe, e achei estranho que isto me acontecesse no momento em que eu pensava ter acabado minha sorte. Ali, na Bretanha Menor,, eu nada possuía, nem mesmo o nome de bastardo para protegerme, nem parentes, nem um trapo que fosse meu. Mal falara com qualquer homem, exceto Ambrosius, e para ele eu era um criado, um dependente, alguma coisa para ser usada, e só continuava vivo graças à sua tolerância. Cadal trouxe-me a refeição de manhã: pão preto, favo de mel e figos secos. Perguntei por Ambrosius. — Está fora com os homens, treinando. Ou melhor, observando os exercícios. Vai para lá todos os dias. — O que acha que ele quer que eu faça? Tudo o que disse foi que você podia ficar por aqui até que descansado e que se pusesse à vontade. Preciso enviar alguém ao navio, e se me disser qual era a bagagem que perdeu, mandarei trazê-la. — Não era muita coisa, não houve tempo. Duas túnicas e um par de sandálias embrulhadas numa capa azul e umas coisinhas: um broche e uma fivela que minha mãe me deu, coisas assim. — Toquei as dobras caras da túnica que usava. — Nada tão bom quanto isto, Cadal; espero poder servi-lo. Ele disse o que queria de mim? — Nem uma palavra. Não acha que ele me conta seus pensamentos secretos, acha? Agora faça como ele diz, esteja em casa, fique de boca fechada, e não se meta em encrencas. Não creio que você vá vê-lo com muita freqüência.

— Não supus que fosse — respondi. — Onde vou morar? — Aqui. — Neste quarto? — Provavelmente não. Quis dizer, nesta casa. Afastei o prato para o lado. — Cadal, my lord Uther tem casa própria? Os olhos de Cadal iluminaram-se. Era um homem baixo e atarracado, de rosto quadrado e vermelho, uma gaforinha preta e olhos pretos e miúdos, não maiores que azeitonas, cujo brilho demonstrava que ele sabia exatamente o que eu estava pensando e, mais, que todos na casa deviam saber exatamente o que se passara entre mim e o príncipe, na noite anterior. — Não, não tem. Mora aqui também. Encostadinho, pode-se dizer. — Oh! — Não se preocupe; não o verá com freqüência, tampouco. Irá para o norte dentro de uma ou duas semanas. Deverá esfriar depressa, com esse tempo... Provavelmente já terá esquecido tudo a seu respeito nessa altura. Sorriu e saiu. Tinha razão; nas duas semanas seguintes mal vi Uther, e a seguir ele partiu com as tropas para o norte em alguma expedição destinada tanto a exercício para sua companhia, como a uma sortida em busca de suprimentos. Cadal adivinhara o alívio que isto me traria; não me entristeceu nada ficar fora do alcance de Uther. Tinha idéia de que minha presença na casa do irmão não lhe agradara e que, na verdade, a bondade continuada de Ambrosius o aborrecia bastante. Eu esperava pouco ver o Conde depois da primeira noite em que contara tudo o que sabia, mas dali em diante ele mandava-me buscar na maioria das noites em que estava livre, às vezes para interrogar-me sobre a minha casa, outras, quando estava cansado, para que eu tocasse para ele ou ainda, em diversas ocasiões, para uma partida de xadrez. Aqui, para minha surpresa, estávamos quase iguais e não creio que ele me deixasse ganhar. Estava sem prática, dizia-me; o jogo mais costumeiro eram os dados, mas ele não iria arriscar-se com uma criança adivinha. O xadrez, sendo uma questão de matemática e não de mágica, seria menos suscetível à magia negra. Ele manteve a promessa e explicou-me o que eu vira naquela primeira noite junto à pedra aprumada. Acredito que, se me tivesse dito para fazê-lo, eu teria até esquecido a coisa toda, considerando-a um sonho. À medida que o tempo passava, a lembrança se tornara toldada e esmaecida e comecei mesmo a pensar que talvez fosse um sonho produzido pelo frio e pela fome ou por uma vaga recordação da pintura apagada na arca romana do meu quarto em Maridunum, o touro ajoelhado e o homem com a faca sob a abóbada engastada de estrelas. Mas, quando

Ambrosius falou nisso, percebi que eu vira mais do que estava na pintura. Vira o deus dos soldados, a Palavra, a Luz, o Bom Pastor, o Mediador entre o Deus único e os homens. Vira Mithras, que viera da Ásia há mil anos. Nascera, segundo Ambrosius me contou, numa caverna, em pleno inverno, sob o olhar dos pastores e uma estrela que brilhava; nascera da terra e da luz e emergira de um rochedo com uma tocha na mão esquerda e uma faca na direita. Matava o touro para que o sangue derramado trouxesse vida e fertilidade à terra, e depois da sua última refeição, de pão e vinho, fora chamado aos céus. Era o deus da força e da mansidão, da coragem e do autodomínio. — O deus dos soldados — repetiu Ambrosius — e é por isso que restabelecemos seu culto, para proporcionar, como faziam os exércitos romanos, um ponto comum de encontro aos chefes e reis de todas as línguas e convicções, que lutam conosco. Sobre o culto, não posso falar-lhe porque é proibido, mas deverá ter percebido isso na primeira noite; eu e meus oficiais havíamo-nos reunido para a cerimônia de culto e sua conversa de pão e vinho e matança de touro fez parecer que tivesse visto mais da nossa cerimônia do que nos é permitido falar. Você saberá de tudo um dia, talvez. Até lá, esteja prevenido e, se lhe perguntarem pela visão, lembre-se, foi apenas um sonho. Compreendeu? Assenti, mas com a mente subitamente avassalada por uma única coisa que ele dissera. Pensei em minha mãe e nos padres cristãos, em Galapas e na fonte de Myrddin, em coisas vistas na água e ouvidas ao vento. — Quer que eu me torne um iniciado de Mithras? — Um homem toma o poder onde lhe é oferecido. — repetiu ele. — Disse-me que não sabe qual o deus que o guia; talvez Mithras fosse o deus no caminho de quem você se colocou e que o conduziu a mim. Veremos. Entrementes, ele continua sendo o deus dos exércitos e precisaremos de sua ajuda... Agora traga a harpa, por favor, e cante para mim. Assim lidava comigo, tratando-me mais como príncipe do que eu jamais fora tratado na casa do meu avô, onde ao menos eu tinha alguma espécie de direito a isso. Cadal foi designado meu criado pessoal. Pensei a princípio que pudesse ressentir-se disso, já que era um substitutivo pouco satisfatório ao serviço de Ambrosius, mas não pareceu importar-se. Na verdade, tive mesmo a impressão de que ficara satisfeito. Logo se pôs em bons termos comigo, e como no palácio não havia outros meninos da minha idade tornou-se meu companheiro constante. Ganhei também um cavalo. A princípio, deram-me um dos de Ambrosius, mas passado um dia ou dois pedi, desinibidamente, se poderia ficar com outro mais apropriado ao meu tamanho e deram-me um cinzento, pequeno e obstinado, que no meu único momento de nostalgia chamei de Aster. Assim passaram os primeiros dias. Saía a cavalo com Cadal ao meu lado para conhecer o país; isto ainda sob o gelo, mas logo o gelo se tornou chuva, transformando os campos num lamaçal revolvido e tornando os caminhos escorregadios e perigosos; um vento frio assoviava dia e noite pelas planícies, agitando o Mar Pequeno até pintá-lo de

branco sobre o fundo cinza-chumbo e escurecendo?de umidade a face norte das pedras aprumadas. Procurei um dia a pedra com a marca do machado, mas não consegui encontrá-la. Mas havia uma outra que, sob determinada lua, mostrava uma adaga esculpida, e ainda uma pedra grossa um pouco afastada em que sob o líquen e os excrementos dos pássaros aparecia a forma de um olho aberto. À luz do dia, as pedras não bafejavam frio na nossa nuca, mas, ainda assim, havia alguma coisa ali, a observar-nos, e não era um caminho que meu pônei gostasse de seguir. Naturalmente explorei a cidade. O castelo do rei Budec situava-se ao centro, numa saliência rochosa que fora coroada com um muro alto. Uma rampa de pedra conduzia ao portão sempre fechado e guardado. Com freqüência, via Ambrosius ou seus oficiais subirem a rampa a cavalo; eu próprio, no entanto, nunca me aproximava além do posto de guarda, embaixo. Mas vi o rei Budec, diversas vezes, acompanhado dos seus homens. O cabelo e a longa barba eram quase brancos, mas ele cavalgava um grande cavalo castanho como um homem trinta anos mais jovem e ouvi inúmeras histórias da sua perícia nas armas e da jura que fizera de vingar-se de Vortigern pelo assassinato de seu primo Constantius, mesmo que levasse toda uma vida. Isto, na verdade, ameaçava acontecer, pois parecia uma tarefa quase impossível para um país tão pobre formar o tipo de exército que pudesse derrotar Vortigern e os saxões e vir a dominar a Bretanha Maior. Mas agora não tardaria, diziam os homens, não tardaria... Todos os dias, qualquer que fosse o tempo, os homens treinavam nas planícies fora dos muros da cidade. Soube, então, que Ambrosius dispunha de um exército efetivo de cerca de quatro mil homens. No que tocava a Budec, eles ganhavam a vida doze vezes, já que a menos de trinta milhas de distância suas fronteiras confrontavam-se com as de um jovem rei cujos olhos brilhavam à perspectiva de saque e que só era contido pelos rumores da crescente força de Ambrosius e a temível reputação dos seus homens. Budec e Ambrosius cultivavam a idéia de que o exército era principalmente defensivo e tomavam providências para que Vortigern nada soubesse de certo; notícias do preparo de uma invasão chegavamlhe como dantes apenas sob a forma de boatos e os espiões de Ambrosius se encarregavam de fazê-los parecer assim. O que Vortigern realmente acreditava, era que Budec desdobrava-se para que ele pensasse que Ambrosius e Uther se conformavam com o destino de exilados, acomodavam-se na Bretanha Menor como herdeiros de Budec e preocupavam-se apenas em manter as fronteiras que um dia seriam as deles próprios. Esta impressão era estimulada pelo fato de o exército ser usado como uma força de abastecimento para a cidade. Nada era simples ou pesado demais para os homens de Ambrosius. Esses soldados experimentados desempenhavam, naturalmente, tarefas que até as tropas bem treinadas do meu avô teriam desprezado; carregavam e estocavam madeira nos depósitos da cidade, e escavavam e armazenavam turfa e carvão. Construíam e trabalhavam nas ferrarias, fabricando não só armas de guerra, mas também ferramentas para o cultivo, a colheita e a construção: pás, arados, machados e foices. Sabiam domar

cavalos, arrebanhar e conduzir o gado, assim como abatê-lo; construíam carroças; sabiam assentar e montar guarda a um acampamento em duas horas e levantar o mesmo com uma hora de diferença. Possuíam um corpo de engenheiros em meia milha quadrada de oficinas que podiam fornecer qualquer coisa, de um remo a um navio de tropas. Em suma, equipavam-se para a tarefa de desembarcar de olhos vendados num país estranho e talvez viver dele, deslocando-se rapidamente em qualquer tempo. — Pois — disse Ambrosius certa vez a seus oficiais diante de mim — é só para soldados mal preparados que a guerra é um jogo de bom tempo. Lutarei para vencer e, uma vez vencendo, para dominar. E a Bretanha é um país grande; comparado a ela, este pedaço da Gália não passa de uma campina. Portanto, senhores, lutaremos primavera e verão, mas não pararemos à primeira geada de outubro para descansar e afiar nossas espadas até a primavera seguinte. Continuaremos a lutar — na neve se necessário, na tempestade e no gelo e na lama pesada do inverno. E em todo esse tempo e durante todo esse tempo, precisaremos de alimentos e quinze mil homens precisarão de se alimentar, e bem. Pouco depois disso, cerca de um mês a partir da minha chegada à Bretanha Menor, meus dias de liberdade terminaram. Ambrosius arranjou-me um tutor. Belasius era muito diferente de Galapas e de Demetrius, o bêbedo gentil, que fora meu tutor: oficial em casa. No vigor da mocidade, era um dos homens de negócios do Conde e parecia ser o encarregado das estimativas e da parte contábil dos empreendimentos de Ambrosius; era, por profissão, matemático e astrônomo. Meio galo-romano, meio siciliano, um homem um tanto alto, com longos cílios escuros, uma expressão melancólica e boca cruel. Possuía uma língua ferina e um gênio mau e intempestivo, mas não se mostrava inconstante. Logo aprendi que a maneira de escapar aos seus sarcasmos e à sua mão pesada era desincumbir-me do meu trabalho rapidamente, e bem, e uma vez que isto me era fácil e do meu agrado, não tardou que nos entendêssemos e nos déssemos razoavelmente bem. Uma tarde, em fins de março, estudávamos no meu quarto em casa de Ambrosius. Belasius possuía aposentos na cidade, que tinha o cuidado de nunca mencionar, pelo que eu presumi que vivesse com alguma rameira e talvez tivesse vergonha de que eu pudesse vê-la; trabalhava a maior parte do tempo no quartel-general, mas os escritórios perto do tesouro estavam sempre tão cheios de funcionários e pagadores, que dávamos as lições diárias no meu quarto. Este não era grande, mas aos meus olhos, bem provido, com um piso de ladrilhos vermelhos fabricados localmente, um espelho de bronze, um braseiro e uma lâmpada importados de Roma. Hoje, já à tarde, a lâmpada fora acesa, pois o dia estava escuro e nublado. Belasius parecia satisfeito comigo; estudávamos matemática, e era um desses dias em que eu nada esquecia e deslindava os problemas que ele me apresentava como se o campo do conhecimento fosse uma campina aberta com uma trilha a cruzá-la no centro, à vista de

todos. Ele passou a palma da mão pela cera para apagar meu desenho, afastou as tabuinhas e pôs-se de pé. — Saiu-se bem hoje, o que foi ótimo, porque preciso retirar-me cedo. E estendendo o braço tocou a campainha. A porta abriu-se tão depressa que eu percebi que seu criado deveria estar à espera junto desta. O menino veio com a capa do amo nos braços e sacudiu-a rapidamente para apresentá-la aberta. Nem ao menos olhou na minha direção para pedir permissão, mas tinha os olhos fixos em Belasius e eu podia ver que o temia. Tinha mais ou menos a minha idade, ou talvez menos, o cabelo castanho cortado rente sob um gorro virado e os olhos cinzentos grandes demais para o seu rosto. Belasius não falou nem olhou para ele, mas voltou os ombros para a capa e o menino esticou-se para passar a fivela. Sobre a cabeça do menino, Belasius comentou: — Falarei ao Conde do seu progresso. Ele ficará satisfeito. A expressão do seu rosto aproximava-se tanto de um sorriso que ele jamais mostrara. Encorajado, virei-me no banquinho. — Belasius... Ele parou a meio caminho da porta. — Sim? — Você certamente deve saber... Por favor, diga-me. Quais são os planos dele para mim? — Que você estude matemática e astronomia e não esqueça as línguas que aprendeu. Seu tom era suave e mecânico, mas havia divertimento nos seus olhos, de modo que prossegui. — Para ser o quê? — O que quer ser? Não respondi. Ele assentiu como se eu tivesse falado. — Se ele quisesse que você empunhasse uma espada, você estaria na praça, agora. — Mas... viver aqui como vivo, você a ensinar-me e Cadal como criado... Não compreendo. Deveria estar a servi-lo de alguma forma, não apenas aprendendo e vivendo assim como um príncipe. Sei muito bem que só vivo graças à sua misericórdia. Ele me fitou um momento sob os cílios longos. Então sorriu. — É algo para lembrar-se. Creio que você lhe disse, certa vez, que o que era e não quem era é que deveria importar. Acredite-me, ele o usará como usa a todos. Portanto, pare de se preocupar e deixe estar. Agora preciso ir-me.

O menino abriu a porta para ele, deixando entrever Cadal que acabava de chegar com a mão erguida para bater na porta. — Oh! desculpe-me, senhor! Vim saber quando terminaria por hoje. Já aprontei os cavalos, senhor Merlin. — Já terminamos — disse Belasius. Parou no portal e voltou-se para encarar-me. Aonde planejava ir? — Norte, creio eu, a estrada pela floresta. O caminho elevado ainda está bom e a estrada, seca. Ele hesitou, então disse mais para Cadal que para mim: — Então não saia da estrada e esteja em casa antes do escurecer. — Acenou com a cabeça e saiu com o menino nos calcanhares. — Antes de escurecer? — disse Cadal. — Esteve escuro o dia todo e além disso chove agora. Olhe, Merlin — quando nos encontrávamos a sós, éramos menos formais — por que não damos apenas uma olhada nas oficinas dos engenheiros? Sempre lhe dá prazer e Tremorinus já deve ter o aríete funcionando a esta altura. O que diz de ficarmos na cidade? Sacudi a cabeça. — Sinto muito, Cadal, mas preciso ir com chuva ou sem chuva. Estou irrequieto ou coisa parecida e preciso sair. — Bem, então uma milha ou duas na direção do porto serviriam. Vamos, aqui está sua capa. Deve estar escuro como breu na floresta; tenha um pouco de juízo. — A floresta — disse eu, obstinado, desviando a cabeça enquanto ele fechava o broche. — E não discuta comigo, Cadal. Se me perguntar, Belasius é que tem a idéia correta. O criado dele nem ousa falar, muito menos discutir. Eu deveria tratá-lo da mesma forma — de fato, vou começar, a partir deste momento... De que está rindo? — Nada. Está bem, sei quando devo ceder. Pois será a floresta, c se nos perdermos e não voltarmos vivos, ao menos eu terei morrido e não precisarei enfrentar o Conde. — Não vejo como ele se vá realmente importar muito com isso. — Oh, ele não se importará! — respondeu Cadal, segurando a porta para eu passar. — Era apenas uma maneira de falar. Duvido de que chegue sequer a notar.

7 UMA VEZ DO LADO DE FORA, não estava tão escuro quanto parecia, e até razoavelmente quente; um dia pesado e cinzento, carregado de nevoeiro com uma chuva miúda, que se depositava sobre a lã pesada das nossas capas, como geada. Cerca de uma milha ao norte da cidade, a turfa rasa e castigada pelo sal começava a ceder lugar à floresta, rala a princípio, as árvores crescendo isoladas, com véus de névoa branca a assediarem seus ramos baixos ou a cobrirem a turfa para dispersar-se aqui e ali em volteios de veado em fuga. A estrada para o norte era antiga e pavimentada, e os homens que a tinham construído haviam desbastado as árvores e o mato cem passos de cada lado; mas com o tempo e a negligência, o campo aberto voltara a cobrir-se de tojos e urzes e árvores pequenas, de modo que agora a floresta parecia avançar sobre quem passava e o caminho era escuro. Perto da cidade vimos uns dois camponeses carregando lenha para casa no lombo de burros e um dos mensageiros de Ambrosius passou por nós a galope, com um relance e o que nos pareceu uma meia-saudação. Mas na floresta não encontramos ninguém. Era a hora silenciosa que fica entre o canto da passarada de um dia de março e a caça das corujas. Quando alcançamos as árvores grandes, parará de chover e a neblina dissipava-se. Afinal chegamos a uma encruzilhada, onde uma trilha — sem calçamento — cortava em ângulo reto a nossa estrada. A trilha era usada para retirar madeira da floresta e também pelas carroças de carvão, e ainda que acidentada e profundamente sulcada, era limpa e reta, e mantendo-se o cavalo nas beiras, podia-se por ela galopar. — Vamos virar aqui, Cadal. — Você sabe que ele disse para ficarmos na estrada. — Sim, eu sei que ele disse, mas não vejo razão. A floresta é perfeitamente segura. Isso era verdade; mais uma das medidas de Ambrosius. Os homens já não receavam viajar a cavalo pela Bretanha Menor nas proximidades da cidade. O campo era constantemente patrulhado por companhias de soldados alertas e dispostos a arranjar serviço. Na verdade, o maior perigo, ouvi-o certa vez dizer, era as tropas treinarem em excesso e, entediadas, esforçarem-se demais para encontrar encrencas. Entrementes, os fora-da-lei e os descontentes mantinham-se afastados, permitindo à gente comum tratar dos seus assuntos em paz. Até mulheres podiam viajar sem muita escolta. — Além do mais — acrescentei — que importa o que ele disse?

Ele não é meu amo. Só está encarregado de ensinar-me, nada mais. Não é provável que erremos o caminho, se nos guiarmos pelas marcas de rodas, e se não aproveitarmos para galopar agora, ficará escuro demais para forçar os cavalos na volta. Você está sempre reclamando que eu não monto bem. Como posso, se estamos sempre trotando ao longo das estradas? Por favor, Cadal. — Olhe, eu também não sou seu amo. Está bem, mas não se afaste. E cuidado com o pônei; estará escuro sob as árvores. É melhor eu ir à frente. Segurei as rédeas dele. — Não. Eu gostaria de ir à frente e... quer retardar-se um pouco, por favor? A coisa é que eu... quase não estou só e isto é uma coisa a que estava acostumado. É uma das razões por que quis vir para estes lados. — E acrescentei, cuidadoso: — Não é que não esteja satisfeito com sua companhia, mas às vezes a pessoa precisa de tempo para... bem, para refletir. Será que me dá uns cinqüenta passos de distância? Ele puxou as rédeas para trás imediatamente. E pigarreando: — Eu lhe disse que não sou seu amo. Vá em frente. Mas tenha cuidado. Voltei Aster para a trilha e toquei num meio-galope. O cavalo não saía dos estábulos há três dias e, apesar da distância que cobríramos, estava inquieto. Deitou as orelhas para trás e ganhou velocidade pela beira gramada da trilha. Felizmente a névoa praticamente desaparecera, exceto em trechos onde cortava a trilha à altura da sela, fazendo os cavalos parecerem mergulhar, como se atravessassem um vau. Cadal mantinha-se bastante atrás; eu ouvia as batidas dos cascos da égua como um eco pesado do galope do meu pônei. A chuva miúda passara e o ar estava puro, fresco e com o forte perfume dos pinheiros. Uma galinhola passou voando com um grito doce e sussurrante e de um pendão de abeto caíram gotas de água na minha boca, deslizando a seguir pela gola da minha túnica. Sacudi a cabeça rindo e o pônei apertou o passo, dispersando a neblina como se fosse espuma. Deitei-me sobre seu pescoço à medida que a trilha estreitava e os galhos começavam a açoitar-me de verdade. Escurecia; o céu tornavase opaco como se anoitecesse entre os galhos; a floresta passava por nós como uma nuvem negra carregada de odores e silêncio, quebrado apenas pelo galope de Aster e os passos medidos da égua. Cadal gritou-me que parasse. Como não respondi prontamente, a batida dos cascos da égua intensificou-se, mais próxima. As orelhas de Aster levantaram e abaixaram outra vez e ele começou a correr. Puxei-lhe as rédeas. Foi fácil, porque a corrida era pesada e ele suava. Diminuiu o passo e esperou sossegado que Cadal nos alcançasse. A égua castanha parou. O único som na floresta, agora, era a respiração dos cavalos. — Bem, — disse ele, afinal, — teve o que queria?

— Sim, só que você me chamou muito cedo. — Temos de voltar daqui se quisermos chegar em tempo para a ceia. Corre bem esse pônei. Quer seguir à frente no caminho de volta? — Se puder. — Eu lhe disse que não há problema, faça como quiser. Sei que não sai sozinho, mas ainda é criança e cabe a mim ver que nenhum mal lhe aconteça, é só. — Que mal poderia acontecer-me? Eu costumava ir a toda parte sozinho, na minha terra. — Aqui não é sua terra. Você não conhece o país ainda. Poderia perder-se ou cair do pônei e ficar deitado na floresta com uma perna quebrada... — Isto não é muito provável, é? Você tem ordens para me vigiar, por que não admite? — Para cuidar de você. — Dá quase no mesmo. Ouvi como lhe chamam. "O cão de guarda". Ele resmungou: — Não precisa enfeitar. — "O cão preto de Merlin" foi como ouvi. Não pense que me importo. Faço o que ele manda sem discutir, mas sinto muito se isto lhe aborrece. — Não me aborrece... oh, não me aborrece. Não quis dizer isso... está bem, é só que... Cadal... — O que é? — Sou um refém, afinal? — Isto eu não saberia responder — disse Cadal, sem jeito. Vamos, então, dá para passar? No lugar onde os cavalos pararam, o caminho era estreito, e o centro da trilha afundava-se em lama que refletia fracamente o céu da noite. Cadal puxou a égua para o mato que beirava a trilha e eu forcei Aster — que não gostava de molhar as patas a não ser obrigado — a passar. Quando as grandes ancas da égua castanha recuaram contra um emaranhado de carvalhos e castanheiros, ouviu-se, de súbito, um estalido e a seguir o ruído de gravetos partidos quando um animal rompeu pelo mato quase sob a barriga da égua, atravessando o caminho à frente do meu pônei. Os dois animais reagiram violentamente. A égua, com um re-lincho de medo, avançou, contrariando as rédeas. No mesmo instante, Aster empinou violentamente, quase me derrubando. No mergulho, a égua colidiu com o ombro do pônei que hesitou, deu meiavolta, e precipitou-se, atirando-me no chão. Errei a água por centímetros, e caí esparramado na parte macia da beira da trilha, de

encontro a um toco de pinheiro que me teria ferido seriamente se eu tivesse caído no topo. Como foi, escapei com alguns arranhões e contusões pequenas e um tornozelo torcido; ao rolar, tentando firmar o pé no chão, senti uma pontada momentânea tão aguda que a floresta pareceu flutuar. Mesmo antes que a égua parasse de girar, Cadal já desmontara, atirara as rédeas sobre um ramo e debruçava-se sobre mim. — Merlin... Senhor Merlin... está machucado? Descerrei os dentes dos lábios e comecei desajeitadamente a endireitar as pernas com as duas mãos. — Não muito, apenas no tornozelo. — Deixe-me ver... Não. Fique quieto. Pelo cão. Ambrosius vai-me arrancar a pele por isto. — O que foi? — Um porco selvagem, creio eu. Pequeno demais para um veado e grande demais para uma raposa. — Pensei que era um porco selvagem, senti-lhe o cheiro. E o meu pônei? — A meio caminho de casa por essa altura, acho eu. Naturalmente você tinha que soltar as rédeas, não tinha? — Sinto muito. Está quebrado? Ele ocupara-se do meu tornozelo, apalpando, sentindo-o. — Acho que não... Não, tenho certeza que não. De resto, está bem? Olhe, vamos, experimente se pode ficar de pé. A égua poderá levar os dois e quero estar de volta, se puder, antes que aquele seu pônei apareça de sela vazia. Estarei frito, com certeza, Se Ambrosius o vir. — Não foi sua culpa. Ele é assim tão injusto? — Pensará que foi, e não estaria muito errado. Vamos agora, experimente. — Não, dê-me um momento. E não se preocupe com Ambrosius, o pônei não foi para casa, parou um pouco acima da trilha. É melhor ir buscá-lo. Ele estava debruçado sobre mim, de joelhos e eu o via recortado indistintamente contra o céu. Voltou a cabeça para espreitar o caminho. Ao nosso lado a égua continuava parada, exceto pelas orelhas irrequietas e o canto branco dos olhos. O silêncio só era quebrado por uma coruja esvoaçando, e à distância, quase imperceptível, uma segunda, como um eco. — Está escuro como breu até a seis metros de distância — disse Cadal. — Não vejo

nada. Você ouviu quando ele parou? — Ouvi. — Era mentira, mas aquela não era a hora nem aquele era o lugar para verdades. — Vá apanhá-lo depressa. A pé. Ele não foi longe. Vi-o encarar-me por um momento e pôr-se de pé sem mais palavra, saindo pelo caminho. Tão bem como se fosse dia claro, eu percebia sua expressão intrigada. Lembroume muito de Cerdic, naquele dia, no Forte do Rei. Encostei-me ao toco. Sentia que meus arranhões e o tornozelo doíam, mas, apesar disso, invadia-me como um trago de vinho quente a sensação de excitamento e libertação que vem do poder. Eu sabia agora que precisava vir para aqueles lados; que essa seria uma hora em que nem a escuridão, nem a distância, nem o tempo significariam coisa alguma. A coruja flutuava silenciosa no alto da trilha. A égua empinou as orelhas naquela direção, observando-a sem medo. Ouvia-se o som agudo dos morcegos em alguma parte. Pensei na gruta de cristal e nos olhos de Galapas ao contar-lhe minha visão. Ele não se mostrara intrigado, nem mesmo surpreso. Ocorreu-me de repente imaginar como agiria Belasius. E senti que tampouco se surpreenderia. Os cascos ressoavam baixinho, na turfa fofa. Vi Aster primeiro, aproximando-se como um fantasma cinzento, e a seguir Cadal, como uma sombra ao seu lado. — Estava lá, sim — comentou — e por uma boa razão: Ficou completamente manco. Deve ter torcido alguma coisa. — Bem, pelo menos não vai chegar a casa antes de nós. — Vamos ter confusão com a história desta noite, pode ter certeza, não importa a hora que cheguemos. Vamos, então. Vou colocá-lo em cima de Rufa. Com sua ajuda pus-me cuidadosamente de pé. Quando tentei descansar o peso no pé esquerdo, ainda doía-me muito, mas eu sabia pelo jeito que não passava de uma entorse e logo estaria melhor. Cadal depositou-me no lombo da égua, desenganchou as rédeas do ramo e entregou-mas na mão. Então estalou a língua para Aster e conduziu-o lentamente. — Que está fazendo? — perguntei. — Não acha que ela pode com dois? — Não adianta. Veja como este aqui está manco. Terá que ser levado pela mão. Se seguir à frente, ele marcará o passo. A égua acompanhará. Está bem aí em cima? — Perfeitamente, obrigado. O pônei cinzento estava, na verdade, completamente manco. Caminhava lentamente ao lado de Cadal, a cabeça arriada, e seguia à minha frente como um sinal de fumaça no crepúsculo. A égua acompanhava-o documente. Levaríamos umas duas horas para chegar a casa, mesmo sem contar o que nos aguardava. Aqui, outra vez, havia uma espécie de solidão, sem outros ruídos que o dos passos dos cavalos, o rangido do couro, e os pequenos estalidos ocasionais da floresta que nos

rodeava. Cadal parecia invisível, apenas uma sombra junto à névoa espectral que era Aster. Encarrapitado na grande égua, a um passo confortável, sentia-me sozinho com a escuridão e as árvores. Tínhamos percorrido talvez meia milha quando, luzindo entre os ramos de um imenso carvalho à minha direita, vi uma estrela branca e firme. — Cadal, não há um caminho mais curto para voltarmos? Lembro-me de uma trilha para o sul, bem perto daquele carvalho. A neblina clareou e há estrelas no céu. Olhe, lá está a Ursa Maior! Sua voz respondeu-me da escuridão. — É melhor seguirmos em direção à estrada. Mas, dois passos depois, ele parou o pônei na entrada da trilha para o sul, e esperou que a égua se aproximasse. — Parece boa, não é? — perguntei. — É reta e bem mais seca que a nossa. Só precisamos manter a Ursa Maior às nossas costas e com mais duas milhas já deveremos estar sentindo o cheiro do mar. Você não sabe orientar-se na floresta? — Bastante bem. É verdade que seria mais rápido se pudéssemos ver o caminho. — Bem... — ouvi-o retirar a espada curta da bainha. — Não que seja provável encontrarmos problemas, mas é melhor estar preparado, portanto fale baixo, e prepare sua faca. E deixe-me dizer-lhe uma coisa, jovem Merlin, se acontecer alguma coisa, siga para casa e deixe tudo comigo. Entendeu? — Ordens de Ambrosius outra vez? — Poderia dizer que sim. — Está bem, se isso o faz sentir-se melhor, prometo que o abandonarei a toda velocidade. Mas não haverá problemas. Ele resmungou. — Até parece que você sabe. Ri. — Oh, eu sei! A luz da estrela refletiu momentaneamente o branco dos seus olhos e o gesto rápido da mão. E, então, sem falar, deu meia-volta e entrou com Aster na trilha do sul.

8 EMBORA A TRILHA FOSSE suficientemente larga para dois cavaleiros lado a lado, seguimos em fila indiana, a égua castanha ajustando seu passo longo e confortável ao do pônei, mais curto e muito coxo. Fazia mais frio então; aconcheguei as dobras da minha capa ao corpo, para aquecerme. A névoa dissipara-se completamente com a queda da temperatura, o céu clareava e as estrelas surgiam, e tornou-se mais fácil distinguir o caminho. Ali as árvores eram enormes — carvalhos, na maioria, dos grandes e maciços, bastante afastados entre si, deixando ver as novas mudas que cresciam selvagens, e a hera entrelaçada às madressilvas e às moitas de espinheiro. A intervalos, as silhuetas escuras de pinheiros altivos se erguiam de encontro ao céu. Ouvia-se um chapinhar ocasional quando a umidade condensada pingava das folhas, e uma vez ouvi o grito de agonia de um animal pequeno nas garras de uma coruja. O ar cheirava a umidade, fungos, folhas mortas e matéria em decomposição. Cadal caminhava em silêncio, os olhos na trilha que se tornava em alguns trechos arriscada, devido aos galhos caídos ou em deterioração. Atrás dele, equilibrando-me na sela da enorme égua, eu continuava possuído do mesmo poder leve e excitante. Havia algo à nossa frente, a que estávamos sendo conduzidos, eu sabia com tanta certeza como sabia que o falcão me guiara à caverna do Forte do Rei. As orelhas de Rufa empinaram-se e senti suas narinas macias estremecerem. A cabeça ergueu-se. Cadal nada ouvira e o pônei cinzento, preocupado com a própria incapacidade, não deu sinais de farejar outros cavalos. Mas, mesmo antes de Rufa, eu sabia que eles estavam ali. A trilha dava voltas e começava a descer suavemente. De cada lado, as árvores recuaram um pouco; seus galhos já não se encontravam no alto, e fazia-se mais claro. Agora, formavam-se barrancos dos lados da trilha, apresentando rochas salientes e trechos de solo irregular onde, no verão, irromperiam a erva dedal e as samambaias, mas que agora se cobriam de sarças mortas e flexíveis. Os cascos dos nossos cavalos arranhavam e retiniam ao descer pela encosta. De repente, Rufa, sem diminuir o passo, ergueu a cabeça e soltou um longo relincho. Cadal, com uma exclamação, imobilizou-se e a égua alcançou-o, a cabeça levantada, as orelhas em pé voltadas para a floresta à nossa direita. Cadal agarrou-a pelo freio, puxando sua cabeça para baixo e cobrindo-lhe as narinas com a dobra do braço. Aster levantara a cabeça também, mas não deixou escapar ruído. — Cavalos — disse eu baixinho. — Não está sentindo o cheiro?

Ouvi Cadal murmurar alguma coisa assim: "Parece que você consegue cheirar tudo; deve ter o nariz de uma raposa", e logo depois, apressado, começando a arrastar a égua para fora da trilha: "É tarde demais para voltarmos, já devem ter ouvido essa maldita égua. É melhor irmos para a floresta". Parei-o. — Não há necessidade. Não há dificuldades à nossa frente, tenho certeza. Vamos prosseguir. — Você fala muito bem e com segurança, mas como pode...? — Eu sei. De qualquer forma, se quisessem fazer-nos mal, já teríamos sabido. Devem ter-nos ouvido há muito tempo e já perceberam que são apenas dois cavalos e um deles manco. Mas ele ainda hesitava, com os dedos na espada curta. Aguilhoadas de excitação arranhavam-me a pele, como ouriços. Eu vira para onde apontavam as orelhas da égua — um grande pinheiral, cinqüenta passos adiante, à direita da trilha. Os pinheiros mostravamse muito escuros, mesmo contra o negrume da floresta. Subitamente já não fui capaz de esperar. E disse com impaciência: — Vou, de qualquer jeito. Pode seguir-me ou não, como preferir. Puxei a cabeça de Rufa para o alto, desviando-me dele, e esporeei-a com o pé bom, fazendo com que ela se precipitasse para a frente, passando o pônei cinzento. Conduzi-a direto para o barranco e subi na direção dos pinheiros. Os cavalos estavam lá. Por uma abertura na densa abóbada do pinheiral brilhava um punhado de estrelas, que os mostrava claramente. Eram apenas dois, parados, imóveis, as cabeças abaixadas e narinas abafadas contra o peito de uma figura miúda, de capa pesada e capuz contra o frio. O capuz caiu quando ele se voltou para encarar-nos; seu rosto oval parecia pálido na claridade. Não havia mais ninguém. Num momento de surpresa, pensei que o cavalo preto mais próximo fosse o grande potro de Ambrosius, mas quando desembaraçou a cabeça da capa vi-lhe uma mancha branca na testa e percebi, num clarão, como o de uma estrela cadente, por que eu fora trazido até ali. Atrás de mim, atabalhoadamente e com uma expressão de surpresa, Cadal puxava Aster para o pinheiral. Vi o brilho cinzento de sua espada ao ser erguida: — Quem está aí? Respondi calmo, sem me voltar: — Guarde-a. É Belasius... Pelo menos, é o cavalo dele, mais um e o menino. É só. Ele avançou. A espada já deslizava de volta à bainha.

— Puxa, você tem razão! Eu conheceria aquela mancha branca em qualquer lugar. Ei, Ulfin, bons olhos o vejam. Onde está seu amo? Mesmo a seis passos de distância, ouvi o menino ofegar de alívio. — Oh, é você, Cadal... My lord Merlin... Ouvi seu cavalo relinchar... Fiquei imaginando... Ninguém vem para estes lados. Adiantei-me com a égua e olhei para baixo. Seu rosto era um borrão pálido voltado para cima, os olhos imensos. Ainda tinha medo. — Parece que Belasius vem — disse eu. — Por quê? — Ele... ele não me disse nada, my lord. Cadal disse sem rodeios: — Não nos venha com essa. Não há muito que você desconheça a respeito dele, e você nunca está a distância maior que um braço, dia e noite, todos sabem disso. Vamos, fale logo. Onde está seu amo? — Eu... ele não se vai demorar. — Não podemos esperar por ele — disse Cadal. — Queremos um cavalo. Vá dizer-lhe que estamos aqui e que my lord Merlin está machucado, o pônei manco, e temos que chegar a casa depressa... Bem? Por que não vai? Pelo amor de Deus, o que há com você? — Não posso. Ele me disse que não devo. Proibiu-me de sair daqui. — Como nos proibiu de sair da estrada caso viéssemos por estes lados? — disse eu. — Sei. Ora, o seu nome é Ulfin, não é? Bem, Ulfin, não importa o cavalo. Quero saber onde está Belasius. — Eu... eu não sei. — Deve ter visto ao menos para que lado foi? — N-não, my lord. — Pelo cão! — exclamou Cadal. — Que importa saber onde ele está desde que possamos levar o cavalo? Olhe, menino, tenha juízo, não podemos esperar metade da noite pelo seu amo, precisamos voltar para casa. Se disser a ele que o cavalo era para my lord Merlin, ele não vai comê-lo vivo desta vez, vai? — E, enquanto o menino balbuciava alguma coisa: — Bem, está bem, quer que saiamos a procurá-lo, nós mesmos, para pedirlhe permissão? Então o menino se moveu, metendo o punho na boca como um idiota. — Não... não devem... não devem...!

— Por Mithras! — exclamei. Era uma imprecação que eu cultivava na época, tendo ouvido Ambrosius usá-la. — O que é que ele está fazendo? Algum assassinato? Ao dizer essa palavra ouviu-se um berro. Não um berro de dor, mas, pior, o grito de um homem morto de medo. Pensei que o grito contivesse uma palavra, como se o terror tivesse forma, mas não era nenhuma palavra que eu conhecesse. O grito cresceu intoleravelmente, como se fosse estourá-lo, e foi então cortado de uma só vez, como se tivesse sido contido por um golpe na garganta. No silêncio tenebroso que se seguiu ouviu-se um eco débil, na respiração de Ulfin. Cadal parou conforme se voltara, uma mão empunhando a espada, a outra segurando o freio de Aster. Virei a cabeça da égua e dei-lhe com as rédeas no pescoço. Ela partiu para a frente quase me desequilibrando. Mergulhou sob os pinheiros na direção da trilha. Deiteime no seu pescoço à medida que os galhos passavam rente, meti a mão nos arreios e agarrei-me como um carrapato. Nem. Cadal nem o menino se mexeram ou emitiram qualquer som. A égua desceu o barranco aos tropeções, e quando alcançamos" a trilha vi, tão inevitavelmente que não me surpreendi — e nem mesmo refleti — uma outra trilha, estreita e coberta de mato, saindo para o lado exatamente oposto ao pinheiral. Puxei a égua pela boca e quando ela relutou, tentando tomar a trilha mais larga para casa, bati-lhe outra vez. Ela inclinou as orelhas para trás e seguiu pela nova trilha, a galope. Esta dava voltas e mais voltas, fazendo com que seu passo afrouxasse, quase imediatamente, diminuindo para um meio-galope pesado. Era a direção de onde viera aquele som horrível. Mesmo a luz das estrelas, tornava-se claro que alguém estivera por ali recentemente. A trilha era tão pouco usada que a grama de inverno e as urzes quase a escondiam, mas alguém — ou algo — abrira caminho por ali. O chão era tão macio que mesmo um cavalo a galope fazia pouco barulho. Apurei os ouvidos para ver se Cadal me seguia, mas nada ouvi. Só então me ocorreu que os dois, tanto ele quanto o menino, deviam ter pensado que, aterrorizado pelo grito, eu correra para casa, conforme recomendara Cadal. Fiz Rufa continuar a passo. Diminuiu a velocidade de boa vontade, a cabeça erguida, as orelhas em pé. Ela estremecia; também ouvira o grito. Via-se, trezentos passos à frente, uma clareira entre as árvores, tão indistinta que pensei marcar o fim da floresta. Cauteloso, aproximei-me dela, mas nada se movia contra o céu, para além dela. Então, tão baixinho, que tive de apurar os ouvidos para me certificar de que não era o mar nem o vento, ouvi cantos. Minha pele formigava. Sabia agora onde estava Belasius e por que Ulfin demonstrara

tanto medo. E sabia por que Belasius dissera: "Não saiam da estrada e estejam em casa antes do escurecer." Endireitei-me na sela. O calor corria pela minha pele em pequenas ondas, como rajadinhas de vento na superfície da água. Minha respiração era curta e ofegante. Por um momento pus-me a imaginar se seria resultado do medo e então vi que era ainda excitação. Parei a égua e desci silenciosamente da sela. Levei-a a uns três passos para o abrigo da floresta, amarrei as rédeas num galho, e deixei-a ali. Meu pé doeu quando o pousei no chão, mas as pontadas eram toleráveis, e logo me esqueci delas, ao coxear, ligeiro, na direção dos cantos e do céu mais claro.

9 Eu ESTAVA CERTO ao pensar que o mar se encontrava próximo. A floresta terminava numa extensão de água tão fechada que pensei a princípio tratar-se de um grande lago, até que senti o cheiro de sal e vi, na praia estreita, a mancha escura das algas marinhas. A floresta acabava abruptamente num barranco alto, que a maré corroia ano após ano, deixando as raízes expostas em meio ao barro da ponta de terra. A praia estreita era formada principalmente de cascalho, mas aqui e ali apareciam nesgas de areia clara e acinzentada, leques brilhantes que se espalhavam como samambaias onde a água rasa corria para o mar. A baía era tão calma que parecia que a geada das semanas anteriores a tivesse mantido congelada; então, uma linha pálida na superfície escura denunciava a abertura entre os promontórios distantes, onde o mar embranquecia. Para a direita — o sul — a floresta negra transformava-se em serra, enquanto que para o norte, onde a terra era mais plana, grandes árvores ofereciam abrigo. Um porto perfeito, pensar-se-ia, até se ver como era raso, como as pedras e rochedos emergiam escuros da água na maré baixa, brilhantes de algas à luz das estrelas. No meio da baía, tão ao centro que a princípio pensei ter sido construída pelo homem, havia uma ilha, ou antes, o que deveria ser uma ilha na maré alta, mas que se apresentava agora como uma península; uma terra ovalada, ligada à praia por uma caminho de pedras, sem dúvida feito pelo homem e que a unia à terra firme como um cordão umbilical. Numa das enseadas, a mais rasa, formada pelo caminho de cascalho e a praia, algumas embarcações pequenas - botes de couro, — assemelhavam-se a focas. Ali, rente à baia, surgia novamente a neblina caindo por entre os galhos como redes de pesca penduradas a secar. Na superfície macia água, ela flutuava, dispersava-se e esfiapava-se até desaparecer totalmente, para tornar-se espessa mais adiante, e esfumaçar lentamente sobre a água. Tão densamente envolvia a base da ilha que esta parecia flutuar em meio a uma nuvem e as estrelas, no alto, refletindo a luz acinzentada da névoa, destacavam a ilha, com nitidez. Esta lembrava mais um ovo do que uma elipse, estreita junto ao istmo, alargando-se para o fundo, onde se erguia uma pequena colina de formato tão regular quanto uma colméia. No sopé havia um círculo de pedras aprumadas, círculo esse interrompido apenas no ponto diretamente à minha frente por uma grande abertura à guisa de portão, de onde saía um caminho ladeado dessas pedras e que vinha terminar na trilha elevada de cascalho. Não havia ruído nem movimento. Não fora pelas formas desbotadas dos barcos na praia, eu teria pensado que os gritos e os cantos eram produto da minha imaginação. Permaneci parado na orla da floresta, o braço esquerdo passado por um tronco de freixo, o

peso no pé direito, observando com olhos tão completamente ajustados à escuridão da floresta que a ilha iluminada pela névoa parecia clara como o dia. Do sopé da colina, na extremidade do caminho central, surgiu de súbito uma tocha. Iluminou por momentos uma abertura na parte inferior da colina, recortando com nitidez o archoteiro, um vulto de vestes brancas. Vi então que o que eu tomara por bancos de nevoeiro à sombra dos cromlechs, eram grupos de figuras imóveis, também vestidas de branco. Quando a tocha foi erguida, recomeçaram outra vez os cantos baixinho, num ritmo livre e errante que me era desconhecido. Então, archote e archoteiro mergulharam lentamente no chão e compreendi que havia uma estrada subterrânea e que ele descia um lance de escadas rumo ao coração da colina. Os outros precipitaram-se atrás dele, em grupos que se amontoavam em torno da entrada e desapareciam como a fumaça sugada por uma porta de forno. Os cantos continuavam, mas tão indistintos e abafados que não passavam de um zumbido de abelhas numa colméia de inverno. Não havia música, apenas o ritmo que decrescia para uma mera pulsação no ar, batidas de som, mais sentidas que ouvidas, e que pouco a pouco apertavam e aceleravam até baterem rápidas e altas e com elas o meu sangue... De repente pararam. Fez-se uma pausa de quietude total, mas uma quietude tão pesada que senti um nó na garganta e um inchaço de tensão. Descobri que deixara as árvores e encontrava-me à vista sobre a turfa do barranco, a entorse esquecida, os pés afastados e firmados no chão, como se meu corpo tivesse criado raízes e através delas buscasse extrair vida da terra como as árvores extraem a seiva. E, como muda de árvore crescendo e subindo, a excitação em mim crescia e se expandia, originando-se nas profundezas da ilha, correndo pelo cordão umbilical de cascalho e eclodindo na minha carne e no meu espírito de tal modo que, quando finalmente ouvi o grito, foi como se este tivesse partido do meu próprio corpo. Um grito diferente desta vez, fino e agudo que parecia significar qualquer coisa, triunfo, rendição ou dor. Um grito mortal, desta vez não da vítima, mas do assassino. E a seguir o silêncio. A noite estava parada e quieta. A ilha era uma colméia selada, encerrando no seu interior o que quer que andasse e zumbisse. Então o líder — presumo que fosse ele, embora desta feita o archote estivesse apagado — apareceu subitamente na entrada como um fantasma, e subiu os degraus. O resto acompanhava-o, movendo-se não como pessoas numa procissão, mas lenta e suavemente em grupos que se separavam e se reuniam formando um padrão, como numa dança, até que novamente se separaram em duas filas ao lado dos cromlechs. Mais uma vez, imobilidade completa. Então o líder ergueu os braços. Como se a um sinal, branca e brilhante como a lâmina de uma faca, apareceu uma ponta de lua no topo

da colina. O líder gritou, e este grito, o terceiro, era decerto de saudação triunfante, e estendeu os braços para o alto como se oferecesse o que trazia entre as mãos. A multidão respondeu-lhe, canto e contracanto. E, como a lua se destacasse da colina, o sacerdote abaixou os braços e voltou-se. O que ele oferecera à deusa, oferecia agora aos adoradores. O grupo aproximou-se. Eu estivera tão absorto pela cerimônia no meio da ilha que não reparara na praia nem percebera que a névoa subira e toldava agora a própria avenida. Meus olhos, esforçando-se na escuridão, viam as formas brancas das pessoas como parte da neblina que se aglutinava e se dispersava, formando torvelinhos brancos aqui e ali. Daí a pouco, compreendi o que realmente acontecia: a aglomeração desfazia-se e as pessoas, em grupos de duas e três, desciam silenciosamente a avenida, entrando e saindo das sombras que a lua em ascensão pintava entre as pedras. Dirigiam-se aos botes. Não fazia idéia de quanto tempo se passara, mas quando dei por mim estava entorpecido e onde a capa escorregara eu estava molhado de neblina. Sacudi-me como um cachorro, recuando para o abrigo das árvores. A excitação escoara-se de mim, tanto do espírito como do corpo, numa onda quente que desceu pelas minhas as. E senti-me vazio e envergonhado. Vagamente eu sabia que isso era algo novo; essa não era a força que eu aprendera a receber e a cultivar, e essa sensação de vazio tampouco era conseqüência do poder. Este me deixara leve, liberto e afiado como uma navalha; agora eu me sentia como um pote lambido, ainda pegajoso, recendendo ao que contivera. Curvei-me, com os músculos enrijecidos, e arranquei um punhado de relva úmida e clara para limpar-me; esfregando as mãos e recolhendo gotas de orvalho da turfa, lavei o rosto. A água cheirava a folhas e à própria umidade do ar e fez-me pensar em Galapas, na fonte sagrada e na longa caneca de chifre. Enxuguei as mãos no interior da capa, puxei-a para mim e voltei ao meu posto junto ao freixo. A baía pontilhava-se de barcos que se retiravam. A ilha se esvaziara, exceto pela figura alta e branca que descia agora diretamente pelo centro do caminho. A névoa ocultava-o, revelava-o e ocultava-o outra vez. Ele não se dirigia a nenhum barco; parecia vir direto ao caminho de cascalho, mas, ao alcançar o fim da avenida, parou à sombra da última pedra e desapareceu. Esperei, pouco sentindo a não ser cansaço, uma vontade de beber água fresca e de estar aconchegado no meu quarto sossegado e quente. Não havia magia no ar; a noite estava desenxavida como vinho velho. Num minuto, sem dúvida alguma, vi-o ao luar, emergindo no caminho de cascalho. Usava agora uma roupa escura. Só se desfizera da veste branca. Trazia-a sobre o braço. O último dos barcos era um pontinho diminuto na escuridão. O homem solitário

atravessou rapidamente o caminho de cascalho. Saí da proteção das árvores e desci para a praia ao seu encontro.

10 BELASIUS VIU-ME antes que eu tivesse deixado por completo o arvoredo. Não fez sinal algum, a não ser desviar-se para o lado, ao fim do caminho de cascalho. Veio em minha direção, sem pressa, e parou, examinando-me. — Ah! — Foi sua única saudação, dita sem mostras de surpresa. — Eu devia ter adivinhado. Há quanto tempo esta aí? — Nem sei. O tempo passou depressa. Eu estava tão interessado... Ele ficou calado. O luar, claro agora, caía obliquamente sobre o lado direito do seu rosto. Eu não conseguia ver-lhe os olhos, ocultos pelos longos cílios negros, mas havia algo calmo, quase sono-lento, na sua voz e atitude. Eu sentira o mesmo, depois daquele grito na floresta. A flecha acertara, e o arco afrouxara. Ele ignorou minha provocação e perguntou simplesmente: — Que o trouxe aqui? — Vim ao ouvir o grito. — Ah! — disse ele outra vez. — Veio de onde? — Do pinheiral, onde deixou seu cavalo. — Por que veio para estes lados? Disse-lhe para não sair da estrada. — Eu sei, mas queria galopar, então saí para a trilha principal e sofri um acidente com Aster; ele torceu a pata dianteira, e tivemos que trazê-lo pela mão. Era lento e estávamos atrasados, daí tomamos um atalho. — Sei. E onde está Cadal? Deve ter pensado que corri para casa, e provavelmente seguiu atrás de mim. De qualquer forma não me acompanhou até aqui. — Foi sensato — disse Belasius. Sua voz era calma, quase sonolenta, mas de uma sonolência felina, aveludada, que ocultava a ponta brilhante de uma adaga. — Apesar do que ouviu, não lhe ocorreu voltar para casa? — Naturalmente que não. Percebi seus olhos brilharem por um segundo sob os longos cílios. — Naturalmente que não? — Precisava saber o que estava acontecendo. — Ah! Sabia que eu estaria aqui?

— Não até que vi Ulfin e os cavalos. E tampouco por você me ter dito para não sair da estrada. Mas eu... digamos que sabia que havia alguma coisa na floresta esta noite e tinha que descobrir o que era! Contemplou-me por mais algum tempo. Eu estivera certo ao pensar que ele não demonstraria surpresa. Então, acenou com a cabeça. — Vamos, está frio e quero minha capa. — Ao segui-lo eu pelo cascalho que rangia, acrescentou por sobre os ombros: — Suponho que Ulfin ainda esteja lá! — Creio que sim. Você o conserva eficientemente apavorado. — Ele não precisa ter receio enquanto se mantiver afastado e nada vir. — Então é verdade que ele não sabe? — O que quer que saiba ou não saiba — respondeu-me com indiferença — ele tem o bom senso de se calar. Prometi-lhe que, se me obedecer nessas coisas sem discutir, eu o libertarei em tempo de escapar. — Escapar? De quê? — Da morte, quando eu morrer. É praxe enviar os criados dos sacerdotes com eles. Caminhávamos lado a lado pela trilha. Olhei para ele. Usava uma roupa preta mais elegante do que qualquer outra que eu tivesse visto em casa, mesmo as de Camlach; seu cinto era de couro finamente trabalhado, provavelmente italiano, e trazia um grande broche redondo, onde se refletia ao luar um desenho de círculos e serpentes entrelaçadas em ouro. Ele parecia — mesmo sob a sombra dos acontecimentos da noite — romano, civilizado, inteligente. Perguntei-lhe: — Perdoe-me, Belasius, mas essa coisa não desapareceu com os egípcios? Mesmo em Gales nós a consideraríamos antiquada. — Talvez. Mas poderíamos dizer que a própria deusa é antiquada e gosta de ser cultuada da forma que conhece. E essa forma é quase tão velha quanto ela, mais antiga que a memória do homem, mesmo em cantos ou pedras. Muito antes de os touros serem imolados na Pérsia, muito antes de chegarem a Creta e mesmo antes que os deuses do céu saíssem da África e estas pedras fossem erguidas em sua homenagem, a deusa estava aqui, na gruta sagrada. Agora a floresta nos é vedada, e cultuamo-la onde podemos; mas onde quer que a deusa esteja, seja em pedra, árvore ou caverna, há um bosque chamado Nemet e lá fazemos nossas oferendas. Vejo que me entende. — Muito bem. Aprendi essas coisas em Gales. Mas já se passaram alguns séculos desde que se fazia o tipo de oferenda que você fez esta noite. Sua voz era suave como óleo. — Ele foi morto por sacrilégio. Não lhe ensinaram? — Parou de repente e a mão caiu-

lhe sobre o quadril. O tom mudou. — Aquele é o cavalo, de Cadal. — Sua cabeça girava como a de um cão de caça. — Fui eu que o trouxe — disse eu. — Contei-lhe que meu pônei estava manco. Cadal deve ter ido para casa. Suponho que tenha levado um dos seus. Desamarrei a égua e trouxe-a para a claridade da trilha aberta. Ele voltava a descansar a adaga. Prosseguimos caminhando, a égua a nos acompanhar, com o focinho no meu ombro. Meu pé quase parará de doer. — Então morte a Cadal também? Não é questão de sacrilégio? As cerimônias são assim tão secretas? É por ser mistério, Belasius, ou por ser ilegal o que fazem? — É tanto secreto quanto ilegal. Reunimo-nos onde podemos. Esta noite tivemos que usar a ilha; é bastante segura — normalmente ninguém se aproxima dela, numa noite de equinócio. Mas, se isto chegasse aos ouvidos de Budec, haveria dificuldades. O homem que matamos esta noite é um dos homens do Rei; há oito dias que estava preso aqui e os batedores de Budec têm estado à sua procura. Mas era preciso que morresse. — Vão encontrá-lo agora? — Oh, sim, bem distante daqui, na floresta. Pensarão que um porco selvagem o estraçalhou. — Novamente aquele olhar de esguelha. — Poder-se-ia dizer que morreu rápido no fim. Nos velhos tempos, seu umbigo seria aberto e o fariam girar em torno da árvore sagrada até que suas entranhas a tivessem envolvido como a lã de um fuso. — E Ambrosius sabe disso? — Ambrosius também é homem do Rei. Caminhamos alguns passos em silêncio. — Bem, e o que me vai acontecer, Belasius? — Nada. — Não é sacrilégio espreitar os seus segredos? — Você está bastante seguro — disse ele, seco. — Ambrosius tem um braço longo. Por que olha assim? Sacudi a cabeça. Não o conseguiria expressar em palavras nem para mim mesmo. Era como se estivesse nu num campo de batalha e de repente alguém me colocasse um escudo na mão. Ele perguntou: — Você não teve medo? — Não. — Pela Deusa! Acho que é verdade. Ambrosius tinha razão, você tem coragem.

— Se tenho, não é exatamente da espécie que mereça admiração. Eu costumava pensar que era melhor que os outros meninos, porque não conseguia partilhar ou entender tantos dos seus temores. Tinha os meus próprios, naturalmente, mas aprendi a guardá-los para mim. Creio que era uma espécie de orgulho. Mas agora começo a compreender por que, mesmo quando o perigo e a morte se encontram abertamente no meu caminho, passo direto por eles. Ele parou. Estávamos quase no pinheiral. — Por quê? — Porque não se destinam a mim. Receio por outros homens, mas nunca por mim mesmo de igual forma. Ainda não. Creio que o que os homens temem é o desconhecido. Temem a dor e a morte, porque podem estar emboscadas em qualquer canto. Mas há vezes em que sei o que se esconde à espera ou — como lhe disse — vejo-o no meio do caminho. E sei onde se encontram a dor e o perigo para mim, e sei que a morte ainda está distante; assim, não preciso temer. Isto não é coragem. Ele disse lentamente: — É. Eu sabia que você possuía vidência. — Só às vezes e à vontade do deus e não à minha. — Eu já falara demais; ele não era homem com quem se compartilhasse os nossos deuses. Falei rápido para mudar o assunto. — Belasius, você precisa ouvir-me. Nada disso é culpa de Ulfin. Ele recusou-se a contarnos o que quer que fosse e ter-me-ia impedido, se pudesse. — Você quer dizer que, se há alguma coisa a pagar, você se oferece para fazê-lo? — Bem, parece-me apenas justo, e afinal de contas posso dar-me a esse luxo. — Ri para ele, seguro por trás do meu escudo invisível. — O que vai ser? Uma religião antiquada como a sua deve ter algumas penalidades menores de reserva? Morrerei de cãibras durante o sono de hoje à noite, ou serei estraçalhado por um porco selvagem na próxima vez que cavalgar pela floresta sem o meu cão preto? Ele sorriu pela primeira vez. — Não pense que vai escapar tão facilmente. Tenho uma utilidade para essa sua Vidência, pode estar certo. Ambrosius não é o único que se utiliza dos homens pelo que valem, eu também pretendo usá-lo. Você me disse que foi trazido aqui esta noite; foi própria Deusa que o conduziu e para a Deusa você irá. — Passou o braço pelos meus ombros. — Você vai pagar pelo serviço desta noite, Merlin Emrys, numa moeda que a agrade. A Deusa vai caçá-lo como faz com todos os homens que espreitam seus mistérios — mas não para destruí-lo. Oh, não; não Acteon, meu eficiente sábio, mas Endymion. Ela o envolverá no seu abraço. Em outras palavras, você vai estudar até que eu possa levá-lo

ao santuário para apresentá-lo. Eu gostaria de ter respondido: — Nem que você enrolasse meus intestinos em todas as árvores da floresta, mas mantive-me calado. Tome o poder onde lhe é oferecido, dissera ele, e — recordando minha vigília junto ao freixo — havia um certo tipo de poder ali. Veríamos. Desvencilhei-me, mas com delicadeza, do braço que me envolvia os ombros e rumei para o pinheiral. Se Ulfin aparentara medo antes, agora estava quase mudo de terror ao me ver com o seu amo e perceber onde eu estivera. — My lord... pensei que ele tivesse ido para casa... Verdade, my lord, Cadal disse... — Dê-me a capa — disse Belasius — e ponha isto na mochila. Atirou a veste branca que carregava. Ela caiu molemente, abrindo-se, junto à árvore onde Aster estava amarrado e, ao cair, o pônei empinou e resfolegou. A princípio pensei que a causa fosse aquele pano branco fantasmagórico aos seus pés, mas vi então, mesmo disfarçados pela escuridão do pinheiral, as manchas e respingos, e senti o cheiro de fumaça e sangue fresco mesmo de onde eu estava. Ulfin ofereceu a capa mecanicamente. — My lord... — A sua respiração era entrecortada pelo medo e o esforço de segurar o cavalo irrequieto. — Cadal levou o cavalo carga. Pensamos que my lord Merlin tivesse voltado para a cidade, verdade, senhor, eu próprio estava certo de que ele seguira naquela direção. Não lhe contei nada. Juro... — Há uma mochila na égua de Cadal. Ponha-a lá. — Belasius aceitou a capa e prendeu-a, estendendo a mão para as rédeas. — Deme-as. O menino obedeceu, tentando, não apenas desculpar-se, mas me medir a intensidade da raiva de Belasius. — My lord, por favor me acredite, eu nada disse. Juro por todos os deuses que existem. Belasius ignorou-o. Eu sabia o quanto ele podia ser cruel; de fato, em todo o tempo que o conheci, nunca sequer o vi pensar na ansiedade ou na dor dos outros: mais exatamente, nunca lhe ocorreu que esses sentimentos pudessem existir, mesmo num homem livre. Ulfin deveria ter-lhe parecido naquele momento menos real que o cavalo que segurava. Montou com desenvoltura, dizendo secamente: — Para trás. — E para mim: — Pode controlar a égua a galope? Precisamos estar de volta antes de Cadal dar por sua falta e pôr o palácio em polvorosa. — Posso tentar. E Ulfin? — O que tem ele? Levará o pônei para casa, naturalmente. Deu meia-volta ao cavalo e saiu cavalgando entre os ramos dos pinheiros. Ulfin já correra para embrulhar as roupas sujas de sangue, e metê-las na mochila da égua. Corria

agora para oferecer-me seu ombro e de alguma forma, entre os dois, consegui trepar na sela e acomodar-me. O menino recuou, silencioso, mas senti que tremia. Suponho que para um escravo era normal ter medo. Ocorreu-me que sentia medo até mesmo de levar o meu pônei para casa sozinho, pela floresta. Firmei-me nas rédeas por um momento e curvei-me para ele. — Ulfin, ele não está zangado com você; nada acontecerá. Juro. Não precisa ter medo. — O senhor... viu alguma coisa, my lord? — Nadinha. — Quanto ao que interessava, essa era a verdade. Encarei-o, sério. — Luzes na escuridão — disse eu — e uma lua inocente. Mas o que quer que pudesse ter visto, Ulfin, não faria diferença. Vou ser iniciado. Está compreendendo por que é que ele não está aborrecido? É só isso. Aqui, tome isto. Desembainhei minha adaga e atirei-a de ponta nas agulhas dos pinheiros. — Se o deixa mais tranqüilo... — disse eu — mas não vai ter necessidade dela. Pode ter certeza. Eu sei. Leve o meu pônei com cuidado, sim? Cutuquei a égua nas costelas e fui ao encontro de Belasius. Ele estava à minha espera — o que quer dizer que seguia num meio galope lento, que acelerou para um galope total quando o alcancei. A égua castanha corria atrás dele. Segurei-me na alça do seu pescoço, agarrando-me como um ouriço. A trilha era bastante desimpedida para permitir-nos vê-la com segurança, à claridade do luar. Cortava caminho pela floresta, morro acima, até uma crista de onde se podia ver momentaneamente o brilho das luzes da cidade. Então descia outra vez e em pouco tempo saíamos da floresta, para as planícies salgadas que beiram o mar. Belasius não afrouxou nem falou. Eu agarrava-me e observava a trilha por sobre o pescoço da égua e imaginava se encontraríamos Cadal voltando à minha procura, com uma escolta ou sozinho. Atravessamos um riacho, que cobria as patas dos cavalos, passamos por uma trilha, batida ao longo da turfa plana, e viramos à direita, em direção à estrada principal. Sabia onde estávamos agora; no caminho de ida eu reparara nessa trilha, que saía pela orla da floresta pouco antes da ponte. Em poucos minutos alcançaríamos a ponte e a estrada principal. Belasius afrouxou o passo do cavalo e espiou por sobre o ombro. A égua emparelhou, e ele, erguendo a mão, parou. Os cavalos foram-se refreando até caminharem a passo.

— Ouça. Cavalos. Uma porção deles vindo a trote rápido pela estrada pavimentada. Rumo à cidade. Uma voz de homem ergueu-se por um momento. Pela ponte surgia uma nuvem de archotes balouçantes, e vimo-los, então, uma tropa cavalgando enfileirada. À luz dos archotes distinguia-se o dragão vermelho no estandarte. A mão de Belasius desceu com força sobre as minhas rédeas e os nossos cavalos pararam. — Homens de Ambrosius — disse ele, ou pelo menos foi o que começou a dizer, quando, claro como um canto de galo, minha égua relinchou e um cavalo da tropa respondeu. Alguém gritou uma ordem. A tropa fez alto. Outra ordem e os cavalos partiram a galope na nossa direção. Ouvi Belasius praguejar entre dentes, soltando minhas rédeas. — Aqui nos separamos. Agüente-se firme agora, e cuidado com a língua. Nem mesmo o braço de Ambrosius poderá protegê-lo de uma maldição. Chicoteou minha égua nas ancas. Ela pulou à frente, quase me desequilibrando. Eu estava ocupado demais para observá-lo, mas às nossas costas ouvi um espadanar e uma corrida quando o cavalo preto transpôs o riacho e desapareceu na floresta, segundos antes de os soldados me encontrarem e fazerem a volta para escoltarem-me até o seu oficial. O potro cinzento inquietava-se ao brilho dos archotes sob o estandarte. Um dos meus acompanhantes apanhou o freio da égua e levou-me à frente. Fez continência. — Só há um, senhor. Não está armado. O oficial afastou seu visor. Olhos azuis arregalaram-se e a inesquecível voz de Uther exclamou: — Tinha de ser você, naturalmente. Bem, Merlin, o bastardo, o que está fazendo aqui sozinho, e onde esteve?

11 NÃO RESPONDI DE IMEDIATO. Não sabia quanto deveria contar. Para qualquer oficial eu poderia ter dito uma meia-verdade fácil e rápida, mas Uther provavelmente me faria passar um mau pedaço, a mim e a qualquer pessoa que tivesse estado presente a uma reunião tanto secreta quanto ilegal; Uther não era "qualquer oficial", era perigoso. Não que houvesse alguma razão para proteger Belasius, mas eu não devia informações ou explicações a ninguém a não ser Ambrosius. Em qualquer caso, desviar-me da raiva de Uther era coisa que me ocorria naturalmente. Então fitei-o nos olhos com o que eu esperava fosse uma expressão de franqueza. — Meu pônei ficou manco, senhor, por isso deixei-o com o meu criado, para que o conduzisse à casa, e apanhei seu cavalo para regressar. — Quando ele abriu a boca para falar, ergui o escudo invisível que Belasius me pusera nas mãos. — Geralmente seu irmão manda buscar-me depois da ceia, e eu não quis fazê-lo esperar. Suas sobrancelhas cerraram-se à menção de Ambrosius, mas tudo o que ele disse foi: — Por que aquele caminho a essa hora? Por que não pela estrada? — Já havíamos penetrado um tanto pela floresta quando Aster se machucou. Viramos para leste na encruzilhada da trilha madeireira, e havia um caminho que saía para o sul, que nos pareceu mais curto, de modo que o tomamos. O luar facilitou-nos a visibilidade. — Que caminho era esse? — Não conheço a floresta, senhor. Subia uma colina e passava por um vau cerca de uma milha rio abaixo. Ele me fitou por um momento franzindo o cenho. — Onde deixou seu criado? — Já na segunda trilha. Queríamos ter certeza do caminho antes que ele me deixasse prosseguir sozinho. A essa hora deverá estar subindo a colina, ao que suponho. Eu rezava, confusa mas sinceramente, para o deus que pudesse estar-me ouvindo, para que Cadal não estivesse nesse momento voltando da cidade à minha procura. Uther encarou-me sentado no cavalo irrequieto, como se este não existisse. Era a primeira vez que eu percebia como se parecia com o irmão. E pela primeira vez também reconhecia nele algo como uma força e compreendia, jovem como era, o que Ambrosius me dissera a propósito do seu brilhantismo como oficial. Ele sabia julgar homens. Eu sentia que me traspassava com o olhar, farejando uma mentira, não sabendo onde ou por quê, mas imaginando. E decidido a descobrir...

Por uma vez ele falou cortesmente, sem calor, sem exaltação e até mesmo carinhoso: — Você está mentindo, não está? Por quê? — É verdade, my lord. Se der uma olhada no meu pônei quando chegar... — Oh, sim, isto é verdade. Não tenho dúvidas de que o encontrarei manco. E, se mandar meus homens de volta pela trilha, eles encontrarão Cadal conduzindo-o para casa. Mas o que quero saber... Eu disse rápido: — Não Cadal, my lord; Ulfin. Cadal tinha outras tarefas e Belasius mandou Ulfin comigo. — Dois da mesma laia? — As palavras eram desdenhosas. — My lord? Sua voz quebrou subitamente, de raiva: — Não faça jogo de palavras comigo seu pederastazinho. Você está mentindo a respeito de alguma coisa e quero saber o que é. Posso farejar uma mentira a uma milha de distância. — Então olhou por cima de mim e a voz mudou. — O que é isso na mochila? — Um aceno de cabeça para um dos soldados que me ladearam. Uma ponta da roupa de Belasius estava de fora. O homem meteu as mãos na mochila e puxou-a para fora. No branco sujo e amarrotado as manchas destacavam-se escuras, sem deixar dúvidas. Eu sentia o cheiro de sangue, apesar da resina borbulhante das tochas. Atrás de Uther, os cavalos resfolegavam e agitavam as cabeças, farejando, e os homens entreolharam-se. Vi os archoteiros olharem-me de esguelha e o guarda ao meu lado murmurar alguma coisa entre dentes. Uther exclamou com violência: — Por todos os deuses, então era isso! Um deles, por Mithras! Eu deveria ter adivinhado, posso farejar a fumaça sagrada em você, de onde estou! Muito bem, bastardo, você, que é tão livre com o nome do meu irmão e tão alto no seu conceito, veremos o que ele vai pensar disso. O que tem a dizer em sua defesa, agora? Não adianta negar, adianta? Ergui a cabeça. Sentado na enorme égua, eu podia encará-lo quase ao nível dos olhos. — Negar? Nego que tenha violado a lei ou feito qualquer coisa que o Conde não aprove, e estas são as únicas duas coisas que importam, my lord Uther. Explicarei a ele. — Por Deus, que você explicará! Então Ulfin levou-o lá? Respondi, brusco: — Ulfin nada tem a ver com isso. Eu já o deixara. De qualquer forma, ele é um escravo e faz o que lhe mando.

Ele esporeou o cavalo com violência para junto da égua. Curvou-se para a frente, agarrando as dobras da minha capa na altura do meu pescoço e apertando-as até quase levantar-me da sela. Seu rosto avançou para o meu, o joelho coberto de metal magoou-me a perna, enquanto os cavalos dançavam encostando-se lado a lado. — E você faz o que eu mando, ouviu? O que quer que você seja do meu irmão, vai-me obedecer também. — Apertou-me ainda mais, sacudindo-me. — Entendeu, Merlin Emrys? Assenti. Ele praguejou, quando meu broche o arranhou, e largou-me. Escorria um filete de sangue na sua mão. Vi que olhava meu broche. Estalou os dedos para o archoteiro e o homem acercou-se, erguendo a chama mais alto. — Ele deu-lhe isso para usar? O dragão vermelho? Então parou quando o seu olhar bateu no meu rosto e aí se fixou, encarando-me, esbugalhando-se. O azul intenso parecia faiscar. O potro cinzento dançou para o lado e ele refreou-o, fazendo-o espumar. — Merlin Emrys... — Repetiu ele, desta vez para si mesmo, tão baixinho, que mal ouvi. Então, de repente, soltou uma gargalhada, divertida, alegre e gostosa, que não se parecia com coisa alguma que eu tivesse ouvido antes. — Bem, Merlin Emrys, ainda terá que prestar contas a ele pelo que andou fazendo e por onde esteve esta noite! — Deu meia-volta ao cavalo, dirigindo-se aos seus homens, por cima do ombro. — Tragam-no conosco e cuidem para que não caia. Parece que meu irmão gosta muito dele. O cavalo cinzento pulou ao ser esporeado, e a tropa acompanhou-o. Meus captores, ainda a segurar o freio da égua castanha, avançaram também, mantendo-me entre eles. As vestes de druida foram largadas, pisoteadas no chão, por onde a tropa passara. Eu não sabia se Belasius a veria e entenderia o aviso. Então esqueci-o. Ainda teria de enfrentar Ambrosius. Cadal estava no meu quarto. Exclamei, aliviado: — Bem, graças aos deuses, você não voltou para buscar-me. Fui apanhado pelo grupo de Uther e ele está furioso porque sabe aonde fui. — Eu sei — disse Cadal, sombrio. — Eu vi. — O que quer dizer? — Voltei para procurá-lo. Estava seguro de que você tivera o bom senso de correr para

casa quando ouviu aquele... barulho, de modo que segui no seu encalço. Quando não o encontrei no caminho, pensei que tivesse desenvolvido boa velocidade com a égua... o chão chegava a fumegar sob mim, posso garantir-lhe! Então, quando... — Você adivinhou o que estava acontecendo? Onde estava Belasius? — É. — Ele virou a cabeça para cuspir no chão, controlou-se e fez o sinal contra o mau-olhado. — Bem, quando voltei aqui e não vi sinal de você, compreendi que devia ter descido direto para ver o que acontecia. Tolinho despótico! Podia ter sido morto, metendose com essa gente. — E você também. Mas voltou. — Que mais podia fazer? E devia ter ouvido os nomes que lhe chamei também. Pestinha incômoda foi o menor deles. Bem, eu já estava a meia milha fora da cidade quando vi que eles vinham e afastei-me para o lado para esperar que passassem. Sabe aquele velho posto de trocas em ruínas? Eu estava lá. Observei-os passar e descobri você atrás, sob guarda. Então, percebi que ele devia saber. Segui-os de volta à cidade o mais próximo que ousei, e cortei pelas ruas laterais direto para casa. Acabei de chegar. Ele descobriu tudo? Assenti, começando a soltar a capa. — Então vai haver o diabo, não tenha dúvida — disse Cadal. — Como foi que descobriu? — Belasius mandou colocar a veste branca dele na minha mochila e eles a encontraram. Pensaram que era minha. — Sorri. — Se a tivessem experimentado em mim, seriam obrigados a pensar novamente. Mas isto não lhes ocorreu. Largaram-na na lama e passaram por cima. — E fizeram bem. — Ele abaixara-se sobre um joelho para desamarrar minhas sandálias. Parou com uma sandália na mão. — Você time dizendo que Belasius o viu? Falou com você? — Sim. Esperei por ele e caminhamos juntos até os cavalos. Ulfin vem trazendo Aster, por falar nisso. Ele ignorou a informação. Seus olhos estavam arregalados e achei que ele tinha perdido a cor. — Uther não viu Belasius — disse eu. — Belasius desviou-se a tempo. Sabia que eles tinham ouvido só um cavalo, de modo que mandou-me seguir ao encontro deles. Caso contrário, suponho que teriam vindo ao nosso encalço. Deve ter esquecido que eu trazia a roupa ou então contou com a possibilidade de que não fosse encontrada. Qualquer outro que não Uther nem se daria ao trabalho de olhar.

— Você nunca deveria ter-se aproximado de Belasius. É pior do que eu pensei. Aqui, deixe-me fazer isso. Suas mãos estão frias. — Retirou o broche do dragão e tirou minha capa. — Se quiser olhar, olhe. Ele é uma bisca ruim, todos eles são, e ele é o pior. — Você sabia de tudo sobre ele? — Mesmo que não soubesse, teria sido fácil adivinhar. Está bem de acordo com a pessoa, se me pergunta. Mas o que eu quis dizer foi que eles são gente ruim de se lidar. — Bem, ele é o arquidruida ou pelo menos o chefe da seita, portanto deve ter influência. Não fique tão preocupado, Cadal, duvido de que ele me vá fazer mal ou deixar que alguém o faça. — Ele ameaçou você? Ri. — Sim. Com uma maldição. — Dizem que essas coisas pegam. Dizem que os druidas podem atirar uma faca que o perseguirá dias seguidos, e você só percebe um zumbido de ar nas suas costas antes de ela o atingir. — Dizem toda a espécie de coisas. Cadal, tenho outra túnica decente? Aquela melhor já voltou da limpeza? E quero um banho antes de ir ver o Conde. Ele me olhou de lado enquanto apanhava uma outra túnica na arca de roupas. — Uther deve ter ido direto a ele. Sabe? Eu ri. — Naturalmente. Previno-o de que vou contar a verdade a Ambrosius. — Toda? — Toda. — Bem, suponho que é o melhor — comentou ele. — Se alguém pode protegê-lo... — Não é isso. É simplesmente porque ele deve saber. Tem o direito. Além do mais, o que tenho a esconder? Ele disse, inquieto: — Eu estava pensando na maldição... Mesmo Ambrosius talvez não possa protegê-lo disso. — Oh, isto para a maldição. — Fiz um gesto pouco comum nas casas nobres. — Esqueça-a. Nem você, nem eu procedemos mal e recuso-me a mentir para Ambrosius. — Algum dia ainda vou vê-lo apavorado, Merlin.

— Provavelmente. — Você não teve medo nem de Belasius? — Deveria ter? — Interessei-me. — Ele não me fará mal. — Desenganchei o cinto da túnica e atirei-o na cama. Olhei para Cadal. — Você teria medo se conhecesse o seu próprio fim, Cadal? — Sim, pelo cão! Você conhece? — Às vezes, em relances. Às vezes, eu vejo. E isso me enche de medo. Ele ficou parado, olhando para mim, e havia medo no seu rosto. — Qual é, então? — Uma gruta. A gruta de cristal. Às vezes, penso que é a morte, e outras, nascimento, ou um portal de visão, ou o limbo escuro do sono... Não sei dizer. Mas alguma dia saberei. Até então, suponho que não receie muito mais. Irei para a gruta quando o fim chegar, como você... — Como eu o quê? — perguntou ele, rápido. — Que me acontecerá? Sorri. — Eu ia dizer como você chegará à idade avançada. — É mentira — disse ele, brusco. — Vi seus olhos. Quando você tem visões, seus olhos ficam estranhos; já reparei antes. O preto se espalha e fica como que toldado, sonhador... mas não suave, não, todo o seu olhar se torna frio, como o ferro, como você nem soubesse, nem se importasse com o que está acontecendo à sua volta. E fala como se fosse apenas uma voz e não uma pessoa... Ou como se tivesse ido para outro lugar e emprestado seu corpo para alguém falar através dele. Como uma trompa soando soprada para transmitir o som. Oh! Eu sei que só vi umas luas vezes, por instantes, mas é fantástico e me amedronta. — Amedronta-me também, Cadal. — Eu deixara a túnica verde escorregar do corpo para o chão. Ele segurava a roupa de lã cinzenta que eu usava para dormir. Apanhei-a distraidamente e sentei-me à beira da cama, a camisa caindo-me pelos joelhos. Falava mais comigo mesmo do que com Cadal. — Amedronta-me também. Você tem razão, é assim que me sinto, como se fosse uma concha vazia e alguma coisa trabalhasse por meu intermédio. Digo coisas, vejo coisas, penso coisas até o momento que desconheço. Mas você está errado em pensar que não sinto. Magoa-me. Acho que isto deve ser porque não consigo controlar o que fala através de mim... Quero dizer, não sei comandá-lo ainda. Mas saberei, um dia. Tenho certeza disso também. Algum dia comandarei esta parte de mim que sabe e vê, este deus, e terei realmente o poder. Saberei quando o que eu predisser é instinto humano e quando é o reflexo de Deus.

— E quando você falou do meu fim, o que era? Ergui os olhos. Estranho, mas era menos fácil mentir a Cadal do que o fora para Uther. — Mas eu não vi sua morte, Cadal, e a de ninguém, exceto a minha. Eu estava sendo indelicado. Ia dizer: "Assim como você terminará num túmulo estrangeiro algures..." — Sorri. — Eu sei que isso é pior que o inferno para um bretão. Mas acho que acontecerá com você... Isto é, se continuar como meu criado. Seu rosto iluminou-se e ele sorriu. Isto era poder, pensei eu, quando uma palavra minha pode amedrontar assim os homens. Ele disse: — Oh, farei isso mesmo! Mesmo que ele não me tivesse pedido, eu ficaria. Você tem um jeito fácil que torna um prazer cuidar de você. — Tenho mesmo? Pensei que você me achava um tolinho despótico, e uma pestinha ainda por cima! — Aí está, como vê. Nunca teria coragem de dizer isso a ninguém da sua classe, e tudo o que você faz é rir-se, e você é duas vezes real. — Duas vezes real? Mal pode contar meu avô e minha... Parei. O que me fizera parar estava no seu rosto. Ele falara sem refletir, então, ofegante, tentara obrigar as palavras a voltarem para a boca e dá-las por não ditas. Calou-se e ficou ali com a túnica suja nas mãos. Ergui-me lentamente, a camisa esquecida no chão. Não havia necessidade de falar. Eu sabia. Não conseguia imaginar como não percebera antes, no momento em que me encontrava diante de Ambrosius no campo gelado, e ele me encarara à luz dos archotes. Ele soubera então. E uma centena de outros deveriam ter adivinhado. Lembrei-me agora dos olhares de esguelha dos homens, dos sussurros dos oficiais, da deferência dos criados que eu tomara por respeito às ordens de Ambrosius, mas que percebia agora serem uma deferência ao filho de Ambrosius. O quarto estava silencioso como uma gruta. O braseiro tremeluzia e sua luz entrecortava-se, refletindo no espelho de bronze na parede. Olhei para ele. No bronze iluminado, meu corpo despido parecia miúdo e sombreado, uma coisa irreal produzida pelo fogo, as trevas a moverem-se à medida que as chamas se moviam. Mas o rosto estava iluminado, e nos seus planos bem delineados de luz e sombra vi o rosto dele como o vira no seu quarto, quando ele estava sentado junto ao braseiro esperando que me trouxessem. Esperando que eu chegasse para perguntar-me por Niniane. E aqui novamente a Vidência não me ajudara. Os homens que têm a visão de Deus, descobri, são com freqüência humanamente cegos. Perguntei a Cadal: — Toda a gente sabe?

Ele assentiu. Não me perguntou o que eu queria dizer. — Correm rumores. Você se parece muito com ele, às vezes. — Creio que Uther talvez tenha percebido. Ele não sabia antes? — Não. Partiu antes que os boatos se espalhassem. Não foi por isso que se pôs contra você. — Fico satisfeito em ouvir isso. O que foi então? Só porque o deixei impressionado com aquela história da pedra aprumada? — Oh, isso e outras coisas. — Tais como? Cadal respondeu rudemente: — Ele pensou que você era o pederasta do Conde. Ambrosius não gosta muito de mulheres. Não gosta de meninos tampouco, mas uma coisa que Uther não pode compreender é um homem que não esteja entrando e saindo da cama de alguém sete noites por semana. Quando o irmão se preocupou tanto com você, trouxe-o para casa e mandoume atendê-lo e tudo o mais, Uther julgou que isso era o que devia estar acontecendo e não gostou nem um pouquinho. — Sei. Ele disse uma coisa assim hoje à noite, mas pensei que fosse apenas porque perdera as estribeiras. — Se ele se tivesse dado ao trabalho de olhar para você, ou ouvir o que toda a gente dizia, teria sabido bem depressa. — Ele sabe agora. — Afirmei com certeza absoluta e repentina. — Ele viu lá na estrada quando bateu os olhos no broche de dragão que o Conde me deu. Eu nunca pensei nisso, mas naturalmente ele compreendeu que o Conde não iria colocar o escudo real no seu pederasta. Mandou trazer a tocha para mais perto e olhou bem para mim. Acho que viu então. — Um pensamento assaltou-me. — E acho que Belasius sabe. — Oh, sim, — disse Cadal — ele sabe. Por quê? — A maneira como falou... Como se soubesse que não devia ousar tocar-me. Teria sido por isso que tentou apavorar-me com a ameaça da maldição. Ele é bem calculista, não é? Deve ter refletido um bocado, a caminho do pinheiral. Não tinha coragem de me remover do caminho por sacrilégio, mas precisava fazer-me calar de alguma forma. Daí a maldição. E também... — Parei. — E também o quê? — Não fique tão assustado. Foi apenas mais uma garantia para que eu segurasse a língua.

— Pelo amor dos deuses, o quê? Estremeci e, percebendo que ainda me encontrava nu, apanhei a camisa outra vez. — Disse que me levaria com ele ao santuário. Creio que gostaria de me transformar num druida. — Ele disse isso? — Eu já me estava habituando ao sinal de Cadal para espantar o mau-olhado. — O que vai fazer? — Eu irei com ele... uma vez, pelo menos. Não olhe assim, Cadal. Não há uma chance em mil de que eu queira ir mais de uma vez. — Encarei-o sério. — Mas não há nada neste mundo que eu não esteja pronto a ver e aprender, e nenhum deus que eu não esteja pronto a abordar à sua maneira. Disse-lhe que a verdade era a sombra de Deus. Se devo usá-la, preciso saber quem Ele é. Compreende? — Como poderia? De que deus está falando? — Creio que há apenas um. Oh, há deuses em toda a parte, nas montanhas ocas, no vento e no mar, e na própria relva que pisamos e no ar que respiramos, e nas sombras tintas de sangue, onde homens como Belasius esperam por eles. Mas acredito que leva haver um que é o Próprio Deus, como o grande mar, e todos nós, pequenos deuses e homens e tudo o que existe, todos chegamos a Ele, no fim, como rios. — O banho está pronto? Vinte minutos mais tarde, numa túnica azul-escuro presa ao ombro pelo broche de dragão, fui ver meu pai.

12 O SECRETÁRIO ENCONTRAVA-SE no vestíbulo, meticulosamente ocupado em não fazer nada. Do outro lado da cortina, ouvi a voz de Ambrosius, em tom baixo. Os dois guardas à porta pareciam de madeira. Então a cortina afastou-se e Uther saiu. Quando me viu, parou sobre os calcanhares como se fosse falar, mas percebendo o olhar interessado do secretário, prosseguiu com um silvo da capa vermelha, que recendia a cavalos. Sempre se podia dizer onde Uther estivera; parecia absorver odores como uma esponja. Devia ter procurado o irmão antes mesmo de lavar-se, quando chegou. O secretário, cujo nome era Sollius, disse-me: — Talvez seja melhor entrar logo, senhor. Ele está a sua espera. Mal notei o "senhor". Parecia-me algo a que já estivesse acostumado. Entrei. Ele estava de pé junto à mesa, de costas para a porta. Esta encontrava-se juncada de tabuinhas, e sobre uma delas uma pena, como se ele tivesse sido interrompido, quando escrevia. Na mesa do secretário, junto à janela, um livro semi-desenrolado como fora largado. A porta fechou-se à minha passagem. Parei, mal entrara, e a cortina de couro baixou farfalhando. Ele voltou-se. Nossos olhos se encontraram em silêncio, durante o que me pareceram segundos intermináveis, então ele pigarreou e disse: — Ah, Merlin! — e com um ligeiro aceno da mão acrescentou: — Sente-se. Obedeci atravessando a sala para o meu banquinho costumeiro junto ao fogo. Ele permaneceu silencioso por mais uns instantes, olhos voltados para a mesa. Apanhou a pena, contemplando a cera distraidamente e acrescentou uma palavra. Esperei. Franziu a testa ao que escrevera, riscou novamente e então atirou a pena sobre a mesa e disse abruptamente: — Uther veio-me ver. — Sim, senhor. Fitou-me com o cenho franzido: — Soube que ele o encontrou cavalgando sozinho longe da cidade. Eu disse rápido: — Não saí sozinho. Cadal estava comigo. — Cadal?

— Sim, senhor. — Não foi o que você disse a Uther. — Não, senhor. Seu olhar tornou-se penetrante, atento. — Bem, prossiga. — Cadal sempre me acompanha, my lord. Ele é... mais do que fiel. Seguimos para o norte até a trilha madeireira na floresta e pouco depois meu pônei ficou manco. Aí Cadal cedeu-me sua égua e iniciamos o percurso de volta... — Tomei fôlego. — Seguimos por um atalho e encontramos Belasius e seu criado. Belasius cavalgou parte do caminho comigo, mas... não lhe era conveniente encontrar-se com o Príncipe Uther, portanto, deixou-me. — Sei. — Sua voz não demonstrava nada, mas eu tinha a impressão de que ele sabia muito. A pergunta seguinte confirmou-o. — Você foi à ilha dos druidas? — O senhor sabe disso? — perguntei surpreso. Então, como ele não respondesse, aguardando num silêncio gélido que eu falasse, continuei: — Disse-lhe que Cadal e eu tomamos um atalho pela floresta. Se o senhor conhece a ilha, deve saber qual a trilha que seguimos. Ali onde desce para o mar há um pinheiral. Encontramos Ulfin, o criado de Belasius, com os dois cavalos. Cadal queria levar o cavalo de Ulfin e trazer-me para casa depressa, mas enquanto falávamos com Ulfin ouvimos um grito, um berro de algum lugar a leste do pinheiral. Fui ver. Juro que não fazia idéia de que existia uma ilha ou do que ocorria ali. E tampouco Cadal, e se ele estivesse montado teria me impedido. Mas quando apanhou o cavalo de Ulfin e partiu no meu encalço, eu já não estava à vista e julgou que eu, assustado, correra para casa conforme me recomendara, e só quando chegou aqui descobriu que eu não viera para estes lados. Voltou para buscar-me, mas por essa altura eu vinha com a tropa. — Deixei cair as mãos entre os joelhos, apertando-as. com força. — Não sei o que me fez cavalgar até a ilha. Sei que foi o grito que me fez ir ver... Mas não foi só por causa do grito. Não sei explicar, ainda não... — Tomei fôlego. — My lord... — Bem? — Preciso contar-lhe. Um homem foi morto na ilha esta noite. Não sei quem, mas ouvi dizer que era um homem do Rei, desaparecido há alguns dias. Seu corpo será encontrado na floresta como se um animal selvagem o tivesse matado. — Fiz uma pausa. Não percebia nada no seu rosto. — Pensei que o senhor devia saber. — Você foi até a ilha? — Oh, não! Duvido de que eu ainda vivesse se tivesse ido. Foi depois que descobri sobre o homem morto. Sacrilégio, disseram-me. Não perguntei. — Ergui os olhos para ele. — Só cheguei até a praia. Esperei ali entre as árvores e pus-me a olhar a dança e a oferenda. Ouvi os cantos. Não sabia então que era ilegal... Em minha terra é proibido, naturalmente, mas sabe-se que continua, e pensei que poderia ser diferente aqui. Mas, quando my lord Uther soube onde eu estivera, ficou muito zangado. Ele

parece odiar os druidas. — Os druidas? — Sua voz parecia ausente agora. Ainda remexia na pena sobre a mesa. — Ah, sim! Uther não morre de amores por eles. É um dos fanáticos de Mithras e a luz é inimiga das trevas, suponho. Bem, o que é? — perguntou bruscamente a Sollius, que entrava com uma desculpa e aguardava no umbral da porta. — Perdoe-me, senhor — disse o secretário. — Há um mensageiro do rei Budec. Disse-lhe que o senhor estava ocupado, mas ele afirma que é importante. Mando-o esperar? — Traga-o aqui — disse Ambrosius. O homem entrou com um pergaminho. Entregou-o a Ambrosius que, sentado na grande cadeira, abriu-o. Leu, franzindo o cenho, Eu o observava. As chamas trêmulas do braseiro espalharam-se iluminando os planos do seu rosto, que já me pareciam tão conhecidos quanto o meu próprio. O centro do braseiro cintilava e a luz espalhou-se e piscou. Senti-a cobrir-me os olhos que se toldavam e se abriam desmesurados... — Merlin Emrys? Merlin? O eco foi-se transformando numa voz normal. A visão desapareceu. Eu estava sentado no banquinho na sala de Ambrosius, olhando para as minhas mãos a comprimirem os joelhos. Ambrosius se erguera e curvava-se para mim, interpondo-se ao fogo. O secretário saíra e estávamos a sós. A repetição do meu nome pisquei, voltando a mim. Ele falava: — O que está vendo ali no fogo? Respondi sem erguer os olhos. — Um arvoredo de espinheiros na encosta de uma colina, uma moca num pônei castanho e um rapaz com um broche de dragão ombro, com o nevoeiro à altura dos joelhos. Ouvi-o dar um longo suspiro. Então sua mão baixou e, tomando-me pelo queixo, voltou meu rosto para si. Seus olhos estavam atentos e arrebatados. — É verdade então essa sua Vidência. Eu estava tão certo e agora... agora já não resta dúvida. Suspeitei de que assim fosse naquela primeira noite junto à pedra aprumada, mas aquilo poderia ter sido qualquer coisa... um sonho, uma história de criança, uma adivinhação feliz para ganhar o meu interesse. Mas isto... Eu acertei a seu respeito. — Retirou a mão do meu rosto e endireitou-se. _ Você viu o rosto da moça? Assenti. — E o do homem? Fitei-o nos olhos. — Sim, senhor. Ele afastou-se bruscamente, voltando as costas para mim, a cabaça curvada. Mais uma vez apanhou a pena na mesa, virando-a e revirando-a entre os dedos. Passados uns momentos, perguntou: — Há quanto tempo sabe? — Somente desde hoje à noite. Foi algo que Cadal disse; lembrei-me de certas coisas e do espanto do seu irmão esta noite quando me viu usando isto. — Toquei no broche de dragão que trazia ao pescoço.

Ele olhou e acenou com a cabeça. — foi esta a primeira vez que teve essa....visão? — Foi. Eu não fazia idéia. Agora parece-me estranho que eu nunca tenha suspeitado... mas juro que não. Ele ficou silencioso, a mão espalmada sobre a mesa, servindo apoio. Não sei o que eu esperava, mas nunca pensei ver o grande Aurelius Ambrosius sem palavras. Deu uma volta pelo quarto até a Janela e de retorno falou. — Esta é uma reunião estranha, Merlin. Tanto para dizer e ao mesmo tempo tão pouco. Vê agora por que lhe fiz tantas perguntas? Por que me esforcei tanto para descobrir o que o trouxera aqui? — Os deuses em ação, my lord, trouxeram-me aqui — disse eu — Por que a abandonou? Eu não queria que a pergunta saísse tão abrupta, mas suponho que há tanto tempo me afligia, que agora explodia com a força de uma acusação. Comecei a balbuciar alguma coisa, mas ele me interrompeu com um gesto e respondeu sereno. — Eu tinha dezoito anos, Merlin, e a cabeça a prêmio se pusesse os pés no meu próprio reino. Você conhece o caso — como o meu primo Budec nos acolheu quando meu irmão, o Rei, foi assassinado, e como nunca cessou de desejar vingança contra Vortigern, embora por muitos anos isto parecesse impossível. Mas todo o tempo ele enviou batedores, recebeu relatórios, continuou a planejar. E então, quando fiz dezoito anos, enviou-me em segredo a Gorlois de Cornwall, que era amigo de meu pai e jamais gostara de Vortigern. Gorlois mandou-me ao norte com dois homens de confiança para observar e escutar e fazer o reconhecimento da terra. Algum dia eu lhe contarei aonde fomos e o que aconteceu, mas não agora. O que lhe interessa é isto... Viajamos para o sul quase em fins de outubro, rumo a Cornwall, para tomar o navio de regresso, quando fomos assaltados e tivemos que lutar pelas nossas vidas. Eram homens de Vortigern. Até hoje não sei se suspeitaram de nós ou se nos queriam matar, como fazem os saxões e as raposas, por selvageria e pelo prazer de ver sangue. Creio mais nesta última hipótese, pois do contrário ter-se-iam certificado melhor da minha morte. Mataram meus dois companheiros, mas eu tive sorte, escapei com uma ferida superficial e uma pancada na cabeça que me prostrou sem sentidos e fui abandonado por morto. Isto foi ao amanhecer. Quando voltei a mim e passei os olhos ao meu redor, era manhã e um pônei castanho erguia-se a um lado com uma moça montada e que olhava de mim para os homens mortos e destes outra vez para mim, sem pronunciar palavra. — O primeiro clarão de um sorriso, não para mim, mas para a recordação. — Lembro-me de tentar falar, mas perdera muito sangue e a noite passada no sereno trouxera-me um pouco de febre. Tive medo de que ela se assustasse e galopasse de volta à cidade, terminando tudo. Mas não o fez. Apanhou meu cavalo e as coisas na mochila, deu-me um gole de água, limpou e enfaixou o ferimento, e então, Deus sabe como, através--sou-me na sela do cavalo, levando-me do vale. Havia um lugar, disse-me, próximo à cidade, mas afastado e discreto, aonde ninguém nunca ia. Era uma gruta com uma fonte... O que é? — Nada — respondi. — Eu devia saber. Continue. Não morava ninguém lá? — Ninguém. Ao chegarmos lá, suponho que delirasse, não me lembro de nada. Escondeu-me na caverna, e escondeu o meu cavalo. Havia comida e vinho na minha mochila e eu trazia uma capa e manta. A tarde caía então, e quando ela voltou para casa, ouviu falar que os dois mortos já tinham sido encontrados, com os valos a vagar por perto. A tropa rumara para o norte; não era provável que ninguém da cidade soubesse que deveriam ter sido encontrados três corpos. Portanto, eu estava salvo. No dia seguinte, veio outra vez à gruta com comida e remédios... E no outro lambem. — Ele fez uma Pausa. — E você conhece o resto da

história. — Quando lhe contou quem era o senhor? — Quando me disse por que não poderia deixar Maridunum e partir comigo. Eu pensara, até então, que ela fosse talvez uma das damas da Rainha — pelas suas maneiras e fala, percebi que deveria ter sido criada na casa do Rei. Talvez ela percebesse o mesmo em mim. Mas não importava. Nada importava, exceto que eu era um homem e ela, uma mulher. Desde o primeiro dia, ambos sabíamos o que aconteceria. Você compreenderá quando for mais velho. — Novamente o sorriso, desta vez tocando-lhe os lábios, e também os olhos. — É um tipo de conhecimento pelo qual terá de esperar, Merlin. A Vidência não o ajudará muito nas questões de amor. — O senhor pediu a ela que o acompanhasse... que voltasse para cá? Ele assentiu. — Mesmo antes de saber quem era. Depois que soube, receando por ela, insisti com mais vigor, mas não consegui convencê-la. Pela maneira de falar eu sabia que odiava e temia os saxões e temia o que Vortingern estava a fazer aos reinos, mas ainda assim não concordou em vir. Uma coisa, afirmoume ela, era fazer o que fizera, outra era atravessar o mar com um homem que, quando voltasse, teria de ser inimigo do seu pai. Precisamos terminar, disse ela, assim como o ano está terminando, e esquecer. Ficou calado por um minuto contemplando as mãos. Eu disse: — E o senhor nunca soube que ela tivera um filho? — Não. Pensei nisso, naturalmente. Enviei-lhe uma mensagem a primavera seguinte, mas não recebi resposta. Deixei estar então, sabendo que, se me quisesse, saberia, como toda a gente, onde encontrar-me. Então ouvi, quase dois anos depois, que ela estava noiva. Sei agora que isso não era verdade, mas na época serviu para tirá-la do meu pensamento. — Ele olhou para mim. Compreende? Acenei com a cabeça. — Pode até ter sido verdade, embora não da maneira como o senhor entendeu, my lord. Ela prometeu-se à Igreja quando eu já não tivesse necessidade dela. Os cristãos chamam a isso de noivado. — E então? — Ele refletiu por um momento. — O que quer que fosse, não lhe enviei mais mensagens. E quando mais tarde ouvi j menção de uma criança, um bastardo, nem me passou pela cabeça que poderia ser meu. Um homem esteve aqui certa vez, um médico de olhos itinerante que passara por Gales e mandei buscá-lo; interroguei-o e ele confirmou: havia um menino bastardo, no palácio, ] de tal idade, ruivo, e filho do Rei. — Dinias — disse eu. — Provavelmente não chegou a ver-me. Mantinham-me fora de vista... E meu avô às vezes falava de mim aos estranhos como se eu fosse dele. Tinha alguns espalhados aqui e ali. — Foi o que soube. Então chegou-me o boato seguinte sobre um menino... talvez um bastardo do Rei, talvez de sua filha... mal dei ouvidos. Passara-se tanto tempo, havia coisas urgentes a | fazer e ainda a mesma idéia; se ela tivera um filho meu, não me mandaria dizer? Se me quisesse, não mandaria recado? Ele calou-se então, absorto nos próprios pensamentos. Se consegui compreender tudo à medida que ele explicava, não me lembro. Mas, mais tarde, quando os pedaços se encaixaram para formar o mosaico, tudo se tornou bastante claro. O mesmo orgulho que a impedira de partir com o amante, impedira-a também de chamá-lo ao descobrir sua gravidez. E isto ajudou-a nos meses que se seguiram.

Mais que isso: se, pela fuga ou qualquer outro meio, ela tivesse revelado quem fora o seu amante, nada teria evitado que seus irmãos viajassem para a corte de Budec e o matassem. Devem ter havido — conhecendo meu avô — juras bastante exaltadas a propósito do que fariam ao homem que gerara esse bastardo. E então o tempo passou e a vinda dele tornou-se algo remoto, e a seguir, impossível, como se fosse realmente um mito, uma recordação na noite. Então o outro grande amor veio substituí-lo, a religião tomou seu lugar e o encontro de inverno foi esquecido. A não ser pela criança, tão parecida com o pai; mas uma vez que o dever dela para com ele terminasse, poderia partir para a solidão e a paz que há muitos anos a fizera cavalgar sozinha pelo vale, como mais tarde eu deveria fazer sozinho o mesmo percurso, procurando talvez as mesmas coisas. Sobressaltei-me quando ele falou outra vez. — Foi muito penosa sua vida como filho de pai desconhecido? — Bastante. — Você acredita quando eu digo que não sabia? — Acredito em qualquer coisa que me diga, my lord. — Você me odeia muito por isso, Merlin? Eu disse lentamente, olhando para as mãos: — Há uma vantagem em ser bastardo e filho de pai desconhecido. É-se livre para imaginar o próprio pai. Pode-se imaginar o e o melhor; pode-se compor pai para si mesmo à imagem do momento. Desde que me tornei o suficiente grande para compreender o que era, via meu pai em todo soldado, em todo príncipe, em todo padre. E via-o também em todo escravo bonito do reino de Gales do Sul. Ele falou com suavidade. — E agora o vê de verdade, Merlin Emrys. E pergunto-lhe se me odeia pela espécie de vida que lhe dei. Não olhei para ele. Respondi com os olhos postos nas chamas: _ Desde criança tive o mundo inteiro para escolher um pai. De todos, Aurelius Ambrosius, eu teria escolhido o senhor. Silêncio. As chamas pulsavam como um coração. Acrescentei, tentando tornar a coisa leve: — Afinal, que menino não gostaria de escolher o Rei de toda a Bretanha para pai? Sua mão apanhou-me pelo queixo outra vez, desviando minha cabeça do braseiro e meus olhos das chamas. A voz dele era incisiva: — O que foi que você disse? — O que foi que eu disse? — pisquei para ele. — Disse que teria escolhido o senhor. Seus dedos apertaram-me o rosto. — Você me chamou de Rei de toda a Bretanha. — Chamei? — Mas isto é... — Ele parou. Seus olhos pareciam queimar-me. Então deixou a mão cair e endireitou-se. Deixe. Se tiver importância, o deus falará novamente. — Sorriu para mim. — O que importa agora é o que você próprio disse. Não é dado a todo homem ouvir isso de um filho crescido. Talvez seja melhor assim, encontrarem-se como homens, quando cada um tem algo a dar ao outro. Para um homem cujos filhos estiveram ao pé de si toda a infância, não é dado ver-se subitamente estampado no rosto de um menino como estou estampado no seu.

— Pareço-me tanto assim? — Dizem que sim. E vejo bastante de Uther em você para saber por que todos diziam que você era meu. — Aparentemente ele próprio não viu — disse eu. — Está muito aborrecido com isso ou apenas aliviado em descobrir que afinal não sou pederasta? — Você sabia disso? — Pareceu divertir-se. — Se ele pensasse com cérebro em vez de pensar com o corpo, estaria melhor. Sabe, trabalhamos muito bem juntos. Ele faz um tipo de trabalho e eu outro, e se eu conseguir tornar o caminho reto, ele me sucederá no trono, se eu não tiver... Ele mordeu os lábios. No silêncio miúdo e estranho que se seguiu olhei para o chão. — Perdoe-me. — Ele falava baixinho, de igual para igual. — Falei sem refletir. Por tanto tempo acostumei-me à idéia de não ter um filho! Ergui os olhos. — E continua sendo verdade no sentido em que fala. E é certamente a verdade como Uther a vê. — Então, se você vê da mesma maneira, meu caminho será mais suave. Ri. — Não me imagino rei. Meio-rei, talvez, ou mais provavelmente um quarto — o pedacinho que vê e pensa, mas não pode agir. Talvez Uther e eu juntos formemos um, quando o senhor se for? Ele já é mais forte que a vida, não diria? Mas ele não sorriu. Seus olhos estreitaram-se num olhar atento. — É como tenho pensado, ou alguma coisa nesse sentido. Percebeu? — Não, senhor, como poderia? — Aprumei-me no banquinho ao dizer: — Foi assim que pensou usar-me? Naturalmente agora percebo por que me manteve em casa e me tratou como um príncipe, mas eu quis acreditar que o senhor teria planos para mim — que eu poderia ser de alguma utilidade. Belasius disse-me que o senhor usava cada homem de acordo com sua capacidade, e mesmo que eu não servisse para soldado ainda assim o senhor me usaria de alguma forma. É verdade? — Bastante verdadeiro. Percebi imediatamente, mesmo antes de pensar que você poderia ser meu filho, quando vi como você enfrentou Uther no campo, o olhar ainda toldado pelas visões e o poder a envolvê-lo como uma pele brilhante. Não, Merlin, você nunca será rei, nem mesmo príncipe na concepção do mundo, mas, quando crescer, creio que será um homem cuja presença permitirá ao rei governar o mundo. Agora começa a compreender por que o enviei a Belasius? — Ele é um homem muito culto — comentei, cauteloso. — É um homem corrupto e perigoso — disse Ambrosius, sem j rodeios — mas um homem maneiroso e inteligente, que viajou muito j e tem habilidades que você provavelmente não teve ocasião de adquirir em Gales. Aprenda com ele. Não digo que o siga, porque há lugares aonde não deve acompanhá-lo, mas aprenda tudo o que puder. Ergui os olhos assentindo. — O senhor sabe tudo a respeito dele. — Era uma conclusão, e não uma pergunta. — Sei que é sacerdote da velha religião. Sim. — E não se importa com isso?

— Ainda não posso atirar de lado ferramentas valiosas porque não me agrade seu feitio — disse ele. E ele é útil, portanto eu o uso. Você fará o mesmo, se for sensato. — Ele quer-me levar à próxima reunião. Ele ergueu as sobrancelhas, mas não fez comentários. — Vai proibir-me? — perguntei. — Não. Você irá? — Sim. — Respondi lentamente e muito sério, procurando as palavras. — My lord, quando se busca o... que eu busco, tem-se que procurar em lugares estranhos. Os homens nunca podem encarar o sol, a não ser olhando para baixo, para o seu reflexo nas coisas da terra. Se estiver refletido numa poça suja, ainda será o sol. Não há lugar aonde eu não vá procurá-lo, até encontrar. Ele sorria. — Você vê? Não precisa de proteção alguma, exceto a que Cadal pode dar-lhe. — Encostou-me à beira da mesa, meio sentado, já descontraído e à vontade. — Emrys, foi como ela o chamou. Filho da Luz. Dos imortais. Divino. Você sabia que era esse o significado? — Sim. — Sabia que era o mesmo que o meu? — Meu nome? — perguntei tolamente. Ele assentiu. — Emrys... Ambrosius... é a mesma palavra. Merlinus Ambrosius... ela o chamou em minha homenagem. Arregalei os olhos. — Eu... é claro. Nunca me ocorreu. — Ri-me. — Por que está rindo? — Por causa do nosso nome. Ambrosius, príncipe da luz... Ela dizia a todo o mundo que meu pai era o príncipe das trevas. Até ouvi uma canção sobre isso. Tudo é motivo para canções em Gales. — Algum dia você a cantará para mim. — Então tornou-se sério de repente. A voz profunda. — Merlinus Ambrosius, filho da luz, olhe para o fogo agora e diga-me o que vê. — Então, como o encarasse assustado, continuou ansioso: — Agora, esta noite, antes que o fogo apague, enquanto está cansado e há sono no seu rosto. Olhe para o braseiro e fale comigo. O que acontecerá com a Bretanha? O que acontecerá a mim e a Uther? Olhe agora, trabalhe para mim, meu filho, diga-me. Não adiantou. Eu estava bem desperto e as chamas morriam no braseiro; o dom desaparecera, deixando apenas um aposento onde as sombras esfriavam rapidamente e um homem e um menino conversavam. Mas, porque eu o amava, voltei os olhos para as brasas. Havia um silêncio absoluto, fora do sibilar das cinzas ao assentarem e o estálido do metal a esfriar. Falei. — Nada vejo a não ser o fogo morrendo no braseiro e uma cratera de carvão em brasas. — Continue olhando. Eu sentia o suor brotar-me no corpo, as gotas pingarem pelas asas do nariz, sob os braços, nas virilhas, fazendo as coxas grudarem uma na outra. Minhas mãos comprimiam-se uma contra a outra entre os joelhos até que os ossos começaram a doer. Minhas têmporas doíam. Sacudi a cabeça com força

para clareá-la e olhei para cima. — My lord, não adianta. Sinto muito, mas não adianta. Eu não comando o deus, ele me comanda. Algum dia pode ser que eu veja à minha vontade, ou à sua vontade, mas agora isto vem-me espontaneamente ou não vem. — Estendi as mãos tentando explicar. — É como esperar a sombra de uma nuvem, então o vento a sopra de súbito e ela se divide, deixando passar a luz que me ilumina às vezes em cheio, às vezes mal passando de um filete de sol. Um dia estarei livre de todo o templo. Mas, por ora, não. Não consigo ver nada. — A exaustão me arrastava. Sentia-a na própria voz. — Sinto muito, my lord. Não tenho utilidade para o senhor. Ainda não tem o seu profeta. — Não — disse Ambrosius. Estendeu-me a mão ao ver que eu me erguia e, puxando-me para si, beijou-me. — Apenas um filho que não ceou e está cansado. Vá para a cama, Merlin, e durma o resto da noite sem sonhar. Há tempo bastante para visões. Boa noite. Não tive mais visões aquela noite, mas sonhei. Nunca contei a Ambrosius. Vi outra vez a gruta na encosta da colina, a jovem Niniane surgindo em meio à névoa e um homem à espera dela, junto à gruta. Mas o rosto de Niniane não era o de minha mãe e o homem da gruta não era o jovem Ambrosius. Era um velho, e seu rosto era o meu.

Livro 3 - O LOBO

1 Passei cinco anos com Ambrosius na Bretanha. Recordando agora, vejo que muito do que aconteceu sofreu transformações i minha memória, como um mosaico partido que anos mais tarde tivesse sido remendado por um homem quase esquecido da primeira composição. Algumas coisas ocorrem-me nítidas, com todas as cores e detalhes; outras, talvez mais importantes, surgem-me nubladas, como se a imagem tivesse sido coberta pela poeira do que aconteceu desde então - mortes, tristezas, mudanças do coração. Dos lugares sempre me lembro bem, alguns tão claros, que sinto como se pudesse caminhar por eles, e que, se ainda tivesse forças para concentrar-me, e o dom que um dia me assentou como uma luva, poderia agora reconstruí-los no escuro, como reconstruí a Dança dos Gigantes para Ambrosius, muitos anos depois. Os lugares são nítidos e as idéias que me ocorriam, tão novas e brilhantes como então, mas nem sempre as pessoas; às vezes, quando perscruto minha memória, pergunto-me se aqui e ali não as terei confundido, Belasius com Galapas, Cadal com Cerdic, o oficial bretão de cujo nome não me recordo com o capitão de meu avô em Maridunum, que certa vez tentou transformar-me na espécie de espadachim que, na sua opinião, mesmo um príncipe bastardo gostaria de ser. Mas, quando escrevo sobre Ambrosius, é como se ele estivesse aqui comigo, recortado contra a escuridão, como o homem do barrete que brilhava naquela primeira noite na Bretanha encantada pela geada. Mesmo sem minhas vestes mágicas, posso conjurar nas trevas os seus olhos, firmes sob o cenho franzido, as linhas pesadas do seu corpo, o rosto (que me parece tão jovem agora) transmitindo a firmeza da vontade avassaladora e estimulante que mantivera seus olhos voltados para o ocidente, para o seu reino proibido, durante os vinte e tantos anos que lhe levaram para transformar-se de uma inça em um Comes, e construir, contra todas as probabilidades de pobreza e fraqueza, a força poderosa que cresceu com ele, à espera da ocasião propícia. É mais difícil escrever sobre Uther. Ou antes, é difícil escrever sobre Uther como se ele estivesse no passado, fazendo parte de uma história que terminou há muitos anos. Ainda mais vivamente que Ambrosius, ele está aqui comigo; não aqui na escuridão, mas faz parte do eu que foi Myrddin e se encontra hoje nas sombras. A parte que foi Uther está lá fora na claridade, guardando intactas as costas da Bretanha, seguindo o traçado que fiz para ele, o desenho que Galapas me mostrou naquele dia de verão em Gales. Mas, já não existe, naturalmente, o Uther sobre quem escrevo. O homem que foi a soma de todos nós, que foi todos nós — Ambrosius que me gerou; Uther que trabalhou comigo; eu próprio que o usei como usei todos os homens que me chegaram ao alcance das mãos, a fim de criar Arthur para a Bretanha. De tempos em tempos chegavam notícias da Bretanha e ocasionalmente, através de Gorlois de Cornwall, notícias da minha terra. Parece que, depois da morte do meu avô, Camlach não rompera de pronto a velha aliança com seu parente Vortigern. Precisava sentir-se mais seguro antes de ousar separar-se e apoiar "o partido dos jovens" como era chamada a facção de Vortimer. Na realidade, o próprio Vortimer hesitara à beira da rebelião declarada, mas parecia evidente que esta viria inevitavelmente. O rei Vortigern encontrava-se outra vez entre a cruz e a caldeirinha; se quisesse permanecer rei dos bretões, precisava pedir auxílio aos compatriotas de sua mulher saxônica, e os mercenários saxões de ano para ano aumentavam suas

exigências até que o país se viu dividido e ensangüentado sob o que os homens chamavam abertamente de Terror Saxônico, e especialmente no oeste, onde os homens eram livres, a rebelião esperava apenas o líder dos líderes. E a situação de Vortigern tornava-se tão desesperadora que foi forçado a confiar, a contragosto, as forças armadas do oeste, cada vez mais, a Vortimer e seus irmãos, que ao menos não traziam no sangue a nódoa saxônica. De minha mãe não havia notícias a não ser que estava sã e salva no convento de São Pedro. Ambrosius não lhe enviou nenhuma mensagem. Se chegasse aos seus ouvidos que um certo Merlinus Ambrosius se achava com o Conde da Bretanha, ela saberia o que pensar, mas uma carta ou mensagem direta do inimigo do Rei a exporia desnecessariamente. Muito em breve ela saberia, disse Ambrosius. Na verdade, faltavam cinco anos para que chegasse a oportunidade, mas o tempo avançava rápido como a maré. Com a possibilidade de uma brecha em Gales e Cornwall, os preparativos de Ambrosius aceleraram-se. Se os homens do oeste queriam um líder, era sua intenção que este fosse não Vortimer, mas ele próprio. Aguardaria, deixando que Vortimer servisse de cunha, mas ele e Uther seriam o martelo que entraria em seguida na brecha. Entrementes, a esperança crescia na Bretanha Menor; choviam ofertas de tropas e alianças, e os campos estremeciam sob o tropel de cavalos e homens marchando; as ruas dos engenheiros e armeiros retiniam em meio à noite, ao redobrarem os esforços para produzir duas armas no mesmo tempo em que antes fabricavam uma. Agora, finalmente, aproximava-se a oportunidade e, quando chegasse, Ambrosius precisava estar preparado, sem possibilidade de fracasso. Não se espera metade de uma vida juntando material para fazer uma lança e para afinal deixá-la perder-se ao acaso no escuro. Não apenas os homens e os materiais, mas o tempo e o ânimo e o próprio vento no céu precisavam estar propícios e os próprios deuses precisavam abrir-lhe os portões. E para isso, dizia ele, eu tinha sido enviado. Fora a minha vinda exatamente àquela altura com palavras de vitória e envolto na visão do deus não-conquistado que o persuadira (e, ainda mais importante, aos soldados) de que finalmente se aproximava a ocasião em que poderia atacar na certeza de uma vitória. Assim, descobri, para meu receio, como ele me encarava. Estejam certos de que nunca mais lhe perguntei como pretendia usar-me. Ele deixara bem claro, e dividido entre o orgulho, o medo e a nostalgia, lutei para aprender tudo o que podia e para preparar-me para receber o poder, pois era só o que eu tinha para oferecer-lhe. Se queria um profeta completo, deve ter ficado desapontado; nada vi de importante naquele período. O conhecimento, suponho eu, bloqueava os portões da visão. Mas então era tempo de conhecimento; estudei com Belasius até ultrapassá-lo, aprendendo, como ele jamais fizera, a aplicar os cálculos que para ele tinham tanto de arte quanto as canções para mim; e, na realidade, mesmo as canções eu iria usar. Passava muitas horas na rua dos engenheiros e precisava ser arrastado com freqüência por um Cadal resmungão para longe de alguma peça oleosa de trabalho prático que me deitava inutilizado, segundo dizia, para qualquer companhia exceto a e um escravo de banhos. Anotei também tudo de que podia lembrar-me dos ensinamentos médicos de Galapas e acrescentei-lhes Experiência prática, ajudando os médicos do exército sempre que 'ia. Eu gozava de liberdade no campo e na cidade, e sob a proteção de Ambrosius entreguei-me a essa liberdade como um lobinho faminto à primeira refeição completa. Aprendia o tempo todo com cada homem e cada mulher que encontrava. Olhava, conforme prometera, para a luz e para as trevas, para o sol e para a poça suja. Acompanhei Ambrosius ao santuário de Mithras na fazenda e Belasius às reuniões da floresta. Foi-me até mesmo permitido assistir em silêncio às reuniões do Conde com seus capitães, embora ninguém pensasse que eu pudesse ter alguma utilidade em campo "a não ser" — como disse Uther certa vez entre divertido e malicioso — "que se erga sobre as nossas cabeças como Josué, fazendo parar o Sol para dar-nos mais tempo para completar o serviço. Embora, brincadeiras à parte, ele pudesse fazer pior... os homens parecem imaginá-lo como algo entre um mensageiro de Mithras e uma lasca da Cruz Verdadeira — com todo o respeito pela sua presença, irmão — estou seguro de que ele

será mais útil postado no alto de uma montanha como um amuleto de sorte, onde o possamos ver, do que embaixo, no campo de batalha, onde não duraria cinco minutos". E teve ainda mais o que dizer quando, aos dezesseis anos, desisti da prática diária de espada, que proporcionava a um homem o treino mínimo para a própria defesa; mas meu pai apenas riu e não fez comentários. Acho que ele sabia, embora eu ainda não o soubesse, que eu tinha um tipo muito pessoal de proteção. Assim aprendi com todos; as mulheres velhas que colhiam plantas, teias e algas para tratamentos; os mascates e curandeiros; os médicos de cavalos, os adivinhos, os padres. Eu escutava as conversas dos soldados, fora das tavernas e a conversa dos oficiais na casa do meu pai, e ainda a conversa dos meninos nas ruas. Mas houve uma coisa sobre a qual nada aprendi: na altura em que deixei a Bretanha, estava com dezessete anos e continuava ignorante a respeito das mulheres. Quando pensava nelas, o que era bastante freqüente, dizia a mim mesmo que não dispunha de tempo, e que tinha uma vida inteira à minha frente para tais coisas e que agora precisava trabalhar no que era mais importante. Mas creio que a verdade clara e simples é que eu tinha receio delas. Assim dissipava meus desejos no trabalho, e, na realidade, creio agora que o medo me vinha do deus. Portanto, esperava e tratava da minha vida que, como eu a encarava então, era preparar-me para servir meu pai. Certa vez encontrava-me na oficina de Tremorinus. O engenheiro-mestre era um homem agradável, que me deixava aprender com ele tudo que era possível, oferecendo-me espaço nas oficinas e material para experimentação. Naquele dia em particular, lembro-me de como entrou na oficina e, vendo-me ocupado com um modelo na minha bancada a um canto, veio dar uma olhada. Quando viu 0 que eu fazia, riu-se. — Eu acharia que já há bastantes dessas por aqui, sem que fosse preciso erguer outras. — Estou interessado, em como teriam sido erigidas. — Inclinei o modelo da pedra aprumada em escala, fazendo-a erguer-se de volta. Ele pareceu surpreso. Eu sabia por quê. Toda a sua vida vivera na Bretanha Menor e a paisagem ali está tão ligada às pedras que os homens não mais reparavam nelas. Caminha-se diariamente por uma floresta de pedras e para a maioria parecem mortas... Mas não para mim. Diziam alguma coisa e eu precisava descobrir o que era, mas não falei nisso com Tremorinus. Acrescentei apenas: — Estava tentando resolver em escala. — Posso-lhe dizer uma coisa de pronto: já foi tentado e não funciona. — Ele olhava para a roldana que eu improvisara para erguer o modelo. — Isto poderia servir para as aprumadas, apenas para as menores, mas não vai adiantar nada para as deitadas. — É. Já descobri isso. Mas tenho uma idéia... Ia atacar o problema de outra maneira. — Está perdendo seu tempo. Vamos vê-lo tratar de alguma coisa prática, alguma coisa de que precisamos e que possamos usar. Ora, essa idéia sua de um guindaste leve e móvel poderia valer a pena desenvolver... Alguns minutos mais tarde, ele foi chamado. Desmontei o modelo e sentei-me com os meus cálculos. Não falara deles a Tremorinus. Ele tinha coisas mais importantes com que se ocupar e de qualquer modo iria rir-se, se eu lhe contasse que aprendera com um poeta a erguer as pedras aprumadas. Foi assim.

Um dia, cerca de uma semana antes, quando eu caminhava pela água que protegia as muralhas da cidade, ouvi um homem cantando. A voz era velha, trêmula e rouca por excesso de uso - a voz de um cantor profissional que forçara acima do barulho das aglomerações de gente, e cantara com a gripe de inverno na garganta. O que prendeu minha atenção não foi a voz nem a música, que mal podiam ser distinguidas, mas o som do meu próprio nome. Merlin, Merlin, para onde vais. Achava-se sentado junto à ponte com um prato de esmolas. Vi que era cego, mas os restos da sua voz, comoventes, e não apanhou o prato ao ouvir-me parar junto a si, mas continuou sentado como uma pessoa se sentaria a uma harpa, a cabeça inclinada, ouvindo o que dizem as cordas, os dedos a tangê-las como se sentissem as notas. Ele costumava cantar, diria eu, em salões reais. Merlin, Merlin, para onde vais Tão cedo com teu cão preto? Ando à procura do ovo, Do ovo vermelho da serpente do mar, Que jaz na praia no oco da pedra. Vou colher agrião na campina, Agrião verde e relva dourada, O musgo dourado que leva ao sono, E visgo de druida, no ramo do carvalho, Bem ao fundo, no bosque, onde um riacho murmura. Merlin, Merlin, volte do bosque e da fonte! Deixe o carvalho e a relva dourada, Deixe o agrião no campo alagado, E o ovo vermelho da serpente do mar Na bruma da pedra oca! Merlin, Merlin, pare de buscar! Só a Deus cabe adivinhar! Hoje em dia esta canção é tão conhecida como a de "Mary, the Maiden" e "The King and the Grey Seal", mas era a primeira vez que eu a ouvia. Quando ele soube quem parará para escutá-lo, pareceu satisfeito que eu sentasse no barranco ao seu lado e lhe fizesse perguntas. Lembro-me de que na primeira manhã falamos principalmente sobre a canção, e sobre ele próprio. Descobri que ele estivera

como rapaz em Mona, a ilha dos Druidas, conhecia Caer'n-ar-Von e caminhara pelo Snowdon. Na ilha dos Druidas perdera a visão; nunca me disse como, mas quando lhe informei que as algas e agriões que colhia na praia se destinavam apenas ao preparo dos remédios e não à mágica, ele sorriu e cantou-me um verso que eu ouvira minha mãe cantar, e que, segundo ele, me protegeria. Contra o quê, não disse, nem lhe perguntei. Deixei algum dinheiro no prato, que ele aceitou com dignidade, mas quando prometi arranjar-lhe uma harpa ficou silencioso encarando-me com as órbitas vazias, e percebi que não acreditara. Trouxe-lhe a harpa no dia seguinte; meu pai era generoso, e nem precisei contar-lhe para' que queria o dinheiro. Quando coloquei a harpa nas mãos do velho cantador, ele chorou, então tomou-me as mãos e beijou-as. Depois disso, até a época em que deixei a Bretanha Menor, procurei-o com freqüência. Ele viajara extensamente por terras tão distanciadas quanto a Irlanda e a África. Ensinou-me canções de todos os países, da Itália, da Gália e do Norte branco, e as canções mais antigas do Oriente — músicas vagas e erradias, vindas das ilhas do Oriente com o povo que erigira as pedras aprumadas e que falavam de tradições há muito esquecidas exceto sob a forma de canções. Creio que ele próprio não as considerava senão como canções antigas de magia, lendas de poetas. Mas, quanto mais eu pensava nelas, mais claramente me falavam de homens que tinham realmente existido, e de trabalhos que tinham realmente executado, quando ergueram as grandes pedras para marcar o sol e a lua e homenagear seus deuses e os reis gigantes de outrora. Disse eu, certa vez, alguma coisa sobre isso a Tremorinus, que era bondoso e inteligente e em geral arranjava maneiras de encontrar tempo para mim. Mas ele riu-se, sem me dar atenção, e não falei mais nisso. Os técnicos de Ambrosius tinham mais do que o suficiente em que pensar naqueles dias, para ainda ajudarem um menino a resolver uma série de cálculos sem utilidade prática para a invasão iminente. Foi na primavera dos meus dezoito anos que finalmente chegaram notícias da Bretanha. Durante janeiro e fevereiro, o inverno fechara os caminhos do mar, e somente em princípios de março foi que, aproveitando-se do tempo ainda frio antes que começassem os ventos fortes, um pequeno navio mercante aportou, e Ambrosius recebeu notícias. Notícias literalmente estimulantes, pois horas após sua chegada os mensageiros do Conde rumaram para o norte e para o oeste a fim de reunir os aliados com rapidez, porquanto as notícias já vinham com atraso. Parecia que, algum tempo antes, Vortimer afinal brigara com o pai e sua rainha saxônica. Cansado de pedir ao Suserano que rompesse com seus aliados saxões e protegesse o próprio povo, vários líderes bretões, e entre eles os do Oeste, persuadiram Vortimer a tomar o problema em suas mãos e haviam-se sublevado. Declararam-no rei e agruparam-se em torno de sua bandeira contra os saxões, que conseguiram fazer recuar de volta ao sul e para leste, refugiando-se nos seus navios compridos na ilha de Thanet. Mesmo ali Vortimer os perseguiu e nos últimos dias do outono e princípios do inverno sitiouos até que suplicassem que lhes fosse permitido partir em paz: juntaram então seus pertences e regressaram à Germânia, deixando para trás mulheres e filhos. Mas o reinado vitorioso de Vortimer não durou muito. Não ficou muito claro exatamente o que ocorrera, mas o boato é que morrera envenenado traiçoeiramente por um parente da Rainha. Qualquer que fosse a verdade, morrera, e Vortigern, seu pai, estava novamente no comando. Seu primeiro ato quase que foi (e mais uma vez a culpa fora imputada à mulher) mandar chamar novamente Hengist e seus saxões. — Tragam uma pequena força — dissera ele — apenas uma força móvel para manter a

paz, impor a ordem e reunificar o reino dividido. — De fato, os saxões prometeram-lhe trezentos mil homens. Assim diziam os boatos e, embora se supusesse que fossem falsos, não havia dúvida de que Hengist planejava voltar com uma força considerável. Havia também fragmentos de notícias de Maridunum. O mensageiro não era espião de Ambrosius: as notícias que recebíamos eram apenas os boatos mais evidentes. E eram bastante ruins. Parecia que meu tio Camlach juntamente com seus vassalos — gente do meu avô, homens que eu conhecera — haviam-se sublevado com Vortimer e combatido ao seu lado nas quatro batalhas travadas contra os saxões. Na segunda, em Episford, Camlach morrera juntamente com o irmão de Vortimer, Katigern. O que mais me preocupava era que, após a morte de Vortimer, tinha havido represálias contra os homens que com ele combateram. Vortigern anexara o reino de Camlach às suas terras de Guent e, desejando reféns, repetira a mesma ação de vinte e cinco anos atrás: tomara os filhos de Camlach, um deles ainda bebê, e deixara-os aos cuidados da rainha Rowena. Não tínhamos meios de saber se ainda estariam vivos. Nem tampouco se o filho de Olwen, que recebera o mesmo destino, sobrevivera. Parecia pouco provável. De minha mãe não havia notícias. Dois dias após a chegada do navio, os ventos de primavera começaram a soprar e mais uma vez os mares ficaram bloqueados para nós e para as notícias. Mas isto pouco importava; na verdade, atuava nos dois sentidos. Se não podíamos receber notícias da Bretanha, tampouco eles as receberiam de nós e dos preparativos finais acelerados para a invasão da Bretanha Ocidental, pois era certo que a hora chegara. Não era apenas um caso de marchar em auxílio de Gales e Cornwall; mas, se alimentávamos a esperança de encontrar algum homem para aliar-se ao Dragão Vermelho, o Dragão Vermelho teria de lutar pela coroa no próximo ano. — Você vai voltar no primeiro barco — disse-me Ambrosius, mas sem tirar os olhos do mapa que abrira na mesa à sua frente. Eu estava de pé junto à janela. Mesmo com as venezianas fechadas e as cortinas corridas, podia-se ouvir o vento, e ao meu lado as cortinas se agitavam com a corrente. Respondi: — Sim, senhor, — e acerquei-me da mesa. Então vi para onde apontava o dedo no mapa. — Devo ir a Maridunum? Ele acenou, concordando. — Deverá tomar o primeiro barco para o Ocidente e rumar para casa do ponto onde aportar. Deve procurar Galapas imediatamente e ouvir as notícias que tenha. Duvido de que seja reconhecido na cidade, mas não se arrisque. Galapas é seguro. Pode fazer da gruta a sua base. _ Não recebemos palavra de Cornwall, então? _ Nada senão rumores de que Gorlois estava com Vortigern. _ Com Vortigern? — Digeri isso por alguns instantes. — Então não se sublevou com Vortimer? — De acordo com as informações que tenho, não. — Está-se equilibrando então? — Talvez. Acho difícil de acreditar. Pode não ter significação alguma. Soube que se casou com uma moça nova e talvez se tenha apenas deixado ficar em casa todo o inverno para aquecê-la. Ou, prevendo o que iria acontecer a Vortimer, preferiu servir à minha causa pondo-se a salvo e aparentemente leal ao Suserano. Mas até que ponto não sei, e não posso mandar você diretamente a ele. Ele pode estar sendo vigiado. Portanto, você deverá dirigir-se a Galapas para receber as notícias de Gales. Dizem-me que Vortigern está escondido em algum lugar, enquanto toda a extensão da Bretanha Oriental se encontra aberta a Hengist. Terei de desentocar o velho lobo com fumaça e então reunir o

Oeste contra os saxões. Mas é preciso ser rápido. E quero Caerleon. — Ergueu os olhos então. — Estou enviando um velho amigo com você: Marric. Pode mandar recado por ele. Esperemos que você encontre tudo bem. Você próprio quererá notícias, imagino. — Isto pode esperar — respondi. Ele não fez comentários, mas ergueu as sobrancelhas para mim e então voltou-se para o mapa. — Bem, sente-se e eu próprio lhe darei as instruções. Esperemos que possa voltar rápido. Apontei para as cortinas que balançavam. — Vou-me sentir mal a viagem toda. Ele levantou os olhos do mapa e riu. — Por Mithras, não pensei nisso. Acha que eu também? Uma maneira bem pouco digna de voltar para casa. — Para o próprio reino — acrescentei eu.

2 Atravessei o mar em princípios de abril e no mesmo navio em que viera. Mas a travessia não poderia ter sido mais diferente. Este não era Myrddin, o fugitivo, mas Merlinus, o jovem romano bem vestido, com dinheiro no bolso e criados para servi-lo. Onde Myrddin fora trancado nu no porão, Merlinus possuía uma cabina confortável e o capitão tratava-o com acentuada deferência. Cadal, naturalmente, era um dos criados e o outro, para meu divertimento, mas não para o dele, era Marric (Hanno morrera, ao se exceder, segundo entendi, numa pequena questão de chantagem). Naturalmente eu não trazia nenhum sinal aparente do meu parentesco com Ambrosius, mas nada me faria apartar-me do broche que ele me dera. Usava-o preso na parte interna do ombro da minha túnica. Era duvidoso que alguém reconhecesse em mim o fugitivo de cinco anos atrás e certamente o capitão não deu mostras disso, mas eu me mantinha indiferente e tomava o cuidado de não falar outra coisa além do bretão. Quis a sorte que o barco rumasse direto para a embocadura do Tywy e ancorasse em Maridunum, mas ficara combinado que Cadal e eu seguiríamos de bote assim que o navio mercante chegasse ao estuário. Era de fato a minha viagem anterior ao inverso, mas sob o aspecto mais importante não havia diferença. Senti-me mal a viagem toda. O fato de que desta vez tivesse uma cama confortável e Cadal para cuidar de mim, em vez de sacos e um balde no porão, não fez a menor diferença para mim. Assim que o navio saiu do Mar Pequeno e encontrou na baía o tempo ventoso de abril, deixei o meu posto de bravura na proa e desci para deitar-me. Tínhamos o que me disseram ser um bom vento e deslizamos para o estuário fundeando pouco antes do amanhecer, dez dias antes dos idos de abril. Ainda estava escuro, enevoado e frio. Tudo muito quieto. A maré mudava, começando a entrar pelo estuário, e quando nosso barco deixou o costado do navio o único som era o silvo e o marulho da água contra o casco, e o espadanar suave dos remos. Longe, indistinto e metálico, ouvia-se o canto dos galos. Algures, em meio à névoa, ovelhas baliam e eram respondidas pelos balidos profundos dos carneiros. O ar tinha um cheiro suave, limpo e salgado, e de alguma forma estranha um cheiro de lar. Mantivemo-nos bem no centro da correnteza, e a neblina ocultava-nos das margens. Se chegamos a falar, foi aos cochichos. Uma vez quando um cachorro latiu na margem, ouvimos um homem falar-lhe quase tão claramente como se estivesse no barco conosco. Isso era aviso suficiente e mantivemos as vozes baixas. Havia uma forte maré de primavera que nos levou depressa. Isto foi bom, porque fundeáramos mais tarde do que devíamos e a luz aumentava. Vi os marinheiros que remavam olharem ansiosos para cima e acelerarem suas remadas. Curvei-me para a frente, apurando a vista para ver o barranco conhecido. Cadal segredou-me ao ouvido: — Satisfeito em voltar? — Depende do que encontrarmos. Mithras, como estou faminto! — Isso não me surpreende — disse com uma risota amarga. — O que está procurando? — Devia haver uma baía... areia branca com um riacho descendo por entre as árvores... e uma encosta com uma coroa de pinheiros. Desembarcaremos aí.

Ele assentiu. O plano era que Cadal e eu deveríamos desembarcar do lado do estuário oposto a Maridunum, num ponto de onde eu sabia que poderíamos prosseguir, sem sermos vistos, para a estrada do sul. Passaríamos por viajantes de Cornwall. Eu falaria, mas o sotaque de Cadal pareceria a qualquer pessoa o de um nativo de Cornwall. Trazia comigo pontinhos de ungüentos e uma pequena arca de remédios, e ao ser interpelado poderia passar por médico viajante, um disfarce que serviria para levarme mais ou menos aonde queria ir. Marric continuava a bordo. Entraria com o navio e desembarcaria no cais como de costume. Tentaria encontrar seus contatos antigos na cidade e recolher as notícias que pudesse. Cadal seguiria comigo para a gruta de Galapas e serviria de ligação com Marric para transmitir-me as informações que o outro obtivesse. O navio ficaria três dias no Tywy, e quando levantasse âncora Marric levaria as notícias de volta. Se eu e Cadal estaríamos com ele, dependeria do que encontrássemos: nem meu pai nem eu esquecêramos de que, depois do papel de Camlach na rebelião, Vortigern deveria ter passado por Maridunum como uma raposa atrás de galinhas, e com ele, talvez, os saxões. Minha primeira tarefa era obter notícias de Vortigern e mandá-las por Marric; a segunda era encontrar minha mãe e ver se estava a salvo. Era bom estar em terra outra vez — não terra seca, pois a grama no alto da encosta era alta e molhada, mas sentia-me leve e ansioso quando o barco desapareceu na neblina e Cadal e eu deixamos a praia, caminhando para o interior, em direção à estrada. Não sei o que esperava encontrar em Maridunum, nem mesmo sei se me importava. Não era a volta que animava meu espírito, mas o fato de que finalmente tinha um serviço a prestar a Ambrosius. Se ainda não podia desempenhar as funções de profeta, ao menos poderia fazer o trabalho de um homem e de um filho. Creio que todo o tempo eu alimentava uma meia esperança de que me fosse dado morrer por ele. Eu era muito jovem. Alcançamos a ponte sem incidentes. A sorte estava conosco, porque encontramos um negociante de cavalos que trazia dois potros para vender na cidade. Comprei-lhe um, barganhando apenas o suficiente para evitar suspeitas. Ele ficou tão satisfeito com o preço que jogou na transação uma sela um tanto usada. Na altura em que concluímos o negócio, estava totalmente claro e havia algumas pessoas por ali, mas nenhuma nos lançou mais de um olhar desinteressado, exceto um sujeito que, aparentemente reconhecendo o cavalo, sorriu e perguntou mais a Cadal que a mim: — Estava pretendendo ir longe, companheiro? Fingi não ouvir, mas pelo canto do olho vi Cadal estender as mãos, dar de ombros e virar os olhos na minha direção. O olhar dizia muito claramente: — Eu apenas o acompanho e ele é meio maluco. Naquela hora o caminho de reboque estava vazio. Cadal acercou-se de mim e enganchou uma mão na correia do pescoço do potro. — Ele está certo, sabe? Esse velho matungo não nos vai levar longe. A propósito, é longe? — Provavelmente menos longe do que me lembro. Seis milhas, no máximo. — Subida a maior parte do caminho, diz você? — Sempre posso caminhar. — Passei a mão pelo pescoço magro. Ele não é tão ruim quanto parece, sabe? Não há muitas coisas que umas boas rações não endireitem. — Então, pelo menos não desperdiçou seu dinheiro. O está vendo naquela parede? — É onde eu morava.

Passávamos pela casa do meu avô. Parecia pouco mudada. Do lombo do potro era possível ver por cima da parede do terraço onde crescia o marmeleiro com suas flores de um vermelho vivo, abrindo-se ao sol da manhã; o jardim onde Camlach me dera o damasco envenenado; e o portão por onde eu passara, a correr, em lágrimas. O potro prosseguia. Havia o pomar, as macieiras sempre pejadas de botões, a grama crescendo selvagem e verde em torno do pequeno terraço, onde Moravik se sentava a fiar enquanto eu brincava aos seus pés. E ali estava o lugar onde eu pulara a muralha na noite da minha fuga. Ali estava a macieira curvada onde eu deixara Aster amarrado. O muro estava rachado e dava para ver a grama por onde eu fugira, a correr, aquela noite, do meu quarto, onde o corpo de Cerdic jazia na pira funerária. Parei o potro e estiquei o pescoço para ver mais adiante. Deveria ter feito uma limpeza completa aquela noite; os prédios haviam desaparecido, o meu quarto, e com ele duas partes do pátio externo. Os estábulos continuavam na mesma, o fogo não os atingira. Os dois lados da colunata destruídos tinham sido reconstruídos num estilo moderno que parecia não ter relação alguma com o resto. Grandes pedras toscas numa construção rústica, pilastras quadradas sustentando um telhado de madeira e janelas quadradas e fundas. Era feio e parecia desconfortável — a única virtude talvez residisse no fato de ser à prova de mau tempo. Estaria melhor, pensei eu, acomodando-me de volta à sela e pondo o matungo em movimento, morando numa gruta... — De que está rindo? — perguntou Cadal. — De como me tornei romano. É engraçado, minha casa já não é aqui. E para ser honesto não creio que seja na Bretanha Menor tampouco. — Onde então? — Não sei. Onde esteja o Conde, com certeza. Suponho que será um lugar assim, por algum tempo. — Acenei na direção das muralhas da velha caserna romana por trás do palácio. Estavam em ruínas e o lugar, abandonado. Tanto melhor, pensei. Ao menos, não parecia que Ambrosius precisasse lutar por isso. Dando-se a Uther vinte e quatro horas, o lugar ficaria tão bom como novo. E ali estava São Pedro aparentemente intacto, não mostrando sinal algum de fogo ou de lança. — Sabe de uma coisa? — perguntei a Cadal quando deixamos a sombra da muralha do convento, rumando pela trilha do moinho. — Creio que, se tenho algum lugar a que posso chamar de casa, é a gruta de Galapas. — Isso não me parece nada romano — disse Cadal. — Dê-me na boa taverna qualquer dia, uma cama decente e carneiro para comer, e pode ficar com todas as grutas que existam. Mesmo com aquele cavalo horrível o trajeto pareceu-me mais curto do que eu me lembrava. Logo chegamos ao moinho e atravessamos a estrada, subindo o vale. O tempo desapareceu. Parecia que ainda ontem eu subira aquele mesmo vale ao sol, o vento a agitar a crina cinzenta de Aster. Não era só Aster — pois lá, sob o mesmo espinheiro, certamente estaria o mesmo menino retardado vigiando os mesmos carneiros como no meu primeiro passeio. Quando alcançamos a encruzilhada do caminho, vi-me procurando a pomba torcaz. Mas a encosta da montanha estava silenciosa, exceto pelos coelhos que corriam por entre as samambaias novas. Quer o matungo sentisse que se aproximava o fim da viagem, quer apenas gostasse da grama sob seus cascos e do peso leve às costas, ele pareceu estugar o passo. À minha frente eu já discernia a curva da colina, além da qual encontraria a caverna. Parei junto à moita de espinheiros. — Chegamos. É lá em cima, no alto do rochedo. — Escorreguei da sela e entreguei as rédeas a Cadal. — Fique aqui e espere por mim. Pode subir dentro de uma hora — acrescentei, pensando melhor: — E não se alarme se vir o que lhe parecerá uma fumaça. São os morcegos saindo da gruta.

Eu quase já me esquecera do sinal de Cadal contra o mau-olhado. Ele o fez agora e, rindo-me, deixei-o.

3 Mesmo antes de ter galgado o pequeno penhasco que levava ao relvado diante da caverna, eu já sabia. Chamem a isso premonição; não havia indícios. Silêncio naturalmente, mas geralmente tudo estava silencioso quando eu me aproximava da caverna. Este silêncio era diferente. Somente passados alguns momentos percebi o que era. Já não se ouvia o borbulhar da fonte. Subi para o topo do caminho, desemboquei no relvado e vi. Não havia necessidade de entrar na caverna para saber que ele não estava lá, e nunca mais estaria. No relvado plano defronte da estrada da caverna havia um punhado de destroços. Aproximei-me para examiná-los. Não acontecera há muito tempo. Houvera uma fogueira ali, uma fogueira apagada pela chuva antes que tudo fosse completamente destruído. Havia uma pilha de destroços empapados — madeira semi-carbonizada, trapos, pergaminhos transformados novamente em polpa, as beiradas escurecidas ainda inteiras. Rolei com o pé o pedaço mais próximo de madeira queimada. Pelos entalhes reconheci-a: era a arca que contivera os livros. O pergaminho era só o que restara. Suponho que houvesse outras coisas entre aqueles restos. Não olhei mais. Se os livros tinham desaparecido, tudo mais desaparecera também. E Galapas com eles. Encaminhei-me lentamente para a entrada da caverna. Parei junto à fonte. Compreendi por que estava silenciosa: alguém enchera a bacia com pedras e terra e outros destroços retirados da caverna. Através disso tudo a água ainda empoçava, escorrendo vagarosa e em silêncio pela borda da pedra e, ao cair, formava um alagado lamacento no gramado. Pensei ter visto o esqueleto de um morcego desossado pela água. Estranhamente, o archote ainda se encontrava na saliência do alto da entrada da caverna e estava seco. Não havia sílex nem ferro, mas acendi o fogo e, empunhando a tocha à minha frente, entrei de mansinho. Creio que minha pele estava arrepiada como se um vento frio soprasse do interior da caverna passando por mim. Já sabia o que iria encontrar. O lugar fora despojado. E tudo atirado à fogueira. Tudo, exceto o espelho de bronze. Este naturalmente não queimaria, e suponho que era pesado demais para ser destruído. Fora arrancado da parede e achava-se encostado à parede da gruta, inclinado como um bêbedo. Nada mais. Nem um movimento, nem o murmúrio dos morcegos no teto. O lugar ecoava o vazio. Ergui o archote bem alto e olhei para cima, na direção da gruta de cristal. Não estava lá. Creio que por instantes, enquanto o archote pulsava, pensei que ele conseguira esconder a gruta interior e se escondera também. Então vi. A abertura da gruta de cristal ainda estava lá, mas o acaso, ou chamem-no como quiserem, a tornava invisível a não ser para aqueles que a conheciam. O espelho de bronze caíra e, em vez de projetar luz sobre a fresta, projetava trevas. Sua luz irradiava-se, concentrando-se numa saliência da

rocha, e lançava uma nesga de sombra exatamente sobre a entrada da gruta de cristal. Para alguém ocupado apenas em pilhar e destruir a gruta embaixo, sua entrada mal seria visível. — Galapas? — chamei, experimentando o vazio. — Galapas? Ouvi o mais fraco dos murmúrios da gruta de cristal, um zumbido doce e fantasmagórico como a música que certa vez eu procurara escutar à noite. Nada de humano — eu não esperava que fosse. Mas, ainda assim, subi para o degrau e ajoelhei-me para espreitar... A luz da tocha incidiu nos cristais e projetou a sombra da minha harpa trêmula por todo o globo iluminado. A harpa permanecia intacta no centro da gruta. Nada mais, exceto o sussurro morrendo pelas paredes curvas e faiscantes. Deveria haver visões ali, nos relampejos da luz, mas eu sabia que não estaria preparado. Descansei a mão na rocha e saltei com o archote a escorrer, de volta ao chão da caverna. Ao passar pelo espelho inclinado, vi num relance um jovem alto correndo num redemoinho de chamas e fumaça. Seu rosto parecia pálido, os olhos escuros e imensos. Corri para fora. Deixei para trás o archote que ardia e escorria. Precipitei-me para beira do penhasco e levei as mãos em concha à boca para chamar Cadal, mas um ruído às minhas costas fez-me voltar rapidamente e olhar para o alto. Era um som muito normal. Dois corvos e um abutre levantaram vôo da colina e gritavam para mim. Vagarosamente, desta vez, subi a trilha que passava pela fonte e levava ao alto da gruta. Os corvos subiram mais, crocitando. Mais dois abutres se ergueram, passando bem por cima das samambaias. Havia mais dois ocupados com alguma coisa que jazia entre as ameixeiras em flor. Girei a tocha e atirei-a para espantá-los. Então corri naquela direção. Não se podia saber há quanto tempo morrera. Os ossos estavam quase limpos. Mas reconheci-o pelos trapos escuros descoloridos que sacudiam sob o esqueleto e a sandália partida que fora jogada próximo entre as margaridas de abril. Um das mãos separara-se do pulso e os ossos quebradiços e limpos jaziam aos meus pés. Podia-se ver onde o dedo mínimo quebrara e emendara torto. Entre as costelas nuas a relva de abril começava a crescer. O vento soprava, puro e luminoso, cheirando a tojos floridos. O archote se apagara na relva úmida. Parei e recolhi-o. Eu não deveria tê-lo atirado neles, pensei. Os pássaros tinham-lhe proporcionado uma despedida condigna. Passos atrás de mim fizeram-me voltar, mas era apenas Cadal. — Vi os pássaros voando — disse ele. Olhava para a coisa sob a moita de ameixeiras. — Galapas? Inclinei a cabeça, assentindo. — Vi a confusão lá embaixo na gruta. Imaginei. — Eu não tinha idéia de que fazia tanto tempo que estava aqui. — Deixe isso comigo. — Ele já se curvava. — Eu o enterrarei. Vá e espere embaixo, onde deixamos o cavalo. Talvez eu possa encontrar uma ferramenta por aí, ou mesmo voltar... — Não. Deixe-o ficar em paz sob as ameixeiras. Construiremos um monte sobre ele para sepultálo. Faremos isso juntos, Cadal. Havia pedras a granel para empilhar, formando um túmulo, e cortamos leivas com as nossas adagas para gramá-lo. Até o fim do ao as samambaias, madressilvas e a relva nova o teriam coberto e amortalhado. Assim, deixamo-lo.

Quando descemos, novamente passando pela entrada da gruta, pensei na última vez que viera por ali. Eu chorava, lembrei-me, pela morte de Cerdic, pela perda de minha mãe e de Galapas, pois quem poderia prever o futuro? Você voltará a ver-me, dissera-me ele, prometo-lhe. Bem, eu o vira. E algum dia, sem dúvida, sua outra promessa de certa forma se tornaria realidade. Estremeci, e percebendo o olhar rápido de Cadal, falei secamente. — Espero que tenha tido o bom senso de trazer um cantil. Preciso de um gole.

4 Cadal trouxera mais de um cantil consigo, e ainda comida — carneiro salgado, pão e azeitonas da última colheita, conservadas num frasco, no próprio azeite. Sentamo-nos do lado abrigado do bosque e comemos, o matungo a pastar por perto. Longe, embaixo, as curvas tranqüilas do rio brilhavam pelos campos verdes de abril e pelas colinas cobertas de árvores novas. A névoa clareara e o dia estava lindo. — Bem, — disse Cadal, passado algum tempo, — que faremos? — Vamos ver minha mãe. Se ainda estiver lá, naturalmente. — E com uma selvageria que me assaltou tão de repente que eu mal sabia de sua existência, exclamei: — Por Mithras, eu daria tudo para saber quem fez aquilo lá em cima! — Ora, quem poderia ser senão Vortigern? — Vortimer, Pascentius, qualquer um. Quando um homem é sábio, humilde e bom, — acrescentei com amargura, — parece que todas as mãos, as mãos de cada homem, se levantam contra ele. Galapas poderia ter sido assassinado por um fora-da-lei em busca de comida, ou um pastor à procura de abrigo, ou um soldado de passagem que quisesse água. — Aquilo não foi assassinato. — O que foi, então? — Quis dizer que foi feito por mais de um. Os homens em hordas são piores do que a sós. Tenho um palpite de que devem ter sido os homens de Vortigern, vindos da cidade. — Provavelmente você tem razão. Vou descobrir. — Acha que chegará a ver sua mãe? — Posso tentar. — Ele... você tem algum recado para ela? — Suponho que isto era a medida das minhas relações com Cadal, e o que o encorajava-o a fazer tal pergunta. Respondi-lhe muito simplesmente. — Você quer saber se Ambrosius mandou dizer-lhe alguma coisa? Não. Deixou ao meu critério. O que vou dizer dependerá totalmente do que aconteceu desde que parti. Conversarei com ela primeiro e julgarei o quanto poderei contar-lhe depois. Não se esqueça de que não a vejo há muito tempo, e as pessoas mudam. Quero dizer, suas lealdades mudam. Veja o meu caso. A última vez que a vi, era apenas uma criança e só guardei as recordações de uma criança — e pelo que sei posso tê-la compreendido totalmente mal, sua maneira de pensar e as coisas que queria. A lealdade dela pode pertencer a mais alguém — não apenas quanto à Igreja, mas no que se refere aos seus sentimentos sobre Ambrosius. Os deuses sabem que ela não seria culpada por ter mudado. Nada devia a Ambrosius. Certificou-se bem disso. Ele comentou pensativo, os olhos na grande extensão verde cortada pelo rio: — O convento não foi tocado. — Exatamente. O que quer que tenha acontecido à cidade, Vortigern deixou o convento de São Pedro em paz. Portanto, é preciso ver quem está a favor de quem, antes de transmitir recados. O que ela

não sabe de todos esses anos, não lhe fará mal continuar ignorando por outro tanto. O que quer que aconteça, com a vinda de Ambrosius tão próxima, não devo arriscar-me a contar-lhe demais. Ele começou a recolher os restos da refeição e eu continuei sentado, o queixo na mão, pensando, os olhos perdidos na distância colorida. Acrescentei lentamente: — É bastante simples descobrir onde Vortigern se encontra agora e se Hengist já desembarcou e quantos homens trouxe. Marric provavelmente descobrirá tudo isso sem muito esforço. Mas há outras sondagens que o Conde me encarregou de fazer, coisas que dificilmente saberão no convento, e já que Galapas está morto, terei de tentar em outros lados. Esperemos aqui até o crepúsculo, para então descermos para o convento. Minha mãe poderá dizer-me a quem ainda poderei procurar em segurança. — Olhei para ele. — Qualquer que seja o rei que ela favoreça, é pouco provável que me denuncie. — Bastante verdadeiro. Bem, esperemos que o deixem vê-la. — Se ela souber quem está à sua procura, imagino que será necessária mais do que uma palavra da Abadessa para impedi-la de ver-me. Não se esqueça de que é ainda a filha de um rei. — Recostei-me na relva morna, as mãos cruzadas sob a cabeça. — Mesmo que eu ainda não seja filho de um rei... Mas, filho de rei ou não, não conseguimos penetrar no convento. Estivera certo ao pensar que nenhum dano fora causado ao convento. As muralhas erguiam-se intactas e sem arranhões e os portões de carvalho com dobradiças e tranca de ferro eram novos e sólidos. Estavam bem fechados. Felizmente, tampouco havia archote algum do lado de fora para dar-nos as boas-vindas. A rua estreita estava vazia e escura ao amanhecer. Ao nosso toque impaciente, uma pequena janela quadrada abriu-se no portão e um olho apareceu pela grade. — Viajantes de Cornwall — disse, baixinho. — Precisava falar com Lady Niniane. — Lady quem? — Era uma voz monótona e sem inflexão como a dos surdos. Perguntando-me, irritado, por que colocariam uma porteira surda no portão, ergui um pouco a voz, acercando-me da grade: — Lady Niniane. Não sei como se chama agora, mas era a irmã do falecido rei. Ainda está aí? — Está, mas não quer ver ninguém. É uma carta que traz? Ela pode ler. — Não, preciso falar-lhe pessoalmente. Leve-lhe o recado; diga-lhe que é... uma pessoa da família. — Família dela? — Pensei ter visto uma faísca de interesse nos olhos. — A maioria está morta ou partiu. As notícias não chegam a Cornwall? O rei, irmão dela, morreu em combate no ano passado e as crianças foram levadas por Vortigern. O próprio filho está morto há cinco anos. — Eu sei disso. Não sou da família do irmão dela. E sou tão leal ao Suserano quanto ela própria. Diga-lhe isso. E olhe... tome isso para as suas... devoções. Uma bolsa passou pela grade e foi agarrada prontamente. — Levarei o seu recado. Dê-me seu nome. Não digo que ela vá vê-lo, compreende, mas levar-lheei seu nome. — Meu nome é Emrys. Ela me conhecia. Diga-lhe isso. E apresse-se. Esperaremos aqui. Mal se passaram dez minutos e ouvi os passos voltarem. Por um momento pensei que fossem de minha mãe, mas os mesmos olhos conhecidos espreitaram pela grade, as mesmas mãos crispadas

segurando as barras de ferro. — Ela o receberá. Oh, não, não agora, jovem. Você não pode entrar. Nem ela pode sair enquanto não tenha terminado as orações. Então, irá encontrá-lo no caminho do rio, mandou-me dizer. Há um outro portão daquele lado da muralha. Mas não deixe ninguém vê-lo. — Muito bem. Terei cuidado. Eu podia ver o branco dos seus olhos revirando, quando tentou ver-me nas sombras. — Ela o conheceu na mesma hora, Emrys não é? Bem, não se preocupe, não direi nada. Estes são tempos difíceis, e quanto menos se falar melhor, qualquer que seja o assunto. — A que horas? — Uma hora depois do nascer da lua. Ouvirá o sino. — Estarei lá — disse eu, mas a grade já se fechara. A neblina subia outra vez do rio. Isso seria útil, pensei. Descemos silenciosamente pela vereda que contornava as muralhas do convento e a seguir se afastava das ruas, descendo em direção ao caminho do reboque. — E agora? — perguntou Cadal. — Ainda faltam duas horas até o nascer da lua e, pelo jeito da noite, teremos sorte se chegarmos a ver a lua. Você não vai arriscar uma ida a cidade? — Não. Mas não vale a pena esperar nesta garoa. Vamos descobrir um lugar abrigado de onde possamos ouvir o sino. Por aqui. O portão da estrebaria estava trancado. Não perdi tempo com ele, mas rumei para a muralha do pomar. Não havia luzes no palácio. Trepamos pelo lugar onde a muralha estava partida e continuamos pela relva do pomar até o jardim do meu avô. O ar estava carregado do cheiro úmido da terra e das plantas, hortelã, rosas amarelas, musgo e folhas novas pesadas de orvalho. A fruta não colhida no ano anterior era esmagada sob os nossos pés. Atrás de nós o portão rangeu, ecoando no vazio. As colunatas estavam desertas, as portas fechadas, as venezianas trancadas sobre as janelas. O lugar era todo escuridão, ecos, e correria de ratos. Mas não havia danos aparentes. Suponho que, quando Vortigern havia tomado a cidade, tencionara guardar a casa para si e de alguma forma persuadira os saxões a poupá-la do saque e — temendo os bispos — forçara-os a poupar o convento. Tanto melhor para nós. Ao menos, teríamos uma espera confortável e seca. O tempo que eu passara com Tremorinus teria sido desperdiçado se eu não soubesse arrombar todas as fechaduras do lugar. Estava justamente comentando isso com Cadal quando de repente, pelo canto da casa, caminhando macio como um gato pelas lajotas cobertas de musgo, surgiu um rapaz apressado. Parou imediatamente ao ver-nos e percebi sua mão correr rápida ao quadril. Mas no mesmo instante em que a arma de Cadal sibilou, soltando-se da bainha, em resposta, o rapaz espreitou, arregalou os olhos e exclamou: — Myrddin, pelo carvalho sagrado! Por um momento realmente não o reconheci, o que era compreensível, já que ele era muito mais velho que eu e mudara bastante em cinco anos. Então, inequivocamente, percebi quem era: ombros largos, queixo proeminente, o cabelo que mesmo na penumbra era vermelho: Dinias, que fora príncipe e filho do Rei quando eu era um bastardo sem nome. Dinias, meu "primo", que nem mesmo reconhecia tal parentesco, mas que reivindicara o título de príncipe para si mesmo, e tivera permissão para mantê-lo.

Agora mal seria tomado por um príncipe. Mesmo à luz fugidia eu podia ver que estava vestido, não pobremente, mas com roupas próprias de um mercador, e só trazia uma jóia, um bracelete de cobre. O cinto era de couro simples, e o cabo da espada era simples também; a capa, embora de boa fazenda, estava manchada e desfiada nas pontas. Em toda a sua pessoa havia um ar indefinível de desânimo que vem do cálculo inexorável do dia-a-dia ou talvez de refeição a refeição. Já que, apesar das mudanças consideráveis, era ainda, indiscutivelmente, o meu primo Dinias, era de supor que uma vez que me tivesse reconhecido, não havia vantagem em fingir que se enganara. Sorri e estendi a mão. — Bem-vindo, Dinias. É o primeiro rosto conhecido que vejo hoje. — Em nome dos deuses, o que está fazendo aqui? Todos diziam que estava morto, mas não acreditei. Sua grande cabeça avançou, espiando-me de perto, enquanto os olhos rápidos me mediam de alto a baixo. — Onde quer que tenha estado, saiu-se bem, ao que parece. Há quanto tempo voltou? — Chegamos hoje. — Então soube das notícias? — Eu já sabia que Camlach estava morto. Sinto muito... se é que você sentiu. Como sabe, ele não era meu amigo, mas isso nada tinha a ver com a política... Fiz uma pausa aguardando. Deixei-o fazer a jogada. Percebi pelo canto dos olhos que Cadal continuava tenso e vigilante, a ainda no quadril. Fiz um movimento horizontal com a palma mão voltada para baixo e vi-o descontrair-se. Dinias ergueu o ombro. — Camlach? Foi um tolo. Disse-lhe para que lado o lobo iria pular. — Ao falar, vi seus olhos correrem em direção às sombras Parecia que os homens tomavam cuidado com a língua nos dias que corriam em Maridunum. Seus olhos voltaram para mim, cheios de suspeita, desconfiados. — O que está fazendo aqui, afinal? por que voltou? — Para ver minha mãe. Tenho estado em Cornwall e só o que ouvimos são boatos de lutas. Quando soube que Camlach estava morto, e Vortimer também, fiquei imaginando o que teria acontecido em casa. — Bem, ela está viva, já descobriu, não? O Suserano — erguendo a voz — respeita a Igreja. Mas duvido de que você consiga vê-la. — Provavelmente tem razão. Fui ao convento e não me deixaram entrar. Mas estarei aqui alguns dias. Vou mandar-lhe um recado e, se ela quiser receber-me, creio que dará um jeito. Mas, pelo menos, sei que está a salvo. Foi realmente uma sorte encontrá-lo aqui assim. Poderá dar-me o resto das notícias. Eu não fazia idéia do que iria encontrar aqui, pois, como vê, cheguei esta manhã furtivamente, só com o meu criado. — Furtivamente é certo. Pensei que fossem ladrões. Tiveram sorte em que eu não os cortasse primeiro e deixasse as perguntas para depois. Era o velho Dinias, o tom novamente fanfarrão, numa resposta imediata ao meu tom brando de desculpas. — Bem, eu não queria arriscar-me até saber como estava a família. Rumei para São Pedro, esperei até o anoitecer para isso, e vim dar uma espiada aqui. O lugar está vazio então?

— Eu ainda estou morando aqui. Onde mais? A arrogância soava vazia como a colunata deserta e por um momento me senti tentado a pedir-lhe acolhida e ver o que diria. Como se o pensamento lhe tivesse ocorrido no mesmo momento, perguntou rápido: — Cornwall, hem? Quais são as notícias de lá? Dizem que os mensageiros de Ambrosius estão cruzando o Mar Estreito como moscas. Ri. — Eu não saberia. Tenho levado uma vida reclusa. — Escolheu o lugar certo. — O desprezo que eu recordava tão bem estava de volta na sua voz. — Dizem que o velho Gorlois passou I o inverno aconchegado na cama com uma menina que ainda não fez vinte anos, e deixou o resto dos reis entretidos com seus jogos na neve. Dizem que ela faria Helena de Tróia parecer uma feirante. Como é ela? — Nunca a vi. Ele é um marido ciumento. — Ciúmes de você? — Ele riu e acrescentou um comentário que fez Cadal ofegar atrás de mim. Mas a piada fizera voltar o bom humor do meu primo e sua descontração. Eu ainda era o priminho bastardo que não contava. Ele acrescentou: — Foi conveniente para você. Teve um inverno tranqüilo, você e o seu duque lho e libidinoso, enquanto o resto corria pelo país atrás dos saxões. Então ele lutara com Camlach e Vortimer. Era o que eu queria saber. Disse com humildade: — Não posso ser considerado responsável pela política do duque, então ou agora. — Hum! Tanto melhor para você. Sabia que ele estava no Norte com Vortigern? — Sabia que partira para encontrar-se com ele... em Caer'n-ar-Von, não foi? Você vai para lá? — Pus a mais suave das interrogações na voz, acrescentando mansamente: — Eu não estive realmente em condições de saber notícias importantes. Uma corrente fria de ar carregado de umidade passou entre as colunas. De alguma calha partida acima de nós a água escorreu de repente, caindo entre nós sobre as lajotas. Vi-o aconchegar a capa ao corpo. — Por que estamos de pé aqui? — Falou com uma animação brusca que soou tão falsa quanto sua arrogância. — Vamos trocar notícias com uma garrafa de vinho, hem? Hesitei, mas apenas por um momento. Parecia óbvio que Dinias tivesse suas próprias razões para se manter fora das vistas do Suserano. Por um lado, se tivesse conseguido sobreviver à sua ligação com Camlach, estaria certamente com o exército de Vortigern e não esquivando-se nesses andrajos por um palácio vazio. Por outro lado, agora que sabia que eu estava em Maridunum, eu preferia mantê-lo debaixo dos meus olhos a deixá-lo sair falando com quem quisesse. Assim, aceitei com toda a aparência de prazer, apenas insistindo em que jantasse comigo, se pudesse dizer-me onde arranjar uma boa refeição e um lugar para sentarmos fora do sereno...! Antes que as palavras tivessem acabado de me sair da boca, ele já me tomava pelo braço e me conduzia apressado pelo átrio em direção à porta da rua. — Ótimo, ótimo. Há um lugar ali do lado oeste, passando a ponte. A comida é boa e eles têm a espécie de clientela que não se e com a vida dos outros. — Piscou. — Não que você vá querer uma garota, vai? Embora não pareça que o tenham transformado num padre, afinal...? Bem, por ora chega,

não é conveniente parecer que se tem muito o que conversar nestes dias... Ou a gente se indispõe com os galeses ou se indispõe com Vortigern... e a cidade está regurgitando de espiões no momento. Não sei quem estão procurando, mas corre uma história... Não, leve daqui essa porcaria. Disse estas últimas palavras ao mendigo que empurrara urna bandeja de pedras rústicas e renda de couro à nossa frente, o homem recuou sem dizer palavra. Vi que era cego de um olho devido a um talho. Uma cicatriz horrenda corria-lhe pela face e achatava-lhe a ponta do nariz. Parecia um corte produzido por espada. Deixei cair uma moeda na bandeja quando passamos e Dinias lançou-me um olhar pouco amistoso. — Os tempos mudaram, hem? Deve ter ficado rico em Cornwall! Diga-me, o que aconteceu aquela noite? Você quis mesmo incendiar todo o maldito palácio? — Falarei sobre isso durante a ceia — respondi e não quis dizer mais nada até alcançarmos o abrigo da taverna e arranjarmos um banco a um canto com as costas voltadas para a parede.

5 Eu estivera certo ao julgar a pobreza de Dinias. Mesmo na penumbra fumacenta do salão repleto da taverna pude constatar o estado andrajoso das suas roupas, e perceber o ar entre ressentido e ansioso com que me observava. Eu pedira comida e uma jarra do melhor vinho. Enquanto esperávamos, pedi licença para dar uma palavrinha à parte com Cadal. — Talvez eu possa obter dele alguns dos fatos que procuro. De qualquer forma achei melhor ficar com ele... prefiro mantê-lo sob as minhas vistas, no momento. A probabilidade é que fique completamente bêbedo até o nascer da lua, tornando-se inofensivo, e nesse caso ou meto-o na cama com uma moça ou, se já passou desse ponto, levo-o para casa a caminho do convento. Se não parecer que eu vá conseguir sair daqui até o nascer da lua, corra para o portão da trilha de reboque e encontre-se com minha mãe. Diga-lhe que estou a caminho, mas topei com meu primo Dinias e preciso livrar-me dele antes. Ela compreenderá. Agora coma alguma coisa. — Tenha cuidado, Merlin. Seu primo, foi o que disse? Uma flor, sem dúvida alguma. E não gosta de você. Ri. — Acha que isso é novidade? É mútuo. — Oh! Bem, desde que você fique alerta. — Farei isso. As maneiras de Dinias continuavam suficientemente boas para fazê-lo esperar até que eu dispensasse Cadal e me sentasse para servir o vinho. Tivera razão quanto à comida. A torta que nos trouxeram estava recheada de carne e ostras num molho grosso e fumegante e o pão, embora fosse feito de cevada, estava fresco. Os outros artigos da taverna pareciam igualar-se à comida. De tempos em tempos podíamos apreciá-los de relance quando uma moça espreitava, sorridente, pela cortina de uma porta e um dos homens pousava o caneco e corria atrás dela. Pela maneira como os olhos de Dinias se demoravam na cortina mesmo enquanto comia, pensei que não teria dificuldade em livrar-me dele sem despertar suspeitas, uma vez que obtivesse as informações desejadas. Esperei até que estivesse a meio da torta, antes de começar a perguntar. Não gostaria de esperar muito mais, porque pela maneira como ele se atirava ao jarro de vinho, entre cada garfada, apesar da fome, eu receava que, se deixasse para mais tarde, suas idéias já não estariam bastante claras para me dizer o que eu queria saber. Até que me assegurasse do terreno, eu não estava preparado para aventurar-me em campo arriscado, mas sendo minha família o que era, poderia extrair muitas das informações que Ambrosius desejava apenas indagando pelos parentes. A isso ele atendeu com presteza. Para começar, eu fora considerado morto desde a noite do incêndio. O corpo de Cerdic fora destruído e todo aquele lado do pátio junto com ele, e quando meu pônei chegou a casa e não havia sinais de mim, só puderam concluir que eu perecera com Cerdic e desaparecera de igual forma. Minha mãe e Camlach tinham enviado homens para baterem os arredores, mas naturalmente não encontraram vestígio algum. Parecia que não suspeitavam de que eu pudesse ter partido por mar. O navio mercante não 'ancorara em Maridunum e ninguém vira o bote.

O meu desaparecimento — como era de esperar — causara pouca agitação. O que minha mãe pensara ninguém sabia, mas aparentemente retirara-se para a reclusão do convento de São Pedro, quase em seguida. Camlach não perdera tempo em proclamar-se rei e por uma questão de formalidade oferecera proteção a Olwen, mas já que a esposa tivera um filho e esperava um segundo, era um segredo conhecido que a rainha Olwen logo se casaria com algum chefe inofensivo e preferivelmente distante... E assim por diante. Isto quanto às notícias do passado, que não eram novidade nem para mim, nem para Ambrosius. Quando Dinias terminou a refeição e se recostou à parede desapertando o cinto, descontraído pela comida, pelo vinho e pelo calor, julguei que era hora de mudar para perguntas mais próximas e imediatas sobre o presente. A taverna enchia-se agora e havia bastante barulho para encobrir o que dizíamos. Umas duas moças tinham saído dos quartos internos e havia muitos risos e brincadeiras. Estava bastante escuro lá fora e aparentemente mais úmido do que nunca. Os homens entravam sacudindo-se como cães, pedindo bebidas quentes aos gritos. O ar estava carregado de fumaça de turfa e o carvão das grelhas, odores da comida quente, e mau cheiro de lâmpadas de óleo barato. Eu não temia ser reconhecido. Qualquer um teria que se debruçar sobre nossa mesa e perscrutar-me bem o rosto até mesmo para ver-me. — Quer que mande trazer mais carne? — perguntei. Dinias sacudiu a cabeça, arrotou e sorriu. — Não, obrigado. Estava bom. Sou-lhe grato. Agora as suas notícias. Já ouviu as minhas. Onde esteve estes anos todos? — Estendeu a mão para o jarro de vinho outra vez, virando-o de cabeça ara baixo sobre o copo vazio. — O desgraçado está vazio. Pedimos mais? Hesitei. Parecia-me que a cabeça dele não era boa para vinho e eu não o queria bêbedo cedo demais. Ele compreendeu mal minha hesitação. — Vamos, vamos, certamente não me vai negar outro jarro de vinho, vai? Não é todo dia que um parente rico volta de Cornwall. Que o atraiu lá, hem? E o que esteve fazendo esse tempo todo? Vamos, jovem Myrddin, vamos ouvi-lo, não? Mas, primeiro o vinho. — Bem, naturalmente — disse eu e dei ordem para o menino que servia. — Mas não use meu nome aqui por favor, se não se importa. Estou usando o nome de Emrys até ver para que lado sopra o vento. Ele aceitou isso tão prontamente que percebi que as coisas estavam ainda mais arriscadas em Maridunum do que eu pensara. Parecia que era perigoso até mesmo usarem-se nomes. A maioria dos homens na taverna pareciam galeses. Não havia ninguém que eu reconhecesse, o que não chegava a surpreender-me, considerando a companhia com quem andava há cinco anos atrás. Mas havia um grupo junto à porta que, pelo cabelo e barba claros, deveriam ser saxões. Julguei que fossem homens de Vortigern. Não falamos até que o menino colocasse uma garrafa nova à nossa frente. Meu primo» serviu-se, afastou o prato e recostou-se, fitando-me inquisitivo. — Bem, vamos, conte-me o que tem feito. O que aconteceu na noite em que partiu? Com quem foi? Você não deveria ter mais que doze ou treze anos quando desapareceu, não? — Encontrei uns mercadores que seguiam para o sul — contei-lhe. — Paguei minha passagem com um dos broches que meu a... que o velho rei me dera. Levaram-me com eles até Glastonbury. Então tive um pouco de sorte e encontrei outro mercador que ia para o Oeste até Cornwall com artigos de vidro da Ilha e que me permitiu acompanhá-lo. — Baixei os olhos como se evitasse seu olhar e girei o copo entre as mãos. Ele queria estabelecer-se como cavalheiro e achou que seria apropriado ter um menino que cantasse e tocasse harpa além de ler e escrever.

— Hum. Muito provável. — Eu sabia o que ele iria pensar a minha história e, na verdade, seu tom denunciava satisfação, como se o desprezo que me votava se justificasse. Tanto melhor assim. Não me faria diferença o que ele pensasse. — Então? — perguntou-me. — Oh, fiquei assim alguns meses e ele era muito generoso, tanto ele quanto seus amigos. Consegui até pôr alguma coisa de lado... — Tocando harpa? — perguntou, revirando os lábios. — Tocando harpa — respondi brandamente. — E também lendo e escrevendo... eu fazia a contabilidade para ele. Quando voltamos ao Norte, queria que eu continuasse com ele, mas eu não quis voltar. Não tinha coragem — acrescentei com toda a franqueza. — Não era difícil encontrar lugar numa casa religiosa. Oh, não, eu era muito jovem para ser mais que um leigo. Para lhe dizer a verdade, gostei muito. É uma vida tranqüila. Ocupei-me em ajudá-los a passar a limpo cópias da história da queda de Tróia. — Sua expressão deu-me vontade de rir e baixei os olhos para o caneco novamente. Era de louça boa, de Samia, o esmalte grosso, e a marca do oleiro ainda legível. A. M. Ambrosius made me{{3}), pensei de súbito e alisei as letras carinhosamente com o polegar enquanto terminava para Dinias o relato dos cinco anos inofensivos do seu primo bastardo. — Trabalhei lá até que começaram a chegar os boatos de casa. Não lhes prestei muita atenção a princípio... os boatos estão sempre correndo. Mas quando soube que era verdade que Camlach morrera e a seguir Vortimer, comecei a imaginar o que poderia ter acontecido em Maridunum. Senti que precisava rever minha mãe. — Não vai ficar aqui? — Duvido muito. Gosto de Cornwall, e tenho lá uma espécie de lar. — Então vai-se tornar padre? Dei de ombros. — Ainda não sei. Afinal é o que sempre quiseram que eu fizesse. Não importa que futuro haja lá, o meu lugar já não existe, se é que algum dia existiu. E certamente não sou guerreiro. Ele sorriu a isto. — Bem, para dizer a verdade, você nunca foi, não é? E a guerra aqui não está terminada. Mal começou, deixe-me dizer-lhe. — E debruçou-se na mesa confidencialmente, mas o movimento derrubou o copo, que rolou, escorrendo o vinho pela borda. Ele agarrou-o e conseguiu firmá-lo. — Quase derramei e o vinho está no fim outra vez. Não é nada mal, hem? Que tal outro? — Se quiser. Mas estava dizendo...? — Cornwall. Sempre pensei em ir lá. O que dizem de Ambrosius? O vinho já estava produzindo efeito. Esquecera-se da confidencia. a voz elevava-se e vi algumas cabeças voltarem-se para nós. Ele ignorou-as. — É, imagino que se ouviria alguma coisa lá, se houvesse notícias para serem ouvidas. Dizem que é lá que ele irá desembarcar, hem? — Oh! — disse eu, bem-humorado. — Há boatos o tempo todo. £ isso há anos, sabe como é. Ele ainda não veio, assim o seu palpite é tão válido quanto o meu. — Quer apostar? — Vi-o meter a mão na bolsa que trazia à cintura e puxar um par de dados, que atirou despreocupado de uma mão para a outra — Vamos, que tal um joguinho?

— Não, obrigado. Pelo menos, não aqui. Olhe, Dinias, vou-lhe fazer uma proposta: que tal pedirmos mais uma garrafa ou duas se quiser e irmos para casa bebê-las? — Casa? — exclamou, desdenhoso, com a boca frouxa. — Onde fica isso? Um palácio vazio? Ele continuava a falar alto e do outro lado da sala percebi alguém que nos observava. Ninguém que eu conhecesse. Dois homens de roupas escuras: um deles de barba rente, o outro de rosto magro, ruivo, com um nariz comprido como o de uma raposa. Galeses, pelo jeito. Tinham uma garrafa no banquinho diante deles, e as canecas nas mãos, mas a garrafa permanecia no mesmo nível há bem uma meia hora. Olhei para Dinias. Julguei que atingira agora o estado de ânimo que o predispunha a confidencias amistosas ou a discussões violentas. Insistir em sair poderia significar uma briga e se estávamos sendo vigiados, e se a aglomeração junto à porta se compusesse realmente de homens de Vortigern, seria melhor continuar ali e conversar calmamente do que levar meu primo para a rua e talvez sermos seguidos. O que, afinal de contas, importaria a menção do nome de Ambrosius? Logicamente estaria na boca de todo o povo e se, como parecia provável, os boatos estivessem mais fortes que de costume, todos, tanto amigos quanto inimigos de Vortigern, estariam a discuti-los. Dinias deixara cair os dados sobre a mesa e com um indicador razoavelmente firme empurrava-os de cá para lá. Ao menos nos proporcionariam uma desculpa para juntarmos as cabeças em conversa no nosso canto. E os dados talvez desviassem sua atenção da garrafa de vinho. Produzi uma mão cheia de moedas. — Olhe, se quer realmente jogar. O que tem para apostar? Enquanto jogávamos, eu estava consciente de que o Barbanegra e a raposa estavam a nos escutar. Os saxões perto da porta pareciam bastante inofensivos, a maioria já três quartos bêbeda, falando alto entre si, não prestando atenção a mais nada. Mas o Barbanegra mostrava-se interessado. Lancei os dados. Cinco e quatro. Bom demais. Eu queria que Dinias ganhasse alguma coisa. Não poderia oferecer-lhe dinheiro para que fosse para trás da cortina com uma moça. Entrementes, para despistar o Barbanegra... Eu disse, então, não muito alto, mas bastante claro: — Ambrosius, não é? Bem, você conhece os boatos. Não ouvi nada de positivo sobre ele, apenas as histórias de sempre, que vêm circulando nos últimos dez anos. Oh, sim, dizem que virá a Cornwall, ou Maridunum, ou Londres, ou Avon... pode escolher... É a sua vez. — A atenção do Barbanegra desviara-se. Cheguei mais perto para observar o lance de Dinias e baixei a voz. — E, se ele viesse agora, o que aconteceria? Você deve saber melhor do que eu. Será que o que sobra do Oeste se levantaria com ele ou permaneceria fiel a Vortigern? — O Oeste se levantaria em chamas. Já fez isso antes, sabe Deus. Dobra ou desiste? Chamas como as da noite em que você partiu. Meu Deus, como me ri! O pequeno bastardo ateia fogo ao palácio e parte. Por que fez aquilo? É minha: dois cincos. Jogo outra vez. — Certo. Por que parti, quer dizer? Já lhe disse, tinha receio de Camlach. — Não foi isso que perguntei, e sim por que ateou fogo ao palácio? Não me diga que foi um acidente, porque não acredito. — Foi uma pira funerária. Acendi-a porque mataram o meu criado. Ele encarou-me, os dados ainda na mão. — Você tacou fogo no palácio do Rei por causa de um escravo?

— Por que não? Acontece que eu gostava mais do meu escravo do que de Camlach. Ele me lançou um olhar ligeiramente embriagado e atirou os dados. Um dois e um quatro. Puxei de volta algumas moedas. — Desgraçado! — disse Dinias. — Você não tem o direito de ganhar, já possui o bastante. Muito bem, outra vez. Seu criado, então I Usa um tom bem arrogante para um bastardo que se faz de escriba numa cela de padre. Sorri. — Você também é bastardo, lembre-se, querido primo. — Talvez, mas ao menos sei quem foi meu pai. — Fale baixo, as pessoas estão escutando. Muito bem, é sua vez. Uma pausa enquanto os dados rolavam. Observei-os um tanto ansioso. Até agora a tendência fora favorecer-me. Como seria útil e o poder pudesse influenciar essas pequenas coisas 1 pensei. Não requereria esforço e tornaria tudo mais suave. Mas eu começava a aprender que na realidade o poder não tornava nada mais fácil. Quando vinha, era como segurar um lobo pelo pescoço. Às vezes, sentiame como aquele menino da lenda antiga que encilhava os cavalos do Sol e percorria o mundo como um deus até que o poder o matou carbonizado. Não sabia eu se algum dia sentiria outra vez as chamas. Os dados escorregaram dos meus dedos muito humanos. Dois e um. Não há necessidade de poder quando se pode ter sorte. Dinias rosnou de satisfação e recolheu-os enquanto eu empurrava algumas moedas na sua direção. O jogo continuou. Perdi os três lances seguintes e a pilha dele cresceu consideravelmente. Ele começou a descontrair-se. Ninguém nos prestava atenção agora. Fora minha imaginação. Talvez estivesse na hora de extrair mais alguns fatos. — Onde está o Rei agora? — Ah? Oh, sim, o Rei. Já está fora daqui há um mês. Mudou-se para o Norte assim que o tempo melhorou e as estradas foram abertas. — Para Caer'n-ar-Von? Você tinha dito Segontium! — Disse? Oh, bem, suponho que ele a considere sua base, mas quem quereria ser apanhado naquela ponta entre Wyddfa e o mar? Não, ele está construindo para si uma nova fortaleza, dizem. Você falou em pedir outra garrafa? — Aí vem ela. Sirva-se, já bebi o suficiente. Uma fortaleza, diz você? Onde? — O quê? Oh, sim! É um bom vinho esse. Não sei exatamente onde está construindo... em alguma parte de Snowdon. Já lhe disse. Chamam-na de Dinas Brenin... ou a chamariam se a conseguissem construir. — O que é que os impede? Ainda há problemas lá? A facção e Vortimer ou coisa nova? Dizem em Cornwall que ele tem trinta mil saxões às suas costas. — Às suas costas e dos dois lados — saxões por toda a parte, tem o nosso Rei. Mas não com ele. Com Hengist, e Hengist e o Rei não estão lá muito de acordo. Oh, ele está cercado, Vortigern está, posso afirmar-lhe! — Felizmente ele falava baixo e as palavras se perdiam no chocalhar dos dados e no tumulto à nossa volta. Ele franziu o cenho para a mesa ao lançar os dados. — Olhe para isto. Essas coisinhas malditas estão enfeitiçadas. Como o Forte do Rei. Em algum ponto as palavras fizeram vibrar as cordas de uma lembrança que ressoou fugaz e

indefinível como uma abelha nos pés de lima. Perguntei, indiferente, fazendo o meu lance: — Enfeitiçado? Como? — Ah, assim está melhor. Devo ser capaz de batê-lo. Oh, bem, você conhece esses homens do Norte: se o vento sopra mais frio uma manhã, dizem que é um espírito passando. Não usam observadores naquele exército, os adivinhos se encarregam de tudo. Soube que já construíram as paredes quatro vezes até a altura de um homem, e todas as vezes, na manhã seguinte, encontram-nas rachadas de uma ponta a outra... Que tal? — Não está mal. Receio que não possa batê-lo. Postaram guardas lá? — Naturalmente. Eles nada viram. — Por que deveriam ver? — Parecia que a sorte estava contra nós dois. Os dados estavam enfeitiçados para Dinias como as muralhas de Vortigern. Contra a minha vontade, consegui um par de dois. Carregando os sobrolhos, Dinias empurrou metade de sua pilha para mim. Eu disse: — Parece que ele escolheu um lugar pouco firme. Por que não muda? — Escolheu o topo de um penhasco, um lugar tão bom para defender como não há outro em Gales. Controla o vale para o norte e para o sul sobre o ponto da estrada em que os penhascos se estreitam de ambos os lados e a estrada fica espremida sob o penhasco. E diabos, já existiu uma torre lá antes. A gente local chama-a de Forte do Rei há centenas de anos. Forte do Rei... Dinas Brenin... O zumbido cresceu, transformando-se numa lembrança clara. Bétulas brancas como ossos contra um céu azul leitoso. O grito do falcão. Dois reis passeando juntos e a voz de Cerdic dizendo: "Desça e lhe arranjo para entrar num joguinho de dados." Antes que desse por mim, consegui-o tão bem quanto o próprio Cerdic: bati nos dados que ainda giravam, com um dedo rápido. Dinias, virando a garrafa vazia na caneca, nem notou. Os dados assentaram. Dois e um. Eu disse, triste: — Você não terá muita dificuldade em bater isso. Ele bateu, mas por um triz. Puxou as moedas para si com um grunhido de satisfação, então esparramou-se pela mesa, o cotovelo numa poça de vinho. Mesmo que eu conseguisse deixar esse bêbedo idiota ganhar o suficiente, pensei, teria sorte se pudesse arrastá-lo até a cortina que levava aos quartos do bordel. Meu lance outra vez. Ao sacudir a caixa, vi Cadal na porta esperando que eu o notasse. Estava na hora de ir-me. Acenei com a cabeça e ele retirou-se. Quando Dinias olhou querendo saber para quem eu acenara, atirei os dados novamente e virei um seis com a manga. Um e três. Dinias soltou uma exclamação de satisfação e estendeu a mão para a caixa. — Vou-lhe dizer uma coisa — falei eu. — Mais um lance e vamo-nos, perdendo ou ganhando. Comprarei outra garrafa e levamo-la conosco para beber nos meus aposentos. Estaremos mais confortáveis do que aqui. Uma vez que o levasse para fora, calculei, Cadal e eu nos encarregaríamos dele. — Aposentos? Eu poderia ter-lhe oferecido aposentos. Há bastante lugar lá, não precisava ter mandado o criado procurar alojamento. É preciso ser cuidadoso nos dias que correm, sabe? Aí. Um par de cincos. Bata isso, se puder, Merlin bastardo. Ele virou o resto do vinho pela garganta, engoliu e recostou-se, sorrindo. — Entrego-lhe o jogo.

Empurrei as moedas para ele e fiz com que se erguesse. Quando olhei em meu redor à procura do menino que servia para pedir a garrafa prometida, Dinias bateu a mão na mesa com estrondo. Os dados pularam e chocalharam e um caneco rolou, partindo-se no chão. Os homens pararam de conversar, encarando-nos. — Oh, não, isso não! Vamos jogar até o fim! Sair na hora em que a sorte está começando a virar, não é? Não vou aturar isso de você nem de ninguém! Sente-se e jogue, meu primo bastardo... — Oh, pelo amor de Deus, Dinias... — Está bem, eu também sou bastardo! Só posso dizer que é melhor ser bastardo de um rei do que filho de pai desconhecido, que nunca teve pai! Ele terminou com um soluço e alguém riu. Ri também e estendi a mão para os dados. — Muito bem, levaremos os dados conosco. Já lhe disse que, perdendo ou ganhando, levaremos uma garrafa para casa. Poderemos terminar o jogo lá. Está na hora de bebermos juntos até dormir. Uma mão caiu pesada sobre o meu ombro. Quando me virei ira ver quem era, alguém acercou-se do outro lado e agarrou-me o braço. Vi Dinias arregalar os olhos de boca aberta. À nossa volta todos os que bebiam ficaram subitamente silenciosos. Barbanegra apertou-me mais. — Quieto, jovem senhor. Não queremos uma discussão, não é? Podemos falar com você lá fora?

6 Pus-me de pé. Não percebi indicação alguma nos rostos que me observavam ao redor. Ninguém falava. — De que se trata? — Lá fora, faz favor — repetiu Barbanegra. — Não queremos uma... — Não me importo nem um pouquinho de discutir — interrompi-o, decidido. — Vão-me dizer quem são, antes que eu dê mais um passo com vocês. E, para começar, tirem as mãos de cima de mim. Taberneiro, quem são estes homens? — Homens do Rei, senhor. É melhor fazer o que dizem. Quem não tem nada a esconder... — "Nada tem a temer?" — disse eu. — Conheço essa, e nunca é verdadeira. — Afastei a mão de Barbanegra do meu ombro e voltei-me para encará-lo. Vi Dinias observar-me de boca aberta. Esse, devia estar imaginando, não era o primo de voz mansa que ele conhecia. Bem, o tempo para isso acabara. — Eu não me importo de que os presentes ouçam o que têm a dizer. Digam-me aqui mesmo. O que querem falar comigo? — Estamos interessados no que seu amigo estava dizendo. — Então por que não conversam com ele? Barbanegra respondeu, imperturbável: — Tudo ao seu tempo. Se me disser quem é e de onde vem?.. — Meu nome é Emrys e nasci aqui em Maridunum. Fui para Cornwall há alguns anos, quando era criança, e agora quis vir a casa saber notícias. É só. — E esse rapaz? Ele o chamou de primo. — Foi uma maneira de falar. Somos aparentados, mas não é bem assim. Provavelmente também ouviu-o chamar-me de bastardo. — Espere um instante. — A voz surgiu às minhas costas, entre o aglomerado. Um homem idoso de cabelo ralo e grisalho, ninguém que eu reconhecesse, abriu caminho em direção a nós. — Eu o conheço. Está dizendo a verdade. Ora, é Myrddin Emrys, sem dúvida, o neto do velho Rei. — E para mim: — O senhor não deve lembrar-se de mim. Eu era o camareiro do seu avô, um deles. E vou dizer uma coisa — e esticou o pescoço como uma galinha, encarando o Barbanegra. — Homens do Rei ou não, vocês não têm o direito de pôr a mão nesse jovem cavalheiro. Ele disse a verdade. Saiu de Maridunum há cinco anos atrás... é verdade, cinco, na noite em que o velho Rei morreu... e ninguém soube para onde tinha ido. Mas farei qualquer juramento que quiserem que ele nunca levantaria a mão contra o rei Vortigern. Ora, ele estava estudando para padre, e nunca pegou em armas na vida. E, se quer beber sossegado com o Príncipe Dinias, ora, eles são aparentados, conforme disse, e com quem mais iria ele beber para saber notícias de casa? — Inclinou a cabeça para mim, carinhosamente. — Sim, é verdade, esse é Myrddin Emrys, agora um adulto em vez de um garotinho, mas eu o reconheceria em qualquer parte. E deixe-me dizer-lhe uma coisa, senhor, estou muitíssimo satisfeito de vê-lo a salvo. Receávamos que tivesse morrido no incêndio. Barbanegra nem o olhara. Estava postado entre mim e a porta. Nem uma só vez tirou os olhos de mim.

— Myrddin Emrys. O neto do velho Rei — disse lentamente. - E bastardo? Filho de quem, então? Não adianta negar. Eu reconhecia o camareiro agora. Ele acenava para mim, satisfeito consigo mesmo. Disse: — Minha mãe era a filha do Rei. Niniane. Os olhos escuros estreitaram-se. — É verdade? — Bem verdade, bem verdade. — Era o camareiro, sua boa vontade comigo patente nos olhos azul-pálidos e estúpidos. Barbanegra voltou-se para mim outra vez. Vi a pergunta seguinte formar-se nos seus lábios. Meu coração batia e eu sentia o sangue subir-me no rosto. Tentei controlar-me. — E seu pai? — Não sei. Talvez ele pensasse que o rubor no meu rosto era vergonha. — Fale com cuidado agora — disse Barbanegra. — O senhor neve saber. Quem o gerou? — Não sei. Ele encarou-me. — Sua mãe, a filha do Rei. Lembra-se dela? — Lembro-me muito bem. — E ela nunca lhe contou? Quer que acreditemos nisso? Respondi irritado: — Não me faz diferença se acredita ou não. Estou cansado disso. Toda a minha vida estão sempre a perguntar-me e toda a minha vida as pessoas não acreditam. É verdade, ela nunca me contou. E duvido de que tenha contado a alguém. Pelo que sei, ela poderia até estar falando a verdade quando disse que fui gerado pelo diabo. — Fiz um gesto de impaciência. — Por que pergunta? — Ouvimos o que o outro cavalheiro disse. — Seu tom e seu olhar eram imperturbáveis. — "Prefiro ser bastardo e ter um rei por pai do que ser filho de um pai desconhecido e nunca ter tido pai!" — Se eu não me ofendi, por que se ofenderia você? Pode ver que ele bebeu demais. — Queríamos ter certeza, é só. E agora já temos. O Rei quer vê-lo. — O rei? — Devo ter parecido estúpido. Ele assentiu. — Vortigern. Estamos à sua procura há três semanas. Deverá comparecer à presença dele. — Não compreendo. Devo ter parecido perplexo e não amedrontado. Já visualizava minha missão a desmoronar-se ao meu redor, mas com isso uma mistura de confusão e alívio. Se estavam à minha procura há três semanas, certamente o fato nada teria a ver com Ambrosius. Dinias deixara-se ficar quieto a um canto. Achei que a maior parte do que fora dito não penetrara no seu cérebro, mas agora ele se curvava para a frente, as mãos espalmadas sobre a mesa molhada de vinho. — Para que ele o quer? Diga-me. — Não precisa preocupar-se — respondeu o Barbanegra, quase desdenhoso. — Não é a você que

ele quer. Mas, digo-lhe uma coisa, já que nos conduziu ao rapaz, é o senhor quem deverá receber a recompensa. — Recompensa? — perguntei. — Que conversa é essa? Dinias tornou-se de súbito completamente sóbrio. — Eu não fiz nada. Que quer dizer? Barbanegra assentiu. — Foi o que o senhor disse que nos levou a ele. — Ele estava apenas perguntando pela família, esteve fora — disse meu primo. — Vocês estavam ouvindo. Qualquer um poderia ter ouvido, não falávamos em voz baixa. Pelos deuses, se quiséssemos conspirar, iríamos conversar aqui? — Ninguém falou em conspiração. Estou apenas cumprindo o meu dever. O Rei quer vê-lo e ele terá que vir comigo. O velho camareiro falou, parecendo preocupado agora: — Vocês não podem fazer-lhe mal. Ele é quem diz ser, filho de Niniane. Podem perguntar a ela própria. Isto fez com que Barbanegra se voltasse para ele rapidamente: — Ela ainda vive? — Oh, sim, está viva, sim. Logo ali, no convento de São Pedro, passando o velho carvalho na encruzilhada. — Deixem-na em paz — exclamei, realmente amedrontado. Imaginava o que poderia ela contarlhes. — Não se esqueça de quem é ela. Mesmo Vortigern não ousará tocá-la. Além do mais, você não tem autoridade. Nem sobre ela, nem sobre mim. — Acha que não? — Bem, que autoridade tem? — Esta. — A espada curta brilhou na sua mão. Estava tão afiada que ofuscava. — A lei de Vortigern, é? Bem, não é um mau argumento. Eu o acompanharei, mas não vai conseguir muito com minha mãe. Deixe-a em paz, digo-lhe. Ela não lhe vai contar mais do que eu já contei. — Mas, pelo menos, não precisaremos acreditar quando ela disser que não sabe. — Mas é verdade. — Era o camareiro ainda tagarelando. — Digo-lhe, servi no palácio toda a minha vida e estou bem lembrado. Costumava-se dizer que ela tivera um filho do diabo, do príncipe das trevas. Mãos agitaram-se quando as pessoas fizeram o sinal. O velho continuou, os olhos postos em mim: — Vá com eles, filho, eles não farão mal ao filho de Niniane nem tampouco a ela. Haverá um tempo em que o Rei irá precisar do povo do Oeste, e quem sabe melhor que ele? — Parece que terei de ir, com essa ordem de apreensão do Rei apontada para a garganta — disse eu. — Está bem, Dinias, não foi sua culpa. Diga ao meu criado onde estou. Muito bem, vocês, levemme a Vortigern, mas tirem as mãos de cima de mim. Encaminhei-me para a porta entre os dois, os presentes abrindo ninho para nós. Vi Dinias pôr-se de pé aos tropeções e acompanhar-nos. Quando chegamos à rua, Barbanegra voltou-se. — Ia-me esquecendo. Aqui, é seu.

A bolsa do dinheiro tilintou ao bater no chão aos pés do meu primo. Não me virei. Mas, ao sair, vi, mesmo sem olhar, a expressão no rosto do meu primo quando, ao virar-se rapidamente para a direita e para a esquerda, se curvou para apanhar a bolsa e a meteu na cintura.

7 Vortigern mudara. A minha impressão de que ele se tornara menor, menos imponente, não era porque eu próprio, ao invés de uma criança, fosse agora um rapaz alto. Ele crescera, como que para dentro de si mesmo. Não tinha necessidade do simulacro de corte, da corte que era mais uma reunião de chefes guerreiros c de algumas mulheres que conseguiram reter, a indicar que eram homens em fuga. Ou antes, homens acuados a um canto. Mas um lobo acuado é mais perigoso do que um lobo livre, e Vortigern era ainda um lobo. E certamente escolhera bem o seu canto. O Forte do Rei, segundo eu me lembrava, era um penhasco que dominava o vale do rio, o topo somente atingível por uma estreita trilha semelhante a uma ponte. Esse promontório projetava-se de uma escavação circular na encosta da montanha, onde podiam pastar os cavalos e recolher-se também os outros animais. Ao redor de todo o vale erguiam-se montanhas cinzentas de cascalho ainda não cobertas pelo verde da primavera. Tudo o que as chuvas de abril tinham conseguido fora produzir uma longa cascata que descia dos picos a trezentos metros, até embaixo, no vale. Um lugar selvagem, escuro e impressionante. Se o lobo se escondesse no alto do penhasco, mesmo Ambrosius teria dificuldades em desalojá-lo. A viagem levou seis dias. Partimos à primeira claridade do dia pela estrada que sai de Maridunum para o norte, uma estrada pior do que a que corre para oeste, mas mais rápida, mesmo considerando os atrasos causados pelo mau tempo e o passo lento das liteiras das mulheres. A ponte cedera em Pennal e de alguma forma desaparecera, e levamos quase meio dia para atravessar o rio Afon Dyfi antes de podermos continuar a duras penas para Tomen-y-mur, onde a estrada era boa. Na tarde do sexto dia, dobramos para a trilha ao longo do rio, na direção de Dinas Brenin, onde se encontrava o Rei. Barbanegra não tivera dificuldade alguma em persuadir o Consto de São Pedro a que deixasse minha mãe acompanhá-lo à presença do Rei. Isto era bastante compreensível se usara as mesmas táticas que comigo, mas não tive oportunidade de perguntar a ela ou mesmo de descobrir se sabia mais do que eu por que Vortigern queria ver-nos. Haviam providenciado uma liteira fechada para ela, e duas mulheres da casa religiosa acompanhavam-na. Já que estavam ao seu lado dia e noite, era impossível abordá-la para uma conversa particular, e de fato ela não deu mostras de me querer ver a sós. Às vezes, eu a surpreendia observando-me com um olhar ansioso e talvez mesmo perplexo, mas quando ela falava, parecia calma e distante, sem mesmo uma única indicação de que soubesse coisa alguma que o próprio Vortigern não pudesse ouvir. Já que não me era permitido vê-la a sós, julguei melhor contar-lhe a mesma história que eu impingira a Barbanegra, e até a mesma que eu contara a Dinias (pois, ao que eu sabia, poderiam até tê-lo interrogado). Deixei que ela pensasse o que quisesse sobre a mesma e sobre as razões que eu teria para não ter entrado em contato com ela há mais tempo. Naturalmente, era impossível mencionar a Bretanha, ou mesmo amigos da Bretanha, sem arriscar que descobrisse a respeito de Ambrosius, e isso eu não ousava fazer. Achei-a muito mudada. Estava pálida e quieta, engordara, e talvez por isso apresentava um certo peso de espírito que não possuía antes. Só depois de dois dias de sacolejões pelas montanhas rumo ao norte, é que subitamente me ocorreu o que era: ela perdera todo o poder. Quer tivesse sido levado pelo tempo, ou pela doença, ou quer tivesse renunciado a ele em favor do símbolo cristão que trazia ao peito, eu não tinha meios de descobrir. Mas, o fato é que ele se fora. Quanto a uma coisa minha mente sossegou de pronto. Minha mãe estava sendo tratada com

cortesia, e até com a distinção a que fazia jus a filha de um rei. Não recebi tal distinção, mas deram-me um bom cavalo, alojaram-me com conforto à noite, e meus acompanhantes eram bastante educados quando eu me dirigia a eles. Afora isso, preocuparam-se muito pouco comigo. Não davam resposta alguma às minhas perguntas, embora me parecesse que soubessem muito bem para que queria ver-me o Rei. Surpreendi-os lançando-me olhares curiosos e furtivos e, uma ou duas vezes, olhares de piedade. Fomos levados diretamente ao Rei. Ele estabelecera seu quartel-general no terreno plano entre o penhasco e o rio, de onde esperava supervisar a construção da fortaleza. Era um acampamento muito diferente até mesmo dos campos simulados de Uther e Ambrosius. A maioria dos homens estava alojada em tendas e, salvo por aterros altos e uma paliçada do lado da estrada, aparentemente confiavam nas defesas naturais do lugar: o rio e o penhasco de um lado, o rochedo de Dinas Brenin do outro, e as montanhas impenetráveis e vazias por trás deles. Vortigern instalara-se como condizia a um rei. Recebeu-nos num salão de pilares de madeira cobertos de cortinas bordadas em cores vivas e o chão da ardósia esverdeada local estava espessamente forrado de juncos. A cadeira alta no estrado era realmente entalhada e dourada. Ao seu lado, numa cadeira igualmente ornamentada e apenas um pouco menor, sentava-se Rowena, sua rainha saxônica. A sala estava cheia. Encontravam-se até alguns homens em trajes de cortesão, mas a maioria dos presentes estava armada. Havia um número razoável de saxões. Por trás da cadeira de Vortigern, sobre o estrado, postava-se um grupo de sacerdotes e homens santos. Fez-se silêncio quando entramos. Todos os olhares convergiram para nós. O Rei levantou-se e, descendo do estrado, veio ao encontro de minha mãe, sorrindo, com as mãos estendidas. — Dou-lhe as boas-vindas, Princesa — disse e voltou-se para apresentá-la com a reverência cerimonial à Rainha. Correram sussurros pelo salão, as pessoas entreolhavam-se. Com essa saudação o Rei tornara claro que não considerava minha mãe responsável pelo papel de Camlach na recente rebelião. Olhou para mim, rapidamente mas creio que com agudo interesse, acenou cumprimentando-me, e então, pousando a mão de minha mãe no seu braço, conduziu-a ao estrado. A um aceno da sua cabeça, alguém correu a colocar uma cadeira no degrau abaixo do dele. Mandou-a sentar-se, e ele e a Rainha retomaram seus lugares. Adiantando-me com os guardas às costas, parei junto ao estrado, frente ao Rei. Vortigern pousou as mãos abertas nos braços da cadeira e sentou-se empertigado, sorrindo de minha mãe para mim com um ar de boas-vindas e até de satisfação. O zumbido dos murmúrios cessara. Fez-se silêncio. Os presentes nos encaravam, expectantes. Mas o Rei apenas disse a minha mãe: — Peço-lhe perdão, senhora, por forçá-la a uma viagem nesta época do ano. Espero que lhe tenham proporcionado suficiente conforto. E a isso acrescentou pequenas e suaves cortesias enquanto as pessoas continuavam a olhar e a aguardar, e minha mãe baixou a cabeça e murmurou respostas polidas, tão empertigada e indiferente quanto ele. As duas freiras que a acompanhavam postaram-se atrás dela, como damas de honra. Ela levou uma mão ao peito, tocando a pequena cruz que trazia como um talismã; a outra continuou entre as dobras castanhas do regaço. Mesmo no hábito simples e castanho ela parecia real. Vortigern disse sorrindo: — Agora quer apresentar-me seu filho? — O nome do meu filho é Merlin. Deixou Maridunum há cinco anos atrás, logo depois da morte

do meu pai, seu parente. Desde então, tem estado em Cornwall numa casa religiosa. Recomendo-o ao senhor. O Rei voltou-se para mim. — Cinco anos? Seria então apenas uma criança, Merlin. Que idade tem agora? — Tenho dezessete, senhor. — Retribuí seu olhar com firmeza. — Por que mandou buscar-nos, a minha mãe e a mim? Mal pus os pés em Maridunum e seus homens apanharam-me a força. — Quanto a isso, sinto muito. Queira perdoar-lhes o zelo. Eles só sabiam que o assunto era urgente, e tomaram medidas rápidas para executar o meu desejo. — Voltou-se novamente para minha mãe. — Será que preciso assegurar-lhe, Lady Niniane, que nenhum mal lhe advirá? Juro-o. Sei que está na Casa de São Pedro há cinco anos e que a senhora nada teve a ver com a aliança de seu irmão com meus filhos. — Nem com meu filho, my lord — acrescentou ela calmamente. — Merlin saiu de Maridunum na noite em que meu pai morreu e daquele dia até hoje eu nada soube dele. Mas, uma coisa é certa, não tomou parte na rebelião. Ora, era apenas uma criança quando saiu de casa... e, na verdade, agora que sei que fugiu para o sul naquela noite, para Cornwall, só posso presumir que tenha sido por medo do meu irmão Camlach, que não era seu amigo. Asseguro-lhe, my lord, que o que quer que eu tenha adivinhado das intenções do meu irmão para com o senhor, meu filho ignorava. Não imagino por que o senhor teria mandado buscá-lo. Para minha surpresa, Vortigern nem mesmo pareceu interessado na minha estada em Cornwall e tampouco voltou a olhar-me. Descansou o queixo no punho e observou minha mãe sob o cenho franzido. Sua voz e seu olhar eram igualmente graves e corteses, mas havia alguma coisa no ar que não me agradava. De repente percebi o que era. Mesmo enquanto minha mãe e o Rei conversavam, observando-se um ao outro, os sacerdotes atrás da cadeira do Rei não despregavam os olhos de mim. E quando passei um olhar de esguelha pelas pessoas no salão descobri que também tinham os olhos postos em mim. O salão aquietara-se e pensei de súbito: Agora ele vai chegar lá. Ele disse, calmo, quase pensativo. — Nunca se casou. — Não. — Suas pálpebras baixaram, e percebi que ela se tornara repentinamente preocupada. — O pai de seu filho, então, morreu antes que pudessem casar-se? Morreu em combate, talvez. — Não, my lord. — Sua voz era baixa, mas perfeitamente clara, vi suas mãos moverem-se e contraírem-se um pouco. — Então ele ainda vive? Ela não respondeu, mas inclinou a cabeça de modo que o capuz caiu para a frente, escondendo-lhe o rosto das outras pessoas no salão. Mas os que estavam no estrado ainda podiam vê-la. Observei a Rainha a fitá-la com curiosidade e desprezo. Tinha os olhos azuis-claros e grandes seios, que saltavam brancos como leite pelo apertado corpete azul. As mãos brancas eram como seus seios, mas os dedos, grossos e feios como os de uma criada. Trazia-os cobertos de ouro, esmalte e cobre. As sobrancelhas do Rei franziram-se ao silêncio de minha mãe, mas a voz continuou agradável. — Diga-me uma coisa, Lady Niniane, algum dia disse ao seu filho o nome do pai?

— Não. — O tom de sua voz cheio e positivo contrastava estranhamente com a postura inclinada da cabeça e o rosto velado. Era a pose de uma mulher que tem vergonha, e perguntei-me se seria intencional, como uma desculpa para o seu silêncio. Eu não conseguia ver-lhe o rosto, mas via a mão que segurava a dobra da saia longa. Lembrei-me muito da Niniane que desafiara o pai ao recusar Gorlan, rei de Lanascol. Uma recordação levou-me a outra, a do rosto de meu pai fitando-me à luz da lâmpada por trás da mesa. Bani-a. Ele estava tão intensamente presente, que me surpreendia que todo o salão cheio de homens não pudesse vê-lo. Então ocorreu-me, de repente, enchendo-me de terror, que Vortigern o tivesse visto. Vortigern sabia. Era por isso que estávamos ali. Ouvira algum boato da minha vinda e procurava certificar-se. Restava saber se eu seria tratado como um espião ou como refém. Devo ter feito algum movimento inconsciente. Minha mãe ergueu a cabeça e vi-lhe os olhos sob o capuz. Já não parecia uma princesa, mas uma mulher amedrontada. Sorri para ela e alguma coisa voltou ao seu rosto e percebi que temia por mim. Fiquei imóvel e aguardei. Deixei-o fazer os lances. Havia tempo suficiente para contra-atacar quando ele me tivesse mostrado o terreno. Ele torceu o grande anel no dedo. — Foi isso que seu filho contou aos meus mensageiros. E ouvi dizer que ninguém no reino jamais soube o nome do pai dele. Pelo que me contam, Lady Niniane, e do que conheço da senhora, seu filho nunca poderia ter sido gerado por uma pessoa comum. Por que não dizer-lhe? É uma coisa que um homem precisa saber. Exclamei exaltado, esquecendo a cautela: — E o que tem o senhor com isso? Minha mãe lançou-me um olhar que me fez silenciar. Então voltou-se para Vortigern: — Por que faz tais perguntas? — Lady — disse o Rei. — Mandei buscá-la hoje, e ao seu filho, para perguntar-lhes apenas isto. O nome do pai dele. — E eu repito, por que pergunta? Ele sorriu. Apenas um entrever de dentes. Dei um passo. — Mãe, ele não tem o direito de perguntar-lhe isso. Não ousará... — Faça-o calar-se — ordenou Vortigern. O homem do meu lado tapou-me a boca com a mão e segurou-me firme. Ouviu-se um sibilar de metal quando o outro desembainhou a espada e a encostou em mim. Fiquei quieto. Minha mãe exclamou: — Solte-o! Se o ferir, Vortigern, rei ou não, jamais lhe direi, mesmo que me mate. Acha que escondi a verdade de meu próprio pai e do meu irmão e mesmo do meu filho todos estes anos apenas para contá-la quando qualquer um me pedisse? — Você me contará por causa do seu filho — disse Vortigern. A um aceno seu, o sujeito tirou a mão da minha boca e afastou-se. Mas a mão continuou a prender-me o braço e eu ainda sentia a espada do outro atravessar-me a túnica. Minha mãe jogara para trás o capuz e estava agora muito empertigada na cadeira, as mãos comprimindo os braços. Pálida e abalada, trajando seu modesto traje castanho, ela fazia a Rainha

parecer uma criada. O silêncio do salão era mortal. Atrás da cadeira do Rei, os sacerdotes arregalavam os olhos. Agarrei-me aos meus pensamentos. Se esses homens eram sacerdotes e magos, então nenhum pensamento sobre Ambrosius, e nem mesmo o seu nome deveria passar-me pela mente. Senti o suor brotar-me no corpo e meus pensamentos tentaram alcançar minha mãe e prendê-la, sem formarem uma imagem que aqueles homens pudessem ver. Mas o poder se fora e não vinha ajuda alguma do deus; e eu nem mesmo sabia se seria suficientemente homem para o que adviria uma vez que ela lhes dissesse. Eu não ousava falar. Mas receava que, se usassem de força, ela contaria para me salvar. E quando soubessem, quando começassem a interrogar-me... Alguma coisa deve tê-la alcançado, porque, voltando-se, fitou-me de novo, movendo os ombros sob o vestido grosseiro como se sentisse ma mão a tocá-la. Quando os seus olhos encontraram os meus, percebi que isso nada tinha a ver com o poder. Ela estava tentando, como fazem as mulheres, dizer-me alguma coisa com os olhos. Era uma mensagem de amor e reafirmação, mas num nível humano, e eu não conseguia entender. Ela voltou-se para Vortigern. — Escolheu um lugar estranho para suas perguntas, Majestade. Realmente espera que eu fale dessas coisas aqui, no seu salão, para todos os ouvidos presentes? Ele refletiu por um instante, de cenho franzido. Havia suor no seu rosto e vi-lhe as mãos contorcerem-se nos braços da cadeira. O homem vibrava como uma corda de harpa. A tensão percorreu o salão, quase tangível. Senti a pele formigar, e um calafrio de medo percorreu-me a espinha. Atrás do Rei, um dos sacerdotes curvou-se para a frente segredando alguma coisa ao Rei. Este fez um sinal de aquiescência com a cabeça. — As pessoas devem deixar-nos, mas os sacerdotes e magos permanecerão. Relutantemente e em meio ao burburinho, as pessoas começaram a evacuar o salão. Os sacerdotes ficaram, cerca de uma dúzia de homens com vestes compridas postados atrás das cadeiras do Rei e da Rainha. Um deles, o que falara ao Rei, um homem alto que cofiava a barba cinzenta com a mão suja coberta de anéis, sorria. Pelo traje deveria ser o chefe. Perscrutei seu rosto à procura de indícios de poder, mas nada vi senão a morte. Estava nos olhos de todos. Mais do que isso eu não conseguia ver. O calafrio chegou-me aos ossos outra vez. Continuei preso pelo soldado, sem resistir. — Solte-o — disse Vortigern. — Não desejo ferir o filho de Lady Niniane. Mas você, Merlin, se se mover ou falar mais uma vez sem permissão, será retirado do salão. A espada foi afastada, mas o homem ainda a mantinha preparada. Os guardas afastaram-se meio passo de mim. Não falei nem movi. Desde criança que não me sentia tão desamparado, tão despido de conhecimento ou poder, tão longe de Deus. Sabia com amargura que, mesmo que estivesse na gruta de cristal, com as chamas ardendo e os olhos do meu mestre em mim, nada veria. Lembrei-me de repente de que Galapas estava morto. Talvez, pensei eu, o poder só emanasse dele, e se tivesse ido com ele. O Rei voltara seus olhos fundos para minha mãe. Curvou-se para a frente, o olhar repentinamente penetrante e atento. — E agora, senhora, quer responder a minha pergunta? — Com todo prazer — disse ela. — Por que não?

8 Ela falou tão calmamente que percebi o olhar surpreendido do Rei. Estendeu a mão para afastar o capuz do rosto e encarou-o com os olhos firmes. — Por que não? Não vejo nenhum mal nisso. Poderia ter-lhe contado mais cedo, my lord, se tivesse perguntado de maneira diversa e em local diverso. Não há mal algum agora que os homens saíram. Já não vivo no mundo e não tenho que encarar o mundo ou ouvir sua maledicência. E agora que sei que meu filho se retirou também do mundo, sei quão pouco se importará com o que o mundo diga dele. Portanto, contar-lhe-ei o que quer saber. E, ao fazê-lo, verá por que nunca falei disso antes, nem mesmo para o meu próprio pai ou para meu filho. Não havia sinais de medo agora. Ela até sorria. Não me olhou outra vez. Tentei evitar fitá-la, para manter meu rosto impassível. Eu não tinha idéia do que ela pretendia dizer, mas sabia que não haveria traição. Ela estava fazendo um lance próprio e segura de que isto desviaria qualquer perigo que me ameaçasse. Eu tinha certeza de que nada diria sobre Ambrosius. Ainda assim, havia morte por todo o salão. Fora, começara a chover e a tarde caminhava para o crepúsculo. Um criado apareceu na porta trazendo archotes, mas Vortigern mandou-o voltar. Para fazer-lhe justiça, creio que pensava na vergonha de minha mãe, mas refleti: Não virá ajuda nem mesmo dali, nem da luz, nem do jogo... — Fale então — perguntou Vortigern. — Quem gerou seu filho? — Nunca o vi — disse ela simplesmente. — Não foi nenhum homem que eu conhecesse. — Fez uma pausa e continuou sem olhar para mim, seus olhos ainda fixos no Rei: — Meu filho me perdoará pelo que vai ouvir em breve, e compreenderá que me forçaram a isto. Vortigern lançou-me um olhar. Retribuí-o, imperturbável. Tinha certeza dela agora. Ela prosseguiu: — Quando eu era apenas jovem, com uns dezesseis anos, e sonhava com o amor como fazem as moças, aconteceu-me na véspera da Festa de São Martinho, depois que eu e minhas damas nos tínhamos recolhido. A moça que me fazia companhia no quarto dormia e as outras encontravam-se no quarto externo, mas eu não conseguia dormir. Passado algum tempo, levantei-me e fui à janela. Era uma noite clara de lua. Quando voltava para cama, vi o que tomei por um rapaz, de pé no centro do quarto. Era bonito e jovem, vestia uma túnica e um manto comprido e trazia uma espada curta à cintura. Usava jóias caras. Meu primeiro pensamento foi que ele tivesse penetrado pelo quarto externo enquanto as mulheres dormiam; o segundo foi que eu estava de camisola e descalça, o cabelo solto. Pensei que quisesse fazerme mal e ia abrir a boca para gritar e acordar as mulheres quando o jovem sorriu para mim fazendo um gesto para que me calasse, pois nada pretendia. Então retirou-se para as sombras e, quando olhei, não havia ninguém. Ela parou. Ninguém falava. Lembro-me de quando me contava histórias e eu era pequeno. O salão estava bem quieto, mas senti o homem junto a mim estremecer, como se preferisse afastar-se. A boca vermelha da Rainha pendia aberta de assombro e, pensei eu, de inveja. Minha mãe olhava para a parede acima do Rei. — Pensei que fora um sonho, ou fantasia de moça, produzida pelo luar. Voltei para a cama e não

contei a ninguém. Mas ele voltou. Nem sempre à noite. Nem sempre quando eu estava só. Então percebi que não era sonho, mas um espírito familiar que desejava alguma coisa de mim. Rezava, mas ele continuava a aparecer. Enquanto me sentava com as damas a fiar, ou passeava nos dias secos pelo pomar do meu pai, sentia seu toque no meu braço, e sua voz no meu ouvido. Mas dessas vezes eu não o via e ninguém o ouvia, exceto eu. Ela procurou a cruz sobre o peito e apertou-a. O gesto pareceu tão pouco forçado e natural que me surpreendi, até que percebi que era realmente natural: ela não segurava a cruz para pedir proteção, mas, sim, perdão. Pensei de mim para mim, não é ao deus cristão que ela devia temer quando mente — e sim o fato de estar mentindo desta maneira sobre as coisas do poder. Os olhos do Rei, fixos nela, eram penetrantes e ele estava, pensei, exultante. Os sacerdotes a observavam como se quisessem devorar sua alma viva. — Assim, por todo o inverno, ele apareceu a mim. E vinha à noite. Eu nunca estava só no meu quarto, mas ele passava pelas portas, janelas e paredes e deitava-se comigo. Nunca mais voltei a vê-lo, mas ouvia sua voz e sentia seu corpo. Então, no verão, quando a gravidez já ia adiantada, ele me deixou. — Ela fez uma pausa. — Poderão contar-lhe como meu pai me bateu e me fechou e como, quando a criança nasceu, não quis dar-lhe um nome digno de um príncipe cristão, mas porque nasceu em setembro, deu-lhe o nome do deus dos céus, o deus errante, que não tem outra casa a não ser o ar. Mas sempre o chamei de Merlin, porque no dia do seu nascimento um falcão selvagem entrou pela janela, pousando na minha cama e fitando-me com os olhos do meu amante. Seu olhar cruzou com o meu, num relance. Isto então era verdade! E o Emrys, também, ela me dera apesar deles; guardara esse pouquinho do meu pai para mim, afinal. Ela desviara os olhos. — Creio, my lord, que o que lhe contei não o surpreenderá totalmente. Deve ter ouvido rumores de que meu filho não era como os meninos comuns — nem sempre é possível silenciar, e sei que se falou muito, mas agora contei-lhe a verdade francamente. Portanto, peço-lhe, my lord Vortigern, que deixe meu filho e eu voltarmos em paz para as respectivas casas de religião. Quando terminou, havia silêncio. Ela inclinou a cabeça e puxou o capuz novamente para encobrirlhe o rosto. Observei o Rei e os homens atrás dele. Pensei que ia zangar-se, franzir o cenho de impaciência, mas para minha surpresa seu cenho desenrugou-se e ele sorriu. Abriu a boca para responder a minha mãe, mas a Rainha antecipou-se a ele. Curvou-se para a frente, passando a língua pelos lábios vermelhos, e falou pela primeira vez, com os sacerdotes. — Maugan, isso é possível? Foi o homem alto, o sumo-sacerdote de barba, que lhe respondeu. Falou sem hesitação, brando e surpreendentemente enfático: — Senhora, é possível. Quem não ouviu falar dessas criaturas do ar e das trevas que se aproveitam dos homens e das mulheres mortais? Nos meus estudos e em muitos dos livros que tenho lido, encontrei casos de crianças que vieram ao mundo dessa forma. — Ele olhou para mim, alisando a barba, e então voltou-se para o Rei: — Na verdade, my lord, temos a autoridade dos próprios antigos. Eles sabiam que certos espíritos que rondam o ar à noite, entre a Lua e a Terra, coabitam quando querem com as mulheres mortais,

tomando a forma de homens. Certamente é possível que essa senhora real, essa virtuosa senhora real, tenha sido vítima de uma tal criatura. Sabemos, e ela própria afirma, que isto foi comentado por muitos anos. Eu mesmo conversei com uma das suas damas que me contou que a criança certamente não poderia ter sido gerada por mais ninguém, exceto o demônio, e que nenhum homem se acercara dela. E do próprio filho, quando era criança, ouvi muitas coisas estranhas. De fato, ó rei Vortigern, a história dessa senhora é verdadeira. Já ninguém olhava para Niniane. Todos os olhares concentravam-se em mim. Eu não via no rosto do Rei nada que não fosse ao mesmo tempo feroz e inocente, uma espécie de satisfação ansiosa como a de uma criança ou de um animal selvagem que vê sua presa por perto. Perplexo, calei-me e aguardei. Se os sacerdotes acreditavam em minha mãe e Vortigern acreditava nos sacerdotes, então eu não conseguia perceber de onde viria o perigo. Nem a mais leve insinuação voltara o pensamento dos homens para Ambrosius. Maugan e o Rei pareciam acorrer com ansiedade e satisfação para a trilha que minha mãe lhes abrira. O Rei olhou para os meus guardas. Tinham-se afastado de mim, sem dúvida, temerosos de estarem tão próximos de um filho do demônio. A um sinal seu, acercaram-se outra vez. O homem à minha direita ainda empunhava a espada, mas pendente do lado, fora das vistas de minha mãe. Não estava muito firme. O homem à minha esquerda retirou furtivamente a espada da bainha. Ambos ofegavam pesadamente e eu podia sentir-lhes o medo. Os sacerdotes inclinavam a cabeça sabiamente e alguns deles, reparei, mantinham as mãos num gesto para afastar a feitiçaria. Parecia que acreditavam em Maugan, acreditavam em minha mãe, encaravam-me como um filho do diabo. A história dela apenas confirmara sua crença, os velhos rumores. Na verdade, fora essa a razão por que a tinham trazido ali. E agora observavam-me com satisfação, mas, também, um pouco preocupados. O meu próprio medo ia desaparecendo. Pensei começar a ver o que queriam. A superstição de Vortigern era lendária. Lembrei-me do que Dinias contara a respeito da fortaleza que se desmoronava, e dos relatórios dos adivinhos do Rei de que estava enfeitiçada. Parecia provável que, devido aos comentários sobre o meu nascimento, e possivelmente devido aos poderes que eu demonstrara em garoto, antes de sair de casa, aos quais Maugan se referira, julgassem que eu poderia aconselhá-los ou ajudá-los. Se era assim, e haviam-me trazido até ali pelos meus decantados poderes, deveria haver alguma maneira de ajudar Ambrosius diretamente do interior do campo inimigo. Talvez, afinal, o deus me tivesse conduzido ali para isso, talvez ainda me estivesse orientando. Coloque-se no caminho dele... Bem, a pessoa só poderia utilizar-se do que se encontrava à mão. e eu não tinha o poder para usar, restava-me o conhecimento. Voltei a mente para aquele dia no Forte do Rei e para a mina alagada no coração do penhasco ao qual o sonho me conduzira. Certamente poderia dizer-lhes por que suas fundações não se sustinham. Era a resposta de um engenheiro, não a de um mago. Mas, refleti ao encontrar os olhos de ostra de Maugan, esfregando aquelas mãos compridas e sujas diante de si, se era uma resposta de mago o que desejavam, eles a teriam. E Vortigern com eles. Ergui a cabeça. Creio que estava sorrindo: — Rei Vortigern! Era como se tivesse deixado cair uma pedra num tanque, tão quieto estava o salão, tão concentrado em mim. Disse com firmeza: — Minha mãe contou-lhe o que foi pedido. Sem dúvida, o senhor me dirá agora de que maneira

posso servi-lo, mas antes devo pedir-lhe que cumpra sua promessa real e a deixe partir. — Lady Niniane é nossa hóspede de honra. — A resposta do Rei parecia automática. Olhou para a arcada que abria para o rio, onde as lanças brancas da chuva cortavam o céu cinza-chumbo. — Ambos estão livres para partirem quando quiserem, mas não é hora para iniciarem a longa jornada de volta a Maridunum. Certamente quererão passar a noite aqui, Senhora, e esperar que amanheça seco? — Ergueu-se e a Rainha com ele. — Foram preparados quartos e a Rainha a levará para descansar e preparar-se para cear conosco. A nossa corte aqui e os nossos quartos são um pobre simulacro, mas tal como são, estão ao seu serviço. Amanhã será escoltada para casa. Minha mãe erguera-se ao mesmo tempo que eles. — E meu filho? Ainda não nos disse por que nos trouxe aqui. — Seu filho pode servir-me. Tem poderes que posso utilizar. Agora, senhora, se quiser acompanhar a Rainha, conversarei com seu filho e direi o que quero dele. Acredite-me que ele é tão livre quanto a senhora. Só o coagi até que nos contou a verdade que eu desejava ouvir. Devo agradecerlhe por confirmar o que já imaginava. — Estendeu a mão. — Juro, Lady Niniane, pelo deus que quiser, que não usarei o nascimento do seu filho contra ele, agora ou nunca. Ela fitou-o por um momento, inclinou a cabeça e, ignorando seu gesto, caminhou para mim de mãos estendidas. Fui ao seu encontro e tomei-as nas minhas. Eu estava mais alto do que ela. Olhou para mim com a expressão de que eu me lembrava. Havia ansiedade e resíduos de medo e alguma mensagem transmitida com urgência no seu silêncio. — Merlin, preferia que não tivesse sabido desse modo. Ter-lhe-ia poupado isso. Mas não era o que seus olhos diziam. Sorri para ela e respondi cauteloso: — Mãe, a senhora não disse nada que me chocasse. Na verdade, não há nada que pudesse contar-me do meu nascimento que eu próprio não soubesse. Fique descansada. Ela prendeu a respiração e seus olhos arregalaram-se, perscrutando meu rosto. E continuei lentamente: _ Qualquer que tenha sido a identidade do meu pai, ela não será usada contra mim. A senhora ouviu a promessa do Rei. É só o que precisamos saber. Se ela compreendeu essa parte da mensagem eu não saberia dizer. Ainda se referia ao que eu dissera primeiro. — Você sabia? Você sabia? — Sabia. Certamente não imagina que, em todos os anos que estive longe e com a espécie de estudos que empreendi, nunca tivesse descoberto que pais tinha? Já faz alguns anos que meu pai se deu a conhecer a mim. Asseguro-lhe que falei com ele não uma, mas muitas vezes. Não encontro no meu nascimento nada que possa causar-me vergonha. Por mais um momento ela continuou a fitar-me, então assentiu e as pálpebras baixaram-lhe os olhos. Um leve rubor subiu-lhe às faces. Ela me entendera. Voltando-se, puxou o capuz para esconder o rosto e pousou a mão no braço do Rei. Saiu da sala entre ele e a Rainha e as duas damas a acompanharam. Os sacerdotes ficaram tagarelando, aos cochichos, e olhando. Não lhes prestei atenção e fiquei observando a partida de minha mãe. O Rei parou à porta e ouvi-o despedir-se de minha mãe. Havia uma aglomeração à espera no

pórtico externo. Abriram caminho para Rowena e minha mãe, e meia dúzia de mulheres que ali se encontravam acompanharam-nas. Ouvi o farfalhar de vestes e as vozes leves das mulheres desaparecendo em meio ao ruído da chuva. Vortigern ficou parado à porta, observando-as. Fora, a chuva caía com o estrépito de um rio correndo. Escurecia rápido. O Rei girou nos calcanhares e voltou ao salão com os guerreiros a segui-lo.

9 Agruparam-se ao meu redor, falando ruidosamente, mas mantendo-se afastados num círculo, como cães antes de avançarem para matar. A morte estava de volta no salão. Eu a sentia mas não conseguia acreditar ou compreender. Fiz um movimento como se quisesse seguir minha mãe e as espadas dos guardas ergueram-se, estremecendo. Fiquei quieto. Perguntei ao Rei, com aspereza: — O que é isso? Deu a sua palavra. Será tão rápido em renegá-la? — Não renegá-la. Dei minha palavra de que não iria servir-me, de que nunca usaria seu nascimento contra você. Isto é verdade. É por causa do que sei, e porque não é filho de nenhum homem, que o mandei trazer aqui hoje. Você irá servir-me, Merlin, por causa do seu nascimento. — Sim? Ele subiu os degraus que levavam ao trono e sentou-se outra vez. Seus movimentos eram lentos e deliberados. Todos os homens da corte haviam entrado com ele e também os archoteiros. O salão enchera-se de luz fumacenta, do rangido de couro e do retinir de cotas de malha. Fora, a chuva caía em torrentes. Vortigern curvou-se para a frente, o queixo descansando no punho. — Merlin, soubemos hoje o que em parte já suspeitávamos, que você não é filho de nenhum homem, mas do diabo. Como tal, não merece piedade de homem algum. Mas, porque sua mãe é filha de um rei, e portanto alguma coisa lhe é devida, direi por que você foi trazido aqui. Talvez saiba que estou construindo uma cidadela aqui, na pedra a que chamam de Fortaleza? — Todos sabem — disse eu — e sabem também que não permanece de pé, mas cai toda vez que atinge a altura de um homem. Ele assentiu. — E meus magos e sábios aqui, meus conselheiros, disseram-me razão. As fundações não foram lançadas conforme deviam. — Bem, — comentei, — isso parece-me notavelmente sensato. Havia um homem alto e idoso à direita do Rei, junto aos sacerdotes Seus olhos azuis faiscavam de raiva sob as sobrancelhas ancas. Observava-me fixamente e pensei ter percebido uma certa pena no seu olhar. Quando falei, ele levou a mão à barba como se quisesse esconder um sorriso. O Rei parecia não me ter ouvido. — Dizem-me — continuou — que o forte de um rei deve ser construído sobre sangue. — Falam naturalmente por metáfora? — perguntei com polidez. Maugan subitamente bateu com o bastão no chão do estrado. — Falam literalmente! — gritou. — A argamassa deverá ser misturada com sangue! E o sangue deverá ser espalhado nas fundações. Nos tempos antigos, nenhum rei construía uma fortaleza sem observar esse ritual. O sangue de um homem forte, de um guerreiro, mantinha as paredes de pé. Houve uma pausa repentina. Meu coração começou a bater, lento, em pancadas fortes que faziam

o sangue formigar-me nas pernas. Retorqui friamente: — E o que tem isso a ver comigo? Não sou guerreiro. — Nem é homem tampouco — disse o Rei, áspero. — Essa é a mágica, Merlin, que eles me revelaram: eu deveria procurar um rapaz que nunca tivesse tido um pai, e regar as fundações com o seu sangue. Encarei-o e a seguir ao círculo de rostos ao meu redor. Havia mal-estar e sussurros e poucos olhos encararam os meus, mas em todos os rostos havia a morte, cujo cheiro eu sentira ao entrar no salão. Voltei-me para o Rei. — Que tolice é essa? Quando parti, Gales era um país de gente civilizada, de poetas, artistas e sábios, de guerreiros e reis que matavam pelo seu país, limpamente, à luz do dia. Agora fala-se de sangue e sacrifício humano. Será que pensam mergulhar a moderna Gales de volta nos ritos da antiga Babilônia e de Creta? — Não estou falando de "sacrifício humano" — disse Vortigern. Você não é filho de nenhum homem, lembre-se disso. Silenciosa, a chuva fustigava as poças do lado de fora, fazendo-as borbulhar. Alguém pigarreou. Captei o olhar azul penetrante do velho guerreiro. Eu tinha razão: havia piedade nele. Mas mesmo os que se apiedavam de mim não iriam erguer a mão contra aquela estupidez. Tudo se esclarecera finalmente, como um relâmpago iluminando o céu. Aquilo nada tinha a ver com Ambrosius ou com minha mãe. Ela estava a salvo, tendo apenas confirmado o que desejavam. Sentir-se-ia até honrada por fornecer o que queriam. E Ambrosius nunca entrara em seus pensamentos. Eu não estava ali como seu filho, seu espião, seu mensageiro: eles só queriam o filho do diabo para matar com sua mágica crua e suja. E, bastante ironicamente, o que haviam conseguido não era um filho do diabo, nem mesmo o menino que certa vez pensara ter o poder nas mãos. Mas, apenas, um jovem humano, sem nenhum poder além da sua mente humana. Mas, pelo deus, pensei, essa talvez pudesse bastar-me... Eu aprendera o suficiente, com poder ou sem ele, para combatê-los com suas próprias armas. Consegui sorrir, olhando para os outros sacerdotes atrás de Maugan. Ainda faziam o sinal contra mim e mesmo Maugan segurava seu bastão contra o peito como se aquilo tivesse o poder de protegê-lo. — E que o faz tão seguro de que meu pai, o demônio, não virá em meu auxílio? — São apenas palavras, ó Rei. Não há tempo para ouvi-las.— Maugan falou alto e rapidamente e os outros sacerdotes precipitaram-se para a frente juntamente com ele, cercando a cadeira do Rei. Falavam todos ao mesmo tempo. — Sim, mate-o agora. Não há tempo a perder. Leve-o para o penhasco e mate-o agora. Verá que os deuses serão apaziguados e as muralhas se manterão firmes. A mãe dele não saberá e, mesmo que o saiba, que poderá fazer? Havia um movimento geral, como o de cães ao aproximarem-se da presa. Tentei pensar, mas encontrava-me vazio até de pensamentos coerentes. O ar cheirava mal, e já estava ficando escuro. Eu já podia sentir o cheiro de sangue, e as lâminas das espadas, empunhadas agora abertamente contra mim, faiscavam à luz dos archotes. Fixei os olhos no mortífero metal e tentei esvaziar a mente, mas tudo o que conseguia era ver o esqueleto limpo de Galapas, ao sol, no topo da montanha, as asas dos pássaros a passarem sobre ele... Dirigi-me às espadas:

— Digam-me uma coisa: quem matou Galapas? — Que disse ele? Que disse o filho do demônio? — A pergunta corria pelo salão. Uma voz rouca exclamou alto: — Deixe-o falar. — Era o velho guerreiro de barbas grisalhas. — Quem matou Galapas, o mago que vivia em Bryn Myrddin, no alto de Maridunum? Era quase um grito. Minha voz soava estranhamente até para. Eles calaram-se, entreolhando-se de esguelha, sem compreender. Vortigern disse: — o velho? Disseram que era um espião. — Era um mago, e meu mestre — disse eu. — E ensinou-me, Vortigern. — E o que lhe ensinou? Sorri. — O suficiente. O suficiente para saber que esses homens são tolos e charlatães. Muito bem, Vortigern. Leve-me ao penhasco e tragam suas facas, você e seus adivinhos. Mostrem-me a fortaleza, essas paredes rachadas, e vejam se não posso dizer-lhe, melhor do que eles, por que o seu forte não se mantém em pé. "Filho de nenhum homem"! — disse com desprezo. — Essas são as coisas que inventam, esses velhos imbecis quando não conseguem pensar em nada mais. Não lhe ocorre, ó Rei, que o filho de um espírito das trevas pode ter uma mágica que supere os encantamentos desses velhos tolos? Se o que dizem é verdade, e se o meu sangue fizer com que as pedras se mantenham, então por que ficaram a observá-las cair não uma, nem duas vezes, mas quatro, antes de poderem sugerir o que fazer? Deixe-me ver o lugar apenas uma vez e lhe direi. Pelo Deus dos deuses, Vortigern, se o meu sangue morto tem o poder de manter sua fortaleza de pé, quanto mais não poderia o meu corpo vivo servir-lhe? — Bruxaria! Bruxaria! Não lhe dêem ouvidos! Que sabe um rapaz de tais assuntos? — Maugan começou a gritar e os sacerdotes a tagarelarem. Mas o velho guerreiro voltou a falar, rouco e brusco: — Deixai-o tentar. Não há mal nisso. Vós precisais de ajuda, Vortigern, quer seja de Deus ou do Diabo. Deixai-o tentar, digo-vos. E de todo o salão como um eco ouviram-se os guerreiros que não tinham razão para gostar dos sacerdotes: — Deixai-o tentar. Vortigern franziu o cenho, indeciso, olhando de Maugan para os guerreiros e a seguir para os arcos cinzentos onde caía a chuva. — Agora? — É melhor agora — disseram. — Não há muito tempo. — Não — falei claramente. — Não há muito tempo. — Silêncio outra vez, os olhares sobre mim. — A chuva está pesada, Vortigern. Que espécie de rei é você cuja fortaleza é derrubada por uma pancada de chuva? Encontrará as paredes mais uma vez tombadas. Isto resulta de construir no escuro, com cegos por conselheiros. Ora, leve-me ao alto do seu penhasco e eu lhe direi por que suas paredes caem. E, se ouvir a mim ao invés desses sacerdotes das trevas, dir-lhe-ei como reconstruir seu forte na luz. Enquanto eu falava, como se uma torneira fosse fechada, a chuva parou. No silêncio repentino, as bocas dos homens abriram-se Até Maugan emudeceu. Então, como se se afastasse uma cortina escura, o

sol surgiu. Ri. — Vê? Venha, ó Rei, leve-me ao alto do penhasco e lhe mostrarei à luz do sol por que caem suas paredes. Mas mande que levem archotes. Precisaremos deles.

10 Ainda não chegáramos ao pé dos penhascos e já se confirmava a razão que eu tinha. Os trabalhadores encontravam-se aglomerados à beira do penhasco acima, à espera do Rei, e alguns deles desciam ao seu encontro. O capataz chegou ofegante, um homem corpulento com um tecido grosseiro preso em torno dos ombros como um manto, todo encharcado. Mal parecia ter-se apercebido de que a chuva passara. Estava pálido, os olhos vermelhos como se não dormisse há noites. Parou a três passos de distância olhando para o Rei, nervoso, e passando as costas da mão, molhadas, pelo rosto. — Novamente? — perguntou Vortigern, sumário. — Sim, my lord, e não há quem possa dizer que seja nossa culpa, isto eu juro, e isto tanto quanto da última vez ou das anteriores. O senhor viu ontem como trabalhamos desta vez. Viu como limpamos toda a área para recomeçar, e chegamos à rocha sólida. E é rocha sólida, my lord, juro. Mas, ainda assim, a parede racha. — Passou a língua pelos lábios e seu olhar encontrou o meu, desviando-se, o que indicou que estava ciente do que planejavam o Rei e seus adivinhos. — Vai subir agora, my lord? — Sim. Tire os homens da área. O homem engoliu em seco, voltou-se e correu pela trilha serpeante. Ouvi-o gritar. Trouxeram uma mula e o Rei montou-a. Meu pulso foi amarrado grosseiramente aos arreios. Mago ou não, a vítima do sacrifício não teria oportunidade de escapar enquanto não pudesse provar a sua razão. Os guardas mantinham-se ao meu lado. Os oficiais e cortesãos do Rei rodeavam-nos falando em voz baixa entre si, mas os sacerdotes retardaram-se, arredios e desconfiados. Percebi que pouco receavam o resultado. Sabiam tanto quanto eu que a mágica era um poder dos deuses e que a ilusão trabalhava em favor da fé. Estavam confiantes de que eu não poderia fazer mais do que eles — e, mesmo se eu fosse um deles, poderiam encontrar meios de derrotar-me. Tudo o que eu tinha para contrapor aos seus ritos suaves, pensavam eles, era o tipo de blefe a que estavam acostumados, e a sorte que fizera cessar a chuva e surgir o sol enquanto eu falava. O sol refletia-se na relva molhada da crista do penhasco. Ali nos encontrávamos, bem acima do vale onde o rio coleava como uma cobra cintilante entre os campos verdes. O vapor subia dos telhados do acampamento do Rei. Em torno do salão de madeira € dos prédios, aglomeravam-se as pequenas tendas de pele como cogumelos e os homens não eram maiores que piolhos caminhando entre elas. Era um lugar magnífico, um verdadeiro ninho de águia. O Rei parou a mula no agrupamento de carvalhos açoitados pelo vento e apontou para diante, para os galhos despidos. — Ontem, podia-se ver a parede ocidental daqui. Para além do arvoredo havia uma crista estreita, um caminho elevado, ao longo do qual os trabalhadores e as mulas haviam batido uma trilha larga. O Forte do Rei era uma torre de pedra, atingida por um lado pelo caminho elevado; os outros três lados caíam íngremes em encostas estonteantes e escarpadas. O topo era formado por um platô de talvez cem passos por cem, e antes deveria ter sido coberto de grama rústica com pedras salientes e algumas árvores e arbustos raquíticos. Agora era um alagadiço de lama revolvida em torno dos destroços da torre enfeitiçada. Em três lados as paredes erguiam-se quase à altura dos ombros; no quarto a parede desmoronada cedera num caos de pedras, algumas caídas e meio enterradas na lama, outras ainda precariamente presas às saliências da rocha viva. Aqui e ali tinham sido enterrados mourões pesados de pinho e uma lona fora esticada sobre eles

para proteger as obras da chuva. Alguns encontravam-se caídos, outros obviamente lascados pelo colapso recente. Dos que ainda se conservavam inteiros a lona pendia balouçante ou distendera-se, rasgando, com a umidade. Tudo estava empapado e havia poças por toda parte. Os trabalhadores tinham deixado o local e amontoavam-se para um lado do platô perto do caminho elevado. Estavam silenciosos, o medo estampado nos rostos. Via-se que não era medo da fúria do Rei pelo que acontecera à obra, mas da força em que acreditavam e que não conseguiam compreender. Havia guardas à entrada do caminho. Sem eles não teria ficado um só trabalhador no local. Os guardas traziam as lanças cruzadas, mas recolheram-nas ao reconhecerem o Rei. Ergui os olhos. — Vortigern, não posso escapar daqui a não ser que eu me atire pelo penhasco, e isso salpicaria o meu sangue exatamente onde Maugan quer. Tampouco posso ver o que há de errado com as suas fundações a não ser que me solte. Ele acenou com a cabeça e um dos guardas me desamarrou, em frente. A mula acompanhou-me com cuidado pela lama espessa Os outros também. Maugan adiantara-se e falava ansioso com o Rei. Percebi algumas palavras aqui e ali: Impostura... fuga... sangue... agora ou nunca... O Rei parou e com ele o resto. Alguém falou "Aqui, menino". Olhei ao redor e vi o homem de barba grisalha estendendo o bastão. Sacudi a cabeça, então dei-lhes as costas e prossegui sozinho. Havia água por toda a parte, faiscando nas poças lamacentas entre os tufos ou nas folhas enroladas das samambaias novas que se destacavam na relva pálida de inverno. A rocha cinzenta refulgia. Ao caminhar lentamente, eu precisava apertar os olhos, protegendo-os do ofuscamento, para conseguir enxergar. Fora a parede.ocidental que caíra. Tinha sido construída muito perto da beirada do penhasco, e embora a maior parte do desmoronamento fosse interno, havia um monte de entulho caído sobre a borda da rocha onde um novo deslizamento se abria vermelho e pegajoso com o barro. Havia um espaço na parede norte, onde deveria ser construída uma entrada. Caminhei com cautela entre os montes de entulho e as ferramentas dos trabalhadores para o centro da torre. Ali o chão era uma grossa mistura de lama revolvida com poças transformadas em cobre ofuscante pelo sol. Este desaparecia agora no último clarão de luz antes do crepúsculo e atingia-me em cheio nos olhos enquanto eu examinava a parede caída, as rachaduras, o ângulo de queda, a posição dos afloramentos indicadores. Todo o tempo eu estava consciente da agitação e do murmúrio da multidão. De tempos em tempos o sol faiscava nas armas desembainhadas. A voz de Maugan, alta e rouca, martelava o silêncio do Rei. Logo, se eu nada fizesse e nada dissesse, aquela gente dar-lhe-ia ouvidos. De onde estava montado na mula o Rei podia ver-me pela abertura da entrada norte, mas a maioria das pessoas, não. Subi — ou melhor, ascendi, tal era a minha dignidade — aos blocos caídos da parede oeste até emergir totalmente da construção restante para que todos pudessem ver-me. Isto não era apenas para impressionar o Rei. Precisava examinar dessa posição vantajosa as encostas arborizadas pelas quais acabáramos de subir, tentando, agora que estava longe da gente e do atropelo, reconhecer o caminho que me levara ao acesso da mina anos atrás. Vozes impacientes chegavam a mim e lentamente ergui os braços para o sol numa espécie de gesto ritual, como vira fazerem os sacerdotes ao invocarem os espíritos. Ao menos, se eu fizesse uma exibição

de mágica, mantê-los-ia à distância, os sacerdotes em dúvida e o Rei expectante, até que eu tivesse tido tempo de lembrar-me. Não poderia lançar-me titubeante pela floresta como um cão de caça. Precisava levá-los direta e rapidamente como o falcão que me guiara. E minha sorte perdurou. Ao erguer os braços, o sol desapareceu e permaneceu oculto, deixando as sombras adensarem-se. E mais, cessando o ofuscamento, eu conseguia ver. Voltei a vista para o lado do caminho elevado por onde subira há tantos anos, fugindo da multidão em torno dos dois reis. As encostas estavam densamente arborizadas, mais do que dantes. Já na escavação da montanha surgiam algumas folhas novas e a floresta estava coberta de espinheiros e azevinho. Não conseguia reconhecer o caminho que tomara pela floresta de inverno. Perscrutei as sombras do crepúsculo, tentando reavivar a lembrança do menino que correra por ali... Tínhamos cavalgado pelo vale aberto ao longo do rio sob as árvores copadas, seguindo pela crista baixa e entrado na escavação da encosta. Os reis, com Camlach, Dinias e o resto, haviam-se sentado na encosta sul sob o grupo de carvalhos. As fogueiras estavam ali e os cavalos lá. Era meio-dia e ao me afastar — para o outro lado — caminhara sobre minha própria sombra. Sentara-me para comer ao abrigo da rocha... Sabia agora. Uma rocha cinzenta junto a um carvalho novo. E do outro lado da rocha tinham passado os reis, caminhando em direção ao Forte. Uma rocha cinzenta junto a um carvalho novo ao lado da trilha. E, saindo em linha pela floresta íngreme, o caminho que percorrera o falcão. Abaixei os braços e voltei-me. O crepúsculo caía rápido no rastro das nuvens cinzentas. Em baixo, as encostas arborizadas nadavam em sombras. Atrás de Vortigern, a massa de nuvens orlava-se de um amarelo vivo e um único facho de luz enevoada caía verticalmente sobre as montanhas distantes e negras. Os homens eram silhuetas escuras com suas capas a esvoaçarem na brisa úmida. Os archotes pingavam. Lentamente desci do meu miradouro. Quando cheguei ao centro da torre, parei bem à vista do Rei e estendi as mãos para diante, as palmas voltadas para baixo como se sentisse como um adivinho o que jazia sob a terra. Percebi um murmúrio correr e um muchocho áspero de desdém de Maugan. Então deixei cair as mãos e aproximei-me deles. — Então? — A voz do Rei era dura e seca, desafiando-me. Remexia-se na sela. Ignorei-o, passei pela mula e rumei direto para a parte mais densa da aglomeração como se ela não existisse. Mantinha as mãos dos lados e os olhos no chão. Vi pés hesitarem, arrastarem-se e afastaremse enquanto a multidão se dividia para me deixar passar. Prossegui atravessando o caminho elevado, tentando mover-me suavemente, com dignidade, pelo chão rachado e empapado. Os guardas não fizeram nenhuma tentativa de parar-me. Quando passei por um dos archoteiros, ergui a mão e ele postou-se ao meu lado sem dizer palavra. A trilha que os trabalhadores e as mulas haviam aberto na encosta era nova, mas, conforme eu esperara, seguia a velha trilha de veados que os reis haviam tomado. Na metade do caminho, fora de dúvidas, encontrei a rocha. Samambaias novas surgiam pela fenda entre as raízes do carvalho e a árvore já apresentava novos brotos entre as cecídias do ano anterior. Sem um momento de hesitação, saí da trilha, entrando pelo íngreme emaranhado da floresta. Estava muito mais fechado do que eu imaginara, e certamente ninguém estivera por ali há muito tempo, provavelmente desde que Cerdic e eu havíamos passado. Mas lembrava-me do caminho tão claramente como se ainda fosse o meio-dia daquele dia de inverno. Caminhava depressa e mesmo onde

as moitas chegavam-me pelos ombros eu procurava passar com suavidade e indiferença, atravessandoas como se fossem um mar. No dia seguinte, paguei pela minha dignidade de mago com cortes, arranhões e roupas arruinadas, mas não tenho dúvidas de que naquele momento estive impressionante. Lembro-me de que, quando minha capa se prendeu em alguma coisa, o archoteiro pulou para a frente como um escravo para desembaraçá-la para mim. Ali estava a moita que crescia pelo lado do pequeno vale. Mais pedras haviam caído pela encosta abaixo, amontoando-se entre os caules dos espinheiros como espuma entre juncos nas águas paradas. Sobre elas fechavam-se os arbustos, sabugueiros desfolhados como madressilvas com trancas de cabelo, amoreiras silvestres espinhosas e flexíveis, e hera que brilhava à luz do archote. Parei. A mula escorregou e bateu os cascos, parando junto ao meu ombro. A voz do Rei soou: — O que é isso? O que é isso? Aonde nos leva? Digo-lhe, Merlin, seu tempo está-se esgotando. Se nada tem a mostrar-nos... — Tenho muito a mostrar-lhes — ergui a voz para que todos que se acotovelavam atrás dele pudessem ouvir-me. — Vou mostrar-lhe, rei Vortigern, ou a qualquer homem que tenha bastante coragem para seguir-me, o animal mágico que jaz sob a sua fortaleza, devorando-lhes as fundações. Dême o archote. O homem entregou-me. Sem mesmo voltar a cabeça para ver quem me seguia, mergulhei na escuridão da moita e afastei os galhos da entrada da mina. Ainda estava aberta, solidamente escorada e quadrada, o poço seco levando diretamente ao coração da montanha. Precisei agora abaixar a cabeça para passar pelas vergas. Curvei-me e entrei com o archote à minha frente. Lembrava-me da abóbada da mina como sendo enorme e estava preparado para descobrir que essa, como as outras recordações de criança, era falsa. Era ainda maior do que eu me lembrava. A escuridão vazia duplicava-se no grande espelho de água que se espalhara até cobrir todo o solo, exceto uma meia-lua seca de rocha a uns dois metros de profundidade, logo na entrada da mina. Nesse lago imenso e parado, o grande arco das paredes da caverna projetava-se como um contraforte ao encontro do próprio reflexo e prosseguia para baixo, desaparecendo na escuridão. Algures, nas profundezas da montanha, ouvia-se o cascatear de água, mas aqui nada perturbava a superfície polida. Onde antes filetes escorriam e pingavam como torneiras defeituosas, agora havia em todas as paredes um véu fino e brilhante de umidade que escorria despercebido para engrossar a lagoa. Dirigi-me à beira segurando o archote no alto. A pequena chama de luz afastou a escuridão, uma escuridão palpável, mais escura que as noites escuras em que o negrume é denso como o pêlo de um animal selvagem e nos comprime como uma manta. Um milhão de facetas luminosas brilharam e faiscaram quando as chamas se refletiram na água que escorria. O ar estava parado e frio, ecoando sons que pareciam o canto dos pássaros no fundo de um bosque. Ouvi as pessoas atropelando-se na entrada da mina atrás de mim. Pensei rapidamente. Podia dizer-lhes a verdade friamente. Podia apanhar o archote, subir pelas escoras enegrecidas e apontar os pontos falhos que cediam sob o peso da construção acima. Mas duvidava de que me ouvissem. Além disso, conforme viviam a dizer, não havia tempo. O inimigo estava às portas e o que Vortigern precisava agora não era de lógica e de engenharia; queria mágica e alguma coisa — qualquer

coisa — que lhe prometesse uma segurança rápida e mantivesse seus seguidores leais. Ele próprio poderia acreditar na voz da razão, mas não podia dar-se ao luxo de escutá-la. Meu palpite era que me mataria primeiro e tentaria escorar a obra depois, provavelmente comigo dentro. De outra forma, perderia seus trabalhadores. Os homens entravam pela boca negra da mina como abelhas por uma porta de colméia. Mais archotes brilharam e a escuridão recuava. O chão encheu-se de capas coloridas, do brilho das armas e da cintilação das jóias. Os olhos pareciam transparentes ao correrem ao redor, cheios de admiração. A respiração condensava-se em contato com o ar frio. Havia uma agitação e um sussurrar como o de pessoas num lugar sagrado, ninguém falava alto. Ergui a mão para chamar o Rei e ele acercou-se da beira da lagoa. Apontei. Abaixo da superfície alguma coisa, talvez uma pedra, brilhava debilmente, tomando a forma de um dragão. Comecei a falar lentamente, como se experimentasse o ar entre nós. Minhas palavras saíram claras e pesadas como gotas de água batendo numa rocha. — Essa é a mágica, rei Vortigern, que jaz sob a torre. É por isso que suas paredes racham mais depressa do que eles conseguem construí-las. Qual dos seus adivinhos lhe poderia mostrar o que mostro agora? Dois archoteiros acercaram-se com ele; os outros permaneciam atrás. A luz aumentou, tremulando nas paredes enquanto se aproximavam. Os fios de água refletiam a luz e desciam para encontrar o próprio reflexo, de modo que o fogo parecia erguer-se do lago como bolhas num vinho espumante, vindo espocar na superfície. Por toda parte ao moverem-se os archotes, a água refulgia e faiscava, jatos e clarões de luz entrecortando-se, saltando e serpeando pela superfície imóvel até que a lagoa se transformou em fogo líquido e pelas paredes a água cascateava e cintilava como cristal. Parecia a gruta de cristal ganhando vida, movendo-se e girando à minha volta — como o globo estrelado, à meia-noite, rodopiando e piscando. Inalei penosamente e falei outra vez: — Se conseguisse drenar esse lago, rei Vortigern, e descobrir o que está embaixo... Parei. A luz mudara. Ninguém se mexia e o ar estava parado, mas a luz dos archotes agitava-se com o tremor das mãos dos homens. Eu já não conseguia ver o Rei. As chamas interpunham-se entre nós. As sombras corriam pelas torrentes e escadas de fogo e a gruta enchera-se de olhos e asas e cascos a martelarem na investida do grande dragão curvando-se sobre a presa... Uma voz gritava, alta e monótona, ofegando. Eu não conseguia recuperar o fôlego. A dor explodiu em mim, espalhando-se da virilha ao estômago, como o sangue a esguichar de um ferimento. Não via nada. Senti as mãos contorcerem-se e distenderem-se. Minha cabeça doía, e a rocha era dura e encharcada sob o meu rosto. Eu desmaiara e eles haviam-me agarrado. Encontrava-me deitado, matavam-me, esse era o meu sangue que vertia para lançar-se ao lago e escorar as fundações da sua torre podre. Eu engasgava com o ar como se fosse bile. Minhas mãos dilaceravam-se de dor de encontro à rocha e meus olhos estavam abertos, mas tudo que conseguia ver era o rodopio dos estandartes e asas e olhos de lobo e bocas doentes escancaradas e a cauda de um cometa como um tição, e estrelas que surgiam em meio a uma chuva de sangue. A dor percorreu-me outra vez, uma faca em brasa nos intestinos. Gritei e de repente minhas mãos se soltaram. Ergui-as entre mim e as visões faiscantes e ouvi minha própria voz falando, mas não saberia dizer o quê. À minha frente as visões redemoinhavam, entrecortavam-se, abriam-se em clarões intoleráveis de luz e então desapareciam novamente na escuridão e no silêncio.

11 Acordei num quarto esplendidamente revestido de cortinas bordadas, onde a luz do sol se derramava pela janela para formar quadrados luminosos no chão assoalhado. Mexi-me com cautela, experimentando as pernas. Não me ferira. E não havia vestígios da dor de cabeça. Estava nu, aconchegado em peles quentes e macias e minhas pernas moviam-se sem indícios de entorpecimento. Pisquei deslumbrado para a janela, então voltei a cabeça e vi Cadal de pé junto à cama, o alívio a espalhar-se-lhe no rosto como a luz depois da nuvem. — E já era tempo! — exclamou. — Cadal! Por Mithras, como é bom vê-lo! Que aconteceu? Onde estou? — No melhor quarto de hóspedes de Vortigern é onde está. Você deu um jeito nele, jovem Merlin, deu-lhe um jeito para valer. — Dei? Não me lembro. Tive a impressão de que estavam dando um jeito em mim. Quer dizer que já não estão planejando matar-me? — Matá-lo? Metê-lo numa gruta sagrada será mais provável, e sacrificar virgens a você. Pena que seja um desperdício. Eu próprio poderia usar algumas. — Deixarei todas para você. Oh, Cadal, mas como é bom vê-lo! Corno chegou aqui? — Eu acabara de voltar para o portão do convento, quando eles vieram buscar sua mãe. Ouvi-os perguntarem por ela e dizerem que já o tinham apanhado e que iam levar os dois para Vortigern ao raiar do dia. Perdi metade da noite procurando Marric e a outra metade tentando arranjar um cavalo decente — e poderia ter-me poupado esse trabalho, pois acabei tendo que me contentar com aquele matungo que você comprou. Mesmo ao passo que iam, eu estava quase um dia atrasado na altura em que chegaram a Pennal. Não que eu quisesse alcança-los até ver como estavam as coisas... Bem, não importa, afinal cheguei aqui na tarde de ontem e descobri que o lugar zumbia como uma colméia que tivesse sido pisada. — Soltou uma gargalhada curta. — Era Merlin isto; e Merlin aquilo... já o chamavam de profeta do Rei! Quando disse que era seu criado, não conseguiram empurrar-me para aqui o bastante rápido. Parece que não há exatamente uma corrida para cuidar de feiticeiros da sua classe. Pode comer alguma coisa? — Não... sim. Sim, posso. Estou faminto. — Recostei-me nos travesseiros. — Espere um instante, você diz que chegou aqui ontem? Quanto tempo dormi? — A noite e o dia de hoje. O sol já se está quase pondo. — Uma noite e um dia? Então é... Cadal, o que aconteceu como minha mãe? Você sabe? — Já partiu em segurança para casa. Não se preocupe com ela. Coma agora enquanto lhe conto. Aqui. Ele trouxe uma bandeja na qual havia uma tigela de caldo fumegante e um prato de carne com pão, queijo e damascos. Não consegui tocar na carne, mas comi todo o resto enquanto conversávamos. — Ela nada sabe do que tentaram fazer ou do que aconteceu. Quando perguntou por você a noite passada, disseram-lhe que estava aqui realmente instalado e nas graças do Rei. Disseram-lhe que

cuspira nos olhos dos sacerdotes, por assim dizer, profetizara com a classe de um Salomão, e estava dormindo confortavelmente. Ela veio vê-lo esta manhã para certificar-se, e constatou que você dormia como uma criança. Então partiu. Não tive oportunidade de falar com ela, mas vi-a partir. Foi escoltada como uma rainha, posso dizer-lhe, levava meia tropa de cavalos, e as mulheres viajavam em liteiras quase tão luxuosas quanto a dela. — Você diz que eu profetizei? Cuspi nos olhos dos sacerdotes? — Pus as mãos na cabeça. — Gostaria de poder lembrar-me... Estávamos na caverna sob o Forte do Rei, contaram-lhe isso, suponho? — Olhei para ele. — Que aconteceu, Cadal? — Quer-me dizer que não se lembra? Sacudi a cabeça. — Só sei que iam matar-me para impedir que aquela torre podre desmoronasse e tentei um blefe. Pensei que poderia desacreditar os sacerdotes e salvar a pele, mas eu só esperava ganhar tempo para poder talvez escapar. — É, ouvi falar do que iam fazer. Algumas pessoas são tão ignorantes que é de se admirar. — Mas ele me observava com aquele olhar já conhecido. — Foi um tipo estranho de blefe, não foi? Como sabia onde encontrar o túnel? — Oh, isso! Foi fácil. Estive por aqueles lados antes, quando criança. Fui àquele mesmo lugar uma vez, há anos atrás, com Cerdic, que era meu criado então, e eu seguia um falcão pela floresta quando encontrei o velho túnel. — Sei. Algumas pessoas podem chamar isso de sorte — se não conhecerem, isto é. Suponho que tenha entrado? — Sim. Quando ouvi falar pela primeira vez sobre o desmoronamento da parede ocidental, pensei que devia ter alguma relação com a escavação da mina. Contei-lhe então, rapidamente, tudo o que consegui lembrar-me dos acontecimentos da gruta. As luzes — disse eu — a água brilhando... os gritos... Não foram como as visões que tive antes, o touro branco e as outras que vejo às vezes. Aquilo foi diferente. Deve assemelhar-lhe à morte. Creio que no final desmaiei. Não me lembro de ter sido trazido para cá. — Nada sei sobre isso. Quando consegui vê-lo, você tinha acabado de adormecer, muito profundamente, mas normal, pareceu-me. Eu não faço cerimônia, dei uma boa olhada em você, para ver se o tinham machucado, mas não encontrei sinal, exceto uma porção de arranhões e esfoladuras que me disseram que você arranjou na floresta. Suas roupas pareciam confirmar, posso dizer-lhe... Mas, da maneira como estava instalado aqui, e da maneira como falavam, não acho que teriam ousado levantar um dedo contra você, não agora. O que quer que tenha sido, um desmaio, um ataque, ou um transe mais provavelmente, você assustou-os para valer, de verdade. — Sim, mas como, exatamente? Não lhe contaram? — Oh, sim, contaram-me, aqueles com quem falei. Berric, aquele que lhe deu o archote, me contou. Contou que estavam todos preparados para cortar sua garganta, aqueles velhos sacerdotes imundos, e parece que, se o Rei já não soubesse mais o que fazer e não estivesse impressionado com sua mãe e com a maneira como vocês dois não pareciam amedrontados, ele nunca teria esperado. Oh, ouvi toda a história, não se preocupe. Berric disse que não teria dado dois tostões furados pela sua vida lá no salão, quando sua mãe contou o caso. — Ele me lançou um olhar. — Toda aquela conversa sobre o diabo no escuro! Dizer isso na sua frente! O que foi que deu nela?

— Ela pensou que isso ajudaria. Suponho que tenha imaginado que o Rei descobrira quem era meu pai e nos tivesse arrastado até lá a para ver se conhecíamos os seus planos. Foi o que eu próprio pensei. — Falei, pensativo. — E havia mais alguma coisa... Quando o lugar está cheio de superstição e de medo chega-se a sentir. Eu, exemplo, sentia arrepios por todo o corpo. Ela deve ter sentido também. Poder-se-ia dizer que seguiu a mesma linha de raciocínio eu, tentando enfrentar mágica com mágica. Então contou aquela velha lenda de que fui gerado por um espírito, com alguns floreios para torná-la mais plausível. — Sorri para ele. — E desincumbiu-se bem. Até eu teria acreditado, se não soubesse a verdade. Mas não importa, continue. Quero saber o que aconteceu na caverna. Você quer dizer que fui coerente? — Bem, agora, eu não disse exatamente isso. Não consegui entender direito o que Berric me contou. Ele jurou que estava repetindo quase palavra por palavra... parece que tem ambição de tornar-se cantor ou outra coisa qualquer.... Bem, o que ele disse foi que você ficou parado ali, olhando para a água a escorrer das paredes e, então, começou a falar, normalmente a princípio, com o Rei, como se estivesse explicando como o poço fora cavado na montanha e os veios minados, mas então o velho sacerdote — Maugan, não é? — começou a gritar "Isto é conversa de tolos" ou alguma coisa assim, quando de repente você soltou um berro que quase congelou os testículos deles — expressão de Berric, não minha, ele não está acostumado ao serviço de cavalheiros — e seus olhos reviraram-se e você estendeu os braços para cima como se estivesse tentando desengastar estrelas — Berric outra vez, ele devia ser poeta — e começou a profetizar. — Sim? — Foi o que todos disseram. Você falava em águias, lobos, leões e javalis e em tantos outros animais quantos já apareceram na arena e mais alguns, dragões e outros que tais — e falava de coisas que ocorreriam daqui a centenas de anos, o que é bastante seguro, mas Berric disse que parecia, tudo aquilo, profundamente verdadeiro, como se você apostasse o último tostão na exatidão das profecias. — Talvez tenha que fazê-lo — disse eu secamente, — se falei alguma coisa sobre Vortigern ou meu pai. — E falou — retorquiu Cadal. — Bem, é melhor eu saber. Vou ter que sustentar o que disse. — Foi tudo enfeitado, como coisa de poeta, dragões vermelhos e dragões brancos em combate, devastando tudo, banhos de sangue, e coisas desse tipo. Mas parece que você lhes disse, tintim por tintim, tudo o que ia acontecer: o dragão branco dos saxões e o dragão vermelho de Ambrosius lutando até o fim, o dragão vermelho não parecendo muito inteligente a princípio, mas terminando por vencer. Sim. Depois viria de Cornwall um urso, que limparia o campo. — Um urso? Você quer dizer o Javali, certamente; é o emblema de Cornwall. Hum. Então poderá ser para o meu pai afinal... — Berric disse um urso. Artos foi a palavra... prestou atenção porque ele próprio ficou imaginando. Mas você foi claro a esse respeito, diz ele. Artos foi como o chamou, Arthur... um nome, sim. Você quer-me convencer de que não se lembra de uma única palavra? — Nem uma. — Bem, olhe aqui, não consigo lembrar-me do resto, mas se eles começarem a lhe perguntar, você poderia dar um jeito para que lhe contassem tudo o que você disse. É assim mesmo, não é, um profeta não sabe o que fala? Oráculos e coisas assim?

— Creio que sim. — O que quero dizer é, se terminou de comer e se sente realmente bem, talvez seja melhor levantar-se e vestir-se. Estão todos a sua espera lá fora. — Para quê? Pelo amor de Deus, não querem mais conselhos? Estão mudando 'o local da construção da torre? — Não. Eles estão fazendo o que você mandou. — E o que foi? — Drenando o lago. Estiveram trabalhando a noite e o dia todo montando as bombas para retirarem a água pelo acesso da mina. — Mas por quê? Isto não tornará a torre mais segura. Na verdade, poderá até fazer com que o penhasco todo ceda. Sim, já terminei, pode levar. — Empurrei a bandeja para as suas mãos e afastei as cobertas: — Cadal, você está tentando dizer-me que eu recomendei isso no meu... delírio? — É. Você disse a eles que drenassem o lago e que no fundo encontrariam as bestas que faziam ruir o Forte do Rei. Dragões, você disse, vermelhos e brancos. Sentei-me na beirada da cama, a cabeça entre as mãos. — Lembro-me de alguma coisa agora... algo que vi. Sim, deve ter sido isso... Vi uma coisa sob a água, provavelmente apenas uma pedra com formato de dragão... E lembro-me de começar a dizer alguma coisa ao Rei a respeito de drenar o lago... Mas não lhes disse que drenassem, eu ia dizendo: — "Mesmo que drenassem o lago, isto não adiantaria". Pelo menos foi o que comecei a dizer. — Deixei cair as mãos e olhei para cima. — Você quer dizer que eles estão, realmente, drenando o local, pensando que haja algum animal marinho no fundo, abalando as fundações? — Foi o que você falou, segundo Berric. — Berric é um poeta, está enfeitando. — Talvez. Mas eles estão lá fora fazendo isso e as bombas estão trabalhando a toda há algumas horas já. O Rei está à sua espera. Fiquei sentado em silêncio. Ele me lançou um olhar de dúvida, 0 retirou-se com a bandeja, voltando com toalhas e uma bacia de prata com água fumegante. Enquanto eu me lavava, ocupou-se com uma arca do outro lado do quarto, tirando roupas e sacudindo as dobras, falando por sobre o ombro. — Você não parece preocupado. Se eles drenarem aquele lago até o fundo e não houver nada lá... — Haverá alguma coisa. Não me pergunte o quê, não sei, mas se eu disse... é verdade, sabe. As coisas que vejo desse modo são verdadeiras. Tenho Vidência. Suas sobrancelhas arquearam-se. — Acha que está me contando alguma novidade? Já não me deixou apavorado dezenas de vezes com o que diz e as coisas que vê e que mais ninguém vê? — Você costumava ter medo de mim, não era, Cadal? — De certa forma. Mas não tenho medo agora nem tenho intenção de ter medo. Alguém tem de cuidar do próprio diabo enquanto ele usar roupas e precisar de comida e bebida. Agora se terminou, jovem amo, veremos se lhe servem as coisas que o Rei mandou.

— O Rei mandou-as? — É. Parecem essas coisas que acham que um mago deve usar. 'ri Acerquei-me para olhar. — Não aquelas vestes brancas com estrelas e luas e um bastão com serpentes entrelaçadas? Oh, francamente, Cadal... — Bem, as suas roupas estão arruinadas, terá que vestir alguma coisa. Vamos, ficará elegante, e parece-me que deveria tentar impressioná-los, na enrascada em que se meteu. Ri-me. — Talvez você tenha razão. Deixe-me vê-las. Hum, não, não a branca, não quero competir com o grupo de Maugan. Alguma coisa escura, acho melhor, e a capa preta. Sim, esta servirá. E usarei o broche do dragão vermelho. — Espero que esteja agindo bem em parecer tão seguro de si. — Então hesitou. — Olhe, sei que agora tudo são rosas, mas talvez devêssemos tentar escapar imediatamente em vez de esperar para ver como caem os dados? Eu poderia roubar dois cavalos... — Fugir? Então continuo prisioneiro? — Há guardas por toda a parte. Cuidando de você desta vez, não mantendo-o preso, mas, pelo cão, dá na mesma. — Ele espiou pela janela. — Estará escuro dentro em pouco. Olhe, eu poderia contar uma história comprida para mantê-los quietos e talvez você pudesse fingir que vai dormir novamente até escurecer... — Não. Preciso ficar. Se conseguir que Vortigern me ouça... Deixe-me pensar, Cadal. Você viu Marric na noite em que fomos apanhados. Quer dizer que as notícias estão a caminho do meu pai, se sei julgar alguma coisa, ele se mexerá imediatamente. Até aí, estamos com sorte. Quanto mais cedo, melhor. Se ele puder apanhar Vortigern aqui no oeste antes que tenha uma chance de juntar-se Hengist... — Pensei um momento. — Ora, o navio deveria ter saído três, não quatro dias atrás... — Saiu antes de você deixar Maridunum — disse ele, rápido. — O quê? Ele sorriu da minha expressão. — Bem, o que esperava? O próprio filho do Conde e a senhora dele são levados dessa forma, ninguém sabia ao certo por quê, mas havia histórias correndo, e até Marric reconheceu o bom senso de voltar imediatamente para Ambrosius com aquela história. O navio partiu com a maré naquela madrugada. Deveria já estar ao largo do estuário quando você saiu da cidade. Fiquei muito quieto. Lembro-me de que ele se ocupou à minha volta, pregueando a capa preta, sorrateiramente puxando uma dobra para encobrir o broche de dragão que a prendia. Então dei um longo suspiro. — É tudo que eu precisava saber. Agora estou certo do que fazer. "O profeta do Rei", disse você? É muito mais verdade do que imaginam. O que o profeta do Rei precisa fazer agora é tirar a coragem desses vermes amantes dos saxões e induzir Vortigern a sair deste canto de Gales, para algum lugar onde Ambrosius possa desentocá-lo com fumaça rapidamente, e destruí-lo. — Acha que pode fazer isso? — Sei que posso.

— Então espero que saiba como nos tirar daqui antes que eles descubram de que lado você está. — Por que não? Assim que soubermos para onde irá Vortigern, levaremos notícia ao meu pai pessoalmente. — Acertei a capa nos ombros e sorri para ele. — Portanto, roube esses cavalos, Cadal, e deixe-os à nossa espera junto ao rio. Há uma árvore caída de través na água; não há como errar, espere lá, onde você se pode esconder. Estarei lá. Mas primeiro preciso ir ajudar Vortigern a descobrir os dragões. Encaminhei-me para a porta, mas ele chegou à minha frente e parou com a mão no trinco. Seus olhos estavam apavorados: — Você quer que eu o deixe sozinho no meio daquela alcatéia? — Eu não estou sozinho. Lembre-se disto. E, se não puder confiar em mim, confie em quem está comigo. Aprendi a fazê-lo Aprendi que o deus vem quando quer e como quer, tomando nossa pele de empréstimo para entrar em nós, e quando termina, livra-se tão violentamente como quando entra. Depois... agora... sinto-me leve e oco como um anjo voando... Não, eles não podem fazer-me nada, Cadal. Não tenha medo. Tenho o poder. — Eles mataram Galapas. — Algum dia poderão matar-me — disse eu. — Mas não hoje. Abra a porta.

12 Estavam todos reunidos ao pé do penhasco, onde a trilha dos trabalhadores encontrava o nível alagado da escavação da encosta. Eu ainda estava sob guarda, mas desta vez, ao menos em aparência, era uma guarda de honra. Quatro homens fardados, com as espadas embainhadas, escoltaram-me até o Rei. Eles haviam assentado uma esteira de tabuinhas sobre o solo empapado para erguer uma plataforma, onde colocaram uma cadeira para o Rei. Alguém construíra um quebra-vento de galhos entrelaçados dos três lados, um teto, e cobrira o pavilhão com uma porção de tapetes trabalhados e peles tingidas. Vortigern encontrava-se sentado ali, o queixo no punho, silencioso. Não havia sinais da Rainha ou mesmo de qualquer outra mulher. Os sacerdotes estavam postados junto a ele, mas mantinham-se afastados e não falavam. Seus capitães ladeavam-lhe a cadeira. O sol caía por trás do pavilhão improvisado, em meio a uma mancha púrpura. Devia ter chovido outra vez naquele dia; a relva estava encharcada, as folhas pesadas de gotas. As conhecidas nuvens cinzentas dobravam-se e desdobravam-se lentamente pelo ocaso. Ao ser conduzido à presença do Rei, estavam acendendo os archotes. Estes pareciam pequenos e fracos contra o pôr do sol, mais fumaça que chama, arrastados e achatados pelo vento em rajadas. Esperei diante da plataforma. O Rei mediu-me de alto a baixo, mas nada disse. Reservava julgamento. E por que não, pensei. O tipo de coisa que eu produzira deveria parecer-lhe bastante familiar. Agora esperava pela prova de ao menos parte da minha profecia. Se não viesse, ainda seria tempo e lugar para derramar o meu sangue. Eu imaginava como soprariam os ventos na Bretanha Menor. O rio estava a bem uns trezentos passos, escuro sob os carvalhos e salgueiros. Vortigern fez-me sinal para que tomasse lugar na plataforma ao seu lado e subi à sua direita, do lado oposto aos sacerdotes. Um ou dois oficiais abriram lugar para mim, os rostos impassíveis, sem olharem, mas vi-lhes os dedos cruzados e pensei: com dragão ou sem dragão posso-me encarregar desses. Então senti que me observavam e olhei em meu redor. Era o barba-grisalha. Observava fixa mente o broche do meu ombro, de onde a capa fora afastada pelo vento. Quando virei a cabeça, nossos olhares se cruzaram. Vi seus olhos arregalarem-se e a mão descer para o quadril, não para fazer o sinal, mas para soltar a espada da bainha. Olhei para o outro lado Ninguém falou. Foi uma vigília desconfortável. À medida que o sol descia, o vento frio da primavera refrescava, agitando os cortinados. Onde haviam poças no chão de juncos, a água ondulava e transbordava com o vento. Ouviu-se um maçarico passar assoviando pelo céu que escurecia, depois mergulhar, farfalhando como uma cascata, e desaparecer no silêncio. No alto, o estandarte do Rei flutuava e adejava ao vento. A sombra do pavilhão alongava-se pelo campo molhado. De onde esperávamos, o único sinal de atividade era um vaivém nos galhos das árvores. Os últimos raios do sol, horizontais e vermelhos, incidiam em cheio sobre o lado ocidental do Forte do Rei, iluminando o topo do penhasco coroado pela parede desmoronada. Não havia nenhum trabalhador à vista ali; deviam estar todos na caverna e no poço. Meninos corriam, revezando-se, trazendo notícias do progresso: as bombas trabalhavam bem, vencendo a água... o nível baixara dois palmos na última meia hora... Se my lord o Rei tivesse paciência, as bombas haviam enguiçado, mas os engenheiros estavam

tentando consertá-las e entrementes os homens haviam montado um sarilho e passavam baldes... Tudo estava bem novamente, as bombas funcionavam e o nível baixava rapidamente... Pensavam que já podiam ver o fundo... Foram duas horas inteiras de espera no sereno que entorpecia e já era quase noite, quando as luzes desceram pelo caminho, e com elas o grupo de trabalhadores. Caminhavam rápidos e decididos, não como homens assustados, e mesmo antes de se aproximarem o suficiente para serem vistos com clareza, eu sabia o que tinham encontrado. Os líderes pararam a um metro da plataforma e quando os outros vieram chegando eu senti os meus guardas apertarem o cerco. Havia soldados entre os trabalhadores. O capitão deu um passo à frente, fazendo uma saudação. — O lago está vazio? — perguntou Vortigern. — Sim, senhor. — E o que tem no fundo? O oficial fez uma pausa. Deveria ter sido um bardo. Não havia necessidade de parar para concentrar olhares; já estavam todos postos nele. Uma rajada de vento, súbita e mais forte que as anteriores, levantou sua capa para um lado com um estalido como o de um chicote e balançou a armação do pavilhão. Um pássaro passou sobre as nossas cabeças, jogado pelo vento. Não um falcão; não esta noite. Apenas uma gralha retardatária. — Não há nada sob o lago. — Sua voz era neutra, cautelosamente oficial, mas ouvi um murmúrio passar pela gente como uma nova rajada de vento. Maugan esticava-se para a frente, os olhos brilhantes como os de um abutre, mas eu via que não ousaria falar até ver a reação do Rei. Vortigern curvou-se para a frente. — Tem certeza disso? Esvaziou até o fundo? — Verdade, senhor. — Ele acenou para os homens ao lado dele e três ou quatro adiantaram-se para despejar um monte de objetos à frente da plataforma. Uma picareta partida, corroída de ferrugem, alguns machados de sílex mais antigos que qualquer obra romana, uma fivela de cinto, uma faca com a lâmina quase desaparecida, um pedaço de corrente, um cabo de chicote em metal, outros objetos impossíveis de serem identificados, e alguns cacos de panelas. O oficial estendeu as palmas das mãos. — Quando eu disse "nada", senhor, referia-me apenas ao que se poderia esperar. Isso. E chegamos tão próximo do fundo até que já não fizesse diferença; podia ver-se até a rocha e a lama, mas retiramos até o último balde, por via das dúvidas. O capataz está aí para confirmar. O capataz adiantou-se, então, e vi que trazia um balde cheio na mão, a água a transbordar. — Senhor, é verdade, não há nada aqui. Poderia ver por si mesmo se fosse até lá, senhor, até o fundo. Mas é melhor não experimentar, o túnel está cheio de lama agora, e pouco próprio. Mas trouxe o último balde para o senhor ver. Ao dizer isso, virou o balde, encharcando o chão já molhado e a água escorreu para encher a poça na base do estandarte real. Com a lama que jazia no fundo vieram alguns fragmentos de pedra e uma moeda de prata. O Rei voltou-se então para mim. Devia ser a medida do que acontecera na caverna no dia anterior, o fato de os sacerdotes manterem-se ainda silenciosos e o Rei aguardar claramente, não uma desculpa mas uma explicação. Deus sabia que eu tivera bastante tempo para refletir, durante toda aquela longa vigília silenciosa e

fria, mas eu sabia que pensar não iria ajudar-me. Se ele estava comigo, apareceria agora. Olhei Para as poças que a última luz avermelhada do sol transformara em sangue. Olhei para o alto, além do penhasco onde já se podiam ver estrelas surgindo brilhantes pelo leste claro. Outra rajada de vento aproximava-se; ouvi-a passar pelos topos dos carvalhos, onde Cadal deveria estar esperando. — Bem? — disse Vortigern. Dei um passo à frente para a beira da plataforma. Ainda me sentia vazio, mas de alguma forma precisava falar. Ao mover-me, o vento bateu no pavilhão, forte como uma pancada. Ouviu-se um estalido, uma agitação como a de cães a perseguirem um veado e o grito entrecortado de alguém. Do alto o estandarte do Rei escorregou esvoaçante, foi apanhado nas próprias cordas, enfunou-se como uma vela com o sopro do vento. O mastro sacudiu-se violentamente de um lado para outro no solo fofo que se tornara menos firme com o balde de água, soltou-se subitamente das mãos que o seguravam e rodopiou caindo no chão. Bateu aberto no campo encharcado aos pés do Rei. O vento passou e seguiu-se uma calmaria. O estandarte ficou estendido e pesado de água. O Dragão Branco em campo verde. Enquanto eu o observava, afundou lentamente na poça e a água encobriu-o. Um último raio débil de sol ensangüentou a água. Alguém disse temeroso: — Um sinal — e outra voz alta: — Grande Thor, o dragão caiu! Outros começaram a gritar. O porta-estandarte, o rosto cinzento, já se curvava, mas eu pulei da plataforma à frente de todos e ergui os braços. — Pode alguém duvidar de que o deus falou? Tirem os olhos do chão e vejam o que ainda diz! No leste escuro, faiscando, branco, com uma cauda como a de um cometa novo, passou um meteoro, a estrela que os homens chamam de dragão de fogo. — Lá está ele! — gritei. — Lá está ele! O Dragão Vermelho do oeste! Digo-lhe, rei Vortigern, não perca mais tempo com esses tolos ignorantes que falam de sacrifícios de sangue e de construir-lhe uma parede de pedra, trinta centímetros por dia! Que muralha manterá afastado o Dragão? Eu, Merlin, digolhe, mande esses sacerdotes embora, e reúna seus capitães em torno de si e saia das montanhas de Gales para o seu próprio país. Viu o Dragão Vermelho aparecer esta noite e o Dragão Branco jazendo aos seus pés. E, por Deus, viu a verdade! Ouça o aviso I Levante suas tendas agora e parta para o seu próprio país e vigie as fronteiras para que o Dragão não o siga e o destrua pelo fogo! Trouxe-me aqui para falar e já falei. Digo-lhe, o Dragão está aqui! O Rei estava de pé e os homens gritavam. Aconcheguei-me na a preta e sem pressa atravessei a multidão de trabalhadores e soldados que se aglomerava em torno da plataforma. Não tentaram fazerme parar. Prefeririam, suponho eu, tocar numa serpente venenosa. As minhas costas, em meio ao alarido, ouvi a voz de Maugan pensei por um momento que fossem seguir-me, mas então os homens começaram a afastar-se da plataforma, abrindo caminho por entre a turba de trabalhadores, de volta ao acampamento. Os archotes agitavam-se. Alguém levantou o estandarte molhado e eu o vi esvoaçando e pingando onde presumivelmente os capitães abriam caminho para o Rei. Puxei a capa preta para mais perto do corpo e esgueirei-me pelas sombras à margem da aglomeração. Afinal, sem ser visto, passei por trás do pavilhão. Os carvalhos encontravam-se a uns trezentos passos no campo escuro. À sombra deles corria o rio turbulento pelas pedras lisas. A voz de Cadal soou baixa e ansiosa: — Por aqui.

Um casco bateu numa pedra. — Apanhei para você um manso — disse ele, colocando a mão sob o meu pé para alçar-me à sela. Ri-me. — Eu poderia montar o próprio dragão de fogo esta noite. Você viu? — Sim, my lord. Vi-o, e escutei-o também. — Cadal, você jurou que nunca teria medo de mim. Foi apenas um meteoro. — Mas apareceu na hora que apareceu. — Sim. E agora é melhor partirmos enquanto podemos. O tempo é só o que conta, Cadal. — O senhor não devia rir-se, Mestre Merlin. — Pelo deus, — disse eu, — não estou rindo. Os cavalos saíram do abrigo das árvores gotejantes e cruzaram a ponte num meio-galope rápido. Para a nossa direita uma montanha coberta de árvores bloqueava o oeste. À frente achava-se a garganta estreita do vale entre a montanha e o rio. — Eles virão ao seu encalço? — Duvido. Mas, ao esporearmos os animais para galoparem entre a montanha e o rio, surgiu um cavaleiro e eles viraram-se, empinando. O cavalo de Cadal pulou à frente sob as esporas. O ferro produziu um ruído dissonante. Uma voz vagamente conhecida disse, clara: — Pare, amigo. Os cavalos sapateavam e resfolegavam. Vi a mão de Cadal nas rédeas do outro. Ele mantinha-se quieto. — Amigo de quem? — De Ambrosius. Eu disse: — Espere, Cadal, é o barba-grisalha. O seu nome, senhor? E o seu assunto comigo? Ele pigarreou asperamente. — Gorlois é meu nome, de Tentável, em Cornwall. Vi o movimento de surpresa de Cadal e ouvi os freios tilintarem. Ele ainda segurava as rédeas do outro e a adaga desembainhada brilhava. O velho guerreiro continuava imóvel. Não havia barulho de cascos seguindo-o. Eu disse lentamente: — Então, senhor, eu deveria antes perguntar-lhe qual era o seu assunto com Vortigern? — O mesmo que o seu, Merlinus Ambrosius. — Vi-lhe os dentes brilharem em meio à barba. — Vim para o norte para verificar in loco, e mandar as notícias a ele. O oeste já esperou o bastante, e a hora estará madura na primavera. Mas você veio cedo. Parece que eu poderia ter-me poupado o trabalho. — Veio só?

Ele soltou uma gargalhada curta e forte, como o latido de um cachorro. — À presença de Vortigern? Dificilmente! Meus homens vêm a seguir. Mas eu precisava alcançálo. Quero notícias. Então, irritado: — Meu Deus, homem, duvida de mim? Vim sozinho até aqui. — Não, senhor. Solte-o, Cadal. My lord, se quiser falar comigo, terá que ser durante o trajeto. Temos de partir e rápido. — Com todo o gosto. — Pusemos os cavalos em movimento. Quando começaram a galopar, eu disse por cima do ombro: — Adivinhou quando viu o broche? — Antes disso. Você se parece com ele, Merlinus Ambrosius. — Ouvi-o rir-se outra vez, um riso gutural. — E, por Deus, há vezes em que parece-se com o seu pai demônio também! Firme agora. Estamos quase no vau. É fundo. Dizem que os magos não podem atravessar a água? Ri-me. — Sempre enjôo no mar, mas posso dar um jeito aqui. Os cavalos mergulharam pelo vau sem dificuldade e subiram nela encosta a galope. Chegamos então à estrada pavimentada, clara 'luz fugaz das estrelas, que atravessa o terreno montanhoso para o sul. Cavalgamos a noite toda sem sermos seguidos. Três dias tarde, de manhãzinha, Ambrosius desembarcou.

Livro 4 - O DRAGÃO VERMELHO

1 Da maneira como as crônicas relatam, pensar-se-ia que Ambrosius levou dois meses para ser coroado Rei e pacificar a Bretanha. Na verdade, levou mais de dois anos. A primeira parte foi bastante rápida. Não fora inutilmente que ele e Uther haviam passado todos aqueles anos na Bretanha Menor, preparando uma força especializada de impacto, a qual não era vista na Europa desde a dissolução, quase cem anos antes, da força comandada pelo Conde da Costa Saxônica. De fato, Ambrosius havia modelado o seu próprio exército naquela força, que era um instrumento de luta maravilhosamente móvel capaz de viver fora do país e fazer tudo duas vezes mais rápido que uma força normal. Velocidade de César, eles ainda a chamavam quando eu era criança. Desembarcou em Totnes, Devon, com vento favorável e mar calmo, e mal erguera o estandarte do Dragão Vermelho, quando todo o oeste se levantou a seu favor. Tornou-se Rei de Cornwall e Devon antes de deixar a praia, e por toda parte, à medida que avançava para o norte, os chefes e reis acorriam para engrossar suas fileiras. Eldol de Gloucester, um velho feroz que lutara com Constantine contra Vortigern, com Vortigern contra Hengist, com Vortimer contra ambos, e lutaria em qualquer parte só pelo prazer da luta, foi ao seu encontro em Glastonbury, jurando-lhe lealdade. Com ele veio uma hoste de líderes menores, incluindo seu próprio irmão, Eldad, um bispo cujo piedoso cristianismo fazia os lobos pagãos parecerem cordeiros por comparação, e que me deixou a imaginar onde passaria as noites escuras do solstício de inverno. Mas era poderoso; eu ouvira minha mãe falar dele com reverência. Uma vez que se declarou por Ambrosius, toda a Bretanha cristã veio com ele, ansiosa para expulsar as hordas pagas que se deslocavam continuamente para o interior a partir dos locais de desembarque no Sul e no Leste. Por último chegou Gorlois de Tintagel diretamente da cabeceira de Vortigern, com notícias da sua partida Precipitada das montanhas galesas, e pronto a ratificar o juramento de lealdade que, no caso de Ambrosius ser bem sucedido, acrescentaria pela primeira vez todo o reino de Cornwall ao Alto Reino da Bretanha. O maior problema de Ambrosius, na verdade, não era a falta de apoio, mas a natureza do mesmo. Os bretões nativos, cansados de Vortigern, estavam loucos para expulsar os saxões do país e voltar aos seus lares e tradições, mas a grande maioria conhecia apenas a luta de guerrilha ou a tática de atacar e fugir que funciona para desnortear o inimigo, mas que não o mantém afastado por muito tempo se estiver realmente disposto. Além do mais, cada tropa trazia um líder próprio e a autoridade de qualquer comandante pouco valia para sugerir que se reagrupassem e treinassem sob a direção de um estranho. Desde que a última legião treinada se retirara da Bretanha quase um século antes, tínhamos lutado em tribos (como fazíamos antes da chegada dos romanos). E não adiantava sugerir, por exemplo, que os homens de Devet lutassem ao lado dos homens de Gales do Norte, mesmo sob líderes próprios; gargantas teriam sido cortadas de ambos os lados antes mesmo que a primeira trompa soasse. Ambrosius aqui, como em toda a parte, mostrou-se um mestre. Como sempre, usava cada homem de acordo com sua própria força. Espalhou seus oficiais entre os britânicos — para coordenação, nada mais, disse ele — e através desses, suavemente, adaptava as táticas de cada força para convir ao seu plano central, com um corpo de tropas escolhidas aparando o grosso do ataque. Tudo isso eu ouvi mais tarde, ou poderia ter adivinhado pelo que dele conhecia. Poderia ter adivinhado também o que aconteceria quando as suas forças se reunissem e o declarassem rei. Seus

aliados britânicos reclamaram que partisse imediatamente contra Hengist e expulsasse os saxões. Não estavam excessivamente preocupados com Vortigern. Na verdade, o poder que Vortigern possuía já quase desaparecera, e teria sido bastante simples para Ambrosius ignorá-lo e concentrar-se nos saxões. Mas ele recusou-se a ceder às pressões. O velho lobo precisava ser desentocado primeiro, e o campo limpo para a principal tarefa da batalha. Além do mais, salientou ele, Hengist e os saxões eram nórdicos e, particularmente, sensíveis aos rumores e ao medo; se Ambrosius conseguisse unir a Bretanha para destruir Vortigern, os saxões começariam a temê-lo como uma força a ser realmente considerada. Era seu palpite que, com o tempo, eles trariam um grande exército para enfrentá-lo, que poderia então ser destruído num só golpe. Realizaram um conselho sobre esse problema no forte perto de Gloucester, onde a primeira ponte cruza o rio Sefern. Eu podia imaginar Ambrosius escutando, pesando, julgando e respondendo com aquela sua maneira séria e fácil, permitindo a cada homem que falasse por uma questão de orgulho, e tomando afinal a decisão que pretendera tomar desde o começo, mas cedendo aqui e ali nas pequenas coisas, para que cada homem pensasse que fizera uma barganha e conseguira, talvez não o que queria, mas algo muito próximo, em troca de uma concessão ao seu comandante. O resultado foi que eles marcharam para o norte dentro de uma semana e enfrentaram Vortigern em Doward. Doward está situada no vale do Guoy, um rio grande que corre profundo e aparentemente tranqüilo por uma garganta cujas encostas altas são cobertas de árvores. Aqui e ali o vale se alarga em pastagens verdejantes, mas a maré penetra muitas milhas pelo rio acima e essas campinas baixas no inverno são freqüentemente alagadas por uma torrente amarela, pois o grande rio não é tão plácido quanto parece, e mesmo no verão há fossas profundas, onde nadam grandes peixes, e as correntes são suficientemente fortes para virar um bote e afogar um homem. Bem ao norte do limite das inundações das marés, numa curva larga do vale, erguem-se as duas montanhas chamadas Doward. A do norte é a maior, coberta de denso arvoredo e minada de grutas habitadas, dizem que por animais selvagens e homens fora da lei. A Doward Menor é também arborizada, mas mais esparsamente, uma vez que é rochosa e seu cume pontiagudo, projetando-se acima da vegetação, forma uma cidadela natural tão segura que vem sendo fortificada desde tempos imemoriais. Muito antes da chegada dos romanos, algum rei britânico construiu para si uma fortaleza no topo, que com a sua vista privilegiada e as defesas naturais do penhasco e do rio, constitui uma formidável cidadela. A montanha tem um topo largo e os lados íngremes e escarpados, e embora as máquinas de assédio pudessem ser arrastadas por um ponto para a zona morta, esta terminava em penhascos onde as máquinas se tornariam inúteis. Por toda parte, exceto nesse ponto, havia muralhas duplas e um fosso antes de poder atingir-se a muralha externa da fortaleza. Os próprios romanos haviam certa vez marchado contra ela e só conseguiram tomá-la a traição. Isto foi na época de Caratacus. Doward era o tipo de lugar que, como Tróia, precisava ser tomada de dentro para fora. Desta vez também ela foi tomada assim. Não por traição, mas pelo fogo. Todos sabem o que aconteceu. Os homens de Vortigern mal se haviam instalado a seguir fuga precipitada de Snowdon, quando o exército de Ambrosius surgiu no vale do Guoy e acampou para oeste do monte Doward, num lugar chamado Ganarew. Eu nunca soube que estoque de provisões tinha 1 Vortigern; mas o lugar fora

conservado pronto e era bem sabido! que havia duas boas fontes no interior da fortaleza das quais nunca j se ouvira dizer que tivessem falhado; portanto, poderia muito bem! ter levado a Ambrosius algum tempo para liquidá-lo num cerco. Mas um cerco era exatamente o que ele não podia permitir-se, com Hengist reunindo forças e o mar de abril tornando-se navegável entre a Bretanha e as costas saxônicas. Além do mais, seus aliados britânicos estavam impacientes e nunca se teriam acomodado a um sítio prolongado. Tinha de ser rápido. E foi tão rápido quanto brutal. Ouvi mesmo dizer que Ambrosius teria agido por espírito de vingança devido à morte do irmão. Não creio que seja verdade. Uma amargura tão duradoura não seria da sua natureza, e mais, ele era um general e um bom comandante de batalha antes mesmo de ser homem. Foi levado pela necessidade e no final pela própria brutalidade de Vortigern. Ambrosius sitiou a fortaleza da forma convencional por cerca de três dias. Onde foi possível, postou máquinas de assédio e tentou romper as defesas. Na realidade, chegou a romper a muralha externa em dois pontos acima do que ainda é conhecido como o caminho dos romanos, mas quando foi paralisado pela muralha interna e suas tropas ficaram expostas aos defensores, retirou-se. Ao perceber quanto tempo levaria o cerco, e como, mesmo nesses três dias, algumas tropas haviam-no deixado silenciosamente, partindo por conta própria como cães atrás de boatos sobre lebres saxônicas, ele decidiu pôr um ponto final na coisa. Enviou um homem a Vortigern com as condições da rendição. Vortigern, que deve ter notado a deserção de certas tropas britânicas e que bem compreendia a posição de Ambrosius, riu-se e mandou de volta o mensageiro sem mensagem alguma, mas com as mãos cortadas e presas à cintura por um pano ensangüentado. O homem entrou aos tropeções pela tenda de Ambrosius logo depois do pôr do sol do terceiro dia e conseguiu manter-se em pé o tempo suficiente para entregar a única mensagem de que o haviam encarregado. — Dizem, my lord, que o senhor pode ficar aqui até que o seu exército se derreta, e o senhor fique sem mãos como eu. Têm bastante comida, senhor, eu vi, e água... Ambrosius apenas perguntou: — Foi ele quem ordenou isso? — A Rainha — disse o homem. — Foi a Rainha. Ao dizer isso, caiu de borco aos pés de Ambrosius e do pano ensangüentado à sua cintura caíram as duas mãos esparramadas. — Então queimaremos o ninho de vespas, com rainha e tudo _ disse Ambrosius — Cuidem dele. Aquela noite, para aparente satisfação da guarnição, as máquinas de assédio foram retiradas do caminho dos romanos e dos pontos abertos na muralha externa. Ao invés, grandes montes de galhos secos foram colocados nas brechas e o exército apertou o cerco em torno do pico da montanha, com um círculo de arqueiros de prontidão e homens dispostos a cortar qualquer um que escapasse. Na hora tranqüila que precede a alvorada, a ordem foi dada. De todos os lados choveram sobre a fortaleza flechas com pontas de trapos embebidos em óleo e acesas. Não demorou muito. O local era na maior parte construído de madeira e estava repleto de carroças, provisões, animais e forragem. Ardeu violentamente. E quando estava em chamas, a galharia do lado de fora das muralhas foi acesa de modo que qualquer um que pulasse encontraria mais uma parede de fogo. E do outro lado desta, o anel de ferro do exército. Dizem que durante todo o tempo Ambrosius permaneceu sentado no grande cavalo branco até que as chamas tornaram o cavalo tão vermelho quanto o Dragão Vermelho acima da sua cabeça. E no alto da

torre da fortaleza o Dragão Branco, contra um penacho de fumaça, tornou-se vermelho como as próprias chamas, enegreceu e caiu.

2 Enquanto Ambrosius atacava Doward, eu ainda me encontrava em Maridunum, tendo-me separado de Gorlois que, a caminho do sul, ia ao encontro do meu pai. Aconteceu assim. Por toda a primeira noite cavalgamos a toda velocidade, mas não havia sinais de perseguição; portanto, ao nascer do sol saímos da estrada e descansamos à espera de que os homens de Gorlois nos alcançassem. Isto eles fizeram naquela manhã, tendo conseguido no semi-pânico de Dinias Brenin sair despercebidos. Confirmaram o que Gorlois já me sugerira, que Vortigern rumaria não para sua própria fortaleza em Caer-Guent, mas para Doward, no rio Guoy. Já se deslocava, diziam, pela estrada do leste que passava por Caer Gai a caminho de Bravonium. Uma vez passando Tomem-y-Mur, não haveria perigo de sermos alcançados. Então prosseguimos, uma tropa agora de uns vinte homens, mas descansadamente. Minha mãe e sua escolta de soldados estavam pouco mais de um dia à nossa frente, e o grupo, que levava liteiras, seguiria muito mais devagar que o nosso. Não tínhamos desejo algum de alcançá-los e talvez forçar uma luta que pudesse colocar as mulheres em perigo; era certo, disse Gorlois, que ela seria entregue a salvo em Maridunum, "mas" — acrescentou no seu modo brusco — defrontar-nos-emos com a escolta na volta, pois, voltar, eles voltarão; não têm meios de saber que o Rei está-se deslocando para leste. E cada homem a menos para Vortigern é um a mais para o seu pai. Teremos notícias em Bremia e acamparemos um pouco além para esperá-los. Bremia não passava de um punhado de casebres de pedra cheirando a turfa queimada e a excremento de gado, portas negras protegidas do vento e da chuva por peles ou sacos, em torno das quais espreitavam olhos amedrontados de mulheres e crianças. Nenhum homem apareceu, mesmo quando fizemos alto no centro do lugarejo e os vira-latas saíram a latir por entre os cascos dos cavalos. Aquilo nos intrigou até que, conhecendo o dialeto, me dirigi aos olhos por trás da cortina mais próxima para tranqüilizar a gente e pedir notícias. Saíram, então, mulheres, crianças e uns dois velhos, aglomerando-se à nossa volta e prontos a falar. A primeira notícia foi que a comitiva de minha mãe estivera ali no dia e noite anteriores, partindo somente aquela manhã por insistência da Princesa. Estava doente, contaram-nos, e ficara por meio dia e uma noite na casa do chefe do lugar, onde foi tratada. As mulheres que a acompanhavam haviam tentado persuadi-la a seguir para um estabelecimento monástico que havia nas montanhas próximas, e onde poderia descansar, mas ela recusara-se e parecera melhor pela manhã, de modo que o grupo partira. Fazia frio, disse a mulher do chefe, a senhora estava febril e tossia um pouco, mas acordara bem melhor na manhã seguinte e Maridunum não ficava a mais de um dia a cavalo. Assim, acharam melhor deixá-la fazer como queria... Olhei para o casebre esquálido do qual ela saíra ao nosso encontro, pensando que, realmente, o perigo de mais algumas horas de liteira seria menor que aquele abrigo miserável de Bremia. Portanto, agradeci à mulher pela gentileza e perguntei-lhe para onde fora o marido. Quanto a isso, disse-me ela, todos os homens tinham partido para juntar-se a Ambrosius... Ela compreendeu mal o meu olhar de surpresa.

— O senhor não sabia? Esteve um profeta em Dinas Brenin que disse que o Dragão Vermelho viria. A própria Princesa contou-me, e podia ver-se que os soldados estavam amedrontados. E agora ele desembarcou. Está aqui. — Como pode saber? — perguntei-lhe. — Não encontramos nenhum mensageiro. Ela me olhou como se eu fosse maluco ou estúpido. Será que eu não vira o dragão de fogo? A vila inteira sabia do portento, depois que o profeta falara. Os homens tinham-se armado e partido naquele mesmo dia. Se os soldados voltassem, as mulheres e as crianças fugiriam para as montanhas, mas todos sabiam que Ambrosius podia deslocar-se mais rápido que o vento e eles não tinham medo... Deixei-a prosseguir enquanto eu traduzia para Gorlois. Nossos olhares cruzaram-se com o mesmo pensamento. Agradecemos à mulher novamente, dei-lhe o que lhe era devido pelos cuidados com minha mãe, e parti no encalço dos homens de Bremia. Ao sul da vila a estrada se dividia, o caminho principal virava Para sudoeste, passando pela mina de ouro, e a seguir atravessava as montanhas e os vales profundos até o largo vale do Wye, de onde é mais fácil o percurso para a travessia do Sefern e o sudoeste. \ outra estrada, menor, segue direto para o sul a um dia de Maridunum. Eu decidira que de qualquer forma seguiria minha mãe ao sul e conversaria com ela antes de reunir-me a Ambrosius. Agora as notícias da sua doença tornavam isso imperativo. Gorlois continuaria direto para encontrar-se com Ambrosius e dar-lhe-ia ciência dos movimentos de Vortigern. Na encruzilhada onde nossos caminhos se separavam, encontramos os aldeões. Percebendo nossa aproximação, tinham-se escondido — o lugar era todo pedras e moitas — mas não suficientemente depressa; o vento de rajadas devia ter encoberto nossa vinda até que estivéssemos em cima deles. Os homens estavam fora de vista, ma uma das suas magras bestas de carga não, e as pedras ainda rolavam pela trilha. Era Bremia repetida. Paramos e gritei no silêncio cortado pelo vento. Dessa vez disse-lhes quem era, e no que pareceu apenas um instante a estrada coalhou-se de homens. Amontoaram-se em torno dos nossos cavalos, mostrando os dentes e brandindo um estranho sortimento de armas que iam de uma espada curva romana a uma lança de pedra presa num garfo de feno. Contaram a mesma história que as mulheres: tinham ouvido a profecia e haviam visto o portento; marchavam para o sul para juntar-se a Ambrosius e todos os homens do Oeste logo estariam com eles. O ânimo era elevado, mas suas condições, deploráveis; era uma sorte termos oportunidade de ajudá-los. — Fale com eles — disse-me Gorlois. — Explique que, se esperarem mais um dia aqui conosco, terão armas e cavalos. Escolheram o lugar certo para uma emboscada e quem saberia melhor que eles? Então disse-lhes que aquele era o Duque de Cornwall e um grande líder e que, se esperassem um dia conosco, providenciaríamos que recebessem armas e cavalos. — Os homens de Vortigern — continuei — regressarão por este caminho, e não devem saber que o Suserano está fugindo para leste. Virão por esta estrada, nós esperaremos por eles aqui e vocês serão sensatos se esperarem conosco. Esperamos. A escolta deve ter permanecido mais tempo do que o necessário em Maridunum, e depois daquela viagem fria e úmida quem poderia culpá-los? Mas à aproximação da madrugada do segundo dia, eles voltaram calmamente pensando talvez em passar a noite em Bremia. Apanhamo-los lindamente de surpresa e travamos uma pequena luta, sangrenta e desagradável. As escaramuças de beira de estrada são quase todas iguais. Esta só diferiu do usual por ser mais bem comandada e mais excentricamente equipada, mas tivemos a vantagem tanto dos efetivos quanto da

surpresa e executamos o que nos havíamos proposto fazer: roubamos Vortigern de vinte homens com perda de apenas três dos nossos e alguns arranhões. Saí mais galhardamente do que acreditaria possível, tendo matado u: homem que escolhera antes de ser engolfado pela luta, e um outro derrubou-me do cavalo e ter-me-ia matado se Cadal não tivesse aparado o golpe e liquidado o sujeito. Terminou rápido. Enterramos nossos mortos e deixamos o resto para os milhafres depois de os despojarmos das armas. Tivéramos o cuidado de não fazer mal aos cavalos, e quando na manhã seguinte Gorlois disse adeus e levou suas novas tropas para o sudoeste, cada homem possuía um cavalo e uma boa arma de algum tipo. Cadal e eu rumamos para o sul, para Maridunum,.onde chegamos ao anoitecer. A primeira pessoa que vi ao descermos a rua na direção do convento foi meu primo Dinias. Encontramo-lo de repente ao dobrar uma esquina e ele saltou lívido. Suponho que os boatos estivessem grassando como fogo pela cidade desde que a escolta trouxera minha mãe de volta sem mim. — Merlin. Pensei ... pensei ... — Bons olhos o vejam, primo, vinha à sua procura. Ele disse, rápido: — Olhe, juro que não fazia idéia de quem eram aqueles homens... — Sei disso. O que aconteceu não foi sua culpa. Não era por isso que eu estava à sua procura. — ... e estava bêbedo, você sabe disso. Mas, mesmo que tivesse adivinhado quem eram, como iria supor que o levariam por causa de uma coisa daquelas? Eu tinha ouvido rumores sobre o que procuravam, admito, mas juro que nunca me passou pela cabeça... — Eu disse que não foi culpa sua. E estou de volta aqui são e salvo, não estou? Tudo está bem quando acaba bem. Deixe isso Para lá, Dinias. Não era disso que queria falar-lhe. Mas ele insistiu: — Eu apanhei o dinheiro, não apanhei? Você viu. — E daí? Você não deu informações por dinheiro, você o apanhou depois. É diferente, ao que penso. Se Vortigern gosta de atirar dinheiro fora, então pelo amor de Deus, leve-o. Esqueça-se, digo-lhe. Tem notícias de minha mãe? — Acabei de vir de lá. Ela está doente, sabia? — Recebi a notícia a caminho do sul. O que tem ela? É grave? — Friagem, disseram-me, mas está sarando. Achei que ainda parecia bastante mal, mas estava fatigada da viagem e ansiosa por você. Para que Vortigern o queria, afinal? — Para matar-me — respondi com brevidade. Ele arregalou os olhos e começou a balbuciar. — Eu... em nome de Deus, Merlin, sei que nunca fomos isto é, houve tempos ... — Ele parou e ouvi-o engolir. — Não vendo meus parentes, você sabe. — Já disse que acredito. Esqueça-se. Não tinha nada a ver com você, alguma tolice dos adivinhos. Mas, como disse, aqui estou são e salvo. — Sua mãe não comentou nada. — Ela não sabia. Acha que ela se deixaria levar mansamente para casa se soubesse o que ele pretendia fazer? Os homens que a trouxeram sabiam, pode estar certo. Não deixaram escapar nada? — Parece que não — respondeu Dinias. — Mas... — Fico satisfeito com isso. Espero vê-la em breve e desta vez à luz do dia.

— Então já não corre perigo com Vortigern? — Correria, suponho, se a cidade ainda estivesse cheia dos homens dele, mas informaram-me no portão que se retiraram para ir juntar-se a ele. — É isso. Alguns foram para o norte e outros para leste, para Caer-Guent. Ouviu as notícias então? — Que notícias? Embora não houvesse ninguém mais na rua, ele olhou por cima do ombro daquela maneira antiga e furtiva. Escorreguei da sela e atirei as rédeas para Cadal. — Que notícias? — repeti. — Ambrosius — disse ele baixinho. — Desembarcou no sudoeste, dizem, e marcha para o norte. Um navio trouxe a novidade ontem e os homens de Vortigern começaram a retirar-se imediatamente. Mas... se você acabou de chegar do norte, certamente os encontrou? — Duas companhias, esta manhã. Mas vimo-los a tempo e saímos da estrada. Encontramos a escolta de minha mãe no dia anterior, na encruzilhada. — Encontraram? — Ele parecia surpreso. — Mas se sabiam que Vortigern o queria morto... — Sabiam que eu não tinha nada que vir para o sul e me teriam matado. Exatamente. Assim, ao invés, matamo-los nós. Oh, não olhe assim para mim — não foram artes de magia, apenas artes. a soldado. Encontramos alguns galeses que seguiam ao encontro de Ambrosius e emboscamos a tropa de Vortigern, liquidando-a toda. _ Os galeses já sabiam? A profecia, não foi? — Vi-lhe o branco dos olhos no escuro. — Ouvi falar nisso... a cidade estava fervilhando. As tropas nos contaram. Disseram que você mostrou-lhes uma espécie de lago sob o penhasco — foi naquele lugar que aramos anos atrás, e poderia jurar que não existia nenhum sinal de lago então — mas, que havia esse lago com dragões dentro, sob as fundações da torre. É verdade? — Que lhes mostrei um lago, sim. — Mas os dragões, o que eram? Respondi lentamente: — Dragões. Uma coisa que produzi do nada para que eles vissem, já que sem vê-los não iriam escutar-me, e muito menos acreditar. Fez-se um curto silêncio. Então ele disse com medo na voz: — E foi a magia que lhe mostrou que Ambrosius vinha? — Sim e não. — Sorri. — Eu sabia que ele vinha, mas não quando. Foi a magia que me disse que de fato já estava a caminho. Olhava-me fixamente outra vez. — Sabia que ele vinha? Então tinha notícias de Cornwall? Poderia ter-me dito. — Por quê? — Eu teria ido reunir-me a ele. Olhei-o por um momento, medindo-o. — Ainda pode reunir-se a ele. Você e os outros amigos que combateram com Vortimer. E quanto ao irmão de Vortimer, Pascentius? Sabe onde se encontra? Ainda continua exaltado contra Vortigern? — Sim, mas dizem que foi fazer paz com Hengist. Nunca se unirá a Ambrosius, quer a Bretanha para si.

— E você? — perguntei. — O que quer? Ele respondeu muito simplesmente, e por uma vez sem nenhuma fanfarronice ou bravata. — Quero um lugar que possa considerar meu. Este, se puder. É meu agora, afinal. Ele matou as crianças, você sabia? — Não, mas pouco me surpreende. É um hábito dele. Fiz uma pausa. _ Olhe, Dinias, há muito o que conversar e tenho muito que contar-lhe. Mas primeiro tenho um favor a pedir-lhe. — Qual é? — Hospitalidade. Não há lugar algum a que eu queira ir enquanto não apronte o meu, e gostaria de ficar em casa do meu avô novamente. Ele respondeu sem fingimento ou evasivas: — Já não é o que foi. Ri-me. Alguma coisa é? Enquanto houver um telhado contra essa chuva infernal e um fogo para secar nossas roupas e alguma coisa para comer, não importa o quê. O que diria se mandássemos Cadal arranjar provisões e comêssemos em casa? Contar-lhe-ei a coisa toda enquanto comemos uma torta regada a vinho. Mas previno-o de que, se ousar mostrar-me um par de dados, gritarei pelos homens de Vortigern eu mesmo. Ele sorriu, descontraindo-se subitamente. — Não tenha receio. Venha então. Há alguns quartos ainda habitáveis, e lhe arranjaremos uma cama. Fiquei com o quarto de Camlach. Era ventoso e cheio de poeira e Cadal recusou-se a deixar-me usar as cobertas até que as tivesse estendido diante do fogo fragoroso por uma hora inteira. Dinias não tinha criado, a não ser uma rapariga que cuidava dele, aparentemente pelo privilégio de compartilhar da sua cama. Cadal mandou-a carregar combustível e esquentar água enquanto ele levava um recado à minha mãe no convento e, a seguir, ia à taverna buscar vinho e provisões. Comemos diante da lareira com Cadal a nos servir. Conversamos até tarde, mas aqui é suficiente dizer que contei a Dinias minha história — ou melhor, as partes que ele poderia entender. Teria tido alguma satisfação pessoal em contar-lhe os fatos da minha paternidade, mas enquanto não estivesse seguro e soubesse que os arredores da cidade estavam livres dos homens de Vortigern, achei melhor nada dizer. Então, contei-lhe apenas como tinha chegado à Bretanha e me tornara um homem de Ambrosius. Dinias já ouvira o suficiente sobre a minha profecia na caverna do Forte do Rei para acreditar implicitamente na vitória próxima de Ambrosius, de modo que nossa conversa terminou com a sua promessa de viajar de manhã para oeste com as notícias e aliciar o apoio que pudesse na periferia de Gales. Eu sabia que ele teria receio de quebrar sua promessa; o que quer que os soldados tivessem dito sobre os acontecimentos do Forte do Rei, estes eram suficientes para inspirar no meu primo Dinias, simples como era, o mais profundo respeito pelos meus poderes. Mas, mesmo sem isso, eu sabia que nesse ponto podia confiar nele. Falamos até quase o alvorecer, então dei-lhe dinheiro e desejei-lhe boa noite. (Ele já partira quando acordei na manhã seguinte. Manteve palavra e reuniu-se a Ambrosius mais tarde, em York, com algumas centenas de homens. Foi recebido com honras e portou-se bem, mas logo depois, numa pequena batalha, recebeu ferimentos em conseqüência dos quais veio a falecer mais

tarde). Cadal fechou a porta atrás de si. — Ao menos tem um bom trinco e uma tranca robusta. — Está com medo de Dinias? — perguntei. — Estou com medo de todo o mundo nesta maldita cidade. Não ficarei satisfeito enquanto não terminarmos e voltarmos para Ambrosius. — Duvido de que precise preocupar-se agora. Os homens de Vortigern já partiram. Você ouviu o que Dinias disse. — É, e ouvi o que você disse também. — Curvara-se para apanhar os cobertores junto ao fogo e parou com os braços carregados olhando para mim. — A que se referia quando falou que está preparando seu lugar aqui? Não está pensando em montar jamais uma casa aqui? — Não, uma casa não. — Aquela gruta? Sorri da expressão. — Quando Ambrosius terminar comigo e o país estiver tranqüilo, é para onde pretendo ir. Eu não lhe disse que, se continuasse comigo, iria viver longe da sua terra? — Falávamos de morrer, pelo que me lembro. Você quer dizer, viver aqui? — Não sei — disse eu. — Talvez não. Mas creio que precisarei de um lugar onde possa estar só, longe, apartado das coisas que acontecem. Pensar e planejar é um lado da vida; fazer é outro. Um homem não pode estar executando o tempo todo. — Diga isso a Uther. — Não sou Uther. — Bem, os dois tipos são necessários, como dizem. — Largou os cobertores na cama. — De que está rindo? — Estava? Não importa. Vamos para a cama, precisamos estar cedo no convento. Teve que subornar a velha outra vez? — Velha nada. — Aprumou-se. — Era uma moça desta vez. E formosa também, pelo que consegui ver apesar daquele vestido de saco e o capuz na cabeça. Quem quer que ponha uma moça daquelas num convento merece ... — Ele começou a explicar o que merecia, mas encurtei a conversa. — Descobriu como estava minha mãe? — Disseram que estava melhor. A febre desapareceu, mas não sossegará enquanto não o vir. Vai contar-lhe tudo agora? — Vou. — E então? — Reunimo-nos a Ambrosius. — Ah! — disse ele e, quando acabou de arrastar o colchão para deitar-se atravessado à porta, apagou a lâmpada e dormiu sem mais uma palavra. Minha cama era bastante confortável e o quarto, negligenciado ou não, era um luxo depois de uma viagem. Mas dormi mal. Em imaginação eu estava na estrada com Ambrosius, rumando para Doward.

Do que ouvira de Doward, conquistá-la não seria tarefa fácil. Comecei a pensar se afinal teria prestado um desserviço ao meu pai ao fazer sair o Suserano da segurança de Snowdon. Deveria tê-lo deixado lá, pensei, com a sua torre podre e Ambrosius o faria recuar até o mar. Foi com esforço e quase surpresa que me lembrei da profecia. O que eu fizera em Dinias Brenin não fora por vontade própria. Não tinha sido eu quem decidira mandar Vortigern correndo para fora de Gales. Das trevas, das florestas e das estrelas rodopiantes, ordenaram-me. O Dragão Vermelho triunfaria e o Branco cairia. A voz que assim o dissera, e assim o dizia agora na escuridão abafada do quarto de Camlach, não era a minha própria; era a do deus. Uma pessoa não ficava procurando razões; obedecia, e depois dormia.

3 Foi a moça que Cadal mencionara que abriu o portão do convento para nós. Devia estar à nossa espera, porque assim que Cadal ergueu a mão para puxar o sino o portão abriu-se e ela fez sinal para eu entrar. Tive a impressão fugaz de enormes olhos sob o capuz marrom e um corpo jovem e flexível amortalhado no hábito grosseiro, quando trancou o pesado portão e, puxando o capuz para mais junto do rosto e do cabelo, nos conduziu rapidamente pelo pátio. Os pés nus em sandálias de lona pareciam frios e salpicados da lama do pátio cheio de poças, mas eram finos e bem formados e as mãos bonitas. Ela não falou, mas guiou-nos pelo pátio, por uma passagem estreita entre dois prédios até um quadrado maior, mais adiante. Contra as paredes havia árvores frutíferas e algumas flores, mas estas eram na sua maioria ervas e flores silvestres e as portas das celas, que se encontravam abertas para o pátio, não tinham pintura e mostravam quartos pequenos e vazios, onde a simplicidade se tornara feiúra e muito freqüentemente miséria. Isto não ocorria na cela de minha mãe. Ela estava instalada com o conforto necessário, ainda que não real. Tinham-lhe permitido trazer a própria mobília: o quarto era caiado e imaculadamente limpo e, com a mudança do tempo em abril, o sol surgira e brilhava diretamente pela janela estreita sobre sua cama. Lembrava-me da mobília: era a cama que usava em casa, e a cortina na janela, de pano vermelho com desenhos verdes, era a que estivera a tecer no dia em que meu tio Camlach voltara para casa. Lembrava-me também da pele de lobo no chão; meu avô matara o animal com as próprias mãos e o punho da adaga quebrara; os olhos de contas e aquele esgar haviam-me aterrorizado quando era pequeno. A cruz que pendia da parede nua ao pé da cama era de prata fosca com um lindo desenho de linhas entrelaçadas, mas fluidas, e engastada de ametistas que refletiam a luz. A moça indicou-me a porta em silêncio e retirou-se. Cadal sentou-se no banco do lado de fora para esperar. Minha mãe encontrava-se recostada nos travesseiros sob o raio de sol. Parecia pálida e cansada e sua voz não era mais que um murmúrio, mas estava, disse-me ela, melhor. Quando lhe perguntei sobre a doença e levei a mão à sua têmpora, ela afastou-a sorrindo e lembrou-me que estava bastante bem cuidada. Não insisti; metade da cura é a confiança do paciente e nenhuma mulher jamais pensou que o próprio filho é mais do que uma criança. Além disso, eu. podia ver que a febre desaparecera e, agora que já não estava ansiosa por minha causa, poderia dormir. Então, simplesmente, puxei para perto a única cadeira do quarto sentei-me e comecei a contar-lhe tudo o que ela queria saber sem esperar pelas perguntas sobre a minha saída de Maridunum e a fuga como uma flecha do arco do deus, diretamente da Bretanha até os pés de Ambrosius e tudo o que acontecera desde então. Ela deitara-se nos travesseiros e observava-me com espanto e uma emoção que crescia lentamente, que eu identifiquei como a emoção que um pássaro de gaiola sentiria se o tivessem posto a chocar um ovo de falcão. Quando terminei, estava cansada e havia olheiras cinzentas sob seus olhos, tão marcadas, que me ergui para sair. Mas ela parecia satisfeita e disse como se fosse a conclusão da história: — Ele o reconheceu. — Sim. Chamam-me Merlinus Ambrosius.

Ela ficou silenciosa um momento, sorrindo para si mesma. Atravessei o quarto até a janela e recostei os cotovelos no peitoril, olhando para fora. O sol estava quente. Cadal cabeceava sentado no banco, meio adormecido. Do outro lado do pátio, um movimento atraiu-me a atenção; num portal sombreado a moça olhava para a porta do quarto de minha mãe como se estivesse à espera da minha saída. Afastara o capuz e mesmo na penumbra eu distinguia o ouro dos seus cabelos e um rosto jovem, lindo como uma flor. Percebeu então que eu a observava. Talvez por dois minutos nossos olhos se encontraram. Compreendi por que os antigos armavam com flechas seu deus mais cruel; senti um choque por todo o corpo. E ela partiu, desaparecendo nas sombras, o capuz vestido outra vez, enquanto atrás de mim minha mãe dizia: — E agora? O que acontecerá? Dei as costas ao sol. — Vou reunir-me a ele. Mas não enquanto a senhora não melhorar. Quando partir, quero levar notícias suas. Ela pareceu ansiosa. — Não deve permanecer aqui. Maridunum não é seguro para você. — Acho que é. Desde que chegaram as novas do desembarque, o lugar esvaziou-se dos homens de Vortigern. Tivemos que tomar a trilha das montanhas a caminho do sul; a estrada parecia viva,!tos eram os homens que iam juntar-se a ele. — É verdade, mas... — E não andarei por aí, prometo-lhe. Tive sorte a noite passada, encontrei Dinias assim que pus os pés na cidade. Ele me cedeu um quarto em casa. — Dinias? Ri-me do seu espanto. — Dinias acha que me deve alguma coisa, não importa o quê, mas tivemos um bom entendimento ontem à noite. Contei-lhe qual a missão em que o enviara e ela assentiu. — Ele — e eu sabia que não se referia a Dinias — vai precisar de todo homem que possa segurar uma espada. — Franziu as sobrancelhas. — Dizem que Hengist tem trezentos mil homens. Será que ele — e mais uma vez não se referia a Hengist — será capaz de resistir a Vortigern e depois a Hengist e os saxões? Suponho que eu ainda estivesse pensando na vigília da noite anterior. Disse, sem parar para considerar o efeito: — Se eu o disse, deve ser verdadeiro. Um movimento na cama atraiu o meu olhar. Ela persignava-se, os olhos ao mesmo tempo assustados e severos, e acima de tudo amedrontados. — Merlin... — mas ao dizer isso a tosse sacudiu-a, de modo que quando conseguiu falar outra vez era apenas um sussurro rouco: - Cuidado com a arrogância. Mesmo que Deus lhe tenha dado o poder... Pousei a mão no seu pulso, interrompendo-a. — Compreendeu-me mal, senhora. Expressei-me mal. Só quis dizer que o deus o disse através de

mim e, porque ele o disse, deve ser verdade. Ambrosius deve vencer, está nos astros. Ela concordou e vi o alívio passar pelo seu rosto descontraindo-lhe o corpo e o espírito qual uma criança exausta. Disse eu, gentilmente: — Não tema por mim, mãe. Qualquer que seja o uso que Deus aça de mim, estou satisfeito em ser sua voz e seu instrumento. Vou aonde me ordena. E, quando ele tiver terminado, me levará de volta. — Há apenas um Deus — murmurou ela. Sorri para ela. — É o que estou começando a pensar. Agora vá dormir. Voltarei pela manhã. Fui ver minha mãe novamente na manhã seguinte. Desta vez fui só. Mandara Cadal ao mercado comprar provisões, e a rapariga de Dinias desaparecera à sua partida, deixando que nos arranjássemos no palácio deserto. Fui recompensado, pois a moça estava de serviço no portão e mais uma vez conduziu-me ao quarto de minha mãe. Mas, quando lhe disse alguma coisa, ela apenas puxou o capuz mais para junto sem falar, e assim não consegui ver mais que as mãos e os pés delicados. As pedras estavam secas hoje, e as poças haviam desaparecido. Ela lavara os pés e no aperto das sandálias grosseiras eles pareciam frágeis como flores de veios azuis na cesta de uma camponesa. Ou pelo menos foi o que eu disse a mim mesmo, a mente trabalhando como a de um cantor quando não tinha nem mesmo o direito de estar trabalhando. A flecha ainda zumbia onde me atingira e todo o meu corpo parecia vibrar e retesar-se à vista dela. Indicou-me a porta, como se eu pudesse tê-la esquecido e retirou-se para esperar. Minha mãe parecia um pouco melhor e descansara bem, disse-me. Conversamos por algum tempo; ela fez perguntas sobre detalhes da minha história e completei-os para ela. Quando me ergui para sair, perguntei, tão casualmente quanto pude: — A moça que abriu a porta é certamente jovem para estar aqui. Quem é? — A mãe trabalhava no palácio. Keridwen. Lembra-se dela? Sacudi a cabeça. — Deveria? — Não. Mas quando lhe perguntei por que sorria, ela não quis dizer e, à vista do seu divertimento, não ousei perguntar mais nada. No terceiro dia era a velha porteira surda; e passei toda a entrevista com minha mãe a imaginar se ela teria percebido (como fazem as mulheres), através do meu ar indiferente, o que havia por baixo da superfície e passado ordem para que a moça fosse mantida fora do meu caminho. Mas no quarto dia ela estava lá e desta vez eu soube, antes de dar três passos para o interior do pátio, que estivera ouvindo as histórias de Dinias Brenin. Estava tão ansiosa para dar uma olhada no mago que deixou cair um pouco o capuz. Vi-lhe os lhos enormes, azuis, cheios de uma espécie de curiosidade perplexa de admiração. Quando sorri e lhe disse alguma coisa à guisa de cumprimento, ela meteu-se de volta no capuz, mas desta vez respondeu-me. Sua voz era leve e fina, uma voz de criança, e chamou-me de my lord como se realmente assim me considerasse. — Qual é o seu nome? — perguntei-lhe. — Keri, my lord.

Retardei-me para detê-la. — Como está minha mãe hoje, Keri? Mas ela não quis responder, apenas me levou diretamente para o pátio interno e me deixou lá. Aquela noite fiquei acordado novamente, mas nenhum deus me falou, nem mesmo para dizer-me que ela não era para mim. Os deuses não nos visitam para lembrar-nos o que já sabemos. No último dia de abril, minha mãe estava tão melhor que, quando fui visitá-la, encontrei-a numa cadeira junto à janela usando um robe de lã sobre a camisola, sentada em pleno sol. O marmeleiro preso à parede de fora estava pejado de cálices róseos onde as abelhas zumbiam, e no peitoril um casal de pombos arrulhava e andava empertigado de um lado para o outro. — Tem notícias? — perguntou ela, assim que me viu. — Um mensageiro chegou hoje. Vortigern morreu e a Rainha com ele. Dizem que Hengist se dirige para o sul com uma enorme força, incluindo o irmão de Vortimer, Pascentius, e o que resta do seu exército. Ambrosius já está a caminho para encontrá-los. Ela estava sentada muito aprumada, olhando não para mim, mas para a parede além. Uma mulher fazia-lhe companhia hoje, num banquinho do outro lado da cama. Era uma das freiras que a seguira a Dinias Brenin. Via-a fazer o sinal da cruz no peito, mas Niniane continuou imóvel, os olhos perdidos na distância, pensando. — Conte-me então. Contei-lhe tudo o que ouvira do caso de Doward. A mulher persignou-se outra vez, mas minha mãe nem se moveu. Quando terminei, seus olhos voltaram-se para mim. — E você vai partir agora? — Sim. Quer mandar algum recado para ele? — Quando eu o vir outra vez — disse ela — ainda estará em tempo. Quando me despedi, ela continuava sentada, fitando alguma coisa distante no lugar e no tempo, para além das ametistas que piscavam na parede. Keri não estava esperando e retardei-me um pouco antes de cruzar o pátio externo, lentamente, na direção do portão. Vi-a então, oculta na sombra escura do arco do portão e apressei o passo. Revolvia na mente um milhão de coisas para dizer, todas igualmente inúteis para prolongar o que não poderia ser prolongado, mas não houve necessidade. Ela estendeu uma daquelas mãos lindas e tocou-me a manga suplicante. — My lord. Seu capuz estava meio caído para trás e vi lágrimas nos seus olhos. Então eu lhe disse bruscamente: — O que tem? — Creio que por um momento de loucura pensei que chorasse porque eu partia. — Keri, o que é? — Tenho dor de dentes. Fiquei boquiaberto. Devo ter parecido tão tolo como se tivesse acabado de ser esbofeteado no

rosto. — Aqui — disse ela, levando a mão à face. O capuz caiu todo para trás. — Vem doendo há dias. Por favor, my lord... Disse-lhe, rouco: — Não sou tiradentes. — Mas se ao menos o tocasse... — Nem mago — comecei a dizer, mas ela aproximou-se de mim e a voz estrangulou-se-me na garganta. Cheirava a madressilva. O cabelo era louro como cevada e os olhos cinzentos como campainhas azuis antes de desabrocharem. Antes que desse por mim, ela tomara minha mão entre as dela e a levava ao rosto. Enrijeci parcialmente para retirá-la, então me controlei e abri a mão suavemente, passando-a pelo seu rosto. Os grandes olhos azuis pareciam inocentes como o céu. Ao curvar-se para mim, a gola do vestido pendeu frouxa para a frente e vi-lhe os seios. A pele era macia como água e senti seu hálito doce junto ao meu rosto. Retirei a mão bastante gentilmente e afastei-me. — Não posso fazer nada. Suponho que minha voz tinha saído áspera. Ela baixou as pálpebras e cruzou as mãos humildemente. Seus cílios eram curtos, espessos e dourados como o seu cabelo. Tinha uma covinha pequenina nó canto da boca. Eu lhe disse: — Se não melhorar até amanhã, mande arrancar. — Já está melhor, my lord. Parou de doer assim que o senhor me tocou. Sua voz estava cheia de admiração e a mão escorregou para a face onde a minha estivera. O movimento era como uma carícia e senti o sangue saltar em batidas que pareciam pontadas. Com um movimento súbito ela procurou minha mão e timidamente curvou-se para a frente, comprimindo-a com os lábios. Então a porta ao meu lado girou abrindo-se, e eu me encontrei do lado de fora, na rua deserta.

4 Pelo que o mensageiro me contara, parecia que Ambrosius acertara na decisão de pôr termo a Vortigern antes de voltar-se contra os saxões. A tomada de Doward e a selvageria com que a efetuara produzira efeito. Aqueles entre os invasores saxões que se tinham aventurado mais para o interior começaram a retirar-se para o norte, em direção às terras sujeitas a controvérsia, que sempre haviam fornecido uma cabeça-de-ponte para invasões. Pararam ao norte do Humber para fortificarem-se onde podiam, e esperar por ele. A princípio, Hengist acreditou que Ambrosius tinha sob seu comando pouco mais que o exército invasor bretão — e ele não conhecia aquela arma mortal de guerra. Pensava (conforme relatos) que muito poucos dos bretões ilhéus se tinham juntado a Ambrosius; de qualquer modo, os saxões haviam derrotado os britânicos, com suas pequenas forças tribais, tão freqüentemente, que ele os desprezava como presas fáceis. Mas, agora, quando chegaram ao líder saxão notícias dos mil que haviam debandado para o Dragão Vermelho, e do sucesso de Doward, ele decidiu não mais permanecer entrincheirado ao norte do Humber, e sim marchar rapidamente de volta ao sul para defrontar-se com os britânicos em lugar de sua própria escolha, onde pudesse surpreender Ambrosius e destruir-lhe o exército. Mais uma vez Ambrosius se deslocou com a "Velocidade de César". Isto era necessário porque os saxões, ao se retirarem, deixavam os lugares devastados. O fim chegou na segunda semana de maio — uma semana quente de sol que parecia ter saído de junho, interrompida pelos aguaceiros que haviam sobrado de abril, uma semana tomada de empréstimo e, para os saxões, uma dívida cobrada pelo destino. Hengist, com os preparativos ainda a meio, foi surpreendido por Ambrosius em Maesbeli, perto do Forte Conan ou Kaerconan, as vezes chamado de Conisburgh. É um local montanhoso, com um forte no alto do penhasco e uma ravina profunda embaixo. Ali os saxões tentavam preparar uma emboscada para as forças de Ambrosius, mas os batedores deste tiveram notícia disso por intermédio de um bretão que encontraram escondido numa gruta do morro, para onde fugira com a intenção de ocultar a mulher e dois filhos pequenos dos machados dos nórdicos. Assim prevenido, Ambrosius aumentou a velocidade de sua marcha e alcançou Hengist antes que a emboscada estivesse completamente pronta, forçando-o a uma luta aberta. A tentativa de Hengist de preparar uma emboscada voltara a sorte contra si mesmo. Ambrosius tinha a vantagem do terreno onde parou e distribuiu seu exército. Sua principal força, bretões, gauleses e britânicos ilhéus do sul e do sudoeste, aguardava numa colina suave diante de um terreno nivelado de onde poderia atacar sem obstáculos. Misturados entre essas tropas, encontravam-se outros britânicos nativos, que se haviam reunido a ele com seus líderes. Por trás desse corpo principal, o terreno ondulava numa subida suave, quebrada apenas por moitas de espinheiros e tojos amarelos, até uma crista comprida que se curvava para oeste numa série de colinas rochosas, e no leste era densamente arborizado com carvalhos. Os homens de Gales — montanheses — foram especialmente distribuídos pelos lados; os galeses do norte na floresta de carvalhos e separados dos primeiros pelo corpo completo do exército de Ambrosius, e os galeses do sul nas montanhas para oeste. Essas forças, dotadas de armamento ligeiro, altamente móveis e com contas a acertar, deveriam manter-se de sobreaviso como reforços, para golpes rápidos que poderiam ser dirigidos durante a batalha aos pontos mais fracos da defesa inimiga. Poder-se-ia contar com eles, também, para apanhar e liquidar qualquer dos saxões de Hengist que rompesse as linhas e fugisse do campo.

Os saxões, apanhados na própria armadilha, com essa imensa força à frente, e às costas o rochedo de Kaerconan e o estreito desfiladeiro onde haviam planejado emboscar-se, lutaram como demônios. Mas estavam em desvantagem: haviam começado com medo — receosos da reputação de Ambrosius, da sua vitória recente e selvagem em Doward e, mais que isso, da minha profecia a Vortigern que se espalhara de boca em boca mais rapidamente que o incêndio da torre de Doward, segundo me contaram. E, naturalmente, os prognósticos eram válidos em reverso para Ambrosius. A batalha foi travada pouco antes do meio-dia e ao pôr do sol já terminara. Vi tudo. Foi a minha primeira grande batalha, e não me envergonho de dizer que praticamente a última. As minhas batalhas não eram travadas com espada e lança. Se vamos a isso, eu já ajudara i vitória de Kaerconan antes mesmo de chegar; e quando cheguei foi para encontrar-me desempenhando exatamente aquele papel que Uther uma vez determinara para mim de brincadeira. Eu cavalgara com Cadal até Caerleon, onde encontramos u pequeno corpo das tropas de Ambrosius de posse da fortaleza outro a caminho de tomar e reparar o forte de Maridunum. j; também, disse-me o oficial confidencialmente, para assegurar que a comunidade cristã — toda a comunidade, acrescentou solene com a sombra de uma piscadela para mim, tal era a piedade do comandante — estivesse a salvo. Acrescentou ainda que lhe fora ordenado que enviasse alguns dos seus homens de volta comigo para escoltar-me até Ambrosius. Meu pai lembrara-se mesmo de enviar-me algumas roupas. Então mandei Cadal regressar, para seu desgosto, ajeitar como pudesse gruta de Galapas e esperar lá por mim, e prossegui para noroeste com a escolta. Encontramos o exército fora de Kaerconan. As tropas já estavam desdobradas para a batalha e não havia possibilidade de ver o comandante. Então retiramo-nos, de acordo com as instruções, para a colina oeste, onde os homens das tribos de Gales do Sul entreolhavam-se desconfiados sobre as espadas prontas para os saxões abaixo. Os soldados da minha escolta olhavam-me mais ou menos da mesma maneira; não tinham perturbado o meu silêncio durante o trajeto è era patente que sentiam uma espécie de admiração não apenas pelo filho reconhecido de Ambrosius, mas pelo profeta de Vortigern — um título que já pegara e que levaria alguns anos para perder. Quando me apresentei ao oficial encarregado e lhe pedi que determinasse um lugar na sua tropa, ele, horrorizado, suplicou-me muito seriamente que me mantivesse fora da luta e procurasse um local de onde os homens pudessem ver-me e saber, conforme sua expressão, "que o profeta estava ali com eles". No fim, fiz o que pedia e retirei-me para o alto de um penhasco rochoso de onde, envolvendo-me na capa, me preparei para observar o campo de batalha que se abria abaixo como um mapa móvel. O próprio Ambrosius estava no centro. Eu distinguia seu cavalo branco com o estandarte do Dragão Vermelho a refulgir. Para a direita, a capa azul de Uther faiscava ao galope do cavalo ao longo das linhas. Não reconheci de pronto o líder da ala esquerda: um cavalo cinzento, uma figura grande e corpulenta, um estandarte com alguma coisa em branco que não consegui a princípio discernir. Depois vi o que era: um javali. O javali de Cornwall. O comandante da ala esquerda de Ambrosius não era outro senão o barba-grisalha Gorlois, senhor de Tintagel. Nada podia ser entendido da ordem em que se haviam agrupado os saxões. Toda a minha vida ouvira falar da ferocidade daqueles gigantes louros, e todas as crianças britânicas eram nutridas desde pequeninas com as histórias do seu terror. Enlouqueciam na guerra, diziam, e podiam lutar sangrando de doze ferimentos sem aparente perda de força na sua selvageria. E o que possuíam em força e crueldade faltava-lhes em disciplina. Parecia realmente ser assim. Não havia ordem na grande onda de metal reluzente e crinas de cavalo perpetuamente em movimento, como uma inundação à espera de que o

dique se rompesse. Mesmo àquela distância consegui encontrar Hengist e seu irmão, gigantes com longos bigodes caindo-lhes pelo peito e o cabelo comprido esvoaçando ao esporearem seus cavalos fortes e peludos para cima e para baixo das fileiras. Gritavam, e o eco dos seus gritos podia ser ouvido claramente: orações aos deuses, juras, exortações, ordens que subiam num crescendo feroz até que ao último grito selvagem de "Matar, Matar, Matar!" as machadinhas ergueram-se, brilhando ao sol de maio, e a matilha avançou para as linhas organizadas do exército de Ambrosius. As duas hostes encontraram-se com um impacto que fez as gralhas voarem do Kaerconan aos guinchos, e parecia fender o próprio ar. Era impossível, mesmo da minha posição favorável, ver para que lado pendia a luta, ou melhor, os diversos movimentos da luta. Por um momento parecia que os saxões com suas machadinhas e elmos alados abriam caminho nas hostes britânicas; no momento seguinte via-se um grupo de saxões cercado por um mar de britânicos e, aparentemente engolfado, desaparecer. O bloco central de Ambrosius aparou o primeiro impacto da carga, então a cavalaria de Uther surgiu do leste com um rápido movimento envolvente. Os homens de Cornwall sob Gorlois recuaram a princípio, mas assim que a linha de frente dos saxões começou a fraquejar, entraram com um golpe de martelo da esquerda, esmagando-a. Depois disso, o campo tornou-se um caos. Por toda a parte, homens lutavam em pequenos grupos ou mesmo isolados, corpo a corpo. O barulho, o choque das armas, os gritos, e mesmo o cheiro de suor e sangue misturados, pareciam alcançar-me na posição elevada em que me encontrava sentado, observando, envolto na capa. Imediatamente abaixo de mim, tomei consciência da agitação e do murmúrio dos galeses e da exclamação súbita quando a tropa de saxões rompeu as fileiras e galopou em nossa direção. Num segundo, o topo da colina ficou deserto, à exceção de mim, só que o clamor parecia ter chegado mais perto em torno do sopé da colina como uma maré que subisse veloz. Um tordo pousou num espinheiro ao meu lado e começou a cantar: o som saía alto, doce e indiferente ao estrondo da batalha. Até hoje, sempre que penso na batalha de Kaerconan, vem-me à lembrança o canto do tordo misturado ao crocitar dos corvos que já circulavam no alto; dizem que eles ouvem o choque das espadas a dez milhas de distância. Tudo terminou ao pôr do sol. Eldol, Duque de Gloucester arrancou Hengist do cavalo sob as próprias muralhas de Kaerconan para as quais se voltara na fuga, e os restantes saxões debandaram e correram; alguns escaparam, mas muitos foram mortos no estreito desfiladeiro ao pé do Kaerconan. À chegada do crepúsculo, os archotes foram acesos à porta da fortaleza, as portas escancaradas e o cavalo branco de Ambrosius atravessou a ponte, entrando na cidadela, deixando o campo para os corvos, os sacerdotes e as equipes de enterro. Não o procurei imediatamente. Deixei-o enterrar os mortos e limpar a fortaleza. Havia trabalho para mim entre os feridos e, além disso, já não havia pressa em dar-lhe o recado de minha mãe. Sentado ali ao sol de maio, entre o canto do tordo e o clamor da batalha, eu sabia que ela adoecera outra vez, e já estava morta.

5 Desci a colina por entre as moitas de tojos e espinheiros. As tropas galesas. haviam desaparecido completamente há muito, e exclamações isoladas e gritos de batalha indicavam onde pequenos grupos ainda perseguiam os fugitivos pela floresta e pela colina. Abaixo, na planície, a luta terminara. Os feridos estavam sendo levados para Kaerconan. Archotes tremeluziam por toda parte até que a planície se tornou toda luzes e fumaça. Homens falavam alto uns com os outros, e os gritos e gemidos dos feridos erguiam-se claros, entre o relincho ocasional de um cavalo, as ordens imperiosas dos oficiais e o ruído dos passos dos padioleiros. Aqui e ali, nos trechos escuros mais distantes dos archotes, homens corriam isolados ou aos pares entre os corpos amontoados. Abaixavam-se, endireitavam-se e corriam novamente. Às vezes, onde paravam, ouvia-se um grito, um gemido súbito; outras, o brilho momentâneo do metal e um golpe rápido para baixo. Saqueadores revistavam os mortos e moribundos, mantendo-se alguns passos adiante dos grupos oficiais de socorro. Os corvos desciam. Vi a inclinação e o planeio das suas asas pretas acima dos archotes, e um par encarrapitara-se à espera numa rocha não longe de mim. Com o cair da noite os ratos também sairiam das raízes úmidas das paredes do castelo para atacar os mortos. A tarefa de socorrer os feridos estava sendo executada tão rápida e eficientemente como tudo o que fazia o exército do Conde. Uma vez transportados para o interior, os portões seriam fechados. Eu o procuraria, decidi, depois que as primeiras tarefas estivessem terminadas. Já teria sido informado de que eu estava ali a salvo; imaginaria que eu teria ido trabalhar com os médicos. Haveria tempo, mais tarde, para comer, e depois tempo bastante para conversarmos. Ao atravessar o campo, as turmas de padioleiros ainda tentavam separar os amigos dos inimigos. Os saxões mortos tinham sido atirados para um monte ao centro; imaginei que seriam queimados conforme o costume. Junto à pilha crescente de corpos, uma patrulha montava guarda a um monte de armas e ornamentos reluzentes retirados dos mortos. Os britânicos eram colocados próximo à muralha, em fileiras, para serem identificados. Pequenos grupos de homens, cada um com um oficial, curvavamse sobre cada corpo Ao abrir caminho pela lama revolvida, oleosa e fedorenta de sangue e lodo, passei entre os cadáveres de olhos abertos, pelos corpos de meia dúzia de homens maltrapilhos — camponeses ou fora-da-lei pelo aspecto. Deveriam ser saqueadores, mortos pelos soldados. Um deles ainda se contorcia como uma mariposa pregada, derrubado às pressas por uma lança saxônica partida, abandonada no seu corpo. Olhava-me — já não falava — e vi que ainda nutria esperanças. Se tivesse sido vazado por uma lança inteira, eu a teria retirado do seu corpo e deixaria que ele se esvaísse, mas, como estava, havia um meio mais rápido. Desembainhei minha adaga, afastei a capa para o lado e, cuidadosamente, para ficar fora do caminho do jato de sangue, meti-lhe a adaga do lado do pescoço. Limpei-a nos seus trapos e endireitei-me para encontrar um par de olhos frios a me fitarem, acima de uma espada curta apontada para mim, a três passos de distância. Felizmente era um homem que eu conhecia. Percebi quando, reconhecendo-me, riu e baixou a espada. — Tem sorte. Quase o matei pelas costas. — Não pensei nisso. — Devolvi a adaga à bainha. — Teria sido uma pena ser morto por roubar isso. O que achou que ele teria que valesse a pena tirar?

— Ficaria surpreso com o que nós os apanhamos a tirar. Tudo desde um emplastro de milho até uma tira de sandália partida. — Inclinou a cabeça na direção das altas muralhas da fortaleza. — Ele esteve perguntando onde andava. — Estou a caminho. — Dizem que previu isso, Merlin? E Doward também? — Falei que o Dragão Vermelho venceria o Branco. Mas acho que isto ainda não é o fim. O que aconteceu a Hengist? — Acolá. — Acenou outra vez a cabeça na direção da cidadela. — Correu para o forte quando as linhas saxônicas foram rompidas e foi capturado junto ao portão. — Vi isso. Está lá dentro então? Vivo? — Está. — E Octa, seu filho? — Fugiu. Ele e o primo, Eosa, não é? Galoparam para o norte. — Então não é o fim. Ele mandou alguém atrás deles? — Ainda não. Diz que há bastante tempo. — Olhou para mim. — Há? — Como iria saber? — Não poderia dizer. — Quanto tempo ele pretende ficar aqui? Alguns dias? — Três, diz ele. Tempo para enterrar os mortos. — O que fará com Hengist? — O que acha? — Fez um movimento cortante para baixo com o lado da mão. — E com bastante atraso, se me perguntar. Estão discutindo lá dentro, mas mal se poderia chamar aquilo de julgamento. O Conde ainda não disse nada, mas Uther está bradando que o matem, e os sacerdotes querem um pouco de sangue frio para completar o dia. Bem, tenho que voltar ao trabalho e ver se apanho mais civis saqueando. — Acrescentou ao virar as costas: — Vimos o senhor no alto da colina durante a luta. As pessoas diziam que era um bom augúrio. Ele foi-se. Um corvo mergulhou por trás dele, crocitando, e pousou no peito do homem que eu matara. Chamei um archoteiro para iluminar o resto do caminho e rumei para o portão principal da fortaleza. Ainda estava a alguma distância da ponte quando um clarão de archotes ondulantes surgiu e no meio deles, amarrado e preso, o grande gigante louro que eu sabia ser o próprio Hengist. As tropas de Ambrosius formaram um quadrado e para o interior desse espaço arrastaram o líder saxão e devem tê-lo forçado a ajoelhar-se, pois a cabeça loura desapareceu por trás das fileiras cerradas de bretões. Vi Ambrosius então, atravessando a ponte, seguido de perto, pela esquerda por Uther, e pelo outro lado por um homem que eu não conhecia, em vestes de bispo cristão, ainda salpicadas de lama e sangue. Outros se aglomeravam atrás deles. O bispo falava exaltado ao ouvido de Ambrosius. O rosto de Ambrosius era uma máscara, a máscara fria e inexpressiva que eu conhecia tão bem. Ouvi-o dizer alguma coisa que parecia "Vós vereis, eles ficarão satisfeitos" — e a seguir uma outra coisa que fez com que o bispo finalmente se calasse.

Ambrosius dirigiu-se ao seu lugar. Vi-o acenar para um oficial. Ouviu-se uma ordem seguida de um apito e a pancada surda de um golpe. Um som, que mal poderia ser chamado de murmúrio, expressando a satisfação dos homens que observavam. A voz do bispo rouca de triunfo: — Que assim pereçam todos os inimigos pagãos do único Deus verdadeiro! Que o seu corpo seja lançado agora aos lobos e aos milhafres! — E então a voz de Ambrosius fria e calma: — Ele irá ter com os seus próprios deuses, rodeado do seu exército, na tradição do seu povo. — E para o oficial: — Mande-me avisar quando tudo estiver pronto e virei. O bispo começou a falar outra vez, mas Ambrosius voltou-lhe as costas sem dar atenção e, com Uther e os outros capitães, atravessou a ponte de volta à Fortaleza. Segui-o. Lanças faiscavam ao serem abaixadas para barrar-me o caminho — o lugar estava guarnecido pelos bretões de Ambrosius. Então fui reconhecido e as lanças foram retiradas. No interior da fortaleza havia um grande pátio quadrado, agora tomado por uma confusão esfuziante e ruidosa de homens e cavalos. Do lado oposto, um pequeno lance de escadas levava à porta do salão principal e à torre. A comitiva de Ambrosius subia os degraus, mas dobrei para um lado. Não havia necessidade de perguntar para onde haviam sido levados os feridos. Do lado leste do pátio um prédio de dois andares fora transformado em posto de socorros. Os sons que dali provinham serviram para guiar-me. Fui saudado com gratidão pelo médico encarregado, um homem chamado Gandar, que fora meu professor na Bretanha e, reconhecidamente, não tinha utilidade para padres e magos, mas necessitava muito de um outro par de mãos treinadas. Destacou para mim dois ordenanças, arranjou-me alguns instrumentos e uma caixa de ungüentos e remédios e literalmente empurrou-me para uma sala comprida, que era pouco mais que um telheiro, mas que agora continha cinqüenta homens feridos. Despi-me até a cintura e comecei a trabalhar. Por volta da meia-noite o pior estava feito e as coisas sossegavam. Estava na extremidade da minha seção, quando uma ligeira agitação perto da estrada fez-me voltar a cabeça e vi Ambrosius, com Gandar e dois oficiais, entrarem silenciosamente e caminharem pelas fileiras dos feridos parando junto a cada homem para falar ou, com os mais gravemente feridos, para interrogar o médico em voz baixa. Eu cozia um ferimento de coxa — estava limpo e iria sarar, mas era profundo e recortado e para alívio de todos, o homem desmaiara — quando o grupo me alcançou. Não ergui os olhos e Ambrosius esperou em silêncio até que eu terminasse e, apanhando as ataduras que o ordenança preparara, envolvesse o ferimento. Terminei e pus-me de pé na hora em que o ordenança surgia com uma tigela de água. Mergulhei as mãos e levantei a cabeça, encontrando Ambrosius a sorrir. Ainda trazia a armadura retalhada e suja, mas parecia bem disposto e alerta e pronto, se necessário, a iniciar outra batalha. Notei que os homens feridos o observavam como se pudessem extrair força só em vê-lo. — My lord — disse eu. Ele curvou-se sobre o homem inconsciente. — Como está ele? — Um ferimento superficial. Vai-se recuperar e viver para agradecer que não tenha sido alguns centímetros para a esquerda. — Vejo que fez um bom trabalho. — Então, quando terminei de enxugar as mãos e dispensei o ordenança com uma palavra de agradecimento, Ambrosius estendeu a mão para mim. — E, agora, bem vindo. Creio que lhe devemos bastante, Merlin. Não me refiro a isso; e sim a Doward, e por hoje também. Pelo menos os homens pensam assim e, se os soldados chegam à conclusão de que alguma coisa lhes traz sorte, é porque traz mesmo. Bem, estou satisfeito de vê-lo são e salvo. Tem notícias para

mim, creio. — Sim — respondi inexpressivo, por causa dos homens que estavam conosco, mas vi o sorriso desaparecer do seu rosto. Ele hesitou, e disse em.voz baixa: — Cavalheiros, dêem-nos licença. Eles saíram. Ele e eu encaramo-nos por sobre o corpo do homem inconsciente. Perto, um soldado revirava-se e gemia, outro gritava e mordia os lábios. O lugar cheirava mal, a sangue, suor e doença. — Quais são essas notícias? — Referem-se a minha mãe. Acho que ele já sabia o que eu lhe ia dizer. Falou lentamente c medindo as palavras como se cada uma carregasse consigo o peso que ele deveria sentir. — Os homens que vieram com você... trouxeram notícias dela. Esteve doente mas recuperava-se, disseram-me, e em segurança, em Maridunum. Não era verdade? — Era verdade quando saí de Maridunum. Se soubesse que a doença era mortal, não a teria deixado. — Era mortal? — Sim, my lord. Ele ficou silencioso, de olhos baixos, olhando para o homem ferido mas sem vê-lo. Este último começava a mexer-se; logo voltaria a si com a dor e o mau cheiro, e o medo da morte. Sugeri: — Vamos sair para o ar fresco? Terminei aqui. Mandarei alguém cuidar desse homem. — E precisa apanhar suas roupas. A noite está fria. — Então, ainda sem se mover: — Quando foi que ela morreu? — Hoje, ao pôr do sol. Ele voltou-se rápido ao ouvir isso, os olhos apertados e atentos, e então acenou a cabeça, aceitando o fato. Voltou-se para sair, fazendo-me sinal para que o acompanhasse. Ao sairmos, perguntou: — Acha que ela sabia? — Creio que sim. — Não mandou nenhum recado? — Não diretamente. Ela disse: "Quando nos encontrarmos novamente, haverá tempo bastante". Ela é cristã, lembre-se. Eles crêem... — Sei o que crêem. Uma agitação do lado de fora chegou-nos aos ouvidos, uma voz dando algumas ordens, pés marchando. Ambrosius parou para escutar. Alguém se dirigia rapidamente para nós. — Falaremos mais tarde, Merlin. Tem muito o que me contar. Mas, primeiro, precisamos mandar o espírito de Hengist juntar-se aos seus antepassados. Venha. Eles haviam colocado os saxões mortos numa grande pilha de madeira e derramado óleo e piche por cima. No alto da pirâmide, numa plataforma de pranchas toscamente pregadas, jazia Hengist. Como

Ambrosius os impedira de o roubarem, nunca saberei, mas não fora roubado. O escudo encontrava-se sobre o seu peito e a espada na mão direita. Tinham escondido o pescoço cortado com um largo colar de couro do tipo que alguns soldados usam para proteger a garganta. Era ornado de ouro. Uma capa cobrialhe o corpo do pescoço aos pés e as dobras purpúreas caíam sobre a madeira tosca. Assim que os archotes foram atirados, as chamas subiram rápidas. Era uma noite parada e a fumaça erguia-se numa grande coluna escura rendilhada de fogo. As beiradas da capa de Hengist arderam, escureceram, dobraram-se, e ele desapareceu de vista no jato de fumaça e chamas. O fogo estalava como um chicote, e à medida que as toras queimavam e se partiam, os homens corriam, suados e negros, para atirar outras na fogueira. Mesmo de onde eu estava, bem afastado, o calor era intenso e o cheiro de piche queimado e carne assada invadia em rajadas nauseantes o ar úmido da noite. Para além do círculo iluminado dos homens que observavam, os archotes ainda se moviam no campo de batalha e podiam-se ouvir as pancadas ritmadas das pás cavando a terra para os mortos britânicos. Longe da pira brilhante, além das encostas escuras das montanhas, a lua de maio surgia pálida através da fumaça. A voz de Ambrosius sobressaltou-me. Olhei-o surpreso. — Vendo? — perguntei. — No fogo, profeta Merlin. — Nada, exceto homens mortos assando. — Então olhe e veja alguma coisa para mim, Merlin. Para onde foi Octa? Ri-me. — Como iria saber? Disse-lhe tudo o que vi. Mas ele não sorriu. — Olhe com mais atenção. Diga-me para onde foi Octa. E Eosa. Onde vão esconder-se para esperar por mim. E quando. — Já lhe expliquei uma vez. Eu não procuro ver as coisas. Se é a vontade do deus que venham a mim, elas surgem das chamas, ou da noite escura, e vêm silenciosas como uma flecha na emboscada. Não vou à procura do arqueiro; só me cabe esperar de peito aberto que a flecha me atinja. — Então faça isso agora. — Falou veemente e teimoso. Vi que estava muito sério. — Você viu para Vortigern. — O senhor chama isso "para" Vortigern? Profetizar a morte dele? Quando fiz aquilo, my lord, nem sabia o que estava dizendo. Suponho que Gorlois lhe tenha contado o que aconteceu — mesmo agora eu não saberia dizer-lhe. Nem sei quando vem, nem quando vai. — Ainda hoje você soube de Niniane e sem fogo ou trevas. — É verdade. Mas não sei dizer-lhe como, da mesma forma que não sabia o que disse a Vortigern. — Chamam-lhe o profeta de Vortigern. Profetizou a nossa vitória e nós a tivemos aqui e em Doward. Os homens acreditam em você e têm fé em você. E eu também. Não seria um título melhor agora o de profeta de Ambrosius? — My lord, sabe que eu receberia qualquer título que quisesse conferir-me. Mas isto vem de outra parte. Não posso provocá-lo, mas sei que, se for importante, virá. E, quando vier, esteja certo de que lhe direi. Sabe que estou ao seu serviço. Agora, quanto a Octa e Eosa, nada sei. Só posso especular, especular como homem. Ainda lutam sob o Dragão Branco, não lutam?

Seus olhos estreitaram-se. — Sim. — Então o que o profeta de Vortigern disse continua válido. — Posso dizer isso aos homens? — Se houver necessidade. Quando pretende marchar? — Dentro de três dias. — Em que direção? — York. Virei as palmas das mãos para cima. — Então o seu palpite como comandante é, provavelmente, tão bom quanto o meu palpite com mago. Vai levar-me? Ele sorriu: — Terá alguma utilidade para mim? — Não como profeta. Mas precisa de um engenheiro? Ou de um médico aprendiz? Ou mesmo de um cantor? Ele riu. — Uma multidão num só homem, eu sei. Contanto que não banque o padre para cima de mim, Merlin. Já estou farto deles. — Não precisa recear. As chamas morriam. O oficial encarregado da cerimônia aproximou-se, saudou-o e perguntou se os homens poderiam ser dispensados. Ambrosius deu-lhe permissão, e olhou para mim. — Venha comigo para York, então. Terei trabalho para você lá. Trabalho de verdade. Dizem-me que metade do lugar está em ruínas, e precisarei de alguém para ajudar a dirigir os engenheiros. Tremorinus está em Caerleon. Agora procure Caius Valerius e diga-lhe para cuidar de você e trazê-lo à minha presença dentro de uma hora. — E acrescentou por cima do ombro ao afastar-se: — Entrementes, se alguma coisa surgir das trevas como uma flecha, você me avisará? — A não ser que seja realmente uma flecha. Ele riu-se e partiu. De repente Uther estava ao meu lado. — Bem, Merlin, seu bastardo! Estão dizendo que você ganhou a batalha para nós do alto da colina! Notei com surpresa que não havia malícia no seu tom. Suas maneiras eram descontraídas, à vontade, quase alegres como as de um prisioneiro libertado. Suponho que realmente se sentisse assim, depois dos longos anos de frustração na Bretanha. Se o tivessem deixado proceder como entendesse, ter-se-ia lançado pelo Mar Estreito mal chegasse à idade adulta para ser valentemente cortado em pedaços por todo esse trabalho. Agora, como um falcão deixado voar à caça pela primeira vez, sentia o poder. Eu o sentia também; envolvia-o como asas dobradas. Respondi-lhe alguma coisa à guisa de saudação, mas ele interrompeu-me. — Viu alguma coisa nas chamas agora há pouco? — Oh, não! Você também? — exclamei calorosamente. — O comandante parece pensar que bastame olhar para um archote para predizer o futuro. Estive tentando explicar-lhe que não é assim que a coisa se passa.

_ Você me desaponta. Ia pedir-lhe para predizer o meu futuro. — Oh, Eros, isso é fácil. Dentro de uma hora, assim que tiver acomodado seus homens, estará na cama com uma moça. _ Não é uma coisa tão certa assim. Com os diabos, como soube que consegui arranjar uma? Não há tantas em campo logo aqui... apenas um homem em cinqüenta conseguiu uma. Tive sorte. _ Foi o que eu quis dizer — retorqui. Admitido que haja cinqüenta homens e apenas uma mulher entre eles, Uther fica com a mulher. É o que se poderia chamar uma das certezas da vida. Onde poderei encontrar Caius Valerius? — Mandarei alguém para mostrar-lhe. Eu iria pessoalmente, mas estou querendo manter-me fora do caminho dele. — Por quê? — Quando tiramos a sorte, para saber quem ficava com a moça, ele perdeu — disse Uther, animado. — Terá bastante tempo para cuidar de você. Na verdade, toda a noite. Venha.

6 Entramos em York três dias antes do fim de maio. Os batedores de Ambrosius haviam confirmado o seu palpite sobre York; existia uma boa estrada para o norte saindo de Kaerconan, e Octa fugira pela mesma com o primo Eosa, refugiando-se na cidade fortificada que os romanos chamavam de Eboracum, e os saxões de Eoforwick, ou York. Mas as fortificações em York encontravam-se em mau estado e os habitantes, quando souberam da retumbante vitória de Ambrosius em Kaerconan, ofereceram aos saxões fugitivos fria acolhida. Com toda a velocidade de Octa, Ambrosius não estava nem dois dias atrás dele, e à vista do nosso enorme exército descansado e reforçado por novos aliados britânicos, encorajados pelas vitórias do Dragão Vermelho, os saxões, duvidando de que a cidade pudesse resistirlhe, decidiram pedir clemência. Eu mesmo presenciei, quando estava na carroça com as máquinas de assédio, sob as muralhas. De certa forma, foi mais desagradável do que uma batalha. O líder saxão era um homem grande, louro como o pai, e jovem. Compareceu perante Ambrosius só de calças, que eram feitas de um material grosseiro e atadas com correias de couro. Seus pulsos estavam igualmente atados, mas com uma corrente, e a cabeça e o corpo cobertos de cinzas, um sinal de humilhação de que mal necessitava. Seus olhos demonstravam rancor, e via-se que tinha sido forçado a isso pela covardia — ou sabedoria, como quiserem chamá-la — do grupo de notáveis saxões e britânicos que se aglomeravam por trás dele fora das portas da cidade, suplicando a Ambrosius misericórdia para si e suas famílias. Dessa vez ele a concedeu. Exigiu apenas que o restante do exercito saxão se retirasse para o norte, para além da velha muralha de Adriano, que (disse ele) consideraria a fronteira do seu reino. Dizia-se que as terras, dali em diante, eram selvagens e sombrias e quase que inabitáveis, mas Octa recebeu sua liberdade bastante satisfeito e em seguida, ansioso pela mesma graça, veio seu primo prostrando-se à generosidade de Ambrosius. Recebeu-a, e a cidade de York abriu os portões ao seu novo rei. À primeira ocupação de uma cidade por Ambrosius seguir-se-ia sempre o mesmo padrão. Primeiramente, o estabelecimento da ordem nunca permitiu a presença dos seus aliados britânicos numa cidade; suas próprias tropas da Bretanha Menor, sem lealdades locais eram as que estabeleciam e mantinham a ordem. As ruas eram limpas, as fortificações temporariamente reparadas, traçando-se planos para as obras futuras, que eram postos nas mãos de um pequeno grupo de engenheiros capazes, os quais deveriam contratar trabalhadores locais. Depois, uma reunião dos líderes da cidade, uma discussão da política futura, um juramento de lealdade a Ambrosius, e providências para a guarnição da cidade depois que partisse o exército. Finalmente, uma cerimônia religiosa de ação de graças com uma festa e um feriado público. Em York, a primeira grande cidade tomada por Ambrosius, a cerimônia foi realizada na igreja, num dia escaldante de fins de junho, na presença de todo o exército e de uma grande multidão. Eu já comparecera a uma cerimônia privada em outro local. Não era de se esperar que ainda houvesse um templo de Mithras em York. O culto era proibido, e de qualquer forma teria desaparecido quando a última legião deixara a costa saxônica, há quase um século atrás; mas na época das legiões, o templo de York era um dos mais belos do país. Já que não havia nenhuma gruta natural por perto, fora originalmente construído sob a casa do comandante romano, uma grande cave, e devido a isso os cristãos não tinham conseguido profaná-lo e destruí-lo, como era seu hábito, em se tratando dos locais sagrados dos outros homens. Mas o tempo e a umidade

tinham-se encarregado disso, e o santuário desmoronou por falta de cuidados. Certa vez, sob um governador cristão, tinha havido uma tentativa de transformar o local numa cripta, mas o governador seguinte fora francamente, para não dizer violentamente, contra. Ele próprio era cristão, mas não via razão para que uma boa cave sob sua casa não fosse usada para sua verdadeira (para ele) finalidade, isto é, guardar vinho. E depósito de vinho permaneceu até o dia em que Uther enviou uma equipe de trabalho para limpá-la e consertá-la para a reunião a ser realizada no próprio dia da festa do deus, dezesseis de junho. A hora da reunião foi mantida secreta, não por medo, mas por política, já que a ação de graças oficial seria cristã e Ambrosius estaria lá para dar graças na presença dos bispos e de toda a gente. Eu próprio não vira o santuário, tendo andado ocupado durante os primeiros dias em York com a restauração da igreja cristã, em tempo para a cerimônia pública. Mas na festa de Mithras eu estaria presente no templo subterrâneo com os outros de mesma graduação. A maioria deles eram pessoa que eu não conhecia ou não conseguia identificar pela voz atrás da máscara; mas Uther era reconhecível, e meu pai naturalmente esta ria lá, no seu posto de Mensageiro do Sol. A porta do templo encontra-se fechada. Nós, os de grau inferior, esperávamos a vez na antecâmara. Era uma sala um tanto pequena e quadrada, iluminada por apenas dois archotes presos às mãos de estátuas de cada lado da porta do templo. Acima do portal havia uma velha máscara de pedra representando um leão, gasta e corroída, parte integrante da parede De cada lado, tão gastos e lascados, os narizes e membros partidos e arrancados, os dois archoteiros de pedra ainda pareciam antigos e majestosos. A antecâmara era fria apesar dos archotes e cheirava a fumaça. Senti o frio subir-me pelo corpo; vinha do chão de pedra pelos meus pés descalços e sob a veste longa de lã branca sob a qual eu estava nu. Mas, quando o primeiro arrepio passou pela minha pele, a porta do templo abriu-se e num minuto tudo era luz, cor e fogo. Mesmo agora, passados tantos anos e sabendo tudo o que acumulei numa vida inteira, não consigo quebrar o voto de silêncio e segredo. E que eu saiba, homem algum o fez. Dizem que o que se aprende em criança nunca pode ser completamente expurgado da mente, e sei que nunca consegui escapar do encantamento do deus secreto que me conduziu à Bretanha e me atirou aos pés do meu pai. Na verdade, quer fosse pela marca no espírito a que me referi, ou pela intervenção do próprio deus, vejo que a lembrança do seu culto foi envolvida por uma névoa, como se não tivesse passado de um sonho. E um sonho poderá ter sido, não só essa vez, mas formado por todas as outras vezes, desde a primeira visão do campo à meia-noite, à cerimônia daquela noite, que foi a última. De algumas coisas eu me lembro. Mais archoteiros de pedra. Os longos bancos de cada lado da nave central onde os homens se recostavam, as roupas coloridas, as máscaras voltadas para nós, os olhos atentos. Os degraus na extremidade e a grande ábside com um arco, qual a boca de uma caverna, abrindo-se para outra onde, sob a abóbada engastada de estrelas, se achava um velho relevo de pedra representando Mithras matando um touro. De alguma forma deveria ter sido resguardado dos martelos dos iconoclastas, pois se apresentava ainda nitidamente entalhado e dramático. Ali estava ele à luz dos archotes, o rapaz da pedra aprumada, o homem do barrete, ajoelhado sobre o touro caído, a cabeça voltada, pesaroso, golpeando-lhe a garganta com a espada. Ao pé dos degraus estavam os altares de fogo, um de cada lado. Junto a um deles, um homem mascarado de leão trazendo um bastão na mão esquerda. Junto ao outro, o Heliodromos, o Mensageiro do Sol. E no alto dos degraus, o centro da ábside, o Pai esperando para receber-nos. Minha máscara de corvo tinha pequenos buracos para os olhos e eu via apenas direto em frente.

Não ficaria bem olhar de um lado para outro com aquela máscara de pássaro, de modo que procurei prestar atenção às vozes imaginando quantos amigos estariam ali, quantos conhecidos. O único de que podia ter certeza era o Mensageiro, alto e quieto junto ao altar de fogo, e um dos leões, quer o do arco ou um dos que observavam ao longo dos bancos improvisados. Essa era a estrutura da cerimônia e tudo de que consigo lembrar-me, exceto o fim. O leão que oficiava não era Uther, afinal. Era um homem mais baixo, corpulento e aparentemente mais velho que Uther, e a pancada atingiu-me com a batida ritual, sem a dor que Uther, geralmente, conseguia imprimir-lhe. Nem era Ambrosius o Mensageiro. Quando este último me entregou o pão e o vinho simbólico, vi o anel no dedo mínimo da mão esquerda, em ouro, circundando uma pedra de jaspe vermelho com o brasão do dragão, numa gravação miúda. Mas, quando levou a taça à minha boca e o manto púrpura escorregou para trás deixando aparecer o braço, reconheci a cicatriz branca na pele e olhei para cima encontrando seus olhos azuis por trás da máscara, iluminados por uma centelha de divertimento que cresceu para uma risada quando me assustei e derramei o vinho. Uther subira dois degraus, desde que eu comparecera pela última vez. aos mistérios. E já que não havia nenhum outro Mensageiro presente, só havia mais um lugar para Ambrosius... Afastei-me do Mensageiro para ajoelhar-me aos pés do Pai. Mas as mãos que receberam as minhas para o juramento eram as mãos de um velho, e quando olhei para o alto, os olhos por trás da máscara eram os olhos de um estranho. Oito dias mais tarde, realizou-se a cerimônia oficial de ação de graças. Ambrosius estava presente com todos os seus oficiais, inclusive Uther, "pois", disse-me mais tarde meu pai quando estávamos a sós, "como irá descobrir, todos os deuses nascidos da luz são irmão e nesta terra se Mithras, que nos deu a vitória, deve assumir o rosto de Cristo, ora, então cultuaremos Cristo." Nunca mais falamos sobre isso. A capitulação de York marcou o fim da primeira etapa da campanha de Ambrosius. A seguir a York, partimos para Londres em etapas fáceis e sem lutas, a não ser que se contem as poucas escaramuças do caminho. O que o Rei precisava empreender agora era o imenso trabalho de reconstrução e consolidação do seu reino Em todas as cidades e pontos fortificados ele deixou guarnições de homens experimentados sob oficiais de confiança e designou seus próprios engenheiros para ajudarem a organizar o trabalho de reconstrução e reparos de cidades, estradas e fortalezas. Por toda a parte, a imagem era a mesma: prédios dantes bonitos, arruinados ou destruídos sem conserto possível; estradas semi-desaparecidas por negligência; vilas destruídas e gente a esconder-se amedrontada em grutas e florestas; locais de culto arrasados ou profanados. Era como se a estupidez e a cobiça desregrada das hordas saxônicas tivesse empestado a terra toda. Tudo que trouxera luz — pintura, música, ciências, culto, reuniões, cerimônias do povo, festas da Páscoa, Todos os Santos, Solstício de Inverno, mesmo os ofícios domésticos, tudo havia desaparecido sob as nuvens negras em que cavalgavam os deuses nórdicos da guerra e do trovão. E tinham sido convidados por Vortigern, rei britânico. Aquilo era só o que o povo agora lembrava. Esqueciam-se de que Vortigern reinara bem por dez anos, e razoavelmente por mais alguns, antes de descobrir que o espírito de guerra que desencadeara no país escapara ao seu controle. Lembravam-se apenas de que ele obtivera o trono com sangue, traição e a morte de um parente — e que aquele parente era o verdadeiro Rei. Acorriam então em bandos para Ambrosius, pedindo para ele a bênção dos seus diferentes deuses, saudando-o com alegria como Rei, o primeiro Rei de toda a Bretanha, a primeira oportunidade brilhante de o país tornar-se uno.

Outros homens contaram a história da coroação de Ambrosius e da sua primeira obra como Rei da Bretanha; foi até mesmo escrita, portanto só direi aqui que permaneci com ele os dois primeiros anos, conforme falei, mas na primavera do meu vigésimo aniversário deixei-o. Já estava farto de conselhos e desfiles e longas discussões legais em que Ambrosius tentava restaurar as leis caídas em desuso e as intermináveis reuniões com os anciãos e bispos, monótonas como o zumbido das abelhas, gastando dias e semanas em cada gota de mel. Estava mesmo cansado de construir e traçar; a fora o único trabalho que eu executara para ele em todos os longos meses que servi no exército. Vi finalmente que precisava deixá-lo afastar-me da pressão dos assuntos que o cercavam; o deus "-o fala àqueles que não têm tempo para ouvi-lo. A mente precisa buscar o alimento necessário, e compreendi por fim que qualquer que fosse o trabalho que eu precisasse fazer deveria ser feito na quietude das minhas montanhas. Assim, na primavera, quando fomos para Winchester, enviei um recado a Cadal e procurei Ambrosius para dizerlhe que precisava partir. Ele ouviu-me meio ausente; as preocupações pressionavam-no demasiado naqueles dias, e os anos, que não pareciam contar antes, descarregavam sobre ele todo o seu peso. Notei que isso acontece freqüentemente com os homens que orientam sua vida para a luz distante de um farol alto; quando o topo da montanha é atingido e já não há o que galgar e tudo o que resta é empilhar mais sobre a chama e manter o farol ardendo, sentam-se de lado e envelhecem. Onde antes o sangue agitado os aquecia, o farol precisa agora fazê-lo de fora para dentro. Assim foi com Ambrosius. O Rei que me ouvia sentado no trono em Winchester não era o jovem comandante que eu encarara por sobre a mesa juncada de mapas na Bretanha Menor, ou mesmo o Mensageiro de Mithras que atravessara os campos cobertos de gelo para vir ter comigo. — Não posso segurá-lo — disse ele. — Você não é meu oficial, é apenas meu filho. Irá para onde quiser. — Continuarei a servi-lo. Sabe disso. Mas sei agora como melhor fazê-lo. Falou outro dia em mandar uma tropa para Caerleon. Quem vai? Ele olhou um papel. Há um ano atrás, teria sabido sem olhar: — Priscus, Valens. Provavelmente Sidonius. Partem dentro de dois dias. — Então irei com eles. Ele olhou para mim. De repente era outra vez o velho Ambrosius. — Uma flecha surgindo das trevas? — Poderia ser. Sei que preciso ir-me. — Então vá em segurança. E algum dia volte para mim. Alguém nos interrompeu, então. Quando o deixei, ele já revia, palavra por palavra, uma minuta trabalhosa dos novos estatutos da cidade.

7 A estrada de Winchester a Caerleon é boa e o tempo apresentava-se firme e seco. Assim, não paramos em Sarum, mas enquanto havia luz prosseguimos para o norte, atravessando a Grande Planície. Um pouco adiante de Sarum encontra-se o lugar onde nasceu Ambrosius. Não consigo nem lembrar-me mais que nome teve no passado, mas já naquela altura era chamado em sua homenagem de Amberesburg ou Amesbury. Nunca passara por ali antes e tinha idéia de visitar o local, de modo que cavalgamos a toda pressa e chegamos pouco antes do pôr do sol. Eu e os oficiais recebemos alojamentos confortáveis na casa do chefe da cidade — pouco mais que uma vila, mas já agora cônscia de sua importância como cidade natal do Rei. Não muito distante ficava o lugar onde há muitos anos atrás uns cem nobres britânicos tinham sido traiçoeiramente massacrados pelos saxões e enterrados numa vala comum. Situava-se a oeste de Amesbury, para além do grande círculo de pedras a que os homens chamam de Dança dos Gigantes ou Dança das Pedras Pendentes. Há muito que ouvira falar dessa dança e sentia curiosidade de vê-la. Assim, quando a tropa alcançou Amesbury e preparava-se para passar a noite, apresentei desculpas ao meu anfitrião e dirigime para oeste, sozinho, rumo à planície aberta. Ali, por milhas e milhas, a grande planície estende-se sem montanhas ou vales, sem interrupções exceto por pequenos grupos de espinheiros e tojos, e aqui e ali um carvalho solitário desfolhado pelos ventos. O sol punha-se tarde e naquela noite rumei para oeste no meu cavalo cansado; o céu à minha frente estava ainda tinto pelos últimos raios de sol enquanto atrás de mim amontoavam-se as nuvens azul-ardósia e uma estrela madrugadora surgia. Creio que eu esperava que a Dança fosse muito menos imponente que o exército de pedras enfileiradas a que me acostumara na Bretanha, algo talvez na escala do círculo da ilha dos druidas. Mas essas pedras eram gigantescas, as maiores que eu já vira; e o seu próprio isolamento, aprumadas como estavam no centro daquela planície imensa e deserta, encheu-me o coração de pasmo. Contornei-as devagar, os olhos arregalados; desmontei e, deixando o cavalo a pastar, encaminheime para duas pedras aprumadas do círculo exterior. Minha sombra, projetando-se à frente por entre as sombras das mesmas, era minúscula, coisa de pigmeu. Parei involuntariamente como se os gigantes se tivessem dado as mãos para impedir-me a passagem. Ambrosius perguntara-me se "uma flecha surgira das trevas." Respondera-lhe que sim e era verdade, mas ainda precisava descobrir por que fora trazido ali. Eu só sabia que estava ali, e desejei estar longe. Senti algo como na Bretanha quando passei pela primeira vez no meio da avenida de pedras; um sopro na nuca como se alguma coisa mais antiga que o tempo estivesse a observar por cima do meu ombro; mas não era exatamente o mesmo. Era como se o chão, as pedras que eu tocava, ainda quentes do sol da primavera, estivessem a expirar frio das profundezas da terra. Meio relutante, prossegui. A luz desaparecia rapidamente e para caminhar até o centro era preciso cuidado. O tempo e as tempestades — e talvez os deuses da guerra — tinham estado em ação derrubando muitas das pedras que se encontravam caídas ao acaso, mas o traçado ainda podia ser distinguido. Era um círculo, mas não se assemelhava a nada que eu tivesse visto na Bretanha, nada que eu pudesse jamais ter imaginado. Houvera originalmente um círculo exterior de pedras gigantescas e onde agora se observava uma meia-lua, notei que os menires eram encimados por um dintel de pedras

sucessivas tão grandes quanto as primeiras, numa curva contínua que se erguia como uma cerca gigantesca contra o céu. Aqui e ali havia outras do círculo exterior, de pé, mas a maioria tombara ou formava no chão ângulos com os dintéis de pedra ao lado delas. Dentro do círculo maior, havia um menor, de pedras aprumadas, sobre as quais haviam tombado algumas das gigantes do círculo externo, estendendo-as ao comprido. No interior dessas, marcando o centro, uma ferradura de enormes pedras encimadas aos pares. Três desses grupos conservavam-se intactos; o quarto caíra trazendo a vizinha na queda. E, ainda, outra ferradura no interior dessa última, com pedras menores, quase todas aprumadas. O centro permanecera vazio, riscado de sombras. O sol desaparecera e, com a sua fuga, o céu do ocidente perdera seu colorido, deixando apenas uma estrela a brilhar num ondulante mar verde. Fiquei imóvel. Tudo estava muito quieto, tão quieto que eu podia ouvir o som produzido pelo meu cavalo ao cortar a relva e o retinir suave do seu freio quando se movia. O único outro som era o sussurro dos estorninhos aninhando-se entre as grandes pedras do alto. O estorninho é um pássaro sagrado para os druidas e eu ouvira dizer que, no passado, a Dança fora usada para o culto pelos sacerdotes druidas. Correm muitas histórias a respeito da Dança: como as pedras foram trazidas da África e aprumadas pelos gigantes de outrora, ou que eram os próprios gigantes transformados em pedra por uma maldição quando dançavam em círculo. Mas não eram os gigantes que sopravam o frio da terra e das pedras; as pedras tinham sido postas ali pelos homens, e a maneira como foram erguidas era cantada por poetas como o velho cego da Bretanha. Um fiapo de luz incidiu sobre a pedra ao meu lado. Uma protuberância na sua superfície correspondia a um orifício no dintel caído ao seu lado. Essas espigas e encaixes tinham sido talhados por homens, artesãos, como os que eu observara quase que diariamente nos últimos anos na Bretanha Menor, em York, Londres, Winchester. E imensas como eram, construções de gigantes como pareciam ser, tinham sido erguidas pelas mãos de trabalhadores, sob o comando de engenheiros e ao som de músicas como as que eu ouvira do cantor cego em Kerrec. Continuei vagarosamente atravessando o centro do círculo. A claridade pálida do céu alongou minha sombra adiante, recortando por um momento à sua luz fugidia a forma de um machado de duas cabeças sobre uma das pedras. Hesitei — e então voltei-me para olhar. Minha sombra estremeceu e mergulhou. Pisei numa cova rasa e caí. Era apenas uma depressão no solo, do tipo que poderia ter sido feita há anos atrás pela queda de uma das grandes pedras. Ou por uma sepultura... Não havia nenhuma pedra por perto de tal tamanho, nenhum sinal de escavação, ninguém enterrado ali. A relva macia e aparada pelos carneiros e pelo gado e sob as minhas mãos, ao erguer-me lentamente, havia margaridinhas estreladas e perfumadas. Mas, enquanto estivera deitado, senti o frio atingir-me por baixo numa pontada tão súbita como uma flechada e percebi que esta era a razão por que fora trazido ali. Apanhei meu cavalo, montei-o e voltei à terra natal do meu pai, a duas milhas de distância. Chegamos a Caerleon quatro dias depois, para descobrir o lugar completamente mudado. Ambrosius pretendera usá-lo como um dos seus três postos principais juntamente com Londres e York, e o próprio Tremorinus estivera trabalhando ali. As muralhas tinham sido reparadas, a ponte consertada, o rio drenado, os barrancos escorados, e todo o bloco de leste das casernas reconstruído. Em épocas anteriores, o estabelecimento militar de Caerleon, circundado pelas montanhas baixas e protegido pela curva do rio, era um lugar enorme; não havia necessidade nem da metade agora; portanto, Tremorinus arrasara parte do que restara do bloco oeste das casernas e empregara esse mesmo material para erguer os novos alojamentos, os banhos e as cozinhas novas em folha. Os antigos estavam até em piores

condições do que a casa de banho de Maridunum e agora eu dizia a Tremorinus: — Você terá todos os homens da Bretanha pedindo para serem destacados para servir aqui. Ele pareceu satisfeito. — Não estaremos prontos a tempo — falou. — Corre um boato de que teremos mais problemas em breve. Soube de alguma coisa? — Nada. Mas se são notícias recentes eu não poderia saber. Estamos viajando há quase uma semana. Que espécie de problemas? Não é Octa de novo? — Não, Pascentius. — Este era o irmão de Vortimer que lutara ao seu lado na rebelião e fugira para o norte depois da sua morte. — Sabia que ele embarcou para a Germânia? Dizem que vai voltar. — Dê-lhe tempo — disse eu — e pode estar certo de que voltará. Bem, você me mandará notícias, se houver? — Mandar? Não vai ficar aqui? — Não. Vou para Maridunum. É minha terra, sabe. — Tinha esquecido. Bem, talvez o vejamos de vez em quando; estarei por aqui por mais um pouco — começamos a trabalhar na igreja agora. — Sorriu. — O bispo tem andado atrás de mim como uma mutuca; acha que eu deveria ter pensado nisso antes de gastar tanto tempo nas coisas terrenas. E há também a conversa de erguer algum monumento à vitória do Rei. Um arco triunfal, sugerem alguns, uma coisa no velho estilo romano. Naturalmente, dizem aqui em Caerleon que deveríamos construir a igreja com esse propósito — a glória de Deus com Ambrosius de quebra. Embora eu próprio ache que, se algum bispo mereceria crédito pela glória de Deus e de Ambrosius juntos, deveria ser Gloucester — o velho Eldad cercado pelos melhores dentre eles. Você o viu? — Ouvi-o. Ele riu-se. — Bem, em todo caso dormirá aqui esta noite, espero? Ceie comigo. — Obrigado. Será um prazer. Conversamos até tarde e ele mostrou-me alguns dos seus planos e desenhos e parecia ansioso, o que me encantou, que eu viesse de Maridunum para observar os diversos estágios da construção. Prometi-lhe que sim, e no dia seguinte parti de Caerleon sozinho, recusando um pedido urgente e igualmente desvanecedor do comandante do acampamento para que o deixasse fornecer-me uma escolta. Mas recusei e já à tardinha cheguei afinal à vista das minhas montanhas. Nuvens de chuva avolumavam-se no oeste, mas como uma cortina brilhante diante delas surgiam os raios oblíquos do sol. Via-se, num dia como esse, por que as montanhas verdejantes de Gales tinham sido chamadas de Montanhas Negras e os vales que as formavam de Vales de Ouro. Feixes de luz horizontal cortavam as árvores dos vales dourados fazendo as montanhas ao fundo parecer azul-ardósia ou pretas, os topos como que a sustentarem o céu. Levei dois dias a caminho, cavalgando descansadamente e reparando pelo trajeto como a terra já parecia ter readquirido o seu viço de paz. Um fazendeiro que construía um muro mal olhou para mim quando passei e uma menina que vigiava um rebanho de ovelhas sorriu. E quando cheguei ao moinho do Tywy parecia que ele funcionava normalmente; havia sacos de cereais empilhados no pátio e ouviase o claque-claque-claque da roda a girar.

Passei ao pé do caminho que levava à gruta e continuei direto para a cidade. Creio que disse a mim mesmo que o meu primeiro dever e obrigação era visitar o convento de São Pedro para saber os pormenores da morte de minha mãe e ver onde estava enterrada. Mas, quando desci do cavalo à porta do convento e ergui a mão para o sino, soube pelas batidas do meu coração que me enganava. Poderia ter poupado a mim mesmo a mentira; foi a velha porteira que me fez entrar conduzindome diretamente, sem que lhe fosse pedido, pelo pátio interno e descendo por uma encosta verdejante perto do rio onde minha mãe estava enterrada. Era um lugar lindo, um terreno viçoso próximo a um muro onde pereiras desabrochavam prematuramente com o calor e, acima da neve, os pombos brancos, que ela tanto apreciava, voltavam o peito para o sol. Ouviu-se o murmúrio do rio além do muro, e por entre as árvores farfalhantes o toque do sino da capela. A abadessa recebeu-me carinhosamente, mas nada tinha a acrescentar ao relato que eu recebera logo após a morte de minha mãe e que passara ao meu pai. Deixei dinheiro para as orações e para que mandassem fazer uma laje esculpida e, quando parti, trazia a sua cruz de prata com ametistas guardada na minha mochila. Uma pergunta não tive coragem de fazer, mesmo quando uma moça que não era Keri trouxe vinho para mim. E, finalmente, com a pergunta por formular, fui acompanhado ao portão e à salda. Ali pensei por um momento que minha sorte mudara, pois quando desamarrava as rédeas do cavalo do anel junto ao portão vi a velha porteira espreitando-me pela grade lembrando-se sem dúvida do ouro que eu lhe dera na primeira visita. Mas quando tirei do bolso o dinheiro e a chamei para perto para gritar-lhe a pergunta ao ouvido, e mesmo depois de repeti-la três vezes, e conseguir fazer-me entender, sua única resposta foi um encolher de ombros e uma palavra: — Foi-se. Mesmo que ela me tivesse entendido, pouco adiantaria. Afinal, desisti. Em qualquer caso, disse a mim mesmo, era algo que precisava ser esquecido. Parti da cidade e retrocedi algumas milhas até o meu vale, a imagem do seu rosto gravada em tudo o que via e o ouro dos seus cabelos em cada feixe de luz oblíqua. Cadal reconstruíra o abrigo que Galapas e eu havíamos erguido na moita de espinheiros. Tinha um bom telhado e uma porta robusta e poderia com facilidade guardar dois cavalos grandes. Um, o de Cadal, imaginei, já estava lá. O próprio Cadal deveria ter-me ouvido subir o vale; porque antes que eu tivesse desmontado desceu a correr a trilha junto ao penhasco, tirou o freio das minhas mãos e, erguendo-as entre as suas, beijou-as. — Ora, o que é isso? — perguntei surpreso. Não precisava temer pela minha segurança; as mensagens que eu lhe enviara tinham sido regulares e tranqüilizadoras. — Não recebeu recado de que eu vinha? — Sim, recebi. Faz tanto tempo! Parece bem disposto. — E você! Está tudo bem aqui? — Creio que sim. Se precisava viver num lugar como este, há meios e maneiras de torná-lo habitável. Agora desça do cavalo, sua ceia está pronta. E curvou-se para desafivelar a barrigueira do cavalo, deixando-me subir sozinho a gruta. Tivera muito tempo para arrumá-la, mas mesmo assim a surpresa apanhou-me com o impacto de um milagre. Estava como sempre fora, um lugar de relva verde e sol. Margaridas e amores-perfeitos espreitavam pela relva entre os rolinhos verdes das samambaias novas e coelhinhos escondiam-se sob

os espinheiros em flor. A fonte corria com a transparência do cristal, deixando ver claramente o cascalho prateado do fundo do poço. Acima, no nicho coberto de fetos, achava-se a imagem esculpida do deus; Cadal deve tê-la encontrado ao retirar os detritos do poço. Encontrara até o caneco de chifre. Estava ali no lugar de sempre. Bebi com ele, deixei cair as gotas para o deus e entrei na gruta. Meus livros tinham vindo da Bretanha Menor; a grande arca encontrava-se encostada à parede da gruta onde costumava ficar a caixa de Galapas. Onde havia uma mesa, achava-se outra que reconheci como pertencendo à casa do meu avô. O espelho de bronze fora reposto no seu lugar. A gruta limpa tinha um cheiro doce e seco. Cadal construíra uma lareira de pedra e as achas encontravam-se preparadas para acendê-la. Quase esperei ver Galapas sentado ao pé da lareira e na saliência, junto à entrada, o falcão que se encarapitara ali na noite em que o menino deixara a gruta em lágrimas. Nas profundezas das sombras, acima do degrau ao fundo, estava a fenda mais escura que ocultava a gruta de cristal. Aquela noite, deitado na cama de folhas com as mantas aconchegadas ao meu redor, pus-me a escutar, quando o fogo se apagou, o farfalhar das folhas no exterior da gruta e mais distante o sussurro da fonte. Eram os únicos sons do mundo. Fechei os olhos e dormi como nunca mais o tinha feito desde criança.

8 Como um bêbado que, enquanto não há vinho, pensa que se curou do vício de beber, pensei que estava curado da minha sede de silêncio e solidão. Mas, desde a primeira manhã, ao acordar em Bryn Myrddin, compreendi que aquilo não era apenas um refúgio, era o meu lugar. Abril cedeu passagem a maio e os cucos cantavam de uma montanha para outra, as campainhas azuis desabrochavam entre as samambaias novas e as noites enchiam-se de balidos de carneiros e ainda assim, nem uma só vez eu chegara mais perto da cidade do que a crista da montanha, duas milhas para o norte, onde eu colhia folhas, e ervas. Cadal descia diariamente em busca de suprimentos e de notícias correntes e duas vezes um mensageiro subiu o vale; uma com um monte de esboços de Tremorinus e outra com notícias de Winchester e dinheiro do meu pai — nenhuma carta, apenas a confirmação de que Pascentius estava realmente reunindo tropas na Germânia e a guerra com certeza estouraria antes do fim do verão. Pelo resto, eu lia e passeava pelas montanhas, colhia plantas, preparava remédios. Também compunha música e cantava um número de canções que faziam Cadal olhar-me de esguelha, erguendo a cabeça das suas ocupações para sacudi-la. Algumas delas ainda são cantadas, mas a maioria é melhor permanecer esquecida. Uma das últimas era a que eu cantava certa noite, quando maio invadiu a cidade com as suas nuvens de flores e os botões das campanhias cinzentas tornavam-se azuis ao longo das moitas. A terra é cinzenta e nua, as árvores limpas como ossos, O verão foi-lhes roubado; o cabelo do salgueiro, A beleza da água azul, a relva transformada em ouro, E roubado também o canto do passarinho, Roubado por uma moça, esguia como um salgueiro. Alegre como um pássaro num ramo de maio em flor, Doce como o sino no alto de uma torre Ao dançar sobre os juncos do rio E seus passos faíscam na relva cinzenta. Dar-lhe-ia um presente, rainha das donzelas, Mas o que resta para dar-lhe no meu vale despojado? As vozes do vento ao passar pelos colmos, os brilhantes de chuva E o veludo do musgo na pedra tão fria. Que me resta dar-lhe além do musgo na pedra Se fecha os olhos e abandona-me no sonho?

No dia seguinte eu caminhava por um vale arborizado a uma milha de casa procurando hortelã silvestre e ambrósia, quando, como se a meu chamado, ela surgiu pela trilha entre as campainhas azuis e as samambaias. Pelo que sei, talvez a tivessem chamado. Uma flecha é uma flecha, qualquer que seja o deus que a tenha atirado. Parei junto a um grupo de bétulas, o olhar fixo como se ela fosse desaparecer; como se eu a tivesse realmente produzido naquele momento de sonho e desejo, um fantasma à luz do sol. Não conseguia mover-me, embora todo o meu corpo e o meu espírito parecessem saltar ao seu encontro. Viu-me, o riso iluminou-lhe o rosto e dirigiu-se para mim caminhando levemente. No tabuleiro de luz e sombras ondulantes produzido pelo movimento dos ramos das bétulas, ela parecia ainda mais etérea, como se os seus passos mal chegassem a agitar a relva, mas então se aproximou e já não era uma visão, mas a própria Keri, como eu lembrava, num vestido castanho grosseiro, cheirando a madressilvas. Agora não trazia capuz; o cabelo estava solto pelos ombros e os pés, descalços. O sol espiava por entre as folhas em movimento fazendo seu cabelo refulgir como a luz sobre a água. As mãos estavam cheias de campainhas azuis. — My lord! — A voz fina e ofegante transparecia prazer. Continuei imóvel com toda a dignidade à minha volta como um manto sob o qual o corpo todo fremia como o de um cavalo que sente o freio e a espora ao mesmo tempo. Imaginei se iria beijar-me a mão novamente e, se o fizesse, qual seria a minha reação. — Keri! O que está fazendo aqui? — Ora, colhendo campainhas azuis. — A inocência completa do seu olhar roubou às palavras a petulância. Ergueu-as, rindo-se para mim por trás delas. Deus sabia o que ela poderia estar vendo no meu rosto. Não, ela não ia beijar-me a mão. — Não sabia que deixei o convento de São Pedro? — Sim, disseram-me. Pensei que tivesse ido para outro. — Não, isso nunca. Eu odiava aquilo. Era como estar numa gaiola — Algumas moças gostavam, o convento fazia com que se sentissem seguras, mas a mim não. Não fui feita para aquela vida. — Tentaram fazer a mesma coisa comigo certa vez — disse eu. — Você fugiu também? — Oh, sim! Mas fugi antes que me trancassem. Onde está morando agora, Keri? Ela pareceu não ter ouvido a pergunta. — Você também não foi feito para aquela vida? Para estar algemado, quero dizer? — Não aquelas algemas. Vi que ela refletia sobre isso, mas eu próprio não sabia o que quisera dizer, de modo que me calei, observando-a sem pensar, sentindo apenas a intensa felicidade do momento. — Senti muito o que aconteceu à sua mãe — disse ela. — Muito obrigado, Keri. — Ela morreu assim que você partiu. Suponho que lhe tenham contado tudo? — Sim. Fui ao convento, assim que voltei a Maridunum. Ela permaneceu silenciosa por um momento, os olhos baixos. Apontou para o dedo do pé nu na

relva, um movimento ondulante e tímido que fez sacudir as maçãs douradas à sua cinta. — Eu sabia que você voltara. Toda a gente está falando nisso. — Está? Ela acenou. — Disseram-me na cidade que você era príncipe além de um grande mago... — Ela ergueu os olhos então, a voz sumindo como a duvidar, encarando-me. Eu usava a roupa mais velha que tinha, uma túnica com manchas de ervas, que nem mesmo Cadal conseguira remover, e meu manto estava esfiapado e rasgado pelos espinhos e sarças. Minhas sandálias eram de lona como as de um escravo; era inútil usar couro na relva alta e úmida. Mesmo comparado ao rapaz simplesmente vestido que ela vira antes, eu deveria parecer um mendigo. Perguntou, com a franqueza da inocência: — Você ainda é príncipe agora que sua mãe já não existe? — Sou. Meu pai é um Suserano. Seus lábios entreabriram-se. — Seu pai? O Suserano? Eu não sabia. Ninguém disse isso. — Pouca gente sabe. Mas agora que minha mãe está morta, não faz diferença. Sim, sou filho dele. — O filho de Suserano... — Ela se inspirou ao dizer isso, admirada. — E mago também. Sei que isso é verdade. — Sim. É verdade. — Você me disse uma vez que não era. Sorri. — Disse que não sabia curar dor de dentes. — Mas curou-a. — Assim falou você. Não acreditei. — O seu toque curaria qualquer coisa — disse ela, acercando-se de mim. A gola do vestido caía frouxa. Seu pescoço era alvo como as madressilvas. Sentia o seu perfume e o perfume das campainhas azuis e o do sumo agridoce das flores esmagadas entre nós. Estendi a mão e puxei a gola do vestido e o cordão desamarrou. Seus seios eram redondos, cheios e mais macios que qualquer coisa que eu já imaginara. Arredondaram-se nas minhas mãos como os peitos dos pombos de minha mãe. Creio que eu esperava que ela gritasse e afastasse de mim, mas ela aconchegou-se ardorosa, riu, passou as mãos por trás da minha cabeça, enterrou os dedos nos meus cabelos e mordeu-me a boca. Então subitamente largou todo o peso sobre mim, e ao estender as mãos para abraçá-la, mergulhando desajeitado num beijo, tropecei e caí ao chão, ela sob mim e as flores a espalharem-se à nossa volta com a queda. Levou-me algum tempo para compreender. A princípio foi riso e a respiração entrecortada e tudo o que incendeia a imaginação à noite, mas continuei a segurá-la firme e forte por causa de sua pequenez e dos ruídos doces que fazia quando eu a magoava. Era esguia como um colmo, delicada, e poder-se-ia pensar que aquilo me faria sentir como um duque no mundo, mas de repente ela emitiu um som gutural como se sufocasse e contorceu-se nos meus braços como eu vira um homem à morte contorcer-se em dores e sua boca ergueu-se como a golpear-me, comprimindo a minha. De repente era eu que sufocava; seus braços puxavam-me, sua boca sugava-me, seu corpo arrastava-me para aquela escuridão apertada e final, sem ar, sem luz, sem fôlego, sem murmúrio de espírito a despertar. Um túmulo dentro de outro túmulo. O medo queimou-me o cérebro como uma lâmina quente diante dos olhos. Abri-os e nada conseguia ver, exceto a luz rodopiante e a sombra da

árvore sobre mim, seus espinhos a rasgarem-se como lanças. Uma forma aterrorizante unhava-me o rosto. A sombra do espinheiro aumentava e estremecia, a boca da caverna escancarava-se e as paredes respiravam esmagando-me. Lutei para livrar-me e rolei para longe dela, transpirando de medo e vergonha. — O que foi? — Mesmo sua voz parecia surda. As mãos ainda moviam-se no espaço que eu ocupara. — Sinto muito, Keri. Sinto muito. — O que quer dizer? O que houve? — Virou a cabeça em meio a uma cascata de ouro. Seus olhos estavam apertados e nublados. Estendeu os braços para mim. — Oh, se é só isso, venha cá. Não faz mal, eu lhe mostro, venha cá. — Não. — Tentei afastá-la gentilmente, mas tremia. — Não, Keri. Deixe-me. Não. — O que aconteceu? — Seus olhos arregalaram-se de repente. Ergueu-se sobre os cotovelos. — Ora, acredito que nunca fez isso antes. Fez? Fez? Não respondi. Ela soltou uma gargalhada que pretendera ser alegre, mas saiu esganiçada. Rolou outra vez e estendeu as mãos. — Bem, não importa, pode aprender, não pode? Você é homem, afinal de contas. Pelo menos, pensei que era... — E numa fúria de impaciência. — Oh, pelo amor de Deus! Apresse-se, sim? Estou-lhe dizendo que tudo sairá bem. Apanhei-a pelos pulsos e segurei-a. — Keri, sinto muito. Não sei explicar, mas isto é... Não devo, é só o que sei. Não, ouça, dê-me um minuto. — Solte-me! Soltei-a e ela afastou-se, sentando-se. Os olhos pareciam zangados. Havia flores presas aos seus cabelos. Eu disse: — Não é por sua causa, Keri, não pense isso. Não tem nada a ver com você... — Não sou bastante boa para você, é isso? Porque minha mãe foi uma prostituta? — Foi? Eu nem sabia. — Sentia-me imensamente cansado, agora. Falei cauteloso: — Já disse que isso nada tem a ver com você. Você é linda, Keri, e a primeira vez que a vi senti... você deve saber o que eu senti. Mas isso nada tem a ver com o sentimento. É entre mim e... é algo a ver com o meu... — Parei. Não adiantava. Seus olhos observavam-me, brilhantes e vazios, e então ela voltou-se para um lado com brusquidão e começou a acertar o vestido. Em vez de "poder", terminei: — ... algo a ver com a minha mágica. — Mágica. — Fez beicinho como uma criança magoada. Amarrou a cinta, apertando-a, e começou a recolher as campainhas azuis caídas, repetindo despeitada: — Mágica. Acha que acredito na sua mágica tola? Pensa realmente que eu estava com dor de dentes naquela vez? — Não sei — respondi, desanimado. Pus-me de pé. — Bem, talvez não se precise ser homem para ser mágico. Deveria ter entrado para aquele convento, afinal.

— Talvez. — Uma flor estava presa aos seus cabelos e ela ergueu a mão para arrancá-la. Os fios finos de seda brilhavam à luz do sol como uma teia de aranha. Meu olhar caiu sobre a mancha azulada no seu pulso. — Você está bem? Machuquei-a? Ela nem respondeu, nem levantou os olhos. Afastei-me. — Bem, adeus, Keri. Tinha dado talvez uns seis passos quando sua voz me fez parar. — Príncipe... Voltei-me. — Ah, então entende? — disse ela. — Estou surpresa. Filho do Suserano, diz que é, e nem ao menos me deixa uma moeda de prata para pagar-me pelo vestido? Devo ter ficado parado encarando-a como um sonâmbulo. Ela atirou o cabelo dourado para trás com um movimento da cabeça e riu-se de mim. Como um cego apalpando-se, meti a mão na bolsa que trazia ao cinto e tirei uma moeda. Era de ouro. Dei um passo na sua direção para entregá-la. Ela curvouse para a frente ainda rindo, as mãos em concha como as de um mendigo. O vestido rasgado caía-lhe do lindo pescoço. Atirei-lhe a moeda e corri pela floresta. Seu riso acompanhou-me até que eu passasse a crista e descesse pelo vale seguinte, lançando-me de bruços à beira do rio e afogando o seu corpo e o seu perfume na corrente montanhosa que cheirava a neve.

9 Em junho, Ambrosius veio a Caerleon e mandou buscar-me. Parti sozinho, chegando à noite, muito depois da ceia, quando as lâmpadas já estavam acesas e o acampamento, silencioso. O Rei ainda trabalhava; vi os feixes de luz irradiando-se do quartel-general e o brilho do estandarte do dragão do lado de fora. Encontrava-me ainda a alguma distância quando ouvi um estremecer de armas e uma silhueta alta saiu. Reconheci Uther. Atravessou o caminho dirigindo-se a uma porta oposta à do Rei, mas com o pé já no primeiro degrau viu-me, parou e voltou. — Merlin! Então chegou! Demorou bastante, não? — O chamado foi urgente. Devo ir ao exterior, há coisas a fazer. Ele ficou imóvel. — Quem disse que deveria ir ao exterior? — Não se fala em outra coisa. É a Irlanda, não é? Dizem que Pascentius arranjou aliados perigosos lá e que Ambrosius quer destruí-los rapidamente. Mas por que eu? — Porque é o baluarte principal que ele quer destruir. Já ouviu falar de Killare? — Quem não ouviu? Dizem que é uma fortaleza que nunca foi tomada. — E dizem a verdade. Há uma montanha no centro da Irlanda,. de cujo cume se divisa toda a costa. E no alto dessa montanha há uma fortaleza, não de terra e paliçada, mas de pedras firmes. É por isso, meu querido Merlin, que precisamos de você. — Compreendo. Precisam de máquinas. — Precisamos de máquinas. Temos de atacar Killare. Se a tomamos, pode calcular que não teremos mais problemas por alguns anos. Então vou levar Tremorinus, e Tremorinus insiste em levar você. — Imagino que o Rei não vá. — Não. Agora preciso dar-lhe boa noite. Tenho negócios a tratar, senão eu o convidaria a entrar para esperar. Ambrosius está com o comando do acampamento, mas não creio que se demore muito. A isso, disse um "boa noite" bastante agradável e subiu a correr os degraus do alojamento, chamando o criado antes mesmo de cruzar a porta. Quase imediatamente, na porta do Rei ouviu-se mais um entrechocar de armas em saudação e o comandante do acampamento saiu. Sem me ver, parou para falar a uma das sentinelas e fiquei à espera até que terminasse. Um movimento atraiu-me a atenção, uma agitação furtiva de sombras, quando alguém surgiu de mansinho pela passagem estreita entre os prédios do lado oposto, onde Uther estava instalado. As sentinelas, ocupadas com o comandante, nada viram. Afastei-me da luz dos archotes, observando. Uma figura esguia, de capa e capuz. Uma moça. Alcançou o canto iluminado e parou, olhando em redor. Então, com um gesto mais de segredo que de medo, puxou o capuz para cobrir melhor o rosto. Era um gesto que eu reconhecia, assim como reconheci a onda de perfume de madressilva no ar e sob o capuz

os cachos de cabelo dourado à luz do archote. Fiquei parado. Imaginei por que ela me seguira até ali e o que esperava ganhar. Não creio que o que eu sentia fosse vergonha, não agora, mas sentia mágoa, e desejo ainda. Hesitei, dei um passo adiante e chamei. — Keri. Mas ela não me deu atenção. Esgueirou-se das sombras e com rapidez e leveza subiu correndo os degraus da porta de Uther. Ouvi a sentinela pedir a senha, então um murmúrio e o riso abafado do homem. Quando passei pela porta de Uther, esta se achava fechada. À luz da tocha vi o sorriso ainda no rosto da sentinela. Ambrosius continuava sentado à sua mesa, o criado discretamente a ocupar-se dele. Afastou os papéis para um lado e cumprimentou-me. O criado trouxe vinho, serviu-nos, e então retirou-se, deixando-nos a sós. Conversamos por algum tempo. Contou-me todas as notícias desde que eu deixara Winchester; a construção que progredira e os planos futuros. Conversamos sobre o trabalho de Tremorinus em Caerleon e, finalmente, chegamos ao assunto da guerra. Perguntei-lhe quais eram as últimas sobre Pascentius, pois, disse-lhe eu, temos estado todas as semanas à espera de ouvir que ele desembarcou no Norte e está devastando os campos. — Ainda não. De fato, se os meus planos derem resultado, talvez não ouçamos falar mais nada de Pascentius até a primavera, e então estaremos mais bem preparados. Se permitirmos que venha agora, talvez ele seja mais perigoso que qualquer inimigo que já tenhamos combatido até o momento. — Ouvi falar disso. Refere-se às notícias da Irlanda? — As notícias da Irlanda são ruins. Sabe que eles têm um rei novo, Gilloman? Um jovem dragão de fogo, ansioso por uma guerra. Bem, talvez tenha ouvido, dizem que Pascentius está noivo da irmã de Gilloman. Percebe o que isto poderia significar? Uma aliança como essa poderia pôr em risco todo o Norte e Oeste da Bretanha. — Pascentius está na Irlanda? Ouvimos dizer que estava na Germânia angariando apoio. — É verdade — disse ele. — Não consigo obter informação acurada sobre os seus efetivos, mas julgaria que tem uns vinte mil homens. Tampouco soube o que ele e Gilloman pretendem fazer. — Ergueu uma sobrancelha para mim, divertido. — Pode relaxar, rapaz, não o chamei aqui para pedir-lhe uma profecia. Fez-se muito claro em Kaerconan; contento-me em esperar, como você, pelo seu deus. Ri-me. — Eu sei. Quer-me para o que chama de trabalho de verdade. — De fato. É isso. Não me satisfaz esperar aqui na Bretanha enquanto a Irlanda e a Germânia reúnem forças para desembarcar ao mesmo tempo em ambas as costas como uma tempestade de verão e reunirem-se para dominar o Norte. A Bretanha está situada entre os dois agora, e pode dividi-los antes mesmo que combinem atacar. — E o senhor tomará a Irlanda primeiro? — Gilloman — disse, acenando a cabeça. — Ele é jovem e inexperiente, e está também mais

perto. Uther embarcará para a Irlanda antes do fim do mês. — Havia um mapa à sua frente. Virou-o um pouco para que eu pudesse ver. — Aqui. Este é o baluarte de Gilloman; deve ter ouvido falar, não duvido. É uma fortaleza na montanha chamada Killare. Não encontrei nenhum homem que a tivesse visto, mas ouvi dizer que é solidamente fortificada e pode ser defendida contra qualquer assalto. Disseram-me mesmo que jamais caiu. Ora, não podemos permitir que Uther se sente diante dela durante meses enquanto Pascentius entra pela porta dos fundos. Killare precisa ser tomada rapidamente e, pelo que dizem, isto não pode ser obtido pelo fogo. — Sim? — Eu já notara que havia desenhos meus sobre a mesa entre os mapas e os planos. Ele continuou pela tangente: — Tremorinus elogia-o muito. — É bondade dele. — E, saindo eu também pela tangente: — Encontrei Uther aí fora. Contou-me o que o senhor queria. — Então irá com ele? — Estou a seu serviço, naturalmente. Mas, senhor, — apontei para os desenhos, — não fiz desenhos novos. Tudo o que desenhei já foi construído aqui. E se não houver muita pressa... — Não, isso não. Não estou pedindo nada de novo. As máquinas que temos são boas e deverão servir. O que construímos já está pronto para embarque. Quero-o para algo mais que isso. — Fez uma pausa. — Killare, Merlin, é mais do que um baluarte, é um lugar sagrado, o lugar sagrado dos Reis da Irlanda. Dizem que o cume da montanha tem uma Dança de Pedras, um círculo como o que você conheceu na Bretanha. E em Killare, dizem, está o coração da Irlanda e o lugar sagrado do reino de Gilloman. Quero que você, Merlin, arrase o lugar sagrado e arranque o coração da Irlanda. Fiquei silencioso. — Falei disso a Tremorinus — continuou Ambrosius — e ele me disse que seria preciso mandar buscar você. Você irá? — Já disse que sim. Naturalmente. Ele sorriu e agradeceu-me, não como se ele fosse o Suserano e eu um vassalo obedecendo ao seu desejo, mas como se eu fosse um igual a fazer-lhe um obséquio. Conversou um pouco mais a respeito de Killare, o que ouvira falar e os preparativos que julgava precisar fazer e finalmente, recostando-se, comentou com um sorriso: — Uma coisa eu lamento. Vou a Maridunum e gostaria de ter a sua companhia, mas agora não há tempo para isso. Pode encarregar-me de quaisquer recados que queira. — Muito obrigado, mas não tenho nenhum. E, se estivesse lá, dificilmente ousaria oferecer-lhe a hospitalidade de uma gruta. — Eu gostaria de vê-la. — Qualquer um poderá indicar-lhe o caminho. Mas não é digna de receber um rei. Parei. Seu rosto estava iluminado por um riso que o fez parecer ter novamente vinte anos. Pousei a taça. _ Sou um tolo. Tinha-me esquecido. — De que foi gerado lá? Pensei que tinha esquecido. Posso encontrar o caminho, não se incomode. Falou então dos seus planos pessoais. Permaneceria em Caerleon "porque, se Pascentius atacar, meu palpite é que passará por aqui" — traçou uma linha no mapa com o dedo — "e posso apanhá-lo ao

sul de Carlisle. O que me leva ao assunto seguinte. Havia mais uma coisa sobre a qual eu queria conversar com você. Quando passou a última vez por Caerleon a caminho de Maridunum em abril, creio que teve uma conversa com Tremorinus, não? Aguardei. — É a respeito disso. — Ergueu um maço de desenhos — não meus — e entregou-mos. Não eram do acampamento nem mesmo de quaisquer prédios que eu tivesse visto. Havia uma igreja, um grande salão, uma torre. Estudei-os por alguns minutos em silêncio. Por alguma razão sentia-me cansado como se meu coração fosse pesado demais para mim. A lâmpada fumegava e empalidecia, projetando sombras pelos papéis. Controlei-me e olhei para o meu pai. — Compreendo. Deve estar falando de algum monumento? Ele sorriu. — Sou bastante romano para querer um monumento visível. Bati nos desenhos. — E bastante britânico para querê-lo britânico? Sim, ouvi falar disso também. — O que foi que Tremorinus comentou? — Que se pensava que viria a ser erigido algum monumento às suas vitórias e em comemoração ao seu reinado sobre o país unido. Concordei com Tremorinus em que construir um arco triunfal aqui na Bretanha seria absurdo. Ele disse também que alguns eclesiásticos queriam uma grande igreja... o bispo de Caerleon, por exemplo, desejava-a aqui. Mas certamente, senhor, isso não daria certo. Se a construir em Caerleon, terá Londres e Winchester, para não mencionar York, pensando que deveria ter sido lá. De todas, suponho eu, Winchester seria a melhor. É a sua capital. — Não. Já pensei nisso também. Quando vim de Winchester, passei por Amesbury... — Ele curvou-se de súbito para a frente. — O que houve, Merlin? Sente-se mal? — Não. A noite está quente, é só. Uma tempestade se aproximando, creio eu. Continue. Passou por Amesbury. — Sabia que era a minha cidade natal? Bem, pareceu-me que colocar o monumento lá não daria motivo a reclamações, e há outra razão por que seria uma boa escolha. — Ele franziu as sobrancelhas — Você está branco como uma folha de papel. Tem certeza de que está bem? — Perfeitamente. Talvez um pouco cansado. — Já jantou? Fui desatento em não indagar. — Comi no caminho, muito obrigado. Estou satisfeito. Talvez... mais um pouco de vinho. Comecei a erguer-me, mas antes que me pusesse de pé ele já se levantara e dava a volta à mesa com a jarra, servindo-me ele próprio. Enquanto eu bebia, parou onde estava, junto a mim, re-costado contra a borda da mesa. Lembrou-me vividamente de quando ele fizera a mesma coisa, naquela noite na Bretanha em que eu o descobri. Lembro-me de manter a imagem no pensamento, e em pouco tempo fui capaz de sorrir. — Estou bem, senhor, realmente estou. Por favor, continue. Dava-me a segunda razão para erigir o monumento em Amesbury. — Provavelmente você sabe que não muito longe de lá estão enterrados os mortos britânicos assassinados pela traição de Hengist, Acho que é apropriado... e homem algum discutirá isso... que o monumento à minha vitória e à unificação do reino sob um único rei deva ser também um monumento à

memória desses guerreiros. — Parou. — E poderia ainda dizer que há uma terceira razão, mais forte que as outras duas. Perguntei sem olhar para ele, mas para a taça de vinho, falando com suavidade: — Que Amesbury já é o local do maior monumento de toda a Bretanha? Possivelmente o maior de todo o Ocidente? — Ah! — Era uma exclamação de profunda satisfação. — Então seu pensamento também se volta para isso? Já viu a Dança dos Gigantes? — De Amesbury fui até lá, quando estava a caminho de casa, vindo de Winchester. Ele se ergueu e, contornando a mesa, voltou para sua cadeira. Sentou-se, curvou-se para a frente, as mãos pousadas na mesa. — Então sabe o que estou pensando. Viu o bastante quando morava na Bretanha para saber o que a Dança deve ter sido. E viu como está agora: um caos de pedras gigantescas num lugar ermo açoitado pelo sol e pelo vento. — Acrescentou mais lentamente observando-me: — Falei disso a Tremorinus. Ele diz que homem algum teria o poder de erguer aquelas pedras. Sorri. — Mandou buscar-me então para que as erguesse para o senhor? — Sabe que dizem que não foram homens que as ergueram, mas a magia. — Então, disse eu — certamente dirão isso outra vez. Seus olhos estreitaram-se. — Está-me dizendo que pode fazê-lo? — Por que não? Ele ficou silencioso, aguardando. O fato de não sorrir era a medida da fé que depositava em mim. Eu disse: — Oh, já ouvi as lendas que contam, as mesmas que eram contadas na Bretanha' Menor sobre as pedras aprumadas. Mas as pedras foram colocadas lá por homens, senhor. E o que homens colocaram uma vez, homens podem colocar de novo. — Então, se eu não disponho de um mágico, ao menos possuo um engenheiro competente? — Exato. — Como fará isso? — Até o momento sei menos da metade. Mas, se já foi feito antes, pode ser repetido. — Então fará isso para mim, Merlin? — Naturalmente. Não disse que estou aqui para servi-lo o melhor que puder? Reconstruirei a Dança dos Gigantes para o senhor. — Um símbolo forte para a Bretanha. — Ele falou pensativo agora, franzindo um pouco o cenho e fitando as mãos. — Quero ser enterrado ali, Merlin, quando chegar a minha hora. O que Vortigern queria fazer pela sua cidadela na escuridão farei pela minha na luz; terei o corpo do Rei da Bretanha sepultado sob as pedras, o guerreiro sob o portal da Bretanha. Alguém deve ter afastado as cortinas da porta. As sentinelas estavam fora de vista, o campo

silencioso. O portal de pedra com o dintel atravessado emoldurava uma noite azul pontilhada de estrelas. À nossa volta as grandes sombras agigantavam-se, as pedras imensas, ligadas como árvores entrelaçadas, em que mãos há muito transformadas em ossos tinham gravado os símbolos dos deuses do ar, da terra e da água. Alguém falava mansamente — uma voz de rei. A voz de Ambrosius. E já falava há algum tempo. E eu ouvi, Vagamente, como um eco na escuridão: — ... e enquanto o Rei jazer ali sob a pedra, o reino não cairá. Por tanto tempo e por mais tempo que antes, a Dança erguer-se-á outra vez, com a luz do céu vivo a iluminá-la. E eu trarei de volta a grande pedra para depositá-la sobre a sepultura, que será então o coração da Bretanha, e dali em diante os reis serão um só Rei e todos os deuses, um único Deus. E você viverá de novo na Bretanha por toda a eternidade, porque faremos entre nós um Rei cujo nome permanecerá por tanto tempo quanto a Dança se mantiver de pé, e ele será mais do que um símbolo: será um escudo e uma espada viva. Não era a voz do Rei; era a minha própria. O Rei estava imóvel, sentado do outro lado da mesa juncada de mapas, as mãos paradas e espalmadas sobre os papéis, os olhos escuros sob as sobrancelhas retas. Entre nós a lâmpada enfraquecia, tremeluzindo na corrente de ar que entrava por baixo da porta. Encarei-o e a minha visão foi clareando lentamente. — Que disse eu? Ele sacudiu a cabeça sorrindo e estendeu a mão para a jarra de vinho. Exclamei, irritado: — Isto me vem como um desmaio de moça grávida. Sinto muito. Conte-me o que eu disse. — Deu-me um reino. E deu-me a imortalidade. O que mais existe? Beba agora, profeta de Ambrosius. — Não vinho. Tem água? — Aqui. — Ele ergueu-se. — Agora precisa ir dormir e eu também. Parto cedo para Maridunum. Tem certeza de que não quer enviar nenhum recado? — Diga a Cadal para dar-lhe a cruz de prata com ametistas. Entreolhamo-nos em silêncio. Eu estava quase tão alto quanto ele. Disse-me, carinhoso: — Então, agora é adeus. — Como se diz adeus a um Rei a quem foi concedida a imortalidade? Ele lançou-me um olhar estranho. — Encontrar-nos-emos novamente? — Encontrar-nos-emos novamente, Ambrosius. Foi então que compreendi que eu profetizara a sua morte.

10 Killare, haviam-me dito, é uma montanha situada no centro exato da Irlanda. Há em outras partes da ilha montanhas que, embora não sejam tão grandes quanto as do nosso país, poderiam ainda merecer esse nome. Mas a colina de Killare não é uma montanha. É um outeiro suave e cônico, cujo pico não alcança, suponho eu, mais que cento e vinte metros. Nem ao menos é arborizada, mas coberta de relva e, aqui e ali, uma moita de espinheiros ou alguns carvalhos isolados. Mesmo assim, erguendo-se onde se ergue, adquire a estatura de uma montanha para aqueles que dela se aproximam, pois se encontra isolada, uma elevação única no centro de uma vasta planície. Em todas as direções, sem a menor ondulação, o país estende-se plano e verdejante: norte, sul, este, oeste — é tudo o mesmo. Mas, não é verdade que se possa divisar toda a costa do seu topo; existe apenas uma vista interminável para todos os lados de um país verde e suave coberto por um céu nublado. Até o ar é ameno, ali. Apanhamos ventos favoráveis e desembarcamos numa praia comprida e cinzenta numa manhã aprazível de verão com a brisa soprando da terra perfumada de mirta, tojos e relva úmida de sal. Os cisnes selvagens singravam os lagos, acompanhados de cisnezinhos, e os pavoncinos gritavam e corriam aos tropeções pela campina onde os filhotes se aninhavam entre os colmos. Não era o tempo, nem o país, pensar-se-ia, para uma guerra. E, de fato, a guerra logo terminou. Gilloman, o Rei, era jovem — diziam que tinha menos de dezoito anos — e não queria dar ouvidos aos seus conselheiros e esperar o momento certo para enfrentar o nosso ataque. Tão exaltado era o seu coração, que às primeiras notícias do desembarque de tropas estrangeiras no solo sagrado da Irlanda, o jovem Rei reuniu seus guerreiros e lançou-os contra as tropas experimentadas de Uther. Encontraramnos numa planície com uma montanha às nossas costas e um rio à deles. As tropas de Uther agüentaram o primeiro embate selvagem e corajoso sem ceder nem um passo do terreno, e então, por sua vez, avançaram com firmeza, atirando os irlandeses no rio. Felizmente para eles, era uma corrente larga e rasa e, embora se tenha tingido de vermelho aquela noite, muitas centenas de irlandeses escaparam. Gilloman, o Rei foi um deles, e quando soubemos que fugira para oeste com uni punhado de seguidores leais, Uther, adivinhando que ele se dirigia a Killare, enviou uma tropa montada de cem soldados ao seu encalço com instruções para apanhá-lo antes que alcançasse os portões. Isto fizeram, alcançando-o a menos de meia milha da fortaleza, ao pé da montanha e já à vista das muralhas. A segunda batalha foi curta e mais sangrenta que a primeira. Mas teve lugar à noite e, na confusão, Gilloman escapou mais uma vez e fugiu a galope com um punhado de homens. Desta vez ninguém soube para onde. Mas a coisa estava feita: na altura em que nós, o corpo principal do exército, chegamos ao sopé do monte Killare, as tropas britânicas já estavam de posse da fortaleza e os portões encontravam-se abertos. Muita tolice foi dita sobre o que aconteceu a seguir. Eu próprio ouvi algumas das canções e até li um relato transcrito para um livro. Ambrosius fora mal informado. Killare não era reforçada com grandes pedras: as fortificações externas eram as usuais de terra e paliçadas por trás de um largo fosso. No interior havia um segundo fosso, profundo, guarnecido de espigões. A fortaleza central era de fato de pedra, e das grandes, mas nada de que uma equipe normal, com as máquinas adequadas, não pudesse dar conta. No interior das paredes da fortaleza, havia casas, na sua maior parte construídas de madeira, mas também alguns pontos subterrâneos reforçados, como temos na Bretanha. Mais para o alto, um círculo interior, uma parede em torno do cume do monte como uma coroa na testa de um rei. E por dentro disso, no próprio centro e eixo da montanha, o lugar sagrado. Ali estava a Dança, o círculo de pedras que se dizia conter o coração da Irlanda. Não podia ser comparado à Grande Dança de Amesbury. Era apenas um

círculo de pedras isoladas, bastante imponentes, que se erguiam ainda firmes, a maior parte delas intactas. Havia ainda duas pedras aprumadas perto do centro, onde jaziam outras, aparentemente sem um traçado definido, na relva alta. Subi até lá naquela mesma noite, sozinho. A montanha parecia viva com a agitação e o vozerio, que se haviam tornado familiares a mim desde Kaerconan, como resultado da batalha. Mas, quando atravessei a muralha que cercava o lugar sagrado e emergi no alto da colina, era como se tivesse deixado a algazarra de um salão para a quietude de um quarto numa torre. Os sons dissipavam-se sob as paredes, e quando eu subia pela relva alta de verão havia quase silêncio, e eu estava só. Uma lua redonda erguia-se no horizonte, pálida ainda, apagada pelas sombras, e fina numa das bordas como uma moeda gasta. Havia um punhado de pequenas estrelas, e aqui e ali estrelas pastoras a arrebanhá-las. Do lado oposto à lua uma grande estrela solitária brilhava, com uma luz branca. As sombras alongavam-se suaves sobre a relva. Uma pedra alta erguia-se isolada, um pouco tombada para o leste. Pouco adiante, uma cova e mais além novamente uma pedra redonda que parecia negra à luz da lua. Havia alguma coisa ali. Parei. Nada a que eu pudesse dar nome, mas a própria pedra, velha e preta, parecia uma criatura escura, agachada ali na beira da cova. Senti um arrepio percorrer-me o corpo e voltei-me. Aquilo, eu não iria perturbar. A lua subia comigo e, quando entrei no círculo, ergueu seu disco claro sobre as pedras de cima, iluminando todo o centro. Meus passos estalavam secos e quebradiços sobre um trecho do solo onde recentemente tinham acendido fogueiras. Vi as formas brancas dos ossos e uma pedra plana do formato de um altar. A claridade da lua deixava perceber os entalhes a um lado, formas grosseiras e retorcidas de cordas ou serpentes. Curvei-me para passar um dedo por elas. Próximo, um rato correu pela relva guinchando. Nenhum outro som. A coisa era limpa, morta e ímpia. Deixei-a, movendo-me vagarosamente entre as sombras produzidas pela lua. Havia outra pedra, abobadada como uma colméia ou uma pedra estufada. E ali um menir caído, o mato quase a cobri-lo. Ao passar por ele, ainda na minha busca, uma ondulação produzida pelo vento correu pela relva, toldando as sombras e empalidecendo a lua como uma névoa. Prendi o pé em alguma coisa, tropecei e caí de joelhos na extremidade de uma pedra longa e plana quase oculta pela relva. Minhas mãos apalparam-na. Era maciça, oblonga, sem entalhes, apenas uma grande pedra natural sobre a qual incidia agora o luar. Não havia necessidade do frio nas minhas mãos, do assovio da relva seca sob uma rajada súbita de vento, do perfume das margaridas para dizer-me que aquela era a pedra. Ao meu redor, como dançarinos afastando-se de um ponto central, as pedras erguiam-se negras e silenciosas. De um lado a lua branca, do outro o astro-rei, luzindo branco. Levantei-me lentamente e fiquei ali junto à pedra longa como alguém que estivesse ao pé de uma cama, à espera de que um homem morresse. Foi o calor que me acordou, o calor e as vozes dos homens ao meu redor. Levantei a cabeça. Estava meio ajoelhado, meio deitado com os braços e a parte superior do corpo estendidos ao longo da pedra. O sol da manhã ia alto e incidia diretamente sobre o centro da Dança. A névoa erguia-se da relva úmida e suas guirlandas brancas ocultavam a parte mais baixa das encostas da montanha. Um grupo de homens passara por entre as pedras da Dança e encontrava-se de pé ali, murmurando e observando-me. Quando pisquei os olhos, movendo os membros entorpecidos, o grupo dividiu-se e Uther surgiu, seguido de meia dúzia dos seus oficiais, entre os quais se achava Tremorinus. Dois soldados empurravam entre si o que obviamente deveria ser um prisioneiro irlandês; as mãos deste estavam atadas e ele apresentava um talho na face onde o sangue secara, mas o homem sustinha-se bem e pensei que os que o guardavam pareciam mais amedrontados do que ele próprio.

Uther parou ao ver-me, e em seguida atravessou o círculo enquanto eu me punha de pé. Os efeitos da noite deveriam transparecer no meu rosto, pois no grupo de oficiais atrás dele percebi o olhar a que já me acostumara de homens a um só tempo desconfiados e admirados, e mesmo Uther falou num tom um pouco alto demais. — Como então sua mágica é tão forte quanto a deles! A claridade era forte demais para os meus olhos. Ele parecia vivido e irreal como uma imagem refletida na água corrente. Tentei falar, pigarreei e experimentei outra vez. — Ainda estou vivo se é o que quer dizer. Tremorinus disse, rouco: — Não há outro homem no mundo que pudesse passar a noite aqui. — Com medo da pedra negra? Vi a mão de Uther mover-se num gesto involuntário como se tivesse saltado sozinha para fazer o sinal. Percebeu que eu vira e pareceu zangado. — Quem lhe falou da pedra negra? Antes que eu pudesse responder, o irlandês exclamou: — Você viu? Quem é você? — Meu nome é Merlin. Ele assentiu lentamente. Continuava a não demonstrar receio ou admiração. Leu meu pensamento e sorriu como a dizer "Você e eu podemo-nos cuidar sozinhos.” — Por que o trazem aqui assim? — perguntei-lhe. — Para dizer-lhe qual é a pedra-rei. Uther disse: — Ele já nos disse. É o altar entalhado ali adiante. — Deixem-no ir. Não têm necessidade dele. E deixem o altar em paz. Esta é a pedra. Houve uma pausa. Então o irlandês riu-se. — Pela fé, se vocês trazem o próprio mago do Rei, que esperanças pode ter um pobre poeta? Estava escrito nas estrelas que você a levaria, e, de fato, nada é mais justo. Essa pedra não tem sido o coração da Irlanda, mas a sua maldição e talvez a Irlanda esteja melhor em vê-la partir. — Como assim? — indaguei. E então para Uther: — Mande soltá-lo. Uther acenou e os homens soltaram as mãos do prisioneiro. Ele esfregou os pulsos, sorrindo para mim. Pensar-se-ia que estávamos os dois a sós na Dança. — Dizem que em tempos passados a pedra saiu da Bretanha, das montanhas do oeste à vista do Mar Irlandês e que o grande Rei de toda a Irlanda, Fionn Mac Cumhaill era seu nome, carregou-a nos braços certa noite, atravessou o mar até a Irlanda e colocou-a aqui. — E agora — disse eu — eu a levo de volta para a Bretanha um pouquinho mais penosamente. Ele riu-se. — Eu teria pensado que um grande mago como você a apanharia com uma só mão. — Eu não sou Fionn — respondi. — E agora, se você for um poeta sensato, voltará para sua casa e para a sua harpa e não fará mais guerras, mas uma canção sobre a pedra, e como Merlin, o feiticeiro,

retirou a pedra da Dança de Killare e a levou suavemente para a Dança das Pedras Pendentes de Amesbury. Ele saudou-me, rindo ainda, e partiu. E de' fato atravessou a salvo o campo e saiu, pois anos mais tarde ouvi a canção que compusera. Mas agora sua partida quase não foi notada. Fez-se uma pausa enquanto Uther franzia o cenho para a grande pedra, parecendo pesá-la na mente. — Você disse ao Rei que poderia fazer isso? É verdade? — Eu afirmei ao Rei que o que homens haviam trazido para cá homens poderiam levar. Ele olhou-me com o sobrolho carregado, incerto, ainda um pouco zangado. — Ele disse-me o que você falou. Concordo. Não é preciso mágica e palavras bonitas, mas apenas uma equipe de homens competentes com máquinas apropriadas. Tremorinus! — Senhor! — Se levarmos essa aí, a pedra-rei, não há necessidade de nos preocuparmos muito com as restantes. Derrube-as onde puder e deixe-as aí. — Sim, senhor. Se eu pudesse ter Merlin... — A equipe de Merlin estará trabalhando nas fortificações. Merlin, comece logo, sim? Dou-lhe vinte e quatro horas. Aquilo era uma coisa na qual os homens estavam práticos; derrubamos as paredes e enchemos os fossos com elas. Quanto às paliçadas e casas, muito simplesmente, ateamos-lhes fogo. Os homens trabalhavam bem e com ânimo. Uther era sempre generoso com suas tropas e havia bens em quantidade para saquear: braceletes de cobre, bronze e ouro, broches e armas bem feitas e engastadas de cobre e esmalte como fazem os irlandeses. O trabalho estava terminado ao anoitecer e retiramo-nos da montanha para o acampamento provisório que fora montado na planície ao pé da encosta. Foi depois da ceia que Tremorinus veio ter comigo. Eu podia ver archotes e fogueiras ainda no topo da montanha, a projetarem em relevo o que restara da Dança. Seu rosto estava sujo e ele parecia cansado. — O dia todo — disse, amargurado. — E só conseguimos erguê-la alguns centímetros, e há meia hora atrás as escoras racharam e ela caiu de volta no leito. Por que diabos foi sugerir aquela pedra? O altar do irlandês teria sido mais fácil. — O altar do irlandês não teria servido. — Bem, pelos deuses, parece que não vai conseguir aquela, tampouco. Olhe, Merlin, não me importo com o que ele diz, estou encarregado dessa tarefa e peço-lhe que venha dar uma olhada. Venha, por favor. O resto foi o que originou as lendas. Seria tedioso agora relatar como fizemos, mas foi bastante fácil: eu tivera o dia todo para pensar no assunto, tendo observado a pedra e a encosta, e trazendo na memória as máquinas desde a Bretanha. Onde foi possível, transportamo-la pela água, descendo o rio de Killare até o mar, daí para Gales e ainda até onde pudemos pelo rio, usando os dois grandes Avons com pouco mais de uma dezena de milhas a separá-los. Eu não era o Fionn do braço forte, mas, sim, Merlin e a grande pedra viajou para casa tão suavemente quanto uma barcaça em águas tranqüilas, comigo ao

seu lado todo o tempo. Suponho que eu deva ter dormido durante o percurso, mas não consigo lembrar-me disso. Segui acordado como alguém no leito de morte e naquela viagem, entre todas as de minha vida, não senti uma só vez o movimento do mar, mas permaneci sentado, dizem-me, calmo e calado como se estivesse na minha cadeira em casa. Uther veio uma vez falar comigo aborrecido, suponho, por ter eu executado com tanta facilidade o que os seus engenheiros não haviam conseguido, mas foi-se embora depois de alguns instantes e não voltou a se aproximar de mim. Não me lembro de nada disso. Creio que eu não estava presente. Observava imóvel, entre o dia e a noite, o grande quarto de Winchester. As notícias alcançaram-nos em Caerleon. Pascentius atacara pelo norte com sua força composta de aliados germânicos e saxões e o Rei marchara para Carlisle, derrotando-o ali. Mas, depois, já a salvo em Winchester, caíra doente. Acerca disso os boatos eram muitos. Alguns diziam que os homens de Pascentius tinham penetrado, disfarçados, em Winchester, onde Ambrosius guardava o leito com um resfriado, e lhe haviam dado veneno a beber. Outros diziam que os homens eram de Eosa. Mas a verdade era a mesma: o Rei estava muito mal em Winchester. O astro-rei ergueu-se novamente aquela noite, parecendo, disseram os homens, um dragão de fogo acompanhando qual fumaça uma nuvem de estrelas menores. Mas eu não precisava de sinal algum para dizer-me o que já sabia desde aquela noite na crista do Killare, quando jurara carregar da Irlanda a grande pedra para depositá-la na sua sepultura. Assim foi que trouxemos a pedra de volta a Amesbury e eu reergui os círculos caídos da Dança dos Gigantes nos lugares primitivos para o seu monumento. E na Páscoa seguinte, na cidade de Londres, Uther Pendragon foi coroado Rei.

Livro 5 - A VINDA DO URSO

1 Disseram mais tarde que o grande meteoro que apareceu no dia da morte de Ambrosius e do qual Uther tirou o nome real de Pendragon foi um presságio funesto para o novo reino. E de fato, a princípio, tudo parecia estar contra Uther, como se a queda da estrela de Ambrosius fosse um sinal para os seus velhos inimigos rebelarem-se de novo e avançarem de todos os cantos escuros da terra para destruir o seu sucessor. Com a morte de Ambrosius, Octa, filho de Hengist, e Eosa, seu primo, considerando-se livres da promessa de permanecer ao norte das suas fronteiras, convocaram as forças que puderam para um ataque, e assim que a convocação foi expedida, todos os elementos malquerentes sublevaram-se também. Guerreiros germânicos cobiçosos de terras e saque reapareceram, os restos dos saxões de Pascentius reuniram-se aos irlandeses de Gilloman em fuga e a todos os outros britânicos que se julgavam preteridos pelo novo Rei. Algumas semanas depois da morte de Ambrosius, Octa, com um grande exército, devastava o Norte como um lobo e, antes que o Rei pudesse aparecer para enfrentá-lo, destruía cidades e fortalezas desde a Muralha de Adriano até York. Em York, a cidadela de Ambrosius, ele encontrou os muros em bom estado, os portões fechados e os homens dispostos a defenderem-se. Arrastou as máquinas de assédio que possuía e instalou-se para esperar. Devia saber que Uther o alcançaria ali, mas seus efeitos eram tais que não demonstrava receio algum pelos britânicos. Mais tarde calcularam que possuísse trinta mil homens. Seja como for, quando Uther surgiu para levantar o cerco com os homens que conseguira reunir, os saxões excediam os britânicos para mais de dois por um. Foi um encontro sangrento e desastroso. Eu próprio achei que a morte de Ambrosius abalara o reino; com toda a reputação brilhante de Uther como soldado, este ainda não provara possuir qualidades de comandante supremo e já era sabido que não possuía a calma e o julgamento do irmão em face das probabilidades. O que lhe faltava em sabedoria era compensado pela bravura, mas nem mesmo isso poderia superar as dificuldades que enfrentou aquele dia em York. Os britânicos tiveram suas linhas rompidas e fugiram sendo salvos apenas pela chegada da noite que àquela altura do ano ocorria cedo. Uther, com Gorlois de Cornwall, seu segundo em comando, conseguiu reunir as forças que restavam no alto de um pequeno monte chamado Damen. Era bastante íngreme e oferecia certa forma de proteção, como penhascos, grutas e um bosque denso de aveleiras, mas que representava apenas um refúgio temporário contra as hostes saxônicas que em triunfo cercavam a base da montanha à espera do amanhecer. Era uma posição desesperada a dos britânicos e exigia medidas desesperadas. Uther, sombrio, acampou numa gruta, reuniu os capitães fatigados enquanto os homens arrebanhavam o resto que encontravam, e discutiram exaustivamente um plano para lograr o grande exército que os esperava no sopé da montanha. A princípio ninguém pensava em nada, exceto na necessidade de escapar, mas alguém, ouvi mais tarde dizer que foi Gorlois, apontou que recuar mais seria apenas adiar a derrota e a destruição do novo reino; se a fuga era possível, o ataque também o era, e este parecia viável se os britânicos não esperassem até clarear o dia, mas usassem o elemento surpresa que poderia haver num ataque morro abaixo encoberto pela escuridão e muito antes do que pensava o inimigo. Tática simples na realidade, que os saxões poderiam ter esperado de homens tão desesperadamente acuados, não fossem, os saxões, guerreiros pouco inteligentes e, como já comentei, faltos de disciplina. Era quase certo que não esperavam movimento algum antes da alvorada e dormiram profundamente onde se haviam deitado aquela noite, confiantes na vitória, e com alguma sorte três quartos bêbedos com o estoque que traziam. Para fazer justiça aos saxões, Octa postara batedores e estes estavam bem acordados. Mas o plano

de Gorlois deu certo, auxiliado pela neblina que antes do amanhecer se erguia como um véu das terras baixas que circundavam a montanha. Em meio a isso, gigantescos, e em número ilusório, os britânicos desceram silenciosos, atacando rápidos no primeiro momento de luz suficiente para ver o caminho por entre os penhascos. As sentinelas saxônicas que não foram mortas em silêncio deram o alarme, mas tarde demais. Os guerreiros acordavam praguejando, agarrando as armas onde as haviam deixado, mas os britânicos, quebrado o silêncio, lançaram-se aos gritos aos inimigos meio adormecidos, liquidandoos. Terminou tudo antes do meio-dia, e Octa e Eosa foram aprisionados. Antes do inverno, com o Norte livre dos saxões e os compridos barcos queimados ainda a fumegar lentamente nas praias, Uther regressou a Londres com os prisioneiros atrás de grades, para preparar-se para a coroação na primavera seguinte. Sua batalha contra os saxões, a quase-derrota e subseqüente vitória brilhante e eficiente, era tudo de que o reino precisava. Os homens esqueceram a calamidade da morte de Ambrosius e falavam do novo Rei como de um sol que raiava. Seu nome estava na boca de todos, desde os nobres e guerreiros que o cercavam em busca de presentes e honrarias até os trabalhadores que construíam seus palácios e mesmo as damas da corte que exibiam vestidos como campos de papoulas de uma cor chamada vermelho Pendragon. Vi-o apenas uma vez naquelas primeiras semanas. Encontrava-me ainda em Amesbury, superintendendo o trabalho da construção da Dança dos Gigantes. Tremorinus estava no Norte, mas tinha sob o meu comando uma boa equipe, e depois da sua experiência com a pedra-rei em Killare, os homens estavam ansiosos para atacar as pedras maciças da Dança. Para erguer as verticais, uma vez alinhadas as pedras, cavadas as covas e enterradas as guias, não havia nada que não pudesse ser feito com uma corda, uma cábrea e fio-de-prumo. Era nos grandes dintéis que residiam as dificuldades, mas o milagre da construção da Dança já fora realizado há milhares de anos pelos velhos artesãos que entalharam aquelas pedras gigantescas para encaixarem umas nas outras como a madeira preparada por um mestre carpinteiro. Só precisávamos descobrir o meio de erguê-las. Era nisso que me havia exercitado todos aqueles anos desde que vira pela primeira vez os dolmens da Bretanha Menor e começara a calcular. Tampouco havia esquecido o que aprendera nas canções. No fim, eu desenhara um berço de madeira do tipo que um engenheiro moderno teria considerado tosco mas que — como testemunhou o meu cantador — já executara esse trabalho antes e o faria de novo. Era uma tarefa morosa, mas funcionava. E suponho que era uma visão maravilhosa apreciar aqueles imensos blocos erguerem-se passo a passo, assentando finalmente nos seus leitos tão suavemente como se tivessem sido fabricados de sebo. Foram precisos duzentos homens para mover cada pedra, equipes treinadas que trabalhavam em grupos marcando o ritmo como fazem os remadores, com música. O ritmo do movimento era, naturalmente, estabelecido pelo trabalho, e as músicas eram velhas canções que eu me lembrava da infância; minha ama costumava cantá-las, mas nunca com as palavras que os homens às vezes lhes emprestavam. Essas eram vivas, indecentes e intensamente pessoais, na sua maioria referentes às pessoas em altos cargos. Nem Uther nem eu fomos poupados, embora as canções não fossem entoadas deliberadamente para que eu as ouvisse. Além disso, quando havia gente de fora presente, as palavras ou eram corretas ou ininteligíveis. Ouvi dizer, muito tempo depois, que eu movera as pedras da Dança por meio de magia e de música. Suponho que poderíamos aceitar ambas como verdadeiras. Tenho pensado, desde então, que deve ter sido assim que se originou a história de que Febo Apoio construiu com música as muralhas de Tróia. Mas a magia e a música que moveram a Dança dos Gigantes eu as compartilhava com o cantador cego de Kerrec. Por volta dos meados de novembro as geadas tornaram-se fortes e o trabalho terminou. A última fogueira do acampamento foi apagada e a última carroça de homens e materiais rolou para o sul, de volta a Sarum. Cadal partira à minha frente para Amesbury. Demorei um pouco mais, segurando o meu cavalo desassossegado, até que o último

vagão desapareceu de vista na borda da planície e fiquei só. O céu cobria a planície silenciosa como uma abóbada de alpaca. Ainda era cedo, e a relva estava coberta de geada branca. O sol pálido de inverno pintava sombras alongadas nas pedras ligadas. Lembrei-me da pedra aprumada, da geada branca, do touro e do sangue e do jovem deus sorridente de cabelos claros. Baixei os olhos para a pedra. Haviam-no enterrado, eu sabia, com a espada na mão. Disse-lhe: — Voltaremos, nós dois, no solstício de inverno. Então saí, montei o cavalo e parti para Amesbury.

2 Chegaram notícias de Uther em dezembro: deixara Londres rumo a Winchester para o Natal. Enviei-lhe uma mensagem, não recebi resposta e parti mais uma vez com Cadal para o local onde a Dança dos Gigantes se erguia coberta de gelo, solitária no centro da planície. Estávamos a vinte de dezembro. Numa depressão do solo, logo adiante da Dança, amarramos nossos cavalos e acendemos uma fogueira. Receara que a noite fosse nublada, mas estava fria e clara com estrelas em grande quantidade, como grãos de poeira ao luar. — Veja se consegue dormir um pouco, apesar do frio — disse Cadal. — Acordarei você antes do amanhecer. O que o faz pensar que ele virá? — E quando não respondi: — Bem, você é o mago, deve saber. Aqui, no caso de sua magia não conseguir fazê-lo adormecer, é melhor agasalhar-se com mais uma capa. Eu o acordarei em tempo, não se preocupe. Obedeci, enrolando-me nas duas capas de lã, e deitei-me junto à fogueira com a cabeça sobre a sela. Cochilei mais do que dormi, consciente dos pequenos ruídos da noite, cercado pela vastidão silenciosa da planície; os estalidos do fogo, Cadal pondo novos gravetos para mantê-lo aceso, o arrancar contínuo da relva pelos cavalos que pastavam perto, o pio da coruja caçando no céu da noite. E então, pouco antes do amanhecer, o som que eu esperava: as pancadas firmes na terra sob a minha cabeça denunciando a aproximação de cavalos. Sentei-me. Cadal, de olhos vermelhos, falou lentamente: — Ainda tem uma hora pelos meus cálculos. — Não faz mal. Já dormi. Ponha o ouvido no chão e diga-me o que ouve. Ele abaixou-se, escutou talvez durante cinco pulsações, então ergueu-se e correu para os nossos cavalos. Os homens reagiam rapidamente naqueles dias ao som de cavaleiros à noite. Parei-o. — Está tudo bem. É Uther. Quantos cavalos você calcula? — Vinte, talvez trinta. Tem certeza? — Toda. Agora sele os cavalos e fique com eles. Vou entrar. Era aquela hora, entre a noite e a manhã, em que tudo fica muito quieto. Eles vinham a galope. Toda a planície gelada parecia sacudir com o tropel. A lua desaparecera. Esperei junto a uma pedra. Ele deixou a escolta a alguma distância e prosseguiu apenas com um companheiro. Eu não pensava que ele já me tivesse visto, embora devesse ter percebido o brilho amortecido da fogueira de Cadal. A noite estava bastante clara com o brilho das estrelas. Eles cavalgavam sem archotes e sua visão noturna era boa. Os dois vinham num meio-galope acelerado diretamente para o círculo exterior da Dança, e a princípio pensei que entrariam a cavalo por ela. Mas os cavalos pararam resvalando e partindo o gelo, e o Rei desmontou. Ouvi um tilintar quando atirou as rédeas ao companheiro. "Mantenha-o em movimento", ouvi-o dizer, e então se aproximou, uma sombra apressada entre as enormes sombras da Dança. — Merlin?

— My lord? — Você escolhe horas estranhas. Tinha que ser no meio da noite? Ele parecia bem acordado e não menos gentil que o normal. Mas viera. — O senhor queria ver o que foi feito aqui e esta é a noite em que posso mostrar-lhe. Estou agradecido porque tenha vindo. — Mostrar-me o quê? Uma visão? É mais um dos seus sonhos? Previno-o... — Não. Não há nada disso aqui, não agora. Mas há algo que queria que o senhor visse e só pode ser apreciado esta noite. Para isso, receio que tenhamos de esperar um pouco mais. — Muito mais? Está frio 1 — Não muito, my lord. Até o amanhecer. Entre mim e ele encontrava-se a pedra-rei, e à luz fraca das estrelas vi que olhava para ela de cabeça baixa, a mão alisando o queixo. — A primeira vez em que você esteve ao lado desta pedra de noite, dizem que teve visões. Agora contaram-me em Winchester que quando ele estava morrendo, falou com você como se estivesse presente no seu quarto, postado aos pés da cama. É verdade? — É. Sua cabeça voltou-se bruscamente. — Você diz que sabia em Killare que meu irmão estava à morte, e no entanto nada me disse? — Não adiantaria nada. O senhor não poderia ter voltado mais cedo por sabê-lo doente. Como foi, fez uma viagem com a mente tranqüila e em Caerleon, quando ele morreu, informei-o. — Pelos deuses, Merlin, não lhe cabia julgar se deveria falar ou não! Você não é o Rei. Deveria ter-me dito. — Tampouco o senhor era rei, Uther Pendragon. Agi conforme ele ordenou. Vi-o fazer um movimento rápido e aquietar-se. — Isto é fácil de dizer. — Mas pelo tom da voz eu sabia que ele acreditava, e respeitava a mim e ao lugar. — E agora que estamos aqui à espera do amanhecer, e do que quer que deseje mostrar-me, acho que uma ou duas coisas precisam ficar claras entre nós. Não pode servir-me como serviu ao meu irmão. Precisa saber disso. Não quero nenhuma das suas profecias. Meu irmão estava errado quando disse que poderíamos trabalhar juntos pela Bretanha. As nossas estrelas não combinam. Admito que o julguei com dureza na Bretanha e em Killare; sinto muito, mas agora já é tarde. Seguimos caminhos diferentes. — Sim. Eu sei. Disse isso sem nenhuma ênfase especial, simplesmente concordando, e fiquei surpreso quando ele riu baixinho para si mesmo. Uma mão, não sem carinho, pousou-me no ombro. — Então compreendemos um ao outro. Eu não pensava que seria tão fácil. Se soubesse como isso é animador, depois de passar semanas com homens exigindo auxílio, arrastando-se a pedir clemência, suplicando favores... E agora o único homem no reino que tem realmente algum direito sobre mim segue o próprio caminho e deixa-me seguir o meu! — Naturalmente. Os caminhos se cruzarão, mas não de pronto. Então trabalharemos juntos, quer

queiramos ou não. — Veremos. Você tem poder. Admito-o, mas de que me serve isso? Não preciso de sacerdotes. — Sua voz era firme e amistosa, como se desejasse afastar a estranheza da noite. Ele era terra-a-terra, era Uther. Ambrosius teria compreendido o que eu dizia, mas Uther já estava de volta à trilha humana como um cão farejando sangue. - Parece que já me serviu bastante bem em Killare e aqui com as Pedras Pendentes. Merece alguma coisa de mim, quando mais não fosse por isso. — Onde possa, estarei ao seu serviço. Se me quiser, sabe onde encontrar-me. — Não na minha corte? — Não. Em Maridunum. É o meu lar. — Ah, sim, a famosa gruta! Você merece um pouco mais, penso eu. — Não há nada que eu queira — respondi-lhe. Havia um pouco mais de claridade agora. Vi-o lançar-me um olhar de esguelha. — Falei com você esta noite, como nunca falei a homem algum. Condena-me pelo passado, Merlin bastardo? — Nada tenho contra o senhor, my lord. — Nada? — A moça em Caerleon. Poderia chamá-la de nada. Vi-o arregalar os olhos. — Quando? — Não importa. Já terá esquecido, de qualquer forma. — Pelo cão, eu o julguei mal. — Falou o mais calorosamente que eu já o tinha visto falar. Se ele soubesse, pensei, ter-se-ia rido. — Digo-lhe que não faz mal. Não fez então, e menos ainda agora. — Ainda não me disse por que me arrastou até aqui a esta hora. Olhe para o céu; está amanhecendo e ainda bem, os cavalos estão-se resfriando. — Ergueu a cabeça na direção do leste. — Deverá fazer um dia bonito. Será interessante constatar que espécie de trabalho você fez aqui. Posso dizer-lhe agora que Tremorinus insistia, até a hora em que recebi sua mensagem, que não poderia ser feito. Profeta ou não, você tem a sua utilidade, Merlin. A luz aumentava e as trevas recuavam, cedendo-lhe passagem. Eu o via mais claramente agora, de pé, a cabeça erguida, a mão mais uma vez alisando o queixo. — Foi melhor que o senhor tivesse vindo à noite para que eu reconhecesse sua voz. Não o teria reconhecido à luz do dia. Deixou crescer a barba. — Pareço mais rei, não? Não houve tempo para mais durante a campanha. Quando chegamos a Humber... — Começou a contar-me, falando pela primeira vez, desde que eu o conhecera, à vontade e naturalmente. Talvez fosse porque agora eu era de todos os seus vassalos o único parente, e o sangue fala ao sangue, dizem-Relatou a campanha no Norte, a luta, a destruição fumegante que os saxões haviam deixado à sua passagem. — E agora, passaremos o Natal em Winchester. Serei coroado em Londres na primavera, e já... — Espere. — Eu não pretendia interrompê-lo, mas havia coisas a me pressionarem, o peso do céu, a luz ofuscante. Não havia tempo para procurar palavras que pudessem ser usadas como um rei. Disse

rapidamente: — Está vindo agora. Fique ao meu lado aos pés da pedra. Afastei-me um passo e postei-me ao pé da comprida pedra-rei, de frente para o leste que explodia. Não tinha olhos para Uther. Ouvi-o tomar fôlego como que aborrecido, então controlar-se e voltar-se num refulgir de jóias e num clarão da malha para pôr-se ao meu lado. Aos seus pés alongava-se a pedra. No leste, a noite desaparecia, afastando-se como um véu, e raiava o sol. Direto como um archote ao ser arremessado, ou uma flecha de fogo, a luz rasgou o céu cinzento, traçando uma linha nítida do horizonte à pedra-rei aos nossos pés. Durante talvez vinte batidas do coração, o enorme trílito permaneceu diante de nós, escuro e rígido, emoldurando a claridade de inverno. Então o sol se ergueu no horizonte, tão rápido que eu podia ver a sombra do círculo entrelaçado mover-se para o interior da longe elipse, toldar-se e apagar-se quase imediatamente à luz clara do alvorecer de inverno. Olhei para o Rei. Seus olhos abertos inexpressivos estavam postos na pedra aos nossos pés. Não conseguia ler seus pensamentos. Então, ergueu a cabeça e olhou para o outro lado, para o círculo exterior onde as grandes pedras se erguiam unidas contra a luz. Afastou-se de mim um passo, lentamente, e girou os calcanhares, contemplando todo o círculo das Pedras Pendentes. Reparei que a sua nova barba era avermelhada e ondulada; ele usava o cabelo mais comprido e um círculo de ouro brilhava no seu elmo. Os olhos eram azuis como a fumaça à luz da manhã. Encontraram os meus, finalmente. — Não admira que você sorria. É muito impotente. — Isto é um alívio — respondi. — Os cálculos disso mantiveram-me acordado semanas seguidas. — Tremorinus contou-me. — Lançou-me um olhar vagaroso, medindo-me. — Também me contou o que você lhe disse. — O que eu disse? — Sim. "Adornarei a sepultura dele com a própria luz." Fiquei calado. Continuou lentamente: — Afirmei que nada sabia de profetas ou sacerdotes. Sou apenas um soldado e penso como um soldado. Mas isto — e que você fez aqui — é algo que posso compreender. Talvez haja lugar para nós dois, afinal. Já falei que vou passar o Natal em Winchester. Quer voltar comigo? Era uma pergunta e não uma ordem. Falávamos por cima da pedra. Era o começo de algo, mas algo que eu ainda desconhecia. Sacudi a cabeça. — Na primavera, talvez. Gostaria de ver a coroação. Esteja certo de que, quando precisar de mim, estarei lá. Mas agora preciso ir para casa. — Para a sua toca no chão? Bem, se é o que quer... Suas necessidades são poucas, sabe-o Deus. Há alguma coisa que queira pedir-me? — Abrangeu num gesto o círculo silencioso. — Os homens falariam mal de um rei que não o recompensasse por isso. — Já fui recompensado. — E em Maridunum? A casa do seu avô seria mais apropriada. Quer? Sacudi a cabeça. — Não quero uma casa. Mas ficaria com a montanha.

— Então fique com ela. Dizem-me que já a chamam de Monte Merlin. E agora já está completamente claro e os cavalos devem estar com frio. Se algum dia tivesse sido soldado, Merlin, saberia que há uma coisa mais importante que as sepulturas dos reis: não deixar os cavalos parados? Bateu-me no ombro mais uma vez, voltou-se com um rodopio da capa escarlate e encaminhou-se para o cavalo que esperava. Fui procurar Cadal.

3 Quando a Páscoa chegou, eu ainda não tinha intenção de deixar Bryn Myrddin (Uther, fiel a sua palavra, dera-me a montanha onde se encontrava a gruta, e as pessoas já associavam o seu nome a mim e não ao deus, chamando-a de Monte Merlin), mas veio uma mensagem do Rei chamando-me a Londres. Dessa vez era uma ordem, e não um pedido, e tão urgente que o Rei mandava uma escolta para evitar qualquer demora em que eu pudesse incorrer à espera de companhia. Ainda não era seguro, naquela época, partir para longe em grupos menores que doze ou mais pessoas, e viajava-se armado e preocupado. Os homens que não podiam ter uma escolta própria esperavam até que se formasse um grupo, e os mercadores até se reuniam para pagar guardas que os acompanhassem. As partes mais selvagens da terra achavam-se ainda cheias de refugiados do exército de Octa, de irlandeses que não tinham conseguido voltar para casa, e de saxões perdidos que tentavam miseravelmente disfarçar a pele clara e que eram caçados sem piedade quando fracassavam nesse disfarce. Rondavam a periferia das fazendas, escondendo-se nas montanhas, pântanos e lugares ermos, fazendo sortidas rápidas e ferozes à procura de comida, e vigiando a estrada à espera de algum viajante solitário e mal armado, por mais pobre que fosse. Qualquer um com capa ou sandálias era um homem rico que valeria a pena despojar. Nada disso me teria impedido de viajar só com Cadal de Maridunum a Londres. Nenhum fora-dalei ou ladrão enfrentaria o meu olhar, nem se arriscaria a uma maldição. Desde os acontecimentos em Dinas Brenin, Killare e Amesbury minha fama espalhara-se, crescendo em lenda e canção até que se tornou difícil reconhecer os meus próprios feitos. Dinas Brenin também recebera novo nome; tornara-se Dinas Emrys tanto em homenagem a mim como para comemorar o desembarque de Ambrosius e a cidadela que ele construíra ali com sucesso. Eu passava tão bem como quando vivera no palácio do meu avô ou na casa de Ambrosius. Ofertas de comida e vinho eram deixadas diariamente em baixo da gruta e os pobres, que nada tinham a oferecer-me em troca dos remédios que eu lhes dava, traziam combustível ou palha para a cama do cavalo, ou o seu próprio trabalho para tarefas de construção ou a confecção de peças simples de mobília. Assim, o inverno passara em conforto e paz até que num dia claro, no início de março, um mensageiro de Uther, deixando a escolta na cidade, subiu o vale. Era o primeiro dia seco depois de mais de uma semana de chuva e vento cortante, e eu subira a montanha, acima da gruta, para procurar plantas e símplices em primeira brotação. Parei à beira de um grupo de pinheiros para observar o cavaleiro solitário que subia a montanha a meio-galope. Cadal deve ter ouvido o tropel; vi-o pequenino lá embaixo sair da gruta, cumprimentar o homem e apontar o braço indicando para que lado eu seguira. O mensageiro mal parou, meteu as esporas no cavalo e veio atrás de mim. Parou a alguns passos de distância, desmontou entorpecido da sela, fez o sinal e aproximou-se. Era um rapaz de cabelos castanhos, mais ou menos da mesma idade que eu, cujo rosto me era vagamente familiar. Devo tê-lo visto por perto, à roda da comitiva de Uther, em alguma parte. Estava salpicado de lama até às sobrancelhas, e onde não estava enlameado seu rosto apresentava-se branco de cansaço. Devia ter apanhado um cavalo descansado em Maridunum para a última etapa porque o animal estava lépido e indócil e vi o rapaz fazer uma careta quando o mesmo levantou a cabeça repuxando as rédeas. — My lord Merlin. Trago-lhe saudações do Rei, em Londres.

— Sinto-me honrado — respondi formalmente. — Ele pede a sua presença na festa da coroação. Mandou-lhe uma escolta, my lord. Os homens da escolta estão na cidade, enquanto descansam os cavalos. — Você disse "pede"? — Deveria ter dito "ordena", my lord. Ele disse-me que deveria trazê-lo de volta imediatamente. — Foi só essa a mensagem? — Nada mais disse, my lord. Apenas que deveria ir ter com ele em Londres imediatamente. — Naturalmente que irei. Amanhã cedo, quando tiverem descansado os cavalos? — Hoje, my lord. Agora. Foi uma pena que a ordem arrogante de Uther tivesse sido transmitida daquela maneira ligeiramente escusatória. Olhei para ele. — Veio diretamente a mim? — Sim, my lord. — Sem descansar? — Sim. — Quanto tempo levou até aqui? — Quatro dias, my lord. Este cavalo é novo. Estou pronto a voltar hoje mesmo. — A isso o animal sacudiu a cabeça outra vez e percebi-o franzir o rosto. — Está machucado? — Nada de importante. Caí ontem e machuquei o pulso. É o direito e não a mão do freio. — Não, apenas a mão da adaga. Desça à gruta, repita ao meu criado o que me contou e diga-lhe para dar a você comida e bebida. Quando descer, cuidarei do seu pulso. Ele hesitou. — My lord, o Rei tem urgência. Isto é mais do que um convite para assistir à coroação. — Você terá de esperar que o meu criado arrume as minhas coisas e sele os cavalos. E também que eu coma e beba. Posso amarrar o seu pulso em alguns minutos. E, enquanto faço isso, poderá contar-me as notícias de Londres e dizer-me por que o Rei ordena que parta com tanta urgência para a festa. Desça agora; seguirei dentro em pouco. — Mas, senhor... — Até que Cadal tenha preparado a comida para nós três eu estarei lá embaixo. Agora vá. Ele lançou-me um olhar duvidoso, então foi-se, escorregando pela encosta molhada e arrastando o cavalo relutante atrás dele. Ajeitei o casaco em torno do corpo para proteger-me do vento e prossegui para a extremidade do pinheiral, fora das vistas da gruta. Fiquei de pé na ponta do contraforte rochoso onde os ventos batiam livremente pelo vale rasgandome a capa. Atrás de mim os pinheiros rangiam e as amoreiras silvestres desfolha, das junto à gruta de Galapas chocalhavam. Uma narceja madrugadora piava no ar cinzento. Ergui o rosto para o céu e pensei em Uther e em Londres e na ordem que acabara de chegar. Mas nada havia ali exceto o céu, os

pinheiros, o vento e as amoreiras. Olhei para o outro lado, na direção de Maridunum. Daquela altura eu via toda a cidade, pequenina como um brinquedo, à distância. O vale apresentava um verde sombrio ao vento de março. O rio ondulava, cinzento sob o céu cinzento. Uma carroça atravessava a ponte. Havia um pontinho de cor onde o estandarte flutuava no alto da fortaleza. Um barco deslizava rápido rio abaixo, as velas enfunadas pelo vento. As montanhas, ainda na sua púrpura invernal, mantinham o vale aconchegado como quando alguém segura entre as mãos um globo de vidro. O vento atirou-me água aos olhos e a cena toldou-se. O globo de cristal estava frio nas minhas mãos. Olhei para ele. Pequena e perfeita no centro do cristal, estava a cidade com a ponte, o rio em movimento, e o minúsculo barco a deslizar. Ao seu redor os campos subiam, destorcendo-se nas paredes curvas até que campos, céu, rio, e nuvens envolviam a cidade onde as pessoas caminhavam apressadas, como folhas e sépalas seguram um botão antes que desabroche em flor. Parecia que todo o campo, todo o País de Gales, toda a Bretanha poderiam ser seguros, pequeninos, brilhantes e protegidos entre as minhas mãos como alguma coisa presa no âmbar. Contemplei a terra envolta em cristal e compreendi que era para isso que eu nascera. A hora era aquela e eu precisava aproveitá-la. O globo de cristal derreteu-se nas minhas mãos em concha e transformou-se no punhado de plantas que eu colhera, frias de chuva. Deixei-as cair e ergui as mãos para limpar a água dos olhos. A cena abaixo mudara: a carroça e o barco tinham desaparecido e a cidade estava imóvel. Desci para a gruta e encontrei Cadal ocupado com as panelas, enquanto o rapaz pelejava com as selas dos cavalos. — Deixe isso aí — disse-lhe eu. — Cadal, temos água quente? — Bastante. Aqui vai uma partida e meia, ordens do Rei. Londres, não é? — Cadal parecia satisfeito e eu não podia culpá-lo. — Já era tempo para uma mudança, se me permite. O que acha que é? Ele — indicou com a cabeça o rapaz — não parece saber, ou então não quer dizer. Problemas, pelo jeito. — Talvez. Logo saberemos. Aqui, é melhor enxugar isto. — Dei-lhe a minha capa, sentei-me junto ao fogo e chamei o rapaz. — Deixe-me ver esse seu braço agora. Seu pulso estava roxo da pancada, inchado, e obviamente dolorido ao toque, mas os ossos estavam inteiros. Enquanto ele se lavava, preparei uma compressa e amarrei-a no pulso. Ele me observava apreensivo e tendia a afastar-se ao meu toque e não apenas, pensei eu, devido à dor. Agora que a lama fora removida e eu podia vê-lo melhor, a sensação de conhecê-lo persistia ainda mais forte. Encarei-o por cima das ataduras. — Eu o conheço, não? — O senhor não se lembraria de mim, my lord. Mas eu me lembro do senhor. Foi bondoso comigo certa vez. Ri-me. — Foi uma ocasião tão rara assim? Qual é o seu nome? — Ulfin. — Ulfin? Era um nome conhecido... Espere um instante. Sim, já sei. O menino de Belasius? — Sim. Lembra-se de mim? — Perfeitamente. Aquela noite na floresta, quando o meu pônei ficou manco e você teve de levá-lo para casa. Suponho que andasse por perto todo o tempo, mas era tão conspícuo quanto um rato do

campo. É a única vez que me lembro. Belasius está aqui para a coroação? — Está morto. Alguma coisa no seu tom de voz me fez olhá-lo de esguelha por cima do pulso enfaixado. — Odiava-o tanto assim? Não, não responda, adivinhei isso na época, embora eu fosse criança. Bem, não vou perguntar-lhe por quê. Os deuses sabem que eu próprio não gostava dele, e eu não era escravo dele. O que aconteceu? — Morreu de febres, my lord. — E você conseguiu sobreviver a ele? Parece-me lembrar alguma coisa a respeito de um costume antigo e bárbaro... — O Príncipe Uther tomou-me a seu serviço. Estou com ele agora... com o Rei. Ele falou rapidamente, desviando o olhar. Percebi que era tudo o que eu conseguiria saber. — Ainda tem tanto medo do mundo, Ulfin? Mas ele não quis responder a isso. Terminei de enfaixar-lhe o pulso. — Bem, é um lugar selvagem e violento, e os tempos são cruéis. Mas, vão melhorar e acho que você irá ajudar nessa tarefa. Pronto, terminei. Agora arranje alguma coisa para comer. Cadal, lembra-se de Ulfin? O menino que levou Aster para casa na noite em que encontramos a tropa de Uther em Nemet? — Pelo cão, é mesmo... — Cadal olhou-o de alto a baixo. — Está com o aspecto bem melhor do que então. O que aconteceu ao druida? Morreu de maldição? Vamos apanhar alguma coisa para comer. O seu está aqui, Merlin, e veja se, para variar, come o suficiente para ser humano e não apenas o necessário para manter um dos seus pássaros vivos. — Tentarei — disse humildemente, e então ri-me da expressão no rosto de Ulfin ao olhar de mim, para o meu criado, e de volta para mim. Dormimos aquela noite numa estalagem perto da encruzilhada onde a estrada sai rumo ao norte para Five Hill e a mina de ouro. Comi sozinho no meu quarto, servido por Cadal. Nem bem a porta se fechara atrás do criado que levava os pratos, Cadal voltou-se para mim, obviamente estourando de notícias. — Bem, há um bonito romance em Londres, pelo que dizem. — Já era de esperar — disse eu suavemente. — Ouvi alguém dizer que Budec está lá, com a maioria dos reis da outra margem do Mar Estreito, e que quase a metade dos nobres do Rei trouxeram as filhas com os olhos voltados para o lado vazio do trono. — Ri-me. — Isto deve convir a Uther. — Dizem que já terminou com metade das moças de Londres — comentou Cadal, colocando um prato à minha frente. Era carneiro galés, com um bom molho de cebolas, quente e gostoso. — Diriam qualquer coisa dele. — Comecei a servir-me. — Poderia até ser verdade. — Sim, mas seriamente, há problemas à vista, dizem. Problemas com mulheres.

— Oh, meu Deus, Cadal, poupe-me! Uther nasceu para ter problemas com mulheres. — Não, falo sério. Os homens da escolta estava conversando e não admira que Ulfin nada dissesse. É problema grave. A mulher de Gorlois. Levantei os olhos, surpreso. — A Duquesa de Cornwall? Não pode ser verdade. — Não é verdade ainda. Mas dizem que não é por falta de insistir. Bebi o vinho. — Pode estar certo de que é apenas boato. Ela tem menos da metade da idade do marido e ouvi dizer que é bonita. Suponho que Uther lhe dê alguma atenção, sendo o duque seu segundo em comando, e os homens aumentem a coisa, sendo Uther quem é... e o que é. Cadal descansou os punhos na mesa e olhou para mim. Estava extremamente solene. — Atenção, é? Dizem que não sai de perto dela. Manda-lhe os melhores pratos da mesa todos os dias e ela é servida primeiro, mesmo antes dele; brinda à saúde dela diante de todos no salão cada vez que ergue a taça. Não se fala de outra coisa de Londres a Winchester. Dizem que estão fazendo apostas nas cozinhas. — Não duvido. E Gorlois tem alguma coisa a dizer? — Tentou não ligar a princípio, dizem, mas a coisa chegou a tal ponto que ele não poderia continuar a fingir que não estava notando. Tentou fazer parecer que Uther prestava uma homenagem aos dois, mas quando puseram Lady Ygraine (é o nome dela) sentada à direita de Uther, e o velho seis lugares adiante, do outro lado... Ele fez uma pausa. Eu disse preocupado: — Ele deve estar louco. Não pode permitir-se problemas ainda, problemas de ordem alguma, muito menos com Gorlois. Pelos deuses, Cadal, foi Cornwall quem ajudou Ambrosius a entrar no país, e Cornwall quem colocou Uther onde está agora. Quem ganhou a batalha de Damen Hill para ele? — Dizem isso também. — Dizem realmente? — Refleti um momento, franzindo o cenho. — E a mulher? O que dizem dela, além das coisas sórdidas de costume? — Que ela pouco fala, e cada dia fala menos. Não duvido de que Gorlois tenha bastante o que dizer-lhe à noite, quando estão a sós. De qualquer forma, dizem que mal levanta os olhos em público agora, para evitar encontrar o olhar do Rei encarando-a sobre a borda da taça, ou debruçando-se na mesa para espreitar seu decote. — Isso é o que eu chamo de coisa sórdida, Cadal. Perguntei que tal ela? — Bem, isso é exatamente o que não comentam, exceto que é calada e linda como isto, aquilo e aquilo outro. — Endireitou-se. — Oh, ninguém diz que ela o encoraja. E Deus sabe que não há necessidade de Uther agir como um homem faminto à vista de um prato de comida; poderia ter o prato cheio qualquer noite que quisesse. Pode-se dizer que não há uma só moça em Londres que não esteja tentando atrair-lhe o olhar. — Acredito. Ele brigou com Gorlois? Abertamente, quero dizer? — Não que eu ouvisse. De fato, tem sido exageradamente cordial e conseguiu levar muito bem a

coisa na primeira semana; o velho estava desvanecido. Mas, Merlin, isto parece mesmo um problema: ela tem a metade da idade de Gorlois e passa metade do tempo trancada num daqueles frios castelos de Cornwall sem nada para fazer exceto tecer suas capas de guerra, e sonhar. E você pode ter certeza de que não é com um velho de barbas grisalhas. Empurrei o prato para o lado. Lembro-me de que ainda me sentia totalmente despreocupado com o que Uther estava fazendo. Mas o último comentário de Cadal chegou próximo demais para minha tranqüilidade. Tinha havido uma outra moça, certa vez, que nada tinha a fazer exceto sentar-se em casa e tecer e sonhar... Eu disse abruptamente: — Está bem, Cadal. Fico satisfeito em saber. Só espero que possamos manter-nos fora disso. Já vi Uther doido por uma mulher antes, mas sempre foram mulheres que ele podia obter. Isto é suicídio. — Louco, você disse. É o que estão dizendo também — continuou Cadal lentamente. — Enfeitiçado, dizem. — Olhou para mim de esguelha. — Talvez tenha sido por isso que mandou o jovem Ulfin naquela correria para ter certeza de que você iria a Londres. Talvez o queira lá para quebrar o feitiço? — Eu não quebro — disse, breve. — Faço. Ele encarou-me por um momento, fechando a boca sobre o que aparentemente ia dizer. Então voltou-se para erguer a jarra de vinho. Ao me servir, vi que sua mão esquerda fazia o sinal. Não falamos mais naquela noite.

4 Assim que cheguei diante de Uther, vi que Cadal tinha razão. O problema era sério. Chegamos a Londres na véspera da coroação. Era tarde e os portões da cidade encontravam-se fechados, mas devia haver ordens a nosso respeito, pois passamos sem demoras e fomos levados diretamente para o castelo onde estava o Rei. Mal me deram tempo para despir as roupas enlameadas e fui conduzido ao quarto dele. Os criados retiraram-se imediatamente, deixando-nos a sós. Uther estava pronto para dormir, num robe longo de veludo marrom orlado de peles. A cadeira alta encontrava-se junto às achas chamei antes da lareira, e no banquinho ao lado da cadeira havia um par de taças e um jarro com tampa de prata de onde a fumaça saía lenta em espirais. Senti o perfume do vinho de especiarias assim que entrei no quarto e a minha garganta seca contraiu-se anelante, mas o Rei não fez menção de oferecer-me. Não estava sentado ao pé do fogo. Caminhava desassossegado para lá e para cá, como um animal enjaulado, e atrás dele, passo a passo, seguia um cão-lobo. Quando a porta se fechou à passagem dos criados, exclamou abruptamente, como fizera uma vez antes: — Demorou bastante. — Quatro dias? Deveria ter mandado cavalos melhores. Aquilo o fez parar. Não esperava que eu respondesse. Mas continuou bastante suave. — Eram os melhores dos meus estábulos. — Então deveria ter arranjado cavalos alados, se queria uma velocidade maior do que a fizemos, my lord. E homens mais fortes. Deixamos dois pelo caminho. Mas ele já não ouvia. Voltando aos seus pensamentos, retomou o passeio intranqüilo, enquanto eu o observava. Perdera peso e movia-se rápido e leve como um lobo faminto. Os olhos estavam fundos por falta de sono e ele apresentava maneirismos que eu nunca notara antes; não conseguia manter as mãos paradas, torcia-as às costas, estalando as juntas dos dedos ou alisava as pontas do robe ou da barba. Falou-me por cima do ombro: — Quero a sua ajuda. — Assim entendi. Ele voltou-se a isso. — Já sabe? Ergui os ombros. — Ninguém fala de outra coisa senão o desejo do Rei pela mulher de Gorlois. Entendo que não tenha feito nenhuma tentativa de escondê-lo. Mas já se passou uma semana desde que mandou Ulfin buscar-me. Durante esse tempo o que aconteceu? Gorlois e a esposa ainda estão aqui? — Naturalmente que estão aqui. Não podem partir sem o meu consentimento. — Compreendo. Alguma coisa foi dita entre você e Gorlois? — Não. — Mas ele deve saber.

— Dá-se o mesmo com ele que comigo. Se essa coisa chegar às palavras, nada poderá pará-las. E a coroação é amanhã. Não posso falar com ele. — Ou com ela? — Não. Não. Ah, meu Deus! Merlin, não consigo chegar perto dela. Está guardada como Danae. Franzi o cenho. — Ele a mantém sob guarda, então? Decerto isso é suficientemente estranho para constituir uma admissão pública de que há algo errado? — Só quis dizer que seus criados andam a volta dela, e seus homens. Não apenas a sua guarda pessoal — muitas das tropas guerreiras que estiveram conosco no Norte ainda se encontram aqui. Só posso chegar perto dela em público, Merlin. Devem ter-lhe contado isso. — Sim. Conseguiu enviar-lhe algum recado secretamente? — Não. Ela se protege. Passa todo o dia com as damas, e os criados guardam as portas. E ele... — Fez uma pausa. Havia suor no seu rosto. — Ele fica com ela a noite toda. Afastou-se novamente com um rodopio do robe de veludo e caminhou com passos leves por todo o comprimento do quarto até às sombras, para além da claridade do fogo. Então voltou. Estendeu as mãos e falou com a simplicidade de um menino. — Merlin, o que farei? Atravessei até à lareira, apanhei a jarra e enchi duas taças com o vinho de especiarias. Estendi uma para ele. — Para começar, sente-se. Não posso falar com um pé-de-vento. Aqui. Ele obedeceu, afundando-se na grande cadeira com a taça entre as mãos. Bebi o meu vinho, agradecido, e sentei-me do outro lado da lareira. Uther não bebeu. Creio que mal sabia o que tinha entre as mãos. Contemplava o fogo através da fumaça que saía do copo. — Assim que ele a trouxe para apresentá-la, eu soube. Deus sabe que a princípio pensei que se tratava de uma febre passageira, do tipo que já tive milhares de vezes, só que desta vez milhares de vezes mais forte... — E curou-se — disse eu — numa noite, numa semana de noites, num mês. Não sei qual foi o maior tempo que uma mulher conseguiu segurá-lo, Uther, mas será um mês, ou mesmo três meses o suficiente para se deixar destruir um reino? O olhar que ele me lançou, azul como um relampejo de espada, era o do velho Uther que eu lembrava. — Por Hades, para que acha que mandei buscá-lo? Poderia ter destruído o meu reino a qualquer momento nestas últimas semanas se tivesse querido. Por que acha que isso ainda não ultrapassou a loucura? Oh, sim, admito que tenho estado louco, mas afirmo-lhe que é uma febre, e não é do tipo que já tive antes e consegui curar. Isso me consome tanto que não consigo dormir. Como posso governar e lutar e lidar com os homens se não consigo dormir i — Já levou uma moça para a cama? Ele me encarou e então bebeu. — Está louco?

— Desculpe-me, foi uma pergunta tola. E não dorme nem mesmo assim? — Não. — Pousou a taça a um lado, e entrelaçou as mãos. — Não adianta. Nada adianta. Você precisa trazê-la para mim, Merlin. Você tem artes. É por isso que mandei buscá-lo. Deve trazê-la para mim de forma que ninguém saiba. Faça-a amar-me. Traga-a aqui enquanto ele dorme. Você pode fazêlo. — Fazer com que o ame? Minha magia? Não, Uther, isto é algo que a magia não pode fazer. Você deve saber isso. — É algo que toda velha jura que pode fazer. E você... você tem mais poder que qualquer homem vivo. Ergueu as Pedras Pendentes. Ergueu a pedra-rei quando Tremorinus falhou. — A minha matemática é melhor, é só. Pelo amor de Deus, Uther, a despeito do que os homens digam daquilo, você sabe como foi feito. Não houve mágica. — Você falou com o meu irmão quando ele morreu. Vai negar isso agora? — Não. — Ou que jurou servir-me quando eu precisasse? — Não. — Preciso de você agora. Do seu poder, do que quer que seja. Ousa afirmar-me que não é um mago? — Não sou do tipo que pode atravessar paredes — disse eu — e transportar corpos através de portas fechadas. — Ele fez um movimento súbito e vi o brilho febril dos seus olhos, desta vez não de raiva, mas, pensei, de dor. Acrescentei-lhe: — Mas não me recusei a ajudá-lo. Seus olhos faiscaram. — Vai ajudar-me? — Sim, ajudá-lo-ei. Disse-lhe da última vez que nos encontramos que chegaria uma época em que precisaríamos trabalhar juntos. É esta, agora. Não sei ainda o que será preciso fazer, mas isso me será revelado, e o resultado caberá ao deus. Mas uma coisa posso fazer por você esta noite. Posso fazê-lo dormir. Não, fique quieto e ouça... Se vai ser coroado amanhã, e tomar a Bretanha nas mãos, esta noite fará como digo. Prepararei uma bebida que o adormecerá e levará uma moça para a cama como de costume. Será melhor se houver mais alguém, além do seu criado, que jure que esteve no seu próprio quarto. — Por quê? O que vai fazer? Sua voz estava tensa. — Tentarei falar com Ygraine. Ele sentou-se para a frente, a mão comprimindo o braço da cadeira. — Sim. Fale com ela. Talvez você possa vê-la onde eu não posso. Diga a ela... — Um momento. Há poucos instantes disse-me para fazer com que ela o amasse. Quer que invoque qualquer poder que haja para trazê-la a você. Se você nunca lhe falou do seu amor, nem viu a moça senão em público, como sabe que ela viria a você, mesmo que o caminho estivesse livre? Os pensamentos dela estarão claros para você? — Não. Ela nada diz. Sorri com os olhos no chão e nada diz. Mas eu sei. É como se todas as outras vezes que eu tivesse brincado de amor fossem apenas notas isoladas. Juntas, fazem uma canção.

Ela é a canção. Fez-se silêncio. Por trás dele, sobre um estrado no canto do quarto, havia uma cama com as cobertas puxadas, pronta. Acima, galgando a parede, um grande dragão em ouro vermelho. À luz do fogo movia-se, esticando as garras. Ele disse de súbito: — Da última vez que falamos, no meio das Pedras Pendentes, disse-me que nada queria de mim. Mas, por todos os deuses, Merlin, se me ajudar agora, se eu a obtiver, e em segurança, então pode pedir o que quiser. Juro. Sacudi a cabeça e não disse mais nada. Acho que ele percebeu que eu já não pensava nele; que outras forças me pressionavam, enchendo o quarto. O dragão flamejava e refulgia na parede escura. Na sua sombra, outra movia-se, fundindo as chamas nas chamas. Algo me atingiu os olhos, uma dor como uma garra. Fechei-os e havia silêncio. Quando os abri novamente, o fogo morrera e a parede estava escura. Olhei para o Rei, na sua cadeira, observando-me. Disse-lhe lentamente: — Pedir-lhe-ei uma coisa agora. — Sim! — Que quando a trouxer para você em segurança, você lhe fará um filho. O que quer que ele esperasse, não era isso. Encarou-me e então de repente riu-se. — Isto é com os deuses, certamente? — Sim, é com Deus. Ele recostou-se na cadeira como se um peso tivesse sido levantado dos seus ombros. — Se eu chegar a ela, Merlin, prometo-lhe que farei o que estiver no meu poder. E qualquer outra coisa que me peça. Até dormirei esta noite. Ergui-me. — Então vou preparar a bebida e mandá-la-ei para você. — E irá vê-la? — Irei vê-la. Boa noite. Ulfin estava meio adormecido de pé, do lado de fora da porta. Piscou os olhos quando eu saí. — Devo entrar agora? — Num minuto. Venha ao meu quarto primeiro e lhe darei uma bebida para ele. E veja que ele a tome. É para fazê-lo adormecer. Amanhã será um dia longo. Havia uma moça adormecida a um canto, envolta numa manta azul sobre uma pilha de travesseiros. Ao passarmos, vi a curva do seu ombro nu e uma cascata de cabelos lisos castanhos. Parecia muito jovem. Ergui as sobrancelhas para Ulfin e ele assentiu, então virou a cabeça na direção da porta com uma indagação no olhar. — Sim — respondi. — Mais tarde. Quando levar a bebida. Deixe-a, dormindo, por hora. Parece que você próprio também está precisando dormir.

— Se ele dormir esta noite, talvez eu também possa dormir. — Deu a sombra de um sorriso para mim. — Faça-a forte, sim, my lord? E gostosa. — Oh, ele beberá, não tenha receio. — Eu não estava pensando nele — disse Ulfin. — Estava pensando em mim. — Oh, você! Ah, compreendo, você se refere ao fato de que terá de prová-la primeiro? Ele assentiu. — Tem de provar tudo? As refeições? Até poções de amor? — Poções de amor? Para ele? — Arregalou os olhos, boquiaberto. Então riu-se. — Oh, está brincando! Sorri. — Queria ver se você sabia rir. Aqui estamos. Espere agora. Não demorará um minuto. Cadal estava à minha espera junto à lareira do quarto. Era um quarto confortável na curva da parede da torre, e Cadal mantivera o fogo avivado e um grande caldeirão de água a ferver sobre a grade de ferro. Tinha separado uma camisa de lã para mim e estendera-a pronta sobre a cama. Numa arca, junto à janela, encontrava-se uma pilha de roupas, um brilho de ouro, púrpura e peles. — O que é aquilo? — perguntei ao sentar-me para deixar que ele me tirasse os sapatos. — O Rei enviou uma roupa para amanhã, my lord. — Cadal, com um olho no menino que preparava o banho, mantinha-se formal. Notei que as mãos do menino tremiam um pouco e a água respingou no chão. Assim que terminou, obediente a uma inclinação da cabeça de Cadal, saiu correndo. — O que há com o menino? — Não é toda noite que se prepara o banho de um mago. — Pelo amor de Deus! O que andou dizendo a ele? — Só que você transformaria num morcego se ele não o servisse bem. — Tolo! Não, um momento, Cadal! Traga a minha caixa. Ulfin está esperando aí fora. Prometi preparar uma bebida. Cadal obedeceu-me. — O que foi que houve? O braço dele ainda está ruim? — Não é para ele. Para o Rei. — Ah! — Não fez mais nenhum comentário, mas quando a coisa estava pronta e Ulfin saíra e eu me despia para o banho, ele perguntou. — Está tão mal como dizem? — Pior. Dei-lhe uma versão resumida da minha conversa com o Rei. Ele me ouviu de cenho franzido. — E o que há a fazer agora? — Descobrir uma maneira de ver a senhora. Não, não a camisa; ainda não. Traga-me uma roupa limpa, alguma coisa escura. — Certamente não poderá ir vê-la esta noite? Já passa da meia-noite.

— Não vou a parte alguma. Quem quer que venha virá a mim. — Mas Gorlois estará com ela... — Chega por ora, Cadal. Quero pensar. Deixe-me. Boa noite. Quando a porta se fechou, atravessei para a cadeira ao pé da lareira. Não era verdade que eu quisesse tempo para pensar. Só precisava do silêncio e de fogo. Aos pouquinhos esvaziei a mente, sentindo o pensamento esvair-se de mim como a areia de um vidro, deixando-me vazio e leve. Esperei, as mãos frouxas sobre a roupa cinzenta, abertas, vazias. Estava tudo muito quieto. De algum ponto num canto escuro do quarto chegou-me o estalido seco da madeira velha assentando. O fogo piscava. Contemplei-o, mas distraído como qualquer homem observaria as chamas por conforto numa noite fria. Não precisava sonhar. Deitei-me como uma folha morta, sobre a maré que corria aquela noite ao encontro do mar. Do lado de fora da porta, surgiram vozes de repente. Uma batida breve no painel e Cadal entrou fechando a porta atrás de si. Parecia cauteloso e um tanto apreensivo. — Gorlois? — perguntei. Ele engoliu e concordou. — Bem, mande-o entrar. — Ele perguntou se tinha ido ver o Rei. Disse-lhe que você estava aqui há menos de duas horas, e não tivera tempo de ver ninguém. Fiz bem? Sorri. — Você foi guiado. Deixe-o entrar agora. Gorlois entrou apressado e ergui-me para cumprimentá-lo. Operara-se, pensei, uma mudança tão grande nele quanto a que eu notara em Uther: seu grande corpo estava curvado e pela primeira vez viase de imediato que estava velho. Ele repeliu a cerimônia do meu cumprimento. — Não está deitado ainda? Disseram-me que havia chegado. — Em tempo para a coroação, mas vê-la-ei, afinal. Quer sentar-se, my lord? — Não, muito obrigado. Vim pedir o seu auxílio, Merlin, para minha esposa. — Seus olhos rápidos espreitaram-me sob as sobrancelhas cinzentas. — Sim, ninguém poderia dizer o que você está pensando, mas soube, não? — Fala-se — respondi cauteloso — mas sempre se falou de Uther. Não ouvi ninguém aventurar sequer uma palavra contra sua esposa. — Por Deus, é melhor que não o façam! No entanto, não é por isso que vim esta noite. Não há nada que possa fazer quanto a isso, embora você seja a única pessoa capaz de meter algum juízo na cabeça do Rei. Não vai chegar perto dele agora até a hora da coroação, mas se pudesse fazer com que nos deixasse partir para Cornwall sem esperar pelo fim da festa... Faria isso por mim? — Se puder. — Eu sabia que podia contar com você. Com as coisas do jeito que estão na cidade neste momento, é difícil saber quem é amigo. Uther não é um homem fácil de se contradizer. Mas você poderia fazer isso, e o que é mais, teria coragem para fazê-lo. É bem filho do seu pai, e por amor a ele... — Eu disse que farei.

— O que há? Sente-se mal? — Não é nada. Estou cansado. Fizemos uma viagem longa. Verei o Rei de manhã cedo, antes que saia para a coroação. Ele fez um breve aceno de agradecimento. — Não é a única coisa que vim pedir-lhe. Pode ir ver minha esposa hoje à noite? Houve uma pausa de completo silêncio, tão prolongada que achei que ele deveria ter notado. Então respondi: — Se quiser, sim. Por quê? — Está doente, é por isso, e gostaria que fosse vê-la, se pudesse. Quando as damas lhe contaram que estava aqui em Londres, pediu-me que mandasse buscá-lo. Afirmo-lhe que fiquei agradecido em saber que você viera. Não há muitos homens em quem possa confiar agora, e isto é a verdade de Deus. Mas confio em você. Junto a mim, uma acha caiu no centro do fogo. As chamas ergueram-se, salpicando seu rosto de vermelho, como sangue. — Você virá? — perguntou o velho. — Claro. — Desviei o olhar dele. — Irei imediatamente.

5 UTHER NÃO EXAGERARA ao dizer que Lady Ygraine estava bem guardada. Ela e o marido estavam instalados num paço a alguma distância a oeste dos aposentos reais e o paço encontrava-se tomado pelos soldados de Cornwall. Havia soldados na antecâmara também e meia dúzia de mulheres no próprio quarto de dormir. Ao entrarmos, a mais velha delas, uma senhora grisalha de expressão ansiosa, adiantou-se precipitadamente, o alívio a iluminar-lhe o rosto. — Príncipe Merlin! Ajoelhou-se, olhando-me com respeito e conduziu-me até à cama. O quarto estava quente e perfumado. As lâmpadas queimavam azeite-doce e o fogo fora aceso com toras de macieira. A cama achava-se ao centro da parede oposta à lareira. Os travesseiros eram de seda cinza com borlas douradas e a manta ricamente bordada de flores, animais estranhos e criaturas aladas. O único outro quarto de mulher que eu vira fora de minha mãe, com uma cama simples de madeira, uma arca de carvalho com entalhes e o tear, e mosaicos rachados no chão. Segui-a e parei aos pés da cama, olhando para a mulher de Gorlois. Se me tivessem perguntado, então, qual o seu aspecto, eu não saberia dizer. Cadal dissera-me que era bonita e eu vira a fome no rosto do Rei, daí concluir que fosse desejável; mas, de pé no quarto perfumado, contemplando a mulher deitada nos travesseiros de seda cinzenta, com os olhos cerrados, não foi mulher que eu vi. Tampouco o quarto com gente. Vi apenas os clarões e a pulsação da luz como num globo de cristal. Falei sem tirar os olhos da mulher na cama. — Uma das mulheres fique aqui. O resto pode sair. O senhor também, por favor, my lord. — Ele saiu sem objeção, arrebanhando as mulheres à sua frente como um bando de ovelhas. A mulher que me saudara permaneceu junto à cama da sua senhora. Quando a porta se fechou, a mulher na cama abriu os olhos. Encaramo-nos por alguns minutos. Então perguntei: — O que quer de mim, Ygraine? Ela respondeu com firmeza, sem fingimentos: — Mandei buscá-lo, Príncipe, porque quero o seu auxílio. Assenti. — No caso do Rei. Ela disse sem rodeios: — Já sabe então? Quando meu marido o trouxe aqui, já sabia que eu não estava doente? — Imaginei. — Então pode também imaginar o que quero de você? — Não exatamente. Diga-me, não poderia de alguma forma ter falado ao próprio Rei antes? Teria poupado alguma coisa a ele e ao seu marido também. Seus olhos arregalaram-se. — Como poderia falar ao Rei? Você atravessou o pátio?

— Sim. — Então viu as tropas e os soldados do meu marido. O que acha que teria acontecido se eu tivesse falado a Uther? Não poderia responder-lhe abertamente, e se me tivesse encontrado com ele em segredo — mesmo que pudesse fazê-lo — metade de Londres o saberia em menos de uma hora. Naturalmente eu não poderia falar-lhe nem enviar-lhe uma mensagem. A única proteção era o silêncio. Falei lentamente: — Se a mensagem dissesse simplesmente que você era uma esposa sincera e fiel e que ele devia voltar os olhos para outros lados, então poderia ter sido entregue a qualquer hora e por qualquer mensageiro. Ela sorriu. Então baixou a cabeça. Tomei fôlego. — Ah! Era isso que eu queria saber. Você é honesta, Ygraine. — Que adianta mentir-lhe? Ouvi falar de você. Oh, não acredito em tudo o que dizem nas canções e nas histórias, mas sei que é inteligente, frio e sábio, e dizem que não ama mulher alguma e não está comprometido com homem algum. Então pode ouvir e julgar. — Olhou para as mãos pousadas na manta e de novo para mim. — Mas acredito que possa ver o futuro. Quero que me diga qual é o meu futuro. — Não predigo o futuro como fazem as velhas. Foi por isso que mandou buscar-me? — Sabe por que mandei buscá-lo. É o único homem com quem posso falar em particular sem provocar a fúria e a suspeita do meu marido — e você tem os ouvidos do Rei. — Embora fosse apenas uma mulher jovem deitada na cama e eu de pé, diante dela, parecia uma rainha concedendo uma audiência. Olhou diretamente para mim: — O Rei já lhe falou? — Ele não tem necessidade de falar comigo. Todos sabem o que o atormenta. — E dirá a ele o que acabou de saber de mim? — Isto dependerá. — De quê? — perguntou ela. Respondi lentamente: — De você mesma. Até agora mostrou-se sensata. Se tivesse sido menos cautelosa nas suas maneiras ou em conversa, teriam surgido problemas e até mesmo uma guerra. Entendo que você nunca permitiu que por um só momento do seu tempo estivesse sozinha ou desprotegida; teve cuidado também de estar sempre onde pudesse ser vista. Ela fitou-me por um instante em silêncio, as sobrancelhas erguidas. — Naturalmente. — Muitas mulheres... especialmente desejando o que deseja... não teriam sido capazes disso, Lady Ygraine. — Eu não sou "muitas mulheres". — Suas palavras eram um relampejo. Sentou-se de repente, atirando para trás o cabelo escuro e afastando as cobertas. A dama velha apanhou um longo robe azul e correu para ela. Ygraine vestiu-o sobre a camisola branca e pulou da cama, caminhando inquieta até à janela. De pé, era alta para uma mulher, com uma silhueta que poderia ter perturbado homens mais sérios que Uther. Seu pescoço era longo e fino, a cabeça assentada graciosamente. O cabelo escuro descia-lhe

solto pelas costas. Os olhos eram azuis, não o azul faiscante de Uther, mas o azul-escuro, profundo, dos celtas. A boca era orgulhosa. Era muito linda e não serviria de joguete para homem algum. Se Uther a quisesse, pensei, teria de fazê-la rainha. Ela parará um pouco antes da janela. Se se tivesse aproximado mais, teria sido vista do pátio. Não, não era uma senhora que perdesse a cabeça. Voltou-se. — Sou filha de um rei e descendo de linhagem real. Não vê que devo ter sido forçada até mesmo a pensar da maneira que estou pensando agora? — Repetiu, apaixonada. — Não vê? Casei aos dezesseis anos com o Senhor de Cornwall. Ele é um bom homem: eu o honro e respeito. Até chegar em Londres estava meio satisfeita em passar fome e morrer lá em Cornwall, mas ele trouxe-me para cá, e aconteceu. Agora sei o que preciso ter, mas está além das minhas forças, além das forças da esposa de Gorlois de Cornwall. Portanto, o que mais quer que eu faça? Não há nada a fazer senão esperar aqui e calar-me, porque do meu silêncio depende não apenas a minha própria honra, a do meu marido e a da minha casa, mas a segurança de um reino pelo qual Ambrosius morreu, e que o próprio Uther acabou de selar com sangue e fogo. Virou para dar dois passos rápidos e voltou-se novamente. — Não sou nenhuma Helena ordinária por quem homens lutem, morram, destruam reinos. Não fico à espera no alto das muralhas como um prêmio ao vencedor forte. Não posso desonrar, assim, Gorlois e o Rei aos olhos dos homens. E não posso ir ter com ele secretamente desonrando-me aos meus próprios olhos. Sou uma mulher doente de amor, sim, mas sou também Ygraine de Cornwall. Disse eu friamente: — Então pretende esperar até que possa entregar-se a ele com honra, como sua Rainha? — Que mais posso fazer? — Era essa a mensagem que. eu devo transmitir? Ela ficou calada. — Ou mandou buscar-me para que predissesse o seu futuro? Para dizer-lhe quanto tempo viverá seu marido? Continuou calada. — Ygraine, — disse eu, — as duas coisas darão no mesmo. Se eu transmitir a Uther a mensagem de que o ama e o deseja, mas que não irá ter com ele enquanto seu marido viver, quanto tempo de vida profetiza para Gorlois? Ainda assim permaneceu calada. O dom do silêncio também, pensei. Eu estava de pé entre ela e a lareira. Observei a luz ao seu redor, subindo pela camisa branca e o robe azul, a luz e a sombra ondeando para o alto como água a mover-se ou relva agitada pelo vento. Uma chama ergueu-se e a minha sombra saltou sobre ela e cresceu, subindo com a pulsação da luz para encontrar-se com a dela, de maneira que, na parede oposta por trás de nós, formou-se não um dragão de fogo escarlate, não um meteoro com a cauda em chamas, mas uma enorme sombra escura e enevoada, projetada pelo fogo de ar e trevas, baixando quando a chama baixou, para encolher, firmar-se e reduzir-se apenas à sombra dela, a sombra de uma mulher, esguia e aprumada como uma espada. E onde eu estava nada mais havia. Ela moveu-se e a luz das lâmpadas tornou o quarto à nossa volta outra vez quente, real, recendendo a macieira. Ela me observava com algo no rosto que não havia antes. Finalmente falou, numa voz mansa:

— Disse-lhe que não existia nada escondido de você. Faz bem cm expressá-lo em palavras. Pensei em tudo isso. Mas eu esperava que, mandando buscá-lo, pudesse absolver-me a mim mesma e ao Rei. — Uma vez que um pensamento escuso é posto em palavras, ele vem à luz. Poderia ter obtido o que quer, há muito tempo, em termos de "qualquer mulher" como o Rei também o poderia em termos de qualquer homem. — Fiz uma pausa. O quarto estabilizara-se agora. As palavras ocorriam-me claras de algum lugar, sem ser preciso pensar. — Vou dizer-lhe, se quiser, como poderá ter o amor do Rei nos seus termos e nos dele, sem desonra para você ou para ele, ou ainda para o seu marido. Se eu pudesse dizer-lhe isso, iria ter com ele? Seus olhos arregalaram-se, com um brilho interior quando eu falei. Mas mesmo assim levou algum tempo refletindo. — Sim. A voz dela nada me dizia. — Se me obedecer, poderei fazer isso para você — disse eu. — Diga-me o que devo fazer. — Tenho a sua promessa então? — Você vai muito depressa — respondeu secamente. — Você próprio sela um trato antes de saber a que se está comprometendo? Sorri. — Não. Muito bem, então, ouça. Quando fingiu desmaiar para que mandassem buscar-me, o que disse ao seu marido e às damas? — Só que me sentia fraca e doente e preferia estar só. Que, se eu devia comparecer à coroação ao lado do meu marido, precisava ver um médico esta noite e tomar um remédio. — Ela deu um sorriso meio enviesado. — Preparava o. caminho, também, para não sentar ao lado do Rei na festa. — Até aí, muito bom. Você dirá a Gorlois que está grávida. — Que eu estou grávida? — Pela primeira vez ela parecia abalada. Encarou-me. — Isto é possível? Ele é um homem velho, mas eu teria julgado... — É possível. Mas eu... — Ela mordeu os lábios. Passado algum tempo, disse calmamente. — Continue. Pedi o seu conselho, então devo deixá-lo falar. Eu nunca encontrara uma mulher com quem não precisasse escolher palavras, com quem pudesse falar como falava a outro homem. Disse: — Seu marido não tem razão para suspeitar de que esteja grávida de outro homem, exceto dele mesmo. Então dir-lhe-á isso e também que receia pela saúde da criança se permanecer em Londres mais tempo sob a tensão do falatório e das atenções do Rei. Diga-lhe que quer partir assim que a coroação terminar. Que não deseja ir à festa e ser distinguida pelo Rei, tornando-se o centro de todos os olhares e mexericos. Partirá com Gorlois e as tropas de Cornwall amanhã, antes que os portões se fechem ao pôr do sol. A notícia não chegará a Uther senão na hora da festa. — Mas... — Ela olhou-me outra vez... — isso é loucura. Poderíamos ter partido a qualquer hora nestas três últimas semanas se tivéssemos decidido incorrer na ira do Rei. Somos obrigados a ficar até que ele nos dê permissão para partir. Se sairmos desta forma, qualquer que seja a razão...

Interrompi-a. — Uther nada poderá fazer no dia da coroação. Precisa ficar para os festejos. Acha que ele pode ofender a Budec e Merrovius e aos outros reis reunidos aqui? Você estará em Cornwall antes que ele possa mover-se. — E então ele se moverá. — Fez um gesto impaciente. — E haverá uma guerra, quando ele deveria estar construindo e consertando e. não destruindo e queimando. "E não poderá ganhar: se sair vencedor no campo, perde a lealdade do Oeste. Quer ganhe ou perca, a Bretanha ficará dividida e voltará às trevas. Sim, ela seria uma rainha. Estava em fogo por causa de Uther, tanto quanto ele por ela, mas ainda conseguia raciocinar. Era mais inteligente que Uther, tinha a cabeça fria, e era, pensei, mais forte também. — Oh, sim, ele se mexerá. — Ergui a mão. — Mas ouça-me. Falarei com o Rei antes da coroação. Saberá que a história que você contou a Gorlois é uma mentira. Saberá que eu a aconselhei a partir para Cornwall. Fingirá raiva e jurará em público que se vingará do insulto de Gorlois na coroação... E se preparará para segui-la a Cornwall assim que a festa terminar... — Mas, entrementes, as nossas tropas estarão a salvo fora de Londres, sem problemas. Sim, estou compreendendo. Não o tinha compreendido antes. Continue. — Meteu as mãos por dentro das mangas do robe azul e segurou os cotovelos, aninhando os seios. Não era tão fria quanto parecia, a Lady Ygraine. — E então? — E você estará segura em casa — disse eu — com a sua honra e a de Cornwall intactas. — Segura, sim. Estarei em Tintagel, e mesmo Uther não poderá chegar a mim lá. Já viu a fortaleza, Merlin? Os penhascos daquele litoral são altos e cruéis, e deles sai uma ponte de pedra, a única via de acesso ao castelo. A ponte é tão estreita que os homens só podem passar um a um, sem os cavalos sequer. Mesmo a extremidade da ponte em terra firme é guardada por uma fortaleza no penhasco principal, e no interior do castelo há água e comida para um ano. É o lugar mais inexpugnável de Cornwall. Não pode ser tomado por terra e não pode ser abordado por mar. Se quiser afastar-me para sempre de Uther, aquele é o lugar para onde mandar-me. — Assim ouvi dizer. Então será o lugar para onde Gorlois deverá mandá-la. Se Uther a seguir, Gorlois se contentaria em esperar com você no interior da fortaleza um ano inteiro como um animal acuado? E poderia levar suas tropas? Ela sacudiu a cabeça. — Se não pode ser tomada, tampouco pode ser usada como base. Só o que pode fazer é agüentar um cerco. — Então precisa persuadi-lo de que, a menos que se satisfaça em esperar no interior do forte enquanto as tropas do Rei devastam Cornwall, ele próprio deverá estar do lado de fora onde possa lutar. Ela juntou as mãos. — Ele fará isso. Não poderia esperar escondido, deixando Cornwall sofrer. Nem eu consigo entender o seu plano, Merlin. Se está tentando salvar o seu Rei e o seu reino de mim, então diga. Posso fingir-me de doente aqui, até que Uther descubra que tem de deixar-me partir. Poderíamos voltar para casa sem ofensa e sem derramamento de sangue. Respondi, brusco.

— Você disse que ouviria. O tempo está correndo. Ela sossegou outra vez. — Estou ouvindo. — Gorlois a trancará em Tintagel. Onde irá defrontar-se com Uther? — Em Dimilioc. Fica a algumas milhas de Tintagel, na costa. É uma boa fortaleza e um bom campo para lutar. Mas então o que acontece? Acha que Gorlois não lutará? — Caminhou em direção à lareira e sentou-se, e vi-a firmar as mãos deliberadamente, abrindo os dedos sobre os joelhos. — E acha que o Rei poderá vir ter comigo em Tintagel, quer Gorlois esteja lá ou não? — Se fizer como lhe peço, você e o Rei poderão ter a presença e o conforto um do outro. Não — a cabeça dela erguera-se abruptamente — esta parte deixe comigo. É aí que entramos na magia. Confie em mim quanto ao resto. Vá para Tintagel e espere. Levarei Uther para você. E prometo-lhe agora pelo Rei que ele não combaterá Gorlois, e que depois que se encontrarem no amor, Cornwall terá paz. O poder que está em mim agora é o de Deus, e estamos nas Suas mãos para construir ou destruir. Mas posso dizer-lhe também, Ygraine, que vi um fogo intenso ardendo e no centro uma coroa, e uma espada de pé num altar como uma cruz. Ela se pôs de pé prontamente e pela primeira vez vi um certo medo nos seus olhos. Abriu a boca como se fosse falar, depois fechou-a novamente e voltou-se para a janela. Mais uma vez parou, mas vi que levantava a cabeça como se quisesse respirar. Deveria ser alada. Se passara toda a juventude emparedada em Tintagel, não admira que quisesse voar. Ergueu as mãos e afastou o cabelo da testa. Falou voltada para a janela, sem olhar para mim. — Farei isso. Se eu disser a ele que espero uma criança, levar-me-á para Tintagel. É o lugar onde nasceram todos os Duques de Tintagel. E, depois disso, terei que confiar em você. — Virou-se, então, e olhou para mim, deixando cair as mãos. — Se uma vez eu puder falar com ele... ao menos isso... Mas se através de mim você trouxer derramamento de sangue a Cornwall, ou a morte do meu marido, então passarei o resto da minha vida rezando aos deuses que existam para que você também, Merlin, morra traído por uma mulher. — Contento-me em enfrentar suas preces. E agora preciso ir-me. Há alguém que possa mandar comigo? Prepararei uma bebida para você. Será apenas papoula: pode tomar sem receio. — Ralf pode ir, é o meu pajem. Encontrá-lo-á do lado de fora da porta. É o neto de Márcia e podese confiar nele como eu confio nela. — Acenou para a velha dama, que correu a abrir a porta para mim. — Então, qualquer mensagem que precise enviar para você — disse eu — mandarei por ele através do meu criado, Cadal. Então, boa noite. Quando a deixei, ela estava de pé, muito quieta no centro do quarto, com a luz do fogo saltando à sua volta.

6 FIZEMOS UMA VIAGEM PENOSA até Cornwall. A Páscoa naquele ano caíra mais cedo que até então; assim, mal saíamos do inverno para a primavera, quando numa noite escura e tempestuosa, paramos os cavalos no alto do penhasco próximo a Tintagel e espreitamos em meio à ventania. Éramos apenas quatro, Uther, eu, Ulfin e Cadal. Até ali tudo correra bem e de acordo com o plano. Aproximávamo-nos da meia-noite do dia vinte e quatro de março. Ygraine obedecera-me à risca. Naquela noite em Londres, eu não ousara sair do seu quarto diretamente para o de Uther, com medo de que pudessem contá-lo a Gorlois; e de qualquer forma, Uther estaria adormecido. Visitei-o na manhã seguinte, quando estava sendo banhado e preparado para a coroação. Despediu os criados, exceto Ulfin, e pude dizer-lhe exatamente o que fazer. Ele parecia melhor depois do sono produzido pelas drogas, cumprimentou-me bastante animado e ouviu-me com ansiedade nos olhos vazios e brilhantes. — E ela fará como diz? — Sim, deu-me a sua palavra. E você? — Você sabe que farei. — Encarou-me de frente. — E agora não me vai dizer o que acontecerá? — Já lhe disse. Um filho. — Oh, isso! — Encolheu os ombros impaciente. — Você é como meu irmão, que não pensava em outra coisa... Ainda está trabalhando para ele? — Poderia dizer que sim. — Bem, precisarei arranjar um mais cedo ou mais tarde, suponho. Não, referia-me a Gorlois. O que acontecerá a ele? Há um risco certamente? — Nada é feito sem risco. Você deve fazer o mesmo que eu, confiar no tempo. Mas posso dizerlhe que o seu nome e o seu reino sobreviverão ao trabalho da noite. Um silêncio breve. Ele media-me com os olhos. — Vindo de você, creio que isto seja o suficiente. Estou satisfeito. — Fará bem em estar. Você sobreviverá a ele, Uther. Riu subitamente. — Meu Deus, homem, eu mesmo poderia ter profetizado isso! Posso dar-lhe trinta anos, que ele não é homem de ficar em casa quando se trata de uma guerra. O que é uma boa razão para eu me recusar a ter o seu sangue nas minhas mãos. Portanto, por esse mesmo motivo... Voltou-se então para Ulfin e começou a dar ordens. Era de novo o velho Uther, animado, conciso, claro. Um mensageiro deveria partir imediatamente para Caerleon e tropas deveriam ser despachadas dali para o norte de Cornwall. O próprio Uther viajaria para lá diretamente de Londres assim que pudesse, seguindo rápido com uma pequena guarda pessoal para o local onde as tropas estariam acampadas. Dessa forma, o Rei poderia estar nos calcanhares de Gorlois, embora Gorlois partisse hoje, e o Rei precisasse permanecer festejando com os seus pares por mais quatro longos dias. Outro homem deveria partir prontamente pela nossa rota proposta até Cornwall e providenciar para que bons cavalos estivessem à espera em etapas curtas por todo o percurso.

Aconteceu, pois, conforme havíamos planejado. Vi Ygraine na coroação ainda, composta, empertigada, os olhos baixos, e tão pálida que, se eu não a tivesse visto na noite anterior, acreditaria na sua história. Nunca cessarei de admirar as mulheres. Mesmo com poder, não é possível ler-lhes a mente. Duquesas e vagabundas igualmente, não precisam nem estudar para ludibriar. Creio que se dá o mesmo com os escravos, que vivem atemorizados, e com aqueles animais que se disfarçam por instinto, para salvar a vida. Ela sentou-se durante toda a brilhante cerimônia como uma cera que a qualquer momento fosse derreter-se ou tombar; mais tarde, vi-a de relance, apoiada nas damas, deixando a multidão quando toda aquela pompa se movia lentamente em direção ao salão de festas. Em meio à festa, quando o vinho já correra a toda a volta, vi Gorlois deixar o salão despercebido com um ou dois homens que atendiam ao chamado da natureza. Não voltou. Uther, para alguém que soubesse da verdade, poderá não ter sido tão convincente quanto Ygraine, mas entre a exaustão, o vinho e a exaltação feroz da expectativa, parecia bastante convincente. Os homens comentavam entre si em voz baixa a sua ira ao descobrir a ausência de Gorlois e as juras raivosas de vingar-se, assim que os convidados reais partissem. Se a zanga era um pouco exagerada e as ameaças violentas demais contra um duque cujo único pecado era proteger a própria esposa, o Rei já se mostrara bastante imoderado antes para que os homens julgassem isso parte do mesmo quadro. E tão brilhante era agora a estrela de Uther, tão ofuscante o lustre do Pendragon coroado, que Londres ter-lheia perdoado até um estupro público. Menos facilmente perdoariam Ygraine por tê-lo recusado. Então chegamos a Cornwall. O mensageiro fizera um bom trabalho e a nossa viagem, em etapas curtas e duras de não mais de vinte milhas por vez, levou-nos dois dias e uma noite. Encontramos as tropas esperando acampadas no local escolhido — a algumas milhas do Ponto de Hercules e às portas da fronteira de Cornwall — e a notícia de que, como quer que tivesse arranjado isso, Ygraine estava segura em Tintagel com um pequeno corpo de homens selecionados, enquanto o marido, com o resto do exército, descera para Dimilioc e expedira uma convocação para que todos os homens de Cornwall se reunissem para defender o seu Duque. Devia saber da presença das tropas do Rei tão próximas à fronteira, mas sem dúvida imaginava que aguardassem a chegada do Rei, e não poderia passar-lhe pela cabeça que o Rei já estivesse lá. Ao anoitecer, entramos secretamente no nosso campo, não no alojamento do Rei, mas no de um capitão em quem ele podia confiar. Cadal já estava lá, tendo seguido à frente para preparar os disfarces que pretendíamos usar e esperar a mensagem de Ralf de Tintagel de que a hora propícia chegara. Meu plano era bastante simples, com a espécie de simplicidade que freqüentemente traz resultados, e foi auxiliado pelo hábito de Gorlois, que desde que se casara voltava todas as noites que podia, de Dimilioc ou de outras fortalezas, para visitar a esposa. Suponho que tenha havido muitos gracejos sobre o carinho do velho, e ele formara o hábito (contara-me Ralf) de voltar a cavalo, secretamente, usando um portão particular, uma entrada secreta, de difícil acesso a não ser para quem conhecesse o caminho. Meu plano consistia apenas em disfarçar Uther, Ulfin e a mim próprio, de modo a passarmos, se fôssemos vistos, por Gorlois, seu acompanhante e um criado, e seguirmos para Tintagel à noite. Ralf arranjaria tudo de modo a estar de serviço na entrada secreta, iria ao nosso encontro e nos conduziria até lá. Ygraine de alguma forma persuadiria Gorlois — esse fora o maior perigo — a não visitá-la aquela noite, e despediria todas as damas, com exceção de Márcia. Ralf e Cadal combinariam entre si que roupa deveríamos usar: a comitiva de Cornwall saíra de Londres com tanta pressa que parte da bagagem ficara para trás, e tinha sido simples arranjar roupas de montaria com o brasão de Cornwall, e mesmo uma das capas de guerra bem conhecidas de Gorlois, com uma orla dupla de prata. A última mensagem de Ralf fora tranqüilizadora; a hora propícia havia chegado e a noite estava bastante escura para nos ocultar, e bastante tempestuosa para manter a maioria dos homens dentro de

casa. Partimos quando já estava escuro e os quatro esgueiramo-nos do acampamento sem sermos vistos. Uma vez passadas as nossas linhas, prosseguimos a galope para Tintagel, e seria preciso um olho muito arguto e cheio de suspeita para dizer que aquele não era o duque de Cornwall com três companheiros, cavalgando apressado para casa, para ver a esposa. A barba de Uther tinha sido acinzentada e uma atadura descia pelo lado do rosto para esconder o canto da boca e fornecer uma razão para qualquer estranheza na sua fala, caso fosse forçado a falar. O capuz a envolver-lhe o rosto, como era natural numa noite tão violenta, sombreava suas feições. Ele era mais aprumado e mais forte que Gorlois, mas isto era bastante fácil de disfarçar, e trazia manoplas para esconder as mãos, que não eram mãos de velho. Ulfin passava bastante bem por Jordan, um criado de Gorlois, que fora escolhido por ter o físico e a tez mais parecidos com os de Ulfin. Eu usava roupas de Brithael, amigo e capitão de Gorlois; era um homem mais velho que eu, mas cuja voz não era muito diferente da minha, e eu sabia falar bem o dialeto cômico. Sempre fui bom para vozes. Faria a conversa que fosse necessária. Cadal veio conosco sem disfarce; deveria esperar com os cavalos do lado de fora e ser o nosso mensageiro se precisássemos de um. Acerquei-me do Rei e segredei-lhe ao ouvido: — O castelo está a menos de uma milha daqui. Seguiremos para praia agora. Ralf estará lá para guiar-nos. Sigo à frente? Ele assentiu. Mesmo na escuridão, com a velocidade a que íamos, pensei ter visto um brilho no seu olhar. Acrescentei: — E não olhe assim, do contrário nunca o tomarão por Gorlois, com anos de casado nas costas. Ouvi-o rir-se e então afastei-me com o cavalo, abrindo caminho, cuidadosamente, pela encosta cheia de coelhos e calhaus, em direção entrada do vale estreito que levava à praia. Este vale é pouco mais que uma garganta, por onde corre um pequeno rio para o mar. No trecho mais largo, o rio não tem mais de três passos e é tão raso que um cavalo pode cruzá-lo em qualquer ponto. Na saída do vale, a água cai por um penhasco baixo e reto sobre a praia de cascalho de ardósia., Descemos a trilha em fila indiana, a corrente profunda para a esquerda, e à nossa direita uma encosta alta, coberta de arbustos. Já que o vento soprava de sudoeste e o vale íngreme cortava quase para o norte, estávamos ao abrigo da ventania, mas no alto do barranco, os arbustos assoviavam com o vento e os gravetos e mesmo galhos pequenos eram arremessados pelo ar cruzando a nossa trilha. Mesmo sem isso e sem a profundidade da trilha rochosa e a escuridão, não era um percurso fácil; os cavalos, com a tempestade e a tensão que deveria ter sido gerada pelos três — Cadal estava impassível como uma rocha, mas não ia entrar no castelo — estavam inquietos, os olhos esbranquiçados de nervoso. Quando, a um quarto de milha do mar, nos voltamos para o rio, fazendo os animais cruzá-lo, o meu, à frente, abaixou as orelhas e empacou, e ao chicoteá-lo e mergulhá-lo num meio-galope pela trilha estreita acima ao mesmo tempo, uma silhueta de homem destacou-se das sombras à nossa frente; o cavalo parou, empinando, e tive a certeza de que ele iria cair de costas e eu com ele. A sombra acorreu e agarrou o freio, puxando o cavalo para baixo. O animal parou, suando e tremendo. — Brithael — disse eu. — Tudo bem? Ouvi-o soltar uma exclamação, dar um passo aproximando-se mais do cavalo e espreitar para o alto na escuridão. Atrás de mim, o cavalo de Uther guindou-se para o alto da trilha e parou, batendo os cascos. O homem junto ao meu cavalo disse incerto: — My lord Gorlois...? Não o esperávamos esta noite. Há notícias, então?

Era a voz de Ralf. Respondi na minha própria: — Então passaremos ao menos no escuro? Ouvi-o tomar ar. — Sim, my lord... Por um instante pensei que era Brithael. E então o cavalo cinzento... Aquele é o Rei? — Por esta noite — disse eu — é o Duque de Cornwall. Está tudo bem? — Sim, senhor. — Então mostre o caminho. Não há muito tempo. Ele agarrou as rédeas do meu cavalo acima do freio e conduziu-o, pelo que lhe fui grato, pois a trilha era perigosa, estreita e escorregadia, e serpeava pelo barranco íngreme entre os arbustos farfalhantes; não era um caminho que eu gostaria de cavalgar, mesmo à luz do dia, num cavalo estranho e assustado. Os outros acompanharam-nos, a montaria de Cadal e de Ulfin marchando imperturbáveis, e logo atrás de mim o potro cinzento resfolegando a cada arbusto e tentando escapar ao controle do cavaleiro, mas Uther poderia cavalgar o próprio Pégaso e deixá-lo esfalfado sem sequer doerem-lhe os pulsos. Então meu cavalo se assustou com alguma coisa que não consegui ver, tropeçou e me teria atirado no chão se não fosse Ralf à sua cabeça. Praguejei e perguntei a Ralf: — É longe ainda? — Cerca de duzentos passos até a praia, senhor, e deixaremos os cavalos lá. Subiremos o promontório a pé.. — Por todos os deuses da tempestade. Ficarei satisfeito de me abrigar. Você teve algum problema? — Nenhum, senhor. — Ele precisava altear a voz para que eu escutasse, mas naquela ventania não havia receio de ser ouvido a mais de três passos de distância. — Minha senhora disse a Félix, o porteiro, que pedira ao Duque para voltar, assim que tivesse disposto as tropas em Dimilioc. Naturalmente, já se espalhou a notícia de que está grávida, de modo que é bastante natural que ela o queira ver, mesmo com os exércitos do Rei tão próximos. Ela disse a Félix que o Duque entraria pela porta secreta para o caso de o Rei já ter postado espiões. Ele não deveria dizer à guarnição, recomendou ela, porque poderiam alarmar-se ao saber que ele deixara Dimilioc e as tropas. Mas o Rei não poderia provavelmente chegar a Cornwall antes de mais um dia, no mínimo... Félix não suspeita de nada. Por que deveria suspeitar? — O porteiro está sozinho no portão? — Sim, mas há dois soldados na casa da guarda. Ele já nos descrevera o que havia no interior da porta secreta. Era um pequeno portão encaixado baixo na muralha externa do castelo e, logo na entrada, um longo lance de degraus que subiam para a direita, junto à parede. A meio caminho havia um patamar largo com uma sala de guarda a um lado. Os degraus continuavam, e no alto uma porta particular levava aos apartamentos. — Os soldados sabem? — perguntei. Sacudiu a cabeça. — My lord, não tivemos coragem. Todos os homens deixados com Lady Ygraine foram escolhidos pessoalmente pelo Duque. — A escada é bem iluminada? — Um archote. Providenciei para que soltasse bastante fumaça.

Olhei por cima do ombro para o cavalo cinzento, que parecia um fantasma acompanhando-me na escuridão. Ralf tivera de erguer a voz para que eu o ouvisse apesar da ventania que rugia no alto do vale, e eu teria julgado que o Rei quereria saber o que se passava entre nós. Mas ele mantinha-se silencioso, desde o início da cavalgada. Parecia que estava realmente satisfeito em confiar no tempo. Ou em confiar em mim. Voltei-me de novo para Ralf, debruçando-me no pescoço do cavalo. — Há uma senha? — Sim, my lord. "Peregrino". E a senhora enviou um anel para o Rei usar. É o que o Duque usa às vezes. Ali está o fim da trilha, está vendo? É uma descida bem acentuada para a praia. Parou, firmando o cavalo, então o animal pulou e seus cascos bateram no cascalho. — Deixaremos os cavalos aqui, my lord. Desmontei, agradecido. Tanto quanto podia ver, estávamos numa pequena enseada abrigada do vento por um grande promontório à esquerda, mas o mar que invadia essa ponta de terra e se curvava para quebrar nas rochas fora da praia era imenso, e descia com violência sobre o cascalho em torrentes de espuma, produzindo um estrondo de dois exércitos a defrontarem-se irados. Longe, para a direita, vi outro promontório e entre os dois a faixa ruidosa de água branca interrompida por dentes de rocha preta. O rio às nossas costas caía pelo penhasco baixo em direção ao mar em duas compridas cascatas, que eram sopradas pelo vento como duas trancas de cabelo. Além dessas cascatas e sob a parede saliente do penhasco principal, havia um abrigo para os cavalos. Ralf apontava para o promontório à nossa esquerda. — A trilha é ali. Diga ao Rei para vir atrás de mim, seguindo-me bem de perto. Um pé em falso esta noite, e antes que possa gritar por socorro estará lá fora com a maré, tão longe como as estrelas do ocidente. O cavalo cinza pulou para junto de nós e o Rei desceu da sela. Ouvi-o rir, aquele mesmo som agudo e exultante. Mesmo que não houvesse um prêmio ao final da corrida noturna, ele seria o mesmo. O perigo era bebida e sonho para Uther. Os outros dois reuniram-se a nós, desmontaram, e Cadal tomou as rédeas. Uther chegou ao meu ombro, olhando para a investida cruel das águas. — Nadamos agora? — Poderemos chegar a isso, sabe Deus. Parece-me que as ondas sobem até a muralha do castelo. Ele ficou muito quieto, indiferente às rajadas de vento e de chuva, a cabeça erguida contemplando o promontório. No alto, uma luz brilhava contra a escuridão da tempestade. Toquei-lhe o braço. — Ouça. A situação é a que esperávamos. Há um porteiro, Félix, e dois soldados na casa da guarda. Haverá pouca luz. Conhece o caminho. Será suficiente que, ao entrarmos, resmungue um agradecimento a Félix e suba rapidamente as escadas; Márcia, a dama velha, irá encontrá-lo à porta dos aposentos de Ygraine para fazê-lo entrar. Pode deixar o resto conosco. Se surgir algum problema, então haverá três de nós contra três deles e numa noite destas não se ouvirá o barulho. Aparecerei uma hora antes do amanhecer e mandarei Márcia buscá-lo. Agora não poderemos falar de novo. Acompanhe Ralf de perto, a trilha é muito perigosa. Ele tem um anel para você e a senha. Vá agora. Ele voltou-se sem dizer palavra e caminhou pelo cascalho borbulhante até onde se achava o

menino. Encontrei Cadal ao meu lado com as rédeas dos quatro cavalos presas no punho. Seu rosto, como o meu, pingava de umidade e a capa agitava-se ao seu redor como uma nuvem de tempestade. Eu disse: — Você me ouviu. Uma hora antes do amanhecer. Ele também contemplava o penhasco no alto, onde se agigantava o castelo. Num momento de claridade fugaz, por entre uma nuvem desfeita, vi as muralhas do castelo emergindo da rocha. Abaixo delas caía o penhasco, quase vertical, até às ondas que rugiam. Entre o promontório e a terra firme, ligando o castelo ao penhasco principal, corria um ressalto natural da rocha, seu lado perpendicular polido pelo mar como a lâmina de uma espada. Da praia onde nos encontrávamos não parecia haver nenhuma saída exceto o vale; nem a fortaleza em terra firme, nem o promontório, nem a rocha do castelo podiam ser escalados. Não admirava que não postassem sentinelas ali. E a trilha para o portão secreto poderia ser defendida por um só homem contra um exército. Cadal dizia: — Vou levar os cavalos para ali, sob a saliência, no abrigo que há. E por mim, se não for pelo seu cavalheiro doente de amor, seja pontual. Se chegarem a suspeitar lá em cima de que há algo de anormal, somos ratos numa ratoeira, todos nós. Podem fechar aquele maldito vale tão rapidamente quanto podem bloquear o promontório, sabe disso? E não me agrada nem um pouquinho nadar para o lado oposto. — Nem a mim. Sossegue, Cadal, sei o que vou fazer. — Acredito em você. Há alguma coisa em você esta noite... A maneira como falou agora mesmo com o Rei, sem pensar, mais ríspido do que falaria a um criado. E ele não disse uma palavra, mas fez o que você lhe pediu. Sim, diria que você sabe o que está fazendo. O que é tanto melhor, mestre Merlin, porque, de outra forma, compreende que está arriscando a vida do Rei da Bretanha por uma noite de prazer? Fiz uma coisa que nunca havia feito antes, e que geralmente não faço. Estendi a mão e pousei-a sobre a de Cadal que segurava as rédeas. Os cavalos estavam quietos agora, molhados e infelizes, aconchegando-se com as ancas para o vento e as cabeças baixas. — Se Uther entrar naquele castelo esta noite e se deitar com ela, então, perante Deus, Cadal, importará menos que uma gota de espuma do mar se ele for assassinado na cama. Afirmo-lhe que um Rei sairá do trabalho desta noite, cujo nome será um escudo e um broquel para os homens até que esta linda terra, de uma costa a outra, seja esmagada pelo mar que a envolve, e os homens deixem a terra para viver entre as estrelas. Acha que Uther é um Rei, Cadal? É apenas um regente para aquele que veio antes e aquele que virá depois, o Rei passado e futuro. E esta noite ele é menos ainda que isso: é um instrumento e ela, um receptáculo, e eu... eu sou o espírito, a palavra, a coisa do ar e das trevas, e posso influenciar o que estou fazendo tanto quanto um colmo pode influenciar o vento de Deus que passa por ele. Você e eu, Cadal, somos tão desamparados quanto as folhas mortas nas águas dessa enseada. — Deixei cair a mão. — Uma hora antes do amanhecer. — Até lá, my lord. Deixei-o e, com Ulfin no meu encalço, segui pelo cascalho atrás de Ralf e do Rei até o pé do penhasco negro.

7 NÃO CREIO que mesmo à luz do dia eu pudesse encontrar essa trilha novamente sem um guia, e muito menos subi-la. Ralf foi à frente com a mão do Rei pousada no seu ombro; por minha vez, eu segurava uma dobra da capa de Uther, e Ulfin da minha. Felizmente, encostados à face do rochedo como andávamos, estávamos protegidos do vento; expostos, a subida teria sido impossível; seríamos arrancados do penhasco como penas. Mas não estávamos protegidos do mar. As ondas deviam erguer-se a mais de dez metros e as principais, as sétimas, cresciam como torres rugindo e encharcando-nos de sal a bem vinte metros da praia. Uma boa coisa o fervilhar selvagem do mar fez por nós; sua brancura refletia para o alto a luz que vinha do céu. Finalmente vimos, acima das nossas cabeças, as fundações das paredes do castelo formando ressaltos na rocha. Mesmo em tempo seco as muralhas não teriam permitido uma escalada e esta noite a água descia por elas em torrentes. Não vi porta alguma, nada que interrompesse a superfície lisa das paredes de ardósia. Ralf não parou; seguiu adiante sob as mesmas, em direção a um canto do penhasco voltado para o mar. Ali fez uma pausa momentânea e vi-o mover o braço num gesto que significava "Cuidado". Dobrou o canto com cautela e desapareceu de vista. Senti Uther vacilar ao atingir o canto e enfrentar a força do vento. Parou por um momento e prosseguiu, agarrado à face do rochedo. Ulfin e eu acompanhamo-lo. Por mais alguns metros apavorantes lutamos ao longo do caminho, os rostos voltados para a face molhada e escorregadia do penhasco, quando então uma escora saliente nos abrigou e começamos a descer aos tropeções por uma rampa escorregadia acolchoada de algas. À nossa frente, metida num recesso da rocha sob a muralha do castelo e oculta dos baluartes acima por um ressalto pontiagudo, surgiu a porta de emergência de Tintagel. Vi Ralf lançar um longo olhar para o alto antes de mergulhar sob a rocha. Não havia sentinelas. Que necessidade havia de postar homens num baluarte voltado para o mar? Ele sacou a adaga e bateu com força na porta, um padrão de batidas que nós, que estávamos parados às costas dele, mal ouvimos, tal a ventania. O porteiro deveria estar à escuta junto à porta. Abriu-a imediatamente. Ela girou silenciosa por uns dez centímetros, então parou, e ouvimos o chocalhar da corrente. Pela abertura apareceu uma mão segurando um archote. Uther, ao meu lado, puxou o capuz mais para baixo, e passei à frente dele acercando-me de Ralf, mantendo a capa junto à boca e curvando os ombros contra as rajadas de vento e chuva. O rosto do porteiro, a metade apenas, apareceu sob o archote. Um olho espreitou. Ralf, bem iluminado pela faixa de luz, disse, ansioso: — Depressa, homem. Um peregrino. Sou eu de volta com o Duque. O archote subiu mais um pouco. Vi a grande esmeralda no dedo de Uther refletir a luz e falei bruscamente com a voz de Brithael: — Abra, Félix, e deixe-nos entrar, pelo amor de Deus. O Duque levou uma queda do cavalo esta manhã e suas ataduras estão empapadas. Só há nós quatro aqui. Apresse-se. A corrente foi retirada e a porta abriu-se totalmente. Ralf estendeu o braço de modo que, segurando-a ostensivamente para o amo, pudesse entrar na passagem entre Félix e Uther, ao mesmo

tempo que o Rei. Uther passou pelo homem que fazia uma reverência, sacudindo a água como um cão molhado e respondendo qualquer coisa ininteligível à sua saudação. Então, com um breve aceno da mão que fez a esmeralda faiscar de novo, voltou-se direto para a escada que subia à nossa direita e começou a galgá-la rapidamente. Ralf tirou o archote da mão do porteiro enquanto eu e Ulfin seguíamos apressados atrás de Uther. — Eu iluminarei o caminho com isto. Feche e ponha a tranca na porta novamente. Descerei mais tarde para dar-lhe as notícias, Félix, mas estamos molhados como cães afogados e queremos chegar-nos ao fogo. Há um na sala da guarda, suponho? — Há. O porteiro já se virará para colocar a tranca na porta. Ralf segurava o archote de modo que Ulfin e eu pudéssemos passar na sombra. Comecei a subir os degraus lentamente no rastro de Uther, com Ulfin nos meus calcanhares. Os degraus estavam iluminados apenas por uma lamparina fumegante que ardia num suporte da parede no patamar largo mais acima. Fora fácil. Fácil demais. De repente, no patamar, a luz sombria foi aumentada pela de um archote claro e dois soldados saíram de uma porta, as espadas preparadas. Uther, seis degraus acima, parou ligeiramente e continuou. Vi sua mão sob a capa descer para a espada. Sob a minha eu soltara a arma na bainha. Os passos leves de Ralf subiram correndo os degraus atrás de nós. — My lord Duque! Uther, pude imaginar quão agradecido, parou e voltou-se para esperar por ele, de costas para os guardas. — My lord Duque, deixe-me iluminar... Ah, eles têm um archote lá em cima. — Só então pareceu reparar nos guardas com a luz intensa. Continuou a correr, passando por Uther, dizendo alegre: — Olá, Marcus, Sellic, dêem-me esse archote para iluminar o caminho de my lord até a Duquesa. Esta coisa só fumega. O homem com o archote segurava-o bem alto e os dois espreitavam-nos. O menino não hesitou. Correu direto por entre as espadas e tirou o archote da mão do homem. Antes que pudessem impedi-lo, voltou-se rápido para apagar o primeiro archote num depósito de areia que se achava junto à porta da sala da guarda. O novo archote brilhava claramente, mas balançava e estremecia à medida que ele se movia, de modo que as sombras dos guardas se projetavam imensas e grotescas pelos degraus abaixo, ajudando a encobrir-nos. Uther, aproveitando-se das sombras instáveis, começou a subir rapidamente o novo lance. A mão com o anel de Gorlois erguia-se para retribuir as saudações dos homens. Os guardas afastaram-se para o lado. Mas cada um para um lado no alto da escada, as espadas ainda nas mãos. Atrás de mim ouvi um sussurro débil quando a lâmina de Ulfin soltou da bainha. Sob a capa, a minha encontrava-se metade de fora. Não havia esperanças de passar por eles. Teríamos de matá-los e rezar para que não fizéssemos barulho. Ouvi os passos de Ulfin afrouxarem e sabia que ele pensava no porteiro. Talvez precisasse voltar enquanto nos ocupávamos dos guardas. Mas não houve necessidade. Subitamente, no alto do segundo lance de degraus, a porta abriu-se de par em par e ali, completamente iluminada, apareceu Ygraine. Estava de branco como eu a vira antes, mas desta vez não de camisola. O vestido comprido brilhava como as águas de um lago. Sobre

um braço e o ombro, à maneira romana, usava um manto azul-escuro. O cabelo estava enfeitado com jóias. Quando ela estendeu as mãos, o manto azul afastou-se dos pulsos refulgentes de ouro vermelho. — Bem-vindo, my lord! Sua voz alta e clara fez com que os dois guardas se voltassem para olhá-la. Uther venceu a última meia dúzia de degraus em dois passos, e deixou-os para trás, a capa roçando as lâminas das espadas. Passou pelo archote brilhante de Ralf e continuou rapidamente pelo segundo lance de escadas. Os soldados empertigaram-se um de cada lado no alto das escadas, de costas para a parede. Atrás de mim, ouvi Ulfin ofegar, mas seguiu-me quieto, calmo e sem pressa. Subi os últimos degraus para o patamar. É alguma coisa, suponho eu, ter nascido príncipe, mesmo bastardo; eu sabia que os olhos das sentinelas estavam pregados na parede à frente devido à presença da Duquesa, tão certo como se fossem cegos. Passei pelas espadas e Ulfin também. Uther alcançara o alto da escadaria. Tomou-lhe as mãos e ali, diante da porta iluminada, com as espadas dos seus inimigos refletindo à luz do archote abaixo dele, o Rei baixou a cabeça e beijou Ygraine. A capa escarlate girou sobre os dois, engolfando o branco. À frente deles, eu vi a sombra da velha dama, Márcia, segurando a porta. Então o Rei disse: — Venha. E com a grande capa ainda a envolver os dois, conduziu-a para a luz, e a porta fechou-se à passagem deles. Assim tomamos Tintagel.

8 ESTÁVAMOS BEM SERVIDOS aquela noite, Ulfin e eu. A porta do quarto mal se fechara, deixando-nos ilhados a meio do lance de escadas entre a porta e os guardas, quando ouvi a voz de Ralf novamente, fácil e rápida, acima do ruído das espadas ao serem embainhadas: — Deuses e anjos, que trabalho para uma noite! E ainda tenho que levá-lo de volta quando terminar! Tem um fogo na sala adiante? Ótimo. Teremos uma chance de secar enquanto esperamos. Podem descansar agora e deixar o caso conosco. Vamos, o que estão esperando? Receberam suas ordens — e nenhuma palavra, prestem atenção, para ninguém que apareça. Um dos guardas, repondo a espada na bainha, voltou direto para a sala da guarda, mas o outro hesitou, olhando na minha direção. — My lord Brithael, é certo? Podemos deixar o serviço? Comecei a descer lentamente os degraus. — Está certo, sim. Podem ir. Mandaremos o porteiro buscar vocês quando quisermos sair. E, acima de tudo, nem uma palavra sobre a presença do Duque. Tome as providências necessárias. — Voltei-me para Ulfin, de olhos arregalados no degrau abaixo. — Jordan, vá para a porta do quarto ali e fique de guarda. Não, dê-me a sua capa. Vou levá-la para junto do fogo. Quando partiu, agradecido, a espada finalmente na mão, ouvi Ralf cruzar a sala da guarda, sublinhando minhas ordens com ameaças que eu podia adivinhar. Desci as escadas, sem pressa, para dar-lhe tempo de livrar-se dos homens. Ouvi a porta interna fechar-se e entrei. A sala da guarda, vivamente iluminada pelo archote e o fogo resplandecente, estava vazia, exceto por nós. Ralf deu-me um sorriso alegre, os nervos gastos. Nunca mais, nem para agradar minha senhora, por todo o ouro de Cornwall. — Não haverá necessidade outra vez. Você portou-se mais do que bem, Ralf. O Rei não esquecerá. Ele esticou-se para colocar o archote no suporte,.viu meu rosto e perguntou, ansioso: — O que foi, senhor? Está doente? — Não. Essa porta tem chave? — Acenei para a porta fechada pela qual os guardas haviam saído. — Já a tranquei. Se tivessem qualquer suspeita, não me entregariam a chave. Mas não tinham, e por que teriam? Eu poderia ter jurado agora mesmo que era Brithael falando ali das escadas. Foi como mágica. — A última palavra continha uma interrogação, e ele me fitou com o olhar que eu conhecia, mas como não respondi, perguntou apenas: — O que agora, senhor? — Desça até o porteiro e mantenha-o longe daqui. — Sorri. — Você terá a sua vez junto ao fogo, Ralf, quando tivermos partido. Ele saiu, os passos leves como sempre, pela escada abaixo. Ouvi-o falar alguma coisa e uma gargalhada de Félix. Despi a capa molhada e estendi-a com a de Ulfin, junto ao fogo. Sob a capa as roupas estavam bastante secas. Sentei-me por um momento, levando as mãos à frente diante do fogo. Havia silêncio na sala iluminada pelas chamas, mas do lado de fora o ar enchia-se com o fragor das

ondas e da tempestade que açoitava as muralhas do castelo. Meus pensamentos picavam como centelhas. Não conseguia sentar-me sossegado. Pus-me de pé e caminhei pela pequena sala, inquieto. Ouvi a tempestade lá fora caminhando até a porta, ouvi o murmúrio de vozes e o chocalhar de dados enquanto Ralf e Félix passavam o tempo junto ao portão. Olhei para o outro lado. Nenhum som do alto da escadaria, onde eu podia ver Ulfin, ou talvez sua sombra, imóvel junto à porta do quarto... Alguém descia de mansinho as escadas; uma mulher encoberta por um manto, carregando alguma coisa. Veio sem ruído e não se ouvia som nem movimento de Ulfin. Saí para o patamar, e a luz da sala da guarda acompanhou-me, luz das chamas e sombras. Era Márcia. Vi as lágrimas brilharem nas suas faces ao baixar a cabeça para o que trazia nos braços. Uma criança enrolada em agasalhos quentes para protegê-la da noite de inverno. Viu-me e estendeu o seu fardo para mim. — Cuide dele — disse, e através do brilho das lágrimas vi o contorno da escadaria delinear-se outra vez por trás dela. — Cuide dele... O sussurro desapareceu na flutuação do archote e no zunido da tempestade lá fora. Eu estava sozinho na escada e no alto havia uma porta fechada. Ulfin não se movera. Abaixei os braços vazios e voltei para o fogo. Morria agora e fi-lo avivar-se outra vez, mas de pouco me serviu, pois novamente a luz me feriu. Embora eu tivesse visto o que queria, havia morte em algum ponto antes do fim e eu tinha medo. Meu corpo doía e a sala sufocava. Apanhei minha capa que estava quase seca, envolvi-me nela e atravessei o patamar para uma pequena porta na parede externa sob a qual o vento passava como uma faca. Empurrei-a contra o vento e saí. A princípio, depois da claridade da sala da guarda eu nada vi. Fechei a porta às minhas costas e encostei-me na parede molhada, enquanto o ar da noite caía sobre mim como um rio. Então as coisas tomaram forma à minha volta. Em frente, a alguns passos de distância, estava o parapeito de ameias que me chegava à cintura, a parede externa do castelo. Entre esta e a parede onde eu me encontrava havia uma plataforma plana; acima, outra parede em ameias e para além o enorme penhasco de onde se erguiam as muralhas e a silhueta da fortaleza continuando passo a passo até o pico do promontório. No topo da subida onde eu vira a janela iluminada, a torre recortava-se agora negra e sem luz contra o céu. Caminhei para o parapeito e debrucei-me. Embaixo havia uma falda de penhasco que durante o dia deveria ser uma encosta relvada coberta de algas, beijos-de-freira e ninhos de aves marinhas. Além e para baixo, a fúria branca da baía. Olhei para a direita, o caminho que tínhamos percorrido. A não ser pelos arcos de espuma branca, a baía onde Cadal esperava achava-se invisível na escuridão. Parará de chover e as nuvens corriam mais altas e mais finas. O vento mudara um pouco, diminuindo de intensidade. Cessaria até o amanhecer. Aqui e ali, altos e negros para além das nuvens velozes, os espaços da noite pontilhavam-se de estrelas. Então de súbito, diretamente acima de mim, as nuvens separaram-se e ali, deslizando entre elas como um navio pelas ondas, a estrela. Estava ali entre o ofuscamento das estrelas menores, piscando a princípio, então pulsando, crescendo, explodindo luz e todas as cores que se vêem na água em movimento. Observei-a aumentar, incendiar-se e abrir-se em luz; depois, o vento veloz atirava uma teia de nuvens sobre ela, tornando-a cinzenta e opaca e distante, perdida de vista entre as outras estrelas insignificantes. Quando as nuvens começavam a dançar outra vez, ela voltava, inteirando-se e crescendo e dilatando-se até que se destacava das outras como um archote lançando um redemoinho de centelhas. E assim continuou toda a noite enquanto permaneci sozinho no parapeito de ameias a observá-la, vivida e brilhante, e em seguida

cinzenta e adormecida, mas despertando cada vez para luzir mais suavemente. Perto do amanhecer, manteve-se brilhante e parada, com a claridade a crescer ao seu redor como se o novo dia prometesse surgir limpo e tranqüilo. Inspirei e limpei o suor do meu rosto. Endireitei-me, afastando-me do parapeito onde me debruçara. Meu corpo estava entorpecido, mas a dor desaparecera. Olhei para a janela escura de Ygraine, onde agora eles dormiam.

9 ATRAVESSEI A PLATAFORMA de volta à porta. Ao abri-la, ouvi, clara e nítida, uma batida na porta secreta embaixo. Num passo largo, alcancei o patamar, fechando a porta atrás de mim, no momento em que Félix saía do cubículo e se encaminhava para a outra porta. Quando levou a mão à corrente, Ralf correu atrás dele com o braço erguido. No seu punho vi o brilho da adaga invertida. Pulando com a leveza de um gato, atingiu-o com o cabo da adaga. Deve ter feito algum ruído perceptível ao homem que estava do lado de fora, apesar do rugido do mar, porque uma voz soou ríspida: — O que é isso? Félix? E as batidas recomeçaram, mais fortes que antes. Eu já estava na metade do lance. Ralf curvava-se sobre o corpo do porteiro, mas voltou-se ao me ver descer e interpretou corretamente o meu gesto. Endireitou-se e perguntou claramente: — Quem está lá? — Um peregrino. Era uma voz masculina, e ofegante. Desci de mansinho o restante do lance. Entrementes, despi a capa e enrolei-a no braço esquerdo. Ralf lançou-me um olhar, do qual desaparecera toda a alegria e ousadia. Não havia necessidade de fazer a pergunta seguinte; sabíamos a resposta. — Quem faz a peregrinação? — A voz do menino estava rouca. — Brithael. Agora abra, depressa! — My lord Brithael! My lord... eu não posso... não tenho ordens para admitir ninguém por aqui... — Ele me observava enquanto eu me curvava para apanhar Félix por baixo dos braços e arrastá-lo, com o menor ruído possível, de volta ao cubículo, fora de vista. Vi Ralf umedecer os lábios. —Não pode dirigir-se à porta principal, my lord? A Duquesa deverá estar dormindo e não tenho ordens... — Quem é você? — perguntou Brithael. — Ralf, pela voz. Onde está Félix? — Foi à sala da guarda, senhor. — Então, apanhe a chave com ele ou mande-o descer. — A voz do homem endureceu e o punho tornou a bater na porta. — Faça como digo, menino, ou, por Deus, arrancarei sua pele. Tenho uma mensagem para a Duquesa e ela não lhe vai agradecer por retardar-me aqui. Vamos já, corra I — A... a chave está aqui, my lord. Um momento. — Lançou-me um olhar desesperado sobre o ombro esquerdo, enquanto remexia na tranca. Deixei o homem inconsciente escondido e já estava de volta no ombro de Ralf, segredando ao seu ouvido: — Veja se ele está sozinho, primeiro. Depois, deixe-o entrar. Ele acenou concordando e a porta abriu-se na corrente. Acobertado pelo barulho que fazia, desembainhei a espada e desapareci nas sombras por trás do menino, onde a porta me ocultaria de Brithael. Encostei-me à parede. Ralf espreitou pela abertura, então, recuou com um sinal para mim e começou a deslizar a corrente para fora do encaixe. — Perdoe-me, my lord Brithael. — Ele parecia humilde e confuso: — Tinha de certificar-me... Há

algum problema? — Que outra coisa? — Brithael empurrou a porta com tanta violência, que teria batido em mim se Ralf não a tivesse aparado. — Não importa, você fez bem. — Começou a entrar e parou olhando o menino do alto. — Mas alguém esteve neste portão hoje à noite? — Oh, não, senhor! — Ralf parecia assustado, como seria de esperar, e portanto convincente. — Não enquanto eu estive aqui e Félix nada disse... Por quê? O que aconteceu? Brithael resmungou e sua armadura tilintou ao encolher os ombros. — Havia um sujeito lá embaixo, um cavaleiro. Atacou-nos. Deixei Jordan tratando dele. Não houve nada aqui, então? Problema algum? — Nenhum, my lord. — Então, tranque a porta outra vez e não deixe ninguém entrar, exceto Jordan. E agora, preciso ver a Duquesa. Trago graves notícias, Ralf. O Duque está morto. — O Duque? — O menino começou a gaguejar. Não fez nenhuma menção de fechar a porta, mas deixou-a aberta, balançando. Ainda escondia Brithael de mim, mas Ralf estava logo ao meu lado, e à luz fraca vi seu rosto empalidecer e esvaziar-se de expressão devido ao choque. — O Duque... m-morto, my lord? Assassinado? Brithael, já em movimento, parou e voltou-se. Mais um passo e estaria desembaraçado da porta que me ocultava. Eu não podia deixar que alcançasse os degraus e ficasse mais alto que eu. — Assassinado? Por quê, em nome de Deus? Quem faria isso? Não é o jeito de Uther. Não, o Duque quis arriscar antes que o Rei chegasse, e atacamos o acampamento real esta noite, fora de Dimilioc. Mas, eles estavam preparados. Gorlois foi morto na primeira arrancada. Vim com Jordan trazer a notícia. Diretamente do campo de batalha. Agora tranque a porta e faça como digo. Encaminhou-se para as escadas. Havia espaço agora para usar a espada. Saí das sombras por trás da porta. — Brithael. O homem deu meia volta. Suas reações eram tão rápidas que cancelaram a vantagem da surpresa. Suponho que não precisasse nem ter falado, mas há certas coisas que um príncipe é obrigado a fazer. Custou-me bastante caro e poderia ter-me custado a vida. Deveria lembrar-me de que aquela noite eu não era um príncipe, mas um instrumento do destino, como Gorlois a quem eu traíra e Brithael, a quem seria obrigado a matar. Eu era um refém do futuro. Mas a carga pesava nos meus ombros e sua espada já estava desembainhada antes de eu erguer a minha; ficamos a medir-nos um ao outro, olho a olho. Ele reconheceu-me quando os nossos olhos se encontraram. Percebi seu choque e um clarão rápido de medo que desapareceu num momento, no momento em que a minha posição e a espada desembainhada disseram-lhe que ele conduziria a luta e não eu. Talvez percebesse, no meu rosto, que eu já lutara aquela noite mais duramente que ele. — Devia ter adivinhado que você estaria aqui. Jordan achou que era o seu criado lá embaixo, seu feiticeiro desgraçado. Ralf! Félix! Guarda! Aqui, guarda! Vi que não percebeu de pronto que eu estivera no interior do portão todo o tempo. Então o silêncio na escada e o movimento rápido de Ralf afastando-se de mim para fechar a porta contou a sua própria história. Veloz como um lobo, rápido demais para que eu pudesse reagir, Brithael ergueu o braço esquerdo com o punho de ferro, atingindo de lado a cabeça do menino. Ralf caiu sem emitir um som, o

corpo escorando a porta aberta. Brithael saltou de volta ao portão: — Jordan! Jordan! A mim! Traição! Então eu estava em cima dele, rompendo a sua guarda desajeitado, peito contra peito, as espadas juntando-se e deslizando juntas, arrancando gemidos do metal e produzindo centelhas no choque. Passos apressados desciam a escada. Era a voz de Ulfin: — My lord... Ralf... Exclamei ofegante: — Ulfin... diga ao Rei... Gorlois está morto. Precisamos voltar... corra. Ouvi-o subir rápido os degraus, aos tropeções. Brithael disse entre dentes: — O Rei? Agora compreendo, seu cafetão alcoviteiro. Era um homem grande, um lutador no vigor da mocidade, e justificadamente furioso. Eu não possuía experiência e odiava o que ia fazer, mas era necessário. Já não era um príncipe, nem mesmo um homem lutando pelas regras dos homens. Era um animal selvagem lutando para matar, porque era inevitável. Com a mão livre, bati-lhe com força na boca e vi a surpresa nos seus olhos ao saltar para trás para desembaraçar a espada. Então voltou rápido, a espada como um anel de ferro à sua volta. De alguma forma abaixei-me sob a espada sibilante, aparei o golpe, segurei-o e meti-lhe um pontapé que o apanhou em cheio no joelho. A espada roçou pelo meu rosto com um assovio que queimava. Senti a ardência da pancada e o sangue escorrendo. Então, ao apoiar-se no joelho machucado, pisou torto, escorregou na relva molhada e caiu pesadamente, o cotovelo batendo numa pedra e a espada voando-lhe da mão. Qualquer outro homem teria dado um passo atrás para que pudesse recuperá-la. Desci sobre ele com todo o meu peso, procurando atingi-lo na garganta com a espada que diminuíra de tamanho, entrementes. Estava mais claro agora, e a luz aumentava de minuto a minuto. Vi o desprezo e a fúria no seu olhar quando rolou para livrar-se do golpe. Errei, e a espada entrou por um tufo esponjoso de algas. No segundo em que lutei desprotegido para desembaraçá-la, sua tática mudou para igualar-se à minha, e com aquele punho de ferro atingiu-me por trás da orelha e, desviando-se para um lado, ergueu-se e mergulhou pela encosta perigosa para apanhar a espada que jazia brilhando na relva, a dois passos da beira do penhasco. Se a alcançasse, matar-me-ia em segundos. Rolei, encolhi o corpo, tentando pôr-me de pé, lancei-me de qualquer maneira pela encosta escorregadia na direção da espada. Ele apanhou-me de joelhos. Com a bota aplicou-me um pontapé do lado e a seguir, nas costas. A dor explodiu em mim como uma bolha de sangue e meus ossos derreteram-se, atirando-me estendido ao chão; senti o pé bater no metal, e a espada, soltando-se da relva, escorregou, brilhando pálida pela borda do penhasco. Segundos depois, pareceu-me, ouvi o retinir do metal, fino e doce em meio ao trovejar das ondas, batendo contra as rochas lá embaixo. Mas, ao mesmo tempo que me chegava esse som, ele estava de novo sobre mim. Eu tinha o joelho sob o corpo e arrastava-me penosamente. Através do sangue que me toldava a visão, vi o golpe vir na minha direção e tentei desviar-me, mas o punho atingiu-me na garganta, derrubando-me com tal selvageria que caí de volta na relva molhada, os braços abertos, sem ar e sem conseguir ver. Senti-me rolar e escorregar e, lembrando-me do que me aguardava lá embaixo, enterrei a mão esquerda no capim, às cegas, na esperança de parar a queda. A espada continuava na minha direita. Ele afastou-se

novamente de um salto e com todo o peso do seu corpo graúdo pulou com os dois pés sobre a mão da espada. A mão partiu-se contra a guarda de metal. Ouvi-a cair. A espada voltou-se para cima como uma mola e apanhou-o ao estender a mão. Ele praguejou, resfolegando, sem palavras, e recuou momentaneamente. De alguma forma, apanhei a espada com a mão esquerda. Ele voltou mais uma vez, rápido como dantes e, quando tentei arrastar-me para longe, deu um passo ligeiro à frente e pisou outra vez minha mão quebrada. Alguém gritou. Senti-me golpeando-o, indiferente à dor, cego. Com as últimas forças que me restavam, meti a espada, desesperadamente curta, no seu corpo escanchado, senti que era arrancada da minha mão, e então fiquei deitado, à espera, sem resistir, do último pontapé que me mandaria pelo penhasco abaixo. Permaneci ali sem fôlego, vomitando, sufocando em bile, o rosto no chão e a mão esquerda enterrada nos tufos macios de algas, como se tentasse prender-se à vida por mim. As batidas e o estrondo do mar sacudiam o penhasco, e mesmo esse pequeno tremor parecia moer-me o corpo. Doía tudo. O lado doía como se as costelas tivessem entrado, e a pele tivesse sido arrancada da face comprimida contra a relva. Havia sangue na minha boca e a mão direita era uma polpa dolorida. Ouvi alguém, um outro homem, muito longe, soltando gemidos abjetos. O sangue na minha boca borbulhava e escorria pelo queixo até o chão e percebi que era eu mesmo quem gemia. Merlin, o filho de Ambrosius, o príncipe, o grande feiticeiro. Fechei a boca sobre o sangue e comecei a arrastar-me e agarrar-me na relva, tentando levantar-me. A dor na mão era cruel, a pior de todas: ouvi, em vez de sentir, os pequenos ossos rangerem onde as extremidades haviam partido. Senti-me desamparado ao me pôr de joelhos e não ousava esticar-me, tão próximo me achava da beira do precipício. Abaixo rugiu uma onda maior erguendo-se para a claridade acinzentada e caiu chocando-se contra a onda seguinte. O penhasco estremeceu. Uma ave marinha, a primeira do dia, passou pelo alto piando. , Arrastei-me para longe da borda e então pus-me de pé. Brithael estava caído junto à porta secreta, de bruços, como se tivesse tentado alcançá-la. Atrás dele, na relva, havia uma trilha de sangue, brilhante como o rastro de uma lesma. Estava morto. O último golpe desesperado atingira uma veia principal na virilha, e a vida esvaíra-se dele ao tentar buscar socorro. Parte do sangue que me empapava devia ser dele. Engatinhei para perto, querendo certificar-me. Então, rolei-o até que a encosta tomasse conta dele, fazendo-o descer para o mar atrás da espada. O sangue teria de desaparecer por si. Chovia outra vez, e com sorte o sangue se dissolveria antes que alguém desse por isso. O portão secreto continuava aberto. Alcancei-o de algum modo e parei apoiando o ombro contra o portal. Havia sangue nos meus olhos também. Limpei-o com a manga molhada. Ralf desaparecera. O porteiro também. O archote ardia mortiço no suporte e à luz fumacenta o cubículo e a escada encontravam-se vazios. O castelo estava silencioso. No alto das escadas a porta encontrava-se parcialmente aberta e vi luz e ouvi vozes. Vozes baixas, ansiosas, mas sem temor. O grupo Uther continuava a manter o controle; o alarme não fora dado. Estremeci ao frio do amanhecer. Em algum lugar, sem que tivessem percebido, a capa caíra-me do braço. Não me dei ao trabalho de procurá-la. Desencostei-me e tentei aprumar-me sozinho. Consegui. Comecei a descer pelo caminho na direção da baía.

10 HAVIA APENAS claridade suficiente para ver o caminho — claridade suficiente também para notar o penhasco pavoroso e as profundezas atroadoras lá embaixo. Mas, acho que estava tão ocupado com a fraqueza do meu corpo, com o simples ato mecânico de manter o corpo erecto, a mão boa funcionando e a quebrada fora de ação, que nem uma só vez pensei no mar ou na perigosa estreiteza da faixa de rocha. Venci o primeiro trecho depressa, e então aferrei-me ao caminho, quase que arrastando-me pela rampa íngreme, em meio aos tufos de vegetação e ao ruído do cascalho sob meus pés. À medida que o caminho descia, o mar parecia rugir mais próximo de mim até que senti o borrifo das grandes ondas, o sal misturando-se ao sangue salgado no meu rosto. A maré estava cheia pela manhã, as ondas ainda altas com o vento da noite, erguendo línguas geladas pela rocha e explodindo junto a mim com um baque oco, que fazia estremecer todos os meus ossos, e encharcava a trilha, pela qual eu descia, arrastando-me, aos tropeções. Encontrei-o a meio caminho da praia, de bruços, a um palmo da beirada. Um braço caía pela borda e, na ponta, a mão inerte balançava com o deslocamento de ar produzido pelas ondas. A outra mão parecia ter enrijecido enganchada num pedaço da rocha. Os dedos estavam escuros de sangue seco. O caminho era apenas suficientemente largo. Consegui de algum modo virá-lo, puxando e arrastando o melhor que pude até colocá-lo encostado ao penhasco. Ajoelhei-me entre ele e o mar. — Cadal, Cadal! Sua pele estava fria. Na semi-obscuridade vi sangue no seu rosto e o que parecia um filete grosso saindo de um ferimento junto ao couro cabeludo. Levei a mão ao ferimento; era um corte, mas não chegaria para matá-lo. Tentei sentir suas pulsações, mas a mão entorpecida escorregava na sua pele molhada e eu não conseguia sentir nada. Puxei sua túnica molhada, mas não conseguia abri-la; então um colchete cedeu e ela rasgou-se, descobrindo-lhe o peito. Quando vi o que o pano ocultava, concluí que não era preciso auscultar-lhe o coração. Puxei o tecido empapado de volta como se isto pudesse aquecê-lo e acocorei-me, só então me dando conta de que os homens desciam pela trilha do castelo. Uther contornou o penhasco com tanta facilidade como se caminhasse pelo chão do palácio. Trazia a espada na mão, a capa longa apanhada sobre o braço esquerdo. Ulfin acompanhava-o como um fantasma. O Rei parou junto de mim e por alguns momentos permaneceu calado. Então tudo o que disse foi: — Morto? — Sim. — E Jordan? — Morto também, imagino eu, do contrário Cadal não teria chegado tão longe para avisar-nos. — E Brithael? — Morto. — Você sabia de tudo isso antes de virmos esta noite? — Não.

— Nem da morte de Gorlois? — Não. — Se fosse um profeta como diz ser, teria sabido. — Sua voz estava sumida e amargurada. Ergui os olhos. Seu rosto estava calmo, a febre fora-se, mas os olhos cor de ardósia, à luz acinzentada, estavam fatigados e desolados. Resumi: — Eu lhe disse que tinha de confiar no tempo. Essa era a hora. Fomos bem sucedidos. — E, se tivéssemos esperado até amanhã, esses homens e o seu criado ainda estariam vivos, Gorlois morto, a mulher viúva... E minha para reivindicar sem mortes nem maledicência. — Mas amanhã teria gerado um filho diferente. — Um filho legítimo — retorquiu rápido. — E não um bastardo como fizemos esta noite. Pela cabeça de Mithras, acha realmente que o meu nome e o dela podem resistir ao trabalho desta noite? Mesmo que nos casemos esta semana, você sabe o que os homens dirão. Que sou o assassino de Gorlois. E há homens que continuarão a acreditar que ela de fato estava grávida dele segundo ela lhes informou, e que a criança é dele. — Não dirão isso. Não há um só homem que duvide de que é seu, Uther, e Rei de toda a Bretanha por direito de nascimento. Ele soltou uma exclamação, não um riso, mas que continha tanto divertimento quanto desprezo. — Acha que voltarei a escutá-lo? Vejo agora em que consiste a sua mágica, esse poder de que você fala... Não passa de velhacaria humana, uma tentativa de estadismo que meu irmão lhe ensinou a apreciar, utilizar e acreditar que era o seu mistério. É uma impostura prometer aos homens o que querem, para fazê-los pensar que você pode conceder-lhes alguma coisa, mas manter o preço em segredo, deixando-os pagarem sozinhos. — É Deus quem mantém o preço secreto, Uther, e não eu. — Deus? Deus? Que Deus? Já o ouvi falar de tantos deuses. Se se refere a Mithras... — Mithras, Apoio, Arthur, Cristo, chame-o como quiser — disse eu. — Que importa o nome que os homens dêem à luz? É a mesma luz e os homens devem viver de acordo com ela ou morrer. Só sei que Deus é a fonte de toda a luz que tem iluminado o mundo, e que a sua vontade corre pelo mundo e passa por nós como um grande rio, e não podemos fazê-lo parar ou voltar, só podemos beber dele enquanto vivemos e entregar-lhe o nosso corpo quando morrermos. O sangue escorria da minha boca outra vez. Ergui a manga para limpá-lo. Ele viu, mas sua expressão não se alterou. Duvido mesmo de que tivesse ouvido o que eu dizia, ou de que tivesse conseguido ouvir-me com o estrondo do mar. Disse apenas, com aquela mesma indiferença que se erguia entre nós como uma parede: — Isso são apenas palavras. Você usa até Deus para conseguir os seus fins. É Deus quem me ordena fazer essas coisas, é Deus quem exige o pagamento, é Deus quem decide o que os outros devem pagar... Por quê, Merlin? Pela sua ambição? Pelo grande profeta de quem os homens falam com a respiração contida e reverenciam mais do que o Rei ou seu sumo sacerdote? E quem é que paga essa dívida para com Deus por executar os seus planos? Não você. Os homens que fazem o seu jogo é que pagam o preço. Ambrosius, Vortigern, Gorlois. Esses outros homens aqui esta noite. Mas você nada paga. Nunca.

Uma onda quebrou junto a nós e a espuma choveu sobre o ressalto, caindo no rosto de Cadal. Curvei-me para limpá-lo junto com um pouco de sangue. — Não — respondi. Uther continuou: — Digo-lhe, Merlin, não vai usar-me. Não vou ser mais um boneco que você controla com cordões. Portanto, afaste-se de mim. E digo-lhe mais. Não reconhecerei o bastardo que gerei esta noite. Era um rei falando, irrespondível. Uma silhueta imóvel e fria; por trás do seu ombro a estrela nítida contra o fundo cinzento. Fiquei calado. — Está-me ouvindo? — Sim. Tirou a capa do braço e atirou-a para Ulfin, que a segurou para que ele a vestisse. Colocou-a nos ombros e olhou para mim de novo. — Pelos serviços que tenha prestado, guardará a terra que lhe dei. Volte para as suas montanhas galesas e não me perturbe mais. Eu disse, desanimado: — Não o perturbarei mais, Uther. Não voltará a precisar de mim. Ele ficou silencioso por um momento. Então disse, brusco: — Ulfin irá ajudá-lo a carregar o corpo para baixo. Afastei-me. — Não há necessidade. Deixe-me agora. Uma pausa preenchida com o rugido do mar. Eu não tivera intenção de falar assim, mas já não ligava, nem sabia o que dizia. Só queria que ele se fosse. A ponta da sua espada estava nivelada com os meus olhos. Vi-a mover-se e faiscar e por um momento pensei que ele se encontrava o bastante enraivecido para usá-la. Então, reluziu no alto e foi guardada na bainha. Ele voltou-se e seguiu o seu caminho trilha abaixo. Ulfin desviou-se de mansinho, sem dizer palavra, e acompanhou o amo. Antes que alcançassem a curva seguinte, o mar abafara o ruído dos seus passos. Virei-me e encontrei Cadal a observar-me. — Cadal! — Aí vai um rei! — Sua voz era um murmúrio, mas era a mesma, rouca e divertida. — Dê-lhe alguma coisa que jura que está morrendo para ter, e então "acha que posso resistir ao trabalho desta noite?" diz ele. Uma boa noite de trabalho fez ele e tem mesmo esse aspecto. — Cadal... — Você também. Está ferido... sua mão? Sangue no seu rosto? — Não é nada. Nada que não tenha conserto. Não se incomode com isso. Mas você... você... Ele mexeu de leve a cabeça. — Não adianta. Deixe estar. Estou bastante confortável. — Não dói agora? — Não estou todo frio. Acheguei-me a ele, tentando proteger o seu corpo com o meu do borrifo que explodia quando as ondas batiam na pedra. Tomei a mão dele na minha. Não podia aquecê-la esfregando-a, mas abri a túnica e coloquei-a de encontro ao peito. — Receio que tenha perdido minha capa — disse eu. — Jordan está morto?

— Sim. — Ele aguardou um momento. — O que... aconteceu lá em cima? — Correu tudo conforme planejamos. Mas Gorlois atacou de Dimilioc e foi morto. É por isso que Brithael e Jordan voltaram para falar à Duquesa. — Ouvi-os chegar. Sabia que não poderia deixar de ver-me com os cavalos. Tinha de impedi-los de dar o alarme enquanto Rei ainda... — Parou para tomar fôlego. — Não se incomode — disse eu. Já terminou e tudo está bem. Ele me ignorou. Sua voz era apenas um leve sussurro agora, mas claro e baixo, e eu ouvia cada palavra em meio à fúria do mar. — Subi pela trilha para encontrá-los... do outro lado da água... então, quando emparelhamos, pulei o rio para tentar pará-los. — Ele esperou um pouco. — Mas Brithael... aí está um guerreiro. Rápido como uma cobra. Nunca hesitou. Espada direto no meu corpo e passou por cima de mim. Deixou Jordan para acabar de me liquidar. — Erro dele. Os músculos de sua face moveram-se de leve. Era um sorriso. Passado algum tempo, perguntoume: — Ele viu os cavalos, afinal? — Não. Ralf estava na porta quando ele chegou e Brithael apenas perguntou se alguém estivera no castelo, porque encontrara um cavaleiro embaixo. Quando Ralf respondeu que não, aceitou. Deixamos que entrasse e então matamo-lo. — Uther. — Era uma presunção, não uma pergunta. Seus olhos estavam fechados. — Não. Uther ainda estava com a Duquesa. Eu não poderia arriscar que Brithael o apanhasse desarmado. Tê-la-ia matado também. Seus olhos abriram-se, momentaneamente claros e surpresos. - Você? — Vamos, Cadal, isto dificilmente seria um elogio. — Dei-lhe um sorriso. — Se bem que não me tenha portado à altura do mestre, receio. Foi uma luta muito suja. O Rei nem teria reconhecido as regras. Improvisei à medida que se desenvolvia. Desta vez era realmente um sorriso. — Merlin... pequeno Merlin, que não sabia nem sentar-se num cavalo... Você me mata. A maré devia estar mudando. A onda que se ergueu, rugindo a seguir, lançou apenas um borrifo muito leve, que caiu sobre os meus ombros como neblina. Eu disse: — Eu o matei, Cadal. — Os deuses... — disse ele, dando um grande suspiro. Eu sabia o que isto significava. Seu tempo esgotava-se. À medida que a luz aumentava, eu podia ver quanto sangue escorrera para a trilha molhada. — Ouvi o que o Rei disse. Será que não poderia ter acontecido... sem isso? — Não, Cadal. Seus olhos fecharam-se um instante e reabriram-se. — Bem — foi só o que ele disse, mas naquela sílaba estava toda a fé resignada dos últimos oito anos. Seus olhos começavam a embranquecer agora sob a pupila e o queixo afrouxava... Passei o braço bom por trás dele e ergui-o um pouco. Falei claro e rápido:

— Acontecerá como meu pai desejava e como Deus quis através de mim. Ouviu o que Uther disse a respeito da criança. Isto não altera nada, e por causa do trabalho desta noite, Ygraine vai ter o filho e vai mandá-lo embora assim que nascer, para longe do Rei. Vai mandá-lo para mim e eu o porei fora do alcance do Rei e o guardarei, ensinando-lhe tudo o que Galapas me ensinou, e Ambrosius, e você, e até mesmo Belasius. Ele será a soma das nossas vidas e, quando crescer, voltará e será coroado Rei em Winchester. — Você sabe disso? Jura-me que sabe? — As palavras eram dificilmente reconhecíveis. Sua respiração saía em bolhas, ofegante. Os olhos estavam pequenos, brancos e cegos. Ergui-o, segurando-o com força contra o meu peito. Disse carinhosamente e com bastante clareza: — Eu sei disso. Eu, Merlin, príncipe e profeta, juro-lhe isso, Cadal. Sua cabeça caiu para o lado sobre mim, pesada demais para ele, agora que perdia o controle dos músculos. Seus olhos deixaram de ver. Murmurou alguma coisa e então, súbita e claramente, pediu: — Faça o sinal para mim. E morreu. Entreguei-o ao mar com Brithael, que o matara. A maré o levaria, dissera Ralf, para longe, para tão longe quanto as estrelas do ocidente. Afora a batida lenta dos cascos do cavalo e o retinir do metal, não havia som algum no vale. A tempestade cessara. Não havia vento e, quando passei pela primeira curva do rio, perdi até mesmo o ruído do mar. Para baixo, ao longo do rio, a névoa permanecia parada como um véu. No alto, o céu apresentava-se claro, empalidecendo na direção do nascente. Imóvel no céu, estava agora a estrela, alta e firme. Mas, enquanto eu a observava, o céu pálido tornou-se brilhante ao seu redor, tingindo-a de ouro e chamas suaves, e a seguir, com uma onda de luz ofuscante, sobre a terra onde refulgia a estrela-arauto, raiou o novo sol.

A lenda de Merlin VORTIGERN, rei da Bretanha, querendo construir uma fortaleza em Snowdon, reuniu pedreiros de muitos países, pedindo-lhes que erguessem uma torre sólida. Mas tudo que os pedreiros construíam em um dia desmoronava-se à noite e era tragado pelo solo. Então Vortigern realizou um conselho com os seus magos, que lhe disseram que deveria procurar um rapaz que nunca tivesse tido pai e que, quando o encontrasse, deveria matá-lo e salpicar o seu sangue sobre as fundações para fazer a torre suster-se. Vortigern enviou mensageiros a todas as províncias para procurar um tal rapaz, e.por fim eles chegaram à cidade que mais tarde se chamou Carmarthen. Lá, encontraram alguns rapazes que brincavam diante do portão, e cansados, sentaram-se para apreciar o jogo. Finalmente, para a tardinha, surgiu uma discussão repentina entre dois dos rapazes, cujos nomes eram Merlin e Dinabutius. Durante a briga, ouviram Dinabutius dizer a Merlin: "— Que tolo deveis ser para julgardes vossa arte à altura da minha! Aqui estou eu, nascido de sangue real, mas ninguém sabe que sois, pois nunca um pai ti vestes I" Quando os mensageiros ouviram isto, perguntaram aos presentes quem poderia ser Merlin, e foram informados de que ninguém lhe conhecia o pai, mas que a mãe era a filha do rei de Gales do Sul, e que ela vivia em companhia das freiras, na Igreja de São Pedro, naquela mesma cidade. Os mensageiros levaram Merlin e sua mãe à presença do rei Vortigern. O Rei recebeu a mãe com todas as atenções que lhe eram devidas pelo seu nascimento, e perguntou-lhe quem era o pai do rapaz. Ela respondeu que não sabia. — Certa vez, — disse ela — quando eu e minhas damas nos encontrávamos em nossos quartos, alguém apareceu a mim sob a forma de um belo rapaz que, abraçando-me e beijando-me, permaneceu comigo algum tempo, mas depois, tão subitamente, desapareceu. Voltou muitas vezes para conversar quando me sentava sozinha, mas nunca mais lhe pus os olhos em cima. Depois de me ter perseguido desta forma por longo tempo, deitou-se comigo por instantes, enquanto sob a forma de homem, e deixou-me esperando um filho. — O Rei, admirado ante suas palavras, perguntou a Maugantius, o adivinho, se tal coisa era possível. Maugantius assegurou-lhe que tais coisas eram bem conhecidas e que Merlin deveria ter sido gerado por um dos "espíritos que existiam entre a luz e a terra" a que chamamos de incubus daemons (incubo). Merlin, que ouvira tudo isso, exigiu, então, que lhe fosse permitido defrontar-se com os magos. — Pedi aos vossos magos que venham à minha presença e eu os provarei culpados de terem inventado uma mentira. — O Rei, tocado pela ousadia e aparente destemor do rapaz, acedeu e mandou buscar os magos. A quem Merlin falou assim: — Já que não sabeis o que estorva as fundações que estão sendo lançadas para essa torre, haveis aconselhado que a argamassa da mesma seja apagada com o meu sangue, a fim de que a torre permaneça de pé daí em diante. Agora, dizei-me o que é que jaz escondido sob a fundação, pois algo há de existir que não permite que ela se sustenha? — Mas os magos, receosos de demonstrar ignorância, permaneceram calados. Então, disse Merlin (cujo outro nome é Ambrosius): — My lord Rei, chamai vossos trabalhadores e mandai-os cavar sob a torre, e encontrareis, sob a superfície, um lago que impede vossas muralhas de manterem-se de pé. — Isto foi feito e o lago, descoberto. Merlin então ordenou que o lago fosse drenado por condutos; duas pedras, disse ele, seriam encontradas no fundo, onde dois dragões, vermelho e branco, estariam adormecidos. Quando o lago foi devidamente drenado e as pedras descobertas, os dragões despertaram e começaram a lutar ferozmente, até que o vermelho derrotou e matou o branco. O Rei, maravilhado, perguntou a Merlin o significado da visão, e Merlin, erguendo os olhos para o céu, profetizou a vinda de Ambrosius e a morte de Vortigern.

Na manhã seguinte, Aurelius Ambrosius desembarcou em Totnes, Devon. Depois de Ambrosius ter conquistado Vortigern e os saxões e ser coroado Rei, reuniu todos os mestres artesãos de toda a parte e pediu-lhes que inventassem um novo tipo de construção que durasse eternamente como monumento comemorativo. Nenhum deles foi capaz de ajudá-lo, até que Tremorinus, arcebispo de Caerleon, sugeriu que o Rei mandasse buscar Merlin, o profeta de Vortigern, o homem mais inteligente do reino "quer em predições do futuro quer na intervenção de máquinas engenhosas." Ambrosius prontamente despachou mensageiros, que encontraram Merlin no país de Gwent, na fonte de Galapas, onde costumava morar. O Rei recebeu-o com honrarias e primeiro pediu-lhe que predissesse o futuro, mas Merlin respondeu: — Mistérios de tal espécie não é sensato revelar salvo em grande necessidade. Pois, se eu os dissesse levianamente ou para fazer rir, o espírito que me ensina emudeceria e me abandonaria na hora da necessidade. — O Rei, então, perguntou-lhe sobre o monumento, mas quando Merlin o aconselhou a mandar buscar a "Dança dos Gigantes que está em Killare, uma montanha da Irlanda", Ambrosius riu-se, dizendo que era impossível mover pedras, que todos sabiam terem sido colocadas ali por gigantes. Finalmente, porém, o Rei foi persuadido a enviar seu irmão Uther, com quinze mil homens, para conquistar Gilloman, rei da Irlanda, e trazer de volta a Dança. O exército de Uther ganhou o dia, mas ao tentar desmontar o círculo gigante de Killare, e trazer as pedras, não conseguiu movê-las. Quando afinal se confessou derrotado, Merlin montou suas próprias máquinas e, por meio delas, desceu as pedras facilmente, transportou-as para os navios e enfim trouxe-as para o local próximo de Amesbury onde deveriam ser erguidas. Ali Merlin montou suas máquinas e reconstruiu a Dança de Killare em Stonehenge, exatamente como era na Irlanda. Pouco tempo depois, apareceu uma grande estrela com a forma de um dragão, e Merlin, sabendo que isso pressagiava a morte de Ambrosius, chorou amargamente, e profetizou que Uther seria rei sob o signo do dragão, e que lhe nasceria um filho "de excepcional domínio, cujo poder se estenderia por todos os reinos sob os raios (da estrela)." Na Páscoa seguinte, na festa da coroação, o rei Uther apaixonou-se por Ygraine, esposa de Gorlois, Duque de Cornwall. Cumulou-a de atenções, para escândalo da corte; ela não respondeu, mas o marido, enfurecido, retirou-se da corte sem permissão, levando a esposa e os soldados de volta para Cornwall. Uther, indignado, ordenou-lhe que voltasse, mas Gorlois recusou-se a obedecer. Então o Rei, profundamente enraivecido, reuniu um exército e marchou sobre Cornwall, queimando cidades e castelos. Gorlois não possuía tropas suficientes para enfrentá-lo, e assim colocou a esposa no castelo de Tintagel, o refúgio mais seguro, enquanto ele próprio se dispunha a defender o castelo de Dimilioc. Uther imediatamente sitiou Dimilioc, mantendo Gorlois e suas tropas presas ali, enquanto procurava uma maneira de penetrar no castelo de Tintagel para raptar Ygraine. Passados alguns dias, pediu o conselho de um dos seus criados, chamado Ulfin. — Aconselhai-me, portanto, de que maneira poderei satisfazer o meu desejo — disse o Rei — pois, se não o satisfaço, de mágoa interior, morrerei. — Ulfin, contando-lhe o que já sabia — que Tintagel era inexpugnável — sugeriu que mandasse buscar Merlin. Merlin, comovido pelo aparente sofrimento do Rei, prometeu ajudar. Pelas suas artes mágicas, transformou Uther, tornando-o semelhante a Gorlois, fez Ulfin parecer-se com Jordan, amigo de Gorlois, e ele próprio, com Brithael, um dos capitães de Gorlois. Os três partiram para Tintagel e foram admitidos pelo porteiro. Ygraine, tomando Uther por seu marido, o Duque, deu-lhe as boas-vindas, e levou-o para a cama. Assim, Uther se deitou com Ygraine aquela noite e "não lhe passou pela idéia negar-lhe aquilo que poderia desejar." Naquela noite Arthur foi concebido. Entrementes, a luta eclodira em Dimilioc, e Gorlois, aventurando-se a sair em combate, foi morto. Mensageiros chegaram a Tinta-gel para dizer a Ygraine da morte do marido. Quando encontraram "Gorlois" aparentemente vivo, ainda trancado com Ygraine, perderam a fala, mas o Rei confessou a impostura e, alguns dias mais tarde, casou-se com Ygraine. Uther Pendragon deveria reinar mais quinze anos. Durante esses anos não viu o seu filho Arthur,

que na noite do nascimento foi levado pela porta secreta para fora de Tintagel e entregue nas mãos de Merlin, que cuidou da criança em segredo até que chegou a época de Arthur herdar o trono da Bretanha. Por todo o longo reino de Arthur, Merlin aconselhou-o e ajudou-o. Quando Merlin estava velho, apaixonou-se perdidamente por uma jovem, Vivian, que o persuadiu, como preço do seu amor, a ensinar-lhe todas as artes mágicas. Quando assim fez, ela lançou-lhe um encantamento que o deixou preso e adormecido; dizem alguns que numa gruta perto de um bosque de espinheiros; segundo outros, numa torre de cristal, e conforme outros ainda, oculto apenas pelo esplendor do ar ao seu redor. Despertará um dia, quando o rei Arthur despertar, e voltará na hora da necessidade do seu país.

Nota da Autora ROMANCISTA ALGUM, ao lidar com a Bretanha da Idade Média, ousa aventurar-se à luz sem pagar um tributo ao problema Lugar-Nome. É costume explicar o que foi usado e sou ao mesmo tempo mais e menos culpada de incoerência que a maioria. Num período da história em que celtas, saxões, romanos, gauleses, e Deus sabe quem mais, andavam num vaivém por uma Bretanha turbulenta e dividida, todo lugar deve ter tido pelo menos três nomes, e o palpite de cada um é válido quanto ao uso corrente em determinada época. Na verdade, a "determinada época" do nascimento do rei Arthur situa-se por volta do ano 470, e o fim do século v é dos períodos mais obscuros da história da Bretanha que se possa ter. Para aumentar a confusão, usei como fonte da minha história um relato romântico, semi-mitológico, escrito em Oxford por um galés ({4}) do século XII que dá aos nomes das pessoas e dos lugares o que poderia chamar-se de um colorido pós-normando com laivos de latim clerical. Daí o leitor encontrar, na minha narrativa, Winchester assim como Rutupiae e Dinas Emrys, e homens de Cornwall, Gales do Sul e Bretanha em vez de Dumnonii, Demetae e Armorican. A minha primeira regra quanto ao uso foi simplesmente tornar a história clara. Queria, se possível, evitar o expediente irritante de um glossário em que o leitor precisa interromper-se para olhar os nomes dos lugares, ou decidir-se a continuar a leitura, perdendo-se mentalmente. E os leitores não-britânicos sofrem ainda mais; procuram Calleva no glossário, descobrem que é Silchester, e continuam sem saber até consultarem um mapa. De qualquer modo, a história sofre. Portanto, onde quer que se tenha apresentado uma seleção de nomes, procurei usar aquele que poderá situar mais rapidamente o leitor: por isso, empreguei às vezes o recurso de o próprio narrador oferecer a lista de nomes correntes, deixando mesmo escorregar o mais moderno onde não pareça muito deslocado. Por exemplo: "Maesbeli, porto do Forte Conan, ou Kaerconan, chamado às vezes de Conisburgh." Em outros trechos, fui ainda mais arbitraria. É lógico que numa narrativa cujo inglês a imaginação do leitor deve supor latino ou celta ou galés, seria pedante escrever Londinium quando é tão obviamente Londres; e empreguei os nomes modernos de lugares como Glastonbury e Winchester e Tintagel, porque estes nomes, embora medievais na sua origem, são tão consagrados por associação que se encaixam em contextos onde seria impossível introduzir as imagens modernas de, digamos, Manchester ou Newcastle. Estas "regras" não são naturalmente uma crítica às práticas de qualquer outro autor; a pessoa emprega a forma que o trabalho exige; e, já que este é um exercício imaginativo que ninguém irá encarar como história autêntica, deixei-me governar pelas regras da poesia: o que comunica simples e vividamente e soa melhor, é melhor. A mesma regra sonora aplica-se à linguagem usada em todo o livro. O narrador, contando sua história em galés do século v, usaria tantos coloquialismos quantos eu usei na minha; os criados Cerdic e Cadal falariam uma espécie de dialeto, enquanto, por exemplo, um tipo de linguagem mais elevada bem poderia ser esperado de reis e profetas nos momentos de profecia. Permiti deliberadamente alguns anacronismos em se tratando de palavras mais descritivas, e alguma gíria para dar maior vivacidade ao texto. Em suma, utilizei-me principalmente do ouvido, guiando-me pelo princípio de que o que soa certo é aceitável no contexto de um trabalho de imaginação. Pois isto é tudo que a Gruta de Cristal pretende ser. Não é uma obra de erudição e não pode

obviamente pretender ser uma história séria. Historiadores sérios não devem, imagino eu, ter chegado até aqui, pois já terão descoberto que a principal fonte da minha história foi A História dos Reis da Bretanha, de Geoffrey de Monmouth. Para os historiadores sérios o nome de Geoffrey é lixo. Do seu estudo em Oxford no século XII ele produziu uma miscelânea estimulante da "história" que vai desde a Guerra de Tróia (onde combateu Brutus, rei dos bretões) até o século VII, ajeitando os fatos à sua conveniência, e quando lhe faltavam estes (o que acontecia em cada página), inventava-os com o auxílio de todo o resto. Historicamente falando, a Historia Regum Brittaniae é espantosa, mas como estória é extraordinária e tem sido a fonte e a inspiração para o grande ciclo de lendas chamado "Mater of Britain", que vai da Morte d'Arthur, de Malory, até Idylls of the King, de Tennyson, de Parsifal a Camelot. O personagem central da História é Arthur, rei da primeira Bretanha unida. O Arthur de Geoffrey é o herói da lenda, mas é certo que Arthur foi uma pessoa real, e eu acredito que o mesmo se aplique a Merlin, embora o "Merlin" que conhecemos seja composto de ao menos quatro pessoas: príncipe, profeta, poeta e engenheiro. Ele aparece a primeira vez na lenda como rapaz. Meu relato imaginário da sua infância é colorido pela frase da História: "a fonte de Galapas({5}) que ele costumava freqüentar" e por uma referência ao "meu mestre Blaise" — que se transforma, na minha história, em Belasius. A lenda de Merlin é tão forte na Bretanha, França, quanto na Grã-Bretanha. Mais uma ou duas notas para terminar. Dei à mãe de Merlin o nome de Niniane porque este é o nome Ia moça (Vivian/Niniane/Nimue) que de acordo com a lenda seduziu o feiticeiro na velhice e, assim, o despojou dos seus poderes, deixando-o encerrado na gruta para dormir até o final dos tempos. Nenhuma outra mulher é associada a ele. Há uma relação tão forte na lenda (e de fato na história) entre o celibato ou a castidade e o poder, que julguei razoável insistir na castidade de Merlin. O mitraísmo esteve (literalmente) subterrâneo durante anos. Postulei um renascimento local na elaboração da minha história, e as razões dadas por Ambrosius parecem prováveis. Do que sabemos do verdadeiro Ambrosius, ele era bastante romano para seguir o deus dos soldados ({6}). Quanto aos antigos druidas, tão pouca coisa se conhece que (de acordo com um eminente estudioso que consultei) podem ser considerados "caça lícita". O mesmo se aplica aos megalitos de Carnac (Kerrec) na Bretanha e à Dança dos Gigantes de Stonehenge, perto de Amesbury. Stonehenge foi erigida por volta do ano 1500 a.C, de modo que só permiti a Merlin transportar uma única pedra de Killare. Em Stonehenge, é verdade que essa determinada pedra — a maior — é diferente das restantes. Veio originalmente, segundo os geólogos, dos arredores de Mildford Haven, em Gales. Também é verdade que há uma sepultura dentro do círculo; está um pouco fora do centro, portanto usei o nascer do sol do solstício de inverno, ao invés do solstício de verão, para o qual a Dança foi orientada. Todos os lugares que descrevi são autênticos, sem exceções de importância, exceto a gruta de Galapas — e, se Merlin se encontra realmente adormecido ali "com todas as suas chamas e o esplendor em movimento a sua volta", esperar-se-ia que a mesma fosse invisível. Mas a fonte está lá em Bryn Myrddin, e há um túmulo na crista da montanha. Parece que o nome "merlin" para o falcão columbarius não se encontrava registrado até a época medieval, e a palavra é provavelmente francesa; mas sua origem é incerta, o que é desculpa suficiente para um escritor cuja imaginação já tecera uma série de imagens a partir de um nome, mesmo antes de o

livro ter sido iniciado. Quando Merlin se refere à marca do oleiro A.M., o A. seria a inicial do oleiro ou sua marca; o M. significa Manu, literalmente, "pela mão de". O parentesco entre Merlin e Ambrosius não tem (creio eu) base alguma na lenda. Um historiador do século IX, Nennius, de quem Geoffrey tirou parte do seu material, chamou seu profeta de "Ambrosius". Nennius relatou a história dos dragões no lago, e a primeira profecia registrada do jovem vidente. Geoffrey, tomando a história de empréstimo, calmamente equaciona os dois profetas: — "Então disse Merlin, que também se chamava Ambrosius...". Esse pedacinho de "desfaçatez", como o classifica o Professor Gwyn Jones({7}), deu-me a idéia de identificar o "príncipe das trevas" que gerou Merlin — e, de fato, o enredo principal da Gruta de Cristal. A minha maior dívida é obviamente para com Geoffrey de Monmouth, mestre do romance. Entre outros credores, numerosos demais para nomear e aos quais é impossível retribuir, gostaria de agradecer em especial ao Sr. Francis Jones, Arquivista do Condado de Carmarthen; Sr. e Sra. Morris of Bryn Myrddin, Carmarthen; Sr. G. B. Lancashire, do Chase Hotel, em Ross-on-Wye; Brigadeiro R. Waller, de Wyaston Leys, em Monmouthshire, em cujas terras ficam a Doward Menor e o Caminho dos Romanos; Professor Hermann Bruck, Astrônomo Real da Escócia, e Sra. Bruck; Professor Stuart Piggot, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Edinburgh; Srta. Elizabeth Manners, Diretora do Felixstowe College; e Sr. Robin Denniston, da editora Hodder & Stoughton Ltd., de Londres. M.S.





Mary Stewart

AS COLINAS VAZIAS TRILOGIA DE MERLIN – LIVRO 2



Tradução de ISABEL PAQUET DE ARARIPE Título Original: The Hollow Hills

 memória de meu pai

Um menino nasceu, Um rei do inverno. Antes do negro mês Ele nasceu, E fugiu no mês sombrio Para se abrigar Com os pobres. Ele virá, Com a primavera, No verde mês E no mês dourado. E brilhante Será a chama Da sua estrela. M.S.

Livro 1 - A ESPERA

1 Uma cotovia cantava lá no alto. A luz brilhava de encontro às minhas pálpebras fechadas e, com ela, o canto, como um longínquo dançar de águas. Abri os olhos. Sobre mim o céu, com o seu cantor invisível perdido na luz e no azul de um dia de primavera. Por toda parte havia um cheiro doce de nozes, que me lembrava ouro, e luz de velas e jovens amantes. Algo que não cheirava tão bem mexeu-se ao meu lado e uma voz jovem e áspera falou: — Senhor? Virei a cabeça. Estava deitado na relva, num buraco entre as moitas de tojo. As moitas estavam em flor, eram chamas douradas e cheirosas ao sol da primavera. Ao meu lado, ajoelhava-se um menino. Teria uns doze anos, estava sujo, com o cabelo emaranhado, e vestia uma roupa grosseira e marrom; sua capa, feita de peles mal costuradas, apresentava uma dúzia de rasgões. Tinha um bastão numa das mãos. Mesmo sem o cheiro que dele emanava, eu saberia a sua ocupação, pois à nossa volta as suas cabras pastavam entre as moitas de tojo, podando os brotinhos verdes. Quando me movi, ele se ergueu depressa e se afastou um pouco, espiando, meio desconfiado e meio esperançoso, por entre a cabeleira imunda. Quer dizer que ainda não me roubara. Olhei o bastão pesado que segurava, imaginando, vagamente, por entre as névoas de dor, se conseguiria me defender, mesmo desse jovem. Mas, aparentemente, ele apenas esperava uma recompensa. Apontava para algo além das moitas. — Peguei o cavalo para o senhor. Está amarrado ali. Pensei que estivesse morto. Ergui-me sobre um cotovelo. À minha volta, o dia rodava e me atordoava. As flores de tojo fumegavam como incenso ao sol. A dor se espraiava, vagarosamente, e, com ela, na mesma onda, a lembrança. — O senhor está muito machucado? — Nada de importante, a não ser minha mão. Daqui a pouco estarei bem. Diz que pegou o meu cavalo. Você me viu cair? — Vi. Eu estava logo ali. — Apontou de novo. Para além das moitas de flores amarelas, a terra se erguia, lisa e nua, até uma elevação cortada de rochas cinzentas cobertas de plantinhas. Por trás da elevação, o céu tinha aquele ar de distância vazia e sem limite que indica a presença do mar. — Vi o senhor vir cavalgando devagar pelo vale, vindo da praia. Dava para ver que estava doente ou, talvez, dormindo em cima do cavalo. Aí ele falseou o pé, decerto numa toca de coelho, e o senhor caiu. Não faz muito tempo. Acabei de chegar. Parou de falar, de boca aberta. Vi o choque no seu rosto. Enquanto estivera falando, eu estava me levantando, apoiado no braço esquerdo, até poder me sentar e, cuidadosamente, colocar a mão direita ferida no colo. Ela estava uma massa inchada coberta de sangue coagulado, através do qual o sangue fresco ainda escorria. Creio que caí sobre ela quando o cavalo tropeçou. Foi uma bênção eu ter desmaiado. A dor crescia agora, onda sobre onda, como a maré sobre o cascalho, mas a fraqueza tinha passado e a minha cabeça, embora ainda doesse, estava desanuviada. — Santa Mãe! — O menino parecia nauseado. — Não ficou assim só de cair do cavalo, ficou? — Não. Foi uma luta.

— Mas não tem espada. — Eu a perdi. Não faz mal. Tenho o meu punhal e uma mão para usá-lo. Não, não tenho medo. A luta já acabou. Ninguém vai machucá-lo. Ajude-me a montar no cavalo e já vou-me embora. Ele me deu o braço e fiquei de pé. Estávamos na orla de uma elevação alta e verde, incrustada de tojo, com árvores esparsas aqui e ali, rijas e solitárias, e que tomavam formas estranhas ao sabor do vento constante e salgado. Para além das moitas onde eu estivera caído, o terreno tomava uma inclinação íngreme, sulcada com os rastros de ovelhas e cabras. Formava um dos lados de um vale estreito e serpenteante, ao pé do qual um regato deslizava no seu leito rochoso. Não conseguia ver o que havia ao pé do vale, mas, a cerca de uma milha, para além do horizonte de grama de inverno, ficava o mar. Pela altura do local onde me encontrava, podia-se imaginar os grandes penhascos que desciam até a praia, e para além da orla do terreno, pequenos na distância, os contornos de torres se destacavam. O castelo de Tintagel, a cidadela dos Duques de Cornwall. A inexpugnável fortaleza, que só era vencida por trapaça, ou por traição vinda de dentro. Na noite passada eu usara ambas. Senti um arrepio. Na noite passada, na escuridão da tormenta, este fora um lugar de deuses e destino, de poder visando um fim que eu entrevia, de tempos em tempos. E eu, Merlin, filho de Ambrósio, a quem os homens temiam como profeta e visionário, não fora mais que um instrumento dos deuses no labor daquela noite. Era para isto que me fora dado o dom da Visão e o poder que os homens achavam mágico. Desta fortaleza remota e isolada, surgiria o Rei que livraria a Inglaterra dos seus inimigos e lhe daria tempo de encontrar-se a si mesma; só ele, na esteira de Ambrósio, o último dos romanos, deteria as ondas do Terror Saxão e, ao menos por algum tempo, conservaria unida a Inglaterra. Isto eu vira nas estrelas, ouvira no vento; os meus deuses me disseram que eu faria isto acontecer, para isto tinha nascido. Pois bem, se é que podia confiar nos meus deuses, a criança prometida já estava gerada; mas por sua causa, por minha causa, quatro homens tinham morrido. Na noite fustigada pela tormenta e dominada pela estrela-dragão, a morte parecia lugar-comum, e os deuses esperavam, visíveis, em cada esquina. Mas agora, na manhã tranqüila após a tormenta, o que havia para se ver? Um jovem com a mão ferida, um Rei com a sua luxúria apaziguada e uma mulher cuja penitência apenas começava. E, para todos nós, a hora de recordar os mortos. O menino trouxe o cavalo. Ele me olhava curiosamente, a desconfiança de volta ao seu rosto. — Há quanto tempo está aqui com as cabras? — perguntei. — Um alvorecer e um alvorecer. — Viu ou ouviu algo ontem à noite? A desconfiança transformou-se em medo. Suas pálpebras desceram e ele olhou fixamente para o chão. A sua fisionomia ficou fechada e inexpressiva. — Já esqueci, meu senhor. Apoiei-me no cavalo, encarando-o. Vezes sem conta deparara com este ar estúpido, este resmungo seco e inexpressivo; é a única armadura ao alcance dos pobres. Falei suavemente: — O que quer que tenha acontecido ontem à noite, é algo que eu quero que você se lembre, não que se esqueça. Ninguém lhe fará mal. Diga-me o que viu. Ele me olhou por talvez mais uns dez segundos de silêncio. Eu não podia adivinhar o que estava

pensando. O que via certamente não era alentador: um moço alto com uma das mãos esmagada e ensangüentada, sem capa, as roupas manchadas e rasgadas, o rosto (eu não tinha dúvidas) cinzento de cansaço e de dor e da borra amarga do triunfo da véspera. Mesmo assim o rapaz anuiu, de repente, e começou a falar: — Ontem à noite, na escuridão, ouvi cavalos passando por mim. Quatro, acho eu. Mas não vi ninguém. Depois, de madrugada, mais dois a segui-los, a galope. Pensei que iam todos para o castelo, mas de onde estava, lá em cima nas rochas, não vi tochas na casa da guarda do topo do penhasco, nem na ponte que dá para o portão principal. Eles devem é ter descido para o vale. Depois que clareou o dia, vi dois cavaleiros vindo de lá, da praia abaixo do castelo na rocha. — Ele hesitou. — E depois o senhor. Falei lentamente, prendendo-o com o olhar: — Ouça e lhe direi quem eram os dois cavaleiros. Ontem à noite, na escuridão, o Rei Uther Pendragon veio por este caminho, comigo e com mais dois outros. Ele dirigiu-se a Tintagel, mas não pelo caminho da casa da guarda e da ponte. Desceu ao vale, à praia, e depois subiu pelo atalho secreto na rocha e entrou no castelo pelo portão traseiro. Por que balança a cabeça? Não acredita? — Senhor, todo mundo sabe que o Rei brigou com o Duque. Ninguém poderia entrar, muito menos o Rei. Mesmo que encontrasse a porta traseira, ninguém ousaria abri-la para ele. — Eles a abriram ontem à noite. Foi a própria Duquesa Ygraine quem recebeu o Rei em Tintagel. — Mas. . . — Espere — falei. — Vou contar-lhe como tudo aconteceu. O Rei foi transformado por artes mágicas num sósia do Duque, e os seus companheiros em sósias dos amigos do Duque. Quem os deixou entrar no castelo, pensou estar introduzindo o próprio Duque Gorlois com Brithael e Jordan. Sob a sujeira do seu rosto, o menino empalideceu. Eu sabia que para ele, como para a maioria dos habitantes deste país selvagem e perseguido, as histórias de mágicas e encantamento seriam tão bem aceitas quanto as de amores reais e violência nas altas camadas. Ele gaguejou: — O Rei... o Rei esteve no castelo ontem à noite com a Duquesa? — Esteve. E a criança que nascerá será filha do Rei. Uma pausa longa. Ele umedeceu os lábios. — Mas... mas quando o Duque descobrir... — Não descobrirá — disse eu. — Está morto. Ele levou a mão imunda à boca, o punho cerrado contra os dentes. Seu olhar correu da minha mão ferida às manchas de sangue na minha roupa, destas à bainha sem espada. Parecia querer fugir, mas não ousou sequer. Falou, sem fôlego: — O senhor o matou? Matou o nosso Duque? — É claro que não. Nem eu nem o Rei desejávamos a sua morte. Ele foi morto em batalha. Ontem à noite, sem saber que o Rei já viajava secretamente para Tintagel, o Duque saiu da fortaleza de Dimilioc para atacar o exército do Rei e foi morto. Ele mal parecia ouvir. Gaguejava: — Mas os dois que eu vi hoje de manhã... Era o Duque, voltando de Tintagel. Eu o vi. O senhor acha que não o conheço? Era mesmo o Duque com seu criado Jordan. — Não. Era o Rei com seu criado Ulfin. Eu lhe contei que o Rei ficara igual ao Duque. A mágica enganou você também.

Ele começou a se afastar de mim. — Como é que sabe estas coisas? O senhor. . . o senhor disse que estava com eles? Esta mágica... quem é o senhor? — Eu sou Merlin, o sobrinho do Rei. Chamam-me Merlin, o feiticeiro. Ainda recuando, ele parará contra uma parede de tojo. Olhou para um e outro lado, tentando decidir para onde ir. Estendi-lhe a mão. — Não tenha medo. Não lhe farei mal. Tome, pegue isto. Pegue, nenhum homem sensato tem medo de outro. Digamos que é uma recompensa por pegar o meu cavalo. Agora, me ajude a montá-lo e eu vou-me embora. Ele fez um semi-movimento na minha direção, pronto para pegar e fugir, mas conteve-se e virou a cabeça, rápido como um animal selvagem. Notei que as cabras já não pastavam, e olhavam para o leste, orelhas em pé. Então, ouvi o barulho de cavalos. Tomei as rédeas do meu animal com a mão sadia, e procurei o garoto para me ajudar. Mas ele já corria, batendo nas moitas para espantar as cabras à sua frente. Chamei por ele e, quando olhou por sobre o ombro, atirei-lhe o ouro. Ele o apanhou e correu declive acima, as cabras fugindo à sua volta. A dor me atingiu de novo, triturando-me os ossos da mão. As costelas quebradas me espetavam e queimavam os flancos. Senti o suor porejar no corpo e, à minha volta, o dia de primavera tremulou e desfez-se em névoa de novo. O barulho dos cascos que se acercavam parecia martelar junto com a dor nos meus ossos. Encostei-me à sela do meu cavalo e esperei. Era o Rei cavalgando novamente para Tintagel, desta vez em direção ao portão principal, à luz do dia e com uma companhia de homens seus. Vinham a meio galope pela estrada gramada de Dimilioc, em grupos de quatro, cavalgando descontraídos. Por sobre a cabeça de Uther, o estandarte do Dragão tremulava vermelho e dourado à luz do sol. O Rei era o Rei novamente, já não tinha o cabelo e a barba grisalhos, como no disfarce, e a argola real brilhava no seu elmo. Sua capa escarlate caía por sobre as ancas lustrosas do baio. Sua fisionomia era calma, fixa; um ar sombrio, cansado, mas, apesar de tudo, satisfeito. Pois ia para Tintagel, e Tintagel, com tudo que nele havia, agora lhe pertencia. Para ele, isto era um final. Encostado ao meu cavalo, eu os via chegar. Era impossível para Uther não me ver, mas nem olhou na minha direção. Notei os olhares curiosos da tropa, que me reconhecia. Não havia um que não suspeitasse do que acontecera na véspera em Tintagel, e do papel que eu desempenhara na realização dos desejos do Rei. Talvez as almas mais simplórias do séqüito do Rei esperassem que ele fosse grato; que me recompensasse; ou, ao menos, que me reconhecesse e cumprimentasse. Mas eu, que lidara com reis a vida toda, sabia que, quando há culpa e gratidão juntas, a culpa deve ser distribuída em primeiro lugar, para que nem um pouco dela possa aderir ao próprio Rei. O Rei Uther somente entendia que, graças às falhas da minha previsão, o Duque de Cornwall morrera na hora em que ele, Rei, estava na cama com a Duquesa. Ele não via a morte do Duque como a ironia amarga por trás da máscara sorridente que os deuses usam quando querem dominar os homens. Uther, que não entendia de deuses, via apenas que, se tivesse esperado mais um dia, teria obtido o que queria, com honra e às claras. A sua ira contra mim era bem genuína, mas, mesmo que não o fosse, ele precisava ter alguém para culpar; não importa o que realmente sentisse a respeito da morte do Duque (e, para ele, ela fora uma porta aberta milagrosamente para o seu casamento com Ygraine), em público precisava demonstrar remorso. E eu era o sacrifício público a este remorso. Um dos oficiais, Caio Valério, que ia ombro a ombro com o Rei, inclinou-se e disse algo, mas

Uther fingiu não ouvir. Valéria olhou-me com ar de dúvida, depois, com um dar de ombros e um meio aceno para mim, seguiu seu caminho. Eu os vi seguir, sem nenhuma surpresa. O ruído dos cascos foi diminuindo estrada abaixo, em direção ao mar- Sobre a minha cabeça, entre uma e outra batida de asas, o canto da cotovia cessou, e ela desceu do silêncio brilhante para descansar na grama. Não muito longe uma pedra sobressaía na relva. Levei o cavalo até lá e, de cima da pedra, consegui alcançar a sela. Guiei o animal para noroeste, para Dimilioc, onde se encontrava o exército do Rei.

2 Os lapsos de memória podem ser uma bênção. Não me lembro de ter chegado ao acampamento, mas, quando aflorei das névoas da fadiga e da dor, horas mais tarde, estava dentro de casa e na cama. Quando acordei, estava escuro e havia uma luz suave e bruxuleante que podia ser luz de fogo ou de velas; era uma luz incerta, com cores e sombras, entremeada do cheiro de fumaça e, lá de longe, do som do pingar de água. Mas, até o estado de consciência assim suave e aconchegante foi demais para os meus sentidos e logo fechei os olhos e me deixei submergir de novo. Creio que, durante algum tempo, acreditei estar novamente no limiar do outro mundo, onde as visões se agitam e as vozes falam da escuridão, e a verdade se revela com a luz e o fogo. Mas, logo meus músculos pisados e doloridos e a minha mão que doía terrivelmente me fizeram ver que ainda estava neste mundo e que as vozes que murmuravam sobre mim, na escuridão, eram tão humanas quanto eu. — Bem, por agora é só. As costelas são o pior, depois da mão, mas logo vão sarar. Estão só rachadas. Tive a vaga impressão de que conhecia aquela voz. Pelo menos o que ele era eu sabia: manuseava os meus curativos de maneira hábil e firme, como um profissional. Tentei novamente abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam e se grudavam, pegajosas de suor e sangue seco. O calor me subia em ondas, me pesavam os membros. Sentia um cheiro doce e pesado; devem ter-me dado ópio, pensei, ou me entontecido com fumaça, antes de cuidarem da minha mão. Desisti e me deixei flutuar de novo; por sobre as águas escuras as vozes ecoavam, suaves. — Pare de ficar olhando para ele e traga a bacia mais para perto. Não tenha medo, ele não é perigoso do jeito que está. — Era o doutor, de novo. — Sei lá, a gente ouve tanta coisa! — Falavam em latim, mas com sotaques diferentes. A segunda voz era estrangeira; não germânica, nem de lugar algum do Mar do Meio. Sempre fui bom em línguas, e, mesmo em criança, falava vários dialetos celtas, juntamente com o saxão e com um grego razoável. Mas este sotaque eu não conseguia identificar. Ásia menor? Arábia? Os dedos hábeis viraram a minha cabeça no travesseiro, suavemente, e repartiram meu cabelo para limpar os ferimentos. — Você nunca o tinha visto antes? — Nunca. Não o imaginava tão jovem. — Não é tão jovem. Deve ter uns vinte e dois anos. — E já ter feito tanto! Dizem que seu pai, o Grande Rei Ambrósio, não deu um passo nestes últimos dois anos sem consultá-lo. Dizem que vê o futuro na chama de uma vela e que pode ganhar uma batalha de uma colina a uma milha de distância. — Diriam qualquer coisa dele. — A voz do doutor era calma e prosaica. Na Bretanha, pensei, devo tê-lo conhecido na Bretanha. O latim macio tinha um reflexo do qual eu me recordava, sem saber como. — Mas, na verdade, Ambrósio dava muito valor aos seus conselhos. — É verdade que ele reconstruiu a Dança dos Gigantes, a que dão o nome de Pedras Suspensas, próximo a Amesbury?

— É, é verdade. Quando era rapaz e servia com o exército do pai na Bretanha, ele estudou engenharia. Lembro-me dele conversando com Tremorinus, que era o engenheiro-chefe do exército, sobre o levantamento das Pedras Suspensas. Mas não foi só isto que estudou. Mesmo quando bem jovem, entendia mais de medicina do que a maioria dos homens que vivem dela. Não conheço outro melhor para ter como ajudante num hospital de campanha. Só Deus sabe por que prefere ficar naquele fim de mundo em Gales. Talvez porque ele e o Rei Uther nunca se tenham dado bem. Dizem que Uther tinha ciúmes da atenção que o Rei, seu irmão, dispensava a Merlin. De qualquer modo, depois que Ambrósio morreu, ninguém mais soube de Merlin, até esta história do Uther com a Duquesa de Gorlois, que pelo que vejo, já lhe deu bastante aborrecimento. . . Traga a bacia mais para perto enquanto eu limpo o rosto dele. Não, aqui. Está bom. — Está me parecendo corte de espada. — Diria que foi um raspão com a ponta. Com todo esse sangue, parece pior do que na realidade é. Ele até que teve sorte. Mais uns centímetros e teria pegado na vista. Pronto. Já está bem limpo. Nem ficará cicatriz. — Ele está bem ruim, Gandar. Será que ficará bom? — É claro. E como não? — Mesmo sob o efeito do sedativo, eu senti ser genuína a sua resposta, rápida e profissional. — Além das costelas e da mão, só tem cortes e pisaduras, e também uma boa reação ao que o tem atormentado nestes últimos dias. Agora ele precisa dormir. Passe-me aquela pomada ali, por favor. O vidro verde. A pomada refrescou a minha face cortada. Ela tinha cheiro de valeriana. Nardo, no vidro verde... Eu fazia em casa. Valeriana, erva-cidreira, óleo de espicanardo... O cheiro me levou de volta ao musgo da beira do rio, onde a água corria brilhante e eu colhia o fresco agrião, a balsâmina, e o musgo dourado... Não, era o barulho da água do outro lado do aposento. Ele tinha terminado e fora lavar as mãos. As vozes vinham agora de mais longe. — O bastardo de Ambrósio, hem? — O estrangeiro ainda estava curioso. — E quem foi a sua mãe? — Ela era a filha de um rei, do sul de Gales, de Maridunum em Dyfed. Dizem que ele herdou dela a Visão. Mas não a aparência. E!e é a cara do falecido Rei, mais ainda que Uther. O mesmo colorido, os olhos negros e aquele cabelo escuro. Eu me lembro da primeira vez que o vi na Bretanha, quando ainda era um menino; parecia-se com algo das colinas ocas. E falava assim, também, às vezes; isto é, quando falava. Não se deixe enganar pelo seu jeito quieto; nele há mais do que apenas estudo, e sorte, e noção de oportunidade; há poder, e bem real. — Então as histórias são verdadeiras? — As histórias são verdadeiras — disse Gandar secamente. — Pronto. Já terminei. Não há necessidade de ficar com ele. Vá dormir. Eu vou olhar os outros pacientes e depois virei vê-lo mais uma vez antes de ir dormir. Boa noite. As vozes esmaeceram. Outras iam e vinham na escuridão, mas eram vozes sem sangue, pertenciam ao ar. Talvez eu devesse esperar e acordar para ouvir, mas me faltou coragem. Enrolei-me no sono como num cobertor, abafando a dor e o pensamento juntos numa escuridão misericordiosa.

Quando abri novamente os olhos, a escuridão estava iluminada por uma suave luz de velas. Estava num quarto pequeno, com um telhado de pedra e com paredes cuja pintura, outrora viva, fora escurecida e descascada pela umidade e falta de cuidado. Mas o quarto era limpo. O chão de ardósia estava bem esfregado e as cobertas que me esquentavam eram grossas e cheiravam bem, e tinham um bonito padrão. A porta se abriu e um homem entrou. A princípio, como ele estava contra a luz, apenas vi uma figura de estatura média, encorpada e de ombros largos, vestindo uma túnica longa e simples e com um gorro na cabeça. Depois ele entrou na luz e eu reconheci Gandar, o médico-chefe que viajava com os exércitos do Rei. Ficou ao pé de mim, e sorriu. — E já não era sem tempo! — Gandar! Que bom vê-lo! Quanto tempo eu dormi? — Desde o anoitecer de ontem, e já passa de meia-noite. Era do que estava precisando. Você estava bem ruim quando o trouxeram. Mas o fato de estar inconsciente facilitou muito o meu trabalho. Olhei para a minha mão, envolta em ataduras, sobre a coberta. Meu corpo enfaixado estava rígido e dolorido, mas a dor aguda era agora um latejar surdo. Minha boca inchada ainda sentia o gosto do sangue misturado à droga, mas eu já não tinha dor de cabeça e o corte no rosto parará de doer. — Felizmente você estava aqui para me tratar — falei. Movi a mão para ter um pouco de alívio, mas não deu resultado. — Vai consertar? — Com a ajuda da juventude e de carne sadia, vai sim. Havia três ossos quebrados, mas acho que está tudo limpo. — Olhou-me com curiosidade. — Como foi que aconteceu? Parecia que um cavalo tinha pisado em você, e, depois, lhe chutara as costelas. Mas o corte no rosto foi feito por espada, certo? — Certo. Estive numa luta. Ele ergueu as sobrancelhas. — Se foi numa luta, ela teve regras que desconheço. Conte-me... espere, ainda não. Estou louco para saber o que houve, todos estamos, mas você precisa se alimentar primeiro. — Ele foi até a porta e chamou, e logo um criado trouxe uma tigela de caldo e um pouco de pão. A princípio não pude comer o pão, mas depois, molhando-o no caldo, consegui. Gandar puxou um banquinho para perto da cama, e esperou em silêncio até que eu tivesse terminado. Quando afastei a tigela, ele tirou-a de mim e colocoua no chão. — Sente-se agora com disposição para falar? Os rumores voam como dardos. Sabia que Gorlois está morto? — Sabia. — Olhei à minha volta. — Estou mesmo em Dimilioc? O forte se rendeu, depois da morte do Duque? — Eles abriram os portões tão logo o Rei voltou de Tintagel. Ele já tinha tido notícias da escaramuça e da morte do Duque. Parece que Brithael e Jordan, servos do Duque, foram para Tintagel tão logo o Duque caiu, para levar a notícia à Duquesa. Mas isso você sabe; você estava presente. — Parou, ao perceber as implicações. — Então foi isso! Você e Uther encontraram-se com Brithael e Jordan. — Uther, não. Ele ainda estava com a Duquesa, eles nem o viram. Eu estava de guarda às portas com meu criado Cadal. Lembra-se dele? Cadal matou Jordan e eu matei Brithael. — Dei um sorriso amargo com os meus lábios rígidos. — É, pode me olhar assim. Ele era bem maior do que eu, como você pode ver, e por isso não lutei limpo.

— E Cadal? — Morto. De que outro modo Brithael chegaria até mim? — Sei. — Seu olhar fez novamente o inventário dos meus ferimentos. Quando falou, fê-lo secamente: — Quatro homens. Com você, cinco. Esperemos que o Rei ache que valeu o preço. — Ele acha — eu disse. — Ou logo achará. — Ah, sim, todos sabem disso. Dêem-lhe somente tempo de dizer ao mundo que ele é inocente da morte de Gorlois, e de enterrá-lo com honras, para que se possa casar com a Duquesa. Ele já voltou para Tintagel, sabia? Deve ter passado por você na estrada. — Passou — falei secamente. — A alguns metros. — E não o viu? Ora, ele devia saber que você estava ferido. — Afinal ele entendeu o meu tom de voz. — Você quer dizer que ele o viu deste jeito e o deixou vir até aqui sozinho? Vi que ele estava chocado, e não surpreso. Gandar e eu éramos velhos conhecidos, e ele sabia qual era o meu relacionamento com Uther, embora ele fosse irmão do meu pai. Desde o começo, Uther se ressentira com o amor do irmão pelo filho bastardo e meio temera, meio desprezara os meus poderes de visão e profecia. Ele falou, inflamado: — Mas foi tudo feito a serviço dele... — Não, dele não. O que fiz, fiz cumprindo uma promessa feita a Ambrósio. Foi um legado que ele me deixou, para o seu reino. Parei por aí. Não se falava com Gandar de deuses e visões. Ele, como Uther, lidava com as coisas da matéria. — Diga-me, — pedi — esses rumores que você mencionou. Quais são? O que é que se pensa que aconteceu em Tintagel? Ele deu uma olhadela por sobre o ombro. A porta estava fechada, mas baixou a voz. — Fala-se que Uther já estivera em Tintagel com a Duquesa Ygraine, e que foi você quem o levou lá e deu um jeito para que ele entrasse. Dizem que você fez uma mágica que transformou o Rei num sósia do Duque para que ele pudesse passar pelos guardas e entrar no quarto de dormir da Duquesa. Ainda mais: a pobre senhora recebeu-o na cama pensando estar recebendo o marido. E que, quando Brithael e Jordan foram levar-lhe a notícia da morte de Gorlois, lá estava "Gorlois" tomando o café da manhã com ela. Pela Serpente, Merlin, do que você está rindo? — Dois dias e duas noites — respondi — e a história já aumentou. Bem, acho que é nisso que os homens vão acreditar e continuarão acreditando. O que talvez seja melhor que a verdade. — E qual é a verdade, então? — Não houve mágica na nossa entrada em Tintagel, apenas disfarce e perfídia humana. Contei-lhe tudo, então, exatamente como tinha acontecido, juntamente com o que eu tinha inventado para o pastor. — Como vê, Gandar, fui eu mesmo que plantei esta semente. Os nobres e os conselheiros do Rei precisam conhecer a verdade, mas o povo achará melhor (e mais fácil) acreditar em mágicas e numa Duquesa sem culpa. Ele ficou em silêncio durante algum tempo. — Então a Duquesa sabia.

— Senão nós não teríamos entrado. Que não se diga, Gandar, que houve estupro. Não, a Duquesa sabia. Ele silenciou de novo, por mais tempo. Depois disse, pesadamente: — Perfídia é uma palavra dura. — É a verdadeira. O Duque foi amigo de meu pai, e confiava em mim. Nunca lhe ocorreria que eu ajudasse Uther contra ele. Sabia que eu pouco ligava para os desejos sexuais de Uther. Não podia adivinhar que os meus deuses exigiam que eu ajudasse Uther a satisfazer este. Embora tivesse que fazêlo, ainda assim foi perfídia, e nós sofreremos por isto, todos nós. — Não o Rei. — Ele falou com segurança. — Eu o conheço. Talvez sinta apenas uma culpa passageira. Você, sim, é quem está sofrendo, Merlin, e é você quem dá à coisa o seu devido nome. — Para você — falei. — Para os outros homens, está será uma história de magia, como os dragões que lutaram sob o meu comando com Dinas Emrys, e a Dança dos Gigantes, que flutuou no ar sobre a água até Amesbury. Mas você viu como Merlin, o mago do Rei, se saiu naquela noite. — Fiz uma pausa e movi a mão sobre a coberta, mas fiz que não com a cabeça à pergunta estampada em seu rosto. — Não, não, pode deixar. Já está melhor. Gandar, é preciso que se saiba outra verdade sobre aquela noite. Vai haver uma criança. Encare como esperança ou como profecia, mas você verá que, pelo Natal, nascerá um menino. Ele já disse quando vai casar com ela? — Tão logo seja decente. Decente! — Repetiu a palavra com uma risada curta, depois limpou a garganta. — O corpo do Duque está aqui, mas dentro de um ou dois dias, vão levá-lo para Tintagel para o enterro. Então, depois de oito dias de luto, Uther se casará com a Duquesa. Pensei durante um momento. — Gorlois tem um filho da primeira mulher chamado Cador. Deve ter uns quinze anos. Já se sabe o que vai ser dele? — Ele está aqui. Lutou ao lado do pai. Ninguém sabe o que se passou entre ele e o Rei, mas o Rei anistiou todas as tropas que lutaram contra ele no combate de Dimilioc, além de confirmar Cador como Duque de Cornwall. — É — falei. — E o filho de Ygraine e Uther será Rei. — Com Cornwall como inimigo ferrenho? — E se for — retruquei, cansado — quem poderá culpá-lo? O pagamento talvez seja longo demais, e pesado demais, .até mesmo' para a perfídia. — Bem, — disse Gandar vivamente, ajeitando a túnica — o tempo dirá. E agora, meu jovem, você vai descansar mais um pouco. Quer uma bebida? — Não, obrigado. — Como está a mão? — Melhor. Não há veneno nela; eu conheço quando há. Não lhe darei mais trabalho, Gandar; pare de me tratar como doente. Já estou bem, agora que dormi. Vá você para a cama e me esqueça. Boa noite. Quando ele se foi, eu fiquei deitado escutando o barulho do mar e tentando conseguir, com os deuses na escuridão, a coragem necessária para a minha visita aos mortos.

Com ou sem coragem, outro dia se passou até que eu tivesse forças para deixar o quarto. Então, ao anoitecer, fui ao grande átrio onde estava o corpo do Duque. No dia seguinte, ele seria levado para Tintagel para ser enterrado com os seus ancestrais. Agora estava só, à exceção dos guardas, no mesmo lugar onde festejava os seus pares e onde dera as ordens para a sua última batalha. O lugar era frio e só se ouvia os ruídos do vento e do mar. O vento tinha mudado e soprava do noroeste, trazendo a friagem e a promessa de chuva. As janelas não tinham vidros e a corrente de ar agitava as tochas nas suas armações de ferro, fazendo com que a fumaça enegrecesse as paredes. Era um lugar árido e sem conforto, sem pintura, azulejos ou madeira trabalhada; dava para se ver que Dimilioc era apenas a fortaleza de um guerreiro; acredito que Ygraine nunca tenha estado lá. As cinzas da lareira eram antigas, as achas semi-queimadas orvalhadas de umidade. O corpo do Duque jazia num ataúde no centro do átrio, coberto pela sua capa de guerra. Era escarlate, com uma barra dupla de prata e com o emblema do Javali, como eu já vira em batalha, ao lado do meu pai. Eu a vira também com Uther quando eu o levava, disfarçado, para a casa e a cama de Gorlois. Agora as dobras pesadas caíam até o chão, e debaixo delas o corpo encolhera e achatara, uma simples casca daquele homem alto que eu conhecera. Tinham deixado o rosto descoberto. A carne afundara, cinzenta como sebo muito usado, deixando o rosto como um esqueleto moldado, parecendo apenas de longe com o Gorlois de que eu me recordava. As moedas sobre os seus olhos já tinham afundado na carne. O capacete de guerra lhe escondia o cabelo, mas a velha barba grisalha se destacava sobre o emblema do Javali no seu peito. Enquanto me aproximava, pisando de leve sobre o chão de pedra, fiquei a me perguntar a qual deus Gorlois servira em vida e para qual teria ele ido na morte. Nada havia aqui que me indicasse. Os cristãos, como outros homens, colocavam moedas sobre os olhos. Recordei-me de outros leitos de morte e dos espíritos à espera à sua volta; aqui nada havia. Mas ele estava morto há três dias e talvez o seu espírito já tivesse escapado por aquele buraco na parede, por onde ventava tanto. Talvez já estivesse longe demais para que eu o pudesse alcançar e me reconciliar com ele. Cheguei ao pé do seu ataúde, do homem a quem eu atraiçoara, do amigo do meu pai, Ambrósio, o Grande Rei. Lembrei-me da noite em que ele tinha vindo me pedir que ajudasse sua jovem esposa, e de como ele me dissera: — Não há muitos homens em quem eu confiaria nesta situação, mas confio em você. Você é bem o filho do seu pai. — E de como eu nada dissera, apenas olhara a luz do fogo tornar seu rosto vermelho como sangue, e esperara a oportunidade de conduzir o Rei para o leito da sua mulher. É um dom poder ver os espíritos e ouvir os deuses à nossa volta; mas é um dom tanto de trevas quanto de luz. Os contornos da morte são tão nítidos quanto os da vida. Não se pode ser visitado pelo futuro, sem ser assombrado pelo passado; não se pode provar o conforto e a glória sem sentir o amargor e a fúria dos nossos feitos passados. O que quer que eu tenha pensado encontrar próximo ao cadáver do Duque de Cornwall, não me traria conforto nem paz. Um homem como Uther Pendragon, que matava abertamente em batalha e ao ar livre, pensaria nele apenas como um homem morto. Mas eu, que ao obedecer os deuses confiara neles como o Duque confiara em mim, sabia que teria que pagar, e integralmente. E então eu viera, mas sem esperança. Ali havia luz das tochas, luz e fogo. Eu era Merlin; eu deveria poder entrar em contato com ele; já falara com os mortos antes. Fiquei imóvel, olhando as tochas fulgurantes, e esperei. Aos poucos, por todo o forte, os ruídos foram diminuindo e silenciando, enquanto os homens, finalmente, iam-se recolhendo. O mar sussurrava e batia sob a janela, o vento procurava arrancar as

samambaias que cresciam nas reentrâncias do muro. Num canto qualquer um rato guinchou e correu. A resina borbulhava nas tochas. Através da fumaça, eu sentia o cheiro doce e fétido da morte. A luz das tochas refletia-se pálida nas moedas sobre os olhos mortos. O tempo se arrastava. Meus olhos doíam com a chama, e a dor, que me mordia a mão, me conservava prisioneiro do meu corpo. Meu espírito estava reduzido a nada, cego como os mortos. Eu ouvia sussurros, fragmentos de pensamentos dos guardas imóveis e sonolentos, tão sem sentido quanto o som da sua respiração, e o ranger de couro e o tinir do metal quando eles se mexiam, involuntariamente, de tempos em tempos. Mas, além disto, nada. O poder que eu possuíra aquela noite em Tintagel tinha-se escoado de mim juntamente com a força com que eu matara Brithael. Ele me abandonara e agora trabalhava num corpo de mulher; em Ygraine, que neste momento se deitava ao lado do Rei na sombria e castigada península de Tintagel, dez milhas ao sul. Eu nada podia fazer aqui. O ar, sólido como pedra, não me deixava passar. Um dos guardas, o mais próximo de mim, mexeu-se, inquieto, e a extremidade da sua lança raspou o chão de pedra. O som quebrou o silêncio. Olhei para ele, involuntariamente, e vi que me fitava. Era jovem, rígido como a sua lança, as mãos crispadas nela. Os olhos azuis e ferozes me olhavam sem pestanejar sob espessas sobrancelhas. Com um choque que me percorreu como uma lança acertando, eu os reconheci. Os olhos de Gorlois. Era o filho de Gorlois, Cador de Cornwall, que estava entre mim e o morto, olhando-me fixamente, com ódio. Pela manhã levaram o corpo de Gorlois para o sul. Logo que o enterrassem, Gandar me contou, Uther planejava voltar para Dimilioc para reunir-se às suas tropas até a hora em que pudesse casar com a Duquesa. Eu não tinha intenção de esperar pela sua volta. Pedi provisões e o meu cavalo, e, apesar dos protestos de Gandar de que eu não estava ainda em condições de viajar, parti sozinho para o meu vale acima de Maridunum e para a minha gruta na colina, que o Rei prometera que, apesar de tudo, continuaria minha.

3 Ninguém estivera dentro da caverna na minha ausência. O que não era difícil de entender, pois o povo me temia como feiticeiro e, além do mais, todos sabiam que o próprio Rei tinha doado a colina Bryn Myrddin para mim. Desde que deixei a estrada principal junto ao moinho dágua e cavalguei vale acima para a caverna que era o meu lar, não vi ninguém, nem mesmo o pastor que costumava guardar o seu rebanho a pastar nos morros pedregosos. Na região inferior do vale, os bosques eram densos; as folhas murchas dos carvalhos sussurravam, castanheiros e sicômoros disputavam a luz, e, entre as faias, viam-se azevinhos pretos e brilhantes. Depois, as árvores rareavam e o atalho subia pelo lado do vale, com o riacho correndo lá embaixo, pela esquerda, e com elevações cobertas de grama cortada por cascalho pela direita, até atingir os penhascos que coroavam a colha. A grama ainda estava descolorida pelo inverno, mas, entre as samambaias desbotadas do ano passado, viam-se as folhas verdes das campainhas e os brotos do abrunheiro. Num canto qualquer, ovelhas baliam. Isto, e o grito de um bútio por sobre os penhascos, e o barulho das folhas mortas por cima das quais o meu cavalo exausto pisava eram os únicos sons do vale. Eu estava em casa, para o consolo da simplicidade e da quietude. O povo não me tinha esquecido e deve ter-se espalhado a notícia de que eu era esperado. Quando desmontei no bosque de espinhos sob 0 penhasco, e fui guardar o meu cavalo no alpendre, encontrei ali samambaias frescas para ele se deitar e forragem num gancho próximo à porta; e quando subi ao pequeno gramado que havia em frente à minha gruta, encontrei queijo e pão fresco embrulhados num pano limpo e um odre do vinho da região, fraco e ácido, que tinham sido deixados para mim perto da fonte. Era uma fonte pequena, um fiozinho de água pura que saía de um buraco na rocha de um dos lados da gruta. A água descia, às vezes num fluir constante, às vezes em gotas deslizantes sobre o musgo, até uma bacia na pedra. Por cima da fonte, a estatuazinha do deus Myrddin, dos espaços alados do ar, ficava entre as samambaias. Sob os seus pés rachados de madeira, a água borbulhava e pingava na bacia de pedra, e derramava-se na grama logo abaixo. No fundo da água clara, o brilho de metal; eu sabia que o vinho e o pão, tanto quanto as moedas arremessadas, tinham sido deixadas em oferenda tanto para o deus quanto para mim; nas mentes simples do povo, eu já fazia parte da lenda da colina, o seu deus feito carne que ia e vinha mansamente como o ar e que trazia consigo o dom de curar. Peguei a caneca de chifre que ficava sobre a fonte, enchi-a com o vinho do odre, derramei um pouco para o deus, e bebi o resto. O deus saberia se havia mais no meu gesto do que a homenagem ritual. Eu estava cansado demais para pensar, ou para rezar; a bebida era para coragem, nada mais. Do outro lado da entrada da gruta, oposto à fonte, havia um amontoado de pedras musgosas, onde rebentos de carvalho e tramazeira germinaram e cresciam emaranhados contra a superfície rochosa. No verão, os seus ramos davam uma boa sombra, mas agora, embora caindo por sobre a entrada da caverna, não a escondiam. Era um arco pequeno, regular e arredondado, como que feito a mão. Afastei os ramos pendentes, e entrei. Bem perto da entrada, os restos de um fogo ainda estavam no fogão, com gravetos e folhas úmidas por sobre as cinzas. O lugar cheirava a falta de uso. Parecia mentira que fazia pouco mais de um mês que eu tinha ido atender ao apelo urgente do Rei para ajudá-lo no caso de Ygraine de Cornwall. Ao lado da lareira fria, estavam os pratos sujos da minha última refeição, feita às pressas pelo meu criado antes de partirmos.

Bem, agora eu teria de ser o meu próprio criado. Coloquei o odre de vinho e o embrulho de pão e queijo em cima da mesa, e virei-me para reacender o fogo. Isca e pederneira estavam à mão, onde sempre estiveram, mas eu me ajoelhei junto à lenha e estendi as mãos para a mágica. Essa foi a primeira mágica que me ensinaram, e a mais simples, fazer o fogo do nada. Ela me foi ensinada aqui nesta caverna, onde, em menino, aprendi tudo o que sei de sabedoria natural com Galapas, o velho ermitão da colina. Aqui, também, na caverna de cristal no mais recôndito da colina, tive as minhas primeiras visões, e me descobri vidente. — Algum dia — Galapas dissera — você irá aonde nem eu com a Visão poderei acompanhá-lo. E fora verdade. Eu o deixara e fora para onde o meu deus me impulsionara; para onde somente eu, Merlin, poderia ter ido. Mas agora a vontade do deus estava feita, e ele tinha me desertado. Lá em Dimilioc, ao lado do ataúde de Gorlois, eu me senti como uma casca vazia; cego e surdo como os homens são cegos e surdos; o grande poder se fora. Agora, embora exausto, sabia que não conseguiria descansar sem ver se, aqui no lugar do nascimento da minha mágica, o primeiro e menor dos meus poderes ainda me pertencia. Logo tive a resposta, mas foi uma resposta que eu não queria aceitar. O sol se punha para além dos galhos da entrada da caverna, e a lenha ainda estava apagada quando finalmente desisti, suando em bicas sob a túnica e com as mãos, estendidas para a mágica, trêmulas como as de um velho. Sentei ao pé da lareira fria e comi o meu pão e queijo e bebi o meu vinho aguado, no frio crepúsculo de primavera, antes de poder ter forças para pegar a isca e a pederneira e tentar com elas. Até isso, uma tarefa que qualquer mulher faz diariamente e sem pensar, me custou uma eternidade e me pôs a mão ferida a sangrar. Mas, afinal, o fogo pegou. Uma fagulha surgiu na isca e veio a chama, vagarosamente. Acendi a tocha nela, e, carregando bem alto a luz, fui para os fundos da gruta. Ainda havia algo que precisava fazer. A caverna principal, de teto alto, se estendia até longe. Ergui a chama bem alto e olhei para cima. Nos fundos da caverna havia uma rocha que subia até uma saliência larga, que, por sua vez, entrava nas sombras altas e escuras. Invisível entre estas sombras, estava a abertura escondida que dava para a gruta interna, a cavidade em forma de globo, forrada de cristais, onde, com luz e fogo, eu tivera as minhas primeiras visões. Se o poder perdido estava em algum lugar, só podia ser ali. Vagarosamente, duro de cansaço, subi a saliência e me ajoelhei para espiar pela entrada baixa para a caverna interna. Os cristais refletiram as chamas da minha tocha e a luz correu pelo globo. A minha harpa ainda estava onde eu a deixara, no centro do chão incrustado de cristal. A sua sombra se agigantava nas paredes reluzentes, e a chama refulgia no cobre do instrumento, mas nenhuma aragem a fez sussurrar e as suas próprias sombras abafaram a luz. Fiquei ali ajoelhado por muito tempo, olhos fixos e arregalados, enquanto à minha volta luz e sombra tremiam e batiam. Mas os meus olhos doíam, vazios de visões, e a harpa permaneceu silenciosa. Afinal me retirei, e desci para a caverna principal. Lembro-me que fui descendo devagar e com cuidado, como um homem que não conhecesse o caminho. Enfiei a tocha sob a madeira seca que eu empilhara para o fogo, até as achas começarem a crepitar; saí para buscar a minha bagagem, arrastei-a para o conforto da luz do fogo e comecei a desfazer as malas. Minha mão levou muito tempo para sarar. Nos primeiros dias doía constantemente, latejando tanto que tive medo que estivesse infeccionada. Durante o dia eu não me preocupava tanto, pois havia tarefas a serem feitas; meu criado as havia feito para mim por tanto tempo que eu mal sabia por onde começar: limpar, preparar a comida, cuidar do cavalo. A primavera chegou devagar ao sul de Gales,

naquele ano, e ainda não havia pastagem na colina, por isso eu tinha de cortar e levar forragem para ele, além de ir longe demais para o meu gosto em busca das plantas medicinais de que precisava. Felizmente, comida para mim não faltava; quase que diariamente havia presentes ao pé do pequeno penhasco abaixo do gramado. Talvez o povo da região ainda não soubesse que eu já não gozava das boas graças do Rei, ou, talvez, todas as curas que eu tivesse feito pesassem mais na balança que o desagrado de Uther. Eu era Merlin, filho de Ambrósio; ou, como dizem os galeses, Myrddin Emrys, o feiticeiro da colina de Myrddin; e de outro modo, suponho, o sacerdote do próprio Myrddin, o velho deus da colina vazia. Os presentes que trariam para ele, agora traziam para mim, e em seu nome eu os aceitava. Mas, se os dias eram cheios, as noites eram ruins. Dormia mal, menos talvez pela dor na minha mão do que pela dor das minhas lembranças: enquanto a câmara mortuária de Gorlois estivera vazia, a minha gruta estava cheia de fantasmas. Não dos espíritos dos mortos queridos, a quem eu teria dado as boas-vindas; mas os espíritos daqueles que eu matara passavam por mim na escuridão, guinchando como morcegos. Pelo menos, isto era o que eu me dizia. Acredito agora que estava febril; os morcegos que eu e Galapas estudávamos ainda viviam na caverna, e devem ter sido eles que eu ouvia movimentando-se na noite. Mas, nas minhas lembranças desta época, eles são as vozes dos mortos, inquietos na escuridão. Abril passou, úmido e frio, com ventos que chegavam até os ossos. Foi a época ruim, vazia, salvo pela dor, e ociosa, salvo pelos mais ínfimos esforços para viver. Acho que comia muito pouco; água, frutas e pão preto eram a minha dieta básica. As minhas roupas, que nunca foram suntuosas, puíram sem ninguém para cuidar delas e, depois, rasgaram-se. Um estranho que me visse pelos atalhos da colina me tomaria por um mendigo. Havia dias que eu passava agachado junto ao fogo. Minha arca de livros permanecia fechada, minha harpa deixada em seu lugar. Mesmo que a minha mão estivesse boa, não poderia tocar. Quanto à mágica, eu não ousava me testar de novo. Mas, aos poucos, com Ygraine à espera no seu frio castelo mais ao sul, caí numa aceitação calma. Com o passar das semanas, minha mão sarou bastante bem. Fiquei com dois dedos duros e uma cicatriz do lado de fora da palma, mas o endurecimento foi melhorando e a cicatriz nunca me incomodou. Com o passar do tempo, as outras feridas sararam também. Acostumei-me à solidão como me acostumara ao isolamento, e os pesadelos cessaram. Coro a chegada de maio os ventos mudaram, esquentaram, e a grama e as flores brotaram. As nuvens cinzentas se foram e o vale se encheu da luz do sol. Eu ficava horas sentado ao sol, à boca da gruta, lendo ou preparando as ervas que colhera, ou, ocasionalmente e sem grande interesse, espiando o caminho que poderia trazer algum mensageiro. (Assim, eu pensava, deve ter ficado muitas vezes o meu mestre Galapas, sentado ao sol, espiando o caminho que, um dia, traria do vale um meninozinho.) Renovei o meu estoque de plantas e ervas, afastando-me mais e mais da caverna, à medida que as minhas forças voltavam. Eu nunca ia à cidade, mas os pobres que vinham em busca de remédios ou de cura traziam as novidades. O Rei se casara com Ygraine com o máximo de pompa e cerimônia que a situação permitia, e parecia bem alegre desde as bodas, embora se zangasse mais facilmente que antes, e tivesse crises de depressão em que o melhor era deixá-lo a sós. Quanto à Rainha, estava tranqüila, fazendo em tudo a vontade do Rei, mas dizia-se que tinha um ar sombrio e que chorava em segredo... A esta altura o meu informante me olhava de esguelha e eu via os seus dedos fazerem o sinal contra a magia. Eu o deixava ir, sem perguntar mais nada. As notícias chegariam a mim, na hora apropriada.

Quase três meses tinham se passado desde a minha volta à Bryn Myrddin. Certo dia em junho, quando o sol quente da manhã acabava de espantar a névoa de cima da grama, fui em busca do meu cavalo, que eu levara para pastar no gramado acima da caverna. O ar estava parado, e o céu cheio de cotovias a cantar. Por sobre o túmulo de Galapas, as folhas verdes dos abrunheiros brotavam por entre as flores desbotadas, e as campainhas vicejavam entre as samambaias. Acredito que nem havia necessidade de prender o meu cavalo. Geralmente trazia comigo os restos do pão que os meus benfeitores me davam, e o cavalo, quando me via, vinha até a ponta da corda e ficava à minha espera. Mas não nesse dia. Com a corda esticada ao máximo, ele estava na beira da colina, com a cabeça erguida e as orelhas em pé, olhando para algo lá embaixo no vale. Caminhei até ele e, enquanto procurava o pão na minha mão, olhei para onde estivera olhando. Desta altura, podia ver a cidade de Maridunum, pequena na distância, apegada à margem norte do plácido Tywy, que serpenteava pelo largo vale verde até o mar. A cidade, com a ponte de pedra em arco, e o porto, fica bem no lugar onde o rio se alarga em direção ao estuário. Havia o costumeiro amontoado de mastros para além da ponte, e, mais perto, no caminho que acompanhava as curvas prateadas do rio, um cavalo cinzento vagarosamente puxava uma barcaça cheia de cereais até o moinho. Este ficava escondido nos bosques, na confluência do riacho do meu vale com o rio; desses bosques saía a velha estrada militar que o meu pai tinha consertado, e que seguia em linha reta por cinco milhas até o quartel que ficava próximo ao portão leste de Maridunum. Nesta estrada, a talvez milha e meia para além do moinho dágua, via-se uma nuvem de poeira onde cavaleiros lutavam. Vi o brilho de metal. Por entre a poeira, distingui o grupo. Eram quatro homens a cavalo, lutando três contra um. Este parecia querer fugir, os outros procuravam cercá-lo e abatê-lo. Afinal, em desespero, ele conseguiu livrar-se para escapar. Seu cavalo, na reviravolta, atingiu um dos outros, cujo cavaleiro caiu. Então, o homem sozinho esporeou o cavalo violentamente em direção à proteção oferecida pelo bosque. Mas não a alcançou. Os outros dois foram atrás dele; depois de um galope curto eles o alcançaram, um de cada lado, e eu os vi arrancarem-no do cavalo e jogaremno de joelhos. Ele tentou fugir arrastando-se, mas não teve chance. Os dois cavaleiros o cercaram, com as armas faiscando, e o terceiro, aparentemente ileso, já cavalgava para se reunir a eles, quando parou abruptamente, empinando o cavalo. Levantou um braço. Deve ter dado um aviso, pois os outros dois abandonaram a vítima e os três juntos, com o outro animal atrás, partiram a todo galope até se perderem de vista atrás das árvores, para o leste. Eu logo vi o que os assustara. Outro grupo de cavaleiros vinha vindo da cidade. Devem ter visto o trio que se afastava, mas não levem ter visto o ataque, pois vinham a meio galope e não se apressaram. Chegaram ao local onde se encontrava o homem caído (ferido ou morto) e não diminuíram o passo. E logo também se perderam de vista atrás do bosque. O meu cavalo, não encontrando mais pão, me mordiscou, depois afastou bruscamente a cabeça, com as orelhas para trás. Puxei-o pelo cabresto, arranquei a amarra do chão e desci com ele. — Eu estava neste lugar certo dia, — falei com ele — quando um mensageiro do Rei veio ver-me e ordenar-me que atendesse o Rei nos seus desejos. Então eu tinha poder; achava que tinha o mundo nas mãos, brilhante e pequeno. Bem, pode ser que hoje nada tenha senão esta colina, mas aquele homem lá pode ser um mensageiro da Rainha, com a sua mensagem ainda na sacola. Com ou sem mensagem, ele precisará de ajuda se ainda estiver vivo. E eu e você, meu amigo, já estivemos ociosos por muito tempo.

É hora de recomeçar a fazer. Selei meu cavalo, em menos do dobro de tempo em que meu criado o faria, e desci para o vale. Ao chegar à estrada do moinho, virei a cabeça do animal para a direita e esporeei. O lugar onde eu vira o cavaleiro cair era próximo à orla do bosque, onde havia muitas moitas, samambaias e arbustos e árvores esparsas. Ainda havia cheiro de cavalos no ar, junto com o odor da samambaia e da rosa-amarela pisadas, e com o fedor de vômito. Desmontei, prendi o cavalo e me meti vegetação adentro. Ele estava deitado sobre o rosto, encolhido no lugar para onde se arrastara e desabara, com a mão presa sob o corpo, a outra estirada, agarrando um punhado de samambaia. Um jovem, pouco encorpado mas bem desenvolvido, com uns quinze anos, talvez, um pouco mais. Suas roupas, embora rasgadas e sujas e manchadas de sangue pela luta e pelos arranhões nos espinhos, eram de boa qualidade e eu vi um brilho de prata no seu pulso e um broche de prata perto do seu ombro. Portanto, não o tinham roubado, se é que o roubo fora o motivo do ataque. A sacola, fechada, ainda estava presa ao cinto. Não se mexeu quando me aproximei, por isso eu o imaginei sem sentidos ou morto. Mas, quando me ajoelhei ao seu lado, vi o leve movimento da sua mão apertando mais firmemente as samambaias, e compreendi que estava exausto demais ou ferido demais para se importar. Se eu fosse um dos assassinos voltando para liquidá-lo, ele ficaria ali, deitado, e não resistiria. Falei suavemente: — Calma, não vou machucá-lo. Fique quieto, não se mexa. Não houve resposta. Examinei-o com cuidado, à procura de ferimentos e ossos quebrados. Ele se encolhia ao meu toque, mas não deixou escapar um som. Logo me certifiquei de que não havia ossos quebrados. Próximo à nuca havia uma inchação sanguinolenta e um dos ombros já estava ficando roxo, mas o pior me pareceu uma porção de carne amassada e sangrenta no quadril, que achei que fosse (como na realidade era) coice de cavalo. — Vamos, — disse eu finalmente — vire-se e beba isto. Então, ele se mexeu, retraindo-se ao toque do meu braço ao redor do seu ombro, virando-se vagarosamente. Limpei a sujeira e o vômito da sua boca e dei-lhe de beber do meu frasco; ele engoliu gulosamente, tossiu, e depois, perdendo as forças de novo, deixouse cair contra mim, a cabeça pendendo sobre o meu peito. Quando tornei a dar-lhe de beber, afastou a cabeça. Vi que fazia força para não gritar de dor. Arrolhei o frasco e guardei-o. — Tenho um cavalo aqui. Você vai tentar montá-lo e vou levá-lo para casa e tratar de você. — Como não respondesse, continuei: — Venha. Vamos tirá-lo daqui antes que eles voltem para terminar o que começaram. Ele se moveu, subitamente, como se essas fossem as primeiras palavras que tivesse entendido. Vi sua mão buscar a sacola no cinto e, ao descobri-la, cair molemente. Seu corpo desabou contra o meu peito. Tinha desmaiado. Foi melhor assim, pensei, ao deitá-lo suavemente e sair para trazer o cavalo. Não sofreria com os sacolejos da viagem e, com a ajuda dos deuses, estaria na cama e medicado antes de acordar. Ao me abaixar para erguê-lo, me detive. O seu rosto estava cheio de sujeira e do sangue dos arranhões e de um corte acima da orelha. Sob a máscara da sujeira e do sangue, a pele estava exangue e acinzentada. Cabelos castanhos, olhos cerrados, boca flácida. Mas eu o reconheci. Era Ralf, o pajem de Ygraine, que nos deixara entrar em Tintagel naquela noite e que, juntamente com Ulfin e comigo, guardara o quarto

da Duquesa até que o Rei se satisfizesse. Abaixei-me, ergui o mensageiro da Rainha e coloquei o seu corpo, que por misericórdia estava inconsciente, sobre o meu cavalo que esperava.

4 Ralf não recuperou os sentidos durante a viagem até a gruta, e somente depois de estar na cama, com as feridas lavadas e medicadas, é que abriu os olhos. Olhou-me por alguns momentos, sem demonstrar reconhecimento. — Não me conhece? — perguntei. — Merlinus Ambrosius. Veja, você trouxe direitinho a sua mensagem. — Levantei o alforje, ainda lacrado. Mas os seus olhos, enevoados e fora de foco, não o viram, e ele virou a cabeça no travesseiro fazendo uma careta de dor ao sentir o ferimento na nuca. — Está bem, durma agora. Você está seguro. Fiquei ao seu lado até que adormeceu, depois levei o alforje e o seu conteúdo até o meu assento ao sol. O lacre, como eu esperava, era o da Rainha e era eu o destinatário. Quebrei o lacre e li a carta. Quem escrevia não era a Rainha, e sim Márcia, a avó de Ralf e confidente da Rainha. A carta era curta, mas me dizia o que eu queria saber. A Rainha estava mesmo grávida e a criança nasceria em dezembro. A Rainha, escrevia Márcia, estava feliz por estar esperando o filho do Rei, mas me culpava pela morte de seu marido Gorlois e, quando se referia a mim, fazia-o com amargura. — Ela fala pouco, mas acredito que se lamenta em segredo, e que o seu grande amor pelo Rei seja sempre toldado pela culpa. Queira Deus que este sentimento não se estenda à criança. Quanto ao Rei, me parece zangado, embora atencioso e amoroso, com a senhora, e muitos duvidam que a criança seja dele. Ah, senhor, se eu não soubesse que ele jamais magoaria a Rainha, temeria pela criança às suas mãos. Também, Príncipe Merlin, eu lhe imploro por esta carta para pôr a seu serviço o meu neto Ralf. Temo também por ele às mãos do Rei; creio que, para ele, se o senhor o aceitar, servir a um verdadeiro príncipe é melhor do que ficar aqui com um Rei que o considera um traidor. Ele não está seguro em Cornwall. Eu lhe imploro, senhor, deixe Ralf servi-lo agora e, depois, à criança. Pois acho que entendo do que o senhor falava quando disse à minha senhora "eu vi o fogo a queimar, e nele uma coroa, e uma espada em um altar, como uma cruz". Ralf dormiu até a noitinha. Eu tinha acendido o fogo e feito um caldo e, quando o levei para o fundo da caverna onde ele estava, vi que estava de olhos abertos, me observando. Havia reconhecimento neles, agora, e também uma desconfiança que eu não entendia direito. — Como se sente agora? — Bastante bem, meu senhor. Eu... esta é a sua caverna? Como cheguei até aqui? Como o senhor me encontrou? — Eu tinha subido a colina e de lá vi quando foi atacado. Algo assustou os homens, que fugiram, deixando você. Fui buscá-lo e o trouxe para cá no meu cavalo. Agora está me reconhecendo, não é? — O senhor deixou crescer a barba, mas eu o teria reconhecido mesmo assim. Será que já lhe falei? Não me lembro de nada. Acho que me bateram na cabeça. — Foi isso mesmo. Como está ela? — Uma dor de cabeça. Mas não forte. Aqui do lado — fez uma careta — é que dói mais. — Um dos cavalos o atingiu. Mas não foi nada sério; você logo estará bem. Sabe quem eram eles? — Não. — Ele franziu a testa, pensando, mas reparei que o esforço o cansava, e o interrompi.

— Bem, depois nós conversaremos. Agora, coma. — Meu senhor, a mensagem.. . — Já está comigo. Mais tarde. Quando voltei, ele já tinha terminado o pão e o caldo e estava com melhor aparência. Não quis mais comida, mas aceitou um pouco de vinho e a cor lhe voltou às faces. Puxei uma cadeira e sentei-me ao lado da cama. — Está melhor? — Estou. — Ele falava sem olhar para mim. Olhava para as mãos que, nervosas, repuxavam as cobertas à sua frente. Engoliu em seco. — Ainda não lhe agradeci, meu senhor. — Por quê? Por ter apanhado você e trazido até aqui? Era o único modo de saber as novidades que você trazia. Ele me fitou e vi que acreditara. Compreendi então o que havia naquele olhar que me dera; tinha medo de mim. Lembrei-me daquela noite em Tintagel, do jovem que fora tão corajoso para o Rei e tão leal para mim. Mas deixei passar... Falei: — Você me trouxe as notícias que eu queria. Já li a carta da sua avó. Sabe o que ela escreveu sobre a Rainha? — E sobre você? — Sei. Ele falou secamente e olhou para o lado, taciturno, como alguém preso injustamente e submetido a interrogatório, e que estivesse decidido a não responder. Pareceu-me que, fossem quais fossem os motivos de Márcia para mandá-lo para mim, ele próprio não tinha nenhuma vontade de ficar ao meu serviço. Do que eu deduzi que ela nada lhe contara das suas esperanças para o futuro. — Bom, deixa estar, por enquanto. Mas me parece que alguém, seja lá quem for, quer mal a você. Se aqueles homens de hoje não eram simples assaltantes de estrada, era bom saber quem eram, e os pagou. Você não tem idéia de quem eram? — Não — resmungou. — Ê que também me interessa — disse eu mansamente. — É possível que eles queiram matar a mim também. Isto o surpreendeu. — Por quê? — Se você foi atacado por vingança pelo seu papel em Tinta-gel, presume-se que me atacarão também. Se foi atacado por causa da mensagem que trazia, quero saber o motivo. E se eram simples ladrões, o que me parece mais provável, pode ser que ainda estejam nas redondezas, e preciso avisar os soldados no quartel. — Ah! É, eu compreendo. — Parecia desconcertado e levemente envergonhado. — Mas é verdade, senhor; não sei quem eles eram. Eu... é importante para mim também. Estive pensando, todo este tempo, mas não tenho idéia. Não me lembro de nenhuma pista. Eles não usavam emblemas; pelo menos, acho que não.. . — Franziu a testa, com esforço. — Eu teria reparado nos emblemas se eles os tivessem, não é?

— Como estavam vestidos? — Eu... mal reparei. Túnicas de couro, creio, e gorros de cota. Sem escudos, mas com espadas e punhais. — E estavam todos a cavalo. Isto eu vi. Você os ouviu falar? — Não que me lembre. Mal falaram, deram um ou dois gritos. Em língua inglesa, mas não sei dizer de que lugar. Não sou muito bom para sotaques. — Nada havia que pudesse identificá-los como homens do Rei? Isto foi demais para ele. Ficou escarlate, mas respondeu francamente: — Nada. Mas, seria provável? — Creio que não — respondi. — Mas os reis são uma raça estranha, principalmente quando têm a consciência pesada. Seriam de Cornwall? O rubor cedera, deixando-o ainda mais branco do que antes. Seus olhos estavam tristes e sombrios. Era isto que lhe doía; era este pensamento que o perseguia. — Homens do Duque, o senhor quer dizer? — Contaram-me, antes que eu deixasse Dimilioc, que o Rei iria ratificar o jovem Cador como Duque de Cornwall. Este homem, Ralf, nunca morrerá de amores por você. Não levará em consideração que você era o servo da Duquesa, obrigado a obedecê-la. Ele está cheio de ódio, que pode levá-lo à vingança. E nem poderemos culpá-lo. Ele pareceu um pouco surpreso, mas logo ficou à vontade devido à minha franqueza. Tentou falar do mesmo modo: — Poderiam ter sido homens de Cador, suponho. Mas nada havia que o indicasse. Talvez eu me lembre de alguma coisa. — Fez uma pausa. — Mas, se Cador pretendia matar-me, poderia tê-lo feito em Cornwall. Por que vir até aqui? Para seguir-me até o senhor? Deve odiá-lo tanto quanto a mim. — Muito mais — falei. — Mas, se ele pretendesse me matar; saberia onde me encontrar; o mundo inteiro sabe. E já teria vindo antes. Olhou-me com ar de dúvida. Depois achou uma explicação para a minha aparente falta de medo. — Suponho que ninguém viria até aqui, com medo da sua mágica. — É bom pensar que sim — concordei. Não havia necessidade de contar-lhe que as minhas defesas estavam bem baixas. — Bem, por ora, chega. Descanse de novo e você se sentirá melhor amanhã. Será que consegue dormir? Está sentindo dor? — Não — respondeu mentirosamente. Não admitiria esta fraqueza para mim. Senti-lhe o pulso. Estava firme e forte. Deixei cair o pulso e disse: — Você vai viver. Pode me chamar durante a noite, se precisar. Boa noite.

5 Ralf não se lembrou de mais nada, no dia seguinte, que pudesse dar uma pista da identidade dos seus atacantes, e eu me abstive, por alguns dias, de interrogá-lo mais sobre o conteúdo da carta de Márcia. Certa noite, quando achei que estava melhor, eu o chamei. Tinha sido um dia úmido, e a noite estava fria, por isso eu tinha acendido o fogo e estava sentado ao pé dele com o meu jantar. — Ralf, traga a sua tigela e venha comer aqui perto de mim, onde está quente. Quero falar-lhe. Ele veio, obediente. Tinha remendado e limpado suas roupas,. e, agora, cem boa cor e com os cortes e pisaduras desaparecendo,, estava bem disposto, embora ainda mancasse por causa do ferimento no quadril c permanecesse silencioso e desconfiado. Veio mancando e sentou-se onde eu mandara. — Você disse que sabia o que mais havia na carta da sua avó, além das notícias da Rainha? — perguntei. —- Disse. — Então sabe que ela o mandou para o meu serviço por temer a ira do Rei. O Rei já lhe deu algum motivo para temê-lo? Fez que não com a cabeça. Não me olhava nos olhos. — Para temê-lo, não. Mas quando veio o aviso de um desembarque saxão na costa sul, e pedi para ir com os seus homens, ele negou. — Sua voz estava sombria e furiosa. — Levou todos os outros que lutaram contra ele em Dimilioc. Mas eu, que o ajudei, ele despachou. Olhei pensativo para a cabeça abaixada, para o rosto virado. "Então era esta a razão da sua atitude para comigo, do ressentimento te da raiva. Ele apenas enxergava que, por ter ajudado a mim e ao Rei, perdera a sua posição junto à Duquesa; pior, incorrera na ira do Duque, estava em desgraça como súdito, fora banido do seu lar para realizar serviços que desprezava. — Sua avó pouco me diz, a não ser que ela acha melhor para você seguir carreira fora de Cornwall. Deixemos isso de lado por um momento; você não vai fazer nada até a sua perna sarar. Mas, diga-me: o Rei alguma vez lhe falou diretamente sobre a noite da morte de Gorlois? Fez uma pausa tão longa que pensei que não fosse responder. Então, disse: — Falou. Ele me disse que eu o servira bem e. . . me agradeceu. Ofereceu-me uma recompensa. Eu disse que não, que o serviço já era recompensa suficiente. Ele não gostou. Queria me dar dinheiro, ficar quite e esquecer tudo. Aí falou que eu não poderia mais servir nem a ele nem à Rainha. Que, ao servi-lo, eu atraiçoara o meu amo, o Duque, e que um homem que atraiçoa um amo pode muito bem atraiçoar o outro. — E daí? — perguntei. — Isso é tudo? — Tudo? — Levantou violentamente a cabeça. Olhou-me com surpresa e desprezo. — Tudo? Um insulto como esse? E o senhor sabe que era mentira! Eu era servo da minha senhora, não do Duque de Gorlois. Não atraiçoei o Duque! — Claro que foi um insulto. Você não pode esperar que o Rei seja justo, quando ele próprio está se sentindo um Judas. Ele tem que pôr a culpa nas costas de outros, que somos eu e você. Mas não creio que seja realmente perigoso para você. Até mesmo uma avó devotada não pode considerar isto uma

ameaça. — Quem estava falando em ameaças? — perguntou Ralf com veemência. — Não vim por estar com medo! Alguém tinha de trazer a mensagem, e o senhor mesmo viu que não era seguro! Não era o tom de voz de um criado. Dissimulei o meu divertimento e falei com suavidade: — Não banque o galinho bravo comigo. Ninguém duvida da sua coragem. Nem o Rei. Agora, fale sobre este desembarque saxão. Onde foi? O que aconteceu? Há mais de um mês que não tenho notícias do sul. Logo e!e me respondeu, educadamente: — Foi em maio. Desembarcaram ao sul de Vindocladia. Ali há uma baía profunda a que dão o nome de Baía do Oleiro. Não me lembro do seu nome verdadeiro. Bem, fica fora do território federado, em Dumnonia, o que é contra todos os acordos que os Federados fizeram. O senhor deve saber. Concordei. É difícil lembrar agora, escrevendo sobre o passado, sobre a época de Uther, que hoje os homens mal recordam o nome de Federado. Os primeiros Federados Saxões foram os seguidores de Hengist e Horsa, mercenários chamados pelo Rei Vortigern para ajudá-lo a se estabelecer no seu trono usurpado. Quando a luta terminou e os príncipes de direito, Ambrósio e Uther, tiveram que fugir para a Bretanha, o usurpador Vortigern quis despachar os seus mercenários Saxões; mas eles se recusaram a partir, exigindo território para colonizar e prometendo que, como colonizadores federados, lutariam como aliados ao lado de Vortigern. Então, em parte porque não ousava negar, .em parte porque previa que ainda precisaria deles, Vortigern deu-lhes as terras da costa, ao sul, de Rutupiae e Vindocladia, o pedaço chamado a Praia Saxã. Na época dos romanos tinha este nome por ser o local da maioria dos desembarques saxões; já à época de Uther, o nome adquirira um significado mais verdadeiro e lamentável. Num dia claro, dava para se ver a fumaça saxã do muro de Londres. Desta base, e de bases semelhantes a noroeste, tinham partido os novos ataques quando meu pai era Rei. Ele matara Hengist e o irmão, e expulsara os invasores, alguns para o norte, para as terras selvagens para além do Muro de Adriano, e outros para detrás das suas antigas fronteiras, e os forçara a assinar um tratado. Mas um tratado com um saxão é como escrita na água. Ambrósio, sem confiar nas fronteiras demarcadas, levantou um muro para proteger as terras ricas que corriam paralelas à Praia Saxã. Até a sua morte, o tratado (ou o muro) os segurara; tampouco eles participaram abertamente dos ataques que vinham do norte, nos primeiros dias do reinado de Uther; mas era inquietante tê-los como vizinhos: davam uma cabeça de praia para qualquer navio errante, e a Praia Saxã estava cada vez mais apinhada, fazendo o muro de Ambrósio parecer uma frágil proteção. E ao longo de toda a costa leste, chegavam invasores do Mar Alemão, uns para pilhar, violentar e voltar ao mar, outros para pilhar, violentar e ficar, comprando ou extorquindo novos territórios dos reis locais. Era um ataque destes que Ralf estava me descrevendo. — Bem, é claro que os Federados violaram o acordo. Uma esquadra nova, com trinta navios, desembarcou na Baía do Oleiro, bem a oeste da fronteira, e os Federados os receberam e ainda os ajudaram. Estabeleceram uma cabeça de praia próxima à foz do rio começaram a avançar em direção a Vindocladia. Acho que se chegassem à Colina Badon... o que foi? Ele se interrompeu, olhando para mim. Mudara de cor. Havia assombro no seu rosto, e uma ponta de medo. — Nada — retruquei. — Pensei ter ouvido algo lá fora, mas foi só o vento. Ele falou, devagar: — Por um momento o senhor ficou como aquela noite em Tintagel, quando disse que o ar estava

cheio de mágica. Seus olhos ficaram esquisitos, escuros e velados, como se o senhor estivesse vendo alguma coisa para além do fogo. — Hesitou: — Foi uma profecia? — Não. Eu nada vi. Ouvi um barulho como o de cavalos galopando. Devem ter sido os gansos selvagens voando. Se foi profecia, aparecerá de novo. Continue. Você falava da Colina Badon. — Bem, os saxões não deviam saber que o Rei Uther estava em Cornwall com todo o efetivo que trouxe para lutar contra o Duque Gorlois. Ele reuniu o exército, pediu a ajuda dos dumnonianos e foi rechaçar os saxões. — Fez uma pausa, comprimindo os lábios, «depois completou: — Cador foi com ele. — Ah, foi? — Fiquei pensativo. — Você não soube do que houve entre eles? — Só soube que ouviram Cador dizer que, já que ele não poderia defender a sua parte da Dumnonia sozinho, ele lutaria ao lado do próprio Demônio, contanto que os saxões fossem expulsos da costa. — Parece-me um rapaz sensato. Ralf, ainda ofendido, não estava escutando. — Ele, na verdade, não se reconciliou com Uther... — É o que parece. — .. .mas marchou com ele! E eu não pude! Fui a ele e à minha senhora, implorei para ir, mas ele não me levou! — Ora, — falei — ele não podia. Isto o fez parar. Ficou me olhando, pronto para se zangar de novo. — O que quer dizer? Se o senhor me considera um traidor. . . — Você tem a mesma idade que Cador, não é? Então procure demonstrar o mesmo senso comum. Pense. Se Cador foi lutar ao lado do Rei, este, para seu próprio bem, não podia levar você. A consciência de Uther o incomoda quando ele olha para você, mas Cador considera você uma das causas da morte do pai. Acredita que ele toleraria a sua presença, por mais que precisasse do Rei e das suas legiões? Compreende agora por que não o levaram e, depois, o mandaram para mim? Ele ficou calado. Falei com gentileza: — O que passou, passou, Ralf. Só as crianças esperam que a vida seja justa; os homens têm de agüentar as conseqüências dos seus atos. Como nós dois teremos, você verá. Considere isto tudo águas passadas e aceite o que os deuses mandarem. A sua vida não acabou porque você teve que deixar a corte, ou mesmo porque você teve que deixar Cornwall. Fez-se um silêncio maior. Então, ele apanhou as nossas duas tigelas vazias e ficou de pé. — É, eu compreendo. Bem, já que por ora não posso fazer quase nada, ficarei aqui e o servirei. Mas não porque tenha medo do Rei, ou porque a minha avó quer me tirar do caminho do Duque Cador. É porque eu quero. E porque — engoliu em seco — acho que devo isto ao senhor. — O seu tom de voz não era nem agradecido nem conciliatório. Estava ali, ereto como um soldado, segurando as tigelas de encontro às costelas. — Então comece a pagar a sua dívida e vá lavar a louça do jantar — falei afavelmente, e apanhei um livro. Ele hesitou um pouco, mas não ergui os olhos e nem falei mais nada. Sem mais uma palavra, ele foi apanhar água na fonte lá fora.

Os ferimentos dos jovens saram depressa, e Ralf logo estava ativo de novo, insistindo que já não precisava de médico. A ferida no quadril, contudo, deu algum trabalho e deixou-o mancando por uma ou duas semanas. Ao "querer" ficar comigo, ele tirara proveito de uma situação adversa, já que, de qualquer modo, ele estava preso à gruta pelo seu ferimento e pela falta do cavalo; mas me servia bem, dominando o ressentimento que porventura sentisse em relação a mim ou à sua nova situação. Ainda ficava silencioso, mas isto me agradava, e eu cuidava calmamente da minha vida enquanto Ralf se adaptava à minha maneira de ser, e nós dois nos dávamos razoavelmente bem. Não importa o que ele pensasse dos meus alojamentos na gruta, ou das tarefas domésticas que fazíamos os dois, ainda assim deixava bem claro que era um pajem servindo a um príncipe. Nos dias que se seguiram eu me vi aliviado, pouco a pouco, das tarefas a que me acostumara; sobrava-me tempo para estudar, para estocar os meus remédios, até para compor. No começo era estranho, depois reconfortante, estar desperto à noite e ouvir a respiração tranqüila do rapaz, do outro lado da caverna; logo percebi que estava dormindo melhor; os pesadelos desapareciam, a força e a tranqüilidade voltavam; e, se o poder ainda me fugia, eu já não desesperava da sua volta. Cada noite eu dormia do crepúsculo até o alvorecer, um sono profundo, e acordava tranqüilo para outro dia de espera. Quanto a Ralf, embora ainda angustiado com o seu exílio, para o qual não via fim, foi sempre cortês, e, com o passar do tempo, aceitou o seu banimento com elegância, e ou perdeu ou dissimulou sua tristeza numa espécie de satisfação. E assim passaram-se as semanas, e os campos do vale ficaram prontos para a colheita, e a mensagem chegou afinal de Tintagel. Certa noite de agosto, pelo crepúsculo, um mensageiro veio esporeando vale acima. Ralf não estava comigo. Eu o tinha mandado, à tarde, para a cabana do outro lado da colina, onde o pastor Abba morava durante o verão; eu estava tratando do filho de Abba, Ban, que era meio retardado, de um pé infeccionado; ele já estava quase bom, mas ainda necessitava de ungüentos. Fui ao encontro do mensageiro. Ele desmontara já embaixo, e agora escalava o penhasco até a gruta. Era um homem moço, garboso e vivaz, e seu cavalo estava descansado. Deduzi, então, que a mensagem não era urgente; ele viera com calma e a passo. Eu o vi avaliar num rápido olhar a minha túnica rasgada e o meu manto gasto, mas tirou o gorro e dobrou um joelho. A saudação seria para o feiticeiro ou para o filho do Rei? — Meu senhor Merlin. — Seja bem-vindo. De Tintagel? — Sim, senhor. Da parte da Rainha. — Lançou-me um olhar rápido. — Vim sem o conhecimento do Rei. — Foi o que imaginei, já que não está usando a insígnia da Rainha. Levante-se, homem. A grama está úmida. Já jantou? Ficou surpreso. Imagino que não era desse modo que a maioria dos príncipes recebia os seus mensageiros. — Não, senhor, mas já reservei jantar na estalagem. — Então, aproveite-o porque será bem melhor do que o que comeria aqui. Pois bem, o que o traz aqui? Trouxe carta da Rainha?

— Carta? Não, senhor, só o recado que a Rainha deseja vê-lo. — Agora? — indaguei vivamente. — Há algo errado com ela ou com a criança que espera? — Nada. Os médicos e as mulheres dizem que vai tudo bem. Mas, — baixou os olhos — parece que ela tem uma preocupação que quer discutir com o senhor. O mais cedo possível. — Compreendo. — Com a voz tão neutra quanto a dele, perguntei: — Onde está o Rei? — O Rei planeja deixar Tintagel na segunda semana de setembro. — Então, depois disto, qualquer época será "possível" para a minha visita à Rainha. Foi franqueza demais para ele. Lançou-me um olhar, depois voltou a olhar para o chão. — A Rainha terá prazer em recebê-lo, então. Ela me ordenou que tomasse todas as providências. O senhor deve compreender que não pode ser recebido às claras no castelo de Tintagel. — Falou com sinceridade: — O senhor sabe que muitas mãos em Cornwall podem erguer-se contra o senhor. Talvez fosse melhor ir disfarçado. Cocei o queixo. — Já estou um tanto disfarçado. Não se preocupe, eu entendi; serei discreto. Mas precisa contarme mais. Que razões ela deu para me chamar? — Nenhuma, meu senhor. — E você não ouviu nada... mexericos das mulheres, ou coisas assim? Fez que não com a cabeça e, vendo a minha expressão, acrescentou : — Senhor, ela tinha urgência. Ela não disse, mas deve ser sobre a criança; que outro motivo haveria? — Se é assim, irei. — Ele estava chocado. Abaixou novamente os olhos, enquanto eu dizia vivamente: — Bem, o que esperava? Eu não sirvo à Rainha. Tampouco ao Rei. Não precisa ficar com medo. — A quem serve, então? — A mim mesmo e a Deus. Mas, pode voltar e dizer à Rainha que irei. Que preparativos fez para mim? Ficou aliviado por estar pisando em terreno conhecido. — Há uma pequena estalagem junto ao Rio Camelo, no vale, a cerca de cinco milhas de Tintagel. O dono chama-se Caw. Ele é cornualês, mas sua mulher Maeve foi serva da Rainha, e ele nada dirá. Pode ficar lá sem medo. Eles o estão esperando. O senhor pode mandar recados para Tintagel, se quiser, por um dos filhos de Maeve... não será prudente acercar-se do castelo antes que a Rainha o chame. Quanto à viagem, em meados de setembro o tempo é bom e o mar, geralmente, está calmo.. . — Se está aconselhando-me a ir por mar, perde seu tempo — falei. — Nunca ninguém lhe disse que os feiticeiros não podem cruzar as águas? Pelo menos, não com conforto. Fico enjoado só de cruzar o Rio Severa por balsa. Não, vou por terra. — Mas a estrada principal passa pelo quartel de Caerleon. O senhor pode ser reconhecido. E a ponte em Glevum é guarnecida pelos homens do Rei. — Está certo, vou pelo rio, mas que seja uma travessia curta. — Sabia que ele tinha razão. Ir pela estrada principal, passando por Caerleon e pela Ponte de Glevum, mesmo que não fosse descoberto,

acrescentaria vários dias à minha viagem. — Evitarei a estrada militar. Há um bom caminho pela costa que atravessa Nidum; irei por aí, se você puder me arranjar um barco na foz do Rio Ely. — Pois não, meu senhor. — E assim ficou decidido. Eu iria do Ely para a foz do Uxella, na terra dos Dumnonii, e, daí, para sudoeste, pelas trilhas, evitando as estradas onde pudesse encontrar as tropas de Uther ou os homens de Cador. — O senhor conhece o caminho? — perguntou-me. — No trecho final, é claro, Ralf o guiará. — Ralf não estará comigo. Mas darei um jeito. Já estive naquela região, e tenho boca para perguntar. — Providenciarei cavalos... — É melhor não — retruquei. — Nós não concordamos que eu deveria estar disfarçado? Usarei um disfarce que já me serviu antes. Serei um médico de olhos ambulante, e um sujeito humilde como este não terá muda de cavalos. Não tenha medo, estarei seguro, e quando a Rainha precisar de mim, lá estarei. E'e se satisfez, e por um longo tempo ficou respondendo às minhas perguntas e contando-me todas as novidades. A expedição punitiva do Rei contra os invasores da costa tinha sido coroada de sucesso, e os recém-chegados foram rechaçados para dentro dos limites estabelecidos dos saxões federados do Oeste. Ao sul, tudo estava calmo. Do norte chegavam rumores de luta mais intensa onde os invasores anglicanos, da Alemanha, haviam cruzado a costa próximo ao Rio Alaunus, na terra do Votadini. Esta é a região que nós, de Dyfed, chamamos de Manau Guotodin, e foi daí que veio o grande Rei Cunedda, convidado há um século pelo Imperador Máximo para expulsar os irlandeses de Gates do Norte, e para estabelecer-se ali como aliado das Águias Imperiais. Suponho que estes tenham sido os primeiros federados; expulsaram os irlandeses e permaneceram em Gales do Norte, a que chamaram de Gwynedd. Ainda estava em poder de um descendente de Cunedda; Maelgon, um rei forte e um bom guerreiro, como era necessário ser para seguir as pegadas do grande Magnus Maximus. Outro descendente de Cunedda dominava a região Votadini; um rei moço, Lot, tão feroz e bom guerreiro quanto Maelgon; a sua fortaleza ficava próxima à costa sul de Caer Eidyn, no centro do seu reino de Lothian. Ele enfrentara e vencera o último ataque dos anglos. Ambrósio dera-lhe o comando na esperança de que, com ele, os reis do norte (Gwalawg de Elmet, Urien de Gore, os chefes de Strathclyde, o Rei Coei de Rheged) formassem uma muralha forte ao norte e a leste. Mas dizia-se que Lot era ambicioso e rixento; e Strathclyde já tivera nove filhos (que lutavam como tigres pelas partes do território) e alegremente continuava a ter mais; Urien de Gore casara-se com a irmã de Lot e ficaria firme, mas, talvez, demais à sombra de Lot. O mais forte de todos era, desde o tempo de meu pai, Coei de Rheged, que dominava, com mão leve, os chefes e condes do seu reino e que os reunia, fielmente, ante a menor ameaça à soberania do Alto Reino. Agora, contava-me o mensageiro da Rainha, o Rei de Rheged, com Ector de Galava e Ban de Benoic, juntara-se a Lot e Urien para defender o norte e, pelo menos por enquanto, tinham-no conseguido. No todo, as notícias eram alvissareiras. A colheita tinha sido boa em toda parte, portanto a fome não traria mais saxões até que o inverno fechasse os caminhos marítimos. Teríamos paz por algum tempo; tempo suficiente para Uther contornar as insatisfações causadas pela sua rixa com Cornwall e pelo seu casamento, para ratificar as alianças que Ambrósio fizera e para fortalecer e aumentar o seu sistema de defesas. Afinal, o mensageiro se foi. Não escrevi cartas, mas mandei notícias de Ralf para sua avó, mandei avisar à Rainha de que iria, e agradeci-lhe pelo dinheiro que ela me enviara para a jornada. O moço

desceu alegremente para o vale, para o bom jantar e a boa companhia que o aguardavam na estalagem. Agora, cabia-me contar a Ralf. Foi mais difícil do que eu esperava. O seu rosto iluminou-se quando lhe falei do mensageiro, e pôs-se a procurá-lo avidamente, ficando muito desapontado quando soube que já se fora. Recebeu impacientemente os recados da avó, mas encheu-me de perguntas sobre a luta ao sul de Vindocladia, ouvindo com tanta avidez as minhas respostas, que era óbvio que a sua inatividade forçada em Maridunum aborrecia-o muito mais do que demonstrara. Quando lhe contei sobre a convocação da Rainha, ele ficou animado como eu nunca o vira desde que viera ficar comigo. — Quanto tempo até partirmos? — Eu não disse que "nós" partiríamos. Irei sozinho. — Sozinho? — Era como se lhe tivesse batido. O sangue subiu-lhe às faces e ficou a me olhar de boca aberta. Afinal, disse com voz abafada: — O senhor não pode estar falando sério. Não pode. — Não estou sendo arbitrário, creia-me. Gostaria de levá-lo, mas você está vendo que não é possível. — Por que não? O senhor sabe que aqui tudo ficará bem; o senhor já viajou antes. E não pode viajar sozinho. Como se arranjaria? — Meu caro Ralf, não seria a primeira vez. — Está certo, mas não pode negar que eu o servi bem desde que cheguei, então por que não me levar? O senhor não pode voltar para Tintagel.. . para onde as coisas estão acontecendo... e me deixar aqui! Eu lhe estou avisando... — respirou fundo, os olhos brilhando, toda sua cortesia desmoronando — .. .eu lhe estou avisando, meu lorde, se for sem mim, quando voltar não me encontrará aqui! Esperei um pouco, depois disse suavemente: — Tenha juízo, rapaz. Então não está vendo por que não posso levá-lo? A situação quase não mudou desde que você deixou Cornwall. Sabe o que aconteceria se algum dos homens de Cador o visse, e todos o conhecem lá por Tintagel. Você seria visto, e a notícia se espalharia. — Eu sei. Mas o senhor ainda pensa que eu tenho medo de Cador? Ou do Rei? — Não. Mas é tolice procurar o perigo desnecessariamente. E o mensageiro acreditava que ainda há perigo. — E o senhor? Não vai estar em perigo também? — É provável. Terei que ir disfarçado. Por que acha que deixei a barba crescer? — Não sabia. Nem pensei. Então o senhor estava esperando que a Rainha o chamasse? — Não esperava esta convocação — admiti. — Mas sabia que, pelo Natal, quando a criança nascer, eu terei que estar lá. Fitou-me. — Por quê? Olhei-o por um momento. Estava de pé perto da entrada da gruta, contra o pôr-do-sol, como quando voltara da sua viagem à cabana do pastor do outro lado da colina. Ainda agarrava a cesta em que levara ungüentos, e que agora continha um pacote pequeno embrulhado num pano limpo. A mulher do pastor, que morava no vale ao lado, mandava pão toda semana para o marido; 3 Abba sempre

mandava um pouco para mim. As mãos do rapaz estavam brancas nas alças da cesta. Estava tenso, zangado e inquieto como um cachorro preso pelas correias. Ali eu pressentia algo mais do que simples saudades de casa ou desapontamento por perder uma aventura. — Pelo amor de Deus, — falei — ponha esta cesta no chão e entre. Isso. Agora, sente-se. Já é tempo de nós dois termos uma conversa. Quando aceitei os seus serviços, não foi porque quisesse alguém para lavar as panelas ou para trazer os presentes da mulher de Abba. Embora eu esteja satisfeito com a minha vida aqui em Bryn Myrddin, não sou tão tolo a ponto de pensar que ela satisfizesse você. . . nem por pouco tempo. Nós estamos esperando, Ralf, •só isto. Ambos escapamos do perigo e curamos as nossas feridas, e agora só nos resta esperar. — Pelo parto da Rainha? Por quê? — Porque, tão logo nasça, o filho da Rainha será entregue aos meus cuidados. Ficou calado por um minuto inteiro antes de perguntar, intrigado: — E minha avó sabe disso? — Acho que ela suspeita que o futuro da criança está nas minhas mãos. Quando falei pela última vez com o Rei, naquela noite em Tintagel, ele me disse que não reconheceria a criança que nascesse. Acho que é por este motivo que a Rainha mandou chamar-me. — Mas. . . não reconhecer o seu filho mais velho? Quer dizer que vai mandá-lo embora? E a Rainha concordará? Um bebê... mas não o mandariam para o senhor! Como iria tomar conta dele? E como pode saber que será menino? — Porque tive uma visão, Ralf, lá em Tintagel. Depois que você nos deixou entrar pelo portão traseiro, enquanto o Rei estava com Ygraine, e Ulfin guardava a porta do quarto, você jogava dados com o porteiro, próximo ao portão. Lembra-se? — Como poderia esquecer? Pensei que aquela noite nunca terminasse! Não lhe contei que ela ainda não terminara. Sorri. — Acho que senti o mesmo enquanto esperava, sozinho, no quarto da guarda. Foi então que eu vi — mostraram-me — por que Deus me ordenara que fizesse o que eu fiz. Mostraram-me que as minhas profecias eram, realmente, verdadeiras. Ouvi um ruído nas escadas e saí até o patamar. E vi Márcia, sua avó, descendo as escadas, vindo do quarto da Rainha, carregando uma criança. E embora fosse em março, senti o frio do inverno, e vi as escadas e as sombras através do seu corpo, e soube que era uma visão. Ela colocou a criança nos meus braços e falou: "Tome conta dele". Ela chorava. Então, ela, a criança e o frio do inverno desapareceram, foi uma imagem verdadeira, Ralf. Em dezembro eu estarei lá, esperando, e Márcia entregará o filho da Rainha aos meus cuidados. Ficou calado por longo tempo. Estava assombrado pela visão. Mas, depois, muito prático, perguntou: — E eu? Como é que entro nisso? Foi por isso que minha avó mandou-me ficar com o senhor e servi-lo? — Foi. Ela não vê futuro para você ao lado do Rei. Quer que fique bem perto de seu filho. — Um bebê? — Ele estava horrorizado, e nem um pouco lisonjeado. — Quer dizer que, se o Rei não reconhecer a criança, o senhor terá que tomar conta dela? Não entendo... ora, compreendo por que minha avó se preocupa, e o senhor também; mas por que me meter nisso? Que futuro ela vê para mim em tomar conta de um bastardo de rei, que nem será reconhecido?

— Um bastardo de rei, não — respondi. — Um rei. Ouvia-se apenas o barulho do fogo. Eu não falara com veemência, mas com certeza absoluta. Ele estava de boca aberta, abalado. — Ralf, você veio para mim com raiva, ficou por dever, mas. serviu-me bem, e fielmente. Você não apareceu na visão, e não sei se a sua vinda, ou os ferimentos que o fizeram ficar, fazem parte do plano de Deus; desde a morte de Gorlois que não recebo mensagens dos deuses. Só sei que, após estas últimas semanas, não escolheria nenhum outro para me ajudar. Não com a espécie de serviço que você tem-me prestado; com a chegada do inverno, não precisarei de um criado, mas de um guerreiro que seja leal, não a mim ou à Rainha, mas ao próximo Grande Rei. Ele gaguejava, pálido: — Eu não tinha idéia. Eu pensei... eu pensei... — Que estava numa espécie de exílio? De certa forma, eu estava também. Eu lhe disse que era tempo de espera. — Olhei para as minhas mãos. Já estava escuro lá fora; o sol se pusera e anoitecia. — Nem eu sei exatamente o que teremos pela frente, exceto perigo e perda e traição, e no final, alguma glória. Ralf não se mexeu até que eu deixasse os meus pensamentos e sorrisse para ele. — Agora entende que não duvido da sua coragem? — Sim. Desculpe-me pelo que falei. — Esperou um pouco, observando-me, depois perguntou: — Mas o senhor não sabe, com certeza, por que a Rainha mandou chamá-lo agora? — Não. Inclinou-se para a frente, as mãos sobre os joelhos. — Mas, como sabe que a sua visão do nascimento é verdadeira, sabe também que irá a Cornwall e voltará em segurança, não é? — Pode-se dizer que sim. — Então, se a sua mágica é sempre verdadeira, não será porque eu vou junto para protegê-lo que o senhor fará a viagem em segurança? Achei graça. — Suponho que seja virtude, num guerreiro, nunca admitir a derrota. Mas, entenda, levar você seria correr dois riscos, em vez de um. Por sentir que estarei seguro, isto não quer dizer que você também esteja. — Se o senhor pode disfarçar-se, eu também posso. Mesmo se for de mendigo, dormindo nas fossas... não importa o perigo.. . — Engoliu em seco, parecendo, de repente, muito jovem. — E que lhe importa se for arriscado para mim? O senhor estará seguro, como já me disse. Então a minha presença não lhe trará perigo, e é isto que importa. Deixe-me enfrentar os meus próprios riscos, por favor! Sua voz sumiu. Novamente, apenas o barulho do fogo. Houve um tempo, pensei, não sem amargura, em que bastaria que eu olhasse para as chamas para encontrar ali a resposta. Estaria ele seguro? Ou teria eu de carregar o peso de mais uma morte? Mas a luz do fogo mostrava-me apenas um rapaz que queria tornar-se adulto. Uther já o impedira; minha consciência não me deixava fazer o mesmo. Afinal, falei pesadamente: — Já lhe disse, uma vez, que os homens têm que sustentar os seus próprios atos. Suponho,

portanto, que não tenho o direito de impedi-lo. Está bem, você pode ir... Não, não me agradeça. Você estará detestando-me quando tivermos terminado. Será uma viagem um bocado desconfortável, e, antes de partirmos, você terá serviço, que não lhe agrada. — Já estou acostumado. — Ele riu. Estava radiante, excitado a alegria de que me recordava de volta ao seu rosto. —. Mas, não. está querendo dizer que vai ensinar-me mágica! — Não. Mas terei que ensinar-lhe um pouco de medicina, quer você goste ou não. Serei um médico de olhos viajante; vale por um bom passaporte e dá para pagar a viagem, facilmente, sem usar o ouro da Rainha, que levantaria suspeitas. Você será o meu assistente, e terá que aprender a lidar com os ungüentos. Deu um sorriso largo. — Bem, já que é preciso. . . Mas, coitados dos pacientes! O senhor sabe que não distingo uma erva da outra. -— Não tema, você não as pegará; eu selecionarei as plantas. Você apenas as preparará. — E, se os homens de Cador demonstrarem reconhecer-nos, experimente os meus ungüentos neles — disse animadamente. — Vai ser fácil como mágica! O eficiente assistente do doutor os deixará cegos...

6 Chegamos à estalagem em Camelford dois dias antes do meio de setembro. O Vale Camel é serpenteante, com margens íngremes cobertas de árvores. A última parte da viagem foi feita pela trilha que acompanhava o rio. As árvores eram muito juntas, e o atalho que seguíamos era como que acolchoado de musgo e de pequenas samambaias verde-escuras, tanto que os cascos dos nossos cavalos não faziam ruído. Ao nosso lado, o rio descia por entre grandes pedras de granito que brilhavam ao sol. À nossa volta e por cima de nós, os carvalhos e as faias estavam ficando amarelos, e os cavalos amassavam com as patas as bolotas entre as folhas mortas. Nozes amadureciam nas moitas; os salgueiros largavam folhas cor de âmbar nos baixios; e, por onde o sol furasse os ramos, ele luzia nas teias de aranha pesadas de orvalho. A nossa viagem fora tranqüila. Uma vez passado Severn, e o perigo constante de sermos reconhecidos, cavalgáramos a passo e em belos cenários. O tempo, como é costume em setembro, estava quente e claro, mas com o ar revigorante, o que tornava o cavalgar um prazer. Ralf estivera sempre de ótima disposição, apesar das roupas inferiores, do cavalo de segunda (comprado com parte do ouro da Rainha) e do trabalho que fazia preparando os líquidos e pomadas que nos ajudavam a pagar as despesas da viagem. Só nos interrogaram uma vez, quando encontramos uma tropa dos homens do Rei próximo à Ponta de Hércules. Uther ainda conservava guarnecido o velho acampamento romano que havia ali, e, por puro azar, demos de cara com um grupo de reconhecimento que retornava ao acampamento pela mesma trilha que nós. Levaram-nos para o acampamento e interrogaram-nos, mas era simples rotina, pois, após um olhar superficial à nossa bagagem, a minha história foi aceita. Mandaram-nos embora com os nossos frascos cheios do vinho do "rancho", e, ainda, com uma moeda de cobre da venda de uma pomada a um soldado que estava de folga. Achei interessante a vigilância dos soldados e gostaria de ter podido saber mais a respeito do estado de coisas no norte. Mas, se tivesse feito perguntas, teria atraído para mim uma atenção que não desejava. Logo eu saberia tudo que queria, da boca da própria Rainha. — Viu alguém que conhecia? — perguntei a Ralf, enquanto nos afastávamos da entrada do acampamento, cavalgando a meio galope pelas charnecas. — Não. E o senhor? — Conheci o oficial, há alguns anos. Chama-se Priscus. Mas ele não deu mostras de ter-me reconhecido. — Eu próprio não o teria reconhecido — comentou Ralf. — E não é só a barba. É o jeito de andar, de falar, tudo. É como aquela vez em Tintagel, quando o senhor se disfarçou em capitão do Duque. Eu o conhecera a vida toda, e juraria que o senhor era ele. É por isso que o povo fala em mágica. Eu também pensei que fosse. — Isto é mais fácil — expliquei. — Se você está com os instrumentos de uma profissão, os homens atêm-se a ela, e não prestam muita atenção a você. Eu realmente não dera muita importância ao disfarce. Comprara um manto novo, marrom, com um capuz que me escondia o rosto, e falava celta com sotaque da Bretanha. É um idioma parecido com o de Cornwall e seria compreendido aonde quer que fôssemos. Isto, juntamente com a barba e a minha atitude humilde de comerciante, faria com que somente os muito íntimos me reconhecessem. Nada faria

com que me separasse do broche que meu pai me dera, com o criptograma real do Dragão Vermelho em ouro, mas eu o prendi por dentro da túnica, e ameaçara Ralf com os piores destinos existentes nos Nove Livros de Mágica se ele me tratasse por "meu senhor", mesmo em particular. Chegamos a Camelford ao anoitecer. A estalagem era uma construção achatada, de pedra revestida, que ficava na junção da estrada da costa com o vau do rio. Ela se situava no cimo da margem, acima do nível de inundação. Ralf e eu, aproximando-nos pela trilha que acompanhava o rio, demos com ela pelos fundos. Parecia um lugar agradável e limpo. Alguém pintara as pedras de vermelho-ocre, da mesma cor da terra rica do local, e aves gordas ciscavam nos montes no limiar de um quintal varrido. Um cachorro acorrentado dormitava à sombra de uma amoreira carregada. Uma pilha de lenha estava empilhada junto ao estábulo e o estéreo estava a alguns metros de distância da porta dos fundos. Calhamos de encontrar a estalajadeira, que estava nos fundos, recolhendo, junto com uma criada, a roupa de cama que arejava ao sol. À nossa chegada o cachorro correu até onde lhe permitia a corrente, latindo. A mulher olhou para nós, com a mão por sobre os olhos, por causa da luz. Ela era moça, corpulenta e de aparência vigorosa, com boa cor e olhos azuis, claros e proeminentes. Os dentes estragados e o corpo cheio denotavam paixão por doces, e os vivos olhos azuis falavam bem claramente de outros prazeres. Eles agora percorriam Ralf, que cavalgava à minha frente, avaliando-o, e considerando-o provável, mas muito jovem; depois, esperançosamente, vieram a mim, para, desanimados, considerarem-me pouco provável e pobre demais para pagar. Então, quando o seu olhar retornou a Ralf, eu a vi reconhecê-lo. Ela enrijeceu, voltando rapidamente a olhar para mim. Ficou de boca aberta e, por um momento cheio de ansiedade, pensei que fosse fazer uma mesura, mas logo controlou-se. Mandou a criada entrar com os braços cheios de roupa de cama, fez calar o cão, que voltou rosnando para a sombra da amoreira, e veio cumprimentar-nos, sorridente, curiosa e excitada. — O senhor é o médico de olhos? Paramos os cavalos na poeira do quintal. — Sim, senhora. Chamo-me Emrys, e este é o meu criado Ban. — Nós os estávamos esperando. Suas camas estão reservadas. — E, bem baixinho, ao se acercar do meu cavalo: — Seja bem-vindo, meu senhor, e Ralf, também. Ele cresceu um palmo desde a última vez que o vi. Tenham a bondade de entrar. Desmontei e entreguei as rédeas a Ralf. — Obrigado. É bom ter chegado, estamos ambos cansados. Ralf tomará conta dos cavalos. Agora, Maeve, antes de entrarmos, dê-me notícias de Tintagel. Vai tudo bem com a Rainha? — Sim, senhor, graças a todos os santos e fadas. Não é preciso preocupar-se. — E o Rei? Ainda em Tintagel? — Sim, meu senhor, mas fala-se que partirá em breve. O senhor não terá que esperar muito. Estará mais seguro aqui do que em qualquer outro lugar em Cornwall. Seremos avisados do movimento das tropas, daqui a gente pode ouvi-las a uma milha, na estrada. E não se preocupem com Caw, o meu marido; ele é gente do Duque, mas nada fará que possa prejudicar a senhora, e, além disso, faz tudo que eu mando. Não, nem sempre. Algumas coisas e'e não faz tanto quanto eu gostaria! — Deu de novo uma gargalhada alegre. Vi que Ralf sorria ao conduzir os cavalos, e Maeve, falando em voz alta sobre camas e horário de jantar, e os olhos do seu filho mais novo que precisavam ser examinados, fez-me entrar pela porta dos fundos da estalagem. Mais tarde, ao conhecer o seu marido, vi que não precisava temer pela sua discrição. Era um homem seco, fechado como uma ostra. Entrou quando estávamos jantando, olhou para Ralf,

cumprimentou-me com a cabeça, e foi servir o vinho sem dizer uma palavra. Sua mulher tratava-o, e a todos os fregueses, com a mesma benevolência rude e franca, e providenciou para que todos estivéssemos bem servidos e confortavelmente instalados. No seu padrão, era um bom estabelecimento, e a comida, excelente. Como era de se esperar, a estalagem estava sempre cheia, mas quase não havia perigo de sermos reconhecidos. Meu disfarce de curandeiro ambulante não apenas me assegurava uma aceitação sem despertar curiosidade como me proporcionava, e a Ralf, a justificativa para os passeios pela região. Toda manhã, bem cedo, levando comida e vinho, seguíamos por um dos valezinhos estreitos e arborizados que proliferavam no Vale Camel, até os morros ventosos que ficavam entre Camelford e o mar. Ralf conhecia todos os caminhos. Geralmente nos separávamos, e cada um escolhia um esconderijo de onde pudesse observar os dois caminhos pelos quais Uther e seus homens podiam sair de Tintagel. Ele podia virar para nordeste, acompanhando a costa para Dimilioc e para o acampamento da Ponta de Hércules, ou (se estivesse indo diretamente para Winchester ou para os focos de agitação ao longo da Praia Saxã) podia seguir as trilhas do vale através de Camelford e, daí, subir para sudeste para a estrada militar que passava pela espinha da Dumnonia. Aqui, nas alturas varridas pelo vento, os bosques escasseiam e há grandes extensões de terra pantanosa dominadas por estranhas colinas pedregosas. A velha estrada romana, desmoronando-se rapidamente naquela região inóspita, mas ainda em uso, passa direto por Isca, para a região mais agradável que fica por trás da Muralha de Ambrósio. Era o meu palpite que Uther seguiria este último caminho, e queria ver quem o acompanhava. Ralf e eu fizemos saber que eu estava à procura de plantas para os meus remédios, e, na verdade, eu ia para o meu ponto de encontro com ele, toda noite, com a sacola cheia de raízes e frutas que não cresciam na minha terra, e que eu estava feliz por conseguir. Felizmente, o tempo continuava bom e ninguém estranhava de nos ver sair. Estavam todos felizes por ter um médico por perto, que os tratava todas as noites, sem cobrar mais do que podiam pagar. E assim passavam-se os dias, serenos e calmos, enquanto esperávamos pela partida do Rei e pelo chamado da Rainha. Passou-se uma semana até que partisse. Ele seguiu o caminho que eu imaginara, e eu estava lá, observando. Há um lugar onde a trilha de Tintagel a Camelford segue por cerca de um quarto de milha ao longo do sopé de uma ribanceira íngreme e densamente arborizada. Quase sempre íngreme e densa demais para penetrar-se, havia, contudo, lugares ao sol na orla do bosque, ribanceiras pedregosas cobertas de samambaias e cardos, onde sarças e grandes fetos crescem em moitas sobre as rochas. As moitas de ameixa-brava eram altas e luziam suas frutas. Algumas das ameixinhas ainda estavam verdes, mas a maioria estava pronta, com o preto sobre o azul-pálido denotando o amadurecimento. Com o extrato da fruta faz-se um remédio sem par para os intestinos: um dos filhos de Maeve sofria dos intestinos, e eu lhe prometera uma poção para tomar à noite. Apenas um punhado seria suficiente, mas as frutas estavam tão maduras e tentadoras que continuei colhendo. Se as amoras forem amassadas e adicionadas de um modo especial ao vinho de junípero, fazem uma boa bebida, rica, adstringente e poderosa. Eu mencionara isto a Maeve, e ela queria experimentar. Minha sacola estava quase cheia quando escutei, como leve trovoada a distância, cavalos descendo a trilha abaixo de mim. Entrei rapidamente para dentro do bosque e fiquei olhando do esconderijo. A frente da coluna logo apareceu; em seguida o longo trem de poeira, cheio do bater dos cascos, do tinir das armaduras, do brilho colorido das flâmulas, veio vindo ao longo do sopé do declive. Uns mil, talvez mais. Fiquei imóvel na sombra das árvores e vi-os passar. O Rei ia a um corpo de cavalo na frente, e atrás dele, à sua esquerda, seguia o porta-estandarte com o Dragão Vermelho. Outras cores

apareciam por entre a poeira, mas não havia vento para fazer tremular as bandeiras e, por mais que eu forçasse a vista, não pude distinguir todas. Também não vi aquela que esperava ver, embora não pudesse jurar que não estava lá. Esperei até que o último cavaleiro dobrasse a curva da estrada e fui para o meu ponto de encontro com Ralf. Ele encontrou-me a meio caminho, arquejante. — O senhor os viu? — Vi. Onde estava você? Mandei que olhasse o outro caminho. — E estava olhando. Mas não havia movimento algum por lá. Já estava voltando para cá quando os ouvi, então corri. Quase que os perco, só vi o finalzinho. Era o Rei, não era? — Era. Ralf, deu para você distinguir as divisas? Viu alguma conhecida? — Vi Brychan e Cynfelin, mas não havia outras de Dyfnaint que eu reconhecesse. Os homens de Garlot estavam lá, de Cernyw, também, acho, e outros que pareceram-me conhecidos, mas com toda aquela poeira não dava para ter certeza. Já tinham dobrado a curva antes que eu pudesse ver direito. — Cador estava lá? — Sinto muito, meu Senhor, não vi; — Não faz mal. Se os outros de Cornwall estavam lá, ele com certeza também estava. Na estalagem saberão. E você, já se esqueceu que não pode me tratar por "meu senhor", nem quando estamos a sós? — Desculpe-me... Emrys. — Dava a medida do nosso novo relacionamento o fato de ter acrescentado, com uma humildade suspeita: — E o senhor, esqueceu-se que o meu nome é Ban? — E rindo, ao desviar-se do cascudo: — Tinha que dar-me o mesmo nome do débil mental? — Foi o primeiro nome que me veio à cabeça. É também nome de rei, do Rei de Benoic, portanto você pode escolher quem foi o seu padrinho. — Benoic? Onde fica? — No norte. Venha, vamos voltar para a estalagem. Não creio que a Rainha mande chamar-me antes de amanhã, mas tenho uma poção para preparar, e isto leva tempo. Tome, leve isto. Eu tinha razão; o mensageiro veio na manhã seguinte. Ralf descera a estrada para aguardá-lo, e os dois voltaram juntos, cem a ordem de que eu deveria ir imediatamente a Tintagel para a minha audiência com a Rainha. Não o confessara a Ralf, nem o admitira a mim mesmo, mas estava apreensivo com a minha entrevista com Ygraine. Na noite em que a criança foi concebida, em Tintagel, eu tinha certeza, a certeza de um vidente, que o menino que nasceria ser-me-ia entregue para criar, e que eu seria o guardião de um grande Rei. O próprio Uther, na sua amargura e na sua raiva pela morte de Gorlois, jurara rejeitar o "bastardo" que gerara, e, pela carta de Márcia, eu sabia que não mudara de idéia. Mas, nos seis longos meses desde a noite de março, eu não tivera notícias diretas de Ygraine, não sabia se ela pretendia obedecer ao marido, se conseguiria separar-se da criança. Repassara uma centena de vezes os argumentos que eu usaria, lembrando-me, com certa incredulidade, da certeza com que anteriormente falara com ela e com o Rei. Mas, então, o meu deus estava comigo. Mas, agora, amargamente, ele já não estava comigo. Às vezes, acordado durante a noite, encarava as minhas visões do passado como meras chances, ilusões, sonhos alimentados pelo desejo. Recordei as palavras amargas que o Rei me dirigira: — Agora eu vejo bem o que é a sua mágica, este "poder" de que fala. Ê apenas impostura

humana, uma tentativa de fazer a política que o meu irmão ensinou-lhe a gostar e a manejar, e a acreditar que era o seu mistério. Você usa até Deus para atingir os seus fins. "Ê Deus que me ordena que jaca essas coisas, é Deus que marca o preço, é Deus que determina que outro deve pagar..." Por que, Merlin? Pela sua ambição? E quem vai pagar a Deus a dívida por seguir os seus planos? Não você. Os homens que jogam o seu jogo para você, e que pagam o preço. Mas você nada paga. Quando eu escutava estas palavras, ouvidas bem claramente nas noites em que mais nada falava comigo, eu me perguntava se compreendera direito a minha visão do futuro, ou se tudo que eu fizera e com que sonhara não fora apenas escárnio. Então, lembrando-me dos que pagaram com a morte pelo meu sonho, achava que a morte fora mais misericordiosa do que este deserto de dúvida em que me encontrava, esperando em vão por uma palavra do menor dos meus deuses. Sim, eu paguei. Cada noite daqueles nove longos meses, eu paguei. Mas, agora era dia, e eu logo saberia o que a Rainha queria comigo. Lembro-me de como eu me mexia irrequieto enquanto Ralf selava o meu cavalo e se aprontava. Maeve estava na cozinha, com as criadas, lavando as ameixas para a feitura do vinho. Uma panela delas estava no fogo, começando a ferver. Parecia-me uma estranha lembrança para levar comigo na visita à Rainha, o cheiro de vinho de ameixa-brava. De repente eu não consegui suportar o cheiro pungente e adocicado e, engasgado, corri para fora. Mas logo uma das moças veio correndo perguntar algo sobre a mistura, e, ao respondê-la, esqueci-me do enjôo, e já Ralf estava ao meu lado para chamar-me, e nós três (Ralf, o mensageiro e eu) nos pusemos a galopar para Tintagel na tarde fresca e macia de setembro.

7 Fazia poucos meses que não via Ygraine, mas ela mudara muito. A princípio, pensei que fosse apenas a gravidez; seu corpo, outrora esbelto, estava muito aumentado, e, embora aparentasse boa saúde, o seu rosto apresentava olheiras e vincos ao redor da boca. Mas, a mudança era mais profunda; notava-se na expressão dos olhos, nos gestos, na maneira de sentar. Antes, ela era jovem e vibrante, um pássaro selvagem debatendo-se numa gaiola; agora, estava tristonha, asas cortadas, grávida, uma criatura terrena. Recebeu-me no quarto, um aposento longo por cima da muralha, com um grande nicho circular no lugar da torre, no canto noroeste. Havia janelas na parede virada para o sudoeste, através das quais o sol entrava livremente, mas a Rainha sentava-se junto a uma das janelinhas estreitas da torre, por onde entravam a brisa fresca da tarde de setembro e o ruído eterno do mar nas rochas lá embaixo. Nisto, ainda era a Ygraine de que me recordava. Era típico dela preferir o vento e os sons do mar, ao invés da luz do sol. Mas o quarto, apesar da luz e do ar, dava a impressão de uma gaiola: aqui a jovem esposa do velho Duque Gorlois passara os anos perdidos até a fatídica viagem a Londres, quando conhecera o Rei. Agora, após um breve vôo, estava presa novamente, pelo seu amor pelo Rei, e pelo peso da criança. Nunca amei mulher alguma, com uma única exceção, mas sempre tive pena delas. Agora, orando para a Rainha, jovem, bela e com o coração satisfeito, tive pena dela, como tive também medo do que ela fosse dizer-me. Estava só. Um camareiro conduzira-me pela antecâmara onde as mulheres fiavam, teciam e mexericavam. Olhos vivos fitaram-me com curiosidade momentânea e o falatório cessou, para recomeçar após a minha passagem. Os seus rostos não demonstraram reconhecimento, apenas, em alguns, vi um leve desapontamento pelo aparecimento de um sujeito tão humilde e comum. Nenhuma digressão, aqui. Para elas eu era um simples mensageiro, que a Rainha recebia na falta do Rei; nada mais. O camareiro bateu à porta do quarto principal e retirou-se. Márcia, a avó de Ralf, abriu a porta. Era uma mulher grisalha, com os olhos de Ralf num rosto vincado e ansioso, mas, apesar da idade, tinha a postura de uma moça. Embora me estivesse esperando, vi seus olhos pousarem em mim sem sinal de reconhecimento, depois com um lampejo de surpresa. Até Ygraine surpreendeu-se por um momento, depois sorriu e estendeu a mão. — Príncipe Merlin! Bem-vindo. — Márcia fez uma mesura que abrangia a mim e a Rainha, e retirou-se. Aproximei-me para ajoelhar e beijar a mão da Rainha. — Senhora. Ela ergueu-me com delicadeza. — Foi gentil da sua parte ter atendido tão depressa a um chamado tão estranho. Fez boa viagem? — Muito boa. Estamos hospedados com Maeve e Caw, e até agora nem eu nem Ralf fomos reconhecidos. O seu segredo está a salvo. — Eu lhe agradeço por ser tão cuidadoso com ele. Nem eu o reconheci até que falou. Cocei o queixo, sorrindo. — Como vê, há já algum tempo que me estou preparando.

— Nenhuma mágica, desta vez? — Exatamente como da outra — respondi. Ela encarou-me, os lindos olhos azul-escuros encontrando os meus do jeito que eu me lembrava, e vi que esta ainda era a mesma Ygraine de antes, franca como um homem, e com o mesmo tipo de orgulho. A calma pesada era apenas uma capa, a tranqüilidade leitosa que parece cobrir as mulheres durante a gravidez. Por baixo da calma, da placidez, estava o antigo fogo. Abriu os dedos. — Vendo-me agora, ainda me diz que, quando falou comigo em Londres e prometeu-me o amor do Rei, não havia mágica alguma? — Não na artimanha que trouxe o Rei até a senhora. No que aconteceu depois, talvez. — Talvez? — Ela ergueu a voz, e isso avisou-me. Ygraine podia ser Rainha, com um ânimo quase masculino, mas era uma mulher com quase sete meses de gravidez. Os meus temores eram meus, e deviam permanecer comigo. Hesitei, procurando as palavras, mas ela continuou, com veemência, como que procurando convencer-se a si mesma. — Quando me falou e disse que poderia trazer o Rei até mim, havia mágica, sei que havia. Eu a senti, eu a vi no seu rosto. Você me disse que o seu poder vinha de Deus, e que, ao obedecê-lo, eu era uma criatura de Deus, assim como você. Disse que, por causa da mágica que traria Uther até mim, o reino teria paz. Falou de coroas e altares... E agora eu sou Rainha, com as bênçãos de Deus, e espero o filho do Rei. Ousa dizer-me, agora, que me enganou? — Não a enganei, senhora. Aquela foi uma época de visões, e uma paixão de sonhos e desejos. Já estamos livres deles, agora estamos sóbrios e é dia claro. Mas a mágica está aqui, crescendo dentro da senhora, e, desta vez é realidade, não visão. Ele nascerá pelo Natal, não é? — Ele? Você parece muito certo. — Estou certo. Vi que ela apertou os lábios, como se estivesse sentindo dor, depois olhou para as mãos, juntas sobre a barriga. Quando falou, fê-lo calmamente, diretamente para as mãos, ou para aquilo que elas cobriam. — Márcia me disse que mandou-lhe recados no verão. Mas já devia saber, mesmo sem que ela lhe dissesse, o que o Rei, meu senhor, pensa a esse respeito. Esperei que continuasse, mas ela queria uma resposta. — Ele próprio me disse — retruquei. — Se ainda pensa da mesma maneira, não reconhecerá a criança como seu herdeiro. — Ainda pensa da mesma maneira. — Ergueu os olhos depressa para mim. — Entenda-me, ele não tem, nem nunca teve, a menor dúvida a meu respeito. Ele sabe que eu fui sua desde o primeiro momento em que o vi, e que, deste momento em diante, com esta ou aquela desculpa, nunca mais pertenci ao Duque. Não, ele não duvida de mim; sabe que o filho é seu. E apesar de tudo que diz — houve a sombra de um sorriso e de repente sua voz tornou-se indulgente, a voz de uma mulher falando de um filho ou de um marido bem-amado — e do muito que nega, ele conhece e teme o seu poder, Merlin. Você lhe disse que aquela noite geraria uma criança, e ele acredita na sua palavra, mesmo que não acreditasse na minha. Mas nada disso altera os seus sentimentos. Ele se culpa, e a você, e até à criança, pela morte do Duque. — Eu sei. — Ele diz que se tivesse esperado Gorlois teria mesmo morrido naquela noite, e eu seria Rainha e

a criança teria sido concebida dentro do matrimônio, e ninguém poderia duvidar da sua paternidade ou chamá-lo bastardo. — E você, Ygraine? Ela ficou calada durante muito tempo. Virou a bela cabeça e ficou a olhar pela janela, para as gaivotas que voavam e gritavam ao vento. Eu percebi, não sei como, que a sua calma era a de um soldado que, tendo vencido uma batalha, descansa antes da seguinte. Senti meus nervos endurecerem. Eu não menosprezava Ygraine, se a batalha fosse comigo. Disse, mansamente: — Talvez o que o Rei diz seja verdade. Não sei. Mas, o que passou, passou, e o que me interessa agora é a criança. Por isso mandei chamá-lo. — Uma pausa. Esperei. Encarou-me novamente. — Príncipe Merlin, temo pela criança. — Às mãos do Rei? Isto foi demais, até para Ygraine. Seus olhos ficaram frios, e a sua voz. — Isto é insolência, e loucura também. O senhor abusa, meu senhor. — Eu? — Retruquei, também friamente. — A senhora parece esquecer-se. Se minha mãe fosse casada com Ambrósio quando ele me gerou, Uther não seria Rei agora, nem eu tê-lo-ia levado até a sua cama para gerar a criança que espera. A senhora não pode falar-me em insolência, ou loucura. Ninguém melhor que eu para saber o que se reserva na Inglaterra para um príncipe concebido fora do matrimônio e não reconhecido por seu genitor. Ela estava tão rubra agora quanto estivera pálida antes. Seus olhos deixaram os meus, com a raiva a abandoná-los. Falou simplesmente, como uma menina: — Tem razão,- eu me esquecera. Peço o seu perdão. Esquecera-me também do que é poder falar livremente. Aqui não há ninguém, salvo Márcia e o meu senhor, e não posso falar com Uther sobre a criança. Eu ficara de pé todo este tempo; agora, virei-me para apanhar uma cadeira e colocá-la perto dela, no vão da torre. Sentei-me. As coisas tinham mudado entre nós, como quando um vento muda subitamente. Eu agora sabia que a batalha não era comigo, mas com ela mesma, com a sua fraqueza feminina. Ela me observava como uma mulher com dores observa o seu médico. Falei, suavemente: — Bem, aqui estou. E escutando. Mandou chamar-me para me dizer o quê? Respirou fundo. Quando respondeu, a voz estava calma, mas era um simples sussurro. — Que, se nascer um menino, o Rei não deixará que eu o crie. Se for menina, posso ficar com ela, mas um menino gerado nestas condições não pode ser reconhecido como príncipe e herdeiro legítimo, portanto não pode ficar aqui, nem como bastardo. — Procurou controlar-se. — Eu lhe disse que Uther não duvida de mim. Mas, pelo que aconteceu aquela noite, a morte de meu marido, e toda aquela história de mágica, ele jura que os homens podem acreditar que o filho é do Duque e não dele. Diz que haverá outros filhos, dos quais ninguém duvidará da paternidade, e, entre eles, ele encontrará o herdeiro para o Grande Reino. Eu disse, com cuidado: — Ygraine, sei quão doloroso para uma mulher é perder o seu filho, seja de que modo for. Talvez não exista maior dor. Mas acho que o Rei tem razão. Nesta época de violência e incerteza, ele não deve ficar aqui para ser criado como bastardo. Se houver outros herdeiros, deparados e reconhecidos pelo

Rei, poderão considerar o menino perigoso para eles, e certamente serão perigosos para o menino. Sei do que estou falando; isto aconteceu na minha infância. E eu, como bastardo real, tive uma sorte que este príncipe talvez não tenha; eu tinha a proteção do meu pai. Uma pausa. Ela anuiu, sem falar, olhando novamente para as mãos no seu colo. — E se a criança precisa ir embora, — continuei — é melhor que se vá do quarto do parto, antes que você a tenha segurado. Creia-me, — prossegui rapidamente, embora e'a não se tivesse mexido — é verdade. Estou falando como médico. Ela umedeceu os lábios. — Márcia diz a mesma coisa. Esperei um momento, mas ela não disse mais nada. Comecei a falar, vi que estava rouco, e pigarreei. Minhas mãos apertaram, sem que eu sentisse, os braços da cadeira. Mas minha voz estava calma e firme quando cheguei ao âmago da entrevista. — O Rei já lhe disse onde a criança será criada? — Não. Já expliquei que não é fácil falar com ele sobre isto. Da última vez que o fizemos, ele disse que deliberaria; e mencionou a Bretanha. — Bretanha? — Apesar do meu cuidado, a palavra saiu ríspida. Procurei recobrar a calma. Minhas mãos tinham-se crispado na cadeira; procurei relaxá-las e conservá-las imóveis. Então, minhas dúvidas tinham fundamento. Saber disso deu-me novas forças. Se era preciso lutar contra o Rei, contra Ygraine e também contra os meus deuses ambíguos, pois bem, eu lutaria. Enquanto pudesse ver o chão da luta... — Então, Uther quer mandá-lo para o Rei Budec? — É o que parece. — Ela não parecia notar nada de estranho no meu comportamento. — Ele enviou um mensageiro há um mês. Um pouco antes que eu pedisse a você para vir. Budec é a escolha óbvia, afinal de contas. Isto era verdade. O Rei Budec da Inglaterra Pequena era primo do Rei. Foi ele que, há uns trinta anos, tomou sob a sua proteção meu pai e o jovem Uther, quando o usurpador Vortigern assassinou o Rei Constans, seu irmão mais velho, e foi na sua capital, Kerrec, que se reuniu e treinou o exército que retomou o Grande Reino de Vortigern. Meneei a cabeça. — Óbvia demais. Se alguém quiser fazer mal ao menino, saberá onde procurar. Budec não poderá protegê-lo o tempo todo. Além disso... — Budec não saberá dar ao meu filho o cuidado de que ele precisa! — As palavras interromperam-me, mas a interrupção não foi feita por indelicadeza. Foi como um grito. Era evidente que não escutara uma palavra do que eu dissera. Ela lutava consigo mesma, escolhendo as palavras. — Ele está velho e, além disso, a Bretanha fica muito longe e é menos segura do que esta terra infestada de saxões. Príncipe Merlin, eu... Márcia e eu... nós achamos que o senhor. . . — Ela começou a torcer as mãos no colo. Sua voz mudou. — Não há mais ninguém em quem confiar. E Uther... não importa o que diga, Uther sabe que o seu reino, ou qualquer parte dele, está em segurança nas suas mãos. Você é filho de Ambrósio, e o parente mais chegado da criança. Todos conhecem o seu poder, e temem-no... a criança estaria segura sob a sua proteção. É você quem tem de levá-lo, Merlin! — Ela agora implorava: — Leve-o para longe desta costa cruel, e crie-o para mim. Ensine-o, como você foi ensinado, crie-o como um filho de rei deve ser criado, e quando ele estiver crescido, traga-o de volta e deixe que ele assuma o seu lugar, como você assumiu, ao lado do próximo Rei. Hesitou. Eu devia estar fitando-a como um idiota. Calou-se, torcendo as mãos. Houve um longo

silêncio, preenchido pelo cheiro do vento salgado e pelos gritos das gaivotas. Eu nem me apercebera, mas tinha me levantado e estava de pé à janela, de costas para a Rainha, olhando para o céu. Abaixo das paredes da torre, as gaivotas volteavam e gritavam ao vento, e, bem lá embaixo, ao pé do negro penhasco, o mar arremetia-se e esbranquiçava-se. Mas eu nada via e ouvia. Minhas mãos firmavam-se contra o parapeito de pedra, e quando finalmente as levantei, havia um lugar pisado nelas, onde a pedra as machucara. Comecei a esfregá-las, só então sentindo a dor, e virei-me para encontrar os olhos da Rainha. Ela também já se controlara, mas havia tensão no seu rosto e, com uma das mãos, repuxava o vestido. Falei, francamente: — Acha que pode persuadir o Rei a dá-lo para mim? — Não, acho que não. Não sei. — Engoliu em seco. — É claro que posso falar com ele, mas... — Mas, se você não tem o poder de convencer o Rei, por que mandou chamar-me para pedir-me isso? Ela ficou branca, movendo os lábios, mas não deixou de encarar-me. — Pensei que, se concordasse, meu senhor, poderia... faria. . . — Eu nada posso fazer com Uther, agora. Você deve saber. — Mas, com súbita e amarga compreensão: — Ou mandou chamar-me, como da última vez, esperando uma mágica de encomenda, como se eu fosse uma velha curandeira ou um druida da roça? Ora, senhora ... — Parei. Vi a vacilação nos seus olhos, a palidez ao redor da sua boca contraída, e lembrei-me do que carregava dentro de si. Minha raiva morreu. Levantei a mão, dizendo suavemente: — Pois bem. Se puder ser feito, Ygraine, eu o farei, mesmo se tiver que falar com Uther para lembrá-lo da sua promessa. — Promessa? O que prometeu-lhe ele, e quando? — Quando mandou chamar-me da primeira vez, falando-me do seu amor por você, jurou obedecer-me em qualquer coisa, contanto que obtivesse o que queria. — Sorri. — Foi mais um suborno do que uma promessa, mas vou cobrá-la agora como jura real. Começou a agradecer-me, mas eu a interrompi. — Não, não, guarde os seus agradecimentos. Eu talvez não tenha sucesso com o Rei; sabe que ele gosta muito pouco de mim. Foi esperta ao mandar chamar-me secretamente, e será mais esperta ainda se não deixar que ele saiba que discutimos o caso juntos. — Por mim não saberá-Inclinei a cabeça. — Agora, pelo seu bem e pelo da criança, deixe os temores de lado. Deixe comigo. Mesmo se não conseguirmos demover o Rei, eu lhe prometo que vigiarei a criança, não importa onde seja criada. Ele estará em segurança, e será criado como convém a um filho do Rei. Isto a contentará? — Se for preciso, sim. Respirou fundo e moveu-se, afinal, levantando-se da cadeira e, ainda graciosa, apesar do seu volume, encaminhando-se para uma das janelas mais afastadas. Não a segui. Ficou lá um pouco, em silêncio, de costas para mim. Quando, finalmente, virou-se, estava sorrindo. Chamou-me com a mão e eu fui até ela. — Diga-me uma coisa, Merlin.

— Se puder. — Na noite em que nos falamos, em Londres, antes de você trazer o Rei até aqui. Você falou de uma coroa, e de uma espada em um altar, como uma cruz. Tenho pensado tanto nisto... Diga-me a verdade. Foi a minha coroa que viu? Ou quis dizer que esta criança, este menino que já custou tanto, será Rei? Devia ter-lhe dito: "Ygraine, não sei. Se a minha visão foi verdadeira, se fui realmente um profeta, então ele será Rei. Mas a Visão abandonou-me, nada fala comigo na noite ou no fogo, e eu estou estéril. Só posso fazer como você, e confiar. Mas, não há retorno. Deus não desperdiçará todas as mortes." Mas ela me observava com os olhos de uma mulher em sofrimento, e eu lhe respondi: — Ele será Rei. Ela abaixou a cabeça, e ficou em silêncio por alguns minutos, olhando a luz do sol sobre o chão, não como se pensasse, mas como se escutasse o que se mexia dentro dela. Depois, encarou-me novamente. — E a espada no altar? Balancei a cabeça. — Senhora, não sei. Ainda não apareceu. Se eu tiver de saber, ser-me-á mostrado. Estendeu a mão. — Só mais uma coisa... — Pelo seu tom de voz, percebi que era o que lhe importava mais. Sem saber o que seria, preparei-me para mentir. Perguntou: — Se eu perder este filho... Terei outros, Merlin? — Já me perguntou três coisas, Ygraine. — Não quer responder? Eu falara apenas para ganhar tempo, mas, ao ver o lampejo de medo e dúvida em seus olhos, fiquei feliz em poder dizer-lhe a verdade. — Eu lhe responderia, senhora, mas não sei. — E por que não? — indagou vivamente. Dei de ombros. — Novamente, não lhe posso responder. Além desse menino que a senhora espera, eu nada vi. Mas é provável, já que ele será Rei, que não terá outros filhos. Meninas, talvez, para consolá-la. — Rezarei para isto — disse com simplicidade, conduzindo-me para o vão. Fez-me sentar. — Aceita uma taça de vinho comigo, antes de partir? Não fui muito hospitaleira, eu sei, depois de fazê-lo viajar tanto, mas era enorme a minha angústia de conversar. Vamos sentar-nos, agora, e me contará o que há de novo com você. Fiquei mais um pouco, e, depois de contar-lhe as minhas escassas novidades, perguntei-lhe para onde fora Uther com as tropas. Contou-me que ele se dirigia não para a sua capital em Winchester, como eu supusera, mas para o norte, para Viroconium, onde convocara um conselho de dirigentes e reis menores do norte e do nordeste. Viroconium é a velha cidade romana que fica na fronteira de Gales, com as montanhas de Gwynedd entre ela e a ameaça da Praia Irlandesa. Ainda era um centro de mercado e as estradas estavam bem conservadas. Uma vez que saísse da Península de Dumnonia, Uther poderia ir bem rápido para o norte pela Ponte de Glevum. Poderia até, se o tempo continuasse bom e o país calmo, estar de volta para o parto da Rainha. No momento, Ygraine contou-me, a Praia Saxã estava calma; após a vitória de Uther em Vindocladia, os invasores estavam gozando da hospitalidade das

tribos federadas. Não havia notícias c'aras do norte, mas o Rei (disse-me ela) temia alguma ação conjunta ali na primavera, entre os pictos de Strathclyde e os anglos invasores: o encontro dos Reis em Viroconium tinha sido arranjado como tentativa de desbaratar qualquer espécie de plano de defesa unida. — E o Duque Cador? — perguntei. — Fica aqui em Cornwall ou segue para Vindocladia para vigiar a Praia Saxã? Fiquei surpreso com a sua resposta. — Ele vai para o norte com o Rei, para o conselho. — Vai mesmo? Então é melhor eu tomar cuidado. — Ao seu rápido olhar, acrescentei: — Sim, vou direto falar com o Rei. O tempo urge, e tive sorte dele estar viajando para o norte. Deve conduzir suas tropas pela Ponte de Glevum, e assim, Ralf e eu podemos ir de balsa e chegar lá antes dele. Se o interceptar antes de Severn, ele nunca saberá que eu deixei Gales. Em seguida, eu me retirei. Quando a deixei, ela estava novamente de pé à janela. A cabeça erguida, e o vento a desmanchar-lhe os cabelos escuros. Eu sabia que, chegada a hora, a criança não seria tirada de uma mulher chorosa e arrependida, mas de uma Rainha, satisfeita de vê-lo seguir o seu destino. Com Márcia não se dava o mesmo. Esperava por mim na ante-câmara, cheia de perguntas, pesares, e raiva contra o Rei, que ela mal sufocava com discrição. Reconfortei-a como pude, jurei várias vezes por todos os deuses em cada santuário e colina oca da Inglaterra que faria o máximo para ficar com a criança e protegê-la, mas, quando começou a pedir-me encantamentos para a hora do parto, e falar em amas-de-leite, deixei-a falando e dirigi-me para a porta. Esquecendo o seu lugar na agitação em que se encontrava, seguiu-me e agarrou-me a manga. — Já lhe contei? O Rei diz que ela deve ser atendida pelo médico dele, um homem em quem confia para contar as coisas como foram, e para não revelar para onde o pobrezinho foi ser criado. Como se não fosse mais importante que a minha senhora fosse bem atendida! Todo mundo sabe que basta dar bastante ouro a um médico para ele entregar a própria mãe! — É verdade — retruquei, bem sério. — Mas conheço bem Gandar e não há outro melhor. A Rainha estará em boas mãos. — Mas, um médico militar! O que pode entender de partos? Dei uma risada. — Ele serviu por muito tempo com o exército do meu pai na Bretanha. Onde há guerreiros, há também mulheres. Meu pai tinha um exército de quinze mil homens, aquartelados. Pode crer, Gandar tem muita experiência. Ela teve que se contentar com isto. Estava de novo falando sobre amas-de-leite quando a deixei. Veio à estalagem à noite, de capa e capuz, cavalgando firme como um homem. Maeve levou-a ao quarto que sua família ocupava, pôs todo mundo para fora, inclusive Caw, depois levou Ralf para ver a avó. Eu já estava deitado quando ela partiu. Na manhã seguinte, Ralf e eu partimos para Bryn Myrddin, com alguns frascos de vinho de ameixa para alegrar nossa viagem. Para minha surpresa, Ralf estava tão animado quanto na vinda: talvez, depois da breve visita ao lugar da sua infância, estar ao meu serviço lhe cheirasse a liberdade.

Soubera de todas as novidades pela avó; contou-mas pelo caminho; a maioria eu já soubera pela Rainha, ele acrescentara alguns mexericos da corte, que eram divertidos, mas pouco informativos, com exceção dos comentários sobre a rejeição da criança por Uther. Ralf, para meu divertimento, que dissimulei, estava agora tão ansioso quanto Márcia para que eu ficasse com a custódia da criança. — Se o Rei recusar, que fará o senhor? — Irei à Bretanha conversar com o Rei Budec. — Acha que ele deixará que fique com o príncipe? — Budec também é meu parente, não se esqueça. — Mas será que ele se arriscaria a ofender o Rei Uther? Guardaria segredo? — Não sei dizer-lhe — respondi. — Se fosse Hoel, filho de Budec, as coisas seriam diferentes. Eles sempre brigaram como cães disputando a mesma cadela. Não acrescentei que a comparação era realmente bastante precisa. Ralf meneou a cabeça, mastigando (tínhamos parado para comer ao sol), e pegou uma garrafa. — Quer um pouco? — Oferecia-me o vinho de ameixa. — Pelos deuses das uvas verdes, rapaz, não! Ainda levará um ano até que esteja no ponto para beber. Espere até a época da próxima colheita para abrir. Mas ele insistiu e desarrolhou a garrafa. Tinha um cheiro estranho e um gosto pior. Quando sugeri, sem maldade, que Maeve decerto cometera um erro e dera-lhe o remédio para os intestinos, ele cuspiu tudo na grama, depois indagou-me, bem sério, do que é que eu estava rindo. — Não de você. Vamos, deixe-me provar.. . Não há nada aqui que não devesse estar; mas eu devia estar com o pensamento longe quando me perguntaram sobre como misturar. Não, estava rindo de mim mesmo. Todos esses meses.. . esses anos, batendo à porta do céu para conseguir o quê? Um bebê e uma ama-de-leite. Se insistir em ficar comigo, Ralf, os próximos anos certamente trarão novas experiências para nós dois. Ele anuiu; estava ocupado com as ansiedades do presente. — Se tivermos que ir para a Bretanha, vamos ter de continuar disfarçados deste jeito? Durante anos? — Deu um piparote na fazenda grosseira da capa. — Depende. Não exatamente assim, creio. Espere até chegar às pontes, Ralf. Sua fisionomia expressava desapontamento pela minha maneira de falar. Os feiticeiros construíam as suas próprias pontes, ou cruzavam para o outro lado sem elas. — Depende do Rei, o senhor quer dizer? Precisa mesmo procurá-lo? Minha avó diz que, se espalharem que o bebê nasceu morto, o senhor pode pegá-lo em segredo, sem que o Rei saiba. — Você está esquecendo que os homens precisam saber que o príncipe nasceu. Senão, não irão aceitá-lo quando Uther morrer. — Então, o que vai fazer, meu senhor? Balancei a cabeça, sem responder. Ele tomou o meu silêncio por recusa em contar-lhe, e aceitoua, sem mais perguntas. Quanto a mim, estava seguindo o meu próprio conselho sobre as pontes; estava esperando para ver como cruzá-las. Já convencera a Rainha, e a pior parte do jogo estava terminada; era

preciso, agora, ver a melhor maneira de lidar com o Rei. Deveria pedir o seu consentimento, diretamente, ou dirigir-me primeiro a Budec? Enquanto terminávamos a nossa refeição, parei de pensar na Bretanha, no Rei, e, até, na criança; fiquei quieto ao sol e deixei o tempo passar. O que acontecera agora em Tintagel, acontecera sem que eu planejasse. Algo mexia-se; havia uma respiração brilhante no ar, a brisa de Deus a passar, invisível à luz do sol. Até para homens que não podem vê-los ou ouvi-los, os deuses existem e eu não passava de um homem. Não tinha a arrogância (ou a coragem) de testar o meu poder novamente, mas vesti a esperança, como um homem despido, para quem até andrajos são bem-vindos em um temporal de inverno.

8 O tempo não mudou e viajamos bem, tomando cuidado para não seguir muito de perto as pegadas de Uther; se fôssemos encontrados a oeste dos pântanos de Uxella (ou em qualquer lugar ao sul de Severn) seria muito óbvio de onde vínhamos. Uther geralmente ia depressa, e nada havia para detê-lo aqui na região povoada, por isso íamos com cautela, esperando até que o seu exército ultrapassasse o extremo sul da travessia do Severn. Se tivéssemos sorte com a balsa e, depois de atravessarmos o Severn, fôssemos depressa para o norte, poderíamos alcançar as tropas no seu caminho para a fronteira de Gales (tendo, aparentemente, vindo de Maridunum com esse intuito) e tentar conversar com o Rei. Quando fomos para o sul, evitamos a estrada principal e usamos os atalhos que acompanham a costa por dentro dos vales. Agora, para não nos distanciarmos demais de Uther, procurávamos seguir o mais possível em linha reta pelas serras, mas evitando a estrada pavimentada onde estações para o correio pudessem ter sido deixadas guarnecidas, na esteira do exército. Tomamos mais cuidado que anteriormente. Após deixarmos o abrigo da hospedaria de Maeve, não procuramos outras estalagens. Aliás, os caminhos que trilhávamos não tinham hospedarias, mesmo que as quiséssemos; alojávamo-nos onde fosse possível: em cabanas de lenhadores, em abrigos para ovelhas, até em pilhas de samambaias cortadas para forragem.. . e dávamos graças pelo tempo bom. Passamos por regiões selvagens. Cadeias altas de terra pantanosa, onde a urze cresce entre outeiros de granito, e a terra só presta para alimentar ovelhas e veados selvagens; mas, logo abaixo da espinha rochosa do terreno, começa a floresta. Nas terras altas as árvores crescem esparsamente, fustigadas pelo vento, e já quase nuas no começo do outono. Mais para baixo, porém, em toda depressão ou vale, a floresta é densa, as árvores enormes e bem juntas, impenetráveis, com as plantas rasteiras formando como que uma rede de pescador. Aqui e ali, discretos até que se tropeça neles, acham-se penhascos e rochas cobertos de espinhos e trepadeiras, invisíveis e mortíferos como armadilhas de lobos. Ainda mais perigosos são os trechos de atoleiro, alguns pretos e lodosos, outros inocentes e verdes como um campo, onde um homem e seu cavalo podem afundar tão fácil e rapidamente quanto uma colher num prato de sopa. Há caminhos secretos por esses lugares, que os animais e os habitantes da floresta conhecem, mas que a maioria dos homens evita. À noite, o chão reluz com estranhas chamas dançantes e com fogofátuo, que os homens afirmam ser as almas dos mortos errantes. Ralf conhecia bem a sua própria região, mas, uma vez chegados às florestas pantanosas por onde o Uxella e seus tributários correm para o Severn, tivemos que ir com mais cautela, aceitando informações do povo da floresta, carvoeiros e lenhadores, e, uma ou duas vezes, um ermitão solitário ou um santo homem ofereceu-nos abrigo em sua gruta ou santuário do bosque. Ralf tinha prazer na viagem dura e nos maus alojamentos, e no perigo que nos rondava na floresta e na trilha, e na ameaça do exército tão próximo. A cada dia ficávamos mais desarrumados e mais de acordo com os nossos papéis. Os disfarces eram mais necessários aqui do que mesmo em Tintagel: pobre do mensageiro do Rei ou do mercador que se afasta da estrada principal nestas paragens, mas os pobres são bem recebidos, andarilhos ou homens santos com nada para ser roubado, e Ralf e eu, como pobres curandeiros ambulantes, fomos bem acolhidos sempre. Em todo canto podíamos comprar comida e abrigo com um níquel de cobre e um pote de remédio. O povo dos pantanais sempre precisa de remédio, vivendo como vive, à beira de atoleiros fétidos, com malária e juntas inchadas e medo da febre. Eles erguem as suas cabanas bem no limiar das poças escumosas, ao lado da lama negra das margens, ou colocam-nas sobre estacas por cima da água estagnada. As cabanas racham e apodrecem e desabam todo ano, e têm que ser remendadas toda primavera, mas, na primavera e no outono, bandos de aves migratórias descem para

beber, no verão as águas ficam cheias de peixes e a floresta de caça, e no inverno o pessoal quebra o gelo e fica à espera dos veados que vêm beber. Além disso, o lugar tem uma boa quantidade de rãs; já comi rã várias vezes na Bretanha e, realmente, são uma boa refeição. Assim, o povo dos pantanais se apega às suas cabanas fedorentas, e comem bem, e bebem água parada, e morrem de febre e de disenteria; tampouco temem o fogo-fátuo que infesta os pântanos à noite, pois são almas de seus conhecidos. Estávamos ainda a umas doze milhas do lugar da travessia, e já escurecia, quando tivemos o primeiro indício de transtorno. As florestas de carvalho tinham dado lugar a bosques de bétulas e alamos, as árvores tão rentes à trilha que tínhamos que nos abaixar sobre o pescoço dos cavalos para não ser fustigados pelos galhos. Embora não tivesse chovido, o chão estava bem macio, e, de vez em quando, os cascos dos cavalos afundavam na lama negra. Logo, bem próximo, senti o cheiro do pântano, e breve avistamos, por entre as árvores que escasseavam, o brilho opaco dos atoleiros refletindo as últimas luzes do céu. Meu cavalo tropeçou, patinou, e Ralf, que seguia à frente, segurou a minha rédea. Depois, apontou para a frente. À nossa frente, uma luz diferente furava o crepúsculo; a luz opaca e firme de velas. A cabana de um morador dos pântanos. Fomos em sua direção. A casa não ficava sobre a água, mas o chão estava bem molhado, e na certa inundava com mau tempo, pois a casa era colocada sobre paus e chegava-se a ela por uma passarela de toras serradas e enfileiradas por cima de um fosso de lama. Um cão latiu. Dava para ver-se um homem, uma sombra dentro do interior da cabana fracamente iluminada, espiando para nós. Eu o chamei. Os moradores dos pântanos falam a sua própria língua, mas entendem o celta dos Dumnonii. — Chamo-me Emrys. Sou médico ambulante e este é o meu servo. Estamos indo para a balsa em Uxella. Viemos pela floresta porque o exército do Rei está na estrada. Queremos abrigo, e podemos pagar. Os pobres daquela zona compreendiam bem a necessidade de manterem-se afastados das tropas em marcha. Logo fizemos um acordo, o cão foi levado para dentro da cabana e preso, e fui com cuidado pelas toras escorregadias, deixando Ralf para cuidar dos cavalos e prendê-los no pedaço de chão mais seco que pudesse achar. O nome do nosso anfitrião era Nidd; ele era um sujeito baixo e de aparência ágil, com cabelos negros e um tufo de barba negra. Os ombros e os braços eram muito fortes, mas mancava bastante de uma perna que fora quebrada, encanada ao acaso e deixada para fundir-se torta. Sua mulher, que não teria mais de trinta anos, tinha a cabeça branca e era curvada pelo reumatismo; parecia-se e movia-se como uma mulher velha, a face cheia de rugas ao redor de uma boca desdentada. A cabana era apertada e fétida, e eu teria preferido dormir ao ar livre, mas a noite estava fria, e nem eu nem Ralf desejávamos passar a noite na floresta encharcada. Quando terminamos a refeição de pão preto e caldo, aceitamos o espaço no chão que nos ofereceram e preparamo-nos para enrolar-nos nas nossas capas e descansarmos o quanto pudéssemos. Eu preparava uma poção para a mulher, e ela já adormecera, encolhida sob uma pilha de peles contra a parede oposta, mas Nidd não se juntara a ela. Ao invés disso, foi até a porta, espiando para dentro da noite, como se à espera de alguém. Ralf e eu nos entreolhamos; ele ergueu as sobrancelhas e buscou o punhal. Fiz que não com a cabeça; já escutara os passos leves e rápidos na passarela. O cão não latiu, mas abanou a cauda de encontro ao chão. A cortina de couro de veado curtido foi afastada da porta e um menino entrou correndo, com um sorriso largo no rosto imundo. Estacou quando nos viu, mas o pai falou algo em patoá, e o garoto, ainda olhando-nos com curiosidade, largou a pilha de lenha que carregava em cima da mesa e desfez o barbante com que

estava amarrada. Depois, com um olhar de desconfiança para mim, tirou de dentro da pilha uma ave morta, umas tiras de porco salgado, um embrulho que continha um par de calças de couro e uma faca afiada, do tipo que usam os soldados do Rei. Acerquei-me da mesa e estendi a mão. O homem ficou atento, mas não se mexeu, e, após um momento, o menino deixou cair a faca na minha mão. Sopesei-a, pensativo. Depois, dei uma risada e larguei-a em cima da mesa, com a ponta para baixo. Ela ficou balançando ao lado da ave. — Fez uma boa caçada, hoje, não foi? Melhor do que ficar à espreita dos patos selvagens ao alvorecer. Quer dizer que o exército do Rei está perto? Muito perto? O menino apenas me fitava, com vergonha de responder, mas, com a ajuda do pai, consegui, pouco a pouco, a informação. Não era confortadora. O exército acampara a umas cinco milhas dali. O menino ficara escondido perto da orla da floresta, esperando uma chance para roubar comida, e escutara fragmentos da conversa dos homens que foram fazer as suas necessidades no mato. Se o menino escutara direito, o corpo principal do exército prosseguiria pela manhã, mas um destacamento partiria imediatamente para Caerleon, com uma mensagem para o seu comandante. Era óbvio que iriam pelo caminho mais curto, a travessia pelo rio. E requisitariam todos os barcos disponíveis. Olhei para Ralf, que já vestia a capa. Virei-me para Nidd. — Infelizmente, temos de partir. Precisamos pegar a balsa antes das tropas do Rei, que certamente partirão para lá de madrugada. Temos que ir agora. Será que o menino podia guiar-nos? O menino faria qualquer coisa pelo níquel de cobre que eu lhe dei, e conhecia todos os caminhos pelo pântano. Agradecemos ao nosso anfitrião, deixamos o pagamento e os remédios que prometêramos e partimos, com o menino (que se chamava Ger), à frente do meu cavalo. Havia estrelas e lua, mas encobertas por nuvens. Eu mal enxergava o caminho, mas o menino nem hesitava. Ele enxergava até nas sombras sob as árvores. Os animais pisam macio no chão da floresta, mas o garoto não fazia barulho algum. Era difícil dizer, com a escuridão e o caminho ruim e tortuoso, a distância que estávamos percorrendo. Pareceu-nos um longo tempo até que as árvores começassem a rarear, e o caminho a ficar mais claro à nossa frente. À medida que a lua se tornava mais forte, as nuvens difundindo a sua luz pálida, eu enxergava melhor. Ainda estávamos no pantanal; a água brilhava dos dois lados, ilhada na escuridão. A lama do chão puxava e sugava os cascos dos cavalos. Juncos sibilavam e sussurravam à altura dos nossos ombros. O coaxar dos sapos estava por toda parte, e, de vez em quando, ouvíamos o ruído de algo que caía na água. De repente, com um grito e um lampejo de branco, um pássaro passou voando a um metro dos cascos do meu cavalo, e, se o menino não estivesse segurando as rédeas, eu teria sido derrubado da sala e jogado na água. Depois disso, o cavalo caminhou com cuidado, nervosamente, sobressaltando-se até com os leves sons das poças, onde o fogo-fátuo tremulava, e bolhas surgiam sob os bocados do vapor que flutuava sobre a, água. Aqui e ali, sobressaindo do atoleiro, via-se o esqueleto negro de uma árvore. Era uma paisagem estranha, com jeito e cheiro de morte. Pelo silêncio de Ralf, percebi que estava com medo. Mas nosso guia, à frente do meu cavalo, seguia por entre as névoas e os fogos-fátuos que eram as almas de seus antepassados. O único sinal que deu foi quando, num cruzamento, deparamos com uma árvore oca, de tronco grosso, com duas vezes a altura de um homem, com um buraco escancarado na casca que tinha um tom esverdeado; com a ajuda do luar, tomava vagamente a forma de

olhos, boca e toscos seios. A velha deusa das encruzilhadas, "A Que Não Tem Nome", que fica a fitar de dentro da sua árvore como a coruja, que é sua criatura; à sua frente, decompondo-se com o brilho esverdeado que o povo chama de luz de feiticeiro, uma oferenda de peixe, dentro de uma casca de ostra. Ouvi Ralf inspirar, e sua mão tremeu num gesto defensivo. O jovem Ger, sem sequer olhar para o lado, resmungou baixo a palavra, e continuou firme. Meia hora mais tarde, do alto de um morro de terra firme, vimos o estuário largo, iluminado pelo luar, e sentimos o cheiro do sal na brisa fresca. Perto da margem onde a balsa navegava, via-se um brilho de luz vermelha, chamas num recipiente no cais. O caminho para lá, bem claro à luz da lua, cruzava o morro próximo e descia direto para a margem. Estacamos, mas, quando me virei para agradecer ao menino, vi que já desaparecera dissolvendo-se na escuridão silenciosamente como um dos fogos-fátuos empalidecendo. Dirigimos os nossos cavalos exaustos na direção do brilho distante. Ao alcançarmos a balsa, vimos que a nossa sorte nos tinha abandonado tão rápida e decisivamente quanto o nosso guia. O fogo queimava num recipiente num poste sobre o cascalho onde a balsa aportava, mas ela não se encontrava lá. Forçando os ouvidos, pensei ter escutado, acima do murmúrio das águas, o ruído de remos estuário adentro. Chamei, mas sem resposta. — Parece que ele não pretende demorar — disse Ralf, que estivera explorando. — Há fogo na cabana e deixou a porta aberta. — Então, vamos esperar lá dentro — falei. — Não creio que as tropas do Rei partam antes do cantar do galo. Se a mensagem para Caerleon fosse tão urgente, ele a teria enviado por um correio ontem à noite. Cuide dos cavalos, depois entre e venha descansar. A cabana do barqueiro estava vazia, mas havia restos de fogo nas pedras que serviam de lareira. Havia uma pilha de gravetos secos por perto, e logo uma língua de fogo confortadora lambeu a madeira e iluminou a turfa. Ralf pôs-se a cochilar no calorzinho, enquanto eu ficava a olhar para as chamas e a esperar a volta do barco. Mas o que ouvi não foi o barulho da quilha sobre o cascalho; foi o som macio e distante de cascos de cavalos que vinham a meio galope. Antes que a minha mão tocasse o ombro de Ralf para acordá-lo, ele já estava de pé. — Depressa, meu senhor, se formos rápidos pelo cascalho.. . a maré ainda não está cheia. . . — Não. Eles nos escutariam e, de qualquer forma, os cavalos estão cansados. Você acha que estão muito longe? Em duas passadas chegou à porta e inclinou a cabeça para escutar. — Meia milha. Menos. Estarão aqui em alguns minutos. Que vai fazer? Não podemos escondernos. Eles verão os cavalos e o terreno é descampado como um mapa na areia. Era verdade. A estrada por onde vinham os cavaleiros ia direto da margem para o topo do morro. Dos dois lados dela, os pantanais, brilhando com água e brancos de névoa. Atrás de nós estendia-se o estuário, refletindo o luar. — É preciso enfrentar aquilo de que não se pode fugir — disse eu. — Não, assim não — o rapaz já puxava a espada — não contra homens do Rei, e além disso não teríamos mesmo chance. Há uma maneira melhor. Pegue as sacolas, sim? Já estava despindo a minha túnica manchada e rasgada. Ele deu-me um olhar de dúvida, mas

obedeceu. — O senhor não vai conseguir enganá-los com esse disfarce. . . — Nem pretendo tentar. Quando o destino forçar a sua mão, Ralf, não lute. Talvez eu veja o Rei mais cedo do que esperava. — Aqui? Mas, o senhor... ele... a Rainha... — O segredo da Rainha estará a salvo. Já fiz planos para esta situação. Deixaremos que eles pensem que viemos do sul, de Maridunum, esperando ver o Rei. — Mas, e o barqueiro? E se perguntarem a ele? — Vamos arriscar. E por que perguntariam? Mesmo que perguntem, darei um jeito. Os homens acreditam em qualquer coisa do feiticeiro do Rei, Ralf, até que ele possa atravessar o estuário numa nuvem, ou passá-lo a vau na maré baixa. Enquanto falávamos, ele abrira um dos alforjes e tirara a túnica escura e as botas de couro de corça que eu usara na minha entrevista com a Rainha, enquanto eu me utilizava do balde de água perto da porta para lavar o cansaço da viagem e o fedor da cabana do pântano das mãos e do rosto. "Quando o destino força você", dissera eu a Ralf. Senti que meu sangue corria rápido e leve com a esperança de que este golpe, que imagináramos de azar, fosse o primeiro toque frio e perigoso da mão do deus. Quando a tropa chegou, estacando no cascalho à frente da cabana do barqueiro, eu já os esperava no portal, com a luz do fogo às minhas costas e a luz da lua refletindo o dragão real junto ao meu ombro. Nas sombras às minhas costas, escutei Ralf dar graças: — Não são homens de Cornwall. Não me conhecerão. — Mas conhecerão a mim — retruquei. — Aquele é o distintivo de Ynyr. São galeses de Guent. O oficial era alto, com um rosto magro de gavião e uma cicatriz branca repuxando-lhe a boca. Não me recordava dele, mas olhou para mim e saudou-me. — Pelo Corvo! Como chegou aqui, senhor? — Preciso falar com o Rei. A que distância fica o seu acampamento? Enquanto eu falava, um murmúrio agitado percorreu a tropa, cavalos inquietos, e um deles empinou como se detido nervosamente. O oficial falou ríspido por sobre o ombro, depois virou-se para mim. Eu o escutei engolir em seco antes de responder. — A umas oito milhas, senhor. Aqui havia algo mais que a surpresa de encontrar-me neste lugar deserto, e o temor que eu inspirava ao homem comum. Senti Ralf acercar-se de mim. Um olhar rápido revelou-me o brilho nos seus olhos; Ralf vibrava à menor menção de perigo. O oficial falou, abruptamente: — Bem, meu senhor, isto nos economizou tempo. Tínhamos ordens do Rei de procurá-lo e leválo a ele. Ouvi Ralf inspirar. Pensei depressa, embora o coração disparasse. Isto explicava a reação dos soldados; eles pensaram que o feiticeiro tivesse previsto, magicamente, os planos do Rei. Isto também resolvia o problema do barqueiro; se esta tropa era para escoltar-me, não precisariam cruzar o rio.

Quando eu partisse com eles, Ralf compraria o silêncio do homem. Não me arriscaria a levar o rapaz para perto do Rei, ao alcance da sua ira. Não havia mal em impressioná-los mais. Comentei, de maneira agradável: — Que bom que lhes poupei uma viagem até Bryn Myrddin.. . Onde o Rei planejava receber-me? Em Viroconium? Não creio que ele pretenda ficar em Caerleon. — E não pretende — respondeu o homem. Vi que tentava controlar-se, mas sua voz estava rouca, e limpou a garganta. — O senhor... o senhor sabia que o Rei estava indo para o norte, para Viroconium? — Como não? — indaguei-lhe. Com o canto dos olhos vi que os homens assentiam e viravam as cabeças, como que a ecoar "Como não?". — Mas eu pretendia falar-lhe antes disso. Não lhe entregou uma carta para mim? — Não, senhor. Tenho apenas instruções para levá-lo até ele. — Inclinou-se na sela. — Creio que foi por causa do recado que recebeu ontem à noite de Cornwall. Más notícias, acho, embora não as tenha contado a ninguém. Parecia zangado. Depois, mandou buscá-lo. Esperou, olhando para mim, como se eu soubesse o que continha o recado. Eu receava que soubesse. Alguém nos reconhecera, ou tivera um palpite, e mandara avisar ao Rei. O mensageiro devia ter-nos ultrapassado na estrada. Independente do que fosse acontecer comigo, era preciso livrar Ralf do perigo. E embora eu não temesse pela Rainha nas mãos de Uther, havia outros: Maeve, Caw, Márcia, a própria criança. . . Os pêlos da minha nuca eriçaram-se, como os de um cão que fareja o perigo. Respirei fundo e perguntei, calmamente: — Tem um cavalo extra? Meu animal está cansado e precisa ser conduzido. Meu criado descansará aqui, e voltará com o barco de madrugada, para aprontar a casa para mim. Na certa o Rei dar-me-á uma escolta até em casa, quando tivermos terminado os nossos assuntos. A voz do oficial, apologética mas definitiva, sobrepôs-se ao furioso sussurro de divergência de Ralf. — Por favor, senhor, os dois devem vir. São as minhas ordens. Temos cavalos. Vamos indo? Ergueu a mão e os homens vieram cercar-nos. Nada podia ser feito. Ele tinha as suas ordens e eu me arriscaria mais discutindo que obedecendo. Além disso, cada minuto de atraso trazia a balsa mais perto. Eu nada escutara, mas o barqueiro já devia ter visto as tochas dos soldados, e devia estar voltando. Um soldado trouxe os cavalos, e foi levando pela mão os nossos animais. Montamos. O oficial gritou uma ordem, a tropa deu meia volta e seguiu atrás de nós. Não estávamos a nem duzentos passos da margem quando ouvi, distintamente, às minhas costas, o ruído do fundo de um bote raspando o cascalho. Ninguém mais prestou atenção. O oficial estava contando-me sobre o conselho que haveria no norte, e, atrás de mim, a voz de Ralf, alegre e divertida, prometia aos soldados: — ... odre de vinho de ameixa-brava, o melhor que vocês já provaram. Receita do meu amo. Faz parte das rações em Caerleon e vão ver o que estão perdendo. Isto é no que dá mandar mensagens para

um mago, que sabe tudo que acontece, mesmo antes de acontecer... O Rei já estava recolhido quando chegamos ao acampamento e fomos alojados (e vigiados) numa tenda próxima à sua. Não dissemos nada que não pudesse ser ouvido. E, com ou sem perigo, foi o alojamento mais confortável que tivemos desde que deixamos a estalagem em Camelford. Ralf logo pegou no sono, mas eu permaneci desperto, olhando para a escuridão vazia, escutando o vento que começara e jogava punhados de chuva contra as paredes da tenda, e dizendo a mim mesmo: — Tem que acontecer. Tem que acontecer. O deus mandou-me a visão. A criança me foi entregue. — Mas a escuridão continuou vazia, e o vento varreu as paredes da tenda e depois calou-se, e nada veio. Virei no travesseiro a minha cabeça inquieta e vi, indistintamente, o brilho dos olhos de Ralf, que me observava. Mas virou-se sem falar, e logo a sua respiração relaxou-se no sono, novamente.

9 O Rei recebeu-me logo após o alvorecer, a sós. Estava armado e pronto para viajar, mas de cabeça descoberta. Seu elmo com a argola de ouro estava sobre um banquinho ao lado da cadeira, e a espada e o escudo estavam encostados à caixa que continha o altar ambulante de Mitras que sempre levava consigo. Na tenda havia muitas peles e cortinas, mas fazia frio, e por toda parte sentia-se correntes de ar. Lá fora, ouviam-se os ruídos do exército levantando acampamento, e o drapejar do estandarte do Dragão à entrada. Cumprimentou-me secamente. Ainda estava com a expressão fria de que me recordava, sem sinal de amizade, mas também sem raiva ou inimizade. Seu olhar era frio e avaliador, sua voz esperta. — Você e a sua visão pouparam-me trabalho, Merlin. Inclinei a cabeça. Se ele nada perguntasse, eu nada responderia. Fui direto ao assunto: — Que deseja de mim? — Da última vez em que nos falamos, fui severo com você. Acho que isto foi indigno de um rei a quem tinha acabado de prestar um serviço. — O senhor estava aborrecido com a morte do Duque. — Quanto a isso, ele lutou contra o seu Rei. Quaisquer que fossem as circunstâncias, tentou sublevar-se, e morreu. Está acabado, é coisa do passado. Nós, eu e você, temos que olhar para o futuro. É o que, agora, me preocupa. — A criança — concordei. Ele estreitou os olhos azuis. — Quem lhe contou? Ou ainda é a Visão? — Ralf contou-me. Quando deixou a corte, veio servir-me. Pensou um pouco, franzindo a testa, que logo relaxou quando achou que nada havia de mal nisso. Eu o observava. Era alto, de cabelo e barba avermelhados, e com uma pele clara que fazia com que parecesse mais moço. Fazia pouco mais de um ano que meu pai morrera e Uther levantara o estandarte Pendragon. Ser Rei tinha-o amadurecido: notava-se a disciplina no seu rosto, juntamente com as marcas deixadas pela paixão e pela índole. O título de rei, juntamente com as suas vitórias, vestia-o como uma capa. Fez um gesto displicente com a mão e vi que Ralf não mais necessitava temê-lo. Falou: — O passado é o passado, mas há uma coisa que preciso perguntar-lhe. Na noite em que esta criança foi gerada, em Tintagel, ordenei-lhe que se afastasse de mim e não mais me incomodasse. Lembra-se? — Lembro-me. — E replicou que não mais me incomodaria, que eu não precisaria mais dos seus serviços. Foi previsão ou apenas raiva? Respondi, mansamente: — Quando falei, falei as palavras que foram saindo. Achava que eram previsão. Tudo que disse e fiz aquela noite, imaginei que era orientado pelos deuses. Por que pergunta? Mandou chamar-me para dar uma ordem?

— Para pedir um favor. — Como profeta? — Não. Como parente. — Então, como parente, eu lhe direi que não era profecia, aquela noite, nem raiva, senhor, era dor. Dor pela morte de meu servo, e pelas mortes de Gorlois e seus companheiros. Mas, como diz, o passado é passado. Se puder servi-lo, basta que ordene. Mas, pensei, enquanto esperava que ele falasse, se não era profecia, então aquela noite não foi de Deus, e Ele nunca falou comigo. Não, eu falara a verdade quando dissera que Uther não precisaria dos meus serviços; eu não servira a Uther, então, não o serviria, agora. Lembrei-me das palavras do outro Rei, meu pai: "Você e eu juntos, Merlin, faremos um Rei como nunca o mundo conheceu." Eram o Rei morto e o que estava para nascer que me davam as ordens. Se houvera hesitação no meu comportamento, Uther não o notara. Assentiu com a cabeça, colocou o cotovelo no joelho e o queixo no punho, e meditou, de testa franzida. — Eu lhe disse outra coisa, naquela noite. Disse que não reconheceria a criança gerada então. Falava com raiva, mas agora falo friamente, depois de pensar e me aconselhar, e ainda digo o mesmo, Merlin. Esperou uma resposta, que não dei. Continuou, um pouco irritado. — Não me entenda mal, não duvido da Rainha. Acredito nela quando diz que nunca mais pertenceu a Gorlois desde que ele a levou a Londres. Sei que a criança é minha, mas não pode ser meu herdeiro, nem ser criada na minha casa. Se for menina, não faz mal, mas se for menino, seria loucura criá-lo como herdeiro do Grande Reino, quando bastará que os homens contem nos dedos para dizer que o filho foi feito por Gorlois, meio mês antes do Rei casar-se com Ygraine. — Olhou para mim. — Sabe disso tanto quanto eu, Merlin. Você viveu em casas de reis. Sempre haverá os que duvidarão da sua origem, então sempre haverá os que tentarão arrancá-lo do trono em favor de outros com "melhor pretensão", e Deus sabe que haverá pretendentes aos montes. E os melhores pretendentes serão os meus outros filhos. Assim, mesmo criado como bastardo na corte, o menino é perigoso. Ele pode vir a tentar ser rei pela morte dos meus outros filhos. Não seria a primeira vez que isto acontece. Não quero que a minha casa seja um campo de batalha. Preciso ter outro filho, um herdeiro que não seja posto em dúvida, concebido no casamento para a satisfação de todos e criado ao meu lado quando o reino estiver calmo e as guerras saxãs terminadas. Que acha disso? — O senhor é o Rei e o pai da criança. Não foi exatamente uma resposta, mas ele assentiu como se eu tivesse concordado. — E ainda há mais. O menino não só é perigoso, como será vítima de perigo. Se puder ser dito que ele não é meu, que é filho de Gorlois com Ygraine, então é óbvio que é filho do Duque de Cornwall, com direito à parte das terras que agora são de Cador, depois que eu o confirmei como Duque de Cornwall. Entende? Como filho do Rei ou como filho do Duque, Cador será seu inimigo, e muitos o seguiriam imediatamente. — Cador é leal ao senhor?

— Eu confio nele. — Deu uma risada curta. — Até agora. É moço e de cabeça dura. Quer Cornwall e nada fará que fizesse correr o risco de perdê-la... por enquanto. Mais tarde, quem sabe? E quando eu me for... — deixou em suspenso. — Não, Cador não é meu inimigo, mas há outros que são. — Quem? — Sabe lá Deus, mas qual o rei que não os tem? Até Ambrósio... ainda dizem que ele morreu envenenado. Você me disse que não é verdade, mas assim mesmo faço com que Ulfin prove a minha comida. Enquanto Octa e Eosa forem prisioneiros em Londres, eles serão um foco para todo líder descontente que deseja alcançar uma coroa como a de Vortigern. . . auxiliado por forças saxãs e ao preço de vidas e terras inglesas. Mas, que mais posso fazer? Soltá-los, para incitarem os federados contra mim? Ou matá-los, dando a seus filhos na Alemanha motivo para vingá-los com sangue? Não, Octa e seu primo são meus reféns. Sem eles, Colgrim e Badulf já teriam vindo para cá há muito, e a Praia Saxã já teria ultrapassado os seus limites e estaria lambendo a Muralha de Ambrósio. Estou deixando estar para ver o que acontece. Não pode dizer-me nada, Merlin? Viu ou ouviu algo? Não estava pedindo profecias. Uther olhava de banda para as coisas do outro mundo, como um cão que vê o vento. Respondi: — Nada, a não ser que, quando Ralf deixou sua corte para vir servir-me, foi atacado e quase morto. Os homens não usavam distintivo. — Narrei-lhe o fato. — Talvez pensassem que ele era o seu mensageiro, ou da Rainha. Soldados do quartel procuraram nos bosques, mas não encontraram sinal deles. Além disso, de nada soube. Mas, se souber, pode ficar certo de que o avisarei. Aquiesceu, depois continuou, com vagar, escolhendo as palavras. Tinha um modo abrupto, quase relutante. Quanto a mim, minha mente era um turbilhão, e eu me esforçava para ficar firme e calmo. Estávamos chegando ao campo de batalha, mas a batalha seria diferente do que eu tinha planejado. "Eu e você", dissera ele. Não teria mandado chamar-me se eu não fosse ter alguma participação no futuro da criança. Cobria o mesmo terreno que eu e Ygraine já cobríramos. — ... portanto, se for menino, não poderá ficar comigo, mas, se mandá-lo embora, não poderei protegê-lo. Mas ele precisa de proteção. Bastardo ou não, é meu filho e da Rainha, e, se não tivermos outros filhos, um dia será declarado meu herdeiro ao Grande Remo. — Ergueu uma das mãos. — Assim, veja como eu fico. Preciso entregá-lo a um guardião que o conserve em segurança nos seus primeiros anos de vida... pelo menos até que este reino dividido esteja calmo e seguro, e nas mãos de aliados fortes e leais, e haja herdeiros meus declarados. Esperou que eu concordasse. Assenti com a cabeça, e indaguei, de maneira neutra: — Já escolheu o guardião? — Já. Budec. Então a Rainha estava certa, e a decisão fora tomada. Mas, ainda assim, mandara chamar-me. Fiquei imóvel, e comentei, de modo tão seco que parecia indiferente: — Era a escolha óbvia. Ele mexeu-se na cadeira, e pigarreou. Notei, com surpresa, que parecia pouco à vontade, ou, mesmo, nervoso. Parecia, até, satisfeito que me tivesse agradado a sua escolha. Isto acalmou-me. Percebi que estivera tão obcecado com o meu destino e o da criança, que vira Uther como inimigo, o que era falso. Na realidade Uther era um guerreiro lutando contra os conflitos perpétuos dentro e em volta de suas fronteiras, tentando consertar aqui uma represa, ali uma muralha, para impedir as águas da

inundação; para ele, o problema da criança, embora algum dia pudesse ter importância vital, era, no momento, um empecilho a que tratasse de assuntos de maior realce, e ele queria liquidá-lo e passá-lo adiante. Falara sem emoção, e esclarecera bem a coisa. Talvez me tivesse chamado apenas para pedir a minha opinião, como seu irmão sempre fizera. Nesse caso... Umedeci os lábios secos e forcei-me a escutar calmamente, um conselheiro a ouvir um homem preocupado. Ele falava novamente, algo sobre uma carta. A mensagem que chegara na véspera. Apontou para o banquinho ao seu lado, onde o pergaminho estava, amassado, como se tivesse sido jogado com raiva. — Você sabia disso? Peguei a carta e desamassei-a. Era curta, uma mensagem da Bretanha que fora enviada para o Rei em Tintagel e, depois, encaminhada para cá. O Rei Budec, dizia ela, contraíra uma febre durante o verão. Parecia estar melhorando, quando, pelo fim de agosto, morreu subitamente. A carta terminava com protestos formais de amizade do novo rei, Hoel, "devotado primo e aliado" de Uther. Ergui o olhar. Uther relaxara na cadeira, ajeitando uma dobra do manto escarlate sobre o braço. Tudo parecia quieto. Lá fora, o vento amainara. Os ruídos do acampamento vinham de longe, indistintos. O queixo de Uther repousava no peito e ele me observava com um misto de preocupação e impaciência. Fui reservado: — São más notícias. Budec era um homem bom e um bom amigo. — Seriam mas mesmo que não tivessem destruído os meus planos. Eu já estava preparando as mensagens para enviar quando esta carta chegou. Agora, estou confuso. Já lhe contaram que estou indo para um conselho de reis em Viroconium? — Audagus contou-me. — Audagus era o oficial que nos escoltara desde o cais. Estendeu uma das mãos. — Então, pode imaginar como está atrapalhando-me cuidar deste assunto agora. Mas é preciso. Por isso mandei chamá-lo. Dei um piparote no lacre com o indicador. — Não vai mandar a criança para Hoel? Ele se assina seu primo e aliado devotado. — Pode ser meu primo e aliado devotado, mas é também um bom... — Uther usou uma expressão mais própria de um soldado do que de um rei em conselho. — Nunca o apreciei, nem ele a mim. Oh, Mitras sabe que ele não faria mal a um filho meu, mas ele não é um homem como o pai, e talvez não consiga proteger o menino dos deuses inimigos. Não, não o mandarei para Hoel. Mas, para que outra corte posso mandá-lo? Veja por você mesmo. — Enumerou alguns nomes, todos homens poderosos, reis cujas terras ficavam a sudoeste, atrás da Muralha de Ambrósio. — Está vendo o meu problema? Se ele ficar com um dos nobres ou reis pequenos em território seguro, ainda estaria em perigo da parte de algum homem ambicioso; ou, pior ainda, poderia tornar-se instrumento de traição ou rebelião. — E daí? — Daí, dirijo-me a você. É o único que pode conduzir-me por entre essas rochas perigosas. Por um lado, o menino precisa ser reconhecido como meu, para o caso de não haver outro herdeiro. Pelo outro, precisa ser afastado, pelo próprio bem e o do reino, e criado na ignorância da sua origem, até chegar a hora em que eu mande buscá-lo. — Virou uma das mãos sobre o joelho e indagou, com a mesma simplicidade da outra vez: — Pode ajudar-me?

Respondi-lhe com a mesma simplicidade. A confusão, o turbilhão de pensamento formaram um desenho, como folhas coloridas que o vento, ao cessar de soprar, deixasse cair sobre a grama, formando uma tapeçaria. — É claro. Não precisa despedaçar nenhuma parte do seu reino nestas rochas. Ouça, e lhe direi como. Disse-me que "aconselhou-se". Quer dizer que outros homens sabem do seu plano de enviar o menino para Budec? — Sim. — Já falou a alguém sobre esta carta, e das suas dúvidas sobre Hoel? — Não. — Ótimo. Informará, então, que os seus planos continuam os mesmos, e que o menino irá para a corte de Hoel em Kerrec. Escreverá a Hoel fazendo o pedido. Tome todas as providências para mandar o menino para lá com a ama e acompanhantes logo que o tempo permita. Deixe que saibam que eu mesmo acompanharei a criança até o seu destino. Seu rosto estava fechado, atento, e havia nele um protesto que ele calou. Apenas indagou: — E...? — Além disso — continuei — preciso estar em Tintagel na hora do nascimento. Quem é o seu médico? — Gandar. — Parecia querer dizer algo mais, mas mudou de idéia e esperou. — Ótimo. Não estou sugerindo que eu deva assisti-la. — Sorri. — Em vista do que vou sugerir, daria margem a boatos perigosos. O senhor estará presente ao parto? — Tentarei, mas acho difícil. — Então, estarei presente para atestar o nascimento da criança, assim como Gandar, e as damas da Rainha, e quem mais o senhor quiser indicar. Se for menino, a notícia ser-lhe-á enviada por meio de faróis, e o senhor o declarará seu filho com a Rainha, e, na falta de um filho legítimo, seu herdeiro até o nascimento de outro príncipe. Ele meditou sobre o assunto, relutante em comprometer-se. Mas isto era apenas a conclusão do que ele mesmo me dissera. Finalmente, aquiesceu, pesadamente: — Muito bem. É a verdade. Bastardo ou não, é meu herdeiro até que arranje outro. Continue. — Enquanto isso, a Rainha permanecerá em seu quarto. Depois que ele for visto e reconhecido, o menino será levado de volta aos aposentos da Rainha e lá ficará, sob as vistas somente de Gandar e das mulheres. Gandar cuidará disto. Eu, então, sairei ostensivamente pelo portão principal e pela ponte. À noite, irei em segredo para o portão traseiro no penhasco e pegarei o menino. — Para levá-lo para... ? — A Bretanha. Não para Hoel, nem pelo navio que todos conhecerão. Deixe esta parte para mim. Eu o levarei para alguém que conheço na Bretanha, nos extremos do reino de Hoel. Ele estará seguro, e será bem cuidado. Tem a minha palavra, Uther. Ele ignorou este comentário, como se fosse desnecessário que o tivesse feito. Já estava com ar mais desanuviado, feliz por ver-se livre de uma preocupação que, comparada às demais do seu reino, parecia-lhe trivial e (com a criança ainda um simples peso no ventre da mãe) irreal.

— Preciso saber para onde vai levá-lo. — Para a ama que me criou, e a outras crianças reais, bastardas ou legítimas, nos berçários de Maridunum. Seu nome é Moravik e ela é bretã. Depois do saque de Vortigern, ela voltou para o seu povo. Casou-se. Enquanto o bebê estiver sendo aleitado, é o melhor lugar. Ninguém o procurará num lar tão humilde. Estará protegido, mas, o que é melhor, estará escondido e ignorado. — E Hoel? — Ele saberá. É preciso. Deixe Hoel comigo. Lá fora soou uma trombeta. O sol estava esquentando, e a tenda também. Ele mexeu-se, vergou os ombros como um homem que retira a sua armadura. — E quando for descoberto que a criança não está no navio real e que desapareceu? O que diremos? — Que, por temer os saxões no Mar Estreito, o príncipe foi enviado para a Bretanha com Merlin, e não pelo navio real. — E quando descobrirem que ele não está na corte de Hoel? — Gandar e Márcia jurarão que eu parti com a criança. Não sei quais serão os comentários, mas ninguém duvidará de mim, ou da segurança da criança sob a minha proteção. E sabe o que significa a minha proteção. Suponho que falarão de mágicas e desaparecimentos, e esperarão que a criança reapareça quando cessarem os meus encantamentos. Ele disse, prosaicamente: — É mais provável que digam que o navio afundou e que a criança morreu. — Eu negarei. — Então, não ficará com o menino? — No começo, não. Sou conhecido. — Mas, quem ficará com ele? Você disse que ele seria guardado. Pela primeira vez, tive um segundo de hesitação. Fitei-o nos olhos. — Ralf. Pareceu surpreendido, depois zangado, depois reconsiderou a raiva. Falou, vagarosamente: - É. Aí também eu estava errado. Ele será leal. — Não há outro mais leal. — Pois bem, estou satisfeito. Tome as providências que quiser. Está nas suas mãos. De todos os homens da Inglaterra, é quem melhor o protegerá. — Bateu nos braços da cadeira. — Pronto, está tudo decidido. Antes de partirmos hoje, mandarei uma mensagem para a Rainha, informando-a da minha decisão. Achei interessante' perguntar: — Será que ela a aceitará? Não é uma coisa fácil para uma mulher suportar, mesmo sendo Rainha. — Ela sabe a minha decisão, e fará o que eu mandar. Apenas numa coisa, contudo, farei a sua vontade; ela quer que a criança seja batizada como cristã.

Dei uma olhada para o altar de Mitras contra a parede da tenda. — E o senhor? Deu de ombros. — E que importância tem? Ele nunca será Rei. E, se for, prestará devoção onde for preciso, às vistas do povo. — Um olhar duro, direto. — Como fez meu irmão. Se foi um desafio, declinei dele, indagando apenas: j — E o nome? — Arthur. O nome era estranho, mas veio como o eco de algo que eu ouvira há muito tempo. Talvez houvesse sangue romano na família de Ygraine... Os Artori; devia ser. Mas, fora em outro lugar que ouvira o nome.. . — Providenciarei — disse eu. — E agora, com a sua permissão, também escreverei para a Rainha. Ela ficará mais descansada se eu assegurar-lhe a minha lealdade. Ele assentiu, depois levantou-se e pegou o elmo. Sorria, um fantasma frio do velho sorriso malicioso que me lançava em criança. — Não é estranho, bastardo Merlin, que eu confie tão completamente o corpo do meu filho mal concebido ao único homem do reino cuja pretensão ao trono é mais legítima do que a dele? Não está lisonjeado? — Nem um pouco. O senhor seria um tolo se já não tivesse descoberto que não tenho a menor ambição pela sua coroa. — Então, não desperte nenhuma no meu bastardo, ouviu? -Virou a cabeça, gritando por um criado, depois voltou-a para mim. — E não lhe ensine nenhuma mágica, também. — Se é seu filho — falei secamente — não aceitará bem a mágica. Nada lhe ensinarei a não ser o que ele tem o direito e a necessidade de saber. Dou-lhe a minha palavra. Com isto nos separamos. Uther não gostaria nunca de mim, nem eu dele, mas havia um tipo de frio respeito mútuo entre nós dois, nascido do nosso mesmo sangue e do amor e da dedicação que, embora de espécies diferentes, ambos déramos a Ambrósio. Eu deveria ter sabido que ele e eu estaríamos juntos nisto, como os dois lados de uma mesma moeda, e que nos moveríamos juntos quer quiséssemos, quer não. Os deuses presidem o jogo, mas são os homens que se movem sob as suas mãos para os lances e as jogadas. Deveria ter sabido; mas estava tão acostumado à voz de Deus no fogo e nas estréias, que me esqueci de procurá-la nos conselhos dos homens. Ralf esperava, sozinho, na tenda vigiada. Quando lhe contei o resultado da minha conversa com o Rei, ficou calado por muito tempo. Depois, falou: — Então, tudo vai acontecer exatamente como o senhor disse. Esperava que fosse assim? Quando nos trouxeram, ontem à noite, pensei que estivesse com medo. — E estava, mas não do modo que você imagina. Pensei que fosse perguntar como, mas pareceu compreender. Enrubesceu e ocupou-se com as malas.

— Meu senhor, preciso dizer-lhe... — sua voz estava abafada. — Eu estava muito errado a seu respeito. A princípio, porque não era um guerreiro... eu pensei... — Que fosse um covarde? Eu sei. Olhou-me, vivamente. — O senhor sabia? E não se importou? — Isto, obviamente, era quase tão ruim quanto covardia. Sorri. — Quando era criança entre guerreiros, fiquei acostumado. Alem disso, eu mesmo nunca tive certeza de possuir coragem. Fitou-me, depois explodiu: Mas, o senhor não tem medo de nada! Tudo que nos aconteceu nesta viagem... parecia que o senhor estava fazendo um passeio numa manhã de verão, ao invés de estar percorrendo atalhos perigosos cheios de animais selvagens e bandidos. E, quando os homens do Rei nos alcançaram... mesmo sendo seu tio, não quer dizer que não fosse perigoso para o senhor. Todos sabem que não se pode contrariar o Rei. Mas, o senhor ficou absolutamente calmo, como se esperasse que ele fosse fazer a sua vontade, como todo mundo faz! O senhor, com medo? O senhor não tem medo de nada real! — É isso que quero dizer — respondi. — Não sei quanta coragem é necessária para enfrentar inimigos humanos (que você chama de "reais") sabendo que não vão matá-lo. Mas, saber prever é bem aterrorizante, Ralf. A morte pode não estar na esquina seguinte, mas quando se sabe exatamente quando ela virá, e como. . . Não é um pensamento agradável. — Então, o senhor sabe? — Sei. Pelo menos, acho que é a minha morte que eu vejo. Escuridão e um túmulo fechado. Ele ficou arrepiado. — É, compreendo. É preferível lutar à luz do dia, mesmo pensando que se pode morrer amanhã. Pelo menos, é sempre "talvez amanhã", nunca "agora". Vai montar com as botas de couro de corça, meu senhor, ou vai trocá-las? — Vou trocá-las, obrigado. — Sentei-me num banquinho e estendi-lhe um dos pés. Ajoelhou-se para retirar minhas botas. — Ralf, preciso contar-lhe mais uma coisa. Disse ao Rei que você estava aqui comigo e que iria à Bretanha para vigiar a criança. Olhou-me petrificado. — O senhor disse-lhe isto? E o que ele respondeu? — Que você era leal. Ele concordou e aprovou. Ficou de cócoras, segurando as minhas botas, sem conseguir falar. — Ele teve tempo para pensar, Ralf, como um rei deve pensar. Também teve tempo, como os reis têm, para acalmar a sua consciência. Ele agora considera Gorlois um rebelde, e o passado liquidado. Se quiser voltar ao seu serviço, ele o receberá bem, e lhe dará um lugar entre os guerreiros. Não respondeu, limitando-se a ocupar-se das minhas botas. Depois, ergueu-se, e foi chamar alguém para trazer os nossos cavalos. — E ande depressa. Meu senhor e eu vamos agora para a balsa. — Viu só? — comentei. — Agora foi você mesmo que tomou a sua decisão. E, no entanto, quem pode afirmar que não faz parte do "desenho" assim como a morte providencial de Budec? — Fiquei de

pé, estirei-me e dei uma risada. — Por todos os deuses, ainda bem que as coisas estão começando a tomar jeito. E ainda bem que uma coisa é possível, mais que todas as outras. — Que o senhor vai ficar com a criança com tanta facilidade? — Oh, isto também, é claro. Mas, no momento, é que vai ser possível eu raspar essa barba desgraçada!

10 Quando Ralf e eu chegamos a Maridunum, os meus planos estavam, o máximo possível, feitos. Mandei-o para a Bretanha pelo primeiro navio, com cartas de pêsames para Hoel e com mensagens que complementassem as do Rei. Uma das cartas, que Ralf levava ostensivamente, repetia o pedido do Rei para que Hoel abrigasse a criança durante a infância; a outra, que Ralf entregaria em segredo, avisava a Hoel que ele não seria sobrecarregado com a criança, e que nós não chegaríamos pelo navio real na data marcada. Implorava a sua ajuda para que Ralf pudesse tomar todas as providências para a viagem secreta que eu planejava para o Natal. Hoel, tranqüilo e preguiçoso por natureza, e pouco afeiçoado ao primo Uther, ficaria tão aliviado, eu sabia, que iria ajudar a Ralf e a mim de todas as maneiras possíveis. Quando Ralf partiu, eu mesmo me dirigi para o norte. Era óbvio que não poderia deixar o bebê por muito tempo na Bretanha; o refúgio com Moravik serviria por algum tempo, até que o interesse dos homens tivesse arrefecido, mas, depois, podia ficar perigoso. A Bretanha, como eu comentara com a Rainha, era o lugar onde os inimigos de Uther procurariam a criança; o fato de que ela não estava, nem nunca estivera, no anunciado refúgio da corte de Hoel, poderia fazer com que acreditassem que toda essa história de Bretanha fora pista falsa. Eu tomaria todas as medidas para que nenhuma pista os levasse à obscura aldeia de Moravik. Mas isto só valeria enquanto o menino fosse bem pequeno. Quando crescesse e começasse a circular, perguntas e boatos surgiriam bem facilmente; uma criança de lar pobre, tão bem cuidada e vigiada como esta seria, daria margem a perguntas, estas a rumores e estes a adivinhações da verdade. Além disso, depois de superada a fase de amas e berçários, ele precisaria ser treinado, senão como príncipe, ao menos como um jovem nobre e um guerreiro. Bryn Myrddin, em hipótese alguma, poderia ser o seu lar; ele teria que ter o conforto e a segurança de um lar nobre. Finalmente, lembrei-me de um amigo de meu pai a quem eu conhecera bem. Chamava-se Ector, Conde de Galava, um dos nobres que lutaram sob o comando do Rei Coei de Rheged, o mais forte dos aliados de Uther no norte. Rheged é um reino grande, estendendo-se desde a espinha montanhosa da Inglaterra até a costa oeste, e desde a Muralha de Adriano, ao norte, até a planície de Deva. Galava, que Ector dominava, fica a umas trinta milhas do mar, no canto noroeste do reino. Ali há extensões de terra selvagem e montanhosa, cheia de colinas e água e florestas agrestes; aliás, um dos nomes que possui é Floresta Agreste. O castelo de Ector situa-se em um terreno plano no extremo de um dos extensos lagos de que esses vales estão cheios. No passado, havia aí uma fortaleza romana, uma entre as muitas na estrada militar que vai de Glannaventa, na costa, para se unir à estrada principal, que liga Luguvallium a York. Entre Galava e o porto de Glannaventa, existem colinas íngremes e gargantas agrestes, fáceis de defender, e, para o interior, fica a bem guardada terra de Rheged. Quando Uther pensara em criar a criança em algum castelo seguro, pensara apenas nas terras ricas e estáveis de dentro da Muralha de Ambrósio, mas, mesmo se ele não temesse pela lealdade dos nobres, eu desaconselharia essas regiões, por serem exatamente as que os saxões mais cobiçavam. Por essas terras, eu presumia, eles lutariam em primeiro lugar e com mais denodo. No norte, no coração de Rheged, onde ninguém procuraria por ele, e onde a própria Floresta Agreste o protegeria, o menino cresceria com o máximo de segurança, e livre como um passarinho. Ector casara-se há alguns anos. Sua mulher chamava-se Drusilla, de família romano-inglesa de York. Seu pai, Faustus, fora um dos magistrados da cidade que a defendera contra Octa, filho de

Hengist, e que fora um dos que aconselhara o chefe saxão a se entregar a Ambrósio. Na época, Ector lutava no exército de meu pai. Em York, ele conhecera Drusilla, e casara-se com ela. Ambos eram cristãos, e, talvez por isso, seus caminhos e os de Uther raramente se cruzavam. Mas eu, juntamente com meu pai, já estivera na casa de Faustus em York, e Ambrósio tomara parte em longas discussões sobre a colonização das províncias do norte. O castelo de Galava era bem protegido, fora construído no lugar do velho forte romano, com o lago à sua frente, um rio profundo de um dos lados, e as montanhas selvagens bem próximas. Era possível acercar-se dele apenas por água, ou por uma das gargantas do vale, bem vigiadas e facilmente defensáveis. Contudo, não tinha jeito de fortaleza. Havia árvores por perto, pesadas de outono, e botes com pescadores onde o rio corria, profundo e calmo, por entre as planícies verdejantes. As pastagens à volta da água estavam cheias de gado, e uma aldeia ficava sob as muralhas do castelo, como no tempo da Paz Romana. Duas milhas além das muralhas do castelo, encontrava-se um monastério, e os vales eram tão retirados que, dos lugares altos, acima da linha das árvores, onde só havia grama e pedras, dava para ver-se as ovelhas de pêlo azul que nasciam em Rheged, vigiadas por um jovem pastor que enfrentava os lobos e as raposas ferozes protegido apenas por um bastão e um único cão. Eu viajava sozinho, e discretamente. Sem a barba detestada e o pesado disfarce, ainda assim não fui notado nem reconhecido, e cheguei à tardinha, num dia de outubro claro e revigorante. Os portões estavam abertos, dando para um quintal pavimentado onde homens e rapazes estavam descarregando uma carroça de palha. Os bois esperavam pacientemente, ruminando; perto deles um rapaz dava de beber a um par de cavalos suados. Cães latiam e brigavam e galinhas ciscavam no feno caído. Havia árvores no quintal e, dos dois lados da escada da porta principal, havia canteiros de malmequer, com as suas cores laranja e amarelo refulgindo ao sol da tarde. Parecia mais uma próspera fazenda que uma fortaleza, mas, pela porta aberta, entrevi fileiras de armas reluzentes e, de trás de um muro alto, vinham ordens e o ruído de homens treinando. Parei entre os postes da entrada e o porteiro barrou o meu caminho, perguntando o que eu desejava. Entreguei-lhe um pequeno embrulho com o meu broche do Dragão e mandei que o levasse ao seu amo. Dentro de minutos, estava de volta, com o camareiro correndo atrás dele, para levar-me diretamente ao Conde Ector. Ector quase não mudara. Era um homem de estatura média, chegando à meia-idade; se meu pai fosse vivo, seriam da mesma idade, o que lhe dava pouco mais de quarenta anos. Sua barba castanha estava ficando grisalha, e era moreno, e sangüíneo. Sua esposa era mais de dez anos mais moça que ele; era alta e estatuesca, na casa dos vinte, reservada e um pouco tímida, mas com olhos azul-fumaça que desmentiam o seu modo formal e distante. Ector parecia um homem satisfeito. Recebeu-me sozinho, num quarto pequeno com lanças e arcos encostados às paredes, e a lareira cercada de cães — veadeiros. O fogo estava alto nas achas de pinho, porque as janelas estreitas e sem vidros deixavam entrar o ar esperto de outubro, e o vento gania como um cão nas cordas dos arcos empilhados. Apertou-me os braços num abraço de urso, exclamando: — Merlinus Ambrosius! Mas, que prazer! Há quanto tempo, nem? Dois anos? Três? Quanta água por baixo da ponte, e quanta estrela cadente, desde a última vez, não? Mas você é muito, muito bemvindo! Não há outro que eu receba melhor sob o meu teto. Você fez o seu nome, hein? O que tenho ouvido contar. . . Bom, agora pode contar-me a verdade. Santo Deus, rapaz, você está cada dia mais parecido com ele! Porém, mais magro, mais magro. Você parece que não vê carne fresca há um ano. Venha, sente-se ao pé do fogo que vou pedir comida antes que comecemos a conversar.

O jantar foi enorme e excelente, e valia por dez refeições das minhas. Ector comeu por três, e insistiu que eu comesse o resto. Trocávamos as novidades enquanto comíamos. Ele já soubera da gravidez da Rainha, mas eu não me detive no assunto, perguntando-lhe o que se passara em Viroconium. Ector participara do conselho, e recentemente voltara para casa. — Sucesso? — perguntou, replicando à minha pergunta. — É difícil dizer. Muita gente compareceu. Coei de Rheged, é claro, e os demais dessas terras, — enumerou uma meia dúzia de vizinhos — menos Riocatus de Verterae que mandou avisar que estava doente. — Você não acreditou? — Quando acreditar no que aquele chacal disser — respondeu Ector energicamente — também serei um lambedor de cuspe. Mas, todos os lobos estavam lá, portanto os comedores de carniça não fizeram falta. — Strathclyde? — Sim, Caw estava lá. Os pictos na metade ocidental do seu território estão dando trabalho.. . aliás, quando é que não deram? Embora Caw também seja meio picto, ele cooperará com qualquer plano que o ajude a controlar o seu território, portanto foi favorável à idéia do conselho. Ele ajudará, tenho certeza. O que não consegue é controlar aquele monte de filhos que fez. Sabia que um deles, Heuil, um canalhinha que mal tem idade para levantar uma lança (assim pensavam todos), violentou uma das filhas de Morien na primavera passada, quando ia a caminho do monastério para onde seu pai resolvera que ela iria, quando do seu nascimento? Para ela, ele bem que levantou a sua lança; quando o pai soube, eles já tinham ultrapassado a fronteira e ela não estava mais em condições para nenhum monastério, mesmo um de idéias avançadas. — Abafou um risinho. — Morien reclamou, é claro, mas todos estavam debochando, então ele tirou o melhor partido que pôde da situação. Strathclyde teve que pagar, e ele e Morien sentaram-se em lugares opostos em Viroconium, e Heuil nem sequer compareceu. Pois é, mas eles resolveram esquecer as suas diferenças. O Rei Uther soube trabalhar bem, e, assim, juntando Rheged e Strathclyde, metade da fronteira norte está totalmente com o Rei. — E a outra metade? — perguntei. — E quanto a Lot? — Lot? — Ector bufou. — Aquele fanfarrão! Ele juraria aliança ao Diabo e a Hecate combinados, se com isso arranjasse mais alguns acres de terra! Liga menos para a Inglaterra do que aquele cão ao pé da lareira. Ele e o seu bando de irmãos selvagens sentados naquela rocha fria. Só lutarão se tirarem vantagem. — Calou-se, olhando para o fogo de cenho fechado, cutucando o cachorro mais próximo com o pé; o cão bocejou de prazer e repuxou as orelhas. — Mas, ele fala bem, e talvez eu o esteja caluniando. Os tempos mudam, e até bárbaros como Lot devem compreender que, a não ser que nos unamos, e permaneçamos unidos, será como o Ano da Inundação de novo. Não se referia a uma inundação de verdade, mas ao ano da grande invasão do século passado, quando pictos e saxões, reunidos aos escoceses da Irlanda, derramaram-se por sobre a Muralha de Adriano com machado e fogo. Máximo era o chefe, na época, em Segontium. Ele os rechaçou e os venceu, conquistando para a Inglaterra uma temporada de paz; e, para si mesmo, um império e uma lenda. Falei: — Lot é a chave da defesa que Uther está planejando, mais ainda que Rheged ou Strathclyde. Ouvi dizer (será verdade?) que há anglos plantados no Alaunus, e que a força dos federados anglicanos, ao sul de York ao longo do Abus, já duplicou desde a morte de meu pai. — É verdade — falou pesadamente. — Para o sul de Lothian há apenas Urien na costa, e este é

um outro corvo, beliscando os restos de Lot. Não, talvez eu também esteja sendo injusto com ele. Afinal, ele é casado com a irmã de Lot, é de se supor que rezem pela mesma cartilha. Por falar nisso... — Nisso o quê? — perguntei quando ele se interrompeu. — Casamento. — Fechou a cara, depois riu. — Se não fosse tão perigoso, até que seria engraçado. Você sabia que Uther tem uma filha bastarda, esqueci o nome, que deve ter uns sete ou oito anos? — Morgause. Sim, lembro-me dela. Nasceu na Bretanha. Morgause foi um escorregão de Uther com uma garota na Bretanha, que o seguiu até a Inglaterra na esperança de se casar, pois era de boa família, e a única mulher que se sabia com certeza que lhe dera filhos. (Sempre fora motivo de espanto e conjecturas, quer públicas quer particulares, entre as tropas de Uther, como ele conseguia evitar uma fila de bastardos na sua esteira, como sementes caindo no sulco deixado pelo arado. Mas esta menina era a única de conhecimento público. E do conhecimento de Uther também, creio. Pois era um homem justo e generoso, e nenhuma moça sofrerá às suas mãos dano maior que a perda da virgindade.) Ele reconhecera a criança, conservara a mãe e a menina numa das suas casas, e após o casamento da mãe com um nobre da sua corte, levara a menina para a sua própria casa. Eu a vira uma ou duas vezes na Bretanha, uma menina magra, de cabelos claros, com olhos grandes e boca apertada. — Que há com Morgause? — indaguei. — Uther estava dando indiretas sobre casá-la com Lot, quando ela estiver na idade. Ergui uma sobrancelha. — E o que Lot acha disso? — Estava engraçada a sua reação. De cara feia com a sugestão que a bastarda de Uther servia para ele, mas falando macio, para o caso de não nascer outra filha na cama legítima do Rei. Bastardos, e seus cônjuges, já herdaram reinos anteriormente. Desculpe falar na sua presença. — Não é nada. Então, Lot está olhando para tão alto assim? Assentiu. — O mais alto possível, para o Grande Reino, escute o que lhe digo. Fiquei pensando. Eu nunca conhecera Lot; era pouco mais velho do que eu, no começo da casa dos vinte, e, embora tivesse lutado sob as ordens de meu pai, os nossos caminhos não se tinham cruzado. — Então, Uther quer amarrar Lothian, e Lot quer ser amarrado? Sendo ou não por ambição, isto significa que Lot lutará pelo Grande Rei quando chegar a hora. E ele é o nosso principal baluarte contra os anglos e os outros invasores do norte. — É, ele lutará. A não ser que os anglos ofereçam-lhe um suborno melhor que o de Uther. — Fala sério? — Fiquei alarmado. Ector, apesar do seu jeitão, era um observador sagaz e poucos homens conheciam melhor as tendências das mudanças de poder ao longo das nossas costas. — Talvez eu estivesse exagerando. Mas, no meu modo de ver, Lot é inescrupuloso e ambicioso, uma combinação que significa perigo para o chefão que não souber aplacá-lo. — Como ele se dá com Rheged? — Estava pensando na criança que ficaria aqui em Galava, com Lot a nordeste, depois dos Penninos.

— São amigos, são amigos. Tão amigos quanto dois cães enormes, cada um com o seu prato de comida bem cheio. Ainda não é motivo de preocupação, e talvez nunca o seja. Esqueça, e vamos kr, — Ele próprio bebeu, depois largou o copo e limpou a boca. Então, fitou-me de modo astuto e curioso. — E agora, vamos ao que interessa. Você não veio até aqui só para jantar e bater papo com um velho fazendeiro. Diga-me, como posso servir ao filho de Ambrósio? — É ao sobrinho de Ambrósio que você estará servindo — respondi, contando-lhe o resto. Ele me escutou em silêncio. Apesar do seu jeitão caloroso e esfuziante, nada havia de impulsivo ou precipitado em Ector. Ele fora um oficial calculista e de cabeça fria; um homem valioso em qualquer circunstância, desde uma luta feroz até um cerco longo e cuidadoso. Após um rápido olhar de surpresa e um erguer de sobrancelhas quando falei da decisão do Rei, e que eu seria o tutor da criança, ele escutou sem mover-se e sem tirar os olhos de cima de mim. Quando terminei, mexeu-se. — Bem... Para começar, Merlin, deixe-me dizer uma coisa: estou feliz e orgulhoso que tenha vindo a mim. Sabe o que eu sentia por seu pai. E, para dizer a verdade, meu rapaz, — pigarreou, hesitou, e falou, com os olhos postos no fogo — sempre me doeu o coração que fosse um bastardo. Falo isso entre essas quatro paredes, é lógico. Não que Uther tenha sido um mau Grande Rei. . . — Bem melhor do que eu teria sido — comentei sorrindo. — Meu pai sempre dizia que Uther e eu, juntos, possuíamos as qualidades de um bom rei. Era o sonho dele que, juntos, formássemos um. E este é ele. — Levantou depressa a cabeça. — Ah, eu sei, um bebê que ainda nem nasceu. Mas, a primeira parte aconteceu como eu sabia que aconteceria: um filho de Uther, criado por mim. Este é ele. Será um rei como nunca esse pobre país viu, e nem verá... — Suas estrelas lhe contaram? — Está escrito nelas, e quem escreve nas estrelas, senão Deus? — Queira Deus seja verdade. Vai chegar uma época, Merlin, talvez não daqui a um, nem cinco, nem dez anos, mas vai chegar... em que o Ano da Inundação voltará, e queira Deus que tenhamos um rei para erguer a espada de Máximo contra ele. — Virou bruscamente a cabeça. — Que foi isso? Este som? — O vento nas cordas dos arcos. — Parecia uma harpa tocando. Estranho... Que foi, rapaz? Por que essa cara? — Nada. Olhou-me com ar de dúvida por mais um momento, depois resmungou e calou-se; atrás de nós o som cresceu, uma música fria, vinda do próprio ar. Recordei-me de como, em criança, ficava a olhar para as estrelas para escutar a música que, segundo me contaram, elas faziam ao moverem-se. Deve ser este, pensei, o som dela. Entrou um criado trazendo mais achas para o fogo. e o som morreu. Quando se retirou, fechando a porta, Ector tornou a falar, num tom bem diferente. — É claro que o farei, e com muito orgulho. Você tem razão; nos próximos anos Uther não terá muito tempo para a criança, e terá dificuldades em conservá-la em segurança. Talvez em Tintagel, mas, com Cador por lá... O Rei sabe que veio procurar-me? — Não. Nem lhe direi, no momento. — Verdade? — Meditou por um tempo, de cenho franzido.

— Acha que ele ficará satisfeito com isso? — É possível. Não sei. Não insistiu muito comigo sobre a Bretanha. Creio que quer envolver-se o mínimo possível. Além disso — sorri com amargura — o Rei e eu estamos em trégua, mas não sei por quanto tempo; e longe dos olhos, longe do coração... e do pensamento. Se eu for dedicar-me a ensinar a criança, que seja a uma boa distância do Grande Rei. — É, já soube disso, também. Não é uma atitude sábia ajudar os reis a realizarem os seus desejos. O menino será cristão? — Assim deseja a Rainha, por isso ele será batizado na Bretanha, se eu puder dar um jeito. Vai chamar-se Artur. — Você será o padrinho? Dei uma risada. — Acho que o fato de nunca ter sido batizado tira-me do páreo. Ele mostrou os dentes. — Esqueci-me que é pagão. Ainda bem que o menino não o será, ou teríamos um bocado de aborrecimentos. — Com a sua mulher? É assim tão religiosa? — Pobre moça — comentou — só tem isso desde a morte do nosso segundo filho. E não haverá outros. Na realidade, será uma bênção de Deus acolhermos esse menino; meu filho Cei, apesar de ter apenas três anos, já é um bandidinho teimoso, mimado pelas mulheres. Será bom haver uma segunda criança. Como é mesmo que irá chamar-se? Artur? Posso discutir isto com Drusilla? Embora não haja dúvidas de que ficará tão feliz quanto eu em acolhê-lo. E ficará de boca fechada, acredite, mesmo sendo mulher. Ele estará em segurança conosco. — Eu tinha certeza. E sem precisar que as estrelas me dissessem. — Ele interrompeu os meus agradecimentos. — Bem, então está tudo resolvido. Discutiremos os detalhes depois. Falarei com Drusilla hoje à noite. Ficará conosco durante algum tempo? — Obrigado. Só o tempo de descansar, e ao meu cavalo. Quero estar em Tintagel em dezembro, e, antes, preciso estar em casa quando Ralf voltar da Bretanha. Há muitas providências a tomar. — Que pena! Mas voltará. Estarei esperando. — Sorriu, cutucando os cães novamente. — Posso nomear você tutor aqui de casa, ou algo assim, que lhe permita lidar com o menino. E aproveitaria para consertar Cei. Talvez ele tenha modos com você, se tiver medo de ser transformado em sapo por desobedecê-lo. — Os morcegos são a minha especialidade — repliquei sorrindo. — Você é muito bom e nunca poderei saldar esta dívida. Mas, arranjarei um canto para mim. — Escute, rapaz, o filho de Ambrósio não vai sair por aí procurando casa enquanto eu tiver quatro paredes e uma lareira para oferecer. Por que não aqui? — Porque posso ser reconhecido e onde Merlin estiver, nos próximos anos, os homens procurarão Artur por perto. Não, preciso ficar escondido. Uma casa grande como esta é muito arriscada, e, com o devido respeito, quatro paredes não são sempre o melhor abrigo para gente como eu. — Ah, entendo. Uma gruta, não é? Bem, aqui por perto há algumas, se conseguir expulsar os

Jobos primeiro. Bem, você sabe da sua vida. Mas, diga-me, e a Rainha? Que acha disso tudo? Que mulher deixaria que lhe arrancassem o primogênito do leito onde deu à luz, e nunca mais tentar vê-lo ou dar-se a conhecer? — A própria Rainha chamou-me em segredo e pediu-me que o levasse. Ela sofre, mas é a vontade do Rei, e ela sabe que não é apenas um capricho nascido da raiva; percebe o perigo tanto quanto ele. E é rainha antes de ser mulher. — Acrescentei, com cuidado: — Penso que o Rei e a Rainha não são do tipo de ter família. São homem e mulher feitos um para o outro e, fora da cama, são Rei e Rainha. Talvez, no futuro, Ygraine queira saber, e faça perguntas; mas, isso é com o futuro. No momento, ela se satisfaz em deixá-lo partir. Depois disso, conversamos noite adentro, acertando os detalhes futuro. Artur ficaria na Bretanha até uns três ou quatro anos - idade, quando Ralf o levaria, numa época do ano em que fosse seguro, da Bretanha para a casa de Ector. — E você? — perguntou Ector. — Onde estará? — Não na Bretanha, pelo mesmo motivo que não posso ficar Vou desaparecer, Ector. É um talento que os mágicos possuem. E quando reaparecer, será num lugar que afaste os olhos dos homens da Bretanha e de Galava. — Quando fez mais perguntas, ri e recusei-me a explicar. — Na realidade, os meus planos ainda não estão definidos. Bem, já o tirei da cama por muito tempo. Sua mulher deve estar imaginando quem é o homem misterioso com quem esteve trancado este tempo todo. Apresentarei as minhas desculpas pela manhã. — E eu apresentarei as minhas agora — disse, ficando de pé. — Mas estas desculpas eu gosto de pedir. Está perdendo um bocado, sabe, Merlin... mas, você não deve saber... — Eu sei — falei. — Sabe? E acha que vale a pena esta vida sem mulheres? — Para mim, vale. — Venha por aqui, então, para a sua cama fria — disse ele, abrindo a porta para mim.

11 O menino nasceu na véspera do Natal, uma hora antes da meia-noite. Um pouco antes do nascimento, eu e os dois nobres indicados como testemunhas fomos chamados ao quarto da Rainha, onde Gandar a assistia, juntamente com Márcia e outras mulheres da casa. Entre estas estava Branwen, que dera à luz há pouco um natimorto; ela seria a ama-de-leite do menino. Quando tudo terminou, e o menino estava lavado e enfaixado, e a Rainha adormecida, despedime e saí do castelo pelo caminho para Dimilioc. Logo que as luzes da portaria sumiram de vista, virei o meu cavalo para o atalho íngreme para o vale que se estende desde os campos altos acima do promontório, até a praia. O castelo de Tintagel foi construído num promontório rochoso, numa península, um rochedo saindo do mar tenebroso, unido aos penhascos do continente por uma passarela estreita. De cada lado da passarela, os penhascos caem até pequenas angras de rocha e cascalho que os rochedos escondem. De uma dessas sai um atalho, estreito e precário, e que só dá passagem na maré baixa, conduzindo, penhasco acima, até um pequeno portão nas raízes das muralhas do castelo. Este é o postigo, a entrada secreta para o castelo. Lá dentro, uma escadaria estreita de pedra leva à porta particular dos apartamentos reais. A meio caminho da escadaria, ficava um patamar largo, e um quarto da guarda. Aí eu ficaria esperando até que a criança 'estivesse em condições de enfrentar o frio do inverno. Não havia guardas; há meses o Rei lacrara o postigo; a porta do quarto da guarda que dava para a parte principal do castelo fora emparedada. Esta noite, a porta traseira fora aberta, mas não havia porteiro; apenas Ulfin, o criado do Rei, e Valério, seu amigo e oficial de confiança, estavam à minha espera para deixar-me entrar. Valério conduziu-me ao quarto da guarda, enquanto Ulfin descia o atalho para o mar para levar o meu cavalo. Ralf não estava comigo. Fora verificar se o navio bretão estava esperando, como prometera, e fora encarregado, também, de trazer cavalos e ficar de guarda toda noite na baía abaixo do atalho secreto. Esperei dois dias e duas noites. No quarto da guarda havia um catre, e Ulfin acendera um fogo para espantar o frio, e, de tempos em tempos, trazia comida, combustível e as novidades lá de cima. Teria ficado para servir-me, se eu tivesse deixado; ainda era grato por favores do passado, e o desprazer do Rei muito o mortificara. Mas eu o despachei para o seu lugar à porta do quarto da Rainha, e fiquei esperando sozinho. Do outro lado do patamar, na parede externa do castelo, do lado oposto do quarto da guarda, havia outra porta, dando para uma plataforma estreita, cercada por um parapeito. Nenhuma das janelas do castelo dava para este local, e, abaixo dele, entre o muro do castelo e o mar, ficava um gramado que descia até a beirada dos precipícios. No verão o lugar ficava coalhado de ninhos de aves marinhas, mas, agora, em pleno inverno, estava vazio e coberto de geada. Lá de baixo, chegavam os ruídos incessantes do mar de inverno. Todo dia, ao alvorecer e ao anoitecer, eu ia até esta plataforma para ver se o tempo mudara. Mas não houve mudança durante três dias. O ar estava frio, e, lá embaixo, mal se distinguia a grama, branca de geada, na névoa espessa que envolvia todo o lugar, desde o mar invisível, abaixo dos penhascos invisíveis, até a mancha pálida que o sol deixava ao tentar iluminar o céu. Por baixo da coberta de névoa, o mar estava quieto, o mais quieto que conseguia ficar naquela costa raivosa. Toda meia-noite,

antes de ir dormir, eu saía Para a escuridão gelada para procurar as estrelas. Mas via apenas a cobertura de névoa. Até que, na terceira noite, o vento chegou. Um ventinho do leste, que subiu os parapeitos e entrou por baixo das portas, fazendo esvoaçar as chamas nas achas de bétula. Fiquei de pé, a escutar. Estava com a mão no trinco da porta, quando ouvi um ruído no silêncio do topo da escadaria. A porta dos aposentos da Rainha abrira-se e fechara-se, suavemente. Abri a minha porta e olhei para cima. Alguém vinha descendo a escada, mansamente; uma mulher, enrolada num manto, carregando algo. Saí para o patamar, e a luz do quarto acompanhou-me, luz de fogo e sombras. Era Márcia. Vi as lágrimas que brilhavam em seu rosto, inclinado sobre aquilo que segurava. Uma criança, bem agasalhada contra o frio do inverno. Ela me viu e entregou-me o bebê, dizendo: — Tome conta dele. Tome conta dele, pelo amor de Deus! Tomei a criança. Por dentro dos agasalhos de lã, via-se o brilho de fazenda dourada. — E o objeto de prova? — perguntei. Ela entregou-me um anel. Era de ouro, com uma pedra de jaspe vermelha em que o timbre do dragão estava entalhado, e eu o vira com freqüência no dedo de Uther. Coloquei-o no meu dedo, e ela fez um gesto instintivo de protesto, que logo abafou ao recordar quem eu era. Sorri. — É só para que não se perca. Vou guardá-lo para ele. — Meu príncipe... — Inclinou a cabeça. Depois olhou por sobre o ombro para a escada, por onde Branwen, de capa e capuz, vinha descendo acompanhada de Ulfin, que trazia um pacote com os seus pertences. Márcia virou-se depressa para mim, e colocou uma das mãos no meu braço. — O senhor me dirá para onde o leva? — Era uma súplica, sussurrada. Meneei a cabeça. — Sinto muito. É melhor que ninguém saiba. Embora calada, os lábios se moviam. Empertigouse. — Está certo. Mas promete que ele estará em segurança? Não lhe peço como homem, nem como príncipe. Peço ao seu poder. Ele estará em segurança? Com que, então, Ygraine nada dissera, nem a Márcia! Márcia apenas adivinhava o futuro. Mas nos dias futuros, as duas mulheres teriam uma necessidade amarga de trocar confidencias. Seria cruel deixar a Rainha só com o seu conhecimento e as suas esperanças. Não é verdade que as mulheres não saibam guardar segredo. Quando amam, pode-se confiar nelas até a morte, e além, contra todo Q bomsenso e a razão. É a sua fraqueza, e a sua grande força. Olhei Márcia bem dentro dos olhos por um momento. — Ele será Rei. A Rainha já sabe. Mas para o bem da criança, você não dirá isso a mais ninguém. Ela inclinou a cabeça, novamente, sem replicar. Ulfin e Branwen já estavam ao nosso lado. Márcia aproximou-se e, meigamente, afastou um pouco o xale que cobria o rosto do bebê. Ele estava dormindo. As pálpebras, rechonchudas, cobriam os olhos fechados como conchas pálidas. Havia uma penugem grossa sobre a cabeça. Márcia abaixou-se e beijou-o levemente na cabeça. Ele continuou a dormir, indiferente. Ela tornou a cobri-lo, depois, com mãos hábeis e suaves, ajeitou bem a trouxa nos meus braços.

— Assim. Segure a cabeça dele assim. Desça o atalho com cuidado, sim? — Descerei. Ela quis falar de novo, mas controlou-se, e vi uma lágrima deslizar pela sua face e cair no xale da criança. Então, virou-se abruptamente, e começou a subir as escadas. Eu mesmo carreguei o bebê atalho abaixo. Valério foi na frente, com a espada desembainhada e pronta, e Branwen, apoiada no braço de Ulfin, veio atrás. Quando chegamos embaixo, nas pedrinhas ásperas, a sombra de Ralf destacou-se da escuridão imensa dos rochedos, e ouvimos o seu cumprimento breve e aliviado, e os cascos dos cavalos no cascalho. Ele trouxe uma mula, rija e segura, para a moça. Ajeitou-a na sela, e eu entreguei-lhe o bebê, que ela agasalhou na sua própria capa. Ralf, então, montou e segurou as rédeas da mula. Eu levaria a mula de carga. Desta vez eu seria um cantor itinerante, pois um tocador de harpa é requisitado para as cortes dos reis, enquanto um curandeiro não é. A minha harpa estava amarrada à sela da mula. Ulfin entregoume as rédeas, depois trouxe o meu cavalo; ele estava descansado e ansioso para pôr-se em movimento e aquecer-se Fiz minhas despedidas e agradecimentos, e ele e Valério retomaram o caminho do penhasco. Depois de entrarem no castelo, lacrariam novamente o postigo. Virei a cabeça do meu animal para o vento. Ralf e a moça já estavam com os cavalos na rampa. Vi as figuras escuras paradas acima de mim, à espera, e o oval desmaiado do rosto de Ralf, que me fitava. De repente, e'e ergueu o braço, apontando. — Olhe! Virei-me. A névoa se dissipava, descobrindo um céu reluzente. Suave-lente, bem por cima do promontório do castelo, vinha a luz difusa da lua. Afinal a última nuvem se foi, soprada pelo vento como uma ela em direção à Bretanha, e, no seu rastro, destacando-se entre as estrelas de menor brilho, surgiu a grande estrela que iluminara a noite da morte de Ambrósio, e que agora reluzia firmemente no leste pelo nascimento do Rei de Natal. Esporeamos os nossos cavalos, e cavalgamos para o navio.

12 O vento soprou bem para a Bretanha, e avistamos a Costa Selvagem na madrugada do quinto dia. Aqui, o mar nunca é calmo; os penhascos, altos e perigosos, erguiam-se negros, com a luz da manhã às suas costas e os dentes do mar roendo as suas bases; mas, depois de passarmos o Cabo Vindanis, o mar ficou mais liso e tranqüilo, e eu até consegui deixar a minha cabina para assistir a nossa chegada ao cais ao sul de Kerrec, que meu pai e o Rei Budec tinham construído há anos, quando a força invasora estava reunida aqui. A manhã estava sossegada, com um pouco de geada e uma névoa fina cobrindo os campos. O terreno desta região é plano, com campos e pantanais estendendo-se para o interior, onde o vento flagela a grama com sal, e nada cresce, durante milhas, a não ser pinho e espinhos. Regatos pequenos serpenteiam entre o lodo até as baías e angras que abundam na costa, e na maré baixa, as planícies enchem-se de mariscos e dos gritos de pássaros a vadear. Apesar da sua aparência árida, era terra rica, e fora um refúgio para Uther e Ambrósio quando Vortigern assassinara-lhes o irmão, assim como o fora para centenas de outros exilados que fugiam de Vortigern e da ameaça do Terror Saxão. Já naquela época, encontraram partes da região habitadas pelos celtas da Bretanha. Quando o Imperador Máximo, um século atrás, marchara sobre Roma, as tropas britânicas que sobreviveram à sua derrota tinham arrastado-se até o refúgio desta terra amiga. Alguns voltaram para casa; outros ficaram para casar e colonizar; meu parente, o Rei Hoel, descendia de uma dessas famílias. Os ingleses que se instalaram aqui foram em tão grande número, que deram o nome à península de Inglaterra, chamando-a de Pequena Inglaterra, já que a sua terra natal era a Grande Inglaterra. A língua falada era como a de casa, e os homens adoravam os mesmos deuses, mas a lembrança dos deuses antigos ainda persistia, e a terra era estranha. Vi que Branwen espiava pela amurada do navio com olhos arregalados e fisionomia estranha, e até Ralf, que já estivera aqui como meu mensageiro, olhava com temor quando, ao nos aproximarmos do cais, vimos, por trás das cabanas e pilhas de tonéis e fardos, a primeira fila das pedras erguidas. Elas situam-se nos campos da Pequena Inglaterra, fila por fila, como velhos guerreiros cinzentos esperando, ou como exércitos dos mortos. Dizem os homens que estão aí desde o começo dos tempos, ginguem sabe por que, ou como, elas vieram. Mas eu sabia que elas foram erguidas, não por gigantes, ou deuses, ou feiticeiros, mas por engenheiros humanos, cuja habilidade as canções perpetuam. Essas habilidades eu aprendi quando vivi na Bretanha, em menino, e os homens chamavam-nas de mágica. Talvez estejam certos. Uma coisa é certa: embora os homens que ergueram as pedras já sejam pó debaixo delas, os deuses que eles serviam ainda rondam por aqui. À noite, ao passar por entre as pedras, senti os seus olhos pousados nas minhas costas. Mas agora o sói ia alto, dourando as superfícies de granito, e lançando sombras azuis sobre a geada. O cais fervilhava; carroças esperavam para carregar, e homens e rapazes atarefavam-se em descarregar o navio. Nós éramos os únicos passageiros, mas ninguém deu muita atenção aos viajantes nas suas roupas decentes e sóbrias; o músico com a sua harpa, sua mulher e o filho ao lado, e o criado que os servia. Ralf tirara o bebê do colo de Branwen e ajudava-a a atravessar a prancha de desembarque. Ela estava pálida e calada e se amparava nele. Notei como (tão de repente, pareceu-me) deixara de ser um rapaz para transformar-se num homem. Devia estar com dezesseis anos e, embora Branwen fosse um ano mais velha, poderia perfeitamente ser tomado como seu marido, ao invés de mim. Ele estava alegre e animado, todo elegante nas suas roupas novas. Foi o único do nosso grupo que passou bem na viagem, pensei, enquanto sentia o cais mover-se sob os meus pés como se ainda

estivesse a bordo. A escolta que ele tratara esperava por nós. Não a escolta de tropas que o Rei Hoel quisera oferecer, mas apenas uma liteira de mula para Branwen e o bebê, com o muleteiro, e um outro homem, que trouxera cavalos para Ralf e para mim. Este outro homem aproximou-se para cumprimentar-me. Pelo seu porte, vi que era um oficial, mas não estava fardado e nada indicava que a nossa escolta vinha da parte do Rei. Aparentemente, o oficial nada sabia a nosso respeito; sabia apenas que teria de levarnos para a cidade e alojar-nos até que o Rei mandasse chamar-nos. Cumprimentou-me cortesmente, mas sem deferência. — Seja bem-vindo, senhor. O Rei envia os seus cumprimentos, estou aqui para escoltá-los à cidade. Fizeram boa viagem? — Assim dizem, mas eu e a senhora não estamos acreditando muito. Deu um sorriso largo. — Bem que achei que ela estava um pouco verde. Sei como se sente. Eu também não me dou muito bem com o mar. E o senhor? Acha que pode cavalgar até a cidade? É pouco mais de uma milha. — Posso tentar. — Trocamos amenidades enquanto Ralf ajeitava Branwen na liteira e fechava as cortinas contra o friozinho da manhã. Mal ela se acomodou, Artur acordou e começou a chorar. Que bons pulmões ele tinha! Acho que estremeci. Vi o brilho de divertimento no olhar do oficial e perguntei, secamente: — O senhor é casado? — Certamente que sim. — Antigamente eu imaginava o que estava perdendo. Agora sei. Ele riu-se. — Sempre se pode escapar. É o melhor motivo que conheço para ser somado. Queira montar, senhor. Ele e eu cavalgamos lado a lado para a cidade. Kerrec era um povoado de bom tamanho, metade civil e metade militar, cercado de muros e fossos, amontoado ao redor da colina central onde ficava a fortaleza do Rei. Próximo à rampa que conduzia ao portão do castelo, ficava a casa onde meu pai passara os anos de exílio, enquanto ele e o Rei Budec reuniam e treinavam o exército que invadiria a Inglaterra para retomá-la para ele, o rei legítimo. E agora, talvez o seu próximo e maior rei estava aqui ao meu lado, ainda aos berros, agasalhado na liteira que o levava pela ponte de madeira que cruzava o fosso, para dentro dos portões da cidade. Meu companheiro estava calado ao meu lado. Às nossas costas, os outros iam descontraídos, conversando, o som das suas vozes, e a batida dos cascos nas pedras, e o tinir dos freios ressoando na manhãzinha parada e nevoenta. A cidade despertava. Galos cantavam nos quintais e montes; aqui e ali portas abriam-se, e mulheres davam início ao trabalho do dia. Usavam xales contra o frio, carregavam baldes ou braçadas de lenha. Gostei que o meu companheiro estivesse calado. Olhei à minha volta e vi que o lugar mudara completamente nos cinco anos em que estivera ausente. Suponho que não se pode arrancar um exército da cidade onde ele se formou e treinou durante anos, sem deixar apenas uma concha acústica. O exército aquartelara-se, principalmente, fora das muralhas, e há muito os acampamentos foram desfeitos e o terreno transformado em gramados. Mas na cidade, embora as tropas de Budec ainda permanecessem, a confusão ordeira e o ar de expectativa que caracterizavam o lugar na época do meu

pai, já não existiam. Na rua dos engenheiros, onde fizera o meu aprendizado com Tremorinus, havia algumas oficinas abertas e em funcionamento, já bem cedinho, mas o ar de altos propósitos fora-se com a multidão e com o clamor, e algo como a desolação tomara o seu lugar. Ainda bem que o caminho para o nosso alojamento não passava pela casa de meu pai. Ficamos hospedados com um casal decente, que nos deu as boas-vindas; as mulheres logo tomaram conta de Branwen e do bebê, e eu fui levado a um quarto quentinho com o desjejum servido ao lado do fogo. Um criado trouxe a bagagem e quis ficar para servir-me, mas Ralf dispensou-o, e serviu ele próprio a refeição. Convidei-o para comer comigo, e ele aceitou, alegre e animado, como se os últimos dias tivessem sido de férias; quando terminamos, convidou-me para sair e explorar a cidade. Recusei, mas dei-lhe permissão para ir. Sou um homem forte, não me canso facilmente, mas é preciso mais do que uma milha em terra firme e um bom desjejum para recuperar-me do enjôo e exaustão de uma viagem marítima no inverno. Ordenei que Ralf fosse ver se Branwen e o menino estavam bem atendidos, antes de sair; quando ele se foi, fui descansar e esperar pelo chamado do Rei. Ele veio ao entardecer. Ralf chegou, admirado, trazendo uma túnica de lã macia, tingida de azulescuro, com as bordas trabalhadas em fios de ouro e prata. — O Rei mandou-lhe isso. O senhor vai usá-la? — Caro. Se não o fizesse, seria um insulto. — Mas é roupa de príncipe. O povo vai querer saber quem o senhor é. . . — De príncipe, não. É a túnica de honra de um cantor. Este é um país civilizado, Ralf, como o meu. Não apenas príncipes e soldados são considerados. Quando o Rei Hoel me receberá? — Dentro de uma hora. Ele o receberá, a sós, antes que o senhor cante no átrio. Do que está rindo? — A necessidade faz o Rei Hoel astuto. Na corte de Hoel não há muito lugar para um cantor; ele não distingue uma nota da outra. Mas até um rei com este defeito terá prazer em ouvir as novidades trazidas pelo cantor. Sendo assim, ele me receberá a sós. Depois, se os barões da sua corte quiserem ouvir-me, não terá que estar presente. — Ele mandou esta harpa. — Ralf indicou o instrumento que estava embrulhado, perto da lamparina. — Ele a enviou, mas não é dele; é minha. — Olhou-me, surpreendido. Eu falara mais bruscamente do que pretendia. O dia inteiro a harpa silenciosa ficara ali, intocada, mas evocando todas as minhas lembranças de felicidade. Em menino, aqui em Kerrec, eu tocara quase todas as noites na casa de meu pai. Continuei: — É a que eu tocava aqui, há muitos anos. O pai de Hoel deve tê-la guardado para mim. Acho que não foi tocada desde a última vez que a usei. É melhor que a experimente antes de partir. Quer descobri-la? Uma batida na porta anunciou um servo que trazia água quente. Enquanto eu me lavava, penteava e vestia o suntuoso traje azul, Ralf descobriu a harpa. Era maior do que a que trouxera comigo, que era de colocar sobre o joelho. Esta era uma harpa de pé, com maior alcance e um tom que chegaria a todos os cantos do átrio real. Eu a afinei com cuidado, depois corri os dedos sobre as cordas. Recordar o amor, após um longo sono; voltar à poesia, depois de um ano no mercado, ou à juventude depois de estar resignado a envelhecer; recordar-se do que você pensava que a vida podia oferecer, após ter tocado a realidade com dedos enlameados e calcula-dores. Isto é a música, tocada

depois de longo silêncio. A alma flexiona as asas, desajeitada como uma avezinha nova, e tenta voar. Tateei, dedilhando as cordas, explorando, experimentando, como um homem experimenta o terreno escuro que conheceu à luz do dia. Sussurros, sons, bandos de notas arrastadas. As cordas refletiram a luz do fogo, e transformaram-se em canção. Um caçador na noite escura Tentou lançar uma rede de ouro nos pantanais. Uma rede de ouro, pesada como ouro. E a maré chegou e afogou a rede, Submergiu-a, invisível, e o caçador esperou Agachado à beira dágua na noite escura. Eles vieram, os pássaros voando na escuridão, Às centenas, um exército real. Pousaram nágua, uma esquadra de navios. De navios reais, de orgulhosos mastros de prata, Navios rápidos, ferozes em batalha, Amontoados sobre a água, na noite escura. A rede pesava sob eles, escondida, esperando para pegá-los. Mas ele ficou quieto, o jovem caçador, com as mãos paradas Caçador, puxe a rede. Seus filhos comerão, hoje, E sua mulher o elogiará, caçador astuto. Ele puxou a rede, o jovem caçador, puxou-a bem depressa. Estava pesada, e ele levou-a para a margem, por entre [os juncos. Pesava como ouro, mas só continha água. Continha só água, pesada como ouro, ]E uma pena cinzenta, Da asa de um ganso selvagem. Partiram, os navios, os exércitos, para dentro da noite escura. E os filhos do caçador ficaram com fome, e sua mulher [lamentou-se.

Mas ele, dormiu sonhando, segurando a pena do ganso [selvagem. O Rei Hoel era grande, corpulento e tinha trinta e poucos anos. Durante o tempo que eu passara em Kerrec (dos doze aos dezessete anos), mal o vira. Ele era um lutador vigoroso e dedicado, e eu era apenas um rapazola, ocupado com os meus estudos no hospital e na oficina. Mais tarde, ele lutara com as tropas de meu pai na Grande Inglaterra, e, ali, conhecemo-nos melhor e ficamos amigos. Era um homem de grandes apetites, bem-humorado e tendendo para a preguiça. Desde que o vira pela última vez, ele engordara e tinha um ar de boa-vida, mas eu não duvidava que continuava valente em batalha. Comecei falando em seu pai, Rei Budec, e nas mudanças havidas, e conversamos um pouco sobre o passado. — Ah, foram anos bons! — De mão no queixo, fitava o fogo. Recebera-me em seus aposentos particulares, e, depois que nos serviram o vinho, dispensou os criados. Os cães-veadeiros deitavam-se sobre as peles aos seus pés, sonhando com a caçada do dia. Suas lanças de caça, limpas, encostadas à parede atrás da cadeira, refletiam a luz do fogo. O Rei distendeu os ombros maciços e comentou: — Será que esses anos voltarão? — Os anos de lutas? — Os anos de Ambrósio, Merlin. — Voltarão, com a sua ajuda. — Ficou intrigado, depois surpreso, depois inquieto. Eu falara prosaicamente, mas ele compreendera a insinuação. Como Uther, gostava de tudo normal, às claras e comum. . . — Quer dizer, a criança? O bastardo? Apesar de tudo, será ele o sucessor de Uther? — Sim. Juro-lhe. Brincou coma sua taça, desviando os olhos dos meus. — Bem, cuidaremos que fique em segurança. Mas, por que tanto segredo? Recebi carta de Uther pedindo, às claras, que cuidasse do menino. Ralf não acrescentou mais nada ao que havia nas cartas que trouxe. Ajudarei, é claro, no que puder, mas não quero indispor-me com Uther. Na sua carta deixou bem claro que o menino só será seu herdeiro na falta de melhor pretendente. — É verdade. Não tema, eu também não quero que você e Uther se indisponham. Não se joga um bocado precioso entre dois cães de briga e se espera que sobreviva. Até que exista outro que Uther considere melhor pretendente, está tão ansioso quanto eu para proteger este. Ele sabe o que estou fazendo, até certo ponto. — Ah! — Fitou-me, intrigado. Eu estava certo a seu respeito. Ele tinha boas intenções quanto à Inglaterra, mas não se furtaria de tapear um pouco o seu Rei. — Até que ponto? — Ao ponto em que o bebê estiver desmamado, e crescido o bastante para precisar da companhia dos homens e para aprender habilidades masculinas. Quatro anos, talvez menos. Depois disso, eu o tirarei de você e o levarei de volta para a Inglaterra. Se Uther perguntar onde está, teremos que contar, mas até que o faça... Se o fizer. Eu acho que esqueceria esta criança, se pudesse. De qualquer modo, se houver culpa, será minha. Ele entregou-me o menino para que eu o criasse como entendesse.

— Mas, será seguro levá-lo de volta? Se o enviam para cá por causa dos inimigos, não haverá perigo mais tarde? — É um risco que teremos de correr. Quero estar perto da criança enquanto estiver crescendo. Precisa ser na Inglaterra, e em segredo. Vêm aí tempos ruins, Hoel, para todos nós. Nada mais posso prever ainda, além disso: este menino, este bastardo, como você diz, terá inimigos, mais ainda que Uther. Você chama-o de bastardo; assim o chamarão outros homens ambiciosos. Os seus inimigos secretos serão mais perigosos que os próprios saxões. Então, é preciso que ele fique escondido até a hora de assumir a coroa, e e!e precisa assumi-la sem sombra de dúvida, e ser elevado a Rei às vistas de toda a Inglaterra. — Ele precisa? Quer dizer que já viu coisas? — Antes que eu pudesse responder, afastou-se do terreno perigoso, e pigarreou. Bem, vou guardá-lo em segurança para você, o quanto eu possa. Diga-me o que quer, você sabe da sua vida, sempre soube. Só não quero ficar mal com Uther. — Deu a sua gargalhada. — Lembro-me de como Ambrósio dizia que o seu julgamento em assuntos de diplomacia, mesmo quando rapazola, era dez vezes o desses imperadores de quarto de dormir. — Meu pai, naturalmente, nunca dissera isto; nem nunca o diria a Hoel, que também tinha reputação de ser um grande amoroso; mas, valeu a intenção, e eu agradeci. Ele continuou: — Bem, diga-me o que quer. Confesso-me intrigado... Os inimigos de que fala; não adivinharão que ele está na Bretanha? Diz que Uther não fez segredo dos seus planos. Assim, quando chegar a hora de o navio real zarpar, e virem que você e a criança não estão a bordo, presumirão que ele foi mandado para cá e virão procurá-lo na Bretanha. — Provavelmente. Mas, a essa hora, já estará no lugar que arranjei para e'e, e onde os nobres de Uther não pensarão em procurar. E já terei partido. — E que lugar é esse? Posso saber? — Naturalmente. É um vilarejo perto da sua fronteira norte, na direção de Lanascol. — O quê? — Estava assombrado, e demonstrava-o. Um dos cães moveu-se e abriu um olho. — Ao norte? Perto da terra de Gorlan? Gorlan não é amigo do Dragão. — Nem meu. É um homem orgulhoso e há uma velha rixa entre a sua família e a de minha mãe. Mas com você ele não tem rixa, não é? — Não, nenhuma — respondeu Hoel fervorosamente, com o respeito de um guerreiro por outro. — É o que eu pensava. Portanto, Gorlan não deverá fazer incursões em seu território. Além disso, quem imaginaria que eu fosse esconder a criança tão perto dele? Com toda a Bretanha para escolher, não iria deixá-lo ao alcance do inimigo de Uther. Não, ele estará bem. Quando o deixar, estarei com a consciência tranqüila. Mas isto não quer dizer que eu não tenha profunda dívida para com você. — Deilhe um sorriso. — Até as estrelas precisam de ajuda, às vezes. — Ainda bem — replicou Hoel, com aspereza. — Nós, meros reis, gostamos de pensar que também temos papéis a desempenhar. Mas você e as suas estrelas podem facilitar um pouco as coisas para nós, talvez? Com certeza, em toda a vastidão ao norte daqui, deve haver um lugar mais seguro que os limites das minhas terras. — É possível, mas acontece que, aí, eu tenho uma casa de confiança. A única pessoa nas duas Inglaterras que sabe exatamente o que fazer com a criança nos próximos quatro anos, e que cuidará dela como se fosse sua. — Quem?

Moravik, que foi minha ama. Ela é bretã, e depois que foi saqueada na guerra de Camlach, ela deixou Gales do Sul e voltou para casa. Seu pai possuía uma taverna ao norte daqui, num lugar chamado Coll. Como já estava muito velho para trabalhar, um tal de Brand tomava conta dela para ele. A mulher de Brand morrera, e logo após a volta de Moravik os dois casaram-se, para que tudo ficasse certo aos olhos de Deus. . . e não falo só dos títulos de propriedade da taverna.. . Ainda têm o lugar. Talvez você já tenha passado por lá, mas não creio que tenha entrado... fica na junção de dois riachos, com uma ponte por cima. Brand é um dos seus soldados reformados, e um bom homem... e fará o que Moravik mandar. — Sorri. — Nunca conheci um homem que não o fizesse, com exceção, talvez, do meu avô. — Sei... — ele ainda parecia em dúvida. — Conheço a aldeia, um punhado de cabanas perto da ponte, e só... Como bem diz, um lugar muito pouco provável para procurar-se um herdeiro do Grande Rei. Mas, uma estalagem? Não é arriscado? Com homens (incluindo os de Gorlan, pois estamos em trégua) indo e vindo pela estrada? — Desse jeito, ninguém estranhará os seus mensageiros, ou os meus. Meu criado Ralf ficará para guardar o menino, e precisará estar a par das novidades e mandar mensagens esporádicas para você, e para mim. — É, entendo. E quando você levar a criança para lá, qual será a sua explicação? — Ninguém estranhará um harpista ambulante. E Moravik já espalhou a história da moça e do bebê. A moça, Branwen, é sobrinha de Moravik, e teve um filho do seu amo, na Inglaterra. A patroa expulsou-a de casa, mas o amo pagou-lhe a passagem para a casa da tia, na Bretanha, e deu dinheiro ao cantor ambulante e ao seu criado para que a escoltassem. Nesse meio tempo, o criado resolve deixar o patrão e ficar com a moça. — E o cantor? Quanto tempo ficará por lá? — O tempo que costuma ficar um cantor viajante, depois seguirei o meu caminho e serei esquecido. Quando resolverem procurar o filho de Uther, como o encontrarão? Ninguém conhece a moça, e um bebê é só um bebê. Qualquer casa do país tem um ou mais.. . Ele assentiu, matutando, depois fez mais algumas perguntas. Finalmente, admitiu: — É, acho que serve. Que quer que eu faça? — Tem observadores nos reinos próximos? Deu uma risada breve. — Espiões? Quem não os tem? — Então saberá imediatamente se houver sinal de problemas, com Gorlan ou outro qualquer. E se puder entrar em contato com Ralf, em seguida e em segredo, caso seja necessário...? — Facilmente. Pode confiar em mim. Qualquer coisa que eu puder fazer, menos guerra com Gorlan. . . — Deu a sua risada profunda, de novo. — Eta, Merlin, mas como é bom ver você! Quanto tempo pode ficar? — Levarei o menino para o norte amanhã, e, com a sua permissão, irei sem escolta. Voltarei tão logo deixe tudo bem, mas não para aqui. Pode-se aceitar que você receba um cantor viajante uma vez, mas não que o encoraje! — Por Deus, que não! Sorri para ele. — Se o tempo não mudar, Hoel, o navio poderia esperar por mim, por alguns dias? — Pelo tempo que quiser. Para onde está pretendendo ir?

— Primeiro para Massilia, depois, por terra, para Roma. A seguir, para o leste. Pareceu surpreso. — Você? Ora, quem diria? Sempre o imaginei radicado num lugar, como as suas colinas nevoentas. Que idéia foi essa? — Não sei. De onde surgem as idéias? Preciso sumir por alguns anos, até que o menino precise de mim, e achei que o jeito será esse. Além disso, escutei algo. — Não lhe contei que fora apenas o vento nas cordas dos arcos. — Ultimamente, tenho desejado conhecer algumas das terras de que tanto ouvi falar em criança. Ainda conversamos por algum tempo. Prometi mandar-lhe cartas com novidades das capitais orientais, e, na medida do possível, dei-lhe pontos de referência para que ele pudesse enviar notícias, suas e de Ralf, sobre Artur. O fogo apagou, e ele gritou pelo servo. Depois que o homem veio e se foi... — Você logo terá de ir cantar no átrio — disse Hoel. — Portanto, já que esclarecemos tudo, vamos deixar de lado o assunto. — Reclinou-se na cadeira. Um dos cães levantou-se e veio esfregar-se n o seu joelho, pedindo um afago. Por sobre a cabeça lustrosa, os olhos do Rei brilhavam, divertidos. — Bem, ainda falta contar-me as novidades da Inglaterra. E comece pela história real do que aconteceu há nove meses. — E você, por sua vez, me contará a versão pública. Ele riu. — Ora, as histórias de sempre sobre você. Encantamentos, dragões voadores, homens levados pelo ar e através de paredes, invisíveis. Admira-me, Merlin, que se dê ao trabalho de vir por navio,, quando passa tão mal do estômago. Vamos lá, a história. Já era bem tarde quando voltei ao nosso alojamento. Ralf esperava-me, meio adormecido na cadeira do meu quarto, ao pé do fogo. Ergueu-se de um pulo ao ver-me, e tomou-me a harpa. — Tudo bem? — Sim. Vamos para o norte pela manhã. Não, obrigado, não> quero vinho. Bebi com o Rei, e bebi novamente, no átrio. — Dê-me a sua capa. O senhor parece cansado. Teve de cantar para eles? — É claro. — Mostrei-lhe um punhado de moedas de prata, e uma moeda de ouro. — É bom saber que se pode ganhar bem a vida, não? A moeda de ouro foi do Rei, um suborno para que eu parasse de cantar, pois, por eles, ainda estaria lá. Eu lhe disse que este era um país culto. Cubra a harpa grande. Levarei a outra comigo amanhã. — E enquanto ele obedecia: — E Branwen e o bebê? — Foram para a cama há umas três horas. Ela está deitada com as mulheres. Ficaram todas muito contentes de ter um bebê para tomar conta. — Fez o comentário final num tom de surpresa que me fez rir. — Ele parou de chorar? — Só há uma ou duas horas. E elas nem se importaram. — E decerto vai recomeçar quando o acordarmos, de madrugada. Agora, vá para a cama e durma o quanto puder. Partiremos ao alvorecer.

13 Há uma estrada que parte de Kerrec para o norte, a velha estrada romana que segue em linha reta pelos pastos nus e salgados. A uma milha dos limites da cidade, para além da estação de correio abandonada, avista-se a floresta à frente, como uma enorme onda que se acerca para engolir as planícies salgadas. É uma floresta vasta, profunda e agreste. A estrada corta-a, em direção ao grande rio que cruza a região do leste para o oeste. Quando os romanos dominavam a Gália, havia um forte e um povoado além do rio; e a estrada foi construída para servir-lhes; mas, agora, o rio marca a fronteira do reino de Hoel, e o forte é um dos baluartes de Gorlan. A floresta não pertence a nenhum dos reis; ela se estende por inúmeros quilômetros montanhosos, cobrindo o centro da península bretã. O tráfico é feito pela estrada; a terra selvagem é usada apenas por carvoeiros, lenhadores e foras-da-lei. Na época sobre a qual estou escrevendo, o lugar chamava-se Floresta Perigosa e tinha a reputação de ser encantado e assombrado. Uma vez deixada a estrada, e tomando-se um dos muitos atalhos que cortam o amontoado de árvores, pode-se viajar por dias sem ver o sol. Quando meu pai tinha um comando na Bretanha do Rei Budec, suas tropas mantinham a ordem na floresta, e até o rio onde terminava o reino de Budec e começava o de Gorlan. Árvores foram abatidas, limpando bem as duas margens da estrada, e atalhos subsidiários foram abertos, mas tudo isso foi negligenciado, e os arbustos e rebentos tomaram conta. A superfície de cascalho do caminho fora destruída pelo inverno, e, aqui e ali, havia pedaços de lama endurecida que no bom tempo viravam charcos. Partimos num dia frio e cinzento, com o vento sabendo a sal. Mas, embora o vento trouxesse a umidade do mar, não trouxe chuva, e a viagem foi regular. As árvores imensas, de cada lado, pareciam pilastras de metal a segurar o céu baixo e cinzento. Íamos em silêncio, e após algumas milhas, a vegetação rasteira crescente forçou-nos a andar em fila indiana. Eu ia na frente, com Branwen às minhas costas, e Ralf atrás, puxando a mula de carga. Eu notara como Ralf estava tenso, como virava a cabeça para um e outro lado para observar e escutar; mas, nada víamos ou ouvíamos, senão a vida da floresta no inverno: uma raposa, um par de veados, e uma sombra que talvez fosse um lobo a se esgueirar entre as árvores. Nada mais; nem barulho de cavalos, nem sinal de homens. Branwen não demonstrava medo. Quando olhava para trás, eu a via sempre serena, montada firmemente na mu1 a, com uma calma que não continha nem sinal de inquietude. Pouco tenho falado sobre Branwen, porque confesso que pouco me lembro dela. Recordando através dos anos, vejo apenas uma cabeça castanha debruçada sobre 3 bebê, um rostinho redondo, olhos baixos e voz tímida. Ela era uma moça quieta e, embora falasse naturalmente com Ralf, raramente me dirigia a palavra, profundamente consciente da minha pessoa, tanto como príncipe quanto como feiticeiro. Não parecia ter noção de que houvesse risco ou perigo em nossa viagem, nem estava excitada (como estaria a maioria das moças) por viajar para um novo país. A sua calma imperturbável não se devia à confiança em mim ou em Ralf; cheguei à conclusão de que era humilde e submissa por estupidez, e que a sua devoção pelo bebê cegava-a a tudo o mais. Era do tipo de mulher feita para ter e criar filhos, e, sem Artur, teria sofrido amargamente a perda do seu próprio bebê. Ela parecia ter esquecido isto, e passava as horas num contentamento sonhador que tornava os desconfortos da viagem toleráveis para Artur. Lá para o meio-dia, estávamos bem dentro da floresta. Os galhos se entrecruzavam acima de nós, e, no verão, teriam obstruído o céu como um escudo, mas, entre os ramos nus do inverno, divisávamos uma réstia de luz pálida, que era o sol tentando penetrar. Procurei um lugar abrigado onde pudéssemos

sair da estrada sem deixar muitos rastros, e de repente, quando o bebê acordou e começou a reclamar, vi uma falha na vegetação e virei o cavalo. Havia um atalho, estreito e sinuoso, que dava passagem no inverno. Entrava pela floresta por uns cem passos até dividir-se: um atalho aprofundando-se mais entre as árvores, o outro, não mais que uma trilha de veados, subindo sinuoso até a base de um espigão rochoso. Subimos a trilha, que seguia por entre pedras caídas, cobertas de samambaias mortas e secas, depois subia, passando por pinheiros, até terminar na grama desbotada de uma pequena clareira acima da rocha. Aqui, numa cavidade, o sol chegava com um leve calor. Desmontamos e estendi um pano no chão para a moça no local mais abrigado, enquanto Ralf amarrava os cavalos aos pinheiros e jogava-lhes alimento. Depois, sentamo-nos para comer. Eu fiquei na beirada da cavidade, encostado a uma árvore, de onde podia enxergar bem a estrada principal abaixo da rocha. Ralf ficou com Branwen. Fazia muito tempo desde o desjejum, e estávamos todos com fome. O bebê já estava aos berros desde quando a mula começou a subir a trilha íngreme. Agora, cessara os gritos contra o seio da moça, e sugava avidamente. A floresta estava muito silenciosa. A maioria dos animais selvagens aquieta-se ao meio-dia. A única coisa que se movia era um corvo, que pousou pesadamente num pinheiro próximo e começou a grasnar. Os cavalos acabaram a sua ração e cochilavam, de cabeça baixa. O bebê ainda mamava, mas, devagar, pegando no sono. Encostei-me ao tronco da árvore. Branwen murmurou algo para Ralf. Ele respondeu, e ela riu, depois, por entre o murmúrio das duas vozes jovens, distingui outro som, longínquo. O trote de cavalos. Ao meu sinal o rapaz e a moça silenciaram, abruptamente. Ralf levantou-se num piscar de olhos e veio ajoelhar-se ao meu lado para vigiar a trilha. Fiz sinal a Branwen para ficar onde estava. Nem precisava ter-me dado ao trabalho; ela lançou-nos um olhar inquiridor, mas, então, o bebê deu um soluço, e ela o pôs contra o ombro, dando-lhe batidinhas, toda a sua atenção concentrada nele de novo. Ralf e eu ajoelhamo-nos na beira da clareira, observando a trilha lá embaixo. Os cavalos (pelo barulho, eram dois) não podiam ser de lenhadores nem dos vagarosos carvoeiros. Cavalos a trote, na Floresta Perigosa, só podia significar uma coisa: barulho. E viajantes que, como nós, carregavam ouro (para o sustento do bebê) eram presa fácil para os fora-da-lei e homens desleais. Tolhidos por Branwen e Artur, não podíamos lutar nem fugir. Nem era fácil, por causa do bebê, ficar em silêncio e deixar o perigo passar tão perto. Eu tinha deixado bem claro a Ralf que, houvesse o que houvesse, ele teria que ficar com a moça e que, ao menor sinal de perigo, caberia a mim tentar afastá-lo. Ralf protestara, amotinara-se, mas, finalmente, compreendera e jurara obedecer. Portanto, quando dei as ordens, ele obedeceu. Sussurrei: — Só dois, acho. Se não vierem por aqui, não nos verão. Pegue os cavalos. E, pelo amor de Deus, diga à garota para fazer o bebê ficar quieto. — Ralf assentiu e deslizou até Branwen, sussurrando-lhe algo. Ela anuiu, placidamente, trocando o bebê de seio. Ralf foi como uma sombra para os pinheiros onde estavam os cavalos. Eu esperei, de olho na trilha. Os cavaleiros acercavam-se. Não havia outro som senão o do corvo, ainda grasnando no alto do pinheiro. Então, eu os vi. Dois cavalos, trotando em fila indiana: de má raça e mal alimentados, pisando sem cuidado e tendo que levar puxões dos cavaleiros, que os xingavam, a cada buraco ou raiz que encontravam no caminho. Os homens tinham jeito de bandidos. Estavam tão mal cuidados quanto os animais, pareciam meio selvagens, e perigosos. Vestiam uniformes velhos, e no braço de um deles havia um pedaço de emblema, que parecia de Gorlan. O sujeito de trás cavalgava descuidado, balançando-se na sela como bêbado, mas o da frente estava bem alerta, com a cabeça movendo-se para um e outro lado, como a de um cão farejando. Tinha um arco preparado. Através da bainha de couro Podre presa à

sua coxa, vi a faca longa afiada ao máximo. Estavam quase abaixo de mim. Iam passando. Não houvera ruído do bebê, nem dos nossos cavalos, escondidos entre os pinheiros. Só o corvo, balançando-se à luz do sol, ralhava, barulhento. Vi o sujeito com o arco erguer a cabeça. Falou algo por sobre o ombro, num sotaque cerrado que não identifiquei. Ele sorriu, mostrando uma fileira de dentes estragados, ergueu o arco, apontou e mandou uma flecha certeira. O corvo saiu do ramo com um grito, depois caiu, trespassado. Caiu a dois passos de Branwen e da criança, bateu as asas por uns dois segundos e ficou imóvel. Enquanto eu me agachava e corria para os pinheiros, ouvi as risadas dos dois homens. Agora, o arqueiro viria recuperar a sua flecha. Já podia escutá-lo a forçar o cavalo pelo mato. Peguei a flecha, com corvo e tudo, e lancei-a por sobre a beira da cavidade. Caiu entre as pedras. Do atalho, o homem não podia ter visto onde a ave caíra; havia uma chance de que ele acreditasse que ela tivesse voado até ali, e não passasse dali. Vi os olhos de Branwen, assustados e inquiridores, quando passei por e"a. Mas não se moveu, e o bebê continuou a dormir no seu seio. Fiz-lhe um sinal de estímulo, aprovação e aviso, ao mesmo tempo, e corri para o meu cavalo. Ralf aquietava os animais, juntando-lhes as cabeças e abafando-lhes olhos e narinas com a sua capa. Parei ao seu lado, à escuta. Os bandidos continuavam vindo. Não devem ter visto o corvo; prosseguiam para os pinheiros, sem parar. Tirei o freio do meu alazão das mãos de Ralf, e preparei-me para montar. O cavalo girou, pisando nos galhos secos e gravetos quebradiços. Ouvi o barulho dos animais dos bandidos, sendo freados bruscamente. Um deles falou: "Escute!", em bretão, e houve o raspar do metal quando as armas foram desembainhadas. Eu estava na sela, a minha arma já na mão. Virará a cabeça do alazão e estava com a boca aberta para gritar, quando ouvi novo grito vindo do atalho, e a mesma voz berrou: "Olhe, olhe lá!" Meu cavalo empinou quando algo saiu de dentro das moitas ao meu lado, passando tão perto que quase roçou-me a perna. Era uma corça, branca contra a floresta invernal. Correu por entre os pinheiros como um fantasma, subiu até a cavidade onde estiváramos, ficou bem à vista por um momento, parada na beirada, depois desapareceu morro abaixo, bem no caminho dos dois bandidos. Ouvi gritos de triunfo vindos lá de baixo, o estalar de um chicote, e o ruído dos cascos dos cavalos, arrastados de volta ao atalho e chicoteados para galoparem. Os homens davam gritos de caça. Pulei da sela, joguei as rédeas do alazão para Ralf, e voltei para o meu lugar na rocha. Cheguei lá bem na hora de ver os dois voltando, a todo pano, na mesma direção em que tinham vindo. À sua frente, como um vulto de névoa por entre as árvores nuas, fugia a corça branca. Depois, as gargalhadas, os gritos de caça, o ruído dos animais fustigados ecoaram pela floresta, e desapareceram.

14 O rio que limita o reino de Hoel corre pelo coração da floresta. Em alguns lugares, forma gargantas entre rampas cobertas de árvores, e por toda a parte central da floresta, o terreno é cortado por vales pequenos, onde riachos tributários serpenteiam ou jogam-se no principal. Mas há um lugar quase no centro da floresta em que o rio é mais largo e manso, formando uma bacia verde onde os homens araram os campos e desbastaram as florestas para fazer pastos ao redor da aldeia de Coll, que, em bretão, quer dizer Lugar Escondido. Aqui, no passado, houve um acampamento romano na estrada de Kerrec para Lanascol. Tudo que restava dele, agora, era o contorno quadrado onde a vala original fora cavada, ao lado do tributário. Aí situava-se a aldeia. Em dois lados dela, o rio formava uma defesa natural, ou fosso; no resto, a vala romana fora limpa e alargada, e enchida com água. Aí dentro, havia profundos mecanismos de defesa, coroados por paliçadas. A ponte fora de pedra nos tempos romanos; as bases ainda permaneciam, agora ligadas por tábuas. Embora ficasse perto da fronteira de Gorlan, a aldeia só era acessível a ela pela garganta estreita formada pelo rio, onde o caminho se desfizera, restando apenas um atalho pedregoso semelhante ao usado por lobos e selvagens, antes da chegada dos romanos. O nome de Coll era muito apropriado. A taverna de Brand ficava logo à entrada dos portões. A rua principal da aldeia era apenas uma ruela suja, mal pavimentada com seixos. A taverna ficava um pouco afastada da rua, à direita. Era um prédio baixo, de pedras unidas ao acaso com argamassa. As dependências, no quintal, eram simples casinholas cobertas de lama. O teto era novo, um bom trabalho de bambus entrelaçados cobertos por uma rede de cordas com pesos de pedras. A porta estava aberta, como convém a uma estalagem, com uma cortina de peles na abertura para afastar o frio. Pelo buraco da chaminé, em uma das extremidades, saía uma coluna de fumaça. Chegamos à noitinha, quando os portões estavam sendo fechados. Por todo canto, misturado à fumaça de turfa, sentia-se o cheiro de comida cozinhando. Via-se pouca gente; as crianças já tinham entrado há muito, e os homens tinham ido jantar. Aqui e ali, espreitava um cachorro faminto; uma velha passou apressada, um xale tapando o rosto e uma galinha cacarejando debaixo do braço; um homem conduzia uma junta de bois cansados pela rua. Escutei o bater de um malho de ferreiro, e senti o cheiro de cascos ferrados. Ralf olhou para a estalagem com ar incerto. — Parecia bem melhor em outubro, num dia de sol. Não é lá grande coisa. — Tanto melhor — retruquei. — Ninguém virá procurar o filho do Rei da Inglaterra num lugar desses. Agora, vá desempenhar o seu papel enquanto eu seguro os cavalos. Ele afastou a cortina e entrou. Ajudei Branwen a desmontar e ajeitei-a num dos bancos perto da porta. O bebê acordou e começou a choramingar, mas Ralf já voltava, acompanhado por um homem grandalhão e por um garoto. O homem devia ser Brand; fora um soldado e ainda tinha o porte militar, e vi a cicatriz de uma velha ferida nas costas de uma das mãos. Ele hesitou, sem saber como dirigir-se a mim. Falei rapidamente: — É o estalajadeiro? Sou Emrys, o cantor que devia trazer a sobrinha de sua mulher com o bebê. Não nos estavam esperando? E!e limpou a garganta.

— Claro, claro! Seja bem-vindo. Minha mulher tem estado à sua espera esta semana. — Viu o garoto parado, olhando, e falou bruscamente: — Que está esperando? Leve os cavalos lá para trás. O garoto correu a obedecer. Brand, movendo a cabeça na minha direção e indicando a porta da estalagem num gesto que era meio convite, meio saudação, disse: — Entrem, entrem. Estamos fazendo o jantar. — Depois, com ar de dúvida: — A gente aqui é meio durona, mas talvez... — Estou acostumado com gente durona — respondi, tranqüilamente, e entrei na sua frente. Não era época de muitas idas e vindas nas estradas, por isso o lugar não estava cheio. Havia uma meia dúzia de homens na obscuridade da sala iluminada por uma vela de sebo e pelo fogo de turfa. A conversa cessou à nossa chegada, e eu vi os olhares que se dirigiram à minha harpa e o murmúrio que correu. Nem ligaram para a moça carregando o bebê. Brand disse, um pouco depressa demais: — Por ali. Aquela porta, por trás do fogo. A porta fechou-se às nossas costas e lá estava Moravik, no quarto dos fundos, com as mãos nos quadris, à nossa espera. Como todas as pessoas que a gente não vê desde a infância, ela encolhera. Quando a vira pela última vez, eu era um menino de doze anos, alto para a idade. Ela me parecia muito maior do que eu, urna criatura volumosa e de voz imponente, rodeada pela aura de autoridade e decisões infalíveis que trazia desde o berçário. Agora, mal chegava à minha clavícula, mas ainda tinha o volume, a voz e (como logo descobriria) a autoridade. Embora me tivesse transformado no filho favorito do Grande Rei de toda a Inglaterra, para ela ainda era, obviamente, o menininho de quem tomara conta. As suas primeiras palavras foram características. — E que bela hora de chegar, com os portões já fechando! Você podia ter ficado na floresta a noite toda, e muito pouco ia sobrar no dia seguinte, com os lobos e coisas piores que andam por lá! E úmido, também, não duvido... Com todos os santos, olhe para a sua capa! Tire-a já, já, e venha para junto do fogo. Preparei um jantar especial para você. Lembro-me de tudo que gosta, e nunca pensei em vê-lo de novo à minha mesa, jovem Merlin, não depois daquela noite quando o lugar pegou fogo, e só se achou de você uns poucos ossos queimados no seu quarto, na manhã seguinte. — De repente, correu para mim e me abraçou. — Ah, Merlin, Merlinzinho, que bom ver você de novo! — E ver você, Moravik. — Abracei-a. — Parece cada vez mais moça desde que deixou Maridunum. E vou ficar devendo a você de novo, e ao seu bom marido. Nunca me esquecerei, e nem o Rei. Este é Ralf, meu companheiro, e esta — puxei a moça para a frente ,— é Branwen. com a criança. — Ah, o bebê! Que a boa Deusa nos ajude! Fiquei tão contente em vê-lo, Merlin, que até me esqueci dele! Venha para junto do fogo, menina, não fique aí na corrente de ar. Venha para junto do fogo e deixe-me vê-lo. . . Ah, o carneirinho, o carneirinho lindo... Brand tocou meu braço, com um sorriso largo. — E agora que ela o viu, vai esquecer do resto. Ainda bem que aprontou o jantar antes de pôr os olhos no bebê. Sente-se aqui, meu senhor. Eu mesmo vou servi-lo. Moravik tinha feito ensopado de carneiro, gostoso e quente. O carneiro das planícies salgadas da Bretanha é tão bom quanto o que temos em Gales. Serviu bolinhos com o ensopado, e pão quente fresquinho do forno. Brand trouxe uma garrafa de vinho tinto, muito melhor do que o feito na Inglaterra. Ele nos serviu enquanto Moravik se ocupava de Branwen e do bebê, cujo choro só se

acalmou quando Branwen deu-lhe o seio. O fogo luzia e crepitava, o quarto estava quente e cheirava a boa comida e bom vinho, a luz do fogo desenhava o formato do rosto da moça e da cabeça do bebê. Senti que alguém me observava, virei a cabeça e dei com os olhos de Ralf no meu rosto. Abriu a boca para falar, mas, neste momento, um clamor vindo da sala fez Brand largar a jarra de vinho em cima da mesa, pedir licença e sair apressado. Deixou a porta entreaberta. Escutei vozes que se elevavam, em persuasão ou discussão. Brand respondia, calmamente, mas o clamor continuava. Voltou, com ar preocupado, e fechou a porta atrás de si. — Meu senhor, o pessoal lá de fora viu-o entrar, e notou que trazia uma harpa. Bem, agora, é natural, meu senhor, querem uma canção. Tentei desconversar, disse que o senhor estava cansado, que tinha feito uma viagem longa, mas eles insistem. Dizem que lhe pagarão o jantar, se a canção for boa. — Bem, — respondi — e por que não? Ficou de queixo caído. — Mas. . . cantar para eles? O senhor? — Vocês não sabem de nada na Bretanha? — perguntei. — Sou realmente um cantor. E não seria a primeira vez que cantaria por dinheiro. Do seu lugar ao lado de Branwen, Moravik ergueu os olhos depressa. — Essa não! Das poções eu sabia, que o ermitão do moinho lhe ensinou, e até da mágica... — persignou-se. — Mas, música? Quem lhe ensinou? — A Rainha Olwen ensinou-me as notas. — Acrescentei para Brand: — Era a mulher do meu avô, uma moça galesa que cantava como um passarinho. Depois, quando estive aqui na Bretanha com Ambrósio, estudei com um velho professor. Sabem quem é? Um velho cantor cego que viajou e tocou em todos os países do mundo. Brand assentiu, como se soubesse de quem eu estava falando, mas Moravik olhou-me com ar de dúvida, balançando a cabeça. Suponho que quem criou um menino desde bebê, e nunca mais o viu desde que fez doze anos, não consegue acreditar que ele seja mestre em coisa alguma. Ri para eles. — Ora, já toquei até para o Rei Hoel, em Kerrec. Não que ele seja capaz de julgar, mas Ralf também já me ouviu. Perguntem a ele, se não me acham capaz de ganhar o meu jantar. Brand perguntou, duvidando: — Mas, o senhor não vai querer cantar para aquela gente, não é, meu senhor? — Por que não? Um menestrel ambulante canta onde é contratado para cantar. E é isso que sou enquanto estiver na Pequena Inglaterra. — Fiquei de pé. — Ralf, traga-me a harpa. Termine o vinho, e vá para a cama. Não espere por mim. Saí para a sala pública da taverna. Estava cheia, agora; havia uns vinte homens no calor enfumaçado. Quando entrei, gritaram: — O cantor, o cantor! — e: — Um conto, um conto! —' Abram espaço para mim, boa gente. — Vagaram um banquinho para mim ao pé do fogo, e serviram-me uma taça de vinho. Sentei-me e comecei a afinar a harpa. Calaram-se, observando-me. Eram gente simples, e esta gente gosta de contos maravilhosos. Quando perguntei o que queriam, pediram este e aquele conto de deuses e batalhas e encantamentos, e afinal (creio que pensando na criança no quarto ao lado) contei-lhes a história do Sonho de Macsen. Esta é uma história de mágica,

como as outras, embora o seu herói seja o comandante romano Magno Máximo, que foi bem real. Os celtas chamam-no de Macsen Wledig, e a lenda do Sonho de Macsen nasceu nos vales cantantes de Dyfed e Powys, onde cada homem diz que o Príncipe Macsen é seu, e as histórias passaram de boca em boca, de tal jeito que, se o próprio Máximo aparecesse para contar a verdade, ninguém lhe daria crédito. É uma história longa, o sonho, e cada cantor tem a sua versão. Esta foi a que eu cantei aquela noite: Macsen, Imperador de Roma, foi caçar, e tendo ficado cansado, deitou-se em pleno dia para dormir às margens do grande rio que corre para Roma, e sonhou um sonho. Sonhou que seguiu o rio em direção à nascente, e chegou à mais alta montanha do mundo; e quando seguiu um rio que corria entre ricos campos e grandes bosques chegou à foz do rio, e lá encontrou uma cidade de torres e castelos ao redor de um belo porto. E, no porto, havia um navio de ouro e prata, sem ninguém a bordo, mas com as velas prontas e trêmulas ao vento leste. Atravessou uma passarela feita de osso de baleia, e o navio partiu. E, logo, após um crepúsculo e um crepúsculo, chegou à mais bela ilha do mundo, e deixando o navio, cruzou a ilha de mar a mar. E, na costa ocidental, viu uma ilha próxima, do outro lado de um desfiladeiro estreito. E na praia onde estava havia um belo castelo, com o portão aberto. Macsen entrou no castelo e achou-se num grande átrio com pilastras douradas, e as paredes o ofuscavam com ouro e prata e pedras preciosas. No átrio, dois jovens jogavam xadrez num tabuleiro de prata, e, perto deles, um velho numa cadeira de marfim esculpia as peças em cristal. Mas, Macsen não enxergava esses esplendores. Mais linda que o ouro e a prata e as pedras preciosas, era uma donzela, imóvel como uma rainha numa cadeira dourada. No momento que a viu, o Imperador apaixonou-se, e erguendo-a da cadeira, abraçou-a e pediu-lhe que fosse sua esposa. Mas no momento do abraço ele acordou, e achouse no vale perto de Roma, com os companheiros observando-o. Macsen pôs-se de pé e contou o sonho; e mensageiros foram enviados para os quatro cantos do mundo, para encontrar o país que e visitara, e o castelo com a linda donzela. E, depois de muitos meses e muitas viagens perdidas, um homem encontrou-os e veio contar 3 seu amo. A ilha, a mais linda do mundo, era a Inglaterra, e o castelo à beira do mar ocidental era Caer Seint, em Segontium, e a ilha do outro lado do estreito era Mona, ilha dos druidas. Assim, Macsen viajou até a Inglaterra, e encontrou tudo exatamente como tinha sonhado, e pediu a mão da donzela ao pai e aos irmãos, e fê-la Imperatriz. Seu nome era Elen, e ela deu a Macsen dois filhos e uma filha, e em sua honra ele construiu três castelos, em Segontium, Caerleon e Maridunum, que se chamou Caer Myrddin em honra do deus das alturas. Depois, por ter Macsen ficado na Inglaterra e esquecido Roma, fizeram outro imperador em Roma, que colocou seu estandarte nas muralhas e desafiou Macsen. Então, Macsen reuniu um exército de ingleses, e com Elen e os irmãos ao lado, dirigiu-se para Roma; e conquistou Roma. A partir de então, permaneceu em Roma, e nunca mais voltou à Inglaterra, mas os dois irmãos de Elen trouxeram as forças inglesas de volta ao lar, e, até hoje, os descendentes de Macsen Wledig reinam na Inglaterra. Quando terminei, e a última nota se desfez no silêncio enfumaçado, houve um rugido de aplausos, copos batendo nas mesas e vozes ásperas pedindo mais música, e mais vinho. Deram-me outra taça, e enquanto eu bebia e descansava para recomeçar, os homens voltaram a conversar entre si, mas baixinho, para não perturbar os pensamentos do cantor. Ainda bem que não podiam adivinhá-los; imaginei o que fariam se soubessem que o último e mais recente descendente de Máximo estava dormindo do outro lado da parede. Esta parte da lenda, ao menos, era verdadeira; a família do meu pai descendia diretamente do casamento de Máximo com a princesa galesa Elen. O resto da lenda, como sempre acontece, era uma distorção sonhadora da verdade,

como se um artista, refazendo um mosaico destruído, tivesse utilizado novas e brilhantes cores, deixando apenas aparecer, aqui e ali, pedaços da pintura original. Os fatos eram estes: Máximo, espanhol de nascimento, comandara os exércitos na Inglaterra sob o General Teodósio, na época das invasões constantes dos saxões e pictos, e quando a província romana da Inglaterra parecia estar desmoronando. Juntos, os comandantes consertaram e conservaram a Muralha de Adriano, e o próprio Máximo reconstruiu e guarneceu a grande fortaleza de Segontium, em Gales, fazendo dela seu quartel-general. Este é o lugar que os ingleses chamam de Caer Seint; é o "belo castelo" do Sonho, e deve ter sido aí que Máximo encontrou a sua Elen galesa, e a desposou. Depois, no ano que Ector denominou de Ano da Inundação, foi Máximo (embora seus inimigos lhe negassem o mérito) quem, após anos de luta feroz, rechaçou os saxões e construiu as províncias de Strathclyde e Manau Guotodin, estados-tampão, para abrigar em paz o povo da Inglaterra, o seu povo. Já "Príncipe Macsen" para a gente de Gales, foi declarado Imperador pelas suas tropas, e assim podia ter permanecido, não fossem os acontecimentos, do conhecimento geral, que o fizeram voltar para vingar o assassinato do seu velho general, e marchar sobre a própria Roma. Nunca mais voltou; nisto, o Sonho diz a verdade, mas não porque tivesse conquistado Roma e fosse governá-la. Ele foi vencido e executado, e, embora algumas das tropas britânicas que o acompanharam tivessem retornado e jurado lutar sob sua viúva e filhos, a curta paz tinha terminado. Com a morte de Máximo, a Inundação voltou, e, desta vez, não houve uma espada que a detivesse. Por essa razão, nos anos negros que se seguiram, o período curto da paz vitoriosa de Máximo pareceu aos homens uma época perdida e dourada, como as que os poetas cantam. Por isso, a lenda de "Macsen, o Protetor" cresceu e cresceu até que o seu poder envolveu a terra, e, nas horas negras, os homens falavam nele como um salvador enviado pelos deuses... Meus pensamentos retornaram ao bebê que dormia na palha. Tomei de novo a harpa e, quando se calaram, cantei outra canção. Um menino nasceu, Um rei do inverno. Antes do negro mês Ele nasceu, E fugiu no mês sombrio Para se abrigar Com os pobres. Ele virá, Com a primavera, No verde mês E no mês dourado. E brilhante Será a chama

Da sua estrela. — Pagaram-lhe o jantar? — perguntou Moravik. — Muita bebida e três moedas de cobre. — Coloquei-as sobre a mesa, com a sacola de couro com o ouro do Rei ao lado. — Isto é para cuidarem da criança. Mandarei mais quando for necessário. Você e Brand não se arrependerão. Você já cuidou de reis antes, Moravik, mas nunca de um rei como este será. — Que me importam os reis? Ele é apenas uma criança, que nunca deveria ter viajado com este tempo. Devia é estar em casa, no seu quartinho, e pode dizer ao seu Rei Uther que fui eu quem disse! Ora, ouro! — Mas a bolsa de couro tinha desaparecido nas suas saias, e as moedas com ela. — A viagem fez-lhe mal? — indaguei rapidamente. — Que eu veja, nenhum. Ele é um menino forte, que vai florescer como as minhas outras crianças. Ele já está na cama, e os dois jovens também, pobrezinhos, portanto, abaixe a voz e deixe que durmam. Branwen e a criança estavam num catre no canto do quarto, longe do fogo. A cama ficava embaixo de um lance de degraus de madeira que conduzia a uma plataforma, como um celeiro que usam para o feno nos estábulos dos reis. E lá havia feno, e os nossos animais, trazidos do quintal dos fundos, estavam amarrados sob o celeiro. Um burrinho, que supus ser de Brand, estava lá com eles. — Brand trouxe-os cá para dentro — disse Moravik. — Não há muito espaço, mas não quis deixá-los no estábulo. Aquele alazão poderia ser reconhecido como sendo do Rei Hoel, e haveria perguntas difíceis de responder. Pus você lá em cima, com o rapaz. Não é o que está acostumado a ter, mas é macio e limpo. — Estará ótimo. Mas não me mande ainda para a cama, Moravik. Posso ficar acordado conversando com você? — Hum! Mandar você para a cama! É, sempre foi mansinho e falou macio, e sempre fez exatamente o que queria... — Sentou-se ao pé do fogo, abrindo as saias, e indicou um banquinho. — Vamos, sente-se e deixe-me olhá-lo. Santa Mãe, que mudança! Quem iria pensar, lá em Maridunum, de pobre que você era, que iria virar filho do Grande Rei, e doutor, e músico... e sei lá mais o quê! — Mágico, você quer dizer. — Bom, isso não me surpreendeu, você vivia fugindo para junto do velho em Bryn Myrddin. — Persignou-se e segurou um amuleto preso ao pescoço. Eu já o vira brilhando à luz do fogo; não se podia dizer que fosse um símbolo cristão. Então, Moravik ainda cercava-se de todo talismã que pudesse encontrar. Nisto, era como a maioria da gente criada na Floresta Perigosa, com as suas lendas de assombrações, e coisas vistas ao crepúsculo e ouvidas no vento. Balançava a cabeça. — É, sempre foi um menino estranho, solitário, dizendo coisas. . . Sempre soube demais. Eu achava que era porque escutava às portas, mas acho que estava enganada. "O Profeta do Rei", é como o chamam agora. E os feitos que ouvi contar, se gente puder acreditar na metade, o que eu duvido... Vamos, conte-me. Conteme tudo.

O fogo já quase virará cinzas. Na sala ao lado havia silêncio; os fregueses tinham ido para casa, ou dormiam ali mesmo. Brand subira a escada há cerca de uma hora, e roncava baixinho ao lado de Ralf. Branwen e a criança dormiam imóveis, no canto próximo aos animais que cochilavam. — E agora, isto — falou Moravik, suavemente. — Este bebê, você me diz que é filho do Grande Rei Uther que não o quer. Por que você é que tem de tomar conta dele? Pensei que houvesse outros a quem ele pudesse pedir, que pudessem fazê-lo com mais facilidade. — Não sei quanto a Uther — respondi — mas, quanto a mim, a criança foi um legado que me deram meu pai e os deuses. — Os deuses? — indagou vivamente. — Isto lá é jeito de um bom cristão falar? — Você se esquece que nunca fui batizado. — Ainda não foi? É, eu me lembro que o velho Rei nunca deixou. Bom, não é da minha conta, só da sua. E essa criança, já foi batizada? — Não. Ainda não houve tempo. Se você quiser, pode batizá-la. — "Se você quiser"? Que conversa é essa? E de que "deuses" falava há pouco? — Também não sei. Eles... ele... se deixará conhecer na hora apropriada. Mas, faça com que o menino seja batizado, Moravik. Quando deixar a Bretanha, ele vai ser criado numa casa cristã. Ficou satisfeita. — Logo que for possível. Ele ficará bem com o Senhor e os seus santos, deixe comigo. E já pendurei o talismã no berço e disse as nove rezas. A moça diz que ele chama-se Artur. Que tipo de nome é esse? — Você diria Artos — respondi. É o nome que significa urso em celta. — Mas, não o chame por este nome. Dê-lhe outro nome qualquer e esqueça este. — Que tal Emrys? Ah, sabia que você iria sorrir... Eu sempre esperei por uma criança a que eu pudesse dar o seu nome. — Eu tive o nome de meu pai Ambrósio. — Experimentei os nomes, em latim, depois na língua celta. "Artório Ambrósio, Último dos Romanos.. . Artos Emrys, Primeiro dos Britânicos. . ." Em voz alta dirigi-me sorrindo a Moravik: — Está bem, dê-lhe esse nome. Uma vez, há muito tempo, previ a vinda do "Urso", um rei chamado Artur, que uniria passado e futuro. Eu tinha esquecido, até agora, onde ouvira este nome antes. Batize-o com ele. Ficou calada por alguns minutos. Seus olhos examinavam o meu rosto. — Um legado para você, disse. Um rei como nunca houve igual. Então, ele será Rei? Jura que será Rei? — E, repentinamente: — Que cara é essa, Merlin? Fez a mesma cara há pouco, quando a moça deu de mamar ao menino. O que há? — Não sei... — Falei devagar, fitando os restos do fogo, quase que só brasas. — Moravik, fiz o que fiz porque Deus (seja ele quem for) ordenou-me. De dentro da escuridão disse-me que o filho de Uther e Ygraine, concebido aquela noite em Tintagel, seria o Rei de toda a Inglaterra, seria grande, expulsaria os saxões das nossas praias e faria do nosso pobre país um grande todo. Nada fiz por livre vontade, mas apenas para que a Inglaterra não se perdesse na escuridão. De dentro do silêncio e do fogo, chegou-me esta certeza. Depois, durante algum tempo, nada vi nem ouvi, e perguntei a mim

mesmo se não me tinha enganado, se o meu amor por meu pai e pelo seu país me levara a imaginar visões onde havia apenas esperança e desejo. Mas, agora, é como o deus me disse. — Olhei para ela. — Não sei se posso fazê-la entender, Moravik. Visões e profecias, deuses e estrelas e vozes falando na noite... coisas turvas nas chamas e nas estrelas, mas reais como a dor no sangue, e furando o cérebro como gelo. Mas, agora... — fiz nova pausa — agora não é só a voz de um deus ou uma visão, é uma criancinha humana com pulmões poderosos, um bebê como qualquer outro, que chora, e mama, e molha os seus cueiros. As visões não levam isto em conta. — Os homens têm as visões — disse Moravik. — As mulheres têm os filhos que vão cumpri-las. Esta é a diferença. E quanto àquele, — indicou o canto — veremos. Se viver (e por que não viverá, se é bem forte?), se viver tem uma boa chance de ser Rei. A nossa parte é fazer com que chegue a homem. Farei a minha parte como você fez a sua. O resto é com o bom Deus. Sorri para ela. Seu senso comum tirara um peso dos meus ombros. — Você está certa. Fui um tolo em duvidar. O que tiver q ser, será. — E com isso, vamos dormir. — Sim. Vou para a cama, agora. Você tem um bom marido Moravik. Alegro-me. — Nós dois juntos vamos proteger o seu Reizinho, rapaz. — Tenho certeza — falei, e depois de conversarmos mais um pouquinho, subi a escada para a cama. Sonhei naquela noite. Estava num campo que conhecia perto da cidade de Kerrec, de Hoel. Era um santuário antigo, onde certa vez eu vira um deus a caminhar. No meu sonho sabia que viera na esperança de revê-lo. Mas a noite estava vazia. Tudo que se movia era o vento. No céu, brilhavam as estrelas indiferentes. Na sua abóbada negra, suave entre as estrelas mais vividas, ficava a longa esteira de luz que chamam de Galáxia. Não havia nuvens. Ao meu redor estendia-se o campo, bem como eu recordava, fustigado pelo vento e semeado com o sal do mar, com espinheiros nus ao longo dos baixios, e, solitária no centro, uma única pedra gigante. Caminhei para ela. À luz difusa das estrelas, eu não deixava sombra, nem havia sombra perto da pedra. Só o vento embaraçando a grama, e, por trás da pedra, o caminhar suave das estrelas, que não é movimento, mas a respiração dos céus. A noite continuava vazia. Meus pensamentos dardejavam para a concha silenciosa e voltavam, cansados. Eu tentava, com todas as parcelas de habilidade e poder por que lutara e sofrerá, recordar-me do deus cuja mão estivera sobre a minha cabeça, então, e cuja luz me conduzira. Rezei em voz alta, mas nada ouvi. Recorri à minha mágica, meu dom de olhos e mente que os homens chamam de Visão, mas nada veio. Até a minha visão humana estava falhando, a noite e as estrelas se confundindo num borrão, como se vistas através de água corrente... O céu se movia. A Terra estava parada, mas o céu se movia. A Galáxia estreitou-se num feixe de luz, depois congelou-se como um riacho no inverno. Uma seta de gelo... não, uma lâmina, estendia-se no céu como uma espada real, com grandes gemas reluzindo no cabo. Vi esmeralda, e topázio e safiras, que, na língua das espadas, significam poder e alegria e justiça e uma morte limpa. Por muito tempo lá ficou a espada, como uma arma recém-Polida à espera da mão que a erga e a use. Depois, moveu-se sozinha. Não como se para uma batalha, cerimônia ou um esporte, como uma lâmina desliza para a sua bainha, assim deslizou ela, suavemente, para a pedra gigante, encaixando nela como a espada na bainha.

Então, só ficou o campo vazio, e o vento uivante e a pedra cinzenta. Acordei na escuridão do quarto da estalagem, com uma única estrela, pequena e brilhante, aparecendo por um buraco no teto. Mais abaixo, os animais respiravam tranqüilos, e, à minha volta, os que dormiam roncavam e mexiam-se. O lugar cheirava a cavalos e a fumaça de turfa, a feno e a ensopadinho de carneiro. Fiquei deitado de costas, imóvel, olhando a estrelinha. Não liguei muito para o sonho. Vagamente, lembrei-me que já houvera menção a uma espada, e, agora, este sonho... Mas deixei para lá. Voltaria. Eu saberia. Deus estava comigo de novo; o tempo não mentira. E, dentro de uma ou duas horas, amanheceria.

Livro 2 - A PROCURA

1 Os deuses, todos eles, devem estar acostumados à blasfêmia até questionar as suas intenções, e indagar-se, como eu fizera, quem eram ou se realmente existiam, era a própria blasfêmia. Agora eu sabia que o meu deus estava de novo comigo, que a sua intenção estava se realizando, e, embora ainda não visse tudo claramente, sabia que a sua mão estaria sobre mim na hora certa, e que eu seria guiado, ordenado, conduzido. . . não importa de que forma. Isto ele também me mostraria. Mas não agora. O presente era meu. Os sonhos da noite desapareceram com as estrelas que os criaram. Esta manhã, o vento era apenas vento, e a luz do sol, apenas luz. Nem olhei para trás. Não temia por Ralf ou pela criança. A Visão pode ser desagradável de possuir, mas a previsão da catástrofe livra o seu possuidor dos pequenos aborrecimentos do dia-a-dia. Um homem que já viu a sua velhice e o seu amargo fim não se preocupa com o que irá acontecer-lhe aos vinte e dois anos. Não tinha dúvidas quanto à minha segurança, nem quanto à do menino cuja espada eu vira, já por duas vezes, desembainhada e brilhando. Portanto, eu apenas me preocupei com a próxima viagem por mar, que me levou, sofrendo mas com vida, até o porto de Massilia, no Mar Interior, onde cheguei num dia claro de fevereiro que, na Inglaterra, consideraríamos de verão. Lá chegado, não importava quem me visse ou relatasse a minha presença. Se soubessem na terra que o Príncipe Merlin fora visto na Gália do Sul ou na Itália, talvez os inimigos de Uther me vigiassem 'r uns tempos, buscando uma pista para o principezinho desapareço. Eventualmente, desistiriam e buscariam alhures, mas, então, a pista já estaria fria. Em Kerrec, a visita do cantor sem importância já teria sido esquecida, e Ralf, anônimo na taverna da floresta, poderia ir e vir, sem medo, de Coll para o castelo de Kerrec, com as notícias dos progressos do menino, as quais Hoel me transmitiria. Assim, uma vez desembarcado em Massilia, e tendo-me recobrado da viagem, iniciei os preparativos para a minha viagem para o leste. Desta vez, sem necessidade de disfarces, viajei com conforto, embora não em estilo principesco. Nunca dei importância às aparências; o hábito não faz o monge; mas iria visitar amigos, e não queria envergonhá-los. Assim, contratei um criado, comprei cavalos, mulas de carga e um escravo para cuidar deles, e parti para o meu primeiro destino, Roma. A estrada que sai de Massilia é uma fita de poeira reta e castigada pelo sol que acompanha a costa, passando pelas aldeias construídas por veteranos de César, cercadas de olivais e vinhedos bem cuidados. Partimos ao amanhecer, com as sombras dos nossos cavalos às costas. A estrada ainda estava orvalhada, e o ar cheirava a estrume, e a ciprestes, e a fumaça dos fogos matutinos. Galos cantavam e cães corriam latindo atrás dos nossos cavalos. Às minhas costas os servos conversavam, em voz baixa para não me incomodar. Pareciam homens decentes; o liberto, Gaio, já servira antes e fora bem recomendado. O outro, Stilicho, era filho de um comerciante de cavalos siciliano, que se enchera de dívidas e vendera o filho para pagá-las. Stilicho era um rapazola magro, vivaz, de olhar brejeiro e ótima disposição. Gaio era solene e eficiente, muito mais cônscio da minha dignidade do que eu mesmo. Quando descobriu o meu status real, assumiu um ar pomposo que me divertiu, e impressionou tanto a Stilicho que fê-lo ficar em silêncio por uns vinte minutos. Creio que, daí por diante, foi usado com freqüência para obter serviço, como ameaça ou suborno. Não sei que meios os dois empregaram, só sei que a minha viagem foi um milagre de tranqüilidade e conforto. Enquanto meu cavalo erguia as orelhas para o sol da manhã, senti a minha disposição adaptar-se ao brilho crescente. Era como se as dores e dúvidas do último ano estivessem ficando para trás, como a sombra do cavalo. Enquanto seguia para o leste com a minha pequena comitiva, pela primeira vez na

vida eu era livre; livre do mundo à minha frente-, livre das obrigações às minhas costas. Até este momento, sempre vivera para um objetivo; procurara e depois servira meu pai, e, após sua morte, esperara com sofrimento até a chegada de Artur, para que a minha servidão recomeçasse. Agora, a primeira parte da minha tarefa estava terminada; o menino estava em segurança e, com a ajuda dos meus deuses e das estrelas, continuaria assim. Ainda era moço e, olhando para o sol, solitário ou livre, eu via um mundo novo à minha frente e um período de tempo para viajar e conhecer as terras de que ouvira falar em menino. Eventualmente, cheguei a Roma, e caminhei nos morros verdes por entre os ciprestes e conversei com um homem que conhecera meu pai com a minha idade atual. Fiquei na sua casa e perguntei-me como pudera achar a casa de meu pai em Kerrec um palácio, ou considerar Londres uma grande cidade, ou mesmo uma cidade. Depois, fui de Roma a Corinto, atravessei os vales dos Argolid, onde cabras pastavam nas colinas quentes de verão e um povo mais selvagem que elas vivia nas ruínas de cidades construídas por gigantes. Aqui vi pedras maiores que a Dança dos Gigantes, erguidas e colocadas como a canção me ensinara, e mais para o leste vi terras mais vazias, com pedras gigantes ao sol do deserto, e homens que viviam como alcatéias, mas que faziam música como os passarinhos, maravilhosa como a das estrelas no seu curso. Eles conheciam melhor que quaisquer outros homens os movimentos das estrelas; suponho que o seu mundo é feito dos espaços vazios do deserto e do céu. Passei oito meses com um homem perto de Sardis, na Maeonia, que calculava com absoluta precisão, e com cuja ajuda eu teria erguido a Dança dos Gigantes na metade do tempo, mesmo se ela fosse duas vezes maior. Outros seis meses passei na costa de Mysia, perto de Pérgamo, num grande hospital que atende a ricos e pobres. Aí aprendi muita novidade na arte de curar; em Pérgamo empregam a música com as drogas para curar a mente do homem com sonhos, e o seu corpo depois. Foi, na verdade, o deus quem me guiou para aprender música, em criança. E, o tempo todo, em todas as viagens, aprendi noções de idiomas estranhos, e ouvi novas canções e novas músicas, e vi deuses estranhos serem adorados, alguns em lugares sagrados, outros em profanos. Nunca se deve fugir do saber, venha de onde vier. Durante todo este tempo, eu tinha certeza absoluta de que na Bretanha, na Floresta Perigosa, o menino crescia e vicejava em segurança. Mensagens ocasionais de Ralf aguardavam-me nos lugares combinados com o Rei Hoel. Deste modo, eu soube que Ygraine engraxara de novo, e dera à luz uma menina chamada Morgiana. É lógico que, quando as lia, as cartas já estavam ultrapassadas, mas, no que se referia a Artur, eu tinha outra fonte de informações: via no fogo. Foi num braseiro, acendido para evitar a friagem de uma noite romana que vi Ralf fazer a viagem pela floresta para a corte de Hoel. Viajou sozinho e sem ser notado, e quando partiu na escuridão nevoenta para a viagem de volta, não foi seguido. Nas profundezas da floresta eu o perdi, mas, mais tarde, a fumaça dissipou-se para que eu visse seu cavalo no estábulo, e Branwen a sorrir no quintal ensolarado, com o bebê no colo. Várias outras vezes eu acompanhei as viagens de Ralf, mas sempre a fumaça ou a escuridão escondiam, como névoa, o rio, e não podia ver a taverna, ou Ralf cruzando a porta. Era como se o local estivesse protegido, mesmo de mim. Ouvira dizer que a Floresta Perigosa da Bretanha era terra encantada; posso confirmar que é verdade. Duvido que qualquer mágica menos poderosa que a minha conseguisse espiar pela muralha de névoa que escondia a estalagem. De tempos em tempos eu via algo, de relance. Certa vez vi o bebê brincando com uma ninhada de cachorrinhos no quintal, com a cadela a lamber-lhe o rosto e Branwen a olhar sorrindo, até que Moravik saiu ralhando da cozinha, apanhou o bebê, limpou-lhe o rosto com o avental e carregou-o para dentro. Outra vez, eu o vi montado no cavalo de Ralf que se dessedentava no bebedouro, e, outra vez, na sela, na frente de Ralf, agarrando a crina com as duas mãos, enquanto o animal trotava para a beira do rio. Nunca o vi de perto,

nem claramente, mas via o suficiente para saber que estava bem e crescia forte. Então, quando estava com quatro anos, chegou a hora de Ralf levá-lo da proteção da floresta para a do Conde Ector. Na noite em que o seu navio partiu do Mar Pequeno de Morbihan, eu estava sob o negro céu da Síria, onde as estrelas parecem ser duas vezes maiores e mais ardentes do que na Inglaterra. O fogo para o qual eu olhava era o de um pastor, aceso contra lobos e 1 leões da montanha, e ele dera-me a sua hospitalidade quando eu e J os criados fomos surpreendidos pela noite nas montanhas acima de Berytus. O fogo era alto e vivo dentro da noite. Para além dele, eu podia ouvir Stilicho falando, a resposta murmurada do pastor, e risadas abafadas pelos tons graves de Gaio, até que o rugido e o crepitar do fogo abafaram tudo. E, então, as imagens chegaram, fragmentadas a princípio, mas claras e vividas como as visões que eu tivera, quando menino, na gruta de cristal. Vi a viagem inteira, cena por cena, na visão de uma noite, como é possível sonhar uma vida inteira entre a noite e a manhã.. . Foi a primeira vez que vi Ralf claramente desde que o deixei na Bretanha. Mal o reconheci. Era agora um moço alto, com jeito de lutador, e com um ar de decisão e responsabilidade que lhe caía muito bem. Tinha deixado à escolha dele, ê de Hoel, se haveria' necessidade de uma escolta armada para conduzir sua "mulher" e seu "filho" até o navio; eles resolveram não arriscar, mas o nosso segredo foi bem protegido. Hoel arranjou para que uma carroça com mercadorias fosse despachada pela floresta sob a guarda de uma meia dúzia de soldados; quando foi para Kerrec e para o cais onde estava o navio, nada mais natural que o jovem e a sua família desfrutassem da proteção concedida aos fardos (dos quais nunca soube o conteúdo). Branwen foi na carroça, onde, finalmente, também foi Artur. Ele já dispensava os cuidados femininos; preferia ficar com os soldados, e foi preciso que Ralf exercesse a sua autoridade para fazer com que fosse na carroça com Branwen, ao invés de na sela na frente da tropa. Depois que o pequeno grupo chegou ao navio e embarcou, quatro dos soldados embarcaram com Ralf, aparentemente para levar aqueles fardos preciosos ao seu destino. E, assim, o navio largou. A luz brilhava no mar iluminado pelo fogo, e o naviozinho tinha velas vermelhas enfunadas contra um céu de crepúsculo, que foram diminuindo até sumir no fogo crepitante. Foi uma alvorada vivida, talvez apenas por força das chamas sírias, que o navio atracou em Glannaventa. Vi as amarras serem lançadas, e o grupo atravessou a passarela indo ao encontro de um Ector moreno e sorridente, acompanhado de um grupo de homens armados. Não estavam com insígnias. Tinham trazido uma carroça para a carga, que foi abandonada mal saíram da cidade, e de onde retiraram uma liteira para Branwen e Artur, após o que, o grupo partiu a toda pressa para Galava, pela estrada militar que cruza as montanhas situadas entre o castelo de Ector e o mar. A estrada sobe por duas gargantas íngremes, entre as quais fica um vale baixo e pantanoso, sempre inundado até quase o fim da primavera. A estrada é ruim, foi destruída por temporais, torrentes e geadas de inverno, e nos lugares onde houve deslizamentos dos morros circundantes, ela desapareceu, deixando apenas vestígios dos velhos atalhos dos tempos pré-romanos. Terra selvagem, caminho selvagem, mas servia para um grupo de homens bem armados, num dia de maio. Eu os observava a trotar, a liteira a balançar entre as mulas fortes, pela madrugada e pelo dia que as chamas iluminavam, até que, com a chegada da noite, o começo da garganta escureceu com névoa, dentro qual vi o brilho das espadas que anunciavam o perigo. O grupo de Ector vinha descendo do segundo cume, diminuindo o passo num local rodeado de rochedos. Era uma descida curta daí até o vale largo e à estrada boa que conduzia à nascente onde situase o castelo. Na distância, ainda iluminados pelo fim de tarde, viam-se grandes árvores, pomares e o verde macio das terras cultivadas. Mas, na garganta, entre os rochedos cinzentos e a névoa crescente, estava escuro, e os cavalos escorregaram e tropeçaram no entulho deixado por uma torrente que cruzava o caminho e que fizera desmoronar a estrada. O barulho da água deve ter abafado os demais sons.

Ninguém viu os outros homens, montados e armados, à espera na obscuridade da névoa. O Conde Ector vinha à frente, e no meio, rodeada pela tropa, seguia a liteira, balançando-se entre as mulas, com Ralf cavalgando bem juntinho. Acercavam-se da emboscada; estavam ao lado dela. Vi Ector virar a cabeça bruscamente, depois frear o cavalo tão de repente que ele tentou empinar, mas terminou caindo, escorregando no entulho, enquanto Ector erguia o braço já de arma na mão. Os soldados, procurando cercar a liteira o melhor possível no declive, prepararam-se para lutar. No momento do ataque atordoante, vi o que, aparentemente, ninguém ainda vira; outras sombras que surgiam detrás dos rochedos. Creio que gritei. Não fiz barulho, mas a cabeça de Ralf levantou-se como a de um cão que ouve o assobio do dono. Ele berrou, ! girando o seu cavalo. Outros acompanharam-no, enfrentando o novo ataque com um vigor que arrancava chispas das espadas, como o malho do ferreiro arranca da bigorna. Forcei a vista para tentar distinguir os atacantes na visão. Não consegui. A luta corpo a corpo, as espadas brilhantes, os gritos, os ] cavalos virando-se.. . depois os atacantes desapareceram na neblina tão subitamente como haviam surgido, deixando um de seus homens morto sobre o entulho, e levando outro a sangrar por sobre a cela. Não havia vantagem em persegui-los pelas montanhas cobertas de neblina e crepúsculo. Um dos soldados pegou o homem caído, jogando-o em cima de um cavalo. Vi Ector fazer sinal e o soldado revistou o corpo, procurando identificação, mas nada achou. Depois, a guarda formou de novo ao redor da liteira e prosseguiu. Vi Ralf, disfarçadamente, enrolar um pano no braço esquerdo, que uma espada conseguira acertar, apesar da proteção do escudo. Logo depois, ele inclinou-se na sela e disse, rindo, para dentro da liteira: — Mas, você ainda não tem tamanho! Daqui a uns dois anos prometo-lhe que arranjarei uma espada que lhe sirva. — Depois, fechou bem fechadas as cortinas da liteira. Quando forcei a vista para ver Artur, a fumaça escureceu a cena e o pastor gritou para o cachorro, e eu estava novamente na colina cheirosa, e a lua surgia acima das ruínas do templo da Deusa, onde só as corujas restaram. E assim passaram-se os anos, e aproveitei minha liberdade para viagens que descrevo alhures; aqui não há lugar para isso. Foram para mim anos leves e proveitosos, e a mão do deus pousava em mim suavemente, e me permitia ver tudo que eu pedia para ver; mas, durante todo este tempo, não houve mensagem, nem estrela andante, nada que me chamasse para voltar. Certo dia, quando Artur estava com seis anos, e eu ensinava e trabalhava no hospital perto de Pérgamo, a mensagem chegou. Estávamos no começo da primavera, e o dia inteiro a chuva chicoteou as rochas, escurecendo as pedras calcárias e abrindo rombos no caminho que conduz às celas do hospital à beira-mar. Não houve fogo para me trazer a visão, mas, naquele lugar, os deuses estão à espera em cada pilastra, e o ar é pesado de sonhos. Foi só um sonho, igual aos dos outros homens, e chegou durante um sono de exaustão. Tinham trazido um homem, naquela noite, com a perna muito cortada, e com a vida a esvair-se pelo ferimento. Eu e o outro médico de serviço trabalhamos nele por mais de três horas, e, depois, fui até à praia para lavar no mar o sangue que esguichara e endurecera em mim. Talvez o paciente vivesse; era moço e dormia, agora, com o sangue estancado e a ferida costurada. Arranquei a minha sunga ensopada (aquele clima permite uma quase nudez para os trabalhos mais sangrentos), nadei até ficar limpo, depois estirei-me na areia morna para descansar. A chuva tinha parado com o chegar da noite, e esta estava calma, morna e cheia de estrelas. Não foi uma visão que eu tive, foi um sonho de olhos abertos.

Fiquei deitado, pensando, observando e sendo observado pelas estrelas. Entre elas, havia uma distante, nublada, com sua luz desmaiada e as demais, como uma lamparina vista através de um turbilhão neve. De repente, veio aproximando-se, aproximando-se, até que luz nublada apagou as demais, mais brilhantes, e eu vi as montanhas e as praias e os rios e os vales da minha terra natal. Agora, o turbilhão de neve era mais forte, escondendo os vales, e havia o ronco da trovoada por trás da nevasca, e os gritos dos exércitos, e o mar cresceu por sobre a praia, dissolvendo-a, e o sal encheu os rios e os campos verdes ficaram cinzas, e depois pretos, com as nervuras à mostra, como ossos de defuntos. Acordei sabendo que precisava voltar. Ainda não chegara a inundação, mas estava vindo. No próximo inverno, ou no outro, ouviríamos a trovoada, e eu precisa estar lá, entre o Rei e seu filho.

2 Eu planejara voltar por Constantinopla, e cartas já me tinham precedido. Agora, teria preferido ir por um caminho mais curto, mas o único navio que consegui foi um que navegava para o norte, para j a Calcedônia, que fica em frente a Constantinopla, do outro lado do 1 estreito. Lá chegando, atrasado pelos ventos e pelo mau tempo, vi que ainda estava sem sorte; tinha acabado de perder um navio para o oeste, e o seguinte só partiria em uma semana, ou mais. Na Calcedônia aportam apenas os pequenos navios costeiros; os navios maiores usam o porto de Constantinopla. Assim, cruzei para lá, desejoso, apesar da pressa que tinha, de ver a cidade de que tanto ouvira falar. Esperava que a Nova Roma sobrepujasse a velha em esplendor, mas achei Constantinopla uma cidade de contrastes mais vividos, com a miséria bem ao lado do esplendor, e o ar de excitação e risco que se respira numa cidade jovem em busca da prosperidade, ainda construindo, espalhando-se, assimilando, ávida para enriquecer. Não que as fundações fossem novas; fora a capital de Bizâncio, desde o tempo em que Bizas ali estabelecera a sua gente, há mil anos; mas havia quase um século e meio que o Imperador Constantino transferira o coração do Império mais para o leste, e resolvera construir e fortificar a velha Bizâncio, dando-lhe o seu nome. Constantinopla fica maravilhosamente situada numa língua de terra que tem um porto natural a que dão o nome de Cornucópia de Ouro, e muito apropriadamente; nunca imaginara um tráfico de navios tão ricamente carregados como os que vi na curta travessia desde a Calcedônia. Há palácios e ricas casas, e edifícios do governo com corredores como labirintos, e os numerosos funcionários públicos andam para lá e para cá, como abelhas numa colméia. Por todo canto há jardins com pavilhões e fontes sempre jorrando; a cidade dispõe de água doce em abundância. Para o interior, a Muralha de Constantino defende a cidade, e do seu Portão Dourado parte da grande via pública de Mese, com magníficas arcadas em quase toda extensão, através de três fóruns decorados com colunas, para terminar no grande arco triunfal de Constantino. A imensa igreja do Imperador, dedicada à Sabedoria Sagrada, fica bem acima das muralhas que beiram o mar. Era uma cidade magnífica, e uma estendida capital, mas não tinha o ar de Roma que meu pai mencionara, ou que imagináramos na Inglaterra; aqui ainda era o Oriente, i a cidade voltava os olhos para o Oriente. Até as roupas, embora os homens usassem a túnica romana, tinham jeito da Ásia, e embora por todo canto se falasse latim, ouvia-se grego, e sírio, e armênio nos mercados, e, para além das arcadas de Mese, dava para supor-se que se estava na Antióquia. Não é lugar fácil de imaginar, para quem nunca passou das costas britânicas. Acima de tudo, era um lugar excitante, com um ar cheio de promessa. Era uma cidade que antecipava, enquanto Roma, Atenas, e até Antióquia pareciam recordar; e Londres, com seus templos desmoronados, torres remendadas e homens sempre em guarda com as mãos nas espadas, parecia remota, selvagem como as geleiras dos nórdicos. Meu anfitrião em Constantinopla era parente de meu pai, distante, mas não tão distante que o impedisse de receber-me como primo. Ele descendia de um tal Adean, cunhado de Máximo, que fora oficial de Máximo e seguira-o na expedição final a Roma. Adean fora ferido nos arredores de Roma e deixado por morto, mas fora salvo e tratado por uma família cristã. Mais tarde, casara-se com a moça da casa, convertera-se e, embora nunca servisse com o Imperador Oriental (tendo-se satisfeito com o perdão conseguido por intercessão do sogro), seu filho serviu com Teodósio II, fez fortuna, e foi

recompensado com uma esposa de ascendência real e uma esplêndida casa perto da Cornucópia de Ouro. Seu bisneto tinha o mesmo nome, mas pronunciava-o à moda bizantina: Ahdjan. Dava para notarse que era descendente de celtas, mas parecia, por exemplo, com um galés que tivesse ficado sem sangue por ter-se estirado demais em direção ao sol. Era alto e magro, com o rosto oval e a tez pálida, e os olhos negros e retos que aparecem em todos os seus retratos. A boca tinha lábios estreitos, também sem sangue na boca do criado da corte, de lábios apertados para guardar segredos. Mas ele tinha humor, e sabia conversar com sabedoria e entretenimento, uma raridade num país onde homens, e mulheres, discutem perpetuamente sobre assuntos do espírito em termos da carne mais que estúpida. Eu não estivera ainda nem um dia em Constantinopla, e já me recordava de algo que lera num dos livros de Galapas: "Se você perguntar a alguém quantos óbolos custa certa coisa, ele responderá dogmatizando os nascidos e não nascidos. Se perguntar o preço do pão, responder-lhe-ão que o Pai é maior que o Filho, e que o Filho é subordinado a Ele. Se você perguntar se o seu banho está pronto, dir-lhe-ão que o Filho foi feito do nada." Ahdjan recebeu-me muito gentilmente, num esplêndido aposento com mosaicos nas paredes e chão de mármore dourado. Na Inglaterra, onde é frio, colocamos os quadros no chão e pesados reposteiros nas paredes e portas; mas, no Oriente, agem diferente. O aposento brilhava com cores; usam muito ouro nos seus mosaicos, e, por causa da superfície levemente irregular da tessela, isto dá um efeito de movimento, como se os quadros fossem tapeçarias de seda. As figuras são vividas, cheias de cor, algumas muito bonitas. Recordei-me do mosaico rachado lá de casa, em Maridunum, que em criança eu achava o mais belo quadro do mundo; era de Dionísio, com uvas e delfins, mas não havia uma figura inteira, os olhos do deus tinham sido mal remendados e ele parecia vesgo. Até hoje eu imagino Dionísio estrábico. Um dos lados do aposento de Ahdjan dava para um terraço, com uma fonte num largo lago de mármore, e ciprestes e loureiros cresciam em jarros ao longo da balaustrada. Logo abaixo, ficava o jardim, perfumado ao sol, com rosas, íris e jasmins (embora mal fosse abril) competindo com o perfume de centenas de arbustos, e por toda parte os dedos escuros do cipreste, enfeitados com cones pequeninos, apontavam diretamente para o céu brilhante. Abaixo dos terraços, rebrilhavam as águas da Cornucópia, tão povoada de navios quanto um lago de fazenda de besouros d'água. Havia uma carta de Ector à minha espera. Depois que Ahdjan e eu nos cumprimentamos, pedi licença, desenrolei-a e comecei a ler. O escrivão de Ector escrevia bem, em longos períodos nos quais dava a sua interpretação do que o cavalheiro realmente dissera, sem rodeios. Mas, as novidades, que se destacavam das poesias e floreios, eram as que eu já sabia ou adivinhava. Em frases reservadas, ele me fazia saber (por causa do escrivão ele dizia "a família, Drusilla e os dois meninos") que Artur estava bem. Mas, por quanto tempo "o lugar" era seguro, Ector dizia não saber, e prosseguia com a versão dos seus informantes. O perigo de invasão, sempre presente mas esporádico nos últimos anos, tornara-se bem maior. Octa e Eosa, os líderes saxões sobrepujados por Uther no seu primeiro ano de reinado, e prisioneiros desde então em Londres, ainda continuavam presos; mas, ultimamente, o Rei Uther estava sendo pressionado (não apenas pelos federados, mas por alguns chefes britânicos temerosos do crescente descontentamento ao longo da Praia Saxã) para fazer um tratado e libertar os príncipes saxões. Desde que ele recusara, já houvera duas tentativas armadas de libertá-los. Foram punidas com severidade bruta1 e, agora, outras facções estavam pressionando Uther para matar os chefes saxões que saíram da linha; ele temia fazer isso por causa dos federados. Estes, firmemente abrigados ao longo da praia, e procurando avançar até Londres, de novo tentavam conseguir reforços de gente de fora, para invadir as

ricas terras próximas à Muralha de Ambrósio. Havia rumores ainda piores: um mensageiro fora preso e, sob tortura, confessara que levava prendas de amizade dos anglos no Abus ao leste, para os reis pictos, das terras selvagens a oeste de Strathclyde. Mas, acrescentava Ector, apenas prendas; e ele, pessoalmente, não acreditava em problemas vindos já do norte. Entre Strathclyde e o Abus, os reinos de Rheged e Lothian ainda estavam firmes. Li o resto, enrolei a carta. Falei a Ahdjan: — Preciso ir direto para casa. — Tão cedo? Era o que eu temia. — Fez sinal a um criado que ergueu um jarro de prata de uma bacia de neve, e serviu o vinho em taças de vidro. De onde vinha a neve, não sei; eles trazem-na à noite dos cimos dos morros, e guardam-na sob a terra, na palha. — Sinto perdê-lo, mas, quando vi a carta, percebi que eram más notícias. — Ainda não são más, porém as más virão. — Contei-lhe o que podia da situação, e ouviu com gravidade. Eles entendem estas coisas em Constantinopla. Desde que Alarico, o Godo, tomou Roma, os ouvidos dos homens estão atentos à trovoada no norte. Prossegui: — Uther é um rei forte e um bom general, mas nem ele consegue estar em toda parte, e esta divisão de poder torna os homens incertos e temerosos. Está na hora de garantir a sucessão. — Bati na carta. — Ector diz que a Rainha está grávida novamente. — Assim ouvi dizer. Se for menino será declarado herdeiro, não é? Má hora para um bebê herdar um reino, se não tiver um Stilicho para cuidar dos seus interesses. — Referia-se ao general que protegera o império do jovem Imperador Honório. — Existe algum, entre os generais de Uther, que possa ficar como regente em caso de sua morte? — Ao que eu saiba, são mais capazes de matar do que de proteger. — Então, é melhor que Uther viva, ou que permita ao filho e já tem ser o herdeiro legítimo. Ele deve estar com... sete, oito anos? Por que Uther não toma a atitude sensata e o declara herdeiro, com você como regente, se o Rei morrer durante a menoridade do menino? — Olhou-me de banda, por sobre a taça. — Ora, Merlim, não se faça de surpreso. O mundo inteiro sabe que você tirou o Menino de Tintagel e o escondeu por aí. — E o mundo diz onde? — Ah, diz. O mundo gera soluções como aquela lagoa ali gera sapos. A opinião geral é que a criança está na ilha de Hy-Brasil, alimentada por mingaus feitos por nada menos que nove rainhas. É por isso que floresce! Ou então que está com você, mas invisível. Talvez disfarçado em mula? Dei uma risada. — Ah, mas eu não ousaria... Isto faria o que do pai dele? — Você ousaria qualquer coisa, acho eu. Eu estava esperando que ousasse dizer-me onde está o garoto e tudo o mais a seu respeito... Não? Neguei com a cabeça, sorrindo. — Perdoe-me, mas ainda não. Moveu a mão, graciosamente. Também entendem segredos, Constantinopla. — Bem, será que ao menos pode dizer-me se ele está bem e em segurança?

— Asseguro-lhe que sim. — E será o sucessor, com você como regente? Dei uma risada, balancei a cabeça e esvaziei a minha taça. Fez um sinal ao criado, que ficava por perto, mas não ao alcance da conversa, e ele correu a encher a minha taça. Ahdjan fez-lhe sinal para que se fosse. — Também recebi uma carta de Hoel. Diz ele que o Rei Uther despachou homens à sua procura, e que não fala bem de você, apesar do muito que, todos sabem, ele lhe deve. Correm boatos de que o próprio rei não sabe onde o menino está escondido, e que pôs espiões à procura. Alguns dizem que o menino morreu. Outros, que Você conserva o menino para satisfazer aos seus fins ambiciosos. — É, — concordei afavelmente — alguns diriam isto mesmo. — Está vendo? — Fez um gesto largo com a mão. — Tentei instigá-lo para que falasse, e nem sequer ficou zangado. Outro homem protestaria, teria até medo de voltar; você não diz nada e acho que já decidiu tomar o primeiro navio de volta. — Eu conheço o futuro, Ahdjan, é esta a diferença. — Bem, não conheço o futuro, e é óbvio que não vai contá-lo para mim, mas posso arriscar o meu palpite quanto à verdade. O que os homens estão dizendo é a verdade retorcida; você conserva o menino porque sabe que um dia ele será Rei. Agora, isto pode dizer-me: o que fará quando voltar? Tirálo do esconderijo? — Quando eu estiver de volta, a criança da Rainha já terá nascido. O que eu fizer dependerá disto. É claro que verei Uther, falarei com ele. Mas, o principal, no meu ponto de vista, é deixai que o povo da Inglaterra, seja amigo ou inimigo, saiba que o Príncipe Artur está vivo e bem, e que estará pronto para aparecer ao lado do pai quando chegar a hora. — A hora ainda não é esta? .— Acho que não. Quando chegar lá espero ver tudo com mais clareza. Com a sua licença, Ahdjan, tomarei o primeiro navio. .— Como quiser. Sentirei perder a sua companhia. — Eu também. Foi um acaso feliz que me trouxe a Constantinopla. Não viria até aqui, se não tivesse sido atrapalhado pelo mau tempo, que me fez perder o navio que devia tomar em Calcedônia. Ele fez um comentário educado, depois ficou espantado ao perceber as implicações. — Como? Quer dizer que já estava voltando para casa? Mesmo antes de ler a carta? Você sabia? — Não os detalhes. Apenas que era hora de voltar. — Pelos Três! — Por um momento vislumbrei o celta que havia nele, embora tivesse jurado pelo deus cristão; eles só têm outro juramento em Constantinopla: "Pelo Um!", e lutam até a morte pelas suas imprecações. Depois, ele riu. — Pelos três! Como queria que você estivesse ao meu lado semana passada no hipódromo! Perdi uns mil nos Verdes. . . coisa certa, e na hora correram como vacas de três pernas. Bem, parece que o príncipe que tiver você para guiá-lo tem um bocado de sorte! Se eu tivesse tido você, hoje teria um império ao invés de um respeitável posto governamental. . . dando graças de têlo conseguido sem ser eunuco. Enquanto falava, indicara o grande mosaico na parede principal às nossas costas. Eu já reparara nele, e me perguntava, vagamente, o porquê da melancolia bizantina que decora os aposentos com tais

cenas, ao invés dos desenhos mais alegres encontrados na Grécia e na Itália. No corredor de entrada, vira um crucifixo em tamanho real, com as figuras carpindo ao lado, e vários emblemas cristãos. Este também representava uma execução, mas nobre, em campo de batalha. O céu era escuro, feito com lascas de ardósia e lazulita dentro das nuvens, como ferro, e com as caras dos deuses olhando por entre elas. O horizonte mostrava uma linha de torres e templos atrás da qual o sol vermelho se punha. Parecia simbolizar Roma. A planície larga na frente das muralhas era a cena do fim da batalha; à esquerda, os vencidos, homens e cavalos mortos ou morrendo no campo coalhado de armas partidas; à direita, os vencedores, amontoados atrás do chefe coroado, e banhados num raio de luz que descia de um Cristo em atitude de bênção, acima dos demais deuses. Os pés do vencedor ajoelhava-se o outro chefe, com o pescoço exposto à lâmina do carrasco. Erguia os dois braços para o conquistador, não pedindo clemência, mas na entrega formal da sua espada. Abaixo dele, no canto do quadro, estava escrito Max. À direita, abaixo do vencedor, estavam impressas as palavras Theod. Imp. — Pelo Um! — exclamei, e vi que Ahdjan sorriu; mas ele não podia saber o motivo da minha admiração. Ergueu-se, graciosamente, e acompanhou-me até a parede, obviamente satisfeito com o meu interesse. — É a derrota de Máximo frente ao Imperador. Bom, não é?—Alisou a tessela sedosa com a mão. — O homem que o fez não conhecia bem as ironias da guerra. Apesar de tudo, pode-se dizer que houve empate, no final. Aquele sujeito à. esquerda, atrás de Máximo, é o ancestral de Hoel que levou os remanescentes do contingente britânico de volta. Este cavalheiro com ar de santo, derramando sangue aos pés do Imperador, é o meu trisavô, a cuja consciência e bom senso para negócios devo tanto a minha fortuna quanto a salvação da minha alma. Eu mal escutava. Estava de olhos fixos na espada nas mãos de Máximo. Já a vira antes. Brilhando na parede às costas de Ygraine. Alojando-se na sua bainha na Bretanha. Agora, aqui, pela terceira vez, representada na mão de Máximo nos arredores de Roma. Ahdjan observava-me com curiosidade. — O que foi? — A espada. Então, era a espada dele. — O quê? Você já a tinha visto? — Não. Só em sonhos. Por duas vezes, já a tinha visto em i sonhos. Agora, aqui, pela terceira vez, num quadro... — Falava comigo mesmo, pensativo. A luz do sol, refletida no lago do terraço, coriscava na parede, fazendo com que a espada nas mãos de Macsen refulgisse e que as gemas no seu cabo se destacassem verdes, amarelas e azuis. Falei, baixinho: — Então foi por isso que perdi o navio na Calcedônia. — O que quer dizer? — Perdoe-me, nem eu sei bem. Estava pensando num sonho. Diga-me, Ahdjan, este quadro. . . Aquelas são as muralhas de Roma? Máximo não foi assassinado em Roma, foi? — Assassinado? — Ahdjan perguntou compenetrado, com ar divertidos — No lado de cá da família, usamos a palavra "executado". Não, não foi em Roma. Acho que o artista estava sendo simbólico. Aconteceu em Aquiléia. Talvez você o conheça; é um lugarejo perto da foz do Rio Turrus, na extremidade norte do Adriático.

— Os navios aportam ali? Arregalou os olhos. — Pretende ir para lá? — Gostaria de ver o lugar onde Macsen morreu. Gostaria de saber o que aconteceu à sua espada. — Isto não saberá em Aquiléia — retrucou ele. — Kynam levou-a. — Quem? Ele indicou o quadro. — . O homem à esquerda. O ancestral de Hoel, que levou os britânicos de volta à Bretanha. Hoel poderia ter-lhe dito isto. — Riu-se com a minha expressão. — Você veio até aqui apenas por este tocado de informação? — Parece que sim, — respondi — embora até este momento não o soubesse. Quer dizer que Hoel está com a espada? Que está Da Bretanha? — Não. Há muito que se perdeu. Alguns dos homens que retornaram à Grande Inglaterra levaram as suas coisas com eles; suponho que levaram a sua espada para dá-la ao seu filho. — E daí? — É só o que sei. Faz muito tempo, e agora é só uma lenda de família, e a metade provavelmente nem é verdade. Será que tem tanta importância? — Importância? — indaguei. — Nem eu sei. Mas aprendi a aprofundar-me nas coisas que encontro no meu caminho. Ele me observava com ar intrigado e pensei que fosse fazer mais perguntas, mas, após uma curta hesitação, simplesmente comentou: — Suponho que sim. Vamos passar para o jardim. Lá está mais fresco. Você está com cara de quem tem dor de cabeça. — Oh, não é nada. É apenas que alguém estava tocando uma lira desafinada no terraço. — Minha filha. Vamos descer e fazê-la parar. Enquanto descíamos, ele falou-me de um navio que devia zarpar da Cornucópia dentro de dois dias. Conhecia o dono, e poderia arranjar-me uma passagem. Era um navio veloz, que aportaria em Óstia, onde eu facilmente acharia uma embarcação que fosse para o oeste. — E quanto aos seus criados? — Gaio é um bom homem. Você estaria bem servido se o empregasse. Libertei Stilicho. É seu se quiser ficar, e é um assombro com cavalos. Seria crueldade minha levá-lo para a Inglaterra; tem sangue ralo como o de uma gazela árabe. Mas, quando a manhã chegou, Stilicho estava à beira do cais, teimoso como as mulas com que tão bem sabia lidar, com seus pertences numa sacola e enrolado numa capa de pele de carneiro, em pleno sol bizantino. Discuti com e'e, traduzindo-lhe o clima britânico e o meu modo simples de viver, que ele poderia tolerar num país onde o sol sempre brilha, mas que seria bem duro naquela terra úmida e de ventos gélidos. Mas vendo que iria comigo, nem. que tivesse de pagar a sua passagem com o dinheiro que eu lhe dera como presente de despedida, cedi.

Para dizer a verdade, eu estava emocionado, e feliz pela sua companhia na longa viagem de volta. Embora sem o treino de Gaio para criado particular, era vivo e inteligente, e já demonstrara aptidão para ajudar-me com plantas e remédios. Seria útil; além do que, após todos estes anos ausente de Bryn Myrddin, a vida ali parecia-i me um tanto solitária, e bem sabia que Ralf jamais voltaria para mim.

3 Cheguei à Inglaterra em fins do verão. As novidades me receberam no cais, na pessoa de um dos camareiros do Rei, que me cumprimentou com enorme alívio, e com uma total ausência de surpresa, tanto que comentei: — Você devia estar no mesmo negócio que eu... Ele riu. Chamava-se Lucan, e eu o conhecera quando o meti pai era Rei, e dávamo-nos bem. — Adivinhação? Nem por isso. Este é o quinto navio que venho esperar. Eu o esperava, mas não tão cedo. Ouvimos dizer que tinha ido para o Oriente há muito tempo, e mandamos mensageiros à sua procura. Não o encontraram? — Não. Mas eu já estava a caminho. Assentiu, como se eu tivesse confirmado os seus pensamentos. Fora muito chegado ao meu pai, Ambrósio, e não duvidava do poder que me guiava. — Então sabia que o Rei está doente? — Não, isto não. Só que os tempos estavam ruins e que eu devia voltar. Uther doente? Notícias graves! Qual é a doença? — Uma ferida infeccionada. Sabia que ele próprio estava supervisionando a reconstrução das defesas da Praia Saxã e treinando lá as tropas? Bem, deram um alarme sobre navios subindo o Tâmisa, à altura de Vagniacae, perto demais de Londres. Uma pequena escaramuça, nada sério, mas ele estava na frente, como sempre, levou um talho e a ferida não sarou. Isto já faz dois meses, e ainda sente dores e perde peso. — Dois meses? O seu médico não está cuidando dele? — Claro que sim. Gandar esteve com ele desde o começo. — E nada pôde fazer? — Bem, — respondeu Lucan — segundo ele, o Rei está ficando bom, e nada há a temer. Assim também opinam os demais médicos consultados. Mas já os notei em conferências pelos cantos,. e Gandar parece preocupado. — Deu-me um olhar de esguelha. —Há um certo mal-estar (pode chamar até de apreensão) atingindo a corte inteira, e vai ser difícil evitar que se espalhe. Não é preciso que lhe diga, não é uma boa hora para o país se perguntar se o seu chefe está em condições de liderá-lo. Os boatos já começaram. Você sabe que o Rei não pode ter dor de barriga sem que se fale em veneno; agora falam em encantamentos e feitiços. E com alguma razão. Às vezes, o Rei parece que caminha com fantasmas. Em boa hora você voltou. . Já estávamos na estrada que sai do porto. Os cavalos estavam selados no cais, e uma escolta à espera; isto, mais pelo cerimonial que pela segurança; a estrada para Londres é movimentada e bem protegida. Ocorreu-me que, talvez, os homens armados que nos acompanhavam faziam-no, não pela minha segurança, mas para assegurar que eu fosse ter com o Rei. Comentei a respeito com Lucan: — Parece que o Rei quer ter certeza da minha presença. Teve um ar divertido, mas apenas disse, com a classe do cortesão: — Talvez ele tivesse receio que você não quisesse atendê-lo. Um médico que não consegue curar

um Rei perde bastante da sua, reputação. — Perde às vezes a vida, você quer dizer. O pobre Gandar ainda vive? — Até agora. — Fez uma pausa, depois comentou: — Não que eu seja bom juiz disso, mas acho que não é o corpo do Rei que necessita de cura, mas, sim, a sua mente. — Então é da minha mágica que precisa. — Ele continuou calado. Acrescentei: — Ou do filho? Baixou as pálpebras. — Também correm rumores a este respeito. — Suponho que sim. — Minha voz era neutra como a dele. — Uma das novidades que ouvi nas minhas viagens foi que a Rainha estava grávida de povo. Creio que deve ter dado à luz há um mês, o que é a criança? Foi um menino, natimorto. Dizem que foi isto que perturbou o Rei e arruinou o seu ferimento de novo. E agora há rumores de que o filho mais velho também está morto. Alguns dizem que morreu pequenino, que não há filho algum. — Fez uma pausa. Fitava as orelhas do cavalo, mas havia um leve tom de indagação na sua voz — Não é verdade, Lucan — respondi. — Ele está vivo, um belo menino, crescendo depressa. Não tema, ele aparecerá quando for preciso. — Ah! — Foi uma interjeição de alívio. — Então é verdade, ele está com você! Essas notícias, se não curarem o Rei, curarão ao menos o reino. Vai trazer o garoto para Londres agora? — Primeiro preciso ver o Rei. Depois, quem sabe? Um cortesão sabe quando se muda de assunto, por isso Lucan não fez mais perguntas, passando a falar de assuntos gerais. Contou-me em detalhes o que eu soubera pelas cartas de Ector; e este não exagerara a situação. Tomei cuidado para não perguntar demais sobre o possível perigo no norte, mas o próprio Lucan falou nele, na guarnição dos lugares estratégicos ao norte de Rheged, ao longo da I velha linha da Muralha de Adriano, e da contribuição de Lot para a defesa do nordeste. — Ele está enfrentando dificuldades. Não porque os ataques tenham sido fortes (o lugar tem andado quieto, ultimamente), mas porque não têm sido. Os reis pequenos não confiam em Lot; dizem que é um homem duro e sovina com os espólios, e só cuida dos próprios interesses. Quando eles vêem que ainda não há lutas, nada para ganhar, desertam-no completamente e levam os homens de volta para arar os campos. — Emitiu um som de desprezo, o mais parecido com um bufo permissível para um cortesão. — Idiotas, não vêem que, quer gostem ou não do seu comandante, têm de lutar, ou não terão campos para arar, ou famílias para quem ará-los. — Mas Lot tem grande interesse nas suas alianças, especialmente para o sul. Suponho que a aliança com Rheged está firme? Por que os seus aliados não confiam nele? Suspeitam que faz o pé-demeia à sua custa? Ou, talvez, de algo pior? — Não lhe posso responder. — Sua voz era inexpressiva. — Não há outro a quem Uther possa nomear comandante no norte? — Só se for ele mesmo. Não pode rebaixar Lot. Sua filha está comprometida com ele. Fiquei surpreso. — Sua filha? Quer dizer que Lot aceitou Morgause, afinal. — Não, Morgause não — respondeu Lucan. — Apesar da garota ser uma beleza, creio que o

casamento não foi tentador o suficiente para Lot. Lot é ambicioso, não se contentaria com uma bastarda quando pode ter uma princesa legítima. Falo da filha da Rainha: Morgiana. — Morgiana? Mas, ela mal tem cinco anos! — Apesar disso, foi prometida e você sabe que isto vale entre os reis. — Se sei! — disse secamente, e Lucan sabia no que eu estava pensando na minha própria mãe, que me tivera com Ambrósio, sem outro laço que não uma promessa feita em segredo; e no meu pai, a que fizera daquela promessa um laço tão válido quanto um juramento cerimonial. Avistamos a Muralha de Londres e o tráfico do mercado matutino ficou mais denso à nossa volta. Lucan dera-me muito sobre o que pensar, e fiquei contente quando a escolta se acercou porque ele calou-se e deixou-me com os meus pensamentos. Esperava encontrar Uther sob cuidados e tratando de alguns assuntos, mas ainda estava no quarto, e sozinho. Enquanto era conduzido pelas antecâmaras até o seu quarto, notei nobres, oficiais e servos à espera, e nos aposentos cheios havia uma calma apreensiva, que falava por si mesma. Homens conferenciavam em grupos pequenos, em voz baixa e preocupada, os criados pareciam nervosos e inquietos, e nos corredores externos, onde mercadores e suplicantes esperavam, havia o desespero paciente de homens que já desesperaram. As cabeças viravam à minha passagem, ouvi o sussurro que me precedia, e um bispo cristão, a despeito de si mesmo, exclamou em voz audível: — Louvado seja Deus! Agora o feitiço vai acabar! Um ou dois homens que eu conhecia aproximaram-se para me cumprimentar e fazer perguntas, mas eu sorri, abanei a cabeça e prossegui. E, como quando se trata de reis não se pode excluir maldade e assassinato, observei os rostos conhecidos. Algum desses senhores armados e cheios de jóias poderia não estar satisfeito com a minha volta; alguém que esperava a queda de Uther antes do seu filho estar crescido; alguém que fosse inimigo de Artur, e portanto, meu. Alguns conhecia bem, mas os observava com atenção, ao dirigi-lhes um rápido cumprimento. Os chefes de Gales, Ynir de Guent, Mador e Gwilin, da minha região de Difed. Não Maelgon de Gwynned, mas um de seus filhos, Cunedda. Ao lado deles, com um punhado de conterrâneos, Brychan e Cynfelin de Dyfnaint, e Nentres de Garlot, a quem eu vira cavalgar ao lado de Uther, saindo de Tintagel. Depois, os homens do norte: Ban de Benoic, um homem ande, bonitão e moreno, parecendo, como Ambrósio e eu, descendente do espanhol Máximo. Ao lado de Ban estava o seu primo da Bretanha, de cujo nome não me recordava. Depois, Cadwy e Bors, dois pequenos reis de Rheged, vizinhos de Ector; e outro vizinho, Arrak, um dos numerosos filhos de Caw de Strathclyde. Estes eu observei com cuidado, relembrando o que sabia deles. Por enquanto, nada de importante, mas eu me lembraria, e estaria atento Rheged e Lot eu não vi; era de supor que os seus negócios no norte fossem mais relevantes que a própria saúde do Rei. Mas Urien cunhado de Lot, lá estava, um homem magro e ruivo, de olhos azuis e colorido vivo; e Tudwall de Dinpelydir, que o acompanhava; e o seu irmão de sangue, Aguisel, de cujas estranhas particularidades, levadas a efeito na sua fria fortaleza de Bremenium, eu já ouvira falar. Havia outros que não conhecia, e olhei-os de relance ao passar. Mais tarde me informaria sobre eles, com Lucan ou Caio Valério, que estava perto da porta do Rei. Ao lado de Valério estava um jovem que julguei reconhecer; um rapaz de uns vinte anos, forte e queimado, com uma fisionomia levemente

familiar. Não conseguia identificá-lo. Ele me fitava do seu lugar próximo à porta de Uther, mas não falou nem fez cumprimento algum. Perguntei baixinho a Lucan: — O jovem próximo à porta, perto de Valério. Quem é? — Cador de Cornwall. Eu a reconhecia agora, a cara que vira pela última vez no átrio de Dimilioc, de guarda ao corpo de Gorlois. E com a mesma expressão; os gélidos olhos azuis, as sobrancelhas franzidas, a cara de guerreiro que se tornara com os anos mais parecida ainda com a do pai, e tão temível quanto a dele. Talvez eu não precisasse procurar mais além. De todos os presentes, ele tinha mais razão para odiar-me. E estava aqui, embora Lucan me tivesse contado que comandava a Praia Irlandesa. Na ausência de Rheged e de Lot, suponho que fosse de todos ali o mais chegado a Uther, com exceção de mim mesmo. Tinha de passar a um metro dele para poder entrar no quarto de Uther. Encarei-o deliberadamente, e ele também me encarou, mas não me saudou nem inclinou a cabeça. Os olhos azuis estavam frios e impassíveis. Bem,- pensei, cumprimentando Valério ao seu lado, veremos. Uther poderia dizer-me por que ele estava aqui. E o que ganharia o jovem Duque se o Rei não se refizesse da doença. Lucan fora avisar ao Rei da minha chegada. Saiu do quarto e mandou-me entrar. Atrás dele vinha Gandar. Quis parar para falar com ele, mas abanou depressa a cabeça. — Não. Ele quer que você entre imediatamente. Pela Serpente Merlin, que bom ver você! Tenha cuidado.. . Ele já está chamando. Falo com você depois? — Claro. Ficarei agradecido. Houve outro chamado imperativo vindo do quarto. Os olhos preocupados de Gandar encontraram brevemente os meus e ele afastou-se para deixar-me passar. O criado fechou a porta às minhas costas, deixando-me com o Rei.

4 Ele estava de pé, vestindo um quimono aberto na frente, sob o qual se via uma túnica presa por um cinto adornado com gemas, no qual estava enfiado um longo punhal. Sua espada, Falar, a espada real, estava pendurada sob o dragão dourado, na parede atrás da cama. Ainda era verão, mas, durante a noite, viera um ventinho frio do norte e eu fiquei contente em ver (suponho que o meu sangue se tornara mais ralo nas minhas viagens) um braseiro aceso na lareira vazia, com cadeiras ao redor. Ele cruzou depressa o aposento para cumprimentar-me, e vi que mancava. Enquanto respondia ao cumprimento, observei o seu rosto para ver os sinais da doença e perturbação que, disseram-me, estariam ali. Estava mais magro, o rosto com novas rugas que o faziam parecer mais perto dos cinqüenta do que dos quarenta que tinha na realidade. Sob os olhos, aquele repuxamento que indica dor contínua e insônia. Mas, apesar de mancar um pouco, movia-se com facilidade e com a energia inquieta de que me recordava. E a voz era a de sempre, forte, cheia de decisão arrogante. — Aqui há vinho. Vamos servir-nos, quero falar com você a sós. Sente-se. Obedeci, servindo o vinho e entregando-lhe uma taça. Ele pegou-a, mas largou-a sem beber, sentando-se à minha frente e fechando o quimono sobre as pernas com um gesto abrupto, quase zangado. Notei que não olhava para mim, mas para o braseiro, para o chão, para a taça, para qualquer lugar, menos os meus olhos. Falou do mesmo modo abrupto, sem indagações corteses sobre a minha viagem. — Já devem ter-lhe contado que estive doente. — Contaram-me que ainda estava — respondi. — Folgo em vê-lo de pé e tão ativo. Lucan contou-me da escaramuça em Vagniacae; há dois meses que foi ferido? — Sim. Não foi grande coisa, uma lança de raspão. Mas inflamou e levou muito tempo para sarar. — Já está bom, agora? — Já. — Ainda sente dor? — Não. — Quase cuspiu a palavra, sentando-se bem ereto na cadeira, mãos crispadas nos seus braços, e encarando-me, finalmente. Deu-me o olhar duro e azul de que me recordava, cheio de raiva e malquerença. Mas, agora, eu reconhecia que a sua atitude era a de um homem forçado, contra a sua vontade, a pedir ajuda a quem jurara jamais recorrer. Esperei. — Como está o menino? Se a pergunta surpreendeu-me, soube disfarçar. Embora tivesse dito a Hoel e Ector que o Rei só deveria saber do paradeiro do menino se o solicitasse, ainda assim achei prudente mandar notícias, de tempos em tempos (de tal forma que apenas o Rei as entendesse), da saúde e dos progressos do garoto. Desde a ida de Artur para Galava, as notícias iam para Hoel e, dele, para Uther; nada ia direto de Galava para o Rei. Hoel escrevera-me que, em todos estes anos, Uther nada perguntara diretamente sobre o filho. Portanto, deduzia-se que não sabia do seu paradeiro. — O senhor deve ter recebido outro relatório além do último que eu vi. Ainda não chegou?

— Não. Eu mesmo escrevi a Hoel há um mês, perguntando pelo menino. Ele não respondeu. — Talvez a sua resposta tenha ido para Tintagel ou para Winchester. — Talvez. Ou, talvez, ele não esteja preparado para responder à minha pergunta. Ergui as sobrancelhas. — Por que não? É lógico que para o senhor não havia segredo. Ele alguma vez já recusou-se a responder às suas perguntas? Respondeu friamente, tentando esconder que ficara desconcertado: — Nunca fiz perguntas. Nunca houve necessidade. Isto me contou algo mais do que já sabia. O Rei só precisou localizar Artur depois do último aborto da Rainha. Estava certo ao pensar que, se houvesse outros filhos, ele esqueceria o "bastardo na Bretanha. Também contou-me algo de que não gostei: se estava precisando de Artur agora, devia estar chamando-me para me avisar que a minha tutela estava acabada, quando na realidade ainda nem começara. Procurando ganhar tempo, ignorei o que dissera. — Então, pode ter certeza de que a resposta de Hoel está a caminho. De qualquer maneira, não tem importância, já que eu mesmo posso responder-lhe. Sua fisionomia ainda estava impenetrável. — Dizem-me que você esteve fora todos estes anos. Levou-o com você? — Não. Achei melhor ficar afastado dele até chegar a hora de ser-lhe útil. Providenciei para que ficasse em segurança, e, depois que deixei a Bretanha, mantive contato. — Sorri levemente. — Oh, nada que os seus espiões (ou de outro qualquer) pudessem ter visto... O senhor sabe que tenho os meus métodos. Não me arrisquei. Se não tem idéia do seu paradeiro, pode estar certo de que mais ninguém tem. Vi pelo leve brilho dos seus olhos, antes que as pálpebras os escondessem, que tinha razão: mensagens e relatórios constantes dos meus movimentos lhe tinham sido entregues. Sempre que possível, mandava vigiar-me. Eu já o esperava. Reis vivem de informações. Os inimigos de Uther também devem ter-me vigiado, e talvez os informantes do Rei soubessem dizer quem eram. Quando lhe perguntei sobre isso, meneou a cabeça. Ficou calado durante algum tempo, imerso em seus pensamentos. Não olhara novamente para mim. Pegou a taça ao seu lado, mas não para beber. Ficou brincando com ela, virando-a e revirando-a. — Ele deve estar com uns sete anos. — Faz oito no Natal e está forte e desenvolvido para a idade. Não tema por ele, Uther. — Não? — Outro rompante, mais de amargura que de raiva. Apesar da minha calma aparente, senti um momento de violenta apreensão; se, apesar das aparências, a doença do Rei fosse, na verdade, mortal, que chance teria o menino de dirigir o reino, agora, com a metade dos pequenos reis (vi de novo o rosto de Cador) visando o seu pescoço? E como saberia eu, por entre a luz e a fumaça, o que realmente pressagiava o sorriso do deus? — Acha que não? — falou de novo o Rei. Vi que seus dedos estavam brancos, apertando a taça, e perguntei-me por que a prata frágil não se quebrava. — Quando nos falamos pela última vez, Pedi-lhe algo que, não tenho dúvidas, foi realizado fielmente, Merlin- Creio que o que lhe pedi está quase

chegando ao seu fim. Não, escute-me! — E eu nada falara, nem fizera menção. Ele falava como um homem acuado, que ataca antes de estar em perigo. — Não preciso lembrar-lhe do que foi, nem perguntar se me obedeceu. Onde quer que esteja o menino, seja como for que o criaram, acredito que ignora o seu nascimento e a sua posição, mas que está apto a apresentar-se ante os homens como um príncipe e meu herdeiro. O sangue escaldou-me as veias e ruborizou-me a pele. — Está tentando dizer-me que acha que é chegada a hora? Esquecera de controlar a voz. A taça voltou com barulho à mesa. Os olhos azuis zangados voltaram a pousar em mim. — Um rei não "tenta dizer" aos servos o que devem fazer, Merlin. Baixei os olhos com esforço e devagar, deliberadamente, soltei a apreensão que me tolhia, como se faz com os maxilares de um cão de briga. Senti o seu olhar raivoso pousado em mim, e escutei a respiração que saía das narinas apertadas. Se Uther ficasse realmente zangado, levaria anos para eu retomar o meu lugar ao lado do menino. No silêncio que se seguiu, notei que mudava de posição na cadeira, como se estivesse desconfortável. Logo me senti capaz de erguer a vista e dizer: — Então diga-me, Rei, se mandou chamar-me para falar sobre a sua saúde ou sobre o seu filho. Seja sobre o que for, ainda sou seu servo. Fitou-me em rígido silêncio, depois desanuviou o rosto, e a boca tomou um ar de quase divertimento. — Você é tudo, menos isto. Merlin. E tem razão; estou tentando dizer-lhe algo, referente tanto à minha saúde quanto ao meu filho. Pelo Escorpião, por que não encontro as palavras? Não o chamei para exigir meu filho, mas para dizer-lhe que, se o seu poder de curar falhar comigo, ele precisará ser Rei. — O senhor acabou de dizer-me que está curado. — Eu disse que a ferida está curada. A infecção se foi, e a dor, mas ficou uma doença que Gandar não consegue curar. Ele me disse que procurasse você. Lembrei-me do que Lucan me contara sobre o Rei caminhar com fantasmas e pensei em algumas das coisas que vira em Pérgamo. — Não me parece uma pessoa mortalmente doente, Uther. Fala em doenças da mente? Ele não respondeu, mas, quando falou, não parecia estar mudando de assunto. — Desde que você se foi, tive mais dois filhos com a Rainha, sabia? — Sabia da menina, Morgiana, mas só soube do natimorto hoje. Sinto muito. — E esta sua famosa Visão não lhe disse que não haverá outros? — de repente jogou a taça com força em cima da mesa. Vi que a prata tinha ficado marcada com a pressão dos seus dedos, pôs-se de pé com a violência de uma lança arremessada. Percebi que o que eu tomara por energia era uma tensão perigosa e recolhida, nervos e músculos retesados. As maçãs do rosto estavam fundas como se algo o estivesse roendo por dentro. — Como se pode ser Rei se não se é homem? — Fez-me esta pergunta, depois caminhou até a janela, onde encostou a cabeça na pedra, e ficou olhando para a manhã. Finalmente eu compreendia o que ele tentava dizer-me. Certa vez ele já me chamara, para, neste mesmo quarto, contar-me como estava sendo consumido por seu amor por Ygraine, mulher de Gorlois. Então, como agora, ele se ressentia de utilizar as minhas habilidades; então, como agora, demonstrara

esta mesma força intensa e retesada, como a corda de um arco pronta a partir-se. E a causa fora a mesma. Certa vez, Ambrósio dissera-me: — Se pensasse com o cérebro, e não com o corpo, às vezes seria melhor para ele. Até o caso com Ygraine, os violentos desejos sexuais de Uther tinham servido aos seus fins, não apenas de prazer e relaxamento corporal, mas porque os soldados admiravam a sua pujança, da qual não se gabava, mas também não escondia. Para os seus homens era motivo de inveja, divertimento e admiração. E, para o próprio Uther, era mais que satisfação do corpo; era auto-afirmação, um orgulho que fazia parte da sua imagem de líder. Não se moveu, nem falou. Perguntei: — Se acha difícil falar comigo, prefere que conferencie com seus médicos primeiro? — Eles não sabem. Apenas Gandar. — Então com Gandar? Mas, afinal, foi ele mesmo quem me contou, andando de um lado para o outro do quarto, mancando. Eu me erguera também e ele fez um gesto impaciente, então fiquei onde estava, longe dele, na minha cadeira perto do braseiro, sabendo que andava para e para lá para não ter de encarar-me enquanto explicava. Falou no ataque a Vagniacae e na tropa de defesa que comandara, e na escaramuça feroz sobre o cascalho. A lança o atingira na virilha, não um corte profundo, mas irregular, e a lâmina não estava limpa. Fizera um curativo e, como a ferida não o incomodava demais, não lhe dera importância; houvera novo alarme sobre um desembarque saxão em Medway, e ele para lá seguia imediatamente, sem descansar até que o perigo houvesse passado. Cavalgar não era muito confortável, nem muito doloroso, e só houve sinal de que a ferida estava inflamando quando era tarde demais. Finalmente, até Uther teve que admitir que já não agüentava montar a cavalo, e foi carregado em liteira até Londres. Gandar, que não estivera com as tropas, veio tratar dele, conseguindo que, aos poucos, a inflamação cedesse e as cicatrizes secassem. O Rei ainda mancava levemente, mas não sentia dor, e parecia a caminho de uma recuperação total. Durante todo esse tempo, a Rainha estivera em Tintagel, esperando a hora do parto, e tão logo ficou melhor, Uther partiu ao seu encontro. Aparentemente bem, seguiu para Winchester, onde parou com o seu grupo para uma conferência. Naquela noite, houve uma moça... Uther interrompeu-se abruptamente, deu outra volta no quarto, parou à janela. Será que ele pensava que eu o imaginava fiel à Rainha? Isto nunca me ocorrera; onde Uther estava, sempre havia uma moça. — E daí? — perguntei. Afinal, surgiu a verdade. Houve a tal moça que Uther levou para a cama, como levara tantas outras para satisfazer o seu urgente desejo de momento. E achou-se impotente. — É claro — eu ia começar a falar — que já acontecera antes, mesmo comigo. Acontece com todos nós, às vezes, mas esta não era para ser uma dessas vezes. Eu a desejava, ela era habilidosa, mas nada aconteceu, nada... Pensei que talvez estivesse cansado da viagem, do desconforto da sela (era apenas isto, desconforto), que precisasse descansar. Fiquei em Winchester, para descansar. Deitei-me de novo com aquela garota, e com outras. Mas não houve jeito, com nenhuma delas. — Deixou a janela e voltou para onde eu estava. — E aí chegou o mensageiro de Tintagel para dizer que a Rainha dera à luz, prematuramente, um príncipe natimorto. — Olhava para mim, quase com ódio. — O bastardo que você guarda para mim. Sempre teve certeza, não é, que ele seria Rei depois de mim? Parece que estava certo, você e a sua maldita Visão. Agora, não terei mais filhos.

Ele não teria comiseração da minha parte. Falei, simplesmente: — Gandar é tão hábil cirurgião quanto eu. Não tenha dúvida. Eu o examinarei, se quiser, mas gostaria de falar com Gandar primeiro. — Ele não conhece as drogas como você. Não há homem vivo que entenda tanto de medicina. Quero que você me prepare um remédio que faça voltar à vida o meu membro. Você com certeza pode fazê-lo. Essas velhas que juram saber fazer poções de amor. — O senhor já as experimentou? — Como poderia fazê-lo sem que todos os homens do meu exército, e todas as mulheres de Londres, soubessem que o Rei está impotente? Pode imaginar as canções e histórias se soubessem disso? — Você é um bom rei, Uther. Ninguém debocha disto. E os soldados não debocham dos homens que os conduzem à vitória. — E por quanto tempo poderei fazê-lo, do jeito que estou? Eu não estou doente apenas no corpo... isto me consome. Não posso viver como meio homem. E quanto aos meus soldados. . . gostaria de usar um cavalo castrado numa batalha? — Eles o seguiriam nem que o senhor fosse numa liteira, como uma mulher. Se estivesse no seu estado normal, saberia disto. Diga-me, a Rainha já sabe? — Segui de Winchester para Tintagel. Pensei que com ela... mas...— Entendo. — Falei casualmente. O Rei tinha dito o bastante, e sofria. — Bem, se houver uma droga que o ajude, pode ter certeza de que eu a arranjarei. Aprendi mais dessas coisas no Oriente. Talvez seja apenas uma questão de tempo e de tratamento. Muitas vezes isto acontece sem que seja o fim. Ainda pode ter outro filho para suplantar o "bastardo" que eu guardo para si. Falou bruscamente: — Você não crê nisso. — Não. Creio no que as estrelas me dizem, se as li corretamente. Mas pode confiar que farei o máximo para ajudá-lo; o que acontecer, será a vontade dos deuses. Às vezes, os seus desígnios parecem cruéis; nós dois sabemos bem disso. Mas há outra coisa que vi nas estrelas, Uther; a sua sucessão não será agora. O senhor lutará e vencerá as suas batalhas ainda por alguns anos. Pela sua expressão, vi que ele temia muito mais outras coisas que a própria impotência. O rosto iluminou-se, e talvez a cura do seu corpo e da sua mente já estivesse começando. Voltou à cadeira, sentou-se, tomou a taça, esvaziou-a, largou-a. — Bem, — e sorriu pela primeira vez — agora serei o primeiro a acreditar nos que dizem que o profeta do Rei nunca mente. Acredito com prazer na sua palavra. . . Encha as taças novamente, Merlin, e vamos conversar. Você tem muito que me contar, e eu agora posso escutar. Conversamos durante algum tempo ainda. Quando comecei a falar-lhe de Artur, escutou calmamente e com muita atenção; percebi, pelo modo como falava, que devia estar depositando as suas esperanças no primogênito há algum tempo, embora inconscientemente, talvez. Contei-lhe onde o menino estava, e, para o meu alívio, e não fez objeções; ao contrário, após algumas perguntas e tempo Para pensar, concordou. — Ector é um bom homem. Eu mesmo poderia ter pensado nele, mas, como sabe, pretendia uma

corte real e não uma como a dele. É, servirá bem. . . Galava é um bom lugar, e seguro... E, pela Luz, vou conservar os tratados que fiz lá pelo norte. O que me diz da posição do menino lá, do seu treinamento.. . também está bom. Se o sangue e o treinamento servirem para alguma coisa, ele será um bom guerreiro e um homem em quem os outros possam confiar e a quem possam seguir. Precisamos providenciar para que Ector tenha o melhor mestre-de-armas do país. Devo ter feito um pequeno gesto de protesto porque ele sorriu de novo. — Ora, não tema, eu também sei fazer segredo. Afinal, se ele vai ter o mais ilustre mestre do país, o Rei precisa tentar igualá-lo. Como você pretende ir para Galava, Merlin, sem que meia Inglaterra vá atrás em busca de mágica e remédios? Dei uma resposta vaga. Minha vinda pública a Londres já tinha servido o seu propósito; já estariam comentado que o Príncipe Artur estava vivo e bem. Não sabia ainda como ou quando eu desapareceria de novo; só conseguia pensar no fato de o Rei ter aceitado todos os meus planos e de permitir que Artur continuasse sob os meus cuidados. Suspeitava que, como da outra vez, era uma decisão que ele tomava com alívio; uma vez que fosse para o meu lugar secreto em Galava, o Rei me esqueceria depressa, como talvez não o fizesse a boa gente de Maridunum. Ele falava. A não ser que houvesse necessidade antes disso, dizia, só mandaria buscar o garoto quando já estivesse crescido, com uns quatorze anos, pronto para dirigir uma tropa, e então o apresentaria em público, confirmando o jovem príncipe como seu herdeiro. — Contanto que ainda não tenha outro — acrescentou, com um lampejo do velho olhar duro, permitindo que eu me fosse para falar com Gandar.

5 Gandar estava à minha espera no quarto que me fora designado. Enquanto conversara com o Rei, minhas malas tinham sido trazidas do navio e desfeitas por meu servo Stilicho. Mostrei a Gandar as drogas que trouxera comigo, e, depois de discutirmos o caso do Rei, sugeri que ele mandasse um assistente estudar comigo o seu uso e reparo, nos próximos dias, antes que eu deixasse Londres. Se não tivesse ninguém em quem pudesse confiar para tratar do Rei com discrição, eu lhe emprestaria Stilicho. Ante a sua surpresa, expliquei que Stilicho tinha talento para preparar as plantas secas e raízes que eu trouxera de Pérgamo. Não sabia ler, é claro, mas eu marcava os vidros e as caixas, e deixava que lidasse apenas com as inofensivas. Mas ele se mostrou digno de confiança e caprichoso. Depois, eu soube que os homens da sua raça têm esta facilidade com plantas e drogas, e que os pequenos reis da sua terra não ousam comer nem uma maçã fresca sem um provador. Fiquei feliz em arranjar um criado que me pudesse ser útil desta maneira, e ensinei-lhe muita coisa. Não gostaria de ter que deixá-lo em Londres, por isso fiquei aliviado quando Gandar replicou que tinha um assistente de toda a confiança, que me mandaria tão logo eu estivesse pronto. Comecei a trabalhar imediatamente. Pedi um quartinho para Stilicho, com um fogareiro, uma mesa, e as várias tigelas e utensílios de que precisava. O quarto era ao lado do meu, sem porta de comunicação, mas eu coloquei cortinas duplas como separação. Stilicho não se acostumara com o verão britânico e conservava o seu quarto muito quente. Depois de três dias, achei uma fórmula que talvez ajudasse ao Rei, e mandei chamar Gandar. Ele veio, ofegante, trazendo consigo, não o assistente que eu esperava, mas uma mocinha, que, depois de um momento, reconheci como sendo Morgause, a filha bastarda do Rei. Ela devia ter uns treze ou quatorze anos, era alta para a idade e realmente bonita. A maioria das mocinhas dessa idade promete ter beleza; Morgause já a tinha, e até eu, que não entendo de mulheres, percebi que esta era do tipo de enlouquecer os homens. Tinha o corpo esguio como o de uma criança, mas os seios eram cheios e pontudos, e o pescoço parecia uma haste de lírio. Os olhos grandes de que eu me recordava eram verdedourados, líquidos e claros como um regato correndo sobre o musgo, e a boquinha, com seus dentes de gatinha, curvou-se num sorriso quando me cumprimentou com profunda reverência. — Príncipe Merlin. — Era a voz tímida de uma criança, quase um sussurro. Vi que Stilicho largou o seu trabalho para ficar fitando-a. Estendi-lhe a mão. — Já me tinham dito que você era uma beleza, Morgause. Fará um homem muito afortunado. Ainda não está comprometida? Os homens de Londres são muito vagarosos O sorriso aumentou, formando covinhas nos cantos da boca. Nada disse. Ao meu olhar, Stilicho voltou ao trabalho, mas sem a concentração devida. — Puxa! — exclamou Gandar, abanando-se. O suor já porejava no seu rosto largo. — Você precisa trabalhar numa estufa? — O meu servo é natural de um lugar mais abençoado do que este. Criam salamandras na Sicília. — Abençoado? Eu estaria morto em uma hora! — Vou mandar que traga as coisas para o meu quarto — ofereci.

— Não se incomode por minha causa. Não vou ficar. Vim apenas apresentá-lo à minha assistente, que vai cuidar do Rei. Pode não acreditar, mas esta menina é muito habilidosa com drogas. Ela teve uma ama na Bretanha, uma sábia mulher com quem aprendeu a colher, a secar e a preparar, e, desde que aqui chegou, sempre quis aprender mais. Mas uma unidade médica do exército não me pareceu o lugar adequado para ela. — Você me surpreende — comentei secamente. Morgause acercara-se da mesa onde Stilicho trabalhava e inclinou a cabeça graciosa para ele. Uma madeixa de cabelo dourado roçou-lhe a mão. Ele marcou dois vidros ao acaso, ambos errados, antes de controlar-se e pegar uma faca para fazer a correção. — Portanto, — continuou Gandar — quando ela ouviu dizer que o Rei precisava de remédios, pediu para ficar encarregada. Tem bastante prática, e o Rei consentiu. É moça, mas sabe ser discreta, e quem melhor que a própria filha para cuidar dele e guardar seus segredos? Era uma boa idéia, e eu assenti. Gandar, embora fosse oficialmente o médico pessoal do Rei, era o chefe das equipes médicas do exército. Até este último ferimento, o Rei pouco precisara de cuidados especiais, e o lugar de Gandar, havendo lutas ou apenas ameaça delas, era com o exército. Na situação atual de Uther, sua filha, felizmente tão eficiente, substituiria bem a Gandar. — Ela é bem-vinda para aprender aqui o que puder. — Virei-me para a menina. — Morgause, tenho uma droga que acho que vai ajudar o Rei. Copiei a fórmula para você... dá para entender? Ótimo. Stilicho tem os ingredientes, se acertar marcá-los corretamente... Ele vai mostrar a você como misturar o remédio. Dê-lhe meia hora para tirar o seu instrumental deste banho a vapor... — Não se incomode por minha causa — disse ela, num eco tímido de Gandar. — Gosto do calor. — Então, vou deixá-la — falou Gandar, aliviado. — Merlin, quer vir jantar comigo à noite, ou está com o Rei? Segui-o para o meu quarto arejado e fresco. De trás da cortina vinham o murmúrio tímido e hesitante da voz de criado e as perguntas ocasionais da mocinha. — Vai dar tudo certo, você vai ver — comentou Gandar. — Não faça essa cara de dúvida. — Garanto-lhe que não é por causa do remédio, e quanto à capacidade da mocinha, aceito a sua palavra. — Apesar disso, será que ficaria aqui por mais alguns dias, para ver como ela está-se saindo? — É claro. Não quero demorar-me muito em Londres, mas posso ficar mais alguns dias. Você vai estar por aqui? — Vou. Mas ele melhorou tanto desde a sua chegada, há três dias, que acho que breve não precisará mais da minha assistência. — Tomara que continue assim — repliquei. — Para falar a verdade, não estou muito preocupado... Não com a sua saúde em geral. E quanto à impotência, se descansar e dormir, sua mente pode parar de atormentar o corpo, e a situação melhorar. Parece até que já está acontecendo. Sabe como são essas coisas. — É, ele vai melhorar... — deu uma olhada na direção das cortinas, e baixou a voz. — O que for preciso — acrescentou francamente. — Se o garanhão vai ou não voltar a funcionar, já não importa, pois temos um príncipe a salvo, crescendo, em condições de receber a coroa. Vamos arrancá-lo dessa

depressão, e, com a graça de Deus e das drogas que você trouxe, ele voltará a lutar... e continuará o rei da matilha... — Fará isso... — Bom... — e nada mais disse. Na realidade, o Rei sarou rapidamente. Parou de mancar, dormia bem e engordou, e um dos seus camareiros me contou algum tempo depois que, embora não tivesse voltado a ser o Touro de Mitras que causava admiração aos seus soldados e não tivesse tido mais filhos, obtinha satisfação na cama, e a violência imprevisível do seu gênio declinou. Como soldado, logo voltou a ser o guerreiro dedicado que inspirava as suas tropas e as conduzia à vitória. Quando Gandar saiu, retornei ao quarto do rapaz para encontrar Morgause lendo o papel que eu lhe dera, enquanto Stilicho mostrava-lhe as amostras para a destilação, os pós para dormir, os óleos para massagear os músculos distendidos. Nenhum dos dois viu-me entrar, e pude observá-los em silêncio por alguns minutos. Vi que Morgause não deixava escapar nada e que, embora o rapaz a olhasse de esguelha e fugisse da sua beleza como um potro do fogo, estava indiferente a ele, como deve ficar uma princesa em relação a um escravo. O calor do quarto estava dando-me dor de cabeça. Fui depressa até a mesa. Stilicho interrompeu o seu monólogo e a mocinha ergueu os olhos e sorriu. Perguntei: — Compreendeu tudo? Ótimo. Vou deixá-la agora com Stilicho. Se houver algo que queira saber que ele não possa explicar mande chamar-me. Virei-me para o rapaz, para dar instruções, mas, para minha surpresa, Morgause tocou-me a manga. — Príncipe... — Morgause? — O senhor precisa mesmo ir? Eu... eu pensei que fosse ensinar-me. Queria tanto aprender com o senhor. — Stilicho pode ensinar-lhe tudo que precisa saber sobre as drogas que o Rei vai usar. Se quiser, posso ensiná-la a minorar as dores musculares, mas acho que os sais de banho bastarão. — Ah, eu sei. Não era nisto que eu estava pensando; é fácil aprender tudo sobre o que o Rei precisa. É que... eu esperava mais. Quando pedi a Gandar que me trouxesse, pensei que... esperava. . . Interrompeu a frase e baixou a cabeça. A cabeleira dourada caiu como uma cortina sobre o seu rosto. Através dela, como através de chuva, vi os seus olhos observando-me, pensativos, mansos, infantis. — Você esperava. . . ? Acho que nem Stilicho, a quatro passos, ouviu a resposta sussurrada: — ... que pudesse ensinar-me um pouco da sua arte, senhor meu Príncipe. — Encarava-me com olhos súplices, meio esperançosos, meio temerosos, como uma cadelinha que estivesse esperando ser espancada. Sorri para ela, mas senti que estava muito formal. Prefiro mais um inimigo armado que uma mocinha suplicante, com a mão no meu braço, perfumando o ar com o seu cheiro, como frutas num pomar ensolarado. Morangos, talvez abricós...? Falei rapidamente: — Morgause, você pode aprender as artes nos livros, facilmente. Não sabe ler? Claro que sabe,

pois acabou de ler a fórmula. Então aprenda com Hipócrates e Galeno. Deixe que eles sejam o» seus mestres; foram os meus. — Príncipe Merlin, o senhor não tem mestre nas artes a que me refiro. O calor do quarto era excessivo. Minha cabeça doía. Devia estar de testa franzida, porque ela acercou-se com um movimento suave, como uma ave aninhando-se, e disse depressa, súplice: — Não fique zangado comigo. Esperei tanto, e estava certa de que a chance era esta. A minha vida inteira ouvi falarem do senhor. Minha ama na Bretanha contava-me como costumava vê-lo andando pelos bosques e à beira-mar, colhendo as raízes e os agriões e as amorinhas brancas, e como o senhor não fazia ruído algum, como um fantasma, e que não tinha sombra nem num dia de sol. — Ela contava tais histórias para causar-lhe medo. Sou um homem como os outros. — Os outros homens também conversam com as estrelas como se fossem amigos numa sala? Ou removem as pedras? Ou seguem os druidas para o Nemet sem serem assassinados? — Não fui assassinado pelos druidas porque o arquidruida temia o meu pai — respondi bruscamente. — E, quando estive na Bretanha, ainda não era homem e muito menos mágico. Era apenas um garoto, aprendendo, como você agora. Só tinha dezessete anos quando saí de lá. Ela parecia mal ter escutado. Estava quieta, os olhos escondidos pelo cabelo caído, as mãos brancas e esguias dobradas sob o busto, de encontro ao vestido verde. — Mas, agora, é um homem, meu senhor, e não pode negar que fez mágicas aqui na Inglaterra. Desde que estou aqui com meu pai, o Rei, tenho ouvido falarem do senhor como o maior feiticeiro do mundo. Vi as Pedras Suspensas, que o senhor ergueu e colocou no lugar, ouvi dizer que previu as vitórias de Pendragon e que trouxe a estrela para Tintagel, que fez o filho do Rei sumir para a ilha de Hy-Brasil. . . — Escutou tudo isso? — Tentei usar um tom de despreocupado. — É melhor parar, Morgause, está amedrontando o meu criado e ele é útil demais para que eu queira que fuja. — Não ria de mim, meu senhor. Nega que possui estas artes? — Não, não nego. Mas não posso ensinar-lhe as coisas que quer saber. Alguns tipos de mágica podem aprender-se com qualquer adepto, mas as artes que possuo não posso passar adiante. Não poderia ensiná-las, nem que já tivesse idade para entendê-las. — Eu já posso entendê-las. Já tenho mágica. . . a mágica que as mocinhas podem aprender, nada mais. Quero segui-lo e aprender. Meu senhor Merlin, ensine-me a obter poder como o seu. — Já lhe disse que é impossível. Aceite a minha palavra. Você muito jovem. Sinto muito, menina. Acho que será sempre jovem de mais para um poder como o meu. Duvido que qualquer mulher possa ir onde vou e ver o que vejo. Não é uma arte fácil. O deus m a quem sirvo é um patrão exigente. — Que deus? Eu só conheço homens. — Então, aprenda com os homens. O meu poder, não posso ensinar-lhe. O dom não me pertence. Ela olhou-me sem compreender. Era jovem demais para compreender. A luz do fogareiro iluminava o lindo cabelo, a testa larga e inteligente, os seios fartos, as mãos pequenas e infantis. Lembrei-me que Uther a oferecera a Lot, que a rejeitara em favor da meia irmã mais moça. Imaginei se Morgause saberia disso; o que seria dela, pensei com compaixão. Continuei, suavemente: — É verdade, Morgause. Ele empresta o seu poder para atingir os seus próprios fins. Quando o

consegue, quem sabe? Se a quiser, ele a tomará, mas não entre no fogo, menina. Contente-se com a mágica que as mocinhas podem usar. Ela começou a falar, mas fomos interrompidos. Stilicho estivera esquentando qualquer coisa numa tigela, e, decerto, estava tão atento ao que falávamos, que deixou a tigela virar, derramando um pouco do líquido nas chamas do fogareiro. Houve um chiado, e uma nuvem de fumaça com cheiro de erva ergueu-se entre mim e a garota, obscurecendo-a. Através da fumaça vi as suas mãos, as suas mãos tranqüilas, movendo-se rapidamente para afastar o fumo pungente dos olhos. Os meus próprios estavam ardendo. A vista nublou-se, e havia um brilho... A dor na minha cabeça cegava-me. O movimento das mãozinhas brancas por entre o vapor parecia tecer um encantamento. Uma nuvem de morcegos passou por mim. Em algum canto as cordas da minha harpa gemeram. O quarto encolheu ao meu redor, transformou-se num frio globo de cristal, num túmulo... — Perdoe, senhor. Está doente? Sacudi-me. Minha vista clareou. O vapor se desfizera, e o restinho dele ia saindo pela janela. As mãos da mocinha estavam tranqüilamente dobradas, como antes; ela tinha afastado o cabelo do rosto e olhava-me com curiosidade. Stilicho tirara a tigela do fogo e olhava para mim por sobre ela, ansioso e amedrontado. — Senhor, é uma das suas misturas. O senhor disse que não fazia mal... — E não faz. Mas, preste atenção no que está fazendo, da próxima vez. — Olhei para a garota. — Desculpe, ficou com Não é nada, só uma dor de cabeça que às vezes eu tenho. Vem, e logo vai. Agora, preciso ir. Parto de Londres no fim da semana. Se precisar de mim até lá, atenderei com prazer. — Sorri e estendi a mão para tocar-lhe o cabelo. — Ora, não fique tão desapontada, menina. É um dom difícil para quem o possui, não serve para mocinhas... Ela fez uma reverencia a minha saída, com o belo rostinho oculto de novo pela cortina de cabelo.

6 Acho que foi a primeira vez na minha vida que vi Bryn Myrddin não como o lar à espera, mas como uma simples parada numa viagem. E, tão logo cheguei a Maridunum, ao invés de aproveitar a calma do vale, a companhia dos meus livros, o tempo livre para pensar e dedicar-me à minha música e aos meus remédios, fiquei impaciente para partir, todo o meu ser impelindo-se para o norte, para onde vivia o menino que seria toda a minha vida daí por diante. Tudo que sabia dele. além dos comentários cifrados que recebera de Hoel e Ector, era que era saudável e forte, mas não tão grande para a idade quanto tinha sido Cei, o filho de Ector. Cei estava agora com onze anos e eu o vira nas minhas visões com tanta freqüência quanto Artur, agora com oito anos. Vira Artur lutando corpo a corpo com o menino mais velho, andando a cavalo (num animal que, aos meus olhos de covarde, parecia grande demais para ele), aprendendo esgrima, primeiro com bastões, depois com espadas; creio que não eram afiadas, mas eu temia assim mesmo, e observava que, embora Cei tivesse a força e o maior alcance, Artur era ligeiro como a própria espada. Vi os dois pescando, escalando, correndo por perto da Floresta Agreste na tentativa vã de escapar a Ralf que (juntamente com os dois homens de maior confiança e Ector) vigiava Artur dia e noite. Tudo isto eu vi no fogo, na fumaça ou nas estrelas, e certa vez, quando nada disso havia à mão e a mensagem quis manifestar-se, numa preciosa taça de cristal que Ahdjan estava mostrando-me no seu palácio da Cornucópia de Ouro. Ele deve ter reparado na minha súbita falta de atenção, mas deve tê-la atribuído à indigestão, decorrente da lauta refeição que me servira. Isto, para um anfitrião oriental, é um grande elogio. Não tinha certeza se iria reconhecer Artur quando o visse, nem a idéia do tipo de menino que ele era. Audaz, alegre, forte... isto tinha visto, mas da sua verdadeira natureza nada sabia. As visões podem aparecer aos olhos da mente, mas é preciso sangue para prender o coração. Eu ainda nem o ouvira falar. Nem sabia como entrar na sua vida, quando chegasse às terras do norte, mas todas as noites da minha viagem de Londres a Bryn Myrddin, eu caminhava sob as estrelas, procurando respostas, e lá estava o Urso sempre à minha frente, brilhando, lembrando o norte escuro, céus tranqüilos, cheiro de pinheiros e água das montanhas. Stilicho não teve a reação que eu esperava à vista da gruta onde morava. Quando parti para as minhas viagens, como esperava demorar-me, arranjei quem limpasse o lugar para mim. Deixei dinheiro com o moleiro do Tywy, pedindo-lhe que mandasse um criado, de vez em quando; era aparente que isto fora feito, pois o local estava limpo, seco e bem provido. Havia até forragem fresca para os cavalos, e, mal desmontáramos, a garota do moinho veio ofegante pelo atalho, trazendo leite de cabra, pão fresco e cinco ou seis trutas recém-pescadas. Agradeci, e para que Stilicho não limpasse os peixes no poço sagrado, pedi a ela que lhe mostrasse o regato abaixo do penhasco. Enquanto vistoriava minhas garrafas e meus vidros lacrados, a fechadura da minha arca e os livros e instrumentos lá dentro, podia ouvir as duas vozes jovens tagarelando, e as risadas ao tentarem fazer-se entender em duas línguas diferentes. Afinal, a moça foi-se embora e o rapaz trouxe o peixe já limpo e cortado, pronto para assar; ele estava feliz, achando o lugar conveniente e confortável, como se fosse uma das casas em que ficamos nas nossas viagens. A princípio, achei que fosse por causa da compensação que acabara de encontrar, mas, mais tarde, soube que ele nascera e se criara numa gruta, na sua terra, onde a camada mais baixa da população é tão pobre, que os donos de uma caverna seca e bem situada são tão afortunados que têm de lutar como raposas para conservá-la. O pai de Stilicho, que o vendera como a um cachorrinho indesejado, não sentia falta dele numa família de treze pessoas; o lugar que ocupava na caverna era mais valioso que a sua presença. Como escravo, dormia nos estábulos, ou no quintal, e desde que entrara a

meu serviço, estivéramos em lugares onde, reconheço, os cavalos ficavam mais bem alojados que os servos. O quarto que ocupara em Londres fora o primeiro que já tivera só para si. Para ele, minha gruta em Bryn Myrddin era espaçosa e até luxuosa, e agora parecia prometer mais prazeres que os que encontra um jovem escravo na competição acirrada dos alojamentos dos servos. Acomodou-se muito feliz, e logo espalhou-se a notícia de que o feiticeiro estava de volta à sua colina, e o povo veio buscar remédios, pagando, como sempre, com comida e gentilezas. A moça do moinho, que se chamava Mai, aproveitava todas as oportunidade para trazer comida e até as oferendas das pessoas, que ela se prontificava a entregar. Stilicho, por sua vez, visitava o moinho todas as vezes que tinha que ir à cidade para mim. E não passou muito tempo até q«e Mai demonstrasse, de todas as maneiras que sabia, o quanto Stilicho era bem-vindo. Certa noite, como não conseguisse dormir, fui para o gramado ao lado do poço sagrado para olhar as estrelas e a lua e escutei, na quietude da noite, os cavalos movendo-se irrequietos seu abrigo sob o penhasco. A noite estava clara com as estrelas e a lua, por isso não precisei de tocha; chamei baixinho Stilicho, para que me seguisse, e desci depressa para o bosque de espinhos para ver o que estava perturbando os animais. Só quando vi, pela porta entreaberta, os dois corpos jovens copulando na palha, é que percebi que Stilicho já estava lá antes de mim. Retireime sem ser visto, e voltei à minha cama para pensar. Alguns dias depois, quando contei ao rapaz que iria para o norte, mas que não queria que se soubesse disto e que o deixaria ali para cobrir a minha retirada, ele ficou entusiasmado, e reiterou com fervor os seus protestos de fidelidade e segredo. Tinha certeza de que podia confiar nele; além da sua habilidade com as drogas, tinha outro dom: era um excelente mentiroso. Parece que este é outro dos dons do seu povo. Meu único medo era que mentisse bem demais, como seu pai mercador de cavalos, e nos pusesse em dificuldades. Mas era um risco que tinha de correr, e eu achava que ele era leal a mim e feliz com a sua vida em Bryn Myrddin, e que não iria botar isto a perder. Quando perguntou (procurando não parecer ansioso demais) quando eu partiria, respondi que estava esperando a hora, e um sinal. Como sempre, aceitou o que eu disse, sem duvidar. Como não duvidaria de uma sacerdotisa falando no seu santuário (seguem a Velha Religião na Sicília) ou de Hephaistos respirando fogo nas montanhas. Descobri que acreditava em tudo que contavam a meu respeito, e não ficaria surpreso se eu desaparecesse na fumaça ou tirasse ouro do ar. Suspeito de que, como Gaio, tirasse o maior proveito da sua posição como meu criado; Mai tinha pavor de mim, e não botava o pé para além do bosque de espinhos, o que condizia bem com os meus planos. Não estava à espera de nenhum sinal mágico. Se tivesse certeza de que era seguro, teria partido para o norte logo depois que cheguei de Londres. Mas sabia que estava sendo vigiado. Uther continuaria a mandar espionar-me. Nisso não havia perigo... quer dizer, não por parte do Rei; mas, se a lealdade de um espião pode comprada por um homem, também o pode ser por outro, e havia muitos outros que, nem que fosse por curiosidade, estariam vigiando-me. Refreei a minha impaciência, fiquei onde estava e continuei a cuidar da minha vida, esperando que os espiões se denunciassem. Certo dia, mandei Stilicho à ferraria no limiar da cidade. Os dois cavalos tinham sido ferrados para a viagem a Londres, e, embora normalmente as ferraduras fossem removidas antes do inverno queria que a minha égua continuasse ferrada para a minha próxima jornada. As fivelas da sua cilha também estavam precisando de conserto, por isso Stilicho levara os animais e ficaria na cidade tratando de algumas incumbências enquanto o ferreiro cuidasse deles. Era um dia de geada, seco e quieto, mas com o tipo de céu que parece cortar os raios do sol e deixá-los pendurados, vermelhos, frios e baixos. Eu cruzara a colina até a cabana do pastor Abba. Seu filho retardado, Ban, cortara a mão, há dias, e a ferida tinha inflamado. Eu limpara o ferimento e colocara uma atadura com pomada, mas sabia que Ban era como um cãozinho, que arrancaria as

ataduras se o incomodassem. Não foi o caso; a atadura ainda estava no lugar, e a ferida sarava rapidamente. Ban, como a maioria dos débeis mentais, sarava como uma criança ou como um animal selvagem. Felizmente, porque ele era uma dessas criaturas que não podem passar uma semana sem ferir-se de alguma maneira. Depois de cuidar da mão, ainda fiquei por lá. A cabana ficava num canto abrigado do vale, e os carneiros de Abba estavam no redil. Embora estivéssemos em dezembro, já havia algumas crias para nascer. Ajudei Abba num nascimento difícil, para o qual o débil mental não seria de grande ajuda. O curto dia de inverno já estava findando quando deixei os carneirinhos gêmeos, limpos e adormecidos, nos joelhos de Ban, próximo ao fogo, com a ovelha-mãe de guarda nas proximidades. Despedi-me e cruzei a colina para casa. Fui pelo caminho que subia pelo meu vale, e já estava escuro quando alcancei o bosque de pinheiros acima da gruta. O céu estava limpo, a noite calma e estrelada, e a lua lançava sombras azuis na geada. E vi outras sombras, que se moviam. Fiquei imóvel e pus-me a observar. Quatro homens, no gramado em frente à minha caverna. Do espinheiro sob o penhasco chegavam os ruídos dos seus cavalos amarrados. Escutava o murmúrio de suas vozes enquanto conferenciavam, bem juntos uns dos outros. Dois deles tinham espadas nas mãos. O luar ficava cada vez mais forte, e novas estrelas surgiam no céu gelado. Lá longe, no sopé do vale, um cachorro latiu. Bem suave, ouviase o som de cascos de cavalo, chegando devagar. Os intrusos lá embaixo também escutaram. Um deles deu uma ordem em voz baixa, e o grupo virou-se e correu para o atalho que os levaria até o arvoredo. Ainda não tinham alcançado o começo do atalho quando falei, bem acima de suas cabeças: — Cavalheiros. Era como se eu tivesse caído do céu numa biga de fogo. Suponho que dava para alarmar, serem interpelados no escuro por um homem que julgavam cavalgando vale acima a meia milha de distância. Além disso, qualquer homem que vai espionar um mágico já vai meio apavorado, e pronto para acreditar em qualquer fantasia. Um deles gritou de medo, o chefe abafou uma praga. Seus rostos erguidos, à luz das estrelas, estavam cinzentos como a geada. Falei: — Eu sou Merlin. Que querem comigo? Fez-se o silêncio, quebrado pelo ruído dos cavalos que se aproximavam, já mais velozmente, atraídos pelo cheiro de casa e comida. Lá embaixo, fizeram um movimento, como que para dar meia volta e correr. Mas, afinal, o chefe manifestou-se: — Viemos da parte do Rei. — Então deixem de lado essas espadas bobas. Vou descer. Quando cheguei até eles, vi que tinham obedecido, mas que permaneciam todos juntos, e com as mãos próximas às armas. — Qual de vocês é o chefe? O maior deu um passo à frente. Era educado, mas com certa truculência. Não gostara de ter demonstrado medo. — Estávamos à sua espera, príncipe. Trazemos mensagens do Rei. — Com espadas desembainhadas? Bem, afinal são só quatro contra um. — Contra feitiços — respondeu o homem, abespinhado. Sorri.

— Devia saber que eu nunca faria nada contra homens do Rei. Devia ter certeza de que seria bem recebido. — Fiz uma pausa. Eles mexiam os pés, inquietos, na geada. Um deles murmurou algo, meio praga, meio prece, no seu dialeto. Continuei: — Este não é o lugar apropriado para conversarmos. Minha casa está aberta aos visitantes, como vêem. Por que não acenderam o fogo e os lampiões e esperaram por mim com conforto? Continuaram inquietos. Trocaram olhares. Ninguém respondeu. Havia rastros na geada até a entrada da caverna. Portanto, tinham estado lá dentro. — Bem, — disse eu — sejam bem-vindos. Caminhei até o poço sagrado onde estava a imagem de madeira do deus, pouco visível no seu nicho escuro. Peguei no copo, derramei um pouco para ele, e bebi. Fiz um gesto para o líder. Ele hesitou, depois meneou a cabeça. — Sou cristão. Que Deus é este? Myrddin — respondi — o deus dos lugares altos. Esta colina era dele, antes de ser minha. Ele me emprestou, mas ainda a vigia. Vi o movimento pelo qual estava esperando. Com as mãos às costas, os homens faziam o gesto contra o feitiço. Primeiro um depois outro, tomaram o copo, beberam e derramaram um pouco para o deus. Balancei a cabeça, assentindo. — É bom não esquecer que os deuses antigos ainda vigiam do ar e esperam nas colinas ocas. De que outra maneira eu saberia que vocês estavam aqui? — O senhor sabia? — Como não? Entrem. — Dirigi-me à entrada da caverna, afastando os ramos que a cobriam. Ninguém se mexeu, salvo o chefe, que deu apenas um passo, depois hesitou. — O que há? —, perguntei. — A caverna está vazia, não está? Ou não? Quando entraram, encontraram algo errado e estão com medo de dizer-me? — Nada estava errado — replicou o chefe. — Nós não entramos... quer dizer... — pigarreou, depois continuou. — Só demos um passo para além da soleira, mas... — Parou. Houve mais murmúrios e troca de olhares, e alguém disse: — Ande, Crinas, conte-lhe. Crinas recomeçou: — Na verdade, senhor... Demorou muito a contar a sua história, mas, afinal, depois de muitas hesitações e incentivos, terminou-a. Ainda estávamos à boca da caverna, os soldados à minha volta, como gado desconfiado. Tinham chegado a Maridunum há uns dois dias, e ficaram à espera de uma chance de subir à caverna sem serem observados. Receberam ordens de não me abordar às claras, para evitar que outros espiões (de cuja presença o Rei suspeitava) pudessem interpretar as mensagens que eu porventura enviasse. — E daí? O homem limpou a garganta. Pela manhã, continuou, tinham visto a minha égua do lado de fora da ferraria, ferrada e selada. Quando perguntaram ao ferreiro onde eu estava, ele nada respondeu; então, presumiram que eu estava na cidade, tratando de negócios que me manteriam ocupado até a égua ficar pronta. Imaginaram que, se alguém estivesse me seguindo, ficaria também na cidade, por isso aproveitaram a chance e vieram para a gruta.

Nova pausa. Eles nada viam na escuridão, mas tentavam perceber a minha reação. Eu nada disse, o homem engoliu em seco e prosseguiu. A parte seguinte da história tinha um toque de verdade. Em Maridunum tinham procurado informar-se, de maneira discreta, sobre como chegar à caverna. Deram-lhe a informação, acrescida de outras sobre o poder e a fama do seu dono. O povo do vale tinha orgulho de mim e sempre enfeitava as histórias que contava sobre o seu feiticeiro. Portanto, os homens subiram o vale já meio amedrontados. Como era de se esperar, encontraram a gruta deserta. No gramado coberto de geada não havia marcas nem pegadas. Encontraram somente o silêncio das colinas geladas, quebrado pelo gotejar do riacho. Acenderam uma tocha e espiaram pela porta; a gruta estava arrumada e vazia, as cinzas estavam frias... — E então? — perguntei, quando Crinas interrompeu-se. — Sabíamos que não estava aqui, senhor, mas havia algo no lugar. Quando chamamos, não houve resposta, mas escutamos um barulhinho no escuro. Parecia vir da gruta interna, onde está a cama com o lampião ao lado. . . — Vocês entraram? — Não, senhor. — Tocaram em alguma coisa? — Não, senhor — respondeu depressa. — Não ousamos. — Ainda bem — repliquei. — E então? — Olhamos em volta, mas não havia ninguém. E o tempo todo aquele som. Começamos a ficar com medo. As histórias. . . Um dos homens falou que o senhor podia estar ali, nos espiando, invisível. Eu falei para ele não ser idiota, mas a gente sentia... — Uns olhos às suas costas? É claro que havia. Prossiga. Ele engoliu em seco. — Chamamos novamente. E aí... eles desceram do teto. Morcegos, como uma nuvem. Fomos interrompidos. Stilicho tinha chegado ao arvoredo e visto os cavalos dos soldados amarrados ali. Botou os nossos animais no barracão, bateu a porta e veio correndo pelo atalho e pela grama, com o punhal na mão. Estava gritando, e a longa faca já estava em posição de ataque. Os homens prepararam-se para defender-se. Dei dois passos rápidos à frente, empurrando-os, e agarrei o rapaz pela mão que segurava a faca. — Não é preciso. São homens do Rei. Pode guardar. — Os outros também guardaram as suas armas. — Você foi seguido, Stilicho? Fez que não com a cabeça. Tremia. Um escravo não é treinado Para usar armas como o filho de um homem livre. Foi só depois que pegamos a Bryn Myrddin que eu deixei que ele carregasse uma faca. Larguei-o e voltei-me para Crinas. — Estava falando sobre os morcegos. Parece que as histórias que ouviu perturbaram-no demais, Crinas. Se incomodou os morcegos, eles os alarmaram por uns minutos, mas são somente morcegos. — Mas não foi só isso, meu senhor. Os morcegos desceram do teto, no escuro, e passaram por nós; foi como uma nuvem de fumaça e o ar cheirou mal. Mas, depois que eles passaram, houve outro som. De música.

Stilicho, ao meu lado, olhava deles para mim, de olhos arregalados no escuro. Vi que faziam novamente o sinal. — Música por todo lado — continuou o homem. — Suave, como um sussurro ecoando pelas paredes da gruta. Não tenho vergonha de dizer, meu senhor, saímos da gruta e não tivemos coragem de entrar de novo. Esperamos pelo senhor do lado de fora. — Com as espadas desembainhadas contra o feitiço. Entendo. Bem, não há mais necessidade de ficar aqui fora no frio. Vamos entrar? Não serão molestados, desde que não levantem a mão contra mim ou meu servo. Stilicho, vá acender o fogo. Cavalheiros, não se vão ainda. Lembrem-se que ainda não me transmitiram a mensagem do Rei. Afinal, depois de ameaças e incentivos, eles entraram, pisando macio e sussurrando. O chefe veio sentar-se comigo, mas os outros preferiram ficar mais longe, entre o fogo e a entrada da caverna. Stilicho foi esquentar vinho com especiarias para oferecer. Agora, na luz, eu podia ver que não estavam usando o uniforme das tropas regulares do Rei; não usavam insígnias nem brasão; poderiam ser tomados por soldados de qualquer pequeno rei. Tinham porte militar, e embora não demonstrassem deferência especial a Crinas, era óbvio que havia alguma diferença hierárquica entre eles. Observei-os. O chefe estava impassível, mas os demais estavam inquietos sob o meu olhar, e um deles, um sujeito magro e pequeno, pálido e de cabelos negros, discretamente fazia o sinal. Finalmente, falei: — Vocês dizem que trazem mensagens do Rei. Ele entregou-lhes alguma carta? Foi Crinas quem respondeu. Era um homem grande, claro e avermelhado, de olhos claros. Talvez tivesse sangue saxão, embora haja celtas com esse colorido. — Não, senhor. Apenas mandou saudações e pede notícias do filho. — Por quê? Repetiu a minha pergunta, aparentando surpresa. — Por que, meu senhor? — Sim, por quê? Deixei a corte há quatro meses. Durante esse tempo, o Rei recebeu relatórios. Por que mandar vocês agora, a mim? Ele sabe que o menino não está aqui. Parece óbvio... — detive-me na palavra, olhando de um homem armado para o outro —... que aqui não estaria seguro. O Rei também sabia que eu pretendia esperar algum tempo, em Bryn Myrddin, antes de ir juntar-me ao Príncipe Artur. Esperava ser espionado, mas acho difícil crer que ele os enviou com tal mensagem. Os três para lá do fogo entreolharam-se. Um grandão com a cara vermelha e manchada mexeu nervosamente no cinturão, a mão indo por si mesma para o cabo da espada. Vi que Stilicho estava de olho nele; acercou-se com o garrafão de vinho. Crinas sustentou o meu olhar por algum tempo, depois assentiu. — Está certo. O senhor desmascarou-nos. Não esperava safar-me com uma história dessas, não com o senhor. Mas, quando nos surpreendeu, foi só o que pude inventar na hora. — Pois bem,"são espiões. Ainda quero saber o motivo. Deu de ombros.

— O senhor bem sabe como são os reis. Não nos cabia discutir quando fomos enviados para cá para vistoriar o lugar sem que o senhor soubesse. Às suas costas, os outros concordavam, ansiosos. — E não fizemos nada de errado, meu senhor. Nem entramos na gruta. É verdade. — Não, e você já me disse por quê. Ele ergueu uma das mãos. — O senhor tem toda a razão de estar aborrecido. Sinto muito. Não fazemos isto, normalmente, mas ordens são ordens. — E as suas ordens foram de descobrir o quê? — Nada de especial, fazer perguntas, olhar o lugar e descobrir quando o senhor vai partir. — Deu-me um olhar de esguelha, para ver se eu estava engolindo. — Parece que deixou de contar muita coisa ao Rei, e ele queria descobrir. Sabia que foi seguido desde o minuto que deixou Londres? Outro grão de verdade. — Imaginava que sim. — Bem, então é isso. — Falou como se tudo estivesse explicado. — É o jeito dos reis, não confiam em ninguém e querem saber de tudo. Acredito que... perdoe-me por falar assim, meu senhor.. . — Prossiga. — Acho que o Rei não acreditou no que disse sobre o esconderijo do jovem príncipe. Ele pensou que poderia mudá-lo de lugar, e conservá-lo escondido, como antes. Então, nos mandou para ver se em surdina, descobríamos alguma pista. — Talvez. Querer saber é uma moléstia de reis. E, por falar nisso, houve alguma mudança no estado do Rei para torná-lo tão ansioso por notícias? Percebi, claramente, que ele gostaria de ter pensado nisso. Hesitou, depois decidiu que, quando fosse possível, dizer a verdade era mais seguro. — Quanto a isso, meu senhor, não temos informação, e não o tenho visto ultimamente. Mas dizem que a doença passou e que já está de volta à luta. Isto conferia com o que me tinham dito. Fiquei sem falar por algum tempo, observando-os pensativamente. Crinas bebia, aparentando calma, mas olhava-me com desconfiança. Finalmente, falei: — Bem, vocês fizeram o que lhes ordenaram e descobriram o que o Rei desejava. Ainda estou aqui, e a criança não está. O Rei precisa confiar em mim para o resto. Quanto à minha ida, eu o avisarei quando chegar a hora. Crinas pigarreou. — Não gostaríamos de levar esta resposta, senhor. — Falava alto demais, como um fanfarrão, mas não estava blefando. Os outros partilhavam do seu medo, mas sem a sua coragem; isto não me reconfortava; sabia que homens amedrontados são perigosos. Um dos soldados (o pequenino, com os olhos negros e irrequietos no rosto pálido de nervoso) puxou a manga do chefe. Escutei o murmúrio. — Vamos. Não se esqueça de quem ele é... Chega... Não o faça ficar zangado... Repliquei vivamente: — Não estou zangado. Vocês estão cumprindo o seu dever, e não é sua culpa se o Rei não confia em ninguém e precisa ter cada história verificada duas vezes. Digam-lhe que... — parei, como se para

pensar, e vi que esticavam o pescoço — ... seu filho está onde eu lhe disse, a salvo e passando bem, e que estou apenas à espera de bom tempo para fazer a viagem. — Viagem? — indagou Crinas vivamente. Ergui as sobrancelhas. — Ora, ora. Pensei que o mundo inteiro soubesse onde Artur está. O Rei, pelo menos, compreenderá. Um dos homens falou, com voz rouca: — Nós sabíamos, mas era só um boato. Então, é verdade sobre a ilha? — Perfeitamente. — Hy-Brasil? — indagou Crinas. — Com sua licença, meu senhor, isso é um mito. — Eu disse algum nome? Não sou responsável pelos boatos. O lugar tem muitos nomes, e as histórias que contam a seu respeito dariam para encher os Nove Livros de Mágica... E cada homem que o vê, vê uma coisa diferente. Quando levei Artur para lá... Parei para beber, como um cantor que molha a garganta antes de tocar as cordas. Os três à minha frente estavam totalmente atentos. Ignorei Crinas, dando à minha voz o volume e a ressonância de um contador de histórias. — Todos sabem que o menino foi-me entregue três noites após o nascimento. Levei-o para um lugar seguro, e depois, quando a hora era propícia e o mundo estava calmo, conduzi-o para uma costa a oeste. Aí, abaixo dos penhascos, fica uma baía de areia cercada de rochas pontudas como presas de lobos, e nenhum bote ou nadador sobrevive à maré quebrando nelas. Para a direita e para a esquerda da baía, o mar cavou arcos no penhasco. As rochas são roxas, rosadas e turquesas à luz do sol, e, num entardecer de verão, com a maré baixa e o sol se pondo, vê-se no horizonte a terra que vai e vem com a luz. É a Ilha de Verão, que (dizem) flutua e afunda ao bel-prazer do céu, a Ilha de Vidro através da qual enxergam-se as nuvens e as estrelas, mas que é cheia de árvores e grama e riachos de água doce para quem mora nela.. . O sujeitinho pálido inclinava-se para a frente, de boca aberta, e vi que um outro movia os ombros, sob a capa de lã, como se estivesse com frio. Os olhos de Stilicho saltavam das órbitas. — ... É a Ilha das Donzelas, para onde os reis são levados no final. E há de vir um dia... — Meu senhor! Eu mesmo já a vi! — Que o homem pálido ousasse interromper um profeta que, aparentemente, ia fazer uma profecia, demonstrava bem em que estado estavam os seus nervos. — Eu mesmo a vi! Quando era menino, eu a vi! Claro, claro como a Cassiterides num dia límpido depois da chuva. Mas parecia terra vazia. — Não é vazia. E não está lá apenas quando os homens como você podem vê-la. Está lá também no inverno, para aqueles que sabem como encontrá-la. Mas não há muitos que podem viajar até lá, e depois voltar. Crinas escutara imóvel, o rosto sem expressão. — Então, ele está em terras de Cornwall? — Você também a conhece? Não havia sinal de deboche na minha voz, mas ele respondeu bruscamente: — Não a conheço. — Largou o copo vazio e fez menção de levantar-se. Sua mão dirigiu-se ao cinturão da espada. — É esta a Mensagem que devemos levar ao Rei? Moveu a cabeça e os outros ergueram-se com ele. Stilicho largou o garrafão de vinho com

barulho, mas fiz-lhe um sinal e dei uma gargalhada. — Não seria bom para vocês se fosse só isto. Nem para mim, pois haveria novos espiões a incomodar-me. Para o bem de nós todos, vou tranqüilizá-lo. Querem levar uma carta minha para Londres? Ficou quieto por um momento, de olhos fitos nos meus. Depois, relaxou-se, enfiando o polegar, inocentemente, no cinturão. Quando ouvi seu suspiro de alívio, percebi que estivera bem perto de interrogar-me à sua maneira. — Com prazer, senhor. — Então queiram esperar mais um pouco. Sentem-se de novo. Encha os copos, Stilicho. A carta para Uther foi curta. Perguntei pela sua saúde, depois disse que, de acordo com as minhas fontes particulares de informação, o príncipe estava bem. Quando a primavera chegasse, continuava, eu pretendia viajar para vê-lo. Nesse meio tempo, continuaria a vigiá-lo à minha moda e a mandar notícias ao Rei. Depois de lacrar a mensagem, levei-a à caverna exterior. Os homens conversavam entre si em voz baixa, enquanto Stilicho rondava com o garrafão de vinho. Interromperam-se à minha chegada e ficaram de pé. Entreguei a carta a Crinas. — Tudo que tenho a dizer está na carta. Ele ficará satisfeito. — Acrescentei: — Mesmo que a sua missão não tenha sido cumprida exatamente de acordo com as ordens, nada têm a temer do Rei. Podem ir, e que o deus das andanças os proteja. Partiram, não lá muito agradecidos aos meus votos finais. Andavam depressa sobre a geada, com olhares de esguelha para as sombras, e encolhidos sob as capas, como se a noite estivesse respirando nas suas costas. Quando passaram pelo poço sagrado, todos fizeram um sinal e não creio que o último (Crinas) tenha feito o sinal-da-cruz.

7 O ruído dos cascos dos cavalos foi diminuindo pela trilha do vale. Stilicho voltou correndo do penhasco acima do arvoredo. — Já foram embora. — Os olhos estavam enormes, dilatados não apenas pela escuridão gelada. — Meu senhor, pensei que fossem matá-lo. — É possível. Eles eram homens corajosos, e estavam com medo. É uma combinação perigosa, principalmente porque um deles era cristão. Stilicho parecia um cachorro a jogar-se sobre um rato. — Quer dizer que ele não acreditou no senhor? — Exatamente. Ele tinha certeza de que não acreditava em mim, mas não apostava que fosse mentira. Arranje-me alguma comida, sim, Stilicho? Qualquer coisa, mas depressa, e prepare o que puder para uma viagem. Eu mesmo tratarei das roupas. A égua está pronta? — Está, mas... o senhor vai partir esta noite? — E o mais cedo que puder. Estava esperando por esta oportunidade. Eles já apareceram, e quando descobrirem que a pista que dei é falsa, já estarei longe... na ilha para lá do oeste. . . Você sabe o que fazer, já conversamos sobre isto muitas vezes. Era verdade. Combináramos que, quando eu partisse, Stilicho permaneceria em Bryn Myrddin, apanhando suprimentos, dando a ilusão, pelo maior tempo possível, de que eu ainda estava em casa. Eu tinha feito um estoque de remédios, e já fazia algum tempo que ele mesmo misturava e receitava os mais simples ao pessoal que chegava, portanto a minha ausência não seria sentida e passaria tempo até que alguém fizesse perguntas. Talvez não ganhássemos muito tempo, mas seria o suficiente. Uma vez cruzadas as colinas mais próximas e alcançadas as trilhas do vale na floresta, eu seria bem difícil de seguir. Stilicho assentiu, e correu para cumprir as ordens. Em pouco tempo a comida estava pronta e, enquanto eu comia, ele aprontava o que eu precisaria para a viagem. Estava cheio de perguntas, por isso deixei que falasse. Como eu falava mal a sua língua, em geral nos comunicávamos em latim, que ele falava fluentemente, mas com sotaque. Desde que deixáramos Constantinopla, dirigia-se sempre a mim, com o seu modo jovial; precisava falar com alguém e teria o crueldade insistir no silêncio respeitoso que Gaio tentara impor. Além disso, eu não sou assim. Por isso, falava avidamente, enquanto cumpria as suas tarefas. — Meu senhor, se o tal Crinas não acreditou na Ilha de Vidro, se precisava de informações sobre o príncipe, por que foi embora? — Para ler a minha carta. Acha que lá encontrará a verdade. Arregalou os olhos. — Mas, ele não ousaria abrir uma carta para o Rei! O senhor escreveu a verdade nela? Ergui as sobrancelhas. — A verdade? Também não acredita na Ilha de Vidro? — Acredito. Todo mundo sabe que ela existe. — Falava a sério. — Até na Sicília sabíamos da ilha invisível no oeste. Mas, aposto o que quiser que o senhor não vai para lá, agora!

— Por que tanta certeza? Lançou-me um olhar límpido. — O senhor? Cruzar o Mar Ocidental? No inverno? Acredito em qualquer coisa, menos nisso! Se pudesse usar mágica, em vez de navio, teríamos cruzado o Mar do Meio com mais facilidade. Lembrase da tempestade perto de Pylos? Dei uma risada. — Só com a mandrágora por mágica... Lembro-me bem demais. Não, Stilicho, não revelei nada na carta. Aquela carta nunca chegará ao Rei. Eles não eram homens do Rei. — Não eram homens do Rei? — Fitou-me, boquiaberto, depois voltou a debruçar-se sobre o alforje que estava arrumando. — Como sabe? O senhor os conhecia? — Não. Mas Uther não emprega tropas para espionar; logo seriam descobertas. Essas tropas foram mandadas (como disse Crinas) para fazer perguntas nos mercados e tavernas de Maridunum, e para revistar este lugar quando estivéssemos ausentes, procurando o príncipe, ou uma pista dele. Eles nem eram espiões. Que espião teria coragem de voltar ao seu amo contando que fora descoberto, í e que a sua vítima lhe confiara uma carta, com a informação desejada? É possível que eles pensem que conseguiram enganar-me, mas, de qualquer forma, precisavam aproveitar a oportunidade e pôr as mãos na carta. Dou ponto a Crinas, ele pensa depressa. Até que se saiu bem. Não foi sua culpa que o outro homem o desmascarasse. — O que quer dizer, senhor? — O homenzinho pálido. Ouvi quando disse algo na sua língua natal. Não sei se Crinas ouviu. Expressou-se em dialeto de Cornwall. Quando falei na Ilha de Vidro, e descrevi a baía, ele a conhecia, e também a Cassiterides. São ilhas ao largo da costa de Cornwall, nas quais até Crinas deve acreditar. — Cornwall? — experimentou a palavra na língua. — De Cornwall, no sudoeste. — Homens da Rainha, então? — Stilicho não passara todo o tempo em Londres no pequeno aposento, com Morgause. Escutava, quase tanto quanto falava, e, desde que deixáramos a corte de Uther, regalava-me continuamente com a opinião "deles" sobre todo e qualquer assunto. — Eles diziam que ela ainda estava no sudoeste, após o parto. — É verdade. E poderia empregar gente de Cornwall para trabalhos secretos, mas não creio. Nem o Rei nem a Rainha cercam-se muito de tropas de Cornwall, hoje em dia. — Há tropas de Cornwall em Caerleon. Soube na cidade. Perguntei vivamente: — Não diga! Sob o comando de quem? — Não sei. Mas posso descobrir. — Olhava-me ansioso, mas fiz que não com a cabeça. — Não. Quanto menos você souber, melhor. Deixe para lá. Eles pararão de vigiar-me até que consigam ler a carta, e até que arranjem alguém que saiba ler grego... — Grego? — O Rei tem um secretário grego — falei tranqüilamente. — Não havia por que tornar as coisas mais fáceis. E não creio que saibam que suspeito deles. Não terão pressa. Além disso, escrevi algo na carta que fará com que pensem que ficarei por aqui até a primavera. — Será que voltarão?

— Não creio. Que irão fazer? Voltar e dizer-me que leram a carta do Rei, e que não são homens do Rei? Enquanto julgarem que estou aqui, terão medo de fazer isso, para que eu não relate ao Rei. Não ousam matar-me, nem deixar que descubra quem são. Ficarão afastados. Por falar nisso, da próxima vez que for a Maridunum, procure avisar ao comandante da guarnição que fique de olho nessa gente, e digalhe para relatar ao Rei o que aconteceu. Eu mesmo mandarei uma mensagem ao Rei. Podemos usar os seus próprios espiões para proteger-nos dos outros... Pronto, acabei. Já arrumou a comida para eu levar? Encha o frasco, sim? Se alguém aparecer por aqui, que vai dizer? — Que o senhor tem saído todos os dias pelas colinas e que a última vez que o vi estava indo para a cabana de Abba, e que deve estar por lá, ajudando-o com as ovelhas. Ergueu os olhos. — Não vão acreditar em mim. — Por que não? Você é um mentiroso muito capaz. Cuidado, está derramando o vinho. — Um príncipe ajudar a cuidar de ovelhas? Não é muito provável. — Já fiz coisas mais estranhas — repliquei. Acreditarão em você. Afinal de contas, é a verdade. Onde acha que arranjei as manchas de sangue na minha capa velha, hoje? — Pensei que fosse matando alguém. Ele estava absolutamente sério. Dei uma risada. — Isto não acontece sempre, e, quando acontece, é geralmente por engano. Meneou a cabeça, como se não acreditasse, e arrolhou o vinho, — Se aqueles homens o tivessem atacado, meu senhor, teria empregado mágica? — Nem precisaria de mágica, com o seu punhal tão a postos. Ainda não lhe agradeci por sua coragem, Stilicho. Ficou surpreso. — O senhor é o meu amo. — Comprei-o por dinheiro e devolvi-lhe a liberdade com que você nasceu. Que tipo de dívida é esta? Fitou-me sem compreender, depois disse: — Pronto, senhor, está tudo arrumado. O senhor vai precisar das suas botas grossas e da capa de pele de carneiro. Posso aprontar Morango enquanto se veste? — Daqui a pouco. Venha cá. Olhe para mim. Prometi-lhe que estaria a salvo aqui. É verdade; não vi perigo, ao menos para você. Mas, quando eu estiver bem longe, se tiver medo, vá para o moinho e fique lá. — Sim, senhor. — Não acredita em mim? — Acredito. — Então, do que tem medo? Hesitou, engolindo em seco. Depois, perguntou:

— Essa música de que falaram, senhor. O que era? Era mesmo dos deuses? — De certo modo. Às vezes, a minha harpa fala sozinha quando o ar se move. Foi isso que escutaram e, como sentiam-se culpados, ficaram com medo. Olhou para o canto onde estava a harpa grande. Eu a mandara vir da Bretanha e, desde que chegara, usava-a constantemente, tendo posto a outra no seu lugar. — Aquela? Como é possível, senhor, toda embrulhada daquele jeito? — Não, aquela não. Aquela harpa fica muda até que eu a toque. Refiro-me à pequenina com que viajei. Eu mesmo a fiz nesta j caverna, com o mágico Galapas a ajudar-me. Umedeceu os lábios. Não estava muito tranqüilizado. — Nunca mais a vi desde que chegamos. Onde o senhor a guarda? — Ia mesmo mostrar-lhe antes de partir. Vamos, rapaz, não há por que temê-la. Você mesmo a carregou milhares de vezes. Vamos, pegue uma tocha e venha ver. Levei-o para os fundos do aposento principal. Eu nunca lhe mostrara a gruta de cristal e, como a minha arca com livros e a minha mesa ficavam no acesso à saliência, ele nunca subira até lá, nunca a descobrira. Agora, juntos, arredamos a mesa e, segurando a tocha bem alto, subimos à saliência nas sombras, onde se escondia gruta de cristal. Ajoelhei-me à entrada e fiz-lhe sinal para que Se acercasse. A tocha na minha mão lançava a luz, brilhando por entre a fumaça móvel, para as paredes redondas de cristal. Aqui, em menino, tivera a minha primeira visão, na chama ondulante. Aqui eu me vira concebido, o velho Rei morto, a torre de Vortigern construída sobre a água, o dragão de Ambrósio saltando para a vitória. Agora, o globo estava vazio, apenas com a harpa e a sua sombra dentro das paredes reluzentes. Olhei para o rosto do rapaz. Ele estava aterrorizado pelo globo vazio e pelas sombras vazias. — Escute. — Falei alto e a minha voz moveu o ar parado e a harpa sussurrou, e a música deu voltas pelas paredes de cristal. — Ia mostrar-lhe a gruta. Se alguma vez quiser esconder-se, venha para cá. Eu o fazia, quando menino. Os deuses tomarão conta de você, e estará a salvo. Mais a salvo é impossível; na mão de Deus, na sua colina oca. Agora, vá preparar Morango. Eu mesmo descerei a harpa. Já é hora de partir. Pela manhã, eu já estava a quinze milhas dali, cavalgando para o norte pela floresta de carvalhos que margeia o Vale do Cothi. Por ali não há estradas, somente trilhas, mas eu as conhecia bem e conhecia a cabana de vidreiro, bem dentro da mata. Estaria vazia nesta época do ano. Durante metade daquele dia de dezembro, eu e minha égua compartilhamos da sua proteção. Deilhe de beber no riacho, coloquei a forragem que trouxera num canto da cabana. Não tinha fome. Outra coisa me alimentava: a sensação profunda de leveza e poder, que eu conhecia. A hora estava certa, e algo me esperava. Estava no caminho certo. Tomei um pouco de vinho, agasalhei-me com as peles de carneiro de Abba e adormeci, profunda e despreocupadamente, como uma criança. Sonhei de novo com a espada, e, mesmo durante o sonho, percebi que este vinha a mando do deus. Os sonhos comuns não são assim; são uma mistura de desejos e temores, coisas vistas e ouvidas, sentidas mas desconhecidas. Este era claro, como uma recordação.

Vi a espada de perto pela primeira vez, não enorme e ofuscante como a espada de estrelas na Bretanha, nem obscura e ígnea, como quando tremulava na parede escura do quarto de Ygraine. Era apenas uma espada, uma bela arma, com as jóias do punho engastadas em ouro, e a lâmina reluzente, como que ansiosa por lutar por si mesma. Algumas armas são ansiosas por lutar, outras são lutadoras obstinadas, outras relutantes; mas todas têm vida. Esta espada tinha vida; estava desembainhada, firme na mão de um homem armado. Ele estava de pé, perto de um fogo, aparentemente aceso no meio de uma planície escura, e era a única pessoa à vista em toda a planície. Bem para trás dele, viam-se os contornos obscuros de muralhas e de uma torre. Lembrei-me do mosaico que vira na casa de Ahdjan, mas, desta vez, não era Roma. O contorno da torre era familiar, mas não conseguia lembrar-me onde a vira antes, ou se a vira apenas em sonhos. Era um homem alto, cuja capa escura caía numa linha só, dos ombros aos pés. O elmo escondia seu rosto. Debruçava a cabeça sobre a espada que segurava. Ele a virava e revirava, como que a sopesála, ou a estudar as runas da lâmina. A luz do fogo refletia-se na lâmina que virava e revirava. Captei uma palavra, REI, e depois de novo, REI, e as jóias rebrilhavam nas voltas da espada. Vi que o homem trazia um círculo de ouro no elmo e que sua capa era roxa. A luz do fogo mostrou o anel no seu dedo. Era um anel de ouro com um dragão entalhado. — Pai? Senhor? — falei, mas, como costuma acontecer em sonhos, a voz não saiu. Assim mesmo, ele levantou o rosto. Não havia olhos sob a pala do elmo. Nada. As mãos que seguravam a espada eram as de um esqueleto. O anel ficava ao redor do osso. Ele estendeu-me a espada, com as mãos de esqueleto. Uma voz, que não era a de meu pai, disse: "Pegue-a." Não era a voz de um fantasma, nem a voz que me ordenava nas visões; essas eram vozes sem vida, soavam como se o vento estivesse soprando por um chifre vazio. Esta era a voz de um homem, profunda, áspera, acostumada a comandar, um pouco irritada, como quando se está zangado, bêbado, ou, como agora, fatigado. Tentei mover-me, mas não consegui; tampouco consegui falar-Eu nunca temera um espírito, mas temia este homem. De dentro das sombras vazias do elmo chegou-me a voz novamente, sombria, mas com um leve toque de divertimento, que me arrepiou a pele, como se tivesse encostado no pêlo de um lobo na escuridão. Minha respiração parou e a minha pele tremia. Ele falou, e agora, claramente eu percebia a exaustão na sua voz. — Não precisa temer-me. Nem precisa temer a espada. Não sou seu pai, mas você descende de mim. Pegue-a, Merlinus Ambrosius. Não terá descanso até que o faça. Acerquei-me dele. O fogo diminuíra e estava quase escuro. Estendi as mãos para que depositasse nelas a espada. Fiquei imóvel, embora horrorizado à idéia de tocar os dedos ossudos. Mas nada havia para tocar. Quando largou a espada, ela caiu, por entre as suas mãos e as minhas, para o chão. Ajoelheime, procurando na escuridão, mas minha mão nada encontrou. Podia sentir a sua respiração acima de mim, quente como a de um homem vivo, e sua capa tocou-me a face. Ouvi-o dizer: — Encontre-a. Ninguém mais pode encontrá-la. — Aí meus olhos abriram-se e era dia claro, e a égua encostava em mim o seu focinho, a crina a tocar-me o rosto.

8 Dezembro não é boa época para viajar, especialmente para quem não pode usar as estradas. As matas estão abertas e sem vegetação rasteira, mas há lugares nos vales mais remotos em que só há passagem ao longo dos rios, caminhos difíceis e tortuosos, onde as margens estão danificadas pelas inundações e pelo mau tempo. Pelo menos, não nevou, mas no segundo dia, depois que deixei Bryn Myrddin, o tempo piorou, com um vento frio com rajadas de granizo, e gelo pelos caminhos. Ia devagar. No terceiro dia, perto do anoitecer, ouvi o uivo de lobos ao longe. Ficava sempre nos vales, nas florestas densas, mas, aqui e ali, quando havia brechas na floresta, avistava as colinas, cujo cimo estava branco de neve fresca. E mais estava para vir; o ar cheirava a neve, o frio mordia o meu rosto. A neve faria com que os lobos se aproximassem. Aliás, quando a noite chegou, e a floresta adensou-se, pensei ter visto uma sombra que se esgueirava entre os troncos, e havia ruídos na vegetação que podiam ser feitos Por animais inofensivos como raposas ou veados; mas observei que Morango estava inquieta; repuxava as orelhas repetidamente, e a pele dos costados contraía-se como se moscas estivessem pousando nela. Eu ia olhando para os lados, e com a espada à mão. — Mevysen, — conversava com a minha égua galesa na sua própria língua — quando encontrarmos esta grande espada que Macsen Wledig está guardando para mim, eu e você seremos realmente invencíveis. E é preciso que a encontremos. Mas, agora, estou com tanto medo dos lobos quanto você, por isso vamos indo até encontrarmos um lugar onde possamos defender-nos com esta arma e cor a minha pouca habilidade, e aí passaremos a noite. O lugar defensável era a casca de uma construção bem dentre da floresta. Literalmente, uma casca; era tudo que restava de uma construção pequena na forma de uma estufa, ou de uma colméia. A metade tinha desmoronado, deixando o restante como um ovo quebrado pela extremidade, com a meia cúpula virada contra o vento e oferecendo alguma proteção contra o granizo intermitente. A maior parte da alvenaria caída fora removida (provavelmente roubada), mas ainda restou o suficiente para abrigar e esconder a mim e a égua. Desmontei e levei-a para dentro. Ela foi com cuidado por entre as pedras cobertas de limo, sacudiu-se, e logo estava acomodada com a comida, sob a curvatura seca da cúpula. Coloquei uma pedra pesada em cima da ponta da sua corda, enxuguei-a com umas samambaias arrancadas da parede, e cobri-a. Ela parecia ter perdido o medo e mastigava serenamente. Ajeitei-me como pude, com um alforje por cadeira, e servi-me do que restava de comida e vinho. Gostaria de poder acender um fogo, para aquecer-me e espantar os lobos, mas talvez houvesse outros inimigos, que não os lobos, à minha procura; assim, com a espada à mão, embrulhei-me nas peles de carneiro, comi as rações frias e cochilei, pois o perigo e o desconforto não me deixavam dormir. E sonhei de novo. Não, desta vez, com reis ou espadas ou estrelas movendo-se, mas um sonho semi-desperto, incerto e aos pedaços, dos deuses pequenos dos lugares pequenos; deuses de colinas e matas e riachos e encruzilhadas; os deuses que ainda assombram os seus santuários destruídos, à espera no escuro, por trás das luzes das cheias igrejas cristãs com seus rituais obstinados dos grandes deuses de Roma. Nas cidades e lugares povoados os homens esqueceram-se deles, mas nas florestas e regiões selvagens, a gente ainda deixa oferendas de comida e bebida, e reza para os guardiães, desde tempos imemoriais, dos locais. Os romanos deram-lhes nomes romanos, e os ignoraram; mas os cristãos recusam-se a crer neles, e seus sacerdotes repreendem a gente pobre por apegar-se aos seus velhos

costumes... e, sem dúvida, por desperdiçar oferendas que teriam melhor uso na cela de algum ermitão do que num ermo lugar sagrado da floresta. Mas a gente pobre ainda deixa as suas oferendas e, quando elas somem pela manhã, por que não acreditar que foi um deus que as levou? Este, pensava no meu sonho, deve ser um dos tais lugares. Eu estava na mesma floresta e a abside de pedra onde eu me sentava era a mesma, como era o mesmo o muro de pedras limosas à minha frente. Estava escuro, e nos meus ouvidos ressoava o barulho dos ramos altos varridos pelo vento, na floresta. Não escutei nada acercando-se, mas, ao meu lado, a égua agitou-se e ergueu a cabeça, e deparei com olhos que me observavam do outro lado do muro. Tolhido pelo sono, não podia mover-me. Rapidamente, e no mesmo silêncio, outros chegaram. Eram apenas sombras na fria escuridão; não lobos, mas sombras, como homens; figuras pequenas aparecendo uma a uma, silenciosas, como fantasmas, até que me encurralaram, oito delas, ombro a ombro na entrada do abrigo. Ali ficaram sem falar ou mexer-se, oito pequenas sombras, parte da floresta e da noite como as trevas ao redor das árvores. Eu apenas via (quando, por cima das árvores nuas, uma nuvem descobria momentaneamente as estrelas de inverno) o brilho dos olhos atentos. Nenhum movimento, nenhuma palavra. Mas, subitamente, eu soube que estava acordado. E eles ainda estavam lá. Não puxei a espada. Com oito contra um não se deve nem tentar e, sim, experimentar outros métodos. Nem tive essa oportunidade. Quando fiz menção de falar, um deles disse algo que se perdeu no vento, e imediatamente fui jogado contra a parede atrás de mim, amordaçado, e tive as mãos atadas às costas, firmemente. Eu fui, semi-carregado, semi-arrastado, tirado do abrigo e jogado do lado de fora, com as costas contra as pedras que formavam o muro. Um deles, a duras penas, conseguiu pôr fogo num trapo enfiado num velho chifre de boi, que fazia as vezes de archote; a luz era fraca mas, com a sua ajuda, remexeram os alforjes e examinaram a égua com cuidado e curiosidade. Depois, trouxeram a luz até onde eu estava, com dois de guarda, e, com o trapo fedorento enfiado quase na minha cara, examinaram-me do mesmo modo que à égua. Pelo simples fato de que ainda estava vivo, deduzi que não eram ladrões; na verdade, nada retiraram dos alforjes, e embora tivessem desarmado, não me revistaram mais. Comecei a temer, ao ver balançavam as cabeças e davam exclamações de satisfação, que, realmente, estivessem estado à minha procura. Mas, nesse caso, pensei, se quisessem saber o meu destino, se tivessem sido pagos para isto, teria sido melhor me terem seguido sem serem notados. Desse modo, eu os teria conduzido à porta da casa do Conde Ector. Os seus comentários não revelavam o que queriam comigo, mas revelaram-me algo muito importante: falavam numa língua que nunca escutara, mas que conhecia; o velho idioma dos Britânicos, que meu mestre Galapas ensinara-me. Ele ainda tem um pouco da forma da nossa língua, mas as pessoas que o falam vivem há tanto tempo afastadas dos outros homens, que a sua fala sofreu alterações, com o acréscimo de palavras e a mudança do sotaque, de tal modo que é preciso estudo e bom ouvido para poder entendê-la. Eu escutava as inflexões familiares, aqui e ali uma palavra que reconhecia como o galés de Gwynedd, mas o sotaque mudara, carregado e estranho por quinhentos anos de isolamento, com palavras sobrevivendo, já em desuso em outros dialetos, e o acréscimo de sons como ecos das colinas ocas e dos deuses e criaturas selvagens que ali habitavam. Assim, eu soube quem deveriam ser esses homens. Eram os descendentes das tribos que, havia muito, tinham fugido para as colinas mais remotas, deixando as cidades e as terras cultiváveis para os romanos, e, depois destes, para os federados de Cunedda, de Guotodin, e que, como aves sem lar,

passaram a viver nas partes altas da floresta, onde a vida era difícil, e ninguém queria competir com eles. Aqui e ali tinham fortificado uma colina, mas, se valia a pena fortificá-la, era imediatamente cobiçada por conquistadores, que, eventualmente, a conseguiam. Assim, colina por colina, os remanescentes dos inconquistados tinham recuado, até que só sobraram para eles os penhascos, as cavernas e a terra nua que o inverno cobria de neve. Ali viviam, sem que ninguém os visse, senão por acaso, ou quando assim o desejavam. Eram eles, imaginava eu, que vinham à noite levar as oferendas colocadas nos santuários. Meu sonho semi-desperto fora bem verdadeiro. Talvez fossem apenas esses, dos moradores das colinas ocas, os que fossem visíveis. Falavam abertamente (o mais abertamente possível para esse tipo de gente) sem saber que eu podia compreendê-los. Conservei os olhos baixos, e escutei. — Tem que ser ele. Quem mais viajaria pela floresta numa noite como essa? E numa égua cor de morango? — É verdade. Sozinho, disseram, numa égua avermelhada. — Quem sabe ele matou o outro e roubou a égua? Está escondendo-se, isto é certo. Senão não estaria sem um fogo, em pleno inverno e com os lobos tão perto. — Não é dos lobos que tem medo. Pode apostar, é este o homem que eles querem. — E pelo qual pagam. — Dizem que é perigoso. Não me pareceu. — Estava com a espada à mão. Mas não a pegou. Fomos ligeiros demais. — Ele já nos tinha visto. Teve tempo. Você não devia tê-lo pego desse jeito, Cwyll. Não disseram para pegá-lo. Disseram para encontrá-lo e segui-lo. — Agora é tarde. Já o pegamos. Que faremos? Devemos matá-lo? — Llyd saberá. — É. Llyd saberá. Não conversaram da maneira que descrevi, mas aos arrancos, frases curtas trocadas no idioma escasso e estranho. Finalmente, deixaram-me entre os meus dois guardas e afastaram-se um pouco. Para esperar, supus, por Llyd. Chegou uns vinte minutos mais tarde, com dois companheiros; três sombras que não mais faziam parte da escuridão da floresta. Os outros o cercaram, falando e apontando, até que, finalmente, pegou a tocha (quase que só um simples trapo cheirando a resina) e veio na minha direção. Os outros vieram atrás. Formaram quase um círculo a meu redor, como antes. Llyd levantou bem a tocha, e vi os meus captores, não claramente, mas o suficiente para reconhecê-los. Eram homens pequenos e de cabelos escuros, com rostos rudes e vincados, a que o clima e a vida difícil deram a textura de madeira enrugada. Vestiam peles mal curtidas, calças espessas de tecido grosseiro tingido com os marrons, verdes e cores possíveis de extrair-se das plantas das montanhas. Tinham armas de várias espécies, clavas, facas, machados de pedra afiados. O que dera as ordens até a chegada de Llyd estava com a minha espada. Llyd disse:

— Foram para o norte. Não há ninguém na floresta para ver ou ouvir. Tirem a mordaça. — Que diferença faz? — Era o sujeito que segurava a minha espada falando. — Não entende o Velho Idioma. Olhem para ele. Nem compreende. Há pouco falamos em matá-lo, e ele nem pareceu ter medo. — Isto apenas confirma o que já sabíamos, que é corajoso. Um homem, atacado como ele foi e amarrado como está, deve esperar a morte, mas não há medo nos seus olhos. Façam o que digo. Sei bastante para perguntar o seu nome e para onde ia. Tirem a mordaça. Vocês, Pwul e Areth, vão procurar material para fazer um fogo. Quero uma boa luz para poder vê-lo direito. Um dos dois ao meu lado afrouxou o nó e soltou a minha mordaça. Cortara o canto da minha boca, e estava cheia de sangue e cuspe, mas ele botou-a na sua sacola. No seu grau de miséria, não desperdiçavam nada. Fiquei imaginando quanto "eles" tinham prometido pagar por mim. Se Crinas e seus amigos me tinham seguido até aqui e, depois, posto esta gente a vigiar-me e descobrir para onde me dirigia, a atitude precipitada de Cwyll estragara o plano. Mas também estragara o meu. Mesmo que decidissem deixar-me livre, agora, para poderem seguir-me em segredo, minha viagem era infrutífera. Mesmo prevenido, jamais conseguiria despistar estes seguidores. Eles vêem tudo que se move na floresta e enviam mensagens tão depressa quanto as abelhas. Eu já sabia que a floresta estaria cheia de observadores, mas, geralmente, eles não aparecem, e cuidam da sua vida. Agora, percebi que só atingiria Galava sem ser denunciado se conseguisse que eles passassem para o meu lado. Esperei para saber o que o chefe tinha a dizer. Perguntou vagarosamente, em mau galés: — Quem é você? — Um viajante. Vou para casa de um velho amigo, no norte. — No inverno? — Era preciso. — De onde... — procurava as palavras — ... de onde vem? — De Maridunum. Aparentemente, isto conferia com o que "eles" tinham dito. Assentiu. — É um mensageiro? — Não. Os seus homens viram o que eu levo. Um deles disse depressa, no Velho Idioma: — Ele leva ouro. Nós vimos. Ouro no cinturão, e um pouco costurado à cilha da égua. O chefe encarou-me. Não decifrei a sua expressão; era transparente como um tronco de carvalho. Falou por cima do ombro, sem desfitar-me: — Revistaram-no? — Falava na sua própria língua. — Não, vimos o que havia na sacola quando tiramos as suas armas. — Revistem-no agora. Eles obedeceram, sem gentileza. Depois, mostraram o que tinham encontrado, tudo amontoado ao redor da luz débil da tocha. — O ouro. Olhe quanto. Um broche com o dragão da casa real. Não é uma insígnia, sinta o peso, é ouro. A marca do Corvo de Mitras. E vai de Maridunum para o norte, secretamente. — Cwyll puxou a

minha capa sobre a marca exposta e levantou-se. — Deve ser o homem de que os soldados falaram. Ele está mentindo. É o mensageiro. Vamos deixar que se vá e segui-lo. Mas Llyd disse devagar, olhando para mim: — Um mensageiro levando uma harpa, o sinal do Dragão e a marca do Corvo? E saindo sozinho de Maridunum? Não; só pode ser um homem: o mágico de Bryn Myrddin. — Ele? — Era o homem que segurava a minha espada. Quase largou, depois engoliu em seco e segurou-a firme de novo. — Ele, o mágico? É muito moço. Além disso, já ouvi falarem no mágico. Dizem que é um gigante, com olhos que gelam a gente até o âmago. Deixe-o ir, Llyd, e nós o seguiremos, como querem os soldados. Cwyll ecoou, inquieto: — É, deixe-o ir. Reis nada representam para nós, mas não é bom fazer mal a um mágico. Os outros acercaram-se, curiosos e pouco à vontade. — Um mágico? Não mencionaram isso, ou não teríamos tocado nele. — Ele não é mágico, veja como está vestido. Além disso, se conhecesse mágica, teria feito com que parássemos. — Estava dormindo. Até os feiticeiros têm de dormir. — Ele estava acordado e nos viu. E não fez nada. — Nós o amordaçamos primeiro. — Ele agora não está amordaçado, e não está dizendo nada. — É, Llyd, deixe-o ir, e nós receberemos o dinheiro que os soldados ofereceram. Disseram que nos pagariam bem. Mais resmungos e acenos de cabeça. Um deles falou, pensativo: — Ele carrega mais do que o que nos ofereceram. Llyd estivera quieto, mas agora interrompia a conversa, muito zangado. — E nós somos ladrões? Ou contratados para arranjar informações a troco de dinheiro? Já lhes disse, não farei o que os soldados pediram, cegamente, apesar do seu dinheiro. Quem são eles para que nós, os Antigos, façamos o seu trabalho? Faremos o nosso. Aqui há algumas coisas que eu gostaria de saber. Os soldados nada nos disseram. Talvez este homem diga. Acho que há coisas muito importantes envolvidas. Olhem para ele; não tem jeito de mensageiro. É um homem de destaque. Vamos desamarrálo e conversar. Acenda o fogo, Areth. Enquanto estivera falando, os dois a quem tinha dado ordens trouxeram ramos e folhas com que armaram uma pira pronta para queimar. Mas não devia haver um único graveto seco na floresta naquela noite. Embora a chuva de granizo já houvesse cessado, tudo estava ensopado, e o chão parecia esponjoso, como se estivesse molhado até o centro da Terra. Llyd fez sinal para os dois que me vigiavam. — Podem desamarrá-lo. E um de vocês traga comida e bebida. Um deles logo obedeceu, mas o outro hesitou, brincando com a faca. Outros acercaram-se, discutindo. Aparentemente, a autoridade de Llyd não era a de um rei, mas a de um chefe, cujos companheiros têm o direito de perguntar e aconselhar. Entendi fragmentos do que diziam, depois escutei Llyd dizer claramente:

— Há coisas que precisamos saber. O conhecimento delas é único poder que temos. Se não nos disser por bem, então teremos que fazer com que diga... Areth tinha conseguido pôr a pira úmida a arder, mas não havia luz nem calor, só uma fumaça intermitente, acre e suja, que invadia todos os recantos, impulsionada pelo vento, fazendo arder os olhos e dificultando a respiração. Já era hora que eu fizesse alguma coisa. Já soubera o suficiente. Falei, claramente, no Velho Idioma: — Afaste-se do fogo, Areth. Fez-se silêncio completo. Não olhei para eles, e sim para as achas fumegantes. Abstraía-me dos meus pulsos amarrados, da dor das minhas pisaduras, do desconforto das minhas roupas ensopadas. E, tão fácil quanto uma inspiração seguida por uma expiração, o poder me percorreu, livre e tranqüilo. Algo caiu na escuridão, uma flecha de fogo, ou estrela cadente. Numa chuva de fagulhas brancas que pareciam granizo em fogo, a pira acendeu-se, fulgurante. O fogo surgia por entre o granizo, ardente, as chamas enormes, douradas e vermelhas, e gloriosamente quentes. O granizo caía no fogo, chiando, e o fogo se alimentava dele, como se fosse óleo. O rugido do fogo enchia a floresta e ecoava como o galope de cavalos. Tirei os olhos do fogo e olhei à minha volta. Não havia ninguém. Sumiram como se fossem espíritos das colinas. Eu estava sozinho na floresta, encostado nas rochas caídas, com as minhas roupas secando-se e desprendendo vapor, e com as cordas mordendo dolorosamente os meus pulsos. Algo tocou-me as costas. A lâmina de uma faca de pedra. Deslizou entre a pele dos meus pulsos e as cordas, cortando-as. Cederam. Movi meus ombros endurecidos, esfreguei os pulsos machucados. Havia um corte pequeno, que sangrava, feito pela faca. Não falei nem olhei para trás, mas fiquei parado, esfregando os pulsos e as mãos. Às minhas costas, uma voz falou. Era Llyd. Falava no Velho Idioma. — Você é Myrddin, chamado Emrys ou Ambrósio, filho de Ambrósio, o filho de Constâncio, descendente do sêmen de Macsen Wledig? — Eu sou Myrddin Emrys. — Meus homens o pegaram por engano. Não sabiam. — Agora já sabem. Que vai fazer comigo? — Deixar que parta quando tiver vontade. — E, entrementes, interrogar-me, forçando-me a contar assuntos importantes que me dizem respeito? — Sabe que não podemos forçá-lo a nada. Nem queremos. O senhor nos contará o que quiser, e partirá quando quiser. Mas podemos protegê-lo enquanto dorme, e temos comida e bebida. Oferecemos com prazer. — Então, eu aceito. Obrigado. Sabe o meu nome. Eu já ouvi o seu, mas gostaria que se apresentasse. — Eu sou Llyd. Meu ancestral era Llyd das florestas. Todos os homens aqui descendem de um deus. — Então, nada têm a temer de um homem que descende de um rei. Terei prazer em partilhar a

sua refeição e conversar com você. Venha partilhar do calor do meu fogo. A comida era um pedaço de lebre assada, fria, e uma bisnaga de pão preto. Tinham carne de veado fresca, conseguida no saque dessa noite; guardaram-na para a tribo, mas jogaram no fogo para assar os miúdos, junto com uma galinha preta e uns bolinhos chatos que tinham jeito, e cheiro, de ser misturados com sangue. Era fácil adivinhar onde eles e a lebre tinham sido apanhados; encontram-se em todas as encruzilhadas da região. Aquela gente não considerava blasfêmia apanhar os sacrifícios; como Llyd dissera, acham que são descendentes dos deuses, e que têm direito às suas oferendas; eu, por mim, não vejo mal nisso. Aceitei o pão, um pedaço de coração de veado e um pouco da bebida forte e doce que eles fazem com ervas e mel silvestre. Os dez homens sentaram-se ao redor do fogo, enquanto Llyd e eu, um pouco afastados, conversávamos. — Os soldados que queriam que eu fosse seguido. Que tipo de homens eram? — Cinco homens, soldados bem armados, mas sem brasão. — Cinco? Um deles ruivo, grande, de jaqueta marrom e capa azul? E outro num cavalo malhado? — Este fora o único cavalo que Stilicho pudera ver, com as suas manchas brancas visíveis na escuridão do bosque. Devia haver um quinto homem, que ficara de guarda no sopé do vale. — Que lhe disseram? Mas Llyd estava fazendo que não com a cabeça. — Não havia nenhum homem como o que descreveu, nem nenhum cavalo. O chefe era um homem claro, magro como uma vareta, barbudo. Disseram que ficássemos de olho num homem que viajava sozinho numa égua cor de morango, não sabiam para onde Mas que o seu amo pagaria bem para saber para onde ia. Jogou o osso que estava roendo por cima do ombro, limpou a boca e olhou-me nos olhos. — Eu disse que não faria perguntas, mas diga-me apenas isso Myrddin Emrys. Por que o filho do Grande Rei Ambrósio e parente de Uther Pendragon está-se escondendo sozinho na floresta, enquanto os homens de Urien o procuram, desejando-lhe mal? — Homens de Urien? Sua voz denotava profunda satisfação, quando falou: — Ah! Algumas coisas a sua mágica não lhe diz. Mas, nesses vales, ninguém se mexe sem que a gente saiba. Ninguém vem aqui sem ser marcado e seguido até que a gente saiba de que se trata. Conhecemos Urien de Gore. Aqueles eram seus homens, falavam a língua de sua terra. — Então, você pode falar-me de Urien — pedi. — Sei quem é. Um rei pequeno de uma região pequena, cunhado de Lot de Lothian. Não conheço motivo para que ele ande atrás de mim. Estou a serviço do Rei, e Urien não tem rixas comigo ou com o Rei. Ele e seu cunhado de Lothian são aliados de Rheged e do Rei. Será que Urien passou-se para outro lado? Do Duque Cador? — Não. Continua do lado do Rei Lot. Fiquei calado. O fogo crepitava e acima de nós a floresta mexia e agitava-se. O vento estava amainando. Eu estava pensando furiosamente. Não tinha dúvidas de que Crinas e a sua turma fossem gente de Cador; agora, parecia que houvera outros espiões do norte, vigiando e esperando, e que deram com a minha trilha. Urien, o chacal de Lot. E Cador. Dois dos mais poderosos aliados de Uther, a sua mão direita e a esquerda; e, no momento em que o Rei começou a falhar, mandaram espiões à procura do príncipe... O padrão desfez-se e formou-se de novo, como se fosse um reflexo na água, quando se

joga uma pedra; mas, não o mesmo padrão; a pedra está lá no meio, mudando tudo. O Rei Lot, noivo de Morgiana, a filha do Grande Rei. O Rei Lot! — Ouvi você dizer que os homens prosseguiram para o norte — falei, finalmente. — Iam diretamente prestar contas a Urien ou ainda estavam tentando achar-me e seguir-me? — Segui-lo. Iam mais para o norte procurar sinais do senhor. Se não acharem nada, irão para o lugar em que marcamos encontro com eles. — E vocês irão ao encontro? Nem respondeu, deu só uma cusparada para o lado. Sorri. — Vou-me embora amanhã. Pode indicar-me uma trilha que os soldados não conheçam? — Com prazer, mas para isso é preciso que eu saiba para onde se dirige. — Estou seguindo um sonho que tive — contei-lhe. Ele assentiu. Isto faz sentido para esta gente das colinas. Guiam-se pelo instinto, como animais, observam os céus e esperam presságios. Pensei durante um minuto, depois perguntei: — Você falou em Macsen Wledig. Quando ele deixou as ilhas para ir a Roma, algum dos seus foi com ele? — Meu bisavô chefiou um grupo que foi com Macsen. — E voltou? — Voltou. — Contei-lhe que tive um sonho. Sonhei que um Rei morto falou comigo, dizendo-me que antes de cuidar do vivo, eu tinha uma obrigação a cumprir. Sabe o que foi feito da espada de Macsen? Ele ergueu a mão num sinal que eu nunca vira. Mas eu sabia o que era: um sinal forte contra mágica forte. Resmungou consigo mesmo palavras que não entendi, depois dirigiu-se a mim, com voz rouca. — Afinal, chegou. Louvados sejam Arawn, e Bilis, e Myrddin das alturas. Sabia que era coisa importante. Senti na minha pele, como se sente a chuva caindo. Então, é isto que procura, Myrddin Emrys? — É isto que procuro. Estive no Oriente e lá me disseram que a espada, juntamente com parte do tesouro do Imperador, voltou para o Ocidente. Acho que fui guiado até aqui. Pode ajudar-me mais um pouco? Fez que não com a cabeça, devagar. — Não. Nada sei sobre isto. Mas há quem pode ajudá-lo, na floresta. A história vem passando de geração em geração. É só o que posso dizer. — O seu bisavô não disse nada? — Não disse isso. Vou contar-lhe o que ele disse. — Começou a usar a fala cantada dos contadores de história. Sabia que usaria as palavras exatas; essa gente passa a história de geração em geração com palavras imutáveis e precisas, como o relevo de uma taça. — A espada foi largada por um imperador morto, e será erguida por um vivo. Foi trazida para casa por água e por terra, com sangue e fogo, e por terra e por água voltará para casa, e ficará escondida na pedra flutuante até que seja erguida novamente pelo fogo. Só será erguida por um homem nascido legitimamente do sêmen da Inglaterra.

A fala cantada cessou. Os outros ao redor do fogo tinham parado a conversa para escutar; vi seus olhos brilharem e as suas mãos fazerem o sinal antigo. Llyd pigarreou, cuspiu de novo e disse, asperamente: — Isso é tudo. Eu disse que não o ajudaria. — Se tiver de encontrar a espada, — repliquei — terei ajuda não tenha dúvida. E agora, sei que estou chegando perto. Onde a canção está, a espada não pode estar muito longe. E depois que a encontrar... Acho que sabe para onde vou. — Para onde mais iria Myrddin Emrys, em segredo e no inverno, senão para o lado do Príncipe? Assenti. — Ele está para além do seu território, Llyd, mas ao alcance dos olhos do seu povo. Sabe onde é? — Não. Mas saberemos. — Alegro-me que assim seja. Vigiem-me, se quiserem, e quando virem para onde eu vou, vigiem-no para mim. Este será um Rei, Llyd, que dispensará aos Antigos das colinas a mesma justiça que dispensará aos reis e bispos que se reúnem em Winchester. — Nós o vigiaremos para você. — Então, sigo para o norte, como pretendia, à espera de orientação. Agora, se me permite, gostaria de dormir. — Estará em segurança — afirmou Llyd. — Com o romper da aurora, mostraremos o seu caminho.

9 O caminho que mostraram era um atalho, nem pior nem melhor que os outros que já seguira, porém, mais fácil de acompanhar graças aos sinais secretos que me ensinaram, e mais curto que a própria estrada. Havia curvas súbitas e acesso a gargantas estreitas que, sem os sinais, eu nunca suspeitaria que dessem passagem. Ia seguindo por um desfiladeiro estreito e cheio de árvores, que aparentemente dava para uma parede sólida de montanha, com o som de uma torrente a ecoar pelas rochas; mas sempre, quando a alcançava, encontrava a passagem, estreita e quase sempre perigosa, mas limpa' dando para uma fenda (até então) invisível na descida íngreme a frente. Assim viajei por mais dois dias, sem ver ninguém, descansando pouco, alimentando-se, e à égua, do que os Antigos me tinham dado. Na manhã do terceiro dia, a égua perdeu uma ferradura. Por sorte, estávamos num trecho bom, uma extensão de pasto entre um vale e outro, deserto nesta época, fácil de trilhar. Desmontei e fui conduzindo Morango pela colina, olhando para os vales abaixo de mim para ver se via sinais de uma estrada, ou a fumaça de um povoado. Sabia mais ou menos onde estava; embora a neblina e as tempestades de neve obscurecessem os cumes mais altos, tinha divisado, por entre elas, o cimo branco da grande Colina de Neve que segura o céu de inverno. Já passara por aqui, pela estrada, e reconheci a forma das colinas mais próximas. Tinha certeza de que não precisaria andar muito para achar uma estrada, e um ferreiro. Pensara em remover as outras ferraduras de Morango, eu mesmo, mas a viagem tinha sido bem dura, e se ela não estivesse ferrada, já estaria manca há muito. Além disso, estávamos ficando sem comida, e nada havia para achar pelos caminhos, por causa do inverno. Era preciso correr o risco de ser visto e reconhecido. Era um dia gélido e claro. Lá pelo meio-dia vi a fumaça da aldeia, e, alguns minutos depois, o brilho da água no vale lá embaixo. Fui descendo com a égua. Passávamos por sob carvalhos, aqui e ali, com seus ramos de folhas secas. Logo avistei, por entre os troncos nus, o brilho cinzento do rio deslizando entre as suas margens. Bem acima dele, parei a égua no limiar do bosque de carvalhos. Nenhum movimento, nenhum som, só o rio barulhento, que abafava até os latidos dos cachorros na aldeia. Tinha certeza de não estar muito longe da estrada principal. Esperava encontrar um ferreiro na junção do rio com a estrada. Geralmente, acha-se um onde o rio dá vau ou onde há uma ponte. Ficando por dentro do bosque de carvalhos, conduzi Morango, suavemente, para o norte. Assim viajamos por mais uma hora, mais ou menos, até que o vale fez uma curva para o noroeste, e bem à minha frente, ligando-o a um vale vizinho, vi a faixa verde que indicava uma estrada. E pude ouvir, nitidamente, no silêncio do inverno, o ruído metálico de um malho. Não vi sinal do povoado, mas o bosque era denso na junção da estrada com o rio, e eu sabia que qualquer aldeia por aqui seria levantada numa elevação para permitir que os homens se defendessem. O ferreiro, no seu estabelecimento solitário à beira da água, não precisava ter medo. Esses homens são sempre úteis, e não têm nada de valor, além de se cercarem de uma aura do temor que despertam os lugares onde estradas e águas se encontram. O ferreiro podia passar por um dos Antigos. Era um homem pequeno e curvado pelo ofício, mas com ombros imensos, braços cheios de músculos, e cobertos com um pêlo grosso como o de um urso.

As mãos, largas e riscadas, eram quase tão pretas quanto 0 cabelo. Levantou os olhos do trabalho quando a minha sombra encheu o portal. Cumprimentei-o, prendi a égua numa argola perto da porta e sentei-me para esperar, gozando do calor do fogo, que um rapazinho de avental de couro abanava. O ferreiro respondeu ao meu cumprimento com um olhar vivo, depois, sem pausa no ritmo de trabalho, voltou a malhar. Estava fazendo uma lâmina de arado. Com o chiar do vapor e a diminuição dos golpes, a lâmina foi-se acinzentando e esfriando, até ficar bem afiada. O ferreiro murmurou algo para o rapaz do fole, que deixou escapar o ar, e apanhando o balde de água, saiu da ferraria. O ferreiro largou o malho, ergueu-se e esticou-se. Pegou um odre de vinho pendurado na parede, bebeu e limpou a boca. Os olhos de perito percorreram a égua. — Trouxe a ferradura? — Quase que esperava ouvi-lo falar no Velho Idioma, mas falou mesmo em galés. — Senão vai levar muito mais tempo do que gostaria de perder, garanto. Ou quer que remova as outras três? Sorri um sorriso largo. — E me pagará por elas? — Eu o faria por nada — respondeu, com um sorriso de dentes pretos. Entreguei-lhe a ferradura. — Coloque-a novamente e ganhará um penny. Pegou-a e examinou-a, revirando-a nas mãos calosas. Depois, assentiu, e pegou a pata da égua. — Vai para longe? Parte do pagamento de um ferreiro eram as novidades que o freguês trazia. Eu já esperava por isso, e tinha uma história pronta. Ele limava e escutava, enquanto a égua ficava entre nós, quieta, cabeça baixa e orelhas relaxadas. Daí a pouco chegou o rapazinho com um balde cheio que derramou na bacia. Demorara muito e resfolegava, como se tivesse corrido. Se prestei alguma atenção, foi para imaginar que, como todo garoto, demorara demais a cumprir a ordem e tivera que se apressar na volta. O ferreiro não fez comentários, rosnou para ele voltar ao fole, e logo o fogo crepitava, e a ferradura ficou vermelha em brasa. Suponho que devia estar mais alerta, embora só de estar aqui já estivesse me arriscando muito. E havia uma chance de que os soldados à procura do cavaleiro na égua cor de morango não tivessem passado por aqui. Mas parece que tinham. Com o barulho do forno e do malho, não escutei que se aproximavam, de repente vi as sombras entre mim e a porta, e os quatro homens que lá estavam, todos armados e com as armas à mão, como se estivessem perfeitamente preparados para usá-las. Dois tinham lanças, de fabricação caseira mas absolutamente mortíferas, um segurava uma faca de lenhador, com a lâmina afiada, capaz de penetrar num tronco de carvalho, e o quarto segurava, com perícia, uma curta espada romana. O último deles era o porta-voz. Saudou-me com educação, enquanto o ferreiro parava de malhar e o garoto ficava olhando. — Quem é você, e para onde vai? Respondi no seu dialeto, sem sair de onde estava sentado. — Meu nome é Emrys, e estou indo para o norte. Tive que me desviar do meu caminho porque, como vêem, a minha égua perdeu uma ferradura.

— De onde é você? — Do sul, onde não mandamos homens armados contra os estranhos que passam por nossas aldeias. Do que têm medo, vindo assim, quatro contra um? Ele resmungou qualquer coisa, e os dois homens com as lanças abaixaram-nas, arrastando os pés. Mas o espadachim continuou firme. — Você fala a nossa língua bem demais para ser um estranho. Acho que é o homem que procuramos. Quem é? — Não sou estranho para você, Brychan — respondi calmamente. — Você arranjou esta espada em Kaerconan, ou nós a tomamos quando desbaratamos as tropas de Vortigern na encruzilhada perto de Bremia? — Kaerconan? — Baixou a espada. — Você lutou lá, com Ambrósio? — Estive lá, sim. — E em Bremia? Com o Duque Gorlois? — A espada agora apontava para o chão. — Espere, disse que se chamava Emrys? Não é Myrddin Emrys, o profeta que ganhou a luta para nós, depois cuidou dos nossos ferimentos? O filho de Ambrósio? — O próprio. Os homens da minha raça não dobram o joelho com facilidade, mais o ato de embainhar a espada e o sorriso de prazer, com os dentes pretos à mostra, representaram a mesma coisa. Por todos os santos, é mesmo! Não o reconheci, senhor, guardem as armas, idiotas, não estão vendo que é um príncipe, a quem não podemos magoar? — Não se pode culpá-los por não perceberem isso! — disse eu, rindo. — Agora não sou nem príncipe nem profeta, Brychan braud. Estou viajando em segredo, preciso de ajuda... e de silêncio. — O senhor terá qualquer coisa que possamos dar, meu senhor. — Observou o meu olhar involuntário para o ferreiro e para o garoto atento, e acrescentou depressa: — Homem algum aqui dirá uma palavra, garanto-lhe. Nem o garoto, tampouco. O garoto anuiu, engolindo em seco. O ferreiro falou, no seu jeito áspero: — Se tivesse sabido quem o senhor era... — Não teria mandado o garoto correr para a aldeia com as novidades? — perguntei. — Não tem importância. Se é leal ao Rei, como Brychan, posso confiar em você. — Todos aqui somos leais ao Rei, — falou Brychan com aspe-reza — mas, se o senhor fosse o pior inimigo de Uther, em vez de filho do seu irmão e vencedor das suas batalhas, eu o ajudaria, como fariam os meus parentes e todos os homens dessas regiões. Quem foi que salvou esse meu braço, depois de Kaerconan? Foi graças ao senhor que pude erguer esta espada contra si, hoje. — Bateu no seu cabo. Eu me lembrava do braço; um machado saxão penetrara fundo, tirando uma fatia de músculo e expondo o osso. Eu costurara e tratara do braço; por artes da medicina, ou pela fé que Brychan tinha em qualquer coisa feita pelo "profeta do Rei", o braço sarara. Grande parte da sua força estava perdida, mas ainda servia-lhe. — Quanto aos demais, — terminou ele — todos somos leais. O senhor e seus segredos estão seguros aqui. Todos sabemos que o futuro do país está em suas mãos, Myrddin Emrys. Se soubéssemos que era o "viajante" que os soldados estavam procurando, nós os teríamos detido aqui até a sua chegada... e os mataríamos a um simples aceno seu. — Lançou um olhar feroz ao seu redor, e todos concordaram. Até o ferreiro resmungou em concordância, e baixou com força o malho, como se fosse

um machado sobre o pescoço de um inimigo. Expressei-lhes o meu agradecimento. Estivera por muito temp0 longe do interior; por muito tempo estivera conversando com estadistas, senhores e "príncipes. Já estava pensando como eles. Não eram apenas os nobres e os reis guerreiros que poriam Artur no trono e ali o manteriam; o povo da Inglaterra também, enraizado na terra, tirando dela o seu sustento, como as árvores, o colocaria ali, e lutaria por ele. Seria a fé de todo o povo, das terras altas e das baixas, que o faria Grande Rei de todos os reinos e ilhas, da maneira completa com que meu pai sonhara, mas que não conseguira alcançar no pouco tempo que lhe fora dado. Este também fora o sonho de Máximo, o quase imperador, que vira a Inglaterra como líder das nações que lutavam do mesmo modo contra o vento frio do norte. Olhei para Brychan, com o seu braço incapacitado, para os seus companheiros, homens pobres de uma aldeia pobre que defenderiam até morrer, para o ferreiro e seu garoto esfarrapado, e lembrei-me dos Antigos, fiéis ao passado e ao futuro nas suas cavernas frias, e pensei: desta vez será diferente. Macsen e Ambrósio tentaram pela força das armas, e lançaram as fundações. Agora, com a ajuda de Deus e do povo, Artur construirá o palácio. De repente, achei que era a hora de abandonar cortes e castelos e voltar às colinas. A ajuda viria das colinas. Brychan estava falando de novo: — Não quer vir conosco para a aldeia, senhor? Deixe o ferreiro terminar com a égua, e venha até a minha casa, para descansar, comer e contar as novidades. Estamos todos ansiosos para saber por que os soldados estavam à sua procura, oferecendo dinheiro, nervosos como se um reino estivesse em jogo. — E está. Mas não para o Grande Rei. — Ah! Eles nos queriam fazer crer que eram tropas do Rei, mas logo vi que não eram. De quem eram, então? — Servem a Urien de Gore. Os homens se entreolharam. O olhar de Brychan brilhava de inteligência. — Urien, é? E por que Urien pagaria por notícias do senhor? Ou talvez estivesse pagando por notícias do Príncipe Artur? — São a mesma coisa — concordei. — Ou logo serão. Ele quer saber para onde me dirijo. — Para poder segui-lo até o esconderijo do menino? Está bem. Mas que lucraria Urien de Gore? É um homem de pouca importância, que não vai aumentar. Ou... espere, já sei. Seu cunhado, Lot de Lothian, lucraria, não? — Acho que sim. Já me disseram que Urien obedece a Lot. Pode estar certo de que está trabalhando para ele. Brychan anuiu, falando devagar: — E o Rei Lot está noivo de uma dama que provavelmente será a Rainha, se Artur morrer... E ele está pagando para descobrir onde está o menino. Meu senhor, isto tudo cheira mal. — Também acho. Podemos estar errados, Brychan, mas sinto nos ossos que estamos certos. E talvez haja outros, além de Lot Urien. Esses homens foram os únicos? Não passaram por aqui de Cornwall? — Não, meu senhor. Fique descansado, se aparecerem outros não serão ajudados. — Deu uma risada curta. — Acredito mais nos seus ossos que na palavra de honra de muita gente. Tomaremos conta para que nenhum perigo o persiga até chegar ao principezinho... Se seguir algum perseguidor em

Gwynedd, perderá o rastro, como acontece com o faro de um animal quando encontra água. Confie em nós, meu senhor. Somos leais ao senhor, como fomos ao seu pai. Nada sabemos desse príncipe que guarda para nós, mas se é seu, e nos diz para segui-lo e servi-lo, então, Myrddin Emrys, seremos leais a ele enquanto conseguirmos segurar espadas. É uma promessa, que por sua causa fazemos. — Então, eu a aceitarei em nome dele, e agradeço-lhe. — Fiquei de pé. — Brychan, seria melhor que não fosse à aldeia com você, mas há algo que pode fazer por mim, se quiser. Preciso de comida para os próximos dias, vinho para a minha garrafa, forragem para a égua. Tenho dinheiro. Pode providenciar isto para mim? — Com facilidade, e pode guardar o dinheiro. O senhor aceitou o meu dinheiro quando curou o meu braço? Dê-nos uma hora, e traremos o que pediu, em segredo. O garoto virá conosco... o pessoal já está acostumado a vê-lo trazer provisões para a ferraria. Ele trará o que for preciso. Agradeci de novo e conversamos ainda algum tempo, e contei as novidades do sul; depois, despediram-se. Nunca, em época alguma, nenhum deles (nem o garoto) contou a ninguém sobre a minha visita. O garoto ainda não regressara quando o ferreiro terminou com a égua. Paguei-lhe e e1ogiei o seu trabalho. Ele aceitou como se lhe fosse devido, e, embora deva ter escutado tudo que Brychan e eu conversamos, não se mostrou impressionado por mim. Aliás, nunca achei que um homem hábil na sua ocupação, e cercado pelos instrumentos do seu ofício, devesse ficar impressionado por príncipes. As suas ocupações diferem, só isso. — Para onde o senhor vai? — perguntou-me. Como eu hesitasse: — Não precisa ter medo de mim. Se Brychan e seus irmãos podem ficar calados, eu também posso. Trabalho para todos os homens que usam a estrada, e não sou mais leal ao Rei do que qualquer outro ferreiro que trabalhe perto de uma estrada, mas fale1 com Ambrósio uma vez. E o avô do meu avô ferrou os cavalos do próprio Imperador Máximo. — Enganou-se no motivo que causou a expressão do meu rosto. — É, pode ficar espantado. Faz muito tempo. Mas meu avô me contou que esta bigorna passou de pai para filho desde tempos imemoriais. Dizem por aí que o primeiro ferreiro que se instalou aqui aprendeu o seu ofício com o próprio ferreiro Weland. Então, quem mais o Imperador procuraria? Olhe. Apontou para a porta, que estava escancarada, contra a parede. Era de carvalho, parecia prata polida, o tempo e o clima deram-lhe a cor de osso, com malhas e ondulações como água cinzenta. De um gancho próximo pendia uma sacola de pregos de ferro, e um suporte com ferros de marcar. Por toda a superfície sedosa da porta estavam as cicatrizes das marcas, que as gerações de ferreiros tinham testado. Um A chamou-me a atenção, mas a marca era nova, ainda chamuscada e preta. Abaixo e por baixo dela, havia um sinal que parecia uma ave voando; depois uma flecha, um olho, um ou dois desenhos toscos feitos com metal em brasa pelos que matavam o tempo à espera de um serviço por terminar. Mas, num canto, distante dos demais, bem desbotadas, estavam as letras M. I. Abaixo delas uma marca profunda na madeira da porta, uma meia-lua com marcas de pregos. Era para isso que o ferreiro apontava. — Dizem que é coice do garanhão do Imperador, mas não creio. Quando eu e os meus lidamos com um cavalo, mesmo que seja o mais selvagem, vindo das colinas, ele não escoiceia. Mas aquela, lá em cima, é verdadeira. A marca foi feita aqui, para os cavalos que Macsen Wledig levou quando foi matar o Rei de Roma. — Ferreiro, — disse eu — esta é a única parte da sua lenda que é falsa. O Rei de Roma matou

Máximo, e tomou-lhe a espada. Mas os homens de Gales a trouxeram de volta para a Inglaterra, A espada também foi feita aqui? Demorou muito a responder e meu coração disparou enquanto esperava. Afinal respondeu, relutantemente: — Se foi, eu nunca soube. — Obviamente, custou-lhe não aumentar os méritos da ferraria, mas disse a verdade. — Disseram-me — continuei — que na floresta existe um homem que sabe onde está escondida a espada do Imperador. Você já ouviu falar nisso, sabe onde posso encontrá-lo? — Não. Como saberia? Dizem que muito para o norte existe um homem santo que sabe de tudo. Mas ele mora ao norte de Deva, em outro território. — É para onde eu ia — expliquei. — Vou procurá-lo. — Pois se não quiser encontrar aqueles soldados, não vá pela estrada. Seis milhas para o norte há uma encruzilhada, onde a estrada para Segontium se dirige para o oeste. Ao sair, siga o rio, que o levará direto até onde há a encruzilhada com a estrada para o este... Mas não quero ir para Segontium. Se me afastar muito para o este... — Deixe o rio quando ele se encontrar com a estrada de novo Saindo do vau há uma trilha que entra pela floresta, por entre aze-vinhos, e que depois fica fácil de seguir. O senhor irá para o norte sem avistar estrada alguma até chegar a Deva. Se perguntar ao bar-queiro dali pelo homem santo da Floresta Agreste, ele indicará o caminho. Siga o rio. É uma boa trilha, impossível de não achar. Já cheguei à conclusão de que as pessoas só dizem isto quando há grande possibilidade de não se achar. Contudo, fiquei quieto, e o garoto, que chegava naquele momento com as provisões, ajudou-me a arrumá-las. Enquanto o fazíamos, sussurrou: — Escutei o que ele disse, senhor. Não ligue para ele. A trilha é ruim e o rio está cheio. Vá pela estrada. Agradeci e dei-lhe uma moeda pelo seu trabalho. Voltou ao seu fole, e virei-me para me despedir do ferreiro, que desaparecera num recesso escuro nos fundos da ferraria. Escutei o barulho do metal e o seu assobio, por entre dentes quebrados. Gritei: — Já vou indo. Muito obrigado. — Prendi a respiração. Na confusão escura atrás da chaminé, as chamas tinham iluminado um novo rosto. Um rosto de pedra; um rosto familiar, que já se encontrara em todas as encruzilhadas. Um dos primeiros Antigos, o deus das andanças, o outro Myrddin, que se chamava Mercúrio, ou Hermes, senhor das estradas altas e condutor da serpente sagrada. Como eu nascera em setembro, ele era meu. Estava ali, agora, o velho Herm que antigamente ficava lá fora olhando os transeuntes, com a cabeça encostada na parede, o musgo e o limo que o cobriam já secos, cinzentos. Reconheci o rosto entalhado, a cara chata debruada de barba, os olhos ovais e saltados, como uvas, as mãos dadas por sobre a barriga, os órgãos genitais, outrora salientes, esmagados e mutilados. — Se soubesse que estava aí, Antigo, — falei — teria derramado vinho para você. O ferreiro reaparecera, junto ao meu cotovelo. — Ele recebe as suas rações, não se preocupe. Ninguém que trabalha para as estradas o negligenciaria.

— Por que o trouxe para dentro? — O lugar dele não era aqui. Ficava no vau do rio de que lhe falei, onde a trilha que chamam de Caminho de Elen cruzava o rio Seint. Quando os romanos construíram a estrada nova para Segontium, puseram a estação de sentinelas bem na frente dele. Então, veio para cá, nunca soube como. Falei, vagarosamente: — No vau de que me falou? Então, é preciso mesmo que eu vá por ali. — Acenei para o ferreiro, saudei o deus. — Acompanhe-me — pedi — e ajude-me a achar o caminho... que é impossível não achar. Ele acompanhou-me durante a primeira parte do caminho; enquanto a trilha seguia o rio, não havia problemas. Mas lá para o fim da tarde, quando o sol nublado de inverno ia-se pondo, uma névoa baixa começou a cobrir o rio, transformando-se, com o escurecer, numa neblina úmida e compacta. Era possível seguir o som do rio, embora a gente se enganasse, pois às vezes ele parecia alto e próximo, às vezes abafado e distante, por entre a neblina; mas, às vezes, o rio fazia uma curva que a trilha não acompanhava de perto e, desse modo, por .duas vezes eu me perdi, embrenhando-me na floresta, sem sinal ou barulho de rio. Finalmente, perdido pela terceira vez, larguei as rédeas e deixei que Morango buscasse o caminho, refletindo na ironia da situação. Se tivesse preferido a estrada, estaria perfeitamente seguro, pois escutaria se os soldados se aproximassem, e me ocultaria deles facilmente na floresta densa de neblina. Devia haver uma lua acima da neblina baixa. Esta parecia nuvens iluminadas, não sólidas, mas com rios de vapor com trevas pelo meio, tufos de uma coisa pálida que grudava nas árvores como neve. Por entre ela, escondidas e descobertas, as árvores nuas entrelaçavam no alto os seus ramos. O chão da floresta parecia um espesso e silencioso tapete de veludo. Morango continuava, sem hesitar, seguindo uma trilha invisível aos meus olhos, ou o seu próprio instinto. Aqui e ali erguia as orelhas, por algum motivo que eu não via nem ouvia, e certa vez parou e jogou a cabeça para o lado como se fosse recuar, mas antes que eu pegasse as rédeas de novo, relaxouse e apressou o passo pelo caminho da sua escolha. Deixei-a em paz. O que quer que passasse por nós no silêncio da neblina não nos faria mal. Se era este o caminho (e estava certo de que era) estávamos protegidos. Uma hora depois do anoitecer, a égua saiu do meio das árvores, caminhou cerca de cem passos em terra plana, e parou em frente a um quadrado escuro que só podia ser uma construção. Havia um bebedouro do lado de fora. Ela abaixou a cabeça, resfolegou, e começou a beber. Desmontei e abri a porta da casa. Era a estação de sentinelas e que me falara o ferreiro, vazia e meio abandonada, mas, aparentemente, ainda utilizada por viajantes como eu. Num canto, uma pilha 'e achas chamuscadas indicava onde fora feito um fogo recentemente e, noutro, havia uma cama feita de tábuas limpas postas sobre pedras, para evitar a friagem. Não era grande conforto, mas melhor do que muitos que eu tivera. Adormeci logo, ao som da mastigação de Morango, e dormi um sono profundo e sem sonhos até de manhã. Quando acordei, de madrugada, o sol ainda não estava de fora. A égua dormitava no seu canto, relaxada. Fui ao bebedouro buscar água para lavar-me. A névoa se fora, junto com o ar agradável. O chão estava coberto de geada. Olhei ao meu redor.

A estação de sentinelas ficava um pouco afastada da estrada, que cortava a floresta em linha reta do leste para o oeste. Os romanos limparam a floresta quando fizeram a estrada, as árvores foram abatidas e a vegetação rasteira ceifada por cerca de cem passos, dos dois lados do caminho pavimentado. Mas, agora, rebentos já brotavam e a vegetação rasteira era abundante; contudo, de onde eu estava, achei que vislumbrava o traçado da velha trilha que aí existia antes da chegada dos romanos. O rio, macio e tranqüilo, deslizava por cima das ruínas do caminho que cortava a estrada, através dele. Mais para longe, no limiar da terra desbastada, pude ver, escuros contra os troncos cinzentos dos carvalhos, os azevinhos que marcavam a minha trilha para o norte. Satisfeito, quebrei a crosta de gelo que se formara sobre a água do bebedouro e lavei-me. Enquanto isso, às minhas costas, o sol apareceu por entre as árvores, no vermelho de uma madrugada fria. Sombras cresciam e se aprofundavam, listrando a grama dura. A geada brilhava. A luz aumentou, como a fogueira do ferreiro quando o fole soprava. Quando me virei, o sol, baixo e ofuscante, cegou os meus olhos. As árvores nuas destacavam-se pretas contra um céu que parecia um fogo florestal. O rio corria, derretido. Havia algo entre mim e o rio, uma forma alta, maciça, contudo irreal contra o vermelho, enfiada nos arbustos na beira da estrada. Algo familiar, mas familiar noutro cenário, de escuridão, lugares estranhos e deuses estrangeiros. Uma pedra ereta. Por um breve momento pensei ainda estar dormindo, e sonhando de novo. Ergui um braço para me proteger da luz e apertei os olhos, espiando. O sol passou a copa das árvores. A sombra da floresta afastou-se. A pedra destacava-se contra a geada reluzente. Afinal, não era uma pedra ereta. Nada de estranho, ou fora de lugar. Era um simples marco, talvez um pouco maior que o comum com a inscrição de costume para um imperador, e, por baixo, esta mensagem: A. SEGONTIO. M. P. XXII. Quando me aproximei, vi a razão da sua altura: em vez de estar enfiada na relva, fora colocada em cima de um plinto quadrado de pedra. Uma pedra diferente. O plinto onde ficara o Herm? Afastei a grama coberta de geada. A luz do sol atingiu a pedra, mostrando uma marca que podia ser uma flecha. Então, vi o que era: os restos de uma inscrição antiga, letras borradas e gastas, parecendo uma flecha, cuja ponta indicava o oeste. Afinal, pensei, por que não? Os sinais eram simples, mas as mensagens nem sempre vêm dos deuses para lá das estrelas. Meu deus já me falara de maneiras singelas como esta, e, ontem mesmo, eu dissera a mim mesmo que procurasse as coisas do poder no alto e no baixo. E aqui estavam: uma ferradura perdida, uma palavra de um ferreiro qualquer, uns riscos numa pedra. . . Tudo conspirava para me afastar da direção norte, e fazer com que eu seguisse para o oeste, para Segontium. Afinal, pensei de novo, por que não? Talvez a espada tivesse sido mesmo forjada naquela ferraria, temperada no Rio Seint, e depois da sua morte eles a levaram para a terra da sua mulher, onde ela ainda vivia com o seu filho pequeno. Em algum lugar de Segontium, a Caer Seint de Macsen Wledig, a Espada Real da Inglaterra, podia estar, esperando ser erguida em fogo.

10 Fiquei numa estalagem confortável em Segontium, no limiar da cidade, sem dar para a estrada principal. Havia alguns hóspedes, mas, de um modo geral, servia comida e bebida aos habitantes da localidade que iam ao mercado, ou que levavam mercadorias para o porto. O lugar conhecera melhores dias, tendo sido construído para atender aos soldados do enorme quartel acima da cidade. Devia ter uns duzentos anos de existência; fora bem construído, em pedra, com excelente aposento, quase um átrio, em que havia uma enorme lareira e cujo teto era cruzado por vigas de carvalho, sólidas como ferro. Ainda havia restos de bancos e mesas, manchados e queimados, e ali cortados pelos punhais de legionários bêbedos, que entalharam os seus nomes e outras coisas menos respeitáveis. Era um milagre que ainda restasse alguma coisa: um bocado da pedra fora roubada, e pelo menos uma vez a estalagem fora incendiada por invasores da Irlanda; só havia agora a parede de pedra do átrio, e as vigas escurecidas sustentavam um teto de palha, em vez de telhas A cozinha era um simples alpendre de vime mal pintado atrás da grande lareira. Mas um fogo grande crepitava, havia um cheiro de boa cerveja e de pão assando no forno lá fora; e um barraco com acomodação e forragem para a égua. Providenciei para que ela estivesse aquecida, limpa e alimentada, antes de entrar na estalagem para pedir uma cama e uma refeição para mim. Nessa época do ano o porto estava praticamente fechado, havia poucos viajantes nas estradas e os homens não ficavam bebendo até tarde na rua, mas iam para casa dormir logo que escurecia. Ninguém me olhou com curiosidade, ou fez perguntas. A estalagem ficou calma cedo, e eu fui para a cama e dormi profundamente. A manhã estava bonita, um dos dias claros que dezembro às vezes joga, como ouro, entre as moedas de chumbo do inverno. Tomei cedo o desjejum, fui ver a égua, deixei-a descansando e saí a pé. Virei para o leste, afastando-me da cidade e do porto, e seguindo pela margem do rio onde encontrei, numa elevação a meia milha da cidade, o que restava da fortaleza romana de Segontium. A Torre de Macsen fica do lado de fora, descendo a colina. Aqui ficaram os homens do Grande Rei Vortigern quando o meu avô, o Rei de Gales do Sul, chegou de Maridunum com a sua comitiva para falar com ele. Eu, um garoto de doze anos, acompanhara-os, e foi nessa viagem que descobri pela primeira vez que os sonhos da gruta de cristal eram reais. Aqui, neste recanto quieto e selvagem do mundo, senti o poder pela primeira vez, e descobri que era vidente. Aquela também fora uma viagem de inverno. Enquanto subia o caminho coberto de ervas daninhas que levava ao portão, no meio das torres desmoronadas, tentei rememorar as cores de capas e flâmulas e armas brilhantes, onde só havia agora, nas sombras azuis da manhã, a geada sem marcas. As edificações estavam desertas. Aqui e ali, na alvenaria nua e caída, as marcas negras do fogo contavam a história. Via-se onde os homens arrancaram as pedras grandes, até da pavimentação das ruas para levá-las para as suas próprias construções. Cardos secos enchiam os vãos das janelas e árvores pequenas cresciam nas paredes. Havia um poço, entupido de cascalho. As cisternas transbordavam com água das chuvas, que desciam pelos sulcos das beiradas onde os homens afiavam as espadas. Não, nada havia para ver. Nem fantasmas havia. O sol de inverno brilhava sobre uma imensidão inútil e desmoronada. O silêncio era completo.

Lembro-me que, enquanto caminhava pelas cascas dos edifícios, estava pensando não no passado, nem da minha tarefa atual, mas, de um modo prático, como engenheiro de Ambrósio, do futuro. Estava avaliando o lugar como fazíamos Tremorinus, o engenheiro-chefe, e eu; mudando aqui, consertando ali, refazendo as torres, abandonando os blocos do nordeste para aproveitar os do oeste e sul.. . Sim, se alguma vez Artur precisar de Segontium... Chegara ao cimo da elevação, o centro do forte, onde ficava a casa do comandante (a casa de Máximo). Estava tão abandonada quanto o resto. A porta grande pendia de dobradiças podres, o caixilho estava quebrado e dependurado, e o lugar era perigoso. Entrei com cuidado. A luz entrava pelos buracos do teto no aposento principal, e pilhas de seixos quase escondiam as paredes, com a sua pintura descascada e escurecida pela umidade. Na obscuridade distingui uma mesa (pesada demais para retirar, difícil de cortar para lenha), e, por trás dela, tiras de couro penduradas na parede. Um general já se sentou aqui, planejando conquistar Roma, como Roma conquistara a Inglaterra. Falhou, e morreu, mas o seu fracasso deixara sementes que outro rei apanhara. — Será um só país, um reino por si mesmo, — dissera o meu pai — não apenas uma província de Roma. Roma está indo, mas nós, ao menos por algum tempo, podemos ficar. E veio a lembrança de outra voz, a voz do profeta que às vezes falava através de mim: — E os reinos serão um Reino, e os deuses um só Deus. Seria a hora de escutar de novo essas vozes fantasmagóricas, quando de novo um general se sentasse ali. Voltei à claridade tranqüila. Onde estaria, nesta terra abandonada, o fim da minha procura? Daqui dava para ver-se o mar, as casas pequenas do porto, e, do outro lado, a ilha de druidas que tem o nome de Mona, ou Von, e que o povo chama de Caer-y-n'ar Von. Do outro lado, às minhas costas, ficava a Colina de Neve, Y Wyddfa, onde um homem veria os deuses caminhando, se conseguisse subir e viver nas neves. De encontro a essa neve distante, destacavam-se as ruínas da Torre de Macsen. E, subitamente, vi as coisas de novo ângulo. A torre do meu sonho; a torre no quadro da parede de Ahdjan... Deixei rapidamente a casa do comandante e cruzei o portão da fortaleza na sua direção. Ficava no meio de um monte de pedras caídas, mas eu sabia que ali perto, enfiada num cantinho do vale próximo ao portão, e dando quase que diretamente sob a torre, ficava o templo de Mitras; e meus pés se dirigiram, sem que os pudesse controlar, para a trilha que levava à porta do Mithraeum. Havia degraus, rachados e escorregadios. No meio da descida, Um degrau se erguia verticalmente, quase impedindo a passagem, e, no fim, havia um monte de lama e cacos, cobertos da sujeira ri ratos e cães vadios. O lugar fedia a umidade e sujeira, e, talvez a sangue derramado. Na parede estragada acima dos degraus, a pedra fora clareada pelas aves que se empoleiraram nela; o estéreo já se cobria de limo. Um poleiro de gralha? Um corvo de Mitras? Uma ave de rapina? Segui com cuidado pelas lajes limosas e parei no portal do templo. Estava escuro, mas um pouco da luz do sol me seguira, e havia um buraco aberto no teto, por onde entrava alguma luz, e pude enxergar um pouco. O templo estava tão imundo e abandonado quanto as escadas que levavam a ele. Só a força do teto abobadado impedira o lugar de desmoronar sob o peso da colina acima dele. O mobiliário já desaparecera, os braseiros, os bancos, as estátuas; tal qual as ruínas lá em cima, esta era uma casca sem ocupantes. Os quatro altares menores estavam quebrados e destruídos, mas o altar central estava lá, fixo e maciço, com a sua dedicatória entalhada, MITHRAE INVICTO, mas, acima do altar, na abside, machado, martelo e fogo tinham apagado a história do touro e dos deus conquistador. Tudo que restava da figura da morte do touro era um pedaço de trigo, lá num cantinho, o entalhe vivido e novo, miraculosamente preservado. O ar me doía nos pulmões, acre com o cheiro de algum fungo.

Pareceu-me apropriado fazer uma oração para o deus que se fora. Falei alto, e o eco da minha voz voltou, não como eco, mas como resposta. Estava enganado. O lugar ainda não estava vazio. Fora um lugar santo, e a santidade fora arrancada; mas algo ainda se prendia àquele altar frio. O cheiro acre não era de um fungo. Era de incenso apagado, de cinzas frias, de orações reprimidas. Eu já fora seu servo. Aqui só havia eu. Caminhei devagar para o centro do templo, e estendi as minhas mãos abertas. Luz, cor e fogo. Túnicas brancas e cantos. Chamas que subiam como sopros de luz. O berro de um touro moribundo e o cheiro de sangue. Lá fora, o sol quente e uma cidade alegre a receber o seu novo rei, e o som de risos e de pés a marchar. À minha volta o incenso pesado e doce, e uma voz que falava, através disso tudo, calma e suave: — Derrube o meu altar. Já é hora de derrubá-lo. Eu estava tossindo, e o ar à minha volta estava grosso de poeira, e o barulho do estrondo ainda ecoando pelas paredes do quarto abobadado. O ar tremia e tinia. Aos meus pés estava o altar, jogado de costas sob a curva da abside. Eu fitava, ainda tonto e com a visão turva, o buraco que ele abrira no chão. O eco cantava na minha cabeça; as minhas mãos, estendidas duras para a frente, estavam imundas, com um corte sangrento numa delas. O altar era pesado, de pedra maciça, e nunca, no meu juízo perfeito, teria posto as mãos nele; mas aqui estava ele, aos meus pés, com o eco da sua queda morrendo no teto, seguido do murmúrio da alvenaria que se acomodava, quando a pavimentação desmoronada começou a deslizar para o buraco onde antes ficava o altar. Havia algo nas profundezas do buraco; uma beirada dura e reta, um canto nítido demais para ser de pedra. Uma caixa. Ajoelhei-me para pegá-la. Era de metal, muito pesada, mas a tampa ergueu-se com facilidade. Quem a enterrara preferiu confiar na proteção do deus, e não numa fechadura. Dentro dela, as minhas mãos encontraram uma lona podre, que se rasgou; por baixo dela, um invólucro de couro. Algo longo, esguio e flexível; aqui estava, finalmente. Removi o invólucro, suavemente, e segurei a espada nas mãos. Há cem anos tinham-na colocado ali aqueles homens que retornaram de Roma. Ela brilhava nas minhas mãos, reluzente, perigosa e bonita como no dia em que fora feita. Era por isso, pensei, que nesses cem anos tinha-se tornado uma coisa lendária. Era fácil acreditar que o velho ferreiro Weland, que já era velho antes de os romanos chegarem, tivesse feito esta última peça antes de desaparecer, junto com os outros deuses pequenos dos bosques, regatos e rios, nas colinas enevoadas, deixando os vales populosos para os deuses brilhantes do Mar do Meio. Podia sentir o poder da espada percorrendo as minhas palmas, como se as estivesse colocando dentro da água atingida por um raio. "Aquele que tirar esta espada de sob esta pedra é o Rei legítimo de toda a Inglaterra..." As palavras soavam claras como se fossem faladas, nítidas como se estivessem gravadas no metal. Eu, Merlin, único filho de Ambrósio Rei, tirara espada da pedra. Eu, que nunca dera ordens numa batalha, nem comandara uma tropa; que não cavalgava um garanhão, mas sim um animal castrado ou uma égua. Eu, que nunca possuíra uma mulher. Eu, que não era um homem, e sim olhos e voz. Um espírito, dissera eu certa vez, uma palavra. Nada mais. A espada não era para mim. Ela teria que esperar. Enrolei de novo a bela espada nos seus envoltórios sujos e ajoelhei-me para recolocá-la no lugar. Notei que a caixa estava mais ferrada do que eu supunha, e que havia outros objetos dentro dela. A lona apodrecida deixava ver a forma de uma taça de boca larga como as que vira nas minhas

andanças para leste de Roma, brilhando na obscuridade. Parecia de ouro avermelhado, incrustada de esmeralda. Ao seu lado, semi-embrulhada, reluzia uma cabeça de lança A beira de um prato aparecia, coberta de safiras e ametistas. Inclinei-me para colocar a espada no lugar. Antes que pudesse fazê-lo, subitamente, a tampa da caixa caiu, com estrondo. O barulho despertou novamente os ecos, e produziu uma cascata de pedras vindas da abside e das paredes destruídas. Aconteceu tão depressa que, em um minuto, a caixa e o buraco tinham desaparecido sob o cascalho. Fiquei ali, ajoelhado, sufocado pela nuvem de poeira, com a espada embrulhada presa nas mãos sujas e ensangüentadas. O resto do entalhe tinha desaparecido da abside. Era só uma parede curva e nua, como a parede de uma gruta.

11 O barqueiro do Deva conhecia o homem santo de quem o ferreiro falara. Parece que morava nas colinas acima da fortaleza de Ector, no limiar da grande extensão de terra montanhosa que chamam de Floresta Agreste. Embora eu achasse que já não necessitava da orientação do ermitão, não faria mal conversar com ele, e a sua ceia (uma capela, disse o barqueiro) ficava no meu caminho, e ele talvez me hospedasse até eu achar a melhor maneira de apresentar-me no castelo de Ector. Quer fosse porque a posse da espada trazia poder, quer não, o fato é que viajei rápida e facilmente, sem mais sustos. Uma semana depois de ter deixado Segontium, a égua e eu íamos tranqüilos pela margem verde de um lago calmo e largo, dirigindo-nos para uma luz pálida que se destacava no crepúsculo, alta como uma estrela entre as árvores da outra margem. Demos uma longa volta ao redor do lago, e já era noite escura quando a égua, cansada, chegou a uma clareira e avistei, contra a escuridão macia e viva da floresta, a cunha do teto da capela. Era um edifício pequeno e oblongo encostado às árvores, do outro lado de uma grande clareira. Os pinheiros formavam uma parede alta e escura, o céu era um teto de estrelas, e, para alem dos pinheiros, por todos os lados, via-se o brilho dos cumes cobertos de neve, que cercavam este nicho nas colinas. Num dos lados da clareira, numa bacia de rocha musgosa, havia um laguinho parado escuro; uma daquelas fontes que afloram silenciosamente, renovando-se sempre sem fazer ruído. O ar estava tremendamente frio e com cheiro de pinheiros. Degraus quebrados e cobertos de musgo levavam à porta da capela. Ela estava aberta, e lá dentro havia luz. Desmontei e segui com a égua. Ela bateu com o casco numa pedra, fazendo barulho. Quem quer que morasse neste lugar solitário devia ter vindo investigar, mas não houve nenhum som, nenhum movimento. A floresta estava parada. Lá em cima, as estrelas pareciam mover-se e respirar, como fazem no ar invernal. Retirei a cabeçada da égua e deixei-a bebendo no poço. Embrulhei-me na minha capa, subi os degraus musgosos e entrei na capela. Era pequena, oblonga e com um teto alto; uma construção estranha para encontrar-se no coração da floresta, onde o mais provável era achar uma cabana mal feita, ou uma gruta, ou uma habitação feita entre as pedras. Mas, esta fora construída como santuário, um lugar santo para servir de moradia para um deus. O chão era de lajes de pedra, limpas e inteiras. No centro, em oposição à porta, ficava o altar, atrás do qual havia uma cortina grossa de material trabalhado. O altar estava coberto por um pano grosseiro e limpo, em cima do qual estava o lampião aceso, de fabricação caseira, mas que proporcionava uma luz forte e firme. Fora enchido com óleo recentemente, e o pavio estava aparado e não fumegava. Perto do altar, no degrau, havia uma tigela de pedra, das que são usadas para sacrifícios; fora muito bem areada, e continha água doce. Do outro lado, havia um pote tampado de metal escuro, furado, do tipo que os cristãos usam para queimar incenso. O ar da capela ainda guardava, muito de leve, o cheiro adocicado. Três candeias de bronze, de três braços, jaziam apagadas de encontro à parede. O resto da capela estava vazio. Quem a conservava, quem acendera o lampião e queimara o incenso, dormia noutro lugar. Gritei: — Há alguém aqui? — e esperei que os ecos subissem até o teto e morressem. Nenhuma resposta.

Meu punhal estava na mão; fora parar ali sem que eu tivesse consciência disso. Já me encontrara nessa espécie de situação, e ela significava uma única coisa; mas isso fora na época de Vortigern, na época do Lobo. Um homem como esse ermitão, morando sozinho num lugar solitário, confiava na proteção desse lugar, do deus e da sua santidade. Devia bastar, e bastava no tempo do meu pai. Mas as coisas tinham mudado nos poucos anos desde a sua morte. Uther não era nenhum Vortigern, mas, às vezes, parecia que estávamos voltando aos tempos do Lobo. Os tempos eram selvagens e violentos repletos de alarmas de guerra; porém, mais que isso, religiões è lealdades mudavam com tanta rapidez que mal se podia acompanhar Havia homens que não hesitariam em matar em cima de um altar Mas eu não imaginava que eles existissem em Rheged, quando o escolhi para refúgio de Artur. Tive uma idéia; dei a volta no altar e afastei a cortina. Estava certo; havia um lugar atrás da cortina, um cantinho semicircular que era usado como depósito; a luz do lampião mostrava um amontoado de banquinhos, vidros de óleo e vasilhas sagradas. Nos fundos uma portinha estreita fora aberta na parede. Entrei. Aqui, obviamente, morava o encarregado do lugar. Um quarto pequeno e quadrado fora construído no final da capela, com uma janela baixa e reentrante, e outra porta que dava, presumivelmente, para a floresta. Fui tateando na escuridão e empurrei a porta. Lá fora, a luz das estrelas mostrava o muro de pinheiros próximos, e, num canto, um alpendre onde estava estocado combustível. Nada mais. Deixando a porta escancarada, observei o quarto. Uma cama de madeira onde se empilhavam peles e cobertores, um banquinho, uma mesa pequena com um copo e um prato contendo os restos de uma refeição comida pela metade. Peguei o copo; estava cheio pelo meio de vinho fraco. Em cima da mesa uma vela queimara até o fim. O cheiro da vela ainda estava no ar, misturado ao do vinho e ao das cinzas na lareira. Toquei o sebo da vela; ainda estava mole. Voltei à capela. Fiquei perto do altar e chamei de novo. Havia duas janelas altas na parede, uma de cada lado; davam para a floresta, e não tinham vidros. Se ele não estivesse muito longe, na certa me ouviria. Mas, novamente, não houve resposta. E então, grande e silenciosa como um fantasma, uma grande coruja branca entrou pela janela e passou em frente à luz. Vi o bico cruel, as asas macias, os olhos grandes, cegos e sábios, e ela sumiu, silenciosa como um espírito. Era apenas a dillyan wen, a coruja branca que assombra todas as torres e ruínas da região, mas a minha pele ficou arrepiada. Do lado de fora veio o pio da coruja, longo, triste, terrível, e, em seguida, como um eco, o som de um homem gemendo. Sem os gemidos eu só o teria encontrado de dia. Sua roupa e seu capuz eram pretos, e estava de cara para baixo sob as árvores do limiar da clareira, para além da fonte. A jarra que caíra da sua mão mostrava o que ele tinha ido fazer. Abaixei-me e virei-o com cuidado. Era um velho, magro e frágil, com ossos quebradiços como os de um passarinho. Verifiquei que não havia nenhum quebrado e carreguei-o nos braços para dentro. Tinha os olhos semi-abertos mas estava inconsciente; um dos lados do seu rosto estava repuxado' como se o artesão tivesse passado a mão no barro, de repente borrando o contorno. Coloquei-o na cama, bem agasalhado. Havia gravetos perto da lareira, e uma pedra entre as cinzas. Trouxe mais combustível, acendi o fogo, e quando a pedra estava quente tirei-a enrolei-a num pano e coloquei-a aos pés do velho. Nada mais podia fazer por ele, no momento, então fui espiar se a égua estava bem preparei uma refeição para mim, e acomodei-me perto do fogo Dará ficar de vigília.

Cuidei dele durante quatro dias, e ninguém apareceu, salvo as criaturas da floresta e os veados selvagens, e, à noite, a coruja branca que parecia estar esperando para levar o seu espírito para casa. Não pensei que fosse ficar bom; o rosto estava encovado e acinzentado, com a coloração azul ao redor da boca que têm os moribundos. Às vezes ficava quase consciente, parecia saber que eu estava ao seu lado. Então ficava inquieto, preocupado, achava eu, com o santuário. Procurava falar com ele e acalmá-lo, mas parecia não entender, então eu afastava as cortinas que separavam o quarto do santuário, para que visse a lamparina acesa sobre o altar. Foi uma época estranha para mim, de dia cuidando da capela e do seu guardião, de noite tirando cochilos e vigiando o doente, esperando que os seus resmungos fizessem sentido. Havia um pequeno estoque de comida e vinho no local e, com a carne-seca e as passas que trouxera, eu estava bem de provisões. O velho se alimentava de vinho morno misturado com água e de um tônico que eu preparara para ele com os remédios que trazia. Não ousava abandonar o local para pedir ajuda ou para procurar mais comida. Havia o bastante para mim, e o velho mal podia engolir. Todas as manhãs ficava admirado de ver que ele ainda sobrevivia. Assim fiquei, cuidando do lugar durante o dia, e, à noite, de vigília ao seu lado, ou na capela, onde o cheiro de incenso ia desaparecendo, e o perfume dos pinheiros entrava e fazia tremular a chama da lamparina. Recordo-me daqueles dias como uma ilha em águas correntes. Ou corno uma noite de sonho que traz descanso e ímpeto, durante dias difíceis. Eu devia estar impaciente para seguir viagem, para encontrar Artur, para falar novamente com Ralf, para combinar com o Conde Ector qual a melhor maneira de aparecer na vida de Artur, sem nos denunciar. Mas não me incomodava com nada. A floresta o santuário sereno, a espada escondida na palha do alpendre, tudo me prendia ali, calmo e à espera. Nunca se sabe quando os deuses vão chamar ou vir, mas, às vezes, seus servos sentem a sua proximidade, como agora. Na quinta noite, quando fui levar a lenha para o fogo, o ermitão falou lá da cama. Olhava para mim, deitado nos travesseiros e não tinha força para levantar a cabeça, mas seus olhos estavam firmes e desanuviados. — Quem é você? Larguei a lenha e fui até a cama. — Chamo-me Emrys. Estava de passagem pela floresta e dei com o santuário. Encontrei-o perto do poço e trouxe-o para a cama. — Eu... me lembro. Fui apanhar água... — Recordava-se com esforço, mas seu olhar era inteligente, e a fala, um pouco laboriosa, mas inteligível. — O senhor adoeceu — expliquei. — Não se preocupe. Vou dar-lhe de beber, depois deve descansar. Tenho aqui uma bebida que vai fazer-lhe bem. Fique descansando, sou médico. Ele bebeu, e logo ficou com melhores cores, respirando melhor. Perguntei se sentia dor, os lábios disseram um "não" mudo, e ficou ali deitado, quieto, olhando para a lamparina do outro lado da porta. Aumentei o fogo, ajeitei melhor os travesseiros para facilitar-lhe a respiração, e sentei-me para esperar com ele. A noite estava silenciosa; só se ouvia o piar da coruja branca, bem perto. Pensei: "Não terá que esperar muito, minha amiga." Lá para a meia-noite o velho virou a cabeça nos travesseiros e perguntou de repente:

— Você é cristão? — Sirvo a Deus. — Tomará conta do santuário para mim quando eu me for? — O santuário será cuidado. Confie em mim. Assentiu, satisfeito e ficou quieto. Mas eu sentia que algo ainda o preocupava; ele pensava. Aqueci mais vinho, acrescentei o tônico e dei-lhe de beber. Agradeceu-me cortesmente, mas seu pensamento estava longe, e os olhos voltaram para a porta do santuário. — Se quiser — falei — posso ir buscar um sacerdote cristão-Mas é preciso ensinar-me o caminho. Fez que não com a cabeça, e fechou de novo os olhos. Dep01 perguntou, fracamente: — Está escutando? — Só estou escutando a coruja. — Não, ela não. Os outros. — Que outros? — Ficam pelas portas. Às vezes no verão eles gritam como passarinhos, ou como revoadas nas colinas distantes. — Mexeu a cabeça no travesseiro. — Será que agi mal em impedir que entrassem? Compreendi o que queria dizer. Lembrei-me da tigela de sacrifício, do poço lá fora, das candeias apagadas dos nove sagrados, de urna religião mais antiga. E parte do meu pensamento estava com a sombra branca que flutuava lá fora nos ramos da floresta. O lugar, eu pressentia, fora sagrado desde tempos imemoriais. Perguntei, suavemente: — De quem era o santuário, Padre? — Era chamado de lugar das árvores. Depois, de lugar da pedra. Depois, teve outro nome... mas, agora, na aldeia, chamam-no de capela do mato. — Qual era o outro nome? Ele hesitou, depois respondeu: — Lugar da espada. A minha nuca ficou arrepiada, como se a espada tivesse me tocado. — Por que, Padre? O senhor sabe? Ficou calado por um momento, avaliando-me. Depois, fez um sinal mínimo de assentimento, como se tivesse chegado a uma conclusão satisfatória. — Vá até o santuário e retire o pano do altar. Obedeci, colocando a lamparina no degrau fronteiro ao altar, e retirando o pano que o cobria até o chão. Mesmo sob a cobertura de pano, dava para ver-se que o altar não era do tipo que os cristãos usam, mas, da altura da cintura de um homem, e com formato romano. Agora eu via que era isso mesmo. Ele era gêmeo do de Segontium, um altar de Mitras, com a frente quadrada e as beiradas trabalhadas. E o entale já estava quase todo desmanchado. Distingui as palavras INVICTO e MITHRAE na parte de cima, mas, no painel de baixo já não havia palavras, pois uma espada fora entalhada por cima delas, com o cabo, como se fosse uma cruz, marcando o centro do altar. O resto das letras fora removido, e a lâmina da espada entalhada em alto-relevo entre elas. Não era trabalho Perfeito, mas nítido, e tão familiar aos meus olhos quanto o cabo já era familiar às minhas mãos. Percebi, então, que a espada na

pedra era a única cruz existente na capela. E, sobre ela, a dedicatória a Mitras Inconquistado. O resto do altar estava despido. Voltei para junto do velho. Seus olhos esperavam e perguntavam. Indaguei: — O que faz aqui a espada de Macsen, entalhada como uma cruz no altar? Ele fechou e abriu os olhos, de leve. Respirou fundo. — Então, é você! Você foi enviado! Já era hora. Sente-se, que eu vou contar. — Obedeci, e ele começou, com firmeza, mas com esforço. — Tenho pouco tempo para contar-lhe. Sim, é a espada de Macsen, a quem os romanos chamavam Máximo, que foi Imperador da Inglaterra antes da chegada das saxões, e que casou com uma princesa britânica. A espada foi forjada ao sul daqui, dizem que com ferro encontrado na Colina da Neve, num lugar com vista para o mar, e temperado com água que corre da colina para o mar. É uma espada para o Grande Rei da Inglaterra, feita para defender a Inglaterra contra seus inimigos. — Por isso, não foi de valia quando a levou para Roma? — Foi um milagre que ela não se tivesse partido nas suas mãos. Depois que ele foi assassinado, trouxeram a espada para a Inglaterra, e está à espera do Rei que possa encontrá-la e erguê-la. — Sabe onde está escondida? — Isso eu nunca soube, mas quando era menino e vim para cá servir aos deuses, o sacerdote do santuário me contou que ela fora levada para a terra onde fora feita, para Segontium. Ele me contou a história que aconteceu neste lugar, anos antes do seu tempo... Foi... foi depois que o Imperador Macsen morreu em Anquiléia, perto do Mar Interior, e os britânicos sobreviventes voltaram para casa. Vieram pela Bretanha, desembarcaram aqui no oeste, tomaram a estrada que passa pelas colinas e passaram por aqui. Alguns eram devotos de Mitras, e quando viram que este lugar era sagrado, esperaram pela meianoite de verão e rezaram. Mas a maioria era cristã, e quando viram que os outros tinham terminado, pediram a um padre que os acompanhava que rezasse uma missa. Mas não havia cruz nem cálice, só o altar. Confabularam, foram buscar nos cavalos o tesouro incomensurável que tinham trazido. No meio do tesouro estava a espada, e uma xícara grande, um gral do tipo grego, larga e funda. A espada ficou contra o altar como uma cruz, beberam no gral e todos os homens ficaram com o espírito satisfeito. Deixaram ouro para o santuário, mas não quiseram deixar a espada e o gral. Um deles pegou cinzel e martelo e fez o altar como está. Depois, partiram com o tesouro e nunca mais voltaram. — É uma história estranha. Nunca a escutei antes. — Nenhum homem a escutou. O guardião do santuário jurou pelos deuses antigos e pelos novos que só contaria o fato ao seu sucessor. Só soube da história quando chegou a minha vez. — Fez unia pausa. — Dizem que um dia a espada voltará para servir de cruz. Por esta razão tenho tentado deixar o santuário vazio, como vê. Tirei as luzes e as tigelas de ofertório, joguei a faca torta no lago. A grama cobriu a pedra. Expulsei a coruja que tinha o seu ninho no telhado, tirei as moedas de prata ê cobre do poço e dei-as aos pobres. — Nova pausa, tão grande que pensei que ele tinha morrido. Mas abriu os olhos de novo. — Fiz bem? — Como posso saber? O senhor fez o que achava certo. Ninguém pode fazer mais. — Que vai fazer? — perguntou. — O mesmo. — E não contará a ninguém o que lhe contei, a não ser àquele que deve saber?

— Prometo. Ficou quieto, ainda com ar preocupado, os olhos fixos em algo passado e longínquo. Depois, imperceptível, mas definitivamente, como um homem entrando num riacho gelado que tem de atravessar, tomou uma decisão. — O altar ainda está descoberto? — Está. — Então acenda as nove candeias e encha a tigela com vinho e óleo, e abra as portas que dão para a floresta e leve-me para onde eu possa ver a espada de novo. Sabia que, se o erguesse, ele morreria nos meus braços. A respiração estava trabalhosa no peito magro e fazia o corpo frágil tremer. Virou a cabeça nos travesseiros, sem forças. — Depressa. — Quando hesitei, ele teve medo. — Preciso vê-la. Faça o que digo. Pensei no santuário, com todas as santidades antigas removidas; e na espada, escondida junto com o ouro do Rei no teto de palha do estábulo lá fora. Mas era tarde demais até para isto. — Não posso erguê-lo — disse-lhe — mas fique calmo. Trarei o altar aqui para o senhor. — Mas, como... ? — começou ele, mas interrompeu-se, com ar de admiração, e sussurrou: — Traga depressa, então, e deixe que eu me vá. Ajoelhei-me ao lado da cama, sem olhar para ele, fitando o coração rubro do fogo. As achas caídas formavam uma caverna incandescente, cristais reluziam num globo de fogo. Ao meu lado, a respiração laboriosa ia e vinha, como o pulsar doloroso do meu próprio sangue. Pulsava nas minhas têmporas, magoando-me. No fundo da minha barriga a dor crescia e queimava. O suor escaldante escorria pelo meu rosto, os meus ossos chacoalhavam no seu invólucro de carne, enquanto eu construía aquele altar para ele, grão por ao, polegada por polegada, na parede escura e nua. Ele ergueu-se devagar, sólido, eclipsando o fogo. A superfície da pedra luzia no escuro, a luz tocava nela e tremulava, como se ela flutuasse sobre água iluminada pelo sol. Depois, uma a uma, acendi as nove chamas que flutuavam junto com a pedra como luzes de âncora O vinho transbordava na vasilha, o incenso fumegava. INVICTO, escrevi, e procurei, suando, a outra palavra. Mas só apareceu está única palavra, INVICTO, e então a espada destacou-se da pedra como de dentro de uma bainha rasgada, e a lâmina era de ferro branco cheio de runas na luz bruxuleante, por baixo do cabo refulgente e da inscrição na pedra: AO INCONQUISTADO... Era de manhã, e os primeiros pássaros estavam aparecendo. Lá dentro, tudo estava quieto. Ele estava morto, partira suavemente, como a visão que eu tinha criado para ele das sombras. Caminhei, endurecido e dolorido, até o altar, como um fantasma, para cobri-lo e acender a lamparina.

Livro 3 - A ESPADA

1 Quando prometi ao moribundo que alguém cuidaria da capela não tinha pensado em mim mesmo. Havia um monastério num doa vales próximos ao castelo do Conde Ector, e não seria difícil achar nele alguém que se dispusesse a morar na capela e cuidar dela. Isto não significava que eu fosse passar adiante o segredo da espada; ele era meu e o fim da história estava nas minhas mãos. Mas, com o passar dos dias, reconsiderei a minha decisão de procurar os irmãos. Tive de ficar inativo, e pude pensar. Enterrei o corpo do velho bem na hora, pois a neve chegou no. dia seguinte, grossa, macia e silenciosa, envolvendo a floresta, isolando a capela e bloqueando os caminhos. Para falar a verdade, eu estava satisfeito em ficar; havia bastante comida e lenha, e a égua e eu precisávamos de descanso. Por mais de duas semanas houve neve; perdi a conta dos dias, mas o Natal e o começo do ano chegaram e se foram. Artur estava com nove anos. Fui forçado a cuidar do santuário. Suponho que o próximo guardião lutaria, como tinha feito o velho, para que o lugar pertencesse ao seu Deus, mas eu o entregaria a qualquer deus que o reclamasse. E o deixaria aberto para quem quisesse usá-lo. Guardei o pano do altar, limpei as três candeias de bronze, coloquei-as sobre o altar e acendi as velas. Nada podia fazer quanto à pedra e à fonte até que a neve derretesse. Também não achei a faca curva, e fiquei satisfeito; não abriria a porta com prazer a essa Deusa. Conservei a água benta na vasilha de sacrifício, e queimava incenso pela manhã a noite. A coruja branca ia e vinha ao seu bel-prazer. De noite eu achava a porta da capela por causa do frio e do vento, mas nunca a trancava, e de dia ela ficava sempre aberta, com as luzes refletindo-se na neve. Logo depois do começo do ano, a neve derreteu e as trilhas da floresta cobriram-se de lama. Permaneci na capela. Tivera tempo para pensar, e achei que a mesma mão que me guiara até Segontium, conduzira-me à capela. Que melhor lugar para ficar perto de Artur sem chamar atenção? A capela era o esconderijo perfeito. O lugar e seu guardião seriam respeitados. O "santo homem da floresta" seria aceito sem restrições. Comentar-se-ia que havia um novo santo homem, mais jovem, mas o povo se lembraria que cada ermitão que morria era sucedido por seu ajudante, e, dentro em pouco eu seria apenas "o ermitão da Floresta Agreste", de fato e de direito. E com a capela por lar e por curato, poderia ir à aldeia buscar provisões, conversar com as pessoas, saber das novidades e fazer com que o Conde Ector soubesse que me instalara na Floresta Agreste. Uma semana depois do começo do degelo, antes que me arriscasse a andar com Morango pelas trilhas cobertas de lama, tive visitas. Dois moradores da floresta: um homem pequeno, atarracado e moreno, vestido com peles de veado mal curtidas e fedorentas, e uma menina, sua filha, vestida com lã grosseira. Tinham a cor escura e os olhos negros, como o povo das colinas de Gwynedd, mas o rosto da menina estava contraído e acinzentado sob o queimado da pele. Ela sofria, mas em silêncio, como um animal; não se mexeu nem fez ruído quando o pai tirou os trapos que envolviam o seu pulso e o antebraço inchados e enegrecidos pela peçonha. — Prometi que o senhor a curaria — disse ele com simplicidade. Não fiz comentários, mas peguei a mão dela, falando gentilmente no Velho Idioma. Ela se retraiu, amedrontada, até que eu expliquei ao homem, que se chamava Mab, que precisava aquecer água e desinfetar a minha faca no fogo; aí ela deixou que ele a levasse para dentro. Cortei o abscesso, limpei e

atei o braço. Levou muito tempo, e a menina não deu um ai, mas ficou mais e mais pálida, sob a sujeira, por isso, quando terminei de pôr ataduras limpas no braço, amornei vinho para os dois, e ofereci-lhes as minhas últimas passas secas e bolinhos de cereal. Eu mesmo os fizera, procurando imitar o que vira meu criado fazer tantas vezes. A princípio eram quase intragáveis, mesmo molhados no vinho, mas, ultimamente, eu tinha aprendido o jeitinho, e fiquei contente em ver que Mab e a garota comeram com prazer e pediram mais. Da mágica e das vozes dos deuses para os bolinhos de cereal; talvez esta fosse a menor das minhas habilidades, mas eu me sentia tão orgulhoso dela quanto das outras. — Como é que soube que eu estava aqui? — perguntei a Mab. — A notícia correu pela floresta. Não, não fique assim, Myrddin Emrys. Não contamos a ninguém. Mas seguimos todos os que pela floresta, e sabemos de tudo que se passa. — Sei. O seu poder. Já me tinham contado. Talvez precise dele enquanto estiver cuidando da capela. — E!a é sua. O senhor acendeu as candeias de novo. — Conte-me as novidades, então. Ele bebeu e limpou a boca. — O inverno tem sido tranqüilo. As costas estão confinadas pelas tempestades. Houve lutas no sul, mas já acabaram e as fronteiras estão intactas. Cissa velejou para a Alemanha. Aelle ficou com os filhos. No norte não há nada. Gwarthergydd brigou com o pai Caw, mas aquela turma nunca está em paz. Ele fugiu para a Irlanda, mas isso não quer dizer nada. Dizem também que Riagath está com Niall na Irlanda. Niall e Gilloman banquetearam-se juntos, e há paz entre eles. Era um simples relato de fatos, narrado sem expressão ou compreensão, como se tivesse sido decorado. Mas eu entendi. Os saxões, a Irlanda, os pictos do norte; ameaças por todos os lados, mas somente ameaças, por enquanto. — E o Rei? — perguntei. — Não é mais o mesmo homem. Antes era corajoso, agora é zangado. Os seus seguidores o temem. — E o filho do Rei? — Esperei pela resposta. Quanto, realmente, saberia esta gente? Os olhos negros eram insondáveis. — Dizem que ele está na Ilha de Vidro, mas, então, o que faz aqui na Floresta Agreste, Myrddin Emrys? — Cuido do santuário. Vocês são bem-vindos aqui. Todos são bem-vindos. Ficou quieto por algum tempo. A menina estava acocorada perto o fogo, olhando-me, aparentemente sem medo. Já terminara de comer, mas vi que surrupiara alguns bolinhos, escondendo-os nas dobras do vestido. Sorri para mim mesmo. Falei para Mab: — Se eu precisar mandar uma mensagem, será que o seu povo leva para mim? — Com prazer. — Mesmo para o Rei? — Daríamos um jeito para que chegasse até ele. — Quanto ao filho do Rei, — continuei — você diz que o seu povo vê tudo que se passa na

floresta. Se a minha mágica alcançar o filho do Rei no seu esconderijo e fizer com que ele venha até mim, pela floresta, ele estará em segurança? Fez o estranho sinal que eu vira os homens de Llyd fazerem e assentiu. — Ele estará em segurança. Trataremos disso. O senhor não prometeu a Llyd que seria tão nosso rei quanto rei dos das cidades do sul? — Ele é o Rei de todos — respondi. O braço da garota deve ter sarado direitinho, pois ele não a trouxe de novo. Dois dias mais tarde, um faisão fresco apareceu na minha porta, junto com um odre de hidromel. Eu, por minha vez, limpei a neve que havia em cima da pedra, e pus um copo no lugar adequado acima da fonte. Nunca vi ninguém chegar perto, mas reconheci os sinais, e, quando deixava nova leva de bolinhos na porta dos fundos, ela desaparecia durante a noite, e uma oferenda a substituía. . . um pedaço de carne de veado, talvez, ou uma coxa de lebre. Logo que os caminhos ficaram desimpedidos, selei Morango e segui para Galava. O caminho descia as margens de um regato, e seguia ao longo da margem norte de um lago. Este era um lago menor do que a vasta extensão de água em cuja cabeceira achava-se Galava; tinha pouco mais de uma milha de comprimento por um terço de milha de largura, e era margeado pela floresta em todos os lados. No meio dele, mais para o lado da margem sul, havia uma ilha, que não era grande, mas que era coberta de árvores, como que um pedaço da floresta que tivesse sido arrancado e jogado dentro das águas tranqüilas. Era uma ilha rochosa, e as árvores subiam em direção aos rochedos que se erguiam no centro dela. Os rochedos eram cinzentos, contornados pela neve que ainda restava, e tinham a aparência de torres de um castelo. Naquele dia parado eles pareciam ter polimento. A ilha nadava no seu próprio reflexo, com as torres refletidas parecendo afundar, profundamente, no centro tranqüilo do lago. Da outra margem desse lago o regato renascia, já como um pequeno rio, aumentado pelas águas da neve, correndo rápido entre juncos claros e pântanos escuros, entremeados de salgueiros e amieiros, na direção de Galava. Cerca de uma milha depois, o vale alargava-se, e os pântanos eram substituídos por terras cultivadas e fazendolas, com as casas dos colonos buscando a proteção das muralhas do castelo. Para além das torres de Ector, que se destacavam entre as árvores nuas, ficava o grande lago, que se estendia até onde a vista podia alcançar, misturando-se com o céu escuro. Cheguei em primeiro lugar a uma fazenda um pouco afastada da margem do rio. Não era do tipo de fazenda que encontramos no sul ou sudoeste, à moda romana, mas do tipo que era comum aqui no norte. Era um amontoado de construções circulares, a casa principal e os barracos para os animais, tudo dentro de um grande círculo irregular cercado por uma paliçada de pedra e madeira. Quando entrei pelo portão, um cachorro acorrentado jogou-se na minha direção, latindo. Um homem, com aparência de dono, apareceu na porta de um celeiro e ficou olhando. Segurava uma podadeira. Parei e gritei um cumprimento. Ele acercou-se com ar de curiosidade, mas também com a desconfiança que todos sentem no interior com a chegada de um estranho. — Para onde vai, estranho? Para o castelo do Conde, em Galava? — Não. Vou ao lugar mais próximo em que possa comprar comida... carne e cereal e um pouco de vinho. Venho da capela lá na floresta. Você a conhece? — Quem não a conhece? Como vai passando o velho Prosper? Não o vemos desde antes da nevada.

— Ele morreu pelo Natal. Ele persignou-se. — Estava com ele? — Estava. E agora tomo conta da capela. — Não entrei em detalhes. Seria ótimo que ele presumisse que eu já estava lá há algum tempo, ajudando o guardião da capela. — Chamo-me Myrddin — falei. Decidira usar o meu nome, em vez de "Ermys". Myrddin era um nome bem comum no oeste, e não seria ligado ao desaparecido Merlin; por outro lado, se Artur ainda se chamasse "Emrys", causaria estranheza o aparecimento de um estranho com o mesmo nome, que passasse a usufruir da companhia do menino. — Myrddin? De onde é? — Tomei conta de um santuário na colina em Pyfed, durante algum tempo. — Sei. — Seus olhos me avaliaram, consideraram-me inofensivo, e assentiu. — Bem, cada um com a sua ocupação. Vai ver que as suas orações nos ajudam, ao seu modo, tanto quanto a espada do Conde na hora do aperto. Ele já sabe da mudança lá em cima? — Não vi ninguém desde que cheguei. A neve caiu logo ar a morte de Prosper. Que espécie de homem é esse Conde E — Um bom senhor e um homem bom. E a sua senhora é tão boi quanto ele. Nada lhe faltará enquanto eles se ocuparem da florestal — Ele tem filhos? — Dois garotos simpáticos. O senhor os verá quando o tempo melhorar. Cavalgam pela floresta quase todos os dias. Com certeza o Conde vai mandar chamá-lo quando voltar; ele está fora, com filho mais velho. Esperam que volte no começo da primavera. Virou a cabeça e chamou, e uma mulher apareceu na porta da casa — Catra, este é o novo homem lá da capela. O velho Prosper morreu no meio do inverno; você adivinhou que ele não durava até começo do ano novo. Tem pão sobrando, e um odre de vinho? Bom homem, aceita comer conosco enquanto não sai a nova fornada? Aceitei, e eles foram gentis e arranjaram tudo de que eu precisava: pão, cereal, e um odre de vinho, sebo de carneiro para fazer velas, óleo para os lampiões e ração para a água. Paguei tudo e Fedor (era esse seu nome) ajudou-me a arrumar os alforjes. Não fiz mais perguntas, mas escutei todas as notícias locais que ele contou, e, satisfeito voltei ao santuário. A notícia chegaria a Ector, e o nome também} ele seria a única pessoa a ligar imediatamente o novo ermitão da Floresta Agreste com o Myrddin que sumira no inverno da sua colina gelada em Gales. Desci de novo no começo de fevereiro, desta vez até a aldeia! onde vi que todos sabiam da minha vinda e já me aceitavam como parte do lugar, como eu previra. Se tivesse procurado ficar na aldeia ou no castelo, ainda seria o "estrangeiro" ou o "estranho", alvo de comentários incessantes, mas os homens santos eram uma classe à parte, geralmente nômades, e o povo os aceitava naturalmente, um alívio ver que nunca vinham à capela; ainda a temiam. A maioria era cristã, e procurava a comunidade de frades próxima, mas velhas crenças custam a morrer, e acho que me respeitavam m' que ao próprio abade. A mesma aura de santidade antiga prendia-se à ilha do lago.Perguntara a um dos homens das colinas sobre ela. Disse que chamava Caer Bannog, que significa Castelo nas Montanhas, e diziam que era assombrada por Bilis, o rei-anão do outro mundo. Tinha a fama de aparecer e desaparecer à vontade, flutuando invisível, vezes, como se fosse feita de vidro. Ninguém chegava perto de e embora as pessoas pescassem no lago durante o verão, e os animais mais pastassem na margem ocidental, onde o rio corria para o vale, ninguém ousava aproximar-se da ilha. Certa vez, um pescador, ficara preso numa

tempestade, foi forçado a levar o seu barco lá e a passar uma noite na ilha. Quando voltou para casa no dia seguinte, estava louco, e dizia que passara um ano num grande castelo feito de ouro e vidro, onde criaturas estranhas e terríveis viciavam um tesouro incomensurável. Ninguém ousou ir procurar o tesouro, porque o pescador morreu, delirando, em menos de uma semana. Ninguém mais pôs o pé na ilha, e embora (assim diziam) desse para se ver claramente o castelo num entardecer bonito, ele desaparecia quando algum bote se aproximava, e era sabido por todos que a ilha afundaria sob os pés de quem pisasse na praia. Essas histórias nem sempre devem ser desacreditadas. Eu pensava sempre nela, nesta outra "ilha de vidro" que achara quase à minha porta, e imaginava se a sua reputação faria dela um bom esconderijo para a espada de Macsen. Ainda se passariam alguns anos até que o jovem Artur pudesse erguer a espada da Inglaterra, e entrementes, não era seguro nem apropriado que ela permanecesse escondida no teto de um barracão na floresta. Às vezes eu me admirava que ela ainda não tivesse tocado fogo na palha. Se era mesmo a espada Real da Inglaterra, e Artur o Rei que deveria erguê-la, precisava ficar num lugar santo e assombrado, como o santuário onde eu a encontrara. E, quando o dia chegasse, o próprio menino teria de achá-la, como eu o fizera. Eu era o instrumento do deus, não a sua mão. Assim, pensava na ilha. E um dia, tive a certeza. Descera à aldeia novamente em março, para as minhas provisões mensais. Quando voltava, ao longo da margem do lago, o sol estava se pondo, e uma névoa leve cobria a superfície da água. Fazia a ilha parecer distante e flutuante, fantasmagórica e pronta a submergir sob um pé descuidado. O sol poente iluminava os rochedos, que pareciam erguer-se em chamas entre as árvores escuras. Nesta luz, as estranhas formações rochosas pareciam torres altas, o cimo de um castelo iluminado pelo sol, que surgia acima das árvores. Fiquei olhando, lembrando-me das lendas; de repente, freei Morango bruscamente e olhei fixamente. Lá estava de novo a torre dos meus sonhos, a Torre de Macsen, acima da névoa flutuante, intacta e feita de crepúsculo. A torre da espada. Levei a espada para lá no dia seguinte. Agora a neblina estava espessa e me escondia de alguém que pudesse estar observando. A ilha ficava a menos de duzentos passos da margem sul do lago. Dava pé para a égua, na altura do peito. O lago estava calmo ' silencioso como um espelho. Não fizemos mais barulho que os veados selvagens, e vimos apenas um par de patos e uma garça que voava devagar na neblina. Deixei a égua pastando e carreguei a espada por entre as árvores até alcançar o sopé dos rochedos. Acho que sabia o que ia encontrar. O entulho ao pé dos rochedos estava cheio de moitas e arvorezinhas, e entre os seus ramos ralos pude ver uma abertura que dava para uma passagem estreita que descia para dentro dos rochedos. Tinha trazido uma tocha. Acendi-a e desci depressa pela passagem íngreme, e encontrei-me numa profunda gruta interna aonde não chegava a luz. À minha frente, um lençol dágua, negro e parado, inundava metade da gruta. Para além da água, de encontro ao fundo da gruta, ficava um bloco de pedra baixo; não sabia se era natural, ou se a mão do homem tinha estado ali, mas ela tinha o formato de um altar, e num dos lados havia uma cavidade redonda. A cavidade estava cheia de água, que parecia vermelha como sangue à luz fumacenta da tocha. Aqui e ali, a água pingava do teto. Quando atingia a superfície do laguinho, a água se quebrava fazendo o barulho de uma corda de harpa sendo tocada, e o seu eco ia sumir nos recantos afastados que a luz da tocha iluminava. Mas, quando pingava em cima da pedra, não tinha formado depressões, como seria de esperar-se, mas formara pilastras, que se encontravam com os pingentes de pedra que desciam da rocha sólida. O lugar era um templo, com pilastras de mármore claro e chão de vidro. Até eu, que estava aqui por direito e protegido pelo poder, fiquei todo arrepiado.

"Por terra e por água ela voltará para casa, e ficará escondida na pedra flutuante até ser erguida novamente pelo fogo." Assim falaram os antigos, que teriam reconhecido, como eu, este lugar; como o reconheceram os pescadores mortos que voltaram louvando os átrios do Rei da escuridão. Aqui, na antecâmara de Bilis, a espada ficaria em segurança até a chegada do jovem que tem o direito de erguêla. Atravessei o laguinho. Agora podia ver como a passagem escura continuava, por trás da mesa de pedra, até que o teto encontrasse a superfície da água, e o caminho desaparecesse abaixo do nível do lago. Continuei a caminhar pelo laguinho. O chão inclinou-se e a água ficou mais funda. As ondinhas batiam contra a rocha, e os ecos percorriam as paredes e terminavam entre as pilastras. A água estava gelada. Coloquei a espada, ainda embrulhada como eu a encontrara, na mesa de pedra. Voltei pelo mesmo caminho. O lugar ressoava com ecos. Fiquei imóvel, eles diminuíram até um murmúrio, depois cessaram. Até a minha respiração parecia alta demais, uma intromissão. Deixei a espada na sua espera silenciosa, e voltei depressa para a luz do dia. As sombras abriram-se para dar-me passagem.

2 Abril chegou, quando se esperava Ector de volta. Na primeira semana do mês choveu e ventou, parecia inverno, e a floresta rugia como o mar, e as correntes de ar faziam as nove velas do santuário tremular e fumegar. A coruja branca observava do seu ninho no telhado, onde chocava os ovos. Certa vez, acordei com o silêncio da noite. O vento amainara, os pinheiros sossegaram. Levanteime, vesti a capa e fui para fora. A lua estava alta, e, ao norte, a Ursa Menor parecia tão perto e brilhante que dava vontade de tocar, mas a gente tinha medo de se queimar. O meu sangue corria leve e livre; meu corpo sentia-se recém-lavado, como a floresta. Dormi pouco o resto da noite, como um apaixonado, e ao alvorecer levantei-me, comi qualquer coisa e fui selar Morango. O sol brilhava no céu claro, e a sua luz derramava-se na clareira. A chuva da véspera ensopava a grama e os brotos novos de samambaia; ela pingava dos pinheiros, e se evaporava, enchendo o ar do perfume de pinho. Para além dos pinheirais, as montanhas circundantes erguiam-se brancas para o céu. Tirei a égua do alpendre, e já ia selá-la quando ela parou de pastar e ergueu as orelhas. Segundos depois, ouvi o que ela ouvira, o som de cascos a galope, o que era perigoso numa trilha sinuosa coberta de raízes e de ramos pendentes. Larguei a sela e esperei. Um cavalo negro, a galope e com rédea curta, saiu de dentro da floresta, parou a três passos de mim, e o garoto que estava grudado às suas costas como uma sanguessuga deslizou para o chão, tudo num movimento só. O cavalo suava e espumava. As narinas deixavam ver o vermelho. O galope firme e a parada precisa tinham sido obra de um perfeito controle. Nove anos de idade? Na sua idade eu cavalgava um pônei gordo que tinha que ser instigado a trotar. Segurou as rédeas, competentemente, em uma das mãos e dominou o cavalo, que queria passar por ele para chegar à água. Fez isso distraído; sua atenção estava concentrada em mim. — O senhor é o novo homem santo? — Sou. — Prosper era meu amigo. — Sinto muito. O senhor não tem muito jeito de ermitão. Está mesmo cuidando da capela, agora? — Estou. Mordeu os lábios pensativo, fitando-me. Estava avaliando-me Senti os meus músculos se retesarem sob o seu olhar, como nunca acontecera antes, para controlarem os nervos e as pulsações. Esperei; sabia que, como sempre, o meu rosto nada revelava. Ele devia estar vendo apenas um homem de aparência inofensiva, desarmado selando um cavalo insignificante para uma viagem de rotina em busca de suprimentos. Chegou a uma decisão. — Não contará a ninguém que me viu? — Por que, quem o está procurando? Abriu a boca, surpreso. Tive a impressão de que deveria ter dito "pois não, senhor". Virou a

cabeça, vivamente. Eu também ouvi. Era um cavalo que chegava, sobre a terra musgosa. Depressa, mas não tão depressa quanto o cavalo negro esporeado. — O senhor não me viu, lembra-se? — Vi a sua mão dirigir-se para a sacola, e parar a meio caminho. Sorriu, e fiquei surpreso; até agora, tinha-se parecido muito com Uther, mas aquele rosto iluminado lembrava o de Ambrósio, e os olhos negros também eram de Ambrósio. Ou meus. — Desculpe. — Falou educadamente, mas bem depressa. — Garanto-lhe que não estou fazendo nada errado. Não muito errado. Logo deixarei que me alcance. Mas ele não me permite cavalgar do jeito que gosto. — Dispõe-se a montar. — Se anda desse jeito por essas trilhas, não posso culpar o seu seguidor. Precisa mesmo ir? Vá esconder-se lá dentro. Eu arranjo um lugar para o seu cavalo descansar. — Eu sabia que o senhor não era um homem santo — disse ele em tom de elogio, e, jogando-me as rédeas, desapareceu pela porta dos fundos. Levei o cavalo negro para o barracão e fechei a porta. Fiquei ali por uns momentos, respirando fundo, como se tivesse emergido de águas turbulentas, acalmando-me. Dez anos, esperando por isto. Derrubara as defesas de Tintagel para Uther, e matara o seu capitão Brithael, com a pulsação menos agitada que agora. Bem, aqui estava ele, e veríamos no que ia dar. Fui para a beirada da clareira para encontrar Ralf. Estava sozinho, e furioso. Seu alazão subia a trilha a meio galope, com Ralf abraçado ao seu pescoço. Tinha uma arranhão fino numa das faces, feito por algum galho. O sol iluminava a clareira e deve tê-lo ofuscado. Pensei que por um momento fosse atingir-me, mas, ele me viu e parou bruscamente o animal. — Ei, senhor! Viu um menino passar por aqui há alguns minutos? — Vi. — Falei suavemente, e segurei a rédea. — Espere um momento... — Saia do caminho, idiota! — O alazão, sentindo as esporas, empinou violentamente, arrancando a rédea da minha mão. Na mesma hora Ralf falou, assombrado: — Meu senhor! — e puxou o cavalo para o lado. Os cascos deixaram de me atingir por centímetros. Ralf deslizou da sela com a mesma leveza que o jovem Artur e procurou beijar minha mão. Retirei-a depressa. — Não. E levante-se, homem. Ele está aqui, tome cuidado com o que faz. — Santo Cristo, meu senhor, eu quase o atingi! O sol estava nos meus olhos. . . não podia ver quem era! — Foi o que imaginei. Mas uma acolhida um tanto grosseira para o novo ermitão, não, Ralf? Esses são os modos costumeiros do norte? — Meu senhor. . . meu senhor, desculpe-me. Eu estava zangado... — e francamente: — Só porque ele me tapeou. E mesmo quando enxerguei o diabinho não consegui alcançá-lo. Então eu. . . — Afinal, o que eu tinha dito chegou até ele. Interrompeu-se e afastou-se, olhando-me da cabeça aos pés como se não pudesse acreditar nos seus olhos. — O novo ermitão? O senhor? O senhor é que é o "Myrddin" do santuário?. . . Mas, claro! Que idiota que eu sou, nunca liguei o nome ao senhor... E nem a mais ninguém.. . Não ouvi uma única suposição de que ele pudesse ser Merlin. . . — E tomara que nunca ouça. Sou apenas o guardião do santuário, e é só o que serei enquanto for necessário. — O Conde Ector já sabe?

— Ainda não. Quando é que ele deve voltar para casa? — Na próxima semana. — Conte-lhe, então. Ele assentiu, depois riu, a surpresa dando lugar à excitação e ao contentamento. — Pelo Crucifixo, mas como é bom revê-lo, senhor! Está bem? -orno tem passado? Como chegou até aqui? E agora. . . o que vai acontecer agora? As perguntas vinham aos borbotões. Levantei a mão, sorrindo. — Olhe, falaremos depois. Daremos um jeito. Agora, desapareça por cerca de uma hora e deixeme travar conhecimento com o garoto. — Certo. Duas horas está bem? Ele vai dar-lhe um bocado d crédito por isso... eu geralmente não sou despistado com facilidade — Olhou ao redor da clareira, só com os olhos, sem mexer a cabeça. O lugar estava calmo ao sol matutino, e um tordo cantava. — Onde está ele? Na capela? Então, o senhor deve dar-me umas indicações erradas, para o caso dele estar espiando. — Com prazer. — Virei-me e apontei para uma das trilhas que saíam da clareira. — Aquela serve? Não sei onde vai dar, mas deve bastar para fazer você sumir. — Se não me matar — respondeu resignadamente. — Tinha que ser aquela, não é? Normalmente, diria que foi um palpite ruim mas conhecendo o senhor... — Asseguro-lhe de que foi uma escolha ao acaso. Sinto. É assim tão perigosa? — Bem, se for procurar Artur por ali, vou demorar um bocado. — Pegou as rédeas, fazendo gestos de agradecimento para que o nosso observador invisível pudesse ver. — Não, meu senhor, falando sério... — Myrddin. Não seu senhor, agora, nem de mais ninguém. — Myrddin, então. Não, é uma trilha ruim, mas dá passagem ... com dificuldade. Além do mais, é o tipo do caminho que aquele filhote de diabo teria escolhido... Já lhe disse, nada que o senhor faz é por acaso! — Deu uma risada. — Que bom tê-lo de volta! Sinto que me tiraram um peso das costas. Esses últimos anos têm sido bem cheios, pode crer! — Eu acredito. Ele montou, fez uma saudação, e dei um passo atrás. Cruzou a clareira a meio galope, depois o ruído dos cascos foi diminuindo trilha acima, até que desapareceu. O menino estava sentado na beira da mesa, comendo pão e mel. O mel escorria pelo seu queixo. Ficou em pé quando me viu, limpou o mel com as costas da mão, lambeu a mão e engoliu. — O senhor achou ruim? Tinha muito e eu estava morto de fome. — Sirva-se. Há alguns figos secos naquela vasilha da prateleira. — Agora não, obrigado. Estou satisfeito. Vou dar água à Estrela. Ouvi Ralf indo embora. Enquanto conduzíamos o cavalo até a fonte, ele me disse: — Dei-lhe o nome de Estrela por causa da estrela branca na sua testa. Por que sorriu? — Porque quando eu era mais moço que você tive um pônei chamado Aster, que quer dizer Estrela em grego. E, igual a você, fugi de casa certo dia, fui para as colinas e dei com um ermitão que

morava sozinho (numa gruta, não numa capela, mas também era lugar solitário) e ele deu-me bolinhos de mel e frutas. — Quer dizer que fugiu? — Não de verdade. Só por um dia. Queria ficar sozinho. Às vezes a gente precisa. — O senhor entendeu? Foi por isso que mandou Ralf embora e não lhe disse que eu estava aqui? Quase todos teriam contado logo para ele. Acham que preciso ser pajeado — falou Artur ressentido. 0 cavalo ergueu o focinho, bufou para tirar os pingos das narinas e se afastou da água. Cruzamos de novo a clareira. — Ainda não lhe agradeci. Muito obrigado. Ralf não vai ficar mal, acredite. Eu nunca conto quando consigo enganá-los. Meu guardião ficaria zangado, e eles não têm culpa. Ralf voltará para cá e eu irei com ele. E não se preocupe; não deixarei que ele lhe faça mal. Além disso, Ralf sempre acha que a culpa é minha. — O sorriso maroto, de novo. — E é mesmo. Cei é mais velho que eu, mas quem tem as idéias sou sempre eu. Chegáramos ao barracão. Ele pensou em me dar as rédeas, depois, como antes, parou no meio do gesto, conduziu o cavalo para dentro e amarrou-o. Eu olhava da porta. — Como é o seu nome? — perguntei. — Emrys. E o seu? — Myrddin; e, por estranho que pareça, Emrys. Mas é um nome comum lá na minha terra. Quem é o seu guardião? — O Conde Ector. É o Senhor de Galava. — Largou o que fazia, com o rosto vermelho. Sabia que ele estava esperando pela pergunta seguinte, a pergunta inevitável, mas não a fiz. Passara doze anos tendo de contar a cada homem que falava comigo que era o filho ilegítimo de um pai desconhecido; não pretendia forçar o menino a esta mesma confissão. Mas havia diferenças. Ele já tinha melhores defesas do que eu tinha com o dobro da sua idade. E como o bem protegido filho adotivo do Conde de Galava, ele não tinha que viver, como eu vivera, com a pecha de bastardo. Mas as diferenças entre mim e esta criança eram mais profundas: eu me contentara com muito pouco, ignorando o meu poder; esse menino só Se contentaria com o máximo. — Quantos anos tem você? — perguntei. — Dez? Ele ficou satisfeito. — Acabei de fazer nove. — E já sabe andar a cava1o melhor do que eu. Ora, o senhor é só... — Interrompeu-se e enrubesceu. Só comecei a trabalhar como ermitão no Natal — repliquei m suavidade. — Já andei muito por aí. — Fazendo o quê? — Viajando. Até lutando, quando era preciso. — Lutando? Onde? Enquanto conversávamos, demos a volta pela porta da frente da capela, e subimos os degraus. Eram íngremes e cobertos de musgo e fiquei surpreso com a leveza com que ele os galgou. Era um menino alto e forte, com ossos que prometiam muito vigor. Havia um outro tipo de promessa; ele puxara a Uther e seria um belo homem Mas a primeira impressão que Artur dava era a de rapidez de movimentos controlada, como a de um dançarino ou de um hábil espadachim. Aí havia algo da inquietação de Uther, mas não era bem a mesma coisa; ela provinha de uma profunda harmonia interna.

Um atleta falaria em coordenação, um arqueiro de visão firme, um escultor de mão segura. Nesse menino, tudo se fundia em uma impressão de vitalidade flamejante, mas controlada. — Em que batalhas esteve? Era moço no tempo das Grandes Guerras? Meu tutor diz que terei de esperar até fazer quatorze anos para poder guerrear. Isso não é justo, porque Cei é três anos mais velho e eu ganho dele na proporção de três para um. Bem, dois para um, talvez... Oh! Quando entramos na capela, o sol às nossas costas projetou para a frente as nossas sombras, escondendo o altar. Ao nos movermos, a luz o alcançou, a luz forte da manhã, incidindo diretamente sobre a espada entalhada, fazendo com que a lâmina se destacasse nítida e brilhante das sombras na pedra. Antes que eu pudesse falar, ele já correra para a frente para agarrar o cabo. Sua mão encontrou a pedra, com um choque que lhe percorreu o braço. Ficou assim por alguns segundos, como que era transe, depois arriou a mão e deu um passo para trás, fitando o altar. Falou sem olhar para mim. — Que coisa estranha! Parecia de verdade. Eu pensei: "Lá está a espada mais bela e mortífera do mundo, e é para mim". E, o tempo todo, não era real. — Ah, mas é real — repliquei. Por entre os raios de sol ofuscantes, vi o menino, aureolado, virarse para mim. Atrás dele, o altar reluzia com o fogo gelado. — É muito real. Algum dia ela vai estar neste mesmo altar, à vista dos homens. E aquele que ousar tocá-la e erguê-la. . . — O quê? O que ele fará, Myrddin? Pisquei, afastei o sol dos olhos e controlei-me. Uma coisa e ver o que está acontecendo em outro lugar qualquer da Terra; outra bem diferente é ver o que ainda não surgiu do céu. Esta última, que os homens chamam de profecia, e que eu pareço possuir, e como ser atingido nas entranhas pelo chicote de Deus, que chamamos de relâmpago. Mas, embora a minha carne sofresse com ele, eu o bendizia, como as mulheres bendizem as últimas dores do parto. Nessa visão, eu vira o que iria acontecer aqui nesse mesmo lugar; a espada, o fogo, o jovem Rei. A minha pesquisa pelo Mar do Meio, a jornada dolorosa para Segontium, o recebimento das tarefas de Prosper, a dissimulação da espada em Caer Bannog.. . agora eu tinha certeza de que entendera a vontade do deus. De agora em diante, era só esperar. — O que eu farei? — a voz continuava a perguntar. Acho que o menino não teve consciência da modificação da pergunta. Ele estava sério, atento, ansioso. A ponta do chicote também o tinha atingido. Mas ainda não era a hora. Vagarosamente, procurando afastar as palavras perigosas, expliquei o que ele podia compreender. — O homem entrega a espada ao seu filho. Você terá que achar a sua. Mas, quando chegar a hora, poderá pegá-la, à vista de todos os homens. A visão se afastou, e pude voltar à manhã clara de abril. Limpei o suor do rosto e inspirei fundo. Parecia que era pela primeira vez. Puxei o cabelo úmido para trás e sacudi a cabeça. — Eles ficam amontoados à minha volta — falei, com irritação. — Quem fica? — Aqueles que velam por este lugar. — Os seus olhos me fitavam, à espera de maravilhas. Desceu devagar os degraus do altar. A mesa de pedra atrás dele era só uma mesa, em que havia uma espada toscamente entalhada. Sorri para ele. — Tenho um dom, Emrys, que pode ser útil e muito poderoso, mas que às vezes é inconveniente, e é sempre um bocado desagradável.

— Quer dizer que vê coisas que não existem? — Às vezes. — Então é um mágico? Ou um profeta? — Digamos que um pouco de cada. Mas esse é o meu segredo, Emrys. Eu guardei o seu. — Não contarei a ninguém. — Só isso, nem promessas nem juramentos, mas eu sabia que ele o faria. — Quer dizer que você estava prevendo o futuro? Que significava? — Não se pode ter certeza. Eu mesmo não tenho sempre certeza. Mas uma coisa é certa: um dia, quando você estiver pronto, vai achar a sua própria espada, e será a mais bela e mortífera do mundo. Mas agora, neste momento, quer me arranjar um pouco de água? Há um copo ao lado da fonte. Ele veio correndo. Agradeci e bebi, depois devolvi o copo. — E quanto aos figos secos? Ainda está com fome? — Estou sempre com fome. — De outra vez que vier, traga a sua merenda. Pode chegar aqui num mau dia. — Trarei comida para o senhor, se quiser. É muito pobre? Não tem cara. — Avaliou-me de novo, com a cabeça inclinada. — Pelo menos, não fala como se fosse. Se quiser alguma coisa, posso tentar arranjar para o senhor. — Não se incomode. Tenho tudo de que preciso, agora, respondi.

3 Ralf retornou, com os olhos cheios de indagações, mas formulando apenas as apropriadas à situação. Voltou cedo demais para o meu gosto. Havia nove anos para repassar, e conclusões a tirar. Voltou também cedo demais para o gosto do menino, que recebeu Ralf com cortesia e escutou em silêncio as reprimendas. Deduzi pela expressão de Artur que somente a minha presença o salvara de algo mais que palavras iradas. Ele vivia sob disciplina rígida; devia saber que os reis são criados mais severamente que as demais pessoas, mas não sabia que a regra se aplicava a ele. Como seria criado Cei, e que pensaria Artur da discriminação? Quando Ralf acabou de ralhar, ofereci-lhe vinho para acalmá-lo, e fui servi-lo humildemente. Quando foi pegar os cavalos, falei rapidamente para Ralf: — Diga ao Conde Ector que prefiro não ir ao castelo. Ele compreenderá. Os riscos são muito grandes. Ele poderá sugerir um lugar para nos encontrarmos em segurança. Costumava vir aqui? — Nunca veio quando Prosper estava aqui. — Então, eu descerei quando receber o seu recado. Ralf, não temos muito tempo, mas diga-me só isto: desconfia de que alguém tenha suspeitado quem é o menino? Não houve ninguém rondando o castelo, nada de suspeito? — Nada. Continuei, devagar: — Eu vi uma coisa quando você o trouxe da Bretanha. Vocês foram atacados perto do desfiladeiro. Por quem? Viu? Ele ficou olhando para mim. — Quer dizer lá perto das rochas, entre Mediobogdum e aqui? Lembro-me bem. Mas como é que o senhor soube disso? — Vi no fogo. Eu os observava sempre. Que foi, Ralf? Por que essa cara? — Foi uma coisa esquisita — respondeu devagar. — Nunca me esqueci. Naquela noite, quando nos atacaram, pensei tê-lo ouvido gritar o meu nome. Um aviso, claro como uma trombeta, ou o latido de um cão. E, agora, o senhor diz que estava olhando. — Mexeu os ombros como se tivesse sentido um arrepio, depois deu uma risada. — Já me esquecera do que é capaz, meu senhor. Acho que vou ter que me acostumar de novo. Ainda nos observa? Às vezes, isto pode ser meio de mau jeito. Dei uma risada. — Não os observo mais. Acho que pressentiria o perigo, se houvesse algum. No mais, deixo tudo em suas mãos. Mas, diga-me, descobriu quem os atacou naquela noite? — Não. Não usavam brasão. Matamos dois deles e nada encontramos que os identificasse. O Conde Ector achou que eram malfeitores ou ladrões. Eu também acho. E nunca houve mais nada desde então, nada mesmo. — Era o que eu pensava. E, agora, nada deve ligar Myrddin, o ermitão, a Merlin, o feiticeiro. O que estão comentando sobre o novo homem santo da capela da mata?

— Somente que Prosper morreu e que Deus mandou um substituto na hora certa, como sempre. Que o substituto é moço e com jeito de quieto, mas que não é tão quieto como parece. — Que querem dizer com isto? — Não tem duplo sentido. É que nem sempre o senhor se conduz como um humilde ermitão. — Não? Não sei por que; é o que sou normalmente. Preciso tomar mais cuidado. — Acho que o senhor acredita mesmo nisso. — Ele sorria, divertido. — Não se preocupe, eles só acham que o senhor é mais santo que a maioria. Este lugar sempre foi assombrado, e agora parece que é mais. Falam num espírito que tem a forma de um enorme pássaro branco e que voa em cima dos rostos dos homens que se aventuram pela trilha... as coisas de sempre sobre assombrações, tolices da roça, em que não se pode acreditar. Mas há duas semanas sabia que uma tropa vinha vindo para cá, proveniente de Alauna, e que uma árvore bloqueou a trilha, caindo sem aviso, e não havia vento soprando? Não sabia. Alguém se machucou? — Não. E eles seguiram por outro caminho. — Sei. Ele me fitava com curiosidade. — Os seus deuses, meu senhor? — Pode chamá-los assim. Não imaginava que ia ser tão bem protegido. — Então o senhor sabia que uma coisa dessas ia acontecer'' — Não, até que você me contasse. Mas, sei quem o fez, e por quê. Ele franziu a testa, pensativo. — Mas se foi feito de propósito... Se eu trouxer Emrys para cá de novo... — Emrys estará a salvo. E será o seu salvo-conduto também Ralf. Não tenha medo deles. Notei que tremeu ao ouvir a palavra "medo", depois assentiu. Parecia ansioso, até tenso. Perguntou: — Quanto tempo acha que ficará aqui? — É difícil dizer. Tudo depende da saúde do Grande Rei. Se Uther tiver uma recuperação total, talvez o menino fique aqui até completar quatorze anos, quando estará pronto para encontrar-se com o pai. Por que, Ralf? Não pode resignar-se à obscuridade por mais alguns anos? Ou é muito exaustivo tomar conta do jovem cavaleiro? — Não. . . quer dizer, sim. Mas não é por isso que... — Gaguejava ruborizado. Perguntei divertido: — E quem é ela? Não compreendi a sua cara fechada até que perguntou, depois de uma pausa: — O que mais o senhor viu quando olhava Artur no fogo? — Meu caro Ralf! — Não era o momento apropriado para dizer-lhe que as estrelas tendem a espelhar apenas o destino dos reis e a vontade dos deuses. Respondi, mansamente: — A Visão não costuma levar-me para além das portas dos quartos de dormir. Adivinhei. O seu rosto é transparente

como uma cortina de gaze. E precisa lembrar-se de chamá-lo de Emrys até quando está zangado. — Desculpe. Não quis dizer. . . Não que houvesse algo que o senhor não pudesse ter visto. . . quero dizer, eu nunca entrei no quarto de dormir dela... quero dizer, ela é.. . Ora, mas que inferno, eu devia saber que o senhor já estaria a par. Não quis ser insolente. Esqueci que o senhor não encara as coisas como os outros homens. Nunca sei onde estou pisando, com o senhor. O senhor esteve fora tanto tempo... Os cavalos estão chegando. Ele também selou o seu. Não disse que não ia descer hoje? — Não pretendia. Deve ser idéia de Emrys. E era. Logo que nos avistou à porta, Artur gritou: — Trouxe também o seu cavalo, senhor. Não quer nos acompanhar um pouco? — Se formos na minha velocidade, não na sua. — Podemos ir andando, se quiser. — Oh, não quero sujeitá-los a isso. Mas vamos deixar Ralf ir na frente, está bem? A primeira parte da descida era íngreme. Ralf ia à frente e Artur atrás dele, e o cavalo preto pisava muito firme, mesmo, pois Artur ficou o tempo todo com a cabeça virada para trás, conversando comigo. Parecia que era o garoto que tinha nove anos para recuperar; eu nem precisava fazer perguntas; todos os detalhes, pequenos e grandes,-da sua vida saíram aos borbotões, e no final eu sabia tudo sobre a casa do Conde Ector, e sobre o lugar que ele ocupava nela... sabia até mais que o menino. Afinal, saímos de dentro dos pinheiros, e chegamos a um bosque de carvalhos e castanheiros onde já se cavalgava com mais facilidade, e, meia milha adiante, alcançávamos a trilha fácil que contornava o lago. Caer Bannog, iluminada pelo sol, flutuava acima do seu segredo. O vale alargava-se à nossa frente, e logo deparamos com a linha de salgueiros que indicava o rio. Parei o meu cavalo no ponto onde o rio deixava o lago. Quando me despedia deles, o menino perguntou depressa: — Posso voltar breve? — Venha quando quiser. . . quando puder. Mas prometa-me uma coisa. Fez um ar desconfiado, que significava que pretendia cumprir o que quer que prometesse. — O quê? — Que não virá sem Ralf ou outro acompanhante. Não fuja da próxima vez. Esta floresta não se chama Floresta Agreste sem razão. — Ah, sei que dizem que é mal-assombrada, mas não tenho medo do que mora nas colinas, não depois que vi. . . — Interrompeu-se, e mudou de direção sem titubear — não com o senhor aqui. E se forem lobos, tenho o meu punhal, e os lobos não atacam de dia. Além disso, lobo nenhum alcança Estrela. — Eu estava pensando em outro tipo de animal selvagem. — Ursos? Javalis? — Não, homens. — Ah! — A sílaba correspondia a um dar de ombros. Era coragem, é claro; aqui também havia bandidos, como em todo lugar, mas era também inocência. Assim o Conde Ector o criara. A cabeça mais vulnerável e procurada do reino, e o perigo era só uma palavra para ele. — Está bem — continuou — prometo. Fiquei satisfeito. Os guardiães das colinas ocas podiam

vigiá-lo para mim, mas protegê-lo já era outra história. Para isso era preciso o poder de Ector, e o meu. — Minhas saudações ao Conde Ector — disse a Ralf, e vi que ele entendeu os meus pensamentos. Separamo-nos. Fiquei olhando enquanto cavalgavam pela relva ao longo do rio, o cavalo negro ansioso para correr, o alazão de Ralf inquieto ao seu lado, e o garoto falando e gesticulando. Finalmente, conseguiu o que queria, pois, de repente, Ralf esporeou o alazão que partiu a galope. O cavalo preto, esporeado uma fração de segundo depois, seguiu atrás dele como uma flecha. Quando as duas figuras velozes iam desaparecer por trás de uns vidoeiros, a menor virou-se na sela, e acenou. Tinha começado. Ele voltou no dia seguinte, trotando comportadamente clareira adentro, com Ralf logo atrás. Artur trazia de presente ovos, bolinhos de mel, e a informação de que o Conde continuava ausente, mas que a Condessa achava que a influência de um homem santo seria muito benéfica, e que ele poderia vir verme sempre. O Conde me encontraria quando voltasse. Foi Artur quem deu o recado, não Ralf, e não viu nada demais nele, só as precauções habituais de um guardião que ele achava severo demais. Quatro ovos estavam quebrados. — Só mesmo Emrys — falou Ralf — podia imaginar que conseguiria trazer ovos montado nesse potro selvagem. — Ele saiu-se muito bem, pois só quebrou quatro. — É, só mesmo Emrys faria isto. Nunca fiz uma viagem mais tranqüila desde a última vez que escoltei o senhor. Depois, deu uma desculpa qualquer e foi embora. Artur lavou a crina do cavalo que estava suja dos ovos, depois veio ajudar-me a comer os bolinhos de mel, e bombardear-me com perguntas sobre o mundo que havia fora dos limites da Floresta Agreste. Alguns dias mais tarde, Ector retornou a Galava, e tomou as providências para encontrar-me. Já devia estar-se comentando que o garoto Emrys fora duas ou três vezes à capela na mata, e era lícito esperar-se que o Conde Ector ou a sua senhora quisessem conhecer o novo encarregado picou combinado que Ector e eu nos encontraríamos, por acaso, na fazenda de Fedor. Fedor e sua mulher eram de absoluta confiança. As outras pessoas apenas veriam o novo ermitão vindo buscar as provisões de costume, e o Conde, que ia passando e aproveitou a oportunidade para travar conhecimento com ele. Fomos para uma salinha pequena e enfumaçada, o nosso anfitrião deu-nos um pouco de vinho, e deixou-nos a sós. Ector pouco mudara, só estava com a barba e os cabelos mais grisalhos. Quando, após os cumprimentos iniciais, eu fiz este comentário, ele riu. — Não é de surpreender. Você bota um ovo de cuco dourado no nosso ninho tranqüilo, e quer que eu continue despreocupado? Não, não, homem, estou só brincando. Drusilla e eu queremos muito bem ao menino. Não importa o que o futuro nos reserve, estes anos foram bons, e se fizemos um bom trabalho, foi porque trabalhamos com material de primeira. Começou a contar a sua administração. Cinco anos é muito tempo, e muito havia que contar. Quase não falei, só escutei. Algumas coisas eu já sabia, ou porque vira no fogo, ou porque o menino me contara. Mas o que realmente se destacava da narrativa de Ector era a afeição profunda que ele e a

mulher dedicavam ao pupilo. Não apenas eles dois, mas o resto do pessoal da casa, que não tinha a menor idéia de quem era realmente, era profundamente afeiçoado a Artur. Minha impressão dele fora correta: tinha coragem, inteligência viva e pronta, e um enorme desejo de se destacar. Não tinha a cabeça fria e nem era cauteloso (os mesmos defeitos do pai. . .) — Mas, que diabo, quem quer que um guri seja cauteloso? Isto ele vai aprender da primeira vez em que for magoado, ou quando conhecer um homem em quem não possa confiar — falou Ector com aspereza, dividido entre o orgulho que sentia pelo menino e o que sentia pela sua atuação como guardião. Quando toquei neste assunto, e comecei a agradecer pelo que havia feito, interrompeu-me abruptamente. — Bem, ao que me consta, está muito bem instalado por aqui. Que bela chance teve de aparecer na Capela Verde bem na hora de substituir o velho Prosper! — Chance? — perguntei. — Ai, ai, já estava esquecendo com quem estava falando! Faz muito tempo que não temos um feiticeiro por aqui. Bem, para um simples mortal como eu parecia só chance. Seja lá o que for, foi a melhor coisa; você não poderia ter ficado no castelo, pois temos lá um sujeito que o conhece bem: Marcelo, casado com a irmã de Valério. É o meu mestre-de-armas. Talvez eu não devesse tê-lo contratado, sabendo que você deveria voltar, mas ele é um dos melhores oficiais do país, e Deus sabe que vamos precisar do máximo, aqui no norte. Também é o melhor espadachim do país. Pelo bem do menino, não quis perder esta oportunidade. — Olhou-me vivamente — Do que está rindo? Isto também não aconteceu por chance? — Não, — respondi — foi Uther. — Contei-lhe da conversa que tivera com o Rei sobre o treinamento de Artur. — É bem típico de Uther ter mandado um homem que me conhecia. Bem, mas ele não pode pensar em duas coisas ao mesmo tempo. . . Está certo vou ficar afastado. Você pode arranjar um bom motivo para deixar o menino ir visitar-me? — Já espalhei por aí que ouvi falar de você, e que você é um homem culto e viajado, e que pode ensinar aos meninos coisas que o Abade Martin e os padres não podem. Todos saberão que eu os autorizei a procurarem-no sempre que tiverem vontade. — "Os"? Pensei que Cei já não necessitasse de tutor. — Ah, ele não iria para aprender! — A voz do pai denotava um orgulho meio pesaroso. — Ele é como eu, o meu Cei só pensa nas artes de batalha. Nunca será o espadachim que Artur promete ser, mas é tenaz e esforçado. Ele não voltará a segunda vez se tiver que aprender coisas em livros, mas, sabe como são os meninos, o que um quer, o outro também quer, e mesmo que eu quisesse, não conseguiria afastá-lo daqui, depois de tudo que Artur lhe contou. Artur não fala noutra coisa desde que cheguei, até disse a Drusilla que era seu dever sagrado vir todo dia ver se você tinha bastante comida. É, pode rir. Você botou feitiço nele? — Que eu saiba, não. Gostaria de ver Cei novamente Era um bom menino. — Não é fácil para ele — explicou Ector — saber que o garoto, apesar de três anos mais novo, é quase tão bom quanto ele, e que provavelmente o sobrepujará quando forem homens. E quando eram menores era sempre: "Deixe Emrys ter tanto quanto você. . . ele é o filho adotivo, é um convidado." Talvez tivesse sido mais fácil se houvesse outros. Foi muito difícil para Drusilla, sem poder favorecer nem um nem outro, mas tendo que demonstrar a Cei que ele era o filho verdadeiro, sem que Artur se sentisse alijado. Cei trata bem o outro menino, embora sinta um pouco de ciúme, mas não haverá o que

temer no futuro, garanto-lhe. Mostre-lhe a quem deve ser leal, e nada o modificará. Ele é como o pai: um cachorro lerdo, mas quando morde não larga. — Continuou a conversar, e eu escutava, recordando a minha infância tão diferente, um bastardo e un1 intruso naquela corte. Eu era quieto e não demonstrava nenhum talento que pudesse despertar inveja, enquanto Artur sobressaía entre outros meninos, como um jovem dragão numa ninhada de salamandras. Afinal, Ector suspirou, bebeu e largou o copo. .— Mas isto são águas passadas. Cei fica ao meu lado, agora, entre os homens, e Bedwyr faz companhia a Artur. Quando falei no plural, não estava me referindo a Cei. Temos outro menino conosco. Trouxe-o de York. Chama-se Bedwyr e é filho de Ban de Benoic. Conhece-o? — Conheço. — Ele pediu-me que ficasse com Bedwyr por um ou dois anos. Soube que Marcelo estava aqui, e queria que Bedwyr aprendesse com ele. Tem mais ou menos a mesma idade de Artur, por isso não me incomodei com a sugestão de Ban. Você gostará de Bedwyr. Um menino tranqüilo; não demasiado inteligente, segundo ò Abade Martin, mas um bom garoto, e parece gostar de Emrys. Cei pensa duas vezes antes de se meter com esta dupla. Bem, então fica assim. Vamos torcer para que o Abade Martin não queira travar a roda! — Será que o faria? — Bem, o menino é cristão. Prosper aparentemente serviu a Deus, nestes últimos anos, mas todos sabem que a Capela Verde acolheu outros deuses que não o verdadeiro Cristo, em outras épocas. O que faz você lá em cima, na floresta? — Eu acredito em honrar o deus que se me apresenta — respondi. — Isto é ser sensato e cortês. Às vezes, acho que nem os deuses ainda decidiram. A capela fica aberta, e entra quem quer. — E Artur? — Numa casa cristã, Artur honrará o Deus de Cristo. O que ele fará num campo de batalha já é outra coisa. Ainda não sei qual o deus que dará a espada ao menino, e não creio que Cristo tenha sido grande coisa como espadachim. Mas veremos. Posso servir-lhe mais vinho? — Como? Ah, sim. — Ector piscou, umedeceu os lábios e mudou de assunto. — Ralf me contou que você fez perguntas sobre a emboscada de Mediobogdum, há cinco anos. Eram apenas ladrões. Por que pergunta? Acha que há alguém interessado, agora? — Tive problemas na viagem para o norte. Ralf disse que por aqui não houve nada. — Nada. Já fui duas vezes a Winchester e uma vez a Londres, e ninguém fez uma única pergunta, o que certamente teria acontecido se houvesse suspeitas de que o menino estava aqui pelo norte. — Lot nunca se aproximou ou demonstrou interesse? Um olhar ligeiro. — Ah? ele! Bem, da parte dele nada me surpreenderia. Alguns dos problemas que temos tido por aqui teriam sido evitados, se determinado cavalheiro desse mais atenção aos assuntos do seu reino em vez de estar procurando cortejar um trono. — Então, é isto que comentam. Ele está atrás do lugar do Rei e não de um lugar ao lado do Rei? — Seja lá o que for, ele e Morgiana estão comprometidos; vão se casar quando a menina fizer doze anos. Não há jeito de desmanchar essa união agora, nem que Uther quisesse. — E você não está satisfeito? — Ninguém está, aqui, nesta região. Dizem que Lot tem aumentado continuamente as suas fronteiras, e nem sempre pela força. Tem havido reuniões. Se e!e estiver com muito poder na época do

declínio de Uther, talvez voltemos aos tempos do Lobo. Os saxões chegando a cada primavera, queimando e violando até o Caminho Penino, e os irlandeses vindo juntar-se a eles, e mais do nosso povo fugindo para as montanhas e para o pouco conforto que encontram por lá. — Quando foi a última vez que viu o Rei? — Há três semanas. Quando esteve em York, mandou chamar-me e fez perguntas sobre o garoto. — Que tal está ele? — Está bem, mas não tão afiado quanto antes. Dá para entender? — Perfeitamente. Cador de Cornwall estava com ele? — Não. Ainda estava em Caerleon. Dizem que... — Em Caerleon? — indaguei vivamente. — O próprio Cador esteve lá? — Esteve — respondeu Ector, surpreso. — Pouco antes de você sair de casa. Não sabia? — Devia ter sabido — comentei. — Mandou um grupo de homens armados revistar a minha casa em Bryn Myrddin, e vigiar os meus movimentos. Despistei-os, acho, mas não imaginava estar sendo vigiado por dois grupos ao mesmo tempo. Urien de Gore também tinha gente em Maridunum, e me seguiram até Gwynedd. — Contei-lhe sobre Crinas e a gente de Urien, e ele escutou, de testa franzida. Perguntei: — Não ouviu falar em nada disso por aqui. Eles não fariam perguntas abertamente, mas esperariam, vigiariam e escutariam. — Não. Eu teria sido avisado se aparecessem estranhos. Vo« deve tê-los despistado. Fique tranqüilo, os homens de Cador na0 virão para estes lados. Ele está agora em Segontium, sabia? — Quando estive lá, ele estava sendo esperado. Sabe se pretende fazer de Segontium o seu quartel-general, agora que Uther nomeou-o chefe das Defesas da Praia Irlandesa? Falou-se em sitiá-lo? — Falou-se, sim, mas acho que não vai dar em nada. Seria uma tarefa que consumiria mais tempo e dinheiro do que Uther pode gastar, agora. Acho que Cador vai guarnecer Segontium e as fortalezas da fronteira, e vai instalar o seu quartel-general no interior, de onde pode dirigir as suas forças para os pontos de ataque. Talvez em Deva. Rheged está em Luguvallium. Fazemos o possível. — E Urien? Está firme lá no leste, onde é o seu lugar? — Bem instalado na sua rocha — falou Ector, com satisfação sombria. — E uma coisa é certa. Até que Lot se case com Morgiana, na presença de todos os bispos do reino, e que haja prova positiva da consumação, ele não moverá um dedo para derrubar Uther, nem deixará que Urien o faça. E nem ele vai encontrar Artur. Se não sentiram o cheiro do menino nesses nove anos, não há de ser agora que vão pegar a pista. Fique descansado. Quando Morgiana estiver com doze anos, pronta para ser levada para a cama, Artur estará com quatorze, a idade em que o Rei prometeu mostrá-lo ao reino. Essa será a hora de lidar com Lot e Urien, mas, se a hora for antecipada, será pela vontade de Deus. Com isso, nos separamos, e eu voltei sozinho para o santuário.

4 Depois disto, Artur vinha ver-me duas ou três vezes por semana, às vezes com os dois meninos, mas, geralmente, só com Bedwyr. Cei era um menino louro e grande, parecido com o pai, que tratava Artur com um misto de proteção e afeição fanfarrã que devia ser irritante, às vezes, para o garoto mais novo. Mas Artur parecia gostar do seu irmão de criação e queria partilhar com ele das alegrias que encontrava nas visitas que me fazia. Cei apreciava as histórias de lugares distantes que eu contava, e as histórias de lutas., conquistes e batalhas, mas logo se cansava de discutir o modo como os Povos viviam e governavam seus países, e as lendas e crenças que Artur adorava ouvir. Com o passar do tempo, Cei foi deixando de vir, acompanhando o pai, segundo me contavam os outros dois, nos Aportes ou nos negócios; às vezes caçava, patrulhava, visitava os vizinhos com o Conde Ector. Depois do primeiro ano, eu raramente via Cei. Bedwyr era completamente diferente, um menino sossegado idade de Artur, meigo e sonhador como um poeta, e um seguidor inato. Ele e Artur eram como os dois lados de uma mesma maçã. Bedwyr acompanhava o outro com devoção canina; não procurava esconder o seu afeto por Artur, mas nada havia de efeminado nele apesar das maneiras meigas e dos olhos de poeta. Era um menino sem atrativos, com o nariz achatado em alguma briga, e mal consertado, e a cicatriz de uma queimadura na face. Mas tinha o caráter firme e bom, e Artur lhe queria bem. Como filho de Ban, um rei pequeno, Bedwyr era superior em status a Cei, e, segundo os meninos imaginavam, pertencia a uma esfera completamente diferente da de Artur. Mas isto nunca preocupou nem a Bedwyr nem a Artur, um oferecia devoção, o outro a aceitava. Certo dia, perguntei-lhes: — Conhecem a história de Bisclavaret, o homem que virou lobo? — Bedwyr, sem responder, foi buscar a harpa e colocou-a ao meu lado. Artur, deitado na cama, com o queixo apoiado na mão e os olhos brilhantes à luz do fogo (era uma tarde fria, no fim da primavera), falou impaciente: — Deixe pra lá, não precisa a música. Conte a história. — Bedwyr acomodou-se ao lado dele, sobre as cobertas, e eu dedilhei as cordas e comecei. Era uma história impressionante, que Artur escutou satisfeito, mas Bedwyr foi ficando cada vez mais quieto, e os seus olhos foram ficando maiores. Já estava escurecendo quando voltaram para casa, acompanhados por um criado parrudo. Artur, quando ficou sozinho comigo no dia seguinte, contou que Bedwyr tivera pesadelos durante a noite. — Mas, sabe, Myrddin, quando estávamos voltando para casa ontem, e a história ainda estava fresca nos seus ouvidos, vimos algo deslizar por entre as árvores, e pensamos que fosse um lobo, e Bedwyr botou-me entre ele e Leo. Eu sabia que ele estava com medo, mas disse que era o seu dever proteger-me, e suponho que seja, porque ele é filho de um rei e eu... Interrompeu-se. Nunca pisara neste terreno delicado. Fiquei calado e esperei. — ... sou seu amigo. Conversei com ele, então, sobre a coragem e o momento passou. Lembro-me do que disse depois sobre Bedwyr. Lembrei-me muitas vezes, nos anos que se seguiram, quando a amizade nunca arrefeceu, nas situações mais delicadas.

Ele disse, com toda a seriedade, como se, aos nove anos, tivesse certeza: Ele é o companheiro mais corajoso, e o melhor amigo do mundo. Ector e Drusilla fizeram com que Artur soubesse o que podia sobre o seu pai e a Rainha. Ele sabia, como todo mundo no país, que havia um jovem herdeiro à espera (na Bretanha, na Ilha de Vidro, na torre de Merlin) da sucessão. Ele mesmo me contou a história que corria sobre "o estupro de Tintagel". A lenda estava, cada vez mais, enriquecida. Agora, contava-se que Merlin transportara o grupo do Rei, com cavalos e tudo, para dentro da fortaleza, e para fora no dia seguinte, tudo invisível. — E contam — terminou Artur — que um dragão ficou enrascado a noite toda nas torres, e que no dia seguinte Merlin montou nele e saiu voando, deixando um rastro de fogo. — Não diga! É a primeira vez que ouço isto. — Conhece a história? — perguntou Bedwyr. — Conheço uma canção que está bem próxima da verdade. Quem me contou foi um homem que esteve em Cornwall. Ralf estava presente, escutando, divertido. Fiz-lhe uma pergunta muda e ele fez que não com a cabeça. Ele não tinha dito a Artur que morara em Tintagel, e ninguém podia adivinhar. Falava com sotaque do norte. Assim, contei aos meninos a verdade (e quem a conhecia melhor?) sem os enfeites de fantasia que o tempo e a ignorância tinham acrescentado. A história já era bem fantástica por si mesma; a vontade de Deus e o amor humano juntos na noite escura sob a luz da grande estrela, e a semente plantada que faria nascer um grande Rei. — Assim, fez-se a vontade de Deus, e a do Rei, e os homens, como sempre, cometeram erros e morreram por causa deles. E, pela manhã, o feiticeiro foi embora sozinho cuidar da sua mão quebrada. — Nenhum dragão? — indagou Bedwyr. — Nenhum dragão — respondi. — Prefiro o dragão — disse Bedwyr com firmeza. — Vou continuar a acreditar no dragão. Ele ter ido embora sozinho é muito decepcionante Um feiticeiro de verdade não teria feito isto, não é, — Claro que não — respondeu Ralf, ficando de pé. — Vamos indo, já está escurecendo. Não lhe deram atenção. — O que não entendo mesmo — falou Bedwyr — é que um rei possa se arriscar tanto por uma mulher. Ser fiel aos seus pares é muito mais importante que a posse de qualquer mulher. Eu nunca me arriscaria a perder nada de realmente importante por este motivo. — Nem eu — disse Artur, lentamente. Ele estivera meditando sobre o assunto. — Mas acho que compreendo, apesar disso. A gente tem que levar o amor em consideração. — Mas não se pode arriscar a amizade por causa dele — apressou-se a dizer Bedwyr. — Claro que não — replicou Artur. Ele falava em termos gerais, enquanto Bedwyr referia-se a uma amizade, um amor. Ralf recomeçou a falar, mas neste momento uma sombra passou silenciosa em frente à luz do

lampião. Os meninos nem ligaram, era só a coruja branca que entrara pela janela e ia para o seu poleiro no teto. Mas a sua sombra passou por cima da minha pele como uma mão gelada, e eu tremi. — Que foi, Myrddin? — perguntou logo Artur. — É só a coruja. Você parece que viu um fantasma! — Não foi nada. Não sei. Eu não sabia, mas agora sei. Estávamos falando em latim, como de hábito, mas a palavra que ele empregou para a sombra sobre a luz foi celta: guenhwyvar. Eu também contava a eles a história do seu país, fatos recentes, Ambrósio e a sua guerra contra Vortigern, e como ele unificara os reinos, e se tornara o Grande Rei, e trouxera a justiça para todos, pelo uso da espada, e que, por alguns anos, os homens puderam cuidar da sua vida em paz, sem serem molestados; se o fossem, poderiam recorrer à justiça do Rei, que era igual para o rico e para o pobre. Para muitos, isto era História; mas eu estivera presente, e por dentro, ao lado do Grande Rei, e, em certos casos, fora o arquiteto dos acontecimentos. Isto, é claro, eles não poderiam saber. Eu só dissera que estivera com Ambrósio na Bretanha, e na batalha de Kaerconan, e nos anos da reconstrução. Eles nunca perguntaram como ou por que estive lá, e acho que era por delicadeza, para que não tivesse de confessar que fora um humilde assistente dos engenheiros, ou, talvez, um escrivão. Mas ainda recordo as perguntas de Artur sobre o Conde da Inglaterra (que era como Ambrósio se chamava, então), como ele reunira, treinara e equipara o seu exercício, como ele o enviara pelo Mar Estreito para a terra dos Dumnonii onde estabelecera a sua posição de Grande Rei, antes de partir para o norte para derrotar Vortigern em Doward, e destroçar o imenso exército saxão em Kaerconan. Eu tinha que descrever para ele cada detalhe da organização, planejamento e estratégia de que me recordava, e cada escaramuça a que eu me referia era revivida pelos dois meninos, debruçados sobre mapas desenhados na poeira. — Dizem que logo vai haver guerra — falou Artur — e sou muito moço para poder ir. — Lamentava abertamente, como um cão que tem que ficar em casa num dia de caçada. Faltavam três meses para o seu décimo aniversário. As visitas não eram só para discutir guerras e altos destinos, é claro. Havia dias em que os meninos brincavam como cachorrinhos, correndo e lutando, apostando corrida pelas margens do rio, nadando no lago e assustando os peixes, ou subindo as colinas com Ralf para caçar lebres ou pombos. Às vezes eu os acompanhava, mas não gostava de caçar. Era diferente quando eu pegava a vara de pescar do velho ermitão e ia para as margens do lago. Passávamos horas felizes, Artur pescando, com mais vontade do que sucesso, e eu observando e conversando. Bedwyr não gostava de pescar, e acompanhava Ralf nessas ocasiões, mas Artur preferia ficar comigo, mesmo nos dias em que o vento ou o mau tempo impediam a pesca, em vez de ir com Ralf e Bedwyr divertir-se na floresta. Agora eu me recordo que não parava para pesquisar o motivo disto. O menino era toda a minha vida, o meu amor por ele parte do cotidiano, e eu ficava feliz em aceitar tudo que vinha dele, tomando como presente dos deuses o fato de que o menino parecia gostar de ficar ao meu lado, acima de tudo. Dizia a mim mesmo que ele precisava escapar da casa adotiva, das atitudes de um irmão mais velho que estava sendo preparado para uma posição que ele nunca poderia almejar, e que apreciava a chance de estar com Bedwyr num mundo de imaginação e feitos audazes, a que ele gostaria de pertencer. Não me permitia atribuir o seu comportamento ao amor, e se tivesse adivinhado a natureza daquele amor, nada

poderia ter feito na época. Bedwyr ficou em Galava por mais de um ano, voltando para casa no outono anterior ao décimo primeiro aniversário de Artur. Ele deveria voltar no verão seguinte. Depois que ele partiu, Artur lamentou-se por uma semana, ficou quieto por mais uma, e depois recobrou de estalo o seu bom humor, e voltou a vir visitar-me, apesar "o mau tempo, com mais freqüência do que antes. Não tenho idéia dos motivos que Ector alegava para deixar que ele viesse tão freqüentemente. Provavelmente, não precisava de motivos: o menino tinha por hábito cavalgar diariamente, a não ser quando o tempo estava proibitivo, e se não quisesse dizer aonde ia nada lhe era perguntado. Como era de se esperar, logo se soube quê ele vinha muito à Capela Verde, onde vivia o sábio, mas se alguém pensou duas vezes no assunto, foi para elogiar o bom senso do menino que queria privar com um homem culto. Nunca tentei ensinar Artur do modo que o meu mestre Galapas me ensinara. Ele não se interessava pela leitura ou por cálculos, e não tentei forçá-lo; quando fosse Rei ele se utilizaria de outros homens para estas artes. A sua educação formal era ministrada pelo Abade Martin e outros da comunidade. Percebi nele um pouco da minha queda para línguas, e descobri que, além do celta da região onde morava, guardava noções do bretão que aprendera com a ama, e Ector, preocupado com o futuro, procurara modificar o seu sotaque nortista, para que os britânicos de toda parte pudessem entendê-lo. Decidi ensinar-lhe o Velho Idioma, e fiquei surpreso ao ver que ele já sabia o suficiente para entender uma frase dita devagar. Quando perguntei onde o aprendera, pareceu surpreso e respondeu: — Aprendi com o povo das colinas, é claro. São os únicos que ainda o falam. — E já falou com eles? — Ah, já. Quando era pequeno, certa vez saí com um dos soldados, que caiu do cavalo e machucou-se, e dois deles vieram ajudar. Pareciam saber quem eu era. — Pareciam? — É. Depois, eu os via sempre, aqui e ali, e aprendi a falar um pouquinho como eles. Mas queria aprender mais. Nada lhe ensinei das minhas outras habilidades, música e medicina, todo o conhecimento que eu adquirira sobre as feras e os pássaros e os animais selvagens. Não precisaria delas. Ele só se interessava pelas feras para caçá-las e sabia tanto quanto eu sobre os hábitos dos veados selvagens, dos lobos e dos javalis. Também não fiz com que partilhasse muito do meu conhecimento de máquinas; outros homens as fariam e montariam para ele; ele só precisaria saber usá-las e isto lhe fora ensinado, junto com as demais artes da guerra, pelos soldados de Ector. Mas, como Galapas fizera comigo, eu lhe ensinei a fazer e a ler mapas, e mostrei-lhe o mapa do céu. Certo dia, ele perguntou: — Por que você olha para mim, às vezes, como se eu lhe lembrasse alguém? — Eu faço isso? — Você sabe que sim. Quem é? .— Eu mesmo, um pouco. — Que quer dizer? — Ergueu a cabeça do mapa que estava estudando. .— Já lhe disse que quando tinha a sua idade ia sempre para as colinas visitar o meu amigo Galapas. Estava me lembrando da primeira vez que me ensinou a ler um mapa. Ele me obrigava a trabalhar muito mais que eu a você.

— Sei. — Não disse mais nada, mas ficou abatido. Por que será que imaginava que pudesse contar-lhe algo sobre a sua origem? Ocorreu-me então que esperava que eu pudesse "ver" as coisas que quisesse. Mas nunca pediu que eu o fizesse.

5 Não houve guerra naquele ano nem no ano seguinte. Depois do décimo segundo aniversário de Artur, na primavera, Octa e Eosa conseguiram, finalmente, escapar da prisão, e fugiram para o sul, refugiando-se atrás das fronteiras dos saxões federados. Comentou-se que foram auxiliados por senhores que se diziam leais a Uther. Não se podia culpar Lot diretamente, nem Cador; ninguém sabia quem eram os traidores, mas os comentários fervilhavam, e só faziam aumentar a inquietação que se espalhava pelo país. Parecia que a união forçada dos reinos, promovida por Ambrósio, iria se desmantelar. Cada um dos reis menores, seguindo o exemplo de Lot, aumentava as suas fronteiras. E Uther, que já não era mais aquele guerreiro brilhante que fora temido e admirado, dependia demais da força dos seus aliados, e se fazia de cego ao poder que eles estavam acumulando. O resto do ano foi relativamente calmo, apenas com as escaramuças habituais nos dois lados da Muralha de Adriano, e os desembarques de verão na costa leste que, dizia-se, os seus defensores não fizeram muita força para repelir. As tempestades no Mar Irlandês mantiveram a paz no oeste, e Cador iniciara as fortificações em Segontium. O Rei Uther, sem dar atenção aos que diziam que qualquer problema que houvesse começaria no norte, permanecia entre Londres e Winchester, concentrando as suas energias no patrulha-mento da Praia Saxã e na proteção à Muralha de Ambrósio, com a sua força principal a postos para atacar onde quer que os invasores violassem as fronteiras. Na verdade, não havia muito que o atraísse para o norte; os rumores de uma grande aliança entre os invasores não passavam de rumores mesmo, e os ataques pequenos ao longo da costa sul continuaram o ano todo, fazendo com que o Rei ali permanecesse para enfrentá-los. A Rainha deixou Cornwall e mudou-se com toda a sua comitiva para Winchester. Sempre que podia, o Rei ia vê-la. Observou-se que ele não procurava mais outras mulheres como antes, mas não se falou em impotência; as mulheres que sabiam do seu problema devem ter achado que era apenas uma fase passageira da sua doença e nada disseram. Quando se descobriu que ele agora passava todo o seu tempo livre com a Rainha, falou-se que tinha feito voto de fidelidade. Assim, embora as moças sentissem a falta do amante, os cidadãos que tinham que trancar as filhas quando o Rei aparecia ficaram muito satisfeitos, e teceram-lhe elogios por acrescentar esta virtude aos seus poderes de guerreiro. Ele parecia ter recobrado perfeitamente estes últimos, embora se falasse do seu humor instável e de súbitas crueldades no tratamento dispensado aos inimigos derrotados. Mas isto tudo parecia sinal de força, numa hora em que se necessitava de força. Quanto a mim, tinha desaparecido sem maiores problemas. Se, às vezes, as pessoas se perguntavam por onde eu andaria, uns diziam que eu cruzara novamente o Mar Estreito para continuar as minhas viagens, outros que eu me escondia, solitário, para dedicar-me aos estudos. Os boatos sobre a minha pessoa vinham de todas as partes do país, segundo me contavam Ralf, Ector, e até Artur, inocentemente. Diziam que, logo que o Rei ficou doente, Merlin tinha vindo imediatamente num navio dourado com velas escarlates, fora ao palácio para curá-lo e depois desaparecera no ar. Depois, fora visto em Bryn Myrddin, mas ninguém o vira pelo caminho. (E eu trocara de cavalo nos lugares de costume e ficara todas as noites numa taverna pública.) E desde então, comentava-se, o feiticeiro Merlin tem aparecido e desaparecido, aqui e ali, por todo o país. Tinha curado uma mulher doente perto de Aquae Sulis, e, uma semana mais tarde, fora visto na Floresta Caledônia, a quatrocentas milhas de distância. O exército de lendas crescia, inventadas por pessoas ociosas que almejavam a importância que essas "notícias" lhes conferiam. Às vezes, como já acontecera antes, curandeiros ambulantes e

pseudo profetas diziam-se "um outro Merlin", ou, até mesmo, fingiam ser eu; assim, despertavam a confiança dos pacientes, que não me desmereciam se ficavam bons. Se o doente morresse, as pessoas diziam: — Não era Merlin, afinal de contas; a mágica dele teria dado certo. - E como a esta altura o falso Merlin já teria sumido, a minha reputação sobrevivia à impostura. Desse modo, conservei o meu segredo sem nada perder. E o encarregado tranqüilo da Capela Verde não despertou a mínima suspeita. De tempos em tempos mandava recados para tranqüilizar o Rei. Eu tinha medo que ficasse impaciente e mandasse chamar o menino antes do tempo, ou que, inadvertidamente, deixasse os que o vigiavam perceber sobre o Conde Ector ou sobre mim mesmo. Mas ele não o fez. Ector, conversando comigo a esse respeito, imaginava que o Rei não quisesse o menino ao seu lado em Londres por temer alguma traição, ou por ainda ter alguma esperança de ter outro filho. Acho que não era nem uma coisa nem outra. Ele estava era assoberbado pelos problemas, pelas traições e pela falta da saúde a que estava acostumado; além disso, a Rainha adoeceu naquele inverno. Ele não tinha tempo para pensar no jovem estranho que estava esperando para conseguir aquilo que a ele, Uther, estava custando tanto conservar. Quanto à Rainha, durante todos esses anos, muitas vezes eu me perguntei o motivo do seu silêncio. Ralf nunca deixara de manter contato com a avó, que servia a Ygraine, e por intermédio dela fazia chegar à Rainha as notícias do filho. Mas Ygraine, apesar de amar a filha Morgiana, e que teria amado o filho, conseguia encarar com aparente indiferença o uso dos seus filhos como simples instrumentos da política real. Morgiana e Artur eram para ela simples afirmações do seu amor pelo Rei, e, depois que nasceram, ela pôde voltar-se novamente para o marido. Mal vira Artur, e satisfazia-se em saber que um dia reapareceria na hora em que o Rei precisasse. Morgiana, a quem dedicara todo o amor materno de que era capaz, ia ser mandada (sem sequer olhar para trás, escrevera Márcia a Ralf) para o leito nupcial que traria o senhor dos reinos do norte para o lado de Uther, nas lutas que se aproximavam. Quando eu tentara fazer Artur entender o amor sexual abrasador que obcecara Uther e Ygraine, dissera apenas metade da verdade. Primeiro, ela era de Uther; depois, era Rainha; e, embora desse à luz príncipes, importava-se tanto quanto o gavião quando os filhotes voam. Para ela, era melhor que fosse assim; e para Artur também. Ele tinha tudo o de que precisava com Ector e a sua meiga esposa. Não mantive contato com Bryn Myrddin, mas Ector deu um jeito e me arranjou notícias de lá. Stilicho casara com Mai, a garota do moleiro, e a criança fora um menino. Enviei um presente em dinheiro, junto com as minhas felicitações e uma ameaça dos piores feitiços se ele ou alguém da' sua nova família tocasse nos livros e instrumentos que ficaram na gruta. Depois, esqueci-me deles. Ralf também se casou durante o meu segundo verão na Floresta Agreste. O seu motivo não foi o mesmo de Stilicho; ele cortejou a moça por longo tempo, e só foi para a cama com ela depois de um casamento cristão. Mesmo se eu não soubesse que a moça era virtuosa e que Ralf estava atrás dela como um potro contido há mais de um ano, eu o teria adivinhado pela aparência tranqüila e a força resplandecente que passou a demonstrar, com o passar das semanas. Ela era uma linda moça, alegre e boa, e entregou-lhe toda a sua devoção, juntamente com a sua virgindade. Quanto a Ralf, era um moço normal, e tivera os seus casinhos, mas, depois do casamento, nunca mais os teve, embora fosse um belo rapaz; nos anos que se seguiram teve muito prestígio com o Rei, e não faltou quem o quisesse usar como trampolim para o poder, além de para o prazer. Mas Ralf não era do tipo de se deixar usar. Acredito que em Galava houvesse quem achasse estranho que um cavalheiro tão capaz ficasse tomando conta do filho de criação de Ector, quando até o jovem Cei se reunia ao pai e às suas tropas quando havia algum alarma, mas Ralf era genioso e autoconfiante, e, além disso, alegava estar

obedecendo às ordens do Conde. Talvez, se a sua esposa o atormentasse, tivesse sido difícil para ele, mas ela logo engravidou e achava ótimo tê-lo em casa ao seu lado. Ralf se aborrecia um pouco, é verdade, mas confessou-me, quando estávamos a sós, que se pudesse ver Artur no lugar que lhe cabia por direito, ao lado do Grande Rei, estaria satisfeito com a sua atuação na vida. — O senhor me disse que os deuses estavam nos dirigindo, aquela noite em Tintagel — disse ele. — Não entendo de deuses como o senhor, mas não conheço nenhum outro jovem mais digno de tomar da espada do Grande Rei quando ele tiver de largá-la. Tudo parecia confirmar isto. Quando ia à aldeia buscar suprimentos, ou à taverna buscar mexericos, escutava um bocado sobre "Emrys", o filho de criação de Ector. Desde aquela época a sua personalidade era do tipo que acumula lendas, como certas pedras acumulam limo. Certa vez, ouvi um homem dizer, na taverna lotada: — Olhe, se me dissessem que ele tinha sangue do Dragão, que era bastardo do Grande Rei falecido, eu acreditaria. Houve acenos de concordância, e outro falou: — E por que não? Ele podia ser filho ilegítimo de Uther, não podia? Sempre me surpreendeu que não houvesse mais outros por aí. Ele era bem chegado às mulheres, antes que esta doença o fizesse ficar com medo do inferno. Outro retrucou: .— Se houvesse mais, ele os teria reconhecido. — Ah, isto é verdade — falou o primeiro sujeito. — Ele nunca teve mais vergonha que o touro da fazenda, e por que teria? Dizem que a garota que teve na Bretanha, a tal de Morgause, tem muito prestígio na corte, e o acompanha para todo lado. Só sabemos desses, das duas garotas e do príncipe que está sendo criado em alguma corte estrangeira. Então, como acontecia com freqüência atualmente, a conversa passou a ser sobre a sucessão, sobre o jovem Príncipe Artur que estava crescendo na corte estrangeira para a qual Merlin o tinha transportado, secretamente. Eu não podia adivinhar por quanto tempo mais ele conseguiria permanecer escondido. Vendo-o cavalgar pelas trilhas da floresta, mergulhar lutando com Bedwyr nas águas do lago, no verão, beber o que eu lhe ensinava do mesmo modo que a terra absorve a chuva, admirava-me que ninguém enxergasse o que eu enxergava, a realeza que se desprendia dele, brilhando como brilhava na visão momentânea da espada no altar de pedra.

6 Depois, veio o ano que até hoje tem o nome de Ano Negro. Foi o ano seguinte ao décimo terceiro aniversário de Artur. O chefe saxão Octa morreu em Rutupiae, de uma infecção que contraiu no seu longo cativeiro; mas o seu primo Eosa foi para a Alemanha encontrar-se com Colgrim, filho de Octa, e não deve ser difícil imaginar o que deliberaram. O Rei da Irlanda cruzou os mares, mas não para a Praia Saxã, onde Cador esperava por ele em Deva, e Maelgon de Gwynedd por trás das fortificações feitas às pressas de Segontium; das praias de Rheged as suas velas foram vistas quando ele desembarcou em Strathclyde, e foi bem recebido pelos reis pictos. Estes tinham um acordo com a Inglaterra desde os tempos de Macsen, e que fora renovado com Ambrósio; mas ninguém podia adivinhar a resposta que dariam às atuais propostas irlandesas. Mas havia outros problemas, mais próximos e imediatos. Foi um ano de fome. A primavera foi longa, fria e úmida, as inundações cobriram os campos na época do plantio do milho. O gado adoecia em todo o sul, e em Galapa até os resistentes carneiros de lã azul das colinas morreram, com os pés apodrecidos que os impediam de procurar alimento. A geada inutilizou as sementes das frutas, e o milho que cresceu apodrecia nos campos estagnados. No norte ouviam-se estranhas narrativas. Um druida enlouquecera e atacara Uther por ter afastado o país da Antiga Religião; e um bispo cristão o denunciara como pagão de um púlpito na igreja. Falava-se num atentado contra a vida do Rei, e na maneira pavorosa com que o Rei punira os responsáveis. Assim passaram-se a primavera e o verão, e, com a chegada do outono, o país parecia destruído. Gente morria de fome. Falava-se que o país fora amaldiçoado; mas ninguém tinha certeza se era Deus que estava zangado porque ainda se faziam sacrifícios nos velhos santuários, ou se eram os deuses antigos das colinas e dos bosques que se estavam vingando por terem sido abandonados. O certo é que havia uma influência maligna sobre o país e que o Rei estava doente. Nobres reuniram-se em Londres exigindo que Uther nomeasse o seu herdeiro. Mas, segundo contou-me Ector, Uther ainda não tinha certeza de quem era amigo ou inimigo; apenas afirmava que seu filho estava vivo e bem, e que seria apresentado aos nobres na próxima Páscoa. Entrementes, sua filha Morgiana fizera doze anos, e partiria para o norte para casar-se no Natal. Com a chegada do outono, o tempo mudou, e teve início uma temporada seca e agradável. Já era muito tarde para servir de ajuda às colheitas ou ao gado moribundo, mas o sol abençoado ainda chegou em tempo de amadurecer as poucas frutas que as tempestades da primavera e a deterioração do verão tinham deixado nas árvores. Na Floresta Agreste, a neblina infiltrava-se pelos pinheiros de manhãzinha, e o orvalho de setembro fazia com que ela rebrilhas-se. Ector saiu de Galava para encontrar-se com Rheged e seus aliados em Luguvallium. O Rei da Irlanda voltara para casa, e ainda havia paz em Strathclyde, mas a linha de defesa ao longo do Estuário de Ituna, de Aluana até Luguvallium, ia ser guarnecida e falava-se em Ector para comandante. Cei acompanhou o pai. Artur, a três meses do seu décimo quarto aniversário, mas parecendo ter dezesseis anos e, segundo Ralf, um notável espadachim, ficou visivelmente aborrecido, e tornava-se mais calado a cada dia. Passava todos os dias na floresta, às vezes comigo (embora não tanto quanto antes), mas, segundo Ralf, a maior parte das vezes caçando ou correndo como louco a cavalo pelos piores caminhos. — Se o Rei não tomar logo uma iniciativa — disse-me Ralf este menino vai matar-se. Parece pressentir que há algo para ele no futuro, que e'.e não sabe o que é, mas que não lhe dá paz. Tenho medo que quebre o pescoço antes que isto aconteça. Aquele seu novo cavalo, Canrith, eu mesmo não gostaria

de montá-lo, é a pura verdade. Não sei o que deu no Ector para dar o cavalo para ele; acho que foi para amenizar o seu sentimento de culpa. Acho que tinha razão. O garanhão branco foi presente de Ector para Artur quando ele levou Cei para Luguvallium. Bedwyr também fora, embora sendo da mesma idade que Artur. Ector deve ter tido a maior dificuldade para explicar para Artur por que ele não podia ir. Mas até que Uther se manifestasse, nada podíamos fazer. Chegou a lua cheia de setembro que chamam de lua da colhei-ta. Ela brilhava sobre os campos apodrecidos, servindo apenas para iluminar os ladrões que saqueavam as fazendas mais distantes, e as tropas que iam constantemente de uma para outra região de perigo. Eu não conseguia dormir. Minha cabeça doía, os fantasmas se acercavam como que a trazer visões; mas nada veio à luz ou tomou forma; nada falou. Era como sentir a ameaça dos trovões, tão perto quanto as minhas cobertas, mas sem o relâmpago para rompê-la, e sem a chuva que limpa o céu. Quando afinal amanheceu, um dia cinza e nevoento, eu me levantei, peguei um pouco de pão e um punhado de azeitonas, e desci até.o lago da floresta para ver se me lavava das canseiras da noite. Era uma manhã calma, tão parada que mal se podia dizer onde a névoa terminava e a superfície do lago começava. A água encontrava-se com o cascalho da praia sem som e sem movimento. Às minhas costas a névoa envolvia a floresta, cujos perfumes ainda estavam adormecidos. Parecia pecado quebrar a calma e mergulhar nas águas virgens, mas o seu frescor gelado apagou os resquícios da noite mal dormida, e depois de sair da água, enxugar-me e vestir-me, comi a minha refeição com prazer, e acomodei-me com a vara de pescar para esperar os peixes matutinos, torcendo por uma brisa que agitasse o espelho das águas. Afinal, o sol apareceu, desbotado por entre a neblina, mas não trouxe nenhuma brisa consigo. Os cimos das árvores emergiam da escuridão, e do outro lado do lago a floresta escura erguia-se, nublada, em direção às colinas esfumaçadas. A água floria com a névoa, como uma pérola. Nada quebrava o espelho das águas; nem sinal de brisa chegando. Já tinha decidido ir-me embora quando escutei algo que se aproximava depressa pela floresta às minhas costas. Não era um cavaleiro; tinha um passo muito leve, e vinha rápido demais pelo matagal. Fiquei como estava, meio virado e à espera. Um arrepio subiu-me pelas costas e lembrei-me da noite insone. Doíam-me os dedos; lotei que estava apertando a vara de pescar com tanta força que quase me feria. A noite inteira eu pressentira isto. A noite inteira isto parecia que ia acontecer. A noite inteira? Se não me enganava estivera esperando por isto durante quatorze anos. A cinqüenta passos de onde eu estava, apareceu um veado Ele me viu imediatamente, e parou de chofre, de cabeça alta, pronto para correr em outra direção. Era branco. Por contraste, a sua galhada parecia bronze polido, e os olhos vermelhos como granadas Mas, ele era real; havia manchas de suor na sua pele branca e o pêlo grosso da barriga e do pescoço estava grudado de umidade Um bocado de lisimáquia amarela tinha ficado presa ao seu pescoço, como um colar. Ele olhou por cima do ombro, depois deu um salto com as pernas duras para dentro dágua, e com mais dois pulos já estava bem mais no fundo, e começando a nadar lago adentro. O espelho dágua partiu-se, as águas encresparam-se. O barulho feito teve eco num outro que veio de dentro da floresta. Era outro animal que se aproximava, apressado. Eu me enganara ao pensar que nada cruzaria a floresta com tanta rapidez quanto um veado em fuga. O cão branco de Artur, Cabal, surgiu por entre as árvores no mesmo lugar em que surgira o veado, e jogou-se nágua. O próprio Artur, montado em Canrith, apareceu em seguida.

Ele deteve o seu animal na praia, fazendo com que empinasse. Segurava o arco já em posição. Virou o garanhão de lado, e procurou mirar, sem desmontar. Mas o veado nadava bem abaixado, só a sua cabeça aparecia acima dágua, como uma cunha que se afastava com rapidez, com os cornos como ramos a segui-lo sobre a superfície. O cão, nadando ferozmente, o acompanhava. Não adiantaria atirar no animal agora, ele estava muito no fundo. Artur abaixou o arco, e virou o garanhão para voltar à margem. Um minuto antes de esporeá-lo, me viu. Gritou qualquer coisa, e veio ao meu encontro pelo cascalho. Estava excitado, tinha o rosto afogueado. — Você o viu? Branco como a neve, com uma cabeça de imperador! Nunca tinha visto um assim! Vou dar a volta. Cabal estava se aproximando, vai segurá-lo até que eu chegue lá. Desculpe se estraguei a sua pescaria. — Emrys... Parou, impaciente: — Que é? — Olhe. Ele está indo para a ilha. Ele virou-se para olhar para onde eu apontava. O veado tinha desaparecido na neblina, e o cão com ele. Não havia sinal deles, só as ondinhas que chegavam até a praia. — Para a ilha? Tem certeza? — Absoluta. — Com todos os diabos do inferno! — praguejou com raiva. — Que azar desgraçado! Eu pensei que já era meu quando Cabal o seguiu tão de perto. — Puxava as rédeas, hesitante, fitando o lago nublado, enquanto o garanhão se mexia, impaciente. Suponho que temia a ilha tanto quanto qualquer outra pessoa criada no vale. Tomou uma expressão decidida e falou, refreando Canrith bruscamente: — Vou até a ilha. O veado eu já perdi, acho (era bom demais para ser verdade), mas, pois sim que vou perder Cabal! Foi Bedwyr quem me deu, e não pretendo perdê-lo nem para Bilis nem para ninguém, neste mundo ou no outro. — Enfiou dois dedos na boca e assobiou estridentemente. — Cabal! Aqui, Cabal, aqui! — Não adianta, não vai conseguir com que ele volte. — Não. — Inspirou fundo. — Bom, que é que se vai fazer, tem que ser mesmo a ilha. Se a sua mágica for tão longe, Myrddin, faça com que me acompanhe, agora. — Ela sempre o acompanha, você sabe disso. Vai nadar até lá? — Ele vai — falou Artur, um pouco ofegante, forçando o garanhão relutante a entrar nágua. — É muito longe para dar a volta. Se o animal for para os penhascos e Cabal for atrás... — Por que não leva o barco? É mais rápido e você pode trazer Cabal nele. — É, mas o desgraçado sempre precisa ser preparado. — Já o preparei hoje. Ele está pronto. — Está? Mas que sorte! Você ia sair, então? Quer vir comigo? — Não. Eu fico. Vá, Emrys, vá procurar o seu cachorro. Por um momento, cavalo e cavaleiro ficaram imóveis. Artur ficou me olhando, com um misto de temor e reflexão espelhados no rosto, que logo

desapareceram, engolidos pela sua enorme impaciência. Saltou do cavalo e entregou-me as rédeas. Tirou a flecha do arco e pô-la ao ombro, e correu para o barco. O barco era primitivo, de fundo chato, e, normalmente, ficava na praia de uma baiazinha cheia de juncos situada um pouco mais abaixo. Com um único empurrão colocou o barco nágua, e entrou nele. Eu fiquei no cascalho, segurando o cavalo, olhando-o. Ele tirou o barco do raso impelindo-o com uma vara, depois pegou nos remos e começou a remar. Tirei o pano enrolado que estava atrás da sela do cavalo, joguei-o por cima das suas costas escaldantes, fui amarrá-lo em um lugar onde ele pudesse pastar, e voltei para o meu lugar na margem do lago. O sol já estava alto, e esquentando bem. Um pássaro passou voando. Moscas de asas de gaze dançavam sobre a água. Um perfume de hortelã selvagem estava no ar, e um mergulhão saiu de dentro de um punhado de miosótis aquáticos. Uma libélula pequenina, de corpo escarlate, grudava-se a um junco. A névoa. movia-se suavemente sob o sol, como fumaça a desprender-se do espelho dágua inquieta e mutável como os fantasmas da noite, como a fumaça do fogo encantado.. . A praia, a libélula escarlate, o cavalo branco que pastava, a floresta nublada às minhas costas sumiram, também se transformaram em fantasmas. Eu fiquei de olhos fixos e arregalados na nuvem de pérola silenciosa e intransponível. Ele remava com força, o queixo sobre o ombro, ao acercar-se da ilha. Ela apareceu primeiro como uma forma bruxuleante de sombra, transformando-se depois numa praia cheia de árvores de ramos pendentes. Por trás das árvores, nubladas e irreais, destacavam-se as formas das rochas, como um grande castelo situado num penhasco. Uma linha de prata brilhante marcava o encontro da praia com a água, delimitando a ilha da sua imagem. As árvores nubladas e as torres altas do penhasco flutuavam imponderáveis sobre a água, como fantasmas na névoa fantasmagórica. O barco seguia em frente. Artur olhava por sobre o ombro, chamando o cachorro. — Cabal! Cabal! O grito ecoava por cima da água, subia até os penhascos e morria. Não havia sinal nem do cão nem do veado. Ele debruçou-se de novo sobre os remos, fazendo o barquinho correr pela água. O fundo dele encontrou o cascalho. Artur pulou fora. Puxou o barco e subiu pela orla estreita de grama. A luz estava mais forte, agora que o sol estava mais alto, e se refletia na névoa branca e na água branca. Os ramos de vidoeiro e de sorveira-brava pendiam sobre a praia, pesados de umidade. As sorvas eram vermelhas como chamas, e brilhantes. A grama era pintalgada de margaridas e verônicas e pequenos morriões amarelos. As margens estavam cobertas de dedaleiras, que sobressaíam entre as filas de amoras-bravas. O cheiro forte e adocicado das ulmárias, embotadas pelo outono, enchia o ar. O menino afastou os ramos pendentes, enfiou-se pelas sarças, e ficou de pé sobre a grama florida, estreitando os olhos para espiar os rochedos lá em cima. Gritou de novo, e novamente o som ecoou e morreu. A névoa subia cada vez mais alto, já deixando ver a parte inferior das rochas, banhadas numa luz clara mas incerta. De repente ele se enrijeceu, de olhos fitos lá em cima. A meio caminho do topo dos rochedos, o veado corria com facilidade por uma trilha que parecia apenas um sulco na rocha, parecendo leve como um pouco de névoa que se tivesse desprendido do todo. Artur subiu correndo pela rampa. Os seus pés não faziam ruído na relva espessa. Enfiou-se pelo

meio das samambaias altas, desfolhando-as, e saiu no sopé do rochedo. Parou, olhando ao redor. Ele estava meio assombrado, como antes. Não tinha medo, mas parecia saber que qualquer movimento seu iria desencadear coisas cujo fim não podia prever. Inclinou o pescoço, perscrutando os altos rochedos. Nem sinal do veado, mas as rochas pareciam, .mais do que nunca, um castelo coroado pela luz do sol. Inspirou fundo, sacudindo a cabeça como se tivesse saído de dentro dágua, e chamou de novo, mas suavemente. — Cabal? Cabal? Muito próximo dele, quebrando o silêncio encantado, veio o latido do cachorro. Era um latido meio excitado, meio amedrontado. Vinha do rochedo. O garoto olhou vivamente à sua volta. E então, por trás da cortina verde das árvores, viu a gruta. Deu um passo para a frente e escutou de novo o latido de Cabal, que não era de medo nem de dor, mas de um animal farejando. Sem mais hesitação, Artur lançou-se na escuridão da gruta. Mais tarde, ele não soube explicar exatamente como achou o caminho. Acho que deve ter acendido a tocha que eu tinha deixado lá, mas não se lembra disso. Talvez, o que se lembra é que seja a verdade: diz que por todo canto havia uma luz difusa e incerta, que parecia refletida na superfície polida do laguinho da gruta de pilas trás. Do outro lado do laguinho brilhante, estava a espada em cima da mesa. Um fio de água escorrera e pingara da rocha que ficava em cima, sobre o couro que envolvia a espada, que, embora ainda protegendo o metal, tinha endurecido com a cal do pingar constante, através dos anos. A crosta endurecida deixava ver apenas as formas da espada, esguia e comprida, e o cabo que parecia uma cruz. Ainda parecia uma espada, só que de pedra, formada ao acaso pela pedra calcária gotejante. Talvez ele se recordasse da outra espada, na Capela Verde, ou talvez, por um momento, o futuro se descortinasse aos seus olhos. Com um movimento rápido e instintivo demais para ser controlado, pegou no cabo. Falou comigo, como se eu estivesse ao seu lado. Aliás, creio que estava tão perto dele, na realidade, quanto o cachorro branco que gania à beira do laguinho. — Eu a puxei, e ela saiu da pedra direitinho. É a espada mais linda do mundo. Vou chamá-la de Caliburn. A névoa já abandonara a floresta, sugada pelo sol. Mas ainda permanecia sobre a ilha, que flutuava invisível no seu mar de pérola. Não sei quanto tempo se tinha passado. O sol estava quente, iluminando o lago entre as colinas. Os meus olhos doíam com o brilho das águas. Pisquei os olhos, me mexi e estiquei os membros endurecidos. Houve um movimento às minhas costas; um tropel repentino, como se o garanhão se tivesse soltado. Virei-me rapidamente. A trinta passos, macio como uma nuvem, Cador de Cornwall vinha saindo do bosque, montado num cavalo cinzento, com uma tropa às suas costas.

7 O meu primeiro pensamento foi de raiva por não ter sido avisado. Não estava pensando apenas no povo da colina que vigiava Artur; mas até para mim, Merlin, não houve o menor sinal que indicasse perigo, e a visão que me impedira de ver e ouvir a chegada da tropa só parecia trazer luz e a realização final de todas as promessas. O fato de Artur não ter sido encontrado comigo diminuía um pouco a minha raiva; e também me proporcionava uma tênue esperança de que Cador não me reconhecesse no ermitão, e que prosseguisse a sua viagem antes que o menino voltasse da ilha. Tudo isto me passou pela cabeça no tempo que levou para Cador erguer a mão para fazer parar os homens atrás dele, e para eu apanhar a vara de pescar e ficar de pé. Já com uma mentira qualquer engatilhada, virei-me humildemente para enfrentar Cador, que veio vindo até parar o seu animal a dez passos de mim. E aí, toda a esperança de não ser reconhecido desapareceu, pois vi Ralf amordaçado no meio da tropa, com um soldado de cada lado. Fiquei ereto. Cador inclinou a cabeça, numa saudação tão profunda quanto a que teria feito ao Rei. — Prazer em encontrá-lo, Príncipe Merlin. — Não diga! — Eu estava furioso. — Por que prenderam o meu servo? Ele não lhe pertence. Solte-o. Ele fez um gesto, e os soldados soltaram Ralf, que arrancou a mordaça da boca. — Você está ferido? — perguntei. — Não. — Ele também estava zangado, e amargo. — Sinto muito, senhor. Atacaram-me quando eu vinha pela floresta. Quando me reconheceram, pensaram que o senhor pudesse estar por perto. Amordaçaram-me para que não pudesse dar nenhum aviso. Queriam pegá-lo desprevenido. — Não se sinta culpado. Não foi sua culpa. — Eu já me controlara, buscando o tempo todo os restos da visão que se desvanecera. Onde estaria Artur agora? Ainda na ilha, com Cabal e a sua espada maravilhosa? Ou já no caminho de volta, pela neblina? Mas eu apenas enxergava o que estava ali, em plena luz do sol, e sabia que o encanto tinha-se partido e que ele estava fora do meu alcance. Virei-me para Cador. — Que maneira estranha de fazer as coisas, Duque! Por que prendeu Ralf? Poderia ter-me encontrado sempre que quisesse vir para esses lados. A floresta é livre para todos, e a Capela Verde fica aberta dia e noite. Eu não teria fugido do senhor. — Então, o senhor é o ermitão da capela da mata? — Sou. — E Ralf lhe serve? — Ele me serve. Ele fez sinal aos seus homens para permanecerem onde estavam, e aproximou-se mais de onde eu estava. O garanhão branco relinchou e saltou quando o cavalo cinzento passou por ele. Cador parou ao meu lado, de sobrancelhas levantadas:

— E aquele cavalo? É seu? Que escolha estranha para um ermitão! Respondi ferinamente: — O senhor sabe que não é meu. Se prendeu Ralf na floresta, deve ter visto também um dos filhos do Conde Ector. Andavam a cavalo juntos. O garoto veio aqui para pescar. Não sei quanto tempo vai demorar; às vezes demora mais de meio dia. — Afastei-me da água, de modo decidido. — Ralf, espere por ele aqui. E quanto ao senhor, Duque, se tinha tanta urgência em ver-me que até tratou mal o meu servo, quer acompanhar-me até a capela para conversarmos em particular? Talvez possa dizer-me o que o traz tão para o norte com os homens de Cornwall, além da sua caçadazinha particular. — É a guerra que me traz; a guerra e as ordens do Rei. Acho que o senhor não está tão isolado aqui ao ponto de ignorar as ameaças de Colgrim. Mas foi uma feliz oportunidade para mim vir para estes lados. — Sorriu, e acrescentou de maneira agradável: — e esta não foi uma caçadazinha particular. O senhor não sabia, Príncipe Merlin, que têm andado à sua procura pelos quatro cantos do país? — Sabia, mas não tinha vontade de ser encontrado. Quer acompanhar-me, Duque? Ralf ficará esperando pelo menino... — O filho do Conde Ector, não é? — Não fez nenhum movimento para afastar-se da margem da água. Estava à vontade sobre o cavalo, ainda sorridente. Parecia calmo e confiante. — O senhor não espera que eu o acompanhe e deixe Ralf esperando por este... filho do Conde Ector? Sem dúvida alguma para fazê-lo desaparecer por mais alguns anos? Creia-me, príncipe... De dentro do lago veio o latido de Cabal, o aviso de um cão de caça alerta ao perigo. E a voz de Artur, que mandava que se calasse. O ruído dos remos que faziam o barco correr com força pela água. Cador virou o animal de frente para o ruído, e, sem me conter, eu me movi com ele. Devia estar com uma expressão muito sombria, pois dois oficiais esporearam seus animais para a frente. — Faça com que parem — falei vivamente, e ele lançou-me um olhar e depois ergueu a mão. Os homens pararam de chofre, já com as lanças prontas. Falei baixinho, apenas para os ouvidos de Cador. — Se não quiser que Ector pule ao seu pescoço, com Rheged inteira a apoiá-lo (e Colgrim aparecendo para terminar com as sobras), deixe Ralf e o menino partirem. O que o senhor tiver que dizer, poderá dizer a mim. Quanto à minha vida, Duque Cador, o Rei tomará satisfações por ela. Ele hesitou, olhando do lago nublado para o lugar onde estavam os soldados. Eles estavam alertas. Acho que não me tinham reconhecido, nem sabiam qual era a presa que seu Duque procurava caçar hoje; mas notaram o seu interesse pelos ruídos dentro da neblina, e, embora permanecessem no limiar do bosque, as lanças mexiam-se como juncos ao vento. — Quanto a isso... — começou Cador, mas foi interrompido. O barco saiu de dentro da neblina e veio vindo para o raso. Segundos antes que encalhasse, já Cabal, rosnando, tinha saltado para fora em direção à praia. Um dos oficiais virou o cavalo e puxou a espada. Cador ouviu o barulho, e gritou qualquer coisa. O homem hesitou, e o cão, agora em silêncio, veio para a margem e avançou em Cador. O cavalo cinzento empinou. O cachorro safou-se e mordeu a ponta do teliz, arrancando um pedaço. Às minhas costas, Artur gritou para o cachorro e procurou encalhar depressa o barco. Ralf veio à frente, com a intenção de segurar o cachorro, mas os soldados ao seu redor cruzaram as lanças à sua

frente, tolhendo-o. Cabal largou o teliz rasgado e virou-se, rosnando, para atacar os homens que seguravam Ralf. Um deles colocou a lança em riste, outros desembainharam as espadas. Cador deu uma ordem. As espadas foram erguidas. O Duque ergueu, não a sua espada, mas o seu chicote, e fez voltear o cavalo, quando o cachorro preparava-se para pular. Eu dei um passo à frente debaixo do chicote, agarrei a coleira do cão e joguei todo o meu peso de encontro a ele. Mal conseguia segurá-lo. Artur gritou ferozmente: — Para trás, Cabal! O cachorro relaxou-se, e o rapaz saltou do barco e em duas passadas estava entre mim e Cador, com a espada nova brilhando na mão. — O senhor... — ofegava — seja lá quem for... — A ponta da espada apontava para o peito do Duque. — Afaste-se! Se tocá-lo, juro que o mato, nem que você tenha cem homens consigo! Cador abaixou o chicote. Soltei Cabal, que ficou rosnando aos pés de Artur. Este estava bem à minha frente, furioso e, sem dúvida alguma, perigoso. Mas o Duque nem parecia notar a espada e a ameaça que ela representava. Estava de olhos fitos no rosto do rapaz. Olhou de relance para mim, e de novo para ele. Tudo isto não levara mais que segundos. Os homens do Duque ainda se aproximavam, os oficiais vindo para o seu lado. Alguém gritou uma ordem, e eu agarrei Artur e fiz com que me encarasse, dando as costas aos soldados. — Emrys! Que loucura é essa? O único perigo aqui é o seu cachorro; devia controlá-lo melhor! Pegue-o e volte imediatamente para Galava com Ralf! Eu nunca falara com ele deste jeito em todos os anos do nosso conhecimento. Ficou imóvel, a boca relaxando-se de surpresa, como se tivesse apanhado sem ter feito nada. Enquanto me fitava, abobalhado, acrescentei, secamente: — Eu e este cavalheiro nos conhecemos. Por que pensou que ele fosse fazer-me mal? — Eu... eu pensei... — gaguejou. — Pensei... bem, estavam com Ralf... tinham espadas desembainhadas... — Pensou errado. Fico-lhe grato mas, como vê, não preciso de ajuda. Guarde a sua espada e vá embora. Olhou do meu rosto para a espada que segurava. Os raios do sol a tocavam e o cabo enfeitado resplandecia. A sua mão parecia tão jovem e tensa no cabo. Lembrei-me da sensação que ele transmitia, da vida que percorria a lâmina, penetrando nos músculos e no sangue. Ele a trouxera da escuridão para a luz a que ela pertencia, para encontrar o seu primeiro perigo e mostrar-se (com a espada maravilhosa) à altura. E eu falara com ele desse modo. Sacudi-lhe de leve o braço e larguei-o. — Vá. Ninguém irá impedir. Ele esfregou o lugar que eu apertara, sem se mexer. A cor começava a voltar ao seu rosto, trazendo uma ponta de raiva. Estava tão parecido com Uther que, de tão apreensivo que estava, falei com brutalidade: — Vá embora e deixe-nos em paz, está ouvindo? Amanhã conversarei com você. — Emrys? — disse Cador, com suavidade. Antes que eu pudesse impedir, o rapaz já se virará, e

era tarde demais para fingimentos. Cador olhava do rosto de Artur para o meu, com os olhos cheios de excitação. — Este é o meu nome — respondeu Artur. Estava mal-humorado, estreitando os olhos para ver o Duque à luz do sol. Então, notou a insígnia que o outro usava junto ao ombro. — Cornwall? Que está fazendo tão ao norte da sua zona de comando, e com que autoridade utiliza as nossas terras para passar com a sua tropa? — As suas terras? Do Conde Ector? — Sou seu filho de criação. Mas, quem sabe — perguntou com gélida cortesia — o senhor já passou por Galava e pediu permissão à senhora? Sabia que Cador não o tinha feito; ele próprio mal tinha saído de Galava. Mas Cador dava-lhe a oportunidade de recobrar o orgulho que eu tinha ferido. Estava ereto, de costas para mim, olhos fitos no Duque. Cador perguntou: — Quer dizer que é tutelado do Conde Ector? E quem é o seu pai, Emrys? Artur nem pestanejou à pergunta. Respondeu tranqüilamente: — Não estou autorizado a lhe dizer, senhor. Mas não tenho por que envergonhar-me da minha origem. Com isto, Cador fez uma pausa. Sua fisionomia tinha uma expressão curiosa. Ele sabia, é claro. Desde o momento em que o rapaz voou em minha defesa. Já desde antes desse momento, não havia como escapar. Mas ainda havia uma chance que os outros não descobrissem; o cavalo de Cador estava entre Artur e os soldados, e, como se estivesse lendo os meus pensamentos, ele virou-se e fez um gesto, mandando que os oficiais e os soldados recuassem, ficando novamente fora do alcance da conversa. Eu estava calmo, consciente do que precisava fazer. Primeiramente, era preciso recuperar o orgulho de Artur e o amor que pudesse ter destruído por ter destruído este momento para ele. Toquei-lhe o ombro, meigamente: — Emrys, quer deixar-nos agora? O Duque de Cornwall não me fará mal, e eu e ele precisamos conversar. Quer ir para a capela com Ralf, e esperar-me lá? Esperei que Cador fosse interferir, mas ficou imóvel. Agora não olhava para o rosto de Artur, mas sim para a espada descoberta e reluzente na sua mão. Pareceu voltar a si, de repente. Fez novo gesto para os seus homens, e Ralf, libertado, trouxe Canrith para Artur, e montou também no seu cavalo. Ele estava preocupado e em dúvida se devia seguir a minha ordem aparente, ou procurar fugir com Artur pela floresta. Fiz sinal para ele. — Vá para o santuário, Ralf. Por favor, esperem lá. Não temam por mim; eu irei mais tarde. Artur ainda hesitava, segurando a rédea de Canrith. Cador falou: — É verdade, Emrys, não quero fazer-lhe mal. Não tenha medo de deixá-lo. Não sou bobo de meter-me com feiticeiros. Ele irá encontrar-se com vocês, não se preocupe. O rapaz olhou-me de modo estranho. Ainda duvidava, estava confuso. Eu disse, muito meigamente, sem importar-me que ouvissem:

— Emrys... — O quê? — Quero agradecer-lhe. Eu realmente pensei que havia perigo. E estava com medo. O ar sombrio o abandonou. Ele não sorriu, mas a raiva deixou o seu rosto, e a vida voltou a ele, com a vivacidade da espada brilhante a abandonar a bainha sufocante. Percebi então que nada do que eu fizera afetara o seu amor por mim. Ele se dirigiu a mim, e na sua voz só se notava apreensão: — Quando vai entender que daria a própria vida para que nada de mal lhe acontecesse? Olhou de novo para a espada na mão, como que se perguntando como fora parar ali. Depois, encarou Cador. — Se o senhor lhe fizer algum mal, eu o perseguirei por todo o reino. Juro. — Senhor, — replicou Cador, com cortesia solene, falando de guerreiro para guerreiro — acredito piamente. Juro-lhe que não farei mal a ele, nem a ninguém, apenas aos inimigos do Rei. O rapaz sustentou o seu olhar por mais um momento, depois assentiu. Engoliu em seco, e a tensão o abandonou. Montou no cavalo, saudou Cador formalmente, e, sem mais palavras, partiu pelo caminho que margeava o lago. Cabal corria ao seu lado, e Ralf o acompanhava. Vi que o rapaz olhou para trás quando alcançou a curva do caminho que o tiraria das minhas vistas. Depois, sumiram, e eu fiquei sozinho com Cador e os homens de Cornwall.

8 — E então, Duque? — perguntei. Não respondeu imediatamente, mas ficou mordendo o lábio e olhando para a maçaneta da sela. Depois, sem virar-se, fez sinal a um dos seus oficiais, que veio pegar as rédeas do cavalo quando ele desmontou. — Leve os homens pela praia até a uns cem passos daqui. Dê água aos cavalos e fique esperando por mim. O homem obedeceu, e a tropa sumiu de vista atrás de um trecho do bosque. Cador botou a capa por cima do braço e olhou ao seu redor. — Vamos conversar aqui? Sentamo-nos numa rocha achatada que dava para a água. Pegou o punhal, e ficou rabiscando com ele no tomilho. Quando fez um círculo com um triângulo dentro, falou para o chão: — É um bom rapaz. — É, sim. — Parecido com o pai. Fiquei calado. Ele enfiou o punhal no chão. Levantou a cabeça. — Merlin, por que pensa que sou inimigo dele? — E não é? — Por todos os deuses, não! Não direi a ninguém onde ele está, a não ser que você dê autorização. Está vendo só? Ficou pasmo. Pensava que eu fosse inimigo dele, e seu. Por quê? — Se algum homem tem razão para inimizade, Cador, este homem é você. Foi através das ações de Uther e minhas que o seu pai foi morto. — Isto não é bem verdade. Você planejou atraiçoar o leito do meu pai, não ele próprio. Foi ele que causou a sua morte, com a sua temeridade, ou bravura, se preferir. Você não tinha previsto isto. Além disso, se devesse odiá-lo por causa daquela noite, deveria odiar Uther Pendragon muito mais. — E não o odeia? — Santo Cristo, homem, não sabe que ando ao lado dele e sou o seu capitão-chefe? — É, eu sabia, e gostaria de saber a razão. Não ignora que eu tinha as minhas dúvidas a seu respeito. Deu uma risada áspera, muito semelhante à do pai. — Você nunca as escondeu, não que o culpe. Não, não odeio Uther Pendragon, embora confesse que também não morro de amores por ele. Mas, em menino, vi muitos reinos divididos: Cornwall é minha, mas não pode manter-se sozinha. Só há um futuro para Cornwall, e é o mesmo futuro que há para a Inglaterra. Estou ligado a Uther. quer goste, quer não. Não trarei mais divisões, não farei o povo sofrer mais. Portanto, sou fiel a Uther... ou, melhor dizendo, ao Grande Rei.

Um pássaro mergulhou nas águas à nossa frente. Voltou com um peixe no bico, sacudiu as penas e voou. Perguntei: — Foi você que mandou espionar-me em Maridunum. há muitos anos, antes que eu viesse para o norte? Ele estreitou os lábios. — Aqueles. . . Sim, eram meus... e meteram os pés pelas mãos. Adivinhou imediatamente, não foi? — Era a conclusão óbvia. Eram de Cornwall e as suas tropas estavam em Caerleon. Depois, eu soube que também tinha estado lá. Tenho culpa de ter pensado que estava procurando Artur? — Não, pois era exatamente o que eu estava tentando fazer. Mas não para fazer7lhe mal. — Voltou a olhar para o punhal. — Recorde aqueles anos, Príncipe Merlin, e pense na minha situação. O Rei doente, e, aparentemente, dando mais e mais poder a Lot e seus amigos. Ofereceu Morgause em matrimônio para ele, antes mesmo do nascimento de Morgiana, sabia? E até hoje acho que o Rei não enxerga a extensão da ambição de Lot. . . Tentei mostrar-lhe, mas parecia que era o eco da mesma ambição da minha parte. Tive medo do que aconteceria aos reinos se Uther morresse... ou se o filho de Uther morresse. E embora não duvidasse do seu poder de proteger o menino à sua moda, achei que poderia ajudar, à minha moda. — Enfiou de novo o punhal na relva. — Por isso, queria achá-lo, e vigiálo. Como tenho vigiado Lot, por outras razões. — Entendo. E por que nunca me procurou para dizer-me isto? Olhou-me de esguelha, com um sorriso começando nos cantos dos lábios. — Se o tivesse feito, teria acreditado em mim? — É provável. Não me deixo enganar facilmente. — E teria me contado onde estava o menino? — Não, isso não — respondi sorrindo. Deu de ombros. — Aí está a resposta. Mandei os meus espiões idiotas e não descobri nada. Até perdi você de vista. Mas nunca quis fazer-lhe mal, juro-lhe. E embora eu talvez tivesse sido seu inimigo no passado, nunca fui inimigo de Artur. Acredita agora? Olhei ao meu redor para o dia tranqüilo, para as árvores ensolaradas, para a névoa tênue que se desfazia sobre o lago. — Eu já devia saber. O dia inteiro eu me perguntei por que não pressenti o perigo. — Se fosse inimigo de Artur — continuou ele, sorrindo — não tentaria arrancá-lo da proteção dos braços e olhos de Merlin. Quer dizer que teria sentido o perigo no ar, hoje, se tivesse havido perigo? Respirei fundo. Sentia-me leve como o ar à minha volta. — Tenho certeza. Fiquei preocupado porque o deixei se aproximar tanto hoje sem sentir o frio sobre a pele. E nem o sinto agora. Duque Cador, peço-lhe perdão, se o senhor se dignar a dá-lo. — Com prazer. — Limpava a ponta do punhal na grama. — Mas se não sou inimigo dele, Merlin, outros o são. Não é preciso que lhe diga o perigo que representa este casamento natalino; não só para Artur, como pretendente ao trono, como para o próprio reino.

Concordei: — Divisão, guerra, um fim trágico para um ano trágico. Sei. Há mais alguma coisa que possa contar-me sobre o Rei Lot que não seja do conhecimento geral? — Nada de definido, nada mais que antes. Não compareço às reuniões particulares de Lot. Mas uma coisa é certa: se Uther demorar muito a proclamar o filho, os nobres podem decidir escolher um deles como sucessor. E a escolha óbvia é Lot, um guerreiro experimentado e conhecido, que já lutou ao lado do Rei, e que e, ou logo será, genro do Rei. — Sucessor? — perguntei. — Ou usurpador? — Não às claras. Morgiana não permitiria que Lot pisasse por cima do corpo do pai para reinar. Mas uma vez casado com ela, e herdeiro aparente até o aparecimento de Artur, é preciso que Artur, quando aparecer, apresente uma reivindicação mais forte, e um apoio mais forte. — Ele tem ambos. — A reivindicação, sim. Mas, e o apoio? Lot conta com mais homens que eu. — Fiquei calado, e depois de algum tempo ele meneou a cabeça. — Entendo.-Se ele for apoiado por você, pessoalmente ... Pode reforçar a sua reivindicação? — Creio que sim. Terei ajuda. A sua também, espero. — Você a terá. — Deixa-me envergonhado, Cador. — Nem por isso — respondeu ele. — Estava certo. É verdade que eu o odiava. Era moço, mas aprendi a ver as coisas de outro modo, com mais clareza, talvez. Para o meu próprio bem, não posso deixar que Uther prenda-se tanto a Lot, e que Lot realize as suas ambições. Artur é o pretendente que não pode ser ignorado, e só a sua mão será capaz de manter a união dos reinos... se esta união ainda for possível. É claro que ele terá o meu apoio. Com quinze anos, Cador já era realista, eu me recordava; agora, a sua estimativa crua da situação parecia uma rajada de vento fresco entrando numa sala embolorada. — Lot sabe disso? — perguntei. — Acho que fui bem claro. Lot sabe que farei oposição a ele, assim como os senhores de Rheged e os reis de Gales. Porém, há outros pelos quais não posso responder, e muitos que poderão pender para um ou outro lado, se as suas terras forem ameaçadas. É uma época perigosa, Merlin. Sabia que Eosa foi para a Alemanha reunir-se com Colgrim e Badulf? Bem, há pouco chegaram notícias que navios em massa estão cruzando o Mar Alemão, vindo de Segedunum, e que os pictos abriram os portos para recebê-los. — Não sabia disso. Quer dizer que haverá luta antes do Natal? — Antes do fim do mês — concordou ele. — É por esta razão que estou aqui. Maelgon permanece na Praia Irlandesa, mas o perigo não está no oeste; pelo menos, ainda não. O ataque virá do leste e norte. — Ah! — Sorri. — Então, dentro em breve as coisas irão aclarar-se. Ele estivera me observando fixamente. Relaxou a boca, meneou de novo a cabeça. — É o que vê? Claro que é. Talvez uma coisa de bom saia disto: Lot vai ter que definir-se. Se for verdade que andou se passando para o lado dos saxões, terá que se definir por Colgrim. Se quiser

Morgiana e o Grande Reino, terá de lutar ao lado de Uther. — Ele riu, divertido. — E foi a morte de Octa que fez Colgrim cruzar furioso o Mar Alemão, e forçou a mão de Lot. Se tivesse esperado pela primavera, Lot já teria Morgiana, e poderia receber Colgrim, usando os saxões para fazer-se Grande Rei, como já fizera Vortigern. Agora, vamos ver no que dá. — Onde está o Rei? — indaguei. — Vindo para o norte. Deve estar em Luguvallium ainda esta semana. — Ele próprio comandará a batalha? — É o que pretende, mas está muito doente. Parece que Colgrim também forçou a mão de Uther. Acho que ele vai mandar chamar Artur. Terá que fazê-lo. — Mesmo que não o chame, — disse eu — Artur estará lá. — A fisionomia de Cador mostrou a sua excitação, e eu perguntei: Fornecerá escolta, Cador? — Por Deus, mas com prazer! Irá com ele? — Depois disto, onde ele estiver, eu estarei. — E você será necessário — falou ele, de modo significativo. — Queira Deus Uther não tenha esperado demais. Mesmo com provas da origem de Artur, e com a espada do Rei nas suas mãos, não será fácil persuadir os nobres a aceitarem um rapazola inexperiente ... E a gente de Lot lutará com garra para que não aceitem. O melhor mesmo é tomá-los de surpresa. O rapaz precisará de tudo o que puder jogar na balança para ele. Sorri. — Ele mesmo pode jogar um bocado. Não se engane, Cador, ele tem valor. Não é nenhum boneco nas mãos de um "fazedor de reis". — Não preciso que me diga — sorriu. — Sabe que ele se parecia mais com você que com o próprio Rei? Falei de olhos fitos na superfície brilhante do lago: — Acho que é a minha espada, e não a de Uther, que irá torná-lo rei. Ele sentou-se, ereto. — Ah, a espada! De onde ele desencavou aquela espada? — De Caer Bannog. Ele arregalou os olhos. — Ele esteve lá? Santo Deus, ele merece a espada e tudo q"e lhe trouxer! Eu nunca teria coragem! Por que foi lá? — Foi salvar o cachorro, que lhe foi dado por um amigo. Foi até lá por acaso. — Sei. O mesmo acaso que fez com que eu viesse para estes lados hoje, e que me encontrasse com um pobre ermitão e com um menino chamado Ambrósio, segurando uma espada digna de um rei. — Ou de um imperador — repliquei. — É a espada de Macsen Wledig. — O quê? — Inspirou fundo. Vi nos seus olhos o mesmo olhar que vira no dos soldados, quando falei na ilha encantada. — Era desta reivindicação que estava falando? Achou aquela espada para ele?

Lança a sua rede bem longe, Merlin. — Não lanço nenhuma rede. Acompanho o tempo. — Entendo. — Inspirou fundo de novo, e olhou em redor como se estivesse notando o dia pela primeira vez, com o sol e as brisas e a ilha flutuando na água. — E agora, para você, para ele e para todos nós, é tempo... ? — Acho que sim. Ele encontrou a espada onde eu a tinha deixado, e imediatamente depois você apareceu. O ano inteiro pediu-se ao Rei para fazer a proclamação, e ele não fez. Pois nós a faremos. Passará a noite em Galava? — Sim. — Sentou-se ereto, enfiando o punhal na bainha com ruído. — Quer encontrar-se conosco lá? Partiremos ao alvorecer. — Lá estarei hoje à noite, — respondi — e Artur comigo. O dia de hoje ele passará comigo na floresta. Temos de conversar. Cador me olhou com curiosidade. — Ele ainda não sabe de nada? — Não — retruquei. — Prometi ao Rei. — Então, até que o Rei fale publicamente, ele nada saberá. Alguns dos meus homens podem suspeitar, mas são leais, não tema. Fiquei de pé e ele fez o mesmo. Fez um sinal para o oficial que vigiava de longe. Ouvi as ordens, e o barulho da tropa montando. Vieram ao nosso encontro pela margem do lago. — Tem cavalo? — perguntou Cador. — Ou quer que lhe deixe um? — Não, obrigado, eu tenho um. Voltarei a pé para a capela quando estiver pronto. Preciso fazer uma coisa primeiro. Ele olhou de novo para a floresta ensolarada, para o lago plácido, para as colinas sonhadoras, como que esperando que fosse surgir poder ou mágica. — Fazer uma coisa? Aqui? — Exatamente. — Peguei a vara de pescar. — Ainda preciso pescar o meu jantar, e para dois, agora. E, veja, este dia entre os dias ainda arranjou uma brisa para mim. Se Artur pôde erguer do lago a espada de Máximo, eu pelo menos posso pescar uns dois peixes, não acha?

9 Ralf encontrou-se comigo na orla da clareira, mas não pudemos conversar direito, porque Artur estava perto, sentado ao sol nos degraus da capela, com Cabal aos pés. Disse rapidamente a Ralf o que ele precisava fazer. Ele iria imediatamente para o castelo contar a Drusilla o que acontecera, que Artur estava comigo e que acompanharíamos o Duque Cador na viagem do dia seguinte para o norte. Ela devia mandar uma mensagem para o Conde Ector e uma para o Rei. Ralf pediria à Condessa para arranjar alguém para tomar conta do santuário na minha ausência por intermédio do Abade Martin. — Não vai contar-lhe agora? — indagou Ralf. — Não. Uther é quem tem de contar. — Não acha que ele já está desconfiado depois do que aconteceu lá embaixo? Está calado, mas com a cara de quem ganhou mais do que uma espada. Que espada é aquela, Merlin? — Dizem que foi o Ferreiro Weland que a fez, há muito tempo. O que é certo é que foi usada pelo Imperador Máximo, e que os seus homens a trouxeram para o Rei da Inglaterra. — É essa? E ele me contou que a encontrou em Caer Bannog... Estou começando a entender... E agora, o senhor vai levá-lo até o Rei. Está tentando forçar a mão de Uther? Acha que o Rei vai aceitálo? — Tenho certeza. Uther precisa proclamá-lo agora. É capaz até de já ter mandado chamá-lo. Vá, Ralf. Teremos tempo de conversar mais tarde. Você nos acompanhará, é claro. — E acha que eu permitiria que me deixassem para trás? — Ralf falou alegremente, mas podia ver que estava dividido entre alívio e tristeza; por um lado, a longa vigília terminara, por outro, Artur passaria dos seus cuidados para os meus e do Rei. Mas ele também estava contente, pois logo estaria de volta às atividades numa posição privilegiada de confiança, e poderia manejar a espada contra os inimigos do reino. Saudou-me, sorrindo, depois partiu na direção de Galava. O ruído dos cascos desapareceu na floresta. A luz do sol derramava-se na clareira. Os últimos pingos dágua tinham desaparecido dos pinheiros, e o cheiro de resina enchia o ar. Um tordo cantava. A grama estava cheia de campainhas, e borboletas azuis voejavam sobre as flores brancas das amoreiras silvestres. Havia uma colméia de abelhas selvagens embaixo do teto da capela; o seu zumbido enchia os ares, o som do fim do verão. Na vida de todo homem há marcos, coisas de que ele recorda até na hora de morrer. Deus sabe que tive a minha cota de lembranças; as vidas e mortes de reis, as idas e vindas de deuses, as fundações e destruições de reinos. Porém, não são sempre os grandes acontecimentos que ficam na lembrança: agora, na escuridão final, é dos pequenos momentos que me recordo com mais nitidez, os momentos calmos e humanos que gostaria de reviver, e não os momentos flamejantes de poder. Ainda posso ver, claramente, o sol dourado daquela tarde. O murmúrio da fonte, a canção do tordo, o zumbido das abelhas, o cachorro branco que se cocava por causa das pulgas, o chiado do peixe que Artur cozinhava ajoelhado ao lado do fogo, com a truta espetada num galho de aveleira; tinha a fisionomia majestosa, exaltada, calma, iluminada por dentro com a luz que ilumina aquele tipo de homem. Era o seu' começo, e ele sabia.

Não me fez muitas perguntas, embora mais de mil devessem estar comichando nos seus lábios. Acho que ele sabia que estávamos no limiar de acontecimentos importantes demais para comentar. Há certas coisas que hesitamos em transformar em palavras. As palavras podem mudar uma idéia, com definições muito precisas, com significados muito ligados às referências do cotidiano. Comemos em silêncio. Estava pensando em como dizer-lhe que pretendia levá-lo até o Rei, sem quebrar a promessa feita a Uther. Acho que Ralf estava errado; o rapaz não desconfiava da verdade; mas devia estar preocupado com os acontecimentos do dia, com a espada, com a relação entre Cador e eu, com a maneira pela qual Ralf fora tratado. Porém, nada perguntou, nem o motivo pelo qual Ralf se fora, deixando-o comigo. Parecia estar saboreando o momento. Era como se a cena da beira do lago não tivesse existido. Comemos ao ar livre e, quando acabamos, Artur tirou os pratos, sem dizer palavra, e trouxe uma bacia com água para que eu me lavasse. Depois, acomodou-se ao meu lado nos degraus da capela, entrelaçando as mãos sobre o joelho. O tordo ainda cantava. As colinas rodeavam o vale, azuis e cheias de sombras, nubladas como espectros. Já me sentia sufocar pelas forças que ali estavam, à espera. — A espada — ele falou. — Sabia que estava lá? — Sabia, sim. — Ele disse... Ele o chamou de feiticeiro? — Havia uma ponta de dúvida na sua voz. Não estava olhando para mim. Estava no degrau logo abaixo de mim, de cabeça inclinada, olhando para os dedos entrelaçados sobre o joelho. — Você já sabia disso. Já tinha me visto usar mágica. — É verdade. Na primeira vez que vim aqui, quando o senhor me mostrou a espada no altar de pedra, e pensei que fosse real... — Interrompeu-se de chofre, erguendo a cabeça. A voz vibrava com a descoberta. — Era real! É essa, não é? A que serviu de modelo para a espada de pedra? Não é? Não é? — É. — Que espada é esta, Myrddin? — Lembra-se da história de Macsen Wledig que contei para você e Bedwyr? — Lembro-me muito bem. O senhor disse que aquela era a espada que estava entalhada aqui no altar. — Novamente a vibração da descoberta. — Esta é a mesma? A espada dele? — É. — Como foi parar na ilha? — Fui eu que a coloquei lá, há muitos anos. Trouxe-a do lugar onde estava escondida. Virou-se de frente para encarar-me. Por longo tempo. — Quer dizer que o senhor a encontrou? É sua espada? — Não disse isto. — Foi por meio de mágica que a encontrou? Onde? — Não posso dizer-lhe, Emrys. Talvez, algum dia, você mesmo tenha que procurar o lugar. — Por que eu? — Não sei. Mas o homem precisa de uma espada em primeiro lugar, para usar contra a vida, e vencê-la. Uma vez vencida, ele já está mais velho, e precisa de outro alimento para o espírito...

Depois de algum tempo, ouvi que perguntava, suavemente: — O que está vendo, Myrddin? — Estava vendo uma terra povoada e feliz, com o milho crescendo nos vales, e os fazendeiros lavrando os campos em paz, como no tempo dos romanos. Eu estava vendo uma espada ficando ociosa e insatisfeita, e os dias de paz transformando-se em rusgas e divisão, e a necessidade de uma ocupação para as espadas ociosas e os espíritos famintos. Talvez essa tenha sido a causa do deus ter tirado o gral e a lança do meu alcance, escondendo-os de novo no chão, para que um dia vocês partissem em busca do resto do tesouro de Macsen. Não, não você, e sim Bedwyr... O espírito dele terá fome e sede, não o seu, e ele se saciará nas fontes erradas. Ouvi a minha própria voz ir morrendo, muito longe, e fez-se de novo silêncio. O tordo se fora, as abelhas se aquietaram. O rapaz agora estava de pé, de olhos fitos em mim. Ele perguntou, com toda a força da simplicidade: — Quem é o senhor? — Meu nome é Myrddin Emrys, mas sou conhecido como Merlin, o feiticeiro. — Merlin? Mas, então... quer dizer que o senhor é... o senhor foi... — Parou, e engoliu em seco. — Merlinus Ambrosius, filho de Ambrósio, o Grande Rei? Sou. Ficou muito tempo calado. Vi que estava recordando, rememorando, avaliando. Não pensava em si mesmo; já se habituara a ser o filho de criação do Conde Ector. E, como todos no reino, presumia que o príncipe estava sendo criado em alguma corte alhures. Afinal, falou calmamente, mas com tanta força e alegria interiores que era de admirar que pudesse contê-las. O que disse, me deixou surpreso. — Então a espada era sua. Foi o senhor que a encontrou, não eu. Eu apenas devia trazê-la para o senhor. Ela é sua. Vou buscá-la. — Não, espere, Emrys... Porém, ele já se fora. Trouxe a espada, correndo e me entregou. — Tome. É sua. — Estava ofegante. — Devia ter adivinhado quem o senhor era... Não lá na Bretanha, com o príncipe, mas aqui, na sua terra, esperando a hora de ajudar o Grande Rei. É filho de Ambrósio. Só o senhor poderia tê-la encontrado, e eu a encontrei apenas porque me mandou ir lá. Ela é sua. Pegue-a. — Não. Para mim, não. Não para um filho bastardo. — E isso faz diferença? — Faz — respondi gentilmente. Ficou calado. A espada ficou ao seu lado, à sua sombra. Entendi mal o seu silêncio; lembro-me que na hora fiquei aliviado que ele não tivesse dito mais nada. Pus-me de pé. — Traga-a para dentro da capela. Vamos deixá-la no seu lugar, no altar do deus. O deus que for o soberano deste lugar tomará conta dela. Precisa ficar aqui até a hora de ser reclamada, à vista dos homens, pelo herdeiro legítimo do reino. — Ah, foi por isso que mandou que eu fosse buscá-la? Para trazê-la para ele?

— Foi. Ela será dele na hora apropriada. Fiquei um pouco surpreso quando ele sorriu, aparentemente satisfeito. Concordou calmamente. Levamos juntos a espada para a capela. Ele a colocou no altar, em cima da sua réplica entalhada. Eram iguais. Largou o cabo, devagarinho, e voltou ao meu lado. — E agora — falei — preciso dizer-lhe uma coisa. O Duque de Cornwall trouxe notícias... Não passei daí. O som de cascos que se aproximavam ligeiros pela floresta assanhou Cabal, que começou a rosnar. Artur virou-se depressa. Sua voz era cortante. — Ouça! Serão os homens de Cornwall de novo? Deve haver alguma coisa errada... Tem certeza que eles têm boas intenções? Pus a mão no seu braço, e ele parou, perguntando, ao ver a minha expressão: — Que é? Estava esperando por isto? — Não. Sim. Nem sei direito. Espere, Emrys. É, isto tinha de acontecer. Achei que tinha. O dia ainda não terminou. — Que quer dizer? Balancei a cabeça. — Venha comigo ao encontro deles. Não eram as tropas de Cornwall que estavam entrando na clareira. O Dragão rebrilhava, vermelho sobre ouro. Homens do Rei. O oficial fez parar a tropa e veio à frente. Passou os olhos pela clareira, pelo santuário, pelas minhas roupas modestas; olhou de relance para o rapaz ao meu lado, e voltou a olhar para mim, saudando-me com uma mesura profunda. Fez uma saudação formal em nome do Rei. Deu-me as notícias que eu já soubera por intermédio de Cador; que o Rei ia para o norte com o seu exército, e que ficaria em Luguvallium para enfrentar a ameaça das forças de Colgrim. O homem continuou, com ar preocupado, a sua narrativa: a saúde do Rei tinha piorado novamente e havia dias em que não conseguia montar, mas que se propunha a ir para o campo de batalha numa liteira, se fosse necessário. — E foi esta a mensagem que fui encarregado de entregar, meu senhor. O Grande Rei, recordando a força e a ajuda que o senhor emprestou ao exército do seu irmão Aurélio Ambrosio, pedelhe que abandone o seu retiro e vá ao seu encontro no local em que ele espera pelos seus inimigos. — A mensagem parecia decorada. Terminou: — Meu senhor, devo dizer lhe que este é o chamado pelo qual esperava. Inclinei a cabeça. — Já o esperava. Já mandara avisar ao Rei que viria, levando Emrys de Galava comigo. Vão escoltar-nos? Então, tenham a bondade de esperar enquanto nos aprontamos. Emrys... — virei-me para Artur, que parecia em transe, de tão excitado — venha comigo. Seguiu-me para dentro da capela. Tão logo ficamos fora das vistas dos soldados, agarrou o meu braço. — Vai me levar? Vai me levar mesmo? E se houver luta... — Você lutará. — Mas, meu pai, o Conde Ector... Ele pode não deixar. — Não vai lutar ao lado do Conde Ector. Estes são soldados do Rei, e você vai comigo. Você

lutará com o Rei. Exclamou, cheio de alegria: — Quanta coisa fantástica num só dia! Pensei, primeiro, que o veado branco tinha me levado até a espada, que ela era para mim. Mas agora vejo que era só um sinal de que hoje iria partir para a minha primeira batalha... Que está fazendo? — Preste atenção — respondi. — Eu lhe disse que ia deixar a espada sob a proteção do deus. Ela já ficou muito tempo na escuridão. Vamos deixá-la, agora, na luz. Estendi as mãos. O fogo pálido surgiu do ar, percorrendo a lâmina, fazendo com que as runas, trêmulas e ilegíveis, rebrilhassem. Depois, o fogo espalhou-se, envolvendo-a, até que as chamas morreram, como num ferro de marcar que se apagasse, deixando apenas o altar, de pedra clara, com a sua espada de pedra. Artur nunca tinha me visto usar essa espécie de poder antes, e ficou olhando de boca aberta as chamas surgirem do ar e inflamarem a pedra. Afastou-se um pouco, assombrado e meio amedrontado, com o rosto quase sem cor, salvo a que as chamas lhe emprestavam. Quando tudo terminou ficou muito quieto, umedecendo os lábios secos. Sorri para ele. — Ora, que é isso! Você já me viu empregar mágica antes. — Já. Mas isto... este tipo de coisa... Durante todo esse tempo, quando Bedwyr e eu estivemos com o senhor, nunca nos deixou perceber a espécie de homem que era... Este poder; eu não tinha a menor idéia. O senhor nunca nos falou sobre ele. — Não havia nada para contar. Não precisava fazer uso dele, e não podia ensiná-lo a vocês. Você e Bedwyr terão habilidades diferentes. Não vai precisar desta. Além disso, se precisar, estarei ao seu lado para oferecê-la. — Estará? Sempre? Gostaria de acreditar nisto. — É verdade. — Como é que vou saber? — Eu sei — respondi. Fitou-me por mais um momento, com o rosto cheio de incerteza, confusão e desejo. Tinha o ar de um menino, imaturo e perdido que logo substituiu pela sua armadura normal de coragem alegre' Sorriu para mim, com a habitual vivacidade: — O senhor pode se arrepender, ouviu? Bedwyr é a única pessoa que pode me aturar por muito tempo. Dei uma risada. — Vou fazer o possível. Por favor, diga-lhes para trazerem os nossos cavalos. Quando fiquei pronto, juntei-me aos homens que esperavam. Artur não estava montado e impaciente para partir, conforme eu esperava; segurava o cavalo para mim, como um cavalariço. Arregalou um pouco os olhos, quando me viu; eu tinha vestido as minhas melhores roupas, e o meu manto negro era forrado de escarlate, e preso ao ombro pelo broche de dragão da casa real. Ele percebeu que eu adivinhara o seu pensamento e que estava achando divertido, e sorri um pouco para ele quando montou o seu garanhão branco. Tomei cuidado para que não percebesse os meus pensamentos: que o jovem de manto simples e ar inteligente e orgulhoso não necessitava de nenhum broche para proclamar-

se Pendragon, e real. Porém, ele fez o seu garanhão branco seguir atrás da minha égua mansa, e era a mim que os homens estavam observando. Assim, deixamos a capela da Floresta Agreste aos cuidados do deus a que ela pertencia, fosse ele qual fosse, e seguimos para Galava.

Livro 4 - O REI

1 O perigo por parte dos saxões era ainda mais imediato do que Cador imaginara. Colgrim andara depressa. Quando Artur, eu e a nossa escolta chegamos a Luguvallium, já encontramos as forças dó Rei e de Cador tomando posição a sudeste da cidade, juntamente com os homens de Rheged, para enfrentar um numeroso inimigo pronto para o ataque. Os líderes britânicos estavam reunidos com o Rei na sua tenda, que fora armada no cume de uma colinazinha situada para além do campo de batalha. Ali existira uma espécie de fortaleza, no passado, e ainda sobravam dela uns restos de muralhas e uma torre destruída, e, declive abaixo, encontravam-se as pedras desmoronadas e os pátios cobertos de mato de uma aldeia abandonada. O lugar estava cheio de amoras e de urtigas, e velhas macieiras carregadas mantinham-se firmes entre as pedras caídas. No sopé da colina a caravana das bagagens estava tomando lugar; as árvores e as paredes semi-destruídas serviriam de abrigo para o posto de curativos de emergência. Logo o caos aparente tomaria jeito; os exércitos do Rei ainda lutavam com o tipo de disciplina romana que Ambrósio aprovava. Olhando para o imenso exército dos inimigos, o campo cheio de lanças e machados, a crina dos cavalos balançando ao vento como a espuma do mar, concluí que iríamos precisar de cada partícula de força e coragem que pudéssemos conseguir. E pus-me a pensar no Rei. A tenda de Uther fora armada no gramado em frente à torre destruída. Quando a nossa tropa foi na sua direção, no meio do barulho e da agitação dos batalhões que tomavam os seus lugares para a luta, percebi que muitos homens pararam para olhar, e que a notícia correu entre eles, apesar dos gritos, das ordens e do ruído das armas. — É Merlin! Merlin! Merlin, o profeta. Merlin está conosco. — Os homens se viravam, olhavam, gritavam, e o júbilo se espalhou como um zumbido pelo campo. Um sujeito com a divisa de Dyfed gritou quando passei, na minha própria língua: — Então você está conosco, Myrddin Emrys, braud, e viu a estrela cortando os céus para nós, hoje? Respondi, claramente, para que todos pudessem ouvir: — A estrela de hoje sobe para o céu. Esperem por ela, e pela vitória. Quando desmontei com Ralf e Artur ao pé da colina, as minhas palavras já estavam espalhandose pelo campo de batalha como o vento correndo entre espigas de milho. Era um dia ensolarado de setembro. Do lado de fora da tenda do Rei, o Dragão tremulava, escarlate sobre o amarelo. Entrei imediatamente, com Artur atrás. O rapaz tinha-se vestido em Galava, e parecia um perfeito guerreiro. Pensei que fosse aparecer com o brasão de Ector, mas veio sem nenhuma divisa, usando capa e túnica de lã branca. — É a minha cor — explicou, quando viu que eu estava olhando. — O cavalo branco, o cão branco, e usarei um escudo branco. Como não tenho nome, eu mesmo farei o meu nome. E a minha divisa será conquistada por mim. Eu nada dissera, mas agora, enquanto o rapaz caminhava ao meu lado e se ajoelhava em frente ao Rei, pensava que se ele tivesse querido chamar atenção, deliberadamente, não teria feito melhor. O branco puro, seu ar de juventude ansiosa e brilhante, destacavam-se entre as cores esfuziantes daquela

manhã, como se as trombetas já o tivessem proclamado príncipe. Quando Uther nos cumprimentou, notei este mesmo pensamento no olhar ansioso e faminto com que fitou o rosto do rapaz. Quanto a mim, fiquei chocado com a aparência de Uther. Confirmou o que tinha ouvido a seu respeito, que era um homem no fim, como se um cancro o estivesse roendo por dentro, sem lhe causar dor, mas consumindo-o. Estava magro e com uma cor ruim, e de vez em quando levava a mão ao peito, como se tivesse dificuldade em respirar. Estava magnificamente vestido, com a armadura coberta de ouro e jóias; o tecido da sua capa também era de ouro, com dragões escarlates entrelaçados. Estava ereto, majestoso na grande cadeira. O cabelo e a barba avermelhados já tinham fios grisalhos, mas os olhos continuavam vivos e brilhantes como sempre, queimando nas órbitas. A magreza do seu rosto dava-lhe um ar de gavião, mais majestoso do que nunca. O ouro, as jóias, a capa grande disfarçavam a magreza do corpo. Só nos pulsos e nas mãos ossudas é que se notava como a longa doença o tinha consumido. Artur esperou com Ralf às minhas costas, quando me adiantei. O Conde Ector estava lá, perto do Rei, junto com Coei de Rheged, e Cador, e uma dúzia de outros chefes conhecidos. Vi Ector olhar para Artur como que maravilhado. Não vi Lot em canto algum. Uther cumprimentou-me com uma cortesia que mal disfarçava a sua ansiedade. É possível que ele pretendesse apresentar o filho aos seus comandantes naquele momento, mas não houve tempo. As trombetas já soavam lá fora. Uther hesitou, indeciso, depois fez sinal a Ector, que se adiantou e apresentou Artur formalmente ao Rei, como seu filho de criação, Emrys de Galava. Artur, com a sua nova maturidade tranqüila e reservada, ajoelhou-se para beijar a mão do Rei. Vi que a mão de Uther apertou a dele, e pensei que fosse falar, mas as trombetas soaram novamente, bem próximas, e a porta da tenda foi aberta com força. Artur afastou-se. Uther, com esforço visível, tirou os olhos do rosto do rapaz e deu a ordem. Os comandantes fizeram saudações apressadas e dispersaram-se para montar e galopar para os seus postos. A terra tremia com o pisar dos cavalos, o ar com os gritos e o estrondo dos metais. Quatro homens vieram correndo com varas, e vi que a cadeira de Uther era uma espécie de liteira, uma cadeira grande que podia ser carregada até o campo de batalha. Alguém veio correndo entregar-lhe a espada, sussurrando qualquer coisa, e os quatro homens ficaram a postos perto das varas, à espera da ordem do Rei. Afastei-me. Se me veio à lembrança a imagem do comandante jovem e vigoroso que lutara ao lado do irmão nos primeiros anos da guerra, ela não me despertou piedade nem pesar, pois o Rei virou a cabeça e sorriu, o mesmo sorriso feroz e ansioso que eu conhecia. Parecia anos mais moço. Se não fosse pela liteira, teria jurado que ele era um homem sadio. As faces estavam com boa cor, toda a sua pessoa refulgia. — Meu criado está dizendo que você já previu a nossa vitória. — Riu, uma risada de moço, cheia e ressoante. — Então, você nos trouxe hoje tudo que poderíamos desejar, rapaz! Artur, que conversava com Ector à porta da tenda, interrompeu-se e olhou para trás. O Rei chamou: — Venha. Fique aqui ao meu lado. Artur olhou para o pai adotivo, depois para mim. Fiz-lhe um sinal com o cabeça. Ele obedeceu ao Rei, enquanto Ector fazia um gesto para Ralf, que foi imediatamente ficar junto com Artur à esquerda da liteira do Rei. Ector ainda ficou por mais um momento à espera na porta da tenda, mas Uther estava dizendo qualquer coisa para o filho, e Artur estava inclinado, escutando. O Conde jogou a capa por cima do ombro, saudou-me abruptamente e saiu. As trombetas soaram de novo, e a luz do sol e os gritos nos rodearam quando a cadeira do Rei foi carregada ao encontro das tropas que esperavam.

Não a acompanhei colina abaixo, mas fiquei onde estava, ali no alto, ao lado da tenda, olhando os exércitos formarem no enorme campo lá embaixo. Vi quando colocaram a cadeira do Rei no chão, e quando ele levantou-se para falar aos homens. De onde estava não podia ouvir o que dizia, mas quando ele se virou e apontou para mim, no alto, à vista de todos, ouvi o grito de "Merlin" novamente e as aclamações. Houve um grito do inimigo em resposta, um berro de deboche e desafio, e aí o clamor das trombetas e o trovão dos cavalos abafaram tudo mais, e sacudiram o dia. Ao lado da parede da torre havia uma velha macieira, com o tronco enrugado e coberto de líquen, mas com os ramos cheios de frutas amarelas. Na sua frente havia uma pedra caída, com um plinto onde talvez tivesse existido um altar ou uma estátua. Subi nele, dando as costas à árvore carregada, e observei a luta. Nem sinal do estandarte de Lot. Chamei um homem que ia passando, um assistente de médico que se dirigia ao posto de curativos lá embaixo, e perguntei: — Lot de Lothian? As suas tropas não vieram? — Nem sinal delas, ainda, senhor. Não sei o motivo. Quem sabe vão ficar de reserva ali à direita? Olhei para onde apontava. À direita do campo corria um regato sinuoso, ladeado dos dois lados por uns cinqüenta pés de terra ruim. Depois, o campo passava por salgueiros, amieiros e carvalhos raquíticos, e encontrava um bosque mais denso. Por entre as árvores a terra era inclinada e ruim, mas não íngreme demais, e meio exército podia esconder-se nos bosques. Pareceu-me ver o brilho de lanças entre as árvores. Lot, vindo do nordeste, teria sabido cedo do avanço dos saxões, e não chegaria atrasado para a luta. Ele devia estar lá, esperando e observando. Mas não como reserva colocado lá por ordem do Rei, disto eu tinha certeza. O dilema de que Cador e eu faláramos poderia ter hoje a sua solução: se a vitória parecesse sorrir para Uther, Lot entraria com o seu exército em tempo de partilhar do triunfo, e das recompensas e poder posteriores; mas, se o dia fosse favorável a Colgrim, Lot teria chance de bandear-se para o lado dos conquistadores saxões, ainda em tempo de negar o seu casamento com Morgiana, e de aceitar o poder que o novo jugo saxão lhe quisesse oferecer. Talvez, pensei sombriamente, eu esteja cometendo uma injustiça com este raciocínio. Mas sentia nos ossos que não estava. Gostaria que tivesse havido tempo, antes da batalha, para conhecer as disposições de Uther. Se Lot estivesse por perto ele não perderia esta batalha, com todas as chances que lhe oferecia. Fiquei imaginando quando ele me veria, ou teria notícias da minha vinda. E tão logo soubesse, não teria dúvidas quanto à identidade do rapaz de branco no cavalo branco, que lutava à mão esquerda do Rei. A presença do Grande Rei, mesmo numa liteira, entusiasmara e reforçara os britânicos. Ele não podia comandar a carga, mas estava ali, bem no meio do campo, com o Dragão acima dele, e, embora houvesse muita gente à sua volta para impedir que algum inimigo o atingisse, a luta era mais feroz nas vizinhanças do Dragão, e, às vezes, eu via o flutuar da capa dourada e o brilho da espada do Rei. À direita ficava o Rei de Rheged, flanqueado por Caw com pelo menos três dos seus filhos. Ector também estava à direita, lutando com ferocidade obstinada, enquanto Cador, à esquerda, dava o seu máximo de celta num dia de sorte. Eu sabia que a natureza dera a Artur as qualidades de ambos, mas, hoje, ele estava mais que contente com a sua posição ao lado esquerdo do Rei. Ralf, por sua vez, protegia. Artur. O seu alazão nunca se afastava mais que um passo do flanco do garanhão branco. A batalha pendia para um lado e para o outro. Ali caía um estandarte, sob a ferocidade do ataque; de repente, uma recuperação, e os britânicos impeliam-se para a frente debaixo da fúria dos machados, para repelir a onda de saxões enfurecidos. De tempos em tempos, um cavaleiro solitário partia para o leste através das terras do regato, desaparecendo entre as árvores...presumivelmente um mensageiro. Não havia dúvidas de que as forças de Lot estavam lá, escondidas e esperando dentro do bosque. E tive

a certeza de que não estava esperando por ordem do Rei. Ele ignorava os pedidos de auxílio que os mensageiros levavam, para aparecer somente quando a situação já estivesse definida. Assim, por duas longas horas, quase até as três da tarde, as forças britânicas lutaram, privadas do auxílio a que tinham direito. O Rei de Rheged foi ferido, e deixou o campo; a sua gente ainda ficou no seu posto, mas notava-se que vacilavam. E nada dos homens de Lot. Se não aparecessem logo, poderia ser tarde demais. E quase que era. Houve um grito no centro, um grito de raiva e desespero. Na confusão que cercava a cadeira do Rei, vi o estandarte do Dragão oscilar, sacudir violentamente, e cair. De repente, apesar da distância, era como se eu estivesse ao lado da cadeira do Rei, vendo tudo com clareza. Um grupo de saxões, gigantes claros e enormes, alguns cobertos de sangue de ferimentos que nem percebiam, atacara o grupo que cercava o Rei, forçando a passagem com vigor e ferocidade. Alguns foram abatidos, alguns repelidos com desespero, mas dois conseguiram passar. Seguiram em frente, destruindo, brandindo os machados, para a esquerda do Rei. Um machado acertou o mastro do estandarte, que se partiu, oscilou e começou a cair. O homem que o carregava caiu, com o sangue a jorrar do seu pulso seccionado, e foi esmagado pelos cascos dos cavalos. Quase sem intervalo, o machado descreveu um arco na direção do Rei. Uther pôs-se de pé, com a espada pronta para defenderse, mas Ralf manejou a sua espada, e o saxão caiu por cima da cadeira do Rei, seu sangue jorrando em cima da capa dourada. O Rei ficou preso embaixo do seu corpo. O outro saxão correu para a frente, aos berros. Ralf, praguejando, tentou colocar o seu cavalo entre o Rei indefeso e seu novo atacante, mas o saxão continuou a investir, afastando as armas britânicas como um touro furioso afasta a grama alta. Parecia que nada o impediria de alcançar o Rei. Vi que Artur impulsionou o seu animal para a frente no momento em que o estandarte oscilante caiu. atingindo o maranhão branco no peito. O cavalo empinou, relinchando. Artur, segurando o cavalo com os joelhos, agarrou o estandarte que caía. e jogou-o. gritando, por cima da cadeira do Rei. para as mãos firmes de um soldado, depois virou o cavalo que escoiceava exatamente para a frente do gigantesco saxão. O machado descreveu a sua curva brilhante e desceu com forca. O garanhão desviou-se com um pulo. e o golpe não pegou. mas atingiu de raspão a espada do rapaz, que rolou para o chão. O garanhão empinou de novo. escoiceando com as letais patas dianteiras, e o rosto do atacante desapareceu, transformado numa pasta informe e sangrenta. O cavalo branco saltou de novo para o lado do Rei. e Artur procurou o seu punhal. E então, tranqüilamente. mas tão nitidamente como se tivesse gritado, o Rei falou: "Tome!", e jogou a própria espada no ar, com o cabo para frente. A mão de Artur agarrou-a firme, pelo cabo. Ela refletiu a luz. O cavalo branco empinou de novo. O estandarte estava novamente flutuando ao vento, escarlate sobre dourado. Um grande grito surgiu, vindo do centro do campo, onde o garanhão branco, esmagando sangue, correu para a frente sob o estandarte do Dragão. Gritando, os homens o acompanharam. Vi que o porta-estandarte hesitou por um segundo, olhando para o Rei, que fez-lhe sinal para que continuasse em frente, e depois reclinou-se sorrindo em sua cadeira. E então, já muito tarde para a intervenção espetacular que Lot planejara, as tropas de Lothian irromperam dos bosques e engrossaram as fileiras dos britânicos. Mas o dia já estava ganho. Não havia quem não tivesse visto o que acontecera. Parecia que o espírito de luta do Rei abandonara o seu corpo enfermo para surgir, todo branco, num cavalo branco, e dirigir-se como a ponta de uma lança de guerra, direto para o coração das forças saxãs. Logo os saxões, abandonando os seus postos, foram empurrados gradativamente para os pântanos que margeavam o campo, e os britânicos seguiam atrás deles com ferocidade e triunfo crescentes. E os homens começaram a ir buscar os feridos e os moribundos. A cadeira de Uther devia ser trazida de volta, também, mas ele continuava a seguir na esteira de Artur. Mas o grosso da batalha já não se travava à sua volta, mas lá na frente, onde todos podiam ver o garanhão branco, a capa branca e a

espada reluzente do Rei, sob o Dragão. A minha posição como presença visível no topo da colina já não era mais necessária, nem observada. Desci para p posto de curativos de emergência, armado perto das ruínas do pomar de macieiras. As tendas já estavam ficando cheias, e os ajudantes trabalhavam duro. Mandei um menino ir buscar a minha caixa de instrumentos, e tirei a capa, jogando-a por cima dos ramos baixos de uma macieira para me proteger dos raios solares; quando a maça seguinte passou por mim, mandei que a trouxessem para a sombra improvisada. Um dos carregadores era um veterano magro e grisalho que reconheci. Trabalhara como meu assistente em Kaerconan. Falei: — Espere, Paulo, não se vá. Tem muita gente para servir de carregador; prefiro que me ajude aqui. Ele ficou satisfeito que o tivesse reconhecido. — Achei que poderia querer a minha ajuda, senhor. Tenho aqui a minha maleta. — Ajoelhou-se do outro lado do homem inconsciente e, juntos, começamos a cortar a túnica de couro no lugar em que havia um rasgão sangrento. — Como está o Rei? — perguntei. — É difícil dizer, senhor. Pensei que ele tinha acabado, e um bocado de coisa com ele, mas está agora com Gandar, tranqüilo como um bebê, e sorridente. E com razão... — É verdade... Acho que chega. Deixe ver... — Era um ferimento de machado, e o couro e o metal da túnica do homem tinham sido enfiados para dentro da carne cortada e do osso despedaçado. Continuei: — Acho que não vamos poder fazer muito aqui, mas tentaremos. Deus está do nosso lado, hoje, e talvez esteja também do lado deste infeliz. Segure aqui, por favor... Como você dizia, com razão. A sorte não mudará, agora. — Sorte, nem? Sorte num cavalo branco, isso sim. Foi uma beleza ver aquele jovem, ver como ele agiu no momento exato. Era do que precisávamos, pois o Rei tinha caído como se estivesse morto, e o Dragão vinha vindo abaixo. Estávamos esperando o Rei Lot, mas nem sinal dele. Pode acreditar, senhor, mais meio minuto e as coisas teriam virado. A guerra é assim; quanta coisa depende de uns poucos segundos e de um pouco de sorte... A coisa feita no momento certo, a pessoa certa a fazê-la... é só o que basta para se ganhar ou perder um reino. Trabalhamos em silêncio, e depressa, porque o homem começava a mexer-se sob as minhas mãos, e eu queria terminar antes que voltasse à consciência dolorosa. Quando já havia feito tudo o que podia, e estávamos terminando de colocar as ataduras, Paulo comentou: — Uma coisa engraçada. — Que coisa? — Lembra-se de Kaerconan, senhor? — Como poderia esquecer? — Bem, aquele moço se parecia com ele... com Ambrósio, quero dizer, que naquele tempo era Conde da Inglaterra. Com cavalo branco e tudo, e o Dragão tremulando por cima. Os homens repararam... E o nome é o mesmo, não é, senhor? Emrys? Parente seu, talvez?

— Talvez. — Ah, bom — falou Paulo, e não fez mais perguntas. Não precisava dizer mais nada; eu já sabia que os rumores deviam estar fervendo desde o momento em que Artur e eu chegamos com a escolta. Pois que fervessem. Uther tinha mostrado o jogo. E, depois da bravura do rapaz, da sorte na batalha e do seu próprio erro de cálculo, Lot ia ter um bocado de dificuldade para fazer o Rei mudar de idéia, ou para persuadir os outros nobres de que o filho de Uther não era um chefe condigno. O homem que estava entre nós voltou a si e começou a gritar, e não houve mais tempo para conversa.

2 Quando a noite caiu, todos os feridos já tinham sido removidos do campo. O Rei se retirara ao ter certeza de que a maré da vitória não mudaria, e que os saxões não tentariam nada de última hora. Quando a batalha terminou, as forças principais dos britânicos se retiraram para uma cidade a duas milhas ao noroeste, deixando Cad, com Caw de Strathclyde, guardando o campo. Lot não ficara para averiguar a sua posição frente aos outros chefes, mas retirara-se para a cidade tão logo a luta terminou, e fora com Ajax para os seus aposentos, e ninguém mais o vira desde então. Já se teciam comentários sobre a fúria com que presenciara a ação do Rei, favorecendo o jovem estranho no campo de batalha, e o seu silêncio sombrio quando soube que Emrys iria comigo ao banquete da vitória, onde, sem dúvida, seria devidamente homenageado. Também comentava-se os motivos que teriam levado Lot a entrar tão tarde na batalha. Ninguém ousou falar em traição, mas dizia-se abertamente que, se ele tivesse demorado mais um pouco, e se Artur não tivesse realizado o seu pequeno milagre, a inércia de Lot poderia ter custado a vitória de Uther. Os homens também se perguntavam, em voz alta, se Lot sairia do seu isolamento sombrio para comparecer ao banquete programado para a noite seguinte. Mas eu sabia que não ficaria ausente. Não ousaria. Embora nada tivesse dito, ele sabia quem era "Emrys", e se quisesse desmoralizá-lo e assumir o poder que almejava, teria de ser agora. Atendidos os casos de emergência no posto do pomar, as unidades médicas também foram para a cidade, onde havia um hospital. Fui com elas, e atendi a um fluxo constante de casos durante toda a tarde e a noitinha. As nossas perdas não tinham sido excessivas, mas, mesmo assim, os destacamentos de sepultamento tiveram muito trabalho, sob a vigilância dos lobos e dos corvos. Uma luz distante e bruxuleante vinha dos pântanos, onde os saxões queimavam os seus mortos. Terminei o meu trabalho no hospital lá pela meia-noite, e estava numa sala externa, vendo Paulo guardar os meus instrumentos, quando escutei alguém que se aproximava rapidamente pelo pátio, e percebi um movimento na porta às minhas costas. Podem chamar-me de velho tolo, se quiserem, relembrando coisas que nem sequer aconteceram, e talvez tenham um pouco de razão; mas não foi apenas o amor que fez com que eu soubesse que era ele, mesmo antes de virar a cabeça. Um ar fresco e doce entrou com ele, penetrando através dos vapores das drogas, e do fedor da doença e do medo. Até as lamparinas queimaram com mais força. — Merlin? — Falou baixinho, como a gente fala num quarto de doente, mas na sua voz ainda havia a excitação do dia que passara. Olhei para ele sorrindo, depois assustado. — Está ferido? Seu garoto tolo, por que não veio procurar-me logo? Deixe ver. Afastou o braço com a manga endurecida de sangue. — Não sabe reconhecer o sangue negro dos saxões? Não tive nem um arranhão. Ah, Merlin, que dia! E que Rei! Ir para o campo incapaz, numa cadeira... isto é que é ter coragem, muito mais do que í preciso para ir para a luta num bom cavalo e com uma boa espada. Juro que nem precisei pensar... foi tudo tão fácil... Merlin, foi esplêndido! Foi para isso que nasci, tenho certeza! E viu 0 que aconteceu? O que o Rei fez? A sua espada? Juro que foi ela que me puxou para a frente, por vontade própria... E todos aqueles gritos, e o modo como os soldados arremeteram-se para a frente como o mar. Nem precisei esporear Canrith... Foi tudo tão rápido e ao mesmo tempo tão devagar e tão nítido, cada momento parecia durar para sempre. Eu não sabia que a gente podia sentir-se pegando fogo e gelado ao mesmo

tempo, sabia? Ele não esperava as respostas, mas falava sem parar, depressa e com vivacidade, os olhos iluminados pela emoção da batalha e pela experiência avassaladora do dia. Eu mal escutava, só o observava, e observava os rostos dos ajudantes e dos criados, e dos homens que ainda estavam acordados e perto o suficiente para escutar. Vi que começava; era deste modo que a presença de Ambrósio, após as batalhas, dava força aos feridos e conforto aos moribundos. Aquilo que possuía, Artur também tinha; eu o veria com freqüência no futuro; ele parecia irradiar luminosidade e força por onde passava, e elas se renovavam nele mesmo. À medida que ficasse mais velho, eu sabia que se renovariam com mais dificuldade, mas, agora, era tão moço, com a flor da virilidade ainda por vir. Depois disto, pensei, quem ousaria afirmar que a sua juventude era incompatível com a posição de rei? Nem Lot, dominado pela sua ambição, fazendo planos sombrios para o trono de um rei morto. Fora a própria juventude de Artur que chamara cada homem para dar o melhor de si, como o caçador chama a sua matilha, como o feiticeiro chama pelo vento. Ele reconheceu numa das camas um soldado que lutara ao seu lado, e foi ao seu encontro falar com ele, depois com outros. Eu o ouvi chamar pelo menos dois deles pelo nome. "Dê-lhe a espada — dissera o meu sonho — e a sua natureza fará o resto. Reis não são feitos de sonhos e profecias; já antes de começar a trabalhar para ele, ele era o que é. Você apenas o protegeu enquanto crescia. Você, Merlin, é um ferreiro como Weland da forja negra; você fez a espada e deu-lhe o fio, mas ela abre o seu próprio caminho." — Eu o vi lá em cima ao lado da macieira — disse Artur alegremente. Ele me acompanhara quando saí do quarto do hospital, e estávamos na ante-sala, pois eu queria dar algumas ordens ao enfermeiro da noite. — Os homens estavam dizendo que era um presságio. Que se estava lá em cima, na colina, é porque íamos ganhar a luta. E a verdade é que, mesmo sem pensar, eu sentia o senhor me observando. E bem pertinho de mim. Como se fosse um escudo às minhas costas. Até acho que escutei.... Parou no meio da frase. Vi que seus olhos se arregalaram, fitos nalguma coisa. Virei-me para ver por que tinha emudecido. Morgause devia estar com vinte e dois anos, agora, e estava ainda mais linda que da última vez que a vira. Usava um vestido simples e cinzento, que deveria fazê-la parecer uma freira, mas não fazia. Não usava jóias, nem precisava. A pele parecia mármore, e os olhos alongados de que me recordava eram verde-dourados sob os cílios fulvos. O cabelo, como convinha a uma moça solteira, caía solto sobre os ombros, afastado do rosto por uma larga tira branca. — Morgause! — exclamei, assustado. — Você não devia vir aqui! — Depois, lembrei-me de suas habilidades e vi duas mulheres e um pajem carregando caixas e panos atrás dela. Devia estar atendendo aos feridos, como eu; ou talvez ainda cuidasse do Rei, e tivesse estado com ele. Acrescentei, depressa: — Não, compreendo; desculpe por não tê-la saudado. A sua perícia é bem-vinda por aqui Diga-me, como está o Rei? — Ele recuperou-se, meu senhor, e está descansando. Parece estar bem, de bom humor. Dizem que foi uma batalha notável. — Olhou então para Artur, um olhar interessado e avaliador. Era óbvio que ela sabia que ele era o jovem que se destacara durante a luta, mas parece que o Rei ainda não lhe contara quem ele era. Não havia o menor sinal de tal conhecimento no seu rosto ou na sua voz, quando fez uma mesura: — Senhor. O rosto de Artur ficara vermelho como uma bandeira. Balbuciou um cumprimento, parecendo um

garoto desajeitado; ele que nem na infância fora desajeitado. Ela aceitou o cumprimento calmamente, depois tornou a olhar para mim, ignorando-o como uma mulher de vinte anos ignora uma criança. Pensei: "Não, ela ainda não sabe." E continuou, com a sua vozinha meiga: — Meu senhor Merlin, trago-lhe um recado do Rei. Mais tarde, quando o senhor tiver descansado, ele gostaria de falar-lhe. Respondi, indeciso: — É muito tarde. Não seria melhor para ele ir dormir? — Creio que dormiria melhor se falasse primeiro com o senhor. Ele estava impaciente para vê-lo, logo que chegou do campo de luta, mas precisava descansar, então dei-lhe uma poção para dormir Mas, agora, já acordou. Pode ir dentro de uma hora? — Pois não. Ela fez uma reverência, de olhos baixos, e desapareceu tão silenciosa quanto tinha vindo.

3 Ceei sozinho com Artur. Tinham-me dado um quarto com vista para um jardim na margem do rio; o jardim ficava num terraço de muros altos e com portões. O quarto de Artur era contíguo ao meu, e os dois davam para uma ante-sala onde havia guardas armados. Uther não queria arriscar-se. Meu quarto era grande e confortável, e havia um criado para servir-nos o vinho e a comida. Pouco falamos enquanto comíamos. Eu estava cansado e faminto, e Artur mostrava o apetite de sempre, mas, depois de toda aquela efusão anterior, estava agora estranhamente quieto, provavelmente, pensei, por deferência a mim. Quanto a mim, só conseguia pensar na minha próxima entrevista com Uther, e no que o amanhã poderia trazer; ao mesmo tempo, sentia um cansaço espiritual, que provavelmente era apenas a reação normal depois de um dia tão longo e difícil. Mas parecia ser mais que isso, eu me sentia como um homem que sai de uma planície ensolarada e entra num pântano nublado. Ulfin, o criado pessoal de Uther, veio buscar-me para levar-me à presença do Rei. Do jeito que olhou para Artur, percebi que sabia a verdade, mas não tocou no assunto enquanto me conduzia pelos corredores até o quarto do Rei. Parecia apenas ansioso quanto ao estado de saúde dele. Quando entrei no quarto do Rei, pude ver por quê. A mudança fora assombrosa, desde a manhã. Ele estava de cama, sustentado por travesseiros, e usava uma camisola de pele. Sem as armaduras, as fazendas escarlates e douradas, notava-se perfeitamente o estado terrível do seu corpo. Pude ver a morte estampada claramente no seu rosto. Não seria hoje, talvez não fosse amanhã, mas seria em breve; este devia ser o motivo da angústia que me oprimia, pensei. Embora fraco e cansado, o Rei parecia contente em ver-me, e ansioso para conversar, por isso afastei os meus pressentimentos. Mesmo com hoje e amanhã, Uther, eu e o que quer que estivesse do nosso lado teríamos bastante tempo para ver a nossa estrela chegar ao seu apogeu. Ele falou em primeiro lugar da batalha e dos acontecimentos do dia. Era evidente que todas as suas dúvidas tinham sido afastadas, e que (embora não o admitisse) lamentava os anos perdidos da adolescência de Artur. Crivou-me de perguntas e, embora com receio de cansá-lo demais, tive de respondê-las, para que pudesse descansar melhor depois. Contei-lhe rapidamente a história dos anos passados, todos os detalhes da vida do menino na Floresta Agreste que não cabiam nos relatórios que sempre mandara. Contei-lhe também das suspeitas e certezas que eu tinha acerca dos inimigos de Artur; quando mencionei Lot, ele nada disse, escutando-me sem interromper. Não falei sobre a espada de Máximo. O Rei tinha posto a sua espada na mão do filho, hoje, publicamente; não poderia ter declarado mais claramente quem era o seu herdeiro escolhido. A espada de Macsen seria dada pelo deus, quando necessário. Entre essas duas dádivas havia uma brecha escura que eu não conseguia transpor; não havia necessidade de preocupar o Rei com ela. Quando terminei, ficou recostado nos travesseiros em silêncio, por algum tempo, com o olhar distante, perdido em seus pensamentos. Finalmente, falou: — Você estava certo, Merlin. Mesmo quando eu o condenava porque não entendia, estava certo. O deus nos tinha a todos na mão. E, sem dúvida, foi ele quem me deu a idéia de negar o meu filho e entregá-lo aos seus cuidados, para crescer em segredo e segurança até tornar-se o que é hoje. Pelo menos, foi-me permitido ver a espécie de homem que gerei naquela noite louca em Tintagel, e a espécie de Rei que me sucederá. Devia ter confiado mais em você, bastardo, como meu irmão fazia. Não preciso dizer-lhe que estou morrendo, preciso? Gandar foge do assunto, mas você admitirá a verdade,

não é, profeta do Rei? A pergunta exigia uma resposta. Quando respondi que sim, ele deu um breve sorriso, com um ar de quase satisfação. Eu não gostara de Uther tanto quanto agora, quando o via enfrentar a morte com coragem fria. Fora isto que Artur vira nele hoje, a qualidade real que alcançara, um pouco tarde talvez, mas não tarde demais. Talvez agora, quase que no momento culminante dos anos passados, eu e ele nos uníssemos na pessoa do rapaz. Ele assentiu. Começava a demonstrar sinais da tensão a que estivera submetido durante o dia e a noite, mas ainda parecia amigável e vivaz. — Bom, isto liquida com o passado. O futuro pertence a ele, e a você. Mas ainda não estou morto, e ainda sou o Grande Rei. O presente me pertence. Mandei chamá-lo para avisar que vou proclamar Artur meu herdeiro no banquete da vitória de amanhã. Não haverá melhor momento. Depois do que houve hoje, ninguém porá em dúvida a sua competência; ele já a demonstrou em público, aos olhos do exército. Mesmo se eu quisesse, acho que não poderia mais guardar segredo, os rumores correram pelo campo como o fogo pela palha. Ele ainda não sabe de nada? — Parece que não. Pensei que começasse a desconfiar, mas parece que não. O senhor mesmo lhe dirá, amanhã? — Sim. Mandarei chamá-lo de manha. Até lá, Merlin, fique com ele e proteja-o. Falou então dos seus planos para o dia seguinte. Conversaria com Artur e, à noitinha, quando todos já se tivessem recuperado da luta, já tivessem apagado as cicatrizes da batalha, Artur seria proclamado gloriosamente na frente dos nobres presentes à festa da vitória. Quanto a Lot (abordou o assunto sem se desculpar), não se sabia o que poderia fazer, mas já ficara muito desacreditado com a sua atitude na batalha, e, mesmo comprometido com a filha do Rei, não ousaria (segundo Uther) discordar em público da escolha do Grande Rei. Não comentou a possibilidade de a demora de Lot ter sido para dar-lhe a alternativa de passar-se para o lado dos saxões; ele achava que tinha sido apenas para que a sua intervenção pudesse ser decisiva na vitória dos britânicos. Escutei, e fiquei calado. Qualquer problema que decorresse disto não seria mais da alçada do Rei, mas de outros homens. Falou, então, em sua filha Morgiana. O casamento teria que ser realizado; o noivado não poderia ser desmanchado agora, sem causar insulto mortal e perigoso a Lot e aos reis nortistas que o apoiavam. Mas, afinal, era mesmo a melhor solução: Lot também não ousaria desmanchar o noivado, e com isso, se prenderia publicamente a Artur que, meses antes do casamento, já estaria proclamado, aceito e estabelecido. Uther quase dissera "e coroado", mas se contivera. Parecia muito cansado, e fiz menção de ir embora, mas ele ergueu a mão magra, e esperei. Ficou calado por alguns momentos, re-costado, de olhos fechados. Uma corrente de ar penetrou no aposento, e as velas pingaram. As sombras tremularam, escurecendo-lhe o rosto. A luz firmou-se de novo, e pude ver os seus olhos fundos, mas ainda brilhantes, que me observavam. Ele me pedia algo, com esforço. Pedia, não. Uther, o Grande Rei, me implorava que ficasse ao lado de Artur, que terminasse o trabalho que começara, que tomasse conta dele, que o aconselhasse, que o protegesse... Sua voz sumiu, mas os olhos continuavam fixos em mim, e eu sabia o que eles estavam dizendo: "Diga-me o futuro, Merlin, projeta dos reis. Faça-me uma profecia." — Eu estarei com ele — falei — e o resto já lhe contei. Ele usará uma espada real, e com esta espada fará tudo que os homens desejam, e mais. Sob o seu governo, os reinos serão um só, e haverá paz, e luz, ao invés de trevas. E quando houver paz, retornarei ao meu isolamento, mas estarei sempre a

postos se ele precisar de mim, e atenderei ao seu chamado com presteza. Não era a visão falando; ela nunca aparecia quando solicitada além disso, as visões não costumavam aparecer onde Uther estava. Mas, para reconfortá-lo, citei profecias antigas, e usei o meu conhecimento dos homens e dos tempos, o que vem a ser quase a mesma coisa. Ele ficou satisfeito, e pronto. — Era só o que eu queria saber — disse. — Que você ficará ao seu lado. e o servirá sempre. . . Quem sabe, se eu tivesse dado ouvidos ao meu irmão, e tivesse conservado você ao meu lado. . . você prometeu, Merlin. Nenhum outro homem tem mais poder, nem Grande Rei. Falou sem rancor, fazendo uma simples constatação. Sua voz estava cansada, de repente virou voz de um homem doente. Fique? de pé. — Vou deixá-lo agora, Uther. Deve dormir. Qual é a poção que Morgause lhe prepara? — Não sei. Um negócio com cheiro de papoula, que ela mistura com vinho morno. — E1a dorme aqui. perto de você? — Não. No primeiro dos quartos das mulheres, descendo o corredor. Mas não a incomode agora. Tem um pouco da droga naquele vidro ali. Atravessei o quarto, peguei o vidro e cheirei. A poção já estava misturada ao vinho: o cheiro era forte e adocicado: continha extrato de papoulas e outras coisa"; mie eu reconhecia, mas não sabia ao certo o que era. Enfiei o dedo na mistura e provei. — Alguém mexeu aqui depois que ela preparou? — Como? — Ele estava meio desligado, não dormindo, mas desligado como ficam as pessoas doentes. — Mexeu aí? Não vi ninguém, mas ninguém iria tentar envenenar-me. Todos sabem que a minha comida é provada antes. Chame o garoto, se quiser. — Não precisa — repliquei. — Deixe-o dormir. Despejei um pouco numa taça e já ia começar a beber quando ele gritou com energia: — Pare! Não seja tolo! — Pensei que tivesse dito que não estava envenenado. — Não importa, não vamos nos arriscar. — Não confia em Morgause? — Morgause? — Franziu o cenho, com pouco caso. — Claro por que não? Ela cuidou de mim todos esses anos, recusou-se à casar, mesmo quando... Mas não importa. Ela diz que o seu destino está "na fumaça" e que vai esperá-lo. Fala por enigmas, às vezes, como você, e você sabe que não tenho paciência com enigmas. Não, como poderia duvidar da minha filha? Porém, esta noite especialmente, devemos estar atentos e, com exceção do meu filho' você é o único homem que não posso dispensar. — Ele sorriu, voltando por um momento a ser o Uther de sempre, duro e alegre levemente malicioso. — Pelo menos, até que ele seja proclamado, e então, sem dúvida, nós dois poderemos dispensar um ao outro. Sorri. — Enquanto isso, deixe que eu prove o seu vinho. Sossegue, não sinto cheiro de nada que faça mal, e a minha morte ainda está longe, por enquanto.

Não acrescentei: — Portanto, deixe-me garantir que amanhã estará vivo para proclamar o seu filho. — A sombra estranha que ainda pressentia ao ombro não podia ser a minha própria morte, nem a de Artur, mas talvez fosse, contra todas as probabilidades, a do Rei. Tomei um gole do vinho, que deixei um pouco sobre a língua antes de engolir. O Rei recostou-se nos travesseiros e ficou a olhar-me, tranqüilo novamente. Bebi de novo, depois fui sentar-me ao lado da cama grande e recomeçamos a conversar, sem pressa: falamos do passado cheio de lembranças, do futuro, com as sombras ainda encobrindo a glória. Finalmente, chegamos a nos compreender razoavelmente bem, Uther e eu. Quando ficou evidente que o vinho era inofensivo, servi-lhe uma dose, vi que ele a tomasse, depois chamei o seu servo Ulfin, e deixei que ele fosse dormir.

4 Por enquanto, ia tudo bem. Mesmo que Uther morresse hoje (e nem a sua aparência nem a minha intuição prognosticavam isto) tudo estava praticamente arranjado. Eu, com o apoio de Cador e Ector, podia proclamar Artur para os nobres tão bem quanto o Rei, e o prestígio e o poder combinados levariam a coisa a bom termo. O gesto do Rei, jogando a espada para Artur durante a batalha, serviria como prova do seu direito à sucessão para muitos soldados, e os guerreiros que o tinham seguido hoje continuariam a segui-lo com prazer. Somente os dissidentes do nordeste não se alegrariam com o término dos dias de incerteza, e com a ida da sucessão diretamente para as mãos de Artur. Então, pensei, enquanto caminhava pelos corredores em direção ao meu quarto, por que o meu coração me pesava tanto dentro do peito? Por que este pressentimento negro como a morte? Por que eu não conseguia ver o que era, se era coisa de tanta importância? Qual a sombra que estendia as suas garras sobre o sucesso brilhante do dia? Um momento mais tarde, passei pelo guarda do lado de fora da ante-sala, e entrei no meu quarto. A sombra mostrou um pouco das garras: no quarto adjacente ao meu a cama de Artur estava vazia. Corri para a ante-sala para sacudir o servo adormecido, quando senti o mesmo cheiro que sentira no vinho do Rei. Larguei o ombro do homem, deixei-o roncando e em três passadas estava de volta ao corredor. Antes que eu dissesse uma só palavra, o guarda se encolhera de encontro à parede, amedrontado com o que via no meu rosto. Contudo, foi com suavidade que perguntei: — Onde está ele? — Meu senhor, ele está bem. Não há motivo para ficar alarmado. . . Nós tínhamos as nossas ordens, nada de mal podia acontecer. O outro guarda acompanhou-o até a porta, e ficou lá... — Onde está ele? — Nos aposentos das mulheres, senhor. Quando a garota veio... — Garota? — perguntei vivamente. — É, meu senhor. Ela veio até aqui. Nós não deixamos que entrasse, é claro, mas, então, ela veio até a porta... — O homem se tranqüilizara com o meu silêncio. — Descanse, meu senhor, tudo está bem. Era uma das mulheres da Senhora Morgause, a moreninha, gordinha como um pintarroxo, e a mais bonita, como o jovem senhor merecia esta noite... Eu reparara nela; pequena e redondinha, morena e com os olhos negros vivos como os de um passarinho. Uma linda criatura, muito novinha e saudável como um dia de verão. Mordi o lábio. — Há quanto tempo? — Quase duas horas. — Deu um sorriso. — Tempo suficiente. Meu senhor, que mal há nisso? Mesmo que nós tentássemos, não teríamos conseguido impedir. Não deixamos que ela entrasse; cumpríamos ordens, e ele sabia; mas, quando ele disse que ia com ela, que podíamos fazer? Afinal de contas, é um final adequado para o primeiro dia de batalha de um homem.

Disse qualquer coisa, e voltei para o meu quarto. O sujeito estava certo, os guardas tinham cumprido as ordens recebidas, e esta era uma situação em que guarda algum teria interferido. E, na realidade, que mal havia? O rapaz conquistara metade da sua virilidade hoje, ao sol; era inevitável que conquistasse o restante à noite. Assim como a sua espada saciara a sua luxúria no sangue, o rapaz precisava saciar a excitação que o consumia num corpo de mulher. Qualquer um o teria previsto, menos um profeta carola; e qualquer guardião normal deixaria as coisas tomarem o seu rumo normal, pensei com amargura. Mas eu era Merlin, e o quarto estava cheio de sombras, e eu tinha medo. Fiquei ali, sozinho, com as sombras ao meu redor, procurando controlar-me e enfrentar o medo. Quem sabe as sombras vinham da minha mente? Talvez fossem apenas inveja, por Artur estar conseguindo com tanta facilidade, aos quatorze anos, o prazer que eu buscara com tanta ânsia aos vinte, e para o qual falhara tão desajeitadamente. Talvez fosse um medo maior que a inveja, o medo de perder, ou de ter que dividir um amor tão caro e que encontrara tão tarde na vida; ou será que o meu medo era tão somente por ele, por saber o que uma mulher podia fazer para tirar o poder de um homem? Quando tive este pensamento, percebi que estava absolvido; as sombras não eram por este motivo. Naquele dia, quando fugi da risada debochada e furiosa da moça, aos vinte anos, tive de escolher entre a virilidade e o poder, e escolhi, friamente, o poder. Mas o poder de Artur era diferente, era o poder de um rei, pleno de virilidade e vigor. Ele me demonstrara várias vezes que, embora me amasse e aprendesse comigo, era filho carnal de Uther; queria tudo que a virilidade pudesse oferecer. Estava certo que tosse para a cama com a sua primeira mulher, hoje, e eu devia sorrir, como o sentinela, e ir dormir, deixando que aproveitasse bem o seu prazer. Mas o gelo nas minhas entranhas e o suor no meu rosto persistiam. Fiquei imóvel, pensando, enquanto a luz da lamparina crescia, diminuía, e crescia de novo. Morgause, pensava, uma das servas de Morgause. E narcotizou o meu servo, que poderia vir avisar-me que Artur fora há duas horas para o seu quarto... E Morgause é meia-irmã de Morgiana, e pode estar a soldo de Lot, com a promessa de um futuro de riquezas, se Lot vier a ser Rei. É verdade que não tentara fazer nada contra o Rei, mas ela sabia que ele utilizava sempre um provador, e não faria sentido livrar-se dele antes que Lot estivesse casado com Morgiana e pudesse declarar-se herdeiro legítimo do trono. Mas, agora, Uther estava morrendo, e Artur aparecera, um pretendente que eclipsaria Lot. Se Morgause fosse realmente uma inimiga, e quisesse desfazer-se de Artur antes da festa do dia seguinte, o rapaz provavelmente estaria narcotizado, prisioneiro de Lot, ou morrendo. . . Isto era loucura. O deus não lhe dera a espada, eu não o vira como Grande Rei, para que morresse. Não havia motivo para que Morgause lhe quisesse mal. Ela teria mais a ganhar como meiairmã do Rei do que como meia-irmã da mulher de Lot. A morte de Artur, pensei friamente, não lhe traria nenhum benefício. Mas a morte estava presente, numa forma e com um cheiro que eu desconhecia. Um cheiro de traição, um cheiro do qual eu me recordava vagamente da minha infância, quando meu tio pretendeu trair o reino do meu pai, e assassinar-me. Podia não haver motivo, mas havia certeza. Aqui havia perigo, e eu precisava achá-lo. Não podia sair por aí, perguntando por Artur. Se estivesse na cama com alguma moça, satisfeito, ele nunca me perdoaria. Teria de encontrá-lo por outros meios, e sendo Merlin, tinha outros meios. Ali, na obscuridade do quarto, fiquei de pé, rígido, de punhos cerrados, fitando o lampião... Sei que não saí do lugar, nem deixei o quarto, mas foi como se tivesse saído pela ante-sala, silencioso e invisível como um fantasma, passando pelo guarda e descendo o corredor escuro em direção à porta de Morgause. O outro guarda estava lá, desperto e vigilante, mas não me viu. Não vinha nenhum barulho lá de dentro. Entrei.

No aposento externo o ar estava quente e pesado, cheirando aos perfumes e loções que as mulheres usam. Aí havia duas camas, com duas pessoas dormindo. Na soleira do quarto interno estava o pajem de Morgause, adormecido. Duas camas, cada qual com um ocupante. Um deles era uma velha grisalha, que dormia de boca aberta, ressonando. O outro dormia sem fazer ruído, com o cabelo negro em trancas sobre o travesseiro. A mocinha morena dormia sozinha. Agora, eu sabia qual era o horror que me oprimia; a única coisa na qual não tinha pensado, preocupado com mortes, traições e perdas. Os homens com a visão divina são freqüentemente carentes da visão humana; quando troquei a minha virilidade por poder, fiz-me cego às manhas das mulheres. Se fosse um simples homem, em vez de um mago, teria visto a troca de olhares no hospital, teria entendido o silêncio posterior de Artur, teria reconhecido o olhar avaliador da mulher. Ela devia possuir alguma mágica para cegar-me daquele jeito. Agora, sabendo que eu nada mais podia fazer, relaxou o controle1 ou a mágica foi perdendo a força à medida que ela ia adormecendo. Ou, talvez, o meu poder sobrepujasse o dela, e ela não tivesse defesas contra mim. Deus sabe que eu não queria olhar, mas estava preso ali pelo meu próprio poder, e porque não há poder sem conhecimento, e não há conhecimento sem sofrimento, as paredes e a porta do quarto de Morgause dissolveram-se à minha frente, e pude ver. Tempo suficiente, dissera o guarda. E eles realmente tinham tido tempo suficiente. A mulher estava deitada sobre os lençóis, nua e de pernas abertas. O rapaz, o corpo moreno contrastando com a brancura dela, estava largado sobre ela, na lassidão do gozo. A sua cabeça estava entre os seios da mulher e não pude ver bem o seu rosto. Ele não estava dormindo, mas tinha a fisionomia serena e calma, com a boca tocando o corpo dela, parecendo um cachorrinho buscando a teta da mãe. Pude ver claramente o rosto dela. Aninhava a cabeça dele, e o seu corpo mostrava a mesma lassidão, mas no seu rosto não havia a ternura que o gesto parecia exprimir. Nem o prazer. No seu rosto aparecia um júbilo feroz, como no de um guerreiro numa batalha; os olhos verde-dourados estavam bem abertos e fixos num ponto invisível na escuridão; e a boca pequena sorria, num misto de triunfo e desprezo.

5 Ele retornou ao quarto um pouco antes do alvorecer. O primeiro pássaro já cantara, e logo o ruído do coro matutino se fazia ouvir, quase abafando o tinir das armas à porta externa e o cumprimento que deu ao guarda. Entrou, com os olhos pesados de sono, e parou do chofre perto da porta, quando me viu sentado na cadeira alta no lado da janela. — Merlin! Já está acordado? Não conseguiu dormir mais? — Ainda nem me deitei. Ele despertou imediatamente, ficou alerta. — O que houve? O que aconteceu? Foi o Rei? Bem, pensei, pelo menos ele não está concluindo que fiquei acordado para interpelá-lo pelas suas andanças noturnas. E nunca deverá saber que o segui para além daquela porta. Respondi: — Não, não foi nada com o Rei. Mas eu e você precisamos conversar antes de amanhecer. — Ah, Santo Deus, agora não, por favor! — replicou, com ar de riso, e bocejou. — Merlin, preciso dormir. Não adivinha onde eu estive, ou quem sabe o guarda lhe contou? Quando se aproximou, pude sentir o cheiro dela no seu corpo. Fiquei enojado, e abalado. Respondi secamente: — Vamos, acorde e vá lavar-se. Preciso falar com você. Eu tinha apagado todas as luzes, menos uma, bem fraquinha, que mal competia com a luz da madrugada Vi sua fisionomia endurecer. ! — Com que direito. . . ? — Interrompeu-se, e percebi que conseguira controlar a raiva. — Pois bem, dou-lhe o direito de me interrogar, mas não gosto da hora que escolheu. Era uma atitude bem diferente da que tivera tão pouco tempo atrás, à beira do lago, quando demonstrara apenas uma raiva magoada e infantil. Quão longe já o tinham levado as duas juntas, a espada e a mulher! — Não tenho nem o direito nem a intenção de interrogá-lo. Acalme-se e escute. É verdade que quero falar-lhe, entre outras coisas, sobre o que aconteceu esta noite, mas não pelo motivo que parece querer atribuir-me. Quem você pensa que eu sou, o Abade Martin? Não lhe nego o direito de satisfazerse como e onde quiser. — Ele ainda permanecia hostil, dividido entre raiva e orgulho. Para acalmá-lo e ajudar a passar o momento difícil, acrescentei, mansamente: — Realmente, foi meio perigoso andar pela casa à noite, com homens que o odeiam pelo que fez ontem. Mas como posso culpá-lo por ter ido? Mostrou-se um homem na luta, por que não também na cama? — Sorri. — Embora eu nunca tenha possuído uma mulher, sei o que é sentir desejo. Fico contente por ter tido o seu prazer. Parei. O rosto dele estivera pálido de raiva; mesmo na pouca luz existente, vi a raiva desaparecer, junto com os últimos vestígios de cor. Parecia que o sangue e a respiração tinham cessado ao mesmo tempo. Os olhos estavam sombrios. Ele me fitava com os olhos apertados, como se não me estivesse vendo direito, ou como se me estivesse vendo pela primeira vez, e eu estivesse fora de foco. Era um

olhar que incomodava, e eu não me incomodo facilmente. — Nunca possuiu uma mulher? No meio das coisas importantes que ferviam na minha cabeça, a pergunta pareceu-me irrelevante. Respondi, surpreso: — Foi o que eu disse. Acho que é do conhecimento geral. Alguns homens parecem desprezar-me por isto. Mas não... — Então, é eunuco? A pergunta era cruel, feita de um modo áspero e abrupto. Tive que esperar um momento antes de poder responder. — Não. Eu ia acrescentar que não dou valor à opinião dos que desprezam a castidade. Você é um deles? — O quê? — Ele não escutara uma única palavra do que eu dissera. Procurou livrar-se da forte emoção que o acometia, e foi para o seu quarto como um homem que está sufocando e precisa de ar. Foi dizendo, com voz abafada: — Vou me lavar. Fechou a porta atrás de si. Levantei-me depressa, segurei o peitoril da janela, e debrucei-me para a madrugada fria de setembro. Um galo estava cantando; outros lhe responderam. Eu estava tremendo; eu, Merlin, que vira reis, sacerdotes e príncipes tramarem a minha própria morte; que conversara com os mortos; que sabia criar tempestades e fogo, e que chamava pelo vento. Bem, eu chamara por este vento, agora tinha de enfrentá-lo. Mas esperara que o seu amor por mim nos ajudasse, aos dois, a enfrentar o que ia contar-lhe. Eu não tinha contado com perder o seu respeito, e por tal motivo, neste momento. Disse a mim mesmo que ele era moço; que era filho de Uther, que estava cheio de orgulho sexual por ter tido a sua primeira mulher. Disse a mim mesmo que era um tolo por ter imaginado retribuição do amor que lhe dedicava, quando ele apenas sentia por mim o mesmo que eu sentira pelo meu tutor Galapas, afeição misturada com respeito. Tudo isto disse a mim mesmo, e outras coisas, e assim, quando ele retornou, eu estava sentado de novo, calmamente à espera, com dois copos de vinho servidos na mesa ao lado. Ele pegou um deles, sem dizer palavra, depois foi sentar-se do outro lado do quarto, na beirada da minha cama. Tinha lavado até o cabelo; ainda estava úmido, caindo sobre a testa. Tinha trocado a camisola, e, na sua túnica curta, sem manto nem armas, parecia de novo um menino, o Artur do verão e da Floresta Agreste. Eu estava procurando com cuidado o que dizer, mas foi Artur quem quebrou o silêncio, sem olhar para mim, virando e revirando o copo nas mãos, com profunda concentração. Disse, simplesmente, como se isto explicasse tudo, como na realidade explicava: — Pensei que fosse meu pai. Era como estar enfrentando a espada de um oponente, e de repente, perceber que tanto a espada quanto o inimigo são meras ilusões, e, no mesmo momento, sentir que a terra onde se pisa virou um pântano escorregadio. Lutei para reorganizar os meus pensamentos. Respeito e amor, ele sempre me demonstrara, mas pelo homem que eu era; o filhe também os demonstra pelo pai, pelas suas qualidades. Mas outras coisas ficaram claras, de repente; a deferência, que ele só demonstrava por mim e por Ector, a obediência, a presunção da minha pronta acolhida, e, acima de tudo (eu agora percebia, como percebia a nesga de céu azul que ia se abrindo na escuridão da

madrugada), a maravilhosa esperança com que me acompanhara até Luguvallium. Recordei-me da minha procura incessante por meu pai, na infância, de como eu o via e adivinhava em todo homem que olhava para a minha mãe. Artur sabia pelos pais adotivos da história de "bastardia nobre", e tinham-lhe prometido vagamente que seria reconhecido quando "tivesse idade para pegar em armas." Ele pouco falara no assunto, como fazem as crianças (como eu fizera), mas pensara nele, e esperara, incessantemente. E aí eu aparecera, no meio desta procura e expectativa eternas, coberto de mistério e com o ar que Ralf mencionara, de um homem acostumado à deferência e com um propósito firme na vida. O menino deve ter reparado na sua semelhança comigo; talvez até outros, como Bedwyr, tenham feito comentários. E ele esperara, tirando as suas próprias conclusões, preparado para oferecer amor, aceitar autoridade e confiar em mim quanto ao futuro. Depois, veio a espada, aparentemente um presente meu, de pai para filho. E a descoberta que se seguira, de que eu era o filho de Ambrósio, o Merlin das mil lendas contadas ao pé do fogo. Bastardo ou não, ele se encontrara, e era da realeza. Assim, acompanhara-me até Luguvallium, considerando-se neto de Ambrósio e sobrinho-neto de Uther Pendragon. Disto nascera a sua grande confiança durante a batalha. Ele deve ter pensado que foi por este motivo que Uther jogou-lhe a espada, porque, na ausência do príncipe herdeiro, ele era o parente mais próximo, embora bastardo. Comandara o ataque, e depois aceitara as honrarias devidas a um príncipe. Isto também explicava o motivo pelo qual nunca pareceu suspeitar que era o príncipe "desaparecido". Os olhares e cochichos e a deferência que recebeu achou que eram porque todos sabiam que era meu filho. Ele aceitou, como a maioria dos homens, o fato de que o herdeiro do Grande Rei vivia nalguma corte do estrangeiro, e não pensou duas vezes no assunto. E por que pensaria, se já tinha descoberto o seu lugar? Ele era meu, era da realeza, e, através da minha pessoa, o seu lugar era no centro do reino. E, agora, subitamente, de maneira cruel, ele se via privado da ambição e do lugar com que sonhara, e, o que era pior, da sua posição de filho reconhecido. Eu, que passara a minha juventude como bastardo e filho-de-ninguém, sabia como aquele cancro consumia. Ector tentara poupar Artur deste sofrimento dizendo-lhe que seria reconhecido, um dia, por gente nobre; eu não imaginava que ele estivesse depositando todo o seu amor e confiança na certeza de que este reconhecimento seria feito por mim. — Até o meu nome. — O tom humilde, de desculpas, era pior que a crueldade anterior que o choque lhe fizera demonstrar. Ao menos, eu podia recompor-lhe o orgulho. Não sabia a que preço, mas teria que dizer-lhe, agora. Muitas vezes, eu imaginara como falaria, se tocasse a mim contar. Agora, falei com toda a simplicidade, a pura verdade. — Temos o mesmo nome porque, na verdade, somos parentes. Você não é meu filho, mas somos primos. Você é, como eu, neto de Constâncio e descendente do Imperador Máximo. Seu verdadeiro nome é Artur, e você é o filho legítimo do Grande Rei e de Ygraine, sua Rainha. Pensei que desta vez o silêncio não fosse ser quebrado. Às minhas primeiras palavras ele desviara os olhos do vinho para fixá-los em mim. Estava de cenho franzido, como um surdo que estivesse fazendo força para ouvir. O vermelho tingiu-lhe o rosto, como sangue manchando um pano branco, e ele entreabriu os lábios. Largou o copo com cuidado, e veio até a janela perto de mim, e, exatamente como eu fizera antes, segurou o peitoril e debruçou-se para o lado de fora. Um pássaro pousou no galho próximo e começou a cantar. O céu assumiu a coloração de ovos de garça, depois mudou para um jacinto onde flutuavam flocos de nuvens. E ele ainda permanecia lá, e eu esperava, sem mover-me ou falar.

Finalmente, sem virar-se, ele falou para o galho com o seu pássaro cantor. — Por que desse jeito? Quatorze anos. Por que não fiquei onde era o meu lugar? Então, contei-lhe afinal toda a história. Comecei com a visão que Ambrósio partilhara comigo, dos reinos unidos sob um só rei, de Dumnonia a Lothian, de Dyfed a Rutupiae; romano-britânicos e celtas e foederatus leais lutando juntos para preservar a Inglaterra da inundação que afogava o resto do Império; uma versão mais humilde e prática do sonho imperial de Máximo, adaptada e passada do meu avô para o meu pai, e instilada em mim pelos ensinamentos do meu mestre, e pelo deus que me tomara a seu serviço. Contei-lhe da morte de Ambrósio sem mais filhos, e da pista que o deus me dera, ordenando-me que a seguisse. Da súbita paixão do novo Grande Rei por Ygraine, esposa do Duque de Cornwall, e da minha ajuda à sua união, que o deus me tinha revelado que traria o próximo rei da Inglaterra. Da morte de Gorlois, do remorso de Uther, misturado ao alívio que lhe causara esta morte, que ele desejara, mas sem poder admiti-lo de público; do nosso banimento posterior, meu e de Ralf, e da ameaça de Uther de renegar a criança que fora gerada. Finalmente, como o orgulho e o bom senso prevaleceram, e como a criança me fora entregue para que cuidasse dela durante os perigosos primeiros anos do reinado de Uther; e como a doença do Rei e o poder crescente dos seus inimigos o forçaram a continuar mantendo o filho escondido. Algumas coisas não contei: não falei a Artur do que eu via no seu futuro, a grandeza, a dor e a glória; nem da impotência do Rei. Nem do seu desejo desesperado de ter outro filho para substituir o "bastardo" de Tintagel; esses segredos eram de Uther, e ele tinha pouco tempo para guardá-los. Artur ouviu em silêncio, sem interromper. A princípio parecia que todo o seu interesse estava dirigido para o céu que clareava lá fora, e para o canto do melro em cima do galho. Depois, virou-se e, embora sem olhar para ele, senti os seus olhos pousarem em mim. Quando cheguei à parte da festa da coroação, da exigência do Rei para que eu o levasse ao leito de Ygraine, ele voltou devagarinho para a beirada da cama. Contei a história da noite louca em que ele foi gerado muito simplesmente, exatamente como aconteceu. Mas escutou como se fosse a história fantástica que lhe contara na Floresta Agreste, com Bedwyr ao lado, e e!e enroscado na minha cama, mão no queixo, e agora os seus olhos negros estavam calmos, brilhantes, pousados em mim. Fui chegando ao fim, e ele viu que o relato se encaixava em tudo que lhe ensinara no passado, e que eu agora estava entregando-lhe os últimos elos da sua linhagem dourada, como que dizendo: — Tudo que lhe contei ou ensinei resume-se em você mesmo. Finalmente, acabei e tomei um gole de vinho. Ele desenroscou-se, saiu depressa da cama e veio servir-me mais vinho. Quando agradeci, inclinou-se e beijou-me. — Você, — disse suavemente — desde o começo. Afinal, eu não estava muito longe da verdade, não é? Sou tanto seu quanto do Rei... mais até; e de Ector, também... E Ralf, gostei de saber sobre Ralf... Quantas coisas começo a entender, agora. — Andava pelo quarto, falando aos arrancos, inquieto como Uther. — Tanta coisa, ainda não consegui me acostumar, preciso de tempo... Que bom que foi você quem me contou. Era o Rei que pretendia contar-me? — Era. Ele teria falado mais cedo, se tivesse havido tempo. Tomara que ainda haja. — Que quer dizer? — Ele está morrendo, Artur. Você está pronto para ser Rei? Ele ficou de pé, com a garrafa de vinho ainda na mão, de olhos fundos por causa da falta de sono, a cabeça num tumulto de pensamentos:

— Hoje? — Acho que sim. Não sei. Breve. — Estará comigo? — É claro que sim. Já lhe disse. Foi neste momento, quando ele descansou a garrafa, sorridente, e virou-se para apagar a lamparina, que o outro pensamento o atingiu. Percebi o momento em que prendeu a respiração, depois soltou-a com cuidado, como se tivesse levado uma pancada mortal. Estava de costas para mim, com a mão estendida para apagar a luz. A mão estava bem firme. Mas a outra mão, que procurava esconder de mim, estava fazendo o sinal contra o mal. Depois, como era do seu feitio, não permaneceu de costas, virou-se para encarar-me. — Agora, sou eu quem precisa contar-lhe uma coisa. — É? As palavras pareciam estar sendo arrancadas de dentro dele: — A mulher com quem estive hoje era Morgause. — Como eu permanecesse calado, indagou bruscamente: — Sabia? — Só soube quando já era muito tarde para impedir. Mas devia ter desconfiado. Mesmo antes de ir ver o Rei, eu já sabia que havia alguma coisa errada. Não sabia exatamente o que, mas as sombras me oprimiam. — Se eu tivesse ficado no meu quarto, como mandou... — Artur. O que aconteceu, aconteceu. Não adianta dizer "se isso", "se aquilo"; não está vendo que é inocente? Você obedeceu aos impulsos da natureza, como fazem os jovens. Mas eu, sim, sou culpado. Pode me amaldiçoar, se quiser, por todo esse segredo. Se eu lhe tivesse contado antes sobre o seu nascimento... — Disse-me para ficar aqui. Mesmo que não soubesse exatamente qual o perigo que rondava, sabia que se eu obedecesse estaria a salvo. Se tivesse obedecido, não só estaria a salvo, como ainda estaria ... — resmungou qualquer coisa que não entendi, depois terminou — limpo dessa sujeira. Culpálo? A culpa é minha, e Deus sabe e vai me julgar. — Deus vai nos julgar a todos. Ele deu três passadas pelo quarto, depois voltou. — Com tantas mulheres, a minha irmã, a filha do meu pai... — Parecia engasgado com as palavras. Podia ver o horror grudando-se a ele, como a lesma gruda-se à planta. A sua mão esquerda ainda fazia o sinal contra o mal: é um sinal pagão; desde o começo dos tempos este sempre foi um pecado muito grande aos olhos dos deuses. Parou de repente, bem à minha frente, até neste momento pensando não apenas em si mesmo. — E Morgause? Quando souber o que acabou de contar-me, quando souber do pecado que nós dois cometemos? Que fará? Se ficar desesperada... — Ela não ficará desesperada. — Como é que sabe? Disse que não conhecia as mulheres. Acho que essas coisas ainda são piores para as mulheres. — Horrorizou-se de novo, ao pensar no motivo. — Merlin, e se houver uma criança?

Acho que nunca na minha vida tive que ter tanto autodomínio. Ele estava olhando para mim, desesperado; se tivesse deixado os meus pensamentos transparecerem no meu rosto, não sei o que teria feito. Quando pronunciou a última frase, as sombras informes que me perseguiram a noite toda subitamente tomaram corpo Lá estavam elas, à minha volta, como abutres, pesados e cheirando a carniça. Eu, que planejara o concebimento de Artur, ficara cego e ocioso durante a concepção da sua morte. — Preciso contar-lhe. — Sua voz estava cortante, desesperada. Imediatamente. Antes mesmo do Grande Rei proclamar-me. Alguns podem adivinhar, ela pode ouvir... Ele falava meio incoerente, mas eu estava ocupado demais com as meus próprios pensamentos para escutar. Pensei: "Se lhe disser que ela já sabia, que ela é corrupta, e que o poder que possui é corrupto; se eu contar que o utilizou deliberadamente para conseguir mais poder; se contar agora, quando ainda está abalado por tudo que aconteceu durante o dia e a noite, ele pegará a espada e a matará. E quando ela morrer, morrerá com ela a semente que será tão corrupta quanto ela, e que atingirá a sua glória do mesmo modo que esta lesma de horror está atingindo a sua juventude. Mas se ele os matar agora, ele nunca mais usará a espada ao serviço de Deus, e a corrupção deles o terá atingido antes do início da sua obra." Falei, calmamente: — Artur. Acalme-se e escute. Já lhe disse que o que aconteceu , aconteceu, e os homens precisam aprender a enfrentar o que fazem' Ouça. Em breve, você será o Grande Rei, e, como sabe, eu sou o profeta do Rei. Ouça a primeira profecia que faço para você. O que fez, fez em completa inocência. Só você, dos descendentes de Uther, é limpo. Nunca lhe disseram que os deuses são ciumentos? Eles se previnem contra o excesso de glória. Todo homem carrega a semente da sua própria morte, e você não será mais que um homem. Você terá tudo; não poderá ter mais; e toda vida tem um fim. Na noite de hoje, determinou este fim. Que mais poderia um homem desejar, poder determinar a sua própria morte? Toda vida tem uma morte, e toda luz tem uma sombra. Deixe-se ficar na luz, e deixe que a sombra caia onde cair. Acalmou-se à medida que escutava, perguntando afinal, já tranqüilo: — Merlin, que devo fazer? — Deixe comigo. Quanto a você, não pense, esqueça a noite, espere o amanhã. Escute, são as trombetas. Vá dormir um pouco antes do dia começar. Assim, imperceptivelmente, forjou-se o primeiro elo na nova cadeia que nos ligava. Ele dormiu, para estar pronto para as grandes atividades do dia seguinte, e eu fiquei vigiando, pensativo, enquanto a claridade aumentava e o dia ia chegando.

6 Ulfin, o camareiro do Rei, veio afinal chamar Artur à presença do Rei. Acordei o rapaz, e ele foi, tranqüilo e reservado, aparentando uma calma impossível, como uma camada de gelo sobre um redemoinho. Acho que a sua juventude já estava fazendo com que esquecesse a sombra da noite passada; eu é que suportava a carga, agora. Este padrão tomou-se comum nos anos seguintes. Logo que ele saiu, conduzido com cerimônia por um Ulfin que recordava a noite tão distante do concebimento do rapaz, e aceitando a deferência especial como se estivesse habituado a ela, chamei meu servo e ordenei-lhe que trouxesse a Senhora Morgause. O homem pareceu surpreso, depois indeciso; era de supor-se que a dama é que estava acostumada a dar este tipo de ordens. Eu não tinha nem tempo nem paciência hoje para essas coisas. Falei secamente: — Faça o que estou mandando. — O homem correu a obedecer. Ela me fez esperar, é claro, mas veio. Estava de vermelho, esta manhã, a cor das cerejas, e o seu cabelo caído nos ombros era de um louro rosado, era como brotos de primavera do lariço, tinha a cor dos abricós. O seu perfume era forte e adocicado, abricós e madres-silvas misturados, e senti que o meu estômago se contraía à lembrança. Mas não havia nenhuma outra semelhança com a moça que eu amara (tentara amar) tanto tempo atrás; nos olhos verdes e alongados de Morgause não havia a menor inocência, nem mesmo fingida. Ela entrou sorrindo com os lábios apertados, com uma co-vinha brincando no canto da boca, fez uma reverência e atravessou o quarto para sentar-se graciosamente na cadeira de espaldar alto. Ajeitou a saia do vestido com elegância, dispensou as criadas com um aceno de cabeça, ergueu o queixo bem alto e olhou para mim com ar indagador. As suas mãos estavam cruzadas sobre a suave protuberância da barriga, e o seu gesto não era recatado, mas sim possessivo. Uma lembrança longínqua veio-me à mente. A minha mãe, naquela mesma posição, enfrentando um homem que gostaria de matar-me. "Eu tenho que proteger um bastardo". Acho que Morgause leu os meus pensamentos. A covinha aprofundou-se, e as pálpebras de cílios dourados cerraram-se. Não me sentei, fiquei em pé frente à janela. Falei, com mais aspereza do que pretendia: — Já deve saber por que mandei chamá-la. — E o senhor deve saber, Príncipe Merlin, que não estou acostumada a que me mandem chamar. — Não vamos perder tempo. Você veio, e fez bem. Quero conversar com você enquanto Artur ainda está com o Rei. Ela arregalou os olhos. — Artur? — Não se faça de inocente comigo, mocinha. Você sabia o nome dele quando o levou para a cama, ontem. — Será que o pobre rapaz não pode esconder de você nem os seus segredos de alcova? — A vozinha bonita denotava desprezo, queria ferir. — Ele veio correndo quando você assobiou para contarlhe tudo, como sempre faz? Admira-me que o tenha soltado da corrente o tempo necessário para que pudesse satisfazer-se, ontem. Faça bom proveito dele, Merlin, o fazedor de reis. Que espécie de rei vai

ser este cachorrinho? — Vai ser da espécie que não é governado da cama — respondi. — Você teve a sua noite, e já foi demais. Agora é a hora do ajuste de contas. Ela moveu as mãos no colo, devagar. — Você não pode fazer-me mal. — Não, eu não vou fazer-lhe mal. — O brilho dos seus olhos mostrou que ela tinha entendido a modificação da frase. — Mas, estou aqui para impedir que faça mal a Artur. Você deixará Luguvallium hoje, e não voltará mais a esta corte. — Deixar a corte? Que tolice é esta? Sabe que eu tomo conta do Rei; dou-lhe os seus remédios, sou a sua enfermeira. Eu e o seu camareiro cuidamos de tudo para ele. Você não imagina que o Rei vá concordar em deixar-me partir. — Depois de hoje — repliquei — o Rei nunca mais vai querer vê-la. Ela ficou olhando para mim, afogueada. Isto lhe importava, e muito. — Como pode dizer isto? Nem você, Merlin, pode impedir-me de ver o meu pai, e lhe asseguro que ele não vai deixar que eu me vá. Não está pretendendo contar-lhe o que aconteceu, não é? Ele é um homem doente, um choque pode matá-lo. — Eu não contarei a ele. — Então, o que vai dizer-lhe? Por que iria concordar em mandar-me embora? — Não foi isso que eu disse, Morgause. — Você disse que, depois de hoje, o Rei nunca mais ia querer ver-me. — Não estava falando do seu pai. — Não estou enten... — Interrompeu-se, arregalando os olhos verde-dourados. — Mas você disse... o Rei? —A sua respiração ficou difícil. — Estava referindo-se àquele rapaz? — Ao seu irmão? Estava. Onde está a sua eficiência? Uther está à morte. Ela estava torcendo as mãos no colo. — Eu sei. Mas... vai ser hoje? Fiz eco à minha própria pergunta. — Onde está a sua mágica? Vai ser hoje. Assim, é melhor que se vá, não é? Com Uther morto, quem irá protegê-la aqui? Ela ficou pensativa por um momento. Os belos olhos verde-dourados estavam apertados e astutos, nem um pouco belos, agora. — Contra quê? Contra Artur? Tem tanta certeza de fazer com que o aceitem como Rei? Mesmo que o consiga, por que eu precisaria de proteção contra ele? — Sabe tão bem quanto eu que ele será Rei. É hábil bastante para saber disto, e, apesar do que falou ditado pela raiva, hábil bastante para saber que espécie de Rei ele será. Talvez não precise de proteção contra ele, Morgause, mas na certa precisará contra mim. — Os nossos olhos encontraram-se, e fiz um aceno de cabeça. — É verdade. Onde ele estiver, eu estarei. Você está avisada, parta enquanto pode. Posso protegê-lo do tipo de mágica que usou ontem à noite. Ela estava calma de novo, tinha-se recomposto. A boca pequena sorriu o seu sorriso secreto. Ê,

ela possuía algum tipo de poder. — Tem tanta certeza do seu poder contra a mágica das mulheres? Ela vai conseguir laçá-lo um dia, Príncipe Merlin. — Eu sei — respondi calmamente. — Não pense que já não vi o meu fim. E o fim de nós todos. Morgause. Veio poder para você e para a coisa que você carrega, mas nenhuma alegria. Nenhuma alegria. nem agora. nem nunca. Do lado de fora da janela, perto da parede, havia um pé de abricó. O sol aquecia as frutas, que pareciam globos dourados, maduras e perfumadas. A parede de pedra irradiava calor, e as vespas zuniam entre as folhas brilhantes, tontas com o perfume. Já uma vez, num pomar cheiroso, eu encontrara o ódio e o assassinato, cara a cara. Ela estava imóvel, com as mãos cruzadas sobre a barriga. Os seus olhos prendiam-se aos meus parecendo querer beber neles. O cheiro de madressilva acentuou-se visivelmente, flutuando numa névoa verde-dourado pela janela aberta, misturando-se à luz do sol e ao odor dos abricós. . . — Pare com isso! — falei com desprezo. — Pensa que a sua mágica de moça pode atingir-me? Não pode agora, como não pôde antes. O que é que você está tentando fazer? Isto não tem nada a ver com mágica. Artur sabe agora quem é, e sabe o que fez a noite passada com você. Acha que a suportará perto dele? Acha que verá, dia a dia, mês a mês, esta criança crescer na sua barriga? Ele não é um homem frio, nem um homem paciente. E possui uma consciência. Ele acredita que você pecou inocentemente, como ele. Se pensasse de outro modo, poderia agir. — Matar-me, quer dizer? — Não merece morrer? — Ele pecou, se acha que foi pecado, tanto quanto eu. — Ele não sabia que estava pecando, mas você sabia. Não, não perca tempo comigo. Por que fingir? Mesmo sem a sua mágica. você sabia que metade da corte estava cochichando a respeito desde que eu e ele chegamos aqui juntos ontem. Sabia que ele era filho de Uther. Pela primeira vez uma sombra de medo passou pelo seu rosto Mas ela continuou, obstinadamente: — Eu não sabia. Não pode provar que eu sabia. Por que faria tal coisa? Cruzei os braços e encostei o ombro na parede. — Já lhe digo por quê. Primeiro, porque você é filha de Uther e como ele, vive atrás dos prazeres casuais. Porque você tem o sangue Pendragon que faz com que deseje poder, e o consegue da maneira mais fácil para uma mulher, na cama de um homem. Sabia que seu pai, o Rei, estava morrendo, e temia que não houvesse um lugar de poder para você como meia-irmã de um Rei cuja Rainha logo viria desalojá-la. Acho que não teria hesitado em matar Artur, se não achasse que teria pior situação na corte de Lot, com a sua irmã como Rainha. Quem quer que fosse feito Rei não precisaria de você, como Uther precisa. Casariam você com um rei pequeno qualquer, e passaria o resto da vida num canto do país, tendo filhos e tecendo os mantos de guerra do marido, tendo nas mãos apenas o poder ínfimo de uma família, e a pouca mágica que aprendeu e que poderia utilizar no seu reinozinho. Foi por isso que fez o que fez, Morgause. Porque queria possuir um elo forte com o jovem Rei, de qualquer maneira, mesmo que fosse um elo de horror e ódio. Fez o que fez ontem friamente, visando poder. — Quem é você para falar assim comigo? Você se agarrou ao poder onde quer que o encontrasse.

— Não onde o encontrasse; onde me foi dado. O que você tem, você o arranjou contra todas as leis de Deus e dos homens. Se tivesse agido inocentemente, por simples luxúria, nada haveria a dizer. Eu já lhe disse, ele ainda acha que você não tem culpa. Hoje de manhã, quando soube o que tinha feito, o seu primeiro pensamento foi para a sua aflição. — Vi o lampejo de triunfo nos seus olhos, e acrescentei, suavemente: — Mas você não está lidando com ele, está lidando comigo. E eu digo que você vai embora. Ela pôs-se de pé, ligeira. — Por que não lhe contou, então, e deixou que ele me matasse? Não teria adorado? — Para cometer outro pecado, e pior? Não diga besteiras. — Irei até o Rei! — Para quê? Ele nem pensará em você, hoje. — Estou sempre ao seu lado. Ele vai precisar das suas drogas. — Eu estou aqui, agora, e há Gandar. Ele não precisará de você. — Ele me receberá se eu disser que vim despedir-me! Estou lhe dizendo, irei até ele! — Então vá — retruquei. — Não a impedirei. Se estava pensando em contar-lhe a verdade, pense um pouco. Se ele morrer com o choque, Artur será o Grande Rei mais cedo. — Ele não seria aceito! Eles não o aceitariam. Acha que Lot vai ficar parado sem fazer nada? E se eu contar a eles o que Artur fez ontem à noite? — Então, Lot seria o Grande Rei — respondi afavelmente. — E por quanto tempo acha que ele a deixaria viver, carregando o filho de Artur? É bom pensar no assunto, não é? De um jeito ou de outro, nada há a fazer, a não ser partir enquanto pode. Logo que a sua irmã se casar, no Natal, peça a Lot para arranjar-lhe um marido. Talvez, assim, fique a salvo. De repente, ela enfureceu-se, a fúria de um gato encurralado. — Você me condena, logo você! Você também foi bastardo... A minha vida inteira eu vi Morgiana ganhar tudo. Morgiana! Aquela criança vai ser Rainha, enquanto eu... Ela até aprende mágica, mas sabe utilizá-la em proveito próprio tanto quanto um gatinho! Ela ficaria melhor num convento que num trono de Rainha, e eu. . . eu... — Deu um suspiro, e mordeu o lábio inferior. Acho que modificou o que pretendia dizer: — Eu, que tenho um pouco do poder que o tornou grande, Merlin, meu primo, acha que me contentarei com não ser nada? — A sua voz tornou-se monótona, a voz de uma bruxa lançando uma praga que vai pegar. — É o que você será, você que não é amigo de nenhum homem, nem amante de nenhuma mulher. Você não é nada, Merlin, não é nada, e no final será apenas uma sombra e um nome. Sorri para ela. — Acha que pode fazer-me medo? Vejo muito mais adiante que você. É verdade que não sou nada; eu sou o ar e a escuridão, uma palavra, uma promessa. Eu leio no cristal, e espero nas colinas vazias. Mas lá fora, na claridade, tenho um jovem rei e uma espada brilhante para fazerem o meu trabalho por mim. e para construírem o que permanecerá quando o meu nome significar apenas canções esquecidas e sabedoria superada, e quando o seu nome, Morgause, for apenas um sibilar na escuridão. — Virei a cabeça, e chamei o criado. — Agora chega, nada mais temos a dizer-nos. Vá aprontar-se, e desapareça da corte. O criado tinha entrado e estava do lado de dentro da porta, olhando apreensivamente de um para

o outro. Ele aparentava ser um celta negro das montanhas do oeste; é uma raça que ainda adora os deuses antigos, e é possível que sentisse, em parte, algumas das presenças que rondavam o quarto. Mas, para mim, a moça era apenas uma moça, erguendo para mim um rosto bonito e preocupado, e com o cabelo rosa-dourado descendo pelo vestido cor de cereja. Para o servo à espera, pareceria apenas uma despedida normal, se não fosse pelas sombras aflitivas. Ela nem olhou para o lado dele, nem imaginou o que ele pudesse estar vendo. Quando falou, sua voz era serena, calma e baixa: — Vou ter com a minha irmã. Ela está em York, onde ficará até o casamento. — Providenciarei uma escolta. De acordo com os planos, o casamento ainda terá lugar pe1o Natal. O Rei Lot em breve irá reunir-se a vocês, e lhe dará um lugar na corte de sua irmã. Ela procurou disfarçar o brilho dos olhos a este comentário. Acho que imaginava o que ela ainda pretendia fazer. . . tentar tomar o lugar da irmã ao lado de Lot, mas já estava cansado dela, e disse: — Despeço-me agora, e desejo-lhe uma boa viagem. Ela fez uma mesura, dizendo bem baixinho: — Ainda nos encontraremos novamente, primo. Respondi, formalmente: — Espero que sim. — Então ela se foi, esguia, ereta, mãos cruzadas novamente, e o criado fechou a porta às suas costas. Fiquei ao lado da janela, pondo em ordem os pensamentos. Estava cansado, com os olhos cocando por falta de sono, mas a minha mente estava clara e leve, livre da presença da moça. O ar fresco da manhã veio dispersar a maldade que permanecia no aposento, que afinal desapareceu com o último vestígio do perfume de madressilva. Quando o criado voltou, lavei o rosto e as mãos em água fria, depois, mandando que ele me seguisse, voltei ao dormitório do hospital. O ar de lá era mais limpo, os olhos dos moribundos mais fáceis de suportar que a presença da mulher que estava grávida de Mordred, o sobrinho de Artur e seu filho bastardo.

7 O Rei Lot, estudando a situação, não ficara inativo. Certos amigos seus foram mandados para cá e para lá, dizendo para quem quisesse ouvir que seria mais apropriado que Uther proclamasse o seu herdeiro num dos seus grandes palácios de Londres ou Winchester. Esta pressa, diziam, não ficava bem; a coisa devia ser feita de acordo com o costume, previamente anunciada, com cerimônia, e com a bênção da Igreja. Mas foi tudo em vão. O povo de Luguvallium e o grande número de soldados presentes pensavam diferente. Era óbvio que Uther estava próximo do fim, e era, não apenas necessário, mas adequado, que declarasse o seu sucessor imediatamente, perto do campo onde Artur, de certo modo, tinha-se declarado a si mesmo. Se não houvesse nenhum bispo presente, e daí? Esta era uma comemoração de vitória realizada praticamente no campo da luta. A casa onde se instalara a corte do Rei, em Luguvallium, estava lotada. Do lado de fora, na cidade e nos arredores, as tropas realizavam a sua comemoração, e o ar estava azul de fumaça das fogueiras, e espesso com o cheiro de carne sendo assada. Os oficiais que iam a caminho da festa do Rei tinham que fazer vista grossa para as bebedeiras no acampamento e nas ruas, e ouvidos moucos para os gritinhos e risadas femininas que vinham de locais onde era proibida a presença de mulheres. Ma1 vi Artur o dia inteiro. Pa«sou o dia fechado com o Rei. até a tarde, só o deixando para. permitir que descansasse antes da festa. Passei a maior parte do dia no hospital. Lá estava tudo tranqüilo. em comparação com o movimento nas proximidades dos apartamentos reais. O dia todo os corredores do lado de fora do quarto de Artur e do meu estiveram cheios; era gente que queria favores do novo príncipe, ou apenas a sua atenção; era gente que queria falar comigo, ou que queria agradar-me com presentes; ou era simplesmente gente curiosa. Mandei avisar que Artur estava com o Rei, e que não falaria com ninguém antes da hora da festa. Dei ordens aos guardas para que me chamassem se Lot fosse procurar-me. Mas não fez nenhuma tentativa de aproximação, nem sequer foi visto na cidade, segundo os criados a quem interroguei. Procurei não correr riscos, e de manhã cedinho pedi a Caio Valério, oficial do Rei e antigo conhecido meu, que reforçasse a guarda no lado de fora dos quartos na antecâmara e até nas janelas. E antes de sair para o hospital, dei uma passada no quarto do Rei para falar com Ulfin. Pode parecer estranho que um profeta que previra a coroação de Artur tão claramente, tão cercada de luz, tomasse tantas providências para protegê-lo dos seus inimigos. Mas aqueles que lidaram com os deuses sabem que quando fazem promessas, eles as escondem na luz, e que um sorriso nos lábios de um deus não significa que se pode contar como certos os seus favores. Os homens têm o dever de confirmar. Os deuses apreciam o gosto de sal; o suor do esforço humano é o sabor dos seus sacrifícios. Os guardas de serviço à porta do Rei ergueram as lanças e me deixaram passar diretamente para o quarto externo. Aqui, os pajens e os servos esperavam, enquanto que no segundo quarto ficavam as mulheres que ajudavam a cuidar do Rei. Ulfin permanecia, como sempre, ao lado da porta do quarto do Rei. Pôs-se de pé quando me viu, e conversamos um pouco sobre a saúde do Rei, sobre Artur sobre os acontecimentos da véspera e as expectativas para a noite' falávamos baixo, afastados das mulheres, e eu lhe perguntei: — Sabia que Morgause abandonou a corte? — É, eu soube. Ninguém sabe o motivo.

— Sua irmã Morgiana está em York à espera do casamento— repliquei — e estava ansiosa pela sua companhia. — É, foi o que ouvimos dizer. — A sua fisionomia impassível dava a entender que ninguém tinha acreditado. — Ela veio ver o Rei? — perguntei. — Três vezes. — Ulfin sorriu. Aparentemente, não morria de amores por Morgause. — E todas as três mandaram-na embora porque o príncipe ainda estava com ele. Uma filha privilegiada durante vinte anos, trocada em vinte horas por um filho legítimo. "Você também foi um bastardo", ela me dissera. Lembrei-me que, há muitos anos, eu imaginara o que seria dela. Tinha alguma posição e autoridade, aqui com Uther, e talvez até gostasse dele. Até mesmo, segundo insinuara o Rei ontem, recusara casar-se para permanecer ao seu lado. Talvez eu tivesse sido severo demais com ela, insuflado pelo horror que previa, e pelo meu amor sincero pelo rapaz. Hesitei, depois indaguei de Ulfin: — Ela parecia muito aflita? — Aflita? — replicou Ulfin vivamente. — Não, parecia zangada. Não gosta de ser contrariada, aquela senhora. Sempre foi assim desde menina. Uma das suas criadas também estava chorando; acho que foi açoitada. — Indicou um dos pajens, muito louro e jovem, que estava à janela. — Foi ele que a mandou embora da última vez, e ela arranhou-lhe o rosto. — Ele que tome cuidado para que não infeccione — falei, com tal tom de voz que Ulfin olhoume indagadoramente. Assenti. — É, fui eu quem a mandou embora. E ela não foi de boa vontade. Um dia, você saberá por quê. Está dando uma espiada no Rei, de vez em quando? A entrevista não o está cansando? — Pelo contrário, está tão bem como há muito não o via. Parece que o rapaz é um poço no qual ele está bebendo; o Rei não tira os olhos dele e parece que fica mais forte a cada hora que passa. Vão almoçar juntos. — Provarão antes a comida? Foi isso que vim perguntar. — É claro. Fique descansado, meu senhor. O príncipe estará em segurança. — O Rei precisa descansar um pouco antes da festa. Ele assentiu. — Já o convenci a dormir à tarde, depois do almoço. — Tente convencer (o que será mais difícil) o príncipe a fazer o mesmo. Ou, ao menos, a ir para o seu quarto e ficar lá até a hora do banquete. Ulfin ficou indeciso. — Será que vai concordar? — Se lhe disser que a ordem, melhor dizendo, o pedido foi meu. — Farei isso, meu senhor. — Estarei no hospital. Mandará chamar-me, é lógico, se o Rei precisar de mim. Mas, de qualquer modo, mande que me avisem no minuto em que o príncipe saia. O pajem louro trouxe o recado mais ou menos no meio da tarde. O Rei estava descansando, disse, e o príncipe tinha ido para o seu quarto. Quando Ulfin dera o meu recado ao príncipe, ele tinha

amarrado a cara e dito de mau humor (esta parte foi dita verbatim) que não ia ficar o resto do dia dentro de casa droga nenhuma. Mas quando Ulfin dissera que o pedido fora feito pelo Príncipe Merlin. o príncipe dera de ombros e fora para o seu quarto sem mais palavra. — Então, eu também vou — falei. — Mas. primeiro, deixe-me cuidar deste rosto arranhado. — Depois que passei um pouco de pomada nele, mandei-o de volta a Ulfin. e fui para os meus aposentos através dos corredores cheios. Artur estava perto da janela. Virou-se ao ouvir-me entrar. — Bedwyr está aqui. sabia? Eu o vi, mas não pude aproximar-me. Mandei um recado para ele, para nos encontrarmos à tarde para andar a cavalo. Agora, diz que não posso. — Sinto muito. Terá tempo para conversar com Bedwyr em melhores circunstâncias. — Santo Deus, as atuais são horríveis! Este 1uear me sufoca. O que quer de mim aquela matilha aí fora no corredor? — O que a maioria quer do seu príncipe e futuro Rei. É bom se acostumar. — É o que parece. Há até um guarda do lado de fora da janela. — Eu sei. Fui eu quem mandou botá-lo aí. — E em resposta ao seu olhar: — Você tem inimigos, Artur. Estou sendo bem claro? — Vou ficar sempre assim, controlado, sitiado? Pareço um prisioneiro. — Depois que for reconhecido como Rei, poderá tomar as suas próprias providências. Até lá, precisa ser protegido. Isto aqui é só um acampamento de emergência; uma vez na capital, ou numa das fortalezas, você se cercará das pessoas que escolher. Poderá ver Bedwyr quantas vezes quiser, e Cei, ou outro qualquer. Você terá liberdade, a liberdade que puder permitir-se. Nem eu nem você poderemos voltar de novo à Floresta Agreste, Emrys. Isto já acabou. — Lá era melhor — disse, depois lançou-me um olhar meigo e sorriu. — Merlin. — O que é? Começou a dizer algo, mudou de idéia, balançou a cabeça e falou abruptamente: — Na festa de hoje. Você vai estar perto de mim? — Com toda a certeza. — O Rei me contou como vai apresentar-me aos nobres. Sabe o que vai acontecer? Os inimigos de quem fala. . . — Tentarão impedir que a assembléia o aceite como herdeiro de Uther. Ele meditou um breve minuto. — Podem usar armas no átrio? — Não. Tentarão de outro jeito. — Sabe qual? — Não podem negar a sua origem na cara do Rei — respondi — e não podem duvidar da sua identidade na minha presença e na do Conde Ector. Podem apenas tentar desacreditá-lo: fazer vacilar a fé dos indecisos, e tentar modificar o voto do exército. O azar dos seus inimigos é que estamos numa assembléia em que o exército supera o conselho de nobres numa proporção de três para um... e, depois

de ontem, vai ser preciso um bocado para convencer o exército de que você não é digno de liderá-los. Minha opinião é de que há algo preparado, algo que pegue os homens de surpresa e abale a sua confiança em você, e até em Uther. — E em você, Merlin? — É a mesma coisa — sorri em resposta. — Desculpe, não consigo ver mais que isto. Vejo morte e escuridão, mas não para você. Não disse mais nada. Ele ficou em silêncio, olhando para mim, depois assentiu, como se eu lhe tivesse respondido à pergunta, e indagou: — Quem são esses inimigos? — São liderados por Lot de Lothian. — Ah — falou, e vi que os seus sentidos não tinham sido enganados nas horas curtas do dia tão cheio. Ele vira e ouvira, escutara e observara. — E Urien, que o acompanha, e Tudwal de Dinpelydr, e ... de quem é a insígnia verde com o carcaju? — De Aguisel. O Rei comentou com você sobre esses homens? Fez que não com a cabeça. — Falamos foi sobre o passado. É claro que você e Ector já lhe tinham contado tudo a meu respeito, nesses anos todos, e — ele riu — acho que nenhum filho sabe mais que eu sobre o pai e o pai do seu pai, com tudo que você me contou; mas contar não é a mesma coisa. Tínhamos muito que conhecer um do outro. Continuou a contar a sua entrevista com Uther, falando sem mágoa dos anos perdidos, falando com o senso prático que fazia parte do seu caráter. Isto não herdara de Uther; herdara de Ambrósio e de mim, e os homens achavam que era frieza. Artur procurara não se envolver com os fatos da sua infância; ele avaliara tudo o que acontecera, e, deixando os sentimentos de lado, chegara até a verdade com a clarividência que faria dele um rei. Quando falou na mãe, era evidente que via as coisas do mesmo modo que Ygraine, com a mesma objetividade dura. — Se tivesse sabido que a minha mãe ainda vivia, e que concordara de boa vontade em separar-se de mim, teria ficado muito chocado em criança. Mas você e Ector pouparam-me este sofrimento dizendo-me que ela tinha morrido, e agora vejo a situação do mesmo modo que ela viu; que, para ser um príncipe, deve-se ser governado sempre pela necessidade. Ela não abdicou de mim à toa. — Ele sorriu, mas sua voz estava séria. — O que lhe disse é verdade. Foi melhor para mim ficar na Floresta Agreste, achando que não tinha mãe e que era seu bastardo, do que ficar no castelo do meu pai, esperando todos os anos que a Rainha tivesse outro filho que iria tomar o meu lugar. Eu nunca vira as coisas por este prisma, em todos esses anos. Estivera ofuscado pelos meus motivos importantes, pensando na sua segurança, no futuro do reino, na vontade do deus. Até que o menino Emrys surgisse na minha vida, naquela manhã, na Floresta Agreste, ele não era uma pessoa para mim, somente um símbolo, como se fosse outra vida para meu pai, um instrumento para mim. Depois de conhecê-lo e amá-lo, percebi apenas as coisas de que o tínhamos privado, com o seu gênio forte e a sua ambição de ser sempre o primeiro e o melhor, e a sua pronta generosidade e afetividade. Não adiantava dizer a mim mesmo que, sem mim, ele nunca teria tido a sua herança; eu vivia com sentimento de culpa por tudo de que ele fora privado. Ele sentira a privação, o ferrão do despojamento. Mas, agora, no momento em que se encontrava a si mesmo, ainda conseguia enxergar claramente o que teria significado uma infância principesca. Sabia que ele estava certo. Mesmo sem contar os perigos diários teria encontrado dificuldades ao lado

de Uther, e as suas grandes qualidades talvez se tivessem deteriorado, estragadas pelo tempo e pela esperança adiada. E agora me absolvera. A minha culpa me abandonava, como a névoa abandona o pântano tangida pelo vento. Ainda estava falando do pai. — Eu gosto dele. Foi tão bom rei quanto a sua natureza permitiu. Tenho sido criado longe dele, tenho podido ouvir os comentários, e julgar. Mas, como pai... como nos teríamos entendido, isto já é outra história. Ainda há tempo de conhecer a minha mãe. Ela necessitará de consolo muito breve, acho. Referiu-se a Morgause apenas uma vez. — Dizem que ela deixou a cidade. — Partiu hoje de manhã, quando você estava com o Rei. — Falou com ela? Como reagiu? — Sem demonstrar aflição — respondi, dizendo a verdade absoluta. — Você a mandou embora? — Aconselhei-a para que se fosse. Como o aconselho a esquecer o assunto. Pelo menos no momento, não há nada a fazer. A não ser, sugiro eu, dormir. O dia foi duro, e vai ser ainda mais duro para nós dois antes de terminar. Sendo assim, se conseguir esquecer o povo aí fora e os guardas à janela, sugiro que nós dois durmamos até o crepúsculo. Ele deu um bocejo grande, de repente, como um gato novo, depois riu. — Já me pôs um feitiço para ter certeza? Parece que eu podia dormir uma semana... Está bem, farei como quer, mas posso mandar um recado para Bedwyr primeiro? Não falou de novo em Morgause, e acho que esqueceu-se dela nos preparativos finais para a festa da noite. O olhar angustiado que tinha pela manhã já o abandonara, e não parecia ser incomodado por sombra alguma; a dúvida e a apreensão ter-se-iam evaporado de sua juventude fresca e brilhante como gotas de água do metal incandescente. Mesmo que soubesse, como eu sabia, o que o futuro prometia (que era bem maior do que ele imaginava, e com um final bem mais terrível) nada teria afetado a sua alegria. Quando se tem quatorze anos, a morte aos quarenta parece tremendamente distante. Uma hora após o pôr-do-sol, vieram buscar-nos para conduzir-nos ao local da festa.

8 O salão estava lotado. Se o lugar já parecia estar cheio antes, que dirá na hora que os clarins anunciaram a festa: mal havia lugar para respirar nos corredores; parecia que até aquelas paredes bem construídas pelos romanos iriam desmoronar ante a pressão do povo excitado. O boato se espalhara, como fogo pela floresta, que esta não seria apenas uma comemoração da vitória, e, vindo de vinte ou trinta milhas de distância, o povo se comprimia em Luguvallium para estar presente à grande ocasião. Seria impossível examinar e selecionar os seguidores dos nobres privilegiados que ficariam no salão principal onde o Rei tomaria lugar. Neste tipo de festa, esperava-se que os homens deixassem as suas armas do lado de fora, e isto foi exigido, fazendo com que a antecâmara parecesse um bosque da Floresta Agreste, com moitas de lanças e espadas. Os guardas nada mais podiam fazer, além de darem uma olhada em cada homem que entrava, para ver se ele levava apenas a faca ou o punhal que precisava para comer. Quando todos estavam reunidos, o céu já escurecera, e as tochas foram acesas. Dentro em breve, com a luz enfumaçada das tochas e a noite agradável, a comida e o vinho e a conversa e as risadas, o local tornou-se demasiado quente, e pus-me a observar o Rei, com ansiedade. Ele parecia bem alegre, mas estava meio afogueado, e a sua pele tinha uma aparência vidrada e transparente, que eu já observara antes em homens que tinham alcançado o limite máximo das suas forças. Ele, porém, controlava-se perfeitamente, conversando com Artur à sua direita de modo alegre e cortês, assim como os demais à sua volta, embora, às vezes, se calasse e desse a impressão de estar muito longe, voltando a si de repente, com um sobressalto. Num dado momento, perguntou-me (eu estava sentado à sua esquerda) se sabia por que Morgause não tinha ido vê-lo naquele dia. Não estava preocupado, nem muito interessado; era óbvio que não tinha percebido que ela deixara a corte. Disse-lhe que ela quisera ir ter com a irmã, em York, e, desde que o Rei não pudera atendê-la, eu mesmo dera-lhe permissão e providenciara uma escolta para ela. Acrescentei, depressa, que o Rei não precisava temer por sua saúde, porque eu cuidaria dele pessoalmente. Ele anuiu e agradeceu, mas como se a minha ajuda não fosse mais ser necessária. — Hoje, tive os melhores médicos do mundo: a vitória, e este rapaz ao meu lado. — Pôs a mão no braço de Artur, e riu. — Ouviu do que os cães saxões estavam me chamando? O Rei semimorto. Eu ouvi os gritos deles quando era carregado na cadeira. . . E acho que realmente o era, mas agora tenho tanto a vitória quanto a vida. Falara com clareza, e os homens inclinaram-se para escutar, e depois deram murmúrios de aprovação, enquanto o Rei voltou a brincar com a comida. Tanto Ulfin quanto eu tínhamos avisado ao Rei que ele devia comer e beber com moderação, mas o conselho foi desnecessário; ele tinha pouco apetite, e Ulfin providenciou para que o seu vinho estivesse bem aguado. Assim como o de Artur. Ele sentava-se ao lado do pai, as costas retas, e a tensão e a excitação deixavam seu rosto um pouco sem cor. Pela primeira vez, parecia não prestar atenção na comida. Falava pouco, somente quando lhe dirigiam a palavra, respondendo apenas por cortesia. Ficou calado a maior parte do tempo, de olho na multidão ao redor do trono. Eu, que o conhecia, sabia o que ele estava fazendo; estava verificando cara por cara, brasão por brasão, os homens presentes, e reparando onde eles estavam sentados. Reparando, também, nas suas fisionomias. Esta cara era hostil, aquela amistosa, esta indecisa e pronta para subordinar-se às promessas de poder e lucro, aquela era tola, ou apenas curiosa. Eu também lia claramente nas fisionomias, como se fossem pedras vermelhas e brancas num tabuleiro, mas, para um moço que ainda não chegara aos quinze anos, e numa ocasião de tanta tensão, eram impressionantes

este autocontrole e esta observação. Anos mais tarde, ele ainda era capaz de dizer exatamente quem estava a seu favor, ou contra ele, na primeira noite do seu poder. O olhar frio só se suavizou e demorou duas vezes: ao pousar em Ector, não muito distante de nós, o bom Ector, digno de confiança, que sorria de olhos úmidos para o filho adotivo, todo enfeitado e resplandecente, de branco e prateado, sentado ao lado do Rei. Cei, ao seu lado, não parecia muito entusiasmado, mas Cei tinha um rosto estreito e sobrancelhas baixas que davam até ao seu entusiasmo uma aparência de má vontade. Mais embaixo, ao lado do pai, Rei Ban de Benoic, sentava-se Bedwyr, com o rosto pouco atraente afogueado, e com a alma nos olhos. Os olhos dos dois rapazes encontravam-se e tornavam a encontrar-se durante o banquete. Aqui, já estava sendo tecido o padrão do novo reinado. O banquete continuou. Eu olhava para Uther com atenção, temendo que ele não durasse até a proclamação ser feita e tudo terminar, temendo que lhe faltassem as forças para tal. Neste caso, eu teria de escolher o momento apropriado para intervir, ou teria que haver luta. Mas ele teve forças. Finalmente, olhou em volta e ergueu a mão e os clarins pediram silêncio. O barulho cessou, e todos os olhos voltaram-se para a mesa alta. Ela tinha sido alteada de propósito, pois o Rei não tinha forças para ficar de pé. Assim mesmo, ereto na sua cadeira, com as luzes e as bandeiras às suas costas, ele estava alerta e esplêndido, impondo silêncio. Segurou os braços trabalhados do trono, e começou a falar. Estava sorrindo. — Senhores, todos sabem por que estamos aqui reunidos hoje. Colgrim foi posto em fuga, assim como seu irmão Badulf, e já temos notícias de que o inimigo fugiu desordenadamente para a costa, voltando às terras selvagens para lá do norte. — Falou da vitória da véspera, que ele considerava tão decisiva quanto o fora a vitória do seu irmão em Kaerconan, e um presságio igualmente promissor para o futuro. — O poder dos nossos inimigos, que estivera se avolumando por tantos anos, e sempre nos ameaçando, foi destruído e rechaçado, por algum tempo. Vamos ter uma pausa para respirar. Mais importante que isto, senhores, vimos como esta pausa foi conquistada; vimos o que a unidade pode fazer, o que podemos fazer com ela. Sozinhos, que podíamos fazer, os reis do norte, os reis do sul e do oeste? Juntos, porém, unidos, lutando sob um chefe e com um plano, podemos enfiar a espada de Macsen de novo no coração do inimigo. Ele falara figurativamente, é claro, mas notei o pequeno sobressalto de Artur, a sua olhadela rápida na minha direção, antes de voltar a perscrutar o salão. O Rei fizera uma pausa. Ulfin, atrás dele, aproximou-se com uma taça de vinho, que o Rei recusou, continuando a falar. Sua voz estava mais forte, parecia quase ter o vigor antigo. — Esta é a lição que os últimos anos nos ensinaram. É preciso que haja um só chefe, um Grande Rei a quem todos os reinos prestem homenagens. Sem isto, voltamos aos tempos anteriores à chegada dos romanos. Estamos divididos e perdidos, como a Gália e a Alemanha foram divididas e perderam-se; desdobramo-nos em povos pequenos, brigando como lobos por alimento e espaço, nunca enfrentando o inimigo comum; passamos a ser uma província submersa de Roma, acompanhando-a na sua queda, em vez de emergir como um novo reino, uma unidade com o seu povo, os seus deuses Com o Rei certo, seguido fielmente, isto acontecerá. Quem sabe o Dragão da Inglaterra possa ser erguido, talvez tão alto quanto as Águias de Roma, com um orgulho e uma visão que serão admirados de muito longe? O silêncio era absoluto. Podia ter sido Ambrósio falando, ou o próprio Máximo. Assim falam os deuses quando se espera por eles. Desta vez a pausa foi maior. O Rei planejara que ela fosse uma pausa de orador, para atrair olhares, mas percebi como as suas mãos estavam brancas nos braços do trono, como ele utilizou a pausa para recuperar as forças. Pensei ter sido o único a reparar; ninguém olhava para Uther, todos

observavam o rapaz à sua direita. Quer dizer, todos menos o Rei de Lothian; ele observava com atenção o Grande Rei, com a ansiedade estampada na face. Ulfin, à nova pausa do Rei, voltou a oferecer-lhe vinho; percebeu o meu olhar, levou a taça aos seus próprios lábios, provou, depois deu-a ao Rei, que bebeu. Não havia como disfarçar o tremor da sua mão ao levar a taça à boca, mas, antes que pudesse revelar mais ainda a sua fraqueza, Ulfin tirou-a dele, gentilmente. Tudo isto, percebi, Lot acompanhara com a mesma ansiedade concentrada. Ele percebia o quanto Uther estava mal, e a cada minuto ele esperava que o Grande Rei perdesse as forças. Ou Morgause lhe contara, ou ele adivinhara aquilo que eu sabia que certamente iria acontecer: Uther não viveria o suficiente para colocar Artur no trono, fisicamente, e na balbúrdia subseqüente os inimigos do jovem buscariam a sua oportunidade. Quando Uther recomeçou a falar, sua voz tinha perdido muito do vigor, mas o silêncio era tão completo que ele nem teve necessidade de levantá-la. Até os que tinham bebido demais demonstravam uma atenção solene ao ouvir o Rei falar novamente sobre a batalha, sobre os que se destacaram, sobre os que morreram nela; finalmente, sobre o papel que Artur desempenhara no triunfo, sobre Artur em si. — Vocês todos sempre souberam que durante todos esses anos o meu filho e de minha Rainha Ygraine crescia e era treinado para governar em outras terras, orientado por mãos mais fortes que as minhas, que enfraqueceram com a minha enfermidade. Sempre souberam que, quando chegasse a hora, e ele estivesse crescido, ele seria proclamado, Artur, meu herdeiro e seu novo Rei. Agora, que todos saibam onde o seu príncipe legítimo passou os anos da sua infância; primeiramente, sob a proteção de meu primo Hoel da Bretanha, depois na casa de meu fiel servidor e companheiro de armas, Conde Ector de Galava. E durante todo esse tempo, ele foi protegido e orientado por meu parente Merlin, chamado Ambrósio, em cujas mãos ele foi entregue ao nascer, e de cuja integridade como tutor ninguém pode duvidar. Como ninguém duvidará dos motivos que me levaram a afastar o príncipe até a hora apropriada de mostrá-lo publicamente aos senhores. É um hábito comum entre os grandes o de criar seus filhos em outras cortes, onde possam crescer sem tornar-se arrogantes, sem serem corrompidos pela lisonja, e a salvo das maquinações de traidores e ambiciosos. — Parou um pouco para recuperar o fôlego. Ele falava olhando para a mesa, sem encarar ninguém, mas, aqui e ali, um homem mexeu-se nervosamente na cadeira, e trocou olhares com outro; Artur não deixou de perceber. O Rei prosseguiu: — E aqueles de vocês que queriam saber qual o esquema que se usa no treinamento de um príncipe, além de mandá-lo para a, luta, ainda menino, e para a assembléia ao lado do pai, viram no dia; de ontem como ele recebeu a espada do Rei das mãos do Rei, com facilidade, e como conduziu as tropas para a vitória como se fosse o próprio Grande Rei, e um guerreiro experimentado. Uther respirava com dificuldade, sua cor estava bem feia. Percebi os olhos atentos de Lot, o ar preocupado de Ulfin. Cador estava de cenho franzido. Lembrei-me, satisfeito, da conversa que tivera com ele à margem do lago. Cador e Lot: se Cador não fosse tão filho do pai, como teria sido fácil para os dois ter dilacerado o país de norte a sul, ter dividido a terra entre eles como um par de cães de briga, enquanto o cãozinho sem terra gania esfomeado. — E, assim, — disse o Grande Rei, e, no silêncio, a sua respiração ofegante tornava-se horrivelmente nítida — apresento-lhes o meu filho único e legítimo, Artur, chamado Pendragon, que será o Grande Rei após a minha morte, e que usará a minha espada em batalha de agora em diante. Estendeu a mão para Artur, e o rapaz ficou de pé, ereto e sem sorrir, enquanto «os gritos e as aclamações subiam até o teto enfumaçado. O barulho deve ter sido ouvido pela cidade inteira. Quando os homens pararam para respirar, os ecos da aclamação ressoaram pelas ruas, percorrendo-as como o fogo percorre o restolho num dia seco. Os gritos eram de aprovação, de alívio porque as coisas estavam

finalmente esclarecidas, e de alegria. Eu percebi que Artur, perfeitamente impassível, avaliava quem demonstrava o quê. Mas, de onde eu estava, podia também ver a veia que pulsava sob o maxilar rígido. Ele parecia um espadachim que descansava após uma vitória, mas que estava alerta para um próximo desafio. E ele chegou. Acima da gritaria, e do bater dos copos nas mesas, destacou-se a voz de Lot, áspera e arrebatada. — Eu contesto a escolha, Rei Uther! Foi como jogar um pedregulho no meio de um curso dágua. O barulho cessou; os homens se entreolhavam, resmungavam, mexiam-se inquietos e olhavam ao seu redor. De repente, foi como se o curso dágua se tivesse dividido. Ainda havia quem aclamasse Artur e a escolha do Rei, mas já se ouviam gritos de "Lothian! Lothian!", e a voz de Lot continuava firme: — Um rapazola inexperiente? Um rapaz que só enfrentou uma batalha? Eu lhes digo, Colgrim não demorará a voltar, e vai encontrar-nos com um rapaz como chefe? Se precisa entregar a sua espada, Rei Uther, entregue-a a um chefe experiente e amadurecido, que fará bom uso dela até a hora de entregá-la a este mocinho, quando ele for adulto! — Terminou a contestação batendo com o punho cerrado na mesa, e à volta, o clamor recomeçou: "Lothian! Lothian!", e mais abaixo, outros gritos eram ouvidos, aumentando a confusão: "Pendragon!" e "Cornwall" e até "Artur!". Enquanto o clamor aumentava, via-se que só o fato de os homens estarem desarmados impedia que outras coisas além de insultos fossem trocadas no salão. Os criados estavam encostados às paredes, e os camareiros iam e vinham, pálidos, procurando acalmar os ânimos. O Rei, o rosto cor de cinza, ergueu a mão, mas o gesto passou quase despercebido. Artur nem se mexera nem falara, mas empalidecera. — Meus senhores! Meus senhores! — Uther estava tremendo de raiva, e a raiva era tão perigosa para ele quanto um golpe de lança. Percebi que Lot também sabia disso. Botei a mão no braço de Uther. — Tudo vai sair bem — disse eu, com suavidade. — Fique calmo e deixe que eles gritem à vontade. Veja, Ector vai falar. — Senhor meu Rei! — A voz de Ector era amistosa, esperta, casual, e acalmou um pouco o ambiente. Falou como se estivesse se dirigindo unicamente ao Rei. O efeito foi notável; fez-se silêncio, enquanto os homens esforçavam-se por ouvi-lo. — Senhor meu Rei, o Rei de Lothian contestou a sua escolha. Ele tem o direito de falar, como todos os seus súditos têm o direito de falar perante o senhor, mas não o direito de contestar, nem sequer de debater, o que foi dito hoje. — Aumentando um pouco a voz, virou-se para a audiência. — Meus senhores, isto não é uma questão de escolha ou de eleição; o rei gera o seu herdeiro, não o escolhe, e quando tivemos a felicidade de saber que o nosso rei gerou um herdeiro como esse, o que há para debater? Olhem para ele, para este príncipe que lhes foi apresentado. Ele esteve na minha casa durante dez anos, e eu, senhores, que o conheço bem, digo-lhes que é um príncipe para ser seguido, não mais tarde, "quando for adulto", mas agora. Mesmo se eu não estivesse aqui para autenticar a sua origem, bastaria que olhassem para ele e que se recordassem do dia de ontem para saber que aqui, com muita sorte e com a bênção de Deus, temos o nosso Rei de fato e de direito! Este ponto não está aberto a contestação, nem a debate. Olhem para eles, senhores, e lembrem-se de ontem! Quem mais digno de unificar os reis de todos os cantos da Inglaterra? Quem mais digno de manejar a espada do pai? Houve gritos de "É verdade! É verdade!" e "Não há dúvida alguma, ele é Pendragon, e, portanto, nosso Rei!" e uma babel de vozes ainda mais alta e confusa que antes. Por um instante, recordei as assembléias de meu pai, seu poder e sua ordem; depois, percebi de novo como Uther tremia, cor de cinza no seu trono. Os tempos eram outros; ele tinha que ter feito a coisa deste modo; não poderia impor

o rapaz .a não ser por aclamação pública. Antes que ele pudesse falar, Lot pôs-se de pé novamente. Já não gritava, falava pausadamente, com ar razoável e com uma me-sura cortês para Ector. — Eu não contestava a origem do príncipe, e sim a capacidade de um jovem inexperiente para chefiar-nos. Sabemos que a batalha de ontem foi apenas a preliminar, o primeiro passo de uma luta maior e pior do que a que o próprio Ambrósio enfrentou, um conflito como nunca se viu desde os dias de Máximo. Precisamos de uma liderança melhor do que a demonstrada numa escaramuça, em dia de sorte. Necessitamos, não de um auxiliar de um rei doente, mas de um homem investido com autoridade e a bênção divina de um governante ungido. Se este jovem príncipe for realmente digno de usar a espada do pai, por que o seu pai não abre mão dela em seu favor, aqui na nossa presença? Silêncio de novo, durante três segundos. Todos ali sabiam o que significaria a entrega formal da espada real: seria a abdicação. De todos os homens presentes, somente eu, e talvez Ulfin, sabia que não tinha importância que Uther abdicasse ou não; Artur seria Rei antes do fim da noite. Uther, porém, não sabia, e, mesmo consciente da sua fraqueza, teria ele a grandeza de renunciar publicamente ao poder que fora toda a sua vida? Nem eu sabia. Ele estava sentado bem ereto, aparentemente impassível, e só quem estivesse tão perto dele quanto eu estava, notaria o tremor que sacudia o seu corpo de vez em quando, fazendo a luz tremular no círculo dourado que circundava a sua testa, e tremer nas jóias que usava nos dedos. Levantei-me da cadeira devagar e fui ficar bem perto dele, ao seu lado esquerdo. Artur, de cenho franzido, olhou-me inquisidoramente. Balancei a cabeça. O Rei umedeceu os lábios, hesitante. A mudança de atitude de Lot o intrigara, como intrigara os demais presentes. Mas também trouxera alívio aos indecisos, aos que temiam a idéia de rebelião, e que encontraram alívio para seu medo do futuro no seu ar razoável e na sua deferência para o Grande Rei. Houve murmúrios de aprovação e concordância. Lot abriu bem as mãos, como a incluir todos os presentes, e falou, com ar de quem falava por todos. — Meus senhores, se presenciássemos a entrega da espada real feita pelo Rei, com as suas próprias mãos, ao seu herdeiro escolhido, que poderíamos fazer senão reconhecê-lo? Mais tarde, haverá tempo de sobra para discutir como vamos enfrentar as guerras que virão. Artur virou de leve a cabeça, como um cão que fareja algo estranho. Ector também olhou para o outro, surpreso e desconfiado com a aparente capitulação. Cador, calado no outro lado da sala, olhou para Lot como se quisesse arrancar-lhe a alma pelos olhos. Uther inclinou a cabeça de leve, um gesto de abnegação que lhe assentou maravilhosamente. — Estou de acordo. Um camareiro saiu correndo. Uther reclinou-se na cadeira, sem aceitar o vinho que, novamente, Ulfin lhe oferecia. Tomei-lhe o pulso, disfarçadamente; parecia um pulso de gafanhoto, numa munheca frágil e fibrosa, que antes fora só nervos e músculos. Seus lábios estavam secos, e a língua veio umedecê-los. Falou baixinho: — Há algum truque nisto, mas não sei qual é. Você sabe? — Ainda não. — Ele não tem muitos seguidores. Nem no exército, depois de ontem. Mas agora. . . você talvez tenha que interferir. Eles não querem fatos, nem promessas. Você sabe que o que eles querem é um sinal. Não pode dar-lhes um? — Não sei. Ainda não. Os deuses chegam quando chegam.

Artur percebera os sussurros. Estava tenso como um arco re-tesado. Olhou para o outro lado do salão, e percebi que a sua boca relaxou-se levemente. Acompanhei o seu olhar. Era Bedwyr, roxo de ódio, que o pai prendia à força na cadeira. Se não fosse por isso, acho que ele teria avançado em Lot. O camareiro veio correndo, trazendo nas mãos a espada embainhada do Rei. Os rubis do cabo brilhavam malignamente. A bainha era folheada em prata, trabalhada em ouro e pedras preciosas. Todos os presentes já a tinham visto centenas de vezes com Uther. O homem colocou-a na mesa, na frente do Rei. A mão magra de Uther dirigiu-se para o cabo, os dedos acomodando-se a ele de moto próprio, quase que com carícia, segurando-a com a firmeza do bom guerreiro. Artur observava, intrigado. Ele estava pensando na espada da pedra, lá na Floresta Agreste, tentando encaixá-la nesta cena de abdicação formal. Mas eu, sentindo o fogo dos grandes rubis queimarem de encontro aos meus olhos, soube afinal o que os deuses estavam fazendo. Estava claro desde o começo, fogo e a estrela-dragão e a espada na pedra. E a mensagem não vinha da fumaça do deus de dois sorrisos, estava clara como a chama do rubi. A espada de Uther falharia, como ele próprio falhara. Mas a outra não falharia. Ela viera por água e por terra e estivera à espera disto, de dar a Artur o seu reino, de ajudá-lo a conservar e proteger o seu reino, para depois desaparecer da vista dos homens para todo o sempre... O Rei segurou com firmeza o cabo e desembainhou a espada. — Eu, Uther Pendragon, com este penhor, dou a Artur, meu filho... Todos prenderam a respiração, depois a balbúrdia começou. Homens gritavam, cheios de medo: — Um sinal! Um sinal! — Alguém berrou: — Morte! Significa morte! — e os murmúrios recomeçaram: — Que podemos esperar de um país destruído, de um rei aleijado e de um rapazinho sem espada? Quando a espada saiu da bainha, Uther conseguiu pôr-se de pé. Ele a erguera, e olhava para ela de boca aberta, muito pálido, com jeito de quem perdera o juízo. A espada estava quebrada. A um palmo da ponta, o metal se partira de forma irregular, e via-se a ruptura claramente à luz das tochas. O Rei não disse nada; era como se quisesse falar, mas estivesse engasgado com as palavras. A espada caiu ao chão com barulho. Suas pernas cederam e Ulfin e eu o recolocamos com cuidado na cadeira. Artur, com a rapidez de um gato montanhês, veio inclinar-se sobre ele: — Senhor? Senhor? Ele ergueu-se devagar, de olhos fitos em mim. Não havia necessidade que eu lhe dissesse o que todos no salão estavam vendo, Uther estava morto.

9 Uther morto foi mais eficaz que Uther moribundo para controlar o pânico que se espalhou pelo salão. Cada homem ficou de pé, calado e parado, olhando o Grande Rei ser colocado delicadamente contra o encosto da cadeira. No silêncio, as chamas das tochas farfalhavam como seda, e a taça que Ulfin deixara cair rolava num meio círculo pelo chão. Inclinei-me sobre o Rei morto, e fechei-lhe os olhos. Então, ouviu-se a voz de Lot, vigorosa e controlada: — É realmente um sinal! Um rei morto e uma espada quebrada! Ainda afirma, Ector, que Deus indicou este menino para chefiar-nos contra o invasor saxão? É realmente uma terra mutilada, esta, se só temos entre nós e o terror um menino com uma espada quebrada! Nova confusão. Homens gritando, entreolhando-se, olhando ao redor com medo e assombro. Parte da minha mente observou, friamente, que Lot não ficara surpreso. Artur, com os olhos brilhando num rosto ainda mais pálido de choque, ergueu-se do lado do corpo do pai e virou-se para enfrentar a gritaria, mas eu disse depressa: — Não. Espere — e ele obedeceu. Mas já segurava o punhal com força, com as juntas da mão embranquecendo. Acho que ele nem sentia o que estava fazendo, e, mesmo que sentisse, não poderia refrear-se. O tumulto de assombro e medo chocava-se contra as paredes, vibrando como ondas ao vento. A voz de Ector destacou-se da comoção de novo, áspera e abalada, mas firmemente casual como antes, afastando as teias do medo supersticioso como uma vassoura afastando as teias de aranha. — Meus senhores! Que é isto! Nosso Grande Rei está morto, bem em frente dos nossos olhos. Como vamos opor-nos à sua vontade expressa, quando seus olhos ainda mal se fecharam? Todos vimos o que causou a sua morte, a vista da espada real, que ontem estava perfeita, quebrada dentro da bainha. Vamos deixar que este... "acidente" — falou a palavra significativamente — nos amedronte como crianças, impedindo-nos de fazer o que devemos? Se querem um sinal, aí está. — Apontou para Artur, reto como um pinheiro ao lado da cadeira do Rei morto. — Um rei cai, outro está pronto para ocupar seu lugar. Deus enviou-o, hoje, para isso. É preciso que o aceitemos. Uma pausa, cheia de murmúrios, enquanto os homens se entreolhavam. Muitos acenos e gritos de concordância, mas, aqui e ali, fisionomias indecisas, e a pergunta: — Mas, e a espada? E a espada partida? Ector continuou, com firmeza: — O Rei Lot disse que a espada partida era um sinal. Sinal de quê? Eu digo que de traição! A espada não se quebrou nas mãos do Grande Rei, nem na do seu filho. — É verdade — falou outra voz, energicamente. O pai de Bedwyr, o Rei de Benoic, pôs-se de pé. — Todos nós a vimos perfeita, na batalha. E como foi bem usada, Santo Deus! — Mas, e depois? — As perguntas choviam de todo canto. — E então? Será que o Rei teria mandado buscá-la se soubesse que estava quebrada? — De um interlocutor invisível na confusão: — Será que o Rei teria consentido em entregá-la ao menino, se ela não estivesse perfeita? — E outra voz, que julguei ser de Urien: — Ele sabia que estava morrendo. Ele entregou a terra mutilada juntamente com a espada partida. Cabe agora ao mais forte assumir a governança. Ector, ruborizado, interrompeu de novo:

— Falei a verdade quando falei em traição! Em boa hora o Grande Rei nos apresentou o seu herdeiro, ou a Inglaterra seria mesmo mutilada, dilacerada por cães desleais como você, Urien de Gore! Urien gritou de raiva, e levou a mão ao punhal. Lot disse qualquer coisa, vivamente, acobertado pelo tumulto, e ele acalmou-se. Lot sorria, com os olhos apertados e vigilantes. Falou suavemente: — Todos sabemos que o Conde Ector tem interesse em proclamar seu pupilo Grande Rei. Nova pausa, pesada. Vi que Ector olhava em volta, como que a pedir que uma espada surgisse do ar. A mão de Artur apertou mais forte o cabo do punhal. De repente, houve uma movimentação no lado direito do aposento, onde encontravam-se Cador e seus homens. O Javali Branco de Cornwall distendiase e encolhia-se na sua manga, quando ele se movia. Pediu silêncio, e conseguiu. Lot virou a cabeça, depressa; era evidente que ele não sabia o que esperar. Ector controlou-se e procurou acalmar-se. Por toda parte eu vi que os amedrontados, os vacilantes, os oportunistas olhavam para Cador, esperando uma indicação da atitude que deveriam tomar. A voz de Cador era clara e completamente despida de emoção. — O que Ector diz é verdade. Eu mesmo vi a espada do Grande Rei após a batalha, quando seu filho a devolveu. Estava inteira e perfeita, suja com o sangue dos inimigos. — Então, como é que apareceu quebrada? Foi traição? Quem a quebrou? — Quem seria? — indagou Cador. — Não os deuses, com certeza, não importa o que pense o Rei Lot. Os deuses não quebram as espadas dos reis que favorecem com a vitória. Eles dão espadas, e espadas perfeitas. — Então, se Artur é nosso Rei, — gritou alguém — que espada lhe deram? Cador olhou para o meu lado; era evidente que esperava que eu falasse. Fiquei calado. Eu me colocara atrás de Artur, à sombra do trono do Rei. Aquele era o meu lugar, e já era hora que eles soubessem. Houve uma pausa maior, as cabeças viraram-se para onde eu estava, como uma sombra negra atrás do branco e prateado do rapaz. Homens mexiam-se inquietos, e murmuravam. Aqui havia alguns que conheciam o meu poder, e não havia nenhum que duvidasse dele. Nem mesmo Lot; o branco dos seus olhos apareceu quando olhou de esguelha. Mas quando eu continuei calado, sorrisos apareceram. Percebia a tensão nos ombros de Artur, e falei com ele em silêncio, com a força da minha vontade. "Ainda não, Artur, ainda não. Espere." Ele estava calado. Apanhara no chão a espada partida e estava recolocando-a na bainha. Quando ela entrou, deixou ver um último lampejo, que então se apagou. — Viram? — disse Cador para os presentes. — A espada de Uther já se foi, e ele também. Mas Artur tem uma espada, e é maior que esta espada real que os homens quebraram. Os deuses deram-na para ele. Eu mesmo a vi na sua mão. — Onde? — perguntavam. — Quando? Que deuses? Que espada é essa? Cador esperava, sorrindo, que as perguntas cessassem. Ele estava tranqüilo, um homem grande com um ar de força displicente, mas em alerta. Lot mordia o lábio e franzia a testa, que estava coberta de suor. Seus olhos percorriam o salão, fazendo a conta dos que ainda o apoiavam. Parece que ele ainda esperava que Cador fosse ficar ao seu lado, e contra Artur. Cador nem tinha olhado para ele. — Eu o vi uma vez com Merlin, — contou à assembléia — lá na Floresta Agreste, e estava com a espada mais esplêndida que já vi, cheia de jóias como a de um Imperador, e com uma lâmina tão

brilhante que doía nos olhos. Lot pigarreou. — Uma ilusão. Artes mágicas. Você disse que Merlin estava lá. Todos sabemos o que isto significa. Se Merlin é o mestre de Artur... Houve uma interrupção por parte de um homem pequeno, moreno e de cabelos negros. Era Gwyl, da costa ocidental, em cujas colinas os druidas ainda se reúnem. — E se foi mágica, e daí? Vejam bem, um rei que tem mágica nas mãos é um rei a quem se deve seguir. Isto provocou um berro de aprovação. Punhos socavam as meias. Muitos dos homens presentes eram celtas montanheses, e estavam de acordo com isso. — É verdade, é verdade! Ter força é bom, mas, de que serve ela sem a sorte? E o nosso novo Rei, embora moço, tem as duas coisas. É verdade o que Uther disse, bom treinamento e boa orientação. Quem melhor para orientá-lo, do que Merlin ao seu lado? — Foi tão bem treinado — gritou uma voz juvenil — que não se omite da luta até que seja quase tarde demais! — Era Bedwyr, impulsivamente. Seu pai deu-lhe um cascudo, bem de leve, e a mesma mão que castigou acariciou-lhe os cabelos. Houve sorrisos. A coisa estava esfriando. A fermentação criada pelo medo supersticioso estava cedendo, e os homens se acalmando, prontos para escutar e pensar. Um ou dois que antes pareciam apoiar Lot já se afastavam dele. Alguém perguntou: — Por que Merlin não fala? Merlin sabe o que devemos fazer. Deixem que ele nos diga! — E a gritaria começou: "Merlin! Merlin! Que Merlin fale!" Deixei que gritassem durante alguns minutos. Quando já estavam prestes a desmontar o salão pedra por pedra, para ouvir-me, falei. Não me movi nem ergui a voz, fiquei ali entre o Rei morto e o vivo, e eles se aquietaram para ouvir-me. — Tenho duas coisas a dizer — comecei. — Primeiro, que o Rei de Lothian estava errado. Não sou mestre de Artur, sou seu servo. E segundo, o que o Duque de Cornwall já lhes disse, que entre nós e o Terror Saxão existe um rei, novo e perfeito, com uma espada que lhe foi dada por Deus. Lot percebia que estava perdendo terreno. Olhou à sua volta, gritando: — Que bela espada, que aparece na sua mão como uma ilusão e desaparece dela durante a batalha! — Não seja tolo — falou Ector asperamente. — Aquela que lhe tiraram da mão durante a luta fui eu quem lhe emprestou. Era a minha espada número dois, não estou me queixando! Alguém riu. Houve sorrisos, e quando Lot falou de novo, a derrota estava presente na raiva da sua voz: — Então, onde ele arranjou esta espada maravilhosa, e onde está ela agora? — Ele foi sozinho até Caer Bannog e tirou-a do seu lugar sob o lago — respondi. Silêncio. Não havia um só que não soubesse o que isto significava. Vi mãos que faziam o sinal contra o encantamento. Cador manifestou-se. — É verdade. Eu vi Artur voltar de Caer Bannog com ela na mão, enrolada numa bainha velha, como se tivesse estado escondida por cem anos.

— E estava — disse eu no silêncio que se estabelecera. — Ouçam, senhores, e lhes direi que espada é esta. É a espada que Macsen Wledig levou para Roma, e que os seus seguidores trouxeram de volta para a Inglaterra, onde ficou escondida até que os deuses achassem por bem guiar um filho de Rei até ela. Preciso recordar-lhes a profecia? A profecia não é minha, foi feita antes do meu nascimento-a espada viria por água e por terra, seria entesourada na escuridão, e trancada na pedra, até que surgisse o rei legítimo de toda a Inglaterra para tirá-la do seu esconderijo. E lá ela ficou, meus senhores, a salvo em Caer Bannog, no castelo de Bilis, até que Artur a descobriu, guiado por sinais mágicos enviados pelos deuses, e tomou-a nas mãos com facilidade. — Mostre-nos! — gritaram. — Mostre-nos! — Eu lhes mostrarei. A espada está agora sobre o a1tar da capela da Floresta Agreste, onde eu a coloquei. Ali permanecerá até que Artur a erga à vista de todos vocês. Lot começava a ficar com medo; estavam contra ele7 agora, e revelara-se inimigo de Artur. Até o momento eu falara calmamente, sem o poder, e ele achava que ainda tinha chance. A obstinação que o impulsionara e a estupidez da sua esperança de poder é que o sustinham. — Eu já vi esta espada no altar da Capela Verde. Muitos de vocês já a viram! É a espada de Macsen sim, mas é feita de pedra? Manifestei-me, então. Levantei os braços bem alto. Uma brisa entrou pelas janelas abertas, vinda não se sabe de onde, e movimentou as flâmulas coloridas, fazendo com que o Dragão escarlate atrás de Artur parecesse subir pela bandeira dourada, e fez com que a minha sombra se agigantasse como a sombra do Dragão, com os braços erguidos como asas. O poder estava aqui. Eu o ouvia na minha voz. — E ele a tirou da pedra, e da pedra a tirará de novo, diante de todos vocês. E de hoje em diante a capela se chamará Capela Perigosa, porque se outro homem que não o legítimo Rei ousar tocar na espada, ela queimará como fogo na sua mão. Alguém falou com energia, na multidão: — Se realmente tem a espada de Macsen, ele a conseguiu por dom de Deus, e, se teve Merlin ao seu lado, seja lá que deus e'e adore, eu o seguirei! — E eu — disse Cador. — E eu! E eu! — os gritos continuaram. — Vamos todos ver esta espada mágica e este altar perigoso! Estavam todos de pé. A gritaria aumentou, ecoando até o teto. — Artur! Artur! Abaixei os braços. "Agora, Artur, é agora." Ele não olhara para mim nem uma vez, mas escutou o meu pensamento, e senti o poder passando de mim para ele. Eu podia ver o poder acumulando-se ao seu redor, e todos os presentes também podiam. Ergueu a mão, e eles esperaram por ele. Sua voz era clara e firme: não era a voz de um rapaz, mas a de um homem que lutara as suas primeiras batalhas decisivas, lá no campo e aqui no salão. — Meus senhores. Todos viram como o destino enviou-me para meu pai sem uma espada. A traição quebrou aquela que ele quis dar-me, e a traição quis roubar-me o que é meu por direito de nascimento, direito que foi provado à frente de todos, confirmado por meu pai, o Grande Rei, de público. Mas, como Merlin lhes disse, Deus já colocou uma outra arma, bem maior, na minha mão, e eu a erguerei à vista de todos, logo que possa levar esta assembléia até a Capela Perigosa.

Fez uma pausa. Não é fácil falar depois que os deuses falaram. Ele terminou simplesmente, água fresca após as chamas. As tochas estavam quase na brasa, a minha sombra na parede diminuíra. A bandeira do Dragão estava imóvel. — Meus senhores, iremos para lá de manhã. Agora, parece-me que devemos dedicar-nos ao Grande Rei, providenciar para que seu corpo seja velado de maneira real, com guardas ao seu redor, até que possa ser conduzido ao seu lugar de descanso. Depois, os que queiram poderão pegar suas espadas e lanças, e acompanhar-me. Ele terminara. Cador veio vindo pelo salão, e com ele Ector, e Gwyl, e o pai de Bedwyr, Rei Ban e muitos outros. Afastei-me discretamente, deixando Artur sozinho, com a guarda real atrás dele. Fiz um sinal e os criados vieram buscar e levar a cadeira, onde, durante todo este tempo, o corpo do Rei morto estivera enrijecendo, sem que ninguém olhasse para ele, a não ser Ulfin, que chorava.

10 Logo que deixei o salão, mandei um criado avisar para prepararem um cavalo veloz para mim. Um outro apanhou a minha espada e a minha capa, e logo pude escapulir para o pátio, sem chamar muita atenção. Lá estava o cavalo, pronto. Parecia um animal conhecido, depois verifiquei pela manta que era o alazão de Ralf. O próprio Ralf esperava-me ao seu lado, com a fisionomia tensa e ansiosa. Para. lá dos muros altos do pátio, a cidade zumbia como uma colméia derrubada, e todas as luzes estavam acesas. — O que é isso? — perguntei. — Será que não entenderam o meu recado? Eu vou sozinho. — Foi o que disseram. O cavalo é para o senhor. É mais veloz que o seu, pisa firme e conhece as trilhas da floresta. E se o senhor achar encrenca. . . — Não terminou a frase, mas eu entendi. O cavalo era treinado para a guerra, e lutaria por mim como um braço de reserva. — Obrigado. — Tirei as rédeas dele, e montei. — Estão esperando por mim. no portão? — Estão. Merlin. . . — Ainda não largara de todo as rédeas. — . . .deixe-me ir com o senhor. Não deve ir sozinho. O senhor tem um inimigo feroz, que não se detém por nada. — Eu sei disso. Você me ajudará mais se ficar aqui e evitar que me sigam. Os portões estão fechados? — Estão, já cuidei disso. O senhor é o único cavaleiro que poderá sair daqui até que Artur e os outros partam. Informaram-me, porém, que dois homens partiram antes da assembléia deixar o salão. —i Homens de Lot? — perguntei, de testa franzida. — Ninguém está certo. Eles disseram que eram mensageiros, levando a notícia da morte do Rei para o sul. — Não se mandou nenhum mensageiro — falei secamente. Eu mesmo dera a ordem. A notícia da morte do Grande Rei, com o medo e a certeza que geraria, não deveria passar dessas paredes, a não ser juntamente com a notícia de um novo Rei e de uma nova coroação. Ralf assentiu. — Eu sei. Os dois passaram pouco antes do recebimento da ordem. Talvez fosse apenas alguém esperando alguma recompensa, um camareiro, quem sabe, avisando a gente do sul tão logo ele morreu. Mas também podia ser gente de Lot, o senhor sabe disso. O que será que ele está planejando? Quebrar a espada de Macsen, como quebrou a de Uther? — Acha que conseguiria? — N-não. Mas, se ele nada pode fazer, por que o senhor está indo para lá, agora? Por que não espera e vai com o príncipe? — Porque é verdade que nada deterá Lot, agora, na sua tentativa de derrubar a reivindicação de Artur. É pior que ambição, agora, é medo. Ele fará qualquer coisa para desacreditar-me, e para abalar a fé dos homens na espada como dom de Deus. Por isso eu preciso ir. Deus não se defende. Para que estamos aqui, senão para lutar por ele? — Quer dizer.. . ? Entendo. Eles podem profanar o santuário, destruir o altar... Se pudessem

impedi-lo de estar lá para receber o Rei...? É isso? — Acho que sim. Puxou o freio do alazão com tanta violência que ele corcoveou, bufando. — Acha que Lot não hesitaria em assassiná-lo? — Acho. Mas creio que ele não vai conseguir. Deixe-me ir agora, Ralf. Estarei bem. — Ah! — falou com alívio. — As estrelas não indicam mais mortes para hoje? — Indicam morte para alguém. Não para mim, mas não levarei ninguém comigo, para pô-lo em perigo. É só por isso que você não vem, Ralf. — Oh, Deus, se é só isso.. . Coloquei as rédeas sobre o pescoço do alazão e ele ficou à espera. — Já tivemos uma discussão dessas antes, Ralf, e eu cedi. Mas hoje, não. Não posso forçá-lo a obedecer; você não é mais meu. Mas é de Artur, e é o seu dever ficar com ele, e levá-lo em segurança para a capela. Deixe-me ir, agora. Qual portão? A pausa foi longa, depois ele afastou-se. — O sul. Deus o acompanhe, meu querido senhor. Virou a cabeça e deu uma ordem ao guarda. O portão do pátio abriu-se, depois fechou-se com estrondo às costas do meu cavalo a galope. Havia uma meia-lua, beirada de sombras, prata fina. Ela iluminava o caminho familiar pelo vale. Os salgueiros ao longo do rio curvavam-se sobre sombras azuis. O rio corria rápido, engrossado pela chuva. O céu estava cheio de estrelas, e a mais brilhante delas era a Ursa. A lua, as estrelas e o rio saíram das minhas vistas quando o alazão, esporeado, aumentou o passo e levou-me a galope para a escuridão da Floresta Agreste. Na primeira parte do caminho, a trilha era boa, e aqui e ali a lua infiltrava-se entre as folhagens para iluminar um pouco o chão da floresta. Os cascos do cavalo encontravam raízes pelo caminho. Eu me conservava abaixado para evitar os galhos baixos, na passagem. De repente, a trilha começou a subir, suavemente, no começo, depois tornando-se íngreme e sinuosa quando a floresta entrou pelos contrafortes. Aqui e ali, havia curvas bruscas para evitar penhascos que apareciam entre as árvores. Bem lá embaixo, à esquerda, ouvia-se o ruído de um regato na montanha, engrossado, como o rio, pelas chuvas de outono. A não ser pelo som do galope do cavalo, não havia mais nenhum ruído. As árvores estavam imóveis. Nenhuma brisa conseguia penetrar nesta densa escuridão. Nada mais se mexia. Se havia veados, ou lobos, ou raposas por ali, não os vi. A trilha ficou mais íngreme. O alazão, pisando firme, enfrentava o caminho difícil arfando, e com o passo diminuindo para meio galope. Não faltava muito, agora. Uma abertura nos ramos lá em cima deixava passar a luz das estrelas, e pude ver, à minha frente, que o caminho fazia uma curva que o levava, como um túnel, para dentro da escuridão cada vez maior. Uma coruja piou, à esquerda. Outra respondeu, à direita. Os sons atingiram o meu cérebro como um grito de guerra, quando o alazão dobrou a curva, e eu freei violentamente, jogando todo o meu peso nas rédeas. Um cavaleiro melhor talvez o tivesse feito parar a tempo. Mas não eu, que deixara para muito tarde. O animal parou pesadamente, corcoveando, mas vindo como vinha, seus cascos deslizaram na trilha lamacenta e ele foi meio jogado, de lado, na direção da árvore caída bem no meio do caminho. Um pinheiro seco e morto, com os galhos rígidos e pontudos parecendo espigões de uma armadilha de

cavalaria. Alta e copada demais para pular-se por cima, mesmo que estivesse bem iluminada pelo luar, e não na curva mais escura do caminho. O lugar fora bem escolhido. De um lado do caminho, uma queda íngreme e rochosa de quarenta pés até o regato; do outro, uma moita de espinhos e azevinhos, compacta demais para um cavaleiro atravessar. Não havia nem lugar para desviar. Se tivéssemos feito a curva a galope, o cavalo teria sido atravessado pelos galhos, e eu jogado de cabeça de encontro aos seus espigões. Se o inimigo estivesse escondido, esperando que eu galopasse direto ao encontro dos espigões, talvez ainda nos sobrassem uns segundos para escapar da emboscada e fugir para dentro da floresta. Virei o alazão bruscamente, chicoteando-o com as rédeas. Ele deu a volta depressa, empinando, arranhando os flancos na parede de espinhos, e enfiando um galho qualquer bem fundo na minha coxa. De repente, como se fosse esporeado, ele bufou e jogou-se para a frente. O caminho sob os nossos pés abriu-se num cair de ramos. Uma cova preta escancarou-se. O cavalo deu uma guinada, um mergulho, e afinal caiu, agitando os cascos. Eu fui arremessado por cima dele para o espaço existente entre a cova e a árvore caída. Fiquei meio atordoado por um momento, enquanto o cavalo conseguiu safar-se do buraco raso e ficou ali, tremendo, quando dois homens saíram correndo de dentro da floresta, de punhal na mão. Fui arremessado na sombra mais profunda, e acho que estava tão completamente imóvel que parecia invisível. O barulho do regato abafava quase todos os outros sons, e eles devem ter pensado que eu fora atirado direto na ravina. Um deles correu até a beirada dela, para espiar para baixo, enquanto o outro passou pelo cavalo e veio com cuidado até a beira da cova. Eles não tinham tido tempo de cavá-la bem funda, só o suficiente para aleijar o cavalo e para derrubar-me. Agora, na escuridão, ela servia de proteção para mim, impedindo que os dois me atacassem ao mesmo tempo. O que estava perto de mim chamou o companheiro, mas o barulho da correnteza abafou as palavras. Ele deu com cuidado um passo à frente, passando a cova em direção a mim. Percebi o brilho da arma que segurava. Eu rolei, peguei o seu tornozelo e puxei. Ele berrou, caindo para a frente, um pouco para dentro do buraco, depois conseguiu safar-se, agitando o punhal, e ficando de pé depressa. O outro atirou uma faca, que bateu na árvore atrás de mim e caiu no chão. Uma arma a menos. Agora, porém, sabiam onde eu estava. Afastaram-se para além da cova, um de cada lado da trilha. Nas mãos de um deles eu vi o brilho de uma espada, mas não via bem o outro. O único som era o barulho da água. Pelo menos, o fato de a trilha ser estreita, embora tivesse auxiliado a emboscada, tinha impedido que trouxessem os seus cavalos. O meu estava completamente manco. Os deles deviam estar amarrados nas árvores ali por perto. Era impossível tentar fugir pelo pinheiro caído atrás de mim; eles me alcançariam em segundos. Tampouco podia passar pela parede de espinho. Só me restava a ravina; se pudesse descer sem ser visto, passar por eles e voltar à floresta, quem sabe chegar até os seus cavalos... Fui andando com cuidado de lado, na direção da beira da ravina. A minha mão livre ia tateando pelo caminho. Encontrava moitas, arbustos, rebentos enraizados nas rochas. Cascas de árvores, macias, que apertava e testava. Cheguei à beira, andando como caranguejo. Os meus olhos ainda estavam fitos naquele brilho de metal, na espada para além da cova. O homem ainda estava lá. O meu pé tateante desceu um degrau súbito e lamacento, à borda da ravina. Um arbusto espinhoso roçou nele. E uma mão de homem também. Ele copiara o meu truque. Deslizara em silêncio pela margem, e ficara ali, deitado, à espera. Jogou todo o seu peso no meu pé, e, desequilibrado, eu caí. A sua faca não me pegou por pouco, afundando-se na margem a centímetros do meu rosto, quando passei por ele, em direção ao fundo da ravina.

A sua intenção era jogar-me pelas margens rochosas, para acabar atordoado e ferido nas rochas lá do fundo, para onde desceriam para terminar o serviço. Se tivesse se contentado com isto, teria dado certo. Mas a sua arremetida com a faca fê-lo perder o equilíbrio, e, além disso, quando me agarrou, não opus resistência, amoleci o corpo, e pisei com força na mão que me segurava. Algo macio cedeu sob a minha bota; ele gemeu de dor, depois gritou qualquer coisa quando o meu peso forçou-o a largar-me, e, completamente desequilibrado, precipitou-se ravina abaixo junto comigo. Eu estava caindo mais depressa, e aterrissei primeiro, a meio caminho do fundo, de encontro ao tronco de um pinheiro novo. O meu atacante veio rolando atrás de mim, quebrando moitas e provocando uma chuva de pedras. Ele jogou-se contra mim, e preparei-me para enfrentá-lo. Joguei-me por cima dele, com todo o peso do meu corpo, agarrando os seus braços com os meus e prendendo-o ao chão. Ouvi o seu grito de dor. Uma perna estava dobrada sob o corpo. Ele chutou com a outra, e senti uma espora arranhar a minha perna através do couro macio da bota. Ele lutava furiosamente, torcendose e agitando-se como um peixe fora dágua, debaixo de mim. A qualquer momento me deslocaria da posição junto ao pinheiro, e cairíamos juntos pela ravina. Lutei para segurá-lo e para livrar a mão com o punhal. O outro assassino tinha ouvido a nossa queda. Gritou qualquer coisa lá de cima, e depois veio descendo na nossa direção. Vinha com cuidado, mas depressa. Depressa demais. Mudei de posição em cima do homem, jogando todo o meu peso para manter os seus braços presos. Escutei algo quebrando; parecia um galho seco, mas o sujeito gritou. Consegui tirar a minha mão direita de baixo dele. Minha mão estava tão agarrada ao punhal que o cabo tinha entrado pela carne. Ergui o punhal. Um raio de luar tocou os seus olhos, a centímetros dos meus; eu sentia o cheiro do medo, da dor e do ódio. Ele deu um safanão que quase me desalojou, virando a cabeça de lado para evitar o golpe. Virei o punhal ao contrário e procurei dar um golpe com toda a força, no pescoço, logo atrás da orelha. O golpe não pegou nele. Alguma coisa... uma pedra, um pedaço de madeira pesada, que caía lá de cima, pegou-me de jeito na ponta do ombro. Meu braço ficou inútil, paralisado. O punhal rolou pela escuridão. O outro assassino vinha descendo os poucos metros que nos separavam. A sua espada desembainhada raspou na pedra. A lua refletiu-se nela, erguida para o golpe. Procurei safar-me do meu oponente, mas ele se grudava em mim, com unhas e dentes, prendendo-me ali para que a espada pudesse dar cabo de mim. Deu cabo dele. Seu companheiro pulou, descendo a espada com violência no lugar onde, um segundo antes, estiveram as minhas costas, expostas ao luar. Mas eu já estava meio livre, caindo, com as roupas rasgadas pelo meu oponente, com a mão ensangüentada pela sua mordida. A espada encontrou as costas dele. Entrou fundo. Escutei o metal raspar o osso, depois o seu berro encobriu o ruído, e eu estava livre dele e deslizando na direção do barulho da correnteza. Uma moita me fez parar, me arranhou, me deixou passar. Um ramo bateu na minha garganta. Um arbusto de espinhos deixou em tiras o que restava da minha roupa. Depois, meu corpo em movimento bateu num pedregulho, parou, e ficou encostado nele, ofegante e atordoado, até ouvir o segundo assassino que se aproximava. Depois, com um leve movimento da terra, a pedra cedeu, e eu caí o que faltava, direto para a laje rochosa por onde deslizava a água gelada, correndo para formar um laguinho profundo. Se tivesse caído no laguinho, é possível que não me tivesse machucado. Se tivesse batido num dos grandes pedregulhos onde a água se arremetia, é provável que tivesse morrido. Caí no raso, porém, numa extensão de rocha achatada por cima da qual a água deslizava, com um palmo de profundidade, antes de seguir para lançar-se num dos laguinhos da floresta. Caí de lado, sem fôlego e meio atordoado.

A água gelada entrou pela minha boca, meu nariz, meus olhos, fazendo pesar as minhas roupas, arrastando com ela os meus membros feridos. Eu também ia deslizando por sobre a rocha limosa. Minhas mãos procuraram um apoio, não acharam, escorregaram, minhas unhas eram garras curvas que raspavam... O segundo assassino caiu ao meu lado, sacudindo a rocha com a violência do seu salto, escorregou, firmou-se de novo na água corrente, e ergueu alto a espada, pela segunda vez. O luar refletiu-se nela. Havia estrelas por trás dela. Uma espada nítida numa noite estrelada. Larguei a rocha e o regato virou-me de frente para a espada. A água me cegava. O barulho da cascata sacudia os meus ossos. Houve um clarão como uma estrela cadente, e a espada desceu. Era como um sonho que se repetia. Já uma vez eu me sentara perto de uma fogueira na floresta, com os homens das colinas, pequenos e morenos, formando um meio círculo à minha frente, seus olhos brilhando à luz do fogo como os olhos das criaturas da floresta. Mas eles é que tinham acendido esta fogueira. Na sua frente as minhas roupas secavam, desprendendo vapor. Quanto a mim, estava enrolado em suas capas; peles de carneiro, com o cheiro dos primeiros donos, mas secas e quentes. Minhas feridas doíam, aqui e ali eu sentia onde um golpe tinha acertado o alvo. Não tinha ossos quebrados, contudo. Não ficara inconsciente por muito tempo. Para lá do círculo formado pela luz da fogueira, estavam os dois homens mortos, e, perto deles, um pau de ponta fina e uma maça pesada, sujos de sangue. Um dos homens ainda estava limpando o seu facão no chão. Mab trouxe uma tigela de vinho quente para mim, com algo sobrepujando o gosto das uvas. Bebi, espirrei, e procurei erguer-me. — Encontraram os cavalos deles? Fez que sim com a cabeça. — Logo ali. O seu está manco. — Eu sei. Cuide dele para mim, sim? Quando chegar ao santuário, mandarei o criado para cá. Ele levará o cavalo manco para casa. Traga-me um dos outros, agora, e dê-me as minhas roupas. — Ainda estão molhadas. Não faz nem dez minutos que o retiramos da água. — Não faz mal, — retruquei — preciso ir. Mab, lá em cima, na trilha, há uma árvore caída com um buraco ao lado. Quer pedir ao seu povo para desimpedir o caminho até amanhã de manhã? — Já estão lá. Escute. Escutei, acima do barulho da água e do crepitar do fogo. Machado e picareta em ação, lá em cima na floresta. Os olhos de Mab encontraram os meus. — Quer dizer que o novo Rei vai passar por aqui? — Talvez. — Sorri. — Quando soube? — Um dos nossos veio da cidade para nos contar. — Sorriu com os dentes quebrados. — Não passou pelos portões que o senhor trancou.. . Mas já sabíamos antes. O senhor não viu a estrela cadente? Cruzou os céus de ponta a ponta, cristada como um dragão, e deixando um rastro de fumaça. Portanto, sabíamos que o senhor viria. Mas estávamos em Gramarye quando ela passou, e quase chegamos tarde demais. Desculpe. — Você chegou a tempo — repliquei. — Devo-lhe a minha vida. Não me esquecerei. — Eu também lhe devia — disse ele. — Por que veio sozinho? Não sabia que havia perigo?

— Eu previa a morte, e não queria ter mais mortes nas mãos. A dor é outra coisa, e logo passa. — Pus-me de pé, com dificuldade. — Se vou voltar a me mexer de novo, Mab, preciso começar agora. Minhas roupas? As roupas ainda estavam molhadas, cheias de lama e rasgões. Porém, a não ser pelas peles de carneiro, nada mais havia; o povo da colina é um povo pequeno, e a sua roupa nunca me serviria. Enfiei-me no que ainda sobrava das minhas roupas palacianas, e peguei a rédea de um cavalo castanho das mãos de um dos homens, A ferida da minha coxa estava sangrando de novo, e parecia ter estilhaços dentro dela. Pedi que pusessem uma pele de carneiro sobre a sela, e montei com cuidado. — Quer que o acompanhemos? — perguntaram. Balancei a cabeça. — Não. Fiquem para desimpedir a estrada. Pela manhã, se quiserem, venham ao santuário. Lá haverá lugar para todos vocês. A clareira enluarada no centro da floresta parecia uma pintura, e irreal como um sonho. O luar cobria o teto da capela, e prateava os picos dos pinheiros circundantes. Pela porta aparecia um oblongo dourado, feito pela luz das nove candeias que brilhavam ao redor do altar. Dei a volta devagar, a porta dos fundos abriu-se, e o criado espiou para fora, temeroso. Estava tudo bem, disse; ninguém estivera ali. Mas arregalou os olhos quando viu o estado em que me encontrava, e ficou muito feliz quando lhe entreguei as rédeas e disse que me deixasse. Entrei na capela, agradecido, para cuidar dos meus ferimentos e trocar de roupa. O silêncio voltou devagar. Um vento suave foi levando embora o resto do barulho dos cascos que se afastavam; ele entrou na capela, diminuindo as chamas das candeias e fazendo subir nuvens finas de fumaça, que tinham cheiro de resina queimada. Lá fora, na clareira, a lua e as estrelas derramavam a sua luz preciosa. O deus estava aqui. Ajoelhei-me ante o altar, esvaziando-me de pensamento e vontade, até sentir toda a força da vontade de Deus percorrer-me, levando-me com ela. A noite estava calma e prateada, à espera das tochas e dos clarins.

11 Finalmente, eles chegaram. Luzes e clamor e o pisar dos cavalos vieram vindo pela floresta, cada vez mais perto, até que a clareira ficou cheia de tochas flamejantes e vozes excitadas. Escutei tudo, por entre o sono desperto da visão, longínquo, ecoante, remoto, como sinos tocando no fundo do mar. Os chefes tinham-se aproximado. Estavam parados à porta. As Vozes se calaram, os pés se mexiam inquietos. Eles apenas viam uma capela nua e vazia, com um só homem a fitá-los ao lado de um altar de pedra. Em volta do altar as nove candeias ainda emitiam a sua luz constante, deixando ver a espada entalhada na pedra e a legenda MITHRAE INVICTO, e, em cima do altar, a verdadeira espada, desembainhada, nua sobre a pedra nua. — Apaguem as tochas — falei. — Elas não serão necessárias. Obedeceram, e, a um sinal meu, entraram na capela. O lugar era pequeno, o número de homens grande. Mas o respeito pela ocasião prevaleceu; ordens foram dadas, mas em voz baixa; instruções calmas, parecendo dadas mais por padres que por guerreiros. Não havia ritos a seguir, mas os homens conservaram os seus lugares; Reis e nobres, e guardas dos Reis dentro da capela, os homens menos importantes na clareira silenciosa, espalhando-se até a escuridão da floresta. Perto dela ainda conservavam as luzes; a clareira estava cercada de luzes e de sons, com os cavalos esperando e os homens com as tochas a postos; mas, sob o céu aberto, os homens vinham sem luzes e sem armas como convinha que viessem à presença de Deus e do seu Rei. Contudo, nesta noite das noites, não havia nenhum sacerdote presente; eu era o único intermediário, eu que o deus usara durante trinta anos, até trazer-me para este lugar. Afinal, arrumaram-se todos, de acordo com a ordem e a precedência. Foi como se tivessem se dividido por combinação, ou, mais provavelmente, por instinto. Lá fora, perto dos degraus, estavam os homenzinhos das colinas; eles não permanecem debaixo de um teto de boa vontade. Dentro da capela, à minha direita, estavam Lot, Rei de Lothian, e seus amigos e seguidores; à esquerda, Cador e os que o acompanhavam. Havia uma centena de outras pessoas, talvez mais, espremidas naquele espaço exíguo, mas aqueles dois, o Javali Branco de Cornwall e o Leopardo Vermelho de Lothian, pareciam encarar-se malignamente de cada lado do altar, com Ector vigilante à porta que os separava. Então, Ector, com Cei às suas costas, fez entrar Artur, e não vi mais ninguém, só ele. A capela resplandecia com cores e o brilho de jóias e de ouro. O ar tinha um cheiro bom de pinho, e água e fumaça perfumada. O rumor e o murmúrio da multidão enchiam o ar, parecendo o crepitar das chamas lambendo a lenha, tomando conta dela... Chamas das nove candeias, aumentando e depois morrendo; chamas lambendo a pedra do altar; chamas percorrendo a lâmina da espada, até que ela ficasse incandescente. Estendi as minhas mãos sobre ela, palmas para baixo. O fogo lambeu a minha túnica, escapando da manga e dos dedos, mas, onde tocava, nem sequer chamuscava. Era o fogo gelado, conjurado da escuridão, com o calor cauterizante bem no centro, onde estava a espada. A espada aparecia entre as chamas como uma jóia enfiada em algodão. "Aquele que tirar esta espada..." As runas dançavam no metal; as esmeraldas queimavam. A capela era um globo escuro com um centro de fogo. As chamas do altar lançavam a minha sombra para o alto, gigantesca no teto abobadado. Ouvi a minha própria voz, ressoando ocamente na abóbada como uma voz no sonho.

— Pegue na espada, aquele que ousar. Homens mexendo-se e falando, com a voz cheia de pavor. E Cador: — Aquela é a espada. Eu a reconheceria em qualquer lugar. Eu a vi na sua mão, cheia de luz. Ela é dele, Deus é testemunha. Eu não tocaria nela nem que Merlin ordenasse. Vários gritos de "Nem eu! Nem eu!", e depois "Deixe que o Rei pegue nela, deixe que o Grande Rei nos mostre a espada de Macsen!" Depois, finalmente, só a voz de Lot, dizendo com aspereza: — É. Deixe que ele pegue nela. Estou vendo, Santo Deus, estou vendo. Se for realmente dele, então Deus está com ele, e nada posso fazer. Artur aproximou-se vagarosamente. Por trás dele, o local estava sombrio, a multidão tinha-se encolhido na escuridão, os sons da sua presença equivalendo a uma brisa entre as árvores da floresta lá fora. Aqui, entre nós, a luz branca resplandecia e a lâmina tremia. A escuridão refulgia e brilhava, uma gruta de cristal de visão, onde as imagens vividas apareciam, amontoadas num turbilhão: um veado branco, de coleira de puro. Uma estrela cadente, em forma de dragão, com um rastro de fogo. Um rei, inquieto e cheio de desejo, com um dragão de ouro avermelhado tremulando na parede às suas costas. Uma mulher vestida de branco, de porte real, e, atrás dela, nas sombras, uma espada num altar, como uma cruz. Um círculo de grandes pedras interligadas, numa planície ventosa, com a sepultura de um rei no meio. Uma criança, entregue nos meus braços numa noite de inverno. Um gral, enrolado em panos podres, escondido numa catacumba escura. Um jovem rei, coroado. Olhava para mim por entre o pulsar e o clarão da visão. Para ele, eram só chamas, chamas que podiam queimar, ou não; isto era comigo. Esperava, nem duvidando, nem confiando cegamente; esperando, apenas. — Venha — falei suavemente. — É sua. Enfiou a mão nas chamas e o cabo frio acomodou-se à sua mão, para a qual tinha sido feito mais de cem anos antes. Lot foi o primeiro a ajoelhar-se. Acho que era o que tinha mais necessidade. Artur ergueu-o, falando sem rancor nem cordialidade; as palavras de um senhor soberano que consegue esquecer os erros passados visando um bem futuro. — Não consigo brigar com nenhum homem hoje, Lot de Lothian, muito menos com o noivo da minha irmã. Verá que as dúvidas que tinha a meu respeito são infundadas, e que o senhor, e seus filhos, vão ajudar-me a proteger e conservar a Inglaterra como deve ser conservada. Para Cador, disse simplesmente: — Até que eu arranje outro, Cador de Cornwall, o senhor fica sendo meu herdeiro. Conversou com Ector longo tempo, em voz baixa, para que ninguém mais escutasse, e, quando o ergueu, beijou-o. Depois, ficou ao lado do altar por longo tempo, enquanto os homens se ajoelhavam ante ele e juravam lealdade sobre o cabo da espada. Falou a cada um, francamente como um garoto, e grandiosamente como um rei. Entre as suas mãos, segura como uma cruz, Caliburn brilhava com a sua própria luz, mas o altar com as nove candeias apagadas estava escuro. Depois de cada homem ter feito o seu juramento e se comprometido com ele, afastou-se e a capela foi-se esvaziando aos poucos.

Ela foi ficando sossegada, e a floresta circundante foi-se enchendo de vida, expectativa e barulho, com a multidão excitada e clamorosa esperando pelo seu Rei de direito. Estavam trazendo os cavalos, e a clareira enchia-se da luz dos archotes, de pisadas e do tinir dos equipamentos. Finalmente, Mab e o povo das colinas retiraram-se, e, excluindo a guarda de encontro à parede, o Rei e eu ficamos sozinhos. Andando com dificuldade, pois meus ossos anda doíam, dei a volta no altar até ficar na sua frente. Ele era quase tão alto quanto eu. Os olhos que me fitavam eram iguais aos meus. Ajoelhei-me ante ele e estendi a mão para beijar a sua. Ele teve uma exclamação, ergueu-me e beijou-me. — O senhor não se ajoelha ante mim. — O senhor é,o Grande Rei, e eu sou seu servo. — E daí? A espada era sua, e nós dois sabemos disso. Não importa que nome se dê, meu servo, primo, pai. . . o que quiser. O senhor é Merlin, e eu nada sou sem o senhor. — Ele riu, então, com naturalidade, a grandiosidade da ocasião acomodando-se a ele tão facilmente quanto o cabo se acomodara à sua mão. — Que fim levou a túnica palaciana? Só mesmo o senhor para usar esta velharia numa ocasião como esta. Eu lhe darei uma túnica de ouro, bordada de estrelas, para condizer com a sua posição. O senhor a usará, por mim? — Nem mesmo pelo senhor. Ele sorriu. — Então, venha como está. Vai acompanhar-me agora, não vai? — Mais tarde. Quando tiver tempo de procurar por mim, estarei ao seu lado, verá. Escute, estão todos prontos para conduzi-lo ao seu lugar. Está na hora de ir. Acompanhei-o até a porta. As tochas ainda fulguravam, embora há muito tempo já não houvesse mais lua nem estrelas. Dourada e tranqüila, a luz da manhã aumentava. Tinham trazido o garanhão branco até a escada. Quando Artur fez menção de montar, não o permitiram. Cador, Lot e meia dúzia de reis pequenos o colocaram na sela, e afinal as esperanças e a alegria dos homens alçou-se até os pinheiros num grande grito. Assim foi feito Rei Artur, o jovem. Tirei as nove candeias da capela. Quando fosse dia, eu as levaria para o seu verdadeiro lugar, para as grutas das colinas vazias, para onde tinham ido os seus deuses. Todas as nove tinham sido viradas, e o óleo escorrera pelo chão. Com elas estava a tigela de pedra, despedaçada, e um monte de pó e de fragmentos desmoronados onde o fogo frio tinha alcançado. Quando acabei de limpar tudo isso, juntamente com o óleo que os ensopara, percebi que já não havia entalhe na frente do altar. Era isso o que eu estava segurando, os fragmentos cobertos de óleo. Somente restara no altar o cabo da espada entalhada, e uma palavra. Varri e limpei o local, deixando tudo direito de novo. Andava devagar, como um velho. Lembrome que meu corpo doía, e que, depois, quando me ajoelhei de novo, a minha vista ficou turva e escura, como se cegada por uma visão, ou por lágrimas. As lágrimas mostraram-me o altar, agora sem as candeias de nove luzes que tinham agradado aos deuses antigos e pequenos; sem a espada do soldado e sem o nome do deus do soldado. Nele só havia agora o cabo da espada entalhada, parecendo uma cruz na pedra, e as letras bem nítidas acima dela: AO INCONQUISTADO.

A Lenda Quando Aurélio Ambrósio era Grande Rei da Inglaterra, Merlin, também chamado Ambrósio, trouxe da Irlanda a Dança dos Gigantes, e colocou-a perto de Amesbury, em Stonehenge. Pouco depois, uma estrela parecida com um dragão apareceu, e Merlin, sabendo que ela predizia a morte de Ambrósio, chorou amargamente e profetizou que Uther seria Rei sob o signo do dragão, e que ele teria um filho "de domínio extenso e poderoso, cujo poder se estenderia a todos os reinos que o raio (da estrela) alcançasse9'. Na Páscoa seguinte, na festa da coroação, o Rei Uther apaixonou-se por Ygraine, esposa de Gorlois, Duque de Cornwall. Ele a cumulou de atenções, para escândalo da corte; ela não retribuiu, mas seu marido, furioso, retirou-se da corte sem permissão, levando sua mulher e seus soldados para Cornwall. Uther, zangado, ordenou-lhe que voltasse, mas Gorlois recusou-se a obedecer. O Rei, coberto de fúria, reuniu um exército e invadiu Cornwall, queimando cidades e castelos. Gorlois não tinha tropas suficientes para enfrentá-lo, então colocou a esposa no castelo de Tintagel, que era o refúgio mais seguro, e preparou-se para defender o castelo de Dimilioc. Uther imediatamente sitiou Dimilioc, prendendo ali Gorlois e suas tropas, enquanto procurava um meio de penetrar no castelo de Tintagel para possuir Ygraine. Depois de alguns dias, pediu auxílio a um dos seus domésticos, chamado Ulfin, que sugeriu que ele mandasse buscar Merlin. Merlin, emocionado pelo sofrimento tão aparente de Uther, prometeu ajudar. Por meio de artes mágicas, transformou Uther num sósia de Gorlois, Ulfin no de Jordan, amigo de Gorlois, e a si mesmo no de Brithael, um dos capitães de Gorlois. Os três foram para Tintagel, e o porteiro lhes permitiu a entrada. Ygraine, tomando Uther pelo Duque seu marido, recebeu-o bem e foi com ele para a cama. Assim, Uther deitou-se com Ygraine naquela noite "e ela não ousou negar-lhe nada que ele desejasse". Mas, enquanto isso, tinha havido luta em Dimilioc, e o Duque, marido de Ygraine, foi morto. Os mensageiros vieram avisar Ygraine da morte do marido. Quando encontraram "Gorlois", aparentemente vivo, e em companhia de Ygraine, ficaram estupefatos, mas o Rei confessou o embuste e, dias mais tarde, casou-se com Ygraine. Alguns dizem que a irmã de Ygraine, Morgause, casou-se no mesmo dia com Lot de Lothian, e que a outra irmã, Morgan le Fay, foi posta num convento, onde aprendeu necromancia, e, mais tarde, casou-se com o Rei Urien de Gore. Mas outros afirmam que Morgan era irmã de Artur, nascida, depois dele, do casamento de Uther com a Rainha Ygraine, e que Morgause também era sua irmã, porém não da mesma mãe. Uther Pendragon reinaria por mais quinze anos, e durante todo este tempo não viu o seu filho Artur. Antes do nascimento da criança, Merlin procurou o Rei e falou com ele. — Senhor, é preciso prover para a criação de vosso filho. — Como quiseres, — respondeu o Rei — assim o será. Então, na noite do seu nascimento, o menino Artur foi levado pela porta traseira de Tintagel e entregue a Merlin que o levou para o castelo de Sir Ector, um cavaleiro fiel. Ali, Merlin fez com que batizassem a criança, dando-lhe o nome de Artur, e a esposa de Sir Ector aceitou o menino como filho de criação. Durante todo o reinado de Uther, o país teve sérios problemas com os saxões e com os escoceses da Irlanda. Os dois chefes saxões que o Rei aprisionara conseguiram escapar de Londres e fugir para a

Alemanha, onde reuniram um grande exército que espalhou o terror pelo reino. Uther também ficou sofrendo de uma doença grave, e indicou Lot de Lothian, que era noivo de sua filha Morgause, como seu capitão-chefe. Mas quantas vezes Lot punha o inimigo em fuga, tantas vezes ele voltava com maior força, e o país ficou destruído. Finalmente, embora gravemente enfermo, Uther reuniu os seus barões e disse-lhes que ele próprio iria liderar os exércitos, então armaram uma liteira para ele, e nela carregaram-no à frente do seu exército, contra o inimigo. Quando os chefes saxões souberam que o Rei inglês viera ao campo de batalha numa liteira, zombaram dele, dizendo que já estava semimorto, e que não ficava bem lutarem contra ele. Uther, com um lampejo do antigo vigor, riu e retrucou: — Chamam-me de Rei semimorto, e eu o era, na verdade. Mas prefiro conquistá-los desta forma que ser conquistado e viver com vergonha. E, assim, o exército de britânicos derrotou os saxões. Mas a enfermidade do Rei aumentou, e com ela os pesares do reino. Finalmente, quando o Rei estava à morte, Merlin apareceu e acercou-se dele à vista de todos os senhores e ordenou-lhe que reconhecesse seu filho Artur como novo Rei. Assim fez, e depois morreu, sendo enterrado ao lado de seu irmão Aurélio Ambrósio dentro da Dança dos Gigantes. Após a sua morte, os senhores da Inglaterra reuniram-se para encontrar seu novo Rei. Ninguém sabia onde Artur estava escondido, nem onde Merlin se encontrava, mas achavam que o Rei seria reconhecido por um sinal. Então, Merlin mandou que uma grande espada fosse feita, e prendeu-a por meio das suas artes mágicas numa grande pedra em forma de altar, com uma bigorna de aço dentro, e fez a pedra flutuar sobre a água até uma grande igreja em Londres, colocando-a do lado de fora da igreja. Na espada achava-se escrito em letras douradas: "Aquele que conseguir arrancar esta espada desta pedra e desta bigorna é por direito o rei legítimo de toda a Inglaterra." Então, organizou-se uma grande festa, a que todos os nobres compareceram para tentar tirar a espada de dentro da pedra. Entre eles, encontrava-se Sir Ector, com seu filho Kay e Artur, que não tinha espada nem brasão, acompanhando-os como escudeiro. Quando chegaram ao local do torneio, Sir Kay, que tinha esquecido a espada, mandou que Artur voltasse para pegá-la. Mas quando ele retornou à casa onde estavam hospedados, todos tinham saído e as portas estavam trancadas; impaciente, ele foi até a igreja, tirou a espada da pedra, e levou-a para Sir Kay. Então, é claro, a espada foi reconhecida, mas, mesmo quando Artur mostrou que ele era o único que podia retirá-la da pedra, houve os que se negaram a aceitá-lo, dizendo que era uma grande vergonha para eles e para o reino ter como rei um menino sem sangue real, e que nova escolha devia ser feita na Candelária. Assim, na Candelária, os maiores do país reuniram-se, e novamente em Pentecostes, mas nenhum conseguiu tirar a espada da pedra, a não ser Artur. Assim mesmo, alguns nobres ainda estavam zangados e recusavam-se a aceitá-lo, até que a gente do povo manifestou-se: — Vamos fazer de Artur nosso rei, não vamos demorar mais, pois estamos vendo que é a vontade de Deus que ele seja nosso rei, e mataremos os que se opuserem. Assim, Artur foi aceito por todas as classes, e todos os homens ricos e pobres ajoelharam-se e pediram o seu perdão pela demora em aceitá-lo, e ele os perdoou. Então, Merlin contou-lhes quem Artur era na verdade, que ele não era bastardo, mas filho legítimo do Rei Uther com Ygraine, concebido três horas depois da morte do Duque seu marido. Assim eles fizeram rei a Artur, o jovem.

Comentário da Autora Como o seu predecessor, A Gruta de Cristal, este romance é produto da imaginação, mas firmemente baseado tanto na História quanto na lenda. Talvez não igualmente: tão pouco se sabe sobre a Inglaterra no quinto século (o início da Idade Média) que se depende quase tanto da tradição e da conjectura quanto dos fatos. Gosto de acreditar que se a tradição é tão persistente — e imortal, e autoperpetuante como as histórias das Lendas Arturinas — é porque há algum grão de verdade por trás até das histórias mais estranhas que se acumularam ao redor dos poucos fatos centrais da existência de Artur. É excitante transformar estas lendas, às vezes sobrenaturais e incoerentes, numa história apresentando alguma coerência como experiência humana e verdade imaginativa. Tentei escrever com As Colinas Vazias um romance independente, sem referência alguma ao seu antecessor, A Gruta de Cristal, ou mesmo às notas explanatórias aqui apresentadas. Na realidade, só acrescento estas notas para aqueles leitores cujo interesse ultrapassa a novela em si, mas que não são suficientemente familiarizados com as Lendas Arturinas para perceber o que está subentendido em algumas partes da minha história. Talvez lhes dê prazer descobrir por si mesmos as sementes de certas idéias e as origens de certas referências. Em A Gruta de Cristal, baseei a minha história principalmente na "história" narrada por Geoffrey de Monmouth,({8}) que é a base dos contos posteriores, e mais medievais, de Artur e Sua Corte, mas restringi a ação ao ambiente romano-britânico do quinto século, que é o cenário real onde se passa tudo o que conhecemos dos Fatos Arturinos.({9}) Não temos datas precisas, mas endossei certas autoridades que datam o nascimento de Artur em 470 A.D., aproximadamente. A narrativa de As Colinas Vazias trata dos anos obscuros entre esta data e a aclamação do jovem Artur como chefe-de-guerra (dux bellorum) ou, como reza a lenda há mais de mil anos, Rei da Inglaterra. O que quero aqui mostrar são os fios que usei para tecer este período da vida de Artur do qual a tradição mal fala, e do qual a História nada diz. Parece certa a existência de Artur. Quanto a Merlin, não temos tanta certeza. "O Mago Merlin", como ficou conhecido, é uma figura feita quase que só de canções e de lenda; mas acreditamos que, para uma lenda atravessar séculos, é preciso que tenha existido um homem poderoso, cujos dons parecessem milagrosos na sua época. Ele aparece primeiro, nas lendas, como um jovem imbuído de estranhos poderes. Do relato feito por Geoffrey de Monmouth, criei uma figura imaginária, que me parece saída da Idade Média, simbolizando aquela época de confusão e procura. Geoffrey Ashe, no seu excelente livro De César a Artur,({10}) descreve esta "multiplicidade de visão": "Quando o cristianismo prevaleceu e o paganismo celta desmoronou-se na Mitologia, muitas dessas coisas foram incorporadas. A água e as ilhas conservaram a sua mágica. Os espíritos dos lagos iam e vinham, os heróis viajavam em estranhas embarcações. As colinas mal-assombradas transformaram-se em colinas de fadas, habitadas por povos fantásticos, sem paralelo entre as demais nações. Onde havia colinas, elas se ajustavam a esse papel. Reinos invisíveis cruzavam os visíveis, e havia meios secretos de comunicação e de acesso. As fadas e os heróis, os ex-deuses e os semideuses acotovelavam-se com os espíritos dos mortos nessa confusão caleidoscópica... Tudo ficou ambíguo. Assim, muito depois do triunfo do cristianismo, continuaram a existir as colinas de fadas; mas até as

que não eram colinas podiam ser consideradas abrigos para as almas desencarnadas... Relatavam-se milagres dos santos; mas, não há muito tempo, milagres semelhantes eram considerados obras de deuses perfeitamente identificáveis. Havia castelos de vidro onde o herói poderia estar sob encantamento; havia países de fadas maravilhosas, onde se chegava por água, ou por passagens subterrâneas. . . Viagens e encantamento, combates e aprisionamentos. . . tema por tema, a imaginação celta se revelava nas histórias. Contudo, qualquer episódio poderia ser considerado como fato, imaginação ou alegoria religiosa, ou como os três ao mesmo tempo. Merlin, o narrador de As Colinas Vazias, o feiticeiro e o curandeiro dotado da Visão, vai e vem nos mundos diferentes, segundo a sua vontade. E, como a lenda de Merlin está ligada às grutas de vidro, às torres invisíveis, às colinas vazias onde ele dorme pela eternidade, eu o vejo como a ligação entre os mundos; o instrumento pelo qual, como ele diz, "todos os reis transformam-se num Rei, e todos os deuses num Deus". Para isso, abdica da sua vontade própria e do seu desejo de uma masculinidade normal. As "colinas vazias" são o ponto de entrada física para o outro mundo, e Merlin é o seu correspondente humano, o ponto de encontro entre os mundos dos deuses, homens, animais e espíritos das sombras. Pode-se ver o encontro dos mundos real e da fantasia na figura de Máximo. Magno Máximo, o soldado que sonhava com um império, foi real; ele comandou em Segontium até partir para a Gália na sua tentativa vã de poder. "Macsen Wledig" é lenda, uma das histórias celtas que depois floresceram na Procura do Santo Graal. Neste romance, liguei os fatos do grande precursor de Artur e do seu sonho imperial aos episódios de espada das Lendas Arturinas, tudo em forma de uma história de Procura. A narrativa da "Espada de Máximo" é invenção minha. Segue o mesmo padrão de "procurar e achar" da qual a Procura do Santo Graal, mais tarde incorporada às Lendas Arturinas, é um exemplo. As histórias do Santo Graal, identificando-o como a Taça da Ultima Ceia, são produtos do décimo segundo século, tendo como modelo os elementos principais das primitivas histórias celtas de "procura"; possuem até elementos mais antigos. As histórias do Graal têm certos pontos em comum, variam nos detalhes, mas permanecem constantes na forma e na idéia. Há sempre um jovem desconhecido, o bel inconnu, que cresce nas florestas, ignorando seu nome de origem. Sai de casa em busca de sua identidade. Chega a um País Destruído, governado por um rei aleijado (impotente); há sempre um castelo, geralmente numa ilha, que o jovem encontra por acaso. Ele o alcança num barco que pertence a um pescador real, o Rei Pescador das lendas do Graal. O Rei Pescador é, às vezes, identificado com o rei impotente do País Destruído. O dono do castelo da ilha é um rei de outro mundo, e lá o jovem acha o objeto que procurava, às vezes uma taça ou uma lança, às vezes uma espada, quebrada ou inteira. No final da procura, ele acorda ao lado da água, com o seu cavalo amarrado nas proximidades, e a ilha volta a ser invisível. Quando retorna, a paz e a fertilidade são devolvidas ao País Destruído. Alguns contos incluem um veado de coleira de ouro, que conduz o moço ao seu destino. Para maiores referências, ver Literatura Arturina na Idade Média, uma História Colaborativa editada por R. S. Loomis (Oxford University Press, 1959); e A Evolução da Lenda do Graal, de D. D. R. Owen (University of St. Andrews Publications, 1968).

Outros Comentários Curtos SEGONTIUM — Geoffrey de Monmouth em Vita Merlini conta-nos das taças feitas pelo Ferreiro Weland em Caer Seint (Segontium), que foram dadas a Merlin. Segundo outra narrativa de espada, feita por Weland, ela foi dada a Merlin por um rei galés. Há uma breve referência à Crônica Anglo-Saxã do ano 418 A.D. "Neste ano, os romanos reuniram todos os tesouros da Inglaterra, e esconderam alguns no chão, para que ninguém os pudesse achar, e levaram alguns para a Gália." GALAVA — A parte principal da lenda coloca o Rei Artur nos países celtas do oeste, Cornuália (Cornwall), Gales, Bretanha. Nisto, acompanhei as lendas. Há, porém, evidências que apóiam outra forte tradição que coloca Artur ao norte da Inglaterra e na Escócia. Assim, esta história segue para o norte. Situei o tradicional "Sir Ector da Forest Sauvage" (que criou o jovem Artur) em Galava, a moderna Ambleside no Distrito do Lago. Sempre quis saber se "a fonte de Galabes que ele (Merlin) costumava assombrar" poderia ser a Galava ou Galaba Romana. (Em A Gruta de Cristal, dei uma interpretação diferente. Os romanceiros medievais diziam que Galapas era um gigante, uma versão do velho guardião da fonte ou de qualquer curso dágua.) Artur sendo adotado por Ector e Bedwyr hospedando-se em Galava são fatos plausíveis; Procopius conta que então, como mais tarde, os meninos de boa família saíam de casa para serem educados. Quanto à "capela da mata", quando inventei um santuário na Floresta Agreste, não resisti à tentação de chamá-lo de Capela Verde, em homenagem ao poema medieval Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, que se passa em algum lugar do Distrito do Lago. MURALHA DE AMBRÓSIO — É a Wansdyke, ou Dique de Woden, como chamavam os saxões, que o consideravam obra dos deuses. Estendia-se de Newbury até o Severa, e ainda se consegue localizar algumas partes dela. Foi construída provavelmente entre 450 e 475 A.D., daí tê-la atribuído a Ambrósio. CAER BANNOG — O nome, celta antigo significando "castelo dos picos", é a minha própria interpretação dos diversos nomes (Car-bonek, Corbenic, Caer Benoic, etc...) dados ao castelo onde o jovem encontra o Graal. Há uma lenda celta na qual Artur rouba um caldeirão (um recipiente mágico ou graal) e uma espada maravilhosa de Nuadda, ou Llyd, Rei do "outro mundo". CEI E BEDWYR — Companheiros de Artur na lenda, Cei era filho de Ector e tornou-se senescal de Artur. O nome de Bedwyr foi, mais tarde, medievalizado para Bedivere, mas, no seu relacionamento com Artur, parece ser a origem de Sir Lancelote. Daí a referência à guenhwyvar (sombra branca: Guinevere). CADOR DE CORNWALL — Quando Artur morreu sem filhos, dizem que deixou seu reino para o filho de Cador.

MORGAUSE — A respeito do incesto involuntário de Artur com a irmã há uma enorme confusão de lendas. A história mais comum é que ele teve relações com sua meia-irmã Morgause, esposa (ou amante) de Lot, e concebeu Mordred, que seria a causa da sua queda, eventualmente. A sua irmã Morgan, ou Morgiana, virou "Morgan le Fay", a feiticeira. Dizem que Morgause teve quatro filhos com Lot, e que eles tornaram-se seguidores fiéis de Artur. Isto parece ser improvável, se Artur dormiu com ela quando era mulher de Lot, portanto criei a minha própria história da confusão reinante, sugerindo que, após deixar a corte, Morgause não perderá tempo em substituir a irmã como rainha de Lot. Parece que havia um convento perto de Caer Eidyn (Edinburgh), em Lothian, ao qual Morgiana pode ter-se recolhido. Esta poderia ser a "casa das bruxas" oh "feiticeiras" da lenda, e é tentador suporse que daí vieram Morgiana e as suas freiras para levar Artur e cuidar dele após a sua última batalha contra Mordred em Camlann. Coei, Rei de Rheged, é o original do Velho Rei Cole das canções de ninar. Dizem que Hueil, um dos dezenove filhos de Caw de Strathclyde, era detestado por Artur. Outro dos filhos, Gildas, o monge, retribuía o sentimento. Foi ele que, em 540 A.D., escreveu A Perda e a Conquista da Inglaterra, sem referir-se nem uma só vez ao nome de Artur, embora mencionasse a Batalha de Badon Hill, a última das doze grandes batalhas de Artur, nas quais destruiu o poder saxão. Deduz-se do livro de Gildas que, se Artur era cristão, o seu cristianismo era só da boca para fora. De qualquer modo, não era amigo dos monges. Caliburn é o nome mais pronunciável para a espada de Artur, mais tarde romanceada como Excalibur. A cor de Artur era o branco; seu cão branco, Cabal, tem o seu lugar nas lendas. Canrith quer dizer "fantasma branco". Dessas breves notas pode-se deduzir que qualquer dos episódios da minha história pode ser (citando Geoffrey Ashe de novo) "considerado como fato, imaginação ou alegoria religiosa, ou como os três ao mesmo tempo". Pelo menos nisso, se em nada mais, está rigorosamente de acordo com a época. M.S. Novembro, 1970 — Novembro, 1972.

Mary Stewart O ÚLTIMO ENCANTAMENTO TRILOGIA DE MERLIN – LIVRO 3



Tradução de EVELYN KAY MASSARO Título Original: The Last Enchantment

Para aquele que morreu e tornou a viver, que desapareceu e foi encontrado.

Livro 1 – DUNPELDYR

1 Nenhum rei gostaria de começar seu reinado com um massacre de inocentes, mas é o que falam de Artur, apesar de ele ser respeitado como um nobre soberano, protetor dos grandes e dos pequenos. E mais difícil acabar com um boato do que pôr fim a uma calúnia proferida em altos brados. Além disso, na mente dos homens simples, que consideravam o Grande Rei o proprietário de suas vidas, ele não poderia ser responsabilizado por tudo o que acontecesse em seus domínios, tanto pelas coisas boas quanto pelas ruins, desde uma formidável vitória no campo de batalha até uma violenta tempestade ou perda de um rebanho. Assim, apesar de uma bruxa ter tramado o massacre e outro rei ter dado a ordem para que fosse iniciado, e apesar de eu ter tentado de tudo para assumir a culpa, a dúvida persiste. Falam que, no primeiro ano de seu reinado, Artur, o Grande Rei, mandou suas tropas procurarem e matarem todos os recém-nascidos, na esperança de pegar nessa rede sangrenta um único menino, o filho bastardo do rei com sua meia irmã Morgause. "Calúnia", clamei, e seria bom poder dizer abertamente que estavam espalhando uma mentira. Só que não era bem assim. E mentira que Artur tenha dado a ordem para o massacre, mas sem dúvida seu pecado foi a principal causa do acontecido. E, apesar de uma matança de inocentes ser algo que jamais passaria por sua cabeça, é verdade que desejava a morte do próprio filho. Portanto, é justo que alguma parte da culpa recaia sobre ele, mas é igualmente justo que um pouco incida sobre mim, porque eu, Merlin, considerado um homem de visão e poder, esperei tranqüilamente enquanto a perigosa criança era gerada. Posso suportar a culpa, porque atualmente considero-me além do julgamento dos homens, mas Artur ainda é jovem bastante para sentir o ferrão do boato e ser perseguido pelo remorso. E mais: quando tudo aconteceu, ele era ainda mais jovem e estava envolvido na maré estonteante da vitória, do amor do povo, da aclamação dos soldados e do clima de mistério que cercou a retirada da espada de seu leito de pedra. Contarei o que aconteceu. O rei Uther Pendragon estava à frente de seu exército em Luguvallium, capital do reino de Rheged, no norte, quando se viu diante de um grande ataque saxão comandado pelos irmãos Colgrim e Badulf, netos de Hengist. O jovem Artur, então pouco mais do que um menino, fora trazido ao seu primeiro campo de batalha pelo pai adotivo, o conde Ector de Galava, que o apresentara ao rei. Artur ignorava seu parentesco real, e Uther, apesar de ter-se mantido informado sobre o crescimento e educação do rapazinho, jamais o vira pessoalmente depois do nascimento. Isso porque, durante a louca noite de amor entre Uther e Ygraine, na época esposa de Gorlois, duque da Cornualha e o mais fiel comandante do rei, este tombara no campo de batalha. Apesar de Uther não ter sido o culpado pelo acontecido, ele sentira um tal peso no coração que jurara nunca reconhecer como sua a criança que pudesse resultar daquele amor culpado. Quando chegou o momento, Artur foi entregue a mim para que o criasse, o que fiz, levando-o para longe do rei e da rainha. Todavia, eles não tiveram outro filho e finalmente o rei Uther, já enfermo e ciente do perigo que corria diante dos saxões em Luguvallium, viu-se obrigado a chamar o rapaz para reconhecê-lo publicamente como seu herdeiro e apresentá-lo aos nobres e reis menores. Antes, porém, que pudesse realizar o que tencionava, os saxões atacaram. Uther, embora doente demais para liderar as tropas, foi levado ao campo de batalha numa liteira, tendo Cador, duque da Cornualha, no comando da ala direita, o rei Coei de Rheged à frente da ala esquerda, e Caw de

Strathclyde e outros chefes nortistas liderando o resto dos soldados. Apenas Lot, rei de Lothian e Orkney, não se apresentou para a luta. Lot, um rei poderoso mas aliado duvidoso, manteve seus homens na reserva, alegando que os colocaria na batalha quando fosse necessário. Dizem que ele ficou na retaguarda na esperança de ver a derrota do exército de Uther, quando então reivindicaria o trono. Se foi verdade, suas esperanças deram em nada. Quando, no furor do combate em torno da liteira do rei, a espada do jovem Artur quebrou em sua mão, Uther atirou para ele a sua própria, com ela entregando, como todos entenderam, a liderança do reino. Depois disso, voltou a recostar-se na liteira e ficou observando o rapaz, que parecia resplandecer como um cometa em seu entusiasmo, tomar a frente de um ataque que pôs os saxões para correr. Posteriormente, durante a festa da vitória, Lot chefiou uma facção de governantes rebeldes que se opôs ao gesto de Uther, desafiando sua escolha de sucessor. Mas, no auge das comemorações, o rei morreu, deixando Artur para enfrentar sozinho as contestações. O que aconteceu então tornou-se a base para inúmeras canções e lendas. No momento, é bastante dizer que, por seu porte real e mediante o sinal enviado pelo deus, Artur mostrou ser o rei incontestável. Mas a essa altura a semente do mal já fora lançada. No dia anterior, quando ainda não tinha conhecimento de sua ascendência real, Artur ficara conhecendo Morgause, a filha bastarda de Uther, e portanto sua meia irmã. Ela era linda e ele muito jovem, e estava inflamado pela sua primeira vitória, de modo que ao ser informado por uma dama de companhia que ela o convidava para uma visita a seu quarto, aceitou ansiosamente, sem a menor idéia de que o prazer daquela noite poderia resultar em mais do que o resfriamento de seu sangue e perda de sua virgindade. A dela, com certeza, já fora perdida muito tempo antes. Também não podia ser considerada ingênua em outras coisas. Morgause sabia quem era Artur e pecou com ele de propósito, visando o poder. Um casamento, é claro, estava fora de questão, mas um bastardo nascido de um incesto talvez fosse uma arma poderosa em sua mão quando o velho rei, seu pai, morresse e Artur subisse ao trono. Quando o rapaz descobriu o que fizera, esteve a ponto de aumentar seus pecados matando a meia irmã, mas eu intervim imediatamente. Bani Morgause da corte, obrigando-a a partir para York, onde a filha legítima de Uther, Morgan, estava alojada com seu séqüito, esperando a hora do casamento com o rei de Lothian. Morgause, que como todos naquela época sentia um grande medo de mim, obedeceu-me sem discussão e partiu para criar seu bastardo no exílio. O que fez, como se verá, à custa da irmã, Morgan. Todavia, falarei sobre isso mais tarde. Por enquanto será melhor voltar ao momento quando, na manhã de um novo e auspicioso dia, já esquecido de Morgause, Artur Pendragon sentou-se sob o sol forte que banhava a cidade de Luguvallium de Rheged para receber as homenagens de seus súditos e aliados. Eu não me encontrava lá porque já apresentara minha promessa de lealdade de madrugada, no santuário da floresta onde Artur erguera a espada de Maximus do altar de pedra, com esse ato declarando-se o verdadeiro rei. Quando ele e os outros príncipes e nobres partiram envoltos na pompa e esplendor do triunfo, fiquei ali sozinho, porque tinha uma dívida a saldar com os deuses do lugar. Atualmente o chamam de capela — a Capela Perigosa, como fora batizada pelo próprio Artur —, mas já era um lugar sagrado muito antes de os homens terem assentado pedra sobre pedra para construir o altar. Fora sagrado primeiro para os deuses da terra, os pequenos espíritos que vagam pelos morros, rios e florestas, e para os deuses do ar, mais importantes, cujo poder se expressa através das nuvens, geadas e ventos uivantes. Ninguém sabia dizer para quem a primeira capela fora construída. Mais tarde, com a chegada dos romanos, viera Mitra, o deus dos soldados, e fora erigido um novo altar para ele. O

lugar mantinha-se envolto na antiga santidade. Os velhos deuses continuavam recebendo seus sacrifícios e as nove candeias permaneciam acesas junto à porta de entrada. Durante todos os anos em que Artur ficou na floresta Selvagem, vivendo sob a proteção do conde Ector para o bem de sua própria segurança, mantive-me perto dele, sendo conhecido apenas como o guardião do santuário, o eremita da Capela Verde. Ali eu finalmente acabara escondendo a grande espada de Maximus (a quem os galeses chamam de Macsen), até o garoto crescer o suficiente para erguê-la e com ela expulsar e destruir os inimigos do reino. O próprio imperador fizera isso cem anos antes e os homens agora pensavam na espada como um talismã, uma arma mágica enviada pelos deuses, para ser empunhada somente na vitória e apenas pelo homem que tinha o direito de usá-la. Eu, Merlinus Ambrosius, parente de Macsen, havia retirado a espada de seu esconderijo subterrâneo, desde muito esquecido, e a separado para alguém que um dia seria maior do que eu. De início coloquei-a numa caverna no fundo do lago da floresta e posteriormente no altar da capela, presa na pedra como se ali estivesse entalhada, e oculta à visão e toque comuns pelo fogo frio e branco que com minha arte chamei dos céus. Desse fulgor sobrenatural, para espanto e terror de todos os presentes, Artur tirara a espada. Mais tarde, tendo o rei e seus nobres partido, pôde ser visto que o fogo do novo deus limpara o lugar de tudo o que antes era considerado sagrado, deixando apenas o altar para ser enfeitado unicamente em seu louvor. Eu desde muito tempo sabia que esse deus não aceitava companheiros. Ele não era meu deus e eu desconfiava que nunca seria o de Artur, mas por todos os cantos da Bretanha ele estava se movimentando, esvaziando antigos santuários e mudando o estilo da adoração. Eu já vira com espanto e desgosto como seu fogo tinha varrido os sinais de uma espécie mais antiga de santidade e agora compreendia que ele pusera sua marca na Capela Perigosa — e talvez na própria espada. Portanto, durante o resto do dia trabalhei para deixar o santuário limpo e pronto para seu novo inquilino. Levou muito tempo. Eu ainda sentia as dores de ferimentos recentes e estava rígido devido a uma noite inteira de vigília, mas há coisas que precisam ser executados de maneira ordenada e respeitosa. Assim, finalmente terminei e, quando um pouco antes do crepúsculo o servo do santuário voltou da cidade, peguei o cavalo que ele trouxera e saí cavalgando no silêncio da floresta. Apesar de ser bem tarde quando cheguei aos portões, encontrei-os abertos e ninguém me impediu de entrar. As comemorações continuavam; fogueiras iluminavam o céu, o ar pulsava com as cantorias e no meio da fumaceira podia-se sentir o cheiro de carne assada e de vinho forte. Mesmo a presença do cadáver do rei, deitado na capela do mosteiro sob a guarda de seus soldados, não fora capaz de colocar rédeas nas línguas dos homens. Eram acontecimentos demais para uma cidade tão pequena; apenas os muito velhos e os muitos novos conseguiram dormir naquela noite. Eu também não pude pregar os olhos. Já passava bem da meia-noite quando meu criado entrou, seguido de Ralf. Ele abaixou a cabeça para não se chocar com o batente — era um rapaz muito alto — e esperou a porta ser fechada com um olhar bem mais cauteloso do que os muitos que já me lançara no passado, quando era meu pajem e temia os meus poderes. — Ainda acordado? — Como você pode ver. Eu estava sentado na cadeira de espaldar alto ao lado da janela. O criado providenciara um

braseiro para me proteger do frio da noite de setembro. Eu me banhara, cuidara de meus ferimentos e vestira um camisolão bem solto antes de dispensar o criado e me ajeitar para um bom descanso. Depois do clímax de fogo, dor e glória que elevara Artur à condição de rei, eu, que vivera praticamente toda a minha vida com a intenção de atingir esse objetivo, sentia necessidade de silencio e isolamento. O sono recusava-se a chegar, mas fiquei ali sentado, satisfeito e passivo, com os olhos fixos no brilho suave do braseiro. Ralf, ainda armado e engalanado como eu o vira pela manhã na capela, parecia cansado e abatido, mas era jovem e o auge da noite era para ele um recomeço e não um fim. — Você devia estar deitado — disse abruptamente. — Soube que ontem à noite foi atacado a caminho da capela. Ficou muito ferido? — Não foi nada grave, mas os ferimentos doem bastante! Não precisa se preocupar, são mais arranhões do que cortes, e já cuidei deles. Mas receio que o cavalo que me emprestou tenha ficado manco. Lamento por isso. — Já o vi. Também não foi muito atingido. Vai ficar bom em uma semana, no máximo. Mas você parece exausto, Merlin. Deviam... deviam deixá-lo descansar. — E não vão deixar? — Quando o vi hesitar, ergui uma sobrancelha. — Vamos, fale logo. O que não está querendo me dizer? O olhar cauteloso se transformou numa leve careta. Mas a voz, subitamente formal, saiu sem expressão, como a dos palacianos que, como se costuma dizer, nunca sabem para que lado correrá o veado. — Príncipe Merlin, o rei me pediu para chamá-lo aos seus aposentos. Quer vê-lo assim que seja conveniente para o senhor. — Enquanto falava, Ralf olhava para uma porta na parede oposta à da janela. Até a noite anterior, Artur dormira nesse anexo de meu quarto e entrara e saíra atendendo a ordens minhas. Nossos olhares se encontraram e ele sorriu.— Em outras palavras, agora mesmo. Sinto muito, Merlin, mas essa foi a ordem que recebi pelo camareiro-mor. Eles podiam ter esperado até a manhã. Pensei que você já estivesse dormindo. — Está com pena de mim? Por quê? Afinal, os reis têm de começar seu reinado em algum lugar. E ele, já descansou um pouco? — Que nada! Mas finalmente se livrou daquele pessoal e, enquanto estávamos no santuário, os criados arrumaram os aposentos reais. Ele está lá agora. — Acompanhado? — Só por Bedwyr. Isso, eu sabia, significava a presença do amigo e mais um pequeno exército de camareiros e criados, e talvez alguns cortesãos esperando nas antecâmaras. — Então peça para ele me desculpar pelo atraso de alguns minutos. Estarei lá assim que me vestir. Quer pedir a Lleu para vir me ajudar? Meu pedido, contudo, foi terminantemente recusado. O criado foi incumbido de levar minha resposta enquanto Ralf, com a mesma naturalidade do passado, quando era apenas um menino, ajudoume a me vestir. Pegou o camisolão de minhas mãos, dobrou-o e com todo o cuidado, respeitando meus membros enrijecidos, me acomodou dentro de um traje para o dia, e depois ajoelhou-se para me calçar as sandálias e prender as fivelas.

— Foi tudo bem durante o dia? — perguntei. — Muito bem. Nenhuma sombra para empaná-lo. — E Lot de Lothian? — Manteve-se no devido lugar. — Ralf sorriu, com um ar maldoso. — O que ocorreu na capela o impressionou... como a nós todos. — A última frase saiu num resmungo, enquanto ele se abaixava para prender melhor a sandália. — E a mim também, Ralf. Não sou imune ao fogo do deus. E como esta' Artur? — Ainda caminhando nas nuvens. — Dessa vez a careta foi de afeição. Ralf levantou-se. — Mas do mesmo jeito. Penso que já está à procura de mais tempestades. E agora vamos ao cinturão. Pode ser este? — Está bem. Obrigado. Tempestades? Tão cedo? — Tirei o cinturão das mãos de Ralf e prendi-o sozinho. — Você pretende ficar ao lado dele para ajudá-lo a enfrentá-las, ou dá como encerrado seu dever? Ralf passara os últimos nove anos em Galava de Rheged, o distante canto do país onde Artur vivera como protegido do conde Ector. Casara-se com uma jovem da região e agora tinha filhos pequenos. — Para dizer a verdade, ainda não pensei nisso. Tudo aconteceu depressa demais. — Ele riu. — Mas de uma coisa tenho certeza: se ficar com ele terei saudade dos dias cheios de paz, quando eu não tinha nada mais a fazer que ficar de olho nos dois diabi... isto é, em Bedwyr e no rei! E você? Pretende continuar aqui como o eremita da Capela Verde? Sairá de seu isolamento para ir com ele? — Sou obrigado. Dei minha palavra. Além disso, esse é o meu lugar, que também poderá ser o seu, se quiser. Nós dois fizemos dele um rei e esse é o fim da primeira parte da história. Você, diferente de mim, tem o privilégio da escolha e terá bastante tempo para se decidir. — Fiz uma pausa antes de continuar, enquanto ele abria a porta para mim e afastava-se para me deixar passar primeiro. — Nós despertamos um vento muito forte, Ralf. Vejamos agora para onde ele nos arrastará. — E você o deixaria à vontade para isso? — Minha mente sempre eloqüente me diz que talvez seja necessário eu interferir. — Ri. — Mas, vamos, comecemos obedecendo as ordens dele. Algumas pessoas ainda permaneciam na antecâmara principal, mas eram na maioria criados, tirando a louça e limpando a mesa dos restos de uma refeição que aparentemente o rei acabara de fazer. Dois homens guardavam a porta dos aposentos particulares. Em um banco encostado perto de uma janela um pajem dormia a sono solto. Lembrei-me de tê-lo visto quando eu estivera nessa ala do castelo, três dias antes, para conversar com Uther, já moribundo. Notei a ausência de Ulfin, o criado pessoal do velho rei e camareiro-mor. Pude adivinhar onde se encontrava. Ele serviria ao novo rei com a mesma devoção que dedicara a Uther, mas nessa noite seria encontrado na capela do mosteiro, junto de seu falecido amo. O homem que abriu a porta de Artur era um estranho para mim, como metade dos criados que trabalhavam nessa ala. Eram homens e mulheres que normalmente serviam ao rei de Rheged quando ele ocupava o castelo, mas que agora trabalhavam ao lado dos nossos devido ao aumento de serviço causado pela ocasião e pela presença do Grande Rei. De qualquer maneira, todos me conheciam. Quando entrei na antecâmara fez-se um súbito silêncio e todos os movimentos cessaram de repente, como se tivesse sido lançado um encantamento. Um criado que carregava algumas travessas pareceu se petrificar no meio de seu caminho, como se

tivesse se defrontado com a terrível Medusa. Todos os rostos voltados para mim se imobilizaram de igual maneira, pálidos e boquiabertos, cheios de medo. Surpreendi o olhar de Ralf sobre mim, irônico e afetuoso, como se dissesse: "Está vendo só?". Então compreendi melhor sua própria hesitação quando viera me procurar com o recado do rei. Como meu criado e companheiro ele se mantivera bem próximo de mim no passado e, muitas vezes, durante as profecias e aquilo que os homens chamam de mágica, observara e sentira meu poder em ação. Contudo, o poder que soprara e queimara dentro da Capela Perigosa na noite anterior fora de um tipo muito diferente. Mesmo assim, eu adivinhava as histórias que corriam por toda Luguvallium, rápidas e mutáveis como o próprio fogo do deus. Com toda a certeza, a gente mais humilde não falara de outro assunto durante o dia inteiro e, como acontece com todos os casos estranhos, a lenda cresceria ao ser disseminada. Os criados continuaram me olhando com um espanto que chegava a congelar o ar, como faz o vento frio que antecede a chegada de um fantasma, mas eu já estava habituado. Passei por eles dirigindo-me à porta dos aposentos do rei e os guardas deram um passo para o lado sem nenhuma menção de tentar impedir minha entrada. Antes de o camareiro tocar a porta, esta se abriu e Bedwyr saiu. Bedwyr, um rapaz moreno, calado, dois ou três meses mais novo que Artur, era filho de Ban, rei de Benoic e primo de um rei da Bretanha. Os dois rapazes eram amigos íntimos desde a infância, quando Bedwyr fora mandado a Galava para aprender as artes da guerra com o mestre-de-armas de Ector e participar das aulas que eu ministrava a "Emrys" (como Artur era chamado naquela época) no santuário da floresta. Na ocasião ele já dava mostras dessa estranha contradição, um guerreiro nato que também é poeta, à vontade tanto na ação como nos saraus dos castelos. Um puro celta, poder-se-ia dizer, enquanto Artur, assim como meu pai, o Grande Rei Ambrosius, era todo romano. Eu até esperava ver no rosto de Bedwyr o mesmo temor causado pelos eventos da noite milagrosa que vira nas outras pessoas, mas percebi nele apenas o resultado do júbilo, uma franca felicidade e uma total confiança no futuro. Sorridente, Bedwyr afastou-se para me deixar passar. — Ele está sozinho agora. — Onde você vai dormir? — Meu pai me alojou na torre ocidental. — Então, boa noite, Bedwyr. Mas, quando eu ia passar, ele me impediu. Inclinou-se rapidamente, pegou minha mão e beijou-a. — Eu devia ter imaginado que você tomaria as providências para tudo dar certo. Cheguei a sentir medo por alguns instantes quando Lot e seu bando de chacais começaram aquela confusão traiçoeira... — Psiu! — repreendi-o. Ele falara baixinho, mas ali as paredes tinham ouvidos. — Por enquanto está tudo acabado. Esqueça. E vá direto encontrar-se com seu pai na torre ocidental, entendeu? — Pelo que me disseram — seus olhos escuros brilhavam —, o rei Lot vai ocupar a torre oriental. — Exatamente. — Não se preocupe, Emrys já tinha me alertado. Boa noite, Merlin. — Boa noite e um sono pacífico para todos nós. Bem que precisamos dele. O rapaz sorriu, esboçou uma meia continência e saiu. Virei-me para o criado que segurava a porta e entrei. Ouvi-a se fechando atrás de mim. Os apetrechos da doença haviam sido retirados do aposento, juntamente com a colcha vermelha

que antes cobria o leito real. O piso fora lavado e polido e a grande cama era agora forrada por lençóis novos e uma coberta feita de peles de lobo. A poltrona forrada de vermelho, com o leão gravado no espaldar, continuava no mesmo lugar, tendo à frente sua banqueta e ao lado o tripé de ferro com o lampião para leitura. As janelas abertas deixavam entrar o ar frio da noite de setembro e o vento inclinava as chamas das velas para os lados, desenhando estranhas sombras nas paredes coloridas. Artur estava sozinho perto de uma janela, um joelho apoiado numa banqueta e os cotovelos no peitoril. Durante o dia, dali se avistava a faixa de vegetação que beirava o rio. Ele, contudo, olhava para a escuridão e deu-me a impressão de que sorvia grandes goles de um outro rio, este feito de ar puro e movente. Trazia os cabelos úmidos, como se tivesse acabado de se banhar, mas continuava com as mesmas roupas que usara para as cerimônias, em branco e prata, com um cinturão galés de ouro cravejado de turquesas e fivela de esmalte. Tirara apenas o talim de couro e agora a grande espada Caliburn, dentro de sua bainha, pendia de um gancho situado atrás da cama. A luz dos lampiões fazia cintilar as pedras preciosas que ornamentavam o punho: esmeralda, topázio, safira, e também refulgia no anel no dedo do rapaz. O anel de Uther, onde estava gravado um dragão. Ele ouviu-me e virou-se para mim. Parecia leve e rarefeito, como se o vento do dia houvesse soprado através dele, deixando-o sem peso. A pele apresentava a palidez da exaustão, mas os olhos continuavam brilhantes e vivos. Em torno dele, já presente e inegável, formara-se a aura de mistério que cai como um manto sobre um rei. Ela envolvia sua cabeça, seus ombros. Nunca mais "Emrys" seria capaz de se esconder nas sombras. Isso me fez pensar como havíamos conseguido mantê-lo seguro e secreto entre homens menores. — Você queria falar comigo — declarei. — Quis o dia todo. Você prometeu ficar ao meu lado enquanto eu passasse por todo esse negócio de virar rei. Onde esteve o tempo todo? — Bem perto. Fiquei no santuário... na capela... quase até o pôr-do-sol. Achei que você estaria muito ocupado para notar minha ausência. Artur deu uma risadinha. — Ocupado? Só isso? Para mim, foi como se estivesse sendo comido vivo, ou melhor, como se estivesse nascendo de novo... e com dificuldade, como um pintinho se esforçando para quebrar a casca do ovo. Virar príncipe de um dia para o outro já foi bem duro, mas não é nada diante do cerimonial que tive de enfrentar para me tornar rei. Seria como comparar um pintinho com um cavalo. — Se quer mesmo usar essa imagem, que seja pelo menos uma aguiazinha. — Sorri. — Com o tempo, talvez. Esse é o problema, claro. Tempo, não houve tempo. Num instante eu não era nada, apenas o bastardo não reconhecido de alguém, dando graças pela oportunidade de participar de uma batalha e talvez ver o rei de longe, e no seguinte, tendo em poucas horas passado de príncipe a herdeiro do trono, ser o Grande Rei em pessoa, com uma quantidade de floreios e rapapés que, tenho certeza, nenhum soberano teve de suportar antes de mim. — Acho que entendo como você se sente. — Sorri. — Nunca cheguei tão alto, claro, e, como você bem sabe, comecei muito mais embaixo, mas já vivi situações parecidas. Mas agora, meu rapaz, tente se aquietar um pouco para poder dormir. O amanhã logo chegará. Quer uma poção sonífera? — Não, você sabe que nunca quis experimentar essas coisas. Pegarei no sono assim que você sair. Merlin, sinto muito por ter lhe pedido para vir até aqui a esta hora da noite, mas eu precisava conversar com você. Não tivemos tempo para isso hoje e com certeza não teremos amanhã.

Artur afastou-se da janela enquanto falava e foi até uma mesa onde havia folhas de papel e tabletes de cera. Pegou um estilete e alisou a cera com a extremidade rombuda. Foi um gesto distraído e a inclinação da cabeça fez os cabelos escuros caírem para a frente. A luz deslizou pelos contornos de seu rosto e tocou os cílios espessos. Meus olhos se marejaram de lágrimas. Senti o tempo voltar atrás. Era Ambrosius, meu pai, ao lado da mesa, mexendo com o estilete e me dizendo: "Se um rei tivesse você a seu lado, poderia governar o mundo inteiro..." Bem, o sonho finalmente se tornara realidade. Pisquei para afastar a recordação e esperei pelas palavras do jovem rei. — Estive pensando — disse ele abruptamente. — O exército saxão não foi completamente destruído e ainda não consegui notícias comprovadas sobre Colgrim ou Badulf. Penso que ambos escaparam incólumes. E possível que qualquer dia desses fiquemos sabendo que conseguiram tomar um barco, voltando para o continente ou indo para os territórios ocupados por eles no sul. Pode ser até que tenham se refugiado nas terras selvagens ao norte da muralha, na esperança de se reunirem quando tiverem reagrupado suas forças. — Ele ergueu a cabeça. — Não preciso fingir, Merlin. Você sabe muito bem que não sou um guerreiro experimentado e não tenho como julgar se a vitória que conseguimos foi decisiva ou qual é a probabilidade de os saxões se recuperarem. Eu pedi orientação, claro. Convoquei um breve conselho assim que a noite caiu, quando terminaram as cerimônias. Ordenei... isto é, gostaria que você estivesse conosco, mas fui informado de que só seria encontrado na capela. Coei também não pôde comparecer... Imagino que você saiba que ele foi ferido. Por acaso teve oportunidade de vê-lo? Qual foi sua impressão? — Nada boa. Ele é velho e sofreu um corte muito feio. Sangrou demais antes de poder ser socorrido. — Era o que eu temia. Tentei vê-lo, mas fui informado de que ele estava inconsciente. Desconfiavam de uma inflamação nos pulmões... Bem, o príncipe Urbgen, o herdeiro, veio no lugar dele, junto com Cador e Caw de Strathclyde. Ector e Ban de Benoic também estavam lá. Conversei longamente com eles e todos disseram a mesma coisa: alguém vai ter de ir ao encalço de Colgrim. Caw vai para o norte o mais rápido possível, porque precisa defender sua própria fronteira. Urbgen fica aqui em Rheged. Afinal, seu pai está à beira da morte. Portanto, a escolha mais óbvia seria Lot ou Cador. Bem, acho que todos concordamos que não pode ser Lot. Apesar de ele ter feito o juramento de lealdade durante a cerimônia na capela, ainda não confio nele e com certeza não quero vê-lo perto de Colgrim. — Concordo inteiramente. Vai mandar Cador, então? Não tem mais dúvidas sobre ele? Cador, duque da Cornualha, seria talvez a escolha mais indicada. Um homem no auge de sua força, era um guerreiro experimentado e leal. Numa certa época cheguei a considerá-lo inimigo de Artur porque tinha bons motivos para isso, mas ele mostrara ser um pessoa de juízo, equilibrada e de larga visão, capaz de enxergar além de seu ódio por Uther para sonhar com uma Bretanha unida contra o terror saxão. Por isso, ele apoiara o novo rei. E Artur, ali mesmo na Capela Perigosa, declarara Cador e seus filhos os novos herdeiros do reino. — Bem... — Artur hesitou e continuou olhando para o estilete. Depois deixou-o cair na mesa e endireitou-se. — O problema é que, sendo minha liderança tão nova... — Ele virou-se para mim e surpreendeu o meu sorriso. O cenho franzido sumiu e foi substituído por um olhar que eu conhecia bem: ansioso, impetuoso, o olhar de um menino, mas, por trás dele, uma vontade de homem que enfrentaria a ferro e fogo qualquer oposição. Uma risadinha fez mudar sua expressão. — Sim, você está certo, como sempre. Eu mesmo irei atrás de Colgrim. — E levará Cador?

— Não, penso que devo ir sem ele. Depois do que aconteceu... a morte de meu pai e tudo o mais... depois da capela... Se vai haver mais lutas devo estar lá em pessoa, para conduzir as forças e terminar o trabalho que começamos.— Fez uma pausa, como esperando uma pergunta ou um protesto. — Pensei que você fosse tentar me impedir. — Não. E por quê? Estou plenamente de acordo. Você precisa provar que não depende apenas da boa sorte. — E isso mesmo. — Ele pensou por um instante. — É difícil pôr em palavras mas, desde que você me trouxe aqui e me apresentou ao rei, foi como se... não sei explicar exatamente, mas tenho a impressão de que alguma coisa esteve me usando, nos usando a todos... — Sim. Um vento forte soprando e nos levando com ele. — E agora o vento desapareceu — disse Artur sobriamente. — E teremos de contar apenas com nossas próprias forças, como se tudo... tudo até agora tivesse sido mágica e milagres que hoje não existem mais. Merlin, você notou que ninguém que estava lá comigo comentou o que houve no santuário? E como se tivesse acontecido num passado distante, como se fosse uma lenda, uma canção. —E é fácil entender por quê. A mágica foi real e forte demais para muitos que estavam lá, mas ficou marcada na mente de todos os que assistiram a ela, e continuará na memória das pessoas que criam as canções e as lendas. Mas isso é para o futuro. Estamos aqui, agora, e com muito o que fazer à nossa frente. Uma coisa é certa: trata-se de um trabalho que só o Grande Rei pode executar. Portanto, você deve ir em frente e agir a sua maneira. O rosto jovem relaxou. As mãos pareceram ficar mais largas sobre a mesa quando ele apoiou o peso sobre elas. Pela primeira vez ficou claro que Artur estava exausto e que seria um alívio deixar o cansaço se apoderar dele, exigindo um sono revigorante. — Não sei por que tive dúvidas de que você iria entender minha posição, Merlin. Creio que agora ficou bem claro porque eu mesmo devo ir, e sem Cador. Ele não gostou da idéia, devo confessar, mas entendeu meu objetivo. Para dizer a pura verdade, gostaria de tê-lo ao meu lado... Mas essa é uma coisa que devo fazer sozinho. É possível que eu, mais do que o povo, esteja precisando de confiança em mim mesmo. — E você precisa de confiança em si próprio? — Na verdade, não. — Uma sombra de sorriso passou por seu rosto. — Talvez amanhã cedo serei capaz de acreditar em tudo o que aconteceu no campo de batalha e considerá-lo absolutamente real, mas por enquanto é como estar vivendo um resto de sonho. Diga-me, Merlin, você acha que seria bom eu pedir a Cador para escoltar a rainha Ygraine em sua volta para o sul? — Sem dúvida. Ele é o duque da Cornualha e, com a morte do rei, o lar da rainha em Tintagel deverá ficar sob a proteção dele. Se Cador foi capaz de superar seu ódio por Uther, com certeza há bastante tempo conseguiu forças para perdoar Ygraine por ter traído seu pai. E como hoje você anunciou que ele e os filhos serão seus herdeiros no Grande Reino, todas as dívidas estão pagas. Sim, peça a Cador para acompanhá-la. Artur pareceu aliviado. — Então está tudo acertado. Já mandei um mensageiro avisá-la. Cador se encontrará com ela na estrada. Eles já estarão em Amesbury quando o corpo de meu pai chegar para o enterro. — Posso entender então que você deseja que eu acompanhe todas as cerimônias do funeral? — Se for de seu agrado. Não posso ir, como deveria, mas o corpo deve ter uma escolta digna de um Grande Rei. Acho até melhor ir você, que o conhecia bem, do que eu, que só há pouco me tornei

parte da realeza. Além disso, se ele vai ficar ao lado de Ambrosius na Ciranda dos Gigantes, você deverá estar presente para supervisionar o afastamento da pedra real para cavarem a sepultura. Posso contar com seu auxílio? — Claro. Penso que, viajando num passo adequado para um cortejo fúnebre, estaremos lá em nove dias. — A essa altura eu também estarei chegando. — Deu um rápido sorriso. — Isto é, se tiver um pouco de sorte. Espero notícias sobre Colgrim, que logo deverão chegar. Pretendo sair atrás dele dentro de umas quatro ou cinco horas, assim que o dia clarear. Bedwyr irá comigo — acrescentou, como se isso lhe desse uma maior confiança e tranqüilidade. — E quanto ao rei Lot, já que entendi que ele não vai junto? Essas palavras me renderam um olhar suave e um tom macio de um político experimentado. — Ele também partirá amanhã cedo. Não para suas próprias terras... pelo menos até eu descobrir para onde foi Colgrim. De fato, pedi-lhe para ir direto a York. A rainha Ygraine irá para lá depois do funeral e será bom Lot estar presente para recebê-la. Suponho que, depois da celebração de seu casamento com minha irmã Morgan, poderei considerá-lo um aliado, quer eu goste disso ou não. E o resto das lutas, aconteça o que acontecer entre hoje e a época do Natal, conseguirei enfrentar sem a ajuda dele. — Então nos encontraremos em Amesbury. E depois disso? — Caerleon — respondeu Artur, sem a menor hesitação. — c as guerras permitirem, irei para lá. Não conheço o lugar mas, pelo que Cador me disse, Caerleon agora tem de ser meu quartel-general. —Até os saxões romperem o tratado e invadirem pelo sul. —Como sem dúvida tentarão. Mas espero que até lá os céus me concedam tempo para respirar. —E para construir outra fortaleza. Artur lançou-me um olhar rápido. —Sim, era nisso que eu estava pensando. Você estará lá para me ajudar? — Em seguida, com uma súbita urgência: — Merlin, você jura que estará sempre ao meu lado para me ajudar? —Enquanto eu for necessário. Embora me pareça — acrescentei em tom de brincadeira — que a pequenina águia está aprendendo a voar bem rápido. — Em seguida, como eu soubesse o que se encontrava por trás da súbita incerteza, concluí: — Estarei esperando por você em Amesbury e pessoalmente o apresentarei a sua mãe.

2 Amesbury é pouco mais do que um vilarejo mas, a partir da época de Ambrosius, adquiriu uma certa grandiosidade, por ter sido seu local de nascimento e por estar perto do grande monumento da Ciranda das Pedras, situado na ventosa planície de Sarum. Trata-se de um círculo de enormes pedras construído pela primeira vez em épocas além da memória dos homens. Eu, usando o que insistem em ver como "artes mágicas", restaurei a Ciranda para ser um monumento de glória da Inglaterra e o local de sepultamento de seus reis. E era ali que Uther seria enterrado — junto de seu irmão, Ambrosius. Levamos o corpo para Amesbury sem incidentes dignos de nota e o deixamos no mosteiro, envolto em especiarias e encaixado no interior de um tronco de carvalho escavado, onde ficou sob um palio cor de púrpura diante da capela do altar. A guarda do rei, que o acompanhava desde Luguvallium, mantinha-se em vigília, enquanto monges e freiras rezavam continuadamente diante do ataúde. Como a rainha Ygraine era cristã, Uther seria enterrado com todos os ritos e cerimônias do catolicismo, apesar de nunca ter dado a menor importância ao Deus cristão. Mesmo ali jazia com duas moedas cintilando sobre suas pálpebras, para pagar o barqueiro que cobrava essa taxa desde milênios, muito antes do nascimento de São Pedro, guardião do portão. A capela aparentemente fora erigida no local onde antes havia um santuário romano; era pouco mais do que um retângulo com paredes de pau a pique e pilares de madeira suportando um teto de palha, mas ostentava um belo piso de mosaico extraordinariamente bem conservado, que era mantido sempre brilhando. A maior parte do desenho, videiras e trepadeiras entrelaçadas, não ofenderia as boas almas cristãs, mas fora colocado um tapete bem no centro, na certa para cobrir alguma deusa ou deus pagão que exibia sua nudez por entre os cachos de uva. O mosteiro refletia um pouco da recente prosperidade de Amesbury. Constituído de uma coleção de edificações de diversos estilos em torno de um pátio calçado, ele estava bem conservado, e a casa do abade, que fora desocupada para abrigar a rainha e seu séqüito, era uma construção de pedras com piso de madeira e uma grande lareira em uma das paredes. O líder da cidade também possuía uma boa casa e se apressara a me oferecê-la como alojamento, mas eu, explicando que o novo rei logo chegaria, deixei-o num frenesi de preparativos e, junto com meus criados, fui me hospedar na estalagem. Era um lugar pequeno, sem pretensões de conforto, limpo e bem aquecido contra os ventos frios do outono. O taverneiro me reconheceu imediatamente, deixando claro que continuava assombrado com o que presenciara quando eu estivera ali para cuidar da restauração da Ciranda das Pedras. Apressou-se a me dar o melhor quarto, prometendo frango e empadão de carneiro para o jantar. No entanto, mostrou-se aliviado quando expliquei que trouxera dois criados comigo e que eles me serviriam no quarto. Nos últimos anos, vivendo na floresta, eu cuidara de tudo sozinho e agora não possuía meus próprios serviçais. Os homens que tinham vindo comigo eram criados de Artur. Um deles era um rapaz baixinho e bem-humorado, nascido nas colinas de Gwynedd, e o outro era Ulfin, que fora o criado pessoal de Uther. O falecido rei o salvara de uma dura servidão e o tratava com uma bondade que Ulfin recompensava com devoção. Naturalmente, agora pertencia a Artur, mas seria cruel negar-lhe a oportunidade de acompanhar o corpo do amo em sua última viagem, de modo que eu pedira especificamente pelos seus serviços. Por minha ordem ele fora ficar na capela com o ataúde, e eu duvidava muito que o veria antes do fim das cerimônias. Enquanto isso, o galés, Lleu, desfez minhas malas, pediu água quente e encarregou o mais inteligente dos meninos que trabalhavam na estalagem de ir até o mosteiro levando um bilhete para ser entregue à rainha a sua chegada. Nele eu lhe dava as boasvindas e me oferecia para visitá-la depois de ela ter repousado da viagem. Como Ygraine já estava a par

dos acontecimentos de Luguvallium, acrescentei simplesmente que Artur ainda não se encontrava em Amesbury, mas era esperado para o enterro. Eu não estava na cidade quando ela chegou. Fora a cavalo até a Ciranda para supervisionar os preparativos para a cerimônia e ao voltar recebi a notícia de que a rainha chegara depois do meio-dia e que me chamaria quando estivesse instalada na casa do abade. Sua convocação veio ao entardecer. O sol se pusera envolto em nuvens sombrias e, quando venci a pé a pequena distância que me separava do mosteiro, já estava quase escuro. A noite sem o brilho das estrelas dava uma impressão de peso, parecendo um palio de veludo negro. Lembrei-me da grande estrela-rei que cintilara na noite da morte de Ambrosius e meus pensamentos voltaram-se novamente para o rei que jazia na capela cercado de monges e nobres, os guardas como estátuas junto do ataúde. E para Ulfin, o único que chorara ao assistir a morte do soberano. Um homem veio me receber no portão do mosteiro. Não um monge, mas um dos camareiros da rainha, que eu conhecia da Cornualha. Ele sabia quem eu era, claro, e inclinou-se com grande respeito, mas pude ver que não se recordava de nosso último encontro. Era o mesmo homem, agora mais grisalho e enrugado, que me fizera entrar nos aposentos da rainha cerca de três meses antes do nascimento de Artur, quando ela prometera deixar a criança aos meus cuidados. Nessa ocasião, temendo a inimizade de Uther, eu me apresentara disfarçado, e era por isso que o camareiro não conseguira reconhecer no príncipe alto que se aproximara do portão o "médico" barbado e humilde que fora chamado para examinar a rainha. Ele me conduziu pelo pátio até a casa onde Ygraine se hospedava. Alguns porquinhos fugiram ao ouvir nossos passos e foram chamados pelos resmungos aflitos da porca, que vinham por entre as tábuas quebradas de uma barracão. Os homens e mulheres santos de Amesbury eram gente simples. Imaginei como a rainha se arranjaria nesse lugar. Eu não precisava ter temido por ela. Ygraine fora sempre uma mulher voluntariosa e desde o casamento com Uther assumira um comportamento ainda mais altivo, possivelmente devido à irregularidade da união. Eu me recordava da casa do abade como uma residência humilde, limpa e seca, sem nenhuma pretensão ao conforto. Agora, em poucas horas, os serviçais de Ygraine tinham providenciado para torná-la luxuosa. As paredes de pedra estavam escondidas por panos vermelhos, verdes e azul-pavão, e um belíssimo tapete oriental que eu trouxera de Bizâncio de presente para a rainha. O assoalho de madeira fora escovado até ficar branco e sobre os bancos duros agora repousavam almofadas de seda e peles. Um grande fogo de troncos queimava na lareira. De um lado dela, uma poltrona de espaldar alto, estofada em lã bordada e acompanhada de uma banqueta forrada no mesmo tecido, com acabamento em franjas de ouro. A sua frente, outra poltrona, com braços torneados em forma de cabeça de leão. O lampião era um dragão de cinco cabeças esculpido em bronze. A porta que dava para o austero quarto de dormir do abade estava entreaberta e pela fresta pude divisar uma parte da cama coberta de seda pesada azul e o brilho de galões de prata. A mesa colocada junto à parede oposta à da lareira estava sendo arrumada para o jantar. Pajens vestidos de azul iam e vinham carregando pratos e canecas. Três galgos me olhavam atentamente, mas continuavam deitados perto das poltronas. Quando entrei houve uma pausa nas atividades e no falatório. Todos os olhos se voltaram para a porta; um pajem que vinha trazendo uma jarra imobilizou-se e me olhou espantado, mostrando o branco dos olhos. Alguém perto deixou cair uma escudela de madeira e os cães correram para comer os biscoitos que se espalharam pelo chão. O único barulho que se conseguiu ouvir além da lenha crepitando no fogo foi o raspar de patas e o mastigar dos animais. — Boa noite — cumprimentei num tom amável.

Retribuí às reverências das damas de companhia e observei gravemente um pajem recolher a escudela caída e afastar os cachorros, enquanto me permitia ser conduzido pelo camareiro até perto da lareira. — A rainha... — ele começava a dizer, quando todos os olhares que recaíam sobre mim dirigiram-se à porta do quarto, e os cães, arqueados e alegres, dançaram para receber a mulher que surgiu por ela. Não fosse pelos aristocráticos animais e as damas fazendo reverência, qualquer um pensaria encontrar-se diante da abadessa do mosteiro. Ygraine formava um marcante contraste com o luxo que a cercava. Estava vestida de preto dos pés à cabeça, com um véu branco escondendo os cabelos e preso atrás formando uma touca de freira. O forro das mangas largas era de seda cinza-escuro e no peito ela ostentava uma cruz feita de safiras, mas, fora isso, nada aliviava o luto de seu traje. Fazia muito tempo que eu não via a rainha e imaginava que houvesse mudado com o passar dos anos, mas ainda assim tive uma surpresa desagradável ao me deparar com ela. A beleza continuava presente nas linhas da ossatura do rosto, nos olhos de um azul profundo e na postura altaneira, mas a graça dera lugar à dignidade e seus pulsos e mãos haviam se adelgaçado de um modo que não me agradou, como não me agradaram as olheiras quase tão azuis como os olhos. Isto, e não os danos causados pela passagem dos anos, foi o que me espantou, pois eram sinais que um médico conseguia ler com perfeita clareza. Mas eu estava ali como príncipe e emissário, não como médico, e devolvi o sorriso de boasvindas, inclinei-me sobre a mão estendida e conduzi-a até a poltrona estofada. A um sinal, dois pajens puseram coleiras nos cachorros e os levaram para o fundo da sala, e ela sentou-se alisando a saia. Uma das damas de companhia, não mais do que uma menina, ajeitou a banqueta diante da poltrona e depois, com os olhos baixos e mãos cruzadas, postou-se atrás do espaldar. A rainha me convidou a sentar e eu a obedeci. Alguém trouxe vinho e por cima das taças comentamos o lado mais ameno de nossas viagens. Perguntei como estava passando por pura cortesia formal, sabendo que ela não poderia imaginar o que eu já percebera. — E o rei? — perguntou ela finalmente. A palavra pareceu sair forçada, com uma certa dor por trás dela. — Artur prometeu que viria para cá. Estou esperando-o amanhã. Não recebemos notícias do norte, de modo que não temos como saber se houve mais lutas. Mas não se alarme pela falta de informações; isso só significa que qualquer mensageiro chegaria praticamente junto com ele. Ela fez que sim sem nenhum sinal de ansiedade. Ou não podia pensar em outras coisas além de sua dor, ou considerou meu tom tranqüilo uma garantia de profeta. — Ele esperava mais lutas? — Ficou lá apenas por precaução. A derrota das tropas foi decisiva, mas Colgrim conseguiu fugir, como lhe escrevi. Não recebemos informações de seu paradeiro e então Artur achou melhor não dar oportunidade para as forças dos saxões voltarem a se reunir, pelo menos enquanto estivesse aqui no sul para o enterro do pai. — Ele é muito jovem para uma tal responsabilidade. — Mas está mais do que pronto para ela. — Sorri. — Acredite-me, foi como ver um jovem falcão alçar vôo ou um pequeno cisne nadando sozinho pela primeira vez. Quando me despedi dele, Artur não dormia havia duas noites, mas estava entusiasmado e com excelente saúde.

— Estou contente por isso. Ela falou formalmente, sem expressão, mas achei melhor me alongar. — A morte do pai foi um choque para ele, mas você entende, é claro, que Artur não tinha intimidade com Uther e havia muito o que fazer nessa hora difícil. — Eu não fui contemplada com essa sorte — disse Ygraine baixinho, olhando para as mãos. Permaneci em silêncio, respeitando esse sofrimento. A paixão que unira Uther e essa mulher não se apagara com o passar dos anos. O rei fora um homem que precisava de mulher como a maioria dos homens precisa de sono e comida e, quando os deveres reais o afastavam da cama de sua consorte, a dele quase nunca ficava vazia. No entanto, quando estavam juntos, Uther era incapaz de olhar para os lados ou lhe dar motivos para aborrecimentos. O rei e a rainha tinham se amado com o tipo de amor que é enaltecido pelos menestréis, maior do que a perda da juventude e da saúde, e dos inúmeros compromissos que são ° preço da soberania. Eu acabara me convencendo de que seu filho Artur, despojado da posição real e criado na obscuridade, vivera melhor em casa dos pais adotivos em Galava do que viveria na corte de seu pai, onde nunca seria alvo da mesma atenção por parte de Uther e Ygraine. Ela finalmente ergueu a cabeça e vi que seu rosto recuperara a serenidade. — Recebi sua carta e a de Artur, mas quero saber de muito mais. Conte-me o que aconteceu em Luguvallium. Quando ele partiu para o norte, indo ao encontro de Colgrim e seu exército, eu sabia que não estava bem de saúde. Mas ele insistiu e jurou que estaria no campo de batalha, nem se tivesse de ser carregado numa liteira. E, pelo que entendi, foi isso que aconteceu, não é? A maneira como Ygraine enfatizara o "ele" deixara claro que ela desejava ouvir a história dos últimos dias de Uther e não os milagres que tinham acompanhado Artur em sua subida ao trono. — Sim, foi uma grande batalha e Uther, como sempre, agiu com enorme coragem. Seus criados o carregaram para o campo numa liteira e se mantiveram sempre no meio das lutas. Fiz Artur vir de Galava por ordem dele, que queria reconhecê-lo publicamente, mas Colgrim atacou de repente e o rei teve de ir para a guerra sem fazer a proclamação. Entretanto manteve o rapaz perto de si e, ao ver que a espada dele havia se quebrado na luta, atirou-lhe a sua. Duvido que Artur, no calor do combate, tenha entendido o gesto em sua profundidade, mas todos os que estavam próximos perceberam. Foi um grande gesto, feito por um grande homem. Ygraine não falou, mas me agradeceu com os olhos. Ela sabia, mais do que ninguém, que jamais houvera afeto entre Uther e mim, e que elogios vindos de mim eram muito diferentes das bajulações da corte. — Depois o rei se recostou em sua liteira e ficou assistindo ao filho penetrar na linha inimiga e, mesmo inexperiente, ter sua parte na derrota dos saxões. Portanto, mais tarde, quando ele finalmente apresentou o rapaz aos nobres e comandantes, seu trabalho já estava meio feito. Eles tinham presenciado a espada do reino ser entregue ao herdeiro e visto com que valor ela fora usada. Mas, na verdade, houve alguma oposição... Hesitei. Fora a mesma oposição que matara Uther. Apenas algumas horas antes do momento determinado pela natureza, mas com a mesma certeza de um golpe de machado. E o rei Lot, o chefe da facção oposta, estava para se casar com Morgan, a filha de Ygraine. —Ah, sim — disse a rainha calmamente. — O rei de Lothian. Ouvi qualquer coisa a esse respeito. Quero saber exatamente o que aconteceu.

Eu devia conhecê-la. Contei a história toda, não omitindo nada. A oposição feroz, a traição, a morte súbita do rei, que o fez calar. Também falei sobre a aclamação de Artur pelos restantes, mas minimizando meu papel nesse acontecimento. ("Se Artur conseguiu pegar a espada de Macsen, obteve-a pela vontade de Deus, e, se tem Merlin ao seu lado, então, por qualquer deus que ele adore, eu também o seguirei") Não me demorei na descrição da cena na capela, falando apenas dos juramentos dos nobres, da submissão de Lot e da declaração de Artur fazendo de Cador, o filho de Gorlois, seu legítimo herdeiro. E foram essas palavras que fizeram, pela primeira vez, os belos olhos azuis se iluminarem. A rainha sorriu e pude ver que o fato era uma novidade para ela e que de certa forma estava contribuindo para aplacar a culpa que sempre sentira pela morte do primeiro marido. Aparentemente, Cador, quer por delicadeza, quer porque ainda se mantinha distanciado de Ygraine, não lhe contara nada. Ela estendeu a mão para pegar a taça de vinho e ficou bebendo-o aos golinhos, sorrindo, enquanto eu terminava a história. Uma outra coisa, e muito importante, também seria novidade para a rainha, mas me calei sobre ela. Todavia, essa parte do relato ressoava alto em minha mente, e por isso, quando Ygraine falou de novo, devo ter saltado como um coelho assustado. — E Morgause? — O quê? — Você ainda não falou nela. Morgause deve ter sentido muito a morte do pai. Foi sorte ela poder estar perto dele nessa hora. Nós dois sempre tivemos motivos para agradecer a Deus pelos seus talentos. — Ela cuidou dele com devoção — falei num tom impessoal. — Tenho certeza de que sentirá uma grande falta de Uther. — Ela virá com Artur? — Não, foi para York, ficar com Morgan. Para meu alívio, Ygraine não fez mais perguntas sobre Morgause e mudou de assunto, perguntando onde eu estava hospedado. — Na estalagem. Eu já a conhecia de outra época, quando estive trabalhando aqui. É um lugar simples, mas eles estão se esforçando para me manter confortável. Entretanto, não me demorarei aqui. — Olhei à volta, como apontando todo o luxo que acompanhava a rainha. — E você, planeja uma longa estada? — Só por alguns dias. Se notara o meu olhar, ela não demonstrou. Eu, que normalmente não sou versado nos modos das mulheres, de repente compreendi que a riqueza e formosura que nos cercavam não eram para o conforto de Ygraine, mas pretendia-se com isso criar um cenário adequado para seu primeiro encontro com o filho. O carmesim e o ouro, os perfumes e velas preciosas eram o escudo e espada encantada dessa mulher de meia-idade. — Diga-me... — Sua voz saiu abruptamente, como se estivesse saindo direto da preocupação que ela tentava esconder. — Ele me culpa pelo acontecido? Meu respeito por Ygraine me fez responder-lhe sem rodeios nem pretensões de esconder que o assunto era igualmente importante para mim. — Penso que você não deve temer esse encontro. Quando Artur ficou sabendo quem eram seus

verdadeiros pais e qual seria sua herança, estranhou vocês terem achado adequado negar-lhe essa informação. Claro que no primeiro momento mostrou-se indignado, não podemos culpá-lo por isso. De fato, Artur já começara a suspeitar que era da nobreza, mas imaginou que, como em meu próprio caso, você sabe... esse parentesco era distorcido. Mas juro que não mostrou o menor sinal de amargura ou raiva, e só insistiu em saber o motivo. Quando lhe contei a história de seu nascimento e afastamento da corte, ele disse... Vou lhe transmitir as palavras exatas: "Vejo a situação do mesmo modo que ela a viu, como você me explicou; ser um príncipe é ser sempre governado pela necessidade. Ela não me entregou para a adoção por motivos fúteis". Houve um pequeno silêncio. Pensei ouvir ecoando em minha memória as palavras com que Artur terminara: "Vivi melhor na floresta, pensando não ter mãe e ser seu filho bastardo, Merlin, do que se tivesse ficado no castelo de meu pai, esperando ano após ano a rainha ter um outro filho que talvez quisesse me superar". O rosto de Ygraine estava bem mais relaxado; ouvi-a suspirar. As pálpebras inferiores tremiam ligeiramente, como se fossem as vibrações de uma harpa. A cor voltou a sua cútis e ela olhou para mim parecendo a moça de anos atrás, quando me suplicara para pegar o bebê e escondê-lo da fúria de Uther. — Agora diga-me... como é ele? — Então não lhe contaram ao trazerem notícias da batalha? — Sorri. — Sim, contaram. Disseram que ele é alto como um carvalho e mais forte que o gigante Fionn, e que matou novecentos homens sozinho. É Ambrosius ressuscitado ou o próprio Maximus, brandindo a espada como se estivesse distribuindo raios de tempestade. Durante a batalha, em torno dele havia uma aura como as que existem nos retratos dos deuses que participaram da queda de Tróia. Além disso ele é a sombra e espírito de Merlin e um grande cão de caça o acompanha por todos os cantos e os dois conversam como se fossem amigos. — Os olhos de Ygraine dançavam. — Pelo teor da descrição, você já deve ter desconfiado que os mensageiros foram cornualeses morenos das tropas de Cador. Eles sempre preferem cantar um poema do que apresentar um fato. E eu quero fatos. Ela sempre quisera. E Artur, a exemplo da mãe, também sempre preferira lidar com fatos. Deixava a poesia para Bedwyr. Eu ofereci o que me foi pedido. — Essa última parte está bem próxima da verdade, mas eles entenderam tudo ao contrário. É Merlin a sombra e o espírito de Artur. E o cachorro existe, ele é Cabal, que lhe foi presenteado por seu amigo Bedwyr. Quanto ao resto, o que poderei lhe dizer? Você verá com seus próprios olhos amanhã... Ele é alto e se parece mais com Uther do que com você, embora tenha herdado a coloração de meu pai, pois tem olhos e cabelos tão escuros como os meus. É forte, cheio de coragem e resistência, e tudo o mais que seus cornualeses contaram, só que reduzido ao tamanho normal. Também tem sangue quente e o entusiasmo da juventude, e às vezes se mostra impulsivo ou arrogante, mas sob essa capa possui um extraordinário bom senso e um crescente poder de controle. E, sobretudo, tem o que considero uma grande virtude: está sempre pronto a me escutar. Essas palavras me valeram um outro sorriso afetuoso da rainha. — Você quis brincar, mas concordo que é mesmo uma grande virtude! Ele tem sorte de poder contar com você, Merlin. Como cristã, não me é permitido acreditar em sua magia e, na verdade, não acredito nela como o povo humilde. Mas, seja o que for e de onde venha, já vi seu poder em ação e sei que ele é bom e que você o usa com prudência. Creio que vem do que eu chamo de Deus. Sim, fique ao lado de meu filho. — Ficarei enquanto ele precisar de mim.

O silêncio caiu entre nós enquanto ambos olhávamos para o fogo. Os olhos de Ygraine pareciam sonhar sob a sombra dos cílios espessos e seu rosto novamente tornou-se imóvel e tranqüilo. Eu, contudo, tive a impressão de que se tratava da quietude que espera nas profundezas da floresta, enquanto por cima o vento ruge e as árvores sentem a tempestade sacudi-las até a raiz. Um menino veio na ponta dos pés e colocou mais troncos na lareira. As chamas saltaram e a madeira estalou. Continuei observando o fogo. Para mim, também, aquela era uma pausa de espera. As chamas agora eram apenas chamas. O menino afastou-se em silêncio. A jovem dama de companhia pegou a taça da mão da rainha e depois, num gesto tímido, estendeu a sua em minha direção. Era uma menina muito bonita, magra como uma varinha de condão, de olhos cinzentos e cabelos castanho-claros. Olhava meio assustada para mim e eu tomei o cuidado de não tocar sua mão enquanto lhe entregava a taça. Ela afastou-se rapidamente com a bandeja e eu pude perguntar baixinho: — Ygraine, seu médico veio com você? As pálpebras bem-feitas estremeceram. Ela não olhou para mim e também abaixou a voz. — Veio. Agora ele sempre viaja comigo. —E quem é ele? —Seu nome é Melchior. Disse que o conhece. —Melchior? Um rapaz que fiquei conhecendo em Pergamum quando eu estudava medicina? —É ele mesmo. Só que não é mais um rapaz. Já estava comigo quando Morgan nasceu. —É um bom homem — elogiei, satisfeito. Ela me olhou de soslaio. A menina continuava longe de nós, conversando com o resto das mulheres no outro lado da sala. —Eu devia saber que não conseguiria esconder nada de você. Não contará nada ao meu filho, não é? Dei minha palavra. No momento em que a vira depois de todos aqueles anos tive certeza de que era vítima de uma doença mortal, mas Artur, que não a conhecia e não era versado em medicina, dificilmente notaria alguma coisa. Haveria tempo para isso depois. Agora era hora de começo e não de final. A menina voltou e murmurou algo para a rainha, que fez um aceno e levantou-se. Eu também me levantei. O camareiro vinha se aproximando com cerimônia, dando aos aposentos emprestados mais um toque de realeza. Ygraine começou a virar-se para mim, erguendo a mão para me convidar para jantar, quando subitamente a cena foi interrompida. Do lado de fora veio o toque distante de uma trombeta; depois outro, mas próximo, e então ouviu-se o estardalhaço da chegada de cavaleiros em algum lugar fora dos muros do mosteiro. A rainha ergueu a cabeça, mostrando algo da antiga juventude e coragem. — O rei? Sua voz saiu alegre e rápida. Em torno da sala, correu como um eco o murmúrio das mulheres. A menina ao lado de Ygraine estava tensa como um cordão de arco e vi um rubor de emoção cobrir a pele sedosa desde o colo até a testa. — Chegou rápido — falei, num tom seco e preciso, querendo acalmar minha pulsação, que se acelerara ao ouvir o crescendo de patas de cavalos.

Tolo, censurei-me, ele agora faz tudo sozinho. Você o soltou e o perdeu. Esse é um falcão que jamais aceitará a venda nos olhos de novo. Mantenha-se nas sombras, profeta do rei, veja suas visões e sonhe seus sonhos. Deixe a vida para ele e espere pelo momento em que será considerado necessário. Houve uma batida na porta e em seguida veio a voz apressada de um criado. O camareiro dirigiase para ela quando um menino entrou correndo com a mensagem, esquecendo-se dos floreios da corte: — Com a permissão da rainha... o rei está aqui e quer ver o príncipe Merlin. Agora mesmo. Enquanto eu saía, ouvi a sala antes em silêncio explodir num burburinho, enquanto os pajens corriam de um lado para outro, rearrumando as mesas, trazendo velas novas e mais perfumes e vinho; as damas de companhia, tagarelando como galinhas aflitas, seguiram a rainha que entrava em seu quarto.

3 —Ela chegou, não é? Já me contaram. Artur mais atrapalhava do que ajudava um criado a tirar suas botas enlameadas. Ulfin, para minha surpresa, acabara voltando da capela e agora eu podia vê-lo no quarto ao lado, orientando os serviçais da casa na abertura das bagagens. Lá fora a cidade parecia ter explodido em gritos, tochas, tropel de cavalos e gritos de ordem. De tanto em tanto ouvia-se por cima da confusão a risadinha meio histérica de uma moça. Nem todos em Amesbury estavam de luto. O próprio rei não se mostrava compungido. Finalmente conseguiu se livrar das bocas e tirou a capa pesada. Seus olhos voltaram-se para mim numa paródia do olhar de soslaio que eu recebera de Ygraine. — Já falou com ela? — Sim, acabo de deixá-la. Ela ia me convidar para o jantar, mas agora creio que planeja alimentá-lo em meu lugar. Como chegou hoje com certeza você notará que está cansada da viagem, mas ela já conseguiu repousar um pouco e sem dúvida dormirá muito melhor depois de conhecê-lo. Mas não o esperávamos antes da metade da manhã. — Velocidade de César. — Artur sorriu, citando uma das frases de meu pai. Sem dúvida eu, na condição de seu professor, a empregara com um certo exagero. — Para isso, viemos em número pequeno e pudemos acelerar a marcha. O resto virá mais tarde. Creio que chegarão a tempo para o enterro. — E quem está vindo? — Maelgon de Gwynedd e seu filho Maelgon. O irmão de Urbgen de Rheged, o terceiro filho do velho Coei, me parece que seu nome é Morien. Caw não pôde vir e está mandando Riderch em seu lugar... ainda bem, porque não suporto Heuil, aquele fanfarrão de boca suja. Deixe-me ver... Ynyr e Gwilim, Bors... me informaram que Ceretic de Elmet está vindo de Loidis. Ele continuou citando nomes. Parecia que a maioria dos reis do norte tinham enviado filhos ou substitutos à altura. Claro, com o restante das tropas saxãs ainda vagando pela região, eles queriam ficar vigiando suas próprias fronteiras. A situação era considerada muito grave, contou Artur, enquanto se lavava na bacia que um criado lhe trouxera. — Até o pai de Bedwyr voltou para casa. Desculpou-se alegando cansaço, mas cá entre nós creio que deseja ficar de olho nos movimentos de Lot para me informar sobre eles. — E Lot? — Foi para York. Tomei a precaução de mandar vigiá-lo. Morgan continua lá ou veio se encontrar com a rainha? — Ela ficou lá. Mas está faltando um rei; você não contou nada sobre ele. O criado deu uma toalha a Artur e ele desapareceu dentro dela, enxugando os cabelos. Sua voz saiu abafada. — Quem? — Colgrim.

Artur emergiu da toalha, com a pele rosada e olhos brilhantes. Parecia ter uns dez anos de idade. — E precisa perguntar? — A voz não era de um menino, mas de um homem, cheia de fingida arrogância, mas que por baixo cio tom de brincadeira era bem real. Muito bem, deuses, pensei, vocês o puseram no trono e não podem acusá-lo de orgulho, mas mesmo assim me surpreendi fazendo o sinal. — Não preciso, mas estou perguntando. Artur subitamente ficou sério. — Foi um trabalho mais duro do que esperávamos. Pode-se dizer que a segunda metade da batalha ainda estava para ser vencida. Quebramos suas fileiras em Luguvallium e Badulf morreu devido aos ferimentos, mas Colgrim escapou incólume e reuniu suas forças em algum lugar do leste. Não foi simplesmente um caso de caçar fugitivos. Eles eram muitos e estavam desesperados. Se estivéssemos em menor número poderíamos ter tido uma surpresa. Duvido que teriam atacado de novo, porque se dirigiam para o mar, mas quando os surpreendemos a meio do caminho eles nos enfrentaram na margem do rio Glein. Você conhece essa parte do país? — Não muito bem. — É selvagem e montanhosa, com muita vegetação e cheia de riachos descendo colinas. Lugar ruim para lutar, mas atrapalhou os dois lados. Colgrim conseguiu fugir de novo, mas agora não existe mais a possibilidade de ele parar para reunir as tropas que se dispersaram. Foi para o leste e esse é um dos motivos por que Ban voltou para seus territórios. A propósito, Ban teve a gentileza de deixar Bedwyr vir comigo. — Artur estava em pé, agora obedecendo as mãos de seu criado enquanto era vestido. — Estou contente — terminou laconicamente, enquanto o homem fechava o broche que prendia a capa em um dos ombros. — Por Bedwyr ter vindo com você? Mas... — Não. Por Colgrim ter escapado de novo. — Verdade? — Ele é um homem corajoso. — Mesmo assim, você vai ter de matá-lo. — Sei disso. Agora... O criado afastou-se, dando seu serviço por terminado. O rei fora vestido em trajes cinza-escuro e a capa tinha uma gola de pele preciosa, que se repetia nas bordas. Ulfin entrou no quarto trazendo um pequeno baú de madeira entalhada onde era guardada a coroa informal do rei, um círculo de ouro de modelo austero. Os rubis captaram a luz e responderam ao brilho das pedras preciosas do broche e do colar. Mas, quando Ulfin ia tirá-la de seu ninho de veludo, Artur balançou a cabeça. — Não hoje. E melhor sem nada. Ulfin fechou a caixa e saiu do quarto acompanhado pelo criado. Quando a porta se fechou atrás deles, Artur virou-se para mim e vi em seu olhar a mesma hesitação de Ygraine. — Devo entender que ela está esperando por mim? — Está. Ele mexeu no broche que segurava a capa, picou o dedo e praguejou. Depois, meio sorrindo: — Parece que não houve muitos casos como este. Como alguém conversa com a mãe que o deu em adoção logo depois do nascimento?

— Como você conversou com seu pai? — Isso é diferente, você sabe muito bem. — Certo. Quer que eu o apresente? — Ia pedir-lhe isso... Bem, é melhor acabarmos logo com essa história. Algumas situações não melhoram com o adiamento... Olhe, você tem certeza sobre o jantar? Estou morto de fome, não comi nada desde a madrugada. — Tenho. Eles estavam providenciando novos pratos quando saí. Artur respirou fundo, como um nadador se preparando para um mergulho profundo. — Vamos, então? Ygraine esperava em pé junto de sua poltrona, iluminada pelo fogo. Tinha o rosto corado por causa do calor e a luz das chamas pulsava sobre sua pele, tornando rosada a touca branca. Estava linda. O brilho avermelhado purgara as sombras azuladas de seu rosto e lhe emprestara um ar de juventude que se repetia nos olhos brilhantes. Artur fez uma pausa junto à porta. Vi as safiras da cruz que Ygraine trazia no pescoço cintilarem enquanto seu peito subia e descia. Seus lábios se entreabriram, como se ela fosse falar, mas não emitiram nenhum som. Artur avançou devagar, rígido e cheio de dignidade, o que o fez parecer ainda mais jovem. Fui caminhando ao seu lado, ensaiando mentalmente as palavras adequadas para a apresentação, mas no final não houve necessidade de dizer nada. A rainha, que já enfrentara momentos ainda piores em sua vida, tomou as rédeas da situação. Encarou o filho por um instante, como se fosse capaz de ver sua alma, e depois fez uma reverência. — Meu senhor... Artur estendeu as mãos rapidamente e a fez levantar. Cumprimentou-a com um beijo breve e formal, mas segurou as mãos delicadas um pouco mais do que mandava a etiqueta da corte. —Mãe? — experimentou. Era o nome que antes reservava para Drusilla, a esposa do conde Ector. Em seguida, com alívio: —Minha senhora, lamento não ter chegado mais cedo para poder recebê-la, mas a situação no norte era grave. Creio que Merlin já lhe contou tudo. Mas vim o mais rapidamente possível. —E chegou antes do que esperávamos. Imagino que foi bem sucedido em sua empreitada. Então terminou o perigo representado pelas forças de Colgrim? — Por enquanto. Pelo menos conseguimos tempo para respirar e... e fazer o que tem de ser feito aqui em Amesbury. Lamento pelo seu luto e sofrimento, senhora, eu... — Artur hesitou e depois falou com uma simplicidade que claramente a confortou e o deixou mais seguro: — Não devo fingir que senti a perda como talvez deveria. Mal o conheci como pai, mas durante toda minha vida o vi como meu rei, um rei valoroso. Seu povo está enlutado e eu, sendo parte dele, também estou. — Agora cabe a você cuidar desse povo como o rei sempre tentou fazer. Houve uma pausa enquanto eles mediam um ao outro. Ygraine era um pouco mais alta do que o filho e, talvez se dando conta disso, fez um sinal para a poltrona que eu ocupara anteriormente e sentou-

se na sua. Um pajem aproximou-se trazendo vinho e houve um suspiro generalizado e o roçar de sedas. A rainha começou a falar sobre a cerimônia do dia seguinte. Artur, agora mais relaxado, respondeu com facilidade e logo os dois conversavam mais à vontade. Mas, por trás das troca de gentilezas típica da corte, podia se sentir a força do que jazia entre eles sem ser posto em palavras. O ar estava tão tenso, suas mentes tão voltadas uma para a outra que pareciam ter se esquecido de minha presença. Olhei para a mesa posta no outro canto da sala e depois para as mulheres e meninas ao lado da rainha. Todos olhavam para Artur, os homens com interesse e algum temor (sem dúvida já estavam a par das histórias mirabolantes que contavam sobre ele), as mulheres com algo mais acrescido à curiosidade e as duas meninas num verdadeiro transe de emoção. O camareiro estava perto da mesa. Captou meu olhar e me fez uma pergunta muda. Balancei a cabeça, concordando. File atravessou a sala até chegar ao lado da rainha e murmurou alguma coisa. Ela sorriu com um certo alívio e levantou-se, no que foi acompanhada pelo rei. Notei que agora a mesa estava arrumada para três, mas quando o camareiro se aproximou de mim eu fiz que não. Artur e a mãe poderiam dispensar os criados depois do jantar e a conversa fluiria mais facilmente. Ficariam melhor sozinhos. Por isso pedi licença para me retirar, ignorando o olhar quase suplicante de Artur, e fui para a estalagem ver se os outros hóspedes tinham deixado alguma coisa para eu comer. O dia amanheceu ensolarado. As nuvens pareciam ter se amontoado todas no horizonte e uma cotovia cantava, como se fosse primavera. Um tempo claro assim no final de setembro costuma trazer geada e um vento insistente, e em nenhum lugar os ventos são tão penetrantes como na Grande Planície, mas o dia do enterro de Uther parecia ter sido emprestado do início do verão, com vento cálido e céu azul, e raios de sol tingindo de ouro a Ciranda das Pedras. A cerimônia ao lado da tumba foi longa e as sombras colossais da Ciranda acompanharam o giro do sol até os raios dourados caírem a pino no centro do círculo, tornando mais fácil se ver o solo, a sepultura e as grandes nuvens escuras no horizonte juntando-se e movimentando-se como exércitos, do que o meio do círculo, onde estavam os padres e nobres carregados de jóias, usando o branco do luto. Um pavilhão fora montado para a rainha e ela estava sob sua sombra, composta e pálida entre as damas de companhia, não mostrando sinal de fadiga ou enfermidade. Artur, comigo a seu lado, manteve-se junto à cova. Finalmente tudo terminou. Os padres partiram e logo em seguida foi a vez do rei e dos nobres. Enquanto atravessávamos a relva na direção dos cavalos e liteiras, já pudemos ouvir o ruído de terra caindo sobre madeira. Mas logo um barulho mais alto o encobriu. Olhei para cima a tempo de ver no céu de setembro um bando de pássaros, ágeis, pretos e pequenos, tagarelando em sua migração. O último grupo de andorinhas partindo para o sul, levando o verão consigo. — Esperemos que os saxões tenham entendido essa mensagem dos pássaros — disse Artur baixinho. — Eu bem que gostaria de ter o inverno todo para descansarmos antes das lutas recomeçarem. Além disso, tenho de cuidar de Caerleon. Gostaria de ir para lá hoje mesmo. Mas, naturalmente, ele, como todos nós, seria obrigado a ficar em Amesbury enquanto a rainha permanecesse ali. Ela voltou direto para o mosteiro depois da cerimônia e não mais apareceu em público, passando os dias em repouso ou conversando com o filho. Artur ficava com ela o máximo que suas atividades permitiam, enquanto o séqüito real preparava tudo para a viagem a York, que aconteceria assim que sua senhora se sentisse capaz de enfrentar longas horas na estrada. Artur escondeu bem a impaciência e ocupou-se em exercitar as tropas e conversar longamente com seus amigos e comandantes. Dia após dia eu o via cada vez mais absorvido no que estava fazendo e

no que o esperava. Estive poucas vezes com ele e Ygraine; passei a maior tempo na Ciranda dos Gigantes, supervisionando a recolocação da imensa pedra-rei em seu leito acima da tumba real. Finalmente, oito dias depois do enterro de Uther, a rainha partiu para o norte. Artur, cortesmente, acompanhou o séqüito pela estrada para Cunetio durante algum tempo e depois, vendo-o afastar-se a distância soltou um longo suspiro de alívio e logo conduziu seus guerreiros para fora de Amesbury numa manobra rápida, que mostrou o quanto estavam bem treinados. Era o quinto dia de outubro e chovia copiosamente. Estávamos nos dirigindo para o estuário do rio Severn, onde tomaríamos a balsa para Caerleon, a Cidade das Legiões.

4 No lugar onde a balsa faz a travessia, o rio Severn é bem largo e tem grandes marés que avançam rapidamente sobre suas margens. Meninos vigiam o gado dia e noite, pois um rebanho inteiro pode ser tragado pela lama vermelha, espessa e áspera, sumindo para sempre. Quando as marés de primavera e outono enfrentam a correnteza do rio, forma-se uma onda tão alta como a que vi em Pergamum por ocasião do terremoto. No lado sul, o estuário é limitado por escarpas; a margem norte é pantanosa, mas a uma pequena distância da linha de preamar o terreno vai ficando pedregoso e bem drenado, elevandose suavemente até se transformar em um campo verdejante, cheio de carvalhos e castanheiras. Montamos acampamento nesse local mais alto e, enquanto as tendas eram preparadas, Artur, com Ynyr e Gwillim, reis de Guent e Dyfed, saiu para explorar os arredores, e depois do jantar ficou em sua tenda para receber os chefes dos vilarejos próximos. Os moradores da região, incluindo os pescadores que vivem nas cavernas dos penhascos, amontoavam-se junto aos limites do acampamento na esperança de ver o novo rei. Artur ouviu atentamente todos os chefes, aceitando tanto homenagens quanto reclamações. Depois de uma ou duas horas, pedi permissão com um olhar e saí da tenda. Fazia muito tempo que não sentia o cheiro das colinas de minha terra e, além disso, havia um lugar próximo que sempre quisera visitar, mas nunca tivera a oportunidade. Era o antes famoso santuário de Nodens, que é Nuatha da Mão de Prata, conhecido em Gales como Llud ou Bilis, o senhor do Sobrenatural, cujos portões ficam nas colinas ocas. Fora ele que guardara a espada depois de eu tê-la tirado de sua sepultura sob o piso do templo de Mitra em Segontium. Eu a deixara a seus cuidados na caverna submersa do lago, também sagrada para ele antes de finalmente levá-la para a Capela Verde. Portanto, tinha uma dívida com Llud. Esse santuário junto ao rio Severn era muito mais antigo do que o templo de Mitra ou a capela. Informações sobre sua origem há muito tinham desaparecido, não sendo nem mesmo tema de poemas e canções. De início fora uma fortaleza, onde devia haver uma pedra ou fonte dedicada ao deus que cuidava dos espíritos dos mortos. Com a descoberta do minério de ferro, começara a extração em toda a região, a qual se prolongara por toda a duração do período romano. Talvez tenham sido os romanos os primeiros a dar ao lugar o nome de morro dos Anões, por causa dos homens baixos e morenos que trabalhavam nesse lugar. A mineração terminara havia muito tempo, mas o nome persistia, como persistiam as histórias sobre os Antigos que eram vistos espreitando por entre os troncos de carvalho, ou sobre os que saíam do centro da terra em longas fileiras em noites de tempestade para se juntar ao séqüito do Rei das Trevas, que emergia de sua colina oca cavalgando à frente de uma horda de fantasmas e espíritos encantados. Atingi o alto do morro atrás do acampamento e caminhei por entre os carvalhos na direção de um riacho no fundo do vale. Uma boa lua de outono iluminava meu caminho. As folhas das castanheiras já estavam caindo e flutuavam aqui e ali até se depositar na relva, mas as dos carvalhos, embora secas, continuavam firmes, enchendo o ar de ruídos provocados pelo vaivém dos galhos. Chovera à tarde e o solo tinha um cheiro gostoso, rico. Solo fértil para arar, época boa para a colheita das nozes e castanhas, tempo dos esquilos antes da chegada do inverno. Percebi algo se movimentando diante de mim enquanto eu descia. Um barulho de mato pisado, de galhos se afastando, um leve tropel. Depois, com um som semelhante ao de uma rápida chuva de granizo, vi passar um bando de veados, tão apressados como as andorinhas migrando para o sul. Estavam bem perto de mim e pude ver até o brilho de seus olhos. Veados malhados e alguns brancos,

com flancos parecendo prateados por causa do luar. Eles passaram correndo, descendo para o pé do vale, e logo desapareceram atrás das colinas. Dizem que um veado branco é uma criatura mágica. Eu também penso assim. Por essa época eu já vira dois deles e cada um fora o arauto de uma maravilha. Os que passaram por mim também me pareceram mágicos. Talvez assombrassem, junto com os espíritos, a colina onde ainda existia a porta que levava para o outro mundo. Atravessei o riacho e comecei a subir o morro para atingir as ruínas que o coroavam. Abri caminho por entre o entulho que devia ser o que restara de uma muralha externa, e enfrentei a parte mais íngreme da trilha até me deparar com um alto portão em um muro coberto de trepadeiras. Estava aberto. Eu entrei. Encontrei-me num amplo pátio, que ocupava toda a extensão do topo da colina. O luar, que ficava mais forte a cada minuto, revelou-me o piso quebrado, com mato crescendo nas rachaduras. Dois lados do pátio eram fechados por muros altos e os outros dois exibiam sinais de, em outras épocas, ter abrigado grandes edifícios, dos quais ainda restavam algumas partes com telhado. Sob aquela luz o lugar continuava imponente, pois os muros e pilares davam a impressão de estar intactos. Apenas uma coruja, voando silenciosa de uma janela superior, mostrou que tudo ali estava deserto desde muito tempo e se desfazendo sob a intempérie. Avistei uma construção situada quase no centro do pátio. O espigão do telhado parecia querer alcançar a lua, mas só restara a parte dianteira da estrutura e a luz passava sem obstáculos pelas janelas vazias. Ali devia ser o santuário. As ruínas nas duas bordas do pátio eram o que restava das hospedarias e dormitórios antes ocupados pelos fiéis e peregrinos vindos de longe. Pude ver algumas celas particulares, sem janelas, iguais às que encontrara em Pergamum, onde as pessoas dormiam esperando por sonhos de cura ou visões divinatórias. Avancei vagarosamente pelo pavimento quebrado. Sabia o que encontraria: um santuário vazio e poeirento, como o esquecido templo de Mitra em Segontium. Mas era possível, disse a mim mesmo enquanto subia os degraus e me via perto dos ainda impressionantes portais da cella central, bem possível que, tal como os carvalhos, a relva e os rios, esses seres feitos do ar, da terra e da água de meu doce país fossem mais difíceis de desalojar que os deuses visitantes de Roma. Um deles, como eu há muito acreditava, era o meu. Talvez estivesse ali, onde o vento da noite soprava em meio ao santuário vazio, enchendo-o com o som das árvores. O luar vindo através das janelas superiores e buracos no telhado iluminava o lugar com um brilho de pureza. Um pedaço de madeira meio preso no alto de uma das paredes balançava na brisa e ia de um lado a outro, formando um alternar de luz e sombra. Era como estar no fundo de um poço. O ar, a sombra e a luz me pareciam ser água, pura e fria, contra a pele. O mosaico sob meus pés, ondulado e desnivelado onde o solo afundara, brilhava como o fundo de um mar onde nadavam estranhas criaturas formadas pela luz prateada. De trás das paredes quebradas chegava o murmúrio das árvores. Fiquei ali, imóvel, calado, por um longo tempo. O suficiente para a coruja voltar planando em asas silenciosas e empoleirar-se na janela. O suficiente para o vento amainar e o pedaço de madeira quase se imobilizar. O suficiente para a lua ir para trás da parede e as criaturas marinhas sob meus pés desaparecerem na escuridão. Nada se mexia ou falava. Nenhuma presença ali. Disse a mim mesmo, com humildade, que isso não significava nada. Eu, antes um mago e profeta poderoso, fora levado por uma gigantesca maré até os portais do deus e agora vinha voltando para uma praia estéril. Se houvesse vozes ali, não ouviria. Voltara a ser um mero mortal.

Virei-me para deixar o lugar. Foi então que senti cheiro de fumaça. Não de fumaça de sacrifícios; fumaça comum, de lenha, a que seguiu-se também um leve aroma de comida. Vinha de algum lugar atrás da hospedaria arruinada, à esquerda. Atravessei o pátio, passei sob os restos de um grande arco e, guiado pelo odor e depois pelo brilho de um pequeno fogo, consegui chegar a uma câmara onde um cão acordou e começou a latir, e duas pessoas se levantaram abruptamente. Eram um homem e um menino, possivelmente pai e filho. Gente pobre, a julgar pelas roupas simples e rotas, mas com a expressão daqueles homens que são os únicos donos de si mesmos. Eles se movimentaram com a velocidade do medo. O cão, velho e cansado, com o focinho grisalho e um olho esbranquiçado, não atacou, mas me enfrentou rosnando. O homem pôs-se de pé, segurando uma faca. O menino, a desafiar o intruso com toda a valentia dos doze ou treze anos, brandiu um pedaço de lenha. — A paz esteja convosco — falei e depois repeti a saudação no dialeto dos dois. — Vim orar aqui, mas ninguém me atendeu. Então senti o cheiro da fumaça e vim ver se o deus ainda mantinha algum servo neste lugar. O cão rosnou mais alto. O homem abaixou a ponta da faca, mas continuou segurando-a firmemente. — Quem é você? — perguntou. — Apenas um estranho que está temporariamente nesta região. Muitas vezes ouvi falar do famoso santuário de Nodens e aproveitei a oportunidade para visitá-lo. O senhor é seu guardião? — Sou. Está procurando alojamento por uma noite? — Não era minha intenção. Mas por que tocou no assunto? Tem condições de me oferecê-lo? — As vezes. Ele me olhava com desconfiança. O menino, mais confiante ou talvez vendo que eu estava desarmado, virou-se e colocou o pedaço de lenha no fogo. O cão, agora em silêncio, avançou para tocar minha mão com o focinho grisalho e balançou o rabo. — E um bom cão — comentou o homem. — E já foi muito valente. Mas agora está velho e surdo. Seu tom não era mais hostil, e diante do ato do cachorro, a faca desaparecera. — E sábio também — acrescentei. Afaguei a cabeça peluda erguida para mim. — E do tipo que sabe ver o vento. — Ver o vento? O menino virou-se para mim com os olhos arregalados. O homem lançou-me um olhar intrigado. Expliquei: — Nunca ouviu falar isso sobre um cão de olho branco? Por mais velho e lerdo que seja, ele pôde ver que vim com boas intenções. Meu nome é Myrddin Emrys e vim de Dyfed, um lugar a oeste daqui, perto de Maridunum. Passei muito tempo viajando e agora estou voltando para casa. — Dei-lhe meu nome galés porque, com certeza, como todos os outros, ele já ouvira falar de Merlin, o mago, e o temor não é bom entre pessoas que vão compartilhar de um mesmo fogo. — Posso entrar e me aquecer um pouco enquanto você me conta sobre o santuário?

Eles abriram espaço para mim e o menino puxou um banquinho. Depois de várias perguntas, o homem relaxou e começou a falar com mais desenvoltura. Chamava-se Mog, que de fato não é um nome próprio e significa apenas "servidor", mas houve um rei que não hesitou em se denominar Mog Nuatha. Já o menino tinha um nome grandioso, emprestado de um imperador. — Constâncio será o servo depois de mim — informou Mog. Ele continuou a falar com orgulho e saudades do período áureo do templo, cerca de meio século depois da partida das legiões romanas, quando um imperador pagão mandara reconstruí-lo. Mas, muito antes dessa época, um "Mog Nuatha" habitara o templo com toda a família. Agora só restavam ele e o filho; sua esposa não se achava no momento porque descera para o vilarejo pretendendo ajudar a irmã doente e fazer compras no mercado. — Isso, se tiver lugar para ela se mexer — resmungou Mog. — Daqui dá para ver o rio e hoje de manhã era atravessado por numerosos barcos. Constâncio me explicou que se tratava do exército vindo com o novo rei. — Ele parou de falar e olhou atentamente para mim. — Por acaso o senhor é soldado? Está com eles? — A resposta é sim para a última pergunta e não para a anterior. Como pode ver, não sou um soldado, mas estou com o rei. — Então o que o senhor é? Um secretário? — Mais ou menos. Ele balançou a cabeça, aceitando minha lacônica explicação. O menino, mantendo-se em silêncio, estava sentado de pernas cruzadas ao lado do cachorro. O pai voltou a fazer perguntas. — Como é esse rapaz para quem o rei Uther deu sua espada, como contam por aí? — Ele é jovem, mas já mostrou ser homem e um bom soldado. Tem jeito para liderar e bom senso bastante para ouvir os mais velhos. O homem fez que sim novamente. Seria inútil falar com esses dois sobre poder e glória. Viviam nessas colinas distantes e, sem dúvida, o que acontecia por trás dos bosques de carvalho não fazia grande diferença. Mog me perguntou sobre a única coisa pela qual tinha real interesse. — Esse jovem rei, Artur, é cristão? Será que vai querer arrasar nosso templo em nome desse novo deus egoísta, de quem tanto falam, ou está disposto a respeitar os antigos? Respondi com tranqüilidade e o mais sinceramente que podia. — Ele será coroado pelos bispos católicos e se ajoelhará diante do Deus de seus pais, mas é um homem desta terra e conhece os deuses daqui e o povo que ainda os servem nas colinas e fontes. Meu olho captara, numa estante larga longe do fogo, vários objetos cuidadosamente limpos e arranjados. Eu vira coisas semelhantes em Pergamum e outros locais de cura divina. Oferendas para os deuses. Partes do corpo humano feitas de cera ou madeira, estatuetas de peixes ou animais que carregavam alguma mensagem de súplica ou gratidão. — Você verá — prossegui — que os exércitos do novo rei passarão por aqui sem perturbá-lo e que, se por acaso ele vier até aqui, fará uma prece ao deus deste lugar e lhe deixará uma oferenda. Exatamente como eu. — Isso é bom — disse o menino subitamente, e exibiu os dentes muito brancos num sorriso satisfeito. Sorri para ele e deixei cair duas moedas na mão estendida.

— Para o santuário e para seus servos. Mog resmungou alguma coisa e Constando levantou-se, foi para junto de um armário e voltou com pequeno odre e uma caneca amassada. O homem pegou sua caneca do chão e o menino nos serviu. — A sua saúde — brindou Mog, e bebemos. Era hidromel, doce e forte. Limpando a boca na manga, ele falou: — O senhor esteve perguntando coisas do passado e respondemos o melhor e pudemos. Agora, cavalheiro, conte-me o que esteve acontecendo no norte. Ouvimos falar de guerras e de reis morrendo e sendo coroados. É verdade que os saxões foram embora? É verdade que o rei Uther Pendragon manteve esse príncipe escondido e o fez aparecer no campo de batalha de repente, onde ele matou quatrocentos monstros saxões com uma espada mágica e bebeu o sangue deles? Foi então que mais uma vez contei a história, enquanto o menino alimentava o fogo em silêncio e as chamas saltavam, iluminando as oferendas na prateleira. O cão pegara no sono com a cabeça recostada em meu pé, o calor esquentando seu pêlo áspero. Enquanto eu falava o odre passava de um para outro e, quando terminei meu relato com o enterro de Uther e os planos de Artur para reforçar Caerleon para as guerras da primavera, o hidromel estava acabando e a lenha virará cinzas. Meu anfitrião sacudiu o odre. — Acabou. E devo dizer que em nenhuma outra noite caiu tão bem. Obrigado pelas novidades, senhor. Vivemos distantes de tudo, mas saiba que, mesmo as coisas que acontecem lá na Bretanha (era como se ele estivesse falando de um país longínquo), às vezes repercutem nestas paragens. Rezaremos para que o senhor esteja certo sobre o novo rei. Olhe, se porventura um dia tiver oportunidade de se aproximar dele, diga-lhe que enquanto ele for leal ao verdadeiro país, terá aqui dois servos à disposição. — Eu lhe direi. — Levantei-me. — Obrigado pela atenção e pela bebida. Lamento ter perturbado seu sono. Partirei agora e vocês poderão voltar a ele. — Vai partir agora? Mas ainda é noite fechada e o senhor encontrará trancada a porta da hospedaria. Ou será que está no acampamento? As sentinelas não o deixarão passar sem a senha determinada pelo rei. É melhor ficar aqui. Não... — protestou enquanto eu começava uma recusa — ...ainda mantemos um quarto arrumado, como antigamente, quando vinha gente de longe para ter sonhos. A cama é boa e o lugar seco e saudável. Nem todas as tavernas têm isso a oferecer aos seus hóspedes. Por favor, fique. Hesitei. O menino ergueu o rosto para mim, com os olhos brilhantes, e o cachorro, que acordara quando levantei, balançou o rabo e soltou um bocejo, esticando as patas enrijecidas. — E, fique... — suplicou Constando. Eu podia ver que era importante para eles eu aceitar o convite. Minha estada traria de volta um pouco da antiga santidade do lugar. Alguém no quarto de hóspedes, que era mantido limpo e arejado à espera de fiéis que não vinham mais. — Será um prazer — aceitei. O menino, com um grande sorriso, enfiou uma tocha no meio das brasas e esperou que se acendesse. — Venha, meu senhor, por aqui. Enquanto eu o seguia, Mog, acomodando-se nos cobertores ao lado do fogo, proferiu a frase que há milênios era usada nos templos de cura: — Durma bem, amigo. Que o deus lhe mande um sonho.

Seja quem for que o tenha mandado, o sonho veio e foi profético. Sonhei com Morgause, que eu expulsara da corte de Uther em Luguvallium, acompanhada por uma escolta com ordens de ajudá-la a atravessar com segurança a cadeia dos Peninos e daí seguir para York, onde se encontraria com sua meia irmã, Morgan. O sonho veio espasmodicamente, como se eu estivesse avistando o horizonte através de nuvens que o vento afastava de tanto em tanto. Primeiro vi o grupo num entardecer de um dia chuvoso, onde a garoa fina e constante transformara o cascalho da estrada numa lama escorregadia. Eles haviam feito uma pausa na margem de um rio que se tornara caudaloso devido à chuva. Não reconheci o lugar. Para continuar, precisariam atravessar o rio, que normalmente devia ser raso, mas que agora era uma torrente com ondas quebrando contra uma pequena ilha, como se esta fosse um navio no oceano. Não avistei nenhuma casa ou caverna onde pudessem se abrigar. Na outra margem a estrada serpenteava por entre árvores encharcadas, subindo para uma área montanhosa. Com a noite caindo rápido, parecia que o grupo teria de passar noite ali, esperando o rio abaixar. O oficial em comando explicava a situação a Morgause. Não pude ouvir o que dizia, mas dava a impressão de estar bravo e seu cavalo, apesar de cansado, mostrava-se agitado. Adivinhei que a escolha de caminho não fora dele. Normalmente, quem sai de Luguvallium percorre o planalto até atingir a estrada que leva para o oeste perto de Brocavum e atravessa as montanhas na região de Verterae. Esse passo, que é mantido fortificado e sempre em boas condições, ofereceria pelo menos um posto de parada onde encontrariam uma estalagem e comida para os animais, o que seria a escolha natural para um soldado. Em vez disso, eles deviam ter tomado a estrada velha, não muito usada. Eu nunca viajara por esse caminho, mas sabia que ele cruzava o planalto, indo para o vale das colinas Dubglas e daí subindo para as montanhas, que eram atravessadas no passo formado pelos rios Tribuit e Isara. Esse passo é chamado de vão dos Peninos e no passado os romanos o mantinham fortificado, patrulhando constantemente a estrada. E um terreno selvagem e até hoje, no alto dos morros e escarpas acima da linha de vegetação, existem cavernas onde vivem os Antigos. Se essa era mesmo a estrada que Morgause usava eu não conseguia captar o que a levara a isso. Neblina espessa; chuva em pancadas; a torrente caudalosa arrancando galhos dos arbustos ribeirinhos. Depois veio a escuridão e um intervalo no sonho escondeu o resto da cena para mim. Em seguida vi onde tinham parado. Um lugar no alto do passo onde havia um marco de estrada, e de onde se avistava o começo de uma trilha que, depois de atravessar um bosque, levava para um vale distante, onde brilhavam algumas luzes. Morgause apontava para elas e tive a impressão de que havia uma discussão em progresso. Eu continuava sem ouvir nada, mas a causa da disputa estava óbvia. O oficial avançara para o lado de Morgause e inclinado para a frente na sela, argumentava colericamente, apontando primeiro para o marco e depois para a estrada larga á frente deles. Um fraco raio de luz caiu sobre o marco e pude ler inscrito na pedra o nome OLICANA. Não deu para ver o número indicando a distância, mas o que o homem dizia estava claro. Seria loucura abandonarem a estrada principal, por meio da qual mais cedo ou mais tarde atingiriam o conforto oferecido pela cidade de Olicana, pela probabilidade daquela casa distante (se fosse mesmo uma casa) poder acomodá-los. Seus homens, que haviam se aproximado, o apoiavam abertamente. Ao lado de Morgause, suas damas de companhia a observavam aflitas, parecendo suplicar com olhares que ela obedecesse ao oficial. Depois de algum tempo, Morgause desistiu com um gesto resignado. O grupo se rearranjou. As mulheres, satisfeitas, incitaram as montarias a se juntarem em torno de sua ama. Todavia, antes que o

grupo avançasse quinze ou vinte passos, uma das damas de companhia soltou um gritinho aflito e em seguida vi Morgause largar as rédeas do cavalo e estender a mão num gesto delicado, como tentando procurar apoio, enquanto cambaleava na sela. O oficial, voltando rapidamente, emparelhou seu cavalo com o dela e estendeu o braço para ampará-la. Ela caiu contra o homem, inerte. Não havia mais nada a fazer senão aceitar a derrota. Em poucos minutos vi o grupo vencendo com dificuldade a trilha enlameada descendo para a luz no vale distante. Morgause, envolta pela capa pregueada, permanecia imóvel nos braços do oficial. Mas eu, que conheço bem as bruxas, sabia que Morgause estava desperta e que, oculta pelo capuz forrado de pele, sorria triunfante enquanto os homens de Artur a levavam para a casa onde, por motivos que só ela conhecia, pretendia ficar. Quando as brumas da visão novamente se desfizeram, vi um quarto elegantemente arrumado, com uma cama com entalhes dourados e um braseiro lançando sua luz vermelha sobre Morgause, nela deitada. As damas de companhia que a cercavam eram as mesmas que eu vira em Luguvallium, inclusive a mocinha chamada Lind, que conduzira Artur até o quarto de sua ama, enquanto as mulheres mais velhas dormiam entorpecidas por uma poção qualquer. Lind estava pálida e cansada; lembrei-me de que Morgause, em sua fúria contra mim, mandara açoitá-la. Agora ela servia sua senhora um tanto assustada, com os lábios fechados numa linha fina e olhos baixos. A mais idosa das damas de companhia, enrijecida por causa da viagem extenuante, resmungava baixinho enquanto executava suas tarefas. Morgause, porém, não mostrava nenhum sinal de doença nem mesmo de fadiga, como eu esperava. Recostada nos travesseiros bordados, parecia fixar os olhos verdes salpicados de dourado em algo distante e agradável, e exibia o mesmo sorriso que eu vira em seus lábios enquanto Artur dormia a seu lado. Devo ter acordado ali, sacudido para fora do sonho pelo ódio e aflição, mas a mão do deus continuava em mim porque voltei a cair no sono e me vi de novo no mesmo quarto. Devia ter se passado um bom tempo, dias até, o necessário para Lot, rei de Lothian, assistir às cerimônias de Luguvallium e depois, por ordem de Artur, tomar a estrada para York. Com certeza sua força principal fora diretamente para essa cidade, mas ele com um pequeno grupo de cavaleiros velozes, saíra do caminho para encontrar-se com Morgause. De repente tudo o que fora combinado entre eles ficou claro para mim. Morgause enviara uma mensagem a Lot antes de sair da corte, forçara sua escolta a andar devagar, escolhendo um caminho mais difícil que exigiria um tempo bem maior de viagem, e finalmente, pretextando doença, buscara abrigo na privacidade da casa de um amigo. Pensei ter entendido seu plano. Tendo fracassado na tentativa de alcançar o poder mediante a sedução de Artur, de algum modo persuadira Lot a se encontrar com ela e agora, com suas artes de bruxa, tentaria obter seus favores, de modo a conquistar uma posição de destaque na corte da irmã, a futura rainha de Lothian. No instante seguinte, enquanto o sonho prosseguia, vi o tipo de armas que estava empregando; bruxaria, poderia dizer alguém, mas do tipo que todas as mulheres sabem fazer. Novamente surgiu diante de mim o quarto iluminado pela luz avermelhada do braseiro e, ao lado dele, numa mesinha, vinho e comida em travessas de prata. Morgause estava em pé e a luz tornava rosada sua camisola branca e a pele muito clara, transformando em uma cascata de ouro os cabelos cacheados que iam até a cintura. Mesmo eu, que a detestava, tive de admitir que era uma linda mulher. Os olhos verdes salpicados de dourado, levemente erguidos nos cantos externos, fitavam a porta. Morgause estava sozinha. A porta se abriu e Lot entrou. O rei de Lothian era um homem grande e moreno, com ombros

largos e olhos febris. Gostava muito de jóias e elas cintilavam em pulseiras, anéis e num pesado colar cravejado de topázios. No ombro, onde os cabelos longos tocavam sua capa, estava um magnífico broche de granada o ouro, no estilo saxão. Um pensamento sombrio passou por minha mente. Poderia ser um presente do próprio Colgrim. Morgause falava. Mais uma vez eu não pude ouvir. O sonho era uma visão de movimento e cores. Ela não fez menção de saudar o recém-chegado e Lot não parecia surpreso. Falou alguma coisa dirigindo-se à mesa e pegou a jarra com um gesto brusco, deixando cair vinho na toalha e no chão. Morgause riu. Não houve um sorriso de retorno por parte de Lot. Ele bebeu o vinho com avidez, atirou o copo no chão, avançou para Morgause com as mãos ainda sujas da viagem e agarrando o decote da camisola, rasgou-a ao meio, expondo o corpo rosado até o umbigo. Um segundo depois beijava-a com paixão, parecendo querer devorá-la. Não se dera ao trabalho de fechar a porta e Lind, a jovem dama de companhia, talvez intrigada com o barulho causado pelo copo, enfiou a cabeça pela fresta para ver se sua senhora precisava dela. Não mostrou surpresa diante da cena mas, talvez assustada com a violência do homem, hesitou por um segundo, como se pensasse correr em auxílio de Morgause. Mas então, como eu, Lind viu o corpo seminu amoldar-se ao de Lot e as mãos delicadas se entrelaçarem nos cabelos negros e ainda úmidos da chuva. A camisola escorregou para o chão. Morgause disse alguma coisa e riu. Lot afastou-se um pouco, sem largá-la. Lind recuou e a porta se fechou. Lot pegou Morgause nos braços e em quatro longos passos venceu a distância até a cama. Bruxaria, sem dúvida. Se fosse um estupro, teria sido precipitado. Para uma sedução, fora rápido demais. Podem me chamar de ingênuo ou burro, o que quiserem, mas de início só pude pensar, vagando entre a névoa de meu sonho, que algum encantamento estivesse em ação. Veio-me à mente a história da poção de Circe, que fez os marinheiros de Ulisses se transformarem em porcos. Só algum tempo depois, quando Lot ergueu o braço nu para puxar as cobertas e aumentar a chama do lampião, e Morgause sentou-se apoiada nos travesseiros, parecendo estonteada de sexo e sono, foi que comecei a desconfiar da verdade. Lot levantou-se, caminhou por entre as roupas espalhadas pelo chão e foi servir-se de mais vinho. Depois de beber, encheu novamente o copo, levou-o para a amante e sentou-se a seu lado, com as costas apoiadas na cabeceira da cama, e começou a conversar. Morgause, inclinando-se sobre ele, balançava a cabeça e respondia agora com seriedade. Enquanto falavam, a mão de Lot desceu para apalpar os seios que tocavam sua cintura. Foi um gesto distraído, sem dúvida muito comum para o rei de Lothian, famoso nelas suas aventuras, mas seria para Morgause, a suposta donzela que ainda usava cabelos soltos em público e falava em tom recatado? Ela pareceu nem notar o gesto. Só então, numa clareza súbita, foi que entendi a verdade. Os dois já tinham estado ali antes e se conheciam muito bem, Quando ela se deitara com Artur os dois já eram amantes. Estavam tão acostumados um com o outro que podiam ficar entrelaçados numa cama, conversando... Sobre o quê? Traição, naturalmente, foi meu primeiro pensamento. Traição contra o Grande Rei que ambos, por diferentes razões, tinham motivo para odiar. Morgause, há muito cheia de inveja de sua meia irmã que pela lei a precedia em tudo, conquistara seu noivo com as artes que, agora eu sabia, aprendera com muitos outros amantes. Então viera a tentativa de Lot de assumir o poder em Luguvallium. O golpe fracassara e Morgause, que não estava a par das qualidades morais de Artur, em especial a força e a clemência que o fariam aceitar novamente o rei de Lothian como seu aliado, voltara-se para o próprio irmão na sua ânsia pelo poder. E agora? Morgause tinha alguns poderes mágicos. Talvez soubesse, como eu, que concebera de seu incesto com Artur e tinha de arranjar um marido. Quem melhor do que Lot? Se ele pudesse ser convencido de que o filho era seu, Morgause roubaria de sua odiada irmã o marido e o reino de Lothian, e conseguiria um ninho adequado para criar seu bastardo em segurança.

Tudo indicava que ela seria bem sucedida. Quando a névoa abriu-se de novo, vi os dois rindo juntos. Morgause afastara as cobertas e estava sentada perto da cabeceira da cama, com os cabelos rosa dourados cobrindo os ombros como se fosse um manto de seda. Continuava nua, mas agora usava a coroa de Lot, um fino aro de ouro onde cintilavam topázios e as pérolas azuladas que são encontradas nos rios do norte. Seus olhos brilhantes estavam estreitados, o que me fez lembrar de um gato. Lot riu gostosamente quando ergueu o copo e bebeu, como se estivesse fazendo um brinde. Quando ergueu novamente a mão, o copo entornou e o vinho caiu nos seios de Morgause como se fosse gotas de sangue. Ela continuou imóvel, sorrindo, e o rei inclinou-se para lambê-lo. A fumaça do braseiro aumentou e eu pude sentir seu cheiro, como se estivesse a seu lado. Depois, dando graças aos céus, acordei na noite fria e silenciosa do santuário, mas o pesadelo continuava escorrendo por todo o meu corpo, como se fosse suor. Para qualquer outra pessoa, o quadro não teria sido escandaloso. A moça era linda e o homem vistoso e viril e, sendo ambos solteiros, não existia nada de errado no fato dela desejar a coroa de rainha. Cenas desse tipo são encontradas às dúzias nas agradáveis noites dos meados do verão. Todavia, para mim, existe algo de muito sagrado numa coroa, pois ela é o símbolo do elo misterioso que existe entre o deus e o rei, e o rei e seu povo. Vê-la na cabeça dessa moça calculista enquanto Lot, seu legítimo dono, agia como se fosse um animal bebendo água, foi como encontrar um altar profanado por escarro. Levantei-me de um salto, enfiei a cabeça na bacia com água e lavei de minha mente a desagradável visão.

5 Às doze horas do dia seguinte, quando chegamos a Caerleon, um forte sol de outubro secava o chão e apenas nos cantos das muralhas e edifícios restava um pouco de gelo sujo. As árvores ao longo da margem do rio, com troncos escuros e folhas amarelas redondas, lembrando moedas, estavam imóveis e pareciam ter sido bordadas contra o céu azul. Folhas secas, ainda duras por causa da geada, estalavam sob os cascos de nossos cavalos. O aroma de pão fresco e carne assada vindo das cozinhas do acampamento trouxe-me à memória a visita que no passado eu fizera à cidade em companhia de Tremorinus, o mestre engenheiro que reconstruíra o quartel para Ambrosius, instalando ali as melhores cozinhas militares do país. Contei meus pensamentos a Caius Valerius, meu velho amigo e atual companheiro de viagem, e ele concordou: — Esperemos que o rei reserve um bom período para seu almoço antes de começar a inspeção. — Pode ficar tranqüilo, ele tem um ótimo apetite. — Sim, claro, afinal, ainda é um rapaz em crescimento. As palavras saíram num tom de orgulho indulgente, sem o menor vestígio de bajulação. lira algo bem típico de Valerius, um veterano que lutara com Ambrosius em Kaerconan, servindo depois a Uther com a mesma dedicação, e que fora um dos comandantes que haviam lutado ao lado de Artur na batalha do no Glein. Se homens dessa estatura estavam dispostos a aceitar o jovem rei com respeito e confiar em sua liderança, eu podia dar minha missão por terminada. O pensamento veio limpo, sem nenhuma sensação de perda ou declínio, trazendo uma calma nova para mim. Sim, calculei, estou mesmo envelhecendo. Percebi que Valerius me perguntara alguma coisa. — Desculpe. Eu estava distraído com meus pensamentos. Você disse... — Perguntei se você vai ficar aqui até a coroação. — Acho que não. É possível que Artur precise de mim por algum tempo, pois sei que está pensando em reconstruir Caerleon. Espero, contudo, obter permissão para partir logo depois do Natal, mas voltarei para a coroação. — Se os saxões nos derem tempo para ela. — Bem falado. Deixar a cerimônia para Pentecostes me pareceu um pouco arriscado, mas foi escolha dos bispos e o rei achou melhor não contrariá-los. — Hum! Se eles resolvessem colaborar e fazer orações realmente contritas, talvez Deus segurasse a ofensiva de primavera por mais algum tempo. Pentecostes, hein? Será que estão esperando que volte a cair fogo dos céus... e, desta vez, o fogo deles? — Valerius lançou-me um olhar de soslaio. — O que me diz disso, Merlin? Eu sabia bem o que ele queria dizer. Desde que o fogo branco tomara conta da Capela Perigosa, os cristãos tinham começado a compará-lo com o que, num certo dia de Pentecostes, caíra sobre os servos escolhidos pelo seu deus. Não vi motivos para contestar essa interpretação do que ocorrera na floresta, porque era necessário que os cristãos, com seu poder crescente, aceitassem Artur como o rei indicado pelo seu deus. Além disso, por tudo o que eu sabia, a história era verdadeira. Valerius esperava por uma resposta. Sorri para ele.

— Só digo que, se eles sabem de onde veio o fogo, têm maior conhecimento do que eu. — Ah, claro! — O tom mostrou um ligeiro desdém. Valerius não presenciara Artur levantar a espada do meio do fogo na Capela Perigosa porque naquela noite era o comandante da patrulha noturna de Luguvallium, mas, como todo o mundo, ficara sabendo do caso. E, também como os outros, evitava tocar diretamente no assunto. — Quer dizer então que você vai nos deixar depois do Natal? Para onde pretende ir, Merlin? — Vou voltar para Maridunum, para o meu lar. Já se passaram cinco anos... não, seis anos desde que estive lá. Quero ver se está tudo em ordem. — Então providencie para chegar a tempo para a coroação. Haverá grandes festejos por ocasião do Pentecostes. Seria uma pena perdê-los. Nessa ocasião, pensei, Morgause estaria perto de sua hora, mas em voz alta só disse: —Oh, sim. Com ou sem saxões, teremos grandes festejos em Pentecostes. Então falamos sobre outras coisas até chegarmos aos nossos alojamentos, onde já nos esperava o convite para almoçarmos com o rei e seus oficiais. Caerleon, a antiga Cidade das Legiões romana, fora reconstruída por Ambrosius e desde então era mantida bem conservada e guardada. Artur estava disposto a ampliá-la quase até atingir o tamanho original e torná-la, ao mesmo tempo, uma fortaleza e residência do rei. A antiga cidade real de Winchester agora ficava perto demais da fronteira dos territórios ocupados pelos saxões e, como estava situada na margem do rio Itchen, era vulnerável a novos ataques com barcos de guerra. Londres continuava segura e nenhum saxão se aventurara a invadir o vale do Tâmisa, mas na época de Uther as chalupas haviam penetrado até Vangniacae, e atualmente Rutupiae e a ilha de Thanet continuavam em poder do inimigo. Considerava-se que lá estava a verdadeira ameaça e que ela crescia a cada ano, e desde que Uther subira ao trono Londres começara a entrar em decadência. Agora era uma cidade que enfrentava dias difíceis; muitos de seus prédios tinham ruído devido à idade e ao desleixo, a pobreza aumentava à medida que os mercados eram transferidos para outras localidades e os que tinham meios para isso estavam se mudando para lugares mais seguros. Era voz corrente que ela jamais voltaria a ser uma capital. Portanto, até que a nova fortaleza estivesse pronta para enfrentar qualquer invasão importante a partir da costa saxã, Artur planejava fazer de Caerleon o seu quartel-general. Não poderia haver escolha melhor. A pouco menos de doze quilômetros ficava Guent, a capital do rei Ynyr, com sua fortaleza situada numa curva do rio, mas longe do perigo das inundações. As montanhas protegiam sua retaguarda e o lado leste fazia fronteira com a área pantanosa resultante do encontro dos rios Isca e Afon Lwyd. Naturalmente, Caerleon só podia defender uma pequena parte do território que agora se encontrava sob o escudo de Artur, mas ofereceria uma boa base para sua política de constituir uma defesa móvel. Fiquei com ele por todo esse primeiro inverno. Uma vez me perguntou com uni ar zombeteiro quando eu pretendia partir para minha toca nas alturas, mas só respondi: "Mais tarde", e deixei por isso mesmo. Não contei a Artur sobre o sonho que tivera no santuário de Nodens porque o novo rei já tinha muito em que pensar. Eu também dava graças por ele aparentemente ter se esquecido das possíveis conseqüências da noite que passara com Morgause. Haveria tempo suficiente para conversarmos quando viessem as notícias sobre o futuro casamento em York.

Elas não só vieram, como também acabaram chegando a tempo de sustar os preparativos para a partida da corte para o norte, onde assistiria à cerimônia, ficando em seguida para o Natal. O mensageiro primeiro entregou uma longa explicação de Ygraine para o rei e depois, informado de que eu caminhava pela beira do rio, foi me procurar para deixar em mãos uma carta particular da rainha. Eu passara a manhã inteira supervisionando o assentamento de uma nova tubulação e agora os homens estavam almoçando. Como os soldados que treinavam no campo perto do antigo anfiteatro tinham se dispersado, havia um agradável silêncio nessa tarde cinzenta de inverno. Agradeci ao homem e esperei-o afastar-se antes de quebrar o selo. Meu sonho fora profético. Lot e Morgause estavam casados. Antes mesmo de a rainha Ygraine e seu séqüito chegarem a York já se sabia que eles tinham se apresentado à população como noivos. Morgause — a essa altura eu já estava lendo nas entrelinhas — entrara na cidade cavalgando orgulhosamente ao lado Lot este corado de triunfo e coberto de jóias, e a cidade, que preparava para um casamento real onde teria oportunidade , ver o Grande Rei em pessoa, engoliu o desapontamento e, ara não desperdiçar o dinheiro já reservado para a grande ocasião, fizera a festa do mesmo jeito. O rei de Lothian, contou Ygraine, apresentara-se a ela cheio de humildade e enviara presentes para os principais chefes de York, o que lhe garantira boas-vindas calorosas. Quanto a Morgan — pude captar o tom satisfeito nas palavras de sua mãe — ela não mostrara nem raiva nem humilhação; rira às gargalhadas e depois chorara com o que pareceu ser puro alívio. Comparecera aos festejos com um alegre vestido vermelho e nenhuma moça demonstrara maior vivacidade (Ygraine terminou com um toque de acidez que eu conhecia bem), apesar de Morgause ter ostentado sua nova coroa desde a madrugada até a hora de dormir... Ocorreu-me que a reação da rainha também fora de alívio. Nunca tivera motivos para morrer de amores por Morgause, e Morgan, ao contrário de Artur, fora uma criança que conseguira criar pessoalmente. Ficou claro que, apesar de nem lhes passar pela idéia contestar a ordem deixada por Uther, tanto ela como Morgan não estavam contentes com a perspectiva de um casamento com o rei de Lothian. Imaginei se Morgan sabia mais sobre o caso do que revelara à mãe. Era possível até que Morgause, sendo quem era, estivesse se vangloriando de ter deitado com Lot quando ele ainda era noivo de sua detestada irmã. Pelo que pude sentir nas palavras de Ygraine, ela não desconfiava disso e nem lhe passava pela cabeça que a gravidez da noiva fosse um possível motivo para o casamento apressado. Rezei para não haver nenhuma insinuação sobre uma criança, na carta enviada a Artur. Ele estava assoberbado com tantas cerimônias e preparativos para a guerra; a raiva e a aflição poderiam ficar para mais tarde. Uma vez coroado, estaria livre para se empenhar na formidável tarefa de defender seu país e não devia ser tolhido por desagradáveis assuntos relacionados com mulheres, nos quais, porém, infelizmente, eu teria de me envolver. Artur atirou a carta ao chão. Estava furioso, mas tentava se controlar. — E então? Imagino que você já esteja sabendo. — Estou. — E há quanto tempo? — A rainha, sua mãe, me escreveu. Acabo de ler minha carta. Creio que ela contém as mesmas notícias que estão na sua. — Não foi o que perguntei!

— Se está me perguntando se eu sabia que isso iria acontecer — disse eu suavemente —, a resposta é sim. — Você sabia? — O olhar furioso se tornou mais brilhante. — Por que não me contou? — Por dois motivos: porque você estava ocupado com coisas mais importantes e porque eu não tinha plena certeza. — Não tinha plena certeza? Ora, Merlin! Você? — Artur, tudo o que eu sabia ou suspeitava sobre esse caso me veio em um sonho que tive há algumas semanas. Não foi como os outros. Veio como um pesadelo causado pelo excesso de vinho, ou por eu ter pensado demais naquela gata brava e em suas artes. O rei Lot também estava em minha mente. No sonho vi os dois juntos e Morgause experimentava a coroa dele. Por acaso lhe parece o suficiente para eu apresentar um relatório que deixaria a corte de cabelo em pé e o faria correr para York para brigar com Lot? — Você tinha obrigação de me contar! — A boca de Artur fechou-se numa linha teimosa e irritada. Vi que a verdadeira origem da raiva era a ansiedade a respeito de Morgause. — Se eu continuasse sendo o profeta do rei. Não — falei erguendo a mão ao ver o olhar indignado —, não estou servindo uma outra pessoa. Mas não sou mais um profeta, Artur, pensei que você tivesse entendido. — Entendido, o quê? — A noite em que você pegou a espada que eu tinha escondido no fogo foi a última em que o poder me visitou. Vimos como ficou o lugar, quando tudo acabou e a capela se esvaziou. O fogo quebrou a pedra onde estava a espada e destruiu as relíquias sagradas. Ele não me atingiu, mas penso que nesse momento nesse momento sugou o poder de mim, talvez para sempre, queimando-o com o resto Pensei que você tivesse ao menos desconfiado. —Como eu poderia? — O tom de Artur tinha mudado. Não havia mais raiva, só uma nova compreensão. — Você continuou parecendo o mesmo de antes. Lúcido e tão seguro de si que conversar com você é como consultar um oráculo. —Ora, Artur, não me ofenda! — brinquei. — Os oráculos nunca foram grande coisa. Mulheres velhas ou mocinhas retardadas resmungando no meio da fumaça. Se tenho lhe parecido tão seguro de mim nestas últimas semanas é porque até agora apenas me consultaram sobre fatos relacionados com minha vida profissional, só isso. — "Só isso?" Sim, claro, seria mais do que suficiente para qualquer rei que não conhecesse seu outro lado... Mas creio que estou entendendo. Acho que aconteceu o mesmo para nós dois. As visões e sonhos desapareceram e agora temos de viver de acordo com as leis dos homens. Você logo compreendeu e foi por isso que aceitou minha decisão de ir pessoalmente à procura de Colgrim. — Artur caminhou até o lugar onde caíra a carta; pegou-a e levou-a para a mesa. Inclinou-se sobre ela com um ar sombrio, mas seu olhar estava distante. Depois ergueu a cabeça. — E o que faremos com os anos que estão por vir? Os combates serão penosos e não terminarão nem neste nem no próximo ano. Você está me dizendo que não poderei contar mais com sua ajuda? Não falo sobre máquinas de guerra ou seu conhecimento de medicina. Estou perguntando se não receberei a "mágica" da qual soldados tanto falam, a ajuda que você deu a Ambrosius e meu pai. — Com essa você pode contar. — Sorri. Eu sabia que Artur estava pensando no efeito que minhas profecias e principalmente minha presença exercia sobre as tropas. — Os soldados continuarão

pensando o que pensavam de mim antes da noite na capela. Além disso, não vejo mais necessidade de profecias a respeito das guerras em que você vai se envolver. Todos sabem 0 que eu disse. Lá fora, nos campos de batalha, na largura e comprimento da Bretanha, existe glória para você e para eles. Você terá êxito após êxito e no final... não sei quanto tempo levará... conquistará a vitória. Isso foi o que lhe disse e continua sendo verdade. É o trabalho para o qual você foi treinado. Agora vá fazê-lo e deixe-me encontrar um jeito de fazer o meu. — Isso então significa que, como você conseguiu fazer o filhote de águia alçar vôo, agora pode ficar na terra? Que vai esperar pela vitória e depois voltará a me ajudar na reconstrução? — Tudo ao seu tempo — falei, apontando a carta amassada — Agora tenho de ajudá-lo a lidar com situações como essa Depois de Pentecostes, com sua permissão, irei para o norte, para Lothian. Houve uma pausa enquanto eu via o alívio colorir as faces de Artur. Ele não perguntou o que eu pretendia fazer lá, e disse apenas: — Fico satisfeito com isso, você sabe. Será que precisamos conversar sobre a causa dos acontecimentos em York? — Não. — Você estava certo, como sempre. O que ela queria era poder e não importava o meio de consegui-lo. Agora vejo bem isso. Só posso lhe dizer que estou contente porque tudo indica que ela não reivindicará possíveis direitos. — Um pequeno gesto afastou os pensamentos sobre Morgause e suas tramas. — Mas duas coisas permanecem. A mais importante é que preciso de Lot como aliado. Você estava certo mais uma vez ao não me contar sobre o sonho. Eu, sem dúvida, teria brigado com ele. Da maneira como estão as coisas... — Artur ergueu os ombros. Eu só fiz que sim com um gesto de cabeça. — Do modo estão as coisas você pode aceitar o casamento de Lot com sua meia irmã e considerá-lo um selo no acordo entre os dois reinos. Essa, afinal, era a aliança que Uther queria quando pensou em casar uma filha com o rei de Lothian. Creio que por enquanto podemos ignorar os motivos para essa troca de noivas. — E creio que tudo está mais fácil porque, pelo que a rainha escreveu, Morgan não deu grande importância ao acontecido. Se ela tivesse se sentido menosprezada... esse seria o segundo problema do qual lhe falei. Sua carta também conta que Morgan não demonstrou nada senão alívio? — Sim. Há pouco estive interrogando o mensageiro que veio de York. Ele me contou que Urbgen de Rheged estava em York para o casamento e que Morgan só tinha olhos para ele. Como o velho Coei morrera logo depois da batalha de Luguvallium, Urbgen se tornara o rei de Rheged. Era um homem de cerca de quarenta anos, um notável guerreiro, bem apessoado e ainda vigoroso. Ficara viúvo dois ou três anos antes. Os olhos de Artur brilharam, interessados. —Urbgen de Rheged? Essa seria uma união e tanto! Urbgen... sim. Ele e Maelgon de Gwynedd são os melhores guerreiros do norte e, pelo que me contaram, jamais houve dúvida sobre sua lealdade. Juntos eles manteriam firmemente a região e eu... Eu terminei por ele: —E você poderia ignorar Lot e sua rainha. —Exatamente. Será que Urbgen receberá bem a sugestão de um casamento com Morgan?

— Ele vai se considerar um homem de sorte. E creio que Morgan viverá melhor do que se tivesse casado com o outro. Penso que breve você receberá uma outra carta. E saiba que isto é uma intuição informada e não uma profecia. — Merlin, você está aborrecido com sua perda? Foi o Grande Rei que me fez a pergunta; um homem capaz de ver além de seus problemas mais prementes para tentar entender o que significava para mim viver no mundo cotidiano quando antes eu habitava o jardim colorido de um deus. Pensei um pouco antes de responder. — Não tenho certeza. Já houve épocas como essa, tempos passivos, a vazante depois da inundação, mas nunca aconteceu quando ainda estávamos no portal de grandes eventos. Não estou habituado a me sentir impotente e devo dizer que isso me desagrada. Todavia, se aprendi uma coisa ao longo dos anos em que o deus esteve comigo, é confiar nele. Já tenho idade bastante para caminhar tranqüilo pelo resto de minha vida e quando olho para você sinto-me realizado. Por que deveria lamentar? Sentarei num canto e ficarei observando você completar o trabalho para num. Esse é um dos privilégios da velhice. — Velhice? Ora, Merlin, você fala como se estivesse de barbas brancas. Qual é a sua idade? — Já vivi bastante. Estou com quase quarenta anos. — Ora, pelo amor de Deus! Artur explodiu numa gargalhada e acabei rindo com ele. Fui levado pelo braço até um canto do salão onde ficava a mesa com meus projetos da nova Caerleon e nos absorvemos numa conversa sobre eles. Artur não tocou mais no nome de Morgause e pensei: falei de confiança, mas que maior confiança do que esta? Se eu falhar com esse rapaz, serei realmente apenas uma sombra e um nome, e foi zombaria eu ter posto a mão na espada da Bretanha. Quando, depois do Dia de Reis, solicitei permissão para viajar para Maridunum, Artur concordou meio distraído, já envolvido nos pensamentos sobre a tarefa que teria a sua frente no dia seguinte. A caverna que eu herdara de Galapas, o eremita, ficava a cerca de oito quilômetros a leste de Maridunum, a cidade que guarda a foz do rio Tywy. Meu avô, o rei de Dyfed, morava em Maridunum e eu, criado como um desprezado bastardo na residência real, tinha um tutor preguiçoso que me deixava à vontade para vagar pelos campos. Fizera amizade com o velho sábio que vivia recluso na caverna de Bryn Myrddin, situada num monte dedicado a Myrddin, deus do firmamento e guardião da luz e do ar livre. Quando Galapas morreu, continuei visitando a caverna e acabei fazendo dela o meu lar. O povo simples do lugar, que costumava procurar a fonte de Myrddin em busca de seus poderes curativos, passou a recorrer a mim para tratamento e remédios. Logo minha perícia como médico ultrapassou a do velho ermitão e em pouco tempo cresceu minha fama de ter poderes para fazer o que os homens chamam de "magia", de modo que o lugar passou a ser conhecido como "o monte de Merlin". Acredito que essa gente humilde chegasse a pensar que eu era o próprio Myrddin, o guardião da fonte. Existe um moinho situado na margem do Tywy e é nesse ponto da estrada que começa a trilha para Bryn Myrddin. Quando cheguei a esse lugar vi que uma barcaça subira o rio e estava ancorada ali. O grande cavalo que a puxava pastava do jeito que podia na vegetação rala do inverno, enquanto um rapaz descarregava sacos no ancoradouro. Não vi o mestre barqueiro, que devia estar saciando sua sede na cabine do barco. Um menino de uns cinco ou seis anos corria de um lado para o outro, atrapalhando o serviço do moço e falando sem parar numa estranha mistura de galês e um idioma que não me era

desconhecido, mas que saía o distorcido devido à língua presa que não consegui entender quase nada do que ele dizia. Porém, quando o rapaz respondeu, reconheci tanto o idioma quanto ele próprio. —Stilicho! — chamei. Enquanto ele punha o saco junto com os outros, acrescentei em sua própria língua. — Eu devia ter mandado avisar sobre minha chegada, mas não tive tempo para isso. Voltei antes do que pretendia. Como vai? — Meu senhor! Ele ficou me olhando estupefato por alguns instantes e depois atravessou correndo a faixa relvada que separava a estrada do rio. Limpou as mãos nas calças, estendeu o braço para pegar minha mão e beijou-a. Vi lágrimas em seus olhos e elas me comoveram. Stilicho era um siciliano que fora meu escravo por ocasião de minhas viagens pelo exterior. Eu o libertara em Constantinopolos, mas ele escolhera continuar comigo e vir para a Bretanha, e fora meu criado quando eu morava em Bryn Myrddin. Quando eu partira para o norte ele já estava para se casar com filha do moleiro, Mai, e pretendia descer para o vale e morar no moinho. Stilicho continuava me dando as boas-vindas, falando em siciliano. O galés que aprendera desaparecera em sua excitação. O menino aproximou-se de nós curioso, com o dedo na boca. — É seu? — perguntei. — Bonita criança. — O mais velho — informou ele com orgulho. — São todos meninos. — Todos? — Ergui uma sobrancelha. — Só três — apressou-se a responder, com o olhar límpido do qual eu tão bem lembrava. — E tem mais um a caminho. Dei uma risada e o cumprimentei, desejando outro menino. Por sorte, ele não seria forçado, como seu pai, a vender alguns filhos como escravos para poder sustentar o resto. Mai era filha única e herdaria um belo patrimônio. Ela já herdara, como descobri em seguida. O moleiro morrera dois anos antes e agora Stilicho tocava o negócio em seu lugar. — Mas saiba que sua casa está bem cuidada, meu senhor. Eu ou o garoto que trabalha para mim subimos todos os dias para ver se está tudo direitinho. Naturalmente, ninguém teria o atrevimento de entrar lá, e por isso o senhor a encontrará como deixou, só que... bem, claro que não tem nenhuma comida lá.— Ele hesitou, como em dúvida de me fazer o convite. — O senhor nos daria a honra de passar esta noite aqui? Lá no alto está frio e tem muita umidade, apesar de toda as semanas acendermos um braseiro para que os livros não se estraguem. Fique aqui, senhor, e o garoto subirá agora mesmo para acender o braseiro e pela manhã Mai e eu iremos... — É muita gentileza sua, Stilicho, mas não sentirei muito o frio e posso acender o fogo sozinho... talvez seja bem mais rápido do que o garoto. — Sorri ao ver a expressão no rosto de Stilicho. Ele não se esquecera de algumas coisas que presenciara quando servira seu patrão mago. — Agradeço o convite, mas não quero dar trabalho. No entanto, se não for abusar de Mai, gostaria de comer alguma coisa. Enquanto descanso poderemos conversar, você me apresentará seus filhos e antes de escurecer subirei para a caverna levando algumas provisões. — Claro, claro, será um prazer... Vou avisar Mai. Ela ficará honrada... feliz... Eu já tivera a oportunidade de divisar um rosto pálido e olhos arregalados na fresta de uma cortina, e sabia que Mai só ficaria feliz quando visse o assustador príncipe Merlin pelas costas. Mas

estava cansado da viagem e logo ao chegar eu sentira o aroma de um ensopado no fogo, que certamente tornaria mais agradável minha subida. Stilicho, com o habitual jeito ingênuo, informou: — Temos uma galinha gorda no fogo. O senhor vai gostar. Entre, se aqueça e descanse até o jantar. Bran cuidará de seu cavalo enquanto eu termino de descarregar o trigo da barcaça, para ela poder voltar para a cidade. Fique à vontade, meu senhor, e bem-vindo a Bryn Myrddin. Muitas vezes eu subira a encosta daquele vale indo para Bryn Myrddin, mas de nenhuma delas me lembro tão bem como esta. E o interessante é que não houve nada de extraordinário nela, foi só uma volta ao lar. Até este instante, quando estou escrevendo sobre ela depois de tanto tempo, cada detalhe dessa subida está vivido em minha memória. O som oco das patas do cavalo no solo endurecido pelo frio; o estalar de gravetos e folhas secas; o vôo rasante de m galo da campina em fuga; o bater de asas de um pombo assustado. Depois o sol se pondo rápido e quase branco no entardecer, fazendo cintilar a umidade congelada nas bordas das folhas, transformando-a em pó de diamantes; os galhos de aze-vinho estalando por causa dos passarinhos que se alimentavam das frutinhas; o aroma de pinheiros úmidos; um tapete de pequeninas flores de inverno douradas pelos últimos raios de luz; o ar puro e cristalino. Abriguei o cavalo no barracão que ficava na parte inferior da escarpa e subi a trilha até atingir o morrinho de turfa que protegia a entrada da caverna. Logo eu estava em seu interior silencioso, sentindo os aromas dos quais eu tão bem lembrava, e mais percebendo do que ouvindo o roçar de veludo vindo dos morcegos que agora dormiam no ninho de pedras que formava uma clarabóia natural. Stilicho me dissera a verdade: o lugar estava bem cuidado, seco e arejado, e o frio, maior do que o da tarde que eu deixara lá fora, requeria um bom fogo para ser combatido. O braseiro estava pronto para ser aceso e havia troncos secos na lareira perto da entrada. A pederneira continuava na prateleira em que eu a guardara. No passado raramente era tirada dali, mas dessa vez não dispensei seu uso e logo estava com o fogo aceso. Talvez devido à recordação de uma outra trágica volta ao meu lar, senti-me meio temeroso de testar, mesmo nessa tranqüila solidão, o menor de meus poderes. Mas, pensando bem, creio que tomei essa decisão mais por cautela do que medo. Se eu ainda tinha o poder, o reservaria para coisas mais importantes do que acender um braseiro. É mais fácil criar uma tempestade a partir de um céu claro do que manipular o coração de um homem. E logo, se minha intuição ou meu cérebro não mentissem, eu precisaria de todos os tipos de poderes que seria capaz de reunir para algo ainda mais difícil do que isso: enfrentar uma mulher. O ar parece fraco quando comparado com rocha, mas é mais difícil se ver o ar do que uma montanha. Assim, usei a pederneira para acender o braseiro de meu quarto, depois a lareira e em seguida, já tendo esvaziado meus alforges, saí com uma jarra para pegar água na fonte. Ela nascia numa rocha coberta de samambaias ao lado da boca da caverna, corria por uma fenda e pingava numa bacia natural de pedra. Acima dela, por entre o musgo e coroada pelo orvalho congelado, ficava a imagem do deus Myrddin, o guardião das estradas do firmamento. Derramei um pouco da água do jarro em uma libação para ele e depois entrei para examinar meus livros e medicamentos. Nada se estragara. As ervas, guardadas em potes bem fechados e selados, ainda mantinham seu frescor. Satisfeito, arrumei minha cama e em seguida fui pegar a grande harpa que guardava no fundo da caverna. Tirei suas cobertas protetoras e levei-a para perto do fogo, pretendendo afiná-la quando as cordas estivessem mais aquecidas. Esquentei um pouco de vinho e sentei-me para bebê-lo vagarosamente, enquanto pensava nas músicas que já extraíra desse elegante instrumento. Finalmente, desembrulhei a pequena harpa que me acompanhava em todas minhas viagens e devolvi-a ao seu lugar

na caverna de cristal. Esta era uma caverna pequena, cuja boca ficava bem no alto da parede posterior da caverna principal; um afloramento de rocha a protegia de vista. Quando eu era menino, ela fora meu portal da Visão. Ali, no profundo silêncio do interior da montanha, no isolamento e escuridão, nenhum sentido funcionava, a não ser o olho da mente. Agora, porém, ouvi o murmúrio da harpa enquanto a punha no chão. Era a mesma que construíra quando menino, tão perfeitamente cordoada que até o ar a fazia murmurar. Os sons que produzia eram estranhos e às vezes chegavam a ser muito belos, mas não formavam música como a conhecemos. Isso é muito comum na natureza. O canto da foca-cinzenta nos parece bonito, mas é formado mais pelos sons do vento e das ondas do que pela voz do animal. A harpa cantou para si mesma enquanto eu a arranjava no lugar e seu ronronar me fez lembrar de um gato sonolento se acomodando em sua almofada preferida. — Você descanse aí — disse eu a minha pequena companheira, e diante do som de minha voz que deslizava pelas paredes cristalinas ela voltou a murmurar. Voltei para junto da lareira, lancei um olhar para fora, vendo que as estrelas salpicavam o céu claro da noite de inverno. Afinei a harpa grande e em seguida, de início hesitante e depois mais à vontade, fiz música. Repousa, mago, enquanto a luz do dia fenece. A visão se estreita e o distante Horizonte desapareceu com o sol. Contente-se com as centelhas Do carvão, com o aroma Da comida e o soprar Do frio atrás da porta fechada. Seu lar é aqui, junto de coisas simples; Uma caneca, uma gamela, uma coberta, Orações, uma oferenda para o deus, e sono, O bom sono. (E música, diz a harpa, E música.)

6 Como se imaginava, a primavera trouxe problemas. Colgrim, navegando cautelosamente pelo litoral leste, desembarcara nos antigos territórios federados e treinava um outro exército para substituir o que fora derrotado em Luguvallium e no vale do Glein. A essa altura eu já estava em Caerleon, ocupado com os planos de Artur para a formação de uma cavalaria móvel. A idéia, embora surpreendente, não era totalmente nova. Com os federados saxões já estabelecidos por tratado na região sudeste da ilha e com toda a extensão da costa leste em constante perigo, era impossível estabelecer e manter uma linha de defesa fixa. Havia, claro, certos bastiões defensivos, sendo a Muralha de Ambrosius o maior deles. (Omito a Grande Muralha de Adriano, que jamais foi uma estrutura puramente defensiva e que mesmo na época do imperador Macsen era dificílima de defender. Ela também ruíra em vários lugares, mas as obras de reforma poderiam ser deixadas para mais tarde porque nossos inimigos não eram mais os celtas das regiões selvagens do norte, mas invasores que chegavam pelo mar e que já tinham se apoderado do sudeste da Bretanha.) Artur estava empenhado na ampliação e restauração desses bastiões, concentrando-se especialmente no Dique Negro da Northumbria, que protege Rheged e Strathclyde, e na mais antiga das muralhas romanas, construída ao sul da planície de Sarum. O rei pensava em aumentar a extensão dessa muralha na direção norte. As várias estradas que atravessavam a planície permaneceriam abertas, mas poderiam ser rapidamente bloqueadas se houvesse qualquer tentativa do inimigo de avançar pela ensolarada região sudeste. Todavia, essas obras demorariam a ficar prontas e por enquanto Artur tinha de se contentar em fortalecer posições estratégicas, estabelecer estações de sinalização entre elas e manter abertas as estradas. Os reis e chefes bretões cuidariam de seus próprios territórios, e o Grande Rei se encarregaria de manter uma força de ataque que estaria sempre pronta para ajudar qualquer um deles ou para fechar brechas em nossas defesas. Esse era o plano com o qual Roma defendera com êxito sua província algum tempo antes da retirada das legiões; o conde que governava a costa saxã também se valera desse recurso e mesmo Ambrosius, mais recentemente, tivera uma força móvel. Artur, contudo, pretendia ir mais longe. Queria que essa força se movimentasse "à velocidade de César", como gostava de dizer, explicando que conseguiria uma velocidade dez vezes maior se todos os homens estivessem montados. Hoje em dia, quando vemos tropas de cavalaria patrulhando as estradas e desfilando em paradas, elas nos parecem perfeitamente comuns, mas quando Artur submeteu à minha apreciação uma idéia tão revolucionária, ela caiu sobre mim com toda a força do ataque surpresa que ele esperava fazer com a nova tática. Precisaríamos de tempo, é claro, e inicialmente teríamos de ser modestos. Enquanto os homens não estivessem treinados para lutar montados, a força seria constituída de oficiais e amigos do Grande Rei. Era um projeto viável, mas não poderia ser executado sem os cavalos certos, dos quais tínhamos muito poucos. Os animais nativos, de pernas curtas, embora resistentes, não tinham velocidade nem a força para carregar um homem completamente armado. Conversamos sobre isso dias e noites, analisando cada detalhe antes de Artur apresentar o projeto a seus comandantes. Como sempre acontece nessas ocasiões, houve resistência por parte dos que se opunham a qualquer tipo de mudança, mas o rei, contando com a ajuda de Cador, Gwilim de Dyfed e Ynyr de Caer Guent, conseguiu convencê-los mostrando-lhes mapas e planos. Eu pude contribuir muito pouco para conversas guerreiras, mas resolvi o problema dos cavalos. Existe uma raça de cavalos que é considerada a melhor do mundo. Com toda a certeza, é a mais

bonita. Eu já vira esses animais no Oriente Médio, onde os homens do deserto os prezam mais do que o ouro ou suas mulheres, mas seria muito difícil consegui-los. No entanto, eu sabia que cavalos igualmente bons poderiam ser obtidos bem mais perto de nós. Os romanos haviam trazido algumas dessas criaturas da África do Norte para a Ibéria, onde os cruzaram com os cavalos europeus de maior estrutura óssea. O resultado era um esplêndido animal, rápido e fogoso, mas resistente, ágil e obediente, características absolutamente necessárias em um animal de guerra. Se Artur mandasse logo alguém para o continente com a incumbência de comprar os cavalos, assim que o clima permitisse um transporte seguro eles seriam trazidos para a Bretanha e quando chegasse o verão seguinte já estaríamos com o primeiro destacamento treinado. Portanto, quando voltei a Caerleon na primavera, envolvi-me na construção das novas cocheiras enquanto Bedwyr navegava para a Ibéria para comprar os cavalos. Caerleon já estava transformada. As obras na fortaleza em si tinham sido completadas e agora outros edifícios surgiam aqui e ali, de modo a oferecerem suficiente conforto e grandeza para uma capital temporária. Embora Artur fosse usar a casa do comandante situada dentro das muralhas como quartel-general, uma outra residência (que o povo simples chamava de "palácio") estava sendo construída fora da cidadela, na encantadora curva do rio Isca que fica perto da ponte romana. Quando estivesse terminada, seria uma casa grande, com vários pátios para convidados e seus criados. Era uma estrutura de pedra e tijolo, com pilares pintados em cores alegres e telhado de metal dourado, como o da nova igreja cristã que ocupava o lugar do antigo templo de Mitra. Entre esses dois edifícios e a praça de armas surgiam a cada dia mais lojas, oficinas e moradias, e o vilarejo de antes estava se transformando numa cidade florescente. O povo, orgulhoso por Artur ter escolhido Caerleon como seu quartel-general, trabalhava de bom grado para fazer dela um lugar digno para ser o centro de um reino cujo soberano desejava trazer paz. E Artur conseguiu trazer alguma paz por volta de Pentecostes. Colgrim, com um novo exército, rompera algumas posições ao leste e o Grande Rei o enfrentara primeiro não muito longe de Humber e em seguida mais perto da fronteira saxã, nos campos pantanosos de Linnius. Colgrim morrera nessa última batalha e com isso os saxões tinham se recolhido a seu território. Artur voltou a Caerleon a tempo de se encontrar com Bedwyr, que vinha trazendo a primeira manada de cavalos do continente. Valerius, que fora ajudar no desembarque, mostrava-se entusiasmado: — Chegam à altura do meu ombro e são fortes, mas tão dóceis como uma donzela. Isto é, algumas donzelas. E dizem que são muito rápidos. Ainda estão rígidos por causa da viagem e vão levar algum tempo para se recuperar. E são lindos! Olhos grandes, escuros e brilhantes, pêlo sedoso... —E quantos ele trouxe? Será que conseguiu éguas? Quando eu estava no sul da Europa me contaram que só vendem garanhões. —Éguas também. Trinta com esse primeiro lote de cem garanhões. Valerius afastou-se ainda sorrindo. Eu chamei meus ajudantes e fui para os novos estábulos; queria verificar se tudo estava realmente pronto para receber os cavalos e examinar pela centésima vez os arreios de batalha mais leves que os seleiros haviam feito para eles. Enquanto eu me dirigia para lá, os sinos começaram a tocar nas torres douradas da igreja. O Grande Rei havia voltado e iam começar os preparativos para a coroação. Depois de assistir à coroação de Uther eu viajara para o continente e vira em Roma, Antioquia e Bizâncio esplendores que possivelmente jamais seriam alcançados pela Bretanha, mas na cerimônia em

Caerleon houve uma glória jovem e primaveril que nenhuma das riquezas imperiais conseguiria comprar. Os bispos e padres estavam esplêndidos em carmesim, púrpura e branco, e seu colorido se destacava ainda mais diante dos hábitos marrons dos frades e freiras que os atendiam. Os reis, cada um com seu séqüito de nobres e guerreiros, brilhavam com jóias e dourados. No alto das muralhas da fortaleza, de onde pendiam panos coloridos, o povo explodia em gritos e aplausos. As damas da corte se mostravam mais alegres que passarinhos e a rainha Ygraine, corada de orgulho e satisfação, tirara o luto e ostentava o antigo luxo. Morgan, ao lado dela, nada fazia lembrar uma noiva rejeitada; vestida em cores alegres que faziam-na parecer pouco mais do que uma menina, sorria entusiasmada, mas mantendo a mesma compostura realesca da mãe. Elas ficaram junto com as outras mulheres, afastadas de Artur. Ouvi murmúrios entre as damas aqui e ali, e comentários abertos das matronas, que lançavam a todo instante olhares para espaço vazio ao lado do trono, mas para mim era bom ainda não haver ninguém para compartilhar da glória do rei. Ele estava sozinho no centro da igreja e a luz que passava pelos vitrais fazia cintilar os rubis em seu peito e criava painéis dourados e azuis em seu traje branco e no arminho do manto vermelho. De início eu duvidava que Lot viria para a coroação. Os boatos ferviam, dando a impressão de que formavam uma bolha que estouraria a qualquer momento, mas mesmo assim ele compareceu. Talvez tenha calculado que perderia mais com sua ausência do que enfrentando o rei, a rainha e a noiva rejeitada. O fato é que poucos dias antes da cerimônia as flâmulas nas cores do rei de Lothian eram notadas entre as de Urien de Gore e Aguisel de Bremenium, e as de Twydal, que governava Dumpeldyr na ausência de Lot, colorindo a estrada noroeste. Os quatro soberanos do norte participaram dos festejos como se nada tivesse acontecido em Luguvallium ou York. Lot parecia tão à vontade com seu ar confiante que era difícil se imaginar que estivesse assumindo uma atitude de bravata. Sem dúvida amparava-se no fato de agora ser parente próximo do Grande Rei. Pelo menos foi o que Artur comentou comigo em particular. Em público ele recebeu com delicadeza as reverências cerimoniosas do cunhado, enquanto eu, temeroso, imaginava se o rei de Lothian não desconfiava que tinha o filho não nascido do rei sob sua mercê. Morgause não veio, o que foi um alívio. Conhecendo essa dama como eu conhecia, não estranharia se ela comparecesse pelo puro prazer de exibir sua coroa de rainha para a mãe e a irmã, e desfilar a barriga crescida diante de mim e Artur. Mas, seja por medo de mim ou por cautela do marido, ela permaneceu em casa, usando como pretexto as indisposições da gravidez. Eu estaca ao lado de Artur quando Lot apresentou as desculpas de sua rainha e não vi em sem rosto ou voz nenhum vestígio de suspeita. Quanto a ele, se percebeu a súbita palidez no rosto de Artur e o olhar aflito que me lançou, não deu nenhum sinal disso. Assim o dia foi nos apresentando suas magníficas e exaustivas horas. Os bispos não economizaram o cerimonial sagrado e, para os pagãos presentes, os auspícios eram bons. Vi muitos outros sinais além da cruz desenhados no chão por onde passaria a procissão, e em quase todas as esquinas previa-se o futuro com ossos, dados e pedras, enquanto vendedores ambulantes faziam um bom dinheiro mercadejando todos os tipos de medalhinhas e amuletos. Galos pretos haviam sido sacrificados à primeira luz da madrugada e oferendas depositadas nas encruzilhadas, onde o velho deus Hermes costumava esperar os presentes dos viajantes para abrir seus caminhos. Fora da cidade, nos morros, vales e florestas, o povinho moreno que habitava o planalto estaria examinando seus presságios e rogando bênçãos de seu próprio deus. No centro da cidade, porém, tanto como na igreja, no palácio e na fortaleza, a Cruz reinava sozinha. Quanto a Artur, ele passou o dia todo com uma dignidade calma e pálida, pesado de jóias e bordados, e rígido de cerimônia, uma marionete para os bispos santificarem. Se era isso o necessário para autenticar sua autoridade aos olhos do povo, era isso que iria fazer. Eu, todavia, que o conhecia e que fiquei ao seu lado todas as intermináveis horas do dia, não pude sentir

nem devoção nem prece em sua compostura tranqüila. Para ele, como para todos os que tinham presenciado o acontecido, o reino fora entregue em suas mãos quando erguera a grande espada de Maximus de seu longo esquecimento e feito o voto para as árvores da floresta ouvirem. Depois da cerimônia vieram os festejos. Festas são sempre parecidas, mas essa se fez notar pelo fato de Artur, que sempre mostrava bom apetite, comer muito pouco e de vez em quando lançar olhares ansiosos a sua volta, como se mal pudesse esperar pelo fim das comemorações para começar a cuidar dos negócios do Estado. Ele me dissera que queria falar comigo naquela noite mas, corno ficou ocupado recebendo congratulações até tarde, conversei primeiro com Ygraine. Ela se retirara cedo da festa e, quando seu pajem me procurou com um recado, fiz um sinal para Artur e deixei o menino me conduzir. A rainha estava hospedada na casa do rei e ali os sons dos festejos chegavam abafados. A porta foi aberta pela mesma menina bonita que eu vira com Ygraine em Amesbury. Usava pérolas nos cabelos castanho-claros e o vestido verde-escuro realçava seu olhos, que não tinham o verde dourado e maldoso de Morgause, mas o verde-claro que nos faz lembrar de um riacho da floresta refletindo as folhas novas da primavera. Tinha a pele corada, talvez devido à emoção e festejos, e sorriu para mim mostrando excelentes dentes e uma covinha quando me fez uma reverência antes de me conduzir para onde a rainha me esperava. Ygraine me estendeu a mão. Parecia cansada e o magnífico vestido púrpura, salpicado de pérolas e prata, deixava-a ainda mais pálida, o que aumentava as sombras em tornos dos olhos e boca. Ela, contudo, mantinha a mesma compostura de sempre e foi direto ao assunto: — Quer dizer então que ele a engravidou. Apesar da súbita pontada em meu coração percebi que ela não desconfiava da verdade e estava se referindo a Lot e ao que lhe parecia ser a causa de ele ter rejeitado sua filha em favor de sua enteada. — É o que parece — concordei no mesmo tom.— Isso tornou a situação mais fácil para Morgan, que era nossa maior preocupação. — Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para ela. — Ygraine falou secamente e sorriu diante de minha expressão de ligeiro espanto. —Jamais gostei da idéia desse casamento. Aprovei o que Uther queria de início, quando ofereceu Morgause a Lot muitos anos atrás. Seria um casamento útil para o reino e uma honra para ela. Mas Lot, com sua eterna ambição, resolveu que só ficaria contente com Morgan, e Uther acabou concordando. Naquela época teria aceitado qualquer coisa para selar um acordo com os reinos do norte contra os saxões, mas, enquanto eu entendia a vantagem política dessa união, lamentava pela minha filha, que não queria ver amarrada a esse traidor devasso e ganancioso. — Palavras fortes, Ygraine. —Você pode negar os fatos? —Longe disso. Eu estava em Luguvallium, lembra-se? Mas estou satisfeito em ver que você não está ofendida. Fiquei preocupado com sua reação e a de Morgan diante da desfeita. — De início Morgan ficou mais brava do que ofendida. Afinal, Lot é o mais importante dos reis menores e, gostasse dele ou não, ela seria rainha de um grande domínio e seus filhos receberiam um importante legado. E é claro que não foi agradável ser trocada por uma bastarda que jamais demonstrou carinho por ela. —E também, quando se tratou o noivado, Urbgen de Rheged ainda tinha uma esposa.

As sobrancelhas bem-feitas ergueram-se rapidamente e os belos olhos examinaram meu rosto impassível. — Exatamente — concordou, sem sinal de surpresa. A palavra saiu como se fosse a última de uma discussão. Não me admirei de Ygraine estar pensando de maneira semelhante à minha e à de Artur. Como seu pai, Coei, Urbgen sempre fora um fiel aliado do Grande Rei. — Os feitos da família real de Rheged no passado, e mais recentemente em Luguvallium, hoje estão registrados junto com os de Ambrosius e Artur. — Sim, e penso que essa união poderia ser a resposta. Não temos de nos preocupar com a lealdade de Urbgen, claro, e para Morgan seria um poder do tipo que, em minha opinião, poderá carregar bem e, quanto aos seus filhos... — Ygraine fez uma pausa. — Bem, Urbgen já tem dois, jovens crescidos e tão bons guerreiros como o pai, e ninguém pode dizer se viverão para herdar a coroa. O soberano de um reino tão grande como Rheged precisa ter muitos filhos. — Mas lembre-se de que Urbgen já ultrapassou seus melhores anos. — E daí? Eu não era muito mais velha do que Morgan quando Gorlois da Cornualha se casou comigo. — Penso que por um momento Ygraine esqueceu-se de como fora esse casamento: o aprisionamento de uma jovem criatura ávida por abrir as asas e ganhar os céus; a fatal paixão de Uther pela bela esposa de Gorlois; a morte do velho duque e depois a nova vida, cheia de amor, mas com muito sofrimento. — Morgan cumprirá o seu dever. — Ygraine usou um tom seco e vi que se recordara do passado, mas seus olhos não demonstraram fraqueza. — Se estava disposta a aceitar Lot, do qual tinha um certo medo, ficará com Urbgen de bom grado, caso Artur sugira essa aliança. E pena que Cador seja um parente próximo demais. Se Morgan se casasse com ele, ficaria perto de mim na Cornualha. — Mas eles não são parentes de sangue. — Cador era filho de Gorlois e sua primeira mulher. — Ainda assim, eles são próximos demais. Os homens esquecem muito fácil e haveria falatórios sobre incesto. Não quero nenhuma pequena insinuação sobre um crime tão chocante como esse. — Entendo. — Fiz minha voz sair fria e inalterada. — Além, disso Cador está noivo e decidiu casar-se no verão, quando voltar para a Cornualha. Artur aprovou sua escolha. — Ygraine virou a mão que tinha no colo como para admirar os anéis que a enfeitavam. — Creio que seria bom falar de Urbgen com o rei assim que parte de sua mente esteja desocupada para ele pensar em sua irmã. — Mas ele já pensou nela. Conversou comigo sobre o assunto e creio que logo mandará chamar Urbgen. — Que bom! Então... — Pela primeira vez senti uma satisfação puramente humana e maternal modificar sua voz com uma ponta de despeito. — Então veremos Morgan receber o que lhe é devido em riqueza e precedência sobre aquela bruxa de olhos verdes, e Lot de Lothian se debater nas armadilhas de sua rainha! — Você acha que Morgause criou uma armadilha para ele? — Ora, Merlin, você a conhece muito bem. Usou suas bruxarias para consegui-lo. — Mas parecem ter sido bruxarias muito corriqueiras.

— Talvez. Mas Lot nunca sofreu de carência de mulheres e ninguém pode negar que Morgan seria um casamento melhor para ele. E minha filha, para completar, é uma moça muito bonita. Apesar de Morgause viver se vangloriando de suas artes, Morgan esta mais bem preparada para ser a soberana de um grande reino. Ela foi criada para isso e a bastarda não. Examinei atentamente o rosto da rainha. Sentada no banquinho ao lado da poltrona, a jovem dama de companhia com pérolas nos cabelos estava quase dormindo. —Ygraine, que mal Morgause lhe fez para justificar essa amargura contra ela? O rubor tomou conta de seu rosto em poucos segundos e por um instante pensei que ela fosse me expulsar dali, mas já tínhamos vivido muito e não precisávamos mais da armadura do orgulho. A rainha respondeu simplesmente: —Se você está pensando que eu odiava ter uma menina sempre perto de mim e de Uther, com mais direito a ele do que eu, é a pura verdade. Mas foi mais do que isso. Mesmo quando Morgause era novinha, com doze ou treze anos, não mais do que isso, eu pensava nela como uma depravada. Foi por isso que recebi tão bem a notícia de seu casamento com Lot. Queria vê-la longe da corte. A resposta fora muito mais direta do que eu esperava. — Depravada? — repeti. Ygraine lançou um olhar para a menina ao seu lado. Ela, de olhos fechados, cabeceava de sono. A rainha abaixou a voz, mas falou com perfeita clareza: — Não estou sugerindo que havia algo de mau em seu relacionamento com o rei, apesar de nunca ter se comportado como uma filha. Aliás, ela jamais demonstrou amor filial por Uther. Extraía favores deles, isto sim, por meio de bajulação. Quando a chamei de devassa, estava pensando em sua prática de bruxarias. Morgause sempre foi atraída por isso e vivia correndo atrás de benzedeiras e charlatões, e qualquer conversa sobre magia a fazia arregalar os olhos como se fosse uma coruja na escuridão. O pior foi que tentou ensinar essas coisas a Morgan, quando a princesa era apenas uma criancinha. E isso que não posso perdoar. Não gosto dessas coisas e nas mãos de pessoas como Morgause... Ygraine parou de falar. A veemência a fizera erguer a voz e a menina agora estava desperta, olhando atentamente para nós. A rainha, se recompondo, inclinou a cabeça. Um toque de vermelho tingiu novamente suas faces. — Príncipe Merlin, por favor, me desculpe. Não tive a intenção de desrespeitá-lo. Soltei uma risada e vi, para minha diversão, que a menina devia ter ouvido, porque também estava rindo, mas em silêncio exibindo as covinhas por trás do ombro de sua senhora. — Sabe, Ygraine, sou orgulhoso demais para me comparar com garotinhas brincando de encantamentos. Lamento o acontecido com Morgan. É verdade que Morgause tem certos poderes e também é verdade que essas coisas podem ser perigosas. Aliás poderes desse tipo são difíceis de manter e, quando mal usados, podem voltar contra quem os usa. — Um dia, se você tiver oportunidade, converse sobre isso com Morgan. — A rainha sorriu, tentando um tom mais leve. — Ela dará ouvidos a você. Comigo, só ergue os ombros, ignorando meus conselhos. — Com todo o prazer. — Sorri, me sentindo como se fosse um avô convocado para passar um sermão nos mais jovens. — Talvez Morgause, agora que é uma rainha com o verdadeiro poder, pare de procurar outros —

disse Ygraine, voltando ao assunto. — E quanto a Lot? Será que agora que tem uma filha de Uther, mesmo que seja apenas uma bastarda, considera-se comprometido com a bandeira de Artur? — Não sei dizer. Mas, a não ser que os saxões obtenham grandes vantagens para justificar uma traição, Lot continuará mantendo o poder que tem e lutará pelos seus próprios domínios, mesmo que não seja pelo bem do Grande Rei. Não antevejo problemas entre eles — falei, sem acrescentar, como gostaria: "pelo menos não desse tipo", e terminei muito simplesmente. — Quando você voltar para a Cornualha, receberá notícias por meu intermédio. — Eu lhe serei grata por isso. Suas cartas foram um grande conforto para mim quando meu filho estava em Galava. Conversamos mais um pouco, principalmente sobre os acontecimentos do dia. Quando comecei a fazer perguntas sobre sua saúde, a rainha não me deixou continuar com um sorriso que me contou que estava a par da verdade, de modo que não insisti e indaguei sobre o futuro casamento de Cador. — Artur não me falou sobre ele. Quem é a moça? — A filha de Dinas. Você chegou a conhecê-lo? O nome dela é Mariona. Infelizmente, o casamento foi acertado quando os dois eram crianças. Agora Mariona atingiu a maioridade e eles se casarão quando o duque voltar para casa. — Sim, eu conheci Dinas. Mas por que você disse "infelizmente"? A rainha lançou um olhar afetuoso para a mocinha a seu lado. — Porque, se não fosse por isso, eu não teria dificuldade para encontrar um marido para minha pequena Guenever. —Mas outras oportunidades aparecerão — consolei-a. —Esse seria para mim o casamento perfeito. — A rainha sorriu e a menina também sorriu e abaixou o olhar. —Se eu ousasse usar meus poderes divinatórios em sua presença, Ygraine, diria que surgirá um casamento tão esplêndido como esse para ela. E será logo. Falei num tom ligeiro, com cortesia formal, e me surpreendi em captar em minha voz um eco, embora fraco e passageiro, das cadências da profecia. Elas não perceberam nada. A rainha estendia a mão para mim, me desejando boa-noite e a jovem Guenever segurou a porta para eu passar, abaixando-se numa sorridente reverência de respeito e graciosidade.

7 — É meu sim! — insistiu Artur. — Basta fazer as contas! Ouvi os homens falando sobre isso na casa da guarda. Não imaginavam que eu pudesse ouvir. Disseram que ela já estava de barriga no Dia de Reis e que teve sorte de laçar Lot bem cedo para poder alegar que o filho nasceu de sete meses. Merlin, você sabe tão bem quanto eu que Lot nem esteve perto dela em Luguvallium! Ele só chegou na última noite da batalha e foi nessa noite... nessa noite... — Ele parou, engasgando na palavra, e fez meia-volta para retomar o vaivém no meio da sala. Era bem depois da meia-noite. Os sons das comemorações na cidade tinham diminuído muito, acalmados pelo frio da madrugada. No quarto do rei as velas iam acabando, as chamas bruxuleavam sobre montinhos de cera de abelha derretida e o cheiro de mel se misturava com a fumaça acre de um lampião. Artur virou-se novamente e voltou para parar diante de mim. Tirara a coroa e o colar cravejado de pedras preciosas, e guardara a espada, mas continuava usando a esplêndida túnica da coroação. O manto enfeitado de arminho estava atirado sobre uma mesa e agora, sob a luz fraca do lampião, fazia lembrar uma mancha de sangue. Pela porta aberta do quarto eu podia ver a cama pronta para ser ocupada, mas, apesar da hora, Artur não mostrava sinais de cansaço. Cada movimento seu era permeado por uma onda de fúria nervosa. Ele tentava controlá-la falando em tom baixo. — Merlin, quando naquela mesma noite conversamos sobre o que aconteceu... — Uma pausa para respirar e em seguida uma mudança de rumo, indo direto ao assunto: — Quando eu deitei incestuosamente com Morgause, perguntei a você o que aconteceria se ela concebesse. Lembro-me bem qual foi sua resposta. E você? — Sim — assenti. — Você me disse: "Os deuses são ciumentos e atuam quando há um excesso de glória. Cada homem carrega em si as sementes de sua própria morte e dentro dele já existe o esboço do tempo de vida que terá. O que realmente aconteceu nesta noite é que você mesmo estabeleceu os parâmetros desse tempo". Não respondi. Artur me encarou com o olhar direto e descompromissado que eu conhecia muito bem. — Merlin, quando você falou comigo daquele jeito, estava me dizendo a verdade? Foi uma profecia ou simples palavras de conforto para me ajudar a enfrentar o que aconteceria no dia seguinte? — Foi a verdade. — Quer dizer, então, que se ela der à luz uma criança, segundo sua previsão, ele... ou ela... será a causa de minha morte? — Artur, compreenda, as profecias não funcionam desse jeito. Naquela noite eu não sabia, no sentido que a maioria das pessoas "sabe" uma coisa, que Morgause iria conceber e nem que a criança um dia representaria um perigo mortal para você. A sensação que tive durante todo o tempo que você passou com aquela mulher era de que pássaros da morte estavam pousados em meus ombros e fediam a carniça. Eu tinha um peso no coração e podia ver a morte unindo vocês dois. Morte e traição. Quando entendi o significado dessas sensações, o mal já estava feito e para nós só restou esperar o que os deuses

escolheriam nos enviar. Artur virou-se e caminhou até a porta do quarto. Apoiou o ombro no batente, ainda de costas, e só depois de vários minutos de reflexão voltou-se para mim. Avançou até a poltrona que ficava atrás da grande mesa de trabalho, sentou-se e, repousando o queixo na mão, pôs-se a me observar. Seus movimentos foram suaves e controlados, como de hábito, mas eu, que o conhecia bem, quase podia ver as rédeas mentais que precisava usar para se conter. A voz também saiu perfeitamente equilibrada. — E agora sabemos que as aves de rapina estavam certas. Ela engravidou. Merlin, você me disse uma outra coisa naquela noite, quando admiti meu erro. Falou que eu pecara sem intenção e por isso era inocente. É justo então a inocência ser punida? — Não seria um caso incomum. — Os pecados dos pais? Reconheci a frase. Artur citava as escrituras cristãs. — O pecado de Uther — expliquei — caiu em você. —• E agora o meu cairá sobre a criança? Não respondi. Eu não estava gostando nada do rumo que a conversa ia tomando. Era a primeira vez que trocando idéias com Artur não me sentia a cavaleiro da situação. Tentei me convencer de que era devido ao cansaço. Afinal, eu continuava na vazante do poder, embora ele pudesse voltar a qualquer instante. A verdade, porém, era que eu me sentia como o pescador da lenda árabe que eu ficara conhecendo em minhas viagens pela Ásia Menor, que abrira descuidadamente uma garrafa, despertando um gênio centenas de vezes mais poderoso do que ele. — Muito bem — disse o rei —, o pecado que eu e Morgause cometemos cairá sobre a criança. Então não posso permitir que ela viva. Você irá para o norte e pessoalmente dirá isso a Morgause. — Ele fez uma pequena pausa. — Se preferir, posso escrever uma carta comunicando minha decisão. Eu inspirei para responder, mas Artur continuou sem me dar tempo para falar. — Não levando em conta suas intuições, que fui um tolo em não respeitar... será que você entende como esse negócio todo poderá se tornar perigoso se Lot descobrir a verdade? Está bem claro o que aconteceu. Achando que corria o risco de ter engravidado, Morgause tentou arranjar rapidamente um marido para esconder sua vergonha. Quem melhor do que Lot? Um casamento entre os dois já fora considerado no passado. Ela viu também a oportunidade de passar por cima da irmã e de arranjar um lugar para morar e um sobrenome, exatamente o que lhe faltaria depois da morte do pai. — Artur sorriu sem alegria. — E creio que ninguém melhor do que eu conhece seu poder de sedução. — Artur, você falou em "vergonha". Por acaso está pensando que foi o primeiro na vida dela? — Isso nem me passou pela cabeça — negou ele, um pouco depressa demais. — Então, como sabe que ela não se deitou com Lot antes? Como sabe se já não estava grávida dele e tentou seduzir você na esperança de conseguir algum tipo de poder e vantagem? Morgause sabia que Uther estava para morrer e temia que Lot caísse em desgraça aos olhos do rei devido aos seus atos em Luguvallium. Se pudesse dizer que o filho de Lot era seu... — Isso é adivinhação, Merlin. Não foi o que você disse naquela noite. — Não. Mas pense comigo. Esses acontecimentos também se ajustariam à minha previsão. — Mas não teriam a mesma força — rebateu Artur rispidamente. — Se o perigo representado por essa criança for real, o que adianta saber quem é o pai? Adivinhações não vão nos ajudar.

— Não estou fazendo adivinhações quando lhe digo que Morgause e Lot já eram amantes bem antes de ela levar você a sua cama. Já lhe contei que tive um sonho no santuário de Nodens. Vi os dois numa casa afastada da estrada e eles se encontraram como pessoas que são amantes há muito tempo. A criança pode muito bem ser de Lot. — Neste caso, seria eu o seduzido para esconder a vergonha de Morgause? — E bem possível. Você surgiu do nada, eclipsando Lot como logo em seguida eclipsaria Uther. Morgause tentou lhe atribuir a paternidade do filho de Lot, mas precisou desistir por medo de mim. Artur permaneceu calado, pensativo. — Bem — disse finalmente —, o tempo nos dirá a verdade. Mas será que devemos esperar? Não importa quem seja o pai dessa criança, ela é um perigo e ninguém precisa ser profeta para ver isso. Se Lot um dia descobrir, ou acreditar, que eu sou o verdadeiro pai de seu filho mais velho, com toda a certeza renegará o voto de lealdade. Lothian é um ponto chave, Merlin, e eu preciso dessa aliança. Mesmo se Lot tivesse se casado com Morgan, ainda restariam dúvidas sobre seu caráter, enquanto agora... — Artur estendeu a mão num gesto de súplica. — Merlin, isso é feito todos os dias, em todos os vilarejos do reino. Por que não pode acontecer na casa de um rei? Vá para o norte, eu lhe peço, e convença Morgause. — E você acha que ela vai escutar? Se não quisesse a criança, já teria se livrado dela há mais tempo. Morgause não o seduziu por amor, Artur, e certamente não o perdoará por permitir que ela fosse expulsa da corte. Quanto a mim... — Sorri com azedume. — Morgause não gosta de mim e com toda a razão. Se pudesse, riria na minha cara, ou mais do que isso, riria da força que ganhou sobre nós dois por causa do seu ato tresloucado. E tenha certeza de que fará o que for mais doído para nós. — Mas... — Você pensa que ela fisgou Lot para dar um nome a seu filho ou para espezinhar Morgan, mas não é a verdade. Ela se viu obrigada a recorrer a um casamento com Lot porque eu estraguei seus planos de corrompê-lo e ganhar ascendência sobre você. Como sabe que Lot é inimigo natural de nós dois, pretende nos ferir através dele, só os céus sabem quando. Um instante de silêncio surpreso e depois a pergunta: — É nisso que você acredita? — Sim, Artur. — Então continuo com a razão. — Ele suspirou. — Morgause não pode ter essa criança. — E o que pretende fazer? Pagar alguém para servir a ela pão feito de centeio bravo? — Você encontrará um jeito. Você... — Não farei nada parecido. Artur levantou-se de um modo que me fez lembrar um arco se endireitando depois de lançar a flecha. Seus olhos escuros cintilaram, refletindo a chama das velas. — Você sempre disse que era meu servo! Você me fez rei atendendo ao desejo do deus, como costumava me contar. Agora sou rei e você tem de me obedecer. Eu era dois dedos mais alto do que Artur. Já enfrentara outros reis e ele ainda era muito jovem. Deixei passarem alguns instantes e depois falei suavemente: — Sou mesmo seu servo, Artur, mas sirvo o deus em primeiro lugar. Não queira me obrigar a

escolher. Eu não posso interferir. O deus vai atuar conforme seus próprios desejos. Artur continuou me encarando por alguns momentos, depois inspirou e soltou o ar como se estivesse largando um grande peso. — E ele vai deixar que isso aconteça? Vai talvez permitir que destruam o reino que, segundo você, ele me enviou para construir? — Se o deus o fez vir ao mundo para construir esse reino, ele será construído. Não sei por quê, não finjo entender os seus desígnios. Só posso lhe aconselhar que confie no tempo, como eu faço, e espere. Agora, como já fez antes, ponha o problema de lado e tente esquecer dele. Eu cuidarei do que for possível. — E o que pretende fazer? — Viajarei para o norte. Um momento de silêncio aflito, e depois ele falou: — Vai para Lothian? Mas você disse que não queria ir. — Não foi isso. Eu disse que não faria nada para matar a criança. Todavia, posso vigiar Morgause e também, com o passar do tempo, avaliar melhor qual deverá ser nossa atitude. Eu lhe mandarei notícias. Houve outro silêncio. Vi então a tensão sair de Artur. Ele, afastando-se de mim, começou a soltar o cinturão. — Muito bem... — falou, como se fosse fazer uma pergunta, mas se interrompeu e sorriu. Tendo mostrado o açoite, dava a impressão de estar recuando rápido para a antiga confiança e afeição. — Mas você vai esperar o resto dos festejos, não é? Eu pretendo ficar aqui por mais oito dias, se as guerras permitirem. — Não. Penso que devo ir o mais rápido possível, aproveitando a presença de Lot aqui em Caerleon. Antes de ele chegar em casa já estarei estabelecido na área rural, onde ficarei esperando e observando, e fazendo o que for possível. Com sua permissão, partirei amanhã cedo. — E com quem vai viajar? — Com ninguém. Viajo muito bem sozinho. — Mas você deve levar alguém. Não se trata de uma ida a Maridunum. Além disso, vai precisar mandar notícias. — Usarei os mensageiros reais. — Mesmo assim... — Artur pôs o cinturão numa cadeira e chamou por Ulfin. Ouvi um som no quarto ao lado e depois passos discretos. Ulfin, carregando um camisolão dobrado no braço, veio vindo em nossa direção, disfarçando um bocejo. — Meu senhor? — Você estava no quarto enquanto conversávamos? — Não tentei esconder minha irritação. Ulfin, impassível, estendeu o braço para ajudar Artur a soltar os fechos da túnica. — Eu estava dormindo, meu senhor — disse ele. Artur sentou-se e estendeu a perna. O criado ajoelhou-se para lhe tirar os sapatos.

— Ulfin — comunicou Artur —, meu primo, o príncipe Merlin, partirá para o norte amanhã, numa viagem que talvez venha a ser longa e penosa. Detesto a idéia de ficar sem seus serviços, mas quero que o acompanhe. Ulfin, com um sapato na mão, olhou para mim e sorriu. — Com todo o prazer. — Mas não seria melhor você ficar com o rei? — protestei. — Esta semana, em especial... — Eu faço o que ele manda — disse Ulfin simplesmente e inclinou-se sobre o outro pé. Como você sempre acaba fazendo. Artur não falou as palavras em voz alta, mas elas estavam no rápido olhar que me lançou quando levantou-se para Ulfin ajudá-lo a vestir o camisolão. — Muito bem — concordei, conformado. — Será bom tê-lo ao meu lado, Ulfin. Partiremos amanhã e talvez tenhamos de ficar longe do rei por um bom tempo. — Dei-lhe algumas instruções e depois virei-me para Artur. — Bem, é melhor eu me despedir. Mandarei notícias assim que for possível. Sei que não terei dificuldade em descobrir seu paradeiro. — Naturalmente. — Ele falou no tom severo de um líder de exércitos. — Mas gostaria de mais um ou dois minutos de sua atenção. Ulfin, pode sair agora. Você tem de fazer seus próprios preparativos... Merlin, venha ver meu novo brinquedo. — Outro? — Outro? Ah, você deve estar pensando na cavalaria. Já viu os cavalos que Bedwyr trouxe? — Ainda não, mas Valerius não pára de falar sobre eles. — São esplêndidos! — Os olhos escuros brilhavam de entusiasmo. — Fortes, fogosos e dóceis. Estão dizendo que vivem bem com pouco alimento, se for preciso, e que têm o coração tão forte que conseguem galopar o dia inteiro e em seguida se envolverem numa guerra de vida ou morte. Bedwyr trouxe alguns cavalariços com ele. Se tudo o que esses homens dizem for verdade, teremos uma força de cavalaria para conquistar o mundo! Vieram dois garanhões brancos, já domados, que são uma beleza, mais bonitos até do que meu Canrith. Bedwyr escolheu-os especialmente para mim. — Enquanto falava, Artur me conduzia para a outra extremidade da sala, onde havia um arco entre dois pilares, fechado por uma cortina pesada. — Eu ainda não tive tempo de experimentá-los, mas creio que amanhã conseguirei uma folguinha entre as cerimônias. — Seu tom foi o de um menino travesso e me fez rir. — Espero que seja bem sucedido. Creio que pelo menos nesse aspecto tenho mais sorte do que o rei. Amanhã passarei o dia todo montado. — Em seu velho cavalo preto, como sempre. — Não. Numa mula. — Mula? — Ele fez uma pausa, mas logo entendeu. — Claro. Você vai disfarçado. — É necessário. Não conseguirei fazer muita coisa se entrar na fortaleza de Lot como o príncipe Merlin. — Certo, mas tome cuidado. Não quer mesmo uma escolta, nem que seja somente na primeira etapa da viagem? — Não se preocupe. Estarei em segurança. Mas o que você está querendo me mostrar? — Um mapa. Veja.

Artur afastou a cortina. Entramos numa outra sala que dava para um jardim interior onde dois homens montavam guarda, carregando tochas em lugar de lanças. Nela só havia uma enorme e rústica mesa de carvalho sobre a qual vi um mapa, não pintado, mas feito de gesso, com montanhas e vales, praias e rios, modelado por uma pessoa habilidosa. Ali estava, para todos apreciarem, a Bretanha como apareceria para alguém que estivesse no alto das nuvens. Artur recebeu meus elogios com grande satisfação. — Eu sabia que você iria gostar! Eles só acabaram de montar ontem à noite. Formidável, não? Lembra-se de como me ensinou a fazer mapas de relevo com areia? Isto é muito melhor, porque os morros e vales não desmancham com a brisa. E ele será remodelado à medida que formos descobrindo outros acidentes geográficos. Por exemplo, ninguém ainda sabe direito o que existe ao norte de Strathclyde. — Ele tocou um pino esculpido em madeira com a forma de um dragão e pintado de vermelho que estava espetado em "Caerleon". — Agora, para onde você pretende ir? — Eu estou pensando em tomar a estrada que vai pelo oeste, passando por Deva e Bremet. Tenho uma visita a fazer em Vindolanda. Artur acompanhou com a ponta do dedo a rota que subia para o norte até atingir Bremetennacum, que as pessoas preferem chamar de Bremet. — Quer fazer uma coisa por mim, Merlin? — Claro. — Então vá pelo leste. O trajeto não será muito mais longo e a estrada é melhor. Aqui, está vendo? Chegando a Bremet, você tomará esta estrada que entra pelo vão dos Peninos. — O dedo indicava: saindo de Bremetennacum, tomando o rumo leste, seguindo a velha estrada que acompanhava o rio Tribuit, depois o passo na cadeia montanhosa e a descida por Olicana para chegar ao vale de York. Em York, a Dere Street, uma estrada que permitiria um avanço rápido para Corstopitum e a Muralha de Adriano, e daí, ainda seguindo rumo norte, para Manau Guotodin, onde ficava Dumpeldyr, a capital de Lot. Fiz um ar de dúvida. — Você terá de sair do caminho para chegar a Vindolanda — continuou Artur —, mas não haverá perda de tempo. Quero que pegue a estrada velha, que entra pelo passo dos Peninos. Nunca estive lá, mas tenho recebido informações de que ela já foi muito boa, embora atualmente esteja esburacada demais para uma tropa de cavalaria. Como você viaja de mula, não encontrará dificuldade em transitar por ela. Pretendo mandar grupos de trabalho para restaurá-la. Também terei de fortificá-la... Está vendo? Com partes do litoral leste tão abertas para o inimigo, se ele conseguir conquistar as planícies costeiras nessa região com toda a certeza tentará avançar para o interior da Bretanha usando o passo. Sei que lá já existem dois fortes e me informaram que é possível restaurá-los. Quero que dê uma boa olhada neles. Não precisa se preocupar com um relatório detalhado, só quero sua opinião se vale a pena reformá-los ou seria melhor construir novos. — Está bem. Quando Artur, inclinado sobre o mapa, endireitou-se, ouvimos um galo cantando. Os contornos do pátio começaram a aparecer sob o cinzento da madrugada. — Quanto ao outro assunto, Merlin, estou em suas mãos e saiba que agradeço a Deus por isso. — Ele sorriu. — Agora é melhor dormirmos um pouco. Você tem uma longa viagem pela frente e eu enfrentarei mais um dia de festas. Tenho inveja de você, meu amigo! Boa noite e que Deus o

acompanhe.

8 No dia seguinte, munidos de comida para dois dias e levando uma terceira mula para carregar a bagagem, eu e Ulfin partimos para o norte. Eu já fizera viagens em circunstâncias tão difíceis como essa, quando ser reconhecido poderia significar desastre e até mesmo morte. For esse motivo, me tornara adepto de disfarces, o que dera origem a mais uma lenda sobre o "mago" Merlin, a que ele podia se tornar invisível para fugir de seus inimigos. Com toda a certeza eu aperfeiçoara a arte de me tornar parte da paisagem, o que fazia assumindo os ares de um ofício qualquer e freqüentando lugares onde ninguém imaginaria encontrar um príncipe. Os olhos das pessoas se focalizam em "o quê" e não "quem é" um viajante. Eu já me disfarçara de trovador, quando precisei obter acesso à corte de um rei, mas em geral circulava como um clínico geral ou médico de olhos, os meus preferidos, porque me davam a oportunidade de pôr em prática meus conhecimentos onde eles eram mais necessários, isto é, entre os pobres, e também me faziam ser recebido em todos os tipos de lares, exceto os mais nobres. Foi o disfarce que escolhi. Levei minha harpa pequena, como sempre, mas apenas para meu próprio uso. Eu não me atreveria a exibir meus dotes de trovador porque me arriscava a ser convocado para me apresentar no castelo de Lot. Portanto, meu instrumento pendia da sela desgastada da mula que carregava a bagagem, embrulhada em panos para manter seu anonimato, enquanto as caixas de ungüentos e instrumentos se mantinham bem à vista. Eu tinha um bom conhecimento da região por onde faríamos a primeira metade do percurso mas, depois de atingirmos Bremetennacum e tomarmos a direção do passo dos Peninos, entramos em terreno desconhecido para nós. O passo é formado pelos vales de três rios. Dois deles, o Wharfe e o Isara, nascem por entre o calcário dos picos dos Peninos e descem suavemente para o leste, formando meandros no terreno plano. O outro rio, com inúmeros afluentes pequenos, corre para o oeste e é chamado de Tribuit. Vencendo o passo e entrando no vale do Tribuit, o inimigo teria caminho livre a é atingir a costa oeste e os últimos bastiões de defesa da Bretanha. Artur falara de dois fortes dentro do passo, mas fazendo perguntas cautelosas em tavernas e conversando com homens que cruzavam meu caminho, descobri que em tempos passados existira um terceiro forte que guardava a boca oeste do passo, onde o vale do Tribuit se alarga tomando a direção das terras baixas e o litoral. Ele fora construído pelos romanos como um acampamento temporário para descanso das tropas em marcha e, sendo feito de madeira e turfa, dele só restavam vestígios. Todavia, ocorreu-me que seria uma boa idéia inspecionar a estrada que levava ao local, já que, se estivesse em condições no mínimo razoáveis, forneceria um atalho rápido para a cavalaria que descesse de Rheged para defender o passo. De Luguvallium para Olicana e daí para York. Devia ser a estrada onde Morgause se encontrara com Lot. Isso me fez decidir. Eu faria o mesmo caminho e assim confirmaria a presença dos acidentes geográficos que vira em sonho no santuário de Nodens. Deixamos a estrada principal perto de Bremetennacum e subimos para o vale Tribuit pisando em cascalho, os restos de uma estrada romana há muito esquecida, e um dia de viagem nos levou ao acampamento abandonado.

Como tinham me informado, pouco restava das construções além de pedaços de muretas e valas na margem do rio e um pouco de madeira apodrecida no lugar onde antes ficavam o?. portões. Mas, como acontecia com outros acampamentos desse tipo, sua localização fora cuidadosamente estudada. Ele ficava no flanco de uma elevação coberta de mato rasteiro, de onde se tinha uma visão desimpedida de toda a área. Um pequeno afluente do Tribuit descia pelas colinas e passava junto às ruínas, indo desaguar no rio, que mais ao sul começava a percorrer as terras baixas em sua viagem para o oceano. Examinando o local, desejei não ver esse forte reconstruído para participar da defesa do país, já que ficava bem no interior, distante da costa leste. Todavia, ele seria útil como um campo de treinamento e base temporária para uma rápida investida por meio do passo. Ninguém conseguira me informar o nome que o forte tivera no tempo dos romanos e, naquela noite, quando escrevi meu relatório, eu o batizei de "Tribuit". No dia seguinte prosseguimos a viagem para o primeiro dos dois fortes mencionados por Artur e o encontramos localizado à margem de um braço pantanoso de rio, perto do início do passo. O riacho desaguava em um lago, motivo pelo qual a antiga fortaleza recebera o nome deste. Embora estivesse em ruínas, ela poderia ser reconstruída em pouco tempo, pois no vale havia abundância de madeira, pedra e turfa profunda, de excelente qualidade. Chegamos ao local no final da tarde e, como as velhas muralhas do forte nos prometiam um bom abrigo e tudo indicava que teríamos uma noite seca e relativamente quente, resolvemos acampar ali mesmo. Na manhã seguinte começamos a subir a serra na direção de Olicana. Bem antes do meio-dia já havíamos deixado a floresta para trás e nos encontrávamos na região de mato rasteiro. O dia estava muito bonito e o sol dissolvia os restos de névoa que cobria as ravinas. Ouvíamos água cantarolando, descendo pelas fissuras nas rochas para ir alimentar o jovem rio pedregoso. O céu matinal também estava cheio de sons; pássaros de todos os tipos dirigiam-se para seus ninhos levando a primeira refeição do dia para os filhotes. Avistamos uma loba com tetas pesadas de leite atravessar a estrada levando uma lebre na boca. Ela nos lançou um olhar rápido e indiferente, e logo procurou abrigo na névoa. Estávamos numa estrada meio selvagem, uma "trilha de lobos" tão ao gosto dos Antigos. Mantive sempre os olhos nas escarpas rochosas que nos cercavam, mas não consegui vislumbrar sinais reconhecíveis de sua presença, embora sentisse que éramos observados a cada passo do caminho. Sem dúvida, os ventos haviam levado para o norte a informação que o mago Merlin estava viajando incógnito por aquelas paragens. Isso não me perturbou. Afinal, é impossível esconder segredos dos Antigos, que sabem de tudo que entra ou sai das florestas e morros. Eles e eu tínhamos entrado em acordo há muito tempo e Artur gozava de toda a sua confiança. Paramos no ponto mais alto da serra. Olhei a minha volta. A névoa se dissipara de todo e eu pude avistar todo o terreno pedregoso, entremeado de samambaias, e, a distância, as alturas ainda enevoadas de uma montanha. A direita da estrada começava a descida para o largo vale do rio Isara; dali se podia ver água cintilando por entre as árvores da mata fechada. Esse lugar ensolarado em nada fazia lembrar a área embaçada pela chuva que servira de pano de fundo para uma das cenas de minha visão, mas lá estava o marco com o nome OLICANA e a trilha que descia a encosta íngreme na direção das árvores do vale. Entre elas, pouco visíveis devido à ramagem abundante, ficavam os muros de uma casa de considerável tamanho. Ulfin, fazendo sua mula se alinhar com a minha, apontou para essa direção. — Se soubéssemos da existência dessa casa, poderíamos ter procurado pousada nela e passado

melhor a noite. — Duvido — disse eu vagarosamente. — Tenho certeza de que ganhamos mais dormindo sob o céu estrelado. Ulfin lançou-me um olhar de curiosidade. — Pensei que o senhor não conhecesse este caminho. Já esteve nessa casa? — Digamos apenas que eu sabia de sua existência e que gostaria de conhecer mais sobre ela. Na próxima vez que passarmos por um vilarejo ou encontrarmos um pastor, descubra para mim quem é o dono dela. Ulfin lançou-me um outro olhar intrigado, mas não disse mais nada e continuamos em frente. Olicana, o segundo dos dois fortes mencionados por Artur, ficava a quinze quilômetros dali e, para minha surpresa, a estrada, que fazia uma descida íngreme e em seguida atravessava um trecho considerável de terreno pantanoso, estava em perfeitas condições. As valetas e aterros pareciam ter sido restaurados há pouco tempo. Uma boa ponte de madeira atravessava o Isara e a várzea entre ele e o afluente seguinte estava limpa e calçada. Em conseqüência pudemos avançar com facilidade e antes cio início da noite atingimos áreas habitadas. Havia uma cidade de bom tamanho em Olicana. Encontramos alojamento numa taverna que ficava perto das muralhas da fortaleza e que logo descobrimos ser freqüentada pelos soldados da guarnição. Depois de ter visto a estrada bem conservada e a ordem nas ruas e praça da cidadezinha, não foi surpresa para mim constatar que a fortaleza estava bem cuidada. Pontes e portões eram sólidos e robustos, e as peças em ferro batido pareciam novas. Conversando na taverna, fazendo perguntas cautelosas e ouvindo muito, consegui entender que uma guarnição de defesa fora colocada ali no tempo de Uther, com ordens para vigiar a estrada que passava pelo passo e ficar de olho nas torres de sinalização situadas ao leste. Tratava-se de ume medida de emergência, tomada afobadamente durante os piores anos do terror saxão, e os mesmos homens continuavam ali, entediados e sem mais esperança de serem chamados de volta, mas mantidos em bom nível de eficiência pelo comandante que certamente achava que merecia algo melhor do que esse desanimador posto avançado. O modo mais fácil de obter as informações que precisava seria me apresentar a esse oficial, que em seguida enviaria meu relatório direto para o rei. Assim, deixando Ulfin na hospedaria, apresentei-me na sala da guarda portando o salvo-conduto que Artur me dera. Pela velocidade com que passei pelos vários postos de guarda e ausência de surpresa com meu aspecto e principalmente diante de minha recusa em declinar meu nome e ofício para qualquer outra pessoa senão o comandante, calculei que era freqüente a presença de mensageiros nesse lugar. Se realmente se tratava de um posto avançado esquecido (afinal, nem eu nem os conselheiros do rei tínhamos conhecimento de sua existência) então esses mensageiros só podiam ser espiões. Essa desconfiança me tornava mais ansioso para conhecer o comandante. Fui revistado antes de ser admitido na fortaleza, um procedimento absolutamente normal. Depois dois guardas me escoltaram até o prédio onde ficava o quartel general. Olhei a minha volta. O lugar era bem iluminado e pude avistar por todos os lados ruas, pátios, poços, oficinas e alojamentos em perfeito estado de conservação. Passamos por lojas de carpinteiros, seleiros e ferreiros. Pelo tamanho dos cadeados nas portas dos celeiros deduzi que eles estavam cheios. O forte não era muito grande, mas ainda podia receber um bom número de soldados. Haveria acomodações suficientes para a cavalaria de Artur. Meu salvo-conduto foi entregue em um outro posto de guarda e em seguida me conduziram à sala

do comandante. Minha escolta retirou-se com uma rapidez que falou por si. Era para essa sala que vinham os espiões e a chegada de alguém no meio da noite não causava surpresa. O comandante me recebeu em pé, numa deferência não à minha pessoa, mas ao selo do rei. A primeira coisa que notei foi sua juventude, pois não teria mais do que vinte e dois anos. A segunda foi que ele estava cansado e as rugas de tensão em seu rosto me indicavam a causa desse desgaste: sua juventude, a solidão do posto nesse lugar distante, onde estava à frente de homens duros e entediados; a constante vigilância enquanto as ondas de invasão avançavam e recuavam ao longo da costa leste. Tudo isso o ano inteiro, inverno após inverno, verão após verão, sem ajuda, sem retaguarda. Entendi que depois de Uther mandá-lo guarnecer o forte, o que devia ter acontecido quatro anos antes, se esquecera completamente de sua existência. — O senhor tem notícias para mim? — O tom impessoal não disfarçava qualquer tipo de ansiedade. Ela, com certeza, há muito fora dissipada pela frustração. — Poderei lhe transmitir todas as novidades que forem de meu conhecimento quando terminar a tarefa que me trouxe até aqui. Fui enviado para obter informações e apreciaria sua gentileza em me fornecê-las. Preciso enviar um relatório para o Grande Rei e gostaria que um mensageiro o levasse assim que estiver pronto. — Isso pode ser facilmente arranjado. Quer que seja agora mesmo? Terei um homem pronto em meia hora, no máximo. — Não, não é tão urgente. Poderíamos conversar antes disso? O comandante sentou-se e me indicou uma poltrona. Pela primeira vez surgiu uma centelha de interesse em seu rosto cansado. — Será que isso significa que esse relatório tem relação com Olicana? Posso saber por quê? — Naturalmente. O rei me pediu para descobrir tudo o que eu pudesse sobre este lugar e também sobre a fortaleza arruinada situada no passo, a que chamam de Forte do Lago. — Eu a conheço. Está em ruínas há uns duzentos anos. Foi destruída por ocasião da rebelião dos brigantianos e abandonada. Este forte teve o mesmo destino, mas foi reconstruído por Ambrosius. Pelo que me contaram, ele também pretendia reerguer Forte do Lago. Se eu tivesse ordens, poderia... — Ele se interrompeu. — Muito bem... o senhor veio de Bremet? Então deve saber que a alguns quilômetros ao norte da estrada existem as ruínas de um outro forte. Em minha opinião, ele seria igualmente vital para qualquer estratégia relacionada com o passo nos Peninos. Dizem que Ambrosius pensava a mesma coisa. Ele foi capaz de ver a importância desta região para a defesa do país. — Não houve ênfase perceptível nesse ''ele", mas a insinuação estava clara. Uther não somente se esquecera da existência de Olicana e sua guarnição, como não dera a devida atenção à estrada que atravessava o passo dos Peninos. — Mas o atual rei pensa como o senhor — apressei-me a dizer. — Ele deseja voltar a fortificar o passo, não apenas para evitar uma penetração vinda do leste, se for necessário, mas também para usá-lo como uma via de ataque. Fui encarregado de verificar as reais condições da região e ver o que pode ser feito. Penso que o senhor receberá topógrafos e construtores aqui em Olicana assim que meus relatórios forem examinados. Quanto a este lugar, ele está num estado de prontidão inesperado. O rei ficará satisfeito ao saber disso. Em seguida, contei ao comandante os planos de Artur sobre constituir uma força de cavalaria móvel. Ele escutou ansiosamente, o tédio esquecido, e as perguntas que fez me mostraram que recebia boas informações sobre o que acontecia na costa leste. Mais importante, mostrou ter um conhecimento bastante íntimo dos movimentos e estratégia saxões.

Deixei para pensar nessa constatação mais tarde e comecei a fazer minhas próprias perguntas sobre as acomodações e suprimentos de Olicana. Depois de alguns minutos, o comandante levantou-se, foi para junto de um baú fechado com outro dos grandes cadeados, abriu-o e tirou pergaminhos e placas de argila onde, logo percebi, estavam listas detalhadas sobre tudo o que eu pretendia investigar. Examinei-os por alguns minutos antes de notar que o comandante me observava, esperava, com outras listas nas mãos. — Penso... — começou ele, e hesitou. Em um segundo decidiu continuar: — Penso que o rei Uther, nos últimos anos não entendeu o papel que o passo poderia desempenhar nas lutas que estão por vir. Quando fui enviado para cá... Eu era muito jovem na época... encarei Olicana como nada mais do que um posto avançado, onde eu... eu poderia praticar, ganhar experiência de comando. Este lugar não estava muito melhor do que Forte do Lago, e levei um bom tempo para colocá-lo em condições de funcionamento. Bem... o senhor sabe o que aconteceu. A invasão se deu mais ao norte e ao sul. O rei Uther adoeceu e o país se dividiu. Aparentemente se esqueceram de nós. De tanto em tanto eu enviava mensageiros com relatórios sobre o inimigo, esperando que voltassem com instruções, mas nunca obtive resposta. Então, para ficar sabendo de tudo o que se passava e, admito, à procura de distração, comecei a enviar homens... não soldados, mas principalmente rapazes da cidade com um gosto pela aventura... e coletei minhas próprias informações. Sei que não procedi bem, mas... — O senhor manteve essas informações em segredo? — Não foi por má intenção — apressou-se ele a responder. — Mandei dois ou três mensageiros com notícias que eu julgava serem valiosas, mas nunca soube mais deles nem dos documentos que carregavam. Então resolvi não enviar mais relatórios por meio de pessoas que talvez nem conseguiriam ser recebidas pelo Grande Rei. — Posso lhe garantir que tudo o que envio para o rei só precisa chegar a ele em segurança para obter sua imediata atenção. Enquanto falava, o comandante estivera me examinando disfarçadamente, talvez comparando minha aparência humilde com o modo direto como me apresentara a ele. Olhando para as listas que segurava, me disse: — Devo confiar no senhor porque tenho comigo o salvo-conduto com o selo do rei, no entanto... Posso saber seu nome? — Se for esse seu desejo... mas somente para seu próprio conhecimento. Tenho sua palavra? — Naturalmente. — Houve uma nota de impaciência em sua voz. — Então sou Myrddin Emrys, comumente conhecido como Merlin. Como o senhor entenderá, estou numa viagem particular, de modo que me apresento como Emrys, um médico viajante. — Senhor... — Não — impedi-o —, sente-se de novo, por favor. Eu só lhe contei a verdade para lhe dar a certeza de que suas informações chegarão aos ouvidos do rei e bem rapidamente. Posso examinar estes documentos agora? O comandante colocou as listas diante de mim. Mais informações, plantas de campos fortificados, número de soldados e armamentos, movimentos de tropas cuidadosamente registrados, suprimentos, navios... Ergui o rosto para ele, surpreso.

— Mas são informações sobre os saxões! — E bem recentes, senhor. Tive um golpe de sorte no verão passado. Fui colocado em contato... não importa como... com um saxão, um federado de terceira geração. Como a maioria dos que nasceram nos territórios ocupados, essa pessoa deseja manter a antiga ordem. São saxões que consideram sagrada a palavra dada e, além disso... — Uma sombra de sorriso encurvou os lábios jovens e amargos. — Não confiam nos que vêm chegando. Alguns desses novos aventureiros querem desalojar os ricos federados, talvez até mais do que desejam expulsar os bretões. — E estas informações vêm dessa pessoa. Você confia nela? — Não encontrei motivos para desconfiar. O que pude verificar, constatei ser verdade. Não tenho como estimar a qualidade das informações que o rei vem recebendo, mas penso que o senhor deveria chamar sua atenção para este trecho... aqui... sobre Elesa e Cerdic Elesing. Isso significa... — Filho de Elesa. Sim. E Elesa seria nosso velho conhecido, Eosa? — Isso mesmo, o filho de Horsa. Creio que o senhor sabe que depois que ele e seu parente, Octa, fugiram da prisão do rei Uther, Octa acabou morrendo em Rutupiae. Eosa, contudo, conseguiu chegar à Germânia e convenceu Colgrim e Badulf, os filhos de Octa, a atacarem no norte. Bem, o que o senhor talvez não saiba é que antes de morrer, Octa estava reivindicando o título de "rei" aqui na Bretanha. Não seria muito mais do que o posto de chefia que já possuía como filho de Hengist, e parece que nem Colgrim nem Badulf deram muita atenção a esse desejo. Mas agora eles também estão mortos e... — Eosa faz a mesma reivindicação. Entendo. E com maior êxito? — É o que parece. Ele se intitula "rei dos saxões ocidentais" e seu jovem filho, Cerdic, é conhecido como o "Aetheling", o que indica que seria filho de algum semideus ou herói da antigüidade. Claro que isso é comum entre os chefes, mas o importante é que o povo acredita nessa ascendência divina. Penso que o senhor já entendeu que isso dá uma nova cor às invasões saxãs. — E essa situação está de acordo com o que o senhor me disse sobre os federados há muito estabelecidos nos territórios da costa leste. — Exatamente. Eosa e Cerdic defendem essa posição. Essa conversa de um "reino"... eles estão prometendo estabilidade, e direitos, para os residentes, e morte rápida para os invasores. E Eosa já se mostrou ser mais do que um aventureiro esperto; conseguiu estabelecer uma lenda sobre parentesco com os heróis da antigüidade, é aceito como legislador e mostrou ter poder suficiente para implantar novos costumes. Conseguiu até modificar os ritos fúnebres. Hoje em dia não incineram mais os mortos em piras funerárias com todo seu armamento, porque isso, de acordo com Cerdic, é puro desperdício. — Novamente a sombra de sorriso nos lábios severos. — Eles instruíram os sacerdotes para purificar as armas do morto, e depois voltam a utilizá-las. Atualmente os saxões acreditam que uma lança usada por um guerreiro valente tornará seu novo dono tão bom, ou melhor, do que o antigo... e que uma arma tirada de um guerreiro vencido será mais poderosa porque deseja aproveitar essa segunda oportunidade. Eu lhe digo, senhor, Eosa é um homem perigoso, talvez o mais perigoso que apareceu desde Hengist. Não tentei esconder que estava impressionado. — O Grande Rei entenderá muito bem essa situação assim que tiver nossos relatórios em mãos. Prometo que eles serão levadas à sua atenção na hora em que chegarem. O senhor, claro, sabe como são valiosas suas informações. Com que rapidez pode me preparar cópias destes documentos? — Eu já tenho cópias e por isso elas podem ser enviadas agora mesmo. — Ótimo. Agora, se me permitir, acrescentarei uma palavra ao seu relatório e mandarei o meu

próprio pelo mesmo mensageiro. O comandante trouxe o material de escrita e em seguida dirigiu-se para a porta. — Vou providenciar o portador. — Obrigado. Mas espere um momento... Ele parou. Tínhamos estado conversando em latim, mas havia algo no modo como o comandante o usava que me contou que ele era da região oeste da Bretanha. — Na taverna me disseram que seu nome era Gerontius. Por acaso estarei certo ao adivinhar que uma vez foi Gereint? File sorriu, o que tirou anos que sua aparência. — Ainda é, senhor. — Artur gostará de saber disso — falei, e comecei a escrever. O comandante permaneceu imóvel por um instante, depois foi abrir a porta e falou com alguém que estava ali fora. Voltou e, indo para uma mesinha, encheu um copo de vinho e colocou-o perto de mim. Ouvi-o respirar fundo uma vez, como se estivesse para falar, mas não disse nada. Finalmente terminei. O comandante voltou a abrir a porta e dessa vez voltou seguido por um homem, um sujeito magro que aparentava ter acabado de acordar, mas que já estava vestido para enfrentar as estradas. Uma sacola de couro com um fecho resistente pendia de seu ombro. Ele guardou os pergaminhos que lhe entregamos, anunciando que partiria imediatamente e comeria alguma coisa no caminho. O tom tenso com que Gereint transmitiu as instruções para o mensageiro foi mais uma prova da importância das informações. — Será melhor você ir por Lindum. A esta altura o rei deve ter partido de Caerleon com a intenção de voltar a Linnuis. Quando você chegar a Lindum certamente terá notícias dele. O homem fez que sim e partiu. Assim, poucas horas depois de eu chegar a Olicana, meu relatório, e muito mais, estava a caminho, o que me deixava livre para voltar meus pensamentos para Dumpeldyr e o que encontraria por lá. Mas, antes de tudo, eu precisaria pagar a Gereint pelo seus serviços. Ele me serviu mais vinho e pôs-se a me fazer perguntas sobre a ascensão de Artur ao trono em Luguvallium, e o que acontecera depois disso. Ele merecia minha gratidão e eu a dei sob a forma de novidades. Foi só por volta da ronda da meia-noite que chegou minha vez de perguntar. — Logo depois de Luguvallium, Lot de Lothian passou por aqui? — Passou, mas não entrou em Olicana. Há um caminho... atualmente é pouco mais do que uma trilha... que sai da estrada principal e leva para o leste. Ele é muito ruim e atravessa um terreno pantanoso, o que é sempre um risco, e por isso, apesar de ser o modo mais rápido de se chegar ao norte, é pouco utilizado. — E Lot usou essa estrada, mesmo indo para o sul, para York? Será que queria evitar ser visto em Olicana? — Na hora não pensei nisso. O rei Lot tem uma casa perto dessa estrada e imaginei que ele preferira passar a noite nela. — Então a casa é dele? Entendo. Sim, eu a vi quando atravessava o passo. Um lugar

aconchegante, mas solitário. — Ele a usa muito pouco. — Mas o senhor sabia que ele estava lá? — Sei de praticamente tudo o que acontece aqui por perto. — Gereint fez um gesto na direção do baú com o cadeado. — Como uma solteirona na janela de sua casa, tenho pouco a fazer senão vigiar meus vizinhos. — Tenho motivos para ser grato a isso. Então o senhor deve saber quem se encontrou com Lot nessa casa. Gereint me encarou por alguns segundos, como se quisesse ter meu olhar, e depois sorriu. — Uma certa dama semi-real. Piles vieram separados e partiram separados, mas chegaram juntos a York. — Um erguer de sobrancelhas. — Mas como o senhor ficou sabendo disso? — Tenho meus próprios métodos de espionagem. — Com certeza... — Gereint sorriu placidamente. — Bem, agora está ludo acertado e correto diante de Deus e dos homens. O rei de Lothian foi a Caerleon e de lá acompanhará o Grande Rei até Linnuis, enquanto sua nova rainha fica em Dumpeldyr até o nascimento da criança. O senhor está sabendo sobre a criança, não é? — Sim. — Eles já tinham se encontrado aqui várias vezes — disse Gereint, e fez um aceno de cabeça que era como se acrescentasse: "E agora vemos os resultados desses encontros". — Então eles se encontravam? Freqüentemente? E desde quando? — Desde que estou aqui, umas três ou quatro vezes. — O tom de Gereint não era o de alguém que passasse à frente mexericos de taverna, mas o de um oficial transmitindo informações reservadas. — Uma vez os dois ficaram aqui por quase um mês, mas se mantiveram fechados. Eu soube de sua presença por meio de um relatório. Ninguém os viu pessoalmente. Revi em minha mente a cena em que Lot e Morgause conversavam na cama muito à vontade. Sim, eu estava certo. Amantes há longo tempo. Desejei poder acreditar no que eu sugerira a Artur, que o filho poderia ser de Lot. Pelo menos, pelo tom neutro com que Gereint falara da criança, isso era o que os homens de Olicana pensavam. — E agora — sorriu ele —, o amor falou mais alto, apesar da política. Seria presunçoso de minha parte perguntar se o Grande Rei se irritou com o acontecido? O comandante de Olicana fizera por merecer uma resposta sincera, de modo que a recebeu. — Ele ficou enraivecido, como seria de se esperar, pelo modo como foi feito o casamento, mas agora entende que ele servirá tão bem como o que se pretendia de início. Morgause é sua meia-irmã, de modo que a aliança com o rei Lot continua valendo. H Morgan está livre para se casar com outra pessoa. — Rheged. — Talvez. Gereint sorriu e deixou o assunto morrer. Conversamos mais um pouco e então levantei-me para sair.

— Diga-me mais uma coisa — perguntei. — Seus informantes lhe deram notícias sobre o paradeiro de Merlin? — Não. Recebi um relatório falando de dois viajantes, mas não havia nem uma insinuação que um deles pudesse ser o senhor. — Nem para onde eles estariam indo? — Não, senhor. Fiquei satisfeito. — Creio que não preciso voltar a dizer que ninguém deve saber quem sou. O senhor também não incluirá esta nossa entrevista em seu relatório. — Isso está bem compreendido. Senhor... — Sim? — No que diz respeito ao relatório que enviou sobre Tribuit e o Forte do Lago, o senhor disse que logo virão topógrafos e construtores. Creio que eu poderia ganhar um bom tempo para eles mandando imediatamente para lá meus próprios grupos de trabalho. Esse pessoal poderia cuidar das medidas preliminares, como capinar o mato, cortar turfa e madeira, cavar valetas... O senhor autorizaria essa missão? — Eu? Não tenho autoridade para isso. — Não tem autoridade? — Gereint começou a rir. — Sim, já entendi. Se eu falar que recebi autorização de Merlin, todos começarão a perguntar como ela chegou a mim e talvez se lembrem de um certo médico viajante que vendia ervas e ungüentos... Bem, já que esse mesmo viajante me trouxe uma carta do Grande Rei, minha própria autoridade será suficiente. — Ela já foi mais do que suficiente por um longo tempo — concordei, e me despedi, satisfeito.

9 Assim viajamos para o norte. Quando entramos na principal estrada que chega a York, a que chamam de Dere Street, o percurso tornou-se mais fácil, permitindo uma boa velocidade. Algumas vezes pernoitamos em estalagens mas, como o tempo estava firme e quente, avançávamos enquanto havia luz e ao anoitecer acampávamos em alguma clareira florida na beira da estrada. Depois de comermos eu tocava harpa e cantava, e Ulfin escutava, entretido com seus próprios sonhos, enquanto o fogo morria em cinzas brancas e as estrelas apareciam. Ulfin era um bom companheiro. Nós nos conhecíamos desde meninos. Na época eu estava no continente com Ambrosius, que montava o exército que iria derrotar Vortigern e tomar a Bretanha Maior, e Ulfin era criado — escravo, na verdade — de meu tutor, Belasius. Ele levara uma vida de sacrifícios com esse estranho e cruel homem, mas depois de sua morte Uther o convocara para fazer parte de sua criadagem particular, onde em pouco tempo estava ocupando um posto de confiança. Ulfin devia ter agora uns trinta e cinco anos; os cabelos castanhos e olhos cinzentos ainda conservavam parte do brilho da juventude, mas ele era extremamente calado e contido como acontece com os que têm de sobreviver sozinhos ou como acompanhantes de outros homens. Os anos vividos como bode expiatório de Belasius tinham deixado sua marca. Numa certa noite eu compus uma canção e usei como platéia as colinas suaves ao norte de Vinovia, onde riachos apressados serpenteiam no fundos dos vales cobertos de vegetação, enquanto a estrada larga corre na região mais alta, onde só existe mato rasteiro por quilômetros e quilômetros, salpicado aqui e ali por pequenos bosques de pinheiros e bétulas prateadas. Estávamos num desses bosques, protegidos do sereno pelos galhos sedosos das bétulas, e fiz esta canção, a que chamei de lamento e da qual tenho ouvido diferentes versões ao longo destes anos, em especial uma feita por um famoso cantor saxão: Quem não tem companhia procura muitas vezes a misericórdia, A graça, Do deus criador. Pobre, pobre do homem fiel Que vive mais do que seu senhor. Ele vê o mundo em ruínas, Como uma muralha derrubada pelo vento, Como um castelo vazio onde a neve Entra pelas janelas, Flutua até a cama quebrada E a lareira negra.

Que saudade da taça cintilante! Que saudade do salão de festas! Que saudade da espada que mantinha O redil e o pomar Protegidos das garras do lobo! O caçador está morto O legislador, o mantenedor, está morto, Enquanto o lobo, com a águia E o corvo, Reinam sozinhos em seu lugar. Absorto na música, só ergui o rosto quando o último acorde ainda vibrava na harpa e então vi duas coisas: em primeiro lugar, Ulfin, sentado a minha frente, no outro lado da fogueira, embevecido, com lágrimas escorrendo pelo rosto, e em segundo, que não estávamos sozinhos. Nenhum de nós dois, envolvidos pela canção, tinha notado a aproximação de duas pessoas caminhando pela relva macia da campina. Ulfin os viu no mesmo momento que eu, e levantou-se de um salto já empunhando uma faca, mas logo ficou claro que eram pessoas de paz e a lâmina voltou para sua bainha antes mesmo de eu dar a ordem para guardá-la. O primeiro dos viajantes sorriu, erguendo a mão num gesto tranqüilizador. — Não pretendemos lhes fazer mal, senhor. Sempre gostei muito de musica e fiquei encantado com o seu talento. Eu agradeci e, como se minhas palavras tivessem sido um convite, o homem chegou mais perto da fogueira e sentou-se, enquanto o menino que o acompanhava livrava-se com um sorriso de alívio das sacolas que carregava antes de se acomodar. Ele ficou longe do fogo, mas ali ainda recebia o calor dos troncos que amainava a leve triagem da noite. O recém-chegado era um homem baixo, idoso, com a barba grisalha bem aparada e sobrancelhas rebeldes sobre olhos castanhos e míopes. Seu traje estava desgastado pela viagem, mas limpo, os sapatos e o cinturão eram de couro macio e podia-se notar de longe a boa qualidade do tecido da capa. Surpreendeu-me notar que a fivela do cinto era de ouro, ou então espessamente banhada, e trabalhada num modelo elaborado. O menino, que de início pensei ser seu neto, estava igualmente bem vestido e tinha no pescoço uma correntinha de ouro com um pendente que parecia ser um talismã. Todavia, quando ele começou a arrumar os cobertores para os dois, as mangas deslizaram para trás e pude ver no antebraço direito a cicatriz franzida de uma marca feita com ferro em brasa. Um escravo. O velho era de fato um homem de posses. — O senhor me permite? — Ele dirigiu-se a mim sem nenhuma hesitação. Nossas roupas simples e apetrechos modestos lhe diziam que éramos pessoas comuns, talvez até abaixo de seu nível social. — Perdemos o rumo algumas léguas atrás e dei graças quando escutei a música e vi a fogueira. Imaginei que vocês não poderiam estar muito longe da estrada. Agora há pouco o garoto me disse que ela fica logo ali. — Ele apontou numa direção geral. — Bendito seja o fogo de Vulcano! Essas colinas não

apresentam perigo durante o dia, mas quando escurece são traiçoeiras para homens e animais... Ele continuou falando. Fiz um sinal a Ulfin para pegar o frasco de vinho e oferecer-lhe um gole, mas o velho se fez de rogado. — Não, não. Obrigado, meu bom senhor, mas nós trouxemos comida. Não quero dar trabalho, além de repartir o fogo e ter companhia para a noite. Meu nome é Beltane e meu criado chama-se Ninian. — Somos Emrys e Ulfin. Seja bem-vindo e fique à vontade. Não quer mesmo um pouco de vinho? Temos bastante. — Eu também. Ficarei ofendido se vocês não aceitarem um pouco do meu. E extremamente bom, espero que concordem comigo... — Depois, por sobre o ombro: — Comida, garoto, bem rápido, e ofereça aos cavalheiros aqui um pouco do vinho que o comandante nos deu. — Vocês estão vindo de longe? — perguntei. A etiqueta das estradas não permite que alguém pergunte diretamente de onde um homem veio nem para onde vai, mas espera-se que ele conte tudo, mesmo que a informação seja obviamente mentirosa. Beltane respondeu sem titubear, enquanto comia a perna de frango que o menino lhe servira. — De York. Passamos o inverno lá. Raramente saímos de um lugar assim tão tarde, mas... hum... a cidade estava cheia... hum... — Ele engoliu e acrescentou mais claramente: — Uma época muito propícia. Os negócios estavam bons e por isso me demorei mais do que o comum. — O senhor veio por Catraeth? — O homem falara em bretão, de modo que usei o nome antigo. Os romanos a chamavam de Cataracta. — Não. Vim pela estrada que fica a leste da planície. Eu não a recomendo. Foi um alívio quando avistamos a trilha que chega à Dere Street, mas esse tolo — um erguer de ombros na direção do escravo — não percebeu quando passamos pelo marco e eu dependo dele para me orientar. Minha vista é ruim, só vejo de perto. Bem, Ninian estava com a cabeça nas nuvens, como sempre, e quando começou a entardecer não tínhamos a menor idéia de onde estávamos nem a que distância nos encontrávamos da cidade. Já passamos por ela, meu senhor? Meu receio é que tenha ficado muito para trás. — Lamento, mas é verdade. Passamos por ela no fim da tarde. O senhor tinha negócios a fazer lá? — Faço negócios em todas as cidades. Surpreendi-me com sua despreocupação e dei graças pelo velho não fazer menção de castigar o menino. Ele estava ao meu lado, me servindo uma caneca de vinho com um ar de severa concentração. Pelo que me parecia, Beltane devia ser desses que ladram e não mordem, porque Ninian não mostrava o menor sinal de medo. Agradeci-o e ele levantou os olhos e sorriu. Percebi então que o velho tinha suas razões de reclamar. Obviamente os pensamentos dos garoto, apesar da aparente concentração em suas tarefas, estavam a léguas de distância. O sorriso doce e enevoado veio do interior de um sonho que o envolvia. Os olhos, sob a mistura de luar e de fogo, eram cinzento-claros, orlados de um anel cor de fumaça. Percebi neles, e também na graça involuntária dos gestos, algo que me pareceu conhecido... Senti o ar da noite soprando em minhas costas e os cabelos em minha nuca se eriçaram. O menino se afastara sem dizer nada e agora estava inclinado perto de Ulfin com o frasco. — Experimente, senhor — insistiu Beltane. — E coisa boa. Ganhei de um dos oficiais da guarnição de Ebor... Só Deus sabe como coisa tão fina foi parar em suas mãos, mas é sempre melhor

não perguntar, certo? — Uma leve piscadela, enquanto voltava a mastigar o frango. O vinho era mesmo especial, um tinto suave e saboroso que poderia rivalizar com os que eu tomara na Gália ou Itália. Cumprimentei o velho pela sua excelência, imaginando que serviços ele teria prestado para conseguir um pagamento tão bom. — Ah! — Sorriu ele, com o mesmo jeito complacente. — O senhor deve estar pensando o que eu teria feito para ganhar essa beleza, não é? — Bem, para falar a verdade... Mas, diga-me, por acaso o senhor é um mágico, já que consegue ler pensamentos? — Não desse tipo — disse ele, com uma risadinha. — Mas também sei o que o senhor está pensando agora. — Verdade? — Aposto que está imaginando se eu não seria o mago do Grande Rei viajando disfarçado! Acredita que só esse tipo de magia extrairia um vinho dessa qualidade de Vitruvius... E, como todos sabemos, Merlin costuma andar por essas estradas exatamente como eu, acompanhado de um único escravo, se muito, e qualquer um o tomaria por um simples comerciante. Acertei? — Sobre o vinho, sim. Imagino, então, que o senhor seja mais do que um "simples comerciante"? — Pode-se dizer que sim. — O velho acenou com a cabeça, todo cheio de importância. — Mas, quanto a Merlin, me contaram que partiu de Caerleon. Ninguém sabe para onde nem o que foi procurar, mas com ele é sempre assim. Comentam em York que o Grande Rei já estará de volta a Linnuis antes da mudança de lua, mas Merlin desapareceu no dia seguinte à coroação. — Ele olhou para mim e Ulfin com interesse. — Vocês por acaso têm notícias do que anda acontecendo? A curiosidade de Beltane não era mais do que o gosto por novidades, tão comum aos mercadores viajantes. Pessoas assim vivem levando e trazendo informações, e por isso são bem-vindas em todos os lugares. Ulfin fez que não. Tinha o rosto impassível, como se fosse entalhado em madeira. Ninian não prestava atenção à conversa. Estava com a cabeça virada para a escuridão aromática das colinas. Ouvimos o canto abafado de um pássaro noturno; com ele, a alegria chegou e saiu de seu rosto, num fulgor fugaz, mas tão belo como o das estrelas que víamos quando as folhas das árvores balançavam sob a brisa suave. Então era assim que ele se distanciava de um amo tagarela e se recuperava da lida diária. — Viemos do oeste, de Deva — falei, dando a Beltane a informação que tentava obter com rodeios. — Mas as notícias que tenho são velhas. Viajamos vagarosamente. Sou médico e sempre encontro trabalho. — Verdade? Interessante. Mas com certeza ouviremos novidades quando chegarmos a Cor Bridge. O senhor também vai para lá? — Diante de meu aceno positivo, ele continuou. — Ótimo, ótimo. Mas não tenham receio de viajar comigo! Não sou nenhum mago disfarçado, embora tenha meios de encantar a própria rainha Morgause. Ulfin ergueu a cabeça de um salto, mas eu apenas perguntei: — Como? — Por meio de meu ofício. Minha magia especial. Aposto que nem mesmo Merlin poderia fazêla sem treinar por uma vida toda, como eu! — Ele terminou com outra de suas risadinhas complacentes.

— Podemos saber qual é ela? — Minha pergunta foi mera cortesia. Era óbvio que, Beltane esperava ansiosamente uma oportunidade para nos contar sobre seu ofício. — Vou lhes mostrar. — Ele engoliu a última migalha de bolacha de aveia, limpou delicadamente os lábios e tomou outro gole de vinho. — Ninian! Ninian! Desça das nuvens! Logo vai ter tempo para sonhar de novo. Pegue o pacote e aumente o fogo. Preciso de mais luz. Ulfin pegou um bom pedaço de lenha e atirou-o no fogo. As chamas aumentaram. O menino foi buscar um embrulho, que vi ser um rolo de pelica; ajoelhou-se ao meu lado, soltou as tiras e abriu o pacote no chão. Um resplendor nos fez piscar os olhos. Ouro cintilando sob a luz avermelhada da fogueira, esmaltes pretos e escarlates, pérolas delicadas, granadas e pedras semipreciosas, engastadas em jóias de extremo bom gosto. Vi broches, alfinetes, colares, amuletos, fivelas para sandálias ou cinturões, e uma pequena guirlanda de flores em prata, um gracioso fecho para um cinto feminino. Algumas peças tinham forma de animais e a que mais me chamou a atenção foi um dragão em filigrana, cujo olho era uma granada reluzente. Ergui o rosto e vi o velho me observando ansiosamente. Não economizei elogios. — Que esplêndido trabalho. Maravilhoso. Nunca vi nada tão fino. Beltane corou de satisfação. Agora que eu sabia quem era ele e o que fazia, não precisei mais ser cauteloso. Os artistas vivem de elogios como abelhas vivem de néctar. Além disso, não são de dar muita atenção às coisas não relacionadas com sua arte. Compreendi que Beltane estava pouco interessado em minha pessoa e que as perguntas de antes eram totalmente inocentes, típicas de um mascate ansioso por novidades. E, com os eventos de Luguvallium continuavam sendo o principal assunto para conversas em torno de fogueiras, nada como passar para a frente a notícia que Merlin costumava viajar disfarçado. Tive plena certeza de que o velho não tinha idéia de quem era seu interlocutor nessa noite. Fiz várias perguntas sobre sua arte, impulsionado pelo interesse que sempre tive nas habilidades das pessoas. Confirmei minha primeira impressão de que era ele mesmo quem fazia as jóias e entendi por que fora pago pelo comandante com um vinho de tão alta qualidade. — Sua vista... Estragou-a por causa do seu ofício? — Não, não. Minha vista só é ruim de longe, de perto vejo muito bem, o que é uma bênção para um artista como eu. Mesmo agora que estou longe da juventude, consigo ver os detalhes com toda a clareza, embora seja incapaz de ter uma imagem nítida de seu rosto, meu caro senhor, e nem mesmo destas árvores que nos protegem... — Beltane encolheu os ombros e sorriu. — É por isso que mantenho comigo esse moleque sonhador. Sem Ninian eu não poderia viajar como faço, embora em certas ocasiões, como hoje, por exemplo, tenha de confiar mais na sorte do que nos olhos desse tolinho para não me atolar nos pântanos. Percebi que suas queixas eram rotineiras. O menino ignorou por completo o tom amargo. Aproveitara o pretexto de me mostrar as jóias para ficar junto à fogueira. — E agora? — perguntei a Beltane. — O senhor me mostrou peças dignas das cortes de reis. Elas me parecem boas demais para as feiras. Onde pretende vendê-las? — Será que não adivinhou? Estou indo para Dunpeldyr, em Lothian. Com o rei casado de novo e uma rainha tão linda como a primavera, com toda a certeza haverá procura por coisas bonitas como as minhas. Estendi as mãos para aquecê-las no calor da fogueira.

— Oh, é mesmo — falei —, o rei acabou se casando com a princesa Morgause. Estava noivo de uma e ficou com a outra. Ouvi falar qualquer coisa a respeito. O senhor estava lá? — Sim, sim. Ninguém poderia culpar o rei Lot pela escolha, era o que diziam. A princesa Morgan é bonita e filha legítima de um rei, mas a outra... bem, o senhor sabe como são as pessoas. Falam que nenhum homem, especialmente alguém como Lot de Lothian, seria incapaz de se aproximar dessa dama sem desejar levá-la para a cama. — Sua vista foi suficiente para lhe dar esse tipo de informações? — perguntei, vendo Ulfin sorrir. — Não precisei de minha vista. — Beltane riu robustamente. — Tenho ouvidos muito bons e ouço todas as conversas. Além disso, tive a oportunidade de chegar perto dela e senti seu perfume e captei o brilho de seus cabelos sob o sol. Mandei o garoto descrevê-la minuciosamente e então fiz esta corrente para ela. O senhor acha que o rei quererá comprála? Toquei a jóia encantadora. Os elos delicados de ouro seguravam flores de pérolas e citrino engastadas em filigrana. — O rei Lot será um tolo se não a quiser. E, se a rainha a vir antes, ele sem dúvida será obrigado a comprá-la. — Foi o que imaginei. — Beltane sorriu. — Quando eu chegar a Dunpeldyr, ela estará recuperada e pensando em coisas bonitas. O senhor está sabendo? A rainha deu à luz há quinze dias, bem antes da data esperada. A súbita imobilidade de Ulfin fez uma pausa de silêncio mais barulhenta do que um grito. Ninian ergueu a cabeça. Senti meus nervos se contraírem. O ourives, percebendo o aguçamento de atenção que estava recebendo, pareceu satisfeito. — Vocês não sabiam? — Não. Depois que passamos Irsurium não pernoitamos mais em cidades. Há duas semanas? Tem certeza? — Tenho, senhor. Talvez certeza demais para o conforto de certas pessoas. — Beltane explodiu numa gargalhada. — Nunca vi tanta gente contando nos dedos, pensei que fossem gastá-los! E por mais que contassem, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, a concepção da criança caía em setembro. Os mexericos dizem que foi em Euguvallium, quando o rei Uther morreu. — Entendo — falei, com indiferença. — E o rei Lot? Pelo que me disseram ele partiu para Linnuis com o objetivo de encontrar-se com Artur. — E verdade. Acho que a notícia ainda não chegou a ele. Eu fiquei sabendo quando pernoitamos em Elfete, na estrada leste, porque o mensageiro da rainha estava passando por ali. Ele contou que escolhera essa rota mais comprida para evitar encrencas, mas aposto que recebeu ordens para ir bem devagar. Assim, quando o rei Lot ficar sabendo já terá se passado um intervalo mais decente desde o casamento. — E a criança? — prossegui fingindo uma indiferença difícil para mim. — Um menino? — Sim, e, pelo que contam, bastante doentio. E possível que Lot já não tenha um herdeiro quando a notícia chegar a ele. — Não diga... — Achei melhor mudar de assunto.

Mas estou curioso, o senhor não tem medo de viajar por essas estradas com uma carga tão valiosa? — Para falar a verdade, tenho sim. Em geral, quando fecho minha oficina no fim do inverno e saio por essas estradas, só carrego comigo coisas mais baratas, bijuterias que vendo nas feiras, e no máximo algumas peças mais finas de prata para os comerciantes e suas mulheres. Só que desta vez tive azar e não consegui terminar estas jóias a tempo de mostrá-las à rainha Morgause antes de ela partir para o norte, de modo que não me restou outra escolha... Mas tive sorte de encontrar em meu caminho um homem honesto como o senhor. Não preciso ser um Merlin para ver isso. Sei que é um homem honesto e um cavalheiro como eu. Mas, diga-me, será que minha sorte durará até amanhã? Terei o prazer de contar com sua companhia, senhor, pelo menos até Cor Bridge? Eu já me decidira sobre isso. — Se quiser, até Dunpeldyr. Estou indo para lá. E, se o senhor pretende ir parando no caminho para vender suas mercadorias, não tenho objeções a fazer. Recentemente recebi uma notícia que me fez perder a pressa de chegar lá. Beltane mostrou-se encantado e felizmente não conseguiu ver a expressão de surpresa de Ulfin. Eu já decidira que o ourives poderia ser muito útil para mim. Calculei que dificilmente teria ficado em York, perdendo a primavera, época de bons negócios, para fazer as ricas jóias que me mostrara, sem algum tipo de garantia de que Morgause pelo menos aceitaria vê-las. Ele continuou papagueando alegremente, precisando de muito pouco encorajamento para me contar mais sobre os acontecimentos em York, e acabei descobrindo que eu estava certo em minhas suposições. De alguma maneira ele conseguira despertar a atenção de Lind, a jovem camareira de Morgause e, em troca de uma corrente e brincos de pouco valor, a convencera a falar de suas jóias à rainha. A moça levara uma ou duas peças para Morgause ver e voltara com a notícia de que a rainha estava interessada. Deixei Beltane falar à vontade e depois disse num tom casual: — O senhor falou alguma coisa sobre a rainha e Merlin. Pelo que entendi, ela colocou soldados à procura dele. Por que isso? — Não, o senhor me entendeu mal. Foi uma brincadeira. Quando eu estava em York, ouvindo todos aqueles mexericos, ouvi alguém dizer que Merlin e a rainha tinham brigado em Luguvallium e que agora ela falava dele com ódio, quando antes sempre se mostrara admiradora de suas artes, chegando a parecer invejosa. E, como ultimamente ninguém sabia dizer onde estaria Merlin, alguns pensaram que... Mas, rainha ou não, que mal poderia fazer para um homem como ele? E você, pensei, tem muita sorte de enxergar mal, senão eu teria de tomar providências contra um sujeitinho tão falante. Mas eu me sentia satisfeito por ter encontrado Beltane e ainda pensava nisso quando finalmente até ele decidiu que era hora de dormir e nos enrolamos em nossos cobertores. Sim, sua presença daria credibilidade a meu disfarce e ele poderia ser meus ouvidos e receptor de informações na corte de Morgause. E quanto a Ninian, que atuava como seus "olhos"? Novamente senti uma brisa gelada em minha nuca e meus pensamentos se embaralharam numa sombra repentina. O que seria isso? Uma premonição? O primeiro sinal de uma volta do poder? Mas até mesmo essa especulação sumiu enquanto a brisa passava pelos galhos aveludados das árvores e o último pedaço de lenha se transformava em cinza. A noite sem sonhos fechou-se sobre mim. Recusei-me a pensar no menino doentio em Dumpeldyr, exceto para desejar que não vingasse, de modo a não me criar problemas. Mas eu sabia que essa era uma esperança vã.

10 Menos de cinqüenta quilômetros separam Vinovia da cidade que fica junto a Cor Bridge, mas levamos seis dias para chegar lá. Em vez de viajarmos pela estrada, fizemos caminhos às vezes até bem difíceis, visitando todas as granjas e vilarejos, por mais humildes que fossem. Como não tínhamos motivo para pressa, o percurso foi bem agradável. Beltane estava obviamente contente com nossa companhia e o trabalho de Ninian tornou-se mais fácil porque nossa mula de carga aliviou-o de seus pacotes desajeitados. O ourives falava sem parar, mas era um homem de bom coração e, acima de tudo, um artesão meticuloso e honesto, uma qualidade que sempre merece respeito. Nosso progresso tornou-se mais vagaroso ainda porque ele não se negava a fazer pequenos consertos, em especial nos lugares mais pobres. Já nos vilarejos maiores ou em tavernas, passava a maior parte do tempo ocupado, mostrando e vendendo suas jóias. O menino o acompanhava em todas essas ocasiões mas, nas viagens entre as aldeias e nas noites no acampamento, acabamos fazendo um estranho tipo de amizade. Era muito calado, mas quando descobriu que eu estudara a vida cios pássaros e animais, que devido à minha profissão eu tinha um conhecimento detalhado das propriedades das plantas e que, à noite, eu conseguia ler o mapa das estrelas, passou a ficar junto de mim sempre que possível, e depois de algum tempo já encontrava coragem para fazer perguntas. Adorava música e tinha um bom ouvido, e por isso comecei ensinando-o a afinar a harpa. Apesar de ser analfabeto, mostrava inteligência quando se interessava por alguma coisa e percebi que, se tivesse um professor dedicado, poderia se desenvolver notavelmente. Quando chegamos a Cor Bridge, eu já alimentava a idéia de ser eu mesmo esse mestre e imaginei se Beltane estaria disposto a vender Ninian para ser meu criado. Com isso em mente, passei a manter os olhos abertos sempre que entrávamos em alguma granja ou sítio, no caso de ali haver um menino escravo que eu pudesse comprar para o ourives em troca do dele. De vez em quando eu ainda sentia a pequena nuvem de opressão, o arrepio de alguma previsão vaga que me tornava inquieto e apreensivo, me avisando de que uma perturbação espreitava de algum lugar, pronta a atacar. Todavia, depois de algum tempo desisti de tentar adivinhar o que seria, pois tinha certeza de que não dizia respeito a Artur. Se fosse relacionada com Morgause, não havia motivo para me preocupar com ela antes do tempo, pois eu imaginava que me manteria em razoável segurança mesmo morando em Dunpeldyr. A rainha tinha muitas coisas em que pensar no momento, sendo talvez a maior delas a volta do marido, que podia contar nos dedos como qualquer outro homem. Além disso, o problema talvez não fosse mais do que um aborrecimento trivial, que logo seria esquecido. É sempre difícil dizer, quando os deuses permitem a abertura dos véus do futuro, se a sombra que vem à luz será grande o bastante para cobrir os domínios de um rei ou se apenas fará uma criança chorar em seu sono. Finalmente chegamos à cidade de Cor Bridge, situada na região de suaves colinas que fica ao sul da Grande Muralha. No tempo dos romanos esse local era chamado de Corstopitum e na confluência da Dere Street com a estrada leste—oeste construída por Agricola, fora erigido um forte bem aparelhado. Com passar do tempo, nessa área privilegiada fora surgindo uma aldeia, que acabou se tornando uma cidade florescente, pela qual passava todo o trânsito civil e militar vindo dos quatro cantos da Bretanha. Atualmente o forte está em ruínas e grande parte de suas pedras foram usadas para construir outros prédios, mas ao oeste dele, numa curva do terreno elevado à margem do rio Burn, a cidade continua próspera e crescente, com casas, estalagens e lojas, e um mercado livre afamado em toda a região.

A bela ponte romana, que deu â cidade seu nome moderno, Cor Bridge, ainda existe e atravessa o rio Tyne no ponto onde o rio Burn deságua nele vindo cio norte. Nesse local existe um moinho e a madeira da ponte geme continuamente sob as cargas de grãos. Mais abaixo fica o ancoradouro para as barcaças. O rio Cor é pouco mais do que um riacho, mas desce em cachoeira e por isso aciona a roda do moinho, mas nessa região o Tyne é largo e rápido, com vegetação abundante nas margens. O vale é fértil e extenso, cheio de árvores frutíferas plantadas no meio de milharais, e ao norte se eleva numa região montanhosa, com pequenos lagos cintilando ao sol. Mais adiante, no alto das escarpas de basalto, corre a Grande Muralha do imperador Adriano, que acompanha o relevo do terreno, subindo e descendo, de onde se tem visão livre até onde o olho perde a terra no horizonte enevoado do céu. Eu não conhecia a região. Como explicara a Artur, só escolhera esse caminho porque tinha uma visita a fazer. Um dos secretários de Ambrosius, com o qual eu convivera no continente e posteriormente em Winchester e Caerleon, decidira se estabelecer no norte depois da morte de meu pai. O dinheiro que recebera como herança fora mais do que suficiente para ele comprar uma propriedade perto de Vindolanda, na estrada de Agricola, onde cultivava plantas raras e, segundo haviam me informado, escrevia a história da época em que acompanhara Ambrosius. Seu nome era Blaise. Hospedamo-nos na parte velha da cidade, numa estalagem construída na área onde antigamente ficava a cidadela da fortaleza original. Beltane, com uma súbita e inabalável obstinação, recusara-se a pagar o pedágio cobrado na ponte, de modo que tivemos de atravessar o rio a vau, a uns quinhentos metros a jusante, e depois voltar acompanhando a margem até atingirmos o portão leste de Cor Bridge. Anoitecia quando chegamos lá, de modo que nos hospedamos na primeira taverna que encontramos, um lugar bem respeitável, perto da praça do mercado. Apesar da hora, havia muita gente indo e vindo. De longe podíamos ouvir serviçais mexericando ao lado da cisterna pública enquanto enchiam suas jarras de água e por entre o burburinho e gargalhadas podia-se ouvir o murmurar de uma fonte. Numa casa não muito longe dali uma mulher entoava uma música de fiar. Beltane mostrava-se entusiasmado com a perspectiva de vender muito no dia seguinte e, na verdade, começou a negociar naquela noite mesmo, quando os fregueses chegaram para uma bebida depois do jantar. Não fiquei para presenciar porque Ulfin viera me avisar que encontrara uma casa de banhos ainda em funcionamento perto da muralha oeste e me dirigi para lá, de onde só saí refrescado e relaxado para me retirar para o quarto. Acordamos cedo, mas Beltane e o menino tinham madrugado. Enquanto eu e Ulfin tomávamos o desjejum sob uma árvore frondosa que crescia no pátio dianteiro da taverna vi que o ourives já estava com a banca montada num lugar estratégico, perto da cisterna, o que significava que Ninian abrira um tapete no chão e espalhara sobre ele as bijuterias adequadas para o gosto e bolso de pessoas comuns. As jóias permaneciam cuidadosamente escondidas no forro de bolsas de couro. Beltane estava em seu elemento, tagarelando com cada passante que parasse por um minuto para admirar as peças em exposição. O menino, como de hábito, mantinha-se em silêncio e com paciência e gestos graciosos rearranjava as peças que os interessados tinham manuseado e largado displicentemente sobre o tapete, e recebia o dinheiro ou mercadorias que eram dados em pagamento. Nos intervalos, sentado de pernas cruzadas, costurava as tiras de suas sandálias, que tinham sofrido bastante durante a viagem. Beltane tagarelava sem parar com a freguesia: — E este aqui, senhora, o que lhe parece? — Eu já o vira em ação e podia imaginar o que estaria dizendo para uma mulher rechonchuda que carregava uma cesta de bolos. — As pedras ficam embutidas em filigrana, está vendo? Aprendi a arte em Bizâncio e garanto que mesmo lá a senhora não

encontraria uma obra tão fina... E saiba que já fiz esse mesmo modelo em ouro para muitas damas deste país. Este? É o mesmo trabalho, feito em cobre, e fica muito mais em conta, claro... Veja as cores. Segure o broche contra a luz para ela ver, Ninian... Assim. Repare como o metal envolve as pedras. O fio de cobre é bem fininho. Tenho de fazer toda a armação e depois coloco as pedras. Não, madame, não poderiam ser preciosas a esse preço! Mas eu mesmo faço o vidro e a senhora há de concordar que tenho bom gosto para cores. Entendo, madame... Mas veja então aquele passarinho. Ninian, mostre a ela... Lindo, não? Ou então o leão. Pode ter certeza de que não encontrará coisa parecida em nenhum canto deste país. Ora, nesse broche tem quase tanto cobre quanto na moeda que a senhora me pagará por ele... Nesse momento Ulfin apareceu trazendo as mulas. Ficara combinado que nós dois iríamos a Vindolanda, passaríamos a noite lá e voltaríamos no dia seguinte, enquanto Beltane e o menino ficavam negociando no mercado. Paguei pelo desjejum e fui até a praça para me despedir deles. — Já estão de partida? — Beltane falou sem tirar os olhos da mulher, que examinava uma pulseirinha. — Então uma boa viagem, mestre Emrys, nos veremos amanhã à noite... Sinto muito, madame, não estamos precisando de bolos, por mais cheirosos que eles estejam. O preço hoje é uma moeda de cobre. Ah, obrigado. A senhora não vai se arrepender. Ninian, prenda a pulseira para a madame... Lindo, a senhora parece uma dama da nobreza, pode acreditar. Se a visse, a rainha Ygraine, que é a mais importante da Bretanha, ficaria até com inveja. Ninian! — chamou enquanto a mulher se afastava, usando o tom implicante que usava com o menino. —Não fique parado aí feito um bobo, com a boca cheia de água. Pegue essa moeda e vá comprar um par de sapatos. Quando partirmos para o norte, não quero ver você se arrastando pela estrada porque os seus estão soltando as... — Não! — Falei sem perceber e só me dei conta quando vi os dois olhando para mim, surpresos. E não sei o que me impeliu a acrescentar: — Deixe Ninian comprar o bolo, Beltane. As sandálias ainda têm conserto. Veja, ele está com fome, o sol já está alto... O ourives franziu os olhos para mim. Finalmente, um pouco para minha surpresa, falou: — Está certo. Vá logo, Ninian. O menino me lançou um olhar alegre e depois entrou no meio dos passantes indo atrás da mulher com a cesta de bolos. Pensei que Beltane fosse me repreender, mas não foi o que aconteceu. Ele começou a rearranjar as bijuterias e disse apenas: — O senhor está certo. Os meninos estão sempre morrendo de fome e ele é um garoto bom e fiel. Que ande descalço, se for preciso, mas de barriga cheia. Não é sempre que conseguimos doces e aqueles bolos estavam mesmo com um cheiro delicioso. Enquanto nos dirigíamos para o oeste, seguindo a margem do rio, Ulfin perguntou, não escondendo uma súbita preocupação comigo. — O que foi, meu senhor? Sente-se bem? O senhor me parece um pouco pálido... Fiz que não e ele não disse mais nada, mas deve ter visto as lágrimas que escorreram frias em minhas faces sob o vento quente do verão. Mestre Blaise nos recebeu numa aconchegante casinha feita de arenito rosado, construída em torno de um pequeno pátio com macieiras crescendo perto dos muros e roseiras trepadeiras escondendo os modernos pilares quadrados.

No passado ali morara um moleiro e o riacho que antes movia o moinho passava por perto, com a queda d'água controlada por degraus e margens muradas, onde cresciam folhagens e florzinhas. A uns cem passos abaixo da casa, o riacho desaparecia sob um dossel de árvores frondosas. Acima desse bosque, na encosta que ficava na parte traseira da propriedade, ficava o jardim murado onde Blaise cultivava suas preciosas plantas. Ele me reconheceu imediatamente, apesar de fazer um bom tempo que não nos víamos e pouco depois estava instruindo a mulher que cuidava da casa junto com a filha para providenciarem acomodações para nós. Ulfin foi cuidar das mulas no estábulo e Blaise e eu ficamos livres para conversar. A luz dura bastante no norte durante o verão, de modo que depois do jantar pudemos ir para o terraço que ficava acima do riacho. O calor ainda irradiava das pedras e o ar estava perfumado com o aroma de alecrim e ciprestes. Aqui e ali, nas sombras por entre as árvores, podia-se divisar a forma pálida de estátuas. Um pássaro cantou perto de nós enquanto o velho, que agora gostava de se apresentar como um magister artium, falava sobre o passado num latim puro, sem nenhum sotaque. A noite parecia ter sido emprestada da Itália e eu poderia ser novamente um rapaz se aventurando pelo mundo. Quando disse isso a Blaise, ele sorriu de prazer. — Sim, este lugar, no verão, também me faz lembrar daqueles tempos. Acho que todos tentamos nos manter dentro dos valores que eram importantes para nós quando estávamos em nosso auge. Você sabia que eu estudei em Roma antes de ter o privilégio de entrar a serviço de seu pai? Esses, sim, foram os grandes anos de minha vida! Mas talvez tenhamos a tendência de ficar olhando demais para trás à medida que vamos envelhecendo... Falei algo delicado sobre isso ser uma grande vantagem para um historiador e perguntei se ele estava disposto a me honrar com uma leitura de seu trabalho. Já notara um lampião aceso e os rolos de pergaminho numa mesa de pedra. — Quer mesmo escutar? — Blaise me conduziu até lá rapidamente. — Tenho certeza de que algumas partes terão um interesse muito especial para você e creio que poderá me ajudar no acréscimo de alguns trechos. Por acaso tenho aqui comigo este rolo... sim, é ele mesmo... Vamos sentar? As pedras estão secas e não há sereno. Creio que poderemos ficar bem aqui perto das rosas... O trecho que ele escolheu para ler foi seu relato sobre o que aconteceu depois da volta de Ambrosius à Bretanha Maior e nessa época passara a maior parte do tempo ao lado de meu pai, enquanto eu estava envolvido em outras atividades. Depois de ler, Blaise fez as perguntas para obter o esclarecimento que desejava e pude fornecer detalhes sobre a batalha final com Hengist em Kaerconan e o subseqüente cerco a York, e principalmente sobre o trabalho de reconstrução e colonização que seguiu-se depois. Contei também sobre a campanha que Uther fizera contra Gilloman na Irlanda, pois o acompanhara enquanto Ambrosius permanecia em Winchester. Blaise ficara com meu pai e por isso pudera me fazer um relato minucioso sobre sua morte. Ele me contou tudo de novo. — Eu ainda posso ver o grande quarto em Winchester, os médicos e os nobres todos por perto, seu pai recostado nos travesseiros, perto da morte, mas falando com a mesma sensatez de sempre, conversando com você como se estivesse lá. Eu me mantinha a seu lado, pronto para escrever qualquer coisa que fosse necessária e mais de uma vez olhei para os pés da cama, pensando em vê-lo ali. E esse tempo todo você estava vindo das guerras irlandesas, trazendo a grande pedra que ficaria na tumba do

rei. Blaise começou a balançar a cabeça, como fazem os velhos, quando estão desejando ficar no tempo em que se deram os eventos, mas eu o trouxe de volta ao presente. — E até onde pretende ir com sua história? — Oh, tento registrar tudo o que acontece mas, como agora estou fora do centro dos acontecimentos, sou obrigado a depender de conversas na cidade ou de pessoas que vêm me visitar, e fica difícil para mim saber o quanto estou perdendo. Tenho correspondentes, mas às vezes eles são displicentes. Esse jovens de hoje... Foi ótimo você ter vindo, Merlin, este é um grande dia para mim. Por que não fica por aqui mais tempo? Levo uma vida simples, mas sei que este lugar é agradável e temos tanto a conversar, tanto... E você precisa ver meu vinhedo. Uvas brancas, doces como o mel quando temos um bom ano. Também cultivo figos e pêssegos e até tive algum êxito com uma tangerineira que veio da Itália. — Lamento, mas desta vez não posso ficar — falei, com sincero pesar. — Parto para o norte amanhã. Mas se for possível voltarei sem demora e, quem sabe, com muito para lhe contar. Prometo! Há muitas coisas importantes acontecendo e você poderá prestar um grande serviço à humanidade registrando-as para a posteridade. Enquanto isso, eu lhe escreverei de tempos em tempos, contando as novidades. Espero estar novamente ao lado de Artur antes do inverno e prometo mantê-lo informado sobre os acontecimentos. Blaise mostrou-se encantado. Conversamos por mais algum tempo e, quando os insetos noturnos começaram a se reunir em torno do lampião, o levamos para dentro e nos recolhemos para dormir. A janela de meu quarto dava para o terraço onde estávamos antes. Antes de deitar fiquei um bom tempo apoiado no peitoril, olhando para a noite e sentindo os aromas trazidos pela brisa fresca. O pássaro noturno já não mais cantava e agora só o murmurar do riacho quebrava o silêncio. A lua nova brilhava rodeada de estrelas. Ali, longe das luzes e sons de cidades ou aldeias, a noite era mais profunda e o céu se estendia, sem limites, muito além das esferas, para um mundo inimaginável, onde deuses caminhavam e sóis e luas pareciam pétalas caindo macias. Existe um poder nas noites desse tipo que atraem os olhos e o coração dos homens para o alto, para fora, muito além do barro pesado que os prende à terra. A música também faz isso, a lua cheia igualmente e, imagino, também o amor, embora na época eu jamais o houvesse experimentado, exceto na adoração aos deuses. As lágrimas vieram de novo e eu as deixei cair. Sabia agora qual era a nuvem que vinha pairando sobre meu horizonte desde do encontro casual na estrada que cortava as campinas perto de York. Eu não sabia como, mas o menino Ninian, tão novinho e calado, com uma graça em sua aparência e movimentos que pareciam desmentir a feia cicatriz de escravo, tinha em torno de si a marca de uma morte anunciada. Qualquer homem choraria diante dessa aura mas eu também estava chorando por mim mesmo; por Merlin, o mago, que via, mas nada podia fazer; que caminhava sozinho pelas alturas solitárias onde parecia ser impossível alguém se aproximar dele. No rosto imóvel e olhos atentos do menino, naquela noite no acampamento, quando os pássaros tinham cantado, eu captara um relance do que poderia ter sido. Pois, pela primeira vez desde os tempos em que eu ficava sentado aos pés de Galapas para aprender a arte da magia, eu encontrara alguém a quem poderia ensinar por prazer, como se estivesse passando à frente um tesouro. Não como os outros tinham querido aprender, desejando poder ou emoção, pretendendo perseguir um inimigo ou realizar uma ambição, mas porque ele vira, com olhos de criança, como os deuses se movem com os ventos, falam com o mar e dormem nas macias ervas, e como o deus maior é a soma de tudo o que existe na face desta linda terra. A mágica é uma porta pela qual o mortal às vezes consegue passar, para encontrar os portões nas colinas ocas e adentrar os saguões de um outro mundo. Não fosse por

aquela aura de fatalidade, eu poderia abrir esses portões para Ninian e, quando não mais precisasse dela, lhe entregaria a chave. E agora ele estava morto. Creio que eu já sabia disso quando interrompera Beltane no mercado. O protesto áspero, que saíra sem pensar, sem eu saber por quê. O conhecimento veio depois. No entanto, sempre que eu falava nesse tom, os homens me obedeciam sem hesitação e assim, pelo menos o menino conseguira seus bolos e seu descanso ao sol. Afastei-me da janela, deixando lá fora a lua e as estrelas, e fui me deitar. — Pelo menos ele comeu os bolos e aproveitou o sol — disse Beltane, o ourives, enquanto jantávamos na noite seguinte. Estava incomumente calado e parecia perdido. Apesar da língua ácida, era apegado ao menino. — Mas... afogado... — Ulfin falou num tom de descrédito, mas captei um brilho em seu olhar que me contou que começara a entender o que acontecera. — Mas, como foi isso? — Ontem à noite, ele me trouxe de volta para cá e guardou as coisas. Foi um dia de bons negócios e sabíamos que íamos comer bem. Ninian trabalhara o dia inteiro e, quando viu alguns meninos passando para ir tomar banho no rio, perguntou se podia acompanhá-los. Tinha mania de se lavar, o pobre coitado... O dia fora muito quente, havia muita poeira e estéreo no mercado, por isso deixei-o ir. Só sei que uni pouco depois os meninos voltaram correndo, contando o que acontecera. Ele deve ter caído num buraco. Me contaram que esse rio é traiçoeiro. Como eu poderia saber? Anteontem, quando atravessamos a vau, ninguém diria que... — E o corpo? — indagou Ulfin, depois de ver que eu não ia falar. — Desapareceu. Os meninos contaram que foi levado pelo rio como se fosse um tronco. Eles o viram de longe e não puderam fazer nada. Foi uma morte ruim, a morte de um cachorrinho. Gostaria que fosse encontrado para enterrá-lo como gente. Ulfin falou algumas palavras de consolo e o pesar de Beltane foi melhorando enquanto ele comia e bebia. Na manhã seguinte o sol brilhou de novo e nós três partimos para o norte e em quatro dias chegamos ao condado de Votadini, que na língua da Bretanha chama-se Manau Guotodin.

11 Cerca de dez dias depois, incluindo as paradas para negociar, chegamos à cidade de Dunpeldyr, a capital de Lot. Era o final da tarde de um dia cinzento e a chuva começara a cair. Tivemos a sorte de encontrar alojamento satisfatório numa hospedaria perto do portão sul. A cidade era pouco mais do que um amontoado de casas, lojas e oficinas nas encostas de um enorme rochedo, em cujo topo fora construído o castelo. No passado, essa plataforma continha a cidadela, a fortaleza e a cidade, mas agora havia casas entre as escarpas e o rio, quase atingindo as muralhas. O rio, também chamado Tyne, acompanha o contorno do rochedo e depois corre em amplos meandros por um trecho em planície até chegar ao seu estuário arenoso. Existem duas pontes, uma de madeira, assentada em pilares de pedras, que fica na estrada que acaba no principal portão do castelo, e uma estreita, de tábuas, que leva para uma trilha íngreme e daí para um portão lateral. Nesse lugar nunca existira uma abertura planejada de ruas; a cidade fora surgindo ao acaso, sem preocupação com a beleza ou lazer. Dunpeldyr é feia, com casas de tijolos com telhados de turfa e becos íngremes que em tempo chuvoso se tornam cachoeiras de água suja. O rio, bonito de longe, ali está cheio de mato e detritos. Entre ele e a parte leste do rochedo fica o mercado, onde Beltane iria montar sua banca. Eu sabia que havia algo que devia fazer sem demora. Se como eu planejara, Beltane seria meus "olhos" no interior do castelo, Ulfin e eu não podíamos ser vistos com ele. Portanto, como o velho dependia de um serviçal para ajudá-lo a caminhar e vender, tínhamos de encontrar alguém para substituir o menino que se afogara. Ofereci-me para cuidar disso para ele, que concordou cheio de gratidão. Eu avistara uma pedreira não muito distante dos portões da cidade, um lugar pequeno, mas ainda em funcionamento. Na manhã seguinte, cuidadosamente anônimo numa capa puída, cor de terra, fui até lá e procurei o capataz, um enorme e simpático rufião, que caminhava entre instalações semi-arruinadas e trabalhadores igualmente semi-arruinados, como se fosse um grande senhor tomando a fresca em sua mansão rural. Ele me olhou de alto a baixo com desdém. — Criados saudáveis são muito caros, senhor. — Pude ver, enquanto o homem falava, que ele estava me avaliando e chegando a uma conclusão bem ruim. — Também não tenho ninguém que possa dispensar. Num lugar como este, só se encontra a ralé... prisioneiros, criminosos, gente desse tipo. Praticamente nunca aparece um escravo para uma casa de respeito, alguém de confiança para trabalhar na lavoura ou com qualquer tipo de ofício. E músculos custam caro. É melhor o senhor esperar pela feira. Aí surge gente de todo o tipo, querendo se empregar ou vendendo a si mesmo ou seus fedelhos em troca de comida... Mas, para isso, será melhor esperar pelo inverno, quando os preços são mais baixos. — Não quero esperar e me disponho a pagar bem. Estou de passagem e preciso de um homem ou um menino. Não faço questão que tenha um ofício, só que saiba se manter limpo, que seja fiel a seu amo e tenha forças para viajar até mesmo no inverno, quando as estradas ficam péssimas. Enquanto eu falava, vi o homem assumir um ar mais cortês e percebi que a avaliação melhorara um pouco. — Viajar? Então é isso que o senhor faz? Não vi motivos para lhe contar que o criado não era para mim.

— Sou médico. Minha resposta teve o efeito habitual. O homem começou a me contar ansiosamente sobre suas várias enfermidades, bastante naturais num homem de quarenta anos e poucos anos. — Muito bem — falei, quando ele terminou —-, creio que posso ajudá-lo, mas será uma ajuda mútua. Se o senhor tem alguém aqui que possa dispensar para ser meu criado... e deve ser barato, já que me informou que só consegue a ralé... talvez possamos fazer um acordo. E mais uma coisa. Como deve imaginar, na minha profissão é preciso saber guardar segredo. Não quero nenhum boquirroto; faço questão de que seja de pouco falar. Ao ouvir isso, o grandalhão arregalou os olhos e depois soltou uma gargalhada, batendo a mão na coxa como se tivesse ouvido a melhor piada do mundo. Ainda rindo, virou a cabeça para trás e berrou: — Casso! Venha cá! Depressa, seu palerma! Seu dia de sorte chegou, rapaz, e veio trazendo um novo amo e uma vida de aventuras! Um mocinho magro e alto separou-se de um grupo que quebrava pedras sob um telheiro que parecia a ponto de desabar. Endireitou-se devagar e ficou olhando em nossa direção por uns bons segundos antes de largar a picareta e aproximar-se. — Posso lhe arranjar este, mestre doutor. — O capataz sorriu, exibindo dentes ruins, e acrescentou, gargalhando: — Ele é tudo o que o senhor pediu. O jovem chegou perto de nós e ficou parado, com os braços pendentes e olhos fixos no chão. Devia ter uns dezoito ou dezenove anos. Parecia forte, e tinha de ser para suportar essa vida por mais de seis meses, mas deu-me a impressão de ser burro, no limiar da idiotia. — Casso? — falei. Ele olhou para mim e vi que estava apenas exausto. Numa vida sem prazer ou esperança havia poucos motivos para gastar energia com pensamentos. O capataz riu de novo. — Não adianta falar com ele. Se quiser saber alguma coisa, pergunte a mim ou então terá que procurar a resposta sozinho. — Ele pegou o pulso do rapazinho e levantou o braço. — Está vendo? Forte como uma mula, pulmões fortes. E discreto, como o senhor pediu. Discreto até demais. Casso é mudo. O mocinho não mostrou sinal de perturbação em ser exibido como um animal, mas diante da última sentença fixou os olhos nos meus por um instante. Vi então que eu estivem enganado. Havia pensamento ali e também esperança. Todavia, logo vi a esperança morrer. — Imagino que ele ouve bem, certo? — Falei. — O que causou a mudez, o senhor sabe? — Foi a própria língua dele. — O capataz estava a ponto de soltar outra gargalhada, mas captou o meu olhar e só pigarreou. — O senhor não poderá curá-lo, mestre doutor, a língua dele foi cortada. Eu nunca soube direito o que aconteceu, mas ele servia em Bremenium e parece que abriu demais a boca. E se existe alguém que não tem a menor paciência com gente insolente é o senhor Aguisel... Mas, enfim, ele aprendeu a lição. Veio para cá com um lote de escravos que trabalhou na reforma da ponte e nunca me deu trabalho. Só sei que era criado de casa, por isso o senhor tem aqui uma pechincha. Casso... Ei, vocês aí! Enquanto falava, o capataz ficara de olho nos homens que quebravam pedras e agora estava indo para lá, reclamando que tinham aproveitando a oportunidade para encostar o corpo. Olhei atentamente para Casso. Eu captara o gesto rápido de negativa quando o capataz falara em

"insolência". — Você trabalhava na casa de Aguisel? — indaguei. Um aceno de cabeça. — Entendo. E eu entendia mesmo. Aguisel tinha péssima fama. Era o chacal de acompanhava Lot, o lobo, e seu covil era a fortaleza de Bremenium, que ficava mais ao sul. Boatos freqüentes diziam que ele tinha o hábito de usar escravos mudos ou cegos. — Estou certo em pensar que você viu alguma coisa que jamais deveria contar? Outro aceno positivo. Desta vez os olhos se mantiveram fixos em mim. Com certeza fazia muito tempo que alguém tentara até mesmo essa comunicação limitada. — Foi o que pensei, já ouvi contar muitas histórias sobre o senhor Aguisel. Você sabe ler ou escrever.. Casso? Ele fez que não vigorosamente. — Dê graças a isso — falei secamente. — Se soubesse, a esta altura estaria morto. O capataz voltava para nós, depois de xingar os homens e se satisfazer com o ritmo de trabalho. Tive de pensar rapidamente. A mudez do rapaz não seria problema para Beltane, que falava por dois, mas eu estivera me baseando na hipótese de que o novo escravo iria ser os olhos de seu amo enquanto estivéssemos em Dunpeldyr. No entanto, agora eu conhecia bem o ourives e sabia que ele me contaria tudo o que se passava na casa de Lot. Sua vista não era boa, mas eu só precisava de sua audição para me manter a par do que era comentado lá; a aparência do lugar não teria a menor importância para mim. Se Beltane não ficasse contente com Casso, até minha partida da cidade eu com certeza encontraria outro escravo, mas por enquanto o tempo era pouco e me interessava comprar discrição, mesmo que forçada, e a lealdade que costuma vir com a gratidão. — E então? — perguntou o capataz. — Qualquer um que tenha sobrevivido ao serviço em Bremenium é suficientemente forte para qualquer coisa que eu possa vir a precisar. Muito bem, ficarei com ele. — Esplêndido! Esplêndido! O sujeito fez tantos elogios à minha escolha e aos talentos de Casso que comecei a imaginar se os escravos não seriam seus ou se estava prevendo a entrada de um bom dinheiro para seu próprio bolso, porque comunicaria ao seu patrão que um de seus homens havia morrido. Quando o homem começou a falar sobre o preço de Casso, mandei o rapaz pegar suas coisas e me esperar na rua. Nunca entendi por que um escravo ou prisioneiro deve ser privado de um mínimo de auto-respeito. Quando o vi se afastar, voltei a regatear com o capataz. — Agora lembre-se de que eu disse que pagaria parte do preço em remédios. Posso ser encontrado na hospedaria que fica perto do portão sul. Se me procurar esta noite ou mandar alguém em seu nome, terei os medicamentos prontos. E só perguntar pelo mestre Emrys. E agora, quanto ao dinheiro... Finalmente acabamos concordando e então, seguido pelo rapaz que eu comprara, voltei para a taverna. Casso não escondeu sua decepção quando soube que não iria ficar comigo, mas com Beltane.

Todavia, no fim do dia, com a boa comida, calor e companhia alegre da gente que lotava o salão da taverna, ele me fez lembrar de uma planta que depois de estar murchando na escuridão fora colocada num vaso com água sob a luz do sol. Beltane mostrava-se extremamente grato a mim e não perdeu tempo em iniciar uma longa e feliz exposição sobre seu ofício para o rapaz. Crasso dificilmente encontraria um outro lugar onde sua mutilação seria tão pouco importante e, de fato, cerca de uma ou duas horas depois, Beltane já estava vendo grandes vantagens em ter um escravo mudo. O rapaz parecia beber suas palavras enquanto tocava as bijuterias com os dedos calosos e era fácil ver seu cérebro saindo do torpor causado pela exaustão e se expandindo em prazer. A taverna era pequena e não tinha mesas separadas, mas no final do corredor, longe do fogo, havia uma alcova com uma mesa e dois bancos onde pudemos conseguir um pouco de privacidade. Ninguém prestou grande atenção em nós e ficamos ali o resto da noite, ouvindo os boatos que corriam pelo local. O mais importante foi que Artur lutara e vencera duas outras batalhas e que os saxões tinham aceitado seus termos. O Grande Rei ficaria em Linnuis por mais algum tempo, mas Lot era esperado a qualquer momento. Ele só chegou quatro dias depois. Passei esses dias dentro de casa, escrevendo para Ygraine e para Artur, e deixei as noites para caminhar, conhecendo a cidade e seus arredores. Dunpeldyr era pequena e não costumava atrair estranhos, e foi por isso que eu só saía depois do pôr-do-sol, quando a maioria dos habitantes estava jantando. Pelo mesmo motivo, não anunciei meu ofício. Qualquer um que se aproximasse de nosso grupo era logo monopolizado por Beltane. Creio que imaginavam que eu era um tipo qualquer de escriba, e bem pobre. Ulfin ficara encarregado de vigiar os portões da cidade, ouvindo o máximo de novidades que pudesse e esperando notícias sobre a chegada de Lot. Beltane, inocente e sem desconfiar de nada, cuidava de suas vendas. Ele montou seu fogão na praça diante da taverna e começou a ensinar a Casso os fundamentos da arte de consertar bijuterias e jóias. Isso, naturalmente, acabou chamando a atenção dos passantes e logo o ourives estava cheio de fregueses. No terceiro dia essa atividade trouxe o resultado que todos esperávamos. A mocinha Lind viu Beltane na praça e foi conversar com ele, e o ourives, depois de presenteá-la com uma fivela, deu-lhe um bilhete para ser entregue à rainha. No dia seguinte veio a ordem para ele se apresentar no palácio, o que fez com grande satisfação, acompanhado de Casso, carregado de pacotes. Mesmo que pudesse falar, o escravo não teria contado nada. Assim que os dois pararam no portão da guarda real, Casso recebeu ordens para esperar, enquanto uma camareira conduzia Beltane até os aposentos da rainha. O ourives voltou à taverna ao anoitecer, borbulhando de novidades. Apesar de toda sua conversa sobre gente importante, essa fora a primeira vez que entrara no castelo de um rei e Morgause seria a primeira rainha a usar suas jóias. A admiração que sentira por ela em York agora se transformara em pura adoração; de perto, sua beleza em tons de rosa e dourado atuava como uma poção embriagadora sobre qualquer homem, mesmo alguém velho e míope como ele. Casso e eu, porque Ulfin continuava vigiando os portões, tivemos de ouvir um relato literal sobre os encantos da rainha, sua elegância, os elogios que fizera às jóias, sua generosidade em comprar três delas e, até sobre os vários aromas que ela exalava. Beltane se esforçou ao máximo para fazer uma descrição acurada dos esplendores da sala onde Morgause o recebera, mas disso só pudemos ter impressões passageiras, devido à miopia. O quadro que ele nos transmitiu foi uma névoa perfumada de luz e cor; os raios de sol vindos de uma janela, refletindo no cetim de um robe cor de âmbar e inflamando o dourado e rosa dos cabelos; o farfalhar de seda e o calor e estalar dos troncos na lareira, e música. Uma voz de menina entoando uma cantiga de

ninar. — Quer dizer então que a criança estava lá? — Sim. Dormindo num berço perto da lareira. Pude vê-lo bem destacado contra as chamas e a mocinha o embalando e cantando. Um dossel de seda e creio que gaze, com um sininho que batia com o vaivém, e brilhava à luz do fogo. Um berço real. Uma coisa linda! Como gostaria de ter minha antiga vista de volta, nem que fosse apenas para vê-lo! — E você chegou a ver o menino? A resposta foi negativa. O bebê acordara e chorara um pouco, mas a mocinha o tinha aquietado sem tirá-lo do berço. Naquele momento a rainha estava experimentando uma gargantilha e sem nem mesmo olhar para trás tirara o espelho da mão da babá e a mandara ninar a criança. — Uma voz bonita — contou Beltane —, mas uma cantiga muito triste. De fato, eu nem reconheceria sua dona se ela não tivesse falado comigo ontem na praça. Tão magrinha e ansiosa, parecendo um ratinho assustado. O nome dela é Lind, mas acho que vocês já sabem disso. Nome estranho para uma donzela, não é? Não existe uma cobra com esse nome? — Creio que sim. Você sabe qual é o nome do menino? — Elas o chamaram de Mordred. Beltane começou a fazer menção de repetir a descrição do berço e do quadro criado pela mocinha enquanto o embalava, mas eu o fiz voltar para o que me interessava. — E elas falaram alguma coisa sobre a volta do rei Lot? Beltane, um artista que só se importava com seu trabalho, nem mesmo desconfiou das implicações da pergunta. Todo feliz, contou que a rainha parecia mais entusiasmada do que uma menininha. Ficava perguntando se o seu marido gostaria do colar, se os brincos combinavam com o tom de seus olhos, tornando-os mais brilhantes. Acrescentou também que devia pelo menos metade da venda que fizera à próxima chegada do rei. — Ela não mostrou medo dele? — Medo? — repetiu Beltane, com um ar intrigado. — Claro que não. E por que deveria sentir medo? Ela estava toda feliz. "Não vejo a hora de chegar para ver que belo filho eu lhe dei, tão parecido com o pai como se fossem dois lobos." E ria sem parar. Foi uma brincadeira, sabe, mestre Emrys? For aqui o rei Lot é conhecido como "O Lobo" e o povo sente orgulho disso, como seria de se esperar nessa gente meio selvagem aqui do norte. For que a rainha sentiria medo? — Eu estava pensando nos boatos que o senhor mesmo nos transmitiu há algum tempo atrás. — Ora, isso... Bem, saiba que era só falatório. Sei onde está querendo chegar, mestre Emrys. Os mexericos maldosos que andam correndo por aí. Esse tipo de conversa sempre surge quando um nascimento acontece antes da data marcada, quanto mais no castelo de um rei, onde, por assim dizer, existe muita coisa em jogo. — Então foi mesmo antes dos nove meses? — Sim, é o que dizem. Pegou todos de surpresa. Os médicos do rei estavam com ele e foram as mulheres que fizeram o parto. Mas graças a Deus, tudo deu certo. Lembra-se de como nos contaram que o pequeno príncipe era doentio? Ele nasceu mesmo fraquinho, mas agora está indo bem e vem engordando. Quem me contou foi a donzela Lind, enquanto voltávamos para o portão. Beltane inclinou-se sobre a mesa, balançando a cabeça com alegre ênfase.

— Portanto, mestre Emrys, era tudo mentira e para se saber a verdade é bastante conversar com a rainha. Como uma criatura tão linda trairia o marido? Ora, ela falava como se fosse novamente uma noiva sempre que alguém mencionava a volta do rei. Oh, claro, pode ter certeza, foram só mexericos inventados em York por pessoas que têm motivos para ficarem com ciúmes... O senhor sabe de quem estou falando, não é? E a criança é a cara do pai. Todas as mulheres dizem a mesma coisa: "Quando o rei Lot chegar será como se estivesse se vendo num espelho. O anjinho é o retrato do pai". E assim o ourives continuou falando enquanto Casso, ocupando-se com o polimento de algumas fivelas baratas, ouvia e sorria e eu deixava a conversa passar enquanto me envolvia com meus próprios pensamentos. Como o pai? Cabelos escuros, olhos castanhos, eram atributos tanto de Lot como de Artur. E se o destino tivesse ficado a favor de Artur? Haveria pelo menos um mínimo de probabilidade que Morgause fora engravidada por Lot e depois seduzira Artur numa tentativa de prendê-lo a ela? Relutantemente afastei minha esperança. Em Luguvallium, quando sentira o perigo iminente, eu estava numa época de auge de poder, mas não precisaria dele para desconfiar de Morgause. Eu viera para Lothian com a intenção de vigiá-la e agora as informações que recebera de Beltane poderiam estar me alertando sobre o que eu deveria observar mais atentamente. Nesse momento Ulfin entrou na taverna, sacudindo os pingos de chuva da capa. Logo nos avistou e fez-me um sinal quase imperceptível. Levantei-me pedindo licença a Beltane, e fui ao seu encontro. — Tenho novidades — disse ele baixinho. — O mensageiro da rainha acabou de chegar. Eu o vi. O cavalo estava quase esgotado. O guarda do portão... aquele com quem fiz amizade... me contou que o rei vem vindo, viajando ligeiro. É esperado hoje à noite ou amanhã. — Ótimo, obrigado. Mas você esteve fora o dia todo. Vá vestir roupas secas e comer alguma coisa. Acabo de ouvir algo de Beltane que me diz que seria proveitoso vigiar o portão dos fundos do castelo. Eu lhe contarei tudo depois. Quando terminar de comer, venha se encontrar comigo. Procurarei um lugar seco e fora de vista para ficarmos esperando. — Voltamos à alcova e pedi um favor a Beltane. — Você poderia me ceder Casso por uma meia hora? — Claro, claro, mas precisarei dele depois. Tenho de consertar uma fivela do camareiro-mor que prometi entregar amanhã mesmo. — Ele voltará logo. Vamos, Casso? O escravo já estava em pé. Ulfin, com uma sombra de apreensão no olhar, falou: — O senhor sabe o que deverá fazer agora? — Estou só adivinhando. Já lhe disse que o poder não está envolvido neste caso. — Falei baixinho e por causa do barulho na taverna Beltane não pôde me escutar. Mas Casso ouviu e olhou rapidamente para mim e Ulfin. Sorri para ele: — Não se preocupe, rapaz, Ulfin e eu temos negócios aqui que não afetarão você ou seu amo. Venha comigo. — Eu poderia ir — protestou Ulfin. — Não. Primeiro se cuide. Troque de roupa e coma, assim descansará um pouco. Casso... Saímos caminhando pelo labirinto de ruas sujas. A chuva, que agora caía fina e constante, formava poças enlameadas e desfazia o estéreo em massas fedorentas. As luzes que às vezes víamos nas casas eram fracas, chamas fumacentas protegidas do vento frio da noite por couros de boi ou sacos de aniagem. Nada interferia com nossa visão noturna, de modo que pudemos encontrar o caminho com

facilidade pelas ruelas brilhantes de chuva. Depois de algum tempo estávamos na escarpa da rocha que era cheia de árvores e, ao olharmos para cima, vimos a forma ameaçadora do castelo. Uma lanterna pendia na escuridão, marcando o local do portão dos fundos. Casso, que estivera me seguindo, tocou meu braço e apontou para uma viela estreita, pouco mais do que um vertedouro para a água de chuva, que eu não detectara em minhas inspeções anteriores. No fundo dela eu podia ouvir, bem alto acima do chiado constante da chuva fina, o barulho do rio. — Um atalho para a pontezinha? Casso balançou a cabeça vigorosamente. Descemos com todo o cuidado para não escorregar nas pedras limosas. Pude ver uma parte do rio, a água agitada por uma cachoeira artificial e a grande pá de um moinho. Depois dela, delineada pelo brilho refletido da espuma, estava a ponte de pedestres. Não havia ninguém por perto. O moinho não estava em funcionamento. Uma trilha enlameada levava para ele, passando pelo capim encharcado da margem do rio. Irritado e meio desconfiado, imaginei por que Casso escolhera esse caminho. Talvez tivesse apenas captado uma necessidade de segredo, embora as ruas estivessem desertas nessa hora da noite. Mas então o barulho de vozes e o movimento luminoso de uma lanterna me fizeram procurar abrigo na soleira do moinho. Três homens vindo pela rua. Estavam apressados, conversando em voz baixa e vi uma garrafa passando de mão em mão. Serviçais do castelo, com certeza, voltando da taverna. Eles pararam no final da ponte e olharam para trás. Agora era possível distinguir algo de furtivo em seus movimentos. Um deles disse alguma coisa e ouvi uma gargalhada, logo abafada. Eles continuaram o caminho, mas antes disso pude vê-los com clareza sob a luz da lanterna. Estavam armados e obviamente sóbrios. Casso continuava bem junto de mim, encostado o máximo possível na porta fechada do moinho. Os homens passaram rapidamente pela ponte, seus passos soando ocos nas pranchas de madeira. A luz fraca do lampião me mostrara uma outra coisa. Logo depois do moinho, onde a viela fazia uma curva, uma outra porta, e aberta. Pela pilha de madeira e serragem no interior, calculei que ali devia ser a oficina de um carpinteiro. Estava deserta, mas dentro do galpão principal ainda brilhavam os restos de uma fogueira. Dessa escuridão protetora eu poderia ver e ouvir tudo o que se aproximasse da ponte. Casso correu à minha frente, entrando logo no calor agradável dessa verdadeira caverna, e pegou uns pedaços de lenha, que levou para perto da fogueira, fazendo menção de atirá-los sobre as brasas. — Só um — falei baixinho. — Isso, muito bem. Agora, volte e vá buscar Ulfin. Depois disso, volte à taverna, se enxugue bem e esqueça sobre nós. Um aceno de cabeça, um sorriso e em seguida uma pantomima para me mostrar que meu segredo, fosse qual fosse, estaria em segurança com ele. Só os céus saberiam dizer o que Casso imaginava sobre minhas atitudes. Talvez acreditasse que eu era um militar numa missão de reconhecimento ou um espião. — Casso. Você gostaria de aprender a ler e escrever? Imobilidade. O sorriso desapareceu. No brilho crescente da fogueira eu o vi rígido, todo olhos, com um ar de descrédito, como se fosse um viajante perdido a quem alguém oferecera uma direção quando ele já se considerava totalmente perdido. Ele só fez que sim uma vez e foi quase uma convulsão. — Tomarei providências para isso. Agora vá... e obrigado. Boa noite.

Ele saiu correndo, como se a viela fedorenta estivesse iluminada pelo sol e na metade da subida eu o vi saltitar como um jovem animal subitamente libertado da jaula. Voltei a entrar na oficina e, agora mais calmo, pude ver que ali se confeccionavam rodas de carroça. Perto da fogueira, que na verdade era a forja, estava o banquinho de onde provavelmente um menino acionava o fole. Sentei-me para esperar, abrindo minha capa molhada para esquentar ao calor do fogo. Lá fora, abafando o som agradável da chuva, vinha o ronco da cascata que acionava o moinho. Uma pá da grande roda devia estar solta e estalava ao ser martelada pela água. A oficina do carpinteiro cheirava a madeira fresca e resina em secagem. O crepitar do fofo era claramente audível na escuridão aquecida. O tempo ia passando. Certa vez eu me sentara assim, sozinho, ao lado de um fogo, com a mente numa câmara de parto, enquanto o deus me revelava o destino de um menino. Era uma noite límpida, o vento soprava sobre o mar tranqüilo e a grande estrela-rei brilhava no veludo negro do céu. Nessa época eu era jovem, seguro de mim e do deus que me impulsionava. Agora eu não tinha mais certeza de nada, exceto de que faria de tudo para desviar o mal que Morgause estava planejando, mas sabendo que eu seria como um galho seco tentando conter a força de uma torrente. Eu, contudo, retinha o poder que existia no conhecimento. O raciocínio me conduzira até ali e logo seria possível ver se eu entendera corretamente as manobras daquela bruxa. E, apesar de meu deus ter me abandonado, eu ainda possuía muito mais poder do que é concedido aos homens comuns: tinha um rei a meu dispor. Ulfin chegou para compartilhar da vigília comigo, exatamente como fizera em Tintagel. Não o ouvi se aproximar, apenas vi quando sua figura escondeu a leve luminosidade que vinha pela porta aberta. — Aqui — falei, e ele entrou tateando, até chegar perto do fogo. — Nada ainda, meu senhor? — Nada. — O que o senhor espera? — Não tenho muita certeza, mas creio que alguém passará por aqui esta noite, vindo de parte da rainha. Senti-o estreitar os olhos para tentar ver meu rosto na escuridão. — Porque Lot deve chegar a qualquer momento? — Isso. Você ouviu mais alguma novidade a respeito dele? — Não. Foi o que eu lhe contei. Sabem que está vindo o mais rápido possível e deverá chegar a qualquer momento. — Bem, de qualquer maneira Morgause precisa se certificar. — Se certificar, do quê, meu senhor? — O filho do Grande Rei. Uma pausa. — O senhor está pensando que eles tirarão a criança do castelo para o caso de Lot acreditar nos boatos e querer matar o bebê? Mas nesse caso... — Sim? Prossiga.

— Nada, meu senhor. Eu só estava imaginando... O senhor acha que o trarão por este caminho? — Não. Penso que já o trouxeram. — É mesmo? O senhor viu para onde foram? — Não enquanto eu estava aqui. Eu quis dizer que tenho certeza de que o bebê que está no castelo não é o filho de Artur. Eles trocaram as crianças. Ouvi uma longa inspiração na escuridão. — Por medo de Lot? — Claro. Pense, Ulfin. Morgause pode contar o que quiser a Lot, mas com certeza ele já ouviu o que todos estão dizendo, desde que se tornou público que a rainha estava grávida. Claro que Morgause vem tentando convencê-lo de que é o pai da criança e que o parto foi prematuro, e pode ser que ele acredite. Mas o que você imagina que Lot fará se desconfiar que Morgause está mentindo e que o filho de outro homem, e principalmente o filho de Artur, ocupa o berço real e será o herdeiro de Lothian? Seja o que acontecer, sempre existe a possibilidade de que ele matará o menino. E Morgause sabe disso. — O senhor acha que ele ouviu os boatos de que o pai pode ser o Grande Rei? — Lot não teria como evitar. Artur não fez segredo a ninguém de sua visita ao quarto de Morgause e ela agiu da mesma forma. Queria que o caso se tornasse público, isso fazia parte de seu plano. Posteriormente, quando obriguei-a a modificá-lo, Morgause com toda a certeza ameaçou suas damas de companhia para ficarem de boca fechada, mas os guardas viram Artur e pela manhã todos os homens em Luguvallium ficaram sabendo do acontecido. Portanto, o que Lot pode fazer? Ele não toleraria a presença de um bastardo qualquer, mas o filho de Artur poderia ser perigoso. Ulfin ficou em silêncio por um instante e depois falou: — Estou me lembrando de Tintagel. Não da noite em que levamos o rei Uther para o castelo, mas da outra, quando a rainha Ygraine lhe deu Artur para escondê-lo do rei. — Sim. — O senhor pretende ficar com essa criança também, para salvá-la de Lot? A voz de Ulfin, normalmente baixa e agradável, soou esganiçada devido a algum tipo de tensão. Mal prestei atenção nisso. Vindo do meio da noite, por sobre o barulho do rio, eu ouvira um som abafado de patas de cavalo. Não um ruído, mais uma vibração que o solo transmitiu, que pulsou por alguns segundos e logo desapareceu. — O que você disse, Ulfin? — Eu estava imaginando se o senhor tem certeza sobre a criança que está no castelo. — Só tenho certeza do que os fatos me dizem. Analise a situação. Morgause mentiu sobre a data do nascimento, para que se pudesse alegar que o parto foi prematuro. Naturalmente, pode ter sido um expediente para salvar a honra do casal. Afinal, coisas desse tipo vivem acontecendo. Mas pense no que foi feito. Morgause deu um jeito para nenhum médico estar presente e depois contou que o nascimento fora inesperado e tão rápido que não houve tempo para se chamar testemunhas aos seus aposentos, como é normal nos nascimentos reais. Com ela só estavam as damas de companhia, que afinal são como suas escravas. — Mas, com que objetivo... — Com a única intenção de arranjar uma criança para ser morta por Lot, se ele quiser, deixando

incólume o filho dela e de Artur. Um soluço de surpresa. — O senhor quer dizer... — Tudo se ajusta, não é? Penso que ela já tinha providenciado a troca com uma mulher que estava para dar à luz na mesma ocasião. Talvez uma mulher pobre, que receberia de bom grado o dinheiro para segurar a língua e estaria mais do que disposta a amamentar o bebê real. Só podemos adivinhar o que Morgause lhe contou, mas com certeza a mulher não tinha idéia de que seu filho estaria correndo perigo. Assim, o bebê plebeu está no castelo, enquanto o filho de Artur, o instrumento de poder de Morgause, está escondido por perto. Não acredito que tenha sido levado para longe, pois ela quererá notícias sobre ele de tanto em tanto. — Então, se for essa a verdade, quando o rei Lot chegar aqui... — Morgause terá de tomar alguma atitude. Se ele matar a criança, Morgause terá de se certificar que a verdadeira mãe não fique sabendo. Talvez seja obrigada a encontrar um outro lar para Mordred. — Mas... — Ulfin, não temos como salvar o bebê que está no castelo. Só Morgause poderá fazê-lo e se quiser, claro. Além disso, não temos certeza de que a criança corre perigo. Afinal, Lot não é tão selvagem assim. — E toda a conversa no castelo? Enquanto eu jantava, Beltane me contou que esteve lá e as mulheres ficaram dizendo que o bebê é a cara de Lot e tudo o mais. Será que o senhor não está enganado? E se a criança for mesmo do rei? A data do nascimento combinaria. É também possível que tenha sido mesmo um parto prematuro. Contaram a Beltane que o bebê é pequenino e doentio. — Pode até ser. Como lhe disse, eu estive apenas adivinhando, mas sabemos muito bem que Morgause é traiçoeira e inimiga de Artur. Suas ações, e as de Lot, devem ser vigiadas. Além disso, Artur quererá saber da exata verdade. — Naturalmente. Agora estou entendendo. Uma das coisas que podemos fazer é descobrir quem teve um menino na mesma época em que a rainha deu à luz. Farei perguntas discretas por aí. Arranjei uns dois ou três companheiros de taverna muito úteis. — Numa cidade tão pequena como esta, indagações desse tipo causariam desconfiança. Além disso, não há tempo. Ouça! Podíamos sentir bem fortes agora as vibrações no solo. Uma tropa em velocidade. Depois veio o som, cada vez mais perto, bem mais forte que o do rio e em seguida os ruídos da cidade, enquanto os habitantes saíam para ver. Homens gritando, madeira batendo em pedra quando os portões foram rapidamente abertos; o tilintar de arreios e bater de armaduras; o resfolegar de cavalos cansados. Mais gritos e um eco vindo do castelo no rochedo, muito acima de nós e depois o som de uma trombeta. A ponte principal balançou, emitindo um trovejar. Os portões pesados rangeram e se fecharam. Os sons se restringiram ao pátio interno e logo foram abafados pelos ruídos mais próximos de nós. Levantei-me e fui até a porta da oficina e olhei para onde, bem acima do telhado do moinho, o castelo dominava a rocha, envolto em garoa. A chuva forte parará. Eu via movimento de luzes. Janelas se iluminavam e escureciam enquanto os serviçais do rei o conduziam pelos corredores do castelo. Na ala oeste havia duas janelas iluminadas. As luzes que se moviam foram para lá e ficaram. — Lot voltou para casa — constatei.

12 Um sino soou em algum lugar do castelo. Meia-noite. Encostado ao batente da porta da oficina do carpinteiro, massageei meus ombros doloridos por causa da umidade da noite. Atrás de mim, Ulfin colocou outro pedaço de lenha no fogo, tomando o maior cuidado para nenhuma chama repentina atrair a atenção de alguém ainda acordado. O silêncio da cidade, que voltara ao seu estupor noturno, era quebrado apenas pelo latido de cães e ocasionalmente pelo pio de uma coruja vindo das árvores que cobriam o lado mais íngreme do rochedo. Caminhei silenciosamente, deixando o abrigo da porta, e dirigi-me para a rua que ficava perto do final da ponte. Olhei para o castelo. Ainda havia luz nas janelas altas e as tochas dos guardas, vermelhas e fumacentas se movimentavam pelo alto das muralhas que abrangiam o pátio interno. Ulfin, ao meu lado, inspirou para fazer uma pergunta. Ela não foi feita. Alguém, correndo de cabeça abaixada na ponte de pedestres deu de encontro comigo, soltou um soluço de susto que se transformou num gritinho desafinado e tentou desviar-se. Igualmente surpreso, demorei a reagir, mas Ulfin saltou para a frente, agarrou um braço e impediu o grito seguinte. A figura encapuzada tentou se desvencilhar, mas foi facilmente contida. — Uma moça — disse Ulfin, surpreso. — Dentro da oficina — falei rapidamente e tomei a dianteira. Uma vez lá, atirei um outro pedaço de lenha na forja. As chamas saltaram e Ulfin trouxe sua prisioneira, ainda se contorcendo e chutando, para perto da luz. O capuz tombara para trás e eu a reconheci com satisfação. — Lind. Ela se enrijeceu nos braços de Ulfin. Vi o medo nos olhos arregalados acima da mão que tampava sua boca. De repente ela ficou imóvel, como faz a perdiz antes de dar o bote para fugir. Tinha me reconhecido. — Sim — falei. — Sou Merlin. Estava esperando por você, Lind. Vou mandar Ulfin soltá-la e você não dará nem um pio. Ela balançou a cabeça, concordando. Ulfin destampou-lhe a boca, mas continuou segurando-a pelo braço. — Solte-a — ordenei. Ele me obedeceu e movimentou-se de modo a ficar entre Lind e a porta, mas não precisaria ter se dado a esse trabalho. Assim que largou a mocinha, ela correu para mim e atirou-se de joelhos sobre a serragem. Agarrou-se à minha capa, com o corpo estremecendo por causa do choro convulsivo. — Oh, meu senhor! Meu senhor, me ajude! — Não vim para lhe fazer mal nem para prejudicar a criança. — Para acalmá-la, procurei falar o mais friamente possível. — O Grande Rei me mandou para conseguir notícias sobre seu filho. Você sabe que não posso procurar a rainha pessoalmente, por isso fiquei esperando uma oportunidade. O que aconteceu no castelo? Lind, porém, não conseguia falar. Continuava agarrada a mim, soluçando em desespero. Fui mais delicado.

— Seja o que for que aconteceu, Lind, não posso ajudá-la se não souber de nada. Venha mais para perto do fogo, recomponha-se e depois fale. Todavia, quando tentei puxar minha capa de suas mãos, ela se agarrou ainda mais. Os soluços eram violentos. — Não me obrigue a ficar aqui, meu senhor! Deixe-me ir ou então me ajude! O senhor tem o poder... é homem de confiança de Artur... não tem medo de minha ama... — Eu a ajudarei se você me contar o que está acontecendo. Quero notícias sobre o filho do rei Artur. Foi Lot quem chegou agora há pouco? — Sim. Sim! Faz uma hora, mais ou menos. Ele é louco, louco! E ela não fez nada para impedilo. Ficou ali, rindo, sem levantar um dedo e deixou... — Deixou o que? — Deixou o rei matar o bebê! — Ele matou a criança que Morgause colocou no castelo? Lind estava aflita demais para captar a estranheza da pergunta. — Sim, sim! — Ela engoliu em seco, com grande dificuldade. — E era filho dele, seu próprio filho. Eu assisti o parto e juro pelos meus deuses lares! Foi... — Que história é essa? — A pergunta veio de Ulfin, ainda vigiando a porta. — Lind! — Abaixei-me, obriguei-a a ficar em pé e a amparei para não cair. — Não temos tempo para quebra-cabeças. Fale! Conte-me tudo o que aconteceu. Ela mordeu as costas das mão numa tentativa de se controlar e depois de alguns instantes conseguiu falar com relativa clareza. — Quando o rei Lot chegou, estava furioso. Sabíamos que ele viria bravo, mas nunca imaginamos... Ouviu os boatos comentando que o Grande Rei tinha se deitado com ela. O senhor sabe, estava lá... O rei Lot atirou-se como um maluco sobre a rainha, sacudiu-a pelos ombros, chamando-a de prostituta, adúltera... Nós todas, as damas de companhia, estávamos lá, mas ele não se importou. Se ela... se ela tivesse falado com jeito com o rei, mentido até... — Lind engoliu um outro soluço. — Imaginávamos que ia fazer isso... Ela poderia tê-lo acalmado. O rei nunca conseguiu resistir a ela. Teria acreditado... Mas só ficou rindo na cara dele, dizendo: "Mas você não vê que ele é a sua cara? Você acha mesmo que um garoto como Artur poderia gerar um filho assim tão forte?" O rei berrou: "Então é verdade? Você se deitou com ele?" Ela riu de novo e continuou: "E por que não faria isso? Você não queria se casar comigo. Preferia a melosa da Morgan em vez de mim". — Lind enxugou as faces. — Isso deixou o rei ainda mais furioso. — Ela estremeceu. — Se tivesse visto como ele estava, até o senhor sentiria medo. — Sem dúvida. E Morgause? — Ela não mostrou medo. Continuou parada ali, na frente dele, sorrindo. Parecia querer levá-lo à loucura. — Claro. Continue, Lind, rápido! A mocinha agora estava bem mais controlada. Eu a soltei devagar. Ela conseguiu ficar em pé, embora ainda tremesse muito, com os braços cruzados sobre o peito como fazem as mulheres quando estão desesperadas.

— Ele arrancou o dossel do berço. O bebê começou a chorar. "Minha cara?", gritou. "Só porque é moreno? Ora, o moleque Pendragon é tão moreno como eu!" Depois o rei virou-se para nós e ordenou que saíssemos dali. Corremos como ratos assustados. O rei parecia um cachorro doido, um lobo! As outras mulheres logo estavam no corredor, mas eu me escondi atrás de uma das cortinas da antecâmara. Pensei... pensei... — Pensou o quê, vamos! Lind balançou a cabeça e as lágrimas cintilaram à luz do fogo. — Foi então que ele... O bebê parou de chorar. Ouvi um barulho como se o berço tivesse tombado. A rainha continuou a falar com a maior calma... não sei como pôde... "Você deveria ter acreditado em mim. Essa criança era mesmo seu filho. Nasceu de uma dessas vadias da cidade com que você andou se deitando. Eu lhe disse que havia uma grande semelhança." Ela soltou uma gargalhada. O rei não falou por algum tempo. Eu podia ouvir sua respiração ofegante. Depois ele disse: "Cabelos escuros, pele morena. Uma criança nascida da vadia de Artur teria os mesmos traços! Então onde está ele, o bastardo?" "Era uma criança doentia. Ele morreu." O rei não acreditou: "Você continua mentindo!" Então a rainha disse bem devagar: "Sim, estou mentindo. Mandei a parteira levá-lo embora e me encontrar um filho digno de ser apresentado a você. Talvez eu tenha errado, mas fiz isso para salvar meu nome e sua honra. Eu odiei a criança desde que soube que engravidara. Como poderia querer dar à luz o filho de um outro homem? Tive esperanças de que seria seu filho, não dele, mas era dele mesmo. E verdade que nasceu doentio. Esperamos que a essa altura já esteja morto". O rei então falou: "Temos de fazer mais do que esperar. Precisamos ter absoluta certeza". Desta vez foi Ulfin que incentivou Lind a continuar. — E então, o que aconteceu depois? — A rainha esperou por um momento e depois... — A mocinha suspirou, trêmula. — Ela falou de um jeito... parecia estar brincando, como uma namorada desafiando um namorado a fazer uma coisa perigosa. "E como pretende fazer isso, rei de Lothian, se não for mandando matar todos os que nasceram nesta cidade por volta do primeiro de maio? Já lhe disse que não sei para onde levaram o filho de Artur." O rei nem parou para pensar. Ele continuava ofegante como se estivesse correndo. "Então é exatamente isso que eu vou fazer! Sim, meninos e meninas. De outro modo, como saberei a verdade sobre essa maldita criança?" — Lind respirou fundo por um instante de continuou. — Eu devia ter fugido da antecâmara naquele instante, mas não consegui. Era como se estivesse paralisada. A rainha começou a dizer alguma coisa sobre o que o povo diria, mas o rei Lot a empurrou para o lado e veio até a porta do corredor para gritar pelos seus comandantes. Eles vieram correndo e o rei continuou falando aos gritos, dando a ordem... todos os bebês da cidade... Nem me lembro do que os homens disseram. Estava fazendo força para não desmaiar, porque se eu caísse no chão eles me veriam. Mas ouvi a rainha dizer alguma coisa com voz chorosa, algo sobre ordens do Grande Rei, e como ele não tolerava os boatos que estavam correndo desde Luguvallium. Depois os soldados saíram e percebi que a rainha não estava chorando, senhor Merlin, mas rindo de novo e agradando o rei. Pelo jeito que falava com ele, qualquer um pensaria que estivesse congratulando-o por um grande feito. Ele também começou a rir e falou: "Sim, que falem mal de Artur e não de mim. Isso denegrirá seu nome muito mais do que qualquer coisa que eu poderia inventar". Então os dois voltaram para o quarto e fecharam a porta. Ouvi a rainha me chamar, mas fugi. Ela é má, má! Sempre tive ódio dela, mas morro me medo porque ela é bruxa. E fiquei ali ouvindo, sem fazer nada para impedi-los... — Ninguém lhe culpará pelo que sua senhora fez, Lind — consolei-a. — Mas mesmo assim agora você pode se redimir. Leve-me para onde o filho do Grande Rei está escondido.

A mocinha estremeceu e lançou um olhar aflito sobre o ombro, como se estivesse para fugir. — Vamos, Lind, por que ter medo de mim? Você veio correndo do castelo para protegê-lo, não é? Mas não há muito que possa fazer sozinha. Não conseguirá nem se proteger. Mas, se estiver disposta a me ajudar, eu a protegerei. Você sabe que vai precisar disso. Ouça! Acima de nós, os portões principais do castelo se abriram com um estrondo. Através da vegetação podíamos ver o movimento de tochas, avançando para a ponte principal. Com elas vieram o clamor de armas, barulho de patas e gritos de ordem. — Eles já saíram — disse Ulfin urgentemente. — É tarde demais. — Não! — gritou Lind. — A casa de Masha fica no outro lado do rochedo. Eles irão lá por último! Eu lhe mostrarei, meu senhor. Por aqui! Sem outra palavra Lind correu para a porta e eu e Ulfin a seguimos no mesmo ritmo. Subimos por onde viéramos, atravessamos um espaço aberto, descemos uma outra viela íngreme que traçava um caminho tortuoso até o rio e dali um trecho pantanoso, onde nada mais se movia, exceto ratos assustados. Estava muito escuro por ali e tínhamos que andar devagar, embora o horror do que iria acontecer bufasse em nossas nucas como um cão farejador. Bem atrás de nós, no outro lado da cidade, começaram a vir os sons. Os primeiros foram os latidos de cachorros. Depois gritos dos soldados, relinchos dos cavalos. Portas batendo, mulheres gritando, homens berrando e de tanto em tanto o entrechocar de lâminas. Já estive em muitas cidades saqueadas, mas aquele barulho era bem diferente. — Aqui! — gritou Lind, se esforçando para recuperar o fôlego e entrando numa outra trilha tortuosa que saía da margem do rio. Os ruídos que vinham do outro lado da cidade continuavam a sujar a noite. Atingirmos uma viela escorregadia, subimos uma escada e entramos numa rua estreita. Ali tudo continuava em silêncio, mas já víamos algumas luzes nas casas onde os moradores estavam acordando assustados com o barulho inusitado. Passamos correndo pela rua e no final nos vimos na relva de um campo onde estava amarrado um burrico. Atravessamos um pomar, um barracão aberto de ferreiro e nos vimos perto de uma casinha bem tratada, cercada por espinheiros podados e com um jardim onde havia um pombal e uma casinha de cachorro. A porta estava aberta, ainda balançando nas dobradiças. O cão, preso numa corrente, rosnava e saltava como um louco. As pombas voavam à nossa volta. Não havia nem luz nem barulho na casa. Lind atravessou correndo o jardim e entrou na escuridão. — Macha? Macha? Havia um lampião numa prateleira perto da porta. Não havia tempo para procurar por uma pederneira. Afastei Lind para o lado com um gesto delicado. — Leve-a para fora — ordenei a Ulfin e, enquanto ele me obedecia, peguei o lampião e balanceio bem alto. A chama surgiu no pavio, forte e luminosa. Ouvi Lind reter o ar num suspiro de susto. A luz brilhante mostrou-nos todos os cantos do chalé: a cama contra a parede, a mesa e o banco pesados; as panelas e louça; o banquinho, com a roca ao lado; a lareira limpa e o chão de pedra bem lavado, exceto no lugar onde o corpo esparramado da mulher jazia sobre o sangue que vertera de sua garganta cortada. O berço junto à cama estava vazio. Lind e Ulfin esperavam junto ao pomar. A moça agora estava calada, chocada demais até para

chorar; à luz do lampião, seu rosto mostrava-se doentio, pálido como cera. Ulfin, que a amparava, também estava pálido. O cão choramingou uma vez, sentou-se e então soltou um grande uivo que ecoou, abafando os sons assustadores que vinham das ruas mais próximas. Fechei a porta da casa e me dirigi para junto dos dois. — Lamento, Lind, não há nada que possamos fazer. Devemos sair daqui sem perda de tempo. Você conhece a taverna que fica perto do portão sul? Quer nos levar até lá evitando o centro da cidade? Procure controlar seu medo. Já disse que vou protegê-la e por enquanto o melhor para você é ficar conosco. Vamos. Ela não se mexeu. — Eles levaram o bebê! Pegaram o bebê e mataram Macha! —Virou-se para mim com os olhos arregalados. — Por que mataram Macha? O rei jamais ordenaria uma coisa dessas. Ela era sua preferida! — Sim, por que teriam feito isso? — Depois, num gesto urgente, sacudi seu ombro para despertála do choque. — Agora venha, menina, não podemos ficar aqui. Os homens não voltarão, mas enquanto estiver nas ruas você corre perigo. Leve-nos ao portão sul. — Foi ela! Ela quem contou onde o bebê estava! — gritou Lind, como se não tivesse me ouvido. — Vieram aqui primeiro. Demorei demais. Se vocês não tivessem me parado na ponte... — Você estaria morta também — completou Ulfin. Seu tom de voz era perfeitamente normal, como se os terrores da noite não o tivessem afetado. — O que poderia fazer? O que Macha pôde fazer? Eles ã teriam matado antes de entrar no jardim. Agora faça o que meu senhor mandou. Por acaso está pensando em ir procurar a rainha e contar o que aconteceu aqui? Pode ter certeza de que Morgause já sabe para onde você veio. Logo estarão a sua procura. Foi brutal mas funcionou. Ao ouvir o nome de Morgause, Lind recobrou a compostura. Lançou um último olhar de pavor para a casa e depois cobriu a cabeça com o capuz e entrou no pomar. Antes de segui-la, eu fui até o cachorro e coloquei a mão em sua cabeça. Os uivos de tristeza pararam mas ele ainda tremia muito. Tirei meu punhal da cinta e cortei a corda que o prendia à casinha. Ele não se mexeu e eu deixei-o ali. Um bom número de crianças foi levado naquela noite. Alguém, talvez uma parteira, deve ter informado os soldados sobre onde deveriam procurar. Quando voltamos à taverna depois de um longo trajeto pela periferia da cidade, o horror havia terminado e não se viam mais soldados. Ninguém se aproximou de nós ou pareceu nos notar. As pessoas andavam de um lado para outro, sem rumo ou espiavam apavoradas pelas frestas das portas. Avistamos vários grupinhos em torno de uma mulher em prantos ou de um homem que reclamava, indignado. Gente pobre incapaz de ir contra os desejos de seu rei. A fúria real varrera a cidade, deixando para eles apenas a dor. Ouvi os xingamentos e o nome de Lot; afinal tinham sido seus soldados. Mas junto com o nome de Lot veio o de Artur. A mentira já estava funcionando e, com o tempo, era fácil adivinhar, ela suplantaria a verdade. Artur era o Grande Rei e a principal fonte de todo bem e todo mal. O povo, porém, fora poupado de uma coisa; não houvera holocausto de sangue. A morte de Macha fora a única. Os soldados tinham tirado os bebês de seus berços e os levado para a escuridão. Um ou outro pai que tentara resistir estava machucado, mas de um modo geral não existira grande violência. Foi o que Beltane me contou, ofegante. Nós o encontramos na porta da taverna, completamente

vestido e tremendo de agitação. Ele nem mesmo notou a presença de Lind. Pegou-me pelo braço e relatou os acontecimentos da noite numa torrente de palavras e exclamações. O que captei de mais importante foi que os soldados não tinham levado as crianças para muito longe. — Ainda vivas e chorando! O senhor pode imaginar, mestre Emrys? — O velho torcia as mãos, lamentando. — Terrível, terrível, são tempos selvagens, sem dúvida. Toda essa conversa sobre ordens do rei Artur. Quem acreditaria numa coisa dessas? Mas é melhor ninguém abrir a boca. Bico calado. Quanto mais cedo pegarmos a estrada, melhor. Aqui não é lugar para comerciantes honestos. Por mim eu já estaria longe daqui, mas fiquei esperando pelo senhor. Imaginei que poderia ter sido chamado para ajudar porque me disseram que há homens feridos. Eles vão afogar as crianças, sabe? Pelos deuses! E pensar que hoje mesmo eu... Ah, Casso, bom rapaz. Mestre Emrys, tomei a liberdade de mandar selar seus animais. Tinha certeza de que concordaria comigo. Devemos partir imediatamente. Já paguei o taverneiro e depois o senhor acertará comigo... A propósito, o senhor verá que agora nós também temos mulas. Fazia muito tempo que eu queria comprar e hoje, com o que me pagaram no castelo... Que horror! Que horror! Uma dama tão bonita, quem poderia pensar... Mas é melhor parar. As paredes têm ouvidos e estes são tempo terríveis. Quem é esse? — Beltane estreitava os olhos para Lind, que estava agarrada ao braço de Ulfin, a ponto de desmaiar. — Ora, será... não é a jovem donzela... — Mais tarde — falei rapidamente. — Sem perguntas, por enquanto. Ela virá conosco. Enquanto isso, mestre Beltane, eu lhe agradeço. O senhor foi um bom amigo. Sim, devemos partir sem demora. A moça ficará na mula da bagagem. Ulfin, você disse que fez amizade com um dos guardas do portão. Vá na frente e dê um jeito para passarmos por eles sem problemas. Descubra para onde foram os soldados. — Estendi-lhe um saquinho de moedas. — Suborne-os, se for necessário. Mas não houve necessidade disso. Os portões estavam sendo fechados quando chegamos lá, mas os guardas não fizeram menção de impedir nossa passagem. De fato, pela conversa em voz baixa que pudemos captar, eles estavam tão chocados como o resto da população e pareceram achar bem normal comerciantes pacíficos juntarem suas coisas apressadamente e deixarem a cidade no meio da noite. Quando já estávamos afastados da casa da guarda, puxei as rédeas da mula. — Mestre Beltane, tenho de cuidar de um negócio. Não, não vou voltar à cidade, não se preocupe. Logo mais estarei com vocês. Vá para a estalagem onde nos hospedamos antes de virmos para cá. Lembra-se dela? Aquela com as giestas na frente. Espere por nós lá. Lind, você ficará em segurança com esses homens. Não tenha medo, mas é melhor ficar de boca fechada até eu voltar. Entendeu? — Ela fez que sim, ainda meio entorpecida. — Então, mestre Beltane, nos encontramos na Giesta Florida? — Claro, claro. Para falar a verdade, não estou entendendo nada, mas amanhã... — Amanhã, espero, tudo será esclarecido. Por enquanto, boa noite. Eles começaram a se afastar. Puxei com força as rédeas de minha mula. — Ulfin? — Eles pegaram a estrada leste, meu senhor. E foi para lá que nos dirigimos. Usando mulas não seria normal esperar que alcançaríamos a tropa montada, mas nossos animais estavam descansados enquanto os dos soldados provavelmente seriam os mesmos que os tinham trazido dos campos de batalha no sul. Portanto, quando depois de meia hora de cavalgada continuamos sem vê-los ou ouvi-los, eu freei

minha mula e virei-me na sela. — Ulfin. Quero falar com você. Ele aproximou-se de mim. Na escuridão ventosa eu não podia ver seu rosto, mas algo emanou dele que pude sentir claramente. Estava com medo. Ele não demonstrara medo antes, nem mesmo na casa de Macha. E ali onde estávamos só podia haver uma única fonte de temor: eu mesmo. — Por que mentiu para mim? — Meu senhor... — Os soldados não vieram por aqui. Ouvi-o engolir em seco. — Não, meu senhor. — Então, que caminho eles tomaram? — Para o mar. Creio... disseram que iam pôr as crianças num barco e deixá-lo à deriva. O rei falou que assim as colocaria nas mãos de Deus para que os inocentes... — Que besteira é essa? Lot falar em mão de Deus? Na verdade receou o que o povo poderia fazer se visse os bebês de garganta cortada! Sem dúvida mandou espalhar que Artur ordenou o massacre, mas ele procurou abrandar a sentença, dando uma oportunidade de vida aos bebês. A praia, então. Onde? — Não sei, meu senhor. — Você está falando a verdade? — Sim, juro. Existem vários caminhos e ninguém soube dizer ao certo. — Entendo. Se alguém ficasse sabendo, os pais talvez pensassem em segui-los. Portanto vamos voltar e pegar a primeira trilha que leva para a praia. Andaremos ao longo dela procurando pelos soldados. Venha. Mas quando eu virava a cabeça da mula, a mão de Ulfin fechou-se em torno das rédeas. Era um gesto que ele jamais se atreveria a fazer se não fosse por desespero. — Meu senhor, perdoe-me. O que está tentando fazer? Depois de tudo o que aconteceu... ainda está pensando em encontrar a criança? — O que você está dizendo? É o filho de Artur! — Mas o próprio Artur quer vê-lo morto! Então era isso. Eu devia ter adivinhado há muito tempo. A mula começou a querer corcovear por causa das rédeas puxadas. — Quer dizer então que você estava ouvindo em Caerleon. Escutou o que Artur me disse naquela noite. — Sim. — Desta vez mal consegui ouvi-lo. — Recusar-se a assassinar uma criança, meu senhor, é mais do que compreensível. Mas quando alguém comete o assassinato por nós... — Não há necessidade de tentar impedi-lo? Talvez não. Mas como você estava bisbilhotando naquela noite, deve ter ouvido também eu dizer ao rei que respondo a uma autoridade acima dele. Até agora meus deuses não me disseram ou mostraram nada. Você imagina que desejariam que imitássemos Lot e sua rainha cadela? Além disso, você ouviu a calúnia que está caindo sobre Artur. Pela sua honra ou mesmo pela sua paz de espírito, ele tem de saber a verdade. Por isso estou aqui, para observar e relatar. Farei o que for necessário. Agora largue minhas rédeas.

Ulfin obedeceu e esporeei a mula para entrar num galope. Voltamos apressados pela estrada. Era o caminho que tínhamos percorrido ao chegar a Dunpeldyr. Tentei me recordar do que vira no litoral. Uma região de altos penhascos com pequenas praias em meia-lua entre eles. Um grande promontório rochoso entrava mar adentro a uma certa distância da cidade. Não conseguiríamos dar a volta nele, mas com certeza haveria uma trilha que nos levaria para a praia no outro lado. Dali, poderíamos acompanhar a costa até a embocadura do Tyne. Muito devagar, mas perceptivelmente, a noite estava se transformando em madrugada. Tornou-se possível vermos melhor o caminho. O grande promontório estava à nossa direita e depois dele havia a praia arenosa e cinzenta. Fizemos os animais galoparem pela trilha que levava a ela. A maré estava baixa e a areia dura e molhada, facilitando nosso avanço. Avistamos o farol que fica numa massa de grandes pedras, com seu fogo ainda brilhando vermelho. Calculei que logo veríamos o enorme rochedo com o castelo no alto e a parte plana onde o rio se encontra com o mar. Demos a volta em um pequeno cabo, as mulas escolhendo caminho por entre as pedras batidas por pequenas ondas. Agora podíamos ver Dunpeldyr ao longe e muitas luzes brilhantes. A nossa frente estava a última praia antes da cidade. As árvores marcavam o curso do rio e o ponto onde suas águas se alargavam para encontrar o mar. E, na estrada que acompanhava a margem do Tyne, saltitavam as tochas dos homens que voltavam à cidade num trote tranqüilo. A missão estava terminada. Freei minha mula. Ulfin parou logo atrás de mim, ofegante. Depois de algum tempo eu falei: — Parece que seu desejo foi atendido. — Meu senhor, me perdoe. Só pensei... — O que tenho a perdoar? Como posso repreendê-lo por querer servir a seu amo em primeiro lugar? — Eu devia ter pensado que o senhor sabia o que estava fazendo. — Quando eu mesmo não sabia... você foi mais sábio do que eu, Ulfin. Pelo menos, como tudo está feito e Artur sem dúvida levará parte da culpa, podemos ser perdoados por desejarmos que o filho de Morgause tenha morrido com o resto. — Como qualquer um deles conseguiria escapar? Olhe, meu senhor. Virei-me para onde ele apontava. Já em alto-mar, além de um pequeno cabo rochoso no final da baía de Dunpeldyr, o crescente de uma vela podia ser visto na luz fraca do início da madrugada. O vento soprando constante para o mar, levava o barco para fora com a velocidade de uma gaivota. Os inocentes jaziam ali, ao sabor do vento e das ondas, enquanto o barco subia e descia, levando sua triste carga para bem longe da praia. A vela se desfez no cinzento do horizonte. O mar suspirava e murmurava sob o vento forte. Acima dos sons da praia ouvi um lamento agudo que foi diminuindo enquanto o escutávamos. Mas de repente ele voltou forte, bem sobre nós, como se alguma alma, já deixando o barco condenado, estivesse voltando para a terra. Ulfin estremeceu como se tivesse visto um fantasma e eu fiz o sinal contra o mal, mas era só uma gaivota planando na corrente de vento. Ulfin não disse nada e eu fiquei em silêncio. Havia alguma coisa naquela madrugada escura, algo que pesava sobre mim, me fazendo sofrer. Não apenas pelo destino das crianças e com toda certeza não por causa da morte do filho de Artur, mas a visão da vela desaparecendo no mar cinzento e os sons tristonhos que vinham da escuridão encontraram um eco no mais profundo de minha alma.

Continuei ali parado até o vento diminuir e as ondas virem lamber a praia e o lamento dolorido da gaivota morrer no mar.

Livro 2 – CAMELOT

1 Por mais que desejasse fazê-lo, não pude partir imediatamente de Dunpeldyr. Artur continuava em Linnuis e esperava meu relatório, não apenas sobre o massacre, mas sobre o que acontecera depois. Penso que Ulfin imaginava que seria dispensado mas, como achei mais seguro não me hospedar na cidade, fiquei no Giesta Florida e mantive-o a meu lado para agir como mensageiro e repositório de informações. Beltane, que ficara extremamente abalado com os acontecimentos da noite de terror, quis voltar logo para o sul. Mantive minha promessa a Casso, apesar de ela ter sido feita num impulso, mas há muito descobri que impulsos desse tipo têm uma fonte comum que não deve ser contrariada. Portanto, conversei com Beltane e o convenci, até com facilidade, das vantagens de ter um criado que soubesse ler e escrever. Deixei claro também que eu estava passando Casso para ele por muito menos do que me custara com a condição de ver meu desejo atendido. O bom homem concordou comigo e prometeu que ele mesmo ensinaria o rapaz. Feito isso os dois se despediram de nós e tomaram rumo sul, dirigindo-se a York. Lind foi com eles, pois conhecia um homem em York que poderia protegê-la. Era um pequeno comerciante, um sujeito respeitável que falara em casamento, mas a quem ela rejeitara por medo de Morgause. Quando os vi desaparecer na estrada, sentei-me para esperar o que os dias seguintes iriam trazer. Cerca de dois ou três dias depois da volta de Lot, os restos do barco dos bebês começaram a dar na praia e com eles os corpos. Estava claro que o barco batera numa pedra em algum lugar e fora quebrado pela maré. As pobres mulheres que desciam para a praia entravam em lúgubres discussões sobre que criança seria filho de quem. Vagavam pela areia, chorando muito e falando pouco, acostumadas como estavam a receber sem perguntas, como animais, o que seus senhores lhe davam, fossem esmolas ou golpes. Ficou claro para mim, sentado nas sombras da cervejaria e ouvindo, que, apesar da história sobre a responsabilidade de Artur no massacre, a maioria dos cidadãos atribuía a culpa às pessoas certas, Morgause e Lot, que se deixara levar pela fúria ao descobrir que fora traído. E, como os homens são homens em todos os lugares, estes logo começaram a mostrar a tendência de não acusar demais seu rei pelo violento ataque de cólera. Afinal, qualquer sujeito perderia a cabeça numa situação parecida. Voltar para casa e descobrir que a mulher dera à luz o filho de um outro homem seria mais do que motivo para justificar uma reação terrível. Quanto ao morticínio, bem, um soberano é um soberano, e tem de pensar primeiro em seu trono. E, falando de reis, Lot agira com sabedoria e recompensara regiamente os pais enlutados. Por mais que as mulheres ainda fossem lamentar a perda de seus filhos, os varões aceitaram o ato do rei e a peça de ouro que viera depois como uma atitude plausível para um homem que tivera de lavar sua honra com sangue. E Artur? Fiz a pergunta numa noite em que eu conversava com um grupinho: se os boatos que tinham surgido fossem verdadeiros e o Grande Rei estava mesmo envolvido no massacre, por que não tentar compreender sua atitude? Ora, se o menino Mordred era de fato seu bastardo, nascido de sua meia irmã, seria praticamente um refém ao ser criado por Lot, que jamais fora um amigo fiel, e nesse caso poder-se-ia dizer que a política justificava o ato. Por outro lado, que outra maneira melhor de manter a amizade e a aliança com o rei de Lothian, senão mandando matar o intruso em seu castelo e assumir a responsabilidade pelo feito? Depois dessa pergunta houve murmúrios e acenos negativos, que finalmente se fundiram num tipo de concordância. Então apresentei um outro tópico. Todos sabiam que em assunto de política, a política alta e secreta relacionada com um reino tão importante como Lothian, as decisões sobre questões civis não eram tomadas pelo jovem Artur e ficavam a cargo do seu principal conselheiro,

Merlin. Ora, o que acontecera só podia ter sido ordenado por uma mente cruel e tortuosa, e não por um valente e jovem soldado que passava a maior parte de seus dias lutando contra os inimigos da Bretanha e que pouco tempo tinha para política de dormitório, como se costumava dizer... Assim, como uma semente de grama, a idéia foi plantada e, tão rapidamente como a grama, ela se expandiu e cresceu; assim, quando chegaram as notícias sobre mais uma vitória de Artur, o massacre já estava se tornando coisa do passado e o culpado por ele, fosse Lot, Merlin ou o Grande Rei, quase perdoado. Ficou claro que Artur tivera pouco a ver com ele senão entender sua necessidade. Além disso, a maioria daqueles bebês teria morrido na mais tenra infância de uma doença ou outra, e isso sem resultar numa recompensa em ouro para os pais. Quando às mulheres, elas logo estariam grávidas de novo e acabariam esquecendo suas lágrimas. A rainha inclusive. O rei Lot agora era elogiado por ter assumido uma atitude verdadeiramente real. Voltara à sua casa enfurecido, livrara-se do bastardo (por ordem de Artur ou sua), plantara a semente para o nascimento de um príncipe herdeiro com seu sangue e depois partira de novo, sem que sua lealdade para com o Grande Rei ficasse diminuída. Morgause, longe de parecer amedrontada com a violência do marido ou apreensiva com a reação do povo, deu-me a impressão, pelo menos nas duas ou três vezes em que a vi saindo a cavalo do castelo, de estar muito satisfeita consigo mesma. Mesmo que seus súditos acreditassem que tinha uma parcela de culpa no massacre, ela agora estava protegida dos falatórios porque carregava em seu ventre o verdadeiro herdeiro do reino. Se Morgause lamentava a perda do filho, não dava sinal disso, o que provava, segundo diziam, que fora mesmo seduzida por Artur e jamais desejara o bastardo que se vira obrigada a carregar no ventre. Mas, para mim, esperando e observando anonimamente, essa atitude começou a significar algo bem diferente. Eu não acreditava que o menino Mordred fora levado para o barco dos inocentes e me lembrava bem dos três homens armados, fingindo estar bêbados, que haviam retornado ao castelo pelo portão dos fundos um pouco antes da volta de Lot e depois da chegada do mensageiro de Morgause, vindo do sul. E me recordava de Macha, com a garganta cortada, caída ao lado do berço vazio. E de Lind, que saíra correndo do castelo, sem ordem ou conhecimento de Morgause, para avisar Macha e levar Mordred para um lugar seguro. Juntando essas peças do quebra-cabeça, acreditei ter conseguido um bom quadro do que acontecera. Macha fora escolhida para criar Mordred porque tivera um bastardo de Lot, o que explicava a calma e satisfação de Morgause ao assistir à morte do menino. Sabendo que seu filho estava em segurança e tendo o outro menino pronto para ser sacrificado, ela esperara tranqüilamente pela volta do marido. Assim que fora avisada de que o rei se aproximava furioso, mandara seus guarda-costas levarem Mordred para um outro lugar e matarem Macha, que, se soubesse do acontecido com seu filho, talvez se visse tentada a trair a rainha. Mas agora a fúria de Lot fora aplacada, a cidade estava calma e em algum lugar, eu tinha certeza, a criança que era a arma de Morgause para conquistar o poder, crescia em segurança. Depois que Lot partiu para voltar a se juntar a Artur, mandei Ulfin para o sul, mas continuei em Lothian. Com o rei fora do caminho, voltei a morar no centro de Dunpeldyr e tentei de todas as maneiras descobrir alguma pista sobre o paradeiro de Mordred. Não sei o que faria se o tivesse encontrado, mas meu deus foi piedoso e não pôs esse fardo em minhas costas. Fiquei quatro meses naquela cidadezinha esquálida e, apesar de ter andando pela praia dia e noite, falando com meu deus em todas as línguas e de todas as maneiras que conhecia, não vi nada, nem com os olhos da mente nem em sonhos, que pudesse me orientar na procura do filho de Artur. Com o passar do tempo comecei a acreditar que talvez estivesse enganado e que Mordred se

afogara no mar escuro com os outros inocentes. Assim, finalmente, quando o outono começou a ser tocado pelas primeiras friagens do inverno e chegaram notícias de que a batalha em Linnuis terminara e Lot logo voltaria para casa, deixei Dunpeldyr com um suspiro de alívio. Artur chegaria a Caerleon para passar o Natal e com certeza procuraria por mim. Só fiz uma pausa em minha longa viagem: os três dias que passei com Blaise para lhe transmitir as novidades. Em seguida tomei rumo sul, para estar lá quando o Grande Rei voltasse. Ele chegou na segunda semana de dezembro, quando as geadas já tinham queimado a vegetação rasteira e crianças saíam para colher azevinho pensando nos enfeites de Natal. Mal terminou de se banhar e trocar de roupa mandou me chamar e me recebeu na mesma sala onde conversáramos antes de eu viajar. Dessa vez, contudo, vi a porta que dava para o quarto fechada e ficamos totalmente sós. Artur havia mudado bastante desde o Pentecostes. Estava bem mais alto — essa é a idade em que os jovens crescem rápido como trepadeiras — com ombros mais largos e o bronzeado típico da vida de soldado que vinha levando. Essa, porém, não era a verdadeira diferença que eu notava nele. O que me chamou a atenção foi a aura de autoridade, a atitude que demonstrava que agora ele sabia o que estava fazendo e para onde estava indo. Não fosse por isso, a conversa teria sido uma repetição daquela que eu tivera com o jovem Artur antes de partir para o norte. — Dizem que ordenei essa coisa abominável! — Artur mal se dera ao trabalho de me cumprimentar. Andava de um lado para o outro da sala como em nosso último encontro, com os mesmos movimentos fortes e flexíveis de um leão, mas os passos agora eram mais largos. — Você mesmo estava nesta sala quando eu disse não, deixe isso para o deus. E agora isto! — Mas era o que você queria, concorda? — Todas essas mortes? Não seja tolo! Acha que eu teria feito uma coisa dessas? Ou você? A pergunta não precisava de resposta. — Lot nunca se destacou pela sabedoria e controle, e, além disso, estava tomado de fúria. Podese dizer que o ato foi sugerido a ele ou que no mínimo alguém o incentivou. — Morgause? — Foi um olhar rápido e penetrante. — É o que eu penso, também. — Imagino que Ulfin já lhe contou tudo. Será que também lhe contou sobre a atitude que tomou nesse caso? — Que ele tentou enganá-lo para deixar o destino cuidar das crianças? Sim, contou. — Uma breve pausa. — Ulfin cometeu um erro e eu o censurei por isso, mas como pode alguém se irritar diante de um ato de devoção? Ele sabia que tudo ficaria mais fácil para mim sem essa criança. Mas os outros bebês... pouco tempo depois de eu ter jurado proteger meu povo... meu nome envolvido em boatos... — Não precisa se preocupar. Duvido que alguém realmente acredite que você foi o culpado. — Talvez, mas sempre existirão os que acreditam, e isso já é muito para mim. Lot teve uma desculpa, uma explicação que os homens comuns podem entender. Mas... e eu? Por acaso posso divulgar por todo o país e o continente que Merlin, o profeta, me avisou de que a criança poderia ser perigosa para mim, de modo que o mandei assassinar junto com muitos outros só por medo de vê-lo escapar da rede? Que tipo de rei isso me faz? Alguém da laia de Lot? — Só posso repetir que duvido que você seja acusado de responsável pelo que aconteceu. As

mulheres de Morgause estavam por perto e os comandantes viram bem de onde veio a ordem. E temos também a escolta de Lot... não posso imaginá-lo vindo do sul sem externar suas intenções e com certeza seus homens sabiam que ele estava voltando para lavar a honra. Não sei o que Ulfin lhe contou, mas quando deixei Dunpeldyr a maioria das pessoas estava acusando Lot de ter ordenado o massacre e os que ainda responsabilizavam o Grande Rei garantiam que você agiu assim aconselhado por mim. — O quê? — Agora Artur estava realmente bravo. — Por acaso sou o tipo de rei que não consegue decidir por si mesmo? Se existe uma possibilidade de a culpa ser dividida entre nós, exijo que caia apenas sobre mim. Você sabe disso. Lembra-se tão bem como eu do que lhe falei no dia de sua partida. Eu também não teria resposta para isso e me calei. Artur continuou andando de um lado para outro antes de prosseguir: — Seja quem for que tenha dado a ordem, saiba que me sinto culpado. E, por todos os deuses do céu e do inferno, eu jamais teria agido assim! Isso é o tipo de coisa que se carrega pela vida inteira e dura mais do que nós! Não serei lembrado como o rei que expulsou os saxões da Bretanha, mas como o homem que repetiu o massacre de Herodes na cidade de Dunpeldyr! — Artur subitamente parou de falar. — Por que esse sorrisinho? Onde está a graça? — Duvido que você precise se preocupar com o nome que deixará quando partir deste mundo. — É você que está dizendo, mas... — Foi o que eu disse. — A mudança de tempo do verbo ou algo em meu tom de voz o fez se interromper. Nossos olhares se encontraram e se mantiveram firmes. — Sim, eu, Merlin, disse isso. E falei quando tinha poder. E a verdade. Você está certo por ter se aborrecido tanto diante dessa abominação e também por assumir pelo menos parte da culpa. Mas, se o acontecido passar para a História como um ato seu, você será absolvido de culpa. Acredite-me, Artur. O que está por vir o absolverá de qualquer pecado. A raiva arrefecera e agora ele refletia. Falou vagarosamente: — Quer dizer que um perigo qualquer resultará do nascimento e morte do bastardo? Algo tão terrível que os homens saberão que o massacre foi justificado? — Não foi isso que eu quis dizer. Como... — Lembre-se, Merlin, você fez uma outra profecia. Insinuou... Não, me falou que o filho de Morgause poderia representar um perigo para mim. Pois agora a criança está morta. Seria esse o perigo? O acontecido atirará lama sobre meu nome? — Ele fez uma pausa com um ar chocado. — Será que talvez um dia um dos homens cujos filhos foram assassinados tentará se vingar de mim numa tocaia? Era esse o tipo de coisa que você tinha em mente? — Já lhe disse várias vezes que não vi nada de específico. E não falei que o filho de Morgause "poderia" representar um perigo. Falei que ele "seria" um perigo para você. E, se minhas palavras forem dignas de crédito, será um perigo direto e não uma arma na mão de outro homem. Agora Artur estava imóvel, mas mostrava a mesma tensão de antes. Franziu as sobrancelhas para mim, intrigado. — Está querendo dizer que o massacre não surtiu o efeito desejado? Que a criança... Mordred, não é? Que ele continua vivo? — Foi em que passei a acreditar. Artur fez um ar de espanto.

— Ele se salvou? — É possível. Ou foi salvo pelo acaso e está vivendo em algum lugar desconhecido, onde crescerá sem saber quem é, como aconteceu com você, Artur, e vocês talvez venham a se defrontar um dia, como Laio se encontrou com Édipo e foi morto por ele na ignorância da verdade... — Estou disposto a enfrentar o risco. Todos temos de morrer num dia ou no outro. Ou? — Ou ele jamais esteve naquele barco. Artur balançou a cabeça gravemente. — Morgause... sim. Seria bem possível. O que o faz pensar assim? Contei-lhe o pouco o que eu sabia e as conclusões que eu extraíra desse conhecimento. — Morgause devia saber com certeza que as reações de Lot seriam violentas e era de seu interesse manter a criança viva. Não iria se arriscar a ver seu filho morto pelo marido. Está claro que planejou tudo. Sabemos que impeliu Lot a chegar ao estado de fúria que o fez ordenar o massacre e sabemos também que foi ela que começou o boato de que você era o culpado. Então o que fez? Acalmou os temores de Lot e tornou segura sua própria posição. E creio, tanto por conhecê-la bem como pelas minhas observações, que também conseguiu... — Manter vivo o seu instrumento de poder. — A cor desaparecera das faces de Artur. Agora estava absolutamente frio, os olhos parecendo placas de ardósia molhadas pela chuva gelada. Esse era o Artur que outros homens costumavam ver, mas que eu não conhecia. Quantos saxões tinham enfrentado esse olhar antes de morrer? Ele continuou amargamente: — Acho que já paguei bastante por aquela noite de luxúria. Você devia ter deixado que eu a matasse. É melhor que ela nunca se apresente diante de mim, se não for de joelhos, me pedindo perdão. — O tom foi o de um voto sagrado e mudou logo em seguida. — Mas diga-me, quando foi que você voltou do norte? — Ontem. — Ontem! Mas eu pensei... Eu imaginava que essa abominação tinha acontecido há meses. — E é verdade. Fiquei para observar as reações aos acontecimentos. Depois comecei a tirar minhas conclusões e continuei lá para ver se Morgause faria algum movimento que poderia me mostrar onde a criança estava escondida. Por isso fui ficando até chegar a notícia que você deixara Linnuis e que Lot logo voltaria a Dunpeldyr. — Entendo. Você fez toda essa viagem e até agora eu o deixei em pé, sendo interrogado como se fosse um guarda surpreendido dormindo durante seu turno. Me perdoa por isso? — Não tenho nada a perdoar. Já descansei da viagem, mas agora eu gostaria mesmo de me sentar. Obrigado. Falei isso enquanto Artur puxava uma poltrona para mim e sentava-se do outro lado da grande mesa. — Merlin, em seus relatórios você não disse nada sobre essa idéia de Mordred ainda estar vivo. Ulfin nem mesmo mencionou essa possibilidade. — Não creio que ele tenha pensado nisso. Como lhe disse, só tirei essa conclusão bem depois da partida dele, depois de observar e pensar muito. Todavia, ainda não tenho prova de que estou certo e nada, senão a lembrança de uma antiga intuição, para me dizer se isso é ou não importante. Mas uma coisa posso lhe dizer: pelo tranqüilo contentamento que o profeta do rei vem sentindo em seus ossos ultimamente, afirmo que qualquer ameaça vinda de Mordred, quer direta ou indireta, só aparecerá daqui a muito tempo.

Artur lançou-me um olhar onde não existiam mais vestígios de raiva. — Quer dizer então que eu tenho tempo. — Sim. O que aconteceu foi ruim e você tinha o direito de estar indignado. Mas o fato está caindo no esquecimento e logo será apagado pelo fogo de suas vitórias. Portanto, esqueça de tudo agora e pense apenas no que está por vir. O tempo gasto com uma raiva do passado é tempo perdido. Finalmente a tensão desapareceu e voltei a ver o sorriso alegre que eu conhecia tão bem. — Eu sei, eu sei. Alguém que constrói, nunca que destrói. Quantas vezes você já me disse isso? Mas eu sou apenas um mortal. Tenho primeiro de quebrar para abrir espaço... Está certo, vou esquecer do que aconteceu. Existe muito a ser planejado e feito, e não posso desperdiçar tempo. De fato... — O sorriso tornou-se maior. — Ouvi dizer que o rei Lot está planejando mudar sua capital mais para o norte. Pode ser que, apesar de ter colocado a culpa em mim, ele esteja se sentindo pouco à vontade em Dunpeldyr. Pelo que me contaram, as ilhas Orkney são férteis e bastante agradáveis no verão, mas têm a tendência de ficar completamente isoladas no inverno. — Sim, a não ser que o mar venha a se congelar. — E isso — sorriu Artur com uma satisfação de garoto —, com toda a certeza é algo que está acima de todos os poderes que Morgause possa ter. Portanto, a distância nos ajudará a esquecermos de Lot e seus feitos... Artur mexeu nos documentos e placas que argila que tinha sobre a mesa. Eu pensava que deveria ter procurado Mordred com maior empenho. Se Lot tivesse contado a sua rainha seus planos de mudar a corte mais para o norte com bastante antecedência, era possível ela ter tomado providências para mandar o menino para lá. — Você sabe alguma coisa sobre sonhos, Merlin? A pergunta me pegou de surpresa. — Sonhos? Bem, eu já tive vários. — Sim, que pergunta mais tola. — Ele sorriu. — O que quis dizer foi: você é capaz de decifrar o sonho de uma outra pessoa? — Acho difícil. Quando os meus significam alguma coisa, vêm bem claros. Por quê? Seu sono tem sido perturbado? — Já faz várias noites. — Ele hesitou e continuou mexendo nas coisas sobre a mesa. — Parece algo muito trivial para representar problemas, mas o sonho é bem nítido e sempre o mesmo. — Conte-me. — Estou sempre sozinho e caçando. Nenhum cachorro, só eu e meu cavalo, acompanhando o rastro de um veado. Essa parte varia um pouco, mas sempre sei que a caçada está durando várias horas. Então, quando parece que estou para alcançar o veado ele salta para dentro de um bosque fechado e desaparece. Nesse mesmo instante meu cavalo cai morto e sou atirado à relva. Às vezes acordo aqui mas, quando volto a pegar no sono, ainda estou caído à beira de um riacho, com o cavalo morto a meu lado. Então subitamente ouço cães de caça se aproximando, muitos deles, e sento-me e fico olhando à volta. Bem, já tive esse sonho tantas vezes que, mesmo ainda sonhando, sei o que esperar e sinto medo... não é um bando de cães, mas um único animal. Uma fera estranha que não consigo descrever, embora já a tenha visto muitas vezes. Ele vem correndo, rompendo o mato rasteiro e os arbustos, e faz um barulho que parece o de cinqüenta perdigueiros latindo atrás da caça. Ele não liga para mim nem para o meu cavalo,-pára na margem do riacho, bebe água, e depois sai correndo, perdendo-se na

floresta. — Esse é o fim? — perguntei, vendo-o parar. — Não. O final varia também, mas sempre depois do animal surge um cavaleiro, sozinho e a pé, que me diz que ele também matou um cavalo em sua procura pela caça. Toda vez... toda noite que acontece o sonho, tento perguntar-lhe que animal é aquele e o que procura com tanto empenho mas, quando ele está para me contar, meu escudeiro chega com um outro cavalo para mim e o cavaleiro se apodera dele sem nenhum gesto de cortesia, monta e se prepara para se afastar. Nesse instante seguro suas rédeas para impedi-lo, suplicando-lhe para que me deixe empreender a busca, "porque sou o Grande Rei e sou eu quem devo me arriscar em qualquer empreitada que represente perigo". Mas ele afasta minha mão com um gesto brusco, dizendo: "Mais tarde. Mais tarde, quando você precisar, poderá me encontrar aqui e então responderei pelo que fiz". E ele sai galopando, me deixando sozinho na floresta. Quando acordo, ainda tenho uma sensação de temor. Merlin, o que acha que isso significa? Balancei a cabeça num gesto de negativa. — Não sei lhe dizer. Eu poderia ser leviano e dizer que trata-se de uma lição de humildade, que até mesmo o Grande Rei não tem de assumir toda a responsabilidade... — Quer dizer que devo deixá-lo arcar sozinho com a culpa pelo massacre? Isso nunca, Merlin! — Eu disse que essa seria uma interpretação leviana. Não tenho idéia do verdadeiro significado de seu sonho. Talvez não seja mais do que uma mistura de preocupação e indigestão. Mas uma coisa posso lhe dizer e é a mesma que vivo repetindo: sejam quais forem os perigos que surgirem a sua frente, você superará todos e atingirá a glória. E aconteça o que acontecer, seja o que você já fez, seja o que irá fazer, sua morte será venerada. Eu irei sumindo como a música quando a harpa pára de vibrar e os homens chamarão meu final de vergonhoso. Mas você viverá para sempre na imaginação e coração dos homens. Mas, meu rei e amigo, você ainda tem anos e anos pela frente. Portanto, agora conte-me o que aconteceu em Linnuis. Conversamos por um longo tempo sobre o assunto e no final Artur voltou ao futuro imediato. — Enquanto as estradas não se abrirem na primavera poderemos continuar com as obras em Caerleon. Você ficará aqui para cuidar delas. Quero que comece a obra de meu novo quartel-general. — Olhei para ele com uma certa surpresa. — Sim, já conversamos sobre isso antes. O que foi bom no tempo de Vortigern ou mesmo de Ambrosius não será suficiente daqui a um ou dois anos. O quadro no leste está se modificando. Venha ver no mapa... Esse comandante que você encontrou, Gereint, foi um verdadeiro achado. Já mandei buscá-lo porque é o tipo de pessoa que preciso ao meu lado. As informações que enviou a Linnuis foram de um valor incalculável. Ele lhe contou sobre Eosa e Cerdic? Estamos recebendo informações, mas tenho certeza de que a razão está com ele. A última novidade é que Eosa voltou para a Germânia e está prometendo o sol, a lua e as estrelas, além de um reino saxão estável para qualquer um que se disponha a segui-lo. Conversamos sobre as informações vindas de Gereint por algum tempo. — Ele também está certo sobre o vão dos Peninos. Começamos a trabalhar no passo assim que recebi seus relatórios... Creio que o novo ataque virá do norte. Estou esperando notícias de Caw e Urbgen, mas não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, será aqui, no sudoeste, que teremos a grande investida. Usando Rutupiae como base e ficando com os territórios, ou "reinos", como querem, na retaguarda, eles virão por aqui, aqui e aqui... — Artur indicava os locais no mapa em relevo. — Voltamos de Linnuis por aqui e pudemos fazer um bom reconhecimento do terreno. Já mandei corrigir essa área no mapa e logo o novo relevo ficará pronto. Você conhece essa região?

— Mais ou menos. Viajei por essa estrada, mas minha mente estava em outras coisas. — Não há pressa. Se pudermos começar em abril ou maio e desde que você faça seus milagres habituais... Pense num bom local para o novo quartel-general. Fará isso por mim? — Com todo o prazer. Como lhe disse, não conheço bem a região, mas enquanto você falava algo veio à minha mente. Existe um morro que comanda toda esta área... e, se estou bem lembrado, é plano no topo e grande o bastante para abrigar um exército, ama cidade, o que você quiser. Imagino que dali se pode ver a ilha de Vidro, Ynys Witrin, é o nome regional, e uma boa parte ia cadeia de sinalização que cobre o sudoeste. — Mostre-me onde é — disse Artur com urgência. — Em algum lugar por aqui — apontei. — Não tenho bem certeza e penso que o mapa está falho nesta parte. — O nome do morro? Não sei. É um monte e um rio circunda sua base. Se não estou enganado o rio chama-se Camel. Lembro-me de ter lido que existiu uma fortaleza nessa região antes da chegada dos romanos e talvez tenha sido nesse mesmo morro. — Então deve haver uma estrada que leve a ele. — Sim, talvez seja esta aqui, que circunda o lago onde fica a lha de Vidro. Continuamos apontando e conversando sobre o mapa. Quando criados apareceram para acender os lampiões e trazer o jantar, Artur endireitou-se, afastando os cabelos escuros da testa, e sorriu. — Bem, teremos de esperar até o fim das festas, mas vá para lá assim que puder, Merlin, e estude a região. Nem preciso dizer, você terá toda a ajuda de que precisar. E agora venha jantar comigo e eu lhe contarei tudo sobre a luta em Blackwater. Já contei esse caso tantas vezes que ele vem crescendo e às vezes nem eu o reconheço mais. Mas como você ainda não ouviu... — Prometo-lhe que acreditarei em cada palavra. Artur riu. — Sempre soube que eu podia confiar em você.

2 Soprava uma doce brisa no tranqüilo dia de primavera quando completei uma curva na estrada e avistei o morro chamado Camelot. Na verdade, só mais tarde ele ganhou esse nome. Na época era conhecido como Caer Camel devido ao nome do riacho que corria em preguiçosos meandros pelas terras planas ao redor antes de circundar o sopé do monte. Este tinha, como eu dissera a Artur, o topo achatado e, se não era muito alto, apresentava a vantagem de oferecer uma boa visão em todas as direções, e suas encostas eram íngremes o bastante para permitir uma formidável defesa. Enquanto eu estava em Caerleon, procurara me informar sobre a região e agora sabia por que os celtas, e os romanos depois deles, tinham-no escolhido para abrigar fortalezas. A vista para o leste é parcialmente obstruída por uma série de colinas, mas para o sul e o oeste tem-se uma visão clara até o horizonte. No lado noroeste o mar está a menos de quinze quilômetros e as marés se espalham e invadem o terreno pantanoso que alimenta o grande lago onde fica a ilha de Vidro. Essa ilha, na verdade um pequeno arquipélago, jaz sobre a superfície vítrea do lago como se fosse uma mulher em repouso e, de fato, desde tempos imemoriais ela é dedicada à Grande Deusa, cujo santuário fica perto do castelo do rei. A região em torno do lago, com suaves elevações que se destacam no terreno pantanoso, cheio de lagoas e diques, rico em flora e fauna, é conhecida como Summer Country, o país do verão. O rei do lugar era um jovem chamado Melwas, fiel partidário de Artur, que me hospedou em minhas primeiras vistorias de Caer Camel e sentia-se honrado em saber que o Grande Rei planejava construir sua principal fortaleza na borda de seus domínios. Mostrou-se profundamente interessado nos mapas que lhe mostrei e prometeu ajuda de todos os tipos, desde homens para trabalhar na construção até a organização de uma força de defesa para proteger o local durante as obras. O rei Melwas se oferecera para me mostrar pessoalmente o monte Camel, mas eu preferia fazer minha primeira vistoria sozinho e consegui dispensar cortesmente sua ajuda. Ele e seus jovens amigos fizeram a primeira parte do trajeto comigo e depois entraram numa trilha estreita que cortava o terreno pantanoso para se entregarem ao seu esporte predileto. O lugar é perfeito para a caça. Achei um bom presságio quando logo depois de me separar deles vi Melwas soltar seu falcão na direção de um bando de patos em migração vindo do sudeste e em poucos segundos a ave matar um deles e voltar para o punho de seu dono. Depois, com vivas e risadas o grupo de rapazes desapareceu por entre os salgueiros e eu continuei sozinho meu caminho. Estivera certo em supor que os romanos haviam construído uma estrada para servir sua fortaleza em Caer Camel. Ela circunda o lago e atinge uma faixa de terra seca e dura que se estende para o leste, onde se encontra com a antiga via Fosse, e mais à frente faz uma nova curva para o sul, indo para o vilarejo no sopé do monte. Originalmente, ali fora uma aldeia celta e posteriormente o vicus da fortaleza romana, cujos habitantes trabalhavam o solo e fugiam para trás das muralhas em ocasiões de perigo, mas agora havia muito pouco a ser visto enquanto eu cavalgava entre as cabanas com telhados de palha meio apodrecidos. Aqui e ali olhos me observavam por frestas de portas ou uma voz de mulher chamava por uma criança. As patas de meu cavalo se afundavam em lama e estéreo, mas por sorte logo tivemos de atravessar o rio com água pelos joelhos do animal e assim houve oportunidade para uma certa limpeza. Na outra margem comecei a subir por entre as árvores e logo estava numa curva íngreme da estrada obviamente feita para dar passagem para bigas e outros carros de guerra. Embora eu soubesse o que deveria esperar, fiquei abismado com o tamanho do topo do monte.

Atravessei as ruínas do portão sudoeste e me vi diante de um grande campo que na outra extremidade subia rapidamente formando um espinhaço, cujo pico mais alto ficava a oeste do centro, para onde me dirigi. O campo, na verdade um platô, estava salpicado de restos de edificações e cercado em todos os lados por fossos e ruínas de muralhas. Logo após essas obras externas, os lados do morro desciam íngremes, agora cobertos de árvores e arbustos espinhosos que em outras épocas eram podados para não ocultarem possíveis invasores. Avistei uma trilha no platô que levava para uma abertura na muralha norte e seguindo-a pude ver que a meio caminho da encosta havia uma fonte situada no meio de um bosque. Devia ser o poço da Senhora, dedicado à deusa. O outro manancial, o principal fornecedor de água para a fortaleza, ficava junto à estrada íngreme que levava ao portão nordeste, no canto oposto ao do caminho pelo qual eu subira. Tive a impressão de que os animais ainda bebiam nele e, enquanto eu olhava, um pequeno rebanho apareceu na abertura da muralha e espalhou-se vagarosamente para pastar ao sol, ao som de um leve tilintar de sinetas. O condutor dos animais surgiu por último, uma figura franzina, que de início imaginei ser um menino, mas que depois vi, pelo modo como se apoiava num cajado, que era um velho. Virei meu cavalo para lá e o fiz andar cuidadosamente por entre as pedras das ruínas das edificações. Havia uma enorme quantidade de boas pedras cortadas à maneira romana, que deviam ter vindo de uma pedreira próxima. O velho olhou na minha direção e parou, obviamente assustado. Ergui a mão num sinal de saudação de paz. O gesto ou o fato de eu estar sozinho e desarmado deve tê-lo tranqüilizado e ele sentou-se numa mureta, a minha espera. Quando me aproximei dele desmontei e deixei o cavalo pastar. — Saudações, meu pai. — Para você também. — Não foi mais do que um murmúrio, no sotaque arrastado da região. Ele examinou meu rosto com os olhos já toldados de catarata. — Você não é daqui. — Estou vindo do oeste. Percebi que a afirmação não fora suficiente para acalmar sua desconfiança. O povo da região tinha uma longa história de guerras. — Então por que saiu da estrada? O que quer aqui em cima? — Vim em nome do Grande Rei para verificar as condições das muralhas da fortaleza. — De novo? Enquanto eu o encarava, surpreso, o velho enfiou a ponta do cajado no chão, como reivindicando aquela parte do território, falou com uma voz trêmula de raiva: — Aqui era nossa terra antes do rei chegar e é nossa de novo apesar dele. Por que você não deixa tudo como está? — Não creio... — comecei, mas logo parei porque me ocorreu súbito pensamento. — Você falou de um rei. Que rei? — Não sei o nome dele. — É Melwas? Ou Artur? — Pode ser. Não sei, já lhe disse. O que você quer aqui? — Sou um conselheiro do rei. Vim em nome dele... — Já sei. Veio para reconstruir as muralhas e depois levar nosso gado, matar nossos filhos e estuprar nossas mulheres.

— Não! Para construir aqui uma fortaleza para proteger seu gado, crianças e mulheres. — Ela não serviu para protegê-los antes. Houve um silêncio. A mão do velho tremia segurando o cajado. Meu cavalo pastava delicadamente em torno de uma touceira de cardo, larga e redonda, parecendo uma roda. Uma borboleta pousou na crista cor de violeta de uma das flores. Uma cotovia cantou por perto. — Meu velho — falei mansamente — nunca existiu uma fortaleza aqui em sua vida, nem na vida de seus pais. Que rei veio amá-la? Ele olhou para mim por alguns instantes, a cabeça balançando com o tremor da idade. — É uma história, só uma história. Meu avô me contou como povo vivia aqui, com gado, cabras e cavalos pastando esta relva doce, e eles teciam suas roupas e aravam este campo até chegar o rei que os expulsou para o fundo do vale e houve uma única sepultura para todos naquele dia, larga como um rio e tão funda como a colina oca, onde puseram o corpo do rei que morreu logo depois. — Que colina era essa? Ynys Witrin? — O quê? Ora, por que iriam levá-lo para lá? Ela fica num lugar estrangeiro, que chamam de Summer Country, porque é coberto de um lençol de água que só seca no meio do verão. Não, eles entraram na caverna e o deixaram lá, e puseram junto os corpos dos que morreram afogados com ele. — O velho soltou uma risada desafinada. — Eles se afundaram no lago e o povo ficou olhando e não fez nenhum gesto para salvá-lo. Foi a deusa que o levou, junto com seus belos comandantes. Quem poderia impedi-la? Dizem que depois de três dias ela o devolveu, mas ele apareceu nu, sem espada nem coroa. — Outra risada. — Sim, sim. Por isso é melhor seu rei fazer logo as pazes com ela, não esqueça de lhe dizer isso. — Não esquecerei. Mas, diga-me, quando isso aconteceu? — Cem anos, duzentos anos. Como posso saber? Houve um outro silêncio, enquanto eu fazia meus cálculos. O que estava ouvindo era uma lembrança que viera passando de pai para filho à beira do fogo nos meses de inverno, mas confirmava plenamente as informações que eu coletara. O lugar sem dúvida fora uma fortaleza desde tempos imemoriais e o tal "rei" poderia ser qualquer um dos governantes celtas que acabara sendo derrotado nas primeiras investidas romanas ou talvez o próprio general romano que permanecera ali para cuidar do lugar. — Onde é a entrada da colina? — falei subitamente. — Que entrada? — A porta para a tumba do rei, o lugar onde abriram espaço para sepultá-lo. — Como vou saber? Fica lá, é tudo o que sei. E às vezes, no meio da noite, eles saem cavalgando de lá. Eu já os vi. Surgem com a lua de verão e voltam para a colina ao amanhecer. Mas, de vez em quando, em noites de tempestade, um deles é surpreendido pela chegada da madrugada, se atrasa e encontra o portão fechado. Então, até a lua seguinte fica condenado a vagar sozinho pelo morro, e... — O velho parou de falar e de novo me olhou atentamente. — Você disse que era um homem do rei? — perguntou, com uma nota de temor na voz. — Não tenha medo de mim, pai — acalmei-o, rindo. — Sou um homem do rei, sim, mas de um rei vivo, que virá reconstruir a fortaleza e protegerá você, seu gado, seus filhos e os filhos de seus filhos, contra o inimigo saxão que talvez venha do sul. Você continuará a ter relva doce para seus animais, eu

prometo. O velho não disse nada, mas ficou abanando a cabeça sob o sol por alguns instantes. Percebi que estava meio caduco. — Mas por que eu deveria ter medo? — falou um pouco depois. — Sempre houve um rei aqui e sempre haverá. Um rei não é novidade. — Mas este será. A atenção do' velho estava me abandonando. Ele estalou a língua para as vacas, chamando-as pelos nomes. — Ora, um rei? E vai cuidar do meu gado? Você acha que me engana com essa bobagem? A deusa, sim, cuida dos seus, por isso é melhor seu rei agradar a deusa... — Sua voz foi se transformando num resmungo que ele acompanhava com batidas do cajado. Dei-lhe uma moeda de prata, como se ele fosse um contador de histórias itinerante, depois montei no cavalo e tomei a direção do espinhaço que marcava o ponto mais alto do platô.

3 Alguns dias depois chegou o primeiro grupo de topógrafos para começar o trabalho de medição e locação, e o chefe da equipe ficou alojado comigo no barracão que fora construído no local da obra. Tremonius, o mestre engenheiro que me ensinara quase tudo sobre seu ofício quando eu era um rapazinho e morava no continente, morrera algum tempo antes e agora o engenheiro-chefe de Artur era Derwen, que eu ficara conhecendo por ocasião da reconstrução de Caerleon na época de Ambrosius. Devido a sua coloração, cabelos ruivos e faces coradas, dava a impressão de ter gênio forte, mas na verdade era contido e calado e podia ficar mais emburrado do que uma mula quando pressionado. Todavia eu conhecia sua competência e admirava nele o modo como conseguia fazer homens trabalharem com disposição e rapidez. Além disso, ele se esforçara para se tornar um mestre em todos os ofícios relacionados com a engenharia e não via nada de humilhante em arregaçar as mangas e participar do trabalho quando necessário para o cumprimento de prazos. Derwen não parecia se incomodar em obedecer minhas instruções e mostrava um respeito elogioso pelas minhas habilidades, mas isso não era devido a qualquer talento especial que eu demonstrara em Caerleon ou Segontium — obras construídas segundo o modelo romano, cujas diretrizes se mantinham desde séculos e eram bem conhecidas por todos os construtores — mas porque ele era um aprendiz na Irlanda quando movimentei a enorme pedra-rei de Killare para a reconstrução da Ciranda dos Gigantes. Por isso nos dávamos bastante bem e respeitávamos nossos respectivos talentos. A previsão de Artur sobre dificuldades no norte tinha se confirmado e ele precisara partir para lá no fim de março, mas durante os meses de inverno, nós dois, junto com Derwen, havíamos passado muitas horas sobre os projetos para a nova fortaleza. Impulsionado pela minha persistência e o entusiasmo de Artur, o engenheiro finamente acabara aceitando idéias minhas, que obviamente classificava como malucas, para a reconstrução de Caer Camel. Velocidade e resistência. Eu queria o lugar pronto para a época em que a campanha no norte estivesse para terminar e também que fosse duradouro. O tamanho e força tinham de se adequar a essa premissa. O tamanho não seria problema. O topo do morro era enorme, media mais de meio alqueire, mas a força... Eu fizera listas do material já existente e, examinando cuidadosamente as ruínas, calculara como o lugar fora construído pelos romanos sobre camada após camada de muralhas e valetas dos celtas. Enquanto trabalhava mantive sempre em mente algumas das fortificações que eu vira em minhas viagens pelo exterior, bastiões construídos em lugares muito mais difíceis do que esse. Reconstruir dentro do modelo romano seria uma tarefa formidável, senão impossível. Mesmo se os canteiros de Derwen fossem especializados nas obras de pedra romanas, o simples tamanho de Caer Camel impediria essa escolha. Todavia, esses homens eram peritos em alvenaria e havia uma grande quantidade de pedras cortadas nas ruínas e uma pedreira próxima, onde obteríamos todo o cascalho necessário. Como não nos faltassem carvalhos e carpinteiros, elaborei meu projeto final. Ele foi executado com perfeição e o resultado está aí para todos verem. As encostas íngremes do lugar atualmente chamado Camelot estão coroadas por enormes muralhas de pedra e madeira. As sentinelas patrulham as ameias e guardam os portões. Ao portão norte chega uma boa e larga estrada para carroças e pedestres, e do que está situado no canto sudoeste, o chamado Portão do Rei, sai uma estrada estreita em curvas, apropriada para rodas mais velozes e tropas a galope. Atualmente essas muralhas, tão bem cuidadas nestes tempos de paz como nos dias agitados em que as construí, abrigam uma cidade buliçosa e agradável, cheia de cores, jardins e pomares. Mulheres

caminham pelos terraços em ricos vestidos e as crianças brincam nos parques. As ruas estão sempre cheias de gente, barulhentas com conversas, risadas e barganhas no mercado, com o ruído das patas dos cavalos velozes e lustrosos de Artur, gritos de rapazes e o clamor dos sinos da igreja. Ela se tornou rica com o comércio pacífico e esplêndida com as artes da paz. Camelot é uma visão maravilhosa e hoje em dia conhecida por viajantes vindos dos quatro cantos do mundo. Naquela época, porém, enquanto eu caminhava por entre os restos das edificações abandonadas, ela não era mais do que uma idéia, e uma idéia derivada das duras necessidades da guerra. Começaríamos, claro, pelas muralhas externas e nelas eu planejava usar tudo o que se encontrava ali no platô: ladrilhos de antigos pisos, lajes, restos de calçamento de pátios e da estrada. Com esse material criaríamos um base de entulho resistente que suportaria a muralha externa e ao mesmo tempo uma larga plataforma de combate situada no alto da parte interna. A muralha em si, vista do lado externo, ficaria parecendo um prolongamento das encostas, como uma coroa colocada na cabeça de um rei. Cortaríamos toda a vegetação nas laterais do morro acima dela e faríamos valetas verticais profundas para dificultar ao máximo qualquer invasão. Construiríamos em seguida uma segunda muralha, com alicerces de pedra e o restante em madeira lisa e espessa. Nos portões, onde as estradas de acesso chegariam afundadas entre paredes laterais feitas de pedra, eu projetava construir um tipo de túnel que perfuraria a muralha, permitindo a continuidade da plataforma de combate em todo o perímetro. Esses túneis, altos e largos, dariam boa passagem para carroças ou três cavaleiros colocados lado a lado, e teriam espessas portas de carvalho montadas na muralha de madeira. Tudo isso e muito mais eu explicara a Derwen, que de início se mostrara cético, especialmente no que dizia respeito a esses portões inusitados, só se contendo em seus resmungos e reclamações pelo respeito que tinha por mim. Ele não conhecia precedentes e a maioria dos engenheiros e arquitetos trabalha a partir de projetos já bem testados, especialmente no que se refere a assuntos de guerra e defesa. Derwen não via motivos para se abandonar o habitual portão colocado entre duas torres que abriavam as salas da guarda. Todavia, com o passar do tempo, sentado por horas e horas diante de meus projetos e consultando as listas que eu compilara sobre os materiais já disponíveis no local, ele acabou aceitando o amálgama de pedra e madeira, e daí por diante passou a encará-la até mesmo com entusiasmo, principalmente porque qualquer fracasso seria atribuído a mim. Nada, porém, indicava que haveria motivos para se culpar alguém. Artur, que participava das sessões de estudo do projeto, mostrava-se empolgado mas, como fazia questão de salientar quando se tratava de algum aspecto técnico, ele conhecia seu ofício e confiava em nossas opiniões sobre o nosso. Todos sabíamos qual seria a função do lugar e tínhamos de construí-lo de acordo. Uma vez pronto, ele se encarregaria de defendê-lo, concluía com a brevidade da juventude e inconsciente arrogância. Agora, finalmente no local da obra e com a chegada do tempo seco, Derwen começara a trabalhar com competência e rapidez, e antes de o velho boiadeiro levar as vacas de volta para a ordenha da noite os pinos de marcação já estavam locados, valetas haviam sido começadas e o primeiro carroção de suprimentos vinha gemendo pela estradinha íngreme, puxado por bois fortes e resistentes. Caer Camel se reerguia. O rei logo iria voltar. Ele chegou num claro dia de junho. Veio da aldeia montado em Amrei, sua égua cinzenta, e acompanhado por Bedwyr e seu irmão de criação, Cei, e cerca de uma dezena de comandantes da cavalaria. Estes agora eram comumente conhecidos como equites ou cavaleiros andantes, mas Artur só os chamava de "meus companheiros". Chegaram todos sem armaduras, como se fossem rapazes numa caçada. Artur saltou do cavalo, atirou a rédeas para Bedwyr e, enquanto os outros desmontavam e

liberavam os animais para pastar, caminhou sozinho pela relva agitada pelo vento. Ele me viu, ergueu a mão em saudação, mas não se apressou. Fez uma pausa na obra da muralha externa e atravessou a vala por uma pontezinha de pranchas, enquanto os trabalhadores iam se erguendo das tarefas à medida que respondiam a suas perguntas. Um dos homens apontou numa direção e ele olhou à volta antes de se encaminhar para a cadeia de colinas no centro do platô, onde já estavam sendo escavados os alicerces para o seu quartel-general. Dali poderia ter uma visão mais ampla do local e talvez descobrir algum sentido no labirinto de valas e alicerces, meio ocultos sob a teia de cordas e andaimes. Por fim, fez uma volta em torno de si vagarosamente e depois veio em minha direção com passadas largas. — Sim — foi tudo o que disse, com clara satisfação. Em seguida: — Quando? — Haverá alguma coisa para você ver no começo do inverno. Artur voltou a olhar à volta com um ar de orgulho e pude compreender que ele visualizava a obra pronta, com as muralhas poderosas, as torres orgulhosas, a pedra, madeira e ferro que envolveriam esse espaço dourado de sol, sua primeira obra de vulto. Os olhos castanhos, cheios de altivo contentamento, voltaram-se para mim. — Eu disse que você era capaz de fazer um milagre e agora estou diante de um deles. É assim que vejo este local. Será que você é profissional demais para sentir-se emocionado quando vê o que antes era um desenho ou apenas um pensamento se transformando em algo real que durará para sempre? — Creio que todos os criadores se sentem assim. Eu também. — E como está andando rápido! Você está construindo a obra com música, como fez na Ciranda dos Gigantes? — Usei o mesmo milagre aqui e você pode vê-lo muito bem. Os homens. Um rápido olhar para mim, um outro para o solo remexido e trabalhadores ocupados, e depois ele voltou-se para a área onde, tão ordenadamente como numa antiga cidade murada, as oficinas de carpinteiros, ferreiros e canteiros se alinhavam e de onde vinha o barulho de vozes e marteladas. — Sim, eu me lembrarei disso — murmurou. — Aliás, todo comandante deveria sempre se lembrar disso. Eu usarei o mesmo milagre. — Depois, virando-se para mim: — E no outro inverno? — No inverno depois deste você terá a obra praticamente completa na parte interna e poderá defender a fortaleza com segurança. Este lugar atende todos os requisitos que tínhamos em mente. Mais tarde, quando as batalhas terminarem, haverá amplo tempo e espaço para construirmos edifícios que proporcionarão conforto, graça e esplendor, dignos do Grande Rei e de suas vitórias. Você terá aqui um verdadeiro ninho de águia encimando um morro encantador. Uma fortaleza para os tempos de guerra e um lar para procriar nos tempos de paz. Enquanto me ouvia, Artur fizera um breve sinal para Bedwyr e agora os rapazes haviam montado e vinham trazendo a égua Amrei pelas rédeas. — Então já sabe? — perguntou ele, com um ar surpreso. — Eu deveria imaginar que seria impossível esconder segredos de você. — Segredos? Não estou sabendo de nada. O que pensava me esconder? — Nenhum. Afinal, de que adiantaria? Em outras circunstâncias, você seria o primeiro a saber, mas, com esta obra e tudo o mais... Eu devia estar olhando para ele com cara de idiota. Seus olhos dançavam de alegria.

— Lamento por só lhe contar agora, Merlin, mas vou me casar. Ora, ora, não faça essa cara de bravo. Eu não poderia deixar uma escolha como essa a seu cargo. — Eu não estou bravo. Que direito teria para isso? É algo que você deve mesmo resolver sozinho. Estou contente. Os acertos já foram concluídos? — Claro que não. Estava esperando uma oportunidade para conversarmos a respeito. Até agora só houve troca de cartas entre mim e a rainha Ygraine. A sugestão veio dela e suponho que ainda serão necessárias muitas conversas. Mas vou avisando... — Um brilho maroto surgiu nos olhos escuros. — Eu já me decidi. Bedwyr aproximou-se de nós, desmontou e entregou a Artur as rédeas da égua. Fiz uma pergunta com o olhar. — Sim, Bedwyr está sabendo. — Quer me contar quem é ela? — O pai dela era March, que lutou sob as ordens do duque Cador e foi morto numa escaramuça na costa irlandesa. A mãe morreu em seu nascimento e desde a morte do pai, ela tem vivido sob a proteção da rainha Ygraine. Você já a conhece, pelo menos de vista. Esteve como dama de companhia em Amesbury e também na coroação. — Eu... qual é o nome dela? — Guenever. Um pássaro cruzou o espaço acima de nossas cabeças e sua sombra flutuou na relva a nossos pés. Algo tocou as cordas de minha memória, algo saído de minha outra vida, quando eu tinha o poder e uma clara vidência, mas não consegui captá-lo. — O que foi, Merlin? A voz de Artur soou ansiosa, como a de um menino que teme uma repreensão. Ergui a cabeça e vi que Bedwyr também me observava com preocupação. — Nada, nada mesmo. Ela é uma linda moça e seu nome é encantador. Tenho certeza de que os deuses abençoarão esse casamento quando chegar a hora. Os rostos jovens se relaxaram visivelmente. Bedwyr fez um rápido comentário brincalhão e depois começou a comentar os trabalhos de construção com grande entusiasmo. Logo os dois estavam envolvidos numa conversa onde os planos de casamento ficaram de fora. Eu avistei Derwen perto da obra do portão e fomos os três até ele. Depois de trocarmos algumas palavras, Artur e Bedwyr se despediram, montaram e, seguidos pelos cavaleiros do rei, dirigiram-se para estradinha que descia a encosta. Eles não foram muito longe. Quando o pequeno cortejo entrou no túnel do portão, viu-se frente a frente com um bando de vacas que vinham subindo preguiçosamente. De algum lugar do meio delas surgiu, quase por encanto, o velho apoiado em seu cajado. A égua Amrei empinou de susto e Artur puxou-a para o lado e ela desceu, batendo no cavalo preto de Bedwyr, que avançou, por pouco não colidindo com uma vaca. Bedwyr ria, mas Cei gritou irritado: — Abra caminho, seu tolo! Não está vendo que é o rei? Tire seu maldito gado do caminho. Aqui não tem lugar para ele. — E também não tem lugar para você, meu jovem mestre — disse o velho com azedume. — Meu

gado procura a parte boa da terra, que você e seus amigos não fazem mais do que estragar! Vocês é que deveriam tirar os cavalos daqui e ir caçar no pântano, sem implicar com gente honesta e trabalhadora! Cei jamais soubera quando deveria conter sua raiva ou até mesmo economizar saliva. Ele avançou, ultrapassando a égua de Artur, e olhou feio para o velho, com o rosto mais vermelho do que nunca. — Você é surdo? Ou apenas burro? Quem está caçando? Somos os capitães de combate do rei e este é o Grande Rei! Artur, sorrindo, começou: — Ah, Cei, deixe disso... — Mas logo teve de controlar novamente a égua quando o velho de aproximou e levantou os olhos enevoados para ele. — Rei? Não, vocês não conseguem me enganar. Este aqui é só um rapazinho e o rei é homem feito. Além disso, não é hora de o rei aparecer. Ele virá nos meados do verão, com a lua cheia. Eu já o vi, junto com todos os seus soldados. — O homem fez um gesto largo com o cajado, que voltou a inquietar os animais. — Estes aqui, capitães de batalha? Garotos, isso sim! Os soldados do rei usam armadura e lanças mais compridas do que árvores e têm plumas nos capacetes e nas crinas dos cavalos. Eu os vi com meus próprios olhos, quando estava sozinho aqui, numa noite de verão. Por isso não tente me enganar. Eu conheço o rei! Cei abriu a boca, mas Artur ergueu a mão, impedindo-o de continuar suas reprimendas, e falou com o velho como se os dois estivessem sozinhos ali. — Um rei que esteve aqui no verão? O que está nos contando, meu pai? Que homens eram esses? Algo em sua maneira tocou o velho. Ele já não pareceu tão certo de suas palavras. Depois me viu e apontou: — Eu contei para ele. Sim. Ele me disse que era homem de um rei e veio com palavras doces. Um rei estava vindo, falou, que cuidaria de minhas vacas e daria pasto para elas... — Olhou a sua volta, como se estivesse vendo pela primeira vez os esplêndidos cavalos e arreios coloridos, e as fisionomias sorridentes e seguras dos rapazes. Sua voz sumiu, dando lugar a resmungos. Artur virou-se para mim. — Você sabe do que ele está falando? — Uma lenda do passado, sobre uma tropa de fantasmas que, segundo contam, sai cavalgando de sua sepultura no interior de uma colina nas noites de verão. Creio que trata-se de uma história do tempo dos governantes celtas ou dos romanos. Você não deve se preocupar com isso. — Não se preocupar? — disse alguém, parecendo inquieto. Creio que foi Lamorak, um valente e nervoso cavaleiro que costumava olhar para as estrelas à procura de sinais e cujos arreios viviam cheios de amuletos. — Ele fala de fantasmas e não devemos nos preocupar? — Fantasmas que ele mesmo viu, aqui, neste lugar? — surpreendeu-se um outro capitão. Ouvi murmúrios como: "Lanças e plumas? Ora, parecem saxões". Lamorak voltou a falar, tocando um pedaço de coral que pendia de uma correntinha em seu pescoço. — Fantasmas de homens que morreram aqui e foram enterrados no interior deste morro, exatamente no lugar onde se pretende construir uma fortaleza e uma cidade segura. Artur, você sabia

disso? Poucas pessoas são mais supersticiosas do que soldados. Afinal, são os homens que mais convivem com a morte. As risadas sumiram e um estremecimento pareceu tomar conta de todos, como se uma nuvem fria tivesse encoberto o sol. Artur estava de cenho franzido. Também era um soldado, mas em primeiro lugar era rei e tinha de lidar com fatos. Disse com certa aspereza: — E daí? Mostrem-me uma fortaleza que não tenha sido defendida por homens valentes que derramaram seu sangue nos alicerces! Por acaso somos crianças para sentirmos medo de fantasmas de homens que morreram aqui antes de nós, para manterem esta terra longe das mãos dos inimigos? Se eles continuam mesmo perambulando por aqui, lutarão a nosso lado, meus companheiros! — Depois, virando-se para o velho, pediu: — Conte-me sua história, meu pai. Quem foi esse rei? O velho hesitou, confuso. Depois subitamente perguntou: — Já ouviu falar sobre Merlin, o mago? — Merlin? — Foi Bedwyr. — Ora, não sabe... Ele captou meu olhar e se calou. Ninguém mais falou. Artur, com um olhar em minha direção, perguntou: — O que tem Merlin? Os olhos enevoados se fixaram em um por um, como se o velho fosse capaz de ver claramente cada rosto. Até mesmo os cavalos se imobilizaram. O velho pareceu extrair coragem do silêncio atento e se mostrou subitamente lúcido. — Era uma vez um rei que se pôs a construir uma fortaleza. E, como os reis de antigamente, que eram fortes e impiedosos, ele procurou por um herói que mandaria matar e enterrar sob os alicerces para mantê-los sempre firmes. Ele escolheu Merlin, que era o maior homem do país, mandou prendê-lo. Mas Merlin chamou seus dragões e voou para os céus e foi buscar um novo rei, que queimou o outro em sua torre junto com a rainha, até tudo virar apenas cinzas. Já ouviu contar essa história, moço? — Sim. — É verdade que você é um rei e que esses garotos são seus capitães? — Sim. — Então pergunte a Merlin. Dizem que ele ainda vive. Perguntem a Merlin e ele confirmará que o rei queria ter a sepultura de um herói sob seus portões. E sabem de outra coisa que Merlin fez? Ele colocou o Grande Rei Dragão em pessoa sob as pedras gigantes e proclamou o lugar como a fortaleza mais segura de toda a Bretanha. É o que dizem. — E dizem a verdade — disse Artur e olhou à volta para ver onde o alívio já suplantara a preocupação. Depois dirigiu-se novamente ao velho. — E quanto ao rei que jaz junto com seus homens no interior do morro? Para isso ele não obteve resposta. O velho, pressionado, tornou-se vago e depois ininteligível. Uma ou outra palavra pôde ser captada: capacetes, plumas, escudos redondos, cavalos pequenos e de novo as lanças, compridas como troncos de árvores e "capas flutuando ao vento mesmo quando não tinha vento". Para interromper uma nova torrente de fantasmas eu falei friamente:

— O senhor deveria perguntar a Merlin sobre isso também, meu bom rei. Creio que sei o que ele diria. Artur sorriu. — O que seria, então? Virei-me para o velho. — Você me contou que a deusa matou esse rei e seus homens, e que eles foram enterrados aqui. Contou-me também que o novo e jovem rei deveria fazer as pazes com a deusa ou ela poderia rejeitá-lo. Mas veja o que ela fez. O rei não sabia dessa história e veio para cá inspirado por ela, para construir sua fortaleza no exato lugar onde ela matou e enterrou uma tropa de fortes guerreiros e seu líder, para serem a pedra-rei, a pedra fundamental de seu portal. E ela também lhe deu a espada e a coroa. Conte isso tudo para seu povo e diga-lhe que o rei está vindo, com a bênção da deusa, para construir uma fortaleza e para proteger você, seus filhos e deixar seu gado pastar em paz. — Essa foi ótima, Merlin. — Lamorak sorriu. — Merlin? — Qualquer um pensaria que o velho ouvia o nome pela primeira vez. — Sim, é o que ele diria... e já ouvi contar que ele mesmo tirou a espada das profundezas da água e a deu para o rei... Por alguns minutos, enquanto os outros chegavam mais perto, conversando entre si, aliviados e sorridentes, o velho voltou aos seus resmungos. Só depois pareceu captar o sentido de minha última frase e voltou subitamente e com grande clareza para o assunto de suas vacas e a iniqüidade dos reis que se intrometiam com sua pastagem. Artur, com um longo olhar para mim, ouviu gravemente enquanto os rapazes continham o riso e os últimos vestígios de temor desapareciam na alegria. No final, com gentil cortesia, prometeu que o deixaria trazer seu gado para pastar enquanto o capim doce crescesse em Caer Camel e que, se esse acabasse, encontraria uma outra pastagem para ele. — Dou-me minha palavra de Grande Rei — concluiu. Mesmo depois de tudo isso não ficou claro se o velho estava acreditando nele. — Bem, você pode se chamar de rei ou não mas, para um garoto, mostra ter um pouco de juízo. Você ouve as palavras dos mais velhos, não é como certa gente... — dirigiu um olhar malévolo na direção de Cei — ...que só pensa em gritar. Capitães de batalha, essa é boa! Qualquer um que conhece alguma coisa sobre batalhas sabe que nenhum homem consegue lutar de barriga vazia. Você dá pasto para minhas vacas porque vai querer comê-las. — Já lhe disse que você terá o pasto. E sem condições. — E quando seu construtor — um movimento de queixo em minha direção — já tiver estragado Caer Camel inteirinho, que terras você me dará? Artur talvez não imaginara que teria sua promessa cobrada tão rapidamente, mas hesitou apenas por um instante. — Vi boas áreas de vegetação perto do rio, atrás da aldeia. Seu eu... — Lá não serve para gado. Cabras, talvez. O capim é azedo e está cheio dessas flores amarelas... botões de ouro. Isso é veneno para o gado. — Verdade? Eu não sabia. Onde então existe um bom pasto? — Naquele lado — indicou o velho. — No morro dos texugos. Ele deu uma risadinha. — Botões de ouro... Rei ou não, mocinho, por mais que as pessoas saibam das coisas, sempre tem alguém que sabe mais.

— Isso é mais uma coisa que me lembrarei para sempre — concordou Artur gravemente. — Muito bem. Se o morro dos texugos ficar sob meu domínio, você o terá. Ele puxou as rédeas para dar passagem ao velho e, com uma saudação para mim, desceu o morro com seus cavaleiros atrás de si. Derwen me esperava perto das fundações da torre sudoeste. Um pássaro grande, talvez o mesmo de antes, passou voando perto de mim. A lembrança voltou, me fazendo parar... ...A Capela Verde acima de Galava. Os mesmos dois rostos jovens, o de Artur e o de Bedwyr, me observando atentamente enquanto eu lhes contava histórias de batalhas e lugares distantes. E no cômodo, lançada pela luz do lampião, a sombra de um pássaro — a coruja-branca que vivia no telhado —, guenhwyvar, a sombra branca, diante da qual eu sentira um arrepio, um instante de perturbada previsão do qual agora não lembrava, exceto pela impressão de que o nome Guenever traria o mal para Artur. Um pouco antes, ao ouvi-lo dizer o nome, eu não sentira nenhum tipo de aviso, todavia agora precisava me conformar com a idéia de que não passava de um construtor, como o velho me chamara. Lembrei-me do orgulho e respeito nos olhos do rei enquanto observava os alicerces do "milagre" que eu estava fazendo para ele. Olhei para os desenhos em minhas mãos e senti a conhecida e puramente humana emoção daquele que constrói alguma coisa. A sombra do pássaro sumiu na luz do sol e eu me apressei na direção de Derwen. Pelo menos ainda me restavam habilidades suficientes para construir uma fortaleza segura para o meu menino.

4 Três meses depois Artur casou-se com Guenever em Caerleon. Ele não tivera a oportunidade de rever a noiva nesse intervalo e fui informado de que os dois não haviam conversado depois da breve troca de formalidades à época da coroação. Como o rei fora obrigado a voltar para o norte no início de julho, não pudera ir pessoalmente à Cornualha para escoltá-la até o condado de Guent mas, como se tratava do Grande Rei, era até apropriado a noiva ser trazida para a corte. Bedwyr foi dispensado por um mês e encarregado da missão de ir a Tintagel e trazer Guenever a Caerleon. Durante todo esse verão houve lutas esporádicas no norte, em especial incursões rápidas, tocaias e escaramuças, por se tratar de uma área montanhosa e coberta de florestas, mas no final de julho Artur forçou uma batalha ao atravessar o rio Bassas. A vitória foi tão decisiva que criou uma pausa mais do que bem-vinda durante toda a época de colheita, o que finalmente permitiu-lhe viajar para Caerleon com mente tranqüila. Por isso, foi um casamento de quartel, como se costuma dizer, uma cerimônia encaixada no tempo livre entre outras preocupações. A noiva não estranhou, aceitando tudo com grande felicidade, como se estivesse acontecendo um luxuoso e festivo evento em York ou Londres. Houve, contudo, a habitual semana de comemorações, embora os homens mantivessem as lanças empilhadas na entrada do salão de festas e espadas à mão, e o rei tivesse passado todo o tempo livre em reunião com os oficiais, inspecionando o campo de treinamento ou inclinado sobre mapas, com os relatórios dos espiões empilhados ao seu lado. Deixei Caer Camel na primeira semana de setembro e fui direto para Caerleon. A obra da fortaleza progredia bem e Derwen cuidaria de qualquer imprevisto. Eu sentia o coração alegre, pois tudo o que conseguira descobrir sobre a noiva depunha a seu favor. Era jovem, bem humorada, saudável, de boa família e nada mais certo do que Artur se casar e pensar em herdeiros. Eu já estava em Caerleon quando a noiva chegou. Eles não usaram a balsa, preferindo vir pela estrada de Glevum, um alegre séqüito montado em cavalos com arreios coloridos e pingentes dourados, e liteiras pintadas de novo. As damas de companhia mais jovens vestiam mantos das mais diferentes cores e seus cavalos tinham flores trançadas nas crinas. A noiva recusara uma liteira e montava um belo cavalo cor de creme, presente de Artur. Bedwyr, com uma capa cor de ferrugem que o distinguia entre outros, mantinha-se à direita de Guenever, pronto a ajudá-la com as rédeas. No outro lado, vinha a princesa Morgan num cavalo voluntarioso que ela controlava sem esforço. Demonstrava excelente humor, estando tão alegre e entusiasmada como se esse fosse o cortejo de próprio casamento, marcado para breve, cedendo de bom grado o papel central nas festividades para a futura cunhada, embora fosse a representante oficial da rainha Ygraine. Junto com o duque da Cornualha, colocaria a mão de Guenever sobre a do Grande Rei. Artur, que ainda ignorava a gravidade da doença da mãe, ficara um tanto decepcionado ao ser informado de que ela não viria para o casamento, mas Bedwyr, assim que desmontou, trocou algumas palavras com ele e pude ver uma sombra toldar seu rosto antes de ele a afastar rapidamente para saudar Guenever. O cumprimento foi formal, mas o leve sorriso juvenil por trás dele recebeu da noiva um tímido surgir de covinhas. As damas de companhia murmuraram sua aprovação e os homens assistiam a tudo com olhares indulgentes, os mais velhos aprovando a juventude e beleza de Guenever, com o pensamento já voltado para um herdeiro do reino, e os mais jovens com uma pontinha de inveja. Guenever agora tinha quinze anos e estava um pouco mais alta e mais feminina, mas ainda era uma criatura pequenina, com pele de pêssego e olhos alegres, e claramente encantada com a sorte que a

tirara de uma vida relativamente monótona na Cornualha para se casar com o solteiro mais cobiçado do país. Ela apresentou graciosamente as desculpas da rainha, não deixando transparecer que o mal que a afetava era muito mais do que um achaque passageiro, e o rei as aceitou com um sorriso formal e depois, dando-lhe o braço, conduziu-a até a casa onde as mulheres, inclusive a princesa Morgan, ficariam hospedadas. Era a melhor das residências fora do perímetro da fortaleza e ali elas poderiam descansar e se preparar para as cerimônias. Artur voltou a seus aposentos e, enquanto ainda estava no corredor, pude ouvi-lo conversando em tom sério com Bedwyr, sem se referir a mulheres ou festejos. Entrou na sala já tirando o manto e Ulfin, que conhecia seus modos, já estava pronto para apanhá-lo e em seguida receber o pesado cinto com a espada. — E então, Merlin? — disse o rei alegremente. — O que achou? Ela se tornou uma moça linda, não é? — Ela é mesmo muito bonita e combina bem com você. — E não é tímida nem calada, graças a Deus. Eu não tenho tempo para muitas preliminares. Vi Bedwyr sorrindo. Nós dois sabíamos que a afirmação devia ser tomada em seu sentido literal. Artur não teria mesmo tempo nem paciência para cortejar uma noiva acanhada. Queria casamento e cama, e depois, tendo finalmente contentado os nobres mais velhos e agora com mente livre, poderia voltar para seus negócios inacabados no norte do país. Era o que dizia agora, enquanto nos conduzia para a saleta onde ficava o mapa em relevo. — Já chamei o resto do conselho e eles deverão chegar a qualquer momento. Recebi novas informações na noite passada. A propósito, Merlin, cheguei a lhe dizer que ia convocar seu jovem comandante de Olicana, Gereint? Ele chegou ontem à noite... já teve oportunidade de vê-lo? Não? Bem, ele está vindo com os outros. Sou grato a você mais uma vez, meu amigo, Gereint é um achado e já provou sua importância mais do que uma vez. Trouxe notícias de Elmet... mas vamos deixar isso para depois. Agora quero falar sobre a rainha. Bedwyr me contou que ela não tem a menor condição de viajar. Você sabia da gravidade da doença? — Quando a vi em Amesbury logo percebi que estava enferma, mas Ygraine recusou-se a falar no assunto em qualquer ocasião e não mostrou desejo de se consultar comigo. Que notícias você trouxe dela, Bedwyr? — Não tenho capacidade de julgar, mas desde a coroação ela me pareceu mudada. Estava muito magra e quase não saiu de seus aposentos. Mas agora a gravidade de sua doença é evidente. Escreveu uma carta para ser entregue a Artur, mas não encontrou forças para uma segunda, que desejava enviar a você, Merlin. Por isso pediu-me para agradecer-lhe pelas notícias que vem mandando regularmente e para lhe transmitir suas lembranças. — Merlin, você chegou a suspeitar de alguma coisa quando a viu? — Artur me olhava com preocupação. — Seria uma doença fatal? — Creio que sim. Quando a vi em Amesbury as sementes do mal já estavam começando a germinar e quando nos encontramos de novo, por ocasião da coroação, tive a impressão de que conhecia a gravidade de seu estado. Mas daí a adivinhar quanto tempo... Mesmo se eu fosse seu médico particular dificilmente teria a condição de marcar datas. Artur simplesmente balançou a cabeça, não se dando ao trabalho de perguntar por que eu não lhe

revelara minhas suspeitas. Meus motivos para isso estavam mais do que claros. — Não consigo... Você sabe que devo voltar para o norte assim que esse negócio acabar. — Ele falou como se o casamento fosse uma reunião do conselho ou uma inspeção de tropas. — Não posso ir à Cornualha. O que me diz de eu mandá-lo para lá? — Seria inútil, Artur. Além disso, o médico que atende a rainha é um dos melhores que você poderia conseguir. Tive a oportunidade de conhecê-lo quando era um jovem estudante em Pergamum. — Então... — Ele mexeu nos pinos espetados aqui e ali no mapa de gesso. — O problema é que sempre sentimos que existe algo que deveria estar sendo feito. Gosto de atirar os dados e não de ficar assistindo. Por favor, Merlin, já sei o que você vai dizer... a essência da sabedoria é perceber quando algo deve ser feito e quando seria inútil tentar. Só que às vezes penso que jamais chegarei à idade de ser sábio. — Creio que o melhor que você poderia fazer, tanto pela rainha quanto por você, seria consumar seu casamento e facilitar as coisas para Morgan se tornar a rainha coroada de Rheged. — Concordo inteiramente — disse Bedwyr, balançando a cabeça. — Tive a impressão de que ela está se forçando a viver até ver os dois laços de casamento firmemente atados. — É o que ela diz em sua carta — informou Artur e depois virou a cabeça para a porta. Do corredor vinham os sons de uma conversa acalorada. — Muito bem, Merlin, eu não gostaria mesmo de enviá-lo para a Cornualha, porque pretendo mandá-lo novamente para o norte. Será que Derwen pode ficar encarregado de Caer Camel? — Claro. Ele é bem capacitado para isso, embora eu gostasse de estar de volta a tempo de aproveitar o clima da primavera. — Não haverá motivos para você não estar aqui nessa época. — É por causa do casamento de Morgan? Ou... será que eu devia ter sido mais cauteloso e o problema é Morgause, de novo? Mas já vou lhe avisando: se a viagem for para as ilhas Orkney, não conte comigo. Artur soltou uma risada gostosa. Naquele momento não parecia minimamente preocupado com Morgause ou seu bastardo. — Pode ficar sossegado, meu amigo, não pretendo fazê-lo enfrentar perigos, tanto os do mar do norte quanto os de Morgause. Não, trata-se de Morgan. Quero que a leve para Rheged. — Isso sim, será um prazer. — Falei a pura verdade. Eu considerava os anos que passara em Rheged, na floresta que faz parte do grande território que chamam de floresta caledoniana, o ponto alto de minha vida. Fora a época em que eu ensinara e orientara Artur. — Terei tempo para visitar Ector? — Naturalmente. Mas depois do casamento, claro... devo admitir que será um sossego para mim, bem como para a rainha, vê-la seguramente estabelecida em Rheged. Talvez haja novamente guerra no norte com a chegada da primavera. Essas palavras normalmente causariam estranheza, mas no contexto da época faziam pleno sentido. Eram tempos de casamentos de inverno. Na primavera os homens partiam de seus lares para lutar e procuravam não deixar nada inacabado. Para alguém como Urbgen de Rheged, já não muito jovem e senhor de extensos domínios, seria tolice adiar um casamento que só poderia se realizar no ano seguinte. — Repito que terei grande prazer em acompanhar Morgan. E quando será?

— Assim que as coisas estiverem terminadas aqui, mas antes da chegada do inverno. — Você irá para lá? — Se puder. Mas voltaremos a falar sobre isso. Você levará cartas e, claro, meus presentes para Urbgen. — Artur fez um sinal para Ulfin, que dirigiu-se para a porta. Um grupo de homens entrou: cavaleiros do Grande Rei, membros do Conselho e alguns dos reis menores que tinham vindo a Caerleon para o casamento, como Cador e Gwilim. Não viera ninguém do norte, o que era compreensível devido à iminência de novas batalhas, e para mim foi um alívio não me deparar com Lot. Vi Gereint entre os homens mais jovens do grupo. Ele me cumprimentou com um sorriso, mas não havia tempo para conversas. A reunião durou até o anoitecer, quando foi servido o jantar, e só então saímos de lá. Enquanto eu voltava para meus aposentos, Bedwyr e Gereint, que pareciam se conhecer, pelo menos ligeiramente, aproximaram-se de mim. Gereint cumprimentou-me efusivamente. — Meu dia de sorte foi quando um certo médico itinerante chegou a Olicana. — E creio que foi para Artur também — respondi. — E então, como estão as coisas no passo? Ele me contou que parecia não haver perigo imediato vindo do leste. Artur fizera uma boa limpeza em Linnuis e o rei de Elmet agora vigiava a região. A estrada que atravessava o passo fora reconstruída, indo de Olicana a Tribuit, e ambos os fortes do oeste haviam sido recuperados e estavam de prontidão. Depois dessas informações a conversa virou para Caer Camel, e tanto Gereint como Bedwyr mostraram-se curiosos sobre o andamento das obras, fazendo perguntas até chegar o momento de nos separarmos. — Vou deixá-los aqui — disse Gereint e fez um aceno de cabeça na direção dos aposentos do Grande Rei. — Estes são grandes dias para todos nós. — E haverá maiores. Bedwyr e eu continuamos juntos, com o menino que segurava a tocha andando alguns passos a nossa frente. De início conversamos em voz baixa sobre Ygraine, e Bedwyr pôde me contar mais do que dissera diante de Artur. O médico da rainha, não querendo se comprometer com material escrito, pedira a Bedwyr para transmitir-me as informações sobre o caso, mas não havia nada de novo para mim. A rainha estava morrendo e o que ainda a mantinha viva era o desejo de ver as duas moças tão queridas para ela casadas, 'coroadas e estabelecidas, o que fazia Melchior, o médico, acreditar que ela dificilmente viveria até o Natal. Ygraine pedira a Bedwyr para me transmitir seus agradecimentos e enviara um presente que deveria ser entregue a Artur depois de sua morte. Era um broche de ouro e esmalte azul e branco, com uma imagem da deusa-mãe dos cristãos, e o seu nome, MARIA, inscrito em torno da borda. Ela já dera jóias para Morgan e Guenever a título de presentes de casamento, embora sua filha já soubesse a verdade. Guenever não desconfiava de nada e Ygraine instruíra Bedwyr para não deixar escapar nada que pudesse estragar os festejos do casamento. Quanto a Artur, ela não tinha ilusões sobre o que sua morte significaria para ele, pois sacrificara seu amor pelo amor de Uther e pelo futuro do reino, e ela mesma estava resignada com seu destino, segura em sua fé. — E o que você me diz de Guenever? — finalmente perguntei a Bedwyr. — Você teve oportunidade de conhecê-la melhor durante a viagem. E conhece Artur como ninguém. Acha que eles se darão bem? — Ela é encantadora, cheia de vida e inteligente. Fez inúmeras perguntas sobre as guerras e

negócios de Estado, todas pertinentes. Compreende perfeitamente o que Artur está fazendo e tem acompanhado todos os seus movimentos. Ficou completamente apaixonada por ele desde o primeiro instante em que o viu. Foi em Amesbury, como você deve saber. E alegre e brincalhona, mas nada nela nos faz lembrar essas mocinhas tolas que sonham se casar com um rei e pensam daí para frente sua obrigação será só usar uma coroa. Ela tem plena consciência dos encargos e deveres que a esperam. Tudo indica que a rainha Ygraine planejava esse casamento há bastante tempo, e a preparou adequadamente. — Uma noiva real não poderia ter melhor professora do que Ygraine. — Concordo inteiramente. Mas Guenever possui uma delicadeza e um otimismo natos, e estou contente por isso. Começamos então a falar de Morgan. — Esperemos que ela e Urbgen também combinem. O que acha dela? Pareceu-me satisfeita, até feliz com o casamento. — E está mesmo — concordou Bedwyr sorrindo e, com um encolher de ombros, continuou: — Até parece que os dois sempre estiveram apaixonados e Lot nunca existiu. Você sempre diz que não sabe nada sobre mulheres e não entende o que as impulsiona. Estou na mesma situação. Acabo de passar um mês inteiro entre elas e ainda não as compreendo. E olhe que não tenho nenhum talento para eremita, como você. Elas anseiam pelo casamento, que, afinal, é um tipo de escravidão para todas e pode ser até perigoso para algumas. Veja Morgan, por exemplo: ela possui riqueza e posição, tem toda a liberdade que poderia querer e goza da proteção do Grande Rei. No entanto, teria se casado de bom grado com Lot, cuja fama é a pior possível, como sabemos, e agora está pronta a se unir a Urgben, que tem três vezes sua idade. Por quê? — Desconfio que é por causa de Morgause. — É possível — disse Bedwyr intrigado, depois de me lançar um rápido olhar. — Conversei com Guenever a respeito e ela me contou que desde que chegou a notícia do nascimento do outro filho de Morgause e suas cartas sobre como está governando o reino... — De Orkney? — Sim, é o que ela diz e parece ser a verdade. Lot passa a maior parte do tempo com Artur e alguém tem de se encarregar do governo. Bem, segundo Guenever, Morgan tem se mostrado cada vez mais irritada e começou a falar de Morgause com ódio. Também voltou a praticar o que a rainha costuma chamar de "suas artes tenebrosas". Guenever parece sentir medo delas. — Bedwyr hesitou por um instante. — Dizem que é mágica, Merlin, |; mas Morgan não possui nada parecido com seu poder. São coisas l cheias de fumaça, praticadas num quarto fechado... — Se foi Morgause que a ensinou, então devem mesmo ser artes tenebrosas. Por isso mesmo quando mais cedo Morgan for rainha de Rheged e tenha filhos para criar, melhor. E quanto a você, Bedwyr? Já anda pensando em casamento? — Nem de longe. — Ele riu. — Não tenho tempo para essas coisas. Nós dois nos despedimos com sorrisos e nos afastamos um do outro. No dia seguinte, com céu claro e um belo sol brilhante, com toda a pompa, música e festejos que uma alegre multidão é capaz de inventar, Artur casou-se com Guenever. Depois dos brindes, quando as tochas já estavam no fim e homens e mulheres tinham amido, bebido e dançado à farta, a noiva dirigiu-

se para os aposentos particulares acompanhada de suas damas e algum tempo depois, conduzido pelos cavaleiros mais fiéis, seus companheiros, rei foi ao seu encontro. Naquela noite tive um sonho breve e enevoado, nada mais do que um lampejo do que poderia ser uma verdadeira visão. Vi um lugar cheio de sombras frias, onde havia cortinas fechadas enfunadas pelo vento, e uma mulher deitada na cama. Não ide vê-la com clareza nem dizer quem era. De início pensei que fosse Ygraine, mas, quando entrou mais luz devido a um movimento das cortinas, achei que poderia ser Guenever. Ela estava deitada como morta ou como se estivesse dormindo profundamente depois de uma noite de amor.

5 Mais uma vez viajei para o norte, dessa vez usando sempre a estrada oeste, pela qual atingi Luguvallium. Foi mesmo um cortejo de casamento. O clima agradável se manteve constante ao longo do mês, o dourado mês de setembro, considerado o melhor para os viajantes, desde que o deus Hermes o escolheu para si. A mão de Hermes esteve sobre nós durante todo o trajeto. A estrada, considerada a principal via de acesso do reino de Artur, fora recuperada e até mesmo nas planícies o leito se mantinha seco, de modo que nem precisamos nos atrasar mais do que o necessário para descanso. Se ao anoitecer não víamos uma cidade ou vilarejo, acampávamos numa clareira adequada, onde comíamos e dormíamos sob a proteção das copas das árvores. Não fosse por minhas recordações, eu poderia considerar essa viagem como realmente idílica. Duas delas me perturbaram bastante, uma porque eu imaginava que conseguira afastá-la para sempre da memória. Numa certa noite, pediram-me para cantar e, quando toquei os primeiros acordes na harpa, me pareceu que eu só teria de erguer o rosto para ver Beltane e Ninian sorrindo para mim. Depois disso o menino voltou diariamente aos meus sonhos, vindo com ele o mais dolorido dos pesares. Era mais do que um lamento pela perda de um aluno. Junto com a tristeza vinha uma auto-acusação por não ter conseguido salvá-lo. A verdade era que a morte de Ninian representava muito mais do que o fracasso em conseguir um discípulo ou herdeiro que talvez viesse a continuar minha obra. Sua perda era uma prova de minha perda. O menino só morrera porque eu não era mais Merlin, porque não tivera poderes para prever e impedir o acidente. A segunda perturbação foi Morgan. Eu nunca chegara a conhecê-la bem. Ela nascera em Tintagel e fora criada lá ao longo dos anos em que eu vivera escondido em Rheged cuidando da educação de Artur. Apesar de receber notícias dela pelas cartas de Ygraine, eu só a vira pessoalmente por ocasião da coroação e depois no casamento, quando mal havíamos nos falado. Tinha um físico parecido com o irmão, sendo bem alta para a idade e morena, com cabelos e olhos castanho escuros, que eu imaginava terem vindo do sangue espanhol trazido à família dos Ambrosius pelo imperador Maximus, mas o rosto lembrava o da mãe, enquanto os traços de Artur eram os de Uther. Todavia, ao contrário do irmão, sempre efusivo, mostrava-se séria e calada. Logo pude sentir nela um poder sob controle, como fogo escondido em cinzas frias. Havia também nela um pouco da sutileza que Morgause, sua meia irmã, possuía em abundância e que era ausente em Artur. No entanto essa é principalmente uma arma feminina e muitas vezes a única que as mulheres têm para se proteger. Morgan recusou-se a usar a liteira e cavalgava boa parte do dia a meu lado. Suponho que quando estava com as mulheres ou entre os homens mais jovens devia conversar sobre o seu próximo casamento e o futuro que a aguardava, mas comigo sempre falou sobre o passado. Levava-me a contar meus feitos que haviam se transformado em lendas populares, como a história dos dragões em Dinas Emrys, o transporte da pedra-rei de Killare e a retirada da espada de Macsen de seu leito de pedra. Eu respondia às perguntas de bom grado, atendo-me aos fatos e, lembrando-me do que Ygraine e Bedwyr tinham me contado sobre suas "artes tenebrosas", procurando transmitir a ela parte do que significava "magia". Em geral as mocinhas a vêem como algo relacionado com filtros, poções e murmúrios em quartos às escuras, encantamentos para prender o coração de um homem ou trazer a visão de um futuro namorado na véspera de certas datas. Sua principal preocupação está voltada, como seria de se esperar,

para a parte ligada a Afrodite: como impedir ou favorecer a gravidez, talismãs para um parto fácil, previsões sobre o sexo de uma criança. Todavia, Morgan jamais me perguntou sobre essas coisas, o que me fez imaginar que já era bem versada nessas artes, e não se mostrava interessada nas artes da medicina e da cura, como Morgause em sua meninice. Suas perguntas envolviam sempre o poder maior e em especial o modo como ele tocara Artur. Queria saber tudo o que se passara desde que Uther começara a cortejar sua mãe e a concepção de Artur, até a retirada da espada de Macsen do altar. Eu respondi de bom grado, pois acreditava que era seu direito estar a par de tudo o que acontecera, já que, como seria a rainha de Rheged e tudo indicava que sobreviveria ao marido, futuramente iria orientar o herdeiro dessa poderosa província. Por isso tentei lhe explicar quais eram os objetivos de Artur para os tempos de paz que viriam mais cedo ou mais tarde, procurando imbuí-la das mesmas ambições. Depois de algum tempo notei que as perguntas de Morgan voltavam cada vez com mais freqüência para os "como" e "por quê" do poder que eu possuía. Tentei me esquivar, mas ela continuou insistindo e terminou me pedindo um tipo de demonstração pública, como se eu fosse uma velha curandeira preparando mezinhas num caldeirão ou um vidente de mercado. A resposta para essa última impertinência deve ter sido gelada demais e a atingido fundo, porque depois disso passou a cavalgar o tempo todo com o pessoal mais jovem. Logo vi que Morgan, como sua irmã, Morgause, não apreciava muito a companhia de mulheres. Seu mais constante interlocutor era um certo Accolon, um rapaz esplendidamente vestido, que mostrava um constante bom humor e costumava rir muito alto. Ela jamais ficou sozinha com ele mais do que seria decoroso, apesar de ele não fazer segredo de seus sentimentos. Seguia-a por todos os lados com os olhos e, sempre que podia, tocava sua mão ou fazia o cavalo se aproximar a ponto de encostar a perna na dela. Morgan não parecia notar e, pelo que pude ver quando estava por perto, não lhe concedia mais do que o olhar e respostas frias que dava aos outros membros da comitiva. Era minha, claro, a responsabilidade de entregá-la incólume e virgem (se ainda fosse) para dividir a cama com Urbgen, mas no momento não tinha receios sobre sua honra. Um amante dificilmente a procuraria durante essa viagem, mesmo se fosse a seu pedido. Quando acampávamos, Morgan ficava em sua tenda com duas damas de companhia mais idosas e não demonstrava desagrado. Agia e falava como qualquer noiva real a caminho do casamento e, se o rosto bonito e olhar apaixonado de Accolon a comoviam, não deu o menor sinal disso. Paramos pela última vez quase na fronteira das terras que são governadas pelo senhor de Caerluel, como os bretões chamam Luguvallium. Deixamos os cavalos descansar enquanto os serviçais se ocupavam em polir os arreios e lavar a poeira das liteiras. As mulheres aproveitaram para trocar de roupas e penteados. Quando o cortejo voltou a se formar, avançamos para nos encontrar com o grupo que nos daria as boas-vindas e estaria esperando na periferia da cidade. O grupo era liderado pelo próprio rei Urbgen, montado num cavalo presenteado por Artur, um garanhão castanho enfeitado com um tecido escarlate bordado a ouro. Ao lado dele caminhava um criado conduzindo pelas rédeas uma égua branca com arreios em azul e prata, que seria obviamente montada por Morgan. Urbgen era uma figura impressionante, um homem vigoroso, com braços fortes e peito largo, aparentando ser tão ativo como qualquer guerreiro com metade de sua idade. Os cabelos e barba, que em sua juventude haviam sido loiros muito claros, agora estavam totalmente brancos, mas espessos e sedosos, destacando ainda mais a tez bronzeada pelos meses de guerra. Eu o via como um homem forte, um aliado fiel e um soberano inteligente. Ele me cumprimentou como se eu fosse o Grande Rei em pessoa e em seguida apresentei Morgan, que se vestira de rosa-forte e branco, prendendo os cabelos numa trança entremeada de fios de ouro. Ela estendeu a mão, fez uma profunda reverência, entregou a face para um rápido beijo, e depois

montou na égua, enfrentando os olhares curiosos dos outros membros do séqüito do rei com fria e tranqüila compostura. Vi Accolon, com uma expressão de raiva, deixar-se ficar no final do cortejo, enquanto os acompanhantes de Urbgen nos cercavam para nos conduzir à cidade situada no ponto de encontro de três rios, cercada pelas árvores avermelhadas do outono. A viagem fora agradável, mas terminei detestando tê-la feito porque o pior de meus temores tornou-se realidade: Morgause chegou para o casamento. Três dias antes da cerimônia um mensageiro veio galopando, trazendo a notícia de que fora avistado um navio na entrada do estuário, com a vela preta e o escudo dos orcadianos. O rei Urbgen foi recebê-lo pessoalmente no porto. Mandei meu criado se informar do que estava acontecendo e ele voltou bem rápido, praticamente antes do pessoal das Orkneys desembarcar. Contou-me que o rei Lot não viera e quem chegara fora a rainha Morgause, com um grande séqüito. Mandei o rapaz seguir para o sul com um alerta para Artur. Não seria difícil para ele inventar uma desculpa para não estar presente à cerimônia. Por sorte eu poderia me manter longe de Morgause: alguns dias antes Urbgen me pedira para inspecionar as estações de sinalização situadas na margem do estuário. Assim, com bastante pressa e uma certa falta de dignidade, saí da cidade antes de chegar a comitiva de Morgause e só voltei na véspera do casamento. Posteriormente eu soube que Morgan também evitara encontrar-se com a irmã, o que não pareceu estranho para uma noiva ocupada com os preparativos para uma cerimônia real. Eu estava perto quando as irmãs se encontraram junto ao portão da igreja onde Morgan iria se casar dentro dos ritos cristãos. Ambas estavam magnificamente vestidas e acompanhadas, e trocaram abraços e cumprimentos com encantadores sorrisos. Todavia eles eram fixos, como se tivessem sido pintados em suas bocas. Morgan entrou na igreja usando uma coroa e jóias de incrível beleza que haviam sido presenteadas por Urbgen, mas entre elas reconheci uma que Uther dera a Ygraine nos primeiros tempos de sua paixão. O corpo esbelto mantinha-se ereto apesar do peso do manto púrpura bordado em prata e ostentando uma longa cauda, e o rosto estava calmo e muito belo. Ela me fez lembrar de Ygraine quando jovem e desejei com grande fervor que os relatos que falavam de uma profunda antipatia entre as irmãs fossem verdadeiros, porque assim Morgause não tentaria se aproximar de Morgan agora que esta estava à beira de uma alta posição e poder. Eu me sentia inquieto porque não conseguia ver outro motivo senão esse para a bruxa vir assistir pessoalmente ao triunfo da irmã e ficar em segundo plano, tanto em beleza como importância. Nada conseguiria tirar de Morgause a beleza em tons de ouro e rosa que parecia ir aumentando com a passagem dos anos, embora todos pudessem ver que estava novamente grávida. Trouxera consigo o filho que nascera depois de eu deixar Dunpeldyr, ainda uma criança de colo. Morgause me surpreendeu olhando para ele e sorriu. Sabia que eu pensava no outro que, meio esperançoso, meio apreensivo, continuava procurando. Eu, na posição de representante do Grande Rei, entrei acompanhando a noiva. Acatando meu conselho, Artur não viera para a cerimônia. Infelizmente, o desejo de me manter distante de Morgause não se realizou. No banquete, nós dois, como parentes da noiva, sentamos lado a lado na grande mesa. O salão era o mesmo onde Uther dera a festa da vitória que resultará em sua morte. Num quarto desse castelo Morgause deitara-se com Artur para conceber Mordred e, na manhã seguinte, num amargo entrechoque de vontades, eu destruíra seus planos e a expulsara para longe de Artur. Esse fora nosso último encontro. Ela obviamente continuava ignorando que eu fora a Dunpeldyr e vigiara seus movimentos por vários meses.

Por várias vezes surpreendi-a me olhando de soslaio e imaginei, apreensivo, se podia perceber que agora eu não tinha mais defesa contra suas artes. Em nosso último encontro ela tentara seus truques de bruxa contra mim e eu pudera sentir sua potência quando eles se fecharam sobre minha mente, como se fossem uma teia, mas na época seria como uma aranha querer prender um falcão. Eu fizera seus encantamentos voltarem para ela, achatando sua fúria com a simples autoridade do poder. Mas ele agora me abandonara e eu não saberia dizer se Morgause tinha a capacidade de avaliar minha fraqueza. Procurei um tom bem polido quando comecei a conversar com ela.. — Você tem um belo filho, Morgause. Qual é o nome dele? — Gawain. — Ele se parece muito com o pai. Ela abaixou as pálpebras e disse suavemente: — Meus dois filhos saíram muito parecidos com o pai. — Dois? — Ora, Merlin, onde está sua arte? Vai me dizer que acreditou nos mexericos a respeito? Você, acima de todos, devia saber que eram mentiras. — Eu logo soube que não era verdadeiro o boato de que Artur ordenara a matança, apesar da calúnia que você lançou sobre ele. — Eu? — Os olhos verdes se arregalaram numa expressão de inocência. — Sim, você. O massacre pode ter sido obra de Lot, que é dado a explosões de cólera, e com certeza foram seus homens que jogaram os bebês no barco e o mandaram para o alto-mar, mas quem o levou a isso? Você tinha tudo planejado, até mesmo o assassinato daquela pobre criança no berço. Não foi Lot que matou Macha e levou o outro bebê para um esconderijo. — Repeti o tom de zombaria que ela usara comigo. — Vamos, Morgause, onde está sua arte? Você sabe que é inútil tentar se fingir de inocente comigo. À menção do nome de Macha vi o medo surgir nos olhos verdes como uma centelha, mas não percebi outro sinal. Morgause continuava ereta na cadeira, os dedos em torno da haste de sua taça de ouro, virando-a vagarosamente. Pude ver uma veia pulsando aceleradamente em seu pescoço. Para mim foi uma satisfação, embora amarga. Eu estava certo, Mordred continuava vivo, possivelmente no arquipélago chamado de Orkneys, onde a palavra de Morgause era a lei e onde eu, sem a vidência concedida pelo poder, não poderia encontrá-lo. — Você viu? — A voz veio bem baixa. — Naturalmente. Quando você conseguiu esconder alguma coisa de mim? Saiba que está tudo perfeitamente claro para mim e também, talvez nem precise lembrá-la, para o Grande Rei. Ela manteve-se imóvel, aparentemente composta, exceto pela veia que pulsava sob a pele de pêssego. Imaginei se conseguira convencê-la de que eu ainda era alguém que devia ser temido. Talvez, porque dificilmente Lind teria voltado para o seu serviço e não havia motivo para ela se lembrar de Beltane. A gargantilha que o ourives fizera se movimentou em seu pescoço e as pedras cintilaram quando ela engoliu em seco e falou numa vozinha tão fina que quase não a consegui ouvir no burburinho do salão. — Então, Merlin, você também deve ter visto que, apesar de eu tê-lo salvo das mãos de Lot, não

sei onde está. Será que você pode informar seu paradeiro? — Espera mesmo que eu acredite nisso? — Você tem de acreditar porque é a pura verdade. Não sei onde ele está. — Morgause virou o rosto para me encarar. — E você? Não respondi. Apenas sorri, peguei minha taça e bebi, mas sem olhar para Morgause senti nela um súbito relaxamento que fez minha pele se arrepiar diante da possibilidade de eu ter me enganado. — Mesmo se eu soubesse — continuou ela —, como poderia mantê-lo perto de mim quando é tão parecido com o pai como se fossem duas gotas do mesmo vinho? — Ela bebeu da taça, colocou-a sobre a mesa e depois recostou-se na poltrona, cruzando os braços no colo, um gesto que destacou o ventre grávido. — Sorriu para mim; ódio e maldade sem nenhum vestígio de medo. — Então faça uma profecia a respeito deste aqui, já que não conseguiu fazer sobre o outro. É menino também? — Não tenho a menor dúvida — previ brevemente e ela soltou uma gargalhada. — Estou contente em saber disso. Não vejo utilidade para meninas. — Os olhos verdes fixaramse na noiva, sentada bela e composta ao lado de Urbgen. Ele bebera bastante e um corado forte tomara conta de suas faces, mas mantinha a dignidade, embora acariciasse a nova esposa com o olhar. Morgause ficou observando por um instante e depois falou com desdém: — Então finalmente minha irmã fisgou um rei, como sempre desejou. Um belo reino, sem dúvida, com uma agradável capital e muitas terras. Mas um velho, já quase perto dos cinqüenta, com filhos crescidos... — Ela alisou a frente do vestido. — Lot pode ser um tolo sujeito a explosões de cólera, como você falou, mas é um homem no auge de suas forças. Foi uma isca, mas eu não a mordi. — A propósito, onde está Lot? Por que não veio com você? Para minha surpresa, Morgause respondeu num tom normal, aparentemente abandonando o verdadeiro jogo de xadrez em que tínhamos nos empenhado. Lot voltara para o leste, indo com Urien, seu cunhado, para a Northumbria, onde estava inspecionando a extensão do Dique Negro. Já escrevi sobre ele antes. É um braço do mar do Norte que penetra no território e fornece uma certa defesa contra incursões vindas no litoral nordeste. Morgause falou sobre ele com conhecimento e, apesar de tudo, interessei-me pelas informações e a conversa que se seguiu teve um clima muito mais leve. Depois alguém me perguntou qualquer coisa sobre o casamento de Artur e Morgause riu, perfeitamente à vontade: — O que adianta perguntar essas coisas a Merlin? Ele pode saber de tudo o que acontece no mundo mas, se lhe pedirem que descreva uma festa de casamento, aposto que não será capaz de dizer qual era a cor dos cabelos ou do vestido da noiva! Depois disso a conversa se generalizou em torno de nós, com muitas risadas e brincadeiras. Houve uma série de discursos e brindes, e eu devo ter bebido mais do que o comum, porque me lembro como as luzes das tochas aumentavam e diminuíam enquanto a conversa e gargalhadas vinham em ondas, e com elas um perfume de mulher, mais adocicado do que o do jasmim, que pegava e prendia meus sentidos como a resina prende uma abelha. O aroma do vinho às vezes conseguia suplantá-lo. Um jarro de ouro se inclinava e minha taça voltava a se encher. Alguém sorriu, dizendo: "Beba, meu senhor". Senti o gosto de damascos em minha boca, doce e pungente, e a pele da fruta tinha a textura que me fez lembrar do corpo de uma abelha ou vespa morrendo ao sol contra um muro de jardim... E durante o tempo todo havia olhos me observando, primeiro com cautelosa esperança, depois com desdém e em seguida com triunfo... Então me vi cercado de criados, que me ajudavam a levantar da

poltrona, e ao olhar para o lado notei que a noiva já se retirara e que o rei Urbgen vigiava a porta dos seus aposentos particulares com impaciência, esperando o sinal para entrar. A poltrona ao meu lado estava vazia.

6 Na manhã seguinte, acordei com uma dor de cabeça igual às piores que eu costumava ter depois de uma sessão de magia e por isso não saí de meus aposentos. No dia seguinte despedi-me de Urbgen e sua rainha. Já tivéramos uma série de reuniões formais antes da chegada de Morgause e agora, para meu imenso alívio, eu podia dar minha missão por terminada e ir para a floresta, em cujo âmago ficava o castelo de Galava, do conde Ector. Não me despedi de Morgause. Foi bom eu estar novamente ao ar livre e dessa vez com apenas dois companheiros. A comitiva que viera com Morgan era constituída principalmente de pessoas da Cornualha, que ficariam morando com ela em Luguvallium. Os dois homens que viajavam comigo haviam sido cedidos por Urbgen e, depois de me acompanharem até Galava, voltariam para sua cidade. Em vão eu tentara convencer o rei de que gostaria mais de ir sozinho e que não enfrentaria perigos. Ele só ficou repetindo, sorridente, que nem mesmo minha magia valeria contra os lobos ou os fechados nevoeiros, e falando das súbitas tempestades de neve que, nessa época do ano, costumavam surpreender os viajantes nos passos entre as montanhas íngremes, resultando em morte certa. Suas palavras foram um lembrete de que, agora que o meu poder desaparecera, restando para mim apenas a fama de possuí-lo, eu estava sujeito a ser atacado por loucos ou bandoleiros como qualquer outro viajante que enfrentasse sozinho aquelas paragens perigosas. Assim, aceitei a escolta com palavras de agradecimento e creio que, por isso, salvei minha vida. Saímos da cidade usando a ponte e entramos no agradável vale verdejante que o rio atravessa preguiçosamente. Apesar da dor de cabeça ter desaparecido, eu ainda sentia uma certa lassidão e foi com prazer que aspirei o ar fresco perfumado pelos pinheiros. Lembro-me de um pequeno incidente. Enquanto atravessávamos os portões da cidade e entrávamos na ponte, ouvi um grito agudo, que imaginei ser de um dos pássaros que se alimentavam dos peixes do rio. Foi então que um movimento atraiu meu olhar e avistei uma mulher com uma criança no colo, caminhando pela margem arenosa que ficava sob a ponte. A criança chorava e a mulher tentava acalmá-la. Reconheci nela a babá de Morgause. Então meu cavalo saiu da ponte e os salgueiros as esconderam de vista. Não dei muita atenção ao incidente e pouco tempo depois já o esquecera por completo. Continuamos em frente, atravessando aldeias e granjas prósperas, com grande número de animais pastando na relva muito verde. Quando nos aproximamos do ninho de montanhas e lagos que sinalizam os limites da grande floresta, as colinas mais abaixo pareciam flamejar sob o sol devido às cores do outono. Logo chegamos à borda de floresta Perigosa em si, onde as árvores crescem tão juntas nos vales que impedem a entrada dos raios do sol. Pouco tempo depois atravessamos a trilha que levava para a Capela Verde. Senti vontade de visitá-la, mas isso acrescentaria algumas horas à viagem e eu sabia que quando estivesse em Galava chegaria com mais facilidade até ela. Assim, nos mantivemos na estrada, indo por ela até Petrianae. Atualmente esse local mal merece o nome de cidade, mas nos tempos romanos era um próspero centro, devido ao seu grande mercado. Ainda existe um mercado onde algumas poucas vacas, carneiros e cereais trocam de mãos, mas Petrianae não é mais do que um amontoado de cabanas e do antigo santuário só restam alguns muros de pedra e um altar desmoronado dedicado a Marte, na pessoa do deus local, Cocidius. Não vi nenhuma oferenda além de uma funda de couro, como as usadas pelos pastores, colocada sobre uma pequena pilha de pedras junto a alguns degraus cobertos de limo. Imaginei de que

animal, lobo ou homem violento, o pastor conseguira fugir para agradecer desse jeito. Depois da cidade saímos da estrada e começamos a percorrer as trilhas montanhosas. Progredimos tranqüilamente, gozando do calor do sol de outono, que permaneceu nos aquecendo mesmo ao atingirmos terrenos mais altos, embora ali já fosse possível sentir certas rajadas de ar frio, significando que as primeiras geadas não demorariam a cair. Paramos para dar descanso aos cavalos e pouco depois um pastor veio se aproximando de nós conduzindo os carneiros de lã levemente azulada, típicos de Reghed. Como é comum nesse tipo de gente, o rapaz estava tão pouco habituado a falar que nos saudou com dificuldade e um sotaque tão carregado que até mesmo meus acompanhantes, nascidos na região, não conseguiram entendê-lo e eu, que tenho talento para línguas, precisei me esforçar para compreender o que dizia. Parecia ter conversado com os Antigos e estava querendo transmitir a notícia que recebera. Artur ficara em Caerleon quase um mês depois do casamento e em seguida partira para o vão dos Peninos, aparentemente seguindo para Olicana e a planície de York, onde se encontraria com o rei de Elmet. Eu não podia dizer que isso era grande novidade para mim, mas pelo menos estava recebendo a confirmação de que não houvera movimentos de guerra para perturbar a paz do final de outono. O pastor, contudo, reservara a parte melhor para o fim. O Grande Rei fora para o norte, mas deixara a rainha grávida em seu castelo. Ao ouvir isso, meus acompanhantes fizeram um ar de claro ceticismo. Como, no espaço de um mês, alguém podia afirmar uma coisa dessas? Todavia, quando pediram minha opinião, mostrei-me mais crédulo, pois sei que os Antigos têm meios de saber que não podem ser entendidos, mas devem ser respeitados. Se o rapaz tivesse ouvido a notícia deles... Era verdade, mas ele não sabia mais nada. O rei fora para Elmet e a moça com quem ele se casara estava grávida. Agradeci ao pastor e dei-lhe uma moeda, o que o fez voltar para seus carneiros com um ar satisfeito. Naquela noite ainda estávamos bem distante de estradas e não existia a possibilidade de encontrarmos alojamento, de modo que acampamos numa clareira e os homens cuidaram do fogo e da comida. Eu só bebera água durante a viagem, algo que sempre faço quando estou em território montanhoso, onde ela verte pura e fresca das fontes, mas para brindar às notícias transmitidas pelo pastor abri um frasco de vinho que viera da adega de Urbgen. Ofereci um pouco a meus companheiros, mas eles agradeceram dizendo que tomariam do seu. Assim comi e bebi sozinho, e depois deitei-me para dormir. Não posso escrever sobre o que aconteceu em seguida. Os Antigos, contudo, conhecem bem a história e é possível que em algum lugar qualquer um outro homem a tenha registrado, mas eu só me recordo vagamente dela, como se fosse uma sucessão de cenas vistas num cristal escuro e esfumaçado. Mas não foi nenhuma visão. Essas cenas me vêm à memória mais claras do que lembranças recentes. Foi um tipo de loucura, causada, como agora sei, por alguma droga colocada no vinho que tomei. Nas duas vezes anteriores em que Morgause e eu nos confrontáramos como inimigos, ela tentara atirar suas bruxarias sobre mim, mas sua magia de noviça mal resvalara em mim. Mas nessa última vez... a festa de casamento, o aroma de jasmim e o sabor de damascos. Eu, habitualmente frugal na comida e vinho, sendo carregado bêbado para a cama. Ela devia ter tentado suas artes de novo e descoberto que agora sua mágica era forte o suficiente para me enredar em suas teias pegajosas. Talvez as sementes da loucura houvessem sido plantadas na festa para germinarem quando eu estivesse bem distante, quando nenhuma culpa cairia sobre ela. Sua criada fora para perto da ponte com a intenção de ver qual era meu estado ao deixar a cidade e certamente participara da trama para colocarem uma poção

maléfica, que se somaria à primeira, em um dos frascos que eu carregaria. A sorte também ajudara Morgause. Se eu não tivesse recebido a notícia da gravidez de Guinevere, dificilmente abriria o frasco de vinho. Mas, como o planejado, eu estava bem distante de Luguvallium quando tomei o veneno. Não precisei mais procurar o motivo para Morgause ter comparecido ao casamento da irmã. Seja qual tenha sido o veneno, meus hábitos frugais me salvaram. Só sei do que aconteceu, depois de beber o vinho e me enrolar no cobertor para dormir, por meio de poucas informações, bastante desencontradas, e fiapos de minha memória. Parece que os soldados, assustados pelos meus gemidos, correram para junto de mim e se horrorizaram ao me ver gemendo, contorcido em dores e delirando. Fizeram o que puderam na hora, o que não foi muito, mas evitou minha morte, que certamente teria ocorrido se eu estivesse sozinho. Eles me obrigaram a vomitar, trouxeram seus cobertores para me aquecer mais e aumentaram o fogo. Então um deles ficou a meu lado enquanto o outro corria para o vale à procura de socorro e acomodações. Sua intenção era mandar alguém para me ajudar, enquanto prosseguia rapidamente até Galava levando a notícia. Quando esse homem partiu, o outro continuou mantendo o fogo alto e me dando goles de água. Depois de umas duas horas eu adormeci e, embora o sono não parecesse normal, ele aproveitou a oportunidade para urinar. Ao ver de uma certa distância que eu continuava dormindo, resolveu pegar mais água no riacho, que ficava a pouco mais de vinte passos do acampamento. Vendo galhos secos por perto, pensou na fogueira e juntou alguns deles. Tudo isso não levou mais do que alguns minutos mas, quando ele voltou para perto do fogo, eu havia desaparecido sem deixar vestígios. Depois de me procurar por muito tempo, revirando até pedras, ele montou e partiu ao encontro de seu companheiro. Afinal, desaparecimentos estranhos eram atribuídos a Merlin, o mago, e um simples soldado não teria dúvidas do que acontecera. Merlin havia desaparecido e tudo o que seus dois acompanhantes podiam fazer era apresentarem seu relatório e esperarem sua volta. Foi um longo sonho. Não me recordo de seu começo, mas suponho que, impulsionado por uma força trazida pelo delírio, levantei-me dos cobertores, me afundei na vegetação espessa daquela parte da floresta e em seguida caí em alguma vala ou buraco. Devo ter me recuperado a tempo para me abrigar do frio e naturalmente devo ter encontrado alimento e até feito fogo durante as semanas tempestuosas que se seguiram, mas não me recordo de nada disso. Minhas lembranças agora vêm numa série de quadros que permanecem claros e imóveis enquanto vou de um para outro, flutuando como se estivesse sendo levado pela água. E assim vaguei pelas profundezas da floresta, oculto dos grupos de salvamento pela neblina espessa. Vi javalis e veados, e lobos também, mas não fui atacado. Era como se eu não tivesse corpo para ser farejado. Então chegou a neve. Tenho uma breve visão dos flocos caindo no silêncio gelado, de árvores secas e arbustos endurecidos, e em seguida o frio terrível e silencioso... Uma caverna, com seu cheiro peculiar e o de fumaça de turfa, o sabor de um cordial e vozes incultas falando na língua áspera dos Antigos, como se estivesse acontecendo uma confabulação a uma certa distância de mim. O fedor de peles de lobo mal curtidas, a coceira causada por ataduras ásperas e, uma vez, um pesadelo de membros amarrados e um peso me mantendo deitado... Aqui vem um longo intervalo de escuridão, mas em seguida vejo o sol e nova vegetação, ouço o

canto de um pássaro e surge diante de meus olhos uma encosta coberta de narcisos amarelos, parecendo feita de ouro líquido. A vida voltando à floresta: raposas magras andando sem fazer barulho; o solo pulsando com a saída dos texugos de suas tocas; veados elegantes e tranqüilos, e de novo os javalis, à procura de comida. E depois um sonho absurdo e enevoado de encontrar um porquinho ainda com a pelagem sedosa de um recém-nascido, sozinho, mancando com uma perna quebrada, abandonado pela sua espécie. Então, subitamente, numa madrugada cinzenta, o som de cavalos a galope enchendo a floresta, o tilintar de espadas e o zunir de machadinhas, os gritos e homens e feras feridas, como um sonho intermitente sobre violência, um dia inteiro de luta que terminou com um silêncio pesado e o odor de sangue e mato pisado. Depois o silêncio e o perfume de macieiras, e o sofrimento que volta quando alguém acorda para sentir de novo uma perda que fora esquecida no sono.

7 —Merlin! — soprou Artur em meu ouvido. — Merlin! Abri os olhos. Eu estava deitado numa cama em um cômodo que parecia ficar bem alto, porque eu só via o ápice de copas de árvores aparecendo acima do peitoril de uma janela. O sol claro e alegre de início de manhã derramava-se sobre paredes de pedra, cuja curva me mostrou que eu estava numa torre. O ar que entrava era bem frio, mas dentro do quarto um braseiro queimava e eu estava aninhado em cobertores e linho de boa qualidade cheirando a cedro. Algum tipo de erva fora colocado sobre os carvões e a fumaça fina que emanava deles tinha um aroma fresco e resinoso. Não havia cortinas ou cortinados, mas espessas peles de carneiro cobriam quase todo o piso. Vi uma cruz de madeira na parede a minha frente. Um lar cristão e, como tudo indicava, muito rico. Numa mesinha ao lado da cama, um jarro e uma taça de cerâmica, e uma tigela de prata. Um banquinho mais distante, onde provavelmente se sentara o criado que cuidara de mim. Agora ele estava em pé, com as costas na parede e os olhos fixos não em mim, mas no rei. Artur soltou um longo suspiro e parte da cor voltou ao seu rosto. Parecia diferente. Os olhos escuros de fadiga, pele seca, faces encovadas. A juventude desaparecera por completo de suas feições. Diante de mim estava um homem vivido, sustentado por uma vontade que diariamente o impulsionava, junto com seus seguidores, ao seus limites e mais além. Estava ajoelhado ao lado da cama. Quando movi os olhos para fixá-los nele, sua mão de fechou em torno de meu pulso num breve gesto de alívio e encorajamento. Pude sentir os calos em sua palma. — Merlin? Está me reconhecendo? Pode falar? Tentei formar uma palavra, mas não consegui. Meus lábios estavam secos e rachados. Sentia a mente clara, mas o corpo se recusava a me obedecer. Artur passou os braços em torno de meus ombros, erguendo-me da cama, e a um sinal seu o criado se aproximou, encheu a taça e entregou-a a ele, que a aproximou de meus lábios. Era um estimulante, doce e forte. Pegou o guardanapo que o homem estendia, enxugou meus lábios e voltou a me acomodar contra os travesseiros. Sorri para ele. Devo ter mostrado pouco mais do que um ligeiro movimento de músculos. Tentei falar seu nome: "Emrys", mas não ouvi nenhum som. Creio que saiu apenas como um suspiro. — Não fale — disse ele, pegando novamente a minha mão. — Não se esforce. Fiz mal em querer forçá-lo a falar. Você está vivo e isso é o que importa. Agora descanse. Meu olhar, vagando pelo quarto, caiu sobre algo atrás dele: minha harpa sobre uma cadeira. Ainda sem emitir qualquer som, falei: "Você encontrou minha harpa", e um grande alívio e alegria percorreram meu corpo, com se agora eu tivesse certeza que estava tudo bem. — Sim, nós a encontramos — contou Artur, que seguira meu olhar. — Está em perfeitas condições. Agora descanse, meu querido. Tudo está bem, muito bem... Tentei falar seu nome de novo, mas não consegui e deslizei de volta para a escuridão. Como se estivem vindo de muito longe, lembro-me de ordens dadas em voz baixa, homens apressados, passos abafados, o farfalhar de vestidos de mulheres, mãos frescas e vozes suaves. Depois o conforto do esquecimento. Quando acordei de novo eu estava plenamente consciente, como se estivesse saindo de um sono longo e reparador. Tinha a mente clara e, apesar de me sentir muito fraco, tomei consciência plena de

meu corpo. Virei a cabeça devagar e em seguida as mãos. Estavam rígidas e pesadas, mas eu as comandava. Fosse onde eu estivera vagando, eu voltara ao meu corpo, saindo do mundo dos sonhos. Pude notar que era noite. Um criado — um outro agora — esperava perto da porta, mas uma coisa continuava a mesma. Artur ainda estava ali. Puxara o banquinho para perto da cama e sentara-se nele. Quando virou a cabeça e me viu de olhos abertos, seu rosto mudou. Inclinou-se e pegou novamente meu pulso, com o toque gentil de um médico querendo encontrar a pulsação. — Por Deus — falou. — Você nos pregou um susto! O que aconteceu? Não, esqueça. Teremos tempo para isso mais tarde. Agora é bastante saber que você voltou para nós. Agora me parece melhor. Como se sente? — Estive sonhando. — A voz não pareceu ser minha. Era como se viesse de um ponto distante, quase fora de meu controle, e saiu muito débil, como o grunhido do porquinho quando consertei sua perna quebrada. — Devo ter adoecido. — Adoecido? — Artur deu uma risadinha sem o menor vestígio de alegria. — Você ficou completamente louco, meu caro profeta do rei. Cheguei a pensar que jamais recuperaria o juízo. — Devo ter tido uma febre qualquer. Não me lembro... — Franzi o cenho, tentando forçar a memória. — Sim. Eu estava viajando para Galava com dois soldados de Urbgen. Acampamos perto da estrada dos lobos... Mas onde estou agora? — Em Galava. No castelo de Ector. Voltou ao lar. Ali fora o lar de Artur, mais do que o meu. Devido à necessidade de manter o segredo, eu jamais morara no castelo e passara os anos na capela da floresta. Mas, quando virei a cabeça e aspirei o aroma dos pinheiros, o cheiro fresco do lago e dos canteiros de Drusilla ao pé da torre, senti uma grande segurança, como se tivesse encontrado uma luz depois de uma grande caminhada no meio do nevoeiro. — A batalha que presenciei? Foi de verdade ou só imaginação? — Foi real, mas não tente conversar mais. Tudo está bem agora, repito. Repouse, repouse bastante. Como se sente? — Faminto. Essas palavras, como seria de se esperar, deram início a um novo burburinho. Criados trouxeram sopa, pão e mais cordiais, e a condessa Drusilla em pessoa me alimentou e de novo me acomodou para um sono pesado e bem-vindo. Outra manhã, a mesma claridade e ar fresco do dia anterior. Eu ainda me sentia fraco, mas já tinha o controle sobre mim mesmo. Tudo indicava que o rei dera ordens de ser chamado assim que eu acordasse, mas dessa vez eu não iria permitir que ele viesse antes de eu ter feito a barba, tomado um banho e comido. Quando finalmente ele entrou tinha um aspecto bem melhor. O brilho cansado em seus olhos havia diminuído e o rosto estava mais corado sob o bronzeado. Parte de sua característica mais especial também voltara: a força que emanava dele, a força jovem da qual os homens podiam beber, como se nele existisse uma fonte, e se sentir revigorados. Tive de insistir para convencê-lo de que eu estava mesmo melhor antes de conversarmos, mas ele acabou concordando e passou a me dar as novidades. — A última notícia que tive — falei —, foi que você tinha ido para Elmet... mas creio que isso agora é história antiga. Imagino que a trégua foi rompida, não? E qual foi a batalha que assisti? Deve ter

acontecido aqui, na floresta caledoniana. Quem tomou parte nela? Artur me encarou com um olhar que achei estranho, mas respondeu prontamente. — Urbgen mandou me chamar. O inimigo conseguiu romper as defesas e entrou em Strathclyde. Caw não conseguiu contê-los. Eles então forçaram passagem pela floresta com a intenção de atingirem a estrada. Foi lá que nos defrontamos. Rompemos suas linhas e os fizemos voltar. Os que ficaram para trás fugiram para o sul. Minha intenção era segui-los, mas foi então que o encontramos... Como eu poderia partir antes de saber que você estava em segurança, sendo bem cuidado? — Quer dizer então que assisti mesmo ao combate? Tive a impressão que era parte de um sonho. — Você deve ter visto tudo. Combatemos dentro da floresta, ao longo do rio. Você conhece bem o lugar, terreno bom e aberto, com árvores sem muitos galhos, espaçadas, ideal para um ataque de surpresa com uma cavalaria ligeira. Tínhamos o terreno montanhoso em nossa retaguarda e os surpreendemos quando estavam chegando ao ponto onde se pode atravessar o rio a vau. Ele estava cheio; fácil para cavaleiros, mas uma armadilha para soldados a pé... Mais tarde, quando voltávamos da primeira investida, vieram nos contar que você estava lá. Fora encontrado vagando entre os mortos e feridos, dando instruções aos médicos... De início ninguém o reconheceu, mas logo começou a correr o boato de que o fantasma de Merlin estava por ali. — Um sorrisinho maroto. — Parece que os conselhos do fantasma eram muito bons, mas alguns tolos ficaram com medo e começaram a atirar pedras para espantá-lo. Foi um dos meus ordenanças, Paulus, que pôs fim nos boatos. Ele o seguiu até onde você estava vivendo e depois mandou me chamar. — Paulus. Sim, claro. Um bom homem. Já trabalhou muito comigo. E onde eu estava morando? — Numa pequena torre em ruínas, com um antigo pomar a sua volta. Lembra-se dela? — Não, mas algo está voltando. Sim, ruínas cobertas de hera, corujas. Macieiras? — Sim. Era pouco mais do que uma pilha de pedras, com um monte de agulhas de pinheiro num dos cantos para servir de cama. Muitas maçãs estragadas por ali, nozes e castanhas numa vasilha quebrada, e trapos pendurados nas árvores para secar. — Artur engoliu em seco e vi que estava comovido. — No começo pensavam que você era um desses eremitas malucos e, de fato, quando o vi... — Um sorriso mais alegre. — Você não estava tão adequado ao papel quando morou na Capela Verde. — Posso imaginar. E era verdade. Minha barba, antes do criado tê-la cortado, estava comprida e grisalha, e minhas mãos sobre as cobertas coloridas pareciam magras e velhas, ossos amarrados por uma rede de veias tortas. — Então o trouxemos para cá. Tive de partir para o sul logo em seguida. Encontramos os saxões em Caer Guinnion e o combate foi sangrento, mas felizmente vencemos. Pouco depois chegou um mensageiro de Galava com notícias assustadoras. Quando o trouxemos para cá, sua condição física não era das piores, mas você estava completamente louco. Não reconhecia ninguém, não falava coisa com coisa, não dormia. As mulheres cuidaram de você por um bom tempo e finalmente você se aquietou e pegou no sono. Veio então uma febre forte, você delirou muito e finalmente caiu num sono tão pesado que imaginaram que estava para morrer. Foi isso que o mensageiro foi me comunicar no final da batalha. Vim assim que pude. Estreitei os olhos. A claridade que vinha pela janela havia aumentado. Artur fez um sinal para o criado, que puxou uma cortina.

— Vamos esclarecer as coisas, Artur. Depois de me encontrar na floresta você me trouxe para cá e em seguida foi para o sul. Houve uma outra batalha... Há quanto tempo estou aqui? — Nós o encontramos há três semanas, mas faz sete meses que você se perdeu na floresta. Passou o inverno inteiro lá. Não é de admirar que o dávamos por morto. — Sete meses? Por várias vezes, quando atuava como médico, eu tivera de dar esse tipo de informação para pacientes que saíam de longas febres ou coma, e sempre vira o mesmo tipo de incredulidade e choque... O que não teria acontecido num país tão dividido e envolto em guerras como o meu? E com o seu rei? Outras coisas, até ali esquecidas nas brumas da doença, começaram a voltar à minha memória. Olhando para Artur, vi de novo, e com temor, os maxilares encovados e as olheiras que me contavam sobre noites insones. Meu menino, que comia com o apetite de um jovem lobo e dormia como um bebê, antes uma criatura sempre relacionada com a resistência e alegria. Não houvera derrotas no campo de batalha; ali sua glória permanecia imaculada. A preocupação comigo, por mais intensa que fosse, não resultaria em tal abatimento. Restava então a vida familiar. — Emrys, o que aconteceu? O nome de infância veio naturalmente, pois afinal estávamos em Galava. Vi seu rosto se contorcer numa lembrança de sofrimento. Ele inclinou a cabeça e fixou o olhar nas cobertas. — Minha mãe, a rainha. Ela morreu. A visão que eu tivera voltou. A mulher deitada na grande cama, as cortinas enfunadas. Sim, eu fora avisado. — Lamento. — A notícia chegou um pouco antes da batalha de Caer Guinnion. Lucan trouxe a notícia, junto com uma lembrança que você lhe pedira para guardar. Um broche, um talismã cristão, lembra-se? A morte da rainha não foi surpresa, mas creio que a tristeza ajudou a apressar seu fim. — Tristeza? O que poderia... — Parei no mesmo instante. Agora voltava à minha lembrança, com toda a clareza, a noite na floresta em que eu abrira o frasco de vinho para comemorar... A mesma visão, â mulher morta na cama... O temor fechou minha garganta e foi com dificuldade que consegui falar: — Guenever? Artur só fez que sim, sem levantar a cabeça. — E a criança? Desta vez ele ergueu o olhar para mim. — Você está sabendo? Sim, é claro... Disseram que ela estava grávida, mas um pouco antes do Natal ela começou a sangrar e depois, no ano-novo, morreu sofrendo grandes dores. Se você estivesse lá... — Ele engoliu em seco. — Lamento — repeti. Artur continuou, numa voz tão dura que me pareceu cheia de raiva: — Pensávamos que você estivesse morto também, mas o encontramos no final da batalha, sujo, envelhecido e louco. Os médicos de campo, porém, me deram esperanças... pelo menos isso depois de tanto sofrimento no inverno... Então tive de deixá-lo para ir a Caer Guinnion. Ganhei, mas perdi alguns bons homens. Um pouco antes o mensageiro de Ector trouxera a notícia de que você estava muito mal e

talvez já tivesse morrido. Quando cheguei ontem de madrugada, pensava que encontraria seu corpo já enterrado ou cremado. Ele parou, apoiou a testa num punho crispado e permaneceu assim. O criado, que se mantinha em pé perto da janela, captou meu olhar e saiu sem fazer barulho. Alguns instantes depois Artur se endireitou e falou num tom normal: — Perdoe-me, mas durante toda a viagem para cá fiquei me lembrando de uma coisa que você me disse, que sua morte seria uma morte vergonhosa. Essas horas foram muito difíceis para mim. — Mas aqui estou, com saúde e juízo recuperados, e a mente pronta a se tornar mais clara quando você me contar tudo o que aconteceu nesses últimos meses. Agora faça a gentileza de me servir um pouco desse vinho e voltar à época de sua viagem para Elmet. Artur fez o que eu pedi e logo a conversa tornou-se muito mais fácil. Ele contou sobre sua viagem pelo vão dos Peninos até Olicana, o que encontrou lá e sobre a reunião que tivera com o rei de Elmet. Depois me fez o relato de sua volta a Caerleon e sobre o aborto espontâneo e morte da rainha. Dessa vez, quando o interroguei, ele foi capaz de responder com calma e no final ofereci-lhe o duvidoso conforto de saber que minha presença na corte não teria evitado o desenlace. Os médicos que tinham atendido Guenever eram competentes e haviam feito o possível para ela não sofrer demais com as dores. A criança fora mal concebida e nada seria capaz de salvá-la ou à rainha. Depois de ouvir minhas palavras de consolo, Artur pareceu mais conformado e ele mesmo mudou de assunto. Estava ansioso para saber o que me acontecera e mostrou-se um tanto irritado quando viu que eu me recordava muito pouco do que sucedera depois da festa de casamento em Luguvallium. — Mas será que não se lembra nem vagamente de como chegou à pequena torre onde o encontramos? — Não, mas as imagens vêm vindo de pouquinho em pouquinho. Devo ter vagado pela floresta e de alguma forma me mantive vivo até a chegada do inverno. Imagino que algumas das pessoas rudes que moram nas colinas tenham cuidado de mim e me dado abrigo. Sem isso eu não teria sobrevivido às nevascas. Estive pensando que elas poderiam ser gente da rainha Mab, os Antigos das regiões montanhosas, mas, se fossem eles, teriam dado um jeito de avisar você. — E foi o que fizeram, mas a notícia só chegou depois de você desaparecer de novo. Como de hábito, os Antigos ficaram presos pela neve em suas cavernas e você estava junto. Quando a neve derreteu, eles saíram para caçar e, quando voltaram não o encontraram mais. Foi através deles que soube, pela primeira vez, que você tinha enlouquecido. Contaram que precisavam amarrá-lo durante as crises e que quando elas terminavam você ficava tranqüilo, mas muito fraco, e era nessas ocasiões que saíam à procura de alimento. — Sim, lembro-me de estar amarrado. Imagino que nesse dia desci as encostas e fui terminar na torre arruinada perto do rio. Suponho que em minha loucura eu continuava querendo ir para Galava. Recordo-me muito vagamente da primavera. Foi então que me vi no meio da batalha e você me encontrou. Daí em diante, não me recordo de nada. Artur me contou de novo como eu fora encontrado, magro, sujo, dizendo coisas desconexas, e sobre meu esconderijo e reservas de nozes e maçãs, tendo apenas um porquinho com uma perna entalada por companhia. — Então essa parte era verdade! — Sorri. — Lembro-me de ter encontrado a criaturinha e cuidado de sua perna. Se eu estava tão cadavérico como me contou, foi muita delicadeza minha não ter comido Mestre Porquinho. O que aconteceu a ele?

— Está aqui mesmo, no chiqueiro. — O primeiro toque de humor encurvou ligeiramente os lábios de Artur. — E creio que está condenado a uma longa e não muito honrosa vida. Duvido que alguém tenha coragem de encostar a mão no porquinho de estimação de um mago, que, a propósito, parece que vai se tornar um feroz javali, de modo que terminará sendo o rei do chiqueiro, o que me parece bem adequado. Merlin, você me contou o pouco que lembra depois de ter acampado na estrada dos lobos. E antes disso? O que o fez adoecer? Os homens disseram que foi uma coisa súbita. Pensaram que fosse veneno, como eu no começo. Também imaginei que a bruxa tivesse mandado alguém seqüestrá-lo naquela noite, quando você estava mal e os soldados se afastaram. Mas, se fosse assim, ela com certeza daria ordem para matá-lo. Não houve suspeita alguma sobre os homens que o acompanhavam; eram gente de Urbgen, escolhidos a dedo. — Sem dúvida. Devo a eles minha vida. — Eles me contaram que você bebeu vinho de seu próprio frasco e que não aceitaram seu oferecimento. Também soubemos que você saiu bêbado da festa do casamento a ponto de precisar ser carregado, e ninguém melhor do que eu para saber que jamais chegaria a esse ponto. Além disso, sentou-se ao lado de Morgause. Você tem motivo para acreditar que ela colocou alguma coisa em seu vinho? Abri a boca para responder e até hoje juro que a palavra que começou a se formar em meus lábios foi "sim", o que, para mim, seria a verdade. Todavia, algum deus deve ter me impedido. Em vez do "sim" que estava formado em minha mente, respondi apenas: — Não. Devo ter soado estranho, porque vi Artur olhando fixamente para mim. Senti-me pouco à vontade e logo comecei a elaborar na resposta. — Como posso saber? Mas creio que não foi ela. Já lhe disse que não tenho mais poderes, mas a bruxa não sabe disso. Morgause ainda tem medo de mim. Tentou antes e não apenas uma vez, mas duas, me prender na armadilha de seus encantamentos rudimentares. Fracassou em ambas as ocasiões e penso que não se atreveria a tentar de novo. Artur ficou em silêncio por algum tempo e depois disse brevemente: — Quando minha rainha morreu, falaram em veneno. Ao ouvir isso, protestei sinceramente: — Sempre existe uma possibilidade mas, por favor, não a leve em consideração. Pelo que me contou, posso dizer com certeza que foi um aborto perfeitamente normal. — Em seguida, acrescentei no tom mais convincente que consegui: — Acredite-me Artur, se Morgause fosse culpada, por que eu quereria protegê-la de você? Ele ainda parecia em dúvida, mas não continuou o assunto. — Está bem — foi tudo o que disse. — De qualquer forma, ela agora está de asinhas cortadas, pelo menos por algum tempo. Voltou para Orkney e Lot morreu. Eu não disse nada, mas foi um outro choque. Quanta coisa mudara nos últimos meses! — Como? — perguntei. — E quando? — Na batalha na floresta. Não posso dizer que chorei sua perda, mas tenho de reconhecer que estava sendo muito útil em conter aquele rato do Aguisel. Creio que logo terei problemas vindos de lá. — Lembrei-me de mais uma coisa — falei vagarosamente. — Durante as lutas na floresta ouvi alguém dizer que o rei estava morto. Senti uma tristeza imensa porque, para mim, só existe um rei...

Então era de Lot que estavam falando. Sim, pelo menos nós o conhecíamos bem e podíamos nos precaver. Agora creio que Urien vai ter de cuidar de tudo sozinho no nordeste e com Aguisel por perto... Mas teremos muito tempo para falar nisso. E quanto a Morgause? Ela apareceu grávida em Luguvallium e a esta altura já deve ter dado à luz. Outro menino? — Dois. Gêmeos, nascidos em Dunpeldyr, para onde foi depois do casamento de Morgan. Seja bruxa ou não — disse Artur com uma certa amargura —, ela é uma boa parideira de homens. Quando Lot voltou a se reunir conosco aqui em Rheged, vangloriava-se de ter deixado outro menino na barriga da mulher antes de partir de Dunpeldyr. — Ele abaixou o olhar e mexeu as mãos. — Você deve ter conversado com ela por ocasião do casamento. Descobriu alguma coisa sobre o outro menino? Não precisei perguntar de quem Artur estava falando, mas me pareceu que não conseguia dizer "meu filho". — Só que ele está vivo. Seus olhos se ergueram rapidamente para mim. Houve um brilho neles, reprimido no mesmo instante. Eu poderia jurar que foi de alegria. Anteriormente Artur só pensava em encontrar o menino para matá-lo. — Morgause me disse que não sabe onde ele está — falei, forçando-me a ocultar a pena que eu sentia. — Ela pode estar mentindo, não tenho certeza. Mas deve ser verdade que o manteve escondido de Lot. Agora poderá apresentá-lo a todos. Com a morte do marido, tem pouco a temer. Você, talvez? Artur voltou a olhar para as mãos. — Quanto a isso, ela não precisa ter medo de mim. — Seu tom foi duro, contido. É tudo que me lembro dessa conversa. Ouvi alguém falar, mas tive a impressão de que o som ecoava baixinho, acompanhando as paredes curvas da torre, ou então existia apenas em minha cabeça. "Ela é a mulher mais falsa que existe, Grande Rei, mas deve viver para criar os quatro filhos que teve com o rei de Orkney, porque eles serão seus fiéis súditos e os mais valentes de seus Companheiros." Devo ter fechado os olhos, incapaz de lutar contra a onda de exaustão que tomava conta de mim, e adormecido porque quando os abri novamente era noite. Artur saíra e o criado estava ajoelhado ao lado da cama, me oferecendo um prato de sopa.

8 Tenho boa saúde e me recupero rapidamente. Logo depois dessa conversa, deixei a cama e cerca de quinze ou vinte dias depois já me sentia forte o bastante para seguir Artur, rumando para Caerleon. Ele viajara para lá duas semanas antes, porque um mensageiro trouxera a notícia de que navios de guerra haviam sido avistados no estuário do Severn, indicando que novos combates estavam próximos. Eu teria gostado de ficar um pouco mais em Galava, onde passaria o verão e visitaria meus antigos esconderijos na floresta, mas depois da chegada do mensageiro decidi que não poderia perder mais tempo, embora Ector e Drusilla insistissem para eu ficar. Não havia tempo a perder. A batalha agora era iminente e teria Caerleon como quartel general e, segundo o relatório, parecia que os invasores estavam decididos a destruir a principal fortaleza e centro de suprimentos do Grande Rei. Eu não tinha dúvidas de que Artur defenderia Caerleon, mas sentia que era mais do que hora de eu voltar a Caer Camel para ver como Derwen agira em minha ausência. O verão já estava em plena força quando visitei o lugar e constatei que a equipe liderada pelo engenheiro fizera maravilhas. A visão que eu tivera do local e desenhara em minhas plantas ia se tornando realidade. As obras externas estavam prontas e a grande muralha dupla, que misturava pedras com madeira, encimava o platô. Perfurando-a em dois cantos opostos, os portões constituíam uma cena impressionante. As espessas portas duplas de carvalho, com cravos de ferro, estavam abertas e sobre elas corria o caminho de ronda atrás de suas ameias. Já havia sentinelas ali. Desde o inverno, como Derwen me informara, o rei mandara armar o local e agora o trabalho de acabamento estava bem protegido pela muralha e podia avançar sem interrupções. O Grande Rei mandara comunicar que em julho ou agosto pretendia estar lá com seus companheiros e toda a cavalaria. Derwen achava que devíamos apressar as obras do quartel-general e os aposentos do rei, mas eu conhecia bem a mente de Artur e dei ordens para que o alojamento dos homens, cocheiras, cozinhas e áreas de serviço fossem terminadas em primeiro lugar. Os edifícios centrais também estavam bem adiantados, mas o rei, nessa primeira visita oficial, ficaria numa tenda de peles e madeira, como se ainda estivesse no campo de batalha. Não houve falta de mão-de-obra local. O povo que morava perto, grato pela edificação de uma fortaleza junto de suas aldeias, viera espontaneamente para ajudar a carregar e transportar, ou para oferecer seus ofícios aos nossos trabalhadores. No meio de toda essa gente tinham vindo homens jovem demais ou velhos demais, que Derwen pretendia dispensar, mas eu os incumbi de limpar o mato de um trecho de terreno não muito distante do edifício do quartel general, onde antigamente devia ter existido um templo. Nem eu nem eles sabiam a que deus o local fora consagrado, mas conheço bem os soldados e sei que os guerreiros sentem necessidade de ter um centro espiritual, onde encontram sempre uma luz e um pequeno altar para receber oferendas especiais, na tentativa de convencer seu deus a descer entre eles para um momento de comunhão, em que a força pode ser recebida em troca de fé e esperança. A limpeza e recuperação da fonte no alto da encosta norte, agora incluída no perímetro fortificado, ficaram a cargo das mulheres. Depois que os lenhadores cortaram os troncos mais grossos dos arbustos fibrosos e espinheiros, chamei-as e expliquei que o local ficaria ao seu cuidado e elas estavam mostrando grande disposição, pois era do conhecimento de todos que a fonte, em tempos imemoriais, fora consagrada à Grande Deusa. Devido aos muitos anos de abandono, o mato a cobrira por completo, impedindo que as mulheres fossem fazer suas oferendas e orações. De início percebi que

elas receavam que o santuário ficasse num local habitado apenas por homens, mas informei-as de que, assim que os saxões fossem expulsos, o Grande Rei pretendia transformar Caer Camel numa bela cidade, onde homens e mulheres entrariam e sairiam em paz, algo muito distante de um acampamento de guerreiros. Finalmente, na parte mais baixa do platô, perto do portão nordeste, abrimos um bom espaço para o povo e seu gado terem onde se refugiar e morar, se houvesse algum perigo. Artur chegou. Durante a noite subitamente acendeu-se uma fogueira na principal estação de sinal, no alto do monte da ilha no lago, e por trás de seu brilho podia-se avistar o ponto de luz na baliza mais distante. Assim que o sol saiu Artur veio cavalgando pela margem do lago, à frente de seus cavaleiros. O branco continuava sendo sua cor; branco era o cavalo, branca sua bandeira e branco seu escudo, que orgulhosamente não exibia faixas ou pinturas como os de seus cavaleiros. Na névoa perolada da madrugada, sua figura se destacava e me fez lembrar de um altivo cisne real deslizando nas águas tranqüilas do lago. Logo depois eles foram escondidos de vista pela vegetação ao sopé do morro e daí por diante só escutamos as patas dos cavalos percorrendo a nova estrada em curvas que chegava ao portão principal. As pesadas portas de carvalho já estavam abertas para recebê-lo. Na parte interna, alinhados nas beiras do caminho recentemente pavimentado, esperavam todos os que haviam participado das obras. Assim, pela primeira vez> Artur, o valoroso comandante de batalhas, Grande Rei entre os outros reis da Bretanha, entrou na fortaleza que mais tarde viria a ser a sua bela cidade de Camelot. Nem preciso dizer que Artur ficou extremamente satisfeito com o que viu. Naquela noite houve uma comemoração, para a qual foram convidados todos os homens, mulheres e crianças que tinham contribuído para a construção do lugar. O rei e seus cavaleiros, eu, Derwen e mais algumas pessoas nos sentamos no salão inacabado, diante da longa mesa que fora lixada há tão pouco tempo que ainda havia poeira no ar, formando halos em torno das tochas. Foi uma festa alegre, sem qualquer tipo de solenidade, como uma comemoração depois de uma batalha. Artur fez um discurso, do qual não me lembro de nem uma só palavra, falando bem alto para ser ouvido pelo povo que se acotovelava do lado de fora. Logo depois de ser servida a comida, ele se levantou e, com um pedaço de carneiro assado numa mão e uma taça de vinho na outra, saiu do salão e começou a caminhar pelo lugar, parando ora aqui, ora ali, conversando com todos para ver se estavam bem servidos, examinando, interrogando, elogiando, no seu antigo jeito entusiasmado. Pouco tempo depois, quando o temor e respeito dos homens começaram a se derreter diante de tanta simpatia, eles começaram a fazer as mais variadas perguntas: O que acontecera em Caerleon? Em Linnuis? Em Rheged? Quando o rei viria morar em Caer Camel? Qual era a probabilidade de os saxões penetrarem nessa parte do país? Isso ou aquilo, aquela história que contavam, era verdade? A todos Artur respondia com paciência e honestidade, pois acreditava que as pessoas deviam ser informadas do que as aguardava, para se prepararem melhor para enfrentar o perigo. Tudo isso aconteceu dentro do antigo estilo de Artur, quando era o jovem rei que acabara de ser coroado. Sua aparência também voltara ao normal. O cansaço e a desesperança tinham desaparecido; a dor do luto fora posta de lado; ali estava novamente o rei que gozava da total confiança de seus súditos, do qual os homens extraíam força, sem nunca enfraquecê-lo. Pela manhã não haveria ali alguém que não estivesse disposto a morrer pelo jovem soberano. O fato de ele saber disso e ter plena consciência do efeito que causava em nada atingia sua grandeza. Como geralmente acontecia, conversamos um pouco antes de dormir. Não tivéramos

oportunidade de falar em particular desde Galava. Artur perguntou sobre minha saúde e em seguida quis ser inteirado do que eu fizera em Caer Camel e do que seria construído em seguida. Depois de algum tempo falei algo sobre a mudança que ocorrera nele. Artur fitou-me por alguns instantes e começou a falar, como se tivesse tomado uma decisão. — Existe uma coisa que queria lhe dizer, Merlin. Não sei se tenho o direito, mas vou falar assim mesmo. Na última vez em que nos vimos em Galava, por mais doente que você estivesse, deve ter captado algo do que eu estava sentindo. Aliás, como não teria notado? Eu, como sempre, joguei todos os meus problemas em suas costas, sem me preocupar se você estava ou não em condições de suportálos. — Não me recordo disso. Conversamos e eu lhe perguntei o que tinha acontecido. — É verdade. Agora estou lhe pedindo para me ouvir de novo. — Ele fez uma breve pausa para reunir seus pensamentos. Parecia estranhamente hesitante, nas logo em seguida começou: — Uma vez você me disse que a vida se divide em períodos de luz e trevas, tal como o dia. É verdade. Uma infelicidade parece criar outra... foi o que aconteceu comigo. Passei um tempo de escuridão, o primeiro de minha vida. Quando fui vê-lo eu estava meio morto de cansaço, abalado com as duas mortes; era como se o mundo tivesse azedado e a sorte sumido. A perda de minha mãe não me causou grande dor, você sabe bem como eu me sentia em relação a ela. Para ser franco, eu choraria muito mais a morte de Drusilla ou de Ector. Mas a morte de minha rainha, a pequena Guenever... Poderia ter sido um bom casamento, Merlin, creio que o amor cresceria entre nós. O que me deixou profundamente amargurado foi a perda da criança e vê-la sofrer tanto antes de morrer, e em especial a suspeita de que ela fora envenenada por inimigos meus. Acrescentado a isso, e vou ser sincero, havia a perspectiva desagradável de ter de começar tudo de novo, procurar uma noiva e passar por todo o cerimonial de casamento quando existe tanta coisa por fazer. — Você não pode estar acreditando que ela foi assassinada. Eu... — Não. Você me tranqüilizou a esse respeito. Tive o mesmo receio em relação a sua doença, imaginando que eu seria o culpado indireto de sua morte. Essa foi a pior parte do meu período de escuridão. — Ele fez um gesto de resignação. — Você sempre me disse que eu sempre o teria por perto nas horas difíceis, o que tinha sido verdade até então. Mas, de repente, na hora em que mais precisei, não pude contar com você. As obras em Caer Camel apenas iniciadas, mais combates à vista e, depois deles, a organização do país, a criação de uma legislação, o estabelecimento de uma ordem civil, tantas coisas... E você assassinado. Por Deus, juro que eu teria matado a rainha de Orkney se ela tivesse cruzado meu caminho naquela época! — É compreensível. Continue. — Você agora já está sabendo de minhas vitórias no campo de batalha. Outros homens poderiam pensar que minha sorte estava no auge mas, para mim e em especial por causa de sua perda, era como se eu estivesse na mais escura profundeza da vida. E eu não sofria apenas devido aos sentimentos que existem entre nós, a amizade, o amor até, mas também pelo motivo que nem preciso repetir. Você sabe que me acostumei a pedir sua orientação sobre tudo, menos em assuntos relacionados com a guerra. Artur parou de falar. Esperei que continuasse mas, quando se manteve em silêncio, eu disse: — Bem, essa é minha função. Ninguém, nem mesmo um Grande Rei pode fazer tudo sozinho. Você é ainda muito jovem, Artur. Mesmo Ambrosius, com anos e anos de experiência, procurava se aconselhar nas mais variadas situações. Isso não é sinal de fraqueza, mas de prudência.

— Sei disso e não é o que estou tentando dizer. Quero lhe contar sobre uma coisa que aconteceu quando você estava doente. Fiz alguns reféns depois da batalha na floresta de Rheged. Os saxões fugiram para uma colina onde o mato era espesso, não muito distante da torre onde o encontramos. Cercamos a colina e atacamos por todos os lados, matando sem piedade, até restar apenas uns poucos homens, que se renderam incondicionalmente. Creio que todos teriam feito isso antes, mas eu não lhes dei oportunidade. Eu queria matar, essa é a verdade. Mas finalmente os sobreviventes se entregaram. Um deles era o antigo segundo em comando de Colgrim, um homem chamado Cynewulf. Por mim eu o teria matado ali mesmo, mas a essa altura ele estava totalmente desarmado. Libertei-o posteriormente sob a promessa de que ele pegaria seus navios e voltaria para seu país, e fiz reféns como garantia. — Sim, foi uma medida bastante sábia, mas sabemos que não funcionou — falei sem expressão porque já estava a par do que acontecera. — Merlin, quando soube que em vez de voltar para a Germânia, Cynewulf fora para outra parte de nosso litoral e estava incendiando aldeias, mandei matar os reféns. — Você não teve escolha. Cynewulf não podia ter ilusões. É o que ele teria feito em seu lugar. — Ele é um bárbaro, um estrangeiro. Eu sou diferente e penso que Cynewulf sabia disso. Deve ter pensado que eu não cumpriria a ameaça. Alguns dos reféns eram pouco mais do que meninos. O mais novo tinha treze anos, menos do que eu quando comecei a lutar. Foram trazidos à minha presença e eu ordenei sua morte. — Você agiu certo. Agora esqueça o que aconteceu. — Como? Eles se comportaram com grande valentia no combate. Mas eu tinha feito a ameaça e tive de cumpri-la. Você falou sobre uma mudança em mim e estava certo. Não sou mais o homem que eu era antes do inverno passado. Essa foi a primeira coisa realmente má que fiz até agora nas guerras. — Todos fizemos coisas que gostaríamos de esquecer — falei pensando no comportamento de Ambrosius em Doward e em mim mesmo em Tintagel. — Talvez a guerra em si seja uma coisa má. — Mas não estou lhe contando isso porque desejo seu conselho ou compaixão — disse Artur com impaciência. Fiquei esperando, sem saber o que pensar. Ele então continuou, escolhendo bem as palavras. — Essa foi a pior coisa que tive de fazer até agora, mas o que passou, passou. O que preciso lhe dizer é isto: se você estivesse ao meu lado, eu teria pedido sua opinião e, apesar de você já ter me dito que não possuía mais o poder da profecia, eu ainda teria esperanças... não, mais do que isso, certeza... de que você podia ver o que o futuro reservava e me aconselharia sobre o caminho a tomar. — Mas seu profeta estava morto e você teve de escolher sozinho o seu caminho. — Exatamente. — Entendo. Está querendo me dizer que agora tanto os atos como as decisões devem ser tomadas unicamente por você, embora eu tenha voltado. — Não! — Artur usou um tom vigoroso. — Você me entendeu mal. Estou querendo lhe dizer algo completamente diferente. Por acaso pensa que não sei que você tem enfrentado um período de trevas desde que tirei a espada da pedra? Desculpe-me se estou me intrometendo em assuntos que não compreendo, mas quem olha para o que aconteceu desde então... Merlin, o que estou querendo lhe dizer é que... que acredito que seu deus continua com você. Houve um silêncio só perturbado pelo chiado da chama no lampião de bronze e pelos ruídos muito, muito distantes do acampamento lá fora. Estudamo-nos um ao outro, ele ainda no auge da juventude, eu envelhecido e tremendamente debilitado devido a minha recente doença. E, de uma

maneira muito sutil, o equilíbrio que havia entre nós estava se modificando ou já mudara por completo. Agora era Artur quem me oferecia força e consolo. Seu deus continua com você. O que o fazia pensar assim, quando só precisaria se recordar de que meu poder agora estava limitado aos truques de magia mais triviais, de minha falta de defesa contra Morgause, de minha incapacidade de descobrir qualquer coisa sobre Mordred? No entanto, ele não falara com a apaixonada convicção da juventude, mas com a calma certeza de um experiente juiz. Voltei a pensar no passado, afastando de mim, pela primeira vez depois da doença, a apatia que substituíra a anterior tranqüila aceitação. Comecei a perceber onde estava a mente de Artur. Poder-se-ia dizer que eram os pensamentos de um general que consegue extrair uma vitória de uma retirada estratégica ou de um condutor de homens que é capaz, de com uma única palavra, transmitir confiança. Seu deus continua com você, dissera. Como então explicar a bebida envenenada, os meses de sofrimento que tinham me afastado de seu lado, obrigando-o a exercer um solitário poder? Estaria ele comigo, embora Artur não soubesse disso, na intuição que me levara a negar o envenenamento para salvar Morgause, a mãe daqueles quatro filhos, de sua vingança? Estaria comigo na perda de Mordred, cuja sobrevivência trouxera um brilho de alegria ao olhar de Artur? Estaria comigo quando finalmente eu sofrerá um tipo de enterro em vida que tanto temia, deixando Artur sozinho na face da terra, com Mordred, a mão do seu destino, ainda vivo? Como se fosse o primeiro sopro de vento para um marinheiro preso numa calmaria, senti a esperança surgindo em mim. Então, além de aceitar eu devia esperar pela volta do deus com toda sua luz e força. Sim, tanto na maré baixa como na alta, podia-se sentir a plena força do mar. Inclinei a cabeça como um homem aceitando um presente de um rei. Não havia necessidade de falar. Lemos um a mente do outro. Depois, com uma total mudança de tom, Artur perguntou: — E então, quando este lugar ficará pronto? — Se falarmos em termos defensivos, dentro de um mês. Está praticamente pronto. — Foi o que me pareceu. Posso vir de Caerleon com armas e bagagens? — Na hora que quiser. — E depois? Quais são seus planos para si mesmo até seus serviços serem necessários para a construção em tempos de paz? — Não fiz planos. Talvez volte para minha casa. — Não. Fique aqui. As palavras soaram como uma ordem. Ergui minhas sobrancelhas, intrigado. — Merlin, estou falando sério. Quero você aqui. Não precisamos dividir o poder do Grande Rei em dois antes de chegar a hora em que seremos obrigados a isso. Está me entendendo? — Sim. — Então fique. Construa uma residência para você e fique mais algum tempo longe de sua maravilhosa caverna em Gales. — Está bem, ficarei — prometi sorrindo —, mas não aqui, Artur. Preciso de silêncio e isolamento, coisas difíceis de conseguir numa cidade como esta será quando você vier morar nela definitivamente. Peço sua permissão para escolher um local. Quando você estiver pronto para pendurar sua espada na parede atrás do trono, minha maravilhosa caverna será aqui perto e o eremita já estará instalado, pronto a ser convocado para os conselhos. Isso, se àquela altura, você se lembrar de convidá-

lo. Artur soltou uma risada e pareceu bastante satisfeito quando me deu boa-noite.

9 No dia seguinte, Artur e seus Companheiros voltaram para Ynys Witrin e eu os acompanhei porque havíamos sido convidados pelo rei Melwas e sua mãe, a rainha, para uma cerimônia de Ação de Graças pelas recentes vitórias do rei. Embora houvesse uma igreja cristã na ilha e um mosteiro no morro que ficava perto do poço sagrado, a deidade reinante do lugar continuava sendo a deusa, a Mãe cujo santuário já existia ali desde tempos imemoriais e que era, como ainda hoje, servida pelas suas sacerdotisas, as ancillae. O culto é similar ao do fogo vestal da antiga Roma, mas creio que veio muito antes dele. O rei Melwas, como a maioria de sua gente, seguia os velhos deuses e sua mãe, uma imponente matrona, adorava a deusa e fora extremamente generosa com suas virgens. Naquela época, a dama do santuário, como é chamada a suma sacerdotisa, era sua parente. Embora Artur tivesse sido criado num lar cristão, não me surpreendi ao vê-lo aceitar o convite, mas nem todos agiram assim. Enquanto nos reuníamos perto do portão do rei, prontos a iniciarmos a cavalgada, captei um ou outro olhar de desagrado entre os Companheiros. Artur percebeu para onde eu olhava, sorriu e falou baixinho: — Será que preciso explicar para você? — Claro que não. Sem dúvida você pensou que Melwas será seu vizinho mais próximo e ele o ajudou muito nesta obra. Também compreendeu a importância de agradar a velha rainha. E, naturalmente, está lembrando da vacas e do que lhe disseram sobre agradar à deusa. — Vacas? Oh, o velho! Sim, claro. Eu devia imaginar que nada escaparia a você. A propósito, o convite foi veio da dama em pessoa. O povo da ilha quer dar graças pelas vitórias do ano e pedir uma bênção para Caer Camelot. Meu receio é que alguém lhes conte que usei a lembrança de minha mãe durante toda a campanha em Caer Guinnion! Ele falava do talismã cristão, o broche com o nome MARIA gravado. — Não precisa se preocupar com isso. Aquele santuário é tão antigo como a terra e, seja qual for a deusa que você invocar lá, a resposta virá de uma só, da única que existe desde o começo. Bem, pelo menos é o que eu penso... Mas o que dirão os bispos? — Sou o Grande Rei — disse Artur, terminando a conversa. Nesse instante Bedwyr, que fora dar algumas instruções aos guardas dos portões, veio juntar-se a nós e logo estávamos descendo a encosta. Era um dia agradável, embora cinzento, com a promessa de chuvas de verão nas nuvens. Em pouco tempo saímos da área arborizada e começamos a percorrer o terreno pantanoso. Em ambos os lados da estrada havia lençóis de água agitados pela brisa, cercados por choupos e salgueiros. Pequenas ilhas e touceiras de juncos pareciam flutuar na superfície prateada. A estrada pavimentada, coberta de musgo e com samambaias crescendo entre as pedras, como costuma acontecer com todos os caminhos situados nessa planície, atravessa essa área pantanosa até alcançar o terreno mais alto, que faz lembrar um braço protegendo uma extremidade da ilha. Logo as patas dos cavalos estavam batendo em pedras e a estrada começou a subir suavemente. Do alto da colina avistamos o lago propriamente dito circundando a ilha, a superfície só quebrada pela estreita passagem elevada que começava no fim da estrada e por alguns barcos de pescadores. Desse cintilante lençol de água elevava-se o monte chamado Tor, com a forma de um cone

gigante, tão simétrico que parecia ter sido feito por mãos humanas. A seu lado ficava um morro menor, arredondado, e depois dele começava uma longa cadeia de colinas que lembrava uma perna meio submersa, onde ficavam os ancoradouros. Além deles só se via uma grande extensão de água até o horizonte, como se fosse um imenso espelho indo até a costa. De onde estávamos era fácil entender por que a ilha era chamada de Ynys Witrin, a ilha de Vidro. Atualmente, algumas pessoas a chamam de Avalon. Havia pomares em todos os cantos de Ynys Witrin e as árvores ficavam tão próximas umas das outras que em torno do porto e no sopé do Tor só se percebia a presença da aldeia pela fumaça das chaminés. Aldeia, sim, porque, mesmo sendo a capital de um rei, não merecia uma designação mais grandiosa. Na encosta, acima do ponto onde as árvores terminavam, podia-se ver um punhado de cabanas onde moravam os cristãos, tanto eremitas como mulheres santas. Melwas não se importava com eles, que tinham até mesmo uma igreja construída perto do santuário da deusa. Vimos depois que ela era pouco mais de uma choupana, feita de pau a pique e com telhado de sapé, dando a impressão que seria arrancada do lugar pelo primeiro vendaval. O santuário da deusa era bem diferente. Dizia-se que com o passar dos séculos o solo fora crescendo vagarosamente em torno, apossando-se dele, de modo que agora estava enterrado, como se fosse uma cripta. Eu jamais tivera a oportunidade de vê-lo porque normalmente os homens não podiam entrar nele, mas nesse dia a dama em pessoa nos esperava para apresentar as boas-vindas, com as mulheres e meninas atrás dela vestidas de branco e com véus cobrindo o rosto, todas carregando buquês de flores. A mulher idosa ao lado da suma sacerdotisa, com um rico manto e uma delicada coroa nos cabelos grisalhos, devia ser a mãe de Melwas. Nesse lugar ela ganhava precedência sobre o filho, que se mantinha um tanto afastado, cercado pelos seus comandantes e cavaleiros. O rei era um homem robusto e bonito, de cabelos castanhos e crespos, e barba sedosa. Continuava solteiro e corria o boato de que nenhuma mulher jamais conseguira passar pelo crivo do julgamento da rainha. A dama saudou Artur e duas das donzelas mais jovens avançaram e colocaram um colar de flores em seu pescoço. Em seguida as mulheres cantaram em coro, entoando uma música suave. Nesse momento o céu cinzento se abriu e um raio de sol caiu sobre nós, o que foi visto como um bom presságio. Todos se entreolharam e sorriram, e a música ficou mais forte. A dama virou-se e, acompanhada de suas mulheres, começou a descida pelo longa escadaria que levava ao santuário. A rainha a seguiu e atrás dela entrou Artur, um pouco afastado de nós, que constituíamos seu séqüito. O rei Melwas veio em seguida, com seus acompanhantes. O povo ficou do lado de fora e durante toda a cerimônia podíamos ouvi-lo murmurando e mudando de posição enquanto esperavam por uma nova oportunidade de ver o lendário Artur, vencedor de nove batalhas. O santuário não era grande e não havia lugar para mais ninguém além dos presentes. A iluminação era feita por apenas meia dúzia de candeias perfumadas, colocadas em ambos os lados do arco que levava para o santuário interno. Na semi-escuridão os véus e vestidos brancos das mulheres tinham um brilho fantasmagórico e, entre todas, apenas a dama podia ser vista claramente. Ela tirara o véu, expondo a estola prateada que cobria seus ombros e um diadema que refletia o pouco de luz que havia. Sua figura altiva não deixava dúvidas de que era de família nobre. O santo dos santos também estava protegido por véus e ninguém, salvo as iniciadas, podia ver o que havia por trás deles. A cerimônia foi longa, ficamos em pé ali por quase duas horas. Desconfio que a dama quis aproveitar a ocasião ao máximo, talvez pensando num futuro patrocínio real, mas depois do que me pareceu uma eternidade finalmente aproximou-se o encerramento. A suma sacerdotisa aceitou a oferenda de Artur, apresentou-a à deusa com as orações apropriadas e depois emergimos na ordem devida para a luz do dia, onde recebemos uma ovação do povo.

Foi um pequeno incidente, que talvez nem ficaria gravado em minha memória não fosse pelo que aconteceu mais tarde, por isso lembro-me claramente do clima festivo e agradável do dia, das primeiras gotas de chuva que caíram sobre nós enquanto saíamos do santuário e dos pássaros chilreando alegremente nos arbustos dourados pela abundância da pequena flor amarela a que chamam de brincode-princesa. O caminho para o palácio de Melwas passava por entre gramados cortados por pequenos bosques de macieiras, sob as quais as ancillae, que praticavam as artes da cura, tinham plantado canteiros de ervas medicinais. Isso me fez pensar que, se eu viesse a morar nessa região, teria pelo menos um solo melhor para minhas plantas do que o encontrado no monte perto de Maridunum, onde ficava minha caverna. A festa no palácio de Melwas se destacou pela excelência e variedade de pratos feitos com peixe e frutos do mar. O vinho, muito bom, viera de uvas cultivadas na parte seca do reino, a uns sessenta quilômetros dali, vinhedo que recentemente fora destruído numa das investidas dos saxões, que pareciam mais ousados nesse verão. Deixamos o palácio antes da meia-noite e a lua quase cheia iluminava nosso caminho. Ela estava baixa, parecendo muito próxima do pico do Tor, delineando com seu jogo de luz e sombra as muralhas da fortaleza de Melwas que o encimava, sendo o lugar para o povo se refugiar em caso de algum ataque. O palácio do rei, onde fôramos recebidos, ficava na parte plana, pouco acima do nível da água. Uma névoa forte estava se elevando do lago, chegando até os joelhos de nossos cavalos. Logo o estreito caminho elevado ficaria escondido por ela. Melwas, que ia à nossa frente com seus tocheiros, nos guiou até chegarmos à margem onde começava a estrada pavimentada. Quando olhei para trás, enquanto o rei se despedia de Artur, vi que o lago dava a impressão de ser feito de uma bruma espessa e fofa, de cujo centro elevava-se apenas o Tor. A lua subira e agora o céu estava escuro atrás dele. Perto da torre de sinalização, no alto da trilha em espiral que levava à fortaleza, uma luz brilhou e se mexeu. Senti minha pele se arrepiar, como a de um cachorro diante de um espectro. O Tor era sabidamente um dos portões para o outro mundo e por um átimo de segundo imaginei se minha vidência havia voltado e eu estava avistando um dos guardiões do lugar, um dos espíritos flamejantes que tomavam conta do portão. Mas então tudo ficou mais claro e pude ver que era um homem com uma tocha, correndo pela trilha para ir acender a fogueira de sinalização. Enquanto eu esporeava meu cavalo, ouvi a voz de Artur se erguer numa ordem sucinta. Um dos cavaleiros separou-se de nós e avançou num galope. Os outros, subitamente em silêncio, apressaram o passo dos cavalos, mas continuaram juntos enquanto atrás de nós as chamas no alto do Tor erguiam-se na noite, chamando o Artur, o vencedor de nove batalhas para mais um combate.

10 A inauguração de Caer Camel coincidiu com o início de uma nova campanha que durou quatro anos, com seus sítios, escaramuças, ataques de surpresa e tocaias, e por duas vezes, já no final desse período, Artur triunfou sobre o inimigo num combate importante. A primeira dessas duas batalhas ocorreu em resposta a um chamado de Elmet. O próprio Eosa viera da Germânia liderando guerreiros descansados que se juntariam aos saxões ocidentais já estabelecidos ao norte do Tâmisa. Cerdic formou a terceira ponta do triângulo invasor com uma força trazida em chalupas desde Rutupiae. Foi a pior ameaça desde Luguvallium. Os invasores chegaram em força no vale e estavam agindo segundo Artur previra desde muito tempo, pretendendo vencer a barreira montanhosa pelo vão. Surpresos e talvez desconcertados com a prontidão do forte em Olicana, eles permaneceram ali, enquanto a mensagem era enviada a galope para o sul. A força saxã ocidental, de considerável tamanho, ficou centrada em Olicana, contida pelo rei de Elmet, mas os dois outros exércitos conseguiram avançar para o oeste por meio do passo. Artur, progredindo rapidamente pela estrada oeste, atingiu o forte Tribuit antes deles e surpreendeu-os em Nappa Ford, onde os venceu numa verdadeira luta corpo a corpo. Em seguida, dirigiu-se a Olicana à frente da cavalaria ligeira e, junto com o rei de Elmet, expulsou o inimigo de volta ao vale. O contra-ataque continuou também no sul e leste, até os invasores recuarem para as fronteiras que anteriormente os continham e o "rei" saxão admitir a derrota. Essa derrota, porém, ainda não seria a final. A fama do Grande Rei agora era tal que a simples menção de seu nome passara a significar vitória e a frase: "Artur está chegando" era um sinônimo para salvação. Quando ele voltou a ser chamado à região, assim que a temida cavalaria com o cavalo branco à frente e a figura de um dragão cintilando nos capacetes das armaduras apareceu no passo de Agned, o inimigo de dispersou em pânico e a ação foi mais uma perseguição do que uma batalha, pouco além de uma limpeza de território depois de um grande combate. Durante todas essas lutas, Gereint, que conhecia cada centímetro daquela parte do país, participou da cavalaria, ocupando um cargo de comando digno de sua capacidade. Era assim que Artur recompensava os que o ajudavam. Tendo sido ferido em Nappa, Eosa nunca mais voltou ao campo de batalha e foi Cerdic, o Aetheling, que liderou os saxões em Agned e fez o possível para mantê-los unidos diante do apavorante ataque de Artur. Disseram que mais tarde, enquanto recuava num arremedo de ordem para os barcos que os esperavam, Cerdic jurou que quando voltasse a pôr o pé em território bretão seria para ficar e que nem mesmo Artur o impediria de atingir seu objetivo. Mas, para isso, como eu poderia ter-lhe contado, ele teria de esperar até Artur não estar mais na face da terra. Jamais foi minha intenção neste relato dar detalhes sobre os anos de lutas, pois desde o início pretendi que esta obra não seria um relato político. Além disso, atualmente todos já sabem sobre a campanha de Artur para liberar a Bretanha e limpar seu litoral dos invasores, cuja história foi escrita numa casa em Vindolanda, por mestre Blaise e o solene e calado secretário que de vez em quando aparecia para ajudá-lo. Aqui apenas repetirei que nenhuma vez, em todos os anos que foram necessários para Artur conter definitivamente os saxões, usei de mágica ou profecias para ajudá-lo. A história desse período fala de bravura humana, resistência e dedicação. Passaram-se sete anos de trabalho árduo, onde houve pelo menos doze grandes batalhas, antes de o jovem rei poder considerar o país finalmente

seguro para a agricultura em maior escala e para as artes da paz. Não é verdade, como costumam contar cantores e poetas, que Artur expulsou todos os saxões das costas da Bretanha. Ele acabou reconhecendo, como Ambrosius fizera anteriormente, que seria impossível limpar por completo a área ocupada por eles, uma região de relevo difícil e que, além disso, oferecia a possibilidade de uma rápida retirada para o mar. Desde a época de Vortigern, que os convidara a entrar na Bretanha como aliados, o litoral sudeste de nosso país era território saxão, com seus próprios governantes e leis, daí haver uma certa justificativa para Eosa reivindicar o título de rei. Se Artur decidisse ir até o fim, teria de expulsar dali moradores de terceira geração, nascidos e criados nessa costa, obrigando-os a embarcar para o país de origem de seus avós, onde talvez fossem tão mal recebidos como aqui. Ora, os homens lutam desesperadamente quando se trata de defender seus próprios lares e Artur tinha plena consciência de que uma coisa era vencer batalhas em campo aberto e outra, bem diferente, seria entrar em constantes escaramuças com homens escondidos em morros e florestas, de onde jamais seriam totalmente desalojados, resultando numa guerra onde nunca haveria uma vitória final. Ele tinha diante de si o exemplo dos Antigos, que, desalojados de suas terras pelos romanos, haviam fugido para o alto das cadeias montanhosas. Passados quatrocentos anos, eles continuavam lá, em suas remotas fortalezas, enquanto seus inimigos há muito haviam se retirado da ilha. Portanto, aceitando o fato de que existiam reinos saxões dentro da Bretanha, Artur concentrou-se em manter as fronteiras seguras, de modo a desencorajar pretensões expansionistas. Foi nessas circunstâncias que o Grande Rei completou os vinte e um anos de idade. Ele voltou a Camelot no final de outubro e convocou uma série de conselhos. Eu assisti a todos eles e às vezes era convidado a dar uma opinião, mas na maior parte do tempo fiquei vendo e ouvindo. Minhas orientações eram dadas em particular, por trás de portas fechadas, e aos olhos do público as decisões eram tomadas apenas pelo rei, o que em grande parte refletia a verdade, porque cada vez mais eu confiava no seu julgamento. Artur às vezes era impulsivo e em muitos assuntos carecia de experiência ou antecedentes, mas jamais se deixava levar pela impulsividade em suas avaliações e, apesar de ser razoável esperar até arrogância de alguém tão bem sucedido, criara o hábito de deixar seus comandados falarem à vontade, de modo que, quando finalmente as decisões do rei eram anunciadas, cada um deles imaginava estar ouvindo pelo menos parte de suas idéias. Numa das últimas reuniões falou-se sobre um novo casamento do rei. Vi que Artur não esperava por isso, mas se manteve em silêncio e depois de algum tempo mostrou-se mais à vontade, pronto a ouvir as opiniões dos conselheiros idosos. Esses homens sabiam listar de cor os nomes, propriedades e linhagens das famílias nobres. Ocorreu-me, enquanto eu os observava, que eles eram os mesmos que de início não tinham aceitado a proclamação de Artur como Grande Rei. Agora nem mesmo os Companheiros se mostravam mais leais do que eles. Artur os conquistara, com conquistara tudo o mais, e qualquer um juraria que havia sido cada um deles que descobrira "Emrys" na floresta Selvagem e lhe entregara a espada. Qualquer um também pensaria que cada um desses homens estava falando sobre o casamento de um filho predileto. Houve muito confiar de barbas e acenos de cabeça, vários nomes foram sugeridos e analisados, mas nenhum deles recebeu aprovação unânime, até que um dia um homem de Gwynedd, que estivera ao lado de Artur em todas as batalhas e era parente do grande Maelgon, levantou-se e fez um discurso sobre sua terra natal. Ora, convidar um galés moreno para se levantar e falar é como chamar um bardo para contar uma história: a coisa é feita dentro de uma determinada ordem, na cadência certa e não tem tempo para terminar. A beleza na voz do homem era tanta que depois de alguns minutos os outros participantes da reunião se acomodaram confortavelmente para ouvir suas palavras, como se estivessem numa festa.

O tema de sua explanação parecia ser sua terra natal e ouvimos uma emocionada descrição da beleza de seus vales e montanhas, dos lagos azuis, do mar revolto, dos veados, águias e pássaros canoros, da bravura de seus homens e beleza das mulheres. Depois foi a vez dos poetas e trovadores, dos pomares e campinas floridas, da riqueza dos rebanhos de gado e carneiros, e dos veios de minério nas rochas, ao que se seguiu a história das guerras e lutas na região, da coragem na derrota, da tragédia da morte dos moços e fecunda beleza do amor entre os jovens. O homem estava chegando ao ponto. Vi Artur mexer-se na poltrona. E, disse o orador, a riqueza, a bravura e a beleza de sua terra natal estavam presentes no sangue de seus reis, uma família... Nessa altura eu já não prestava atenção às suas palavras; estivera olhando fixamente para Artur à luz bruxuleante de um lampião mal ajustado e a cabeça me doía... que parecia ter uma genealogia tão antiga como a de Noé e seguramente duas vezes mais longa... Havia, é claro, uma princesa: jovem, bela, descendente de uma dinastia de reis galeses que se unira a um nobre clã romano. O próprio Artur não era tão bem nascido... E agora todos entenderam por que um panegírico tão longo e o olhar meio de soslaio para o jovem rei. O nome dela, soubemos então, era Guinevere. Eu os vi novamente. Bedwyr, moreno e ansioso, olhando para o amigo com amor e respeito. Artur-Emrys, já líder aos doze anos, cheio de energia e planos. E a sombra branca da coruja planando sobre eles, a guenhwyvar de uma paixão e um sofrimento, de grandes obras e uma busca que levaria Bedwyr para o interior de um mundo espiritual, deixando Artur solitário, esperando no centro da glória para tornar-se uma lenda... Voltei para o salão. Minha cabeça parecia estalar de dor. A luz forte foi como lanças entrando em meus olhos. Sob a túnica, o suor escorria pelo meu corpo, as mãos úmidas escorregaram nos braços da poltrona. Precisei lutar para acalmar a respiração e tranqüilizar o coração, que batia como um martelo contra as costelas. Ninguém notou minha ausência. Um bom tempo se passara e o conselho perdera a formalidade. Artur agora estava no centro de um grupo, conversando e rindo. Em torno da mesa os homens mais velhos, plenamente à vontade, trocavam idéias. Os criados haviam trazido vinho. A conversa me envolveu por todos os lados, como se fosse uma maré subindo, e nela ouvi as notas de triunfo e alívio. Estava tudo decidido: haveria uma nova rainha e uma nova sucessão. As guerras tinham acabado e a Bretanha, agora sozinha no antigo território submisso aos romanos, vivia segura atrás de seus bastiões. Artur virou-se para mim e nossos olhares se encontraram. Eu não disse nada, mas o sorriso morreu em seu rosto. Ele levantou-se e avançou tão rápido como uma flecha, fazendo sinal para seu grupo ficar onde estava para que não escutasse nossa conversa. — Merlin, o que foi? Esse casamento? Você está pensando que... Balancei a cabeça e a dor foi como uma serra cortando meu cérebro. Penso que gritei. A conversa diminuíra quando o rei se levantara tão subitamente e agora havia um total silêncio. Silêncio, olhos e a luz bruxuleante das chamas. Artur inclinou-se, como se fosse pegar minha mão. — O que foi? Você está doente? Merlin! Sua voz aumentou, ecoou e foi levada embora. Ela não dizia respeito a mim. Nada me interessava

senão a necessidade de falar. As chamas dos lampiões queimavam em algum lugar dentro de meu peito e o óleo quente se derramava em meu sangue. A respiração veio espessa, como se houvesse fumaça em meus pulmões. Quando finalmente encontrei as palavras, elas me surpreenderam. Eu não vira nada além dos meninos na Capela Perigosa, há muito tempo, uma visão que se repetia e que talvez nem tivesse um significado especial, mas o que me ouvi dizendo numa voz áspera e sonora fez Artur se endireitar como se tivesse levado um golpe e todos os outros se levantarem, espantados: — Ainda não acabou, rei! Pegue seu cavalo e parta! Eles romperam a paz e se aproximam de Badon! Homens e mulheres estão morrendo afogados em seu próprio sangue e as crianças choram antes de serem estranguladas como galinhas! Não existe nenhum rei por perto para protegê-los! Vá para lá agora, duque dos reis! Só você pode ajudá-los, o povo grita por você! Vá com seus Companheiros e ponha um fim a esse massacre! Porque, pela Luz, Artur da Bretanha, esta é a última vez e a última vitória! Vá agora mesmo! As palavras ecoaram no silêncio. Os que nunca antes haviam me ouvido falar tomado do poder estavam pálidos; todos fizeram o sinal. Minha respiração ressoava, como a de um moribundo lutando para afastar a morte. Depois, do grupo de homens mais jovens vieram sons de descrédito, até de desdém. Não era de admirar. Eles tinham ouvido contar histórias sobre meus feitos passados, mas muitas delas haviam sido compiladas por poetas e agora, ao ser cantadas por trovadores, tinham o colorido de lendas. A última vez em que eu falara assim fora em Luguvallium, antes da retirada da espada do altar, e muitos deles eram crianças na época e me conheciam apenas como médico e engenheiro, ou o discreto conselheiro que conhecia o rei desde menino. O murmúrio aumentou em torno de mim, soando como vento soprando entre as árvores. "Não recebemos notícia nenhuma, do que ele está falando? Como se o Grande Rei fosse dar ouvidos a essa conversa e sair correndo! Artur, e nós também, já fizemos mais do que suficiente. A paz é certa, qualquer um pode ver! Badon! Onde fica isso? Bem, nenhum saxão nos atacaria aqui, sem que... Sim, mas, se nos atacarem, nesta região não existe força para contê-los, pelo menos nisso ele tem razão... Não, é bobagem, o velho perdeu o juízo de novo. Lembra-se de como o encontramos lá na floresta? Completamente maluco... A doença pode ter voltado..." Artur não tirara os olhos de mim. Os murmúrios iam de um lado para o outro. Alguém chamou por um médico e houve uma correria perto da porta. Artur ignorou tudo. Nós dois estávamos sozinhos ali. Ele estendeu a mão e pegou meu pulso; por entre a dor vertiginosa senti sua força jovem me obrigando a sentar. Eu não percebera que estava em pé. Alguém veio com uma taça e ele trouxe o vinho para meus lábios. Virei a cabeça. — Não, me deixe. Vá agora. Confie em mim. — Por todos os deuses que existem — disse ele, com voz rouca —, eu confio em você. — Deu meia volta e falou: — Você, você e você também, dêem as ordens. Vamos partir imediatamente. Cuidem de tudo, não temos tempo a perder. — Depois, falando comigo, mas num tom para todos ouvirem: — Vitória, foi o que disse? — Vitória. Como pode duvidar? Por um instante, no meio de ondas de dor, reconheci seu olhar. Era o do menino que ao ouvir minha ordem enfrentara a chama branca e levantara a espada do altar. — Eu não duvido de nada — sorriu Artur, inclinando-se sobre mim. Ele me beijou na face e, seguido pelos seus Companheiros, saiu rapidamente do salão.

A dor melhorou. Eu já podia ver e respirar. Levantei-me e dirigi-me para fora, à procura de ar fresco. Os que estavam no salão se afastaram, dando-me espaço para passar. Ninguém falou ou se atreveu a,fazer perguntas. Subi para o baluarte, apoiei os cotovelos no parapeito e fiquei olhando para o horizonte. O sentinela afastou-se rapidamente, não como um soldado, mas se esgueirando, com o branco dos olhos à mostra. A notícia se espalhara rapidamente. Puxei minha capa para mais junto ao corpo e continuei ali, respirando fundo. Eles já tinham partido, uma tropa pequenina que iria enfrentar o poder do último ataque saxão sobre a Bretanha. O tropel dos cavalos ainda podia ser ouvido ao longe. Em algum lugar naquela escuridão, ao norte, o Tor se erguia contra o céu sem estrelas. Nada. Olhei para o leste e para o oeste. Nenhuma luz de sinalização, nenhuma chama, nem mesmo a de uma fogueira feita às pressas. Só minha palavra. De repente ouvi um som na escuridão. Por um instante pensei que fosse o eco do distante tropel, mas percebi nele, muito vagamente, gritos e choque de armaduras. Poderia ser minha vidência voltando, mas minha cabeça agora estava desanuviada e a noite, com todos os seus sons e sombras, era uma noite de mortais. Então os sons foram se aproximando e passaram por cima de mim, muito altos. Os gansos selvagens, a matilha dos cães dos céus, a Caçada Fantasmagórica que percorre o céus liderada por Llud, o rei do Sobrenatural, em épocas de guerra e tempestade. Eles haviam se erguido das águas do lago e agora voavam acima de mim. Tinham vindo direto do Tor silencioso para sobrevoar Caer Camel e dali voltariam, passando pela ilha adormecida, até o som de suas vozes e asas se perder na distância, dirigindo-se a Badon. Com a chegada da madrugada, as luzes de sinalização se espalharam por todo o país, mas o homem que chefiava as hordas saxãs no ataque a Badon mal colocara o pé no solo encharcado de sangue quando do escuro e chegando mais rapidamente do viriam se avisados por pombos correio ou fogueiras acesas, o Grande Rei Artur e seus cavaleiros preferidos caíram sobre eles e os destruíram, esmagando por completo o poder bárbaro até o fim dessa geração. Foi assim que o deus voltou para mim, Merlin, seu servo. No dia seguinte saí de Caer Camel para procurar um lugar adequado para construir uma casa.

Livro 3 – APPLEGARTH

1 Para o leste de Caer Camel o terreno é suavemente montanhoso i coberto de vegetação em tons de verde-claro, e aqui e ali, entre os arbustos e samambaias no cume das colinas, encontram-se vestígios de antigas cidades ou áreas fortificadas do passado. Um desses lugares despertara minha atenção há algum tempo e agora, percorrendo a região, olhei mais uma vez para ele e achei que seria mesmo bom. Um local isolado, numa dobra entre dois morros, onde uma fonte rompia a turfa e criava um pequenino riacho que descia apressado para o riozinho que corria pelo vale. Homens já tinham vivido ali num passado remoto. Quando os raios de sol incidiam sobre um determinado ângulo, podia-se ver o relevo de antigas muralhas sob o capim. Essa cidade desaparecera desde muito tempo e um outro colonizador, em épocas mais difíceis, construíra sobre suas ruínas uma torre usando pedras romanas trazidas de Caer Camel, da qual restava uma boa parte. Os ângulos perfeitos dos blocos ainda apareciam sob as trepadeiras e touceiras de urtigas, que sempre marcam o lugar onde homens já viveram. Uma erva daninha, sem dúvida, mas perfeita para a cura de várias enfermidades e que eu via com bons olhos porque, quando a casa estivesse pronta, tinha a intenção de plantar uma horta, a principal das artes da paz. E paz foi o que finalmente tivemos. A notícia da vitória em Badon me alcançou quando eu ainda fazia as primeiras medições para a construção de minha nova casa. Pela carta que recebera de Artur, tudo indicava que essa fora a batalha final e agora ele estava impondo seus termos, determinado a fixar de uma vez por todas os limites de seu reino. Não existia motivo para se supor que haveria outros ataques, nem mesmo resistência, dentro de um futuro próximo. Eu, que não estivera no campo de batalha, mas sabia o que iria acontecer, preparei-me para longo período de paz, onde talvez conseguiria viver no isolamento do qual tanto gostava, e acima de tudo precisava, a uma boa distância do centro buliçoso onde Artur estaria morando. Também achei prudente me apossar de todos os pedreiros e artesãos dos quais iria precisar antes dos grandes projetos do rei começarem a ser postos em prática. Eles vieram, entenderam bem meus desenhos e depois se puseram a trabalhar alegremente na construção do que eu queria. Era uma casa pequena, localizada num nicho da colina, de costas para Caer Camel e voltada para as verdes ondulações da longa planície, protegida dos ventos vindos do norte e leste e dos olhos dos poucos passantes que usavam a estrada do vale pelo relevo natural do terreno. A torre seria reconstruída e constituiria um dos cantos da edificação separando as duas alas térreas da casa, uma que abrigaria meus aposentos e a outra onde ficaria a cozinha e cômodos de serviço. Esse conjunto formaria um ângulo e dois lados do pátio quadrado, ao estilo romano, e no canto oposto seriam erigidas oficinas e depósitos. Na face norte eu pretendia erguer um muro bem alto encimado por telhas, junto do qual cultivaria minhas plantas mais delicadas, cujo projeto, contudo, fora alvo de dúvidas por parte dos pedreiros. Há muito tempo eu pensava em fazer isso: a parede seria dupla e o hipocausto levaria o ar quente para dentro dela. No inverno, portanto, as videiras e pessegueiros ficariam a salvo e o pátio como um todo se beneficiaria com o calor. Era a primeira vez que estava pondo essa idéia em prática, mas posteriormente ela foi usada em Camelot e também no palácio de Caerleon. Um aqueduto em miniatura levaria a água da fonte para um poço que ficaria no centro do pátio. Os homens, satisfeitos com um tipo diferente de construção depois de tantos anos de edificações militares, trabalharam rapidamente. Aproveitando o inverno agradável que tivemos nesse ano, fui para Bryn Myrddin supervisionar o empacotamento de meus livros e medicamentos, e depois segui para

Camelot, onde passaria o Natal com Artur. Os carpinteiros entraram em minha casa no começo do anonovo e antes do início da primavera me entregaram a obra acabada, ficando livres para se dedicar à construção de Camelot. Eu ainda não tinha um criado particular e precisei me dedicar à procura de um, tarefa nada fácil, pois poucos homens se sentem felizes no tipo de isolamento que tanto bem me faz, e, além disso, eu jamais agiria como um patrão comum. Meus horários são desencontrados, preciso de pouco sono e comida, e tenho grande necessidade de silêncio. Eu poderia comprar um escravo, que teria de me obedecer em tudo sem reclamar, mas a idéia jamais me agradou. Todavia, dessa vez, como em tantas outras, tive sorte. Um dos pedreiros tinha um tio que era jardineiro e, como me informou, conversara com ele a respeito do muro duplo. Embora o homem tivesse balançado a cabeça e resmungado sobre bobagens estrangeiras, desde então se mostrara ansioso para saber todos os detalhes de sua construção. Convidei essa pessoa, Varro, para trabalhar para mim e pouco tempo depois o pedreiro veio me dizer que ele aceitaria com grande prazer e traria a filha, que sabia arrumar e cozinhar. Estava tudo arranjado. Varro começou a carpir e escavar e Mora, sua filha, a escovar e arejar, e então, num desses dias claros e encantadores do final do inverno, com os primeiros botões de flor espiando por entre galhos secos e carneirinhos aconchegando-se em suas mães nos campos verdejantes, desmontei, coloquei meu cavalo na cocheira, desembrulhei a harpa grande e entrei em meu lar. Logo depois Artur veio me visitar. Eu estava no pátio, sentado sob o sol num dos bancos situados entre os pilares de uma colunata em miniatura, escolhendo sementes coletadas no verão passado. Ouvi o tropel e o tilintar de armas da escolta do rei por trás dos muros, mas ele entrou sozinho. Varro, depois de um instante de hesitação e com a admiração estampada no olhar, fez uma saudação e afastou-se com sua pá. Levantei-me enquanto Artur estendia a mão para me cumprimentar. — É muito pequeno aqui — foram suas primeiras palavras, enquanto olhava à volta. — Tem o tamanho perfeito para um homem que mora sozinho. — Talvez. — Ele sorriu, olhando novamente em torno de si. — Para quem gosta de viver em casinhas onde mal cabe um cachorro, como você, é bem agradável. Quer dizer então que aquele é o famoso muro? Os pedreiros me contaram sobre ele. O que pretende plantar ali? Eu lhe contei e depois o convidei para uma excursão pelo meu pequeno pátio. Artur, que entendia tanto de plantas como eu de guerra, mas sempre se interessava por saber, olhou, tocou e perguntou; passou um bom tempo examinando o muro aquecido e o aqueduto. — Verbena, camomila, confrei e calêndula... — Ele leu os nomes nos saquinhos de sementes quando voltamos para perto do banco. — Lembro-me que Drusilla costumava nos dar chá de calêndula quando tínhamos dor de dente. — Mais uma vez olhou à volta. — Sabe, aqui já se sente um pouco da mesma paz que havia em Galava. E mais, agora até estou gostando de sua idéia de não morar em Camelot. Sinto que terei um refúgio aqui, quando precisar me afastar das pressões. — Espero que faça isso. Bem, você já viu tudo. Plantarei flores aqui e já estou começando um pomar lá fora, onde já havia algumas árvores frondosas. Quer entrar para conhecer a casa? — Um prazer. Artur falara num tom tão diferente que me fez virar para ele, surpreso. Vi então que sua atenção não estava em mim, mas em Mora, que saíra por uma porta e sacudia uma toalha na brisa que começara a soprar mais forte. O vestido estava grudado ao seu corpo e os cabelos voavam rebeldes em torno do

rosto bastante bonito. Ela parou para prendê-los, avistou Artur, corou, deu uma risadinha e voltou correndo para dentro. A porta não se fechou por completo, deixando uma fresta, pela qual a avistei olhando para nós. Ela percebeu meu movimento e fechou a porta. Estava claro que a mocinha não tinha a menor idéia de quem seria o rapaz que a olhara com tanta ousadia. Artur ria de mim. — Vou me casar dentro de um mês, portanto não precisa fazer essa cara. Serei o mais fiel dos maridos. — Tenho certeza disso. E que cara eu estava fazendo? Não tenho nada com essas coisas, mas sinto que devo avisá-lo de que ela é a filha do jardineiro. — E ele parece ser bem bravo. Está bem, manterei meu sangue esfriado até maio. Só Deus sabe o quanto ele me criou problemas antes e me criará no futuro. — E o marido fiel? — Eu estava falando de meu passado. Você me avisou que ele atingiria meu futuro. O tom fora leve, brincalhão, o que me levou a acreditar que os pensamentos sobre Morgause não mais perturbavam seu sono. Ele me seguiu para dentro da casa e enquanto eu pegava a jarra de vinho e o servia, começou um passeio de reconhecimento. Havia apenas dois cômodos. A sala ocupava dois terços do comprimento dessa ala e tinha janelas em ambos os lados, dando para o pátio e para a colina. A porta se abria para a colunata que cercava o pátio e pela primeira vez estava completamente aberta, deixando entrar o ar cálido e os raios de sol que faziam brilhar as lajotas de terracota do assoalho. Na extremidade final da sala ficava a lareira e, como na Bretanha precisamos não só de fogo, mas também de pisos aquecidos, eu mandara instalar diante dela uma grande pedra de ardósia, que transmitiria o calor para todo o ambiente. Nas paredes de pedra com primoroso acabamento eu pendurara ricos tapetes que comprara em minhas viagens. A mesa, bancos e banquetas eram de carvalho, mas eu mandara fazer minha grande poltrona e a arca onde guardava meus livros de madeira de olmo. Uma porta ao lado da lareira levava para meu quarto, mobiliado apenas com cama e baú de roupas. Incentivado, talvez, por uma recordação da infância, plantara uma macieira perto da janela. Artur admirou tudo, cumprimentou-me pelo bom gosto e em seguida o levei para conhecer a torre. No térreo ficava a sala de trabalho ou laboratório, mobiliada apenas com uma grande mesa, banquetas e armários, e um fogão de lenha construído em um dos cantos; ali as ervas medicinais eram secadas e eu preparava os remédios. Uma escada de pedra encostada à parede levava para o andar de cima. Esse cômodo seria só meu e nele eu pretendia instalar meus aparelhos. Ali por enquanto havia apenas um braseiro, uma escrivaninha, uma cadeira e um armário onde eu guardara rolos de pergaminho, tabletes de argila e os instrumentos matemáticos que trouxera de Antioquia. A janela se abria para o sul e nela não havia cortinas nem venezianas. Não sou muito friorento. Artur caminhou pelo pequenino cômodo, inclinando-se, espiando, abrindo caixas e armários, apoiando os punhos no peitoril da janela e olhando para fora, enchendo todo o espaço com sua imensa vitalidade, dando a impressão que nem as paredes de pedra da torre conseguiam contê-lo. Quando voltamos à sala, ele pegou a taça de vinho e levantou-a num brinde: — Para a sua nova casa. Como pretende chamá-la? — Applegarth.

— Gostei do nome. Certo. Então, para Applegarth, desejando que você tenha uma longa vida aqui! — Obrigado. E eu brindo ao meu primeiro visitante. — Eu? Estou contente por isso. Então, que haja muitos outros e que eles venham em paz. — Artur bebeu e colocou a taça na mesa, de novo examinando tudo a sua volta. — Aqui já está cheio de paz. Sim, entendo por que você escolheu este lugar... mas, diga-me, tem certeza que isto é tudo o que deseja? Você sabe, e eu sei, que meu reino inteiro é seu por direito e de bom grado eu lhe daria metade dele se me pedisse. — Por enquanto vou deixá-lo com ele — disse e sorri. — Não tenho muito o que invejar. Ele lhe tem dado muito trabalho. Mas, mudando de assunto, quer comer alguma coisa? Sei que a simples idéia fará Mora ter um ataque, porque certamente já foi perguntar ao pai quem é o jovem estranho. Mesmo assim, ela terá algo para lhe servir. — Não, obrigado, comi antes de vir. Você está só com dois criados? A moça cozinha? Sim. E... Bem, mais ou menos. O que significa que você nem prestou atenção. Pelo amor de Deus, Merlin, deixe-me mandar-lhe um cozinheiro. Não me agrada pensar que você está vivendo de comida de aldeões. — Por favor, não! Já chega ter esses dois aqui o dia inteiro e mesmo eles voltam para sua casa à noite. Estou passando muito bem, garanto. — Está bem, mas eu gostaria de lhe dar alguma coisa, fazer... — Quando eu precisar de alguma coisa, pedirei a você, prometo. Agora conte-me como vão as obras. Acho que estive ocupado demais com minha casinha de cachorro e nem prestei muita atenção nelas. Caer Camel ficará pronto para o casamento? — Não. Creio que só poderei mudar definitivamente para lá no próximo verão. O casamento será em Caerleon, em maio, como já lhe disse. Estou contando com sua presença. — Só irei se você ordenar. Para ser franco, prefiro ficar aqui. Sinto que andei viajando demais nesses últimos anos. — Como quiser. Não, não quero mais vinho, obrigado — disse Artur, erguendo a mão. — Mas quero lhe perguntar uma coisa. Lembro-me de que quando começou a conversa sobre meu casamento... meu primeiro casamento, isto é, você me deu a impressão de ter dúvidas sobre ele, como pressentindo algo de mau. Diga-me, por favor... e desta vez, você tem as mesmas dúvidas? Costumam dizer que quando fecho meu rosto, ninguém nesta terra consegue ler o que está em minha mente. Encarei Artur impassível. — Nenhuma. Mas por que essa pergunta? Você tem algum pressentimento? — Nenhum. — Ele deu um grande sorriso. — Pelo menos, não ainda. E como poderia ter dúvidas quando me dizem que ela é a imagem da perfeição? Linda como uma manhã de primavera, prestimosa, alegre... só ouço elogios, mas você sabe muito bem como são esses velhos casamenteiros. Para mim é suficiente que ela tenha bom hálito e não seja geniosa... Oh, e uma voz bonita. Descobri que sou parcial

a respeito de vozes. Se ela atender essas exigências, será perfeita para mim. E você, Merlin, como um galés, deve estar contente com esse casamento. — E estou. Concordo com tudo o que Gwyl disse naquele discurso que fez no salão. E quando você irá a Gales? — Como na outra vez, não poderei ir buscá-la pessoalmente. Estão me esperando no norte e pretendo mandar Bedwyr de novo, com Gereint e, como uma homenagem especial para a família, o rei Melwas de Ynys Witrin. Concordei com um gesto de cabeça e a conversa virou para os motivos que exigiam a presença de Artur no norte. Ele iria em especial para inspecionar as obras de defesa no nordeste. Tydwal, um parente de Lot, era quem governava de Dunpeldyr, ostensivamente em nome da rainha Morgause e o príncipe herdeiro, Gawain, e tudo indicava que a família real jamais deixaria as ilhas Orkney. — O que me agrada muito — disse Artur com indiferença —, mas cria certas dificuldades na região. Ele passou a me explicar. O problema era Aguisel, que mantinha o castelo-fortaleza de Bremenium, no alto das montanhas de Northumbria, onde a Dere Street que sai de York encontra-se com a High Cheviot. No tempo de Lot, Aguisel se contentava em ser o aliado do rei de Lothian ou "seu chacal", como disse Artur com desdém, junto com Tydwal e Urien. — Mas, agora que Tydwal está sentado no trono de Lot, Aguisel começou a demonstrar suas ambições. Ouvi boatos, mas não tenho provas, de que, na última vez em que os anglos avançaram por barco no rio Alaunus, Aguisel foi ao seu encontro, não com a intenção de expulsá-los, mas para conversar com o chefe. Urien. continua aliado a ele, dois chacais fingindo ser leões. Parecem pensar que estão distantes demais de mim para me dar satisfações e por isso quero lhes fazer uma vista para pôr fim a essa ilusão. Minha desculpa é inspecionar as obras do Dique Negro. Por mim, eu arranjaria um pretexto para me livrar de Aguisel de uma vez por todas, mas não posso me arriscar a ver Tydwal e Urien correndo em sua defesa. Não posso desfazer minha aliança com os reis do norte antes de ter plena certeza de que os saxões ocidentais não me darão mais trabalho. E mais: tirar Tydwal significa trazer Morgause de volta. E uma pequena coisa quando comparada com o resto, mas o dia em que ela voltar ao trono de Dunpeldyr só poderá ser um mau dia para mim. — Esperemos que esse dia nunca chegue. — Exatamente. Farei o melhor possível para que ele nunca aconteça. — Artur levantou-se para sair e mais uma vez olhou à volta. — E mesmo uma casa muito agradável. Receio que não terei tempo de visitá-lo de novo antes de partir para o norte, Merlin. Irei na próxima semana. — Então que todos os deuses o protejam, meu querido menino. Espero que eles também estejam ao seu lado no casamento. E venha me visitar de novo quando puder.

2 Us meses que se seguiram a esse encontro foram cheios de tranqüilidade. Logo que Artur partiu para o norte fui ver como estavam indo as obras em Camelot e, satisfeito com que encontrei, deixei o acabamento a cargo de Derwen e retirei-me para meu pequeno castelo, e a sensação de bem-estar foi quase a mesma que eu experimentava ao voltar a Bryn Myrddin. Passei o resto da primavera cuidando de minha vida, plantando mudas e sementes, escrevendo a Blaise e percorrendo os arredores para coletar ervas medicinais. Não voltei a ver Artur antes do casamento. Um mensageiro me trouxe notícias, breves porém agradáveis. O Grande Rei encontrara provas da vileza de Aguisel e o atacara em Bremenium, onde, depois da vitória, ele fora executado, sem que Tydwal, Urien ou qualquer outro partidário intercedesse a seu favor. De fato, Tydwal estava ao lado de Artur na investida final contra a fortaleza. O relatório não explicava o que causara essa mudança nas alianças, mas com a morte de Aguisel o mundo ficava mais limpo. Além disso, como não havia herdeiros diretos, quem agora manteria a fortaleza que comandava o passo Cheviot seria um homem da confiança do Grande rei. Artur escolhera para isso um de seus mais fiéis companheiros, Brewyn, e em seguida voltara para Caerleon. A noiva, Guinevere, chegou à cidade escoltada pela nata da nobreza, tendo à frente Melwas, Bedwyr e um destacamento de Companheiros. Cei, agora senescal de Artur, ficara em Caerleon para preparar a cerimônia, que fora celebrada com grande esplendor. Eu ouvi contar mais tarde que o pai da noiva sugerira a data de primeiro de maio e que Artur, depois de um segundo de hesitação, dissera enfaticamente que "não", o que causara um breve mal-estar. Essa, contudo, fora a única sombra na ocasião. O casamento aconteceu num glorioso dia de sol e, pela segunda vez o Grande Rei levou uma noiva para o leito matrimonial, dessa vez com dias e noites de tranqüilidade a sua frente. No início do verão eles foram a Camelot e tive a oportunidade de conhecer a nova rainha. Guinevere de Northgalis era mais do que uma moça "com bom hálito e nada geniosa". Era simplesmente uma beleza. Para descrevê-la, qualquer um teria de emprestar dos bardos e trovadores as frases elogiosas reservadas às princesas de contos de fada: cabelos dourados, no tom sedoso do milho novo, olhos da cor do céu de verão, pele como pétala de rosa, corpo flexível de salgueiro... mas, para se ter idéia de seu fascínio, teria de ser acrescentada uma personalidade brilhante, um bom humor natural e uma capacidade notável de transmitir alegria em torno de si. Na noite da chegada do casal a Camelot observei-a atentamente durante os festejos e vi muitos olhos, além dos do rei, fixos nela, deixando claro que ela não seria apenas a rainha de Artur, mas de todos os Companheiros. Talvez com exceção de Bedwyr. Seus olhos eram os únicos que não se voltavam constantemente para o alto da mesa. Ele parecia mais calado do que o habitual, imerso em seus pensamentos e, quanto a Guinevere, ela mal olhava em sua direção. Imaginei que devia ter acontecido algo, talvez na viagem desde Northgalis, que causara um certo estremecimento. Todavia, Melwas, sentado ao lado da rainha, parecia beber suas palavras e a olhava com o mesmo ar de veneração dos outros. Foi um lindo verão, lembro-me bem dele. Fez muito calor, mas havia uma brisa agradável e de tanto em tanto caía uma chuva refrescante. Em resultado, as plantações vicejaram como nunca antes, o gado e outros animais engordaram e toda a terra amadurecia para uma abundante colheita. Por todos os lados, embora os sinos das igrejas tocassem alegremente nos domingos e a quantidade de cruzes cristãs aumentasse a cada dia, substituindo estátuas ou monólitos que antes ficavam à beira das estradas, o povo abençoava o jovem rei por lhe dar não apenas a paz, mas também a riqueza de colheitas porque recordavam que, durante o último ano de vida de Uther, a terra parecera imitar sua doença. Além disso,

o povo esperava cheio de confiança, como os nobres de Camelot, pelo anúncio da concepção de um herdeiro. No entanto o verão terminou, chegou o outono e, apesar de a terra apresentar seus frutos, a rainha, que diariamente cavalgava em companhia de suas damas, continuava tão ágil e elegante como sempre. E, em Camelot, a memória da mocinha que concebera o herdeiro e morrera por sua causa não perturbava ninguém porque tudo era novo, brilhante ou estava em construção. A obra do palácio terminara e agora começara o trabalho dos entalhadores e marceneiros, enquanto mulheres teciam e bordavam, e peças de ouro, prata e louça chegavam diariamente, de modo que as estradas pareciam caminhos de formigueiro. Era um tempo de juventude e risos, de construção depois da conquista, e os anos sombrios haviam ficado para trás. Quanto à "sombra branca" de meu presságio, comecei a imaginar se não seria a sombra da falecida Guenever que havia escondido a luz e, para mim, ainda parecia pairar nos cantos como um espectro. Eu, porém, nunca o tinha visto e, se Artur recordava-se dela, nunca dissera nada a respeito. Assim quatro invernos se passaram e as torres revestidas de dourado de Camelot agora brilhavam orgulhosamente no alto do morro. As fronteiras continuavam em paz, as colheitas boas se repetiam e o povo já se acostumara com a segurança e a paz. Artur completara vinte e cinco anos, e se tornara mais calado, todavia estava sempre viajando e cada vez parecia ficar mais tempo longe de casa. A duquesa de Cador deu à luz um filho e o rei foi à Cornualha para ser o padrinho de batismo, mas a rainha não o acompanhou. Por algumas semanas murmurou-se esperançosamente que talvez ela tivesse um bom motivo para não fazer a viagem, mas Artur e seu séqüito foram e voltaram, depois partiram de novo, indo por mar para Gwynedd, e Guinevere continuava cavalgando, rindo, dançando e recebendo, tão esbelta como uma donzela e não parecendo ter preocupações. Então, num dia chuvoso do início da primavera, quando escurecia, um cavaleiro chegou galopando ao meu portão. O rei continuava em viagem e não se esperava sua volta antes de no mínimo uma semana, mas a rainha havia desaparecido. O mensageiro foi o senescal, Cei, filho de Ector de Galava e irmão de criação de Artur. Três anos mais velho do que o rei, alto e encorpado, ele era corajoso e um bom guerreiro, mas lhe faltava a capacidade de liderança que era tão natural em Bedwyr, por exemplo, o poeta e sonhador entre os garotos de Galava. Cei podia não ser brilhante, mas era de absoluta confiança e, como senescal do rei, ficava a cargo da organização da casa da família real. Viera me procurar acompanhado de apenas um criado e, quando chegou a minha porta, vi que tinha um braço numa tipóia improvisada e o rosto estava pálido de cansaço e preocupação. Contou-me o acontecido sentado junto ao fogo da lareira, que tingia de alaranjado as vigas do teto, falando muito rápido depois de aceitar uma caneca de vinho quente, e só me deixando examinar seu braço depois de muita insistência. Ele continuou falando enquanto eu apalpava a musculatura. — Bedwyr mandou-me vir procurá-lo. Eu me machuquei e então ele quis que eu voltasse. Não, não fui ao médico. Com que tempo? Maldição! Poderia ter acontecido alguma coisa grave... Ela está sumida desde cedo. O dia nasceu prometendo muito sol e ela saiu com as damas, alguns pajens e dois soldados como escolta. Isso é comum, como você sabe. — Sim. Era verdade. Às vezes alguns cavaleiros acompanhavam a rainha, mas em geral eles estavam

ocupados com coisas mais importantes do que escoltá-la em seus passeios matinais. Guinevere tinha sua própria guarda, mas atualmente, na região em torno de Camelot, não se encontravam mais bandoleiros perigosos como os que costumavam freqüentar lugares isolados no tempo em que eu era menino. Por isso, a rainha montara sua égua cinzenta e saíra despreocupadamente com duas damas e quatro homens, dois deles soldados. Tinham ido para o sul, onde havia uma faixa de terreno seco antes de começar a floresta fechada. A sua direita o grupo tinha os pântanos, onde os rios corriam para o mar formando inúmeros canais ladeados de juncos e à esquerda as primeiras elevações cobertas de vegetação que iam se tornando mais altas até chegarem à cadeia montanhosa. Eles haviam encontrado caça em abundância, deixando os pequenos galgos de Guinevere quase malucos de tanto latir e correr atrás das aves, e os pajens tiveram grande trabalho para reuni-los na hora da volta. Foi nesse momento que a rainha mandou seu pequeno falcão, um merlin, perseguir uma lebre e saiu cavalgando atrás deles, embrenhando-se na floresta. Cei fez uma careta de dor quando meus dedos encontraram o músculo distendido. — Está vendo? Eu lhe disse que não era grave — resmungou ele. — Acho que foi só um mau jeito. Será que vai demorar para sarar? Ainda bem que não é o braço direito... Mas, continuando, ela entrou galopando na floresta e as mulheres ficaram esperando. A mais nova não monta bem e Lady Melissa não é mais uma mocinha. Os pajens continuavam distantes, terminando de reunir os cães. Ninguém se preocupou. Ela é uma amazona e tanto; sabe que até conseguiu montar o garanhão branco de Artur? Além disso, não era a primeira vez que fazia esse tipo de brincadeira com as damas, portanto todos se mantiveram calmos enquanto os dois soldados iam atrás dela. O resto foi fácil de entender. Como estavam acostumados com situações parecidas, os soldados tinham avançado a um passo tranqüilo. Podiam ouvir a égua galopando no meio das árvores e o barulho de touceiras e folhas secas amassadas. A vegetação começou a se espessar e os dois tiveram de ir mais devagar, desviando-se dos galhos que ainda balançavam depois da passagem da rainha, e orientando seus animais por entre os troncos caídos e buracos cheios de água que tornavam tão perigoso o solo dessa parte mais baixa da floresta. Meio praguejando, meio rindo, ocupados, só depois de alguns minutos se deram conta de que não ouviam mais o galope da égua cinzenta e de que o mato rasteiro não mostrava sinais de ter sido recentemente pisado. Eles pararam, prestando atenção aos ruídos. Nada, senão o canto áspero de um pássaro. Chamaram a rainha, mas não obtiveram resposta. Mais irritados do que alarmados, decidiram seguir rumos diferentes. Um foi para perto do pássaro e outro se aprofundou na floresta. — Não vou encompridar mais a história — disse Cei. — Você pode imaginar o que aconteceu. Quando os dois soldados voltaram a se reunir já estavam assustados. Chamaram mais algumas vezes pela rainha e os pajens, ouvindo os gritos aflitos, foram até eles. Depois de algum tempo ouviram novamente a égua, galopando e relinchando, e partiram atrás dela. — E então? — falei, enfiando o braço machucado na tipóia, que acabara de ajustar. — Assim está melhor. Obrigado. Bem, eles encontraram a égua depois de uns três minutos de cavalgada, mancando, arrastando uma rédea partida, mas nenhum sinal da rainha. Mandaram os pajens voltar com as mulheres para o castelo e continuaram procurando. Bedwyr e eu saímos com uma tropa e passamos o resto do dia inspecionando a floresta, mas não encontramos mais nada. — Cei fez um gesto de desânimo com a mão boa. — Você conhece o lugar. Onde não existe uma vegetação tão fechada que seria capaz de parar um dragão, tem um solo pantanoso onde um homem ou um cavalo poderia se afundar até a cabeça. E mesmo na parte baixa da floresta existem valas largas e fundas, difíceis de saltar. Foi numa delas que me machuquei. Estava coberta de folhas e galhos secos, uma verdadeira

armadilha de lobos. Tive sorte de escapar apenas com isto. — Cei ergueu o braço doente com uma careta. — O coitado do meu cavalo está com um graveto enfiado na barriga. Duvido que conseguirá se recuperar. — E a égua? Mostrava sinais de queda? De ter se atolado? — Estava cheia de lama até os olhos, mas isso não significa muito. Ela deve ter galopado por valetas e charcos por mais de uma hora. Mas o pano da sela estava rasgado. Pode ter levado um tombo, mas não consigo imaginar a rainha caindo de um cavalo, a não ser... a não ser que tenha sido atirada longe por um galho. Mas acredite, Merlin, examinamos cada pedacinho da floresta naquela área e a teríamos encontrado se estivesse desmaiada em algum lugar... ou pior. Deus, se ela tinha de inventar uma coisa dessas, por que não brincou quando o rei estava em casa? — E, naturalmente, alguém já foi avisá-lo. — Bedwyr despachou um mensageiro antes de sairmos de Camelot. Chegaram mais homens para ajudar na busca. Está ficando escuro demais para se cavalgar pela floresta, mas vamos ficar por perto para o caso da rainha acordar do desmaio e gritar por socorro. O que mais podemos fazer? Bedwyr mandou vir redes. Algumas valas são muito fundas e existem correntes fortes no rio que vai para o oeste... — Cei parou de falar e olhou para mim com seu jeito meio simplório, como se estivesse me implorando um milagre. — Depois de minha queda Bedwyr me pediu para vir até aqui. Merlin, quer ir comigo agora e mostrar onde deveremos procurar pela rainha? Olhei para minhas mãos e depois para o fogo, que agora diminuíra para pequenas chamas que lambiam uma tora acinzentada. Eu não tivera oportunidade de testar meus poderes desde a previsão sobre Badon. E antes disso passara muito tempo sem me atrever a tentar até os mais simples deles, não procurava ver nas chamas, nem nos cristais ou nas gotas de água porque não queria importunar o deus conjurando um pequeno suspiro do grande vento. Esperei que viesse a mim. Cabia a ele escolher a hora. — Ou me dizer qualquer coisa aqui mesmo? — a voz de Cei quebrou, cheia de súplica. Houve uma época, pensei, que eu só precisava olhar para o fogo desse jeito, levantar a mão, assim e... As pequenas chamas chiaram e cresceram subitamente, envolvendo a tora com faixas de luz, emitindo um calor capaz de queimar a pele. Faíscas saltaram e queimaram, com a mesma e antiga cor bem-vinda. A luz, o fogo, todo o mundo vivente fluiu para o alto, envolto em chamas e fumaça, criando uma visão embaçada e eu imerso nela. Um som vindo de Cei despertou minha atenção. Ele estava em pé, afastando-se do fogo. Tornarase muito pálido sob a luz vermelha e havia suor em seu rosto. — Merlin... — começou roucamente. Ele recuava assustado, envolto em luz e escuridão. Ouvi-me dizendo: — Vá. Apronte meu cavalo e espere por mim. Não ouvi Cei sair. Eu já estava muito distante da sala iluminada pelo fogo da lareira, levado pela correnteza simultaneamente quente e fria que me depositou, como se eu fosse uma pequena folha levada pelo vento, nas trevas junto aos portões que se abriam para o Sobrenatural. As cavernas se sucediam sem parar, os tetos perdidos na escuridão, as paredes iluminadas com um brilho estranho e subaquático que delineava cada aresta e protuberância das pedras. Longas

estalactites pendiam de arcos, como se fossem cortinas de musgo em velhas árvores, e pilares subiam do chão para se encontrar com elas. Em algum lugar a água se derramava, eu ouvia seu eco a minha volta e a luz incomum se refletia nela, criando ondulações brilhantes no teto. Depois, pequena e distante, uma luz forte se destacou. Vi a forma de uma porta entre pilares, bela e formal. Atrás dela algo... alguém... se mexia. No instante em que desejei me aproximar eu estava lá sem o menor esforço, um fantasma levado pelos ventos de uma noite tempestuosa. A porta se abria num grande salão feericamente iluminado. O que eu avistara se mexendo ali havia desaparecido, só ficando grandes espaços fulgurantes, o piso colorido do palácio de um rei, os pilares dourados, as tochas seguras por bocas de dragões feitas de ouro. Vi também cadeiras de ouro encostados nas paredes reluzentes e mesas de prata. Numa delas estava um tabuleiro de xadrez feito de prata em tons diferentes, com as peças espalhadas, como se um jogo tivesse sido interrompido. No centro do grande salão havia um enorme trono de marfim e a sua frente um outro tabuleiro, este de ouro, e sobre ele cerca de uma dúzia de peças, uma delas inacabada, tombada de lado junto a uma vareta de ouro e uma lima, como se alguém houvesse pouco a estivesse entalhando. Eu sabia que não estava tendo uma visão verdadeira, mas apenas um sonho com o lendário salão de Llud-Nuatha, senhor do Sobrenatural. Era para esse palácio que vinham todos os heróis, protagonistas de lendas e canções. Aqui ficara a espada e um dia talvez o graal e a lança seriam sonhados e levados. Aqui Macsen vira sua princesa, a moça com que se casara no mundo acima, e em quem colocara a primeira semente de uma linhagem de governantes cujo representante mais jovem era Artur... Como se fosse um sonho matutino, o palácio desapareceu, mas as grandes cavernas continuavam ali e nelas vi um trono onde estava sentado um rei moreno e, ao lado dele, uma rainha apenas meio visível nas sombras. Em algum lugar cantava um passarinho e a vi voltar a cabeça para essa direção e suspirar. Por entre todas as visões eu sabia que eu, Merlin, dessa vez mais do que em qualquer outra, não queria ver a verdade, talvez porque já a conhecesse abaixo do nível do pensamento consciente. Eu construíra para mim mesmo o palácio de Llud, o salão de Dis e de Perséfone, sua prisioneira. Atrás dos dois estava a verdade e eu, como servo do deus e de Artur, tinha a obrigação de descobri-la. O pássaro cantando, o som de água. Um cômodo pequeno, nada grandioso nem mobiliado com prata e ouro. Um cômodo com cortinas, mas bem iluminado, onde um homem e uma mulher estavam sentados jogando xadrez. Ela parecia estar ganhando, vi o homem franzir a testa e percebi a tensão em seus ombros enquanto se inclinava sobre o tabuleiro pensando no lance seguinte. A mulher ria. Ele ergueu a mão, hesitou, voltou atrás e permaneceu sentado, imóvel. A mulher disse alguma coisa e o homem virou-se para ajustar o pavio de um dos lampiões a seu lado. Vendo-o distraído, a mulher estendeu a mão sorrateiramente e mexeu uma peça com a rapidez de um ladrão de mercado. Quando ele voltou a olhá-la ela estava sentada muito composta, com as mãos cruzadas no colo. O homem fitou novamente o tabuleiro, soltou uma risada e fez sua jogada. O cavalo comeu a rainha. A mulher fingiu surpresa, ergueu as mãos num gesto de falso desânimo, com extrema graça, depois começou a arranjar as peças para um novo jogo. O homem, porém, que subitamente se tornara o retrato da impaciência, levantou-se de um salto, pegou-a pela mão e puxou-a para ele. O tabuleiro caiu e as peças rolaram pelo chão. Vi a rainha branca, com o rei vermelho em cima dela, bater no pé do homem. Ele olhou para baixo, riu de novo e disse alguma coisa no ouvido da mulher. Seus braços se fecharam em torno dela. A barra do vestido da mulher espalhou as peças de xadrez e o homem pisou no rei branco, quebrando-o ao meio.

A visão também foi se quebrando, sumindo numa sombra que aos poucos clareou até aparecer a luz de um lampião e o último brilho do fogo que morria. Levantei-me rigidamente, sentindo os membros doloridos. Havia cavalos inquietos junto ao alpendre da porta de entrada e em algum lugar do pátio cantava o mesmo pássaro que eu ouvira no sonho. Tirei minha capa do cabide e enrolei-a em torno do corpo enquanto saía rapidamente. Cei segurava as rédeas dos animais, ainda nervoso, e apressou-se a vir ao meu encontro. — E então, conseguiu? — Um pouco. Ela está viva e ilesa. — Ah! Deus seja louvado! Onde, então? — Ainda não descobri, mas logo vou saber. Só um instante, Cei. Vocês encontraram o merlin? — O quê? — O falcão da rainha. O merlin que ela soltou e seguiu pela floresta adentro. — Não vimos nem sinal dele. Por quê? Ele nos ajudaria? — Não tenho idéia. Foi só uma pergunta. Agora leve-me até onde está Bedwyr.

3 Por sorte Cei não fez mais perguntas, ocupado como estava com seu cavalo enquanto percorríamos o terreno acidentado. Embora ainda houvesse luz suficiente, apesar da chuva contínua, não estava sendo fácil escolhermos uma rota rápida e segura no campo encharcado, o caminho mais curto entre Applegarth e a floresta onde a rainha sumira. Na última parte do trajeto nos guiamos pela luz de tochas e vozes de homens, distorcidas e aumentadas pela água e vento. Encontramos Bedwyr com água pelas coxas, a uns poucos passos de distância da margem de um canal ladeado de arbustos e cepos de troncos de carvalho, cortados por lenhadores ou rachados pela intempérie, que estavam voltando a brotar. Os homens estavam reunidos junto a um desses cepos. Algumas tochas haviam sido amarradas a galhos secos e duas eram carregadas pelos homens que iluminavam o trabalho de Bedwyr, enquanto dragava o canal com uma rede. Na margem, um pouco mais adiante, havia uma pilha de detritos encharcados, que brilhavam à luz do fogo. Percebi que cada vez que a rede era puxada ela vinha bem pesada e imaginei a atitude dos homens, receando se deparar com o corpo afogado da rainha. Uma dessas cargas acabara de ser depositada quando Cei e eu chegamos, parando bem perto da margem do canal. Bedwyr não notou nossa presença. Ouvi sua voz, rouca de cansaço, enquanto mostrava aos homens onde deveria ser feito o próximo arrastão. Nesse instante, porém, alguém o chamou, avisando-o de nossa chegada e ele, pegando a tocha de um dos homens, avançou para a margem. — Cei? — A exaustão de Bedwyr era tanta que ele não se deu conta de mim ao lado do seu amigo de infância. — Conseguiu falar com ele? O que ele disse? Espere um pouco, vou subir em seguida. — Falando por cima do ombro, ordenou aos homens: — Continuem! — Não é preciso, Bedwyr — falei. — Podem parar com a dragagem. A rainha está bem. Agora ele estava junto da margem e seu rosto, virado para nós e iluminado pela tocha, mostrou uma expressão de tão imenso alívio e alegria, que poderíamos jurar que o fogo aumentara subitamente. — Merlin? Graças a todos os deuses por isso! Você a encontrou? Agora estávamos cercados pelos homens, que faziam perguntas ansiosas. Alguém estendeu a mão para Bedwyr saltar para a margem e ele aproximou-se de nós com a água barrenta escorrendo das roupas. — Ele teve uma visão — explicou Cei, sem rodeios. Os homens se emudeceram diante disso. As perguntas se transformaram em murmúrios assustados. Bedwyr, porém, só disse: — E onde ela está? — Receio que ainda não tenha como lhe dizer. — Olhei à volta. A esquerda o canal lamacento entrava na escuridão da floresta, mas à direita, com o pouco de luz que ainda restava no horizonte, dava para ver que ele se abria num lago pantanoso. — Por que estavam dragando aqui? Pelo que Cei me contou, imaginei que os soldados não tinham a menor idéia de onde a rainha caíra.

— E é verdade. Ela deve ter caído um pouco antes deles ouvirem a égua pela segunda vez. E tudo indica que foi aqui. O chão agora está todo pisoteado, mas quando chegamos havia sinais de uma queda, de um cavalo estrebuchando, depois levantando e entrando num galope por entre estes galhos. Ei, você, traga a tocha mais para perto! Ali, Merlin, está vendo? Marcas nos troncos e um pedacinho de pano, talvez da capa que ela usava... Havia umas gotas de sangue também. Mas se você diz que ela está bem... — Bedwyr ergueu a mão para afastar os cabelos da testa num gesto cansado e sujou o rosto de lama. — Então era sangue da égua — disse alguém atrás de mim —, ela estava com as pernas cheias de arranhões. — Sim, claro. Mas quando encontramos os sinais aqui na margem e nos galhos, pensei... imaginei o que podia ter acontecido: a égua disparou, caiu e atirou a rainha na água. Um pouco mais à frente o canal é bem fundo. Calculei que ela houvesse ficado com as rédeas na mão e tentado fazer com que a égua a puxasse. Quando o couro partiu, a égua fugiu assustada. O que foi que realmente aconteceu? — Não posso lhe dizer. O importante agora é encontrarmos a rainha e bem depressa. E, para isso, precisamos da ajuda do rei Melwas. Ele ou alguém de seu povo está aqui? — Não vimos nenhum dos seus soldados, mas encontramos gente que mora nos pântanos, uns homens prestativos, que nos ensinaram a localização de algumas trilhas. — Bedwyr virou-se para o grupo, perguntando: — Os homens de Mere ainda estão aqui? Eles deram um passo à frente, relutantes, extremamente assustados, empurrados pelos outros. Dois homens atarracados, barbudos e malcuidados, e com eles um garoto magrinho, que imaginei ser filho do mais moço. Dirigi-me ao mais velho: — Vocês são mesmo de Mere, em Summer Country? Ele fez que sim, torcendo os dedos nervosamente numa dobra da túnica encharcada. — Foi muita bondade sua ajudar os homens do Grande Rei. Serão recompensados por isso, prometo. Vocês sabem quem eu sou? Outro aceno, mais torcer de dedos. O menino engoliu em seco audivelmente. — Muito bem. Agora, não tenham medo e você, responda o melhor que puder. Sabe onde está o rei Melwas neste momento? — Não... não sei direito, meu senhor. — O homem falou devagar, com se estivesse usando uma língua estrangeira. Os moradores do pântano são muito calados e conversam entre si num dialeto só deles. — Mas o senhor não o encontrará no palácio da ilha. Nós o vimos caçando por aqui há dois dias. Ele costuma fazer isso de vez em quando. Vem sozinho, ou com um ou dois amigos, e fica algum tempo. — Caçando? Na floresta? — Não, meu senhor, ele gosta de caçar aves. Sai pelos riachos e canais num barco, acompanhado apenas pelo remador. — E você sabe para onde ele foi? — Para lá — apontou o homem —, perto de onde o caminho do lago, que vem da ilha, termina no alagadiço. Como por ali existem algumas partes secas, sempre se encontram gansos selvagens. O rei tem uma cabana de caça mais além, mas não deve ter ninguém lá. Ela está fechada desde o inverno. Além disso, um pouco antes de começar a escurecer chegou a notícia de que o jovem rei está vindo de

Caernavon de barco, de modo que vai ter de atracar na ilha, talvez com a próxima maré. Acho que o rei Melwas vai estar lá para recebê-lo, não é? A chegada de Artur era novidade para mim e também, como pude ver, para Bedwyr e os outros. Jamais consegui entender como esses moradores de lugares remotos, como os pantaneiros, conseguem receber notícias tão rapidamente. — Não vi nenhuma luz no alto do Tor. Você viu alguma, Merlin? — Não. E também não vi fogo nas outras balizas. Não é possível que já tenham avistado as velas. É melhor sairmos daqui, Bedwyr. Iremos diretamente para o Tor. — Quer dizer que iremos falar com Melwas antes de continuarmos a procurar a rainha? — Acho melhor. Quer dar as ordens, por favor e cuidar para que estes homens sejam recompensados pela sua ajuda? No alvoroço que se seguiu, toquei o braço de Bedwyr, chamando-o de lado. — Não posso dizer nada agora, meu rapaz. A situação é muito grave e perigosa. Temos de ir sozinhos procurar a rainha. Acha que conseguiremos nos afastar sem dar explicações? Ele franziu o cenho, olhou atentamente para o meu rosto, mas disse no mesmo instante: — Claro. E quanto a Cei? Será que vai aceitar? — Cei está machucado e, além disso, se Artur está para chegar ele deve voltar para Camelot o mais rápido possível. Nós e os outros iremos todos para a ilha, para esperar a maré. Estará bem escuro e conseguiremos nos afastar sem chamar a atenção. A tensão do dia ressoou na voz de Bedwyr. — Você vai me contar o que está acontecendo? — Explicarei enquanto estivermos indo, mas não quero que ninguém ouça, nem mesmo Cei. Alguns minutos depois estávamos a caminho. Eu cavalgava entre os dois amigos e os homens vinham atrás de nós. Estes conversavam despreocupados, aparentemente convencidos de que tudo estava bem conforme eu dissera. Eu, contudo, sabendo apenas o que me fora dado ver no sonho, me sentia curiosamente leve e tranqüilo, acompanhando o passo apressado ordenado por Bedwyr, sem a menor preocupação com o terreno difícil, mal sentindo a sela. Não era uma sensação nova mas fazia anos que eu não sentia isso: a vontade do deus passando por mim e eu indo com ela, como uma faísca sendo soprada entre as estrelas. Eu não sabia o que me esperava nesse crepúsculo úmido, apenas sentia que a rainha e sua aventura formavam somente uma pequenina parte do destino que estava à nossa frente, sombras que iam sendo afastadas por essa onda formidável de poder que me impulsionava. Minhas recordações sobre essa cavalgada atualmente são muito confusas. O grupo liderado por Cei separou-se de nós e pouco depois encontramos barcos e Bedwyr mandou metade de seus homens embarcarem, indo para a ilha pelo meio mais rápido. O restante ele dividiu, fazendo alguns tomarem a estrada que acompanhava a margem do lago e outros atravessarem usando o caminho elevado, que levava diretamente para o cais. A chuva parará e agora a névoa aumentava com a chegada da noite. O céu estava se enchendo de estrelas, parecendo uma rede apanhando peixes cintilantes. Tochas iam se acendendo e jangadas lotadas de pessoas e animais singravam lentamente o lago impulsionadas pelas varas dos barqueiros. Quando os homens que iriam pela estrada marginal começaram a se reagrupar, a

névoa aumentando até quase atingir as ancas dos cavalos, avistamos o brilho de uma tocha distante subindo o Tor. As velas de Artur tinham sido avistadas. Foi fácil para mim e Bedwyr nos afastarmos sorrateiramente. Nossos cavalos saíram do calçamento, trotaram pesadamente por um bom pedaço de relva encharcada e finalmente puderam aumentar o passo na estrada que ia para sudoeste. Logo as luzes e sons da ilha desapareceram atrás de nós. A névoa subia espessa nos dois lados de nosso caminho. Avançávamos à luz fraca das estrelas, que eram como lampiões distantes iluminando uma estrada para fantasmas a percorrerem. Os cavalos foram ajustando os passos e pouco a pouco eu e Bedwyr estávamos lado a lado. — Essa tal cabana de caça... — disse Bedwyr, ofegante. — É para lá que estamos indo? — Espero que sim. Você sabe onde fica? — Sim, creio que posso encontrá-la. Mas porque você precisa pedir ajuda a Melwas? Assim que ele souber do acidente da rainha porá todos os seus homens à nossa disposição para uma busca pelos pântanos. E se não estiver na cabana agora... — Esperemos que não esteja. — Por acaso estamos no meio de um quebra-cabeças? — Pela primeira vez, desde que o conhecia, Bedwyr falava com grosseria mal disfarçada. — Você disse que explicaria. Disse que sabia onde ela estava e agora está procurando por Melwas. Então, o que... — Bedwyr, será que até agora você não entendeu? Penso que Guinevere está na cabana de caça. Melwas levou-a para lá. O silêncio que se seguiu foi mais tempestuoso do que qualquer exclamação. Quando Bedwyr voltou a falar mal dava para ouvi-lo. — Não preciso perguntar se você tem certeza. Se foi uma visão, só me cabe aceitar. Mas conteme como e por quê. — O porquê é óbvio. O como ainda não sei. Desconfio que ele esteve planejando isto há um bom tempo. Os passeios da rainha são de conhecimento público e freqüentemente ela vai à floresta que beira o pântano. Se os dois se encontraram ali, quando ela separou-se de seu grupo, nada mais natural do que parar para conversar com ele. Talvez isso explique o silêncio quando os dois soldados procuravam por ela. — Sim... e se ele agarrou as rédeas, tentou agarrá-la e ela esporeou a égua... isso explicaria as marcas que encontramos na margem do canal. Por todos os deuses, Merlin! Você está falando de rapto! E acha que Melwas esteve planejando há algum tempo? — Não tenho certeza, é só uma suspeita. É possível que tenha tentado outras vezes antes desta oportunidade: a rainha sozinha e o barco por perto. Não adiantei mais nada. Recordava-me do cômodo com as cortinas, o jogo de xadrez, a rainha composta e sorridente. Pensei também nas longas horas que haviam se passado desde que ela desaparecera. Bedwyr devia estar pensando a mesma coisa. — Ele deve estar maluco. Um reizinho qualquer arriscando-se a ser o objeto da raiva de Artur! Que loucura!

— Talvez. Mas uma loucura comum quando se trata de mulheres — falei secamente. Um outro silêncio, finalmente rompido por um gesto, que mal divisei no escuro, e uma mudança no passo do cavalo. — Vá mais devagar. Daqui a pouco sairemos da estrada. Obedeci sem perguntas. Bedwyr avançava lentamente, olhando atentamente para as margens da estrada. Então a avistamos, uma trilha que aparentemente levava para o pântano. — É aqui? — Sim, mas é um caminho ruim. Talvez tenhamos de fazer os cavalos nadarem. — Um olhar para mim. — Acha que você vai conseguir? Uma lembrança emergiu em minha mente: Artur e Bedwyr na floresta Selvagem, apostando corrida, como fazem os meninos, mas sempre preocupados comigo, um mau cavaleiro trotando atrás deles. — Pode ficar sossegado. — Então vamos descer por aqui. Os cavalos se enfiaram na estreita faixa de lama entre touceiras de junco e depois entraram num canal sem hesitação. Logo estávamos com água até a coxa, avançando pela superfície tranqüila. Foi um estranho tipo de progresso, porque a névoa escondia a água e até mesmo a cabeça de nossos animais. Imaginei como Bedwyr conseguia ver o caminho, mas acabei avistando, bem atrás do brilho da água, das placas de neblina e das formas escuras de árvores e arbustos, o pequenino ponto de luz que indicava uma moradia. O ponto de luz parecia aproximar-se de nós e minha mente corria de um lado para outro analisando as possibilidades do que teria de ser feito. Artur. Bedwyr, Melwas, Guinevere... e o tempo todo, como o murmurar profundo que uma harpa produz sob um acorde complicado, eu sentia o poder que me impelia para... o quê? — E nenhum barco... — Ouvi Bedwyr praguejar baixinho. — É aqui que costumamos nadar. — Bedwyr, terei de deixá-lo fazer essa última parte sozinho. Mas você... — Sim, por Deus! — Ouvi o barulho da espada sendo desembainhada. Estendi a mão e segurei as rédeas de seu cavalo junto do bridão. — Mas você fará exatamente como eu mandar. Um silêncio. Depois a voz suave mas teimosa: — Eu o matarei, claro. — Nada disso. Você salvará o nome do Grande Rei e da rainha. Isto é uma questão para Artur resolver, não você. Um outro silêncio, dessa vez muito longo. — Está bem. Farei o que você disser. — Ótimo. — Dirigi meu cavalo para o meio de uns arbustos onde não seríamos vistos facilmente. O de Bedwyr, que eu ainda segurava, me seguiu. — Agora espere. Olhe. Apontei para o caminho por onde tínhamos vindo. Muito distante de nós, por cima da grande extensão pantanosa, um punhado de luzes brilhavam como estrelas. A fortaleza de Melwas, iluminada em sinal de boas-vindas. Só podia significar uma coisa: Artur estava chegando. Então, o som tão ampliado pela água que chegou a nos assustar, veio o estalido e ranger de uma

porta se abrindo e o murmúrio de um barco singrando a água. O barulho vinha de trás da casa, onde algo invisível para nós se afastava no meio do nevoeiro. Uma voz masculina disse alguma coisa, bem baixinho. Bedwyr fez um movimento súbito e seu cavalo ergueu a cabeça tentando se livrar de minha mão. — Melwas — disse com uma voz apertada de tensão. — Ele viu as luzes. Maldição, Merlin, ele a está levando... — Não. Espere. Ouça! Uma luz surgiu na casa. Uma voz de mulher chamou. Foi um grito num tom de súplica, mas se havia nele medo, saudade ou pena de ser abandonada, não pudemos decifrar. Os sons do barco sumiram. A porta se fechou. Eu continuava segurando o bridão do cavalo de Bedwyr. — Agora vá até lá e traga a rainha, para nós a levarmos para casa.

4 EU mal tinha acabado de falar e Bedwyr já saltava do cavalo, atirando a capa pesada na sela e entrando na água, nadando com a facilidade de um castor para a margem oposta, onde havia um relvado em frente da porta de entrada. Escutei um resmungo de dor e um palavrão abafado. — O que foi? Ele não respondeu. Apoiou o joelho na margem e depois saiu da água com a ajuda de um galho de salgueiro. Parou para tirar o excesso de água dos ombros e em seguida se encaminhou para a porta com alguma dificuldade; tive a impressão de que mancava. Enquanto ele andava, ouvi o silvar da espada saindo da bainha. Bedwyr bateu na porta com o punho da espada e houve um eco como se a casa estivesse vazia. Nenhum movimento, nenhuma resposta; pensei com amargura: muito estranho para uma dama que espera socorro. Bedwyr bateu de novo. — Melwas! Abra para Bedwyr de Benoic! Abra em nome do Grande Rei! Houve uma longa pausa e podia-se sentir que alguém na casa hesitava, segurando a respiração e com o coração aos saltos. Então a porta se abriu. Não foi com um movimento brusco de desafio ou coragem, mas um bem vagaroso, apenas uma frestinha, que mostrou a luz fraca de uma lamparina e a sombra de alguém que olhava para fora. Uma figura alta, esbelta e ereta, com cabelos soltos e um vestido acetinado. — Senhora! — disse Bedwyr com a garganta apertada. — Minha rainha, a senhora está bem? — Príncipe Bedwyr. — A voz saiu um tanto ofegante, mas composta. — É você, graças a Deus. Quando ouvi os cavalos tive medo de que... Como chegou até aqui? Como me encontrou? — Merlin me guiou. Ouvi claramente o soluço de susto. A lamparina iluminou os contornos de seu rosto pálido quando ela virou a cabeça e me avistou na outra margem. — Merlin? — Mas quando continuou, a voz voltou a sair macia e controlada. — Então dou graças a Deus pelas suas artes. Achei que ninguém passaria por aqui. Claro, pensei, mas disse bem alto: — Quer se aprontar, senhora? Viemos para levá-la de volta ao Grande Rei. Ela não respondeu, mas virou-se para entrar. Fez uma pausa e falou algo para Bedwyr, baixo demais para eu poder captar. Ele respondeu e Guinevere abriu a porta, fazendo um gesto mandando-o entrar e pude ver a luz pulsante de uma lareira, que me mostrou alguma coisa da sala, um lugar muito mais luxuoso do que se esperaria em uma cabana de caça esquecida, com banquetas estofadas, almofadas e bandejas. Pude ver por uma porta interna bem aberta o canto de uma cama ou diva, com lençóis amassados e uma colcha caída ao lado dela. Sim, Melwas preparara muito bem esse ninho. Minha visão do cômodo iluminado pela luz de um fogo e o amigável jogo de xadrez fora bem correta. As palavras que seriam ditas a Artur giravam em minha cabeça e a névoa parecia fumegar em torno da casa, tomando a forma de fantasmas, sombras brancas...

Bedwyr apareceu na porta. A espada voltara para a bainha e agora ele carregava um lampião e uma vara comprida de bar-queiro. Chegou perto da beira da água, andando com cuidado. — Merlin? — Sim! Quer que eu leve os cavalos até aí? — Não! Cuidado! Aqui tem facas escondidas sob a água. Esqueci-me dessa velha armadilha e enfiei o joelho numa delas. — Está muito ferido? — Não. Só pegou a carne e os outros cortes são menores. A rainha me colocou uma atadura. — Então você não pode vir nadando. O que pretende fazer? Deve haver algum lugar onde há passagem para cavalos. Pergunte a ela. — Já perguntei e ela não sabe. E também não tem nenhum barco aqui. — Mas será que Melwas não tem alguma coisa que flutue? — Era exatamente nisso que eu estava pensando. Vou encontrar e espero que seja algo que custe muito caro para o canalha. — E a rainha? — Ela está se vestindo. — O tom foi claramente sofrido. — Ele colocou o lampião que segurava junto à margem e ficamos esperando. — Príncipe Bedwyr? A porta se abriu de novo e Guinevere apareceu em traje de montaria, com a capa dobrada no braço. Bedwyr aproximou-se dela mancando. Segurou a capa e ela a vestiu, fechando-a bem no pescoço e puxando o capuz para cobrir os cabelos brilhantes. Bedwyr disse alguma coisa e entrou na casa para reaparecer segundos depois carregando uma mesa. Imagino que o que se passou nos dez minutos seguintes seria motivo de grandes risadas se fosse uma cena de comédia. Eu e a rainha imóveis, cada um numa margem do canal, vendo Bedwyr improvisar uma jangada absurda e em seguida, como se tivesse tido uma outra idéia, voltar a entrar na casa e sair com algumas almofadas que atirou na mesa antes de convidar Guinevere a embarcar. Eles começaram a atravessar a água num trajeto sem a menor dignidade, a rainha agachada e segurando-se numa perna caprichosamente torneada da mesa enquanto o príncipe de Benoic, usando a vara de barqueiro, propelia a engenhoca. A coisa acabou chegando à minha margem e eu a peguei por uma perna. Bedwyr desembarcou rapidamente e virou-se para ajudar a rainha. Ela veio até que com certa graça, sussurrou um agradecimento e começou a sacudir a capa amarrotada. Como o traje de montaria, ela parecia ter sido molhada e mal secada. Uma coisa pequena caiu das dobras e rolou na relva encharcada. Inclinei-me para pegá-la. Uma peça de xadrez feita de marfim. O rei quebrado. Guinevere não notou meus movimentos. Bedwyr empurrou a mesa para a água e pegou as rédeas do cavalo de minha mão. Entreguei-lhe a capa e dirigi-me formalmente à rainha, tão formalmente que minha voz saiu gelada:

— Estou contente por vê-la ilesa, senhora. Passamos um mau dia, temendo por sua vida. — Lamento muito. — O tom foi baixo e o capuz ocultou a expressão. — Levei um tombo feio quando minha água tropeçou. Eu... eu não me lembro muito do que aconteceu. Só sei que acordei nessa casa... — E o rei Melwas estava ali? — Sim. Sim. Ele me encontrou caída e me trouxe para cá. Creio que desmaiei. A criada cuidou de mim. — Ele teria agido melhor se ficasse esperando a seu lado até nossos homens chegarem. Eles passaram o dia inteiro procurando-a na floresta. — Sim, posso imaginar. — Tive a impressão de que a mão que ajeitou o capuz estava trêmula. — Mas a casa ficava perto e, pelo que o rei Melwas me contou, ele ficou preocupado comigo e achou melhor tomar o barco. Eu não poderia cavalgar. Bedwyr já estava na sela. Peguei a rainha pelo braço para ajudá-la a subir e com surpresa, pois nada na vozinha composta me levara desconfiar disso, senti todo o seu corpo tremendo. Abandonei o interrogatório e disse apenas: — É melhor irmos devagar. Sabe, senhora, o Grande Rei já voltou. Senti um tremor forte percorrer seu corpo, mas ela não disse nada. Levantei seu corpo juvenil com facilidade e a acomodei na frente da sela de Bedwyr. Prosseguirmos a passo lento. Quando começamos a nos aproximar da ilha vimos que o cais estava cheio de luzes e cavaleiros. Ainda estávamos a uma certa distância quando avistamos, iluminado pelas tochas que carregavam, um grupo de cavaleiros que se separou da multidão e veio galopando pelo caminho elevado que cortava o lago. Um homem num cavalo preto os liderava, apontando para a frente. Foi então que nos viram. Houve gritos. Logo estavam chegando junto de nós. Agora era Artur que liderava o grupo, montado no cavalo branco sujo de lama. A seu lado, no garanhão preto, soltando grandes exclamações de alívio e de cuidado pela rainha, vinha Melwas, o rei de Summer Country. Voltei para casa sozinho. Havia pouco a ganhar e muito a perder num confronto entre Artur e Melwas nesse momento. Fora o raciocínio rápido de Melwas que o fizera sair da cabana pela porta de trás e 'estar presente à chegada do Grande Rei, o que evitara um escândalo e dessa forma Artur não se vira forçado, fossem quais fossem seus sentimentos ou desconfianças, a brigar com um importante aliado em público. Melhor assim. Melwas levaria todos para seu palácio iluminado, lhes daria vinho e comida, e talvez hospedagem por uma noite, e no dia seguinte Guinevere já teria contado sua história ao marido. Eu não podia nem imaginar qual seria, mas havia certos elementos no acontecido que dificilmente poderiam ser explicados: a sala luxuosamente arrumada, o vestido ou robe acetinado, a cama desarrumada, as mentiras contadas para mim e Bedwyr sobre Melwas. E, sobretudo, a peça de xadrez quebrada, prova de um sonho verdadeiro. Mas tudo isso teria de esperar até no mínimo estarmos longe dos domínios de Melwas e não mais cercado por seus soldados. Quanto a Bedwyr, ele não dissera nada e no futuro, fossem quais fossem seus pensamentos, seu amor por Artur o manteria de boca fechada. E quanto a mim? Artur era o Grande Rei e eu seu principal conselheiro. Eu lhe devia a verdade. Todavia, não ficaria com ele nessa noite, para enfrentar suas perguntas e ser obrigado a respondê-las

com evasivas ou mentiras. "Mais tarde", pensei, meio tonto de exaustão, enquanto meu cavalo cansado percorria pesadamente a estrada que acompanhava a margem do lago. Escolhi o caminho mais longo, sem perturbar o homem da balsa. Mesmo se estivesse disposto a me transportar tão tarde da noite, não sentia a menor disposição de ouvir seus mexericos ou os de soldados voltando para seus alojamentos. Precisava de silêncio, da noite e dos véus da neblina. Meu cavalo, farejando seu lar e uma bela refeição, empinou as orelhas e acelerou o passo. Pouco depois tínhamos deixado os sons e luzes da ilha para trás, o Tor não mais do que uma forma escura na noite, destacando-se contra as estrelas. O cheiro da água, dos juncos e de lama remexida, o ruído constante das patas do cavalo e, infinitamente leve e vindo de muito distante, o sabor de sal na língua, o hálito da maré alta que atingira languidamente seu limite. Um pássaro noturno emitiu um grito roufenho e agitou a água, invisível para mim. O cavalo sacudiu o pescoço molhado e continuou em frente. Silêncio e ar parado, a calma da solidão, criaram uma cortina, quase tão visível como a bruma, entre as tensões do dia e a tranqüilidade da noite. A mão do deus se afastara, nenhuma visão surgia na escuridão. Recusei-me a pensar no dia seguinte e no papel que eu desempenharia nele. Eu fora levado a impedir um escândalo através de um sonho profético, mas não saberia dizer por que "motivos mais elevados" o poder voltara para mim e, além disso, estava cansado demais para pensar no assunto. Estalei a língua para o cavalo e ele apressou o passo. A lua que surgiu por trás de um bosque de olmos iluminou a noite. Um pouco à frente eu sairia da margem do lago e seguiria para casa pela estrada de cascalho. O cavalo parou tão subitamente que fui atirado contra o seu pescoço. Se não estivesse tão esgotado, ele certamente teria empinado, me jogando no chão, mas agora estava empacado, com as patas da frente rigidamente apoiadas no chão. Ali onde estávamos o caminho passava por cima de uma encosta que acompanhava o lago e havia uma queda íngreme, com metade da altura de um homem, até a superfície da água. A neblina continuava espessa, mas algum movimento do ar ou da maré a fazia rodopiar e erguer-se em picos. Ouvi um barulho na água e vi o que assustara meu cavalo. Um barco, sendo impelido com uma vara bem perto da margem e nele alguém em pé, equilibrando-se com a mesma delicadeza de um passarinho pousado num pequenino galho. Por entre uma abertura na névoa, divisei alguém que me pareceu jovem e magro, usando uma capa cuja bainha estava mergulhada na água. O garoto se abaixou e endireitou-se novamente, torcendo o pano. A neblina se movimentou mais com esses gestos e a luz pálida da lua incidiu em seu rosto. Senti um baque no coração como se fosse uma flecha atingindo seu alvo. — Ninian! Ele levou um susto, virou-se e parou o barco com perícia. Os olhos escuros pareciam enormes no rosto pálido. — Sim? Quem é? — Merlin. O príncipe Merlin. Não se lembra de mim? — No mesmo instante me dei conta da tolice que eu dissera. O choque me fizera esquecer de que quando eu viajara com o ourives e seu escravo eu estava disfarçado. — Falei rapidamente: — Você me conheceu como Emrys, que também é meu nome. Myrddin Emrys, de Dyfed. Havia motivos para isso. Lembra-se de mim agora? O barco balançou. A névoa se espessou, escondendo-o de mim, e por um segundo senti um pânico cego. Ele se fora outra vez. Mas depois o vi, ainda ali, com a cabeça inclinada para um lado. Ele

pensou por um instante e em seguida falou vagarosamente, como sempre: — Merlin? O mago? Você é Merlin? — Sim. Desculpe-me por tê-lo assustado, mas foi um choque encontrá-lo aqui. Pensei que tivesse se afogado em Cor Bridge quando foi nadar com os outros garotos. O que aconteceu? — Eu nado bem, senhor. — A resposta veio depois de alguma hesitação. Havia um segredo qualquer ali, mas não me incomodei. Nada mais me importava. Eu encontrara Ninian. Era para isso que a noite vinha me impelindo. Isso, e não o mau passo da rainha, era o "motivo mais elevado" para o qual o poder me impelira. Aqui estava o futuro. As estrelas cintilaram como um dia haviam cintilado no punho da grande espada. Inclinei-me sobre o pescoço do cavalo, falando com urgência: — Ninian, ouça. Se você não quiser responder perguntas, não farei nenhuma. Está bem, então você fugiu da escravidão, não tenho nada com isso. Posso protegê-lo, portanto não tenha medo de mim. Quero que fique comigo. Desde o momento em que o vi pela primeira vez soube o que você era: alguém igual a mim. E, pela vidência que o deus me deu, acredito que será capaz de fazer tudo o que eu faço. Você também percebeu, não é? E então, quer vir comigo e me deixar ensiná-lo? Não será fácil, mas eu era mais novo que você quando me apresentei ao meu mestre. Confie em mim. Responda: você quer vir morar comigo e me servir, e aprender tudo o que puder de minha arte? Dessa vez não houve nenhuma hesitação. Foi como se a pergunta tivesse sido feita e respondida há muito tempo. Em certas coisas existe essa inevitabilidade; elas estavam escritas nas estrelas desde o último dia do dilúvio. — Sim. Irei com o senhor. Mas me dê um pouco de tempo. Tenho certas coisas para... para arranjar. Eu me endireitei. Minhas costelas doíam devido à respiração ofegante. — Você sabe onde eu moro? — Todos sabem. — Então venha quando puder e será bem-vindo. — E acrescentei baixinho, dizendo mais para mim mesmo do que para ele: — O deus também lhe dará as boas-vindas. Não houve resposta. Quando ergui o olhar, não havia nada mais do que a neblina esbranquiçada pelo luar e, vindo de baixo de mim, o lamber das águas do lago na margem. Só quando eu estava em minha casa me dei conta de uma verdade muito simples. Muitos anos haviam se passado desde que eu viajara com o menino Ninian e me sentira atraído por ele porque sabia que era o único ser humano capaz de seguir meus passos. Quantos? Nove, dez? Na época ele devia estar com uns treze anos. Entre um adolescente de treze e um homem de vinte e três existe todo um mundo de mudança e crescimento. O menino que eu reconhecera com um imenso choque de alegria, de cujo rosto lembrara centenas de vezes com intenso pesar, não ser a pessoa que eu vira no lago. Naquela noite, deitado na cama, insone, observando as estrelas por entre os galhos da macieira como costumava fazer na infância, repassei a cena em minha mente. A névoa, a névoa fantasmagórica; o luar fraco; a voz vindo como se fosse um eco da água escondida de mim; o rosto do qual eu me

lembrava tão bem e com o qual sonhara durante todos esses anos... esses aspectos que haviam se juntado subitamente para acordar uma fútil e esquecida esperança, tinham me enganado. Então eu soube, por entre lágrimas, que o menino Ninian estava realmente morto e que esse encontro na bruma só servira para zombar de meu cansaço com um confuso e cruel sonho.

5 Ele não veio, claro. Meu primeiro visitante depois daquela noite foi um mensageiro de Artur, chamando-me a Camelot. Quatro dias tinham se passado e eu imaginava que seria convocado bem antes disso, mas calculei que Artur ainda não decidira qual seria sua próxima jogada ou se estava inclinado a abafar o caso, não tocando no assunto nem mesmo em reuniões do conselho. Normalmente o mensageiro vinha de três a quatro vezes por semana e além disso, os que eram obrigados a passar perto de minha casa no seu trajeto tinham se acostumado a dar uma parada em Applegarth para ver se eu desejava enviar uma carta ou para me informarem as últimas novidades. E foi por um deles que fiquei sabendo que Guinevere continuava em Ynis Witrin como convidada da velha rainha, o que me deixou boquiaberto. Bedwyr também estava no palácio porque vários dos cortes em sua perna haviam inflamado, o que, somado à exaustão e à friagem, resultará numa febre violenta. Alguns de seus homens lhe faziam companhia. A rainha Guinevere o visitava diariamente, como disse meu informante, e insistia em ajudar em seus cuidados. Obtive um fragmento de informação através de meu jardineiro. O falcão da rainha fora encontrado morto, preso pelas correias das patas numa árvore muito alta, perto do lugar onde Bedwyr dragara o canal. No quinto dia chegou a carta me convocando para uma conferência com o Grande Rei sobre o novo Salão do Conselho, que fora terminado enquanto ele permanecia em Gwynedd. Artur esperava por mim no terraço ocidental do palácio, uma área ampla e calçada, com canteiros retangulares, onde eram cultivadas as rosas da rainha, violetas e pequeninas flores de verão. Todavia, nessa fria tarde de primavera, a única cor que quebrava o cinzento do jardim suspenso era o amarelo dos junquilhos. Encontrei o rei junto ao muro do terraço, olhando para a linha brilhante no horizonte, o litoral do mar aberto. Ele não se virou para me cumprimentar e esperou até eu chegar junto dele, quando então lançou um olhar para trás certificando-se de que o criado que me conduzira já havia se afastado. Usou um tom abrupto quando falou: — Imagino que você já adivinhou que nossa conversa não terá nada a ver com o novo salão. Quis conversar com você em particular. — Melwas? — Claro. — Ele virou-se e encostou no parapeito, olhando para mim com uma expressão sombria. — Você estava com Bedwyr quando ele encontrou a rainha e quando a levou para Ynis Witrin. Eu o vi, mas quando o procurei você já tinha ido embora. Também estou informado de que foi você quem disse a Bedwyr onde estava a rainha. Se sabia de qualquer coisa sobre este caso da qual não tenho conhecimento, por que não esperou e falou comigo ali mesmo? — Não havia nada que eu pudesse lhe contar naquele momento que não teria resultado em problemas sérios que você bem podia dispensar. Tempo era o que necessitávamos. Tempo para a rainha descansar, para você conversar com ela, tempo para acalmar os gênios dos homens e não inflamá-los. E parece-me que foi o que você vez. Informaram-me que Bedwyr e a rainha ainda estão em Ynys Witrin.

— Sim, Bedwyr ficou doente. Estava gelado quando entrou no palácio e pela manhã surgiu uma febre. — Foi o que me contaram e eu me culpo por isso. Deveria ter ficado para cuidar daqueles cortes. Você conversou com ele? — Não, não houve condições. — E a rainha? — Ela está bem. — Mas ainda não pronta para fazer a viagem de volta? — Não — disse Artur laconicamente e de novo virou-se para fora, olhando para o distante brilho do mar. — Imagino que Melwas lhe ofereceu algum tipo de explicação — arrisquei finalmente. Eu esperava que a afirmação fosse resultar numa centelha de raiva, mas Artur só me pareceu cansado, um semblante cinzento numa tarde cinzenta. — Oh, sim. Conversei com Melwas. Ele me contou o que aconteceu. Estava caçando aves nos pântanos, acompanhado apenas por um criado, um homem chamado Berin, e os dois foram de barco até a beirada da floresta, subindo o rio que você viu. O rei ouviu a movimentação do grupo da rainha e logo em seguida viu a égua cinzenta tentar saltar o canal, errar e escorregar na lama da margem. A rainha foi atirada na água. Não havia nenhum acompanhante por perto. Os dois remaram para perto dela e a tiraram da água, inconsciente como se tivesse batido a cabeça. Enquanto a socorriam ouviram os gritos da escolta, mas os soldados não se aproximaram do rio. — Uma pausa pesada. — Sem dúvida, nessa altura Melwas devia ter mandando seu criado atrás deles, mas a pé ele não os teria alcançado, e como a rainha estava ensopada, meio desmaiada e tremendo de frio, achou melhor mandar o criado remar até a cabana de caça e acender a lareira o mais rápido possível. Lá havia vinho e comida porque seu plano original era passar a noite ali. — Muita sorte. Fiz o máximo para controlar a secura em minha voz, mas Artur me lançou um olhar tão afiado como uma lâmina de punhal. — Foi mesmo. Mas depois de um pouco ela começou a recuperar os sentidos. Melwas mandou o criado pegar o barco e ir para Ynys Witrin em busca de ajuda, devendo voltar com cavalos e uma liteira, ou com uma embarcação onde a rainha pudesse ser confortavelmente acomodada. Todavia, pouco depois de partir o homem voltou para dizer que era possível avistar as velas de meu navio e que tudo indicava que eu atracaria com a chegada da maré. Melwas então achou melhor ir pessoalmente para me receber no cais, como seria sua obrigação, e para me dar a notícia de que a rainha estava bem. — Deixando-a sozinha na cabana — falei, num tom neutro. — Deixando-a sozinha na cabana. A única embarcação que Melwas tinha era a canoa de couro, na qual não teria como transportar a rainha no estado em que ela estava. Você com certeza a viu e, mesmo horas depois, quando Bedwyr a trouxe para mim, ela não conseguia fazer nada senão tremer e chorar. Mandei as damas de companhia a levarem diretamente para a cama. Artur afastou-se do parapeito num movimento cansado e foi para perto de um canteiro, onde cortou um galhinho de alecrim e voltou rolando-o entre os dedos. Pude sentir o aroma pungente, meio apimentado, de onde eu estava. Continuei em silêncio enquanto ele andava de um lado para o outro.

Então parou, com as pernas abertas, me observando, mas ainda mexendo com o alecrim. — Bem, essa é a história. — Entendo. — Encarei-o pensativo. — E então você passou a noite como convidado de Melwas, Bedwyr continua lá e a rainha também... até quando? — Vou mandar buscá-la amanhã. — E hoje me mandou chamar. Por quê? Parece-me que o caso está Resolvido e que você já tomou suas decisões. — Você deve saber muito bem por que mandei chamá-lo. — Houve um súbito tom nervoso em sua voz que não combinou com a anterior calma. — Agora me conte o que teria causado "sérios problemas" se você tivesse conversado comigo naquela noite. Se tem algo a me dizer, fale agora, Merlin. — Muito bem, mas primeiro quero saber se você conversou com a rainha. — Que pergunta! — Um erguer de sobrancelhas, uma sombra de sorriso. — Um homem que ficou longe da esposa por quase um mês e ela precisando tanto de conforto? — Mas, se a rainha estava doente, sendo atendida pelas mulheres... — Ela não estava doente. Cansada e aflita, sim, e com muito medo. Pensei na voz baixa e composta de Guinevere, na pose cuidadosa, no corpo trêmulo. — Não de minha chegada — disse Artur asperamente, respondendo uma pergunta que eu não fizera. — Estava com medo de Melwas e agora está com medo de você. Isso não é surpresa, claro. A maioria das pessoas tem medo de você. Mas Guinevere não sente medo de mim. Por que teria? Eu a amo. Ela, porém, ficou com medo de alguma língua maldosa me envenenar com mentiras... e foi por isso que não conseguiu descansar enquanto não me contou o que tinha acontecido. — Não entendi por que ela estava com medo de Melwas. A história que os dois contaram não foram iguais? Artur atirou o galhinho de alecrim para longe. — Merlin. — A voz veio calma, mas com uma finalidade mal contida. — Merlin, não venha me dizer que Melwas mentiu e que houve um estupro. Se Guinevere feriu-se tão seriamente quando caiu, a ponto de passar o dia inteiro praticamente desmaiada e tivesse sido violentada à noite, ela não poderia ter voltando cavalgando com vocês nem estar ilesa como estava quando deitei com ela. Não houve nenhuma dor. Nada senão medo. — Ela lhe disse que a história de Melwas era mentira? — Sim. Olhei atentamente para Artur e disse bem devagar. — Quando ela falou comigo e Bedwyr, sua história era igual à de Melwas. Agora você está me dizendo que a própria rainha lhe contou que foi um rapto? — Sim. — Ele franziu o cenho. — Você não acredita em nenhum dos dois, não é? E o que está tentando me dizer? Acha que... por Deus, Merlin, o que você acha? — Ainda não ouvi a história da rainha. Conte-me o que ela disse. Artur estava tão irado que pensei que fosse me deixar falando sozinho, mas depois de uma ou

duas voltas pelo terraço, voltou para junto de mim. Sua expressão era a de um homem se aproximando de um combate corpo a corpo. — Muito bem, Merlin. Você é meu conselheiro e eu estou precisado de conselhos. — Uma inspiração profunda. O relato saiu em sentenças breves e sem expressão. — Ela não sofreu uma queda. Viu o falcão mergulhar e ficar preso pelas correias numa árvore, então freou a água e desmontou. Viu Melwas na canoa, próximo da margem, e pediu sua ajuda. Ele veio até ela, mas não fez nada a respeito do merlin. Começou a falar de amor, de como se apaixonara por ela durante a viagem que fizeram desde Gales. Não quis escutar quando a rainha tentou impedi-lo e, quando ela correu para montar, Melwas a agarrou e na luta a égua se soltou e disparou. Ela tentou chamar pelo seu pessoal, mas ele tampou sua boca e atirou-a na canoa. O criado saiu remando. Ela diz que o homem estava assustado e fez um tipo qualquer de protesto, mas não pôde desobedecer seu senhor. Melwas levou-a para a cabana, onde tudo estava pronto, como se a esperasse... Você a viu. O que me diz dela? Pensei no fogo na lareira, na cama, nos ricos cortinados, no vestido que Guinevere usava. — Vi alguma coisa. Sim, tive essa impressão. — Melwas tinha isso em mente há muito tempo... só esperava uma oportunidade. Já a seguira várias vezes e sabia que era comum ela deixar seus acompanhantes para trás. — Havia uma película de suor na testa de Artur. Ele a enxugou com a palma ia mão.\ — Ele se deitou com ela, Artur? — Não. Prendeu-a ali o dia inteiro, implorando, como diz a rainha, suplicando seu amor... Começou com doces palavras e promessas, mas quando elas não resultaram em nada, tornou-se colérico e violento, e pior, deu-se conta do perigo que corria, quando mandou o criado embora, a rainha teve certeza de que ria forçá-la, mas o homem voltou dizendo que meu navio fora visitado. Melwas então saiu dali em pânico e apressou-se a me contar suas mentiras. Antes disso ameaçou Guinevere, dizendo que, se ela contasse a verdade, ele afirmaria que os dois haviam dormido juntos por vontade própria, de modo que eu mataria ambos por me traírem. Ela então contou a mesma história de Melwas para você. — Sim. — E você sabia que não era verdade? Sim. Entendo. — Artur ainda me encarava com um misto de fúria e cautela. Eu estava começando a me dar conta, sem grande surpresa, contudo, que atualmente nem mesmo eu seria capaz de esconder segredos dele. — E achou que ela iria mentir para mim. Seria esse o "grande problema" que você previu. — Em parte, sim. — Mas ela mentir... e para mim? — Artur parecia falar de algo inimaginável. — Se a rainha estava com tanto medo, quem pode culpá-la por ter mentido? Você afirma que ela não tem medo de você, mas, afinal, a rainha é uma mulher e qualquer mulher ficaria com medo do marido numa situação como essa. Você teria o direito de matá-la e a Melwas também. — E continuo tendo esse direito, quer tenha havido um rapto violento ou não. — E então... Ela pode ter acreditado que você a ouviria e agiria primeiro como rei, governante e político, e não como um marido traído, querendo lavar sua honra. Devo dizer que eu mesmo estou surpreso com sua atitude. E olhe que pensava conhecê-lo bem.

A sombra de um sorriso amargo bailou nos lábios de Artur. — Com Bedwyr e a rainha na ilha, como verdadeiros reféns, eu me vi de mãos atadas, por assim dizer... Mas é claro que vou matá-lo e você sabe disso, não é? Mas será quando eu quiser e por uma outra causa, quando tudo estiver esquecido e a honra da rainha preservada. — Ele virou-se, apoiou as mãos no para-peito, de novo olhando para a distância. Um súbito raio de luz atravessou as nuvens, fazendo a linha que era o mar cintilar. Quando voltou a falar, continuava contemplando a distância. — Estive pensando na história que mandarei espalhar e calculo que deverá ser um meio-termo entre a mentira de Melwas e o que a rainha me contou. Afinal, ela passou o dia inteiro com ele... Vou dizer que ela caiu do cavalo, como afirma Melwas, e foi levada inconsciente para a cabana de caça, onde permaneceu o dia todo semi-inconsciente, febril e abalada. Você e Bedwyr terão de ser testemunhas disso porque, se ficarem sabendo que ela estava ilesa quando vocês a tiraram de lá, com certeza a culparão por não ter tentado fugir, mesmo sabendo que o criado vigiava o barco e que havia facas enfiadas na parte submersa da margem para impedir uma fuga a nado... Claro que a rainha poderia ameaçar Melwas e o criado com minha vingança, mas isso significaria um caminho sem volta. Melwas a manteria ali até satisfazer seus instintos e depois a mataria. Você sabe muito bem que o pessoal que saiu à procura dela já a dava como morta. Exceto você, e foi o que a salvou. Permaneci em silêncio. Artur virou-se para mim. — Sim. Exceto você. Você avisou que ela estava viva e foi buscá-la com Bedwyr. Agora conteme como ficou sabendo. Foi uma... vidência? — Foi — falei, abaixando o olhar. — Quando Cei me contou o que tinha acontecido, invoquei meus antigos poderes e eles voltaram. Eu a vi nas chamas. Com Melwas. Artur olhava para mim com aguda concentração e eu, que nunca fora sondado por ele dessa maneira, pude sentir algo da qualidade que o tornava o que era. — Entendo — disse depois de uma longa pausa. — Então vamos ao que interessa. Diga-me exatamente o que você viu. — Vi um homem e uma mulher num cômodo ricamente mobiliado. Por uma porta aberta atrás deles vi um quarto com uma cama desarrumada. Os dois riam e jogavam xadrez. A mulher usava um vestido solto, um robe de dormir, talvez, e tinha os cabelos soltos. Quando o homem a tomou nos braços, o tabuleiro caiu e ele pisou nas peças. — Estendi a mão para mostrar o rei branco quebrado. — Quando a rainha chegou perto de mim, na margem do canal, isto caiu das dobras de sua capa. Artur pegou a peça, examinou-a atentamente e depois a jogou por cima do parapeito, como fizera com o galhinho de alecrim. — Então foi um sonho verdadeiro. A rainha me contou que havia uma mesa com um tabuleiro e peças de xadrez em marfim e ébano. — Para minha surpresa, ele sorria. — Foi só isso? — Só? É mais do que eu jamais lhe contaria se essa não fosse minha obrigação como conselheiro do rei. — Certo, certo. — Ele continuava sorrindo, toda sua raiva parecia ter desaparecido. — Merlin, há pouco você disse "a rainha é uma mulher" e sempre afirmou, como bem me lembro, que não conhece as mulheres. Já lhe ocorreu que elas têm uma vida de tão completa dependência que isso só pode resultar em medo e incerteza? Que são como escravos ou animais, usadas por criaturas mais fortes do que elas, às vezes cruéis? Ora, até mesmo as mulheres de sangue real são compradas e vendidas, e criadas desde a infância para morar longe do lar e de parentes, como propriedade de homens que mal tiveram oportunidade de conhecer anteriormente.

Esperei para ver até onde ele pretendia ir. Não tinha como discordar, porque já vira mulheres sofrerem por causa de caprichos de homens, inclusive as que, como Morgause, eram mais fortes e espertas do que eles. Só as de muita sorte encontravam maridos em que conseguiam mandar ou então que as amavam. Como Guinevere. — Merlin, você mesmo disse agora há pouco que ainda devo ser um estranho para ela em muitos aspectos. Ela pode não ter medo de mim, mas às vezes penso que tem medo da vida em si, ou de viver. E com toda a certeza teve medo de Melwas. Está entendendo? Seu sonho foi verdadeiro. A rainha sorria e falava com ele, escondendo seu temor. O que ela poderia fazer? Pedir socorro ao criado? Ameaçar os dois com minha vingança? Isso seria chamar a morte. Quando Melwas a levou para o quarto para que trocasse as roupas molhadas... A propósito, fui informado de que ele costuma levar mulheres para a cabana de caça sem o conhecimento da velha rainha, que é muito rabugenta, e que lá existe um armário cheio de trajes femininos. Bem, quando Melwas mostrou o quarto, Guinevere agradeceu e em seguida trancou a porta, deixando-o do lado de fora. Mais tarde, quando ele bateu oferecendo-lhe comida, ela fingiu estar dormindo ou desmaiada, mas passado algum tempo Melwas começou a desconfiar e bateu com violência. Temerosa de que a cólera o fizesse arrombar a porta e perder de vez a cabeça, ela decidiu comer na sala e conversar naturalmente, insinuando que com a chegada da noite se entregaria a ele, mas rezando em silêncio para ser salva a tempo. — E foi o que aconteceu. — Sim, e quando ela já estava perdendo as esperanças. Se não fosse você... Bem, essa é a história da rainha e eu acredito nela. — Um olhar atento para mim. — E você? Não respondi imediatamente. Artur esperou, não mostrando nem irritação nem impaciência e nenhuma sombra de dúvida. Quando finalmente falei, tinha plena certeza do que iria afirmar: — Sim. Ela contou a verdade. Por vários motivos, instinto, pela vidência ou pura fé, esteja certo disso. Lamento por ter duvidado dela. Você agiu bem recordando-me de que não conheço bem as mulheres. Eu devia ter compreendido que ela estava com medo e, sabendo disso, adivinhado que possuía armas muito fracas contra Melwas... No que diz respeito ao resto, o silêncio que manteve até poder conversar com você em particular, o cuidado com sua honra e segurança de seu reino, creio que agiu de maneira admirável. E você também, Grande Rei. Vi que Artur notou a mudança no tratamento. O alívio que demonstrou veio acompanhado de bom humor. — Por quê? Por que não me deixar por uma fúria realesca, exigindo cabeças? Se a rainha, por medo, conseguiu fingir durante um dia, por que não eu fingir por algumas horas, quando estavam em jogo a reputação dela e a minha honra? Mas isso já passou. Por Hades, já não agüento mais! — A força com que Artur socou o parapeito mostrou o quanto ele vinha contendo. Numa abrupta mudança de tom ele continuou: — Merlin, você deve estar sabendo que o povo não... não gosta muito da rainha. — Já ouvi rumores, mas não é por ela em si ou por algo que tenha feito. O motivo é que seus súditos procuram diariamente um sinal avisando da chegada de um herdeiro e já se passaram quatro anos. Isso causa desaponto e murmúrios, claro. — Não haverá nenhum herdeiro. Ela é estéril. Não temos mais dúvidas sobre isso. — Era o que eu temia. Lamento muito.

— Se eu não tivesse plantado minha semente em outros lugares — disse Artur com um sorrisinho amargo — poderia compartilhar da culpa com ela, mas houve a gravidez da falecida Guinevere e, naturalmente, o filho que fiz em Morgause. Portanto, as acusações caem sobre a rainha e, devido a sua posição, ela não pode externar seu sofrimento em público. Com isso, existem sempre aqueles que inventam boatos na esperança de me ver repudiá-la. O que — acrescentou rispidamente — jamais acontecerá. — Nunca me ocorreria aconselhá-lo a tomar essa atitude — falei suavemente. — Essa situação só me faz imaginar se seria isso a sombra que uma vez vi sobre seu leito nupcial... Mas não falemos mais nisso. Agora devemos procurar um modo de fazer o povo voltar a gostar da rainha. — Você faz parecer fácil, mas... se sabe como... — Penso que sei. Agora há pouco você jurou por Hades e isso dissipou um sonho que tive. Quer me dar permissão para eu ir a Ynis Witrin buscar a rainha? Artur ia começar a perguntar "por quê?" com um ar intrigado, mas interrompeu-se com um meio sorriso e um erguer de ombros. — E por que não? Talvez para você seja de fato tão fácil com parece. Muito bem, vá. Mandarei preparar uma escolta real e a receberei aqui. Pelo menos não terei de ver Melwas de novo. Por acaso, você, com todos os seus sábios conselhos, pretende evitar que eu o mate? — Seria uma atitude tão ineficiente como uma galinha pedir para um pequeno cisne sair da água. Você fará o que lhe parecer adequado. — Olhei para fora, vendo a grande extensão pantanosa, o Tor e as colinas mais baixas da ilha vizinha, onde ficava o porto, e acrescentei: — É uma pena Melwas achar certo cobrar taxas de embarque e desembarque, exorbitantes aliás, do guerreiro que o protege. Os olhos de Artur se arregalaram num ar de especulação e um sorriso curvou seus lábios. Ele disse vagarosamente: — Sim, é mesmo. Além disso existe o problema da cobrança de pedágio na estrada que corre pelas terras altas. Se meus comandantes resolverem se recusar a pagar, Melwas certamente virá se queixar pessoalmente a mim e talvez até seja o primeiro a se apresentar no novo Salão do Conselho. E agora, já que foi esse o motivo que aleguei ao lhe mandar o mensageiro, quero que você o veja. E amanhã, na terceira hora, à frente do cortejo real, você irá buscar a rainha.

6 A comitiva era liderada por Nentres, um dos governantes da região oeste que tinham lutado sob as ordens de Uther e agora era, com os filhos, um fiel partidário de Artur. Um veterano de barba grisalha, cavalgava com a flexibilidade de um jovem. Mandando o grupo esperar numa curva da estrada, sob as bandeiras com o dragão desfraldadas, subiu a trilha que levava a minha casa acompanhado apenas de um pajem que puxava um alazão enfeitado de prata. Os arreios cintilavam como o escudo de Nentres e jóias piscavam no peitoral do animal, seu tom combinando com os bordados da manta sob a sela. — O rei lhe mandou isto — sorriu o velho guerreiro. — Mandou dizer que o seu pareceria um pangaré perto dos outros. E não olhe para ele desse jeito. O pobre é muito mais manso do que parece. O pajem me ajudou a montar. O cavalo sacudiu a cabeça e mordeu o bridão, mas seu passo era realmente macio e tranqüilo. Comparado com o meu parecia um barco a vela competindo com uma canoa. A manhã estava fria devido ao vento norte que vinha congelando os campos desde os meados de março. Ao amanhecer eu subira no alto do morro que ficava atrás de Applegarth e sentira na pele a indefinível diferença que anuncia uma mudança de vento. A primavera estava ali, esperando, mas era contida pelos ventos frios que também impediam a abertura dos botões de flores. Apesar da época do ano, o céu continuava fechado, parecendo anunciar uma tempestade de neve, e eu dei graças pela capa que viera dobrada sobre a sela do cavalo que Artur mandara, com espessura e peles bem de acordo com o esplendor da comitiva. Tudo estava pronto para nós no salão formal de Melwas. Ele usava trajes em tom de azul-escuro e estava, como rapidamente notei, completamente armado. O rosto bonito e viril exibia um simpático sorriso de boas-vindas, mas nos olhos havia uma expressão de cautela e eles, com uma freqüência da qual o rei parecia não dar conta, voltavam-se para o grande número de soldados alinhados numa das extremidades da sala. No lado de fora, havia uma companhia inteira deles, sem dúvida trazida da fortaleza, ocupando todo o jardim do palácio. Bandeiras, panos coloridos e flâmulas davam um ar festivo ao ambiente, mas podia-se claramente ver que todos os súditos de Melwas presentes usavam espada e punhal. Ele, naturalmente, esperava que Artur viesse e quando me viu à frente do cortejo mostrou alívio na expressão, mas logo em seguida vi se aprofundar em seus olhos o brilho de cautela e surgirem linhas rígidas em torno de sua boca. Ele me cumprimentou com um sorriso, mas de maneira muito formal, como um jogador fazendo o primeiro lance num jogo de xadrez. Respondi com um longo e estudado discurso na qualidade de representante do rei e depois virei-me para a velha rainha, uma figura imponente ao lado do filho. Ela me cumprimentou com a autoridade que lhe era natural, e em seguida fez um sinal para uma porta que ficava a sua direita. Houve uma onda de murmúrios quando a multidão se dividiu e a rainha Guinevere surgiu seguida de suas damas. Ela também esperava Artur. Hesitou por um instante, procurando por ele no salão lotado, e seu olhar passou por mim sem me ver. Imaginei que deusa a inspirara a se trajar de verde-claro da primavera, com flores bordadas na frente do vestido. O manto era do mesmo tom, com uma grande gola de marta branca, que emoldurava seu rosto bonito e lhe dava um ar de fragilidade. Estava muito pálida, mas mantinha uma postura ereta e altiva. Lembrei-me de como a sentira tremer quando a ajudara a sair da jangada improvisada e, levado

por esse pensamento, como se tivesse levado um jorro de água fria, me dei conta de que Artur estava completamente certo no que me dissera sobre ela. Guinevere podia ser uma rainha na sua compostura e coragem, mas sob essa camada formal havia uma moça tímida, ansiosa por carinho. A alegria, o riso fácil, a boa disposição da juventude tinham mascarado a procura ansiosa de uma exilada por amizade entre os estranhos de uma corte faustosa, totalmente diferente daquela em que fora criada. Eu, concentrado em Artur por vinte anos, nunca me dera o trabalho de ver nela mais do que interessava ao reino: um vaso para receber a semente do rei, uma parceira para lhe dar prazer e um pilar de beleza para brilhar ao seu lado, como prata ao lado do ouro, no cume de sua glória. Agora eu a via como nunca fizera antes. Uma mocinha bonita, de espírito simples, que tivera a sorte de se casar com o homem mais importante da época. Ser rainha de Artur era carregar um fardo pesado, pois implicava solidão, banimento para um local distante do reino natal e à exposição, devido às constantes ausências do marido, aos bajuladores e intrigantes, os ansiosos por poder, os invejosos de sua beleza e posição e, talvez mais perigosos, os rapazes prontos a venerá-la. E sempre haveria aqueles, quem sabe em número muito maior do que eu imaginava, que sempre repetiam histórias sobre a "outra rainha", a bela Guenever que praticamente concebera na primeira noite do casamento e cuja morte fizera o rei sofrer com imensa amargura. Tudo isso, contudo, não seria nada e se dissolveria no amor de Artur e na satisfação de seu poder como rainha, se tivesse sido capaz de gerar um herdeiro para o reino. Sim, o fato de Artur não usar o caso com Melwas para repudiá-la, abrindo espaço para uma outra rainha, capaz de conceber, era mais do que prova de seu amor. Entretanto, ela ainda não tinha consciência disso e devia estar apavorada. Sim, Artur acertara quando me dissera que Guinevere tinha medo da vida, medo dos que a cercavam, medo de Melwas e, como agora eu podia ver claramente, um medo maior do que todos esses, o medo de mim. Ela me viu. Os olhos claros se arregalaram e as mãos subiram para segurar a pele da gola num gesto de auto proteção. Houve um segundo de hesitação em seu passo, mas a força da compostura a fez continuar avançando com a mesma pose ereta até tomar seu lugar ao lado da rainha, no lado oposto ao de Melwas, sem olhar para ele. Um longo silêncio caiu sobre o salão como se fosse um manto pesado. Um vestido qualquer farfalhou e o ruído foi tão claro como se uma árvore estivesse sendo soprada por um vendaval. Eu me adiantei e curvei-me respeitosamente diante de Guinevere, como se ela fosse a única pessoa presente. — Saudações, senhora, é uma prazer vê-la recuperada. Eu vim, com outros de seus amigos e criados, para acompanhá-la até seu lar. O Grande Rei a espera em seu palácio em Camelot. O sangue lhe subiu às faces. Já vi olhos como os dela em jovens veados atirados ao chão, esperando pelo golpe da lança. Ela murmurou alguma coisa e depois emudeceu. Para encobrir seu malestar e dar-lhe tempo para se refazer, virei-me para Melwas e sua mãe, iniciando um discurso formal, elaborado, agradecendo-lhes por terem cuidado da rainha de Artur. Ficou patente para mim, enquanto eu falava, que a mãe de Melwas não tinha idéia de que havia algo de muito serio acontecendo. Enquanto seu filho me observava com um olhar ousado, tentando disfarçar a mistura de cautela e desafio que havia em sua expressão, a velha senhora me respondeu com agradecimentos igualmente polidos, mensagens para Artur, elogios a Guinevere e, finalmente, com um convite enfático para ela continuar aceitando sua hospitalidade. Ao ouvir isso a jovem rainha ergueu o olhar para mim, mas no mesmo instante escondeu-os de novo. Enquanto eu declinava do convite, vi suas mãos se relaxarem. Calculei que não houvera oportunidade para Melwas falar com ela desde a despedida na cabana de caça, de modo a descobrir o que contara a Artur. Penso que ele pretendia insistir em nossa estada em Ynys Witrin por algum tempo, mas algo em meu olhar o fez calar. Sua mãe, aceitando a decisão, virou-se para

mim com óbvia ansiedade, fazendo a pergunta que mais a interessava: — Procuramos pelo senhor na noite do acidente, príncipe Merlin. Soube que o senhor teve uma visão que o levou a encontrar a rainha Guinevere antes mesmo de meu filho voltar para cá em busca de ajuda. Tão emocionante! Poderia nos contar exatamente o que viu? Melwas endireitou-se com um movimento brusco e me desafiou com o olhar. Sorri e o encarei até ele abaixar os olhos. Sem que eu procurasse forçar, a velha rainha fizera a pergunta que eu mais desejava responder. — Com todo o prazer, senhora — disse em tom alto e claro. — É verdade que tive uma visão mas, se ela veio dos deuses do ar e do silêncio que tantas vezes me falaram no passado ou da Grande Deusa que é venerada aqui, não sei dizer. Foi uma visão dupla, um sonho colorido através do qual se vê um outro sonho, mais escuro. As cenas se confundiam, mas o significado estava claro. Eu poderia tê-los obedecido mais rapidamente, mas penso que os deuses desejavam outra atitude de minha parte. Guinevere ergueu a cabeça ao ouvir minhas últimas palavras e voltou a arregalar os olhos. Vi outra vez a centelha de dúvida na fisionomia de Melwas. — Outra atitude? — repetiu a velha rainha. — Eles não queriam que a rainha fosse encontrada? Trata-se de uma charada, príncipe Merlin? — Vou explicar tudo, senhora, mas primeiro tenho de lhe contar sobre um sonho que tive. Vi um salão de rei com piso de mármore e colunas de ouro e prata, completamente vazio, mas onde queimavam lampiões e velas perfumadas, iluminando-o como se fosse dia... — Eu deixara minha voz tomar o ritmo do bardo que canta para uma platéia. Sua ressonância enchia o salão e levava as palavras por entre as colunas das portas de entrada até a multidão silenciosa que ocupava os jardins do palácio. Dedos se moveram para fazer o sinal contra a magia poderosa, inclusive os de Guinevere. A velha rainha ouvia com evidente prazer e satisfação; afinal, era a principal patrona do santuário da deusa. Quanto a Melwas, enquanto eu falava vi-o passar da desconfiança para a apreensão, depois para a perplexidade e finalmente um temor assustado. Para todos os que se encontravam ali, o sonho já tomara um padrão conhecido, o arquétipo da jornada de todos os homens para o mundo do qual raros viajantes retornam. — ...e sobre a mesa havia um tabuleiro precioso com peças em ouro e perto estava um grande trono com os braços em forma de cabeças de leão esperando pelo rei e uma banqueta de prata, com pernas em formato de patas de pombas, para a rainha. Por isso soube que eu estava no salão de Llud, onde é guardado o cálice sagrado e onde uma vez esteve a espada que agora pende de uma parede em Camelot. E vindo do alto, no céu acima da colina oca, ouvi-os galopando, a Caçada Selvagem, onde os cavaleiros do Sobrenatural perseguem sua presa e a levam bem para o fundo, para os corredores cravejados de pedras preciosas, de onde não existe volta. Mas, exatamente quando eu estava começando a imaginar que o deus queria me dizer que a rainha Guinevere estava morta, a visão mudou... A minha direita havia uma janela alta pela qual eu podia ver uma nesga de céu por entre os galhos das macieiras. Os brotos verdes muito claros se destacavam contra o cinza-chumbo das nuvens. Todavia, eu ainda sentia a mudança se aproximando, como acontecera de manhã. Com os olhos na janela continuei minha história, falando mais vagarosamente. — ...vi-me num salão mais antigo, uma caverna muito profunda. Eu agora estava no outro mundo e tinha diante de mim o Rei das Sombras, que é ainda mais velho do que Llud, e sentada a seu lado a pálida e jovem rainha que um dia foi arrancada dos luminosos campos de Enna e levada para o mundo quente para se tornar a Rainha do Inferno: Perséfone, filha de Deméter, a Mãe de tudo o que cresce na

face da terra... As nuvens escuras moviam-se lentamente e de algum lugar começou a soprar uma brisa que fazia estremecer os galhos das macieiras. A maioria dos presentes devia conhecer pelo menos parte da história, mas mesmo assim eu a contei para a óbvia satisfação da velha rainha que, como todos os devotos da Grande Mãe, sentia a ameaça contra seu culto até mesmo na ilha. Uma vez, quando Melwas fez menção de me interromper, ela o silenciou com um gesto e estendeu a mão para puxar Guinevere mais para perto de si. Fingi não ver nada e, olhando para a janela alta, contei a lenda do rapto de Perséfone por Hades, e a longa e exaustiva busca em que Deméter, a Deusa Mãe, se empenhara, enquanto a terra, de quem fora roubada o crescimento da primavera, era tomada pelo frio e escuridão. Os galhos foram tocadas pelos raios do sol, tornando-se subitamente dourados. — E, quando a visão se desfez, eu já sabia o que ela significava. A rainha, nossa bela e jovem rainha, estava viva e ilesa, socorrida pela Deusa, esperando apenas que alguém viesse para levá-la de volta ao lar. E, com sua vinda, a primavera finalmente chegará, as chuvas frias cessarão e mais uma vez nosso solo nos dará ricas colheitas na paz trazida pela espada do Grande Rei e na alegria trazida pelo amor da rainha por ele. Esse foi o sonho que eu tive e que eu, Merlin, príncipe e profeta, interpretei para vocês. — Falei então diretamente para a velha rainha, não dando atenção a Melwas: — Portanto, eu lhe rogo agora, senhora, que me deixe levar a rainha de volta ao lar, com honra e júbilo. E, naquele instante, o sol abençoado surgiu com toda sua força e lançou um raio que tocou o chão junto aos pés de Guinevere, deixando-a, toda ouro, branco e verde, numa poça de luz. Voltamos para Camelot sob um céu azul e sentindo o aroma das prímulas que cresciam à beira da estrada. As nuvens tinham desaparecido e o lago mostrava-se azul e cintilante por trás dos salgueiros amarelados que pendiam em suas margens. Uma andorinha recém-chegada piou atrás de insetos, mergulhando perto da superfície espelhada. E a Rainha da Primavera, recusando-se a usar a liteira que fora providenciada para ela, cavalgava ao meu lado. Ela falou comigo uma única vez, sendo breve: — Eu menti naquela noite. O senhor sabe? — Sim. — Então o senhor vê? Vê mesmo? Vê tudo? — Vejo muitas coisas, desde que me empenhe em ver e se for da vontade de meu deus. Um leve rubor tomou conta de suas faces e seu olhar pareceu mais claro, como se algo a tivesse libertado. Anteriormente eu acreditava que ela era inocente. Agora eu sabia. — Então o senhor contou a verdade ao meu senhor. Quando ele não veio para me buscar, senti muito medo. — Você não precisa ter medo, nem hoje nem nunca, e jamais duvide de que Artur a ama. E posso lhe dizer também, Guinevere, minha prima, que mesmo que você não possa dar um herdeiro para a Bretanha, ele jamais pensará em repudiá-la. Seu nome estará ligado ao dele, enquanto o Grande Rei for lembrado. — Vou tentar — disse ela tão baixinho que mal consegui ouvi-la.

Então avistamos as torres de Camelot e ela caiu em silêncio, preparando-se para o que estava por vir. E assim foram lançadas as sementes da lenda. Durante as douradas semanas de primavera que se seguiram, mais de uma vez ouvi homens comentando baixinho sobre o "rapto" da rainha e como quase fora levada para os corredores sombrios de Llud, sendo salva por Bedwyr, o mais importante dos cavaleiros de Artur. Assim, o ferrão da verdade foi sendo removido, não persistindo nenhuma desonra para o rei nem para a rainha, e a Bedwyr, agora curado, foi creditada a primeira de suas muitas glórias, que aumentavam continuamente sua estatura de herói. Quanto a Melwas, nesse contar e recontar do acontecido, ele acabou sendo igualado ao "Rei das Sombras", devido ao seu tipo moreno e ao fato de ter sua fortaleza no imponente e lendário Tor. Ninguém, contudo, sabia o que ele pensava. Deve ter-se dado conta de que Guinevere contara a verdade ao marido, ou cansou-se de ser o vilão da história, ou ainda de esperar, como todos, pelo primeiro movimento do Grande Rei contra ele. Talvez tenha até acalentado esperanças de que num futuro distante conseguiria possuir a rainha. Seja qual tenha sido o caso, foi seu o primeiro lance, dando a abertura para Artur. Numa manhã apresentou-se em Camelot, e deixando, sem dúvida a contragosto, sua escolta no lado de fora do Salão do Conselho, sentou-se na Cadeira do Queixoso. O Salão do Conselho fora construído no estilo de um salão menor que Artur vira em uma das visitas que fizera ao pai de Guinevere em Gales, que, por sua vez, nada mais era do que uma versão aumentada da casa redonda dos chefes celtas. Em Camelot ele era um edifício grande e circular, com pilares de pedra polida separados por paredes de tijolos romanos trazidos de uma olaria há muito abandonada. Nele havia uma enorme porta dupla de carvalho, onde estava entalhada a figura do dragão. No interior, o espaço era totalmente livre e os ladrilhos do piso partiam do centro, como uma teia de aranha. E, como o anel externo de uma teia, as paredes não eram curvas, mas seccionadas com painéis planos. Estes estavam cobertos com esteiras de palha dourada para evitar correntezas de ar, mas com o tempo ostentariam ricas tapeçarias, que já estavam sendo bordadas sob a supervisão de Guinevere. Em cada uma dessas seções ficava uma poltrona com sua banqueta, e a do rei tinha o mesmo tamanho de todas as outras, porque, segundo ele, aquele salão seria um local para conversas francas entre o Grande Rei e seus pares, e onde qualquer um dos líderes do reino poderia trazer seus problemas para serem analisados. A única coisa que marcava a poltrona de Artur era o escudo branco que pendia na parede acima dela; com o tempo, talvez, o dragão cintilaria ali em ouro e escarlate. Alguns painéis já exibiam os brasões dos Companheiros. A poltrona diretamente oposta à do rei ficava vazia e sem ornamentos, e seria ocupada por qualquer pessoa que tivesse uma questão para ser resolvida pelo conselho. Artur a chamava de Cadeira do Queixoso, mas anos depois a ouvi chamarem de Cadeira Perigosa, talvez devido ao que aconteceu nesse dia. Eu não estava ali quando Melwas apresentou sua queixa. Embora na época houvesse um lugar para mim no Salão Redondo, como veio a ser chamado, eu raramente o ocupava, porque acreditava que, se ali todos eram iguais, o rei também tinha de ser igual em conhecimento, julgando e opinando sem depender dos conselhos de um mentor. Artur e eu, contudo, discutíamos os mais variados temas em particular, e falamos muito sobre o

caso Melwas antes de ele chegar à mesa do conselho. De início Artur imaginava que eu tentaria impedilo de entrar em luta com o rei de Ynys Witrin, mas essa foi uma ocasião em que houve coincidência entre a frieza e o temperamento acalorado. Artur resolveu que se contentaria em ver Melwas sofrer em público pelos seus atos e eu pensava que esse seria o modo mais expedito de pôr um fim nessa história desagradável. O tempo que se passara e o silêncio do Grande Rei, complementados pela lenda que eu evocara, garantiram que a honra de Guinevere não fosse questionada. O povo voltou a tratá-la com carinho e em suas saídas formais ela era homenageada com pétalas de rosa que transmitiam as bênçãos de seus súditos. Essa era sua rainha, a menina de seus olhos, da qual quase haviam sido privados pela morte, mas que fora salva pela mágica de Merlin. Era essa a história que corria entre o povo, mas, entre os mais mundanos, havia os que esperavam a ação do Grande Rei contra Melwas e o desprezariam se ele não lavasse sua honra. A disciplina que Artur se impusera no que dizia respeito ao rapto da rainha fora extremamente severa mas, quando descobriu que eu concordava com suas idéias, pôs-se, com feroz alegria, a elaborar seus planos. Claro que ele poderia ter convocado o rei Melwas para se apresentar no Salão do Conselho usando um pretexto qualquer, mas isso não fazia parte de seu projeto. — Se o perturbarmos até ele vir pessoalmente se queixar não haverá uma grande diferença. Todavia — acrescentou secamente —, para aplacar minha consciência, ou meu orgulho, se quiser, não usarei uma acusação falsa no Salão Redondo. Ele deve ser conhecido como um lugar onde nenhum homem precisará sentir medo de se apresentar a mim, a não ser que a falsidade seja dele. Foi por isso que o perturbamos. Como a ilha estava situada entre a fortaleza do Grande Rei e o mar, não houve dificuldade para encontrarmos motivos, porque de uma ou outra maneira sempre haveria desentendimentos sobre taxas portuárias, direito de passagem, pagamento de pedágio e outros impostos decretados arbitrariamente e acaloradamente contestados. Qualquer um dos reis menores teria ficado inquieto com a torrente constante de queixas de pouca importância, mas Melwas foi rápido em protestar. Segundo Bedwyr, a quem devo o relato sobre o que aconteceu na reunião do conselho, ficou claro desde o início que Melwas adivinhava que fora trazido diante do Grande Rei para responder a uma acusação mais antiga e muito mais perigosa. Todavia, ele não permitiu que nenhuma insinuação a respeito saísse de seus lábios, porque isso com certeza significaria uma sentença de morte por traição, que seria votada com unanimidade. E foi por causa disso que as reclamações sobre taxas e impostos, e o preço correto que deveria ser pago pela proteção oferecida por Camelot, correram seu curso enfadonho, enquanto os dois homens se observavam mutuamente, como espadachins esperando a oportunidade para o primeiro golpe. Foi Melwas quem sugeriu um combate direto. Não ficou bem claro como ele se viu levado a isso, mas creio que não foi preciso muito. Jovem, impetuoso, bom guerreiro e sabendo que corria grave perigo, deve ter se agarrado à oportunidade de uma solução rápida e decisiva, que lhe dava pelo menos uma meia esperança de êxito. O fato é que ele disse: — Um duelo para acertarmos esses assuntos aqui mesmo e de homem para homem, ou jamais resolveremos nossas diferenças como vizinhos! Você é a lei, Artur! Então prove isso com sua espada! Houve um grande tumulto, com argumentos voando de um lado para outro do salão. Os mais idosos dos presentes consideravam impensável o Grande Rei se arriscar pessoalmente, mas a essa altura todos já tinham idéia de que havia mais em jogo do que taxas portuárias, e os cavaleiros mais jovens mostravam-se ansiosos por assistirem a uma luta. Vários deles, sendo Bedwyr o mais insistente, ofereceram-se para combater em lugar de Artur até que ele, finalmente e esperando o momento certo, levantou-se com um movimento decisivo. No súbito silêncio que se seguiu caminhou até a mesa

redonda que ficava no centro do salão, pegou as placas de argila onde estavam listadas as queixas de Melwas, e atirou-as ao chão, quebrando-as em pedacinhos. — Agora tragam minha espada — falou. Era meio-dia quando os dois se enfrentaram num terreno plano, situado no canto nordeste de Caer Camel. O céu estava claro, sem nuvens, mas uma brisa fresca amainava o calor do dia. As bordas do campo fervilhavam de pessoas e havia grupos de espectadores até nos caminhos de ronda no alto da muralha. No terraço de uma das torres douradas avistei o colorido dos vestidos das mulheres que haviam se juntado para assistir ao duelo. A rainha usava branco, a cor de Artur, e imaginei como estaria se sentindo, mas adivinhando que esconderia o medo com sua habitual compostura. Então uma trombeta tocou e o silêncio caiu. Os dois combatentes apresentaram-se com lanças e escudos, tendo espada e punhal na cintura. Artur não usava Caliburn, a espada real. Sua armadura, constituída de um elmo leve e colete de couro, era absolutamente simples, sem nenhuma jóia ou bordado. Melwas vestia-se mais luxuosamente e era um pouco mais alto do que o rei. Em sua expressão havia ânsia e ferocidade, e o vi lançar um olhar para a torre do palácio onde estava a rainha. Artur não olhava para os lados. Mantinha uma aparência fria, denotando grande experiência, enquanto ouvia atenciosamente o anúncio formal do arauto. Havia um sicômoro num dos lados do campo e Bedwyr, ao meu lado, sob a sombra bem-vinda, lançou-me um longo olhar e depois suspirou com alívio. — Você não está preocupado. Graças a Deus! — Isto iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Assim é melhor. Mas, se houvesse perigo para ele, eu teria impedido o duelo. — Mesmo assim, é loucura. Claro, sei que Artur sempre quis isso, mas não deveria jamais arriscar-se assim. Podia ter-me indicado como campeão do rei. — E que tipo de exibição você faria? Ainda está mancando, seria facilmente derrotado e eu teria de começar toda a lenda de novo. Lembre-se de que o povo simples acredita que o direito está com a espada mais forte. — E é o que está acontecendo hoje, ou você não ficaria tão calmo. Mas eu gostaria... — Sei do que você gostaria e penso que verá seu desejo realizado não uma, mas muitas vezes antes do fim de sua vida. Bedwyr lançou-me um olhar rápido e começou a dizer alguma coisa, mas nesse momento o pendão foi baixado, dando início ao duelo. Os dois andaram em círculo por um longo tempo, lanças em posição de ataque e escudos protegendo o corpo. Melwas atacou primeiro, atirando a lança com grande força e velocidade. O escudo de Artur subiu num átimo de segundo e desviou seu curso, e ela se enfiou inofensivamente no chão relvado. Melwas, levando a mão para o punho da espada, saltou para trás, mas Artur, no mesmo instante em que se defendia do primeiro ataque, atirou sua própria lança e assim cancelou a vantagem do adversário. Todavia, não puxou a espada. Estendeu o braço, pegou a lança inimiga espetada ao seu lado e a atirou toda a força. Melwas, esquecendo-se da espada, desviou a lança com o escudo e virou-se, rápido como uma raposa, para pegá-la. Os dois voltaram a se enfrentar em condições de igualdade. A arma de Artur, acionada com mais força e aparada com maior desespero, saiu voando para um

lado e parou longe da mão de Melwas. Não havia esperança de ele conseguir apanhá-la antes de Artur pegar a que ele atirara. Com o escudo, foi aparando os golpes e se dirigindo para a arma caída, na esperança de retomar a vantagem. Artur mexeu o braço e a lâmina da lança brilhou ao sol, atraindo o olhar de Melwas. Este abaixou-se, erguendo o escudo para a linha de trajetória da lança, e, ao mesmo tempo, estirando o braço para apanhar a arma caída. O movimento do rei, contudo, fora um blefe e assim, no instante em que Melwas inclinou-se, a outra lança veio reta e baixa, atingindo-o no braço esquerdo. A espada de Artur praticamente saltou em sua mão enquanto ele seguia a trajetória da lança. Melwas cambaleou. Uma grande grito saído da multidão ecoou nas muralhas enquanto ele se reequilibrava, pegava a lança e a atirava direto para o rei. Se fosse um bocadinho mais rápido, Artur teria se aproximado do adversário antes de ele atirar a lança, mas, do jeito que aconteceu, a arma atingiu o alvo quando ele estava a meio caminho do espaço entre os dois. Artur pegou-a com o escudo, mas, devido à distância curta, a força foi grande demais para ser desviada. Ainda com a espada na mão direita, ele sacudiu o escudo, tentando tirar a ponta da lança dali, mas ela se enfiara perto de uma das tiras de metal e ficara presa nas rebarbas. Artur jogou o escudo no chão e correu para Melwas, com nada para defender seu lado exposto senão o punhal que carregava na mão esquerda. Melwas não teve tempo de se recuperar e pegar a lança. Com o sangue escorrendo pelo braço, arrancou como pôde a espada da bainha e enfrentou o ataque do rei, corpo a corpo, com um impressionante ruído de metal contra metal. Eles continuavam como adversários equilibrados, pois o ferimento de Melwas contrabalançava o lado não protegido do rei. Melwas era famoso pela sua habilidade com a espada e nos primeiros minutos do combate corpo a corpo concentrou todos os seus golpes nesse lado, mas eles sempre tocavam em metal, habilmente desviados. Passo a passo o rei começou a pressioná-lo, passo a passo Melwas foi sendo forçado a recuar. A perda de sangue o enfraquecia. Artur parecia ileso e avançava sem piedade, atacando e se defendendo com o punhal, que sibilava com a rapidez de seus movimentos. Atrás de Melwas estava a lança caída e ele sabia disso, mas não se atrevia a desviar o olhar para ver se conseguiria alcançá-la. O pensamento, contudo, afetou sua atenção e tornou-o mais vagaroso. Agora suava abundantemente e começara a resfolegar como um cavalo esgotado. Houve um momento em que os dois, corpo a corpo, arma a arma, se entrelaçaram, totalmente imóveis. O rei disse alguma coisa em tom baixo, sem modificar sua expressão fria. Ninguém pôde ouvir o que ele falou, embora a multidão em torno do campo se mantivesse silenciosa, prendendo a respiração. Melwas não respondeu de imediato. Houve uma pausa, depois um gesto ágil, uma súbita pressão e então ele rosnou uma resposta. Artur desvencilhou-se com habilidade e, com outra frase em voz baixa, atacou de novo. A mão direita de Melwas era uma massa coberta de sangue. Sua espada movia-se cada vez mais devagar, como se estivesse ficando pesada demais para ele. Com um grunhido de supremo esforço, ele usou o escudo como se fosse um machado para tentar atingir o rei. Artur agachou-se, mas escorregou e a beira do escudo golpeou o ombro direito, o que deve ter entorpecido seu braço. A espada voou para longe. Houve um soluço coletivo, seguido de um grande grito dos espectadores. Melwas soltou um berro e adiantou a espada para o golpe final. Artur, porém, agora armado somente com o punhal, não recuou para se defender. Antes de qualquer um dos presentes conseguir respirar, ele saltou pára a frente e a lâmina comprida do punhal picou o pescoço de Melwas na altura da garganta. Ele permaneceu ali, extraindo apenas um fiozinho de sangue. Não houve o impulso que faria a

lâmina entrar. Artur falou de novo, com a expressão feroz. Melwas parecia paralisado. A espada caiu da mão erguida e o escudo tombou ao chão. O punhal se afastou. O rei deu um passo para trás. Bem devagar, diante da multidão, dos seus soldados e da rainha que a tudo assistia de sua torre, Melwas, o rei de Summer Country, ajoelhou-se na relva empapada de sangue e rendeu-se para o Grande Rei. Não houve nenhum som. Com um gesto lento, quase cerimonioso, Artur levantou o punhal e atirou-o de ponta no chão, onde ficou enfiado, vibrando. Depois falou novamente, ainda mais baixo do que antes. Dessa vez, de cabeça abaixada, Melwas respondeu. Os dois conversaram por algum tempo. Finalmente o Grande Rei, com um floreio foi-mal, estendeu a mão e ajudou Melwas a se levantar. Fez então um sinal para que os homens do vencido viessem ajudá-lo e virando-se, caminhou altivamente para a porta do palácio. Anos depois, comecei a ouvir diferentes versões da história do duelo. Umas diziam que Bedwyr, e não Artur, enfrentara o cavaleiro negro. Outras garantiam que a luta de fato não existira, pois nesse caso Melwas não escaparia com vida e algumas acrescentavam que os dois tinham usado os préstimos de um mediador no Salão do Conselho para chegar a um acordo. Nada disso é verdade. Tudo aconteceu exatamente como escrevi. Mais tarde Artur me contou sobre o que eles tinham conversado no combate. Melwas, esperando a morte, admitiu que a história da rainha era a verdadeira. Isso teria permitido a Artur executá-lo ali mesmo, mas ele, com sabedoria (e sem me ter pedido opinião), agiu com uma grandeza digna de sua fama. O fato é que desde esse dia Melwas tornou-se completamente leal a ele e sua capital, Ynys Witrin, passou a ser considerada uma jóia entre as cidades sob a soberania do Grande Rei. Atualmente é público e notório que os navios do rei não pagam mais taxas portuárias.

7 E assim o ano foi passando e chegou o mês mais encantador, setembro, mês de meu aniversário, mês do vento, mês do corvo e mês do próprio Myrddin, esse eterno viajante entre o céu e a terra. As macieiras estavam pesadas de frutos, as ervas colhidas secavam à sombra e em meu laboratório jarras e caixas esperavam a hora de serem enchidas. A casa inteira, o jardim, a torre, até o quarto de dormir estavam perfumados pelo aroma doce das plantas e frutos, do mel que escorria das colméias, em especial a que ficava num oco de carvalho bem no fundo do pomar. Applegarth refletia em suas pequenas dimensões a abundância dourada do verão do reino. Verão de rainha, diziam os camponeses, quando a colheita se seguiu ao corte do feno e ainda assim o solo continuava produzindo sob as bênçãos da deusa. Uma idade de ouro, comentavam. Para mim também era uma idade de ouro, mas agora, como nunca antes, eu tinha tempo para me fechar em solidão. Ao entardecer, quando soprava o vento sudoeste, eu podia senti-lo em meus ossos e dava graças pelo fogo em minha lareira. Os meses de indigência, fome e exposição aos elementos na floresta tinham me deixado uma herança que nem mesmo um organismo jovem teria condições de eliminar, a qual me empurrava para a velhice. Havia um outro legado dessa época: devido a um efeito retardado do veneno de Morgause, ou causado por algo desconhecido para mim, eu agora enfrentava de tempos em tempos breves ataques de uma doença que teria chamado de mal dos deuses ou epilepsia, se não soubesse que ela não pode surgir pela primeira vez na maturidade. Além disso, os sintomas eram bastante diferentes dos casos que eu vira ou tratara. Eu já tivera três ataques, sempre quando estava sozinho e ninguém os presenciara. Repousando calmamente, eu imaginava que estava pegando no sono, mas acordava horas depois com os membros gelados e rígidos, e fraco de fome, embora não sentisse vontade de me alimentar. Na primeira vez passaram-se doze horas, mas pela tontura e cansaço com que acordei calculei que não fora um sono normal. Na segunda fiquei desacordado por duas noites e um dia, e foi sorte eu sofrer o ataque quando estava seguro em minha cama. Não contei a ninguém sobre eles. Quando o terceiro ataque estava iminente, reconheci os sinais: uma sensação de leveza, de fome, uma leve tontura, o desejo de ficar em silêncio e deitar. Aproveitei então para dispensar Mora, trancar a porta e recolher-me para o quarto. Quando ele terminou, tive a impressão de que saíra de um período de profecia, quando costumava voltar a mim renovado, com os sentidos claros como se tivessem acabado de ser criados. Naturalmente procurei esclarecimento em meus livros, mas não encontrando ajuda neles, resolvi não procurar mais, aceitando o mal como eu aprendera a aceitar as dores da profecia e de sua retirada como um toque da mão do deus. Talvez agora essa mão estivesse me puxando mais para perto. Não houve temor nesse pensamento. Eu fizera o que ele pedira de mim e, quando chegasse a hora, estaria pronto para partir. O deus, porém, em sua bondade, não exigiu o sacrifício de minha honra. Que os homens se lembrassem do profeta e mago real que se aposentara do mundo e do serviço do rei na hora por ele mesmo determinada e não como um velho senil que esperara demais para ser dispensado. Assim me mantive em meu isolamento, ocupando-me com o jardim e minha medicina, escrevendo longas cartas a Blaise e sendo cuidado por Mora, cuja comida às vezes era enriquecida por presentes vindos das despensas de Artur. Eu também enviava presentes a Camelot: uma cesta de maçãs escolhidas, especialmente saborosas, elixires estimulantes e medicamentos, perfumes para o prazer da rainha, temperos para a cozinha do palácio. Coisas muito simples depois das fogosas dádivas de profecia e vitória, mas muito mais adequadas

a uma idade de ouro. Presentes de carinho e satisfação, porque agora todos tinham tempo para eles. Nada parecia turvar o brilho desses dias, mas às vezes eu sentia o formigamento que me avisava de uma mudança que se aproximava, algo que eu não temia, mas que era tão inevitável como a queda das folhas no outono e a chegada do inverno. Não me permiti pensar no que viria. Agia como um homem sozinho numa sala, bastante satisfeito, mas prestando atenção a sons que poderiam vir de trás da porta fechada, esperando meio esperançoso a chegada de alguém, mesmo sabendo bem no âmago que esse alguém não viria. Mas ele veio. Chegou num encantador início de noite, por volta dos meados do mês. Havia uma lua cheia, que surgira no céu muito antes do crepúsculo e parecia pender dos galhos das macieiras como um enorme lampião cuja luz criava anéis dourados. Eu estava no laboratório, amassando uma porção de hissopo seco, que exalava seu doce perfume. Uma mariposa, atraída pelo calor do cômodo, voou vagarosamente até pousar no peitoril da janela. Ouvi os passos leves atrás de mim e me virei. Costumam me chamar de mago e mago eu sou. Todavia, não esperava sua vinda nem o ouvi até vê-lo parado na porta, iluminado pelo dourado da lua. Poderia ser um fantasma pelo modo como fiquei ali fitando-o, como transfixado. O encontro na névoa da margem da ilha voltava-me à mente com freqüência, mas jamais como algo real, e quanto mais eu me esforçava para lembrar de seus detalhes, mais ele se tornava parecido com um sonho, algo imaginado, nada mais do que uma esperança. Mas agora o menino estava ali, em carne e osso, corado, sorrindo, mas não completamente à vontade, como se não tivesse certeza de que seria bem recebido. Segurava uma trouxa que, imaginei, devia conter suas coisas e vestia-se de cinzento, com uma capa castanha, sem armas nem enfeites. Ele começou: — Acho que não se lembra de mim, mas... — E por que não deveria lembrar? Você é o rapaz que não é Ninian. — Oh, mas eu sou. Quer dizer, esse é um de meus nomes, juro. — Entendo. Então, quando o chamei... — Sim. Assim que o senhor falou, achei que me conhecia, mas... quando disse quem era... Bem, eu sabia que o senhor tinha se enganado e... senti medo. Desculpe-me. Eu devia ter lhe dito desde o começo, em vez de fugir daquele jeito. Desculpe. — Mas quando falei que queria lhe ensinar minha arte e lhe pedi para me procurar, você concordou. Por quê? As mãos, muito brancas contra o tom escuro da trouxa, se contorceram em torno de uma dobra do tecido. Ele continuava parado na porta, mas parecia pronto a fugir. — Foi porque... Quando o senhor disse que ele, esse outro menino, era... era o tipo de pessoa que poderia aprender com o senhor... Era algo que os dois sabiam... Bem... — Ele engoliu em seco. — Eu acredito que também sou capaz. Venho sentindo, ao longo de minha vida, que no fundo da mente existem portas que podem ser abertas. Basta alguém ter a chave. — Sua voz foi sumindo, mas ele continuava com os olhos fixos nos meus. — E então? — Não lhe ofereci ajuda. — Então, quando o senhor falou comigo daquele jeito, sem mais nem menos, no meio da neblina, foi como um sonho se tornando realidade. O próprio Merlin, chamando-me pelo nome, oferecendo-me

essa chave... Mesmo quando percebi que o senhor tinha me confundido com alguém que estava morto, um pensamento louco me disse que deveria procurá-lo para ocupar esse lugar... Depois, naturalmente, percebi que estava agindo como um tolo, imaginando que conseguiria enganar o senhor, de todas as pessoas neste mundo. Então não me atrevi a vir. — Mas agora se atreveu. — Fui obrigado. — Ele falou como se estivesse apenas relatando um fato. — Não consegui pensar em outra coisa desde aquela noite. Sentia medo porque... sentia medo, mas existem coisas que temos de fazer, coisas que não nos abandonam, que parecem nos impulsionar. Mais do que impulsionar, nos obrigar. O senhor entende? — Muito bem. Foi difícil manter a voz grave e segura. Mas deve ter havido nela uma nota da alegria que meu coração sentia, porque, vinda bem baixinho e doce do segundo andar, ouvi a resposta de minha harpa. Ele não ouvira. Continuava rígido, forçando-se ao papel de suplicante. — Agora o senhor sabe a verdade. Não sou o menino que o senhor conheceu. O senhor não sabe nada a meu respeito. Apesar de tudo o que senti aqui — uma mão se levantou como para tocar o peito, mas voltou a se fechar em torno da trouxa —, talvez esteja pensando que não sou digno de ser ensinado nem de passar algum tempo a seu lado. Mas... mas se me permitir ficar aqui... posso dormir na cocheira, qualquer lugar... para ajudá-lo em tarefas como essa... — Lançou um olhar para a pilha de hissopo. — Até me conhecer melhor... — A voz tremeu e dessa vez sumiu. Ele umedeceu os lábios secos e ficou mudo, me observando. Foi meu olhar que baixou, não o dele. Virei-me para esconder a alegria que estava fazendo o sangue subir a minhas faces. Enfiei as mãos na erva perfumada e esfreguei uma pitada dos fragmentos entre os dedos. O aroma, limpo e pungente, subiu para me acalmar. Falei vagarosamente, dirigindo-me aos jarros: — Quando o vi no lago, pensei que você fosse um menino que viajou comigo para o norte há muitos anos atrás e que tinha um espírito que combinava com o meu. Ele morreu afogado e nunca me recuperei totalmente dessa perda. Quando o vi no barco, imaginei que ele havia se salvado de alguma maneira, mas, quando tive tempo de pensar no assunto, me dei conta de que não seria mais um menino, e sim um adulto. Foi, pode-se dizer, um erro estúpido. Em geral não cometo erros desse tipo, mas com o passar do tempo me convenci de que ele fora causado pelo cansaço e pela saudade, pela esperança que ainda estivesse viva em mim de que um dia, ele ou outro espírito similar, viria me procurar. Parei de falar. Ele não disse nada. A lua agora havia se afastado e a porta estava às escuras. Vireime para ele e continuei: — Eu devia saber que não foi um erro, mas que foi a mão do deus que fez seu caminho cruzar com o meu e que agora o trouxe a mim, apesar de seu temor. Você não é o menino que eu conheci mas, se não fosse a pessoa certa, eu não o teria visto nem conversado com você daquele jeito. Aquela foi uma noite de magia. Eu devia ter me lembrado disso e confiado. — Eu também senti isso — apressou-se ele a dizer. — Podia sentir as estrelas como flocos de neve em minha pele. Eu saíra para pescar, mas desisti porque me pareceu que não era uma noite para mortes, nem mesmo de um peixe. — Percebi que ele sorriu, mas, quando voltou a falar, a voz saiu nervosa: — Quer dizer então que posso ficar? Que vou servir? — Você vai servir. — Tirei as mãos do hissopo e esfreguei-as para deixar os fragmentos caírem

no pano. — Quem somos nós, depois de tudo o que aconteceu, para contrariarmos o deus que nos impulsiona? Não tenha medo de mim. Você é bem-vindo. Saiba, contudo, que quando eu tiver tempo para ser cauteloso, o alertarei sobre a tarefa pesada que você tem à frente e sobre os espinhos que encontrará em seu caminho, mas por enquanto não me atrevo a dizer mais nada que o faça fugir novamente de mim. Agora entre e me deixe vê-lo sob a luz. Enquanto ele me obedecia, tirei de uma prateleira o lampião maior que estava apagado. O pavio pegou fogo no ar e a luz forte se espalhou. Vendo-o mais de perto, eu soube que nunca poderia tê-lo confundido com o escravo do ourives, mas havia certa semelhança entre os dois. O rosto não era tão fino, a pele era mais clara e macia, e as mãos, de dedos longos e com um formato que denotava inteligência, nunca haviam feito trabalhos pesados. Os cabelos eram iguais, escuros e espessos, cortados retos à altura dos ombros. A boca era tão parecida que eu poderia de novo confundir os dois: as linhas suaves mascaravam uma grande firmeza, até mesmo obstinação de propósito. O menino Ninian mostrava um tranqüilo desprezo por tudo o que ele não queria notar; as arengas de seu amo passavam por cima de sua cabeça enquanto ele se refugiava em seus pensamentos. No rapaz diante de mim eu sentia a mesma teimosia suave e, nos olhos, o mesmo olhar meio ausente e sonhador que fechava o mundo para fora com a mesma eficácia de cílios fechados. Os olhos cinzentos tinham uma fina borda negra em torno da íris e, como vim a descobrir posteriormente, que, como a água de um lago, podiam refletir as cores e parecer verdes, azuis ou quase negros, de acordo com o estado de espírito de seu dono. Agora estavam fixos em mim com o que me pareceu um misto de fascínio e temor. — O lampião? — falei. — Você nunca viu alguém chamar o fogo? Pois é uma das primeiras coisas que aprenderá; foi a primeira que meu mestre me ensinou. Ou são os jarros? Está olhando para eles como se eu estivesse engarrafando veneno. Na verdade, estou acondicionando as ervas para serem usadas no inverno. — Hissopo — disse ele, e pensei ver um leve brilho zombeteiro em seu olhar. — Para ser queimado com enxofre para inflamações da garganta ou fervido com mel para combater a pleurisia. — Ora, ora, quem diria, Galeno! — Sorri. — Tudo indica que andaremos rápido. Então você sabe ler? Sabe... Não, isso vai ter que esperar até amanhã cedo. Por enquanto, você já jantou? — Sim, senhor, obrigado. — Você disse que Ninian era "um de seus nomes". Como gostaria de ser chamado? — "Ninian" está bem... isto é, se o senhor não se incomodar em usá-lo. Parece que ele se afogou... — Sim. Estávamos em Corstopitum e ele foi nadar com outros meninos perto da ponte onde o rio Cor deságua no Tyne. Vieram nos avisar correndo que ele fora levado pela correnteza. — Lamento. Eu sorri para ele. — Você vai ter de trabalhar duro para compensar essa perda. Agora venha, Ninian, precisamos encontrar um lugar para você dormir. E foi assim que arrumei um assistente e o deus mais um servo. Sua mão nos estivera guiando. Hoje em dia tenho a impressão de que o primeiro Ninian foi apenas um precursor, como a sombra que

vem à frente da pessoa, da criatura que mais tarde eu encontraria no lago. Desde o início ficou claro que nossas intuições estavam corretas. Ninian do Lago, embora conhecendo pouco das artes que eu praticava, mostrou ser um adepto natural. Aprendia depressa, embebendo-se tanto em conhecimento como na prática como uma esponja absorve a água. Sabia ler e escrever fluentemente e, embora não tivesse o dom das línguas como eu na juventude, falava um latim puro além do vernacular, e entendia o suficiente de grego para ler um rótulo ou seguir uma receita com exatidão. Contou-me que em certa época tivera acesso a uma tradução de Galeno, mas só conhecia Hipócrates de ouvir falar. Encarreguei-o de ler a versão latina que eu possuía e tive a impressão de estar voltando à escola, pela infinidade de perguntas que fazia, cujas respostas eu conhecia há tanto tempo que não me lembrava mais como havia chegado a elas. De música ele não sabia nada e não queria aprender, e essa foi a primeira vez que me vi cara a cara com a delicada e inflexível teimosia que captara nele desde nossa primeira conversa. Ouvia atentamente e com um ar sonhador, quando eu tocava ou cantava mas, depois de algumas tentativas de lhe ensinar a tirar algumas notas da harpa grande, acabei desistindo. Seria bom se tivesse voz. Eu não gostaria de ficar sentado vendo outra pessoa tocar minha harpa, mas com a idade minha voz já não era a mesma e seria agradável ouvir uma voz jovem cantando as músicas que eu fizera. Mas não. Ninian sorria, balançava a cabeça com determinação e só concordava em afinar a harpa, o que aceitara aprender e o fizera com facilidade. Em tudo o mais, porém, ele se mostrava ansioso para aprender. Recordando-me o melhor possível de como Galapas, meu mestre, me introduzira na magia, eu o conduzi, passo a passo, para o interior dos estranhos e nebulosos salões da arte. Ele já tinha um pouco de vidência, mas dificilmente iria ultrapassar o mestre, como acontecera comigo, e continuava um completo estranho nos vôos da profecia. Para mim, se Ninian conseguisse aprender metade do que eu sabia, já era suficiente. Como todos os velhos, me era impossível acreditar que um cérebro jovem e um corpo delicado seriam capazes de agüentar as tensões que eu suportara tantas vezes. Como Galapas fizera comigo, eu o ajudara com algumas ervas especiais, e em pouco tempo ele já era capaz de ver no fogo ou na chama de uma vela, e acordar depois da visão sem grande cansaço, embora às vezes voltasse perturbado com o que tinha visto. Ainda não conseguia interpretar as cenas corretamente e eu não quis interferir, deixando o dom seguir seu curso natural e, de fato, durante esses serenos meses de aprendizado não aconteceu nada de marcante para ser profetizado no fogo. Uma ou duas vezes Ninian me falou, confuso, sobre a rainha, Melwas, Bedwyr e o rei, mas eu não dei grande atenção a essas visões, classificando-as de obscuras. Ninian recusava-se terminantemente em me contar sobre ele mesmo ou de onde viera. Passara a maior parte da vida na ilha e suas vizinhanças e, pelo que me permitiu captar, seus pais tinham sido moradores pobres de uma das aldeias próximas ao lago. Chamava a si mesmo de Ninian do Lago, e afirmava que isso era suficiente e eu acabei aceitando. Afinal, seu passado não era importante e o que iria ser no futuro dependia de meus ensinamentos. Não o pressionei porque eu sofrerá demais, como bastardo e criança sem pai conhecido, com esse tipo de interrogatório. Portanto, eu respeitava os silêncios do rapaz e não perguntava nada além do que ele se mostrava disposto a dizer. O que mais o interessou desde o início foi o lado prático da arte da cura, o estudo da anatomia e uso dos remédios, em que se mostrou ser muito bom. Diferente de mim, que nunca tivera talento para isso, ele desenhava com perfeição e começou, nesse primeiro inverno, por puro prazer no trabalho, a compilar um herbário de plantas locais, retratando-as com exatidão, apesar de só contar com as ervas secas, já que a procura e identificação das plantas, que constitui mais do que a metade da arte do médico, teria de esperar até a primavera. Mas ele não mostrava pressa. Achava que tinha, como me disse, a eternidade pela frente. Assim o inverno se passou numa atmosfera de felicidade, onde cada dia pareceu ser curto demais

para tudo o que poderia preenchê-lo. Estar com Ninian era possuir tudo: minha própria juventude, cheia de ânsia para aprender, com a vida se desenrolando plena de brilhantes promessas, e ao mesmo tempo os prazeres do pensamento e da solidão. Ele parecia captar quando eu precisava ficar sozinho e nessas ocasiões ou afastava-se fisicamente, indo para o seu quarto, ou mergulhava num profundo silêncio e abstração que deixavam meus pensamentos livres dele. Como se recusara a dividir a casa comigo, preferindo, como afirmara, ter aposentos só seus onde não seria obrigado a me perturbar, eu mandara Mora arrumar os cômodos que teriam sido usados pelos criados, se algum deles morasse em minha casa. Eles ficavam sobre a oficina e despensa, dando para o oeste, e, apesar de serem pequenos e com pouca altura devido às vigas do teto, eram aconchegantes e ventilados. No começo imaginei se Mora e Ninian tinham chegado a algum tipo de entendimento, porque passavam muito tempo conversando na cozinha ou perto do riacho onde era lavada a roupa. Eu ouvia suas risadas e ficava mais do que claro que os dois se davam bem, mas não havia nenhum sinal de maior intimidade e, com o passar do tempo, percebi que Ninian conhecia tão pouco do amor como eu mesmo, o que não me causou surpresa, porque era natural diante do modo como o poder aumentava nele de forma quase palpável. Os deuses nunca concedem duas dádivas ao mesmo tempo e são ciumentos. No ano seguinte a primavera chegou cedo, com dias ensolarados em março e bandos de gansos selvagens voltando para o norte. Peguei um tipo qualquer de friagem e passava a maior parte do tempo dentro de casa, mas num dia mais agradável saí para sentar-me no pátio, onde as pombas já se ocupavam em namorar. Por causa do muro aquecido os marmeleiros estavam em flor e as íris de inverno coloriam de azul toda a extensão do canteiro da -base. Eu podia ouvir os golpes da pá de Varro nos jardins atrás da cocheira e pensei preguiçosamente no plantio que eu planejara. Nada passava por minha mente além de projetos vagos e tranqüilos relacionados com a casa e a visão das penas rosadas do peito das pombas... Mais tarde, lembrando-me desse dia, achei que a doença possivelmente havia me afastado da consciência do presente por cerca de uma hora. Seria mais agradável pensar isso, mas o mais provável era que estava doente de velhice, de fraqueza deixada pela friagem e entorpecido pelo contentamento. Passos rápidos em degraus de pedra me acordaram sobres-saltado. Olhei para cima. Ninian vinha descendo de seu quarto com movimentos incertos, como se fosse ele, e não eu, que estivesse meio drogado ou doente. Mantinha uma mão contra a parede de pedra, como se fosse cair se não tivesse apoio. Ainda cambaleando, chegou à colunata e entrou no sol. Fez uma pausa, agarrando-se a um dos pilares. Tinha o rosto pálido e seus olhos estavam enormes com as pupilas negras ocupando toda a íris. Os lábios aparentavam estar secos, mas havia umidade em sua testa e duas profundas linhas de dor entre as sobrancelhas. — O que foi? — Assustado, comecei a me levantar, mas ele estendeu uma mão para me acalmar e depois se aproximou e deixou-se cair sentado no piso ao meu lado. — Tive um sonho — disse, e até mesmo a voz estava diferente. — Não, eu não estava dormindo. Estava lendo perto da janela. Havia uma teia de aranha ali perto, ainda cheia das gotas de água da noite passada. Eu a observava enquanto balançava ao sol... Entendi o que acontecera. Coloquei a mão em seu ombro e a deixei pesando ali para prendê-lo à realidade. — Não fale nada agora. Fique sentado. Calma, você não esquecerá o sonho. Espere um pouco. Depois me contará.

Mas enquanto eu levantava ele me agarrou pela barra do roupão. — Você não está entendendo! Foi um aviso! Tenho certeza! Há perigo... — Estou entendendo muito bem, mas enquanto a dor de cabeça não passar você não se lembrará claramente de nada. Espere. Volto já. Fui para o laboratório e, enquanto me ocupava preparando o estimulante, um único pensamento passava pela minha mente. Ninian, lendo e meditando, tivera uma visão que lhe fora trazida pela centelha de luz incidindo numa uma gota de orvalho. Eu, sentado sem fazer nada sob o sol, não vira nada. Percebi que minha mão tremia um pouco enquanto eu derramava a bebida num copo. Sim, seria preciso muito amor fraternal para ficar de lado vendo o deus tirar a sombra de suas asas sobre mim e passá-la para um outro. Mesmo que o poder traga dor, medo e até mesmo ódio, ninguém deseja abdicar dele em favor de outra pessoa. De ninguém. Levei o copo para o pátio. Ninian, ainda deitado nos ladrilhos aquecidos pelo sol, tinha a cabeça abaixada e pressionava o punho contra a testa. Parecia muito jovem e frágil. Ergueu a cabeça quando ouviu meus passos e olhou-me sem ver por entre lágrimas de dor. Sentei-me, peguei sua mão e guiei o copo até seus lábios. — Beba. Você se sentirá melhor. Não, não tente falar ainda. Ele bebeu e deixou cair novamente a cabeça, desta vez em meu joelho. Coloquei a mão em seus cabelos. Por algum tempo ficamos sentados ali enquanto as pombas, que haviam sido perturbadas com sua chegada, voltavam aos seus arrulhos de amor. O som monótono da pá de Varro continuava vindo de trás da cocheira. Ninian se mexeu depois de alguns minutos. — Melhor? — perguntei, levantando a mão. — Sim. — Ele ergueu a cabeça. As rugas de dor haviam desaparecido. — Sim, passou. Foi mais do que uma dor de cabeça, parecia um prego entrando em meu cérebro. Nunca senti nada parecido. Será que estou doente? — Não. Você é apenas um vidente, alguém que fornece os olhos e a voz para um deus tirano. Teve um sonho acordado, o que os homens chamam de visão. Agora conte-me como foi e veremos se ela teve substância. Ninian dobrou os joelhos e segurou-os com as mãos. Falou olhando para o muro, com as pupilas ainda dilatadas, numa voz baixa e homogênea, como se recitasse algo que tinha decorado. — Vi uma extensão de mar cinzento, agitado por ventos tempestuosos, quebrando-se em ondas brancas contra pedras que pareciam dentes de lobo. Vi também uma praia de seixos, também cinzenta, e molhada pela chuva. As ondas se quebravam na praia e com elas vinham restos de naufrágio e pessoas, corpos de homens e mulheres afogados. Um deles, o de um homem, rolou para perto de mim e vi que ele não se afogara. Havia um profundo ferimento em seu pescoço, mas o sangue fora lavado pelo mar. Ele parecia um animal sangrado. Havia também três crianças mortas. Uma estava nua e fora ferida por uma lança. Então vi, bem depois das ondas, um navio, um navio inteiro com as velas enfunadas e os remos estendidos para equilibrá-lo. Ele esperava ali e percebi que estava muito carregado. Tinha uma proa alta e curva, com chifres de veado na ponta. Não tenho certeza se eram de verdade ou feitos de madeira. Mas vi perfeitamente o nome do navio: Veado-Rei. Os homens que estavam nele viam os corpos rolando para a praia e riam. Apesar de muito distantes de mim, eu podia ouvir o que diziam com toda a clareza... Você acredita?

— Sim. Continue. — Eles diziam: "Por Deus! Você foi guiado pelos deuses. Quem imaginaria que essa velharia continha tanta riqueza? Com uma sorte como a sua e uma divisão justa do butim, ficaremos todos ricos!" Eles falavam com o comandante. — Você ouviu o nome dele? — Parece que o chamavam de "Heuil". — E foi só isso? — Não. Havia um tipo de escuridão, como uma neblina. Então o navio desapareceu e vi homens a cavalo perto de mim na praia. Alguns tinham desmontado e examinavam os corpos. Um deles levantou um pedaço de tábua onde devia estar escrito o nome do navio naufragado e levou-a para um homem que continuava montado. Era um homem moreno, sem nada que pudesse distingui-lo, mas sem dúvida o líder do grupo. Ele parecia muito bravo. Falou alguma coisa e os outros montaram de novo e todos saíram galopando, saindo da praia, atravessando dunas e vegetação rasteira. Fiquei ali e logo os corpos também tinham sumido e o vento soprava contra os meus olhos, fazendo-os lacrimejar... Foi isso. Eu estava olhando para a teia de aranha e a gotas de água tinham evaporado. Uma mosca se debatia nela e acho que foi o que me acordou. Merlin... Ninian parou abruptamente e inclinou a cabeça para ouvir. Eu também ouvi, vindo da estrada, os sons de um grupo de cavaleiros e uma ordem para parar. Logo em seguida um deles se separou, aproximando-se num galope. — Será que é um mensageiro de Camelot? — falei. — Quem sabe, talvez esteja relacionado com sua visão. Ouvimos o cavalo parar e em seguida o tilintar dos arreios e uma saudação vinda de Varro. Artur entrou no pátio. — Merlin, estou contente em vê-lo em pé. Fui informado de que você esteve doente e vim visitálo. Ele fez uma pausa, olhando para Ninian. Sabia, claro, que o rapaz estava em minha casa, mas nunca o vira pessoalmente. Ninian jamais quisera ir comigo a Camelot e sempre que o rei me visitava arranjava uma desculpa para ficar em seus aposentos. Eu não o forçava, conhecendo bem a timidez dos moradores da região em torno do lago diante do Grande Rei. Eu me levantara e estava começando a apresentar Ninian quando o rapaz me interrompeu. Ficou em pé com um único movimento ágil, tão rápido como uma cobra se desenrolando para o bote, e gritou: — É esse o homem! Esse mesmo! Então foi um sonho verdadeiro, verdadeiro! Artur ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas eu sabia que não era pela falta de respeito e sim pelas palavras que ouvira. Seus olhos passaram de Ninian para mim. — Um sonho verdadeiro? — disse baixinho. Conhecia esse termo há muito, muito tempo. Ouvi Ninian segurar a respiração. Era como se estivesse saindo da névoa da visão, voltando ao presente, como alguém sendo subitamente empurrado para uma luz forte. — É o rei. Então era o rei. — Então era o rei? — repetiu Artur, num tom ríspido. Ninian, corando, começou a gaguejar. — Nada. Isto é, eu estava falando com Merlin. Não o conheci à primeira vista. Eu lhe peço...

— Esqueça. Que história é essa sobre um sonho verdadeiro? Ninian lançou-me um olhar angustiado. Contar um sonho a um mestre era bem diferente do que fazer sua primeira profecia diante de um rei nela envolvido. Dirigi-me a Artur: — Parece que um velho amigo seu está se divertindo com a pirataria ou qualquer outra vilania parecida com ela em suas águas natais. Assassinato e roubo, pacíficos mercadores sendo atirados ao mar, ninguém vivo para contar a história. — Um velho amigo? — Artur franziu o cenho. — Quem? — Heuil. — Heuil? — Seu rosto tornou-se sombrio enquanto ele pensava por alguns instantes. — Sim, sim, está se ajustando. Há pouco tempo recebi notícias de Ector. Ele me contou que o rei Caw está ficando senil e que seu bando de chacais anda inquieto, procurando alguma coisa para morder. Três dias atrás Urbgen, o marido de minha irmã, mandou um mensageiro com a notícia de que uma aldeia do litoral foi atacada e saqueada, e a maioria dos moradores morreu e o resto fugiu. Ele se mostrava inclinado a culpar os irlandeses, mas eu logo descartei essa idéia. O clima anda bem ruim para incursões distantes. Heuil, então? Não é uma grande surpresa. Devo ir até lá? — Seria a melhor coisa a fazer. Minha impressão é de que Caw morreu ou está à morte. De outra forma, não consigo imaginar que Heuil se atreveria a fazer qualquer coisa que provocasse retaliações de Rheged. — Sua impressão? — Nada mais do que isso. — Sim, parece bem provável. Bem, eu estava procurando um pretexto para dar uma olhada em nossas defesas no norte. Se Caw está perdendo a autoridade e esse cão negro do Heuil arranjou uma corja para tentar contestar o direito de seu irmão ao trono de Strathclyde, eu gostaria muito de ver as coisas com meus próprios olhos. Pirataria, hein? Conseguiu ver onde? Olhei para Ninian, que balançou a cabeça, negando. — Não — falei —, mas você os encontrará. Irá à praia e ainda conseguirá ver os corpos e restos da embarcação naufragada. O navio dos piratas tem o nome de Veado-Rei. É tudo o que sabemos. Você encontrará os verdadeiros culpados. — É o que farei, não tema. — Artur estava muito sério. — Hoje mesmo mandarei um mensageiro para o norte avisando Urbgen e Ector para me esperarem e partirei amanhã logo cedo. Andei procurando uma desculpa para cortar as asas de Heuil e agora você me presenteia com isso. Talvez seja exatamente a oporunidade para ratificar um outro acordo entre Strathclyde e Rheged, e dar todo o meu apoio ao novo rei. Não sei quanto tempo ficarei por lá, mas só voltarei quando tudo estiver acertado. E quanto a você, Merlin? Já está completamente bom de saúde? — Já, obrigado, Artur. Ele sorriu. Entendera perfeitamente o olhar que eu e Ninian havíamos trocado. — Parece que você finalmente encontrou alguém com quem compartilhar suas visões. Bem, Ninian, foi um prazer conhecê-lo. Eu fiquei vendo a atitude dos dois enquanto Artur dizia algumas palavras de delicadeza e Ninian respondia, olhando fixamente para ele. Percebi que me enganara. O rapaz não estava assustado com a presença do rei. Havia uma qualidade diferente no modo como o olhava, algo que eu não conseguia

nomear. Não havia nele a veneração que eu via nos outros homens, mas apenas uma atenta avaliação. Artur notou, pareceu se divertir com isso e em seguida dispensou Ninian e virou-se para mim, perguntando se eu tinha recados para Morgan e Ector. Depois despediu-se e partiu. Ninian aproximou-se de mim enquanto ouvíamos o cavalo se afastar. — Sim, foi um sonho verdadeiro. O rei moreno no cavalo branco, o escudo branco também, sem nenhum brasão, brilhando apenas devido à claridade do céu. Sim, era Artur, sem dúvida. Mas conte-me, Merlin, quem é esse Heuil e por que o rei quer uma desculpa para cortar suas asas? — Ele é um dos filhos de Caw de Strathclyde, que é rei em Dunbarton Rock desde que me conheço por gente. Ele está velhíssimo e teve dezenove filhos com várias mulheres. Isso sem contar as filhas, que também são muitas. O seu caçula, Gildas, há pouco tempo foi mandando para a casa de meu velho amigo Blaise, você sabe quem é ele, para aprender a ler e escrever. Ele, pelo menos, será um homem de paz. Mas Heuil é o pior de todos entre um bando de selvagens. Ele e Artur jamais se deram bem e chegaram a brigar por causa de uma menina quando morávamos no norte. Desde que foi informado do estado do rei Caw, ele vem se preocupando com Heuil, porque o considera um perigo para o equilíbrio da paz naquela região. Esse canalha faria qualquer coisa para prejudicar Artur, até se aliar aos saxões. Mas, como agora resolveu se envolver com roubo e assassinato, esse perigo maior será automaticamente evitado. — E o rei leva um exército para o norte, sem mais nem menos, apenas confiando em sua palavra, Merlin? — Agora havia espanto na voz de Ninian, não por causa de reis nem de conselheiros. Ele sentia, pela primeira vez, o poder em si mesmo. — Na minha palavra não — sorri. — Na sua. Desculpe-me se dei a impressão de que a visão tinha sido minha, mas o assunto era urgente e Artur talvez não acreditasse em você de imediato. — Claro que não. Mas você também viu a cena, não? — Não vi nada. — Mas... mas você logo acreditou em mim. — Naturalmente. Embora eu não a tenha visto, ela foi verdadeira. Ninian pareceu preocupado e em seguida sua expressão foi de puro medo. — Mas Merlin, você está mesmo dizendo que não sabia de nada antes de eu lhe contar meu sonho? Esse tal de Heuil virando pirata... ou pensando nisso? Quer dizer então que mandou o rei partir para o norte com base apenas em minhas palavras? — Sim, foi exatamente o que aconteceu. Houve um silêncio enquanto a preocupação, apreensão, emoção e depois a alegria foram se sucedendo em seu rosto com a mesma clareza com que o lago de onde viera refletia o céu e as nuvens. Ele ainda estava impressionado com o seu poder. Todavia, quando veio a falar, me surpreendeu porque, como Artur, rapidamente entendeu o que isso significava. — Merlin, você se incomodou com essa visão? Fui o mais singelo possível em minha resposta: — Talvez. Um pouco agora, mas logo não me perturbará mais. E um dom cruel e pode ser que o deus tenha achado que era a hora de passá-lo a você, deixando-me em paz para gozar o sol e ficar vendo as pombas arrulhar.

Eu sorri enquanto falava, mas não havia humor no rosto de Ninian. Ele então teve uma atitude muito estranha. Pegou minha mão, encostou-a em sua face e em seguida soltou-a e voltou para os seus aposentos sem nenhuma palavra ou olhar. Eu fiquei ali parado, lembrando-me de um outro rapaz, muito mais jovem, descendo da caverna de Galapas com as visões rodopiando em sua cabeça e lágrimas nos olhos, com toda a solitária dor e perigo pairando nas nuvens a sua frente. Então encaminhei-me para meu quarto e fiquei lendo junto à lareira até que Mora veio trazer o almoço.

8 Artur partiu para o norte no dia seguinte e daí por diante não tivemos mais notícias. Ninian andava pela casa com um ar meio estranho, que imaginei ser um misto de encantamento consigo mesmo e com sua "visão verdadeira", e de surpresa por eu não aparentar aborrecimento por ter sido deixado de lado pelo deus. Quanto a mim, devo admitir que estava dividido. Olhando para o passado, hoje sei que na época eu ainda sofria os últimos efeitos do veneno de Morgause, mas mesmo depois da visita de Artur e da aceitação da profecia de Ninian, nada me veio da escuridão como prova ou negação dessa nova situação. Apesar de tudo, eu sentia na quietude daqueles dias uma tranqüila aprovação. Era como ver uma sombra que, à medida que as nuvens vão se movimentando, passa de um lugar para outro. Sim, de uma forma delicada, me fora mostrado onde eu agora encontraria a felicidade. Por isso, atendendo a essa indicação, continuei preparando Ninian para ser o que eu fora até então e a mim mesmo para um futuro que antes me parecia sombrio, mas para o qual agora eu me encaminhava inexoravelmente, como um animal indo para a sua hibernação. Ninian, ainda mais do que antes, pareceu se enfronhar em si mesmo. Em uma ou duas ocasiões, deitado sem sono em minha cama, ouvi-o atravessar o pátio com passos silenciosos e depois sair correndo para o vale como um uma criaturinha libertada de uma jaula. Nessas vezes tentei segui-lo usando minha mente, mas foi como se ele tivesse se precavido de mim, envolvendo-se numa nuvem, porque só consegui ver a estrada e nela a figura franzina correndo, correndo para a névoa que tudo encobria entre Applegarth e a ilha. Não me preocupou saber que Ninian tinha segredos, como jamais me incomodou vê-lo conversando longamente com Mora no laboratório ou na cozinha. Eu sabia que jamais fora uma companhia alegre e com a idade estava me tornando cada vez mais calado. Por isso me agradava ver que os dois jovens tinham interesses comuns e mostravam-se satisfeitos prestando serviços para mim. Era mesmo um serviço. Eu fazia o rapaz trabalhar mais do que qualquer escravo. Penso que esse é o jeito do amor. Uma pessoa deseja tão ardentemente que seu amado seja bem sucedido que não hesita diante de nada. E não havia dúvida de que eu amava Ninian. O rapaz era eu mesmo e através dele eu continuaria vivendo. Enquanto Artur precisasse das visões e do poder de um profeta real, ele continuaria encontrando-o tão perto de si como sua espada. Numa certa noite de abril acendemos a lareira, fazendo um fogo bem forte para espantar o frio, e nos sentamos diante dele, olhando para as chamas. Ninian tomou seu lugar habitual, deitado de bruços sobre o tapete, com o queixo apoiado na mão, os olhos cinzentos estreitados contra a luz. Pouco a pouco vi surgir em seu rosto uma película de suor que captou o brilho do fogo e delineou suas feições, umedecendo a linha dos cabelos e fazendo surgir pequenos arco-íris nos cílios longos. Eu, como vinha acontecendo cada vez com maior freqüência, me surpreendi mais interessado nele do que em usar meu próprio poder. Era um misto de profundo contentamento e de um amor perturbadoramente cruel que eu não tentava impedir ou compreender. Eu, porém, aprendera as lições do passado e me deixava levar pelo tempo, acreditando que era suficientemente dono de mim e de meus pensamentos para não prejudicar o rapaz. Houve uma mudança em seu rosto. Algo se moveu nele, um reflexo de dor, aflição ou desgosto. O suor escorria para os seus olhos, mas ele nem piscava nem se mexia. Era hora de acompanhá-lo. Parei de observá-lo e voltei meus olhos para o fogo. Vi Artur imediatamente. Ele estava montado em seu cavalo branco, à beira-mar. Era uma praia de seixos e logo

reconheci o castelo no alto dos penhascos: a torre de Rheged, que comanda o estuário do Ituna. Estava entardecendo e as nuvens pesadas pairavam escuras sobre o cinzento do mar. As ondas estouravam em espuma contra as pedras e sibilavam ao subir a praia por entre os seixos. O cavalo, com água até os joelhos, enfrentava o movimento da água com firmeza e seus flancos molhados e o cinzento da capa encharcada de Artur me davam a impressão de que o rei vinha saindo do mar. Um homem, um camponês pelo seu aspecto, estava junto de Artur segurando os arreios do cavalo branco, falando apressadamente e apontando para o mar. O rei seguiu o gesto e levou a mão à testa.Vi o que ele estava vendo: uma luz, bem longe no horizonte, balançando com o movimento da água. Artur fez uma pergunta e o homem apontou de novo, dessa vez para a terra. Artur dirigiu o cavalo para a trilha estreita que levava para a torre e por entre as brumas da visão pude ver seus soldados partindo atrás dele. Um pouco antes da cena desaparecer vi, no alto do penhasco, as luzes se acendendo no castelo. Voltei para a sala e vi que Ninian voltara antes de mim. Ele estava ajoelhado, não, agachado com a cabeça entre as mãos. — Ninian? Apenas um leve movimento de cabeça. Esperei alguns instantes e então peguei o elixir estimulante que atualmente sempre mantinha por perto. — Vamos. Beba isto. Ele tomou um gole e me agradeceu com os olhos, mas o silêncio continuou. Fiquei observando suas reações por um ou dois minutos, e então disse: — Bem, parece que o rei chegou às praias de Ituna e confirmou o caso dos piratas. Agora está descansando no castelo e amanhã cedo sairá no encalço de Heuil. Então, por que essa sua aflição? Sua visão foi verdadeira e o rei está cumprindo sua missão. Ainda nada em seu rosto senão a clara aflição. — Ora, Ninian, não fique assim. Para Artur é uma questão de pouca importância. O maior problema será punir Heuil sem ofender seus irmãos, mas mesmo isso não é impossível, porque faz muito tempo que ele se afastou deles. Portanto, mesmo se o velho Caw ainda estiver vivo, duvido que faça objeções. Quanto aos filhos mais velhos, tenho certeza de que a morte de Heuil será um alívio para eles. — Vendo que Ninian continuava do mesmo jeito, acrescentei num tom mais ríspido: — Olhe aqui, rapaz, se você viu alguma tragédia é ainda mais importante falar sobre ela. Foi a morte de alguém relacionado com a cena? A do rei Caw é coisa certa. Seria a de Morgan, a irmã do rei? Ou o conde Ector? — Não. — Sua voz saiu estranha e trêmula. — Eu não vi o rei. — Quer dizer que não estava me acompanhando? Olhe, Ninian, isso é normal. Aconteceu comigo quando Artur esteve aqui. Lembra-se? Não deixe isso perturbá-lo. Haverá muitas vezes em que você, por mais que tente, não conseguirá ver nada. Já lhe disse antes, é preciso esperar pelo deus. É ele quem escolhe a hora, não você. — Não é isso. — Ele balançou a cabeça. — Eu vi. Mas não o Grande Rei. Vi outra coisa. — Então me conte. — Não posso. — Lançou-me um olhar cheio de aflição. — Ouça, Ninian, como você não escolhe o que lhe será mostrado, também não pode escolher o que vai contar. Chegará o tempo em que talvez venha a usar seu próprio julgamento quando estiver

vendo para reis, mas para mim você tem de contar tudo. — Não posso! Esperei um instante. — Agora fale. Você viu alguma coisa nas chamas? — Sim. — E o que você viu contradiz o que veio antes ou o que penso que acaba de ver? — Não. — Não quer falar com medo de mim? De que eu possa me irritar... — Nunca tive medo de você. — Então, meu caro — falei, com a máxima paciência —, certamente não existe um bom motivo para você calar e todos os motivos do mundo para você contar. Talvez não seja uma tragédia tão grande como imagina e é possível que esteja interpretando errado. Já lhe ocorreu isso? Um lampejo de esperança que não durou mais do que um segundo. Ninian respirou fundo como se fosse falar, mas mordeu o lábio e baixou o olhar. Teria visto minha morte? Inclinei-me, peguei seu rosto com as duas mãos e o obriguei a olhar para mim. Os olhos ergueram-se relutantemente para os meus. — Ninian, você sabe que sou capaz de ir onde você esteve e ter a mesma visão. Então, por que me obrigar a enfrentar mais tensões? Agora me obedeça e conte-me o que viu nas chamas. Ele umedeceu os lábios secos e quando falou sua voz saiu num sussurro, como se tivesse medo do som. — Você sabe que o cavaleiro Bedwyr não viajou com o Grande Rei? Que ele ficou em Camelot? — Não, mas não há nada de estranho nisso. O rei sempre deixa um de seus principais comandantes para cuidar da fortaleza e da guarda da rainha. — Sim. — Ninian umedeceu os lábios de novo. — Foi o que eu vi. Bedwyr em Camelot... com a rainha. Eles estavam... penso que são... Ele parou. Tirei minhas mãos de seu rosto e permiti-lhe abaixar o olhar, o que fez com alívio. Só existia um único meio de entender sua aflição: — Amantes? — Acho que sim. — Então, numa torrente de palavras: — Merlin, como ela pode fazer uma coisa dessas? Depois de tudo o que aconteceu... de tudo o que ele fez por ela! O caso com Melwas... todos sabem o que aconteceu lá! E Bedwyr, traindo seu melhor amigo? Como pode a rainha olhar para outro homem com um marido como o seu, um homem tão especial, um rei tão... Oh, eu daria tudo para acreditar que não foi um sonho verdadeiro, mas sei que é a realidade! — Seus olhos estavam marejados de lágrimas. — E agora, Merlin, em nome do deus, o que devemos fazer? — Não posso lhe dizer ainda — falei vagarosamente. — Mas procure esquecer, se puder. Esse é um tipo de carga que você não deve ser obrigado a compartilhar comigo. — Vai contar a ele? — Sou seu servo. O que você faria em meu lugar? Ninian mordeu novamente o lábio e ficou olhando para o fogo, mas dessa vez, eu sabia, não via nada. Seu rosto estava abatido, quase doentio.

Lembro-me de que se senti vagamente surpreso com o fato de ele culpar mais Guinevere pela sua fraqueza do que Bedwyr pela traição. Finalmente falou: — Como você conseguirá contar uma coisa dessas para ele? — Ainda não sei. O tempo me dirá. — Você não parece surpreso. — Foi quase uma acusação. — Não. Penso que na verdade eu sabia há muito tempo. O desespero de Bedwyr na noite em que ela desapareceu, sua aflição enquanto dragava o canal, o modo como nadou até a cabana de caça... E a rainha ficou em Ynys Witrin enquanto ele estava doente... E mais, agora estou me lembrando de cenas que aconteceram quando Guinevere chegou a Caerleon para o casamento e durante as comemorações. Bedwyr era o único dos Companheiros que não a olhava com admiração, fazendo brincadeiras, e Guinevere também evitava olhar para o seu lado. Sim, creio que algo surgiu entre eles na viagem, antes mesmo de ela conhecer o rei. — Suspirei e acrescentei: — Creio que fui avisado claramente há muitos e muitos anos, quando os dois ainda eram rapazinhos e nenhuma paixão da juventude surgiu para separálos, nenhuma mulher veio perturbar suas vidas, como sempre acontece nesses casos. Ninian levantou-se abruptamente. — Vou me deitar — falou, ainda trêmulo, e afastou-se sem hesitação. Sozinho, voltei a olhar para as chamas e os vi quase imediatamente. Os dois no terraço onde eu tantas vezes conversara com Artur. Agora o palácio estava às escuras a não ser pelo brilho das estrelas e de um raio de luz amarelada que vinha de um lampião que pendia junto aos canteiros de rosas. Os dois em pé, um diante do outro, calados e imóveis, de mãos dadas. Olhavam-se nos olhos e havia neles um brilho quase selvagem de desespero. Guinevere parecia temerosa e lágrimas rolavam em suas faces. O rosto de Bedwyr estava abatido, como se a sombra branca tivesse sugado seu espírito. Fosse qual fosse o tipo de amor que os tinha em suas garras, era uma amor cruel e, eu bem sabia, nenhum deles ainda se atrevera a deixá-lo matar sua fidelidade. Eu vi, lamentei, depois afastei o olhar das chamas e para não mais me imiscuir em sua privacidade.

9 Artur voltou dois meses depois. Conseguira encontrar Heuil, vencera-o num combate justo, queimara seus navios e lhe impusera uma multa que o manteria quieto por muito tempo. Novamente tivera que dominar seus instintos em favor da política. Quando chegara ao norte, recebera a notícia de que o rei Caw de Strathclyde havia morrido pacificamente em seu sono, depois de um dia agitado, no qual passara a maior parte do tempo caçando e em seguida comemorando, o que cobrara seu preço em um organismo de noventa anos. Pela madrugada, Caw expirara cercado pelos filhos e esposas que tinham conseguido chegar a tempo, não sem antes designar como seu herdeiro o segundo filho, Gwarthegydd, já que o primogênito ficara gravemente aleijado num combate ocorrido alguns anos antes. O mensageiro que trouxe a notícia a Artur também lhe transmitiu a garantia da amizade do novo rei, mas ele achou melhor não agir antes de conversar com Gwarthegydd para ver qual seria sua posição no que dizia respeito ao seu irmão, Heuil. Não precisava ter tido tanto cuidado. Contam que quando o novo rei ouviu a notícia da derrota do irmão soltou uma risada tão grande como a famosa gargalhada de seu pai e bebeu um chifre cheio de aguardente em honra do Grande Rei. Terminada sua missão, Artur foi a Dumbarton em companhia de Urbgen e Ector, e ficou na cidade por nove dias, partindo depois da coroação de Gwarthegydd. Tomando rumo sul, pela estrada do leste que levava a Elmet, encontrou o vale e os territórios saxões tranqüilos e em seguida atravessou o país pelo Vão dos Peninos, indo parar em Caerleon. Ali ficou por um mês e, nos primeiros dias de julho voltou para Camelot. Já não era sem tempo. Por muitas e muitas vezes eu vira os amantes no fogo, divididos entre o desejo e a fidelidade, Bedwyr pálido e calado, a rainha com olhos assustados e mãos trêmulas. Nunca mais tinham me aparecido sozinhos. Eu via Guinevere em companhia de suas damas, que costuravam ou bordavam, e Bedwyr sempre com alguns homens de sua idade. Todavia, em certas ocasiões eles se afastavam um pouco dos outros e conversavam muito, falando sem parar como se, através das palavras e de um ou outro toque leve e desesperado, encontrassem um pouco de conforto. Eles esperavam dia e noite pela volta de Artur; Bedwyr porque não podia abandonar o cargo que ocupava sem ordens expressas do rei; Guinevere com a angústia de uma mulher totalmente dependente de um marido, mas apaixonada por outro homem. Artur veio me visitar cerca de dez dias depois de voltar a Camelot, numa manhã clara e fresca de junho. Eu me levantara logo depois do sol nascer, como de hábito, e fora passear sozinho pelas colinas que ficavam atrás de minha casa, pois raramente Ninian descia antes de Mora chamá-lo para o desjejum. Eu caminhava havia mais de uma hora, pensando e colhendo as ervas que procurava, quando ouvi patas de cavalo a distância. Não me pergunte como eu soube que era Artur. Não havia nenhum clima para previsões naquele dia, mas penso que o amor tem asas mais fortes do que a vidência e por isso simplesmente me virei e fiquei esperando por ele junto a um dos pequenos bosques que salpicam as colinas naquele lugar. Essas árvores coroavam o alto de um gracioso vale, por onde corria uma trilha tão antiga como a terra, e foi por ela que o vi subindo, sentado à vontade numa égua castanha e tendo a seu lado o cão perdigueiro que era o sucessor de Cabal. Ele acenou para mim, subiu a encosta e desmontou com um sorriso. — Como sempre, tudo aconteceu de acordo com sua visão. Como se eu tivesse de lhe contar! Já lhe ocorreu, meu querido Merlin, como pode ser tedioso ter um profeta que sabe de tudo antes de

acontecer? Eu não posso mentir nem vir me vangloriar de minhas vitórias. — Lamento, mas garanto-lhe que desta vez seu profeta esperou suas mensagens com a mesma ansiedade das outras pessoas. Obrigado pelas cartas... Como me encontrou aqui? Já esteve em Applegarth? — Eu estava indo para lá quando encontrei um sujeito num carro de boi, um lenhador, e ele me disse que o tinha visto vindo para cá. Vai continuar em frente? Irei caminhando com você. — Eu já estava para voltar... Suas cartas foram mais do que bem-vindas, mas ainda quero ouvir tudo de sua boca. É estranho imaginar que o velho Caw finalmente partiu. Acha que Gwarthegydd conseguirá manter Dumbarton? — Contra os irlandeses e saxões, não tenho dúvida, mas quero ver como acertará as coisas com os outros dezessete pretendentes ao trono. — Artur sorriu. — Dezesseis, aliás, já que cortei as asas de Heuil. — Mas, na verdade, quinze. Não esqueça que Gildas agora é secretário de Blaise. — De fato. Um rapaz esperto esse Gildas, e foi sempre unha e carne com Heuil. Creio que quando Blaise morrer ele entrará para um mosteiro. Melhor assim, porque, como seu querido irmão, ele nunca gostou de mim. — Então esperemos que ele cuide bem dos papéis de seu mestre. A propósito, Artur, você deveria designar alguns escribas para registrarem seus feitos. — Que história é essa? — Ele ergueu a sobrancelha numa expressão zombeteira. — Um aviso de um profeta? — Nada disso. Um pensamento, apenas. Quer dizer então que Gwarthegydd é mesmo seu aliado? Houve uma época em que ele afastou Caw do trono e andou de namoricos com os reis irlandeses. — Isso foi há muito tempo, ele era jovem e Caw tinha mão pesada. Acabou. Penso que será um bom rei. O que mais importa nesta etapa é que ele concorda com Urbgen... Artur continuou falando, me contando sobre o acontecido nas semanas que ficara fora, enquanto caminhávamos lentamente, seguidos pela égua e pelo cachorro que farejava em círculos a nossa volta. No final de sua narrativa, como se nossos pensamentos tivessem se comunicado, ele fixou os olhos em mim por um longo instante. — E agora, quanto a você? Como passou estes últimos tempos? Ainda me parece cansado. Sua doença... — Você não precisa mais se preocupar com minha saúde. — Estou sempre pensando na última visita que lhe fiz. Você disse que foi seu... — Ele hesitou, procurando a palavra. — Seu assistente que viu Heuil e seus sicários. — Ninian. Sim, foi ele. — E você viu alguma coisa? — Não. Nada. — Sim, foi o que você me contou, mas ainda acho muito estranho. Concorda comigo? — Creio que sim, mas você deve se lembrar de que eu não estava bem naquele dia, que ainda não me recuperara plenamente de um resfriado.

— Esse rapaz... há quanto tempo está com você? — Ele chegou em setembro, portanto são... nove meses, não é? — E você lhe ensinou tudo o que sabe? — Longe disso — sorri —, mas já lhe ensinei bastante. Você não ficará sem um profeta, Artur. Ele não sorriu. Continuava com o ar perturbado e ficou caminhando em silêncio por um bom tempo, imerso em seus pensamentos. Então pareceu tomar uma súbita decisão. — Você confia nele? — Em Ninian? Claro. Por que não? — O que sabe sobre ele? — Sei o que preciso saber — falei um tanto rígido. — Eu lhe contei como ele veio me procurar e como desde o início tive certeza, como continuo tendo agora, que foi o deus quem nos aproximou. Eu não poderia encontrar um pupilo mais capacitado. Ninian se mostra sempre ansioso a aprender e progride de uma maneira extraordinária. — Lancei um olhar para Artur. — Mas por que está me perguntando? Você teve prova de seu talento. Sua visão foi verdadeira. — Oh, eu não duvido de sua capacidade. — Artur falou secamente e captei uma leve ênfase na última palavra. — E então? O que está tentando me dizer? — Eu mesmo não estava preparado para o tom de desagrado que coloriu minha voz. — Lamento, Merlin, mas tenho de dizer que duvido das intenções dele em relação a você. Embora Artur tivesse sinalizado antes de dar o golpe, ele me atingiu com uma força paralisadora. Senti o sangue fugir de meu coração. Parei e virei-me para encará-lo. Não sou de me encolerizar com facilidade e nunca me irritava com Artur. Passaram-se apenas alguns instantes antes de eu poder falar num tom neutro: — Seja o que você tem a dizer, é melhor falar agora. Ninian é mais do que meu assistente, ele já está se tornando meu segundo eu. Se um dia fui um cajado para sua mão, Artur, ele será um outro quando eu morrer. Você pode não gostar do rapaz, apesar de eu não ver motivos para isso, porque mal o conhece, mas vai ter de aceitá-lo, queira ou não. Eu não viverei para sempre e Ninian tem o poder. — Sei disso, e é o que me aflige. — Artur virou-se, tirando o olhar do meu. — Será que você não entende, Merlin? Ele tem o poder, foi ele quem teve a visão e não você. Você me diz que estava cansado, doente, mas desde quando seu deus dá importância a esse tipo de coisa? E não foi uma vidência trivial, algo que poderia passar desapercebido de você. Foi por causa dela que eu estava perto da fronteira de Rheged quando Caw morreu e pude apoiar Gwarthegydd, impedindo, por graça de Deus, uma guerra entre todos aqueles príncipes. Por que então a visão não veio para você? — Será que tenho de ficar repetindo? Eu... — Já sei, você estava doente. Por quê? Eu não respondi. Um silêncio caiu entre nós. Uma brisa começou a soprar, trazendo o cheiro de mel. A égua pastava ao nosso lado e o cachorro sentara-se junto aos pés de seu dono e olhava para ele com adoração, com a língua de fora. Artur se mexeu e começou a falar de novo, mas eu o impedi. — Por que você insinua... Não, não responda. Sei muito bem o que está querendo dizer. Que acolhi esse rapaz, me encantei com ele, abri-lhe todos os segredos de minhas poções e um pouco de

magia, e agora ele está tramando para tomar meu lugar e usurpar meu poder. É isso? Um leve sorriso encurvou os lábios de Artur, mas seu olhar continuava sombrio. — Você nunca gostou de ambigüidades, não é? — Eu jamais escondi a verdade, especialmente de você. — Então, meu querido, você nem sempre vê toda a verdade. Por algum motivo, a delicadeza do tom mexeu comigo, tocando-me com uma premonição. Olhei para ele, intrigado. — Estou disposto a aceitar isso. Todavia, já que dificilmente posso imaginar que toda esta conversa derive de uma vaga suspeita, devo supor que você saiba de alguma coisa sobre Ninian que eu não sei. Se for isso, porque não me contar e deixar a meu cargo a avaliação da importância dessa informação? — Muito bem, mas... — Uma mudança em sua expressão me fez virar para acompanhar seu olhar. Ele olhava para um pequeno vale abaixo de nós, onde corria um regato ladeado por olmos e salgueiros, atrás do qual ficava a encosta relvada que protegia Applegarth. Por entre as ramagens vi algo azul se mexendo. Ninian. Ele devia ter se levantado cedo e se inclinava sobre a beira do riacho. Quando se endireitou, estava com coisas verdes nas mãos. Sim, ali crescia agrião e hortelã. Ele parou um instante, como se separando as plantas que tinha colhido, depois saltou o riacho e correu encosta acima, com a capa azul voando atrás de si como se fosse uma vela de navio. — E então? — falei. — Eu ia dizer que é melhor descermos para lá. Temos de conversar e com certeza existem meios mais confortáveis para isso do que ficarmos parados aqui, um diante do outro, no alto do mundo. Você ainda me deixa sem jeito, Merlin, mesmo quando sei que estou com a razão. — Não foi essa minha intenção. Desçamos, se é o que você quer. Artur puxou a cabeça da égua para ela parar de pastar e foi à frente, dirigindo-se para o bosque junto ao regato, onde havia um tronco caído. Prendeu as rédeas num arbusto e convidou-me a sentar nele a seu lado. Ele começou sem rodeios. — Ninian já lhe contou alguma coisa sobre sua família? Sua casa? — Não, nunca lhe pedi isso. De início imaginei que viesse de uma família pobre de uma das aldeias do lago, mas ele não tem nem a aparência nem o modo de falar dos camponeses. Desconfio que é um bastardo e nós dois sabemos muito bem como perguntas são desagradáveis nessa situação. — Bem, eu não tive seus escrúpulos e fiquei intrigado com Ninian desde que o vi em Applegarth, por isso quando voltei comecei a perguntar sobre ele. — E o que descobriu? — O bastante para saber que ele o vem enganando desde o princípio. — Em seguida, com um soco na coxa de pura exasperação: — Merlin, Merlin, será que você é cego? Eu juraria que não existe um homem capaz de ser enganado desse jeito se não o conhecesse bem... Mesmo agora há pouco, vendo Ninian aqui, você não viu nada? — E o que eu deveria ver? Imagino que veio pegar casca de bétula. Ele sabe que estamos precisando. Além disso, estava carregando agrião. — Está entendendo? Seus olhos são bons para isso, mas não para ver o que qualquer outro

homem neste mundo teria visto, senão na hora, pelo menos alguns dias depois! Eu desconfiei assim que o vi em seu pátio, enquanto você me contava o "sonho verdadeiro" e as indagações que fiz só confirmaram minha suspeita. Olhe, Merlin, nós dois vimos a mesma pessoa correndo encosta acima, só que você viu um rapaz carregando agrião e eu vi uma moça. Não consigo lembrar a que altura do sermão de Artur eu soube o que ele iria me contar, mas o fato é que bem antes dele terminar o conhecimento chegou a mim como uma verdade já conhecida: o calor antes das tempestades, o silêncio depois do raio, cheio do trovão que se aproxima. O que o sábio mago com suas visões enviadas pelo deus não percebera, o homem ainda jovem, versado nos modos das mulheres, vira desde o início. Era verdade. Só me restou a surpresa de ter sido tão fácil de enganar. Ninian. A figura mal vista na névoa, tão parecida com o menino perdido que eu a saudara e colocara as palavras "menino" e "Ninian" em sua mente antes mesmo de ela poder falar. Contei-lhe que era Merlin, ofereci-lhe a dádiva de meu poder e magia, dádivas que outra moça, a bruxa Morgause, tentara inutilmente extrair de mim, mas que eu me apressara ansioso para depositar nos pés de uma estranha. Não era de admirar que ela precisara de bom tempo para pensar, arrumar sua vida, cortar os cabelos, providenciar outras roupas e reunir coragem antes de se apresentar a mim, que se recusara a dividir a casa comigo, que não mostrava interesse especial em Mora, embora estivessem sempre conversando e rindo. Então Mora já sabia? Afastei esse pensamento enquanto outros chegavam aos borbotões. A rapidez com que ela aprendera, o poder, com todo o sofrimento que causava, aceito com resignação e finalmente com alegria. O olhar, grave, delicado, os gestos de uma veneração cuidadosamente oferecida e contida. O modo como se afastara aborrecida quando eu dissera que as mulheres só serviam para perturbar os homens, a rápida condenação de Guinevere por se entregar a um amor sofrido, traindo um marido bom, grandioso. Depois, com as lembranças se acelerando, a seda de seus cabelos sob minhas mãos, as linhas suaves de seu rosto, os olhos cinzentos voltados para as chamas e o amor perturbador que tanto me afligia e com o qual agora não precisava mais me preocupar. Ocorreu-me, como se fosse o sol penetrando por entre as árvores, tocando as esquecidas florezinhas azuladas do bosque onde, muito tempo atrás, uma jovem me oferecera amor e depois caçoara de minha impotência, que desta vez nenhum deus ciumento precisaria se interpor entre nós. Finalmente eu estava livre para dar, somado a todo o poder, esforço e glória que eu podia oferecer, a virilidade que até agora pertencera apenas ao deus. A abdicação de meus poderes que eu tentava aceitar sem mágoa não seria uma perda, mas sim uma nova alegria recebida. Voltei para o sol e para um outro bosque, para ver Artur olhando fixamente para mim. — Você não parece surpreso. Já tinha adivinhado? — Não, mas deveria. Senão pelos sinais tão óbvios para você, pelo modo que me sentia... como me sinto agora. — Sorri diante de seu olhar. — Oh, sim, um velho tolo, se quiser, mas agora sei com certeza que meus deuses são misericordiosos. — Por que você pensa que ama essa moça? — Porque a amo. — Pensei que você fosse um sábio. — E porque sou um sábio, sei bem demais que o amor não pode ser contestado. Aconteça o que acontecer daqui por diante, é tarde demais. Aconteceu e só... Não, ouça. Agora tudo está perfeitamente claro, como sol batendo na água. Todas as profecias que fiz, coisas futuras que eu antecipava com temor... Eu as vejo chegando a mim e o temor desapareceu. Sempre digo que a profecia é uma arma de dois gumes, os deuses entregam em nossas mãos as ameaças e as promessas de boa sorte. — Ergui a

cabeça e olhei o céu por entre as folhas que se moviam suavemente. — Uma vez eu lhe disse que tinha visto meu próprio fim nas chamas. Eu me vi na caverna em Gales e minha mãe, muito nova, cujo nome era Niniane, e o jovem príncipe, meu pai, deitados lado a lado. Então, através dessa cena, eu me vi de cabelos grisalhos tendo ao meu lado uma moça com uma cascata de cabelos escuros e brilhantes, de olhos fechados, que pensei também ser Niniane. E era mesmo. Está vendo? Se ela vier a ter alguma participação em meu fim, será algo bom. Artur levantou-se com um movimento tão abrupto que seu cão, cochilando aos seus pés, ergueuse de um salto como se tivesse pressentido um perigo. Ele deu três passos afastando-se de mim e depois voltou para me encarar. Bateu um punho fechado na outra mão com tal violência que a égua sobressaltou-se e imobilizou-se trêmula, com as orelhas empinadas. — Você acha que vou ficar aqui sentado, ouvindo-o falar de sua própria morte? Uma vez você me disse que terminaria enterrado vivo numa tumba, que imaginava ficar em Bryn Myrddin. Agora só falta me pedir permissão para voltar para lá com essa... essa bruxa, para ela poder prendê-lo lá! — Não é bem assim. Você não entendeu... — Entendi tão bem como você e creio que me lembro melhor das coisas! Já se esqueceu da maldição de Morgause: que você terminaria envolvido por magia de mulheres? E que a rainha Ygraine, minha mãe, lhe disse, num certo dia, que se Gorlois da Cornualha morresse ela passaria o resto da vida rezando a todos os deuses que existem para você morrer traído por uma mulher? — E daí? — Sorri. — Eu não fui envolvido? Não fui traído, enganado? Aconteceu, só isso. — Ter certeza? Desculpe-me, mas tenho de lembrá-lo de novo que você não conhece as mulheres. Morgause, por exemplo, ela tentou persuadi-lo a lhe ensinar sua magia e, quando não conseguiu, procurou o poder de um outro jeito... o jeito que conhecemos. Agora essa Ninian foi bem sucedida onde Morgause fracassou. Diga-me, Merlin, se ela tivesse se apresentado como é na verdade, como mulher, você a teria acolhido e lhe ensinado sua arte? — Não sei dizer. Provavelmente não. Mas a verdade é que não foi ela quem tramou esta situação. Isto aconteceu devido a um erro meu, causado pelo destino que me levou primeiro a encontrar e amar o menino Ninian, que morreu afogado. Se você não consegue ver o deus operando aqui, lamento. — Sim, sim — disse Artur, impaciente. — Mas você mesmo acaba de dizer que a profecia é uma arma de dois gumes. Talvez o que agora você vê com alegria seja a morte que tanto receava. — Não, você deve encarar a situação de outra maneira. Um futuro há muito temido pode, ao chegar, se mostrar agradável, como esta "traição". O meu constante pesadelo de terminar enterrado vivo, no escuro, pode estar querendo me dizer algo bem diferente do que eu imaginava. Todavia, seja o que vier, não posso evitá-lo. O que terá de vir, virá. O deus escolhe a hora e o modo. Depois de todos esses anos, se eu não confiasse nele, seria mesmo o tolo pelo qual você me toma. — Quer dizer então que pretende mesmo ficar com essa moça e lhe ensinar sua arte? — Exatamente. Mesmo porque agora não posso mais parar. Lancei nela as sementes do poder e, como toda a certeza, como se fosse uma árvore germinando ou uma criança concebida, não posso impedir seu crescimento. E outra semente foi lançada, para o bem ou para o mal. Eu a amo de todo o coração e, se ela fosse dez vezes mais a bruxa que você imagina, eu só posso agradecer meu deus pela sua presença a meu lado. — Não vou suportar ver você sofrendo. — Ela não me fará sofrer.

— Mas, se o fizer — disse Artur mantendo o mesmo tom —, bruxa ou não, amante ou não, lidarei com ela da forma que merece. — Ele suspirou. — Bem, parece que não há mais nada a dizer. É melhor voltarmos. — Não, espere um pouco. Tem mais uma coisa. — Sim? Artur estava em pé diante de mim e eu continuava sentado no tronco. Contra o rendado das folhagens que balançavam suavemente na brisa matutina, ele se destacava alto e poderoso, e as jóias que brilhavam em seu ombro e cinturão pareciam ter vida própria. Estava pleno da abundância da vida, um homem no auge de sua força, um líder de reis. Examinei seu rosto e não vi nele nada que pudesse me avisar do que diria, do que poderia fazer depois de eu ter lhe contado. Eu falei vagarosamente: — Já que estivemos falando de coisas derradeiras, preciso lhe contar sobre uma delas. Foi uma outra visão que tenho o dever de lhe revelar. É algo que vi, não apenas uma vez, mas várias. Bedwyr, seu amigo, e Guinevere, sua rainha, se amam apaixonadamente. Eu desviara o olhar dele enquanto falava, não querendo ver como seria recebido o golpe. Suponho que esperava ira, uma explosão de violência, no mínimo uma surpresa e furiosa descrença. Em vez disso houve silêncio, um silêncio tão longo que finalmente olhei para cima, para ver em seu rosto nenhuma das expressões que imaginava, mas um tipo de calma severamente mantida, temperada apenas pela compaixão e tristeza. — Você sabia? — Eu mal podia acreditar nessa reação. — Sim — disse ele simplesmente. — Eu sei. Houve uma pausa enquanto eu procurava por palavras sem encontrá-las. Artur sorriu e havia algo nesse sorriso que não falava de juventude e poder, mas de uma sabedoria talvez muito maior, por ser puramente humana, do que a atribuída a mim. — Eu não tenho a vidência, Merlin, mas sou capaz de ver o que se passa diante de meus olhos. Você acha que outros, que adivinham e murmuram, não fizeram questão de vir me contar? Às vezes penso que os únicos que não insinuam por meio de olhares ou palavras são os próprios Bedwyr e Guinevere. — Há quanto tempo você sabe? — Desde o caso com Melwas. E eu nunca adivinhara. Sua bondade em relação à rainha, o alívio e a felicidade crescente que ela demonstrara... — Então por que você deixou Bedwyr com ela quando foi para o norte? — Para deixá-los ter alguma coisa, por mais pequena que fosse. — O sol batia em seus olhos, fazendo-o franzir o cenho. Ele mudou de posição e disse vagarosamente: — Há pouco você disse que o amor não pode ser governado ou impedido. Se você se sente preparado para aceitar o amor, mesmo que ele venha a lhe causar uma morte vergonhosa, por que não devo aceitar o que está acontecendo, sabendo que não pode destruir a amizade ou a confiança? — Você acredita nisso? — Por que não? Tudo o mais que você já me disse mostrou ser verdade. Pense em suas profecias

sobre meu casamento, a "sombra branca" que viu quando Bedwyr e eu éramos meninos, a guenhwyvar que tocou nós dois. Você disse então que ela jamais macularia ou destruiria a confiança que tínhamos um no outro. — Sim, lembro-me bem. — Certo. Quando me casei com a primeira Guenever, você me avisou que esse casamento poderia ser mau para mim. Aquela menina, me fazer mal? — Artur riu sem alegria. — Bem, agora sabemos a verdade sobre a profecia. Já vimos a sombra branca e agora ela está caindo sobre Bedwyr e mim. Diga-me, Merlin, para não destruir a confiança que temos um no outro, que atitude você me aconselharia tomar? Tenho que dar ao meu mais querido amigo, meu irmão, a confiança e respeito que ele merece. Por acaso sou um aldeão, com nada em minha vida senão uma mulher e uma cama, das quais tenho ciúmes, como um galo cantando em seu monte de estéreo? Não, Merlin, eu sou um rei e vivo a vida de um rei. Guinevere é uma rainha e não tem filhos, portanto sua vida é pior do que a de outras mulheres. Deverá ficar esperando pelo marido meses após meses numa cama fria? Passear, cavalgar, comer com um lugar vazio a seu lado? Ela é jovem, Merlin, e tem necessidade de carinho e companheirismo. Terei muito que agradecer ao seu deus, ou qualquer outro, se nos inúmeros dias em que eu for obrigado a me afastar da corte, no caso de ela desejar levar um homem para sua cama, o escolhido seja Bedwyr. E o que mais posso fazer? Qualquer coisa que eu diga a ele atingirá a raiz da confiança profunda que temos um no outro e não seria nada diante do que já aconteceu. O amor, como você mesmo falou, não pode ser contestado. Por isso fico calado, e você também ficará, e esse silêncio manterá intactas a confiança e amizade. Dentro desse quadro, podemos considerar uma dádiva o fato de a rainha ser estéril. — Novamente o sorriso sem alegria. — Portanto, para nós dois, Merlin, o deus escreve direito por linhas tortas, concorda? Eu me levantei. A brisa afastou as folhagem das árvores e os raios do sol incidiram diretamente no regato. O brilho feriu meus olhos, que começaram a lacrimejar. — Você entendeu bem, Artur? — falei tranqüilamente. — Esta é a bênção final. Você provou que não precisa mais de minha força ou de meus conselhos. Se daqui por diante você tiver necessidade de um aviso ou profecia, continuará encontrando-os aqui em Applegarth. No que me diz respeito, peço que permita que seu servo parta em paz, de volta ao meu lar e às minhas colinas, e ao que possa estar me esperando lá. — Peguei minha cesta com as plantas e toquei no ombro de Artur. — Mas, enquanto isso não acontece, quer vir comigo e conversar com Ninian?

10 Quando chegamos a minha casa ela parecia deserta. Ainda era muito cedo, Varro não chegara para trabalhar e eu vira Mora de longe, com a cesta no braço, dirigindo-se para o mercado do vilarejo próximo. Levamos a égua para a cocheira e em seguida entramos na casa. A moça estava ali, sentada na banqueta perto da janela, lendo. No peitoril, não muito longe dela, um passarinho comia as migalhas ali colocadas. Ela devia ter ouvido o cavalo e pensado que um mensageiro chegara de Camelot, porque mostrou claramente que não imaginava que iria se defrontar com o rei em pessoa. Quando entrei ergueu o rosto com um sorriso e um "bom dia" mas, ao ver Artur atrás de mim, levantou-se e ficou rolando o pergaminho nas mãos. — Vou deixá-los à vontade para conversarem — disse e, sem pressa, virou-se para sair. — Ninian! — chamei, querendo alertá-la, mas Artur passou rapidamente a minha frente e parou perto dela, examinando seu rosto. Eu fiz o mesmo. Agora que sabia da verdade, imaginei como pudera me deixar enganar tão facilmente. Não era o rosto de um rapaz de dezoito anos. Todavia, um rapaz de dezoito anos, mas ainda imaturo, poderia ter as faces lisas e a boca suave, mas mãos e pés não eram de homem. Só posso pensar que a lembrança que eu tinha de Ninian me fizera apegar-me a sua imagens aos treze anos. Meu desejo de tê-lo a meu lado fora forte o bastante para eu recriá-lo, primeiro na figura que eu avistava vagamente por entre a névoa do lago, e depois nessa moça, tão perto de mim, tão atentamente observada, mas não realmente vista, nos longos meses que estava comigo. Talvez, imaginei, ela viesse usando um pouco de minha magia contra mim, para me manter cego até conseguir seus propósitos. Ela estava ereta diante de nós, não precisando de magia para perceber o que sabíamos. Os olhos cinzentos encontraram-se com os meus por um átimo de segundo e voltaram-se para o rei. E difícil descrever o que aconteceu. Lá estava a sala, com sua calma e sombra habituais, cheia dos sons e aromas de uma manhã de primavera: rosas precoces e os goivos que ela plantara junto à janela, os troncos queimados na lareira (as noites ainda eram frias e ela insistira em acender o fogo para me aquecer enquanto eu lia), o canto do passarinho enquanto voava entre os galhos das macieiras. Uma sala normal, num dia de verão, onde, para uma pessoa comum, não estava acontecendo nada de especial. Apenas três pessoas em silêncio, numa pausa da conversa. Para mim, contudo, subitamente o ar esfriou e senti a carne se contrair em meus ossos e minha pele se arrepiarem. Nem o rei nem a moça pareciam notar. Ela o observava com um ar grave, sem temor, que para qualquer outro pareceria expressar apenas um vago interesse. Meu corpo, no entanto, todo captava as forças que rodopiavam entre os dois. Os olhos cinzentos enfrentavam os escuros que pareciam querer penetrá-la. O ar vibrava entre eles. Então Artur fez um ligeiro aceno com a cabeça e levantou a mão para soltar a capa do ombro. Vi a boca da moça mover-se com uma sombra de sorriso. O recado fora dado. Por mim, Artur a aceitaria. E, por mim também, ela aceitaria o julgamento. A atmosfera da sala voltou ao normal e peguei a capa de Artur para colocá-la sobre um banco. A moça disse: — Posso trazer o desjejum? Mora estava com tudo pronto, mas você se demorou e ela queria ir cedo ao mercado para pegar as coisas mais frescas.

A mesa já estava posta. Ela se afastou e voltou trazendo pão, mel, mingau de aveia, uma jarra de leite e uma de hidromel, que colocou perto do rei, antes de tomar seu lugar habitual, a minha frente. Continuava sem olhar para mim e, quando lhe servi uma caneca de leite, agradeceu sem erguer a cabeça. — Seu nome — disse o rei. — É Niniane? — Sim — respondeu ela, enquanto passava mel no pão. — Mas sempre me chamaram de Nimue. — Seus pais? — O nome de meu pai era Dyonas. — O rei das ilhas do Rio? — Ele mesmo. Já morreu. — Sei disso. Ele lutou ao meu lado em Viroconium. Por que você saiu de sua casa? — Fui enviada para servir à dama, na ilha de Vidro. Era desejo de meu pai. — Uma sombra de sorriso. — Minha mãe era cristã e, quando estava à beira da morte o fez prometer que me mandaria para a ilha, embora eu só tivesse seis anos na época. Sei que ela queria me ver na igreja de lá, mas meu pai não aceitava o que ele chamava de novo deus. Era um iniciado de Mitra. Foi levado para lá por meu avô durante o reinado de Ambrosius. Assim, quando chegou a hora de ele cumprir o juramento que fizera, levou-me para a ilha, mas para servir a Boa Deusa no santuário ao sopé do Tor. — Compreendo. Eu também entendi. Como uma das ancillae do templo ela com certeza estava lá por ocasião da festa de ação de graças depois das batalhas de Caer Guinnion e Caerleon. Ao me ver ao lado do rei deve ter pensado que seria extremamente difícil para ela um dia se aproximar do príncipe-mago e aprender qualquer uma das grandes artes. Então, naquela noite eu colocara a chave em sua mão. Fora preciso muita coragem para usá-la, mas isso era algo que tinha de sobra. Artur continuava o interrogatório: — E você queria estudar magia. Por quê? — Meu senhor, eu não saberia lhe dizer. Por que uma pessoa quer aprender música, por que um pássaro tenta voar? Quando fui para a ilha, encontrei um pouco de magia e aprendi tudo o que elas tinham para ensinar, mas continuava sedenta de saber. Então um dia eu vi... — Ela hesitou pela primeira vez. — Vi Merlin no santuário. O senhor sabe quando foi. Mais tarde ouvi contar que ele estava morando aqui e pensei que, se eu fosse um homem não hesitaria em procurá-lo, porque sendo um sábio veria que a magia está em meu sangue e não se negaria a me ensinar. — Sim, lembro-me desse dia. Houve uma cerimônia de ação de graças. Mas, se você estava lá, como não me reconheceu na primeira vez que estive aqui? Ela ficou vermelha como fogo. Pela primeira vez seu olhar desviou-se do de Artur. — Na verdade eu não o vi lá, meu senhor. Como lhe disse, eu só tinha olhos para Merlin. Houve uma pausa seca de silêncio, como acontece quando se coloca a palma da mão nas cordas da harpa, matando o som. Vi a boca de Artur abrir e fechar, e depois um lampejo de bom humor em seu rosto. Ninian, com os olhos fixos na mesa, não percebeu nada. Ele me lançou um olhar de moleque, esvaziou o copo e sentou-se na cadeira. Quando falou, sua voz continuava com a mesma expressão, mas o desafio terminara; ele abaixara a espada.

— Mas você sabia que Merlin dificilmente iria aceitá-la como pupila, mesmo se a dama do santuário aceitasse sua saída do claustro. — Sim, sabia e não tinha esperanças, mas depois que vi Merlin passei a me conformar ainda menos com a vida entre todas aquelas mulheres. Elas se contentam em passar ano após ano fazendo suas pequenas mágicas, preces e encantamentos, sempre olhando para o passado, para o tempo das lendas... É difícil explicar, mas quando alguém sente algo dentro de si mesmo, uma coisa que queima para se libertar... O senhor deve saber do que estou falando. Eu continuava não nascida, bicando aflita a casca do ovo, ansiosa por ar fresco. No entanto, sabia que o único modo de sair da ilha seria um homem fazer uma oferta por mim e isso eu não aceitaria, nem se meu pai estivesse vivo para me obrigar. Artur balançou a cabeça, concordando e, pensei, compreendendo. — Então? — Não era fácil nem mesmo encontrar tempo para ficar sozinha. Eu ficava observando e esperando a oportunidade para sair de lá de vez em quando, só para me entregar aos meus próprios pensamentos, ver a água e o céu... Então, na noite em que a rainha Guinevere desapareceu e a ilha estava em tumulto, eu... receio que eu só conseguia pensar que não haveria ocasião melhor para sair sem que notassem minha falta. Eu sabia onde havia um bote, já o tinha usado, e escapei de lá sabendo que ninguém me veria naquela neblina. Logo depois Merlin, que vinha pela estrada da margem, falou comigo. — Ela fez uma pausa. — Acho que o senhor já sabe do resto. — Sim. Então, quando surgiu a oportunidade, o deus, como você diria, já que é pupila de Merlin, o fez confundi-la com o menino Ninian e convidou-a a aprender com ele. — Sim. — Nimue abaixou a cabeça. — Logo que ele falou, fiquei muito confusa. Era um sonho se tornando realidade, nem sei direito o que respondi naquela hora. Mais tarde me dei conta de que ele me tomara por um menino que conhecera anos antes. — E como você acabou saindo do santuário? O que disse à dama? — Que eu fora convocada para uma missão mais elevada. Não dei explicações, mas deixei que ela imaginasse que eu ia voltar para a casa de meu pai, onde tentaria me casar com meu primo, que agora é o rei das ilhas do Rio. Ela não fez objeções, não interferiu. Claro que não, pensei, aquela senhora orgulhosa, cheia de si, ficara mais do que grata de se livrar de uma adepta que ameaçava brilhar mais do que ela. Sim, entre as mocinhas vestidas de branco, essa jovem fada devia brilhar como um diamante colocado sobre fibras de Unho. Atrás de mim, o passarinho voltou a empoleirar-se no peitoril e ouvi-o bicando as migalhas de pão. Duvido que Nimue ou Artur tivessem percebido sua presença. As perguntas tinham mudado de rumo: — Você precisa de fogo para suas visões, ou, como Merlin, consegue ver até em gotas de água? — Tive a visão com Heuil em gotas de orvalho. — E foi uma e verdadeira visão. Certo. Parece-me então que você já possui algo do poder maior. Bem, não temos fogo aqui, mas quer olhar para mim de novo e ver se existe algum outro aviso nas estrelas? — Não consigo ver nada por encomenda. Mordi o lábio para não sorrir. Reconheci meu próprio tom quando eu era jovem, confiante e um tanto pomposo. Vi que Artur tivera a mesma impressão, mas ele disse gravemente:

— Desculpe-me. Eu devia saber. Artur levantou-se e pegou a capa que eu colocara numa cadeira. Houve uma falha perceptível na compostura de Nimue enquanto se apressava para ajudá-lo. Ele estava se despedindo de mim, mas mal o ouvi. Minha própria compostura caíra em ruínas. Eu, que nunca me vira sem palavras, agora não conseguia pensar no que deveria dizer. O rei chegou à porta. O sol bateu nas pedras preciosas do broche que prendia a capa no ombro. — Rei Artur! — disse Nimue rispidamente. Ele virou-se. Se achou o tom peremptório, não demonstrou. Ela continuou: — Se sua irmã, a rainha Morgan, vier a Camelot, tranque sua espada e esteja alerta para traições. Artur pareceu surpreso e depois disse rispidamente: — O que está querendo dizer com isso? Nimue hesitou, também surpresa com que acabara de dizer. Depois levantou as mãos num gesto de impotência. — Não sei, meu senhor. E não posso dizer mais nada. Perdoe-me. — Bem... — Artur virou-se para mim, ergueu as sobrancelhas, encolheu os ombros e depois saiu. Houve um silêncio tão longo que o passarinho se atreveu a entrar na sala e comer as migalhas da mesa. — Nimue — falei. Ela então olhou para mim e notei que, apesar de não ter mostrado o menor receio do rei, estava com medo de me enfrentar. Sorri para ela e vi, para minha grande surpresa, os olhos cinzentos se encherem de lágrimas. Estendi as mãos e as dela vieram encontrá-las. No final não houve necessidade de palavras. Não ouvimos o cavalo do rei descer a colina nem, muito mais tarde, Mora voltar do mercado para encontrar o desjejum praticamente intocado.

Livro 4 – BRYN MYRDDIN

1 Assim, quando eu já estava caminhando para o final de minha vida, encontrei um novo começo, um começo no amor para nós dois. Eu não tinha prática e Nimue, desde a infância destinada a ser uma das donzelas do lago, nunca pensara muito no assunto, mas o que tivemos foi o suficiente e muito mais, e ela, apesar de ser muitos anos mais nova do que eu, parecia feliz e satisfeita. Eu, que tantas vezes me xingara de velho tolo, caduco e imprudente, sabia que tais termos não se aplicavam realmente a mim. Entre mim e Nimue existia um vínculo muito maior do que poderia existir entre um casal no auge da juventude e força. Éramos a mesma pessoa, fazíamos parte um do outro como noite e dia, crepúsculo e amanhecer, sol e sombra. Quando nos deitávamos juntos, ficávamos no limiar da vida onde os opostos se fundem, criando novas entidades, não de carne e osso, mas de espírito, resultando em um prazer da mente junto com o prazer do corpo. Não nos casamos. Hoje em dia, olhando para trás, creio que jamais pensamos em cimentar nosso relacionamento dessa maneira, primeiro porque não estava bem claro que ritos deveríamos usar e depois porque nenhum deles seria tão forte como o laço que nos unia. Com a passagem dos dias e noites daquele doce verão, fomos ficando cada ver mais íntimos, como se feitos de um molde comum. Acordávamos sabendo que tínhamos compartilhado do mesmo sonho; conversávamos à noite sabendo o que o outro fizera e aprendera naquele dia e, durante todo o tempo, como eu acreditava, cada um abrigava dentro de si seu próprio e crescente júbilo, eu em vê-la experimentando as asas do poder, como um forte e jovem pássaro dominando pela primeira vez os ares; ela em perceber que eu me conformava sem mágoa com a diminuição de meu poder. E assim se passou o agradável mês de junho e chegamos à época do alto verão, em que as abelhas zumbiam o dia inteiro sugando o néctar das flores de lavanda. Num deles Nimue pediu a Varro para selar o cavalo castanho, que ganhara de Artur, despediu-se de mim com um beijo e tomou o rumo do lago. Aquela altura, é claro, já era de conhecimento geral que a antes serva da deusa agora vivia com Merlin em Applegarth. Houve muita especulação e mexericos, mas eu sabia que no fundo estavam todos impressionados com o impulso que levara a jovem e bela moça para a cama do idoso mago. A atitude do Grande Rei, deixando claro através de presentes, visitas e palavras que nosso relacionamento tinha sua aprovação, pôs fim a esses comentários e até mesmo a Dama do Lago mandou dizer que suas portas estavam abertas para Nimue, talvez, como caçoava minha amada, na esperança de que um dia o santuário herdaria alguns dos segredos de Merlin. Nimue não saía de casa com freqüência, mas gostava de ir à ilha, e não podia ser culpada por estar um pouco vaidosa de sua nova posição nessas primeiras semanas, querendo se mostrar para amigas que tinha entre as ancillae da deusa. Ainda não fora sem mim a Camelot e eu adivinhava o que ela não dizia: que, mesmo gozando do apoio do rei, tinha dúvidas sobre como seria recebida na corte ao apresentar-se sozinha. Nimue prometeu que me traria algumas plantas do jardim que cercava o poço sagrado e estaria em casa ao entardecer. Quando a vi desaparecer na estrada, coloquei um chapéu de palha, peguei meu saco de remédios e subi a colina para visitar uma mulher que se recuperava de um ataque de febre. O dia estava fresco e eu caminhava com passos leves, ouvindo o alegre canto dos pássaros e acompanhando a trilha ladeada de flores perfumadas. É só do que me recordo. Em seguida — como se tudo coubesse num único segundo — o mundo escureceu e as estrelas se apagaram em fagulhas que se espetaram em meus olhos e cérebro. Eu estava deitado de costas na relva, olhando para elas. Os arbustos cheios de flores se fecharam sobre mim e, pouco a pouco, como se minhas sensações estivessem vindo de uma infindável distância, percebi que seus espinhos picavam meus braços e mãos. As estrelas cintilavam no chão à minha volta. Por todos os

lados havia um grande silêncio, como uma respiração contida. Então, acima de mim, bem alto no céu negro, um outro ponto de luz começou a crescer. Eu não podia me mexer e continuava deitado ali, como se estivesse sozinho na curva do mundo, observando a estrela. Logo em seguida, com um brilho intolerável, ela descreveu um arco, deixando atrás de si uma longa cauda de luz em forma de dragão. — O dragão! O dragão! Vejam onde ele cai! — ouvi alguém gritar, mas logo soube que a voz era minha. Luzes e mãos, e o rosto de Nimue, branco sob a luz do lampião, com Varro atrás dela e um jovem que reconheci vagamente como um pastor que estava sempre perto de casa. E vozes. "Está morto?" "Não, venha, vamos cobri-lo, está gelado." "Ele está morto, senhora." "Não! Nunca! Não acredito, não aceito! Faça o que estou mandando!" Depois, com angústia: "Merlin, Merlin!" E uma voz de homem, temerosa: "Quem vai avisar o rei?" Depois um vácuo de tempo, minha cama e o sabor de vinho quente com ervas, e outro longo espaço, dessa vez trazido pelo sono. Agora chegamos à parte de minha crônica que é a mais difícil de contar. Se é ou não verdade que o cometa com cauda de dragão veio anunciar o fim dos poderes mais elevados do mago Merlin, como afirma a crença popular, o fato é que não tenho certeza se o que me lembro foi real ou um sonho. Isso aconteceu no ano em que viajei com Nimue. Olhando agora para o passado, vejo cena após cena, como reflexos passando ao lado de um barco, sendo quebrados pelos remos. Ao longo da semana que se seguiu ao ataque que sofri no alto da colina, passei a maior parte do tempo sentado no pátio, não por fraqueza, mas por insistência de Nimue e também porque eu precisava de tempo para pensar. Então, no crepúsculo de um dia quente, chamei-a para perto de mim. Ela sentou-se no lugar habitual, uma almofada aos meus pés, e recostou a cabeça em meus joelhos. Acariciei os cabelos sedosos e espessos, que estavam crescendo, tendo passado dos ombros. Como acontecia com freqüência, perguntei-me como eu não conseguira ver desde o primeiro dia as curvas femininas de seu corpo e as linhas delicadas do pescoço e da testa. — Você esteve muito ocupada esta semana — falei. — Sim, tive de colher as ervas e pô-las para secar. Serviço caseiro, nada de grande importância. — Terminou com elas? — Quase. Por quê? — Estive aqui sem fazer nada enquanto você trabalhava, mas pensei muito. — Em quê? — Entre outras coisas, em Bryn Myrddin. Você nunca esteve lá e, portanto, antes de o verão acabar, partiremos daqui e... — Deixar Applegarth? — Ela afastou-se de mim com uma expressão de desgosto. — Você quer voltar a morar em Bryn Myrddin... nós dois... — Não — sorri. — É interessante, mas nunca consegui imaginar nós dois vivendo lá. E você? Ela voltou a repousar a cabeça em meus joelhos. Permaneceu em silêncio por alguns instantes e depois falou numa voz que saiu abafada:

— Não. Nunca vi o lugar, nem em sonhos, mas você me contou que vai morrer lá. E o que está querendo dizer? — Não. — Voltei a afagar seus cabelos. — Sei que isso vai acontecer, mas ainda não tive nenhum aviso e nunca me senti tão bem como agora. Mas encare a situação desta maneira: quando minha vida terminar, a sua deve começar e, para que isso aconteça, você tem de fazer o que fiz um dia e entrar na caverna de cristal para ter a visão. Já falamos sobre isso, você sabe. — Sim, sei. — Ela não pareceu ter se tranqüilizado. — Muito bem — falei alegremente —, iremos para Bryn Myrddin, mas só no final de nossa viagem. Primeiro veremos muitos lugares e coisas diferentes. Quero que você conheça onde passei parte de minha vida e que veja as coisas que eu vi. Já lhe contei o máximo que pude, agora chegou a hora de conhecê-las pessoalmente. Entendeu? — Acho que sim. Você está me dando a soma de sua vida, sobre a qual construirei a minha. — Exatamente. Para você, as pedras com que edificará a vida que deseja ter. Para mim, a coroa e a colheita. — E depois de eu ver tudo... — Ela ainda parecia tristonha. — Só o deus sabe o que acontecerá. — Achando graça, acariciei novamente seus cabelos. — Vamos, menina, que cara é essa? Vamos partir numa viagem de núpcias, não numa procissão de funeral. Nossas viagens talvez tenham um propósito, mas encontraremos prazer nelas, pode ter certeza. Faz tempo que eu vinha considerando isso, não pense que tem alguma relação com minha saúde. Temos vivido felizes aqui em Applegarth e será um prazer voltar para cá, mas você ainda é jovem demais para ficar aqui de asas fechadas, ano após ano. Por isso vamos viajar. Para ser sincero, desconfio que meu verdadeiro objetivo é apenas lhe mostrar os lugares que conheci e amei. Nimue endireitou-se, parecendo muito mais à vontade. Seus olhos começaram a cintilar. Era jovem, muito jovem. — Um tipo de peregrinação? — disse entusiasmada. — Sim, pode chamá-la assim. — Você está falando de Tintagel e Rheged, do lugar onde encontrou a espada e do lago onde a deixou esperando pelo rei? — Muito mais do que isso, minha querida. Por mais que me desagrade — fiz uma careta —, temos de navegar até a Bretanha Menor. Minha história e a do Grande Rei sempre estiveram ligadas, como a sua também estará, à espada Caliburn. Quero lhe mostrar onde o deus se manifestou me dando o primeiro sinal sobre ela e, para isso, devemos partir logo. Os mares agora estão calmos, mas dentro de um mês, um mês e pouco, começarão os vendavais. — Então vamos partir agora mesmo! — Subitamente ela era apenas prazer sem complicação, uma mocinha entusiasmada com uma viagem empolgante. — Oh, acho que não tenho nada adequado para usar... Assim, no dia seguinte mandei um mensageiro a Camelot e uma semana depois Artur veio pessoalmente me dizer que os navios e escolta estavam prontos e que poderíamos partir quando quiséssemos. No final de julho, quando zarpamos do ancoradouro da ilha, Artur e a rainha acenavam com votos de boa viagem. Bedwyr, ao nosso lado, mostrava no rosto um misto de sofrimento e alívio em se afastar

de Guinevere. Ele fora designado para chefiar a escolta que nos acompanharia até a corte do rei Hoel da Bretanha Menor, primo de Artur, na cidade de Kerrec. Nunca pretendi registrar nesta crônica nossa viagem, passo a passo, crônica e de fato, como já expliquei anteriormente, não seria capaz de fazê-lo. Fomos primeiro para a Bretanha Menor, disso eu me lembro bem, onde passamos o outono e inverno como hóspedes de Hoel. Mostrei a Nimue as estradas que atravessavam a floresta e a humilde estalagem onde Ralf, meu pajem, cuidara do pequeno Artur durante aqueles anos perigosos. Mas já daqui por diante minhas recordações são confusas. Enquanto escrevo posso vê-las todas, passando umas pelas outras como fantasmas que assombram há séculos e séculos um castelo abandonado. Cenas claras: Artur ainda bebê, dormindo numa manjedoura. Meu pai, olhando-me à luz da candeia, dizendo: "O que acontecerá à Bretanha?" Os druidas envolvidos em sua obra assassina em Nemet. Eu, apenas um menininho assustado, me escondendo na estrebaria. Ralf galopando por entre as árvores vindo me buscar a mandado de Hoel. Nimue a meu lado, sentada na relva da mesma clareira por onde a corça branca passara como por mágica, atraindo o perigo para longe de Artur. E, por entre essas, outras lembranças mais confusas: os veados correndo por entre os carvalhos no santuário de Nodens, o animal branco, com olhos de rubi, magia sobre magia. Mas, permeando tudo, como uma tocha reacesa para uma nova busca, as estrelas, o deus sorridente, a espada. Sei, e com certeza, que estivemos fora até o verão seguinte. Posso até registrar com bastante exatidão o dia de nossa chegada. Cador, duque da Cornualha, tinha morrido e desembarcamos num país em completo luto por um grande guerreiro e grande soberano. No entanto, não consigo lembrar qual de nós, Nimue ou eu, recebeu o aviso de que era hora de voltarmos e onde deveríamos aportar. O fato é que ancoramos perto de Tintagel dois dias depois da morte de Cador, e logo avistamos Artur e seu séqüito. Tendo visto nossas velas ele, que já estava na capital para o funeral, viera ao cais para nos saudar. Antes mesmo de saltarmos para a terra vimos os escudos cobertos, as flâmulas abaixadas e o branco não enfeitado do luto e entendemos o que nos trouxera de volta. Cenas como essas surgem com facilidade e completamente iluminadas. Mas então aparece a capela onde Cador estava sendo velado pelos monges e o quadro se desfaz e mais uma vez me vejo diante do ataúde de seu pai, esperando pelo fantasma do homem que eu traí. Tintagel, em luto pelo duque Cador, me parece menos real do que a fortaleza varrida pelas tempestades onde Uther, deitado com Ygraine, mulher de Gorlois, gerou Artur para a Bretanha. E é assim que vejo o tempo que veio em seguida. Depois de Tintagel fomos para o norte. A memória ou o sonho aqui, nesta longa escuridão, me mostra as graciosas colinas de Rheged, as nuvens nos pontos mais altos da floresta, os lagos piscosos e refletido na superfície de seu próprio lago, Caer Bannog, onde escondi a grande espada que mais tarde deveria ser de Artur. Depois vejo a Capela Verde, onde naquela noite lendária, Artur finalmente a pegou na mão. Dessa forma, como eu fizera anos antes, seguimos a espada, mas numa viagem alegre e sem compromissos, mas alguma coisa, uma intuição que eu não podia garantir se era profética ou produto da prudência, me fez calar sobre a outra busca que às vezes eu divisava por entre as sombras. Essa não seria para mim e sua hora ainda não havia chegado, assim não falei nada sobre Segontium ou sobre o lugar onde jaziam profundamente enterrados os outros tesouros que tinham vindo com a espada para o Ocidente. Finalmente chegamos a Galava, um final feliz para uma agradável viagem. Fomos recebidos com grande alegria pelo conde Ector, agora gordo com a idade e boa vida devido ao longo período de paz, que com uma piscadela apresentou Nimue para Drusilla como: "A esposa do príncipe Merlin, enfim". E ao lado dele estava meu fiel Ralf, corado de prazer, orgulhoso como um pavão de sua esposa bonita e

quatro meninos robustos, ávido por notícias de Artur e do sul. Fomos alojados no quarto da torre, onde eu ficara me recuperando do veneno de Morgause. Passava um pouco da meia-noite e estávamos deitados, vendo o luar tocar o cume das colinas, quando Nimue, acomodando o rosto no meu ombro, perguntou: — E daqui, para onde iremos? Bryn Myrddin e a caverna de cristal? — Acho que sim. — Se sua terra for tão bonita como aqui, é possível que eu concorde em deixar Applegarth... — Ouvi um sorriso em sua voz. — ...pelo menos no verão. — Eu não disse que chegaríamos a isso. Mas agora quero saber de uma coisa: para a última etapa de nossa viagem de núpcias, você prefere voltar pelas estradas do oeste ou pegar um navio em Glannaventa para chegar a Maridunum por mar? Houve uma pausa e depois Nimue disse: — Mas por que você está me pedindo isso? Pensei... — Pensou? Outra pausa. — Pensei que você ainda tinha mais para me mostrar. Percebi que suas intuições eram tão confiáveis como as minhas. — O que, minha querida? — Você me contou tudo sobre a espada, me mostrou tudo o que aconteceu com essa maravilhosa Caliburn que é o símbolo do poder do rei e que dá a Artur o direito de reinar. Mostrou-me os lugares onde teve as visões que o levaram a encontrá-la, onde a escondeu até Artur crescer e onde finalmente ele a pegou nas mãos, mas nunca me contou como você a encontrou. Pensei que essa fosse a última coisa que você iria me mostrar antes de me levar para casa. Não respondi. Ela ergueu-se, apoiou a cabeça na mão e ficou olhando para mim. O luar deslizou nela, tornando-a uma coisa feita de prata e sombra, iluminando os graciosos contornos do rosto, pescoço e seios. Sorri acompanhando o brilho do ombro com a ponta do dedo. — Como posso pensar e responder, com você me olhando desse jeito? — Não brinque — disse ela, respondendo ao meu sorriso. — Por que nunca me contou? Por acaso tem outras coisas lá, que pertencem ao futuro? Sim, pela intuição ou vidência ela sabia. Comecei vagarosamente: — Sim, ainda existe um mistério, só um, e sim, de novo, é para o futuro. Ainda não consegui vêlo com clareza mas, antes de Artur se tornar rei, fiz uma profecia para ele. Aconteceu entre o encontro da espada e a hora em que foi retirada do altar, quando o futuro ainda me aparecia no fogo. Lembro-me bem do que eu disse... — Sim? — "Vejo uma terra próspera, com o milho crescendo rico nos vales e os lavradores arando seus campos em paz, como faziam no tempo dos romanos. Vejo uma espada esquecida e descontente, e os dias de paz de estendendo até se esgarçarem em querelas e divisões, gerando a necessidade de uma empreitada para espadas indolentes e espíritos famintos. Talvez o deus tenha tirado o cálice e a lança de mim para voltar a enterrá-los para que você um dia venha a decidir procurar pelo resto dos tesouros de Macsen. Não, não você, mas Bedwyr... é o espírito dele, não o seu, que terá fome e sede e se saciará nas

fontes erradas." Um longo silêncio. Eu não podia ver os olhos de Nimue porque estavam cheios de luar. Ela então sussurrou: — O cálice e a lança? O tesouro de Macsen, de novo escondido no solo para ser objeto de uma empreitada, uma busca maior do que a feita pela espada? Ela parecia ansiosa, não espantada, mas ansiosa, como um corredor avistando sua meta. Quando ela vir o cálice e a lança, pensei, inclinará a testa diante da magia que eles possuem. Mas, como é muito jovem, vê os instrumentos de força somente como armas em suas mãos. Achei melhor não lhe dizer: "E a mesma busca, porque para que serve a espada do poder sem a satisfação do espírito? Todos os reis agora são um único rei. Chegou a hora dos deuses se tornarem um único deus e é no cálice que está a unicidade que os homens procurarão e pela qual morrerão, e morrendo, viverão". Calei-me por alguns instantes enquanto Nimue me observava, imóvel. Eu podia sentir o poder emanando dela, meu próprio poder agora muito mais forte nela do que em mim. Experimentei apenas cansaço e um certo pesar. — Conte-me, querido — sussurrou ela, decidida. — Está bem — sorri e falei com suavidade. — Mas farei melhor ainda, eu a levarei até lá e lhe mostrarei o que existe para ver. O que resta do tesouro de Macsen está enterrado no templo arruinado de Mitra em Segontium, que é chamado de Caer-y-n'a Von, próximo de Y Wyddfa. Por enquanto é só isso que posso lhe dar, exceto meu amor. Lembro-me que ela disse: "E isso seria suficiente, mesmo sem o resto", enquanto se abaixava para me beijar. Depois que Nimue adormeceu, fixei meu olhar na lua cheia e luminosa, que me pareceu ficar por horas emoldurada pela janela do quarto, me recordando de como, muito tempo antes, quando era menino, acreditava que essa visão me traria tudo o que o coração desejasse. O que existira naqueles tempos: poder, profecia, dedicação, amor, eram coisas do passado e o desejo de meu coração agora estava ao meu lado, dormindo em meus braços. E a noite enluarada estava vazia de futuro, vazia de visão. Todavia, como tênues fantasmas do passado, eu ainda ouvia as vozes. A voz de Morgause, cuspindo sua maldição: "Tem mesmo certeza de que está protegido da magia das mulheres, Merlin? Ela acabará lhe agarrando". E, por entre ela, a voz de Artur, furiosa, mas cheia de amor: "Não suporto ver você sofrendo" e "Bruxa ou não, amante ou não, eu a tratarei como merece". Puxei o corpo jovem de Nimue para mais perto de mim, beijei com infinita delicadeza as pálpebras cerradas e respondi aos fantasmas, às vozes, à lua vazia: "Era a hora, deixem-me em paz". Depois, entregando a mim e meu espírito a Deus, que por tantos anos me carregara nas mãos, acomodei-me para dormir. Essa foi a última coisa que sei ter sido verdadeira, e não apenas um sonho na escuridão.

2 Quando eu era criança, em Maridunum, dormia com minha babá num quarto no andar térreo da ala dos serviçais do palácio de meu avô. Junto à janela havia uma macieira onde no fim da tarde um tordo vinha cantar, anunciando a chegada da noite. Depois as estrelas apareciam, espiando por entre os galhos da árvore, e eu, deitado na cama e quieto, muito quieto, tentava ouvir a música que elas produziam ao caminhar pelo céu, como me contaram. Agora, afinal, tive a impressão de ouvi-la. Estava deitado e confortavelmente coberto e, pelo movimento que percebia, sendo transportado numa liteira. Uma grande escuridão me envolvia e, bem acima de mim, eu via o veludo da noite cheio de estrelas que saltitavam e rodopiavam, tilintando como pequenos sinos. Eu era parte do chão que se mexia, transmitindo a vibração para o meu corpo, e parte da imensa escuridão que me envolvia. Eu nem mesmo tinha certeza se meus olhos estavam abertos. Minha última visão, pensei debilmente, o desejo de meu coração, sempre fora esse, poder ouvir, antes de morrer, a música das estrelas... Então descobri onde estava. Devia haver pessoas perto de mim. Eu ouvia vozes em tom baixo, mas parecendo vir de muito longe, como num quarto de doente. Criados carregavam a liteira e seus braços me transmitiam calor. A vibração no solo era resultado de seus passos lentos. Não, não era uma visão iluminada pelas esferas cantantes; eu era apenas um velho doente, ainda preso à terra, sendo carregado lentamente para casa, no silêncio impotente de minha enfermidade. A música que acreditara vir das estrelas eram apenas os sininhos em arreios de mulas. Não sei quanto tempo levou, mas finalmente a liteira se nivelou no alto de uma longa subida e um arco de calor passou sobre mim. Mais pessoas, vozes por todos os cantos, alguém chorando. Sim, eu tivera um outro ataque da doença e fora trazido para Bryn Myrddin. Mais confusão depois disso. As vezes eu achava que continuava viajando com Nimue, porque ora lhe mostrava as ruas de Bizâncio, ora caminhávamos pelas montanhas em torno de Berytus. Ela me trouxe a poção que preparara, tocando meus lábios com o copo. Então era sua boca que estava na minha, e nela eu sentia o gosto de morangos e ouvia os lábios murmurando doces encantamentos, enquanto a caverna se enchia de fumaça de precioso incenso. Velas por todos os lados e a luz amarela e bruxuleante iluminando meu falcão, meu pequeno merlin, empoleirado numa saliência da rocha sobre a entrada da caverna, esperando pelo sopro do deus em suas penas. Galapas sentado perto do braseiro, desenhando os primeiros mapas para mim na areia fina do chão, e agora, perto dele, o menino Ninian ajoelhado, estudando-os com seus olhos graves e gentis. Ele olhou para cima e vi que era Artur, vivido e impaciente, com dez anos de idade... depois Ralf, jovem e emburrado... e finalmente era o menino Merlin, atendendo a uma ordem de seu mestre e entrando na caverna de cristal. E vieram as visões. Eu as vi de novo, os sonhos que haviam fervilhado em minha mente infantil nesta mesma caverna. Dessa vez Nimue segurava minha mão e viu-as comigo, estrela por estrela, e então levou o elixir aos meus lábios, enquanto Galapas, o menino Merlin, Ralf, Artur e o menino Ninian foram se dissipando e sumiram como os fantasmas que eram. Apenas as lembranças permaneceram e agora elas estavam trancadas no cérebro de Nimue como haviam ficado trancadas no meu, e seriam dela para sempre. Através de tudo, embora eu não tivesse a sensação de tempo, ele ia passando e os dias se sucederam e eu continuava deitado no estranho limbo criado por um corpo inerte e uma mente ativa, enquanto pouco a pouco, como uma abelha suga o néctar de uma flor, Nimue, a maga, extraía de mim, gota a gota, a essência de todos meus dias de vida.

Então, numa madrugada, ouvindo os primeiros passarinhos cantarem e a brisa quente do verão trazendo para dentro da caverna o perfume das flores e do feno cortado, acordei de um longo sono e me descobri curado da enfermidade. O tempo de sonhos terminara e eu estava vivo, completamente acordado. Estava também completamente sozinho na escuridão, salvo por um estreito raio de sol que se infiltrava por uma fresta que ficara esquecida quando eles tinham puxado as pedras e cascalho para fechar a boca da caverna e ido embora, deixando-me vivo minha tumba. Eu não tinha meios de saber por quanto tempo ficara deitado ali, naquela morte em vida. Tínhamos ido a Rheged em julho e, pelo que eu percebia, ainda era verão. Três semanas, no máximo um mês... Se tivesse sido por muito mais do que isso, eu certamente estaria mais fraco. Até o último longo e profundo sono, fora tratado com meus próprios elixires estimulantes e remédios, e por isso, embora ainda estivesse rígido e extremamente debilitado, tinha todas as probabilidades de viver. Não havia a menor esperança de mover as pedras que selavam minha tumba, mas eu talvez conseguisse atrair a atenção de alguém que passasse por ali. Esse local era um santuário desde tempos imemoriais e pessoas do vale subiam regularmente o monte levando oferendas para o deus que guardava a fonte sagrada ao lado da caverna. Era bem possível que agora esse ponto tivesse se tornado ainda mais santo, porque Merlin, o profeta do Grande Rei, mas que primeiro fora o médico dessa gente humilde, estava enterrado ali. Enquanto ele vivia, costumavam lhe trazer vinho e alimentos de presente e com certeza continuariam a vir com ofertas para aplacar o espírito do morto. Portanto, engolindo o medo, ergui o corpo e, apesar da tontura e fraqueza, comecei a avaliar minha situação. Eles tinham me posto em minha própria cama, que ganhara cortinados de um tecido que ao toque parecia rico e engomado, e que agora, visto sob a luz do pequeno raio de sol cintilava em bordados feitos em ouro e pedras preciosas. Apalpei a mortalha que me cobria; espessa e quente, com desenhos em alto-relevo. Acompanhei as linhas com a ponta do dedo: o dragão. Mais acostumado com a semiescuridão, vi nos quatro cantos da cama pesados castiçais dourados, que, junto com o resto, me indicaram que eu fora encomendado com pompa e honras reais. Então o rei estivera ali? Gostaria de me lembrar. E Nimue? Compreendi que eu devia dar graças às minhas próprias profecias por ter recebido esse tipo de funeral e não enterrado ou incinerado. O pensamento fez um arrepio percorrer todo o meu corpo, mas também me impeliu a agir. Olhei para as velas. Três delas tinham se acabado, mas a outra, que se apagara por um motivo qualquer, ainda estava com uns dois palmos de altura. Toquei a cera derretida no castiçal mais perto de mim. Mole. Calculei que fazia doze horas, no máximo quinze, que haviam sido acesas antes de eu ser emparedado. O quarto ainda estava quente e, se eu quisesse me manter vivo, devia tomar providências para que continuasse assim. Recostei-me no travesseiro alto e duro, puxei a mortalha com o dragão dourado até o queixo, fixei o olhar na vela apagada e pensei: vamos tentar. Porém, a mais simples das mágicas, a primeira que aprendera nesse exato lugar, também fora tirada de mim. O esforço me deixou exausto e voltei a dormir. Acordei para ver a luz do sol caindo rosada num canto distante da caverna principal, mas a que me servia de quarto estava cheia de lua. A vela queimava com uma chama quente e dourada, e um brilho me revelou duas moedas de ouro caídas sobre a mortalha. Lembrei-me vagamente do peso que saíra de meus olhos quando eu acordara e me mexera, e calculei que o ritual tivera de se completar com os bolos e vinhos deixados ao lado do ataúde. Ao vê-los perto de mim, agradeci em voz alta a Deus por ter me guardado, e sentei-me para comer. Os bolos estavam secos, mas tinham gosto de mel e o vinho forte correu pelas minhas veias

trazendo-me nova vida. A luz da vela afastou os últimos vestígios de medo. — Emrys — ouvi-me sussurrar. — Emrys, filho da luz, amado dos reis... você foi avisado de que seria enterrado vivo e ficaria na escuridão, privado de seus poderes, e agora veja: aconteceu mesmo e não é tão assustador como parecia. Você está enterrado, e vivo, mas tem luz e ar e, a não ser que tenham saqueado a caverna, água, alimentos, calor e remédios... Tirei a vela do pesado castiçal e fui examinar as cavernas interiores que funcionavam como despensa. Tudo estava exatamente como antes, sem dúvida graças a Stilicho, um criado mais do que leal. Fossem quais fossem os motivos para preservar o lugar, lá estavam, fileiras após fileira, caixa em cima de caixa, meus precisos suprimentos e também jarros de ervas, poções e elixires, tudo o que eu não levara para Applegarth. Um verdadeiro tesouro de esquilo: frutas secas e nozes, favos de mel em vasilhas bem fechadas, um barrilete de azeitonas conservadas em azeite. Dentro de uma caixa encontrei as bolachas de aveia que um dia a mulher de Stilicho fizera para mim. Estavam duras como pedra, mas sem o menor sinal de mofo, e então coloquei algumas de molho no vinho. O bujãozinho de fubá estava quase cheio e, com o azeite eu poderia fazer um tipo qualquer de pão. Água havia em quantidade. Logo que eu viera morar na caverna mandara um homem instalar um cano para transportar água da fonte para um tanque escavado na pedra mantido sempre coberto, me garantindo água potável mesmo em dias de tempestade e nevascas. O excesso de água, que saía por meio de um ladrão, corria para o canto de uma remota câmara interna, onde a pedra era cheia de fissuras, servindo de privada. No que dizia respeito à iluminação, encontrei um bom estoque de velas e as iscas e pederneiras no seu lugar habitual, a estante formada por uma saliência da rocha. Embora eu tivesse uma boa pilha de carvão, hesitei em acender o braseiro com medo de fumaça e miasmas, e também pensando que precisaria muito mais do calor no futuro. Se meus cálculos sobre o tempo estavam corretos, em menos de um mês o verão estaria terminado e o outono chegando com seus ventos frios e umidade letal. Portanto, de início, enquanto as brisas quentes do verão se infiltravam pela caverna, eu usava luz apenas quando precisava ver para preparar a comida e ir à privada. As horas se arrastavam na escuridão. Todos os meus livros haviam sido levados para Applegarth, mas os materiais para escrita continuavam na caverna e, à medida que os dias foram se passando e eu recuperei o suficiente de minhas forças para começar a me afligir com a inatividade do cativeiro, ocorreu-me a idéia de registrar na devida ordem a história de minha infância e dos tempos que vivera e ajudara a moldar. Era uma pena, porque a música podia ser criada na escuridão, mas a harpa grande fora junto com meus livros e a pequena, minha constante companheira, não fora trazida com as outras riquezas que tinham vindo para ornamentar a casa do morto. Nem preciso dizer que pensei muito em sair de minha tumba, mas os que tinham me deixado ali e me dado como homenagem o monte sagrado e tudo o que havia em seu interior, tinham-no usado para me lacrar em seu ventre, porque me parecia que metade da encosta fora solta e usada como uma avalanche para fechar a boca da caverna. Tentei várias vezes, mas mal consegui raspar algumas pedras. Sem dúvida alguém com as ferramentas certas poderia abrir uma passagem com muito tempo de trabalho, mas eu costumava guardar as pás, martelos e picaretas na co-cheira que ficava abaixo do rochedo. Explorei também outras possibilidades. Além das cavernas que eu usava, existiam outras menores interligadas, formando uma ramificação que avançava morro adentro. Uma delas era pouco mais do que um tubo vertical, como uma pequena chaminé, que atravessava as camadas de rocha até abrir-se num afloramento na superfície do monte. Nesse lugar, muitos anos antes, uma grande pedra se rachara com a intempérie e a pressão das raízes da vegetação, formando a abertura que deixava entrar a luz e às vezes pedrinhas e água de chuva, e através da qual os morcegos da caverna faziam seus vôos diários. Com o

tempo a pilha de pedriscos caindo na câmara abaixo dela fora crescendo formando um tipo de plataforma, atingindo cerca de um terço da altura do chão até a "clarabóia" ou "lanternim", como se poderia chamar aquele buraco. Quando, me enchendo de esperanças, fui inspecionar a plataforma para ver se ela crescera um pouco mais, tive uma decepção, porque o espaço até o primeiro trecho do estreito túnel vertical ainda tinha no mínimo a altura de três homens, medida que se repetia no trecho inclinado que começava íngreme e depois se tornava mais suave até chegar à abertura. Uma pessoa magra e ágil teria uma pequena probabilidade de escalar esse poço, apesar de em certos pontos a rocha ser limosa e em outros flagrantemente insegura, mas para um homem idoso e recém-recuperado de uma terrível enfermidade era uma empreitada impossível. O único conforto da descoberta foi o fato de ter encontrado ali uma "chaminé", o que significava que nos dias frios que viriam eu poderia acender o braseiro nessa câmara. Obviamente pensei em fazer uma fogueira, na esperança da fumaça atrair a atenção dos curiosos, mas duas coisas me impediram. Primeiro, as pessoas que viviam na redondeza estava acostumadas a ver os morcegos saírem do interior do monte ao anoitecer e de longe eles sempre davam a impressão de ser um fio de fumaça se elevando do meio das pedras. Em segundo lugar, e mais importante, eu precisava economizar combustível. Portanto, só me restava conservar meus preciosos suprimentos e esperar que alguém subisse do vale para visitar o poço sagrado. Mas ninguém apareceu. Vinte, trinta, quarenta dias foram marcados na tábua que eu designara para isso. Reconheci com relutância que as pessoas que antes costumavam vir rezar para o espírito da fonte, e oferecer presentes para o curador em carne e osso que os atendia nas horas de necessidade, atualmente sentiam medo do mago recém-falecido e das assombrações da colina oca. Como a trilha que saía do vale não tinha outro destino senão a caverna de Merlin, não era utilizada por viajantes eventuais. Nada passava por ali exceto os pássaros, veados e pequenos animais, como um lobo ou raposa que ouvi fungando à noite no entulho que bloqueava a entrada da caverna. Assim os dias foram se arrastando e continuei vivo, procurando conter o medo de todas as maneiras que eu conhecia. Eu escrevia, elaborava planos para escapar, me enfronhava nos afazeres domésticos e não me envergonho em dizer que muitas vezes recorri ao vinho e aos opiatos para entorpecer meus sentidos e me ajudarem a matar o tempo. Todavia, nunca me entreguei ao desespero. Apesar desse longo período enterrado vivo, eu continuava confiando no deus que sempre obedecera, que me dera e tirara o poder. Se eu estava vivo e recuperando a força e a vontade, ele devia ter algum desígnio para mim. Penso que foi com isso em mente que me finalmente tomei coragem de subir para a caverna de cristal. Durante um bom tempo, sabendo-me debilitado e sem poder, eu não me atrevera a enfrentar o lugar de vidência, mas, numa certa noite, depois de horas no escuro porque precisava economizar velas, tomei a decisão de galgar as saliências no fundo da caverna principal e dobrando o corpo, me esgueirei para o interior daquele extraordinário geodo. Creio que procurava apenas o conforto das lembranças do poder passado e do amor. Não levei nenhum tipo de luz nem tentei ver nada. Fiquei deitado de bruços sobre os cristais ásperos do chão, deixando o pesado silêncio em envolver, enchendo-o com meus pensamentos. Não me recordo deles. Suponho que foram orações mentais. Todavia, depois algum tempo tomei consciência, como se percebe, mais do que se vê, a chegada da madrugada depois de uma noite escura, de algo que respondia a minhas respirações. Não um som, apenas o levíssimo eco de um hálito, como se um fantasma estivesse acordando, para isso extraindo vida de mim.

Meu coração começou a bater forte, minha respiração se acelerou. Na escuridão o outro ritmo se apressou. O ar da caverna vibrou. Um sussurro bem conhecido ressoou pelas paredes curvas, cobertas de cristais. Senti as lágrimas fáceis da fraqueza física encherem meus olhos. Disse em voz alta: — Então a trouxeram de volta para cá? — E, falando da escuridão, a pequena harpa me respondeu. Arrastei-me na direção do tom e meus dedos tocaram a madeira sedosa, viva. O pilar anterior se aninhou em minha mão tal como Caliburn se aninhava na mão do rei. Comecei a recuar para sair, silenciando o levíssimo planger da harpa contra meu peito e, com o máximo cuidado, desci para a caverna principal. Foi esta a música de compus. Eu a chamei de A Canção de Merlin em Sua Sepultura. Para onde foram os iluminados? Lembro-me da luz do sol e de um grande vento soprando; De um deus que me respondia, Falando das estrelas distantes; Na estrela que para mim brilhava, Da voz que me falava, Do falcão que me guiava, Do escudo que me guardava; E do claro caminho para o portão Onde sou esperado. Serei mesmo esperado? O dia se vai. O vento morre. Eles se foram, os iluminados. Só eu permaneço. De que adianta me chamar, Se agora não tenho luz para dar? De que adianta pedir A mim, que sou apenas a sombra

De minha sombra, Apenas a sombra De uma estrela que caiu Há muito e muito tempo? Uma canção leva tempo para ser composta, são necessárias várias versões de cada trecho até dála por terminada, por isso não consigo me recordar do dia exato em que a estava cantando e tomei consciência de um som incomum que vinha martelando em minha cabeça ao longo de vários compassos. Parei de tocar, encostei a palma da mão nas cordas para silenciá-las e me concentrei para ouvir. Os batimentos de meu coração soaram altos no ar parado da caverna, mas sob essa pulsação havia uma outra, parecendo vir do âmago do monte. Não é de admirar que depois de tanto tempo afastado do mundo comum, só consegui pensar em coisas relacionadas com as antigas lendas: Llud, os caçadores da noite, os habitantes das colinas ocas, a morte finalmente vindo me buscar... Em menos tempo do que duas respirações, cheguei à verdade, mas foi tarde demais. O viajante que eu tanto esperara no começo. Sem dúvida subira o monte, passara pelo rochedo onde havia o lanternim e ouvira a música. O barulho eram as patas de um cavalo inquieto. Eu já colocara a harpa de lado e avançava aos trambolhões para a câmara da clarabóia quando o ouvi gritar: — Tem alguém aí? Tentei responder enquanto me aproximava, mas a garganta seca e o coração aos saltos me impediram. Então finalmente gritei: — Sou eu, Merlin! Não tenha medo, não sou um fantasma. Estou vivo e preso aqui. Abra uma saída para mim, em nome do rei! Minha voz foi abafada pela súbita confusão de ruídos vindos de cima. Foi fácil adivinhar o que tinha acontecido. Homem e animal se assustando, o cavalo empinando, patas batendo no rochedo, pedrinhas caindo pela abertura. Gritei de novo e ouvi um galope em retirada. Não pude culpar o viajante pelo seu medo. Mesmo se não soubesse que estava sobre a tumba de Merlin, com certeza tinha conhecimento de que aquela era uma das colinas ocas e ouvir música saindo dela, ao anoitecer... Voltei para pegar a harpa. Nenhum dano. Guardei-a, como guardei a esperança de salvamento, e fui preparar o que eu chamava, por falta de pior palavra, de meu jantar...

3 Cerca de duas ou três noites depois desse acontecimento, algo me acordou durante a noite. Abri os olhos na total escuridão, imaginando o que poderia ter perturbado meu sono. Então ouvi o barulho. Raspadas vigorosas, pedras rolando, terra caindo. Vinha do poço da clarabóia. Um animal qualquer, pensei, atraído pelo cheiro de comida. Puxei as cobertas, virei-me e fechei os olhos. Mas os sons continuaram fortes, persistentes e foram se tornando impacientes, com ruídos que indicavam mais do que um propósito animal. Sentei-me de novo, tenso como uma corda de harpa. O cavaleiro teria voltado? Quem sabe contara sua história e outra pessoa, mais corajosa, se dispusera a investigar? Respirei para gritar mas me contive. Não deveria assustá-lo, como fizera antes. Sim, eu esperaria ele falar primeiro. Ele não disse nada. Aparentemente só lhe interessava abrir caminho pela abertura no rochedo. Mais pedregulhos e terra, e depois o tilintar de uma ferramenta, seguido de palavrões. Uma voz de homem rude. Houve uma pausa e depois os sons recomeçaram, mostrando que agora ele usava instrumentos mais pesados, uma pá ou picareta. Nada me faria gritar nesse momento. Ninguém disposto a investigar uma história estranha agiria em tanto silêncio. A atitude óbvia seria a do primeiro homem, que primeiro chamara antes de tentar entrar pela abertura. E mais, por que vir sozinho, na calada da noite? Alguns minutos de reflexão me fizeram chegar à provável verdade. Um ladrão de tumbas, algum bandido que ouvira boatos sobre um sepultamento digno de rei no monte de Merlin e que, depois de uma olhada para a boca da caverna onde teria constatado a impossibilidade de tentar cavar uma passagem, procurara uma abertura qualquer na superfície. Talvez até fosse alguém das redondezas, que sabia da existência da fenda no afloramento e cuja cobiça fora aguçada ao assistir a passagem do rico cortejo fúnebre. Poderia também ser um soldado que ajudara no fechamento da caverna depois da cerimônia, pretendendo voltar posteriormente para se apoderar das riquezas que vira de perto. Fosse quem fosse, era um homem de poucos nervos, pois teria de estar preparado para enfrentar a visão e fedor de um cadáver apodrecido, e até mesmo manipulá-lo para tirar as jóias e as franjas de ouro da mortalha e do travesseiro. E se encontrasse, em vez de um cadáver, um homem vivo? Um velho, debilitado por longos dias passados abaixo da superfície do solo e, sobretudo, um homem que todos jurariam estar morto? A resposta era fácil. Ele me mataria e roubaria a tumba do mesmo jeito. Levantei-me silenciosamente da cama e fui até a câmara da chaminé. Os sons de escavação continuavam, agora mais constantes e pela abertura alargada agora eu podia ver luz. O homem tinha um tipo qualquer de iluminação, o que era bom, pois isso me permitiria acender uma lamparina para facilitar minhas ações sem despertar sua atenção. Voltei para a caverna e preparei-me para recebê-lo. Se ficasse esperando com uma faca de cozinha ou alguma peça pesada, com certeza que não seria ágil e forte o bastante para atordoá-lo, e um ataque desse tipo significaria a morte para mim. Teria de encontrar um outro meio. Procurei pensar o mais friamente possível. Sim, a única arma que eu possuía era aquela que em muitas ocasiões do passado se mostrara muito mais poderosa do que punhais e lanças: o medo. Tirei as cobertas da cama e escondi-as bem fora de vista. Cobri o colchão com a mortalha bordada com pedras preciosas e acertei a posição dos grandes castiçais folheados a ouro. Ao lado da cama coloquei a taça que antes contivera o vinho e a travessa de prata com a borda cravejada de

ametistas. Fui buscar as moedas de ouro, o pagamento do barqueiro que me levaria para o reino das trevas, cobri-me com o manto de rei que tinham deixado para mim, apaguei a lamparina e deitei-me sobre a mortalha para esperar. Um barulho forte vindo do poço vertical, de entulho caindo na câmara e uma lufada de vento frio me avisaram que o homem terminara sua tarefa. Fechei os olhos, alisei as dobras do manto, cruzei as mãos sobre o peito, controlando o melhor possível minha respiração, e esperei. Creio que foi a coisa mais difícil que já fiz na vida. Em muitas ocasiões anteriores eu me vira diante do perigo, mas sempre tinha pelo menos unia idéia dos riscos que corria, sabia que haveria uma dor para enfrentar, mas que no final viria a vitória. Dessa vez eu não podia antecipar nada. Uma morte na escuridão em troca de algumas jóias poderia ser o final ignominioso que os deuses, com seus sorrisos zombeteiros, tinham me mostrado nas estrelas. Então, que fosse feita sua vontade. No entanto, não pude evitar uma súplica: Deus, se um dia eu o servi bem, deixe-me sentir de novo o ar doce da superfície antes de morrer. Houve um baque abafado quando o homem saltou para a câmara. Devia ter amarrado uma corda a uma das árvores junto ao rochedo e, como eu imaginava, estava sozinho. Sob o peso das moedas consegui ver uma claridade. Ele vinha tateando sob a luz fraca de sua lâmpada, caminhando vagarosamente sob o chão desigual da caverna. Eu podia sentir o cheiro de seu suor e o fedor do óleo barato sendo queimado, o que, pensei com satisfação, significava que ele não poderia captar de imediato os odores de comida e vinho, ou da lamparina que eu acabara de apagar. Sua respiração o denunciou. Com uma satisfação ainda maior, eu soube que valente ou não, o homem estava morrendo de medo. Ele me viu e parou. Ouvi o ar entrando em seus pulmões com o barulho de um chocalho. Obviamente se preparara para encontrar um cadáver em decomposição, e agora estava diante de um corpo intacto. Depois de alguns instantes, talvez se lembrando do que contavam sobre embalsamamento, praguejou baixinho e avançou pé ante pé. A luz balançava em sua mão. Com o cheiro e som de seu medo minha calma aumentou. Respirei raso, confiando que a chama bruxuleante e a fumaça o impediriam de notar algum movimento no cadáver. Ele parou de novo, como reunindo coragem e, finalmente, com outra respiração barulhenta, chegou bem perto da cama. Uma mão trêmula e úmida tirou as moedas de ouro de minhas pálpebras. Eu abri os olhos. Num único e breve lampejo captei toda a cena: o rosto moreno, de feições célticas, a roupa áspera de camponês, a pele bexiguenta brilhando de suor, a boca mole, gananciosa, os olhos estúpidos, a faca em seu cinto, afiada como uma navalha. Eu disse calmamente: — Bem-vindo ao mundo dos mortos, soldado. E do seu canto escuro, ao som de minha voz, a harpa murmurou uma resposta. As moedas caíram no chão, tilintando e rolando. A lâmpada as seguiu e seus pedaços se espalharam em óleo fumegante. O homem soltou um berro de medo como raramente eu ouvi em minha vida e, de novo, da escuridão, veio a nota fantasmagórica da harpa. Com um outro grito, ele virou nos calcanhares, saindo cegamente da caverna, dirigindo-se à câmara. Deve ter feito uma primeira tentativa para subir pela corda e soltou outro berro ao cair sobre o entulho. Depois o medo lhe deu forças; ouvi os

soluços arquejantes se afastando enquanto se esgueirava pelo túnel vertical. Depois os sons foram morrendo e eu me vi sozinho e seguro. Seguro em minha tumba. O homem levara a corda, talvez temendo que o fantasma do mago o seguisse por ela. O buraco que fora aberto mostrou-me um bom pedaço de céu onde brilhava uma estrela, distante, pura e indiferente. Uma lufada de ar entrou por essa janela e com ele veio o aroma inconfundível da madrugada se aproximando. Ouvi um tordo cantando por perto. Deus ouvira minha súplica. Eu sentira de novo o ar doce da superfície. Mas a vida estava tão distante de mim como antes. Voltei para a caverna principal como se nada houvesse acontecido e comecei os preparativos para passar um outro dia. E outro. E um terceiro. Nesse terceiro dia, depois de ter comido, descansado, escrito e meditado o máximo possível, venci o medo de ter outra decepção e fui à câmara para inspecionar o poço. O maldito ladrão de tumbas me deixara um fiapo de esperança: a pilha de pedras caídas aumentara quase um metro e apesar dele ter puxado a corda, deixara uma outra, que encontrei caída em um canto. Mas minhas esperanças caíram por terra: a corda era de má qualidade, pouco mais de um barbante comprido, o que me fez supor que o homem pretendia usá-la para amarrar uma trouxa com as peças menores de seu butim. O ladrão, contudo, me prestara um bom serviço. Antes eu perdera a esperança de escapar pela chaminé porque não conseguiria vencer a distância nem alargar a fenda com mãos nuas. Agora o buraco era grande e eu tinha o pé de cabra que ele deixara cair e um bom pedaço de barbante, o que me deu idéia de construir uma estrutura de madeira, um tipo de andaime que me levaria até a seção inclinada do túnel, em cujas paredes escavaria pequenos degraus para me apoiar na subida. Eu usaria pedaços de móveis e, quando o cordão acabasse, rasgaria tiras estreitas do manto para amarrá-los. No resto desse dia e no seguinte, trabalhando à luz vinda da janela, labutei na construção do andaime improvisado, com pensamentos de agradecimento para Tremorinus, o principal engenheiro de meu pai, que me ensinara seu ofício. Ele soltaria boas gargalhadas se fosse capaz de ver o grande Merlin, o artífice-engenheiro que suplantara seu mestre, o mago que restaurara a Ciranda dos Gigantes, erguer uma estrutura que causaria profunda vergonha no pior dos aprendizes. Depois, caçoando de mim, diria que eu só tinha de pegar a harpa e, imitando Orfeu, tocar para os pedaços de madeira dançarem e se juntarem para construir sozinhos o andaime. No entardecer do segundo dia de trabalho eu já estava com uma estrutura mais alta do que um homem, bem fixada por pilhas de pedra na base. Depois de admirar minha obra, acendi uma vela e preparei meu horrível jantar. Quando terminei de comer, como um homem procurando o conforto de uma amante, tomei a harpa nos braços e toquei até minhas pálpebras ficarem pesadas de sono e um acorde errado me avisar que era hora de dormir. Amanhã seria um outro dia. Cansado de minha lida, dormi a sono solto e acordei mais tarde do que o habitual à luz de um alegre fiapo de sol e ouvindo alguém me chamar pelo nome. Por um instante permaneci imóvel, imaginando que continuava imerso nas brumas de um sonho que muitas vezes já zombara de mim, mas então me tornei plenamente consciente do desconforto do chão da caverna (eu quebrara a cama para usar a madeira) e da voz. Vinha da abertura, uma voz de homem, afinada pelo nervosismo, mas que eu logo reconheci pelo sotaque incomum. — Meu senhor? Meu senhor, Merlin? O senhor está aí? — Aqui! Estou indo!

Apesar das juntas doloridas, levantei-me com a agilidade de um menino e corri para a câmara do lanternim. O sol se derramava pela abertura. Corri o mais rápido que pude para o pé da estrutura grosseira e olhei para o alto. O rosto e ombros de um homem contra um brilhante céu azul. De início quase não distingui nada devido à súbita claridade, mas ele devia estar me vendo perfeitamente, um velho desgrenhado, barbado, sem dúvida pálido como o fantasma que ele temia ver. — Pelo amor de Deus, não fuja! — gritei. — Não sou um fantasma! Fique! Me ajude a sair daqui! Stilicho, fique! Quase sem pensar eu identificara a pessoa pelo sotaque. Stilicho, o siciliano, meu antigo escravo a quem eu dera a liberdade e se casara com Mai, a filha do moleiro. Infelizmente, eu conhecia bem a gente de seu povo: crédulos, supersticiosos, sempre assustados diante do que não conheciam. Agarreime ao andaime com mãos trêmulas e obriguei-me a manter uma compostura que o tranqüilizaria. Vi a cabeça voltar vagarosamente para a abertura. Os olhos muito escuros arregalados, a palidez do medo, a boca aberta. Com um autocontrole que resultou numa onda de fraqueza, falei na língua natal de meu criado, bem claro e devagar: — Não tenha medo, Stilicho. Eu não estava morto quando me deixaram aqui. Foi um terrível erro. Estou preso aqui desde que acordei de um ataque. Não sou um fantasma, meu rapaz. Sou mesmo Merlin, vivo, e precisando desesperadamente de sua ajuda. Ele inclinou-se mais sobre a abertura. — Então o rei... todos os outros que estavam aqui... — Ouvi-o engolir com dificuldade. — Você acha que um fantasma teria construído este andaime? Nunca perdi a esperança de me salvar e foi isso que me fez suportar todos esses meses, mas pelo amor do Deus de todos os deuses, se você fugir sem me ajudar juro que morrerei antes do fim do dia. — As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Stilicho pigarreou. Parecia abalado, mas o medo diminuíra. — Então é mesmo o senhor? Disseram que estava morto e enterrado, e nós temos lamentado sua falta... mas deveríamos saber que sua mágica não o deixaria morrer. Balancei a cabeça e obriguei-me a continuar falando, sabendo que a cada palavra ele chegava mais perto de aceitar minha sobrevivência. — Não houve mágica, mas uma enfermidade que enganou todos vocês. Não sou mais um mago, Stilicho, mas agradeço a Deus por ser forte. Se não fosse assim, não teria suportado tanto tempo aqui. Agora, meu caro rapaz, quer me tirar daqui? Depois teremos muito tempo para conversar. Pelo amor de Deus, me ajude a sair daqui... Foi difícil. Eu já estava quase sem voz quando Stilicho disse que ia buscar ajuda. Desesperado, implorei que não me abandonasse mais um instante ali. Convencido, ele então deu alguns nós na corda que o ladrão deixara largada no chão, ainda presa à árvore, fazendo na extremidade livre uma alça para o pé e desceu cuidadosamente pelo poço. Em pouco tempo estava ao meu lado, na base do andaime. Teria dobrado o joelho e beijado minha mão, como costumava fazer, mas agarrei-me a ele com tanta ânsia que só lhe restou me abraçar, amparando-me com sua força de jovem. Em seguida me ajudou a voltar para a caverna principal.

Encontrou a única banqueta que tinha restado, me fez sentar nela, acendeu um lampião e me trouxe vinho. Depois de algum tempo consegui dizer com um sorriso: — E então, agora sabe que sou uma criatura de carne e osso, não um espírito? Foi muita valentia sua ter vindo e mais ainda ter ficado. Mas conte-me, o que o fez vir até aqui? Você é a última pessoa que eu imaginaria visitando um túmulo. — Eu não teria mesmo vindo, mas ouvi uma conversa que me deixou desconfiado — confessou ele sinceramente. — Eu sabia que o senhor era um grande mágico. Talvez por isso não fosse capaz de morrer como as outras pessoas. — Você ouviu uma conversa? Que conversa? — Bem, o garoto que me ajuda no moinho, Bran, é o nome dele, esteve ontem na cidade e contou que corria o boato de que o mago tinha ressuscitado e falado com um homem que estava bebendo numa das tavernas. Ele foi até lá e viu um monte de gente lhe pagando bebida enquanto o sujeito desfiava um monte de mentiras, mas fiquei intrigado... Mas o que aconteceu, meu senhor? Logo vi que alguém tinha estado aqui por causa da corda amarrada na árvore. Contei rapidamente sobre os dois homens que tinham vindo e depois falei: — O ladrão fugiu apavorado. Foi sorte você ficar sabendo de sua história e ter tido a coragem de vir antes dele mudar de idéia e voltar para tentar pegar o ouro. — Não vou fingir, meu senhor — disse Stilicho, com um olhar envergonhado. — Não é certo o senhor ficar elogiando minha coragem. Estive aqui ontem à noite. Não queria vir sozinho, mas se chamasse alguém poderiam caçoar de minha covardia. Mai também estava apavorada... Bem, dei uma olhada na boca da caverna e vi que continuava do mesmo jeito e então... então ouvi a harpa. Fugi correndo para casa. Peço-lhe perdão, meu senhor... — Mas você voltou. — Sim, não consegui dormir a noite inteira. Lembra-se de quando me disse que eu não devia sentir medo se a harpa tocasse sozinha? Que ela era muito sensível e capaz de vibrar se uma brisa passasse pelas cordas? Como me contou sobre a caverna de cristal, dizendo que lá eu sempre ficaria seguro? Bem, pensei em tudo isso e em como o senhor tinha sido tão bom para mim, me dando a liberdade e a vida que tenho agora. Então me decidi. Mesmo se for apenas o fantasma de meu senhor ou a harpa tocando sozinha na colina oca, nada de ruim pode me acontecer, meu amo nunca me faria mal... Então voltei e desta vez vim de dia. Pensei, se for um espírito, ele dormirá enquanto houver luz do sol. "E eu estava mesmo dormindo", pensei, estremecendo. Se eu tivesse me embriagado ou tomado algum sonífero na noite anterior, como fizera tantas vezes, não teria ouvido nada. — Bem — continuou Stilicho —, desta vez subi ao alto do monte e foi então que vi o branco da rocha quebrada há pouco tempo e a corda amarrada na árvore. — Stilicho, se algum dia fiz algo de bom para você, saiba que me recompensou mil vezes. Na verdade, você me salvou duas vezes. Se não tivesse deixado a caverna do jeito que a encontrei, eu teria morrido de fome e frio há muito tempo. — Mas agora temos de tirá-lo daqui — disse ele, olhando à sua volta. — Acho que o melhor modo seria eu ir buscar homens e ferramentas para abrir a boca da caverna. — Sim... Porém, agora que pude raciocinar, creio que enquanto eu não souber o que anda acontecendo nos vários reinos, seria melhor não "ressuscitar" de repente. Haveria muito falatório sobre

os poderes do príncipe Merlin e acho que o rei deve ser o primeiro a saber. Portanto, enquanto eu não conseguir fazer chegar a ele um recado pessoal... — Ouvi dizer que o rei está na Bretanha Menor. — E mesmo? E quem ficou como regente? — A rainha. Com Bedwyr. Houve um silêncio enquanto eu olhava para minhas mãos. Stilicho estava sentado de pernas cruzadas no chão e à luz fraca do lampião ainda era muito parecido com o garotinho que eu conhecera há tantos anos. Os olhos escuros e brilhantes estavam fixos em mim, cheios de admiração. Eu umedeci os lábios. — E a senhora Nimue? Sabe de quem estou falando? Ela... — Oh, claro, o mundo inteiro a conhece. Ela tem mágica como o senhor costumava... como ainda tem, meu amo. Está sempre perto do rei. Dizem que mora perto de Camelot. — Entendo. — Depois, recobrando minha compostura, falei: — Lamento, meu querido rapaz, mas não posso deixar que saibam que estou vivo antes de o rei voltar do continente, por mais que deseje que todos fiquem sabendo de sua dedicação e coragem.Vamos ter de sair sozinhos daqui. Se as ferramentas ainda estiverem na cocheira, será bem mais fácil. Assim que voltou, Stilicho pôs-se a construir uma escadinha que ficaria no alto do andaime e logo que terminou escavou alguns degraus na seção inclinada da chaminé para pelo menos me dar apoio para os joelhos na hora da subida. Quando tudo terminou, o rapaz testou sua obra e enquanto isso embrulhei a harpa num lençol, colocando junto meus manuscritos e algumas das drogas que eu poderia precisar para restaurar plenamente minhas forças. Stilicho puxou a trouxa com a corda. Finalmente peguei uma faca e cortei as franjas de ouro e as melhores pedras preciosas da mortalha, e as guardei numa sacola de couro onde já estavam as moedas. Amarrei-a à minha cintura e já estava no alto do andaime quando finalmente Stilicho reapareceu, segurou a corda e me disse para começar a subida.

4 Passei um mês no moinho de Stilicho. Mai, que em ocasiões anteriores jamais se aproximara de mim sem mostrar o pavor que sentia, ao constatar que eu não era um bruxo malvado, mas um velho doente, que passara por uma provação terrível, cuidou de mim com enorme devoção. Nesse período não me mostrei a Outras pessoas além dos dois, permanecendo sempre no quarto do segundo andar do moinho. Bran, o empregado, dormia no celeiro e só sabia que seu patrão estava hospedando um parente idoso. As crianças ouviram a mesma explicação e me aceitaram em perguntas, como é típico delas. De início eu passava a maior parte do tempo na cama porque reação fora muito grave. A luz do dia me feria os olhos, os menores barulhos me pareciam insuportáveis e era difícil até conversar com meu salvador. Todavia, os dois mostraram toda a delicadeza e compreensão da gente simples e pouco a pouco fui melhorando até me habituar novamente com a civilização. Logo deixei o leito e comecei a passar o tempo escrevendo ou ensinando as primeiras letras ao filho mais velho de Stilicho. Com o passar do tempo passei a encontrar prazer até no jeito efusivo de meu antigo escravo e um dia lhe pedi que me contasse com detalhes tudo o que acontecera desde que eu fora encerrado na caverna. Ele sabia muito pouco sobre Nimue além do que já me contara, entendi que sua fama como maga crescera tão rapidamente depois de meu suposto falecimento que o posto de profeta do rei lhe caíra como uma luva. Ela passara algum tempo em Applegarth, mas desde a morte da Dama do Lago voltara para o santuário da ilha, para ser aceita por unanimidade como a nova dirigente do lugar. Um dos boatos parecia indicar que o comportamento habitual da Senhora do Templo iria mudar em sua gestão: ela não ficaria na ilha como uma donzela entre donzelas. Nimue fazia freqüentes visitas a Camelot e havia rumores de um próximo casamento. Stilicho não sabia o nome do homem. — Mas, com certeza — concluiu ele —, deve ser um rei. Tive de me contentar com isso. A maioria das notícias que chegavam referiam-se ao povo do vilarejo, a quem pouca coisa interessava além do preço dos bens que vendiam. Fiquei sabendo apenas que a prosperidade continuava, o reino estava em paz e que os saxões respeitavam os tratados. Em conseqüência, o rei se sentira livre para fazer uma visita à Bretanha Menor. Stilicho não conseguiu descobrir o motivo dessa viagem, que na verdade teria pouca importância para mim exceto pelo tempo que precisaria ficar escondido. Pensei muito nesse assunto depois de me recuperar por completo e continuava tirando as mesmas conclusões. Minha volta à corte não serviria para nenhum propósito relacionado com o reino e mesmo o "milagre da ressurreição" não faria mais pelo Grande Rei do que minha "morte" e a transmissão de meu poder para Nimue. Eu não possuía mais a vidência para ajudá-lo e seria errado voltar sem qualquer coisa de novo ou útil para ele. Eu saíra do mundo e minha lenda estava sendo enriquecida com outros casos, como a história do ladrão de tumbas e o fantasma do mago. Os mesmos argumentos se aplicavam a Nimue. Eu não precisava de grande sabedoria para entender que nossa união já era coisa do passado. Não teria sentido eu voltar esperando dividir a mesma cama com ela ou tentar amarrar correias nos pés de um falcão que agora estava em pleno vôo. Uma outra constatação me continha, algo que eu não conseguia reconhecer à luz do dia, mas que caçoava de mim zumbindo nos sonhos que eu tinha com antigas profecias como uma mosca irritante. O que eu sabia sobre mulheres, mesmo agora? Quando me lembrava do meu poder se esvaindo num ritmo constante, as últimas e desesperadas fraquezas, o estado de transe em que eu caíra antes de ser abandonado na escuridão, perguntava a mim mesmo o que fora o amor que nos unira senão o vínculo

que me prendia a ela e me obrigava a lhe dar tudo o que eu possuía? E, quando me lembrava de sua doçura, de sua veneração generosa, de suas juras de amor, eu sabia, e não precisava da vidência para ter certeza, que agora ela não mais abriria mão de seu poder, mesmo se fosse para me ter de volta. Foi difícil fazer Stilicho entender minha relutância em reaparecer, mas ele aceitou sem objeções meu desejo de esperar a volta de Artur antes de elaborar planos. No que se referia à Nimue, percebi que não sabia que ela fora para mim mais do que uma discípula que substituíra o mestre em sua ausência. . Finalmente, completamente refeito e não querendo abusar da hospitalidade de Stilicho, prepareime para partir para a Northumbria, tendo decidido que iria ao norte por mar. Uma viagem marítima é algo que jamais faço de bom grado, mas ir por terra seria exaustivo e exigiria um acompanhante. Meu salvador insistiria em ir comigo, mesmo sabendo que nessa época do ano faria muita falta no moinho. Ainda assim, quando contei que resolvera ir de navio, ele ofereceu-se para me acompanhar, mas no final acabou aceitando minha decisão, talvez porque ainda acreditasse que eu era o grande mago que ele servira no passado e enfrentaria os perigos com gestos miraculosos. O fato é que no final fiz o que eu queria e numa manhã embarquei numa das barcaças que voltavam para Maridunum e lá chegando tomei um navio costeiro para o norte. Eu não mandara nenhuma carta a Blaise porque não poderia confiar a um mensageiro qualquer a notícia da "volta de Merlin dos mortos". Pensaria em algum modo de prepará-lo quando estivesse próximo de sua casa. Era até possível que ele ainda não soubesse de meu suposto falecimento, porque vivia isolado do mundo e não se passara muito tempo desde que recebera a última carta que eu lhe enviara. Essa minha suposição provou ser verdadeira, mas só fui saber disso bem mais tarde. O fato é que não cheguei à Northumbria e minha viagem rumo norte terminou em Segontium. O navio ancorou numa manhã clara. A cidadezinha aquecia-se ao sol na margem do estreito e o casario parecia minúsculo comparado com as grandes muralhas da fortaleza romana que fora o quartel general do imperador Maximus. Atrás da cidade, um pouco afastada da muralha, erguia-se a Torre de Macsen e perto dela encontravam-se as ruínas do templo de Mitra, onde muitos anos antes eu encontrara a espada Caliburn e onde, enterrado sob a pilha de entulho e restos do altar eu escondera o resto do tesouro de Macsen, o cálice e a lança. Era esse o lugar que eu prometera mostrar a Nimue em nossa volta de Galava. De onde eu estava, via o grande monte Nevado, Y Wyddfa, elevando-se contra o céu azul. O primeiro branco do inverno cobria seu pico e as encostas escondidas pelas nuvens, mesmo num dia quente como aquele, mostravam faixas arroxeadas formadas pelos cardos em flor. Quando aportamos fui comunicado de que havia muitas mercadorias a serem desembarcadas e então resolvi descer à terra e tomei a direção da estalagem junto ao cais, onde pretendia comer alguma coisa enquanto esperava. Estava faminto e com certeza ficaria mais faminto ainda. Minha idéia sobre qualquer viagem marítima, por mais calma que seja, é descer para a cabina e ficar lá até tudo terminar. O mestre do porto me informara que o navio não partiria antes da maré da tarde, de modo que havia muito tempo para descansar e me preparar para a etapa seguinte da jornada. Pensei na possibilidade de visitar novamente o templo de Mitra, mas descartei a idéia, porque o trajeto aumentaria meu cansaço e eu não pretendia perturbar o tesouro. Ele não era para mim. O que eu realmente precisava naquele momento era uma boa refeição quente e por isso me dirigi para a estalagem. Ela era construída em forma de "U", com o lado aberto voltado para as docas, facilitando o embarque da bagagem dos hóspedes e das mercadorias que eram armazenadas em galpões construídos nos fundos do terreno. Havia bancos e mesas de madeira no alpendre mas, como já havia uma nota

invernal na brisa, apesar do dia ensolarado, achei melhor comer no salão. Entrei no cômodo aquecido por uma boa lareira e pedi comida e vinho. Eu pagara pela viagem de navio com uma das moedas de ouro que trouxera da caverna e ainda recebera bastante troco, não precisando fazer economia. Logo o criado voltou com uma travessa de carneiro assado, que veio acompanhado de pão fresco e uma jarra de vinho, e comecei a comer e beber enquanto aproveitava o calor do fogo e observava o ir e vir de pessoas no cais através do portão aberto. O dia foi passando. Eu estava mais cansado do que imaginava de início. Cochilei, acordei, cochilei de novo. Havia pouco movimento na estalagem em si. Uma vez uma mulher atravessou o pátio carregando uma bacia de roupa lavada equilibrada na cabeça e um menino entrou correndo com uma cesta de pães. Pareceu-me que havia um grupo hospedado nos quartos que ficavam na ala direita. Um rapaz em trajes de escravo passou carregando uma bandeja coberta com uma toalha de linho e dirigiu-se para uma~das portas desse lado e logo em seguida por ela saíram alguns meninos, bem vestidos, mas barulhentos, falando com um sotaque que não consegui identificar no momento. Dois deles, gêmeos, sentaram-se no chão e começaram um jogo com pedrinhas e os outros dois, apesar do tamanho e compleição bem diferentes, envolveram-se num combate portando espadas de pau e escudos feitos de tampas de barril. Uma mulher bem vestida em cores discretas saiu pela mesma porta e sentou-se num dos bancos sob o sol observando os meninos. A governanta, sem dúvida. De tanto em tanto os meninos corriam para o portão para ver o movimento no cais, o que me fez imaginar que o grupo estava à espera de um navio. Depois de um bom tempo levantei-me e, ao olhar pela janela, vi o mestre de meu navio erguer a cabeça, farejar o ar, umedecer a ponta do dedo e estendê-lo para testar a direção do vento, que vinha aumentando progressivamente. Uma rajada inesperada fez balançar os navios ancorados, cujos cordames cantaram no atrito contra a madeira. O mestre, com um gesto irado, apressou-se a voltar para a embarcação, gritando ordens para todos os lados. Senti um misto de irritação e alívio; com esse vento o mar ficaria rapidamente encapelado e não poderíamos prosseguir viagem. Saí da estalagem e fui conversar com o mestre, que confirmou a impossibilidade de zarparmos até que o vento mudasse, o que não aconteceria tão cedo. Mandei um menino pegar minha pequena bagagem e entrei na estalagem para pedir um quarto. Com certeza haveria pelo menos um deles vago, porque o vento que nos prejudicava aparentemente estava sendo bem recebido pelos outros hóspedes. Os marinheiros de um outro navio mostravam-se atarefados e na estalagem houve um burburinho de preparativos. Os meninos, que tinham deixado o pátio, reapareceram com roupas quentes, o menorzinho segurando a mão da governanta, os outros saltitando em torno dela, obviamente entusiasmados com a perspectiva da viagem. Dois escravos saíram carregados de bagagem, enquanto um homem de libré dava ordens num tom autoritário. Eu ainda não conseguira identificar o sotaque dos meninos e o maior deles me parecia vagamente familiar. Parei sob a sombra da porta principal da estalagem, observando a movimentação. O estalajadeiro aproximou-se afobado do camareiro para receber o pagamento pela estadia e uma mulher veio correndo com um embrulho. Ouvi-a dizer "roupa limpa" e quase no mesmo instante os dois se afastaram da porta com mesuras e reverências, abrindo passagem para alguém, com certeza o hóspede principal. Era uma mulher vestida de verde dos pés a cabeça. Apesar da constituição delicada, tinha um porte altivo e orgulhoso. Jóias cintilavam em suas mãos e pescoço. A capa era forrada de pele de raposa vermelha, que também ornamentava a borda do capaz caído sobre os ombros. Não pude ver seu rosto porque ela falava com alguém ainda dentro da estalagem. Outra mulher saiu caminhando com cuidado, carregando uma caixa pesada embrulhada em linho, e seus trajes simples me fizeram pensar que devia ser uma camareira. Se a caixa continha as jóias

de sua ama, sem dúvida tratava-se de gente de alta posição. Então a dama virou-se e a reconheci no mesmo instante. Morgause, rainha de Lothian e Orkney. Os lindos cabelos haviam perdido o brilho rosa-dourado da juventude, escurecendo para um castanho avermelhado, e o corpo tornara-se mais robusto devido à maternidade. A voz, contudo, como os olhos levemente puxados nos cantos e as linhas graciosas da boca continuavam os mesmos. Portanto, os quatro garotos corados e barulhentos, com o sotaque que agora eu reconhecia, eram os filhos de Lot de Lothian, o inimigo de Artur. Eu já não tinha olhos para eles. Observava ansiosamente a porta, imaginando se enfim veria o primogênito da rainha, o filho de Artur. Ele apareceu. Bem mais alto do que a mãe, elegante, flexível, que eu teria reconhecido em qualquer lugar. Cabelos escuros, olhos escuros e corpo de dançarino. Sim, alguém antes dissera isso de mim e ele, muito parecido comigo, era Mordred, o filho de Artur. Quando dirigiu-se à mãe, ouvi que sua voz lembrava a dela, sonora e agradável. Captei as palavras "navio" e "calculo", diante das quais Morgause fez que sim. Em seguida colocou a mão graciosa na dele e o grupo tomou a direção do portão. Mordred olhou para o céu e falou de novo com uma expressão preocupada. Os dois passaram bem perto de onde eu estava. Recuei para a sombra. O movimento, contudo, deve ter atraído a atenção de Morgause, porque ela virou-se e, por uma mera fração de segundo nossos olhares se cruzaram, mas não fui reconhecido. Todavia, enquanto se dirigia a passos mais rápidos para o navio, vi-a puxar a capa mais para perto do corpo, como se tivesse estremecido de frio. O séqüito de criados e escravos os seguiu, e entre eles caminhavam os filhos de Lot: Gawain, Agravaine, Gaheris e Gareth, que ao chegarem perto da embarcação subiram o passadiço correndo como alegres carneirinhos. Estavam indo todos para o sul. Eu não tinha idéia do propósito de Morgause ao empreender essa longa viagem, mas, pelo que conhecia dela, só podia ser algo ruim. O que mais me afligia era minha impotência em impedi-la porque, mesmo se eu mandasse um mensageiro rápido a Camelot, quem acreditaria numa carta escrita por um morto? No dia seguinte o vento norte continuou soprando, frio, forte e constante. O prosseguimento da viagem estava fora de questão. Pela manhã pensei de novo em mandar um aviso de perigo a Camelot, mas desisti da idéia definitivamente, porque não saberia a quem me dirigir. Nimue? Bedwyr e a rainha? Nada poderia ser feito enquanto o Grande Rei não voltasse para a Bretanha mas, por outro lado, com Artur fora do país, Morgause não conseguiria lhe fazer grande mal. Fui ruminando esses pensamentos enquanto me dirigia para fora da cidade e tomava a trilha que levava à Torre de Macsen. A noite bem dormida refizera minhas forças e eu tinha o dia inteiro à minha disposição. Na última vez que eu estivera em Segontium, a cidadela construída e fortificada por Maximus, ou Macsen, como dizem os galeses, ela estava bem conservada. Posteriormente, Cador da Cornualha ordenara que fosse restaurada para enfrentar ataques vindos da Irlanda. Depois de ter subido ao trono, Artur encarregara Maelgon, seu comandante no oeste, de mantê-la em perfeitas condições, e eu estava curioso para ver o que havia sido feito e que técnicas teriam sido usadas. Logo eu estava na encosta, bem acima da cidade. O sol brilhava no céu sem nuvens, embora o vento estivesse gelado, e eu via a cidade colorida abaixo de mim, aninhada numa curva do mar azul. A trilha agora se tornara mais larga e eu tinha a minha direita a espessa muralha da fortaleza e de seu interior vinha o tilintar e burburinho de

uma guarnição alerta e bem preparada. Como se ainda fosse o engenheiro de Artur, visitando o lugar para apresentar um relatório, eu observava atentamente tudo o que via. Alcancei o lado sul da fortaleza, onde as ruínas permaneciam intocadas e ao sabor dos quatro ventos, e dali olhei para o alto da encosta na direção da Torre de Macsen. Lá estava a trilha, antigamente usada pelos valentes legionários romanos e hoje talvez só percorrida por cabras e carneiros, levando para a parte mais íngreme de terreno que escondia entre suas rochas o antigo santuário de Mitra. O lugar estava em ruínas havia mais de um século mas, quando eu o visitara anteriormente, os degraus que desciam para a entrada subterrânea ainda eram transitáveis e o templo em si, embora claramente inseguro, mantinha-se reconhecível. Dirigi-me para o início da trilha, imaginando por que, afinal, eu viera usá-la mais uma vez. Não estava mais lá. Não existia nenhum sinal da colina que escondia o teto do templo ou dos degraus que levavam a ele. Não precisei procurar muito para encontrar a causa. Ao retirarem as pedras das muralhas arruinadas para usá-las na restauração, os construtores haviam causado um grande desmoronamento de terra, agora coberto de vegetação e cheio de trilhas estreitas usadas pelos animais. Pareceu-me ouvir de novo, vinda de muito longe, a voz vibrante do deus. "Derrube meu altar. Chegou a hora de derrubá-lo." Agora, altar, santuário e tudo o mais desaparecera e estava enterrado nas profundezas da nova face da encosta. A mudança me parecia inacreditável. Fiquei parado ali algum tempo, tentando encontrar os marcos que eu conhecia, pois minha lembrança continuava cristalina: uma linha reta saindo da Torre de Macsen para o morro, daí para o canto sudoeste da antiga fortaleza, e a outra ligando a casa do comandante ao distante pico de Y Wyddfa. Na intersecção das duas ficava o santuário. Agora essas linhas imaginárias se cruzavam bem no meio do antigo deslizamento. — Perdeu alguma coisa? — perguntou uma voz. Olhei à minha volta. Um menino estava sentado acima de mim, empoleirado na saliência de uma rocha. Não devia ter mais de dez anos e era desgrenhado e muito sujo, e mordiscava um pedaço de pão. Junto aos seus pés vi uma vara feita de madeira de hamamélis, com a qual devia tanger os carneiros que pastavam por perto. — Acho que um tesouro — informei. Que tipo de tesouro? Ouro? — Talvez. Por quê? Ele engoliu a última migalha de pão. — O que ele vale para você? — Oh, no mínimo metade de meu reino. Quer me ajudar a encontrá-lo? — Já encontrei ouro aqui. — E mesmo? — Sim. E uma vez encontrei uma moedinha de prata e depois uma fivela de bronze. — Parece que sua pastagem é mais rica do que aparenta — dei um sorriso. Antigamente passava por ali uma estrada que ligava a fortaleza ao templo e com certeza havia muitas coisas interessantes enterradas. — Bem, na verdade não pretendo escavar à procura de ouro mas, se puder me dar uma

informação, eu lhe pagarei com uma moeda de cobre. Diga-me, faz tempo que você mora neste lugar? — Eu nasci aqui. — Você traz sempre seus carneiros para cá? — Sim. Eu costumava vir com meu irmão, mas depois ele foi vendido e partiu num navio. Agora eu cuido dos carneiros, mas eles não são meus. O dono é um homem rico que mora atrás daquele morro. — Você se lembra — comecei sem esperança, porque algumas das árvores que cresciam sobre a terra do desmoronamento já tinham mais de dez anos —, lembra como caiu esta barreira? Estavam reconstruindo o forte? — Não, aqui foi sempre assim. — Não foi não. Quando estive aqui, há muitos anos, havia uma trilha bem larga neste lugar e ali em cima a entrada de um templo. Antigamente os soldados vinham fazer oferendas ao deus Mitra. Já ouviu falar sobre isso? — Não. — Será que seu pai ouviu? — Eu não tenho pai. — Seu amo, então? — Não, mas esse tal templo está aí embaixo. Eu sei onde. Tem água também. O lugar deve ser onde está a água. — Não havia água quando eu... — Parei de falar quando um arrepio percorreu meu corpo. — Água onde? — Embaixo das pedras. Ali, bem no fundo. Do jeito que sinto, deve ficar a uma altura de dois homens abaixo do chão. Olhei atentamente para aquela figurinha suja, os olhos vibrantes e a vara de hamamélis. — Você consegue encontrar água abaixo do solo? Com a vara? — É mais fácil com ela, mas muitas vezes nem preciso. — E metal? Foi assim que encontrou ouro? — Foi. Um pedacinho de estátua ou qualquer coisa. A cabeça de um cachorrinho. Meu amo tirou de mim. Agora, se eu encontrar ouro, vou guardar bem escondido. Mas não vai ser fácil. O que vivo achando lá em cima, nas ruínas, são moedinhas de cobre. — Entendo. — Quando eu descobri o santuário, pensei, ele estava abandonado havia mais de um século, mas certamente fora construído junto a uma fonte. — Olhe, se você me mostrar onde tem água embaixo das pedras, eu o recompensarei com prata. — É onde está o tesouro que você procura? — disse o menino, com uma expressão que me pareceu cautelosa. — Espero que sim — sorri —, mas não é coisa que você possa encontrar sozinho, garoto. Só homens com ferramentas pesadas conseguiriam levantar essas pedras e, mesmo se você os guiasse para o lugar certo, não ficaria com nada do que seria achado. Agora, se você me mostrar, lhe dou a moeda de prata.

O menino calou-se por alguns instantes, esfregando a sola dos lês nus no chã. Depois, enfiando a mão nas dobras da roupa rasgada, extraiu uma moeda de prata que exibiu na palma da mão. — Desculpe, moço, mas já me pagaram. Tem gente que sabia do seu tesouro. Como eu podia saber que você era o dono? Mostrei onde deviam cavar e eles levantaram as pedras e pegaram a caixa. Não consegui encontrar minha voz. O mundo parecia estar girando em volta de mim e tive de me sentar numa pedra. — Moço? — O menino escorregou de seu poleiro e veio para junto de mim, mas parecia pronto para sair correndo. — Moço, você está bem? Olhe, eu não fiz por mal... — Claro que não. Como poderia saber? Calma, não vou machucá-lo. Quero que fique e me conte direitinho o que aconteceu. Quem eram eles e há quanto tempo tiraram a caixa dali? Ele me lançou um outro olhar cheio de dúvida, mas já parecia convencido que eu não iria castigá-lo. — Faz só dois dias. Dois homens que não conheço, escravos, vieram com a senhora. — A senhora? Algo em minha expressão fez o menino recuar um passo. — Sim. Ela apareceu de repente e deve saber mágica, porque foi direto para o lugar como um gato indo para o prato de leite. Apontou para o chão e falou: Cavem aqui!" Os dois sujeitos começaram a trabalhar e fiquei assistindo sentado na pedra. Quando depois de algum tempo vi que estavam cavando na direção errada, desci até lá e disse à mulher que eu podia encontrar coisas. "Bem", disse ela, "tem metal escondido por aqui. Eu perdi o mapa, mas sei que fica aqui. O dono me mandou pegá-lo. Se você me ajudar eu lhe darei uma moeda de prata” . Então encontrei. E você não imagina que metal! Ele arrancou a vara da minha mão, como se fosse um cachorro roubando um osso. — Entendo. Você os viu pegarem a caixa? — Sim. Esperei pelo meu pagamento, sabe? — Claro. E como era essa caixa? — Quadrada, mais ou menos assim. — Ele esboçou o tamanho com as mãos. — Parecia pesada e não foi aberta. A senhora mandou que fosse posta no chão e colocou as mãos na tampa, assim. Eu lhe disse, moço, ela tinha mágica. Olhou bem para lá, para Y Wyddfa, como se estivesse falando com o espírito. Você sabe, o espírito que vive lá em cima, o senhor dos montes. Dizem que uma vez ele fez uma espada mágica, que agora está com o rei. Merlin veio buscá-la. — Sim. E depois, o que a mulher fez? — Eles levaram a caixa. — Viu para onde foram? — Para a cidade. — O menino me olhou de soslaio, esfregando os dedos dos pés na poeira do chão. — Ela falou que o dono tinha mandando pegar a caixa. É mentira? Mas a senhora usava roupas bonitas e os escravos tinham braceletes com uma coroa. Pensei que fosse uma rainha.

— E era mesmo — falei, endireitando o corpo. — Não fique com essa cara, garoto, você não fez nada de errado. De fato, agiu melhor do que muito adulto em seu lugar: me contou a verdade. Poderia ter recebido outra moeda apenas me mostrando o local e ficando de boca fechada. Por isso vou lhe pagar como prometeu. Aqui está. — Mas é prata, moço, e eu não fiz nada. — Fez muito mais do que imagina. Deu-me uma notícia que deve valer meio reino, até mais. — Levantei-me. — Não tente entender, garoto. Fique em paz, tome conta de seus carneiros e encontre sua fortuna. Que Deus esteja com você. — E com você também, moço — disse ele, ainda me olhando com surpresa. — Talvez esteja mesmo. Agora Ele só têm de arranjar bem depressa um navio que vá para o sul. Deixei o menino olhando espantado para mim, segurando a moeda de prata na mão suja. No dia seguinte aportou um navio que ia para o sul, que zarpou com a maré da tarde. Eu estava a bordo e como de hábito passei a maior parte do tempo deitado e sofrendo, até entrarmos no estreito de Severn, cinco dias depois.

5 Os ventos continuaram fortes, mas variáveis. Quando atingimos o canal o clima estava ameno, portanto não aportamos em Maridunum, seguindo diretamente pelo estuário. Tinham me informado que o Ore, o navio de Morgause, partira para Ynis Witrin, portanto devia ter percorrido o dobro da distância. Por sorte, meu navio era ligeiro e talvez sua comitiva não estivesse muito à frente. Eu poderia ter subornado o comandante do navio para também aportar na ilha, mas ali, certamente, me reconheceriam, com o conseqüente escândalo que tentava evitar. Se eu soubesse, quando vi Morgause, que ela guardava consigo os objetos de poder do templo de Mitra e ainda era capaz de praticar alguma magia (já que o menino parecia ter um bom julgamento), teria preferido acompanhá-la no navio, fossem quais fossem os riscos, inclusive o de não sobreviver à viagem. Eu não tinha meios de saber quando esperavam Artur no palácio e, se precisasse me esconder até sua volta, provavelmente Morgause o encontraria antes. Minha esperança, enquanto a seguia para o sul, era encontrar Nimue, de alguma maneira. Já tinha pensado no que poderia resultar disso porque a volta dos mortos raramente é recebida com prazer. Mas ela agora tinha o poder. O cálice era para o futuro e este pertencia a ela. Eu precisava avisá-la que uma bruxa estava a caminha O roubo do tesouro de Macsen fizera soar uma estranha nota de perigo que eu não podia ignorar. Para meu alívio, o navio passou pela boca do estuário que leva ao porto da ilha e seguiu pelo estreito canal do Severn. Finalmente aportou na foz do rio Frome, onde há uma boa estrada para Aquae Sulis, em Summer Country. Dessa vez, eu pagara minha passagem com uma das pedras preciosas da mortalha e com o troco comprei um bom cavalo. Depois de encher os alforges de comida e uma muda de roupa, parti pela estrada até a cidade. Era muito pequena a possibilidade de me reconhecerem fora dos lugares que eu costumava freqüentar com maior assiduidade. Eu tinha emagrecido muito desde o funeral, tinha os cabelos quase brancos e não raspara a barba. Mesmo assim, decidi evitar as cidades e as vilas quando fosse possível, dormindo nas hospedarias rurais. Eu não podia passar as noites ao relento porque o frio se tornava mais forte a cada dia. Além disso, não era de admirar que me sentia exausto depois de andar horas a cavalo. Ao entardecer do primeiro dia estava ansioso para descansar e fiquei grato ao encontrar uma pequena taverna de aspecto decente, a uns sete ou oito quilômetros de distância de Aquae Sulis. Antes de pedir comida quis saber as últimas novidades e me contaram que Artur estava em Camelot. Quando falei em Nimue responderam logo, mas achei que a informação era vaga. Chamaramna de "mulher de Merlin" e "maga do rei", relatando algumas histórias fantásticas, mas não souberam informar com certeza seu paradeiro. Um homem afirmou estava em Camelot com o rei, mas outro garantiu que partira um mês antes, acrescentando que havia surgido problemas em Rheged, relacionados com a rainha Morgan e a grande espada do rei. Portanto, aparentemente seria impossível para mim entrar em contato com Nimue antes da chegada de Morgause, mas Artur estava em casa. Mesmo que Morgause desembarcasse na ilha, talvez não tivesse pressa de se apresentar ao rei. Se eu não perdesse tempo, poderia vê-lo antes dela. Comi rapidamente, paguei a refeição e mandei preparar o cavalo, voltando logo à estrada. Apesar de cansado, eu percorrera uma pequena distância antes de chegar à estalagem e o cavalo continuava disposto. Se não o forçasse, poderia cavalgar a noite toda. Havia luar e a estrada fora reparada pouco antes, o que facilitou a viagem, e cheguei a Aquae

Sulis bem antes da meia-noite. Os portões já estavam fechados e tive de rodear as muralhas. Fui detido duas vezes: uma pelo guarda do portão, que queria saber qual era meu ofício, e outra por uma tropa de soldados com o emblema de Melwas. Nas duas ocasiões mostrei meu broche com o dragão e informei que estava a serviço do rei; não sei o que impôs mais respeito, se a jóia ou minha segurança, porque me deixaram passar. Mais à frente encontrei uma encruzilhada e rumei para o sul pela estrada do sudeste. O sol surgiu, pequeno e vermelho no céu cor de gelo. À frente, a estrada cruzava as terras montanhosas e desoladas em que a pedra calcária é esbranquiçada como ossos e os ventos retorcem todas as árvores na direção nordeste. Meu cavalo passou a andar com mais dificuldade e eu me sentia tão exausto que meu corpo se tornara insensível e eu parecia cavalgar num sonho. Com pena de nós dois, desmontei quando chegamos ao bebedouro seguinte e joguei um punhado de feno na rede presa à sela. Depois sentei-me na cerca de pedra e comi pão preto e passas com hidromel. A luz do sol, mais forte, refletia-se na relva molhada. Fazia muito frio. Quebrei a fina camada de gelo sobre a água e lavei o rosto e as mãos. Refresquei-me, mas fiquei tremendo. Para continuar vivos, o cavalo e eu precisávamos nos movimentar. Levantei-me e o puxei até a beira do bebedouro, onde eu ia subir para montar. Ele ergueu a cabeça atentamente e também ouvi o tropel vindo da cidade em galope rápido. Alguém tinha partido assim que abriram os portões e se aproximava rapidamente com um cavalo descansado. Logo apareceu um moço montando um grande animal escuro. Quando estava a cem passos de distância, reconheci a insígnia de mensageiro real e corri para o meio da estrada com a mão erguida. Ele não queria parar, mas naquele ponto a estrada é cercada de um lado por uma mureta de pedras e do outro por uma vala, com o bebedouro bloqueando a margem. Além disso, meu cavalo estava parado no caminho. O cavaleiro puxou a rédea para conter o animal. — O que é isto? — perguntou, impaciente. — Se está à procura de companhia, meu velho, não conte comigo. Não vê quem eu sou? — Sim, um mensageiro do rei. Para onde vai? — A Camelot. — Era jovem, corado e falava com arrogância, como é costume entre seus companheiros, mas com cordialidade. — O rei está lá e preciso chegar amanhã. O que houve, meu velho? Seu cavalo está manco? É melhor você... — Não, eu me arranjo, obrigado. Não teria interrompido sua viagem sem motivo, mas o assunto é importante. Quero que transmita uma mensagem para mim. Deve ser dada ao rei. Ele me olhou e começou a rir, soltando baforadas quentes no ar gelado. — Para o rei, diz ele! Meu bom velho, me perdoe, mas o mensageiro do rei tem coisas mais sérias a fazer do que levar recados dos passantes. Se quer fazer um pedido, sugiro que volte a Caerleon. O rei vai passar o Natal lá e talvez você chegue a tempo se andar depressa. — Ele ameaçou esporear o cavalo para partir — Portanto, fique de lado e deixe-me passar. — Acho que você devia me ouvir — respondi sem sair do lugar. O mensageiro conteve o animal, mas irritou-se e brandiu o chicote. Pensei que ia me bater, mas nosso olhares se encontraram e ele se imobilizou. O cavalo avançou com medo do chicote, mas foi

contido rapidamente e respirou tão fortemente que as lufadas de ar quente faziam-no parecer um dragão. O rapaz me olhou e ficou em dúvida, resolvendo fazer uma concessão. — Bem... senhor... eu posso ouvir. Mas espero que a mensagem esteja à minha altura. Não sou um mensageiro comum e tenho prazos a manter. — Eu sei e não o incomodaria, mas tenho urgência em me comunicar com o rei. Como você mesmo já disse, vai chegar bem antes de mim. A mensagem é a seguinte: um velho na estrada lhe deu um objeto para servir de prova e disse que está a caminho de Camelot para ver o rei. Mas ele só consegue ir devagar e, se o rei quiser vê-lo, precisa vir ao seu encontro. Conte qual é a estrada que estou seguindo e diga-lhe que paguei você com uma das moedas deixadas para o barqueiro das trevas. Repita, por favor. Esses mensageiros têm prática e costumam decorar todas as palavras porque freqüentemente levam mensagens de homens que não sabem escrever. Ele me obedeceu sem pensar. — Encontrei um velho na estrada que me deu um objeto e disse que está a caminho de Camelot para ver o rei. Mas ele só consegue ir devagar e se o rei quiser vê-lo, precisa... ora, que tipo de mensagem é esta? Você está louco? Falando desse modo, parece que está dando ordens ao rei. — Talvez... — Sorri. — Você pode mudar a frase, se achar que facilita a mensagem. De qualquer maneira, sugiro que fale com ele em particular. — É claro que terá de ser em particular! Olhe, não sei quem o senhor é, mas imagino que seja alguém de posição, apesar da aparência... mas pelo deus do caminho, é melhor que esse objeto seja um salvo-conduto poderoso e a recompensa muito boa, para eu me atrever a transmitir uma ordem para o rei, mesmo em particular! — E são mesmo. — Eu tinha embrulhado o broche com o dragão num pedaço de linho e entreguei-o junto com a segunda moeda de ouro que fora colocada sobre minhas pálpebras. Ele olhou a moeda e virou o pequeno embrulho. — O que está aqui? — O objeto de que falei. Repito que é um assunto importante e tenho urgência que você fale com o rei em particular. Se Bedwyr estiver perto, não importa. Mas não fale diante de ninguém mais. Está compreendendo? — Sim, mas... — ele fez um movimento com os joelhos afastando o cavalo e abriu o pequeno embrulho. Meu broche, com o dragão real, brilhou em sua mão. — Isto? Mas este é o símbolo real. — Sim. — Quem é você? — perguntou abruptamente. — Sou primo do rei. Portanto, não tenha medo de transmitir a mensagem. — O único primo do rei é Hoel da Bretanha Menor e ele não tem o direito de usar o dragão. Só o... — Ele calou-se e empalideceu. — O rei vai saber quem sou — respondi. — Não pense que o culpo por duvidar de mim ou abrir o pacote. O rei está bem servido e é o que direi a ele. — O senhor é Merlin — ele murmurou umedecendo os lábios, quando conseguiu falar. — Sou. Agora você compreende por que deve falar com o rei a sós. Também será um choque para ele. Não tenha medo de mim.

— Mas... Merlin morreu e foi enterrado. — Ele estava branco como cera e a rédea escorregara entre seus dedos. O cavalo aproveitou e baixou a cabeça para pastar. — Não perca o broche — falei rapidamente. — Olhe, rapaz, não sou um fantasma. Uma tumba não é sempre o portal da morte. Eu procurava tranqüilizá-lo, mas ele parecia ainda mais assombrado. — Meu senhor, nós pensamos... Todos sabiam... — Sim, todos pensaram que eu tinha morrido — confirmei. — Mas eu sofri um mal parecido com a morte e depois sarei, só isso. Agora estou bem e voltarei ao serviço do rei... mas secretamente. Ninguém deve saber antes de ele receber a notícia e falar comigo. Eu não diria a ninguém, a não ser para um de seus próprios mensageiros. Você compreende? Como eu esperava, as palavras serviram para o rapaz readquirir sua segurança. O rosto tornou a ficar corado e ele ergueu a cabeça. — Sim, meu senhor. O rei vai ficar... muito feliz. Quando o senhor morreu... isto é, quando o senhor... bem, quando aconteceu, ele trancou-se a sós durante três dias e não falou com ninguém, nem mesmo com o príncipe Bedwyr. Foi o que disseram. A voz voltou ao normal enquanto ele falava e havia até uma certa excitação, pela alegria de dar a boa nova ao rei. O ouro não tinha a menor importância. Ele contou como todos tinham sentido a perda de Merlin. — Em todo o reino, por toda parte, eu garanto, senhor. — Ele forçou o cavalo a erguer a cabeça da relva e me olhou com o rosto corado e animado — Então vou continuar a viagem. — Quando espera chegar a Camelot? — Se tiver sorte e encontrar boa muda de animais, amanhã ao meio-dia. Mas é mais provável que chegue ao acenderem as luzes. Não pode dar um par de asas ao meu cavalo enquanto está por perto? — Preciso me recuperar um pouco mais antes de ser capaz dessas coisas — respondi rindo. — Só mais um momento antes de você partir... Há uma outra mensagem que o rei precisa receber imediatamente. Talvez você já saiba. Teve alguma notícia da rainha de Orkney em Aquae Sulis? Ouvi dizer que ela estava seguindo de navio para o sul, até Ynys Witrin, e deve se apresentar na corte. — Sim, é verdade, ela chegou. Ou melhor, o navio aportou e ela está indo para Camelot. Alguns diziam que ela não atenderia a ordem do rei... — Ordem? Quer dizer que o Grande Rei ordenou que ela viesse? — Sim, senhor. Todos sabem, portanto posso contar. Para ser franco, ganhei uma pequena aposta: todos diziam que ela não viria, mesmo com salvo-conduto para os meninos. Apostei que viria. Com Tydwal tendo prestado juramento a Artur e estabelecido no outro castelo de Lot, onde ela poderia se esconder se o Grande Rei resolvesse mandar buscá-la à força? — Realmente — respondi sem pensar. Aquilo eu não tinha previsto e não conseguia entender. — Desculpe-me por detê-lo, mas estou há muito tempo sem notícias. Pode me dizer por que o rei mandou chamá-la... e aparentemente sob ameaça? Ele abriu a boca, mas tornou a fechá-la, indeciso. Finalmente, concluiu que não estava desobedecendo seu código de honra informando o primo do rei e seu conselheiro.

— Acho que foi um assunto ligado aos meninos, senhor. Um especialmente, o mais velho dos cinco. A rainha vem com todos eles a Camelot. O mais velho dos cinco. Então Nimue fora bem-sucedida onde eu falhara... encontrara Mordred. Nimue, que segundo os homens da taverna, viajara para o norte porque havia "problemas". Agradeci ao rapaz e afastei meu cavalo do caminho. — Agora, a caminho, meu caro Belerofonte! — exclamei. — Vá o mais rápido que puder e "cuidado com os dragões". — Já tenho todos os dragões de que preciso, obrigado — ele firmou a rédea e ergueu a mão para me saudar. — Mas meu nome não é esse. — E qual é, então? — Perseus — ele respondeu e me olhou desconfiado quando comecei a rir. Depois também riu e chicoteou o cavalo, partindo a galope.

6 Já não havia necessidade de me apressar. Provavelmente, Morgause encontraria Artur antes do mensageiro, mas eu não podia fazer nada a esse respeito. Apesar de minha preocupação por saber se ela mantinha os objetos de poder, a pior de minhas preocupações estava solucionada. Artur se precavera: Morgause viera sob ordens expressas e seus filhos eram praticamente reféns. Também havia a possibilidade de nos vermos antes de ele resolver o assunto com Morgause e Mordred. Eu não tinha a menor dúvida de que Artur viria ao meu encontro no momento em que visse o broche e ouvisse a mensagem. O encontro com o mensageiro fora um extraordinário golpe de sorte porque, mesmo se eu estivesse no auge da mocidade, jamais conseguiria cavalgar como esses homens. Também já não havia urgência em me comunicar com Nimue e isso, de alguma forma, me alegrava. Existem certos testes que tememos fazer e algumas verdades que preferimos não ouvir. Se fosse possível, eu preferia que ela não soubesse de minha existência. Queria lembrar suas palavras de amor e sofrimento.ao me perder e não ver à luz forte do dia a expressão de desagrado quando me encontrasse vivo. Continuei a viajar vagarosamente e à tarde, com frio, parei numa estalagem à beira da estrada. Alegrei-me porque não havia mais nenhum viajante hospedado e providenciei o estábulo e a forragem para meu cavalo. Depois me serviram uma boa refeição preparada pela mulher do dono e fui cedo para a cama, entregando-me a um sono sem sonhos. Passei o dia seguinte dentro do estabelecimento, feliz por poder descansar. Passaram por ali uns dois camponeses, um boiadeiro com seu gado, um fazendeiro com a mulher voltando do mercado e um mensageiro seguindo para o noroeste. Mas à tardinha, novamente, eu era o único hóspede e tinha a lareira à minha disposição. Depois do jantar, quando o casal se retirou para dormir, fiquei a sós no pequeno aposento com vigas aparentes no teto, com meu catre forrado de palha perto do fogo e uma pilha de lenha para manter o ambiente aquecido. Naquela noite não procurei dormir. Quando a estalagem ficou em silêncio, puxei uma cadeira para perto da lareira e coloquei mais achas no fogo. A dona da casa tinha deixado uma chaleira fervendo perto das chamas e misturei água quente com a sobra do vinho do jantar. Enquanto bebia ouvi os ruídos da noite: as toras estalando no fogo, o murmúrio das chamas, as corridas dos ratos e ao longe, o grito de uma coruja caçando na noite gelada. Depois fechei os olhos. Não sei por quanto tempo e nem qual foram as preces que umedeceram minha testa de suor e fizeram os ruídos noturnos sumirem num silêncio profundo e ilimitado. Finalmente, a luz das chamas nos olhos, e através da luz a escuridão e, através da escuridão, a luz... Eu não via o grande salão de Camelot havia muito tempo, mas ali estava ele, todo iluminado na noite sombria de outono. Os trajes alegres das damas, as jóias e as armas dos cavaleiros brilhavam refletindo a profusão de velas. O jantar tinha acabado. Guinevere estava em seu lugar, no centro da mesa mais elevada, encantadora como sempre em sua cadeira de espaldar dourado. Bedwyr sentava-se à esquerda e achei que pareciam felizes e sorridentes. À direita da rainha, a grande cadeira do rei estava vazia. Assim que senti um arrepio por não estar vendo quem eu queria ver, ele apareceu. Andava pelo salão, parando aqui e ali para falar com alguém enquanto passava. Estava calmo e sorridente,

provocando risos em alguns convivas. Um pajem ia na frente, portanto o rei devia ter recebido algum recado importante e ia tratar pessoalmente do assunto. Ele chegou à grande porta de entrada, disse alguma coisa aos sentinelas, despediu o pajem e saiu. Dois soldados da guarda do portão ladeavam um homem que eu já vira: era o camareiro de Morgause. Ele aproximou-se quando o rei apareceu, mas logo parou, parecendo constrangido. Evidentemente, não esperava ver o próprio Artur. Em seguida, disfarçou a surpresa e ajoelhou-se. Começou a falar com o estranho sotaque do norte, mas o rei o interrompeu. — Onde eles estão? — No portão, meu senhor. A senhora sua irmã me encarregou de pedir uma audiência com o senhor esta noite mesmo, no salão. — Eu dei ordens para ela me encontrar amanhã no Salão Redondo. Ela não recebeu o recado? — Sim, meu senhor. Mas ela viajou muito, está cansada e ansiosa para saber por que foi intimada a vir. Ela não pode descansar com os filhos até saber qual é sua vontade. Ela trouxe todos eles... e pede para ser recebida pelo senhor e pela rainha esta noite... — Sim, eu vou recebê-los, mas não no salão. Vou vê-los no portão. Volte e avise para ela me esperar lá. — Mas, meu senhor... — Vendo que o rei continuava em silêncio, o homem calou seu protesto e levantou-se com uma certa dignidade, fazendo uma reverência. Afastou-se na escuridão entre os guardas e Artur o seguiu mais lentamente. Não havia umidade nem vento, mas uma fina camada de gelo cobria as arvorezinhas podadas que ladeavam os terraços e rei esbarrava o manto nelas enquanto andava. Caminhava vagarosamente, com a cabeça baixa e o cenho franzido, como evitara fazer no salão, diante de todos. Não havia ninguém ali além dos guardas. Um sargento o saudou, fez uma pergunta e ele sacudiu a cabeça. E assim, sem nenhum acompanhante ou escolta, ele atravessou os jardins do palácio, passou pela parede da capela e desceu os degraus perto da fonte silenciosa. Depois cruzou outro portão, sendo saudado pelos sentinelas e seguiu o caminho que levava ao portão sudoeste da fortaleza. Sentado diante das chamas na taverna.distante, com a visão doendo nos olhos, eu o chamei e procurei avisá-lo da maneira mais simples: Artur, Artur. Este é o destino que você gerou naquela noite em Luguvallium. Esta é a mulher que tomou sua semente para criar seu inimigo. Destrua os dois. Destrua agora. Eles são seu destino. Ela agora está com os objetos de poder e sinto medo. Destrua os dois agora. Eles estão em suas mãos. Ele tinha parado no meio do caminho e ergueu a cabeça, como se pudesse ouvir alguma coisa no céu. Uma lanterna pendurada em um poste iluminou seu rosto e quase não o reconheci. Estava sombrio, duro, frio, era o rosto de um juiz ou carrasco. Continuou parado por alguns minutos e em seguida, como um cavalo esporeado, caminhou rapidamente até o portão principal da fortaleza. Lá estavam eles, o grupo todo. Tinham trocado de roupa e os cavalos estavam descansados e bem ajaezados. As borlas douradas e os arreios verdes e vermelhos brilhavam à luz das tochas. Morgause usava um vestido branco debruado de prata e pequenas pérolas e um manto escarlate com um forro de pele branca. Os quatro meninos menores tinham ficado mais atrás, com dois criados, mas

Mordred parará ao lado da mãe, num belo cavalo negro com arreios enfeitados de prata. Olhava em volta curiosamente. Ele ainda não sabe, pensei; ela ainda não contou. As sobrancelhas negras e macias pareciam asas; a boca, contida como a de Morgause, guardava seus segredos. Os olhos eram iguais aos de Artur e aos meus. Morgause mantinha-se ereta em sua égua, aguardando. O capuz tombara para trás e a luz iluminava seu rosto inexpressivo e um pouco pálido. Mas os olhos verdes brilhavam sob os longos cílios e vi os dentes pequenos como os de uma gatinha maltratando o lábio inferior. Apesar da frieza aparente, eu sabia que ela estava sem jeito e até amedrontada. Tinha ignorado o mensageiro de Artur e chegara a Camelot com seu pequeno grupo naquela hora tardia, quando todos estavam reunidos no grande salão. Devia ter calculado que levaria sua prole real até os degraus do trono e talvez até apresentasse o filho de Artur em público, obrigando-o a aceitá-lo diante de sua rainha e de todos os nobres reunidos com suas damas. Ela tinha certeza de que eles seriam aliados de uma rainha solitária com seus filhos inocentes. Entretanto, tinham impedido sua entrada no portão, numa atitude sem precedentes, e o rei viera vê-la sozinho, sem outras testemunhas além de seus soldados. Ele aproximou-se da luz da tocha e parou a poucos passos. — Deixem-nos entrar — ordenou. Mordred apeou do cavalo e ajudou a mãe a desmontar. Os criados levaram os animais de volta à casa da guarda no portão. Morgause aproximou-se do rei ladeada pelos filhos mais velhos, com os três menores mais atrás. Era a primeira vez que se viam desde a noite em Luguvallium em que ela mandara a criada chamá-lo até seu quarto. Na época, Artur era um príncipe saído vencedor de sua primeira batalha, jovem, alegre e fogoso; Morgause, com vinte anos, sutil e experiente, usara o sexo e a magia para extasiar o menino. E agora, apesar dos anos dedicados à criação dos filhos, ela ainda conservava parte do fascínio que enlouquecera os homens. Porém, já não estava diante de um menino inexperiente, mas de um homem na plenitude de sua energia, com o julgamento e o poder de um rei, reforçado por alguma coisa formidável e perigosa, como o fogo baixo que precisa apenas de um bafejo para começar a queimar. Morgause abaixou-se no solo gelado, mas não fez a profunda reverência de alguém que suplica por graça e perdão; ela ajoelhou-se e estendeu a mão direita para forçar Mordred a fazer o mesmo. Gawain, do outro lado, manteve-se em pé como os outros irmãos, observando a mãe diante do rei. Ela não se preocupou, pois eram declaradamente filhos de Lot, com ossatura grande, pele clara e cabelos loiros como o seu. Não importava o que Lot tivesse feito no passado, porque Artur não se vingaria em seus filhos. Mas o outro era diferente, com o rosto mais fino e os olhos escuros que herdara pela casa real do próprio Macsen... ela forçou-o a ajoelhar-se onde estava e ele manteve a cabeça erguida, querendo ver tudo o que acontecia a sua volta. Morgause estava falando e conservara a mesma voz suave e delicada. Eu não consegui ouvir o que ela dizia. Artur ficou parado como uma estátua e duvido que tenha entendido uma palavra. Ele quase não a olhava, só tinha olhos para o filho. Morgause demonstrava urgência e ouvi quando falou em "irmão" e depois "filho". Artur ouvia com o rosto impassível, mas eu sentia que as palavras voavam como dardos entre os dois. A seguir, ele deu um passo à frente e estendeu a mão para erguê-la. O gesto diminuiu a tensão dos meninos e do homem aguardando no portão. As mãos de seus serviçais não se afastaram das espadas porque tinham mantido uma cuidadosa distância das armas, mas o efeito era o mesmo. Os dois meninos mais velhos trocaram um olhar quando a mãe se levantou e Mordred sorriu. Com certeza esperavam que o rei a beijasse, em sinal de paz e amizade.

Mas ele não a beijou. Apenas levantou-a e disse alguma coisa, levando-a a uma certa distância. Mordred virou a cabeça, como um cão de caça. Depois o rei falou com os meninos: — Vocês são bem-vindos. Agora voltem ao portão e esperem. Eles obedeceram e Mordred olhou para a mãe. Por um momento, o rosto dela demonstrou terror, mas logo transformou-se numa máscara de calma. O camareiro deve ter recebido algum recado, porque adiantou-se com a caixa que traziam de Segontium. Os objetos de poder... inacreditavelmente, ela entregou ao rei. Inacreditavelmente, esperava comprar seus favores com o tesouro de Macsen... O homem ajoelhou-se aos pés do rei e abriu a caixa. O tesouro brilhou na luz e vi claramente o que havia, como se estivesse a meus pés. Tudo era de prata: taças, braceletes e um colar feito de placas decoradas com os desenhos fluidos e interligados que os ourives do norte usam para invocar sua magia. Não havia sinal dos emblemas de poder de Macsen. Não vi o grande cálice decorado com esmeraldas, a ponta de lança ou o prato incrustado com safiras e ametistas. Artur olhou ligeiramente e, quando o camareiro se afastou, voltou a falar com Morgause, largando o presente no solo gelado. Ignorava o presente como ignorara tudo o que ela havia dito. Ouvi sua voz claramente. — Morgause, talvez não entenda as razões que tive para chamá-la, mas agiu certo ao me obedecer. Uma das razões é relacionada a seus filhos e você deve ter imaginado; mas não precisa temer por eles. Eu disse que não lhes causaria nenhum mal e manterei minha promessa. Quanto a você, não existe promessa alguma. Fez bem em ajoelhar-se para pedir misericórdia. E que misericórdia pode esperar? Você matou Merlin. Foi você que lhe deu o veneno que provocou sua morte. Ela não esperava aquilo e susteve a respiração. Moveu levemente as mãos brancas como se quisesse proteger o pescoço, mas conteve o gesto. — Quem lhe contou essa mentira? — Não é mentira. Ele mesmo a acusou quando estava morrendo. — Ele sempre foi meu inimigo! — E quem pode dizer que ele estava enganado? Você sabe o que fez. Pretende negar? — É claro que eu nego! Ele sempre me odiou, sempre! E você sabe por quê. Ele não queria que ninguém mais tivesse poder sobre você. Eu sei, nós pecamos, mas éramos inocentes... — Se tiver juízo, não fale desse assunto — ele interrompeu friamente. — Você sabe tão bem quanto eu quais foram os pecados cometidos e quais os motivos. Se espera alguma misericórdia, agora ou sempre, não toque nesse assunto. Morgause curvou a cabeça e apertou as mãos, numa atitude de humilhação. — Tem razão, meu senhor — respondeu baixinho. — Eu não devia ter falado. Não vou embaraçá-lo com lembranças. Obedeci sua ordem, trouxe seu filho e deixo a cargo de seu coração e sua consciência a escolha certa do que deve fazer com ele. Não pode negar que ele é inocente. Artur não respondeu e Morgause tentou provocá-lo com o olhar, como no passado. — Quanto a mim, admito que posso ser acusada de loucura. Venho a você, Artur, como uma irmã que... — Eu tenho duas irmãs — ele respondeu duramente. — A outra tentou me trair há pouco. Não me fale de irmãs. Morgause ergueu a cabeça e já não tinha uma expressão .de súplica. Era uma rainha diante de um

rei. — Então, o que posso responder, a não ser que venho a você como a mãe de seu filho? — Você veio como a assassina do homem que era mais que meu próprio pai para mim. Não é mais e nem menos que isso. Por esse motivo a chamei e a julgarei. — Ele teria me matado. Teria feito você matar seu próprio filho. — Isso não é verdade — disse o rei. — Ele evitou que eu matasse vocês dois. Sim, vejo que ficou chocada. Quando soube do nascimento do menino, a primeira coisa em que pensei foi mandar alguém matá-lo. Mas, se você se recorda, Lot adiantou-se... e Merlin, entre todos os homens, queria salvar o menino porque é meu filho — pela primeira vez ele demonstrou paixão ao falar. — Mas Merlin não está mais aqui, Morgause. Não vai protegê-la novamente. Por que acha que me recusei a recebê-la no salão esta noite, na presença da rainha e dos cavaleiros? Era o que você esperava, não? Você, com sua beleza e sua voz suave, os quatro filhos de Lot e esse jovem de olhos escuros, parecido com a família real... — Ele não lhe fez mal algum! — Não, não fez. Agora ouça, vou tirar de você os quatro filhos de Lot para serem treinados aqui em Camelot. Não deixarei que eles fiquem aos seus cuidados para crescerem como traidores, odiando seu rei. Quanto a Mordred, ele não me causou mal algum, mas eu lhe causei, assim como você. Não somarei um novo pecado ao outro. Fui avisado de que ele era uma ameaça, mas um homem precisa agir corretamente, mesmo contra si. E quem pode interpretar os deuses com exatidão? Você também o deixará comigo. — E você mandará assassiná-lo assim que eu partir? — E, se assim fosse, que escolha você teria? — Você mudou, irmão — ela respondeu com despeito. Artur sorriu pela primeira vez. — Sem dúvida. Se isso serve para acalmá-la, eu não vou matá-lo. Mas você, Morgause, que matou Merlin, o melhor homem em todo este reino... Ele foi interrompido pelo tropel de um cavalo chegando ao portão. Os sentinelas o abriram, depois de rápidas palavras. O cavalo entrou com a boca espumando e parou perto do rei, com as pernas trêmulas e a cabeça baixa de cansaço. O mensageiro desmontou com dificuldade e ajoelhou-se para saudá-lo. — E então? — Artur perguntou, irritado com a interrupção. Mas sabia que nenhum mensageiro se apresentaria naquele momento se não tivesse notícias importantes. — Espere, eu me lembro de você. Chama-se Perseus, não é? Que notícias tão extraordinárias você traz de Glevum para matar um bom cavalo e interromper minha conversa em particular? — Meu senhor... — o homem limpou a garganta, olhando para Morgause. — Meu senhor, é uma notícia urgente, muito urgente, mas devo transmiti-la apenas ao senhor. Perdoe-me. Morgause, que estava parada como uma estátua, ergueu as mãos ao pescoço. Um leve vestígio de sua antiga magia devia tê-la prevenido. O rei olhou o mensageiro por um momento e deu uma ordem a dois guardas, que se

aproximaram de Morgause. Depois fez um sinal ao recém-chegado e caminhou de volta ao palácio, seguido por ele. Chegando à escadaria, parou e voltou-se. — Qual é a mensagem? Perseus estendeu o embrulho do broche. — Um velho na estrada me deu este objeto para servir de prova e disse que estava a caminho de Camelot para ver o rei. Mas ele só pode vir devagar, portanto, se o rei quiser vê-lo, precisa ir ao seu encontro. Ele está viajando pela estrada sobre os montes, entre Aquae Sulis e Camelot. Ele me disse... — Ele lhe deu isto! — O broche do Dragão brilhava na mão de Artur, que empalidecera de espanto. — Sim, meu senhor. — O mensageiro deu o resto do recado apressadamente e mostrou a moeda de ouro. — Ele disse que pagou meu serviço com o dinheiro para o barqueiro das trevas. O rei examinou-a como alguém que está sonhando e a devolveu, tornando a observar o broche. — Você sabe o que é isto? — Claro, meu senhor. É o Dragão. Quando vi o que vi, perguntei que direito tinha para possuílo, mas depois o reconheci. Sim, meu senhor... — O rei o encarava com o rosto ainda mais pálido. O mensageiro umedeceu os lábios e conseguiu dar o resto da mensagem: — Ontem, quando me parou, ele estava perto do décimo terceiro marco da estrada. Se o senhor for encontrá-lo, acredito que não deve estar muito adiante de uma estalagem que existe logo depois. Ela fica afastada do caminho, do lado sul, e tem uma placa com um arbusto de azevinho. — Um arbusto de azevinho — Artur repetiu como se estivesse falando no sono. Subitamente estremeceu e o sangue voltou às suas faces. Atirou o broche para o alto, fazendo-o rodopiar, apanhou-o e começou a rir. — Eu devia saber! Eu devia saber... De qualquer modo, isto é real! — Ele me disse que não era um fantasma — Perseus contou. — E que nem toda tumba é o portal da morte. — Mesmo que fosse seu fantasma... — continuou Artur e virou-se e gritou, chamando alguém. — Mesmo que fosse seu fantasma... — Vários homens se aproximaram correndo e ele começou a dar ordens — Meu garanhão cinzento, e também meu manto e minha espada. Em quatro minutos. E você vai ficar em Camelot até minha volta, Perseus. Agiu muito bem, eu não vou esquecer. Agora vá descansar. Ah, Ulfin, diga a Bedwyr para trazer vinte cavaleiros e me seguir. Este homem explicará para onde vamos. Dê-lhe comida, trate do cavalo e cuide dele até minha volta. — E a senhora? — alguém perguntou. — Quem? — Evidentemente, o rei se esquecera de Morgause. Respondeu com indiferença. — Segurem-na até eu ter tempo de conversar com ela e a não deixem falar com ninguém. Com ninguém, compreenderam? Dois cavalariços trouxeram o garanhão e alguém chegou correndo com o manto e a espada. Os portões se abriram quando Artur montou. O grande cavalo cinzento relinchou e disparou com a velocidade de uma lança. Cavalgava pelo terreno acidentado como se estivesse numa planície à luz do dia. Era o mesmo estilo que Artur adotara desde as cavalgadas pela floresta Selvagem, e também o mesmo destino...

Morgause, com seu vestido de brancura virginal manchado de terra, manteve-se rígida entre os guardas enquanto os homens-de-armas levavam os meninos. Mordred estava entre eles e desapareceram na direção do palácio, sem um olhar para trás. Pela primeira vez, desde que a conhecera, vi apenas uma mulher amedrontada fazendo um sinal contra um forte encantamento.

7 Na manhã seguinte, o dono da estalagem e sua mulher se espantaram e condoeram se assustaram, o me encontrar caído no chão frio, aparentemente desmaiado. Eles me carregaram para a cama e me aqueceram com pedras quentes e cobertores. Quando voltei a mim, essas pessoas bondosas cuidaram de mim como o carinho que teriam dado a um pai. Eu não estava tão mal, mas os momentos de visão sempre cobram seu preço: primeiro a dor da visão em si e a seguir o longo transe de sono e exaustão. Considerando a distância em que me encontrava, resolvi descansar pelo resto do dia e, na manhã seguinte, apesar dos protestos dos estalajadeiros, mandei preparar meu cavalo. Eles ficaram mais tranqüilos quando informei que não iria muito longe. Pretendia apenas encontrar um amigo a pouca distância dali e, para acalmá-los ainda mais, pedi que preparassem um bom jantar para nós dois. — Ele adora boa comida e garanto que a senhora prepara pratos tão gostosos quanto os cozinheiros da corte do rei, em Camelot. Ela alegrou-se com o elogio e imediatamente começou a falar em frangos, portanto deixei o dinheiro para pagar os alimentos e parti. Depois da geada, o clima ficara mais ameno e o sol brilhava, aquecendo um pouco. Mas já havia sinais do inverno se aproximando nas árvores desfolhadas no alto dos morros, nos tordos comendo os frutos de azevinho e voando entre os arbustos, e nas avelãs maduras. As folhagens rasteiras mostravam folhas amareladas, que brilhavam como ouro ao sol e restavam poucas flores espiando por entre galho das cercas vivas. Meu cavalo, com o longo descanso, estava animado e percorremos a primeira parte do trajeto em trote rápido. Não encontramos ninguém. Logo a estrada começou a descer dos cumes dos morros de calcário e a entrar na encosta de um vale. As árvores que se agrupavam nos pontos mais baixos ostentavam o colorido do outono; as faias, os carvalhos e castanheiros, o vidoeiro com seu amarelo dourado, o verde lustroso do azevinho. Um rio surgiu entre as árvores e, segundo me informara o estalajadeiro, logo eu encontraria uma encruzilhada. A estrada cruzava a correnteza e o outro caminho seguia à direita, pela floresta. Era mal pavimentado, indicando pouco uso e cortava uma grande curva do trajeto, voltando à estrada depois de certa distância, ao leste. Sim, aquele seria o lugar ideal, porque já fazia tempo que eu não avistava nenhum sinal de moradia e nos daria a mesma privacidade que encontraríamos num quarto de dormir. Eu não me atrevia a ir mais adiante porque Artur sempre se apressava e procurava atalhos para encurtar o caminho. Não conhecendo o trajeto pela floresta, eu poderia desencontrar dele se tomasse outro caminho. Ali era um bom lugar para esperar. O sol brilhante aquecia o desfiladeiro, e o ar estava fresco e perfumado pelos pinheiros. Dois passarinhos pousaram em um arbusto e depois voaram para o outro lado da estrada mostrando nas asas as penas azuis. Ouvi ao longe o ruído de um pica-pau bicando alguma árvore a sudeste. O rio corria suavemente sobre o calçamento romano naquele trecho da estrada, não alcançando mais que um pé de profundidade. Tirei a sela do cavalo e prendi as rédeas no galho de uma aveleira, deixando-o a pastar. Havia um pinheiro caído perto do rio e sentei-me para esperar. Meu cálculo de tempo estava certo. Não esperei nem uma hora e ouvi o tropel no cascalho da estrada. Ele devia ter escolhido a estrada principal em vez de cortar caminho pela floresta e parecia

pouco apressado, talvez não querendo forçar demais sua montaria. Bedwyr, sempre ao seu lado, devia ser o acompanhante. Caminhei até o meio da estrada e esperei. Três homens vieram trotando pela floresta e percorreram o terreno ligeiramente inclinado que levava à passagem do rio. Os três eram estranhos e tinham, além disso, um aspecto que passara a ser muito raro. No passado, especialmente nas terras selvagens do norte e do oeste, as estradas eram muito perigosas para um viajante solitário. Mas Ambrosius, e depois Artur, tinham acabado com os bandidos e assaltantes. Mas não totalmente, pelo que vi. Os três tinham sido soldados e ainda usavam armaduras de couro. Dois conservavam seus amassados capacetes de metal. O mais novo e mais arrumado, com uma barba castanha já meio grisalha, tinha um porrete preso na sela. Os cavalos estavam sujos, mas bem alimentados e eram fortes. Um era preto, outro castanho e o terceiro mais claro. Não precisei de qualquer intuição profética para saber que aqueles homens eram perigosos. Eles pararam à beira do rio, me olharam e retribuí, continuando onde estava. Eu tinha um punhal no cinto, mas a espada estava presa à sela. Além disso, com o cavalo preso ao arbusto, não poderia fugir. Mas não fiquei muito apreensivo. Tempos antes, ninguém ousaria encostar um dedo em Merlin, por mais desesperado que estivesse, e eu devia conservar um pouco da velha confiança no poder. Eles se entreolharam e a mensagem foi de perigo. O chefe, com a barba grisalha e o cavalo preto, aproximou-se a passo e virou sorrindo para os companheiros. — Olhem, aqui está um sujeito valente, disputando essa passagem conosco. Ou você é o próprio Hermes, que vem nos desejar boa viagem? Devo dizer que não se parece com ele — comentou e os três deram gargalhadas. — Acho que não tenho os dons desse deus, meus senhores. E nem quero disputar o caminho. Quando ouvi seus cavalos pensei que era a tropa que está para chegar. Não viram nenhum sinal dela pela estrada? Outra troca de olhares. O mais novo entrou com o cavalo na correnteza e espirrou água em mim. — Não havia ninguém na estrada — respondeu. — Uma tropa? Que tropa você está esperando? O Grande Rei, talvez? — Piscou Dará os companheiros. — O Grande Rei deve chegar logo — respondi serenamente - e gosta que a lei seja mantida nas estradas. Portanto, senhores, sigam em paz seu caminho e seguirei o meu. Os três estavam atravessando o rio a vau e me rodearam, parecendo tranqüilos e bem humorados. — Ora, vamos deixar você partir. Não é, Red? Ficará livre como o ar para partir, meu bom senhor, livre e leve como o ar. — Leve como uma pena — Red respondeu rindo. Era o que estava no cavalo castanho. Ele puxou o cinto para desembainhar o punhal mais facilmente enquanto o mais jovem se aproximava da sela pendurada no pinheiro caído. Eu comecei a falar, mas o chefe aproximou o cavalo e, de repente, agarrou minha capa amarrada ao pescoço, erguendo-me do solo. Era incrivelmente forte. — E então? Quem você está esperando? Uma tropa? Isso é verdade ou mentiu para nos assustar? Red aproximou-se do outro lado. Eu não tinha a menor possibilidade de escapar. O terceiro desmontou e não se preocupou em abrir os alforjes, rasgando o couro com uma longa faca. Ele nem olhou o que os outros estavam fazendo.

— Claro que ele mentiu — disse Red empunhando a faca. —Não havia nenhuma tropa na estrada e nem sinal de ninguém. E eles não viriam pelo caminho da floresta, Erec. Você sabe disso. Erec usou a mão livre para pegar o porrete preso à sela. — Muito bem, então era mentira — falou. — Você não deve mentir, meu velho. Diga quem é e aonde vai. E essa tropa de que falou, de onde vem? — Eu conto se você me soltar — respondi com dificuldade. — E diga a seu amigo para largar minhas coisas. — Vejam, o galo velho ainda canta! — Mas ele aliviou a pressão e pude ficar em pé novamente. — Então trate de dizer a verdade e será melhor para você. De onde veio e onde está essa tropa, afinal? Quem é você e aonde vai? Comecei a arrumar minha roupa com as mãos trêmulas, mas procurei falar com firmeza. — É melhor que vocês me soltem e tratem de se salvar. Sou Merlinus Ambrosius, o primo do rei que chamam de Merlin, e estou indo para Camelot. Mandei antes uma mensagem e uma tropa deve vir ao meu encontro. Devem estar perto daqui. Se vocês fugirem rapidamente para o oeste... As gargalhadas me interromperam e Erec virou-se na sela. — Ouviu isto, Red? E você, Balin? Este é o Merlin, em pessoa, a caminho da corte de Camelot! — Ora, até pode ser. — Red estremecia de tanto rir. — Ele parece mesmo um esqueleto, não é? Saído diretamente da tumba, não há dúvida! — E voltando diretamente para ela — Erec subitamente se enfureceu e me sacudiu com violência. — Ei, olhe aqui! — Balin o interrompeu. — O que você achou? — os dois perguntaram. — Ouro suficiente para comprar comida e uma boa cama por um mês, além de alguma coisa boa para aquecer a gente nela — Balin comentou alegremente. Atirando as sacolas no chão, ele ergueu a mão e duas das pedras preciosas. — Ora, seja quem for, parece que você é nossa sorte! Examine a outra, Balin. Venha, Red, vamos ver o que o velho carrega com ele. — Se me fizerem algum mal — avisei —, tenham certeza que o rei... Calei-me, como se alguém cobrisse minha boca. Eu estava preso entre os cavalos, olhando para o rosto de barba grisalha com o céu ao fundo e naquele momento um pássaro passou. As penas pretas brilharam como bronze ao sol e vi que era um corvo. A ave da mensageiro Hermes, o pássaro da morte. Ele me indicou o que devia fazer. Até então, instintivamente, eu procurara ganhar tempo como qualquer homem faria para afastar a morte. Mas se eu conseguisse, se contivesse os homens, Artur poderia chegar sozinho num cavalo cansado, pensando apenas em me encontrar e seriam três contra um naquele local ermo. Na luta eu não poderia ajudá-lo, mas via uma outra maneira de servi-lo. Devia a Deus uma morte e poderia dar uma outra vida a Artur. Precisava afastar aqueles selvagens rapidamente. Se ele encontrasse meu corpo assassinado, partiria para persegui-los, mas sabendo o que fazia e com que ajuda podia contar. Portanto, calei-me. Balin começou a examinar a outra sacola. Erec tornou a me puxar para perto.

Red chegou por trás e mexeu em meu cinto, onde estava presa a bolsa com o resto do ouro. O porrete ergueu-se acima de minha cabeça. Se eu fizesse um gesto para pegar a arma, eles me matariam antes. Peguei o cabo do punhal preso ao cinto, mas Red agarrou meu pulso e ele caiu ao chão. — Merlin, hein? — O rosto suado sorria sobre meu ombro. — Um mago tão famoso pode nos mostrar um truque ou dois, com certeza. Vamos, por que não se salva? Faça um feitiço para nos matar. Os cavalos se afastaram. Alguma coisa brilhou como um raio cortando o céu. O porrete foi atirado para longe e Erec me soltou tão subitamente que perdi o equilíbrio e caí sobre seu cavalo. Ainda curvado sobre mim, demonstrava espanto e olhava fixamente. A cabeça cortada pelo golpe caiu sangrando no pescoço do animal e depois rolou no solo. O corpo escorregou lentamente enquanto o sangue espirrava no lombo do cavalo e me respingava. O animal relinchou, ergueu as patas dianteiras no ar e afastou-se com o corpo ainda sacudindo sobre a sela até cair sangrando na estrada. Fui atirado sobre a relva com o coração aos saltos e pensei que a escuridão traiçoeira fosse me envolver de novo, mas logo se afastou. O terreno estremecia com o tropel dos cavalos. Olhei para cima. Ele estava lutando contra os dois. Chegara sozinho em seu grande cavalo cinzento, deixando para trás Bedwyr e os cavaleiros. Contudo, não demonstrava nenhum sinal de cansaço e admirei-me de os três bandidos não terem fugido ao vê-lo. Não trouxera um escudo, mas usava uma túnica de couro com placas de metal e uma capa espessa jogada sobre o braço esquerdo, com a cabeça nua. Ele largara a rédea e controlava o garanhão com os joelhos e a voz, levando-o a participar da luta. E à volta deles, como um campo de luz impenetrável, brilhava a lâmina da grande espada. Era minha e dele, Caliburn, a espada do rei da Bretanha. Balin saltou sobre o cavalo, esporeou-o e gritou pelo companheiro. Uma faixa de couro da túnica de Artur estava solta, mostrando onde um deles o atingira; provavelmente enquanto ele matava o barbudo. Depois, porém, não conseguiram mais atravessar o círculo mortal da espada em movimento e nem ousaram chegar perto das patas do garanhão. — Saia do caminho — o rei me ordenou. Tentei levantar-me e insisti durante algum tempo, mas minhas mãos estavam sujas de sangue e meu corpo tremia. Vi que não conseguia ficar em pé e me arrastei até o pinheiro caído, tornando a sentar-me. A luta continuava e fiquei ali, desamparado, trêmulo, velho, incapaz de ajudá-lo, enquanto meu menino lutava pela própria vida e pela minha. Alguma coisa brilhou perto do meu pé. Vi que era o punhal que Red arrancara de minha mão e apanhei-o. Ainda não conseguia me levantar, mas atirei-o com toda a força nas costas de Red. O impulso foi fraco, mas o brilho assustou o cavalo castanho, que se desviou, levando seu cavaleiro a soltar a espada. Com um ruidoso choque de metais, Caliburn a atirou para longe; Artur avançou com grande garanhão e matou Red com um golpe no coração. A espada custou um pouco a sair e o corpo caiu, pesando no braço de Artur. Mas o garanhão cinzento também era treinado para combate. Quando Balin tentou atingir o rei pelas costas, encontrou os dentes e as patas do cavalo. A dentada abriu uma ferida no cavalo claro, que relinchou de dor e lutou para soltar-se. Mas Balin, valente, embora malfeitor, forçou a cabeça do animal para trás no momento em que Artur livrava a espada do corpo de Red e os dois entraram em luta. Acredito que Balin, no último momento, reconheceu o rei. Mas nem teve tempo de falar para pedir misericórdia. Um novo golpe violento e Caliburn penetrou em seu pescoço, atirando-o na relva ensangüentada. Ele estremeceu, engasgou e afogou-se no próprio sangue. O cavalo ferido não fugiu, apesar de ficar livre. Baixou a cabeça e as pernas tremiam enquanto o ferimento sangrava. Os outros

cavalos tinham sumido. Artur saltou do garanhão e limpou a espada no corpo de Balin. Depois sacudiu o manto no braço esquerdo e se aproximou, trazendo o animal pela rédea. Tocou meu ombro manchado de sangue. — Esse sangue é seu? — Não. E você? — Nem um arranhão — respondeu alegremente, com a respiração acelerada. — Mas não foi um massacre, propriamente. Eles eram homens treinados, ou pelo menos foi o que pensei enquanto tinha tempo... Fique sentado mais um pouco, vou buscar água para você. Ele me entregou a rédea do cavalo, pegou o chifre enfeitado de prata que sempre trazia na cinta e foi até o rio. No caminho, pisou em alguma coisa e soltou uma exclamação. Virei a cabeça e vi que ele estava observando o conteúdo de minhas sacolas. Entre os restos de comida e o couro rasgado, viu o pedaço tecido que envolvia as peças de ouro. Balin deixara uma das pedras preciosas, ainda presa ao bordado da mortalha, caída na relva. Artur voltou-se, muito pálido. — Pela Luz! É você! — Quem mais poderia ser? Pensei que soubesse. — Merlin! — Ele voltou, lutando para recobrar o fôlego — Pensei... eu nem tive tempo de olhar... vi apenas uns bandidos assassinos assaltando um velho... desarmado. Achei que era um pobre, com esse cavalo e essas roupas... — Então ajoelhou-se perto de mim — Ah, Merlin, Merlin... E o Grande Rei de toda a Bretanha descansou a cabeça em meus joelhos e caiu num silêncio comovido. Depois de algum tempo, ergueu a cabeça. — Recebi o broche e o recado do mensageiro, mas acho que não acreditei muito nele. Quando ele me deu mais detalhes, achei que eu acertara em pensar... Nunca imaginei que você morreria com nós, homens comuns... mas no caminho para cá, sozinho e entregue a meus pensamentos, fiquei imaginando que não podia ser verdade. Não sei o que imaginei; talvez indo parar diante da entrada bloqueada da caverna, onde o enterramos vivo. — Ele estremeceu com um arrepio. — Merlin, o que aconteceu? Quando nós o deixamos lacrado na caverna, como morto, sua enfermidade nos enganou, era um verdadeiro cadáver. E depois? E quando voltou a si, sozinho e com a roupa do funeral? Deus sabe que isso seria suficiente para provocar outra morte! O que você fez? Como sobreviveu preso naquele morro? Como escapou? Quando? Você deve imaginar como senti sua perda. Por onde andou esse tempo todo? — Não faz tanto tempo. Quando escapei, você estava fora. Disseram que tinha ido para a Bretanha Menor. Não contei nada a ninguém e resolvi esperar sua volta na casa de Stilicho, meu antigo servo, que cuida do moinho perto de Maridunum. Logo contarei tudo, se você for buscar um pouco de água. — Ora, que bobagem, eu ia me esquecendo! — Ele correu até o rio e voltou com o chifre transbordando, ajoelhando-se para me dar de beber. — Obrigado, mas agora estou bem — peguei o chifre. — Não foi nada, eu não me feri. Fiquei envergonhado porque não pude ajudar. — Você me deu tudo o que eu precisava.

— O que não foi muito — comentei rindo. — Quase fiquei com pena daqueles coitados. Tinham uma morte tão fácil nas mãos e o próprio Artur surgiu como um relâmpago. Eu avisei, mas não quiseram acreditar. E quem pode culpá-los? — Você contou a eles quem era e ainda assim o trataram daquele modo? — Eu já disse, eles não acreditaram. E por que deviam acreditar? Merlin estava morto e o único poder que tive para usar foi seu nome, mas eles também não acreditaram. "Um velho, desarmado e pobre" — repeti sorrindo. — Ora, nem você me reconheceu. Eu mudei tanto? — É a barba e... — Ele me observava atentamente. — Sim, você está com os cabelos quase brancos. Mas, se eu visse esses olhos... — Pegou o chifre e levantou-se. — Oh, sim. é você. E, em tudo o que importa, não mudou nada. Velho? Claro, nós todos precisamos envelhecer. A idade é apenas a soma da vida. E você está vivo, voltou para ficar comigo. Pelo grande Deus do céu, está de novo ao meu lado. O que posso temer agora? Levei o garanhão e o cavalo ferido, que pastava mansamente, até a água. Depois que eles beberam, amarrei os dois e peguei uma poção em minha sacola. Quando tratei do ferimento do animal ferido, ele arregalou os olhos e a pele tremeu, mas não demonstrou nenhum sinal de dor. O corte ainda sangrava levemente, mas o animal não estava mancando. Deixei os dois pastando enquanto fui procurar os objetos espalhados de minha sacola. A maneira de Artur limpar a "confusão", como chamou a morte violenta dos três homens, foi arrastar seus corpos pelos calcanhares até um local escondido no começo da floresta. Depois levou a cabeça cortada pela barba, assobiando a melodia alegre de uma marcha de soldados que gabava as proezas sexuais do comandante. Por fim, olhou em volta. — A próxima chuva vai lavar esse sangue. Mesmo que eu tivesse o tempo necessário e pás à disposição, não enterraria esses cadáveres. Os corvos que fiquem com eles. Mas podemos levar seus cavalos. Eles pararam para pastar ali adiante na estrada. Mas primeiro preciso lavar o sangue, ou não deixarão me aproximar. Deixe aí seu manto, ele não vai servir mais. Tome, use o meu. Não, eu insisto, é uma ordem. Pegue. Ele largou-o no tronco do pinheiro e foi até o rio se lavar. Enquanto ele montava e ia buscar os animais, eu tirei o manto manchado de sangue e me lavei. Depois cobri os ombros com o manto púrpura real. Enrolei o meu e larguei perto dos homens mortos. Artur voltou a trote, trazendo os cavalos dos ladrões. — E agora? — perguntou. — Onde fica a estalagem com o pé de azevinho na placa?

8 O filho do taberneiro estava me esperando na estrada. A mãe provavelmente queria que ele avisasse nossa chegada para saber quando deveria servir a "refeição digna da corte do rei". Quando ele nos viu, dois homens e cinco cavalos, ficou olhando durante algum tempo e correu para dentro da estalagem. Ao chegarmos a uns a setenta passos de distância, o próprio dono saiu para nos receber. Ele reconheceu Artur quase imediatamente. Primeiro reparou na qualidade do animal que ele montava, depois observou o cavaleiro e ajoelhou-se na estrada. — Levante-se, homem — disse o rei alegremente. — Ouvi elogios sobre seu estabelecimento e quero experimentar sua hospitalidade. Houve uma pequena luta perto da passagem a vau. Não foi nada mortal, mas serviu para abrir o apetite. Mas isso pode esperar um pouco. Primeiro cuidem de meu amigo, você e sua mulher podem limpar suas roupas. E mande alguém tratar dos cavalos. Espero ansioso pela comida. O homem começou a murmurar alguma coisa sobre a pobreza da casa e falta de acomodações. — Quanto a isso — prosseguiu Artur —, sou um soldado e já passei por momentos em que qualquer abrigo era considerado um luxo. Pelo que ouvi falar de sua taverna, é um paraíso. E agora, podemos entrar? Não podemos esperar mais pelo vinho e pelo fogo... E não esperamos. Quando o taberneiro se recobrou da invasão real, cuidou logo dos assuntos mais imediatos. O menino foi tratar dos cavalos enquanto ele avivava o fogo e servia o vinho. Depois ajudou-me a limpar as manchas de sangue, trouxe água quente e roupas limpas da minha bagagem. A pedido de Artur, trancou a porta da estalagem para evitar a entrada de estranhos e foi para a cozinha, provavelmente deixando sua boa esposa em pânico. Depois que troquei de roupa e Artur se lavou, o homem serviu vinho e nos sentamos perto da lareira. Apesar de ter viajado apressadamente e enfrentado aquela luta, Artur parecia descansado como se estivesse começando o dia. Tinha os olhos brilhantes e o rosto corado de um menino. Parecia ter readquirido a juventude com a alegria de me ver e a emoção da luta. Quando o casal trouxe a refeição e fez um certo movimento para servir os frangos, ele os recebeu tão alegremente que logo a mulher esqueceu-se de sua realeza e começou a rir das brincadeiras, respondendo com outras. O marido puxoulhe o vestido e ela correu, mas ainda rindo. Finalmente ficamos a sós. A tarde curta estava acabando e logo acenderiam as luzes. Voltamos a nos acomodar perto da lareira. Acho que estávamos cansados e com sono, mas não queríamos descansar até comentar as novidades que não podiam ser ditas diante dos hospedeiros. O rei me contou que tinha feito apenas uma parada para dormir poucas horas e descansar o cavalo. — Se o mensageiro tinha dito a verdade, você estava em segurança e ia esperar por mim. Bedwyr e os outros me seguiram, mas também pararam para descansar. Eu disse que podiam ficar para trás, dando-me algumas horas de dianteira. — Isso poderia ter saído muito caro — comentei. — Aqueles bandidos? — perguntou com desprezo. — Se você não estivesse desarmado e distraído, teria enfrentado os três com uma mão nas costas. E houve um tempo, pensei, em que seria capaz de enfrentá-los sem arma alguma. Se Artur pensou a mesma coisa, não deu sinal.

— É verdade que eles não valiam uma espada como a sua. Falando nisso, ouvi alguma coisa sobre o roubo de Caliburn. Houve alguma relação com sua irmã Morgan? — Isso já passou e pode esperar — ele sacudiu a cabeça. — Agora o que importa é saber o que aconteceu com você. Conte. Conte tudo, não esqueça nada. E assim contei minha história. O sol foi baixando e o céu adquiriu um tom azul mais profundo, depois ficou cor de ardósia. O aposento estava silencioso, ouvíamos apenas as achas estalando e o ruído das chamas. Um gato saltou de algum canto e enrodilhou-se perto do fogo. Era um ambiente estranho para o caso que eu ia relatar, sobre a morte e um funeral dispendioso, o medo, a solidão e a sobrevivência desesperada, o assassinato frustrado e finalmente a salvação. Ele ouviu como tantas outras vezes, com toda a atenção, franzindo o cenho em certas passagens, mas tranqüilo no calor e na satisfação daquela tarde. Essa é uma lembrança que se repete e é sempre muito vivida quando penso nele. Uma sala silenciosa, o rei ouvindo, o fogo colorindo seu rosto e brilhando no cabelo escuro, os observadores olhos escuros, atentos à história que eu contava. Mas dessa vez havia uma diferença: ele ouvia com um propósito, somava e julgava o que sabia, pronto a agir. — Esse homem — disse por fim, levantando-se —, o ladrão de tumbas, precisamos encontrá-lo. Não será difícil, se ele está ganhando bebida em toda Maridunum com essa história... Quem será que ouviu você pela primeira vez? E o moleiro Stilicho, imagino que quer tratar da recompensa pessoalmente, não é? — Sim. Mas se você passar por lá algum dia... Talvez na próxima ida a Caerleon, quem sabe... Mai vai morrer de terror e êxtase, mas Stilicho ficará encantado com a homenagem... e de pois falará nisso pelo resto da vida. — É claro — ele disse. — Eu estava pensando, enquanto vinha pela estrada; vamos daqui para Caerleon. Acho que você ainda não está preparado para voltar à corte... — Não estou agora e nunca estarei. Nem a Applegarth. Saí de lá para sempre. — Não falei em Nimue, não tínhamos mencionado seu nome, evitando-o cuidadosamente em cada frase. — Sei que você lutará até a morte contra minha idéia, mas quero voltar a Bryn Myrddin. Todavia, ficarei felicíssimo em ficar com você em Caerleon até a caverna ficar novamente pronta para ser habitada. Ele objetou, naturalmente, e discutimos durante algum tempo. Finalmente, porém, concordou com uma condição que achei muito razoável. Eu não devia viver lá sozinho, mas com criados para me cuidar. — E se você precisa de sua preciosa solidão, pode ter. Vou construir uma casa para os criados fora da vista, abaixo do rochedo. Mas eles precisam ficar lá. — E isso é uma ordem? — perguntei sorrindo. — Certamente... Teremos tempo para tratar disso. Vou passar o Natal em Caerleon e você ficará comigo. Acho que não pensa em voltar a Bryn Myrddin antes do fim do inverno, não é? — Não. — Ótimo. Agora, há alguma coisa em sua história que não combina com os fatos... esse caso que você descreveu em Segontium. — Ele ergueu os olhos e sorriu — Então foi lá que você achou Caliburn? Na Capela da Luz, dos soldados? Bem, isso faz sentido. Lembro-me de que você disse, pouco antes de sairmos da floresta Selvagem, que tinham ficado outros tesouros. Falou de um cálice, ainda me lembro. Mas o presente que Morgause me trouxe não tinha nada de especial. São peças de prata, muito bonitas, feitas pelos artesãos do norte. Nada que poderia ser parte do tesouro que você descreveu.

— Entendo. Eu vi esse presente na visão. Mas quando o menino pastor me falou que uma mulher tinha desenterrado o tesouro de Macsen, imaginei que fosse Morgause. — E acha que foi ela mesma? — Não tenho certeza. Como poderia, sem meu pleno poder? — Mas você teve a visão de Morgause chegando com os meninos a Camelot. Sabia que o mensageiro me daria o recado e que eu viria encontrá-lo. — Mas não foi o poder — sacudi a cabeça. — Não o que nós conhecemos. Foi apenas o dom da vidência e provavelmente vou conservá-lo até a morte, mas é uma faculdade até comum, encontrada em maior ou menor grau nos adivinhos e curandeiros de qualquer vilarejo. O poder é mais que isso, é agir e falar com conhecimento; é comandar sem pensar, sabendo que vão obedecer. Isso acabou, mas não me lamento. — Prossegui depois de hesitar: — Nem você, espero. Ouvi alguns casos sobre Nimue. Como ela se tornou a nova Dama do Lago, a senhora do santuário da ilha. Disseram que os homens a chamam de maga do rei, que o tem ajudado muito. É verdade? — Sim, é verdade — ele desviou o olhar e curvou-se para arrumar a lenha no fogo. — Foi ela que resolveu o caso do roubo de Caliburn. — Soube que ela continua no norte — comentei, vendo que ele não dizia mais nada. — Ela está bem? — Muito bem — ele olhou satisfeito para o fogo mais forte, apoiando o queixo na mão. — Sendo assim, se Morgause estava com o tesouro quando embarcou, ele deve estar em algum lugar da ilha. Minha gente a impediu de descer do navio desde a partida de Segontium até aqui. Ela hospedou-se com Melwas, portanto nada me impede de averiguar. Morgause está detida pela guarda até minha volta. Se ela se recusar a falar, os meninos provavelmente responderão se forem cuidadosamente interrogados. Os mais novos ainda são muito inocentes e não acharão mal algum em contar a verdade. As crianças vêem tudo o que acontece, eles devem saber onde ela deixou o tesouro. — Tive a impressão de que você pretende criá-los na corte. É fato? — Viu isso também? Sim, é verdade. Então você viu que o mensageiro chegou no momento de salvar Morgause. Pensei no esforço que fizera para alcançá-lo com meu poder de sonhar, temendo que ela usasse o cálice roubado contra ele. — Você vai matá-la? — perguntei. — Claro, envenenou você. — Sem provas? — Não preciso de provas para condenar uma feiticeira. Ergui uma sobrancelha e repeti a frase dita na inauguração do Salão Redondo. — "Nenhum homem ou mulher será injustiçado ou punido sem um julgamento ou a prova manifesta de seu delito." — Está bem — ele sorriu. — Eu tinha a prova. Tinha sua palavra de que ela tentou matá-lo. — Foi que o ouvi dizer, mas pensei que era apenas para assustá-la. Eu não contei nada sobre ter sido envenenado por Morgause.

— Eu sei. E por que não contou? Por que fez segredo e não me disse que ela o envenenou para ir morrer na floresta Selvagem e foi a causa de sua doença, quase uma morte em vida? — Você mesmo respondeu, pois teria mandado matá-la na mesma hora. Mas ela era a mãe de seu filho pequeno, estava esperando outro e eu sabia que um dia os filhos de Morgause seriam seus fiéis servidores. Portanto, me calei. Quem contou? — Nimue. — Compreendo. E como ela ficou sabendo? Por adivinhação? — Não, foi alguma coisa que você disse quando delirava. Ela arrancara tudo de mim, até o último segredo. — Ah, sim... — respondi simplesmente. — E foi ela quem encontrou Mordred para você, não é? Ou Morgause resolveu trazê-lo abertamente porque Lot e eu estávamos mortos? — Não, ele continuava escondido. Parece que ficou hospedado em algum lugar nas ilhas Orkney. Nimue não teve nada a ver com isso. Ouvi falar nele por puro acaso, por meio de uma carta. Um ourives de York, que já trabalhou para Morgause, foi a Orkney pensando em vender-lhe outras jóias. Você sabe, essa gente viaja pelos quatro cantos do reino e está a par de todas as novidades. — Esse homem... é Beltane? — Você o conhece? — ele ergueu a cabeça surpreendido. — Sim, é cego e precisa viajar com um criado... — Casso — o rei respondeu e completou vendo meu espanto. — Eu disse que recebi uma carta. — De Casso? — Sim. Parece que ele estava em Dunpeldyr quando... Ah, compreendo. Eram as pessoas que estavam com você na noite do massacre. Aparentemente, Casso viu e ouviu muita coisa; as pessoas não dão atenção a um escravo e ele ouviu mais do que deveria. Seu amo, que jamais acreditara que Morgause tivera alguma coisa a ver com acontecimentos tão terríveis, foi até Orkney tentar a sorte novamente. Casso, que era menos crédulo, observou e ouviu tudo, conseguindo finalmente localizar a criança que desaparecera na noite do massacre. Mandou-me uma mensagem imediatamente. Por acaso Nimue acabara de me contar que Morgause era responsável pela sua longa doença e morte. Mandei chamá-la e ordenei que trouxesse Mordred também. Por que você está tão abalado? — Por dois motivos. Por que um escravo como Casso, que quando vi pela primeira vez servia como trabalhador braçal numa pedreira, resolveu escrever "diretamente" ao Grande Rei? — Esqueci de contar, ele já trabalhou para mim. Lembra-se quando fui a Lothian para atacar Aguisel? Como foi difícil descobrir uma maneira de destruir aquele chacal imundo sem atrair a ira de Tydwal e Urien sobre minha cabeça, jurando vingança? Alguém deve ter pensado a mesma coisa, porque recebi uma mensagem desse mesmo escravo apresentando provas de coisa que descobrira contra Aguisel enquanto estava a seu serviço. O canalha abusou de um pajem, um dos filhos mais novos de Tydwal, e depois o matou. Casso informou onde poderíamos encontrar o corpo. Nós achamos, junto com outros. O menino tinha morrido exatamente como ele contou. — E depois — prossegui secamente — Aguisel cortou a língua de todos os escravos que presenciaram o acontecido. — Você está me dizendo que ele é mudo? Agora compreendo por que todos falam tão livremente

diante dele. Mas Aguisel pagou caro por ignorar que seu pobre escravo sabia ler e escrever. — Ele não sabia. Quando o conheci, em Dunpeldyr, era mudo e desamparado. Fui eu que pedi a Beltane para ensiná-lo, como recompensa por ter me prestado um serviço especial e também para fazer uma boa obra aos olhos de Deus. — E eu que disse que descobri por "puro acaso"... — Artur sorriu, erguendo a taça de vinho. — Eu não devia esquecer de quem estava falando. É claro que recompensei Casso depois do caso Aguisel e lhe disse para mandar qualquer outra informação que lhe parecesse importante. Ele me foi bem útil, umas duas ou três vezes. E foi por isso que sua carta foi trazida imediata mente a mim. Conversamos durante algum tempo, depois voltei ao assunto. — O que pretende fazer com Morgause? — Vou ter de resolver esse assunto com sua ajuda quando voltar. Enquanto isso, ordenarei que a mantenham sob guarda no convento de Amesbury. Os meninos vão ficar comigo e passarão o Natal conosco em Caerleon. Os filhos de Lot não darão problemas; são ainda pequenos e vão se entusiasmar com a corte, mas já cresceram o suficiente para não precisar mais dos cuidados maternos. Quanto a Mordred, apesar do que você sempre disse, quero lhe dar uma oportunidade. Receberá o mesmo tratamento dos irmãos. Eu não disse nada. Durante a pausa, o gato ronronou mais fortemente e de repente suspirou, voltando a dormir. — Bem, o que você quer que eu faça? — Artur perguntou. — Ele agora está sob minha proteção, portanto não poderia matá-lo ou encarcerá-lo sem um bom motivo aparente. Ainda não pude pensar bem no assunto e teremos tempo para conversar mais tarde. Mas sempre achei, depois que o menino sobreviveu ao expurgo assassino de Lot, que seria melhor ele ficar perto de mim, em vez de continuar escondido em algum lugar do país, sendo criado como meu inimigo. Diga que concorda comigo. — Sim, eu concordo. — Portanto, se ele ficar comigo e eu reconhecer seu direito de nascimento, o que provavelmente nunca esperou... — Duvido que ele tenha pensado nisso — respondi. — Creio que Morgause não lhe contou a verdade. — Não? Então eu mesmo contarei, o que é ainda melhor. Ele sabe que eu não precisaria reconhecê-lo como filho. Merlin, talvez dê certo. Você e eu sabemos como foi passar a juventude como bastardos, sabendo só mais tarde que tínhamos o sangue de Ambrosius. E quem sou eu para me dar o direito de desejar a morte de meu filho? Uma vez já foi demais. Deus sabe que paguei por isso. — Ele desviou o olhar para as chamas com expressão amarga. Pouco depois ergueu os ombros. — Você me perguntou de Caliburn. Parece que minha irmã Morgan arranjou um amante; era um de meus cavaleiros, um excelente guerreiro chamado Accolon. Um bom homem, mas incapaz de dizer não a uma mulher. Quando o rei Urbgen esteve aqui com Morgan, ela passou o tempo todo lançando-lhe olhares sedutores. Logo o pobre passou a segui-la como um cãozinho de estimação... Antes de vir para o sul, ela mandara um ferreiro fazer uma cópia de Caliburn e, enquanto estava em Camelot, sugeriu que Accolon trocasse as espadas. Como estamos em tempos de paz, ela provavelmente calculou que teria tempo de voltar ao norte antes da substituição ser descoberta. Não sei o que prometeu a Accolon mas, quando ela partiu para o norte com o rei Urgben, ele foi junto. — Mas por que Morgan fez isso?

O olhar surpreso demonstrou como era estranha minha pergunta. — Ora, a razão de sempre, ambição. Morgan pretendia ver o marido no Grande Trono da Bretanha para ser sua rainha. Quanto a Accolon, não imagino o que esperava dela mas, seja o que for, custou-lhe a vida. Devia ter custado a dela também, mas não havia nenhuma prova concreta sobre sua participação no caso e, afinal, é a esposa de Urgben. O fato de ser minha irmã não a teria ajudado, mas Urbgen não tinha o menor conhecimento do plano e não posso me dar ao luxo de tê-lo como inimigo. — Como Morgan pretendia conseguir o que queria? — Você não estava mais conosco — respondeu Artur simplesmente. — Morgause deve tê-la informado de que você morreria a qualquer momento e Morgan preparou-se para novos tempos de grandeza. Acreditava que qualquer homem que erga a espada será seguido por todos e, empunhada pelo rei de Rheged... Mas primeiro eu teria de morrer, é claro. Eu usei a cópia da espada. O metal era quebradiço como vidro. Logo que senti o peso em minha mão, vi que havia alguma coisa errada, mas era tarde demais. No primeiro golpe, ela quebrou perto do punho. — E então? — Bedwyr e os outros gritaram "traição", querendo descobrir o culpado, mas nem precisei procurá-lo. Vi no rosto de Accolon que era ele o traidor. Apesar de estar com a espada inteira e eu com a minha partida, acho que ele ficou com medo. Atirei o pedaço em seu rosto e matei-o com minha adaga. Ele não ofereceu resistência; talvez fosse um homem sincero, afinal. Gosto de pensar assim. — E a espada verdadeira? Como você descobriu onde estava? — Nimue — ele respondeu. — Foi ela que me contou o que tinha acontecido. Lembra-se daquele dia, em Applegarth, quando ela me disse para ter cuidado com Morgan e a espada? — Sim, pensei que ela queria se referir a Morgause. — Eu também. Mas ela estava certa. Durante todo o tempo em que Morgan ficou na corte, Nimue manteve-se a seu lado, o que me causava uma certa surpresa, porque desde o início não houve simpatia entre as duas. — Artur soltou uma gargalhada. — Achei que era uma disputa entre as mulheres... ela também não gosta muito de Guinevere... mas acertou a respeito de Morgan. A bruxa a corrompeu quando ainda era uma menina. Não sei como Nimue conseguiu a espada de volta. Ela seguiu para Rheged com uma escolta armada e não a vi mais desde então. Eu ia dizer alguma coisa, mas ele ergueu a cabeça para ouvir alguma coisa. — Bedwyr vem chegando, se não me engano. Não tivemos muito tempo para conversar, Merlin, mas continuaremos depois. Como Deus é bom, teremos novas oportunidades. — Ele me ajudou a levantar. — Agora vá descansar. Você prefere descansar e deixar que eu receba Bedwyr e os outros? Mas aviso que não será uma reunião tranqüila. Provavelmente, vão beber o estoque do taberneiro durante a noite toda, até acabar... Preferi ficar com ele para receber os cavaleiros e bebermos juntos. Durante toda a longa e animada celebração, ninguém me falou em Nimue e eu também não perguntei.

9 Passamos o dia todo descansando no "Pé de Azevinho". Um grupo voltou ao rio para enterrar os homens mortos, seguindo de lá para Camelot com mensagens do rei. Outro foi enviado a Caerleon para avisar sua chegada. Mais tarde, enquanto eu descansava, os homens mais jovens foram caçar. O esporte proporcionou um jantar excelente e os pajens e criados que chegaram naquele dia ajudaram o casal de estalajadeiros a preparar e servir a refeição. Não sei quando foram dormir àquela noite e suspeito que os cavalos tenham ficado ao relento, porque o estábulo estava mais cheio que a estalagem. No dia seguinte, com evidente tristeza dos donos da casa, a comitiva real partiu para Caerleon. Mesmo depois da construção de Camelot, Caerleon continuava mantendo a posição de Artur. Chegamos com o dia claro e o vento agitando os estandartes do Dragão e fomos entusiasticamente saudados pelo povo até os portões do castelo. Insisti em viajar coberto com o manto e encapuçado, entre os últimos da comitiva. Artur finalmente aceitara minha decisão de não ocupar mais meu lugar a seu lado; uma abdicação não pode ser parcial, e aquela fora completa. Ele não mencionara a participação de Nimue nesse assunto, mas devia imaginar (como os outros, que não tocavam no nome dela comigo) o quanto ela absorvera do meu poder. Ela, mais que ninguém, devia ter "visto" que eu estava novamente sobre a terra e na companhia do rei; na verdade, devia saber que tinham me enterrado vivo naquela tumba... Mas ninguém fez perguntas e eu não estava preparado para dar as respostas que me pareciam verdadeiras. Em Caerleon, prepararam meus aposentos ao lado dos de Artur. Dois jovens pajens me observavam com grande curiosidade enquanto me conduziam pelos corredores cheios de criados. Muitos me conheciam e evidentemente tinham ouvido histórias estranhas; alguns passavam apressadamente, fazendo o sinal contra feitiços fortes, mas outros se aproximavam para cumprimentar e oferecer seus préstimos. Finalmente chegamos aos suntuosos aposentos e um camareiro me aguardava para mostrar as roupas que o rei enviara, assim como as jóias dos cofres reais. Ele ficou um pouco desapontado quando afastei o traje bordado em ouro e prata, e tons de azul pavão, preferindo um manto quente de lã espessa e vermelha, chinelos do mesmo tecido. — Vou providenciar as luzes e a água para seu banho, meu senhor — anunciou ao retirar-se. Já passava da hora de acender as luzes e me aproximei da janela para esperar os pajens, admirando o céu que variava do vermelho ao púrpura escuro. Não me voltei quando abriram a porta, observando as primeiras estrelas. O pajem andava de um lado a outro acendendo velas até que todo o cômodo ficou iluminado. Eu estava cansado depois de montar por tanto tempo e sentia o corpo pesado. Precisava me animar e me preparar para os festejos da noite. O menino saiu e deixou a porta aberta. — Obrigado — falei ao me voltar. — Agora, se for possível... Calei-me, não era um pajem. Nimue tinha entrado e se encostara na porta para me observar. Usava um longo vestido cinzento debruado de prata e enfeites de prata nos cabelos soltos, que caíam sobre os ombros. Seu rosto estava muito pálido e os olhos escuros muito abertos. Subitamente, eles se encheram de lágrimas. Ela correu e me abraçou, rindo, chorando e me beijando. Ao mesmo tempo, murmurava palavras

sem sentido. Só entendi que tinha chorado minha perda o tempo todo e eu estava vivo. — É magia — ela repetia com a voz um pouco assustada. — É magia, a mais poderosa que já vi. E você disse que tinha me dado toda a que possuía. Mas eu devia saber. Ah, Merlin, Merlin... Não importava o que a mantivera afastada ou cega para o que acontecia. Eu a abracei com força e ela apoiou a cabeça em meu peito. Senti seu cabelo roçar em meu queixo enquanto ela murmurava repetidamente, como uma criança: — Ah, é você. E você, de verdade. Você voltou. É a magia. Você ainda é o maior mago do mundo. — Foi apenas uma doença, Nimue. Ela enganou vocês todos. Não é magia. Eu dei toda a que tinha para você. — Sim, e como deu! — Ela ergueu o rosto com expressão trágica. — Rezo para que você não se lembre! Você me disse que eu devia aprender tudo o que ia me contar. Disse que eu precisava conhecer todos os detalhes de sua vida e que depois de sua morte eu devia ser Merlin... Que você ia me deixar, fugiria no sono... Eu tive de obedecer. Precisava extrair todo o seu poder, mesmo que para isso sugasse o resto de suas energias. Usei todos os meios que conhecia... eu o induzi, briguei, ameacei, dei estimulantes para trazê-lo de volta, obrigando-o a repetir tudo novamente... quando gostaria de deixá-lo dormir e morrer em paz, como teria feito com qualquer outro homem. E, porque você era Merlin e não outro homem, sofreu para me responder e deu tudo o que tinha. E assim, eu o acordava de minuto em minuto, e aparentemente o salvei. — Ela passou a mão em meu peito e ergueu os olhos cinzentos — Você me dirá a verdade? Jura pelo deus? — O que é? — Lembra-se do quanto o atormentei até a morte, como uma aranha sugando a vida de uma abelha? — Minha querida — menti, fixando os belos olhos —, não me lembro de nada, a não ser das palavras de amor e de Deus me levando em paz. Posso jurar, se você quiser. O alívio transpareceu em seu rosto, mas ela se recusava a aceitá-lo. — Mesmo assim, com todo o poder e conhecimento que você me transmitiu, não vi que o enterravam vivo e nem tive o impulso de libertá-lo. Merlin, eu devia saber, eu devia saber! Sonhei várias vezes, mas os sonhos eram confusos. Voltei uma vez a Bryn Myrddin, sabe? Fui até a caverna, mas a porta ainda estava bloqueada. Chamei, chamei, mas não ouvi nenhum som... — Calma, calma. — Ela estava tremendo e a abracei mais, beijando seu cabelo. — Isso já passou, estou aqui. Quando você voltou, eu ainda devia estar em transe. O que aconteceu foi por vontade de Deus, Nimue. Se Ele quisesse me salvar da tumba, teria falado com você. Mas me trouxe de volta no momento que escolheu e para isso me salvou de ser enterrado ou cremado. Você deve aceitar tudo e agradecer, como eu. — Era o que o Grande Rei queria. — Ela estremeceu novamente. — Artur queria uma pira digna de um imperador, para que sua morte servisse como uma fogueira de aviso aos vivos por toda a extensão das terras. Ele estava desesperado, Merlin, custou para me ouvir. Mas eu lhe contei que você tinha dito num sonho que queria ficar em paz na sua colina oca para ser parte da terra que amava. — Ela enxugou as lágrimas. — E era verdade. Tive mesmo esse sonho, entre outros. Mesmo assim, eu falhei. Quem fez o que eu devia ter feito e o ajudou a escapar de lá? O que aconteceu?

— Venha para perto do fogo, vou contar. Suas mãos estão frias, venha. Acho que ainda temos algum tempo antes de ir para o salão. — O rei vai nos esperar — informou. — Ele sabe que estou aqui, foi quem me disse para vir vêlo. — Ele disse? — Mas resolvi deixar o assunto para depois. Em um canto do aposento havia um braseiro diante de um canapé baixo, coberto de tapetes e peles. Sentamos lado a lado e tornei a contar minha história. Quando terminei, ela esquecera a tristeza e estava até um pouco corada. Apoiava-se em meu braço e segurava minha mão entre as suas. Mago ou mortal comum, não duvidei que aquela alegria fosse tão verdadeira quanto o brilho das brasas que nos aqueciam. Os tempos bons tinham voltado, mas, quer como mortal, quer como mago, eu ainda pressentia algum segredo. — Já contei o sonho que eu tive — disse Nimue depois de algum tempo. — Fiquei inquieta e comecei até a duvidar de que você estava realmente morto quando o deixamos na caverna. Mas não havia nenhuma dúvida; você ficou tanto tempo sem fazer qualquer movimento e aparentemente sem respirar, que os médicos declararam sua morte. E assim o deixamos lá. Depois, quando os sonhos me levaram de volta à caverna, tudo parecia normal. Chegavam outros sonhos, outras visões e tudo se confundia... Ela se afastou um pouco enquanto falava, mas continuou segurando minha mão. Virará o rosto e olhava fixamente as brasas. — E Morgan e o roubo da espada? — sugeri. — O rei lhe contou, não é? — ela respondeu, lançando-me um rápido olhar. — Você soube como a espada foi roubada. Precisei sair de Camelot e seguir Morgan para trazê-la de volta. Até lá o deus estava comigo. Enquanto fiquei em Rheged um cavaleiro chegou do sul para visitar a rainha e à noite, no salão de Urgben, contou um caso estranho. Seu nome é Bagdemagus, e é parente de Morgan e Artur. Lembra-se dele? — Sim. Tratei de um filho dele durante o verão, há dois anos. O garoto escapou da doença, mas ainda persistia uma pequena inflamação nos olhos. — E você lhe deu uma pomada e o aconselhou a usá-la se os olhos inchassem novamente. Contou que era feita com uma erva que você plantara em Bryn Myrddin. — E verdade, um tipo de esclaréia selvagem que encontrei na Itália e da qual trouxe um bom suprimento para Bryn Myrddin. Mas como ele achou que ia consegui-la? — Talvez tenha pensado que você a tivesse plantado, como fez em Applegarth. Naturalmente, ele sabia que você estava enterrado na colina. Não quis admitir, mas devia estar morto de medo. Ele nos contou sua história, como chegou a cavalo ao alto do monte e ouviu uma música que parecia sair da terra. O cavalo se assustou, disparou e ele não teve coragem de voltar. Confessou que não tinha contado a ninguém por receio que caçoassem dele, mas pouco antes de partir para o norte ouviu comentários sobre a caverna em Maridunum. Contaram que alguém vira e falara com seu fantasma... Bem, você sabe quem era, o ladrão de sua tumba. Reuni os fatos com meus sonhos repetidos e compreendi que você estava vivo na caverna. Eu teria partido de Luguvallium naquela noite, mas aconteceu uma coisa que me obrigou a ficar. Ela me olhou, esperando que eu soubesse o que ia dizer e ficou tão surpreendida quanto Artur, mordendo o lábio quando perguntei apenas:

— O que foi? — Morgause chegou com os cinco filhos — explicou. — Eu não era exatamente uma visita bemvinda, mas Urbgen me tratava com amabilidade e Morgan vivia praticamente agarrada em mim. Com certeza imaginava que o marido conteria sua fúria pelo que ela fizera enquanto eu estivesse lá. E, suponho que pensava que, mostrando-se minha amiga, eu intercedesse em seu favor com Artur. Mas Morgause... — ela ergueu os ombros, como se sentisse um arrepio. — Você a viu? — Rapidamente, não agüentei ficar perto dela. Saí, dizendo a todos que ia para o sul, mas não parti de Luguvallium. Enviei um pajem secretamente a Bagdemagus e ele veio me encontrar na casa em que eu me hospedara. É um bom homem e acha que deve a vida do filho a você. Eu não revelei que acreditava que você ainda estava vivo. Contei apenas que Morgause tinha sido sua inimiga e era a causa de sua ruína e morte que Morgan também era uma bruxa e inimiga do rei. Pedi-lhe encarecidamente que as espionasse para mim, vindo me informar os acontecimentos. Sabe, Merlin, eu muitas vezes tentara me ligar com a mente de Morgause, mas fracassara em todas. Minha única esperança era as irmãs conversarem sobre o acontecido revelando que veneno fora usado em você. Se meu sonho fosse certo e você ainda estivesse vivo, esse conhecimento poderia me ajudar a salvá-lo. Se não estivesse, eu teria mais uma prova para dar ao rei para condenar Morgause à morte. — Nimue passou a mão em meu queixo com carinho, mas tinha os olhos sombrios. — Sentei-me e esperei Bagdemagus voltar cheia de aflição, sabendo o tempo todo que você podia estar morrendo, sozinho, naquela tumba. Tentei alcançá-lo ou ver alguma coisa, pelo menos, mas sempre que tentava a luz apagava a visão e aparecia um grande cálice flutuando, como a lua na névoa. Depois ele desaparecia e o sofrimento da perda acabava com o sonho. Eu acordava nervosa, chorando de saudade e tornava a dormir. — Então você recebeu esse aviso? Minha pobre criança, ficou com a guarda desse tesouro... Bagdemagus avisou que Morgause ouvira falar dele e pretendia roubá-lo? — O quê? —? ela me olhou sem compreender. — O que está dizendo? O que Morgause tinha a ver com o cálice? O próprio deus ficaria maculado se ela o visse, apenas. Como saberia onde encontrálo? — Não sei. Mas foi buscá-lo. Alguém a viu pegar e me contou. — Então você ouviu uma mentira! — Nimue protestou com veemência. — Fui eu que o desenterrei. — Foi você que pegou o tesouro de Macsen? — Fui eu, sim. — Nos cândidos olhos cinzentos brilhavam dois pequenos focos vermelhos, como os que existem nos gatos. — Você me contou onde ele estava enterrado, não se lembra? Ou já estava em sua névoa, meu querido? — Sim, agora me lembro. — Você me disse que o poder era de difícil domínio. E foi mesmo a tarefa penosa para mim: ir a Segontium em vez de voltar rapidamente a Bryn Myrddin. Mas eu sabia que fora escolhida para esse trabalho e obedeci. Chamei dois servos de confiança e descobri o lugar. Tinha mudado, a capela já não existia. Mas cheguei ao local que você descrevera e cavamos. Talvez fosse muito mais demorado, mas tivemos ajuda.

— Um pastorzinho sujo, que bateu o cajado na terra e mostrou onde o tesouro estava escondido. — Ora, por que perco tempo em contar minha história? — Nimue sorriu alegremente. — Sim, ele chegou e mostrou o lugar em que devíamos cavar para tirar a caixa. Em seguida dirigi-me à fortaleza, falei com o comandante e dormi lá, com um guarda vigiando meu quarto. Durante a noite, com a caixa embaixo da cama, tive algumas visões. Sabia que você estava vivo, livre e que logo encontraria o rei. Portanto, pela manhã, pedi uma escolta para trazer o tesouro e vim para o sul, diretamente a Caerleon. — E por pouco não nos encontramos muito antes — falei. — Nos encontramos? Onde? — Você pensa que o pastorzinho me apareceu numa visão, mas a verdade é que estive lá pessoalmente. — Contei-lhe rapidamente minha passagem por Segontium e a visita ao santuário desaparecido. — E, quando o menino me contou que uma mulher bem vestida viera com dois escravos, eu, grande tolo que sou, imaginei que, se fosse Morgause... Calei-me e ela apertou minha mão subitamente. Seu olhar já não era risonho, com uma estranha mistura de temor e súplica. Eu não precisava da vidência para imaginar a parte da história que ela não tinha contado e nem o motivo que levara Artur e os outros a evitarem tocar em seu nome. Nimue, minha amada, não usurpara meu poder, nem tentara me destruir. A única coisa que fizera, depois da morte do velho mago, fora dormir com um homem mais jovem. Eu senti que esperara aquele momento por muito tempo e sorri. — Quem é essa pessoa especial? — perguntei amavelmente. Ela ficou muito corada e as lágrimas voltaram aos olhos. — Eu devia ter lhe contado desde o primeiro instante. Eles falaram que não tinham tocado no assunto com você, mas me faltou coragem. — Não me olhe assim, querida. O que houve entre nós dois foi algo muito nosso e ninguém pode tomar duas vezes o mesmo elixir do amor. Se eu ainda fosse pelo menos meio mago, teria sabido há muito tempo. Quem é ele? — Pelleas. Eu o conhecia. Era um príncipe jovem, bonito, amável e com um tipo de alegria que serviria para animá-la quando ela ficasse um tanto sombria, uma sua característica. Procurei elogiá-lo e Nimue logo se acalmou e começou a contar como o conhecera. Eu ouvia e observava, tendo mais tempo para reparar o quanto ela mudara. Era a mudança causada pelo poder, que ela assumira tão decididamente. Minha delicada Niniane tinha desaparecido comigo na bruma. Nimue tinha uma agudeza que não existia antes; alguma coisa tranqüila, mas grandiosa, um tipo de brilho contundente que parecia o gume de uma faca. E na voz, às vezes, soava um eco sutil dos tons mais graves Deus usava quando, com autoridade e poder, empregava a linguagem dos mortais. Esses atributos antes eram meus. Mas, quando eu os aceitara, não pensava no amor carnal. Pelo bem de Pelleas, desejei que fosse um moço decidido, com idéias próprias. — Ele é, sim — disse Nimue, lendo meu pensamento. Ergui meu olhar para ela e a vi com a cabeça inclinada para o lado e rosto cheio de alegria. Ri com ela e estendi os braços. Ela veio e me ofereceu os lábios. Beijei-a uma vez com paixão, depois com amor e a deixei partir.



10 Natal em Caerleon. Revejo imagens do sol, da neve e da luz das tochas, dos jovens e de risos, quando retiro do esquecimento aquele tempo de bravura e plenitude. Preciso apenas fechar os olhos; não, nem isso, basta olhar o fogo e elas estão todas comigo. Nimue me apresentando Pelleas, que me tratou com deferência e demonstrou seu amor por ela, me fazendo pensar que tinha uma compreensão digna de um rei. — Ela pertence ao Grande Rei e a mim — ele me disse. — Bem, é a mesma coisa, não? Eu também pertenço ao rei antes de ser dela. Qual de nós é dono de si mesmo diante de Deus e do rei? Bedwyr vindo ao meu encontro ao entardecer, na beira do rio, que corria cinzento entre as margens invernais. Um bando de cisnes na beirada lamacenta, deslizando entre os juncos. A neve tinha começado a cair, bem fina, flutuando no ar parado. — Disseram que eu o encontraria aqui — falou ele. — Eu vim buscá-lo. O rei o espera, vamos? Está frio e vai esfriar ainda mais. — Depois, enquanto voltávamos juntos, contou: — Tivemos notícias de Morgause. Ela foi mandada a Lothian, para um convento de Caer Eidyn. Tydwal vai providenciar para que nunca saia de lá. E dizem que a Morgan vai ficar com ela. Parece que o rei Urbgen não consegue perdoá-la por querer envolvê-lo na traição e tem medo de ser considerado culpado, uma culpa que se estenderia aos seus filhos, se ela continuar em sua companhia. Além disso, sabe do caso com Accolon e é o motivo que vai usar para repudiá-la. Pediu a permissão do Grande Rei. Creio que Artur se sentirá muito mais à vontade sabendo que suas queridas estão distantes, presas nas celas do claustro. Foi Nimue quem sugeriu esse castigo. — Ele riu, olhando-me de soslaio. — Desculpe, Merlin, mas agora que as maiores inimigas do rei são mulheres, faz-se necessário uma mulher para lidar com elas. E, se quer saber o que sinto, penso que tem sorte de ficar longe desses assuntos. Guinevere, sentada diante do tear numa manhã em que o sol brilhava na neve, um passarinho cantando na gaiola sobre o peitoril da janela. As mãos pararam o trabalho e ela voltou-se para observar os meninos brincando. — Poderiam ser meus filhos — comentou. Mas notei que ela não seguia as cabeças louras dos filhos de Lot, olhando apenas para o moreno Mordred. Ele estava um pouco afastado e olhava o que os outros faziam, não como um rejeitado perto de irmãos mais favorecidos, mas como um príncipe observa seus súditos. O próprio Mordred. Nunca falei com ele. Os meninos ficavam geralmente na ala infantil do palácio ou aos cuidados do mestre-de-armas incumbido de treiná-los na arte da guerra. Mas ao fim de uma tarde cinzenta eu o encontrei parado perto de um portão do jardim, como se esperasse alguém. Parei, imaginando como reagiria ao cumprimento de um inimigo de sua mãe, mas ele virou-se, sem perceber minha aproximação, voltando o olhar para Artur e Guinevere que surgiam entre os canteiros de rosas. O rapaz foi ao seu encontro e começaram a conversar. Vi a rainha sorrir e estender a mão. O rei disse alguma coisa, olhando-o com carinho. Mordred respondeu e, obedecendo a um gesto de Artur, posicionou-se entre os dois para recomeçar o passeio. E finalmente Artur, uma noite, em seus aposentos particulares, quando Nimue mostrou-lhe a caixa com o tesouro de Segontium.

A caixa estava sobre uma grande mesa de mármore que pertencera a meu pai. Era de metal, pesada e com a tampa amassada e partida, sem dúvida devido ao desmoronamento do santuário. O rei segurou-a e ela resistiu por um momento, mas abriu em seguida. Dentro estavam as coisas exatamente como eu lembrava. O tecido podre e um rasgo mostrando o brilho da ponta da lança. Depois um prato de ouro com a borda incrustada de pedras preciosas. E finalmente, envolta em um pedaço de linho sujo de poeira, a taça. Era o tipo de taça que também chamam de copa ou cálice, larga e profunda seguindo o modelo grego. Era de ouro e parecia bem pesada. Havia um trabalho de ourivesaria na borda e no pé. As duas alças tinham o formato de asas de pássaro. Um pouco abaixo da borda havia esmeraldas e safiras incrustadas no metal. Artur ergueu-a com as duas mãos e me mostrou. — Pegue e admire, é a coisa mais preciosa que já vi. — Eu não devo tocá-la — respondi sacudindo a cabeça. — Nem eu — disse Nimue. Ele admirou-a por mais algum tempo, depois tornou a colocá-la na caixa com a lança e o prato, envolvendo as peças no linho tão puído que parecia um véu. — Vocês também não querem dizer o que devo fazer este esplendor ou onde guardá-lo? Nimue me olhou em silêncio. Quando falei, foi apenas um eco do que eu dissera muito tempo atrás. — Ele também não é para você, Artur. Você não precisa desse tesouro. Você mesmo será o cálice de seu povo e ele ficará satisfeito com o que lhe der de beber. Você nunca falhará com sua gente, nem vai abandoná-la. Não precisa do graal. Deixe-o para quem vier depois. — Então, já que não é meu nem seu — disse Artur —, Nimue deverá escondê-lo com algum encantamento para que só seja encontrado por quem verdadeiramente o mereça. — Sim, é o que acontecerá — sorriu Nimue, fechando a tampa sobre o tesouro. Depois disso, outro inverno terminou e a primavera chegou lentamente. Fui para casa no fim de abril, com o vento mais quente, os carneiros balindo na colina e os amentilhos amarelos florindo. A caverna voltara a ser um abrigo quente e um bom lugar para viver. Havia comida, pão fresco, leite e mel. Todas minhas coisas tinham sido trazidas de Applegarth: livros, instrumentos, remédios, a harpa grande. Ao chegar eu encontrara junto à fonte oferendas trazidas pelos bondosos habitantes das redondezas. O retorno à vida foi mais fácil do que eu imaginava. Aparentemente, a gente simples e moradores das regiões mais distantes da Bretanha tinha aceitado a história de minha volta da morte, considerando-a mais uma lenda, não um fato verdadeiro. Na realidade, o Merlin de que tanto falavam e temiam estava mesmo morto. O Merlin que agora vivia na "caverna sagrada" e praticava magias menores era apenas o fantasma do mago que eles tinham conhecido. Talvez pensassem que eu, como tantos outros no passado, era apenas um curador querendo se passar pelo antigo profeta do rei. Na corte, nas grandes cidades e nas áreas mais populosas, as pessoas agora recorriam ao poder de Nimue, mas os que moravam perto do monte me procuravam para curar seus males e acalmar suas dores. Era para mim que Ban, o pastor, trazia os carneiros doentes, e as crianças subiam desde a vila para me apresentar seus

bichinhos de estimação. E assim aquele ano passou tão suavemente e tão rápido que parecia apenas o entardecer de um dia sereno. Eram dias dourados, doces e tranqüilos, sem necessidade do uso do poder, sem grandes ventos, sem dor na terra ou sofrimento na carne. Os grandes feitos do reino pareciam distantes demais para me preocupar. Eu não procurava notícias, porque me eram transmitidas pelo próprio Grande Rei. Tal como o pequeno "Emrys" cavalgava até a capela da Floresta Selvagem para me contar tudo o que acontecera naquele dia, Artur, o rei, sempre que podia vinha descansar comigo ao pé da lareira, comentando seus atos, problemas e preocupações. Não sei em que imaginava que eu poderia ajudá-lo, mas para mim suas visitas representavam um enorme prazer e, depois de sua partida, eu ficava calado, saboreando uma grande satisfação. O deus, que era Deus, concedera realmente a liberdade ao seu servo, deixando-o viver em paz. Um dia eu peguei a pequena harpa e resolvi compor novos versos para uma canção que costumava tocar no passado. Mago, descanse aqui enquanto o fogo se extingue. Num suspiro, num pestanejar, Você verá os sonhos; A espada e o jovem rei, O cavalo branco e a água correndo, A candeia acesa e o menino sorrindo. Os sonhos, mago, os sonhos! Sumiram como o eco da harpa quando as cordas emudecem; com a sombra da chama quando o fogo se extingue. Fique quieto, ouça. Distante, na escuridão Ruge o grande vendaval, ergue-se A onda ligeira, corre o rio cristalino. Ouça, mago, ouça Através da escuridão e do ar sonoro A música... Fui obrigado a abandonar a canção porque uma corda quebrou. Artur prometera trazer cordas novas quando viesse da próxima vez.

Ele chegou ontem. Disse que tinha um assunto a resolver em Caerleon e aproveitara para me fazer uma visita, mas poderia ficar apenas uma hora. Quando perguntei o que estava acontecendo, desviou o assunto, o que me deixou intrigado, pois me parecia um absurdo ele ter feito uma viagem tão longa apenas para me ver. Como sempre, chegou carregado de presentes: vinho, um cesto de alimentos preparados em sua cozinha, as cordas prometidas e uma manta nova de lã macia, tecida especialmente pelas damas da rainha. Ele mesmo entrou carregando tudo, como um serviçal, e guardou tudo para mim. Mostrou-se animado, falando de um jovem que chegara à corte recentemente, um nobre guerreiro primo distante do falecido March da Cornualha, e depois contou sobre um encontro que planejava ter com o "rei" saxão sucessor de Eosa, Cerdic. Conversamos até o anoitecer, quando a escolta subiu do vale para buscá-lo. Ao levantar-se, como sempre, me beijou na face. Geralmente nos despedíamos e eu ficava perto da lareira, mas dessa vez o acompanhei até a porta da caverna para vê-lo partir. A luz, por trás, alongou minha sombra pelo terreno, chegando às árvores abaixo do morro onde a escolta o esperava. Era quase noite, mas além de Maridunum, a oeste, uma faixa de luz acompanhava o sol poente e se refletia no rio até a parede do palácio em que nasci, brilhando como uma jóia a distância. As árvores próximas estavam desfolhadas pelo inverno e no solo surgia a primeira geada. Artur afastou-se pela relva, deixando marcas no chão gelado. Chegando à beira da descida mais íngreme, voltou-se e ergueu a mão. — Espere por mim — despediu-se como sempre. — Eu voltarei. E, como sempre, respondi: — O que mais posso fazer a não ser esperá-lo? Estarei aqui quando voltar. O ruído dos cavalos distanciou-se e sumiu. O silêncio voltou ao vale e a escuridão aumentou. Uma brisa noturna passou como um suspiro pelas árvores cobertas de gelo, sem nenhum som propriamente dito, apenas um suave sussurro quase inaudível. Ergui a cabeça tornando a me lembrar do tempo de criança, quando todas as noites ficava atento à música das esferas, mas nunca conseguira ouvir. E naquele momento ela me envolvia, doce e etérea, como se a própria próprio monte fosse uma harpa para a brisa. A noite escura chegou. Atrás de mim, o fogo baixou e minha sombra desapareceu. Mas eu continuava atento aos sons, invadido por uma grande calma e satisfação. O céu, pesado com a noite, aproximou-se da terra. O brilho do mar distante se movia, luz e sombra fazendo lembrar o arco vagaroso descrito por uma espada voltando à bainha ou um barco distante singrando a água longínqua. A escuridão trouxe a quietude. Senti na pele um arrepio, como o toque frio do cristal. Deixei a noite com suas remotas e cantantes estrelas, e voltei para o calor do fogo, para a cadeira que Artur ocupara antes e para a harpa sem cordas.

A Lenda Quando o rei Uther Pendragon estava moribundo, Merlin aproximou-se dele à vista de todos os nobres e o fez reconhecer seu filho Artur como o novo rei. Ele obedeceu e logo expirou, sendo enterrado ao lado de seu irmão, Aurelius Ambrosius, na Ciranda dos Gigantes. Merlin mandara fazer uma grande espada e a fixara por meio de mágica numa grande pedra com o formato de um altar. Na lâmina da espada estava escrito: "Aquele que tirar esta espada da pedra será por direito o rei de toda a Bretanha". Quando finalmente todos os homens se convenceram de que somente o jovem príncipe fora capaz de removê-la, eles gritaram: "Que Artur se torne nosso rei sem mais delongas, pois todos vimos que isso é da vontade de Deus e aquele que se levantar contra ele será morto". Assim Artur foi aceito por todos, ricos e pobres. Ao ser coroado, fez de Sir Kay o senescal da Bretanha e de Sir Ulfius seu camareiro-mor. Depois disso houve muitos anos de guerras e combates, mas um certo dia Merlin chegou montado num grande cavalo negro e disse ao rei: "Será que nunca consideras tua tarefa como terminada? Chegou a hora de dizer 'Alto!' e voltar à tua morada para repousares e recompensares teus bons cavaleiros com ouro e prata, pois eles bem os mereceram". "Muito bem falado", disse Artur, "e o que imaginaste será feito." Então Merlin despediu-se do rei e viajou para visitar seu mestre, Blaise, que morava em Northumberland, e Blaise registrou as batalhas, letra por letra, como Merlin foi ditando. Um dia o rei Artur disse a Merlin: "Meus barões não me darão descanso enquanto eu não arranjar uma esposa". "Sim", concordou o mago, "será bom tu te casares. Existe alguém que amas mais do que qualquer outra?" "Sim", disse o rei, "amo Guinevere, a filha do rei Leodegrance, da terra de Cameliard, que guarda em sua casa a Távola Redonda que tu me disseste ter sido de meu pai, Uther." Merlin então avisou o rei que não seria bom ele se casar com Guinevere e o alertou que Lancelot iria amá-la e seria correspondido. Apesar de tudo o rei decidiu casar-se com Guinevere e mandou Sir Lancelot, o líder de seus cavaleiros e seu maior amigo, ir buscá-la em seu lar. Durante a viagem a profecia de Merlin tornou-se realidade e Lancelot e Guinevere se apaixonaram, embora não pudessem concretizar seu amor. Pouco depois Guinevere estava casada com o rei, a quem seu pai enviara a Távola Redonda como presente de casamento. A meia irmã de Artur, Morgause, dera à luz um seu filho bastardo, chamado Mordred. Merlin profetizara que um grande perigo, partindo dessa criança, ameaçaria o reino e ele próprio, por isso, quando o rei soube do nascimento mandou que todas as crianças nascidas por volta de primeiro de maio fossem colocadas num navio e abandonadas à deriva. Algumas tinham um mês, outras menos do que isso. Por acaso o navio bateu num rochedo onde havia um castelo. Todas as crianças morreram, exceto Mordred, que foi encontrado por um bom homem e criado por ele até os catorze anos de idade, quando foi apresentado ao rei. Logo depois do casamento com Guinevere, Artur teve de deixar a corte e na sua ausência o rei Meleagant (Melwas) raptou a rainha e levou-a para seu reino, de onde ninguém voltava. O único modo de invadir a prisão cercada por um fosso era atravessar duas pontes muito perigosas. Uma delas era chamada de "a ponte de água", porque a ponte, muito estreita e invisível, ficava submersa. A outra era muito mais perigosa e jamais fora atravessada por um homem, por ser feita de uma lâmina afiada dos dois lados. Ninguém, a não ser Lancelot, se atreveu a tentar salvar a rainha. Ele viajou por território desconhecido até se aproximar da casa que Meleagant construíra para ela. Atravessou a ponte feita da lâmina de espada e sofreu vários ferimentos, mas conseguiu salvar a rainha e mais tarde, na presença do

rei Artur e da corte, entrou em combate com Meleagant e matou-o. Acontece que Merlin se apaixonou por uma das donzelas do Lago, cujo nome era Nimue, e não lhe deu descanso, querendo ficar para sempre com ela. Merlin avisou o rei Artur que não ficaria muito tempo na face da terra e que, apesar de toda sua mágica, seria enterrado vivo, alertando-o também que deveria guardar muito bem sua espada e bainha, pois senão elas seriam roubadas pela mulher em que ele mais confiava. "Ah", disse o rei, "já que sabes de tua sina, porque não usas tuas artes mágicas para afastá-la de ti?" Merlin respondeu: "Isso não pode ser feito, porque está ordenado que tu terás uma morte honrosa e eu uma morte vergonhosa". Então ele deixou a presença de Artur. Logo depois Nimue a donzela do lago, partiu dali e Merlin a seguiu por todos os lugares que ela percorreu. Os dois atravessaram o mar para a terra de Benwick, na Bretanha Menor, onde o soberano era o rei Ban, que com sua esposa, Elaine, gerara um menino chamado Galahad. Merlin profetizou que um dia Galahad seria o homem mais dedicado a Deus em todo o mundo. Então Nimue e Merlin deixaram Benwick e foram para a Cornualha. Nimue tinha muito medo de Merlin por ele ser o filho de um demônio e não sabia como se livrar dele. Acontece que um dia Merlin lhe mostrou uma caverna num rochedo que podia ser lacrada com uma grande pedra e ela, usando todo o seu poder de sedução, convenceu Merlin a entrar nessa caverna para lhe mostrar a mágica que habitava ali, mas lançou-lhe um encantamento que não o deixou mais sair. Então ela foi embora abandonando-o preso na caverna. Pouco tempo depois, um primo do rei, chamado Bagdemagus, deixou a corte para procurar um galho de uma erva santa usada na cura de doenças. Quando passou perto da caverna onde a Dama do Lago prendera Merlin, ouviu os lamentos do mago. Sir Bagdemagus quis socorrê-lo mas, quando tentou mover a pedra, viu que era tão pesada que nem cem homens conseguiriam tirá-la do lugar. Quando Merlin ficou sabendo que o cavaleiro estava ali, disse-lhe para poupar seus esforços, porque tudo o que fizesse seria em vão. Portanto, Bagdemagus partiu, deixando Merlin em sua prisão. Enquanto isso, acontecera o que Merlin previra e a irmã de Artur, Morgana, a fada, roubara a espada Excalibur e sua bainha, dando-as a Sir Accolon ele as usar num combate contra o próprio rei. Quando Artur estava se arrumando para a luta, veio uma donzela a mando de Morgana, a fada, trazerlhe uma espada igualzinha a Excalibur e ele a aceitou sem perceber o engano. A espada era falsa e quebradiça. Começou então o combate entre o rei e Accolon. A Dama do Lago foi assistir porque sabia que Morgana, a fada, desejava fazer mal a Artur e pretendia salvá-lo. A espada que ò rei carregava quebrou-se em suas mãos e foi só depois de uma terrível luta que ele conseguiu tirar Excalibur de seu oponente e vencê-lo. Então Accolon confessou a traição de Morgana, a fada, a esposa do rei Urien, e o rei lhe concedeu o perdão. Depois disso a Dama do Lado tornou-se a amiga e guardiã do rei Artur, substituindo Merlin, o mago.

Notas da Autora Segundo a lenda, cuja principal fonte é Mort d'Arthur, de Malory, Merlin permaneceu pouco tempo na face da terra depois da coroação de. Artur. O período de batalhas e torneios que se segue à cerimônia pode certamente ser tomado como representando as verdadeiras guerras empreendidas pelo Artur histórico. Tudo o que sabemos do verdadeiro chefe guerreiro, Artur, o Soldado (dux bellorum), é que ele esteve em doze importantes batalhas antes de poder considerar a Bretanha como estando a salvo do inimigo saxão e que acabou morrendo; junto com Mordred, na batalha de Camlann. O relato desses doze combates pode ser encontrada na Historia Brittonum, escrita pelo monge galés Nennius, no século 9. Naqueles dias, Artur lutou contra eles junto com os reis dos bretãos, mas ele era o verdadeiro líder. A primeira batalha aconteceu na embocadura do rio chamado Glein. A segunda, terceira, quarta e quinta, às margens de um outro rio, chamado Dubglas, que fica na região de Linnuis. A sexta batalha aconteceu junto ao rio chamado Bassas. A sétima foi uma batalha no bosque de Celidon, que é Cat Coit Celidon. A oitava foi a batalha no Castellum Guinnion, onde Artur carregou a imagem da Sempre Virgem Maria nos ombros. Os pagãos foram postos a correr naquele dia e houve um grande massacre através do poder do Senhor Jesus Cristo e da Virgem Maria, sua mãe. A nona batalha foi na Cidade das Legiões. A décima batalha aconteceu nas margens do rio chamado Tribuit. A décima primeira foi na montanha chamada Agned. A décima segunda foi a batalha do monte Badon, onde, num único ataque, Artur sozinho matou 960 homens. E em todas as batalhas ele foi vencedor. Apenas duas dessas batalhas podem ser localizadas com alguma certeza: a da antiga floresta Caledoniana, que se estendia de Strathclyde até o moderno Distrito dos Lagos, e a da Cidade das Legiões, que tanto poderia ser Chester como Caerleon. Eu me contentei em usar essas duas informações transmitidas por Nennius e em identificar apenas um outro lugar, a batalha do rio Tribuit. Já foi sugerido que esse é um antigo nome do rio Ribble. Existe um lugar onde a velha estrada romana atravessa esse rio e dirige-se para Aire Gap (o "vão dos Peninos"), chamado Nappa ou o vau Nappa, e a tradição local lembra de uma batalha ocorrida ali. O acampamento próximo a esse lugar, a que chamei de "Tribuit", ficava em Long Preston e os outros dois, situados no vão, eram, é claro, Elslack e Ilkley. Também usei a tradição de que Artur combateu em High Rochester (Bremenium), nos montes Cheviots. Foram esses os únicos "sítios de batalha" que inseri no mapa. Blaise. Segundo Malory, Blaise "narrou as batalhas de Artur palavra por palavra" e, se essa crônica um dia existiu, ela desapareceu por completo. Tomei a liberdade de criar um personagem destrutivo na pessoa de Gildas, o filho mais novo de Caw de Strathclyde e irmão de Heuil, que são personagens históricos. Somos informados de que Artur e Heuil se odiavam. Gildas, o monge, escrevendo em cerca de 450 d.C, refere-se à vitória em "monte Badon", mas sem mencionar o nome de Artur, o que foi interpretado no mínimo como um sinal de desaprovação de um líder que não se mostrara amigo da Igreja. A Doença de Merlin. O episódio da floresta Selvagem é extraído da história da loucura de Merlin como contada em Vita Merlini, um poema em latim comumente atribuído a Geoffrey de Monmouth. Ele é em parte uma releitura de uma lenda céltica muito mais antiga, intitulada Lailoken, que

fala de um louco que vagava pela floresta Caledoniana. Merlin-Lailoken esteve na batalha de Arfderydd (a moderna Arthuret, perto de Carlisle), onde seu amigo, o rei, foi morto. Enlouquecido pela dor, ele fugiu para a floresta, onde levou uma triste vida. Existem dois poemas em The Black Book of Carmarthen que são atribuídos a Merlin: em um ele descreve a macieira que o abriga e alimenta na floresta e no outro dirige-se ao porquinho que é sua única companhia. Guenever e Guinevere. A tradição afirma que Artur teve duas esposas com o mesmo nome, ou até mesmo três, embora isso provavelmente tenha sido apenas uma licença poética. O rapto de Guinevere por Melwas (ou Meleagant) está descrito no romance medieval Lancelot, de Chrétien de Troyes. Nele, Lancelot tem de atravessar uma ponte feita de lâmina de espada que leva à colina oca de uma fada e o conto é mais uma versão da antiga fantasia de rapto encontrada nas lendas de Dis e Perséfone ou de Orfeu e Eurídice. Segundo as lendas medievais, Guinevere freqüentemente era raptada e, com a mesma freqüência, era salva por Lancelot. Os trovadores medievais encontravam em "o rei Artur e sua corte" uma rica fonte para os mais variados contos, e com o tempo foi surgindo uma longa série de histórias em torno desses personagens, tal como fazem atualmente os escritores de novelas para a televisão. Pouco a pouco Artur vai passando para um segundo plano e vários novos "heróis" ganham o centro do palco, como Lancelot, Tristão, Gawain e Gereits. Lancelot, sendo pura ficção e uma invenção surgida muito depois dos "fatos arturianos", é construído para preencher o papel de amante da rainha, um personagem essencial para os romanceiros medievais e suas convenções sobre o amor na corte. Entretanto, é tentador acreditar que a primeira das "histórias de rapto", onde o malfeitor é Melwas, está fundamentada em fatos. Melwas existiu com certeza e foram encontrados restos que indicam a presença de fortalezas perto do Tor de Glastonbury e suas redondezas. Em minha história, Bedwyr, cujo nome está ligado ao de Artur muito antes do surgimento de "Lancelot", toma o lugar deste. Para criar Guinevere, acredito que fui influenciada pelo tratamento que Chaucer deu à "falsa" Criseyde. Nimue (Niniane, Vivien). Não é preciso atribuir o mesmo tipo de "falsidade" à amante de Merlin, Nimue. O tema da "traição" desta lenda tem origem na necessidade de explicar a morte ou desaparecimento do todo-poderoso mago. Minha versão do fim de Merlin está baseada numa tradição que ainda existe em partes do "Summer Country". Ela me foi enviada há muitos anos por um correspondente de Wiltshire. Essa versão conta que Merlin, vendo a aproximação de sua velhice, desejou transmitir seus poderes mágicos a alguém que depois de sua morte o substituiria como conselheiro de Artur e escolheu Nimue como discípula, que se mostrou adequada ao cargo. Essa lenda não apenas dá dignidade ao "grande mago" como também lhe atribui uma boa dose de senso comum e explica a subseqüente influência de Nimue sobre Artur. De outra maneira, o rei dificilmente a teria mantido a seu lado ou aceito sua ajuda contra os inimigos. Ninian. O episódio do "menino Ninian" me foi sugerido por um outro incidente encontrado em Vita Merlini. Nele, Merlin vê um jovem comprando sapatos e tiras de couro para torná-os mais fortes e duráveis, e sabe que o menino não irá usá-los porque morrerá afogado no mesmo dia.

Cerdic Elesing. As crônicas anglo-saxãs registram que Cerdic e seu filho, Cynric, aportaram em Cerdices ora com cinco navios em 494 d.C. Cerdic era Elesing (o filho de Elesa ou Eosa). Sejam quais forem as dúvidas sobre as datas das batalhas de Cerdic ou a localização de suas primeira conquistas (atualmente acredita-se que Cercides ora seria Netley, perto de Southampton), todos os cronistas parecem concordar que ele foi o fundador da primeira monarquia saxã-ocidental, da qual Alfred afirmava descender. Para mais informações sobre Cerdic e as modificações nos ritos funerários sugeridas pelo personagem Gereint, consultar a História dos Anglo-Saxões, de Hodgkin, vol. 1, seção IV. LLud-Nuatha ou Nodens. O santuário de Nodens ainda pode ser visto em Lydney, região de Gloucestershire. A canção de Merlin. O Solitário está baseado no poema anglo-saxão chamado The Wanderer (O Caminhante). Finalmente, para as muitas falhas em meu conhecimento sobre esse grandioso tema, só posso pedir perdão e parafrasear o que H. M. e N. K. Chadwick escreveram no prefácio de sua obra, Growth of English Literature: "Se eu tivesse lido mais, nunca teria terminado este livro", acrescentando: Se eu soubesse que haveria tanto para ler, jamais teria ousado começar a escrever. Pelo mesmo motivo não me é possível dar a lista completa de todas as autoridades que segui, mas posso ter a esperança de que minha trilogia de Merlin talvez seja um começo para um outro entusiasta do assunto. Mary Stewart Edinburgo, 1975-1979

{1}

Referência à mitologia galesa — criança aleijada que as fadas deixam em lugar que roubam. (N. da T.) {2}

No original, tinderbox: estojo em que se guardavam a isca, o fuzil e a pederneira para fazer fogo. (N. da T.).

{3}

Fabricado por Ambrosius (N. do T.).

{4}

Ou (possivelmente) bretão. Ou fontes galabes, como é às vezes traduzida. {6} Bede, o historiador do século vil, chama-o de "Ambrosius, romano" (Eccle-siastical History of the English Nation). {7} Introdução à edição Everyman da História dos reis da Bretanha. Fevereiro 1968 - Fevereiro de 1970 {8} História dos Reis da Inglaterra — Traduzido por Sebastian Evans e revisto por Charles W. Dunn (Everyman's Library, 1912). {9} Ver A Inglaterra Romana e as Colônias Inglesas — R. G. Collingwood e J. N. L. Myres (Oxford, 1937). Inglaterra Celta — Nora K. Chadwick, Vol. 34 da série Povos e Lugares Antigos, ed. Glyn Daniel (Thames e Hudson, 1963). {10} Publicado por Collins, 1960. "Ver também A Procura da Inglaterra de Artur, ed. Geoffrey Ashe (Pall Mall, 1968). {5}