Para Glynis Uma luz muito especial que todos nós adoramos. Com o nosso amor e profundo respeito.
Prefácio The New York Times Sexta-feira, 11 de julho de 1975 Primeira página DIPLOMATAS ESTÃO LIGADOS AO CASO DO TERRORISTA FUGITIVO CONHECIDO COMO CARLOS PARIS, 10 de julho — A França expulsou hoje três diplomatas cubanos do alto escalão que estavam em conexão com a procura de um homem chamado Carlos, que se acredita ter importante ligação em uma rede internacional de terrorismo. O suspeito, cujo nome verdadeiro supõe-se ser Ilch Ramirez Sanchez, está sendo procurado pela morte de dois agentes de contra-espionagem e um informante libanês, ambos mortos em um apartamento do Quartier Latin, a 27 de junho último. As três mortes trouxeram a polícia até aqui e depois para a Bretanha, onde crêem haver uma trilha de uma rede de agentes internacionais do terrorismo. Na busca de Carlos, depois das mortes, os policiais franceses e britânicos descobriram provisões de armas que ligavam Carlos ao terrorismo da Alemanha Ocidental e foram levados a suspeitar da existência de uma conexão entre os vários atos terroristas em toda a Europa. Foi visto em Londres Desde então, Carlos tem sido visto em Londres e em Beirute, no Líbano... Associated Press Segunda-feira, 7 de julho de 1975 Syndicated dispatch OPERAÇÃO REDE-FINA PARA PEGAR ASSASSINO LONDRES (AP) — Balas e garotas, granadas e boas roupas, carteira bem-recheada, passagens aéreas para lugares românticos e agradáveis apartamentos em meia dúzia de capitais de várias partes do mundo. Este é o retrato de um assassino da era do jato, procurado em uma caçada internacional.
A caçada começou quando o homem abriu sua porta em Paris e matou a tiros dois agentes do serviço de informação francês e um informante libanês. Quatro mulheres estão sob custódia em duas capitais, acusadas de crimes em sua defesa. O assassino, no entanto, desapareceu — talvez no Líbano, como acredita a polícia francesa. Nos últimos dias, em Londres, os que travaram conhecimento com ele o têm descrito para os repórteres como sendo de boa aparência, cortês, de boas maneiras, rico e sempre vestido na moda. Mas os seus associados são homens e mulheres conhecidos como os mais perigosos de todo o mundo. Dizem que tem ligações com o Exército Vermelho japonês, com a Organização para a Luta Armada da Arábia, com o grupo Baader-Meinhof da Alemanha Ocidental, com a Frente de Libertação do Quebec, com a Frente de Libertação Popular Turca, com os separatistas da França e da Espanha, e com ala Provisória do Exército Republicano Irlandês. Quando o assassino viaja — para Paris, para o Hague, para Berlim Ocidental — bombas explodem, armas estouram e sempre ocorrem seqüestros. Um furo foi obtido em Paris quando um terrorista libanês fez uma confissão em interrogatório. O que levou dois homens do serviço de informação à porta do assassino, em Paris, no dia 27 de junho. Ele atirou em todos os três, matando-os, e depois fugiu. A policia encontrou as suas anuas e os cadernos de anotação contendo “listas de mortes” de pessoas importantes. Ontem o London Observer disse que a policia estava à caça do filho de um advogado comunista venezuelano, para interrogá-lo sobre a tripla chacina. A Scotland Yard disse: “Não estamos proibindo as reportagens”, mas adiantou que não havia nenhum mandado contra ele e que ele estava sendo procurado apenas para interrogatório. O Observer identificou o homem caçado como sendo Ilich Ramirez Sanchez, de Caracas. Disse que seu nome estava em um dos quatro passaportes encontrados pela polícia francesa quando invadiram o apartamento de Paris onde o chacinador se escondia. O jornal disse que o nome Ilich foi tirado de Vladimir Ilych Lenin, fundador do Estado soviético, que ele foi educado em Moscou e fala russo fluentemente. Em Caracas, um porta-voz do Partido Comunista Venezuelano disse que Ilich é o filho de um advogado marxista de 70 anos de idade e que mora a 450 milhas a oeste de Caracas, mas que “nem o pai nem o filho pertencem ao nosso partido”. Contou aos repórteres que desconhecia o então paradeiro de Ilich.
IVRO I
Capítulo1 A traineira submergiu nas vagas violentas do mar escuro e furioso como um animal desajeitado tentando desesperadamente emergir de um atoleiro pegajoso. As ondas se elevavam a gigantescas alturas e vinham quebrar de encontro ao casco com o mesmo peso da sua tonelagem bruta; os borrifos da espuma do mar se avolumavam no céu escuro e desciam em cascatas sobre o convés, empurrados pela força do vento. De qualquer ponto de distância podia-se ouvir os gemidos de um tormento inanimado, de madeira roçando contra madeira, de cordas torcidas, esticadas até o ponto máximo de estiramento. O animal estava morrendo. Duas explosões repentinas vararam a noite, transpassando os ruídos do mar e do vento com um som mais agudo do que os gemidos da própria nave. Então, eles saíram da cabina mal-ilumi-nada, daquela casca protetora que subia e descia alternadamente. Um homem arremessou-se porta afora, agarrando-se às grades com uma das mãos. Com a outra, segurava o estômago. Outro homem o seguiu, num cerco cauteloso. Sua intenção era violenta. Ficou se escorando no vão da porta da cabina, ergueu a arma e atirou mais uma vez. E outra. O homem que estava na mureta levou as mãos à cabeça, arqueando o corpo para trás sob o impacto da quarta bala. A proa da traineira mergulhou de repente no entremeio de duas gigantescas ondas, levantando do chão o homem ferido. Ele foi atirado para a esquerda, sem poder tirar as mãos da cabeça. O barco foi jogado para o alto pelo mar encapelado, aproa e o do meio do casco estavam mais para fora do que para dentro da água. O vulto que estava no vão da porta foi varrido de volta para dentro da cabina. Um quinto tiro disparou inesperadamente. O homem ferido gritou, tentando alcançar com as mãos alguma coisa a que pudesse se agarrar; tinha os olhos cegos pelo sangue e pela espuma salgada que varria incessantemente o convés. Não havia nada a que se agarrar, e ele se agarrou ao nada. Suas pernas vergaram e o corpo cambaleou para a frente. O barco jogou violentamente, caindo para sotavento, e o homem com o crânio aberto precipitou-se para dentro da escuridão desvairada. Ele sentiu a turbulenta água gelada envolvê-lo, engolindo-o e sugando-o para o fundo, fazendo-o girar em círculos e, em seguida, impelindo-o para a superfície — apenas o tempo suficiente para uma arfada de ar. Uma arfada apenas e já estava no fundo novamente. Havia um calor estranho, uma mistura úmida e quente na sua fronte, que queimava na água que continuava a engoli-lo. Mesmo dentro da água — era um fogo onde nenhum fogo podia queimar. E havia uma sensação gelada, também. Um latejamento gelado no estômago, nas pernas e no peito, tão gelado que o mar frio à sua volta aquecia. Era estranho! Podia sentir tudo isso enquanto reconhecia o seu próprio pânico. Podia ver o seu próprio corpo girando e se retorcendo, braços e pés lutando freneticamente contra a pressão e a voracidade das águas. Podia sentir, pensar, ver, perceber o pânico e lutar. E o mais estranho — havia paz. Havia paz na calma do observador, no seu distanciamento; o observador separado dos acontecimentos, conhecendo-os, mas sem estar essencialmente envolvido por eles. Em seguida foi tomado por outra forma de pânico. Outra forma de pânico alastrou-se nele, avolumando-se através do calor e do frio, infiltrando-se no seu reconhecimento distante. Ainda não
podia se entregar à paz! Ainda não! Devia acontecer a qualquer instante, embora não estivesse certo do que era; mas sabia que alguma coisa iria acontecer. E ele tinha que estar ali! Então, esperneou furiosamente, agarrando-se às pesadas paredes d’água, o peito queimando, até irromper à superfície, debatendo-se para permanecer no topo das negras vagas. Subir! Subir! Uma monstruosa onda o arrastava acomodado em sua crista, rodeado pelas imensas bolsas de espuma e pela escuridão. E nada. Virar! Virar! Até que aconteceu. A explosão foi compacta, pôde ouvi-la mais alto do que o ruidoso entrechocar das águas com o vento — o som e a visão que eram, de alguma forma, seu descanso, sua paz. O céu acendeu-se. Parecia um ígneo diadema. E dentro daquela coroa de fogo, objetos de todos os tamanhos e formas eram jogados do círculo de luz para as sombras do lado de fora. Vencera. De qualquer forma, ele vencera. De repente, imergiu novamente para dentro de um abismo. Podia sentir as águas turbulentas se fecharem acima dos seus ombros, refrescando o fogo-febre das suas têmporas, aquecendo o gelo-frio dos seus ferimentos no estômago, nas pernas, e... Seu peito. Seu peito estava em agonia! Fora golpeado — a pancada esmagadora, o impacto repentino, intolerável quase. De novo! Deixe-me só. Dê-me paz! E outra vez! E novamente tentou se firmar, outra vez se debater... Até que sentiu um objeto grosso e viscoso que se movia com os movimentos do mar. Não sabia o que era, mas lá estava, podia senti-lo, segurá-lo. Segure-o! Ele vai levá-lo para a paz. Para o silêncio da escuridão... e da paz. Os raios do sol nascente irromperam através da névoa do céu oriental, emprestando seu brilho calmas águas do Mediterrâneo, O capitão do pequeno barco pesqueiro, os olhos injetados e as mãos marcadas por queimaduras feitas pelas cordas, estava sentado sobre a amurada da popa, fumando um Gauloise, agradecido por ver o mar novamente brando. Passou a vista pela casa do leme, que estava aberta. Seu irmão mais novo regulava o estrangulador, acelerando para navegar mais depressa, e o outro tripulante examinava uma rede, um pouco mais afastado. Riam de alguma coisa, e isso era muito bom, pois na noite anterior haviam enfrentado sérios problemas, sem tempo para risos. De onde teria vindo aquela tormenta? Os boletins meteorológicos de Marselha não haviam previsto nada; se tivessem, ele teria ficado ao abrigo da costa, no litoral. Queria alcançar as zonas de pesca, 80 quilômetros ao sul de La Seyne-sur-Mer, ao despontar do dia, mas não à custa de avarias e reparos dispendiosos. E que reparos não são dispendiosos nestes dias? E muito menos à custa de sua própria vida. Em alguns momentos, na noite passada, chegara a pensar nessa possibilidade. — Tu es fatigué, hein, mon frère? — gritou o irmão, sorrindo para ele. — Va te coucher maintenant. Laisse-moi faire.
— D’accord — respondeu ele, jogando o cigarro para o lado e esgueirando-se para o convés, para cima de uma rede. — Dormir um pouco não vai fazer mal. Era bom ter um irmão no leme. Um membro da família deve sempre ser o piloto de um barco de família, os olhos são mais vigilantes. Mesmo que seja um irmão que fala a linguagem suave de um homem letrado, tão oposta à sua linguagem vulgar. Louco! Um ano apenas na universidade e o irmão quis começar uma compagnie. E com um único barco, que já tivera seus melhores dias há muitos anos. Louco. Para que serviram seus livros ontem à noite, quando sua compagnie esteve a ponto de emborcar? Fechou os olhos e molhou as mãos na água corrente do convés. O sal do mar era bom para as queimaduras. Queimaduras feitas enquanto amarrava o equipamento, que queria perder-se na tormenta. — Olhe! Lá adiante! Era o irmão. Parece que o sono seria interrompido pelos vigilantes olhos da família. — O que é? — gritou. — A bombordo! Há um homem na água! Está se segurando em alguma coisa, algum destroço ou um pedaço de tábua qualquer. O capitão tomou o leme, inclinando o barco para o lado direito do corpo e desligando as máquinas para reduzir o turbilhão formado nas águas pelas hélices. Qualquer movimento podia fazer com que o homem escorregasse do pedaço de madeira a que se agarrava, de tão fraco que parecia. As mãos brancas apertavam a borda da madeira como garras, mas o resto do corpo estava flácido — como um afogado, já passado deste mundo. — Vamos alçá-lo com as cordas! — o capitão gritou para o irmão e o ajudante. — Passem as cordas por debaixo das pernas. Devagar, agora! Passem pela cintura, agora. Puxem com cuidado. — Ele não tira as mãos da tábua! — Tentem! Abram à força! Pode ser o enrijecimento da morte. — Não. Ainda está vivo... acho. Move os lábios, embora não diga nada. E os olhos também. Mas duvido que esteja nos enxergando — As mãos se soltaram! — Levem-no. Segurem-no pelos ombros e puxem-no para cima. Cuidado, agora! — Mãe de Deus! Olhem a cabeça dele! — O ajudante gritou. — Está aberta! — Deve tê-la batido contra a tábua na tormenta — disse o irmão. — Não — discordou o capitão, olhando surpreso para o ferimento. — É um talhe feito, como de
navalha. Foi uma bala; ele levou um tiro. — Como você pode ter certeza disso? — Em mais de um lugar — continuou o capitão, percorrendo o corpo com os olhos, — Vamos em direção à Île de Port Noir; é a ilha mais próxima. Lá tem um médico na praia. — Ele pratica... — Quando pode — afirmou o irmão. — Quando a bebida o permite praticar. Tem mais sorte com os animais dos pacientes do que com os próprios pacientes. — Não vai ter nenhuma importância. Ele será um cadáver quando chegarmos lá. Se por acaso sobreviver, cobrar-lhe-ei a gasolina extra e a pesca que perdermos. Pegue o estojo, vamos enfaixar-lhe a cabeça. Será melhor do que nada. — Olhem! — gritou o ajudante. — Olhem para os seus olhos. — O que têm? — perguntou o irmão. — Estavam cinzas ainda há pouco, tão cinzas quanto o cabo de aço. Estão azuis agora! — O sol está mais forte — respondeu o capitão, encolhendo os ombros. — Ou está pregando peças aos seus olhos. Não importa, a cor não é importante no túmulo. Os intermitentes apitos dos barcos de pesca destoavam dos incessantes e estridentes guinchos das gaivotas, compondo o ruído característico e universal de uma praia. A tarde morria. O sol era uma bola de fogo no ocidente, a atmosfera, pesada e desoladora, e estava muito quente. Além dos píeres, de frente para o ancoradouro, havia uma rua calçada com pedras e algumas casas brancas com a pintura manchada, separadas por grama alta crescendo intrépida da terra seca misturada com a areia. O que restou das varandas era apenas um esqueleto de grades remendadas, estuque desmoronando e estacas provisoriamente encaixadas. Estas residências tinham conhecido melhores dias algumas décadas antes, quando os seus habitantes acreditaram erradamente que a Île de Port Noir poderia vir a ser outro lugar de lazer do Mediterrâneo. Isto jamais aconteceu. Todas as casas tinham trilhas que davam para a rua, mas a última casa da série tinha uma trilha casualmente mais pisada do que as demais. A casa pertencia a um inglês que chegara a Port Noir oito anos atrás em circunstâncias desconhecidas e que ninguém se importava em conhecer; era médico, e a praia precisava de um médico, pois os anzóis, as agulhas e as facas eram ao mesmo tempo meios de sustento e instrumentos de incapacidade para o trabalho. Se alguém encontrava 1e docteur num bom dia, as suturas não eram tão más assim. Por outro lado, se o bafo do vinho ou do uísque era muito acentuado, era preciso arriscar a sorte. Tant pis! Era melhor do que ninguém. Mas não hoje, hoje ninguém ainda havia passado pela trilha. Era domingo e era fato corrente que todas as noites de sábado o doutor ficava completamente bêbado na vila e ia terminar a noite com
qualquer puta que estivesse disponível. Naturalmente, também era tido como certo que durante estes últimos sábados a rotina do doutor fora alterada, ele não tinha mais sido visto na vila. Mas não fora uma mudança assim tão radical: as garrafas de uísque eram regularmente enviadas ao doutor, enquanto ele ficava em casa. Isso era o que ele vinha fazendo desde que o barco pesqueiro, vindo de La Ciotat, trouxera o desconhecido, mais morto do que vivo. O Dr. Geoffrey Washburn acordou com um sobressalto, o queixo caído sobre a clavícula, fazendo com que o hálito de sua boca penetrasse pelas narinas. E não era nada agradável! Piscou os olhos tentando se orientar e olhou de relance para a porta do quarto. Provavelmente o seu cochilo fora interrompido por outro incoerente monólogo do paciente. Não, não escutava qualquer som. Até mesmo as gaivotas lá fora estavam indulgentemente quietas. Era o feriado da Île de Port Noir, não havia movimento de barcos chegando para açular os pássaros com suas pescas. Washburn olhou para o copo vazio e a meia garrafa de uísque em cima da mesa ao seu lado. Era uma vitória. Em domingos normais, os dois já estariam vazios; a dor da noite anterior teria se esfumaçado com o uísque. Sorriu, mais uma vez abençoando a irmã mais velha, em Coventry, que tornava possível o seu uísque com uma pensão mensal. Era uma boa garota a Bess, uma boa garota, e só Deus sabe que ela podia lhe dar bem mais do que lhe dava, mas assim mesmo era agradecido pelo que ela lhe enviava. E o dia em que ela morresse e o dinheiro parasse de chegar, ele tentaria o esquecimento com o vinho mais barato que encontrasse, até que a dor se extinguisse totalmente. Para sempre. Estava se acostumando com essa eventualidade, começando a aceitar essa idéia... Mas tudo mudara há três semanas e cinco dias, quando aquele estranho, meio morto, fora puxado do mar e trazido até sua porta por alguns pescadores que não quiseram se identificar. A sua missão era de indulgência, e não de envolvimento. Deus entenderia, o homem fora baleado. O que os pescadores não sabiam, no entanto, é que muito mais do que apenas as balas haviam tomado o corpo daquele homem. E a mente. O doutor empurrou seu frágil esqueleto para fora da cadeira e caminhou com passos vacilantes em direção à janela que dava para o ancoradouro. Baixou a vidraça, fechando os olhos para se proteger do sol forte, e depois deu uma espiada por entre as palhetas da janela para observar o movimento da rua lá embaixo, curioso para ver o motivo daquela algazarra. Era uma carreta puxada a cavalo, uma família de pescador no seu passeio dominical.Onde mais poderia alguém ter tal visão? Então, lembrou-se das carruagens e dos cavalos finamente enfeitados que atravessavam o Regent Park de Londres passeando com turistas durante os meses de verão, e riu com a comparação. Mas era uma risada efêmera, que dava lugar a alguma coisa inconcebível a menos de três semanas. Desistira de toda a esperança de rever a Inglaterra. Mas agora tudo poderia voltar a ser possível. O estranho poderia provocar uma mudança. A menos que seu prognóstico estivesse errado, poderia acontecer a qualquer dia, hora ou minuto. Os ferimentos das pernas e do peito eram profundos e graves, quase fatais, não fosse o fato de as balas terem permanecido onde haviam se alojado e as contusões terem sido meio cauterizadas e continuamente limpas pela água do mar. Extraí-las não fora tão difícil e perigoso como poderia parecer, o tecido já estava preparado, amaciado e esterilizado, pronto para a faca. O ferimento do crânio foi mais problemático. A bala penetrara subcutaneamente e parecia ter ofendido as regiões fibrosas do tálamo e do hipocampo. Se a bala tivesse penetrado mais alguns milímetros, as funções vitais teriam cessado
imediatamente, mas elas não tinham sido atingidas e Washburn tomou uma decisão — permaneceu sóbrio durante 36 horas, alimentando-se de amido e bebendo água tanto quanto lhe era humanamente possível. Em seguida realizou o trabalho mais delicado que já empreendera desde a sua demissão do Hospital Macleans, de Londres. Limpou com pincel cada milímetro das áreas fibrosas, e depois repuxou e suturou a pele sobre a lesão craniana, sabendo que o menor erro com pincel, agulha ou pinça causaria a morte do seu paciente. E não desejava que este paciente morresse. Por uma série de razões e mais especialmente uma. Quando terminou a operação e os sinais vitais permaneceram constantes, o Dr. Geoffrey Washburn voltou-se para o seu complemento químico e psicológico: a garrafa. Embebedou-se, mas sem passar dos limites. Sabia exatamente onde estava e o que devia fazer durante todo o tempo, o que era positivamente uma vitória. A qualquer dia, a qualquer instante, talvez, o estranho abri ria os olhos e ele poderia ouvir palavras inteligíveis dos seus lábios. A qualquer momento. As palavras vieram antes. Flutuaram no ar como a brisa da manhã, que vinha do mar e arejava a sala. — Quem está aí? Quem está na sala? Washburn sentou-se no estrado, movimentou as pernas devagar e pôs-se de pé com cuidado. Era muito importante não fazer nenhum barulho estridente, nenhum ruído repentino ou movimento apressado. Isto poderia assustar o paciente e levá-lo a uma regressão psicológica. Os minutos seguintes seriam tão delicados quanto os atos cirúrgicos que realizara. Como médico, já estava preparado para aquele momento. — Um amigo — respondeu com brandura. — Amigo? — Você fala inglês, como pensei. Suspeito que seja americano ou canadense. O seu trabalho dentário não é do Reino Unido ou de Paris. Como se sente? — Não tenho certeza. — Leva um tempo. Não quer se aliviar? — O quê? — Ir ao banheiro, companheiro. O recipiente ao seu lado é para isso. O branco, à sua esquerda. Se o usar a tempo, é claro.
— Desculpe. — Nada disso. É uma função perfeitamente normal. Sou médico, sou seu médico. Meu nome é Geoffrey Washburn. E o seu? — Como? — Perguntei o seu nome. O estranho moveu a cabeça e ficou a olhar perplexamente para a parede branca riscada com os raios de luz da manhã. Depois, se virou, volvendo os olhos azuis para o médico. — Não sei. — Oh, meu Deus! — Já lhe disse mil vezes. Leva tempo. Quanto mais você luta contra isso, mais se atormenta, e é pior para você. — Você está bêbado. — Geralmente. E isso não é da sua conta. Mas posso lhe dar algumas pistas, se me ouvir. — Eu tenho ouvido. — Não, não tem. Tem dado as costas. Esconde-se no seu casulo e puxa as cobertas sobre a mente. Ouça-me de novo. — Estou ouvindo. — Quando esteve em coma — e foi por bastante tempo —, você falou em três línguas diferentes: inglês, francês e uma maldita ingresia que presumo ser uma língua oriental. Isso quer dizer que você é plurilíngue, está em casa em várias partes do mundo. Agora, pense geograficamente. O que lhe parece mais próximo e fácil? Mais confortável. — O inglês, obviamente. — Já concordamos com isso. Agora, o que é mais desconfortável? — Não sei. — Os seus olhos são redondos e não oblíquos. Eu diria que obviamente é a oriental. — Óbvio. — Mas então por que você fala? Agora, pense em termos de associação. Anotei algumas palavras, ouça. Vou pronunciá-las foneticamente. Ma — kwa. Tam — kwa. Kee — sab. Diga a primeira coisa que lhe vier à mente. — Nada.
— Bom trabalho. — Que inferno! O que você quer? — Alguma coisa. Qualquer coisa. — Você está bêbado. — Já concordamos com isso. Totalmente. Mas também salvei a porcaria da sua vida. Bêbado ou não, sou um médico. E já fui muito bom. — O que aconteceu? — O paciente questiona o médico, agora? — Por que não? Washburn fez uma pausa e olhou a praia pela janela. — Eu estava bêbado — disse. — Disseram que matei dois pacientes na mesa de operação porque estava bêbado. Podia ter liquidado um. Não dois. Eles percebem um comportamento muito rapidamente, que Deus os abençoe. Nunca dê uma faca a um homem como eu e depois o desfaça com respeitabilidade. — Era necessário? — O que era necessário? — A bebida. — É claro, seu miserável — disse Washburn com brandura, voltando-se da janela. — Era, e é. E o paciente não tem permissão para fazer julgamentos no que diz respeito ao médico. — Sinto muito. — Você também tem o incômodo hábito de se desculpar. É um protesto muito elaborado e nada natural. Não acredito nem por um minuto sequer que você seja uma pessoa de desculpas. — Então, conhece alguma coisa que desconheço. — A seu respeito sim. Muito. Mas quase nada faz sentido. O homem sentou-se mais para a frente na cadeira. A camisa abriu-se na altura do peito de musculatura firme, deixando à mostra as ataduras, cruzou os braços e as veias saltaram do seu braço musculoso e esguio. — Outras coisas além das que nós já conversamos? — Sim. — Coisas que eu disse quando estava em coma?
— Não, não apenas isso. Já discutimos a maior parte daquele palavrório todo. As línguas, o seu conhecimento de geografia — cidades que quase nunca ouvi falar —, a sua obsessão em evitar usar nomes próprios, nomes que você quer dizer mas não diz, a sua disposição para defender-se, atacar, recuar, se esconder, correr, tudo um pouco violento, devo admitir. Muitas vezes tive que prender seus braços com esparadrapo para proteger os curativos. Mas já passamos por tudo isso. Existem outras coisas. — O que quer dizer? Que coisas? Por que não me contou antes? — Porque são coisas físicas. De estrutura externa. Eu não tinha certeza se você já estava pronto para ouvi-las, como ainda não tenho. O homem se recostou na cadeira, juntando as sobrancelhas escuras em irritação. — Agora é o julgamento do médico que não me diz respeito. Estou pronto. Do que está falando? — Podemos começar com a aparência comum dessa sua cabeça? O rosto, em particular. — O que tem ele? — Não é o mesmo com o qual você nasceu. — O que quer dizer? — Uma lente grossa sempre pode perceber as marcas de uma operação. O seu rosto sofreu alterações, companheiro. — Alterações? — Você tem um queixo bem pronunciado. Eu diria que você tinha uma cova no queixo. Ela foi removida. A parte superior do seu osso malar esquerdo — seus malares também são bem pronunciados, o que demonstra a sua ascendência eslava, de há muitas gerações — tem diminutas marcas de uma cicatriz cirúrgica. Aventuro-me a dizer que um sinal de pele foi eliminado. Seu nariz é bem inglês, e já foi um pouco mais pronunciado do que é hoje. Foi afinado muito suavemente. Seus traços mais pronunciados foram suavizados, sua característica facial foi abrandada. Entende o que estou lhe dizendo? — Não. — Você é um homem razoavelmente atraente, mas o seu rosto se distingue mais pela categoria em que se insere do que pelo rosto propriamente. — Categoria? — Sim. Você é o protótipo do anglo-saxão branco que as pessoas vêem todos os dias nos melhores campos de críquete, ou nas quadras de tênis. Ou no bar em Mirabel. Esses rostos se tornam quase indistintos um do outro, não é? Os traços no lugar certo, os dentes retos, as orelhas rentes à cabeça — nada fora do equilíbrio, tudo no lugar certo, apenas um pouco suavizado.
— Suavizado? — Bem, abrandado talvez seja uma palavra melhor. Definitivamente autoconfiante, até mesmo arrogante, acostumado a abrir o seu próprio caminho. — Não estou muito certo do que você está tentando me dizer. — Tente desta forma, então. Mude a cor dos seus cabelos, e seu rosto ficará mudado. Sim, há traços de descoloração, cabelos quebradiços, tintura. Use óculos e um bigode, e você se transforma, é outro homem. Acho que você deve estar nos seus trinta e poucos, mas bem pode aparentar outra idade, dez anos a mais ou cinco a menos. — Washburn fez uma pausa, ficou a observar as reações do homem, como se estivesse em dúvida se devia ou não prosseguir. — E já que falamos sobre óculos, você se lembra daqueles exercícios, dos testes que fizemos há uma semana? — É claro. — A sua visão é perfeitamente normal, você não tem necessidade de usar óculos. — É como pensei. — Então, por que existem sinais evidentes de uso prolongado de lentes de contato em volta das suas retinas e nas pálpebras? — Não sei. Não faz sentido. — Posso tentar uma explicação? — Gostaria de ouvi-la. — Talvez não. — O doutor voltou-se para a janela e deu uma olhadela distraída para fora. — Alguns tipos de lentes de contato são criados apenas para mudar a cor dos olhos. E alguns tipos de olhos se prestam melhor ao uso das lentes do que outros, em geral os que têm matiz cinza ou azulada. Os seus são uma mistura. Castanho-acinzentados ou azuis, dependendo do reflexo da luz. A natureza o favoreceu neste aspecto; não foi preciso, nem era possível, fazer qualquer alteração. — Preciso para quê? — Para mudar a sua aparência. E muito profissionalmente, eu diria. Para vistos, passaporte, carteira de motorista — pode mudar à vontade, de acordo com a necessidade. Cabelos: castanhos, louros, castanho-avermelhados. Olhos — difícil deduzir — verdes, cinzas, azuis? As possibilidades são inúmeras, não acha? Tudo dentro dessa categoria comum e bem reconhecida, em que os rostos ficam anuviados pela repetição. O homem levantou-se da cadeira com dificuldade, pondo-se de pé com a ajuda dos braços, prendendo a respiração enquanto se erguia. — Também é possível que você esteja tentando adivinhar, fazendo aproximações. Você pode estar perdido.
— Os traços são reais, são marcas. Isto é uma evidência. — Interpretada por você, e com uma grande dose de sarcasmo ainda por cima. Suponhamos que eu tenha sofrido um acidente e tenha sido remendado? Isso explicaria a cirurgia. — Não a do tipo que você fez. A tintura dos cabelos, a re moção de covas e malares não fazem parte de um processo de restauração. — Você não conhece nada disso! — disse o desconhecido, irado. Existem diversas espécies de acidentes, diversos procedimentos. Você não estava lá, não pode ter certeza. — Ótimo! Fique furioso comigo. Você quase não fica, não o suficiente. E enquanto está furioso, aproveite e pense. O que você era? O que é você? — Um vendedor... Um executivo de uma companhia internacional, que fez especialização no Extremo Oriente. Podia ser. Ou um professor de línguas. . . um professor de línguas em uma universidade qualquer. Também é possível! — Muito bem. Escolha uma. Agora! — Eu... Eu não posso. — Os olhos do homem mostravam desamparo. — Porque você não acredita em nenhuma delas. O homem balançou a cabeça. — Não. E você? — Não — disse Washburn. — Por uma razão específica. Essas ocupações são relativamente sedentárias e você tem o corpo de um homem que esteve sujeito a esforço físico. Oh, não quero dizer um atleta treinado ou coisa parecida, você não é nenhum desportista, como dizem. Mas a tonicidade de seus músculos é firme, seus braços e mãos estão acostumados a fazer força e são bastante fortes. Em outras circunstâncias eu o julgaria um trabalhador acostumado a carregar objetos pesados, ou um pescador condicionado a lançar rede o dia todo. Mas o âmbito do seu conhecimento, eu diria, do seu intelecto, exclui estas possibilidades. — Acho que você está querendo chegar em algum ponto, não é? Alguma coisa diferente. Por quê? — Porque nós estamos trabalhando juntos, muito juntos, e sob pressão, há algumas semanas já. Você mostrou um padrão de comportamento. — Então estou certo? — Sim. Mas eu tinha que ver como você aceitaria o que eu lhe disse. Sobre a cirurgia anterior, os cabelos, as lentes de contato. — Passei no teste? — Com um equilíbrio furioso. Já é hora, não tem por que retardar mais. Francamente, não tenho
paciência. Venha comigo — Washburn precedeu-o, atravessando a sala até chegar a porta que ficava na parede de trás, a porta que dava para a farmácia. Lá dentro, foi até um canto e pegou um antigo projetor, com o tampo da lente grossa e redonda já enferrujado e rachado. — Isto veio de Marselha junto com os meus suprimentos — disse, enquanto colocava o projetor sobre a pequena escrivaninha e enfiava o conector na tomada da parede. — Não é o melhor equipamento, mas vai nos servir. Feche as janelas, sim? O homem sem nome e sem memória foi até a janela e abaixou a veneziana; a sala ficou escura. Washburn ligou a luz do projetor e um quadrado iluminado apareceu na parede branca. Então, inseriu um pequeno pedaço de celulóide por trás da lente. O quadrado de luz encheu-se de repente com imensas letras. GEMEINSCHAFT BANK BAHNHOFSTRASSE. ZURIQUE. ZERO — SETE — DEZESSETE — DOZE — ZERO QUATORZE — VINTE E SEIS — ZERO — O que é isto? — perguntou o homem sem nome. — Olhe bem. Estude. Pense. — É o número de alguma conta bancária. — Exatamente. O cabeçalho timbrado e o endereço são do banco, os números escritos a mão estão no lugar de um nome, mas como estão anotados a mão, constituem a assinatura do correntista. Procedimento bancário normal. — Onde o encontrou? — Em você. Este é um negativo diminuto, acho que a metade de um filme de 35 milímetros. Foi implantado — cirurgicamente implantado — por debaixo da pele, um pouco acima do seu quadril direito. Os números estão escritos com a sua letra, é a sua assinatura. Com isto você pode abrir uma caixa-forte em Zurique.
Capítulo2 Escolheram o nome de Jean-Pierre. Não despertava suspeitas nem ofendia ninguém, era um nome tão comum quanto qualquer outro em Port Noir E alguns livros chegaram de Marselha, seis livros de tamanhos diversos e diferentes espessuras; quatro em inglês, dois em francês. Eram textos de medicina, que tratavam de lesões na cabeça e no cérebro. Havia interligações no cérebro, centenas de palavras pouco familiares para memorizar e tentar entender. Lo- bus occipitalis e temporalis, o córtex e as fibras de conexão do corpus callosun, o sistema límbico — sobretudo o hipocampo e os corpos mamilares que, juntamente com o fórnice, eram indispensáveis à memória e à lembrança. Quando danificados, causavam a amnésia. Havia alguns estudos psicológicos sobre o estresse emocional que produz histeria paralisante e afasia mental, condições que também resultavam em perda total ou parcial da memória. Amnésia. Amnésia. — Não existem regras — disse o homem de cabelos escuros, esfregando os olhos à luz inadequada da lâmpada da mesa. — Ë um quebra-cabeças geométrico, pode acontecer com qualquer combinação de modos, física ou psicologicamente — ou com um pouco de tudo. Pode ser permanente ou temporária, completa ou parcial. Não há nenhuma regra! — De acordo — respondeu Washburn bebericando seu uísque, sentado em uma cadeira do outro lado da sala. — Mas acho que estamos mais próximos do que aconteceu. Do que penso que aconteceu. — E o que foi? — perguntou o homem, um pouco apreensivo. — Você acabou de dizer: “um pouco de tudo”. Embora a palavra “pouco” devesse ser mudada para “muito”. Muitos abalos. — Muitos abalos a quê? — Ao físico e ao psicológico. Eles são relacionados, entrelaçados — dois fios de experiência, ou estímulo, que deram um nó, se enredaram. — Você não está floreando muito? — Menos do que você pensa, quase nada. — O médico apanhou uma prancheta cheia de folhas. — Esta é a sua história — a sua nova história —, que começa no dia em que você foi trazido para cá. Vou resumir. Os ferimentos físicos indicam que a situação em que você se encontrava era de total estresse psicológico, a histeria subseqüente foi causada pelo tempo que você passou na água, que foi de pelo menos umas nove horas, que serviu para solidificar o dano psicológico. A escuridão, os movimentos violentos, a dificuldade de encher os pulmões — estes foram os instrumentos da histeria. Tudo o que precedeu a histeria teve que ser apagado para que você pudesse lutar pela vida, sobreviver. Está me acompanhando?
— Acho que sim. A cabeça estava se protegendo. — Não a cabeça, a mente. Faça a distinção, é importante. Voltaremos à cabeça, mas vamos lhe dar um rótulo: o cérebro. — Está bem. Mente, não cabeça... Que é, na realidade, o cérebro. — Ótimo. — Washburn passou os dedos pelas folhas da prancheta. — Isto está cheio, tem algumas centenas de observações. Aqui estão os medicamentos que foram usados — dosagem, tempo, reação, essa coisa toda —, mas, na maior parte, são anotações que dizem respeito a você, o homem em si. As palavras que usa, as palavras às quais reage, as frases que emprega — quando posso anotá-las — quando está consciente ou quando fala no sono, e quando esteve em coma. Até mesmo a sua forma de andar, o seu modo de falar, de retesar os músculos quando alguma coisa lhe chama a atenção, ou quando vê algo que lhe interessa. Você parece ser uma massa de contradições, há uma violência à flor da pele, quase sempre sob controle, mas bem viva. Há também um certo pesar, algo que lhe parece doloroso; no entanto, você raramente deixa escapar a raiva que a dor lhe provoca. — Você a está provocando agora — interrompeu o homem — Já repetimos estas palavras e estas frases vezes e vezes... — E vamos continuar — interrompeu Washburn — enquanto houver progresso. — Eu não sabia que houve algum progresso. — Não em termos de reconhecer uma identidade ou uma ocupação. Mas estamos descobrindo o que é mais confortável para você, com o que você lida melhor. É um pouco amedrontador. — Em que sentido? — Vou lhe dar um exemplo. — O médico pôs de lado a prancheta e levantou-se da cadeira. Foi até um antiquado armário que ficava junto à parede, abriu uma gaveta e tirou uma grande pistola de mão, automática. O homem sem memória ficou tenso na cadeira; Washburn logo percebeu-lhe a reação. — Nunca usei isto, e não tenho certeza se sei como usá-lo, mas moro na praia... — Sorriu e em seguida, subitamente, sem qualquer aviso, jogou-a para o homem. A arma foi alcançada ainda no ar, ele agarroua com segurança, rápida e confiantemente. — Destrave-a; acho que esta é a palavra. — O quê? — Destrave-a. Agora. O homem olhou para a pistola. E depois, em silêncio, suas mãos e dedos se moveram com muita habilidade. Em menos de trinta segundos, ela estava completamente desarmada. Ele procurou o olhar do médico, — Está vendo o que quero dizer? — disse Washburn. — Dentre outras habilidades, você tem um extraordinário conheci mento das armas de fogo.
— Armas? — O homem perguntou surpreso, com a voz intensa, mais uma vez apreensivo. — É muito estranho — respondeu o médico. — Logo que você saiu do seu estado de coma, falei sobre o seu trabalho dentário. Não tem características de trabalho feito por militares. E quanto à cirurgia, eu diria que de forma alguma pode ela ser associada ao exército. — E então? — Não vamos falar sobre isto agora, vamos voltar ao que aconteceu. Estávamos falando da mente, lembre O estresse psicológico, a histeria. Não é cérebro físico, mas as pressões mentais. Estou sendo claro? — Continue. — Enquanto o choque for retrocedendo, as pressões também vão retrocedendo até que não haja qualquer necessidade fundamental de proteger a psique. Enquanto isso se processa, as suas habilidades e os seus talentos voltarão para você. Você vai se lembrar de alguns padrões de comportamento, vai vivê-los com naturalidade, liberar as suas reações instintivas mais superficiais. Mas há uma lacuna, e tudo o que está escrito naquelas páginas me faz crer que esta é irreversível. — Washburn parou e voltou para a cadeira onde estivera sentado, e para a garrafa. Sentou-se e bebeu, fechando os olhos, exausto. — Continue — sussurrou o homem. O médico abriu os olhos e olhou para o seu paciente. — Vamos voltar à cabeça, que havíamos rotulado de cérebro. O cérebro físico com seus milhares e milhares de células e componentes iterativos. Você leu os livros, conheceu os sistemas fórnice e límbico, as fibras do hipocampo e do tálamo, as técnicas cirúrgicas do callosum e sobretudo a lobotomia. A menor alteração pode causar mudanças dramáticas. Foi isso o que lhe aconteceu. O dano foi físico. É como se alguns blocos fossem reagrupados, recompostos, a estrutura física não é mais a mesma. — Washburn parou mais uma vez. — E... — insistiu o homem. — As pressões psicológicas retrocedidas vão permitir — estão permitindo — que suas habilidades e talentos retornem a você. Mas acho que você jamais será capaz de relacioná-los a qualquer coisa do seu passado. — Por quê? Por que não? — Porque os condutos físicos que permitem e transmitem essas memórias foram alterados. Foram fisicamente recompostos, a ponto de não mais funcionarem como antes. Para todos os efeitos, foram destruídos. O homem permaneceu sentado, imóvel. — A resposta está em Zurique — disse. — Não ainda. Você não está preparado, ainda não está sufi cientemente restabelecido, não está
forte. — Eu vou ficar. — Sim, vai ficar. As semanas passaram, os exercícios verbais continuaram enquanto as páginas cresciam e a força do homem retornava. Era a manhã da décima nona semana, o dia estava luminoso e o Mediterrâneo, calmo e reluzente. Como de costume, o homem estivera correndo durante uma hora, indo da praia até as montanhas; ele se exercitara, aumentando a distância até pouco mais de doze milhas diariamente, diariamente aumentando a velocidade e diminuindo as paradas para descanso. Ele estava sentado na cadeira perto da janela, no quarto, respirando pesadamente, o suor ensopando-lhe a camiseta. Entrara pela porta dos fundos, passando pelo corredor escuro que atravessava a sala. Era bem mais fácil, a sala servia como sala de espera do consultório de Washburn, alguns pacientes ainda estavam lá, com cortes e talhos para serem reparados. Estavam todos sentados, parecendo amedrontados, talvez pensando nas condições de le docteur naquela manhã. Na verdade, não eram más. Geoffrey Washburn ainda bebia como um louco cossaco, mas nestes últimos dias ele permanecera seco. Era como se uma reserva de esperança tivesse sido encontrada no recesso do seu fatalismo destrutivo. E o homem sem memória entendia — essa esperança estava atada a um banco da Bahnhofstrasse, em Zurique. Por que o nome da rua lhe viera à mente com tanta facilidade? A porta se abriu e o doutor irrompeu no quarto, sorrindo, o casaco branco, manchado com o sangue dos pacientes. — Consegui! — disse ele. Havia triunfo em sua voz, nenhuma explicação, no entanto. — Eu podia abrir minha agência de empregos e viver de comissões. Seria mais seguro. — Do que está falando? — Como já conversamos, é disso que você precisa. Você tem que atuar fora, e a menos de dois minutos Monsieur Jean Pierre Sem-Nome está proveitosamente empregado! Ao menos por uma semana. — Como conseguiu isso? Pensei que não houvesse nenhuma saída. — O que não tinha saída era a perna infeccionada de Claude Lamouche. Expliquei-lhe que o meu suprimento de anestésico era muito, muito limitado. Nós negociamos, você foi a moeda de troca. — Por uma semana? — Se você for de algum valor, ele pode mantê-lo mais tempo. — Washburn fez uma pausa. — Embora isso não seja o mais importante, não é? — Acho que nada disso tem importância. Se fosse há um mês, talvez, mas não agora. Já lhe disse. Estou pronto para partir. Sempre pensei que era o que você queria. Tenho um compromisso em Zurique.
— E eu gostaria que você se saísse da melhor forma possível nesse compromisso. Meus interesses são extremamente egoístas. Nenhuma fraqueza é permitida. — Estou pronto. — Aparentemente sim. Mas aceite a minha palavra, é muito importante que você passe períodos prolongados na água, e que seja à noite, por um bom tempo. E que não seja sob determinadas condições, condições controladas, não como passageiro, mas submetido a condições razoavelmente duras — na verdade, quanto mais duras melhor. — É outro teste? — Todos os que eu puder inventar neste primitivo Menningers de Port Noir. Se eu pudesse invocar uma tempestade e provocar um naufrágio qualquer, o faria. Por outro lado, Lamouche é quase uma tormenta, é um homem muito difícil. O inchaço da sua perna vai desaparecer e ele vai indignar-se com você. E os outros também. Você vai ter que substituir alguém. — Muito grato. — Esqueça. Estamos combinando dois estresses. Ao menos uma ou duas noites na água, se Lamouche se mantiver dentro do programa — porque este é o meio hostil que contribuiu para a formação da sua histeria —, e o fato de estar exposto ao ressentimento e às suspeitas dos homens à sua volta, que simboliza a situação inicial de seu estresse. — Agradeço mais uma vez. E se decidirem me lançar ao mar? Este seria o seu último teste, suponho. Mas não sei como vai funcionar se eu me afogar. — Oh, não vai acontecer nada disso — disse Washburn com ar de zombaria. — Fico contente que esteja assim tão confiante. Também gostaria de estar. — Mas você também pode. Você tem a proteção e a segurança da minha presença. Posso não ser nenhum Christiaan Barnard ou Michael De Bakey, mas sou tudo o que este povo tem. Eles precisam de mim, e não vão se arriscar a me perder. — Mas você quer partir. Sou o seu passaporte para sair daqui. — De forma insondável, meu caro paciente. Agora venha. Lamouche o quer lá no estaleiro para que você possa se acostumar com o seu equipamento. Você começa amanhã de manhã, às quatro horas. Pense como lhe será benéfica uma semana no mar. Pense nisto como um cruzeiro. Nunca antes houvera um cruzeiro como aquele. O capitão do imundo barco de pesca, empapado de óleo, era a versão boca- suja e insignificante de um Capitão Bligh. A tripulação era formada por um quarteto de desajustados que eram, sem dúvida alguma, os únicos homens em Port Noir que podiam se dar bem com Claude Lamouche. O quinto membro ativo era um irmão do que cuidava da rede, um personagem marcante para o homem chamado Jean-Pierre e que provocara, poucos minutos depois da partida do ancoradouro às quatro horas da madrugada, um episódio inesquecível.
— Você está tirando a comida da mesa do meu irmão! — o homem da rede sussurrou, irritado, entre rápidas baforadas de um cigarro imóvel nos lábios. — Da boca dos seus filhos! — É por uma semana apenas — protestou Jean-Pierre. Teria sido mais fácil — muito mais fácil — oferecer-se para reembolsar o irmão desempregado com a mesada que Washburn recebia, mas o médico e o seu paciente tinham concordado em deixar de lado tais compromissos. — Espero que você seja bom de rede! Não era. Houve momentos durante as 72 horas seguintes em que o homem chamado Jean-Pierre pensou que a alternativa de uma conciliação financeira fosse justificável. A hostilização não cessou, mesmo à noite — sobretudo à noite. Era como se todos os olhares estivessem dirigidos para ele no instante em que deitasse no cobertor infestado do convés, esperando que ele começasse a adormecer. — Você! Fique de vigia! O piloto está com náusea. Você fica no lugar dele. — Levante-se. Philippe está escrevendo suas memórias! Ele não pode ser perturbado. — De pé! Você arrebentou uma rede esta tarde. Não vamos pagar pela sua estupidez. Estamos todos de acordo. Conserte-a agora! Às redes. Se dois homens eram necessários de um lado, seus dois braços tinham que valer por quatro do outro lado. Se trabalhava ao lado de um homem, havia repentinos arrastões e largadas que o deixavam com todo o peso da rede; um esbarrão inesperado de um ombro adjacente o jogava contra a amurada do barco e quase o mandava para fora. E Lamouche! Um maníaco completo, que media cada quilômetro de água pelo peixe que havia perdido. Tinha uma voz de trompa de chifre, desagradável. Não se dirigia a ninguém sem antepor uma obscenidade ao seu nome, hábito que o paciente achou enlouquecedor. Mas Lamouche não tocou no paciente de Washburn; estava apenas enviando uma mensagem ao doutor: Nunca mais me faça isto! Não envolva mais o meu barco e o meu peixe. O programa de Lamouche exigia um retorno a Port Noir ao anoitecer do terceiro dia, para descarregar o peixe e dar folga à tripulação até as quatro horas da manhã seguinte, tempo para dormir, fornicar, beber ou, tendo sorte, os três ao mesmo tempo. Logo que enxergaram terra à vista, aconteceu. As redes estavam sendo recolhidas e dobradas no meio do convés pelo homem da rede e o seu primeiro assistente. O indesejável tripulante a quem insultavam chamando de “Jean-Pierre Sangsue” (o Sanguessuga”) esfregava o convés com uma vassoura de cabo comprido. Os outros dois tripulantes jogavam baldes de água do mar em frente da vassoura mas, com mais freqüência ainda, em frente do Sanguessuga, seu alvo preferido. Um balde cheio foi jogado muito alto, cegando momentaneamente o paciente de Washburn. Este
perdeu o equilíbrio e a pesada vassoura de cerda, dura como metal, voou de suas mãos, a ponta para a frente, fazendo com que as afiadas cerdas raspas em a coxa do homem da rede, que estava ajoelhado. — Merde alors! — Désolé — disse o ofensor ca sacudindo a água dos — Que diabo de coisa você disse!? — gritou ele. — Disse que sentia muito — respondeu o homem chamado Jean-Pierre. — Diga aos seus amigos para molharem o convés e não jogarem a água em mim.. — Meus amigos não fazem de mim o objeto de sua estupidez! — Eles foram a causa da minha agora mesmo. O homem da rede agarrou o cabo da vassoura, pôs-se de pé e o segurou como uma baioneta. — Quer brincar, Sanguessuga? — Vamos, dê-me a vassoura. — Com prazer, Sanguessuga. Tome! — E empurrou-a para a frente, fazendo com que as cerdas raspassem o peito do paciente, seu estômago, penetrando pelo tecido da camisa. Se foi por causa do contato com as cicatrizes que restaram dos antigos ferimentos, ou pela frustração e raiva resultantes dos três dias de insultos e humilhações, ele nunca soube. Sabia apenas que tinha que responder. E sua resposta foi alarmante, até para ele mesmo. Agarrou o cabo da vassoura com a mão direita, impelindo-o de volta contra o estômago do homem da rede, empurrando-o contra ele no instante do impacto, ao mesmo tempo em que levantava o pé esquerdo do convés e o calcava contra a garganta do homem. — Tao! — O sussurro gutural saiu dos seus lábios involuntariamente, sem que ele mesmo soubesse o que aquilo significava. Antes que pudesse entender, ele girava em torno de si mesmo, o pé direito como um aríete golpeando o rim esquerdo do homem. — Che-sah! — murmurou. O homem da rede recuou, e em seguida investiu contra ele, furioso com a dor, as mãos estendidas como garras. — Porco! O paciente se agachou, movendo rapidamente a mão direita para agarrar o braço esquerdo do homem, torcendo-o para baixo e levantando-o em seguida, forçando o braço de sua vítima para cima, girando-o novamente para só depois largá-lo, enquanto forçava o calcanhar contra a parte inferior de suas costas. O francês caiu estendido por cima das redes, esmagando a cabeça contra a base da mureta.
— Mee-sah! — E novamente ele não conhecia o significado de seu grito surdo. Um dos tripulantes agarrou-lhe o pescoço por trás. O paciente esmurrou com o pulso fechado a região pélvica do homem que o agarrara e se abaixou, segurando com firmeza o cotovelo posto à direita da sua garganta. Deu uma guinada para a esquerda, levantando do chão o atacante, que girou, pernas no ar, enquanto era atirado do outro lado do convés, o rosto e o pescoço presos entre as rodas de um molinete. Os dois homens restantes saltaram sobre ele, esmurrando-o com os pulsos e joelhos, enquanto o capitão do barco pesqueiro esbravejava repetidamente suas advertências. — Le docteurl Rappelons le docteur! Va doucement! As palavras estavam tão deslocadas quanto a visão do capitão. O paciente agarrou o pulso de um dos homens, levando-o para baixo e fazendo-o girar da esquerda para a direita, num único movimento, O homem rugiu de dor. O pulso estava quebrado. O paciente de Washburn apertou os dedos das mãos, unindo-os, e girando os braços como uma marreta acertou no meio da garganta do homem com o pulso quebrado. Este deu um salto mortal no ar e caiu desfalecido sobre o convés. — Kwa-sah! — O grito ecoou nas orelhas do paciente. O quarto homem recuou, arregalando os olhos para aquele louco, que simplesmente olhou para ele. Terminara. Três dos homens da tripulação de Lamouche estavam inconscientes, severamente punidos pelo que tinham feito. Era pouco provável que algum deles pudesse voltar à doca às quatro horas da manhã. As palavras de Lamouche foram pronunciadas com espanto e desprezo ao mesmo tempo. — Não sei de onde você veio, mas vai sair já deste barco. O homem sem memória entendeu a ironia involuntária das palavras do capitão. Eu também não sei de onde vim. — Agora, você não pode mais ficar aqui — disse Geoffrey Washburn, entrando no quarto meio escurecido. — Acreditei seriamente que podia evitar qualquer ataque sobre você. Mas não posso lhe proteger quando é você quem faz o estrago. — Foi uma provocação. — Na mesma extensão do dano infligido? Um pulso quebrado e lacerações que precisaram de pontos na garganta e no rosto de um dos homens e no crânio de outro? Um choque grave e uma lesão ainda indeterminada em uma coxa, para não mencionar ainda um soco em uma virilha que causou distensão nos testículos? Acho que a palavra adequada é matança.
— Teria sido apenas uma simples morte, e eu teria sido o morto, se tivesse acontecido de outra forma. — O paciente fez uma pausa, mas voltou a falar antes que o doutor pudesse interromper. — Acho que devemos conversar. Muitas coisas aconteceram, outras palavras me vieram à cabeça. Devemos conversar. — Devemos, mas não podemos. Não há tempo. Você tem que partir agora. Já arranjei tudo; — Agora? — Sim. Eu lhes disse que você foi à vila, talvez para beber. As famílias estarão à sua procura, irmãos, primos e cunhados. Terão facas, ganchos, talvez uma espingarda ou duas. Quando não o tiverem encontrado voltarão. Não vão parar enquanto não o encontrarem. — Por causa de uma briga que não comecei? — Porque você feriu três homens que vão perder pelo menos um mês de salário. E mais uma coisa, infinitamente mais importante. —O quê? — O insulto. Alguém de fora, que não é da ilha, provou ser um páreo duro não apenas para um, mas para três respeitáveis pescadores de Port Noir. — Respeitáveis? — No sentido físico. A tripulação de Lamouche é considera da a mais dura da praia. — Isso é ridículo. — Não para eles. Trata-se da honra deles... Agora, rápido, vamos, junte suas coisas! Tem um barco de Marselha atracado e o capitão concordou em esconder você e depois largá-lo a meia milha do largo ao norte de La Ciotat. O homem sem memória reteve a respiração. — Então está na hora — disse pensativamente. — Está na hora — respondeu Washburn. — Acho que sei o que está lhe passando pela cabeça. Uma sensação de desamparo, de estar à deriva sem um leme para mantê-lo no curso. Tenho sido o seu leme e não vou mais estar com você. Não posso mudar isso, mas ouça bem o que estou lhe dizendo, você não está desamparado. Você vai se encontrar. — Para Zurique — acrescentou ele. — Para Zurique — concordou o doutor. — Aqui está, ajeitei algumas coisas para você neste pedaço de oleado. Amarre-o em volta de sua cintura. — O que é isto? — Todo o dinheiro que tenho, uns dois mil francos. Não é muito, mas vai lhe ajudar no início. E
o meu passaporte. Pode servir para alguma coisa. Temos mais ou menos a mesma idade e ele já tem oito anos. As pessoas mudam. Mas não deixe ninguém observá-lo muito de perto. É apenas um papel oficial. — O que você vai fazer? — Se não voltar a encontrar você não vou precisar dele nunca mais. — Você é um homem camarada. — Acho que você também é... Pelo que pude conhecer. Mas, de agora em diante, nunca o vi antes. De forma que não posso responder por esse homem. Gostaria de poder, mas não é possível. O homem encostou-se contra a grade, olhando para as luzes de Île de Port Noir, que ficavam para trás. O pesqueiro adentrava a escuridão, como ele mergulhara na escuridão ha quase cinco meses. E agora mergulhava novamente na escuridão.
Capítulo3 Nenhuma luz brilhava na costa da França. O clarão mortiço de um resto de luar delineava a orla rochosa. Estavam a duzentas jardas da margem e o pesqueiro balouçava suavemente, respondendo aos movimentos de contracorrente da enseada. O capitão apontou para a margem. — Há uma extensão de praia entre aquelas duas pontas de pedra. Não é grande, mas você pode alcançá-la se nadar sempre para a direita. Podemos nos deixar arrastar por mais uns trinta ou quarenta pés, não mais. Um minuto ou dois, apenas. — Já fez mais do que eu esperava. Sou-lhe grato por isto. — Não há de quê. Costumo pagar meus débitos. — Faço parte deles? — E como! O doutor em Port Noir costurou três dos meus tripulantes depois daquela fúria, há cinco meses. Você não foi o único que sobrou, sabe? — A tormenta? Você me conhece, então? — Você estava branco como cera na mesa, mas não o conheço e nem quero conhecê-lo. Eu estava sem dinheiro, não tinha pescado nada, e o doutor me disse que eu podia pagar quando estivesse em melhores condições. Você está sendo o meu pagamento. — Preciso de alguns papéis — o homem falou pressentindo possibilidade de ajuda. — Preciso falsificar um passaporte. — E por que me diz isso? — perguntou o capitão. — Disse apenas que deixaria em segurança uma encomenda ao norte da margem de La Ciotat. Foi só isso que eu disse. — Não teria feito isso se não fosse capaz de fazer outras coisas também. — Não vou levá-lo até Marselha. Não vou me arriscar com as patrulhas. A Súreté tem esquadrões espalhados por todo o ancoradouro. As turmas contra narcóticos são maníacas, ou você paga a eles ou pega vinte anos de cadeia. — Isso quer dizer que posso conseguir os papéis em Marselha. E você pode me ajudar. — Eu não disse isso. — Disse sim. Preciso de um serviço e esse serviço pode ser encontrado no lugar para onde você não vai me levar. Mas é lá que posso encontrar esse serviço, foi o que você disse. — Mas o que foi que eu disse? — Que você pode me encontrar em Marselha, se eu puder chegar lá sem a sua ajuda. Só me diga
onde. O capitão do pesqueiro ficou estudando o rosto do paciente e custou a tomar uma decisão. Depois disse: — Há um café na Rua Sarrasin, ao sul do Old Harbor, o Le Bouc de Mer. Estarei lá hoje à noite entre nove e onze horas. Você vai precisar de algum dinheiro, uma parte tem que ser dada adiantada. — Quanto? — Depende de você e do homem com quem vai negociar. — Apenas para ter uma idéia. — Fica mais barato se você tiver um documento que possa ser trabalhado; de outra forma, é preciso roubar um. — Mas já lhe disse que tenho um. O capitão encolheu os ombros. — Mil e quinhentos, dois mil francos. Estamos perdendo tempo? O paciente lembrou-se do pacote de oleado amarrado à sua cintura. A fraudulência imperava em Marselha, mas só assim podia conseguir um passaporte falsificado. Um passaporte para Zurique. — Podemos negociar — respondeu sem saber por que estava tão confiante. — Até a noite, então. O capitão perscrutou a linha do mar mal-iluminada. — Só podemos chegar até aqui. Agora é por sua conta. Lembre-se: se não nos encontrarmos em Marselha, nunca o vi antes e você nunca me viu entes. E ninguém da minha tripulação tampouco conhece você. — Estarei lá. Le Bouc de Mer, Rua Sarrasin, ao sul de Old Harbor. — Vá com Deus. — O capitão fez um sinal para um dos homens, que estava no leme. As máquinas roncaram debaixo do barco. — A propósito, a clientela lá do café Le Bouc não está acostumada com o dialeto parisiense. Se fosse você, eu falaria mais aspirado. — Obrigado pelo aviso. — O paciente respondeu enquanto passava as pernas por cima da mureta e entrava na água. Manteve a mochila suspensa e pôs-se a tesourar a água com as pernas, para se manter flutuando. — Até a noite — acrescentou em voz mais baixa, olhando para o casco escuro do pesqueiro. O capitão já deixava a grade, não havia ninguém para ouvi- lo. Os únicos ruídos vinham das batidas das ondas contra a madeira e do som abafado das máquinas acelerando. Agora é por sua conta. Ele se debateu e rodopiou na água fria, pondo-se em direção à margem. Lembrou-se que devia avançar reto em direção à sua direita, para as pontas de pedra. Se o capitão realmente tivesse certeza do que dissera, ele seria levado pela corrente para a praia invisível.
A corrente realmente o levou até lá. Podia sentir a ressaca empurrando seus pés nus para dentro da areia. As últimas trinta jardas foram as mais difíceis de atravessar. A mochila de lona encerada estava quase seca, ele ainda a segurava acima das ondas. Alguns minutos depois já estava sentado sobre uma duna de capim selvagem vendo os juncos altos vergarem com a brisa do mar aos primeiros raios de luz da manhã. O sol estaria em pé dali a uma hora, e ele teria que se mexer. Abriu a mochila e tirou um par de botas e duas meias grossas que estavam enroladas com a calça, mais uma camisa de brim ordinário. Em algum lugar no seu passado aprendera a fazer uma mala com grande economia de espaço — a mochila continha muito mais coisa do que se poderia pensar. Onde teria ele aprendido isso? Por quê? As perguntas não cessavam. Levantou-se e despiu os calções britânicos que Washburn lhe dera. Estendeu-os por cima das folhas dos juncos para secar; não podia se desfazer de nada. Depois, tirou a camiseta e também a estendeu. Agora, sentado em cima da duna, nu, sentia um regozijo estranho, misturado com uma dor surda no meio do estômago. Era medo, ele sabia. Sabia o porquê do regozijo, também. Saíra-se bem no primeiro teste. Acreditara no seu impulso — talvez por compulsão — e soubera o que dizer e como responder. Há uma hora não tinha destino certo, sabia apenas que Zurique era o seu objetivo e que teria que passar por divisas e muitos olhos de oficiais. O velho passaporte estava tão longe de parecer seu que até mesmo o mais estúpido funcionário da emigração poderia perceber isso. Mas mesmo que conseguisse entrar na Suíça com ele, não lhe seria de grande valor, pois logo iria sair de lá e qualquer ação mais estranha que fosse percebida ou qualquer objeto seu que fosse retido podia denunciá-lo. Não podia permitir que isso acontecesse. Não agora, antes de saber mais alguma coisa sobre si mesmo. As respostas estavam em Zurique. Tinha que viajar com liberdade e conseguira passar a lábia no capitão do pesqueiro para tornar isso possível. Você não está desamparado. Você vai se encontrar. Antes que o dia terminasse ele já teria feito um contato com um profissional para falsificar o passaporte de Washburn e transformá-lo em uma licença para viajar livremente. Era o primeiro passo concreto que daria. Mas antes disso, tinha que pensar no dinheiro. Os dois mil francos que o doutor lhe dera não eram suficientes, talvez até nem dessem para o próprio passaporte. Para que lhe serviria uma licença de viagem se ele não tivesse os meios para poder viajar? Dinheiro. Tinha que arranjar dinheiro. Tinha que encontrar um meio para isso. Sacudiu a roupa que tirara da mochila, vestiu-a e enfiou os pés nas botas. Depois deitou-se na areia e ficou olhando para o céu, que pouco a pouco se tomava claro. O dia acabara de nascer, e ele também. Caminhou pelas ruas estreitas de La Ciotat, entrando nas lojas mais para conversar com os vendedores do que outra coisa qualquer. Era uma sensação estranha poder fazer parte da convivência humana, não ser um pária desconhecido, um náufrago retirado do alto-mar. Lembrou-se da advertência
do capitão e tornou o seu francês mais gutural, o que lhe permitia passar pela cidade e ser aceito como um estrangeiro qualquer. Dinheiro Havia uma parte de La Ciotat que parecia servir a uma rica clientela. As lojas eram mais limpas e as mercadorias mais caras, o peixe mais fresco e a carne mais abundante do que na área do comércio central. Até mesmo os vegetais reluziam, muitos eram exóticos, importados da África ou do Oriente Médio. O lugar tinha um toque de Paris ou de Nice que estava estampado na representação da rotina da classe média de uma comunidade costeira. Um pequeno café, cuja entrada ficava no final de um caminho da lajes, era separado das lojas, dos dois lados, por uma sala de manicure. Dinheiro. Entrou em um açougue e percebeu logo que o dono não gostara de sua presença, lançando-lhe um olhar frio. O homem atendia a um casal de meia-idade que, pela maneira de falar e agir, deviam ser empregados domésticos de uma mansão importante. Eram precisos, lacônicos e exigentes. — A vitela da semana passada estava passável apenas — disse a mulher. — Quero um pedaço melhor desta vez, ou serei forçada a mandar buscar em Marselha. — E uma noite — o homem acrescentou — o marquês comentou comigo que as postas de cordeiro estavam muito magras. Vou repetir, cuidado com a espessura das postas. O dono suspirou e deu de ombros, murmurando algumas frases solícitas de desculpas e promessas. A mulher virou-se para o acompanhante com a mesma voz autoritária que usara para o açougueiro: — Espere pelos pacotes e ponha-os no carro. Vou até a mercearia, vá me buscar lá. — Está bem, querida. A mulher saiu — parecia um pombo à procura dos grãos do conflito. No instante em que saiu pela porta o marido virou-se para o dono do açougue, já com maneiras completamente diferentes. Forase a arrogância e um sorriso ficara no lugar. — A rotina diária, eh, Marcel? — disse ele, tirando um maço de cigarros do bolso. — Nem melhor nem pior. As postas estavam mesmo muito finas? — Meu Deus, não! Qual foi a última vez em que ele pôde perceber alguma coisa? Você bem sabe. — Onde está o Marquês do Monte-de-Esterco, agora? — Está bêbado na porta ao lado, à espera da puta de Toulon. Volto mais tarde para pegá-lo e ajudá-lo a passar pela marquesa sem ser visto, passando pelos estábulos. Até lá, ele não vai poder guiar.
Usa a sala de Jean-Pierre em cima da cozinha, sabe? — Ouvi falar. À menção do nome Jean-Pierre, o paciente de Washburn virou-se de onde estava, perto do balcão com as aves à mostra. Foi um reflexo automático, imediato. O movimento serviu apenas para que o açougueiro se lembrasse de sua presença. — O que é? O que você quer? Era hora de deixar de lado o francês gutural, agora. — Você me foi recomendado por alguns amigos, em Nice. — Falou com um acento mais condizente com o Quai d’Orsay do que o Le Bouc de Mer. — Oh? — O dono do açougue imediatamente fez um novo juízo dele. Entre a sua clientela, sobretudo entre os mais jovens, havia os que preferiam se vestir de forma oposta ao que a sua situação permitia. A camisa comum Basque estava até na moda nestes últimos tempos. — É novo aqui, senhor? — Meu barco está atracado aqui, para reparos. Não teremos condições de chegar a Marselha ainda hoje. — Posso ser-lhe útil? O paciente riu. — Pode ser útil ao chefe. Eu não me atreveria a pedir-lhe nada. Ele estará por aqui mais tarde e tenho alguma influência sobre ele. O açougueiro e o amigo riram. — Acho que sim, senhor — o dono do açougue respondeu. — Vou precisar de uma dúzia de patos novos e, vamos dizer, uns dezoito chatobriãs. — Pois não. — Ótimo. Mandarei o nosso cozinheiro diretamente para cá. — Virou-se para o homem de meia-idade. — A propósito, ouvi sem querer... Mas não, não fique preocupado. O marquês não é aquele burro do d’Ambois, não é? Acho que alguém me disse que ele mora aqui por perto. — Oh, não, não, senhor. — O criado respondeu. — Não conheço o Marquês d’Ambrois. Referia-me ao Marquês de Chamford. Um excelente cavalheiro, senhor, mas com muitos problemas. Tem um casamento cheio de dificuldades, senhor. Muito difícil, não é nenhum segredo. — Chamford? Sim, acho que já o encontrei. Um baixinho, não é? — Não, senhor. Na verdade, bem alto. Mais ou menos do seu tamanho, eu diria. — Verdade? O paciente logo percebeu as várias entradas e escadas internas do café de dois andares. Foi rápido para memorizar — fez-se de um entregador de frutas e legumes de Roquevaire, um pouco incerto
sobre a sua nova rota. Havia duas escadas que davam para o segundo andar — uma saía da cozinha e a outra ficava logo atrás da entrada da frente, no pequeno vestíbulo. Esta era usada pelos patrões para irem aos banheiros de cima. Havia até uma janela pela qual uma pessoa, se quisesse, poderia ver, do lado de fora, quem usasse esta escada especial; e ele estava certo de que se esperasse o tempo suficiente veria duas pessoas subirem por ela. Sem dúvida alguma, subiriam separadamente, nenhum dos dois se dirigiria ao banheiro, mas ao quarto que ficava acima da cozinha. O paciente gostaria de saber qual dos dois automóveis estacionados na rua quieta pertencia ao Marquês de Chamford. Qualquer que fosse o carro, no entanto, o empregado de meia idade, lá no açougue, não teria que se preocupar; seu patrão não iria dirigi-lo. Dinheiro. A mulher chegou bem perto de uma, hora. Era uma loura de cabelos varridos pelo vento, com os seios grandes apontando na seda azul da blusa, as pernas longas queimadas de sol, que avançava com passas graciosos, em cima de saltos finos, as coxas e os quadris bem desenhados por debaixo de branca saia justa. Chamford podia ter problemas, mas também tinha bom gosto. Vinte minutos depois pôde ver a saia branca pela janela; ela se encaminhava para o segundo andar. Menos do que 60 segundos depois uma outra figura apareceu na esquadria da janela — de calça escura e um blazer que vestia um rosto branco cambaleando cautelosamente escada acima. O paciente contou os minutos. Seria bom se o Marquês de Chamford tivesse um relógio. Segurando a mochila, tão discretamente quanto possível, pelas tiras, o paciente caminhou pela calçada de lajedo até a entrada do restaurante. Lá dentro, virou à esquerda no vestíbulo, desculpando-se com um senhor mais velho que se arrastava penosa mente para subir os degraus, alcançou o segundo andar, virou novamente à esquerda e deu com um longo corredor que levava à parte de trás do edifício, acima da cozinha. Passou pelos banheiros e chegou a uma porta fechada no final do estreito corredor. Permaneceu imóvel, as costas junto à parede. Virou a cabeça e esperou que o velho se aproximasse do banheiro e abrisse a porta, enquanto descia o fecho da calça. O paciente — instintivamente, sem pensar, na verdade — levantou a mochila e encostou-a no centro da almofada da porta. Segurou-a no lugar, os braços estendidos, deu um passo para trás e, num movimento rápido, bateu com o ombro esquerdo na lona, abaixando a mão direita assim que a porta se abriu e agarrando-a antes que batesse contra a parede. Ninguém lá embaixo, no restaurante, podia ter ouvido aquela silenciosa entrada forçada. — Nom de Dieu! — gritou ela — Qui est-ce!... — Silence! O Marquês de Chamford rolou de cima do corpo nu da loura até a beira da cama, indo estatelarse no chão. Parecia um personagem de uma ópera cômica. Ainda estava com a camisa engomada, o nó da gravata ainda no lugar, as longas meias pretas de seda; mas tinha só isto no corpo. A mulher se agarrou às cobertas, fazendo o melhor que podia para minorar a indelicadeza do momento. O cliente do doutor deu suas ordens rapidamente. — Não gritem! Ninguém vai se machucar se
fizerem exatamente o que eu disser. — Minha esposa o contratou! — gritou Chamford, deixando as palavras escorregarem da boca com dificuldade, a visão difícil. — Eu lhe pago mais! — Podemos começar — respondeu o paciente do Dr. Washburn. — Tire a camisa e a gravata. E as meias. — Avistou a pulseira de ouro brilhando no pulso do marquês. — E o relógio. Alguns minutos depois, a transformação era completa. As roupas do marquês não lhe caíam perfeitamente, mas ninguém podia negar a qualidade do tecido e a originalidade do corte. Também o relógio — era um Girard Perregaux, e a carteira de Chamford, que continha mais de treze mil francos. As chaves do carro também eram imponentes, engastadas em prata de lei. — Pelo amor de Deus, dê-me as suas roupas! — suplicou o marquês; a implausibilidade da sua reclamação cheirava a álcool. — Sinto muito, mas não posso — respondeu o intruso, ajuntando tanto as suas próprias roupas quanto as da loura. — Você não pode levar as minhas! — exclamou ela. — Já avisei para falarem baixo. — Está bem, está bem — continuou ela .—, mas você não pode... — Claro que posso.— O paciente olhou à volta do quarto. Havia um telefone sobre uma escrivaninha, perto da janela. Foi até lá e torceu o fio, puxando-o da tomada — Agora ninguém poderá perturbá-los — ele acrescentou, enquanto pegava a mochila. — Você não vai sair assim, entendeu?! — Chamford falou com irritação. — Não vai escapar com isto! A policia vai encontrá-lo — A polícia?! Você acha realmente que deve chamar a policia? Um inquérito legal seria feito e todas as circunstâncias teriam que ser descritas. Não acho que seja uma boa idéia. Creio que é melhor você esperar pelo camarada que vem lhe buscar mais tarde. Eu o ouvi dizer que iria ajudá-lo a passa pela marquesa entrando pelos estábulos. Levando em consideração tudo isso, realmente acredito que é o melhor que você tem a fazer. Tenho certeza de que você pode apresentar uma história bem melhor do que esta. Não tenho intenção de lhe contradizer em nada. E assim o ladrão desconhecido saiu, fechando atrás de si a porta arrombada. Você não está desamparado. Vai encontrar o seu caminho. Ele já encontrara, e era assustador. O que dissera Washburn? Que suas habilidades e talentos voltariam... mas acho que você não vai poder relacioná-los com as coisas do seu passado. O passado. Que espécie de passado era esse, que lhe havia desenvolvido tais habilidades, todas essas habilidades que demonstrara nas últimas 24 horas? Onde aprendera a machucar, mutilar e aleijar com golpes dos
pés? E os dedos entrelaçados, formando um martelo? Como sabia onde precisamente aplicar os golpes? Quem o ensinara a lidar com a mente criminosa de forma a fazê-la, embora relutantemente, agir coagida pela lembrança de um erro? Como ele conseguia cifrar tão rapidamente estas meras implicações e se convencer tão depressa de que as suas intuições estavam certas? Onde teria aprendido a perceber imediatamente a possibilidade de extorsão, só por entreouvir casualmente uma conversa em um açougue? E mais ainda, a levar a cabo o crime? Meu Deus, como ele pôde? Quanto mais você lutar contra isso, mais vai se atormentar, será pior para você. Concentrou-se na estrada e no painel de mogno do Jaguar do Marquês de Chamford. A disposição dos instrumentos e dos mostradores não lhe era familiar; o seu passado parecia não lhe ter dado muita experiência com este tipo de carro. Isso queria dizer alguma coisa. Em menos de uma hora atravessava a ponte por sobre um largo canal; agora tinha a certeza de ter alcançado Marselha. Pequenas casas de pedra parecendo blocos quadrados saindo da água; as ruas estreitas cercadas pelos muros — eram as imediações do velho ancoradouro. Ele o reconhecia muito bem e, no entanto, não o conhecia. Lá longe, bem no alto de uma das montanhas, destacava-se o contorno de uma catedral com uma imagem da Virgem encimando o campanário. Era a Notre-Dame dela-Garde. O nome lhe veio à mente imediatamente. Vira-a antes — e no entanto nunca a tinha visto. Oh, Cristo! Já chega! Poucos minutos depois encontrava-se no palpitante centro da cidade, dirigindo pela movimentada Canebière, com a sua proliferação de lojas caras, enquanto os últimos raios do sol da tarde ressaltavam os cristais coloridos das vitrines dos dois lados da rua. Dos dois lados, os enormes cafés se espalhavam sobre as calçadas. Dobrou à esquerda em direção ao ancoradouro, passando pelos bordéis, as pequenas fábricas e alguns terrenos cercados, cheios de carros prontas para serem transportados para o Norte, para os salões de exposição de Saint-Etienne, Lyons e Paris. E para alguns pontos do Sul, em direção ao Mediterrâneo. Intuição. Siga a sua intuição. Porque nada podia ser descon siderado. Qualquer recurso tinha que ser imediatamente utilizado, uma pedra tinha valor se pudesse ser usada; um veículo, se fosse necessário para alguém. Escolheu um dos lotes de carros novos e usados, mas onde só tinha carros caros. Parou no meio-fio e saiu do carro. Além da cerca havia uma garagem, os mecânicos em seus macacões andavam de lá para cá, em silêncio, transportando ferramentas. Andou em volta dos carros casualmente, até perceber um homem vestido com um terno claro, de listras finas; sua intuição mandava que se aproximasse dele. Levou menos de dez minutos; teve que dar poucas explicações, passar um Jaguar para a África do Norte com a garantia de rasurar o número do motor. As chaves com cabeças de prata foram trocadas por seis mil francos, quase um quinto do valor do automóvel de Chamford. Logo em seguida o paciente do Dr. Washburn pegou um táxi e pediu que o levasse a uma casa de penhores — um lugar onde não lhe fizessem muitas perguntas. A mensagem foi bem entendida, assim era Marselha. Meia hora depois o Giirard Perregaux não estava mais em seu pulso; fora trocado por um Seiko cronógrafo e mais oitocentos francos. Cada coisa tinha um valor de
acordo com a sua utilidade; o cronógrafo era à prova de choque. O pr6ximo passo foi uma pequena loja de departamentos no lado sudeste de La Canebière. As roupas eram escolhidas e tiradas dos cabides e prateleiras, pagas e vestidas, já usadas e surradas, nos provadores. Um blazer mal-assentado e uma calça foram deixados lá. De um mostruário no chão escolheu uma maleta de couro macio, mais algumas peças adicionais de vestuário, que foram postas dentro da maleta, juntamente com a mochila. O paciente olhou para o relógio novo: quase cinco horas, hora de escolher um hotel confortável. Estava sem dormir há dias, precisava de um bom repouso antes do encontro na Rua Sarrasin, no café Lê Bouc de Mer, onde iria fazer os arranjos para um encontro bem mais importante — o de Zurique. Deitado na cama, ficou olhando para o teto, O reflexo das luzes da rua formavam desenhos irregulares na superfície lisa e branca. A noite chegara depressa em Marselha e lhe trouxera uma certa sensação de liberdade. Era como se a escuridão fosse uma imensa manta acobertando a impiedosa luz do dia, que desvelava tudo com muita rapidez e presteza. Aprendera mais uma coisa a seu respeito: sentia-se melhor à noite. Como um gato faminto, podia vasculhar e pilhar melhor no escuro. Mas havia uma contradição nisso: durante os meses que passara em Île de Port Noir ansiava ardentemente pela luz do dia, ávido, esperava o amanhecer desejoso de que a escuridão se dissipasse. Coisas novas estavam acontecendo, ele estava mudando. Algumas coisas já tinham acontecido. Acontecimentos que desmentiam o conceito de que pilhar era mais fácil à noite. Doze horas atrás ele estava em um barco pesqueiro, no Mediterrâneo, com um objetivo em mente e dois mil francos amarrados à cintura. Dois mil francos, quantia menor do que quinhentos dólares americanos, de acordo com o câmbio do dia fixado no saguão do hotel. E agora já tinha uma bagagem contendo algumas peças de roupa boa e estava deitado em uma cama de hotel de boa qualidade com um pouco mais de vinte e três mil francos guardados em uma carteira Louis Vuitton, que pertencera ao Marquês de Chamford. Vinte e três mil francos... quase seis mil dólares. De onde viera? Como pudera fazer tudo o que acabara de fazer? Chega! Chega! A Rua Sarrasin era tão antiga que se ficasse em outra cidade qualquer já teria sido designada como um marco; era uma artéria larga, de pedras, que ligava ruas que haviam sido feitas muitos séculos depois. Assim era Marselha, onde o antigo coexistia com o velho, ambos destoando do novo. A Rua Sarrasin não tinha mais do que cem pés de comprimento, estava congelada no tempo, entre as paredes de pedra dos edifícios que davam frente para o mar, desprovida de luzes, aprisionando a neblina que vinha do ancoradouro. Era uma rua escondida, propícia para breves encontros entre homens que não queriam ser vistos. Som e luz vinham do Le Bouc de Mer. O café ficava mais ou menos no centro do corredor largo; o prédio fora um edifício de escritórios do século XIX. Algumas paredes tinham sido demolidas para a construção de um grande salão de bar com várias mesas no centro; algumas paredes foram deixadas
formando pequenos cubículos para conversas menos públicas. Era a correspondência que o pessoal do cais encontrara para as salas privadas dos restaurantes da Rua La Canebiêre; os cubículos eram fechados com cortinas, e não com portas, de acordo com as condições dos seus freqüentadores. O paciente andou por entre as mesas lotadas, abrindo caminho por entre as camadas de fumaça, desculpando-se enquanto tentava abrir passagem entre os pescadores, soldados bêbados e prostitutas de rosto vermelho, à cata de camas para descansar e de alguns francos. Espiou para dentro de uma série de cubículos — era um marujo à procura dos seus companheiros — até encontrar o capitão do pesqueiro, que estava com outro homem à mesa. Era magro, pálido, os olhos apertados e bisbilhoteiros como os de um furão curioso. — Sente-se — disse o casmurro capitão. — Pensei que viesse antes. — Combinamos entre nove e onze. Faltam quinze para as onze. — Você estica o tempo; pode pagar o uísque, então. — Com prazer. Peça alguma coisa decente, se é que eles têm. O homem magro e pálido sorriu. Tudo ia ficar bem. Eles estavam bem. O passaporte em questão era, naturalmente, um dos mais difíceis do mundo para se adulterar, mas com grande cuidado, bom equipamento e maestria o trabalho poderia ser feito. — Quanto? — Estas habilidades — mais o equipamento — não ficam muito barato. Duzentos e cinqüenta francos. — Para quando? — Bem, o cuidado, a maestria, tudo isso toma tempo. Três ou quatro dias. E assim mesmo tenho que apressar o artista, que vai me dar uma bronca. — Mais mil francos para me entregar amanhã. — Às dez da manhã — respondeu imediatamente o homem pálido. — Vou aceitar a transgressão. — E os mil — interrompeu o carrancudo capitão. — O que você conseguiu em Port Noir? Diamantes? — Talento — respondeu o paciente sem entender muito bem — Vou precisar de uma foto — disse o contato. — Dei uma parada em uma galeria e fiz essa — respondeu o paciente tirando do bolso da camisa uma pequena fotografia quadrada. — Com todo esse caro equipamento, acho que você pode dar um jeito nela.
— Roupa fina — disse o capitão, passando a foto para o homem pálido. — Bem talhada — o paciente concordou com ele. Combinaram o lugar do encontro para a manhã seguinte, a bebida foi paga, e o capitão escorregou quinhentos francos por debaixo da mesa. A entrevista terminara, o comprador deixou o cubículo e começou a abrir caminho pelo salão apinhado, passando pelo alarido das mesas, pelas camadas de fumaça, em direção à porta. Foi tão repentino, tão rápido, tão inesperado, que nem teve tempo para pensar. Só reagir. Foi um esbarrão brusco, acidental, mas o olhar que se fixou nele não tinha nada de acidental, Os olhos esbugalhados pareciam querer saltar da órbita, arregalados, descrentes do que viam. Uma expressão à beira da histeria. — Não! Oh, meu Deus, não! Não pode... — O homem parou no meio da multidão, o paciente cambaleou para a frente, afastando com a mão o ombro do homem. — Espere aí! O homem alteou a voz novamente, encaixando o V formado pelo polegar e os demais dedos no pulso do paciente, tirando-lhe a mão do ombro. — Você! Você morreu! Você não podia ter sobrevivido! — Sobrevivi. O que sabe você? O rosto agora se contorcia em uma massa retorcida em fúria, uma expressão maligna nos olhos, a boca aberta sugando o ar, os dentes amarelos descobertos, que pareciam dentes de animal. De repente, o homem puxou uma faca. Ouviu-se o barulho da lâmina saindo do cabo, mesmo naquela zoeira. O braço estendeu-se para a frente, a lâmina era uma extensão da mão que a segurava, movendo-se em direção ao estômago do paciente. — Sei que vou dar cabo de tudo! — sussurrou o homem. O paciente girou o braço direito por baixo, com um pêndulo, varrendo para longe todos os objetos que encontrava na frente. Depois, rodou nos calcanhares, impulsionando o pé esquerdo para cima, fincando o calcanhar no osso pélvico do atacante. — She-sab! — o eco em seus ouvidos era ensurdecedor. O homem cambaleou para trás, caindo por sobre um trio de bebedores. A faca foi ao chão, e logo que foi vista ouviram-se gritos, homens afluindo para o ponto da briga, punhos e mãos lutando para separar os combatentes. — Saiam já daqui! — Vão discutir em outro lugar! — Não queremos que a polícia entre aqui, seus bêbados desgraçados.
A violenta linguagem vulgar de Marselha se elevou por entre o ruído cacófono do Le Bouc de Mer. O paciente foi cercado. Observou o seu quase assassino avançando pela multidão, segurando a virilha, forçando um caminho para a saída. A porta pesada girou e o homem desapareceu na escuridão da Rua Sarrasin. Alguém que pensava que ele estava morto — queria que ele estivesse morto — agora sabia que ele estava vivo.
Capítulo4 O vôo do Caravelle da Air France para Zurique já estava com todos os lugares da classe econômica lotados. As poltronas estreitas se tornavam ainda mais desconfortáveis com a turbulência que fustigava o avião. Um bebê chorava nos braços da mãe, outras crianças choramingavam, engolindo seus gritos de medo, enquanto os pais sorriam tentando transmitir-lhes uma tranqüilidade que não tinham. A maior parte dos demais passageiros estava em silêncio, alguns bebendo seu uísque mais rapidamente do que de costume, outros forçando um riso nas gargantas amedrontadas, falsas bravatas que só serviam para enfatizar a insegurança, em vez de disfarçá-la. Um vôo terrível significava coisas diferentes para diferentes pessoas, mas sempre havia o indispensável pensamento do terror. Quando as pessoas se encerram em um tubo de metal a trinta mil pés, do chão, tornam-se vulneráveis. Um mergulho mais prolongado e ele estaria caindo verticalmente em direção à terra. E algumas perguntas fundamentais acompanham o terror absoluto. Que pensamentos vêm à cabeça das pessoas em uma situação dessas? Como as pessoas reagem? Tentou descobrir, era muito importante. Estava sentado próximo à janela, os olhos postos na asa da aeronave, observando a larga extensão de metal se encurvar e vibrar sob o impacto brutal dos ventos. As correntes se entrechocavam, encurralando o tubo feito pelas mãos do homem, para domesticá-lo, torná-lo submisso, de forma a não esquecer que era apenas uma partícula microscópica na imensa vastidão do firmamento. Uma pitada a mais de pressão sobre a flexão de tolerância permitida e a asa se arrebentaria, os propulsores romperiam do corpo cilíndrico, retalhando as asas. Um impacto de rebites se soltando, a explosão e, em seguida, o sensacional mergulho. O que ele faria? O que pensaria? Alguma coisa além do medo incontrolável de morrer e ser esquecido — existiria alguma coisa mais? Era nisso que ele devia se concentrar, essa era a projeção que Washburn tanto enfatizava em Port Noir. As palavras do médico lhe vieram à memória. Sempre que você perceber uma situação de estresse — e tiver tempo — esforce-se ao máximo para projetar-se nela. Faça associações tão livremente quanto puder, deixe que as palavras e as imagens encham sua mente. Nelas você poderá encontrar algumas chaves. Continuou a olhar concentradamente para fora da janela, tentando conscientemente puxar seu inconsciente, firmando os olhos na violência natural, desencadeada além do vidro, destilando os movimentos, silenciosamente se “esforçando” para permitir que as suas reações puxassem palavras e imagens. Elas chegaram — devagar. Lá estava a escuridão, novamente, e o som cortante do vento estilhaçando-lhe os ouvidos, contínuo, crescendo em intensidade até que pensou que sua cabeça iria explodir. Sua cabeça... Os ventos açoitavam-lhe a face esquerda, queimavam-lhe a pele, ele era forçado a levantar o ombro esquerdo para proteger o rosto... Ombro esquerdo. Braço esquerdo. O seu braço estava levantado, os dedos enluvados da mão esquerda apertavam uma borda lisa de metal, a mão direita segurava uma... correia, ele estava se segurando em uma correia, esperando por alguma coisa. Um sinal... uma lanterna ou uma batida no ombro, os dois talvez. Um sinal! Acendeu! Ele mergulhou. Para dentro da escuridão, do vazio, o corpo tombando, girando, sendo atirado para dentro da noite escura. Ele acabara de... de saltar de pára-quedas!
— Etes-vous malade? Seu devaneio insano foi subitamente interrompido, o nervoso passageiro ao seu lado tocara-lhe o braço esquerdo — o que estava levantado, com os dedos da mão esticados, como se estivessem tentando resistir, rígidos, na mesma posição. Atravessado ao peito, o baço direito comprimia o tecido do seu paletó, a mão direita segurava a lapela com força, pregueando o pano. Na testa corria um fio de suor. Acontecera. Aquela alguma- coisa-mais chegara, efêmera, insana — fora focada. — Pardon — respondeu ele abaixando os braços. — Un mauvais rêve — acrescentou ele casualmente. O tempo se abriu e o Caravelle estabilizou-se no ar. Os sorrisos nos rostos atormentados das aeromoças voltaram a ser naturais, todo o serviço de bordo prosseguiu, enquanto os desconcertados passageiros se entreolhavam. O paciente pôs-se a observar à sua volta, mas não chegou a nenhuma conclusão. Estava absorvido pelas imagens e sons que tão claramente tinham se definido nos olhos e ouvidos de sua mente. Atirara-se de um avião... Era noite... Sinais, o metal e as correias eram intrínsecos ao seu salto. Saltara de pára-quedas. Onde? Por quê? Pare de se atormentar! Com o propósito de desviar a mente daquela loucura, tirou do bolso do paletó o passaporte falsificado e o abriu. Como era de se esperar, o nome Washburn permanecera, era bastante comum, e seu possuidor lhe dissera que não daria nenhuma bandeira. O Geoffrey R., no entanto, fora mudado para George P., as eliminações e preenchimentos dos intervalos na linha tinham sido habilmente trabalhados. Um trabalho perfeito. A colocação da foto também fora feita com grande habilidade, não parecia mais um retrato em papel barato, feito por uma máquina em uma galeria de diversões. Os números de identificação, claro, eram completamente diferentes, garantindo não dar alarme em nenhum computador do serviço de imigração. Pelo menos até que o portador apresentasse o documento para a primeira inspeção. Dali para a frente, tudo ficava sobre a responsabilidade do comprador. Paga-se caro para se ter esta garantia, tão caro quanto pela mestria e pelo equipamento, pois é preciso ter contatos com a Interpol e as casas de triagem da imigração. Guardas da alfândega, especialistas em computadores e funcionários de todas as redes das fronteiras da . Europa eram regularmente pagos por suas informações vitais. Raramente cometiam enganos. Se os cometessem não era fora a de propósito perderem um olho ou um braço — esses eram os ossos da falsificação de papéis. George P. Washburn. Não se sentia bem com o nome. O dono do passaporte original o instruíra muito bem nos princípios da projeção e associação. George P. era uma corruptela de Geoffrey R. — um homem que. fora devorado por uma compulsão que se fundamentava na fuga, na fuga da identidade. E esta era a última coisa que o seu paciente queria, ele daria a vida para saber quem era. Daria mesmo? Não tinha importância. A resposta estava em Zurique. Em Zurique havia...
— Mesdames et messieurs. Nous commençons notre descente pour l’aéroport de Zurich. Ele sabia o nome do hotel: Carillon du Lac. Dissera instintivamente para o chofer do táxi. Lera em algum lugar? Talvez o nome estivesse em uma daquelas listas dos folhetos de Boas- vindas-aZurique que estavam dentro das bolsas elásticas em frente ao seu assento, no avião. Não. Ele conhecia o saguão do hotel, a madeira pesada, escura e envernizada lhe era... de alguma forma, lhe era familiar. E as imensas janelas de espelho que davam para o Lago Zurique. Já estivera lá antes, tinha se dirigido para onde agora se dirigia — um balcão com o tampo de mármore — há muito tempo atrás. Tudo foi confirmado pelas palavras ditas pelo funcionário por trás da escrivaninha. As palavras lhe soaram com uma explosão. — É um prazer vê-lo novamente, senhor. Faz tempo que não nos visita. Faz? Quanto? Por que você não diz o meu nome? Pelo amor de Deus! Eu não o conheço! Não sei quem sou! Ajude-me! Por favor, ajude-me! — É, faz mesmo — respondeu ele. — Pode me fazer um favor? Torci o pulso, não consigo escrever. Pode preencher para mim o cartão de registro? Farei o possível para assinar. — Prendeu a respiração; e se o educado cavalheiro lhe pedisse para repetir o nome, ou soletrá-lo? — Pois não. — O funcionário puxou o cartão e pôs-se a escrever. — Gostaria de ver o médico do hotel? — Mais tarde, talvez. Agora não. —. O funcionário continuou a escrever e depois levantou o cartão, virando-o do lado em que ele devia assinar. Sr. J. Bourne. Nova York, N. Y. — U.S.A. Olhou para o nome, petrificado, hipnotizado pelas letras. Tinha um nome — um pedaço de nome. E um país, bem como uma cidade, onde era residente. J. Bourne. John? James? Joseph? O que significaria o J.? — Alguma coisa está errada, Herr Bourne? — o funcionário perguntou. — Errada? Não, nada. — Pegou a caneta, lembrando-se de simular certa dificuldade para escrever. Será que pediriam que ele escrevesse por extenso o nome todo? O primeiro nome, inclusive? Não, assinaria exatamente como o funcionário escrevera no cartão. Sr. J. Bourne. Escreveu o nome tão naturalmente quanto pôde, deixando a mente evadir-se, permitindo que quaisquer imagens ou pensamentos pudessem disparar livremente. Não apareceu nenhum. Estava apenas assinando um nome desconhecido, não sentiu nada.
— O senhor me deixou preocupado, mein Herr —- disse o funcionário. — Pensei que havia cometido um engano. Foi uma semana muito movimentada esta, e hoje um dia mais movimentado ainda. Mas, na verdade, eu estava quase certo. E se ele tivesse cometido um engano? O Sr. J. Bourne, da cidade de Nova York, U.S.A., não se incomodou em pensar nesta possibilidade. — Jamais me ocorreu duvidar da sua memória... Herr Stossel — o paciente respondeu, dando uma rápida olhadela para o cartão de em-serviço, que estava do lado esquerdo, sobre o balcão. O homem por detrás da escrivaninha era o subgerente do Carillon du Lac. — O senhor é muito gentil. — O subgerente inclinou-se para ele. — Presumo que vai solicitar as condições costumeiras de sua estadia conosco? — Algumas podem ter mudado — respondeu J. Bourne. — Vejamos. Quem telefonar ou perguntar pelo senhor na portaria deve ser informado que o senhor não se encontra no hotel no momento. A ocorrência, no entanto, deve ser-lhe comunicada imediatamente. A única exceção deve ser feita com relação à sua firma em Nova York, a Treadstone Seventy-One Corporation, se bem me recordo. Outro nome! Este, ele poderia localizar com uma chamada telefônica de longa distância. Formas fragmentárias começavam a se encaixar. O pânico começava a voltar-lhe. — Pode continuar assim. Não me esquecerei da sua eficiência. — Estamos em Zurique — respondeu o cortês funcionário, levantando os ombros. — O senhor sempre foi muito generoso, Herr Bourne. Page — hierher, bitte! Seguiu o pajem até o elevador — algumas coisas já estavam mais claras. Tinha um nome e compreendia agora por que seu nome era tão bem lembrado pelo subgerente do Carillon du Lac; tinha um país, uma cidade e uma firma para a qual trabalhava — uma firma que o havia empregado, por qualquer razão. E sempre que vinha a Zurique algumas precauções eram tomadas para protegê-lo de visitantes inesperados ou indesejados. Isso ainda não compreendia bem. Porque ou alguém se protegia completamente ou nem se dava ao trabalho de proteger-se, afinal. Qual era a vantagem de um processo de segurança tão impreciso, tão vulnerável à penetração? Parecia-lhe um serviço de segunda mão, sem valor, como se uma criança pequena estivesse brincando de esconde-esconde. Onde estou? Tente me achar. Vou falar alto para lhe dar uma dica. Mas isso não era profissional, e o que ele aprendera durante essas últimas 48 horas é que era um profissional. Do quê, não tinha a menor idéia. Só tinha certeza da posição, uma boa posição. A voz da telefonista de Nova York sumia da linha de vez em quando. Sua conclusão, no entanto, era exasperadamente clara. E terminante. — Não consta na lista nenhuma companhia com este nome, senhor. Consultei os guias mais recentes, consultei as listas de telefones particulares e não existe esta Treadstone Corporation — nem mesmo nada parecido com Treadstone e com números seguindo o nome.
— Talvez tenham desistido muito cedo... — Não há nenhuma firma ou companhia com esse nome, senhor. Repito, se o senhor tem um primeiro ou segundo nome, ou o tipo de negócio que a firma faz, talvez possa lhe ajudar. — Não tenho. Só o nome: Treadstone Seventy-One, Cidade de Nova York. — É um nome muito estranho, senhor. Tenho certeza que, se constasse da lista, seria simples e fácil localizá-la. Sinto muito. — Agradeço pelo trabalho que teve — respondeu J. Bourne colocando o fone no gancho. Era inútil continuar. O nome devia ser um código qualquer, palavras inventadas por alguém, e que lhe davam acesso a um hotel não muito acessível. E as palavras podiam ser usadas por qualquer um, não importando onde ele havia situado o nome, a companhia-fantasma. E, assim, a localização em Nova York também era insignificante. De acordo com a telefonista a cinco mil milhas dali, era. Foi até a cômoda onde deixara a carteira Louis Vuitton e o cronógrafo Seiko. Pôs a carteira no bolso e o relógio no pulso, olhou-se no espelho e murmurou: — Você é J. Bourne, cidadão dos Estados Unidos, residente na cidade de Nova York, e é perfeitamente possível que os números“zero-sete–dezessete-doze–zero-quatorze–vinte e seis-zero” sejam a coisa mais importante da sua vida. O sol brilhava, infiltrando-se pelas copas das árvores que acompanhavam toda a elegante Bahnhofstrasse, refletindo-se nas vitrinas das lojas e criando blocos de sombra onde os edifícios dos grandes bancos vetavam seus raios. Era uma rua onde a solidez e a fortuna, a segurança e a arrogância, a determinação e um certo toque de frivolidade coexistiam lado a lado. E o paciente do Dr. Washburn já andara por aquelas calçadas antes. Caminhou rápido em direção à Burkli Platz, a praça que dava para o lago de Zurique, o Zurichsee, com os seus inúmeros embarcadouros diante do cais, cercado por jardins que no forte calor do verão abriam-se em flores. Podia vê-las com os olhos da mente, as imagens chegavam-lhe com facilidade, mas sem pensamentos, sem memória. Virou de novo para Bahnhofstrasse, sabendo instintivamente que o Gemeinschaft Bank era um edifício ali por perto, de pedras claras. Ficava do outro lado da rua onde ele andara, passando deliberadamente do edifício. Aproximou-se das pesadas portas de vidro e empurrou uma folha, que se abriu facilmente. O chão era de mármore marrom, e ele sentia que já estivera lá antes, mas não era uma imagem tão forte quanto as demais. E tinha a estranha sensação de que devia evitar o Gemeinschaft. Más não agora. — Bonjour, monsieur. Vous desirez...? — O homem que lhe dirigia a palavra estava vestido com um fraque; a boutonniêre vermelha era o símbolo de sua autoridade. O uso do francês se explicava pelas roupas do cliente; até os mais subordinados e menores anões de Zurique eram bons observadores. — Tenho negócios pessoais e confidenciais para discutir — respondeu J. Bourne, em inglês.
Mais uma vez espantava-se com as palavras que lhe saíam tão naturalmente da própria boca. Usou o inglês por dois motivos: queria ver a expressão daquele gnomo ao perceber o seu erro e não queria que houvesse qualquer desentendimento sobre tudo o que dissesse durante a próxima hora. — Pardon, sir — disse o homem, as sobrancelhas levemente arqueadas, estudando o sobretudo do cliente. — O elevador à esquerda, segundo andar. O recepcionista vai atendê-lo. O recepcionista era um homem de meia-idade, cabelos cortados rente à cabeça e óculos com aros de tartaruga. Sua expressão era severa, os olhos rigidamente curiosos. — O senhor tem constantemente negócios pessoais e confidenciais conosco, senhor? — perguntou, repetindo as palavras do recém-chegado. — Sim. — A sua assinatura, por favor — disse o funcionário, entregando-lhe um papel timbrado do Gemeinschaft, com duas linhas em branco centradas no meio da página. O cliente entendeu: não era necessário o nome. Os números escritos a mão tomam o lugar do nome... eles constituem a assinatura do correntista. Procedimento normal. Washburn. O paciente escreveu os números por extenso, relaxando a mão para que a escrita fosse livre. Depois devolveu o papel para o recepcionista, que o estudou cuidadosamente, levantou-se da cadeira e apontou para uma fila de portas estreitas com painéis de vidro fosco. — Dirija-se à quarta sala, senhor, e alguém logo há atendê-lo. — A quarta sala? — A quarta porta à esquerda. Ela se fechará automaticamente. — Isso é necessário? O recepcionista olhou-o um pouco surpreso. — Está de acordo com a sua própria exigência, senhor — respondeu polida- mente, um tom de surpresa na voz estranha. — Esta é uma conta com três zeros. Em geral os correntistas do Gemeinschaft que têm este número telefonam antes para que uma entrada particular possa ser preparada. — Sei disto — o paciente de Washburn mentiu com uma casualidade que nem mesmo ele percebeu. — É que tenho pressa. — Vou transferir isso para Verificações, senhor. — Verificações?! — O Sr. Bourne, da Cidade de Nova York, EUA, não pôde evitar a surpresa; a palavra soara como um alarma. — Verificação de Assinatura, senhor. — O homem ajustou os óculos, dando um passo em direção a uma mesa perto de sua escrivaninha. — Sugiro que espere na Sala Quatro, senhor. — A sugestão não era um pedido, mas uma ordem, o comando dado pelos olhos pretorianos.
— Por que não? Diga-lhes para se apressarem, sim? — O paciente atravessou a sala em direção à quarta porta, abriu-a e entrou. A porta fechou-se automaticamente, pôde ouvir o dique da fechadura. J. Bourne olhou para o painel de vidro fosco. Não era uma simples vidraça de vidro; havia uma rede de finos arames tecidos por baixo da superfície. Com certeza, se ela fosse quebrada um alarme seria disparado. Ele estava em uma cela, esperando ser chamado. O resto da pequena sala era revestido com muito bom gosto e cuidadosamente mobiliado — duas poltronas de couro estavam postas uma ao lado da outra e na frente havia um pequeno canapé flanqueado por duas mesas antigas. No lado oposto havia uma segunda porta, que contrastava totalmente com a primeira — era de aço cinza. Revistas recentes e jornais em três línguas estavam sobre as mesas. O paciente sentou-se e pegou uma edição parisiense do Herald Tribune. Lia as palavras impressas sem conseguir absorver nada do seu sentido. A porta se abriria a qualquer momento, a mente se consumia em pensamentos de estratégia. Estratégia sem memória, apenas instintiva. Finalmente, a porta de aço se abriu e apareceu um homem alto, magro, feições aquilinas e cabelos de cor cinza, meticulosa- mente arrumados. Seu rosto era aristocrático, pronto para servir a um igual que precisava de sua experiência. Estendeu a mão. Falava um inglês refinado, melífluo, escondendo um pouco a entonação suíça. — Estou honrado em vê-lo. Perdoe a demora; na verdade, foi um tanto engraçado. — Em que sentido? — Tenho a impressão de que o senhor assustou um pouco Herr Koenig. Não é muito comum uma conta de três zeros chegar sem um aviso prévio. Ele é bastante formal em seus hábitos, o senhor compreende, o incomum pode arruinar os seus dias. Por outro lado, torna o meu mais agradável. Sou Waither Apfel. Por favor, entre. O funcionário do banco soltou a mão do paciente e fez um gesto em direção à porta de aço. A sala era uma extensão da cela e tinha a forma de um V. Revestimento escuro, móveis pesados e confortáveis e uma grande escrivaninha que ficava em frente a uma janela ainda maior, de onde se avistava toda a Bahnhofstrasse. — Sinto tê-lo incomodado — disse J. Bourne. — Tenho pressa, só isso. — Sim, ele me contou isso. — Apfel deu a volta na escrivaninha e fez um gesto com a cabeça em direção à poltrona de couro à sua frente. — Sente-se, por favor. Mais uma ou duas formalidades apenas e poderemos discutir o seu assunto, o seu negócio. — Os dois homens sentaram-se. No mesmo instante o funcionário do banco pegou uma ficha branca e inclinou-se sobre a escrivaninha, entregandoa ao cliente do Gemeinschaft. Preso nela estava um papel timbrado; em vez das duas linhas em branco, no entanto, havia dez, que começavam logo abaixo do timbre e continuavam quase até o final da folha. — Sua assinatura, por favor. Cinco apenas serão suficientes. — Não estou entendendo. Acabei de fazer isto. — E muito bem. A Verificação confirmou.
— Então, por que outra vez? — Uma assinatura pode ser praticada até o ponto em que uma única interpretação seja aceitável. No entanto, sucessivas repetições da mesma assinatura resultarão em imperfeições se ela hão for autêntica. Um examinador grafológico poderá detectá-las imediatamente, porém tenho certeza que isso não lhe diz respeito. — Apfel sorriu, enquanto colocava uma caneta na beira da escrivaninha. — Nem a mim, francamente, mas Koenig insiste. — É um homem cauteloso — disse o paciente — tomando a caneta e pondo-se a escrever. Já havia começado a quarta linha quando o bancário o interrompeu. — Isso é suficiente, mais será perda de tempo. — Apfel estendeu a mão para a pasta. — Na Verificação disseram que o senhor não é nem mesmo um caso limite. Logo que receberem isto, a conta será entregue. — Inseriu a folha de papel pela abertura de uma esquadria de metal que ficava no lado direito de sua escrivaninha e apertou um botão. Um raio de luz brilhante acendeu e apagou-se em seguida. — Isto transmite as assinaturas diretamente para o grafólogo — continuou o bancário —, que, naturalmente, já está programado. Francamente, tudo isso é um pouco descabido. Ninguém que tivesse sido prevenido de nossas precauções concordaria em fazer as assinaturas adicionais se por acaso fosse um impostor. — Por que não? Tendo passado por tudo isso, por que não arriscar? — Há apenas uma entrada para este escritório e, portanto, invertendo a situação, apenas uma saída. Tenho certeza de que ouviu o barulho da trava automática da porta, na sala de espera. — E também vi a malha de arame no vidro — acrescentou o paciente. — Então, o senhor entende. Um impostor logo cairia na armadilha. — E se ele tivesse uma arma? — O senhor não tem. — Ninguém me revistou. — O elevador o revistou. De quatro ângulos diferentes. Se o senhor estivesse armado, a máquina pararia entre o primeiro e o segundo andar. — Vocês são muito cautelosos. — Tentamos manter um bom serviço — O telefone tocou. Apfel respondeu. — Sim?... Entre. O bancário olhou para o seu cliente. — Sua pasta está aqui. — Foi rápido. — Herr Koenig já a havia pedido há alguns minutos. Ele estava apenas à espera do despacho do grafólogo. — Apfel abriu uma gaveta e pegou uma argola cheia de chaves. — Tenho certeza de que ele
está desapontado. Estava quase certo de que alguma coisa estava errada. A porta de aço se abriu e o recepcionista entrou trazendo um recipiente de metal preto, que colocou sobre a escrivaninha, perto de uma bandeja com uma garrafa de Perrier e dois copos. — O senhor está gostando de sua estadia em Zurique? — perguntou o bancário para preencher o silêncio. — Muito. Meu quarto dá para o lago. É uma bela vista, muito calma, quieta. — Esplêndida! — disse Apfel, enchendo um copo para o cliente. Herr Koenig saiu, a porta se fechou e o bancário voltou ao assunto do negócio. — A sua conta, senhor — falou enquanto selecionava uma chave da argola. — Posso destravar a caixa ou o senhor mesmo prefere fazê-lo? — Não, pode continuar. Abra-a. O bancário olhou-o. — Eu disse destravar, não abrir. Não tenho este privilégio, nem quero tal responsabilidade. — Por que não? — No caso de sua. identidade estar listada, não é da minha posição tomar conhecimento dela. — E supondo que eu queira fazer negociações, transferir algum dinheiro, ou mandá-lo para alguém? — Isso poderia ser efetuado com a sua assinatura numérica em um formulário de retirada. — Ou enviar para outro banco — fora da Suíça, para mim? — Então, é de praxe requerer-se um nome. Sob tais circunstâncias uma identidade seria tanto minha responsabilidade quanto meu privilégio. — Abra-o. Apfel abriu o cofre. O paciente do dr. Washburn segurou a respiração e sentiu uma dor aguda na boca do estômago. O banqueiro retirou um maço de extratos de conta presos por um grande grampo de prender papéis e passou os olhos pelas colunas do lado direito no alto das páginas, mantendo a expressão facial quase inalterada. O lábio inferior repuxou um pouco, vincando os cantos da boca. Curvou-se para a frente e entregou as folhas para o dono. Abaixo do timbre do Gemeinschaft estavam algumas palavras datilografadas em inglês, a língua do cliente: Conta: Zero — Sete — Dezessete — Doze — Zero — Quatorze
— Vinte e seis — Zero Nome: Restrito às Instruções Legais e ao Correntista Admissão: Lacrado em Envelope Separado Capital Corrente em Depósito: 7.500.000 Francos O paciente respirou devagar, olhando espantado para a cifra. Embora pensasse que estava preparado para qualquer surpresa possível, ele não estava preparado para aquilo. Era tão amedrontador quanto tudo por que passara nos últimos cinco meses. Calculando por cima, a quantia era de mais ou menos cinco milhões de dólares. $ 5.000.000! Como? Por quê? Tentando controlar um começo de tremor na mão, folheou os formulários de entrada. Eram muitos e as somas, extraordinárias, nunca inferiores a 300.000 francos. Os depósitos eram feitos em intervalos de cinco a oito semanas e haviam começado há vinte e três meses. Chegou ao último formulário, que marcava o primeiro depósito: era uma transferência de um banco de Singapura e a maior entrada — dois milhões e setecentos mil dólares malaios, convertidos em 5.175.000 francos suíços. Por trás deste último formulário percebeu o contorno de um envelope bem mais curto do que o tamanho da folha. Levantou o papel, o envelope tinha uma tarja preta e algumas palavras datilografadas: Identidade: De acesso exclusivo do proprietário. 0 Restrições Legais: Acesso – Funcionário Registrado, Treadstone Seventy-One Corporation, o Portador Apresentará Instruções por Escrito do Proprietário. Sujeito a Verificações. — Gostaria de verificar isto — disse o cliente. — É propriedade sua — replicou Apfel. — Posso lhe assegurar que permaneceu intacto. O paciente retirou o envelope da pasta e o abriu. Um selo do Gemeinschaft lacrava o envelope; nenhuma das letras em relevo fora danificada. Abriu o envelope, tirou o cartão de dentro e leu: Correntista: Jason Charles Bourne Endereço: Não consta. Cidadania: EUA.
Jason Charles Bourne. Jason. O J era de Jason! O seu nome era Jason Bourne. O Bourne não lhe tinha significado nada, o J. Bourne também não, mas a combinação Jason e Bourne eram obscuras engrenagens ajustadas em um engate perfeito. Podia aceitá-lo; aceitou-o. Era Jason Charles Bourne, americano. Mesmo assim, ainda podia ouvir o coração batendo, a vibração nos ouvidos era ensurdecedora, a dor no estômago, mais aguda. O que era? Por que a sensação de que estava mergulhando no escuro novamente, nas águas escuras outra vez? — Alguma coisa está errada? — perguntou Waither Apfel. Alguma coisa está errada, Herr Bourne? — Não. Está tudo certo. Meu nome é Bourne. Jason Bourne. Estaria gritando? Sussurrando? Não podia dizer. — É um privilégio conhecê-lo, Sr. Bourne. Sua identidade permanecerá confidencial, O senhor tem a palavra de um funcio- nário do Banco Gemeinschaft. — Obrigado. Agora, acho que tenho que transferir uma boa parte deste dinheiro e vou precisar de sua ajuda. — Mais uma vez, será um privilégio para mim. Será um prazer prestar-lhe qualquer assistência ou poder lhe aconselhar. Bourne procurou a garrafa de Perrier. A porta de aço do escritório de Apfel fechou-se atrás dele. Dentro de alguns segundos sairia da bem-decorada ante-sala da cela para a sala de recepção e depois para os elevadores. Dentro de minutos estaria na Bahnhofstrasse com um nome, uma grande soma de dinheiro, e ainda medo e confusão. Conseguira. O Dr. Geoffrey Washburn fora pago com muito mais do que o valor da vida que salvara. Uma transferência feita por telex na quantia de 1.500.000 francos suíços fora mandada para um banco de Marselha, um depósito feito em uma conta em código, que encontraria o seu destino: o único médico da Île de Port Noir, sem que jamais o nome de Washburn fosse usado ou revelado. Tudo o que Washburn tinha a fazer era ir a Marselha, declarar os números do código e o dinheiro seria dele. Bourne sorriu para si ao imaginar a expressão do rosto de Washburn quando a conta lhe fosse apresentada. O médico excêntrico e alcoólatra já teria ficado satisfeito com dez ou quinze mil libras, mas agora tinha mais de um milhão de dólares. Isto iria ou assegurar a sua recuperação ou apressar a sua destruição. Escolher era um problema dele. Uma segunda transferência, de 4.500.000 francos, foi remetida para um banco em Paris, à Rue
Madeleine, e depositada no nome de Jason C. Bourne. A transferência foi expedida via malote — o Gemeinschaft mantinha dois por semana para Paris — com os cartões de assinatura em três vias e os demais documentos. Herr Koenig assegurara a ambos, ao seu superior e ao cliente, que os papéis chegariam a Paris em três dias. O resto da transação era insignificante, se comparada com as complicações anteriores. Cem mil francos em notas graúdas foram trazidos para o escritório de Apfel; o recibo da retirada foi feito com a assinatura numérica do portador da conta. Restou em depósito no Gemeinschaft Bank 1.400.000 francos suíços, soma não tão pequena. Como? Por quê? De onde? Toda a transação levou apenas uma hora e vinte minutos. E só houvera uma nota discordante de todas as facilidades que lhe foram oferecidas para as transações: a expressão de Koenig — um misto de solenidade e triunfo. Ele telefonara para Apfel, fora mandado entrar e trouxera para o seu superior um pequeno envelope com as bordas tarjadas de preto. — Une fiche — anunciara em francês. O banqueiro abrira o envelope, retirara dele um cartão, lera com cuidado o seu conteúdo e, em seguida, devolvera o cartão e o envelope para Koenig. — Serão seguidos os procedimentos normais — dissera ele. Koenig deixara a sala imediatamente. — É alguma coisa a meu respeito? — perguntara Bourne. — Apenas no caso de liberar grandes somas como estas. Simples normas da casa. — O banqueiro lhe dera um sorriso tranqüilizador A fechadura fez um clique. Bourne abriu a porta de vidro fosco e entrou nos domínios pessoais de Herr Koenig. Dois outros homens haviam chegado e estavam sentados separados, um em cada lado da sala de recepção. Como não estavam em celas separadas e por detrás das janelas de vidro opaco, Bourne presumiu que nenhum dos dois devia ter uma conta de três zeros. Ficou a imaginar se haviam assinado os seus nomes ou escrito por extenso uma série de números, como fizera. Mas parou em seguida, no instante em que chegara ao elevador e apertara o botão. Pelo canto do olho, percebeu um movimento. Koenig movera a cabeça, fazendo um sinal para os dois homens. Eles se levantaram logo que a porta do elevador se abriu. Bourne voltou-se. O homem à sua direita puxou do bolso do sobretudo um pequeno rádio e disse alguma coisa — breve, rápida. O homem à esquerda tinha a m direita escondida dentro da capa de chuva. E quando a tirou, segurava uma arma, uma pistola automática preta, calibre 38, com um cilindro perfurado encaixado ao cano. Um silenciador. Os dois homens se aproximaram de Bourne, enquanto ele recuava para dentro do elevador
deserto. E começou o desvario.
Capítulo5 As portas do elevador começaram a se fechar. O homem com o rádio na mão já tinha entrado, o outro procurava segurar as portas com os ombros, enquanto apontava a arma para a cabeça de Bourne. Jason inclinou-se para a direita — uma reação imediata de medo — repentinamente, moveu o pé esquerdo, levantando-o do chão, e girou o corpo. O calcanhar foi bater na mão armada do homem, o revólver foi jogado para cima e ele cambaleou de costas para fora do recinto. Dois tiros silenciosos foram dados antes que as portas se fechassem; as balas foram se alojar na madeira grossa do forro. Bourne completou a volta do corpo e jogou o ombro contra o estômago do outro homem, escorregando a mão direita para o seu peito, enquanto com a esquerda prendia a mão que segurava o rádio. Depois arremessou o homem contra a parede. O rádio voou pelo elevador, e quando caiu algumas palavras saíram pelo alto-falante. — Henri? Ça va? Qu’est-ce qui se passe? A imagem de outro francês voltou à cabeça de Jason. Um homem à beira da histeria, não podendo acreditar no que via — seu quase assassino, que correra do Le Bouc de Mer para as sombras da Rua Sarrasin havia menos de vinte e quatro horas. Aquele homem não perdera tempo, havia mandado para Zurique uma mensagem: o homem que supunham morto estava vivo. E bem vivo. Matem-no! Bourne agarrou o francês à sua frente, passando o braço esquerdo em volta de sua garganta e puxando-lhe violentamente a orelha esquerda com a mão direita. — Quantos? — perguntou era francês. — Quantos estão lá embaixo? Onde estão? — Descubra você, seu porco! O elevador estava a meio caminho do saguão do primeiro andar. Jason empurrou a cabeça do homem para baixo, quase arrancando a orelha da base, e jogou-o contra a parede. Este gritou enquanto caía. Bourne calcou-lhe ó joelho sobre o peito e sentiu o coldre. Abriu-lhe o sobretudo e puxou o revólver de cano curto. Imediatamente pensou que alguém desativara as máquinas do elevador. Koenig. Ele se lembraria; não haveria nenhuma amnésia com relação a Herr Koenig. Enfiou o revólver pela boca aberta do francês. — Fale ou parto a sua cabeça com um tiro! — O homem deixou escapar um lamento gutural. Bourne tirou o cano da arma da sua boca e empurrou-lhe contra o rosto. — Dois. Um perto dos elevadores, outro fora, na calçada, perto do carro. — Que espécie de carro? — Peugeot. — Que cor? — O elevador já estava parando.
— Marrom. — O homem no saguão, com que roupa está? — Não sei... Jason estalou a arma contra a testa do homem. — É melhor se lembrar! — Um casaco preto! O elevador parou. Bourne obrigou o francês a ficar de pé. As portas se abriram. Do lado esquerdo, um homem estava vestido com uma capa de chuva escura e usava óculos de armação dourada, muito estranhos. Ele deu um passo para a frente. Os olhos por detrás das lentes pareciam ter reconhecido o que se passava; o sangue escorria pelo peito do francês. Levantou a mão encoberta pelo bolso largo da capa — mais uma arma automática com silenciador era apontada para o alvo de Marselha. Jason empurrou o francês pela porta, escudando-se nele. Três rápidos tiros foram ouvidos. O francês gritou, levantou os braços e deu um último grito de protesto. Depois dobrou o corpo e caiu contra o chão de mármore. Uma mulher, que estava do lado direito do homem com os óculos de armação dourada, gritou, juntamente com alguns homens que chamavam por Hilfe!, pela Polizei! Bourne logo percebeu que não poderia usar o revólver que tirara do francês. A arma não tinha silenciador, qualquer tiro que desse seria ouvido e ele ficaria marcado. Enfiou-a no bolso do paletó, passou pela mulher que gritava e agarrou um ascensorista pelos ombros, jogando-o contra o assassino de capa escura. O pânico cresceu no saguão, enquanto Jason corria em direção às portas de vidro da entrada, O porteiro de boutonnière, que trocara a sua língua uma hora e meia antes, gritava em um telefone de parede, um guarda uniformizado estava do seu lado, de arma em punho, obstruindo a passagem, de olhos pregados no caos que se formara. E, de repente, de olhos postos nele. No momento era difícil sair. Bourne evitou o olhar do guarda e dirigiu-se ao recepcionista que estava ao telefone. — O homem com óculos de armação dourada! — gritou ele. — É ele! Eu vi! — O quê? Quem é você? — Seu amigo de Walther Apfel! Obedeçam! O homem de óculos dourados, de capa preta. Lá! A mentalidade burocrática não mudou em milênios. O nome de um superior vale por uma ordem. — Herr Apfel! .—. O recepcionista do Gemeinschaft virou-se para o guarda. — Você o ouviu! O homem de óculos. Óculos de armação dourada!
— Sim, senhor! — O guarda avançou correndo. Jason passou pelo lado do recepcionista em direção às portas de vidro, empurrou a porta da direita, deu uma olhada para trás. Sabia que tinha que correr novamente, mas não sabia se um homem do lado de fora, na calçada, ao lado de um Peugeot mar- rom, o reconheceria se saísse. Na certa atiraria nele. O guarda correu em direção a um homem vestido com uma capa preta. Um homem caminhando mais lentamente do que as figuras em pânico à sua volta. Um homem que não usava óculos. Acelerou o pano direção à entrada, em direção a Bourne. Do lado de fora, o caos crescente era a proteção de Jason. As vozes se extinguiram no banco, as sirenas gemiam cada vez mais alto, enquanto carros de polícia se aproximavam da Bahnhofstrasse. Andou algumas jardas para a direita, rodeado de pedestres, em seguida pôs-se a correr, forçando caminho por entre uma multidão de curiosos e se refugiando na frente de uma loja, com a atenção presa nos automóveis parados no meio-fio. Viu o Peugeot e o homem parado ao seu lado com a mão ameaçadoramente no bolso do sobretudo. Em menos de quinze segundos o motorista do Peugeot juntouse ao homem da capa preta, que agora punha de novo os óculos de armação dourada, tentando ajustar-se à nova visão. Os dois conversavam rapidamente, examinando atentamente a Bahnhofstrasse. Bourne entendia a confusão deles. Saíra pelas portas de vidro do Gemeinschaft e caminhara em direção à multidão sem nenhum pânico. Estivera pronto para correr, mas não correra por medo de ser parado enquanto estivesse próximo à entrada. Ninguém mais tivera permissão para sair de lá — e o motorista do Peugeot não percebera, não reconhecera o seu alvo, identificado e marcado para execução em Marselha. O primeiro carro de polícia chegou quando o homem com os óculos de armação dourada tirara a capa e a empurrava pela janela para dentro do carro. Fez um sinal com a cabeça para o motorista do Peugeot, que pôs o carro em movimento. O assassino tirou os delicados óculos e fez algo completamente inesperado: voltou para as portas do banco, juntando-se à policia, que estava entrando. Bourne ficou olhando o Peugeot afastar-se do meio-fio e acelerar na Bahnhofstrasse. A multidão na frente da loja começou a se dispersar; muitos iam em direção às portas de vidro, esticando o pescoço na tentativa de enxergar, na ponta dos pés, espiando para dentro do banco. Um policial saiu fazendo com que os curiosos se afastassem para abrir caminho até a calçada. Enquanto gritava, uma ambulância, como um casco de navio, querenava na esquina noroeste, acompanhando a todos que dessem passagem, O motorista da ambulância estacionou o descomunal veículo no espaço deixado pelo Peugeot. Jason não podia mais enxergar, tinha que ir até o Carilon du Lac pegar suas coisas e sair de Zurique, da Suíça. Ir para Paris. Mas por que Paris? Por que insistira que seu capital fosse transferido para Paris? Não pensara nisso antes de sentar-se no escritório de Walther Apfel, assombrado com a extraordinária quantia que lhe fora apresentada. Era bem maior do que jamais pudera imaginar — tanto que só podia reagir mudamente, instintivamente. E o seu instinto evocara uma cidade: Paris. Como se fosse, de alguma forma, vital. Por quê?
De novo, não tinha tempo... Viu os enfermeiros da ambulância saírem do banco com uma maca. O corpo estava com a cabeça coberta. Morto. Isso tinha uma significação para Bourne — fora salvo por suas habilidades, que não sabia de onde vinham. Se não fosse por isso, ele seria agora aquele homem morto na maca. Viu um táxi na esquina e correu para ele. Tinha que sair de Zurique — uma mensagem fora enviada de Marselha. Jason Bourne está vivo. Matem-no. Matem Jason Bourne! Deus do céu, por quê? Esperava encontrar o subgerente do Carillon du Lac atrás do balcão da portaria, mas ele não estava lá. Então pensou que um bilhete curto para o homem... Como era o nome dele? Stossel. Sim, Stossel. Um bilhete curto para Stossel seria suficiente. Não era necessário dar nenhuma explicação por sua súbita saída; e quinhentos francos seriam suficientes pelas poucas horas que passara no Carilon du Lac — e pelo favor que pediria a Herr Stossel. No quarto, jogou o estojo de barbear dentro da mala desfeita, examinou a pistola que tirara do francês, colocou-a no bolso do sobretudo e depois sentou-se à escrivaninha para escrever um bilhete para Herr Stossel, o subgerente. Escreveu uma frase que lhe saiu com muita facilidade — muito espontânea: . . .Entrarei logo em contato com o senhor para receber as mensagens que possam me ser enviadas. Estou certo de que será conveniente manter-se atento a elas, e aceitá-las em meu nome. Se chegasse alguma comunicação da indefinível Treadstone Seventy-One, ele gostaria de saber. E saberia, pois assim era Zurique. Colocou uma nota de quinhentos francos entre os papéis e lacrou o envelope. Depois, pegou a maleta e caminhou em direção ao corredor, onde ficavam os elevadores. Eram quatro. Logo que apertou o botão, lembrou-se do Gemeinschaft e deu uma olhada em volta. Mas não havia ninguém. Uma sineta soou e a luz vermelha indicando o terceiro andar acendeu-se. Ótimo, o elevador estava descendo; precisava ir para o aeroporto o mais depressa possível, sair de Zurique, da Suíça. Uma mensagem fora transmitida. Quando as portas se abriram, viu dentro do elevador dois homens rodeando uma mulher de cabelos avermelhados. Interromperam a conversa e cumprimentaram-no com um sinal de cabeça, afastando-se um pouco para dar lugar à sua maleta. Tão logo as portas se fecharam, recomeçaram a conversar. Estavam na casa dos trinta e falavam em um francês fluente, com rapidez. A mulher olhava alternadamente ora para um ora para outro homem, sorrindo e parecendo pensativa. Tomavam algumas decisões de pouca importância, e as risadas se misturavam com as perguntas pretensiosamente sérias. Você vai para casa depois do encerramento, amanhã? — o homem à esquerda perguntou. — Não sei ainda. Estou esperando ordens de Ottawa — respondeu a mulher. — Tenho parentes em Lyon, seria bom se pudesse vê-los.
— É quase impossível — disse o homem da direita — que a direção deste comitê consiga encontrar dez pessoas que queiram fazer um resumo deste maldito seminário em um único dia. Vamos ter que ficar aqui por mais uma semana. — Mas Bruxelas não vai aprovar uma coisa dessas — disse sorrindo o primeiro homem. — O hotel é muito caro! — Sem dúvida, o jeito será mudar-se para outro — disse o segundo, dando uma olhada de soslaio para a mulher. — Estávamos esperando que você fizesse exatamente isso, não é? — Você é um tolo — disse a mulher. — Aliás, vocês são dois loucos, e esta é a minha opinião final. — Mas você não é, Marie — interpelou o primeiro. — Quero dizer, não é louca. A sua apresentação, ontem, foi brilhante. — Nada disso. Foi rotineira e bem monótona. — Não, não! — discordou o segundo. — Foi soberba, tinha que ser. Não entendi uma única palavra. Mas não tem importância, tenho outros talentos. — Oh, você é um tolo... O elevador estava parando; o primeiro homem falou novamente. — Vamos sentar na última fileira do salão. Já estamos mesmo atrasados e além do mais Bertineili está falando — deve ser sem importância, creio. As suas teorias de flutuações cíclicas impostas saíram de moda com a queda do império financeiro dos Bórgias. — Antes até — disse a mulher de cabelos avermelhados, dando uma risada. — Com os impostos de César. — Ela fez uma pausa e continuou, em seguida. — Ou com as guerras púnicas. — A última fileira então — disse o segundo homem, oferecendo o braço à mulher. — Poderemos dormir. Ele costuma usar um projetor de slides, a sala deve estar escura. — Não. Vocês dois vão na frente, eu os encontro daqui a pouco. Na verdade, preciso enviar alguns telegramas e não tenho confiança nas telefonistas, elas nunca ditam a mensagem exata. As portas se abriram e os três saíram. Os dois homens tomaram o caminho do saguão, andando em direção diagonal, e a mulher dirigiu-se ao balcão em frente. Bourne pôs-se ao seu lado enquanto lia distraidamente um aviso em um mural triangular alguns passos em frente. BEM-VINDOS MEMBROS DO SEXTO SEMINÁRIO MUNDIAL DE ECONOMIA PROGRAMA DE HOJE:
13h: Honorável James Frazier, Membro do Reino Unido. Suíte 12 16h: Dr. Eugenio Bertinelti, Universidade de Milão, Itália. Suíte 7 21h: Jantar de despedida do Presidente. Suíte da Hospitalidade. — Apartamento 507. A telefonista disse que havia um telegrama para mim. Falava em inglês agora, a mulher de cabelos avermelhados, no balcão da portaria, ao seu lado. Ela dissera que estava “esperando ordens de Ottawa”. Era canadense, portanto. O funcionário examinou os escaninhos e voltou com o telegrama. — Dra. St. Jacques? — perguntou, entregando-lhe o envelope. — Sim. Muito obrigada. A mulher se afastou enquanto abria o telegrama. O funcionário chegou-se a Bourne. — O senhor? — Gostaria de deixar este bilhete para Herr Stossel. — Colocou o envelope timbrado do Carilon du Lac em cima do balcão. — Herr Stossel só voltará às seis horas da manhã, senhor. Todas as tardes sai às quatro horas. Posso ajudá-lo? — Não, obrigado. Entregue-lhe isto, apenas. — Em seguida lembrou-se: estava em Zurique. — Não é urgente — acrescentou — mas preciso de uma resposta. Verifico com ele de manhã. — Pois não, senhor. Bourne pegou a maleta e atravessou o saguão do hotel, em direção à entrada, que era composta de uma fila de portas de vidro que davam para uma calçada circular, de frente para o lago. Podia ver alguns táxis esperando, em fila, sob a iluminação intensa da cobertura da entrada. O sol se pusera, era noite em Zurique. Ainda assim havia vôos para todos os pontos da Europa até bem depois da meianoite. De repente, parou de andar, de respirar, uma espécie de paralisia tomou conta de seu corpo. Os
olhos não podiam acreditar no que viam além das portas de vidro. Um Peugeot marrom parara na frente do primeiro táxi na entrada circular. Um homem desembarcou — um assassino em uma capa preta, usando uma armação de óculos fina e dourada. Outro homem saiu do carro, mas não era o motorista que estivera parado no meio-fio na Bahnhofstrasse, à espera de um alvo que não reconheceu. Em vez disso, era um outro assassino, com outra capa de chuva, os bolsos largos pesados, cheios de poderosas armas. Era o homem que estivera sentado na sala de recepção do segundo andar do Banco Gemeinschaft, o mesmo que puxara uma pistola calibre 38 de um coldre por baixo do casaco. Uma pistola com silenciador que detonara duas balas em direção ao crânio da vítima que seguira dentro de um elevador. Como? Como o haviam encontrado?... Lembrou-se e sentiu-se nauseado. Fora tão casual, tão inofensivo! O senhor está gostando de sua estadia em Zurique? Walther Apfel perguntara enquanto esperavam que o agente saísse para que ficassem a sós novamente. Muito. Meu quarto dá para o lago. É uma bela vista, muito calma, quieta. Koenig! Koenig o ouvira dizer que seu quarto dava para o lago. E quantos hotéis tinham quartos de frente para o lago? Especialmente hotéis que um homem com uma conta de três zeros pudesse freqüentar. Dois? Três De sua remota memória apareceram os nomes: Carilon d Lac, Baur au Lac, Eden au Lac. Existiriam outros? Nenhum nome lhe veio à memória. Como fora fácil encontrá-los! Como lhe fora fácil dizer aquelas palavras. Que estúpido! Não havia tempo agora, em muito tarde. Podia enxergar através das portas de vidro, e os assassinos também. O segundo homem o havia visto. Algumas palavras foram trocadas por cima do capô do Peugeot, os óculos de armação dourada foram ajustados, as mãos postas dentro dos bolsos descomunais, armas bem seguras nas mãos. Os dois homens se dirigiram para a entrada e se separaram no último momento, cada um ia para um dos painéis de vidro transparente. Os flancos estavam cobertos, a armadilha pronta. Ele não podia correr para fora. Será que pensavam que podiam entrar no saguão lotado de um hotel e simplesmente matar um homem? É claro que pensavam! A multidão e o barulho eram-lhes uma cobertura. Dois, três, quatro tiros mudos dados em seguida seriam tão eficientes quanto uma emboscada em uma praça repleta à luz do dia. A fuga era fácil no caos que se seguia então. Mas não permitiria que chegassem perto dele! Retrocedeu, os pensamentos corriam-lhe pela mente. Supremo ultraje! Como ousavam? O que os fazia pensar que não procuraria proteção, ou gritaria pela polícia? A resposta estava clara, tão surpreendente quanto a própria pergunta. Os assassinos sabiam com certeza aquilo que ele apenas podia suspeitar: ele não podia procurar por essa forma de proteção — não podia procurar a policia. Para Jason Bourne todas as autoridades deviam ser evitadas... Por quê? Estariam à sua procura? Cristo, por quê? As duas portas laterais foram abertas com as mãos disponíveis, as outras permaneceram escondidas, segurando o aço. Bourne virou-se; à sua frente, elevadores, corredores, portas — telhado e
despensas subterrâneas. O hotel devia ter uma dúzia de saídas. Ou não? Ou os assassinos, que agora abriam caminho por entre a multidão, sabiam de algo de que ele apenas podia suspeitar? O Carilon du Lac teria duas ou três saídas? Todas facilmente cobertas por homens a postos do lado de fora, todas usadas como armadilhas para abater a figura solitária de um homem em fuga. Um homem sozinho; um homem sozinho era um alvo muito fácil. E se não estivesse sozinho? Se alguém estivesse com ele? Duas pessoas não eram uma, mas para quem estava sozinho outra pessoa podia ser uma camuflagem — sobretudo numa multidão, sobretudo à noite, e era noite. Verdadeiros assassinos sempre evitavam tirar a vida errada, não por compaixão, mas por objetividade: se provocassem pânico, o alvo certo poderia escapar. Sentiu o peso da arma no bolso, mas isso não lhe dava nenhum conforto. Usá-la, ou até mesmo mostrá-la, o exporia. Ainda assim estava lá. Voltou para o centro do saguão, em seguida virou-se para a direita onde havia uma grande concentração de pessoas. Era o burburinho do início da noite para um grupo que participava de um seminário internacional, muitos planos sendo ensaiados, paqueradores e cortesãs se separavam por entre olhares de aprovação ou censura, grupinhos excêntricos por todos os lados. Havia um balcão de mármore encostado à parede, um funcionário examinava algumas páginas de papel amarelo, enquanto segurava um lápis como se fosse um pincel. Telegramas. Duas pessoas estavam em frente ao balcão, um homem de idade, obeso, e uma mulher com um vestido vermelhoescuro, a cor da seda complementando a cor dos seus cabelos longos, castanho-averme-lhados... Cabelos castanho-avermelhados! Era a mulher que estava no elevador e que fizera uma piada a respeito dos impostos de César e as guerras púnicas; a doutora, que estivera ao seu lado na portaria do hotel, perguntando pelo telegrama. Bourne olhou para trás. Os assassinos estavam usando a multidão muito bem, pedindo passagem polidamente, mas abrindo caminho com firmeza; um vinha pela direita, o outro, pela esquerda, acercando-se como dois dentes de uma pinça. Se continuassem a mantê-lo à vista, podiam forçá-lo a continuar fugindo cegamente, sem nenhuma direção, sem saber se o caminho que tomasse daria em um lugar sem saída, de onde não pudesse mais fugir. Então os silenciosos tiros disparariam contra ele, deixando apenas as marcas de queimado nos bolsos dos assassinos... Mantê-lo à vista? A última fileira então... Poderemos dormir. Ele costuma usar um projetor de slides, a sala deve estar escura. Jason virou-se de novo e olhou para a mulher de cabelos castanho-avermelhados. Ela terminara o telegrama e agradecia ao funcionário, enquanto retirava do rosto os óculos com aros de chifre e os colocava dentro da carteira. Não estava a mais de oito pés de distância dele. Bertinelli está falando — coisa sem importância, acho. Não havia mais tempo, tinha que tomar uma decisão instintiva. Bourne passou a maleta para a
mão esquerda, caminhou depressa em direção à mulher no balcão, tocou o seu cotovelo de leve, para não alarmá-la. — Doutora?... — Sim? — Você é a doutora?... — Ele a soltou, fazendo-se de embaraçado. — St. Jacques — completou ela, usando a pronúncia francesa para o Saint. — Você estava no elevador. — Não sabia que era você — ele disse. — Disseram-me que poderia me informar onde Bertinelli está falando. — Está lá no quadro. Suíte sete. — Acho que não sei onde fica. Importa-se em me mostrar? Estou atrasado e tenho que tomar notas da sua palestra. — Da palestra de Bertinelli? Por quê? Trabalha em algum jornal marxista? — Não, uma cadeia neutra. — Jason respondeu, sem saber de onde vinham as suas frases. — Estou cobrindo a palestra para algumas pessoas que acham que ele não vale a pena. — Talvez não, mas deve ser ouvido. Costuma dizer algumas verdades bem brutais. — Perdi. Tenho que achá-lo agora. Talvez você possa me apresentá-lo. — Creio que não. Mas posso lhe mostrar a sala. Tenho que dar um telefonema. — Ela fechou a carteira. — Por favor. Depressa! — O quê? — Ela o olhou sem indulgência. — Sinto, mas estou com pressa. — Ele olhou à direita, os dois homens não estavam a mais de vinte pés dali. — E também esta sendo grosseiro — disse friamente a Dra. St. Jacques. — Por favor. — Ele reprimiu a vontade de empurrá-la para a frente, para fora daquela armadilha ambulante que se aproximava. — É por aqui. — Ela se pôs em direção a um amplo corredor que saía da parede de trás. Os grupos de pessoas estavam ficando cada vez menores, as saliências eram menos altas na parte de trás do saguão. Chegaram ao que parecia um túnel forrado de veludo de um vermelho intenso, com duas portas de cada lado e por cima, indicando Sala de Conferência Um, Sala de Conferência Dois. No fim do
corredor ficavam duas portas duplas, as letras douradas do lado direito indicando ser ali a entrada para a Suíte Sete. — Aqui está — disse Marie St. Jacques. — Tenha cuidado ao entrar, é provável que esteja escuro lá dentro. Bertinelli sempre usa slides em suas conferências. — Como um cinema — comentou Bourne olhando para trás, para a aglomeração no final do corredor. Lá estava ele, o homem com os óculos de aro dourado, pedindo licença para passar por um animado trio no saguão. Vinha em direção ao corredor e seu companheiro vinha logo atrás. — ... uma diferença considerável. Ele se senta abaixo do palco e faz a sua doutrinação. — A Dra. St. Jacques dissera alguma coisa e agora estava indo embora. — O que você disse? Um palco? — Bem, uma plataforma alta. Para espetáculos, acho. — Eles têm que entrar — ele disse. — Como? — Espetáculos. Há uma saída lá dentro? Outra porta? — Não tenho idéia, preciso realmente fazer esta ligação. Aprecie o professore. — E virou-se pan ir embora. Ele deixou cair a maleta e tomou-lhe o braço. Ao toque, ela olhou-o com firmeza. — Tire sua mão de mim, sim? — Não quero amedrontá-la, mas não tenho outra escolha. — Ele falou calmamente, os olhos postos no fim do corredor, por cima dos ombros dela. Os assassinos haviam diminuído o passo, a armadilha estava para se fechar. — Tem que vir comigo. — Não seja ridículo! Ele apertou-lhe o braço, fazendo com que ela se movimentasse e ficasse na sua frente. Em seguida, tirou a arma do bolso, certificando-se de que o corpo dela escondia a pistola dos homens, que estavam a uns trinta pés dali. — Não quero usar isto e não quero machucá-la também. Mas é o que farei se for obrigado. — Meu Deus... — Fique quieta. Faça o que lhe digo e ficará bem. Tenho que sair deste hotel e você vai me ajudar. Logo que estiver fora, deixa-la-ei ir-se. Mas não até que consiga sair daqui. Venha. Vamos entrar. — Você não pode... — Posso, sim. — Pressionou o cano da pistola contra o seu estômago, afundando-o na seda
escura, que enrugou-se sob a pressão de sua força. Ela estava completamente aterrorizada e permaneceu silenciosa, submissa. — Vamos. Ele pôs-se do lado esquerdo dela, com a mão ainda segurando.lhe firmemente o braço, a pistola atravessada ao peito, a centímetros do peito dela. Os olhos dela permaneciam presos à arma, os lábios abertos, a respiração irregular. Bourne abriu a porta, empurrando-a para a frente. E ainda teve tempo de ouvir uma palavra gritada no corredor. — Schnell! Entraram na escuridão, mas por um momento apenas; um raio de luz branca atravessou a sala, por cima das fileiras de poltronas, iluminando as cabeças do auditório. Era a projeção de um gráfico na tela distante, com os quadrados numericamente marcados e uma linha grossa e preta começando no lado direito e se estendendo em um desenho irregular, subindo pelas linhas em direção ao lado direito. Ouvia-se uma voz bem acentuada falando, amplificada por um alto-falante. — Podem observar que durante os anos de 70 e 71, quando restrições específicas foram autoimpostas à produção — repito, auto-impostas — por estes líderes da indústria, a recessão econômica resultante foi muito menos severa de que na — slide doze, por favor — assim chamada regulamentação da praça de mercado pelos intervencionistas governamentais. O próximo slide, por favor. Jason empurrou a mulher, fazendo-a passar pela frente das pessoas que estavam próximas à parede de trás, atrás da última fileira de poltronas. Tentou calcular o tamanho da sala de conferências, procurando uma luz vermelha que pudesse significar uma porta para a fuga. E a viu! Uma débil luz vermelha ao longe. Ficava sobre o palco, por trás da tela. Não havia nenhuma outra saída, nenhuma porta. Apenas entrada para a Suíte Sete. Tinha que chegar até lá, tinha que levá-los para aquela saída. Por trás do palco. — Marie... par ici! — O sussurro veio do lado esquerdo, de uma das poltronas da última fila. — Non, chérie. Reste avec moi. — O segundo sussurro veio da sombria figura de um homem que estava diretamente em frente de Marie St. Jacques. Ele dera um passo à frente para interceptá-la. — On nous a séparé. Il n’y a plus de chaises. Bourne pressionou firmemente a arma na costela da mulher, a mensagem era clara. Ela sussurrou sem respirar, e Jason estava contente por seu rosto estar escondido no escuro e não poder ser visto claramente. — Por favor, deixe-nos passar — disse ela em francês. — Por favor. — O que é isto? Ele é o seu telegrama, minha querida? — Um velho amigo — sussurrou Bourne. Um grito foi ouvido, mais alto do que o crescente burburinho do auditório. — Pode me dar o “slide” doze! Per favore! — Temos que ver alguém no final da fila — continuou Jason, olhando para trás. A porta da direita da entrada abriu-se e ele conseguiu enxergar um aro dourado no meio de um rosto ensombreado.
Uma armação dourada refletindo a luz pálida do corredor. Bourne fez a moça avançar, passando pelo amigo espantado, empurrando-o para a parede enquanto murmurava uma desculpa. — Desculpe, mas temos muita pressa! — E muita grosseria, também! — Sim, eu sei. — “Slide” doze! Ma che infamia! O raio de luz projetou-se na tela, vibrando por causa da mão trêmula e nervosa do operador. Outro gráfico apareceu sobre a tela no instante em que Jason e a mulher alcançavam a parede de trás, o início da estreita passagem que acompanhava toda a extensão da sala até o palco. Empurrou-a para o canto, comprimindo seu corpo contra o dela, seu rosto contra o rosto dela. — Eu grito — sussurrou ela. — Eu atiro — respondeu ele. Espiou para as figuras se esgueirando abaixadas contra a parede; os dois matadores tinham entrado, os dois procurando-o, mexendo as cabeças como roedores assustados, tentando encontrar o seu alvo entre as filas de rostos. A voz do conferencista se alteou como o soar de um sino quebrado, um protesto curto mas estridente. — Ecco! Aos céticos, a quem me apresento aqui esta noite — a maioria — aqui está uma prova estatística! De substância idêntica a cem outras análises que preparei. Deixem a praça do mercado para os que vi vem lá. Excedentes menores sempre poderão ser encontrados. E são um preço pequeno para o bem geral. Seguiu-se o ruído de algumas palmas, a aprovação de limitada minoria. Bertinelli deu continuidade à palestra, retomando seu tom normal e monótono, fincando um longo mostrador sobre a tela, enfatizando o obvio — o que lhe era óbvio. Jason inclinou-se para trás novamente. Os óculos de aro dourado brilharam no clarão da luz do projetor; o matador que os usava tocava o braço do companheiro, apontando com a cabeça para a esquerda, ordenando que seu subordinado efetuasse a busca do lado esquerdo da sala, enquanto ele ficaria com o direito. Começou a procura, o aro dourado se aproximando cada vez mais brilhante enquanto ele se esquivava por entre os que estavam em pé, estudando cada rosto. Logo estaria no canto, perto deles, em questão de segundos. Deter o assassino com um tiro era tudo o que restava. E se alguém da fila dos que estavam de pé se movesse, ou se a mulher que ele comprimira contra a parede entrasse em pânico e o empurrasse... ou se perdesse o matador por qualquer outra razão possível, estaria perdido. Mesmo se conseguisse acertar no homem, havia outro matador do outro lado da sala, e devia ser certamente um bom atirador. — Por favor, o slide treze. Era isso. Agora! O raio de luz apagou-se. No escuro, Bourne arrancou a mulher da parede, fez com que ela rodasse onde estava, ficando de frente pan ele. — Se fizer algum barulho, eu a mato!
— Acredito — sussurrou aterrorizada. — Você é louco. — Vamos! — Empurrou-a para a estreita passagem que ia dar no palco, a cinqüenta passos dali. A luz do projetor acendeu- se novamente. Agarrou o pescoço da moça, forçando-a a se abaixar até ficar de joelhos, enquanto ele também se punha de joelhos ao seu lado. Estavam escondidos dos assassinos pelas filas de corpos sentados nas poltronas. Pressionou a carne da mulher com os dedos, era o sinal para continuar a se movimentar, arrastando-se... lentamente, mantendo-se abaixada, mas movendo-se. Ela entendeu e começou a se movimentar de joelhos, trêmula. — A conclusão desta fase é irrefutável — gritou o conferencista. — A causa do lucro é inseparável do incentivo da produtividade, mas os papéis antagônicos jamais podem ser iguais. Como entendia Sócrates, a desigualdade dos valores é constante. O outro não é simplesmente lata ou ferro, quem dentre vocês pode negar isto? Slide quatorze, por favor! Novamente a escuridão. Agora. Com um puxão, ele levantou a mulher, empurrando-a para a frente, em direção ao palco. Estavam a três pés da borda. — Cosa succede? Qual é o problema, por favor? Slide quatorze! Acontecera! O projetor emperrara novamente e a escuridão se prolongava outra vez. E lá, sobre o palco à frente deles, em cima, o brilho vermelho do sinal de saída. Jason apertou o braço da moça com crueldade. — Fique de pé sobre o palco e corra para a saída! Eu a seguirei de perto. Se parar ou gritar, atiro. — Pelo amor de Deus, deixe-me ir! — Ainda não. — Era verdade. Devia haver uma outra saída em algum lugar; com outros homens esperando pelo alvo de Marselha. — Vá! Agora. A Dra. St. Jacques pôs-se de pé e correu para o palco. Bourne levantou-a do chão, passando-a por cima da borda do palco, depois pulou para dentro e colocou-a de pé novamente. A luz ofuscante do projetor arremessou-se contra a tela, inundando-a e lavando o palco. Gritos de surpresa e zombaria se elevaram do auditório à visão das duas figuras. Os gritos do indignado Bertinelli foram ouvidos no tumulto. — É insoffribile! Ci sono comunisti qui! Outros sons foram ouvidos — três disparos mortais, agudos, repentinos. Estalos abafados de uma arma com silenciador — ou armas; a madeira do arco do proscênio fora estilhaçada. Jason socou a moça para se abaixar e adiantou-se em direção às sombras do espaço estreito da ala, puxando-a atrás dele. — Da ist er! Da oben!
— Schnell! Der projektor! Um grito veio da passagem do centro da sala no momento em que as luzes do projetor se moveram para a direita, espalhando-se pelas alas do palco — mas não completamente. O facho de luz foi interceptado por algumas peças verticais dentro do palco, que escondiam os bastidores: luz, sombra, luz, sombra. E no final das peças, na parte de trás do palco, estava a saída. Uma porta de metal larga e alta com uma barra de proteção. Estilhaços de vidro — a luz vermelha explodiu com um tiro certeiro. O sinal em cima da porta estava apagado. Não tinha importância, ele ainda podia ver o brilho do metal da barra de proteção. A sala de conferência virou um pandemônio. Bourne agarrou a mulher pela fazenda da blusa e a conduziu entre percalços pelas peças dos bastidores até a porta. De início, ela resistiu. Ele a esbofeteou e puxou-a para o seu lado, enquanto levantava a barra da porta para cima. Algumas balas atravessaram a parede do lado direito, os matadores se aproximavam, correndo pelas passagens à procura de melhor campo de visão. Eles os alcançariam em poucos segundos, e daqui a alguns segundos viriam outras balas, ou mais uma bala, uma só, de fatal pontaria. Restavam ainda algumas balas, ele sabia. Não tinha idéia de como ou por que sabia, mas sabia. Pelos ruídos, podia visualizar as armas, extrair os pentes das balas, contar os cartuchos. Dando um golpe violento na barra de proteção, abriu a porta e empurrou-a para fora, carregando a Dra. St. Jacques, que esperneava. — Pare com isso! — gritou ela. — Não vou sair daqui! Você é um louco! Ouvi tiros! Jason bateu a porta com o pé, fechando-a. — Levante-se! — Não! Ele golpeou-lhe o rosto com as costas da mão. — Desculpe, mas tem que vir comigo. Levantese! Logo que estivermos fora, dou-lhe a minha palavra, deixo-a ir. — Mas para onde iria ele agora? Estavam em outro túnel, mas não era acarpetado nem tinha porta de metal polido ou sinais luminosos de saída. Encontravam-se em uma espécie de área de carregamento, deserta, com um chão de concreto. E à sua frente, na parede, estavam dois carrinhos de transporte. Ele estava certo: os objetos usados no palco da Suíte Sete tinham de ser transportados e a porta de saída era alta e larga o suficiente para dar passagem a grandes peças de cenário. A porta! Tinha que fechar a porta! Marie St. Jacques estava de pé. Segurou-a enquanto agarrava o primeiro carrinho, puxando-o pelo chassis até perto da porta de saída, empurrando-o com o ombro e o joelho até que ficasse junto ao metal da porta. Olhou para baixo; por baixo da grossa base de madeira, estavam as travas de pé das rodas. Calcou a alavanca da frente e depois a de trás. A moça tentou escapar, virando o corpo enquanto ele esticava a perna até o fim do carrinho. Imediatamente ele baixou a mão até o seu pulso, segurou-o firmemente e torceu-o. Ela deu um grito, as lágrimas encheram-lhe os olhos, os lábios tremiam. Puxou-a para si, empurrando-a para a esquerda e começando a correr, supondo que a saída o levasse em direção à parte de trás do Carillon du Lac e na
esperança de encontrar uma saída. Porque apenas na saída ele iria precisar da mulher, porque daí então um casal, e não um homem sozinho e em fuga, estaria saindo do hotel. Em seguida, o som alto e forte de batidas foi ouvido. Os matadores tentavam forçar a porta do palco, mas o carrinho travado era uma barreira muito pesada. Sacudiu a moça no chão de cimento, ela tentou livrar-se esperneando novamente, torcendo-se de um lado para o outro, à beira da histeria. Ele não teve outra escolha: segurou-lhe firmemente o cotovelo e enfiou-lhe o polegar na carne, pressionando fortemente. Ela suspirou, a dor foi repentina e torturante, e começou a soluçar, o que deu a ele chance de empurrá-la para a frente. Chegaram a uma escada de cimento. Os quatro degraus tinham uma beirada de aço e davam para uma porta dupla de metal que ficava embaixo. Era a saída para o descarregamento; de pois das portas ficava a parte de trás do Carilon du Lac, a área de estacionamento. Estava chegando lá. Agora era apenas uma questão de aparência. — Ouça-me — disse para a mulher amedrontada, rígida — você quer que eu a solte? — Oh, por Deus, sim! Por favor! — Então, faça o que digo! Vamos descer estes degraus e sair por aquela porta como duas pessoas perfeitamente normais, ao fim de um dia normal de trabalho. Você vai me dar o braço e caminharemos lentamente, conversando calmamente, até os carros que estão no fim do estacionamento. E vamos rir — não alto, mas um riso normal —, como se estivéssemos lembrando de coisas engraçadas que aconteceram durante o dia. Entendeu? — Nada de engraçado me aconteceu durante os últimos quinze minutos — respondeu ela numa voz quase inaudível e monótona. — Finja o contrário. Posso cair numa cilada e se isto acontecer não me importa mais nada. Entendeu? — Acho que meu pulso está quebrado. — Não está. — Meu braço esquerdo, meu ombro... Não posso mexê-los, estão latejando. — A raiz do nervo foi premida, vai passar daqui a alguns minutos. Você vai ficar bem. — Você é um animal. — Quero viver — respondeu ele. — Venha. Lembre-se, quando eu abrir a porta, olhe para mim e sorria, jogue a cabeça para trás e ria um pouco. — É a coisa mais difícil que já fiz. — Melhor do que morrer.
Ela pôs a mão machucada no braço dele e desceram a escada curta até a plataforma da porta. Ele a abriu e então saíram. Com a mão no bolso do sobretudo segurando a pistola do francês, ele perscrutou o terminal de descarregamento. Havia apenas uma lâmpada presa em um fio de arame por cima da porta; sua luz clareava os degraus de concreto à esquerda, que davam para a calçada embaixo. Conduziu sua refém para lá. Ela representou o que ele lhe pedira, mas o efeito foi macabro. Enquanto desciam os degraus ela virou o rosto para ele e suas feições aterrorizadas foram iluminadas. Os lábios carnudos estavam abertos, esgarçados sobre os dentes brancos em um sorriso falso e tenso; os olhos arregalados eram duas órbitas escuras e sombrias, refletindo intenso temor; a pele marcada por sulcos de lágrimas estava retesada e pálida, manchada pelos vergões vermelhos das bofetadas. Ele via um rosto cinzelado em pedra, uma máscara emoldurada pelos cabelos vermelho-escuros que caíam em cascata por sobre os seus ombros, afagados pela brisa noturna — o único movimento vivo naquela máscara petrificada. Um riso sufocado saiu-lhe da garganta, pronunciando as veias do pescoço longo. Ela não estava muito longe de um desmaio, mas ele nem sequer podia pensar nisso. Tinha que se concentrar no espaço em volta deles, ficar atento a qualquer movimento — qualquer pequeno movimento que pudesse perceber — no escuro estacionamento. Era óbvio que esta parte de trás, escura, era usada apenas pelos empregados do Carilon du Lac. Eram quase seis e meia, a noite já estava imersa em seus afazeres. Tudo estava quieto. O pátio era escuro e tinha manchas descontínuas forma das pelas fileiras de automóveis parados, silentes — uma formação de insetos imensos, os vidros opacos dos faróis eram como cem olhos fixos no vazio. Um ruído, um arranhão. Metal contra metal. Vinha da direita, de um dos carros de uma fila próxima. Que fila? Que carro? Ele jogou a cabeça para trás;, como se estivesse respondendo com um riso a uma piada feita pela companheira, e passou os olhos pelas janelas dos carros mais próximos. Nada. Alguma coisa? Era. Mas tão pequena! Uma diminuta chama de luz verde.., que se movimentava quando eles se movimentavam. Verde. Pequena... Seria luz? De repente, de algum lugar num passado remoto, a imagem de uma linha cruzada irrompeu na sua vista. Seus olhos viam dois traços finos, duas linhas que se cruzavam. Linhas cruzadas! Uma lente de alcance... A luz infravermelha de um rifle. Como os assassinos souberam? A pergunta tinha muitas respostas. Um rádio de mão fora usado no Gemeinschaft; outro poderia estar sendo usado agora. Ele estava com um sobretudo, sua refém, com um vestido de seda fina. E a noite estava fria, nenhuma mulher sairia daquela maneira. Ele girou para a esquerda, abaixando-se e jogando-se contra Marie St. Jacques, batendo com o ombro no seu estômago, o que a fez rolar escada abaixo. Os estalos abafados se repetiram, estilhaços dê pedra e asfalto explodiram à volta deles. Ele mergulhou para a direita rolando várias vezes na calçada, enquanto retirava do bolso a pistola. Em seguida, pulou para a frente, segurando com a mão esquerda o pulso direito, e fez mira com o revólver para a janela onde estava o rifle. Disparou três tiros.
Um grito veio do espaço aberto do carro estacionado, que se transformou em gemido, depois em um arquejo, e depois silêncio. Bourne permaneceu imóvel, à espera, ouvindo, observando, pronto para atirar novamente. Silêncio. Quis ficar de pé mas não conseguiu. Alguma coisa tinha acontecido. Mal podia se mexer. Depois, a dor se espalhou por todo o peito. Era tão violenta que se encolheu, apoiandose com as duas mãos, balançando a cabeça, tentando focalizar a visão, rejeitar a agonia. O ombro esquerdo, a parte inferior do peito, debaixo das costelas... A coxa esquerda, acima do joelho e abaixo do quadril, os mesmos lugares dos ferimentos anteriores, onde algumas dúzias de pontos tinham sido removidos há apenas um mês. Tinha ferido as áreas enfraquecidas, distendido tendões e músculos que ainda nem estavam restaurados. Oh, Cristo! Tinha que se levantar, tentar alcançar o carro do seu quase assassino, tirá-lo de lá e fugir. Balançou a cabeça rapidamente, fazendo uma careta de dor, e olhou para Marie St. Jacques. Ela se levantava lentamente, primeiro pondo-se sobre um joelho, depois sobre um pé, segurando-se na parede externa do hotel. Logo estaria de pé, correndo. Para longe. Não podia deixá-la ir-se! Ela correria gritando para dentro do Carillon du Lac e os homens apareceriam, alguns para prendê-lo, outros para matá-lo. Tinha pie detê-la! Jogou-se para a frente e começou a rolar para a esquerda, girando como um manequim completamente fora de controle, até chegar bem perto da parede, bem perto dela. Então, levantou a arma e fez pontaria em direção à sua cabeça. — Ajude-me — disse, ouvindo a tensão de sua própria voz. — O quê? — Você me ouviu. Ajude-me a levantar. — Você disse que me deixaria ir! Deu-me a sua palavra! — Tenho que retirá-la. — Não, por favor. — Esta arma está apontada para o seu rosto, doutora. Venha cá e me ajude ou vou explodi-la. Ele tirou o morto do carro e mandou que ela se pusesse atrás do volante. Depois, abriu a porta traseira e rastejou para o assento de trás, para não ser visto. — Dirija — disse ele. — Vá para onde eu a mandar.
Capítulo6 Sempre que você se encontrar numa situação de tensão — e tiver tempo, é claro — faça exatamente como faria quando se projeta em alguém que está observando. Deixe a sua mente vagar livre, deixe todos os pensamentos e imagens aflorarem claramente. Tente não exercitar qualquer disciplina mental. Seja uma esponja, concentre-se em tudo e em nada. Algumas especificações podem vir a você, alguns condutos reprimidos podem contatar eletricamente e começar a funcionar. Bourne lembrou das palavras de Washburn enquanto tentava se acomodar no canto do assento e readquirir o controle. Massageou o peito suavemente, esfregando os músculos magoados em volta do ferimento. Ainda sentia dor, mas não era tão aguda quanto há alguns minutos. — Você não pode apenas me mandar dirigir! —. lamentou-se a Dra. St. Jacques. — Não sei para onde ir! — Nem eu — disse Jason. Pedira que ela fizesse a volta no passeio à margem do lago; estava escuro e ele precisava de tempo para pensar. Mesmo que fosse apenas para ser uma esponja. — As pessoas vão me procurar — exclamou ela. — Também estão me procurando. — Mas você me pegou contra a minha vontade. Você me bateu. Várias vezes. — Falava com mais calma agora, impondo-se um certo controle. — Isso é rapto, assalto... Crimes sérios. Você só queria sair do hotel, foi o que disse. Deixe-me ir e prometo não contar nada. Prometo! — Você está querendo dizer que me dá a sua palavra? — Sim! — Dei-lhe a minha e retirei-a. Você pode fazer o mesmo. — Você é diferente. Eu não vou fazer isto. Ninguém está tentando me matar! Oh, Deus do Céu! Por favor! — Continue dirigindo. Uma coisa estava clara para ele. Os assassinos o tinham visto deixar cair a maleta e deixá-la para trás na corrida para a fuga. Aquela mala lhes dizia o óbvio: ele estava saindo de Zurique e, sem dúvida, saindo da Suíça. O aeroporto e a estação de trem estariam sendo vigiados. E o carro que ele tomara do homem que matara — o homem que tentara matá-lo — seria procurado. Não podia ir para o aeroporto ou para a estação de trem; tinha que se livrar do carro e encontrar outro. Não estava sem recursos, tinha 100.000 francos suíços e mais 16.000 francos franceses; a conta corrente da Suíça na carteira do passaporte, a da França, na carteira de notas que roubara do Marquês de Chamford. Era mais do que o suficiente para levá-lo em segredo a Paris.
Por que Paris? Era como se a cidade tivesse um magnetismo especial para ele, atraindo-o sem nenhuma explicação. Você não está desamparado. Você vai encontrar o seu caminho... Siga os seus instintos; razoavelmente, é claro. Para Paris. — Você já esteve em Zurique antes? — perguntou ele à sua refém. — Nunca. — Você não mentiria para mim, não? — Não tenho nenhuma razão para isso! Por favor. Deixe-me parar. Deixe-me ir! — Há quanto tempo está aqui? — Uma semana. O seminário durou uma semana. — Então teve tempo de dar umas voltas, conhecer alguns lugares. — Quase não saí do hotel. Não houve tempo. — O programa que vi no mural não parecia muito cheio. Apenas duas conferências por dia. — Eram conferencistas convidados; nunca mais do que dois por dia. A maior parte do nosso trabalho foi em seminários... pequenas conferências. Entre dez e quinze pessoas de países diferentes, com interesses diferentes. — Você é do Canadá? — Trabalho para o governo canadense, pan a Treasury Board, Department of National Revenue. — O “doutora” não é de médica, então? — Economia. Universidade McGiil. Universidade de Pembroke, Oxford. — Estou impressionado. Subitamente, com uma irritação controlada, ela acrescentou: — Os meus superiores esperam que eu entre em contato com eles. Hoje à noite. Se não tiverem notícias minhas, ficarão alarmados. E farão interrogatórios, chamarão a polícia de Zurique. — Percebo. Temos que pensar nisso, não é? — De repente, Bourne lembrou-se de que durante todo o choque e violência da última meia hora, a Dra. St. Jacques não largara da carteira nenhuma vez. Ele se inclinou para a frente, estremecendo, a dor no peito ficara aguda de repente. — Dê-me a sua carteira.
— O quê? — Ela tirou rapidamente a mão do volante, agarrando a carteira, numa tentativa inútil de resguardá-la. Ele esticou a mão direita por cima do assento, agarrando o couro com os dedos. — Dirija, doutora! — Ele levantou a carteira do assento e recostou-se novamente. — Você não tem o direito... — Calou-se: era óbvia a infantilidade de sua observação. — Sei disso. — Abriu a carteira, acendendo a lâmpada de leitura do carro, virando do avesso a carteira de mão. Condizendo com a dona, a carteira era bem-organizada. Passaporte, carteira de dinheiro, uma bolsinha com trocados, chaves e, nas divisões de trás, algumas anotações e bilhetes. Procurava uma mensagem específica, um envelope amarelo que lhe fora entregue pelo funcionário da portaria do Carillon du Lac. Encontrou-o, abriu o envelope e tirou o papel dobrado. Era um telegrama de Ottawa. RELATOS DIÁRIOS PRIMEIRA QUALIDADE. SAÍDA ATENDIDA. IREI ENCONTRÁ-LA NO AEROPORTO QUARTA-FEIRA 26. TELEFONE OU TELEGRAFE VÔO. EM LYON NÃO ESQUEÇA BELLE MEUNIERE. COZINHA SOBERBA. AMOR PETER; Jason botou o telegrama na carteira e viu a pequena caixa de fósforos, de cobertura brancoacetinada e com uma lista de palavras escritas. Pegou-a e leu. Kronenhalle. Um restaurante... Um restaurante. Alguma coisa o incomodava, não sabia o que poderia ser, mas era alguma coisa. Alguma coisa a respeito de um restaurante. Ficou com a caixa de fósforos, fechou a carteira e curvou-se para a frente, deixando-a cair no assento da frente. — Era tudo o que eu queria ver — disse, acomodando-se de novo no banco, olhando para a caixa de fósforos. — Parece que me lembro de você ter dito alguma coisa sobre “ordens de Ottawa”. Você as recebeu; vinte e seis foi na semana passada. — Por favor... A súplica era um pedido de ajuda; ele entendeu, mas não podia responder. Até a hora seguinte, ou mais, ele iria precisar daquela mulher como um homem aleijado precisa de uma muleta ou, mais apropriadamente, como um pessoa impossibilitada de dirigir precisa de um motorista. Mas não naquele carro. — Vire — comandou ele. — Faça a volta para o Carillon. — Para o... hotel? — Sim — disse ele, o olhar fixo na caixa de fósforos, virando-a na mão sob a luz da lanterna do carro. — Precisamos de outro carro. — Nós? Não, você não pode! Não irei mais... — E novamente ela parou antes de terminar de falar, antes de completar o pensamento. Ocorreu-lhe outro pensamento e ficou em silêncio, de repente, enquanto girava a direção do sedã até que ele virasse para o outro lado da rua escura à margem do lago. Depois apertou o acelerador com tal força que o carro disparou, os pneus giraram sob a súbita velocidade. Mas logo tirou o pé do pedal, segurando a direção, tentando se controlar.
Bourne levantou os olhos da caixa de fósforos e olhou para a sua cabeça, para os longos cabelos vermelho-escuros que brilhavam na luz. Pegou a arma do bolso e mais uma vez inclinou-se para a frente diretamente para as costas dela. Levantou a arma, levou a mão ao ombro dela e virou o cano contra o seu rosto. — Quero que isto fique bem claro. Você vai fazer exatamente o que eu lhe mandar. Você ficará ao meu lado, e esta arma ficará no meu bolso, apontando para o seu estômago, como agora, exatamente neste momento, está apontando para a sua cabeça. Como vê, estou fugindo para salvar a minha vida e não hesita rei em puxar o gatilho. Quero que isto fique bem claro, entende? — Entendo. — A resposta saiu como um murmúrio. Ela respirou pelos lábios entreabertos. Estava completamente aterrorizada. Jason afastou a arma do seu rosto; estava satisfeito. Satisfeito e revoltado. Deixe a sua mente vagar livre... A caixa de fósforos. O que significava? Mas não era ela, era o restaurante — e não era o Kronenhalle, mas outro restaurante. Pesadas luzes, luz de vela, escuro... triângulos no lado de fora. Pedra branca e triângulos pretos. Três?... Três triângulos pretos. Havia alguém lá... Nesse restaurante com três triângulos na fachada. A imagem era tão clara, tão vívida... tão perturbadora! O que era? Teria existido este lugar? Algumas especificações podem vir a você... alguns condutos reprimidos... começar a funcionar. Estaria acontecendo agora? Oh, Cristo, eu não agüento! Podia divisar as luzes do Carillon du Lac a algumas centenas de jardas, lá embaixo na rua. Não planejara bem os seus movimentos, mas pensava em duas possibilidades, tinha duas suposições. A primeira: os matadores não haviam permanecido no local. Mas, por outro lado, Bourne não estava a fim de cair em uma armadilha criada por ele mesmo. Conhecia apenas dois deles, e não poderia reconhecer os outros se ainda estivessem lá. A área principal do estacionamento ficava depois do caminho circular, no lado esquerdo do hotel. — Diminua a marcha — ordenou Jason. — Vire na primeira entrada à esquerda. — É uma saída — protestou ela, a voz tensa. — Vamos tomar um caminho errado. — Ninguém está saindo. Vá, continue! Para dentro do estacionamento, passando pelas luzes. A cena à entrada do hotel, embaixo da cobertura da entrada, explicava claramente por que eles não haviam sido notados. Quatro carros da polícia estavam alinhados no passeio circular, com as luzes vermelhas girando na capota, transmitindo uma aura de emergência. Os policiais uniformizados, acompanhados pelos funcionários do hotel vestidos de casaca transitavam por entre uma multidão de hóspedes excitados, respondendo e fazendo perguntas, examinando a lista dos que saíam de automóvel. Marie St. .Jacques atravessou o estacionamento, passando pelos holofotes, e estacionou em um espaço vazio do lado direito. Depois desligou o motor e permaneceu sentada, imóvel, olhando
fixamente para a frente. — Preste atenção, tenha cuidado — disse Bourne, abaixando a vidraça. — E mova-se lentamente. Abra a sua porta e saia, fique ao meu lado e me ajude. Lembre-se, a janela está aberta e tenho uma arma na mão. Você está perto de mim; não vou errar se atirar. Ela fez o que ele disse, como um autômato aterrorizado. Jason segurou-se na estrutura da janela e conseguiu sair para a calçada. Trocou o peso do corpo de um pé para o outro — a mobilidade estava voltando. Já podia andar. Não bem, com um certo manquejo, mas podia andar. — O que vai fazer? — perguntou a Dra. St. Jacques como se estivesse com medo de ouvir a resposta. — Esperar. Cedo ou tarde alguém vai estacionar um carro aqui. Não importa o que tenha acontecido lá dentro, ainda é hora do jantar. As reservas de mesa já foram feitas, alguns encontros já foram programados, a maioria para tratar de negócios — essas pessoas não vão mudar de idéia. — E quando aparecer um carro, como vai tomá-lo? — Ela fez uma pausa e, em seguida, respondeu à sua própria pergunta. — Oh, meu Deus, você vai matar quem estiver dirigindo. Ela agarrou-lhe o braço, seu rosto estava a centímetros dele, branco como cera. Ele tinha que controlá-la pelo medo, mas mão a ponto de deixá-la cair em histeria. — Se tiver que matar, mato. Mas acho que não vai ser necessário. Os empregados do estacionamento trazem o carro para cá. As chaves em geral são deixadas sobre o painel do carro, ou embaixo dos bancos. É fácil. Luzes de farol iluminaram a bifurcação do caminho circular; um pequeno cupê acelerou ao entrar na quadra — provavelmente dirigido por um dos empregados do hotel. O carro veio diretamente para eles, deixando Bourne um pouco alarmado até perceber o espaço vazio ao lado. Mas eles estavam na frente dos faróis, tinham sido vistos. Reservas para o jantar... Um restaurante. Jason tomou uma decisão; usaria a oportunidade. O empregado saiu do cupê e pôs as chaves embaixo do banco. Enquanto se encaminhava para a traseira do carro, cumpriinentou-os com um aceno de cabeça, parecendo um pouco curioso. Bourne falou em francês. — Olá, meu jovem! Talvez possa nos ajudar. — Sim, senhor? — O empregado se aproximou um pouco, hesitante, cauteloso; obviamente os acontecimentos no hotel ainda estavam em sua memória. — Não estou muito bem, bebi demais do excelente vinho suíço de vocês. — Acontece, senhor. — O jovem sorriu aliviado. — Minha mulher achou bom tomar um pouco de ar fresco antes de ir para a cidade.
— Uma boa idéia, senhor. — Ainda está tudo agitado lá dentro? Achei até que o policial não nos deixaria sair. Mas quando viu que eu estava na iminência de vomitar em cima do seu belo uniforme... — Muito agitado, senhor. Estão por toda parte... Temos ordens de não comentar. — É claro. Mas estamos com uni problema. Um amigo nosso chegou esta tarde e concordamos em nos encontrar em um restaurante. Mas esqueci o nome. Já estive lá antes, mas não consigo me lembrar onde fica nem como se chama, Só me lembro que na fachada havia três formas estranhas... Um desenho qualquer... Triângulos, acho. — É o Drei Alpenhäuser, senhor. Os... Três Chalés. Fica numa rua lateral, depois da Falkenstrasse. — Sim, é claro, é isso mesmo! E para ir lá, saindo daqui, nós... — Bourne foi pronunciando as palavras lentamente, como um homem bêbado tentando se concentrar. — Vire a esquerda no fim da saída, senhor. Vá reto pelo Uto Quai por uns cem metros mais ou menos, até alcançar um píer grande então vire à direita. Vai levá-lo até a Falkenstrasse. Logo que o senhor passar a Seefeld, fique atento à rua do restaurante. Tem uma placa na esquina. — Obrigado. Estará aqui daqui a algumas horas, quando voltarmos? — Estou de serviço até as duas da manhã, senhor — Ótimo. Procura-lo-ei para expressar-lhe minha gratidão mais concretamente. — Obrigado, senhor. Posso ir buscar seu carro? — Você já fez muito, obrigado. Preciso andar mais um pouco. — O empregado se despediu e se dirigiu para o hotel. Jason guiou Marie St. Jacques até o cupê, capengando um pouco ao seu lado. — Depressa! As chaves estão debaixo do assento. — Se nos deterem, o que faremos? Esse empregado vai ver o carro sair, vai perceber que você o roubou. — Duvido. Não se nós sairmos já, logo que ele entrar naquela confusa multidão. — E se ele perceber? — Se isso acontecer, espero que você saiba correr — disse Bourne enquanto a empurrava para a porta do carro. — Entre. — O empregado dobrou a calçada em direção à frente do hotel e, de repente, apressou o passo. Jason puxou a arma e capengou rapidamente em volta do carro, segurando-se na capota, enquanto apontava o revólver para o pára-brisa. Depois, abriu a porta de trás e pôs-se ao lado dela. — Merda. Eu disse para pegar as chaves! — Está bem... Não consigo pensar.
— Tente, tente! — Oh, Deus... — Ela estendeu a mão por baixo do assento e pôs-se a procurar sob o tapete até que achou o pequeno estojo de couro. — Ligue o motor, mas espere até que eu lhe diga para dar a ré. — Ele esperou para ver se aparecia algum farol na entrada do estacionamento, porque então o empregado teria uma razão para voltar correndo, pois haveria mais um carro para estacionar. Mas não apareceu nada. E talvez por outra razão: havia duas pessoas desconhecidas na área do estacionamento. — Em frente, depressa! Quero sair daqui. — Ela jogou a marcha para a ré e segundos depois estavam se aproximando da saída pelo caminho que dava frente para o lago. — Diminua a marcha — ordenou ele. Um táxi apareceu na frente deles, na curva do caminho. Bourne prendeu a respiração e olhou pela janela de trás para a entrada do Carillon du Lac. O que se passava debaixo do toldo da entrada explicava bem a súbita necessidade que teve o empregado de se apressar — iniciara-se uma discussão entre a polícia e um grupo de hóspedes do hotel. Estava-se formando uma fila para checar os nomes daqueles que estavam deixando o hotel; a demora resultante impacientava os inocentes. — Vamos — disse Jason, de novo tremendo. A dor vinha em pontadas por todo o peito. — O caminho está limpo. Era uma sensação de entorpecimento, estranha e misteriosa. Os três triângulos eram exatamente como ele os imaginara: em madeira grossa e escura, em baixo-relevo na parede de pedra branca. Três triângulos iguais, como uma rendição à abstração geométrica dos telhados do chalé cobertos de neve e com os andares mais baixos completamente cobertos. Acima das três pontas estava o nome do restaurante, escrito em letras góticas: DREI ALPENHÄSER. Embaixo dos triângulos ficava a entrada. Duas portas que formavam um arco de catedral; as aldravas de ferro maciço, em forma de argolas, eram comuns aos château alpinos. Os prédios em volta, dos dois lados da rua estreita e de pedras, eram estruturas restauradas de um passado antigo de Zurique e da Europa. Não era uma rua para automóveis. Imaginava-se passando por ali formosas carruagens puxadas por cavalos, com os cocheiros naqueles assentos altos usando cachenê e cartola, iluminados pelos lampiões a gás. Era uma rua repleta de visões e ruídos de lembranças esquecidas, apesar de o homem não ter memórias para lembrar. Mesmo assim, teve uma, vívida e perturbadora. Três triângulos escuros, luzes intensas e velas. Estava certo, era uma lembrança de Zurique. Mas de outra vida. — Chegamos — disse a mulher. — Eu sei. — Diga-me o que fazer! — gritou ela. — Estamos passando. — Siga até a esquina e vire à esquerda. Dê a volta no quarteirão e depois volte até aqui.
— Por quê? — Quisera saber. — O quê? — Porque mandei. — Havia alguém lá ... no restaurante. Por que não lhe vinham outras imagens? Outra imagem. Um rosto. Rodaram pela rua e passaram pelo restaurante mais duas vezes. Dois casais, um depois do outro e mais um quarteto entra ram; um homem saiu, indo em direção à Falkenstrasse. A julgar pelos carros estacionados na calçada, havia um pequeno grupo no Drei Alpenhäuser. Logo chegaria mais gente, dali a umas duas horas, porque a maioria das pessoas preferia a refeição da noite às dez e meia, em vez das oito. Não havia mais por que se retardar, nada mais lhe vinha à mente. Podia sentar-se e ficar atento, na esperança de que alguma coisa lhe viesse à cabeça. Alguma coisa. Porque já viera antes, como aquela caixa de fósforos, que lhe evocou uma imagem real. E dentro dessa realidade havia uma verdade que ele tinha que descobrir. — Encoste à direita, na frente do último carro. Vamos a pé. Em silêncio, sem comentários ou protestos, a mulher fez como ele lhe mandara. Jason olhou para ela, estava sendo muito dócil, incoerente com o seu comportamento anterior. Ele entendeu. Tinha que lhe dar uma lição de novo. Sem levar em conta o que podia acontecer lá dentro, no Drei Alpenhäuser, ainda precisava dela para uma última contribuição. Ela teria que levá-lo para fora de Zurique. Q carro parou, os pneus arranhando o meio-fio. Ela desligou o motor e ia tirar as chaves do contato com um movimento lento, muito lento. Ele estendeu o braço e segurou-lhe o pulso; ela o olhou naquela escuridão, sem respirar. Ele foi escorregando os dedos até encontrar o chaveiro. — Fico com elas — disse. — É claro — respondeu ela, deixando a mão esquerda cair mecanicamente do lado do corpo, sustentado pelo painel da porta. — Agora saia e fique ao lado do carro — continuou ele. — Não faça nenhuma bobagem. — E por que faria? Você me mataria. — Ótimo. — Ele estendeu o braço para o trinco, exagerando um pouco a dificuldade, a cabeça virada para o outro lado. Então abaixou o trinco... De repente, o ruído do tecido do vestido, a golfada de ar, a porta da frente aberta, e a mulher já estava com meio corpo para fora, para a rua. Mas Bourne estava alerta; a lição tinha que ser dada. Virou-se, o braço esquerdo como uma mola, a mão uma garra, e segurou a seda do vestido que estava entre as suas espáduas. Puxou-a de volta para o assento e, agarrando-a pelo cabelo, virou-lhe a cabeça para trás até que o seu pescoço estivesse esticado e o rosto de frente para ele.
— Não vou fazer isso de novo! — disse ela, enquanto as lágrimas lhe brotavam dos olhos. — Juro que não vou fazer de novo! Ele estendeu o braço e bateu a porta, fechando-a. Depois olhou-a fixamente, tentando entender alguma coisa nele mesmo. Meia hora antes, em outro carro, experimentara certa náusea ao encostar o cano da arma no rosto dela, ameaçando-a de morte se não o obedecesse. Agora não sentia essa mudança; com esta ação indissimulada ela passara para um outro território, tornara-se uma inimiga, uma ameaça; se precisasse, mata-la-ia, e sem nenhuma emoção, simplesmente porque era a coisa mais prática a ser feita. — Diga alguma coisa! — sussurrou ela. E seu corpo teve um leve espasmo, os seios apontando contra a seda escura do vestido, o peito arfando, subindo e descendo com um movimento agitado. Segurou o próprio pulso na tentativa de controlar-se e quase conseguiu. De novo falou, mas em vez do sussurro, era agora num tom monótono e lento. — Eu disse que não vou fazer isso de novo e não vou. — Mas vai tentar — respondeu ele calmo. — Vai chegar um momento em que você vai achar que pode e vai tentar de novo. Acredite em mim quando lhe digo que não pode. Mas se tentar de novo vou ter que matá-la. Não quero fazer isso. Não há motivos para fazer isso, nenhuma razão, a menos que você se torne uma ameaça para mim. E quando tenta fugir antes que eu a deixe ir, é isso que você se torna: uma ameaça. Não posso permitir isso. Dissera a verdade, pelo menos como ele a entendia. A simplicidade da decisão lhe era tão surpreendente quanto a própria decisão em si. Matar era apenas uma questão prática, nada mais. — Você disse que me deixaria ir — falou ela. — Quando? — Quando eu estiver a salvo — respondeu. — Quando não fizer mais nenhuma diferença o que você fizer ou disser. — Quando será isso? — Mais ou menos daqui a uma hora. Quando estivermos fora de Zurique e eu estiver indo para qualquer outro lugar. Você não saberá para onde nem como. — Por que devo acreditar em você? — Não me interessa se acredita ou não. — Soltou-a. — Arrume-se. Limpe os olhos e penteie os cabelos. Vamos entrar. — O que há lá dentro? — Quisera saber — disse ele dando uma olhada pela janela de trás para a porta do Drei Alpenhäuser. — Você já disse isso antes. Ele olhou para ela, para os arregalados olhos castanhos que procuravam os seus. Procuravam
com medo, com espanto. — Eu sei. Depressa! Grossas vigas atravessavam o teto alto, estilo alpino, as mesas e cadeiras eram de madeira pesada, havia muitos compartimentos e luz de vela espalhada por todos os cantos. Uma acordeonista movimentava-se por entre as pessoas, graves acordes saíam do seu instrumento. Ele já vira aquela sala ampla antes, as vigas e as luzes de vela estavam impressas em alguma parte de sua mente; os sons também. Já viera ali em outra vida. Os homens de casaca o cumprimentaram. — Haben Sie einen Tisch schon reserviert, mein Herr? — Se está falando em reservas, não, acho que não. Mas vocês me foram muito recomendados. Espero que tenha lugar para nós. Um reservado, se possível. — Certamente, senhor. É cedo ainda, temos lugares, as mesas ainda não estão lotadas. Por aqui, por favor. Foram conduzidos até um reservado no canto mais próximo; a luz de uma vela tremulava no centro da mesa. Sua dificuldade de andar, apoiado na mulher, fez com que fossem logo acomodados na mesa mais próxima. Ele fez um sinal para Marie St. Jacques e ela sentou-se. Ele deslizou para o banco, sentando-se à sua frente. — Fique do lado da parede — disse depois que o maître se afastou. — Lembre-se de que a arma está no meu bolso e tudo o que tenho a fazer é me levantar, e será o seu fim. — Eu disse que não iria tentar. — Espero que não. Peça um drinque, não há tempo para comer. — Nem eu poderia comer. — Segurou o pulso de novo, a mão tremia visivelmente. — Por que não há tempo? O que você está esperando? — Não sei. — Por que continua a dizer isso? “Não sei.” “Quisera saber.” Por que veio para cá? — Porque já estive aqui antes. — Isso não é resposta! — Não tenho nenhuma razão para lhe dar uma resposta. Um garçom se aproximou e ela pediu vinho. Bourne ordenou um uísque, precisava de uma bebida mais forte. Olhou em torno, tentando se concentrar em tudo e nada. Uma esponja. Mas havia apenas um nada. Nenhuma imagem, nenhum pensamento preenchia aquele vazio. Nada. Mas de repente avistou o rosto do outro lado da sala. Um rosto grande numa cabeça redonda,
assentada em um corpo obeso, encostado à parede de um reservado no fim do salão, perto de uma porta fechada. O homem gordo permanecia nas sombras do seu posto de observação, como se elas fossem a sua proteção, como se aquela parte escura fosse o seu santuário. Pôs os olhos em Jason: era um olhar de medo e descrença. Bourne não conhecia aquele rosto, mas o rosto o conhecia. O homem enxugou os cantos da boca os dedos e em seguida passou os olhos pelas mesas, detendo-se em cada uma delas. Depois começou a andar em direção ao reservado, parecendo cheio de pesar. — Um homem vem vindo para cá — disse Jason por sobre a chama da vela. — Um homem gordo, que parece estar com muito medo. Não diga nada. Não importa o que ele diga, mantenha-se calada. E não olhe para ele, ponha o cotovelo na mesa e descanse a cabeça na mão naturalmente. Olhe para a parede, não para ele. A mulher enrugou a face, colocou a mão direita no rosto, os dedos tremiam. Os lábios pareciam querer fazer uma pergunta, mas nenhuma palavra saiu da boca. Jason respondeu à pergunta. — Para o seu próprio bem — disse —, ele não deve identificá-la. O homem gordo apareceu no canto da mesa. Bourne soprou a vela. A chama se apagou e a mesa ficou em meia escuridão. O homem olhou espantado para ele e falou em voz baixa, tensa. — Du lieber Gott! Por que veio aqui? O que fiz para que você me fizesse isto? — Gosto da comida, você sabe disso. — Você não tem sentimentos? Tenho uma família, mulher e filhos. Fiz apenas o que me mandaram. Entreguei-lhe um envelope, nem mesmo olhei o que continha. Não sei de nada! — Mas você foi pago, não foi? — Jason perguntou instintivamente. — Sim, mas nada disse. Nunca nos vimos, nunca o descrevi. Não contei nada a ninguém! — Então por que está com medo? Sou apenas um freguês pedindo um jantar. — Peço-lhe, saia. — Agora estou com raiva. É melhor me dizer por quê. O homem gordo levou as mãos ao rosto, os dedos enxugando novamente a umidade que se formara em volta da boca. Apontou com a cabeça para a porta, depois voltou-se para Bourne. — Alguém deve ter falado, alguém pode conhecê-lo. Já tive muito problema com a polícia, eles viriam diretamente a mim. A Dra. St. Jacques perdeu o controle, olhou para Jason, e as palavras lhe escaparam. — A polícia... Era a polícia. Bourne olhou-a firmemente, e depois voltou-se para o nervoso homem gordo. — Está dizendo que a polícia faria mal a sua mulher e filhos?
— Não a eles propriamente. O senhor sabe muito bem... O interesse deles traria outras pessoas para cá. Iriam até minha família. Quantos estão à sua procura, mein Herr? O que são eles e o que fazem? Nem precisa da minha resposta, eles fazem qualquer coisa — a morte de uma esposa ou de uma criança não representa nada. Por favor. Pela minha vida. Eu nada disse. Saia. — Você está exagerando. — Jason começou a beber seu drinque tentando despachá-lo. — Em nome de Cristo, não faça isto! — O homem inclinou-se agarrando-se à borda da mesa. — Você quer uma prova do meu silêncio? Pois lhe dou. A notícia foi espalhada por todo o Verbrecherwelt. Qualquer pessoa que tivesse alguma informação devia chamar um número indicado pela policia de Zurique. Tudo seria mantido na mais restrita confidência, eles não mentiriam no Verbrecherwelt sobre isso. Os prêmios eram vultosos, policia de vários países envidando fundos através da Interpol. Qualquer equívoco podia ser visto sob novas luzes judiciais. — O conspirador ficou ereto, enxugando a boca novamente, o imenso corpo se elevando por sobre a mesa. — Um homem como eu poderia ter bom proveito com uma relação melhorada com a polícia. Mesmo assim, nada fiz. Mesmo com a garantia de que tudo seria confidencial, nada fiz! — Alguém fez? Diga-me a verdade, e saberei se você está mentindo. — Só conheço Chernak. Ele é o único com quem falei e que admite tê-lo visto. Mas o senhor sabe dessas coisas; o envelope me foi passado por ele. Ele jamais diria alguma coisa. — Onde está Chernak agora? — Onde sempre está. Em seu apartamento na Lõwenstrasse. — Nunca estive lá. Qual é o número? — Nunca esteve...? — O homem gordo parou, os lábios apertados, ,os olhos mostrando espanto. — Está me testando? — Respõnda à pergunta. — Número 37. Sabe tão bem quanto eu. — Então estou testando-o. Quem deu o envelope para Chernak? O homem ficou imóvel, sua dúbia integridade desafiada. — Não tenho meios de saber. E jamais perguntaria. — Nem mesmo teve curiosidade? — É claro que não. Uma ovelha não entra na caverna do lobo. — As ovelhas são muito bem equipadas, têm olfato muito acurado. — E são cautelosas, mein Herr. Porque o lobo é mais rápido e muito mais agressivo. Haveria apenas uma perseguição, e seria a última da ovelha.
— O que havia dentro do envelope? — Já lhe disse, não o abri. — Mas sabe o que tinha dentro. — Dinheiro, acho. — Você acha? — Muito bem. Dinheiro. Uma grande soma de dinheiro. Se houve qualquer discrepância, não tem nada a ver comigo. Agora, por favor, eu lhe peço. Saia daqui! — Uma última pergunta. — Qualquer coisa. Mas saia! — Para que era o dinheiro? O homem obeso olhou-o espantado, a respiração era audível, o suor começava a brilhar-lhe no rosto. — Você me deixa encurralado, mein Herr, mas não cederei. Chame a isso coragem de uma insignificante ovelha que sobreviveu. Leio os jornais todos os dias. Em três línguas. Há seis meses um homem foi morto. Sua morte foi notícia de primeira página em cada um desses jornais.
Capítulo7 Eles circularam o quarteirão, saindo na Falkenstrasse. Depois viraram à direita no Limmat Quai em frente à catedral de Grossmünster A Löwenstrasse ficava do outro lado do rio, no lado oeste da cidade. O caminho mais rápido para chegar até lá era atravessar a Ponte Münster, seguir pela Bahnhofstrasse e depois pela Nüschelerstrasse. As ruas se cruzavam, de acordo com a informação de um casal que ia entrando no Drei Alpenhäuser. Marie St. Jacques estava silenciosa, segurando firmemente o volante, como se agarrara às tiras da bolsa durante toda aquela loucura no Carillon. Talvez tentasse se agarrar à sua própria sanidade mental. Bourne olhou para ela e entendeu. ... um homem foi morto. A sua morte foi notícia de primeira página em cada um desses jornais. Jason Bourne fora pago para matar e a polícia de vários países enviara fundos através da Interpol para pagar os informantes mais relutantes e poder aumentar a possibilidade de prendê-lo. Isso significava que outros homens já tinham sido mortos... Quantos estão a sua procura, mein Herr? O que são eles e o que fazem?... Eles fazem qualquer coisa — a morte de uma esposa ou de uma criança não representa nada! Não se referia à polícia. A outros. As duas torres do campanário da igreja Grossmünster se erguiam na noite escura, as luzes criavam sombras misteriosas. Jason olhou espantado para a antiga estrutura — como tantas outras coisas ele a conhecia mas sem conhecê-la. Já a vira antes e, no entanto, via-a pela primeira vez. Só conheço Chernak . . .O envelope me foi passado por ele. ...Löwenstrasse. Número 37. Sabe tão bem quanto eu. Sabia? Saberia algum dia? Atravessaram a ponte e entraram no tráfego para a cidade nova. As ruas estavam cheias, automóveis e pedestres competindo e se impondo em cada cruzamento, os sinais vermelhos e verdes trocando interminavelmente, Bourne tentou dispersar os pensamentos, pensar em nada... em tudo. Os contornos da verdade lhe haviam sido apresentados, ganhando forma enigmática, uma revelação mais assustadora do que a outra. Não tinha certeza de ser capaz — mentalmente capaz — de absorver mais alguma coisa. — Halt! Die Dame da! Die Scheinwerfer sind aus und Sie haben links signaliziert. Das ist cine Einbahnstrasse! Jason olhou em volta, procurando saber de onde vinha a voz. Uma dor profunda atravessava-lhe o estômago. Um carro de patrulha estava ao lado deles, um policial gritava pela janela aberta. De repente tudo ficou-lhe claro... claro e enraivecedor. A Dra. St. Jacques avistara o carro da polícia pelo espelho, apagara os faróis e fizera sinal para virar à esquerda. Virar à esquerda em rua de mão única
cujas setas nos cruzamentos indicavam clara mente que só era permitido seguir em frente! Virar à esquerda e jogar o carro na frente do carro da polícia constituía uma série de contravenções de trânsito: faróis apagados, e talvez até uma batida premeditada, o que faria com que fossem detidos e a mulher pudesse gritar por socorro. Bourne acendeu os faróis, inclinou-se em direção a ela, com uma mão desligou a lanterna e com a outra segurou-lhe o braço, no lugar onde segurara antes. — Eu a mato, doutora — disse ele baixinho. E depois gritou pela janela para o policial: — Desculpe-nos! Estamos um pouco perdidos! Turistas! Queremos entrar no próximo quarteirão! O policial estava a pouca distância de Marie St. Jacques, com os olhos postos no seu rosto, confundido com a falta de reação dela. A luz do sinal mudou. — Em frente, com calma. Não faça nenhuma bobagem — disse Jason. Acenou para o policial pelo vidro da janela. — Desculpe de novo! — gritou. O policial deu de ombros e virou-se para o seu companheiro, provavelmente para retomar a conversa. — Eu estava confusa — disse a moça, com a voz suave e trêmula. — O tráfego é tão intenso... Oh, Deus, você quebrou o meu braço!... Seu filho da puta! Bourne soltou-a, perturbado por sua fúria. Preferia o seu medo. — Não espera que acredite em você, espera? — Sobre o braço? — Sobre a sua confusão. — Você disse que íamos virar à esquerda logo. Eu estava apenas pensando nisso. — Da próxima vez olhe bem para os sinais. — Afastou-se dela, mas sem tirar os olhos do seu rosto. — Você é um animal — sussurrou ela fechando os olhos rapidamente e depois abrindo-os, amedrontada. O medo voltara. Chegaram à Löwenstrasse. Era uma avenida larga, onde alguns prédios baixos, de tijolos e madeira pesada, eram prensados pelos edifícios modernos, de concreto liso e vidro. O desenho dos prédios do século XIX competindo com o pragmatismo da neutralidade da arquitetura contemporânea: mas os antigos não perdiam em nada. Jason olhou para os números; estavam perto do oitenta, iam em ordem decrescente. A cada quarteirão que passava as casas antigas ficavam em mais evidência do que os altos edifícios de apartamentos. Até que a rua retrocedeu no tempo. Havia uma fileira de prédios de quatro andares, os telhados e as janelas em estruturas de madeira, passeios e calçadas de pedra que davam para portas de entrada mais afastadas, iluminadas pelas luzes das antigas carruagens. Bourne reconheceu tudo aquilo, o que não o surpreendia; mas outra coisa, que viera junto com essa memória, era bastante surpreendente. A fileira de casas lhe evocara outra imagem, uma imagem bem forte, de outra fileira. Eram apartamentos com desenho semelhante, embora bem diferentes. Batidos pelo tempo,
mais velhos, nem de longe tão próximos, bem cuidados e limpos... Mas com vidraças quebradas, degraus partidos, cercas caídas e rachadas — as pontas de metal enferrujado. Era mais longe, ficava em outra parte de... de Zurique. Sim, ficava em Zurique. Era um distrito pequeno, afastado, onde raramente iam outras pessoas que não fossem as que habitavam lá, uma parte da cidade abandonada, e não gratuitamente. — Steppdeckstrasse — pensou alto, tentando se concentrar na imagem que estava em sua mente. Podia ver uma fachada, um vermelho desbotado, tão escuro quanto o vestido de seda vermelha que a mulher ao seu lado usava. — Uma pensão... na Steppdeckstrasse. — O quê? — Marie St. Jacques estava espantada. Suas palavras assustaram-na. Ela compreendera e estava aterrorizada. — Nada. — Desviou os olhos do seu vestido vermelho e olhou pela janela. — Lá está o número 37 — disse apontando para a quinta casa da fileira. — Pare o carro. Saiu primeiro, mandando que ela se movesse para o outro lado do assento e o acompanhasse. Depois experimentou as pernas e tomou-lhe as chaves. — Você pode andar — disse ela. — Se pode andar, também pode dirigir. — Provavelmente. — Então deixe-me ir! Fiz tudo o que você queria. —E mais alguma coisa.. — Não vou contar nada, não consegue entender isso? Você é a última pessoa na face da terra que quero voltar a ver... Não quero nada com você. Não quero ser testemunha, nem ficar envolvida com a polícia, fazer declarações, nada! Não quero tomar parte nisso de que você faz parte! Estou assustada demais... Esta é a sua proteção, não percebe? Deixe-me ir, por favor. — Não posso. — Não acredita em mim? — Isso não é importante. Preciso de você. — Para quê? — Para uma coisa muito tola. Não tenho carteira de motorista. E não se pode alugar um carro sem carteira, e tenho que alugar um carro. — Você já tem este. —Só vai servir por mais uma hora talvez. Logo alguém sairá do Carillon du Lac e irá querê-lo. A descrição será dada pelo rádio para todos os carros de polícia de Zurique.
Ela olhou para ele, havia um medo mortal em seus olhos. — Não quero ir lá com você. Ouvi o que aquele homem disse no restaurante. Se eu ouvir mais alguma coisa, você me matará. — O que você ouviu faz tanto sentido para mim quanto para você. Talvez faça menos para mim. Venha. — Segurou-a pelo braço e pôs a mão livre no corrimão, para poder subir a escada sem sentir muita dor. Ela olhou-o, estava assustada e ao mesmo tempo surpresa. O nome M. Chernak estava debaixo do segundo escaninho para correspondência; havia uma campainha debaixo das letras. Ele não a apertou, mas apertou todas as outras quatro. Em poucos segundos ouviu-se uma confusão de vozes vindas dos pequenos, minúsculos alto-falantes a perguntarem em suíço quem estava Já. Mas alguém não respondeu à campainha. Apenas apertou um botão que destravava a porta. Jason abriu a porta, empurrando Marie St. Jacques na sua frente. Encostou-a na parede e esperou. Lá de cima vinham os ruídos de portas se abrindo, passos em direção à escada. —Wer ist da? — Johann? — Wo bist du denn? Silêncio. E depois palavras irritadas. Mais ruídos de passos, portas fechadas. M. Chernak ficava no segundo andar, apartamento 2C. Bourne segurou o braço da moça, capengou perto dela até a escada e começou a subir. Ela estava bem, é claro. Mas seria muito melhor se estivesse sozinho; embora nada pudesse fazer para modificar a situação, pois precisava dela. Estudara alguns mapas de estradas enquanto estivera em Port Noir. Lucerna ficava a meia hora dali, não mais, e Berna a duas e meia ou três. Podia ir para uma das duas, deixá-la em algum lugar deserto durante a viagem e depois desaparecer. Era simplesmente uma questão de tempo; tinha os recursos para comprar uma centena de contatos. Precisava apenas de um conduto para sair de Zurique. e ela era esse conduto. Ms antes de sair de Zurique precisava saber, tinha que conversar com um homem chamado... M. Chernak. O nome estava do lado direito da campainha. Afastou-se da porta, puxando a mulher com ele. — Você fala alemão? — perguntou Jason. — Não. — Não minta. — Não estou mentindo.
Bourne pensou, enquanto olhava de cima abaixo o corredor. Então: — Aperte a campainha. Se a porta abrir fique parada. Se alguém responder de dentro, diga que você tem uma mensagem — uma mensagem urgente — de um amigo do Drei Alpenhäuser. — E se ele — ou ela — disser para enfiá-la por baixo da porta? Jason olhou-a. — Muito bem! — Apenas não quero mais violência. Não quero saber mais nada ou ver mais alguma coisa. Só quero... — Sei — ele a interrompeu. — Voltar para os impostos de César e as guerras púnicas. Se ele — ou ela — disser alguma coisa parecida, pode explicar em poucas palavras que a mensagem é oral e só pode ser entregue para o homem que lhe descreveram. — E se me perguntar qual é a descrição? — disse Marie St. Jacques friamente, a análise esvaziando momentaneamente o medo. — Tem uma boa cabeça, doutora — ele disse. — Estou tentando ser precisa. Estou assustada, já lhe disse isso. O que faço? — Mande-os para o inferno, outra pessoa pode vir entregá-la. Em seguida, comece a andar. Ela foi até a porta e apertou a campainha. Lá de dentro veio um ruído estranho. Um rangido que foi ficando mais alto, mais constante. De repente parou. Uma voz grave soou por trás da madeira. — Sinto muito, não falo alemão. — Ja? — Englisch? O que é? Quem é você? — Trago uma mensagem urgente de um amigo do Drei Alpenhäuser. — Enfie-a por baixo da porta. — Não posso. Não está escrita. Tenho que transmiti-la pessoalmente ao homem que me foi descrito. — Bem, isso não será difícil — disse a voz. Ouviu-se o ruído de chave e a porta se abriu. Bourne saiu do corredor e chegou-se à porta. — Você está louco! — gritou o homem, que não tinha pernas, apenas dois cotos, enquanto se movia em uma cadeira de rodas. — Saia! Saia daqui!
— Já estou cansado de ouvir isso — disse Jason, empurrando a moça para dentro, entrando e fechando a porta. Não foi necessária qualquer pressão para convencer Marie St. Jacques a permanecer em um quarto pequeno e sem janelas enquanto conversavam. Ela estava dócil. O homem sem pernas estava em pânico, o rosto desolado e branco como vela, os cabelos cinzas despenteados, caindo desgrenhados sobre o pescoço e a testa. — O que você quer de mim? — perguntou. — Você jurou que aquela seria a nossa última transação! Não posso mais fazer outra, não posso me arriscar. Alguns mensageiros estiveram aqui. Não importa que sejam cuidadosos, nem quantos já foram eliminados. Mas estiveram aqui! Se um deles deixa um endereço no apartamento errado, sou um homem morto! — Você agiu muito bem, levando em conta os riscos que assumiu — disse Bourne pondo-se na frente da cadeira de rodas. A mente corria veloz, tentando imaginar se havia uma palavra ou frase que pudesse puxar uma corrente de informações. Então, lembrou-se do envelope. Se houve qualquer discrepância, não tem nada a ver comigo. O homem gordo do Drei Alpenhäuser. — É insignificante se comparado com a magnitude desses riscos. — Chernak balançou a cabeça, o peito estufado, os cotos dependurados da cadeira balançando-se obscenamente para a frente e para trás. — Eu estava muito satisfeito antes de você aparecer na minha vida, mein Herr, porque eu era insignificante. Um velho soldado que conseguiu chegar até Zurique — estourado, um aleijado, sem valia, exceto por algumas informações reservadas pelas quais velhos camaradas pagavam miseravelmente para eliminá-las. Era uma vida decente, não muito, mas o suficiente. Até que você me descobriu... — Estou comovido — interrompeu Jason. — Vamos falar sobre o envelope — o envelope que você passou para o nosso amigo do Drei Alpenhäuser. Quem lhe deu? — Um mensageiro. Quem mais? — De onde veio? — Como eu saberia? Veio dentro de uma caixa, como os outros. Abri a caixa e passei-o adiante. Foi você quem pediu que fosse assim. Disse que não podia mais vir aqui. — Mas você o abriu. — Falou sério, fazendo uma declaração. — Nunca! — Se eu lhe disser que estava faltando dinheiro? — Então foi porque não lhe foi pago. Não estava no envelope! — O homem sem pernas levantou a voz. — De qualquer forma, não acredito em você. Se fosse assim, você não teria aceito o trabalho. Mas você o aceitou, aceitou aquele trabalho. E por que está aqui agora? Porque preciso saber. Porque estou ficando louco. Vejo coisas e ouço coisas que não entendo.
Sou bem um perfeito e completo... vegetal! Ajude-me! Bourne se afastou da cadeira de rodas. Caminhou até uma estante onde estavam várias fotografias em cima de uma prateleira, encostadas à parede. Elas explicavam bem o homem que estava atrás dele. Grupos de soldados alemães, alguns com cães pastores, posando do lado de fora das barracas ou próximo às cercas... e em frente a uma alta cerca de arame farpado aparecia parte de uma palavra. DACH... Dachau. O homem atrás dele! Estava se mexendo! Jason virou-se. O homem sem pernas enfiara a mão dentro de uma bolsa de lona amarrada à cadeira, os olhos em fogo, o rosto em fúria, contorcido. A mão saiu devagar com um revólver de cano curto. E antes que Bourne pudesse puxar a sua arma, Chernak atirou. Os tiros foram rápidos. A dor lancinante, como um gelo, tomou seu ombro esquerdo, depois a cabeça — oh, Deus! Jogou-se para a direita, rolando sobre o tapete e jogando contra o aleijado uma luminária de chão, pesada. Depois rolou de novo até ficar atrás da cadeira, mas distante. Inclinou-se e investiu com o ombro direito contra as costas de Chernak, jogando o homem sem penas para fora da sua cadeira, enquanto procurava a arma no bolso. — Eles vão pagar pelo seu cadáver! — gritou o homem deformado contorcendo-se no chão e tentando firmar o corpo aleijado para poder levantar a arma e fazer pontaria. — Você não vai me pôr num caixão. Eu sim o verei lá dentro! Carlos vai me pagar muito bem! Por Cristo, ele vai me pagar! Jason virou-se para a esquerda e atirou. A cabeça de Chernak foi jogada para trás, da garganta irrompia o sangue. Estava morto. Um grito veio da porta do quarto, se avolumou, ficou mais alto, intenso, depois grave e se alongando, como um lamento, medo e revolta, tudo combinado em um mesmo acorde. Um grito de mulher... É claro, era uma mulher! A sua refém, o seu passe para sair de Zurique! Oh, Jesus, ele não conseguia enxergar bem! Suas têmporas estavam em agonia! Mas logo pôde ver de novo, recusando-se a dar atenção à dor. Conseguiu enxergar um banheiro, a porta aberta, toalhas, uma pia e um armário com espelho. Precipitou-se para lá, puxou o espelho com tanta força que partiu as dobradiças e o espelho foi estatelar-se no chão. Prateleiras. Rolos de gaze e esparadrapo e... Era tudo o que ele podia agarrar. Tinha que sair... Tiros, tiros sempre davam alarme. Tinha que sair, pegar sua refém e sair dali! O quarto, o quarto. Onde ficava? Aquele grito, o lamento... Tinha que seguir o grito! Aproximou-se da porta e abriu-a com um pontapé. A mulher... Sua refém — como era mesmo o seu nome? — estava encostada na parede, as lágrimas lhe corriam pelo rosto, os lábios abertos. Correu até ela, agarrou-a pelo pulso e puxou-a para fora. — Meu Deus, você o matou! — gritou ela. — Um velho sem... — Cale-se! — Empurrou-a em direção à porta, abriu-a e a empurrou pata fora, para o corredor. Podia ver alguns vultos escondidos em alguns lugares, perto das grades do corrimão, dentro das salas. Em seguida, eles começaram a correr e desapareceram. Pôde ouvir batidas de porta, gente gritando.
Então, segurou o braço da mulher com a mão esquerda; a pressão causava- lhe dor no ombro. Impeliu-a em direção à escada e forçou-a a descê-la com ele, segurando-se nela com a mão esquerda, a arma na mão direita. Logo chegaram ao saguão, onde ficava a pesada porta de entrada. — Abra-a! — ordenou-lhe; e ela o fez imediatamente. Passaram pela fileira das caixas de correspondência até chegar à porta que dava para a rua. Largou-a um pouco, abriu a porta e espiou para fora, para ver se ouvia alguma sirene. Mas não ouviu nada. — Venha! — disse, enquanto a empurrava para os degraus de pedra e corria para a calçada. Procurou no bolso as chaves do carro. — Entre! Já dentro do carro, desembrulhou a gaze e comprimiu-a contra a cabeça, limpando o filete de sangue que escorria. Das profundezas da sua consciência vinha uma estranha sensação de alívio. O ferimento era apenas um raspão de bala; mas o fato de ter sido um ferimento na cabeça deixara-o em pânico. A bala não entrara no crânio. Não entrara. Não haveria portanto nenhum retomo à agonia de Port Noir. — Maldição, ligue o carro! Saia daqui! — Para onde? Você não disse para onde. — A mulher não gritava; ao contrário, estava calma. Estranhamente calma, e olhava para ele. Estaria mesmo olhando para ele? Estava ficando tonto de novo, perdendo a visão. — Steppdeckstrasse... Ele ouviu a palavra sendo pronunciada sem ter certeza se vinha dele. Mas podia muito bem imaginar a porta de entrada. A pintura era vermelho-escuro, a parede desbotada, os vidros, quebrados... os gradis, enferrujados. — Steppdeckstrasse — repetiu. O que estava errado? Por que o motor não começava a funcionar? Por que o carro não saía do lugar? Ela não o ouvira? Ela estava com os olhos fechados. Abriu-os. A arma! A arma que estava no seu colo! Ele a deixara no colo para desenrolar a atadura e passá-la na testa... Ela estava procurando pegá-la, pegá-la! A arma caiu ao chão, ele tentou alcançá-la, mas ela o empurrou e ele bateu com a cabeça no vidro da janela. A porta do lado abriu-se e ela saiu para a rua, começando a correr. Estava fugindo! A sua refém, o seu salvo-conduto para a liberdade estava fugindo pela Löwenstrasse. Não podia ficar no carro e também não ousava guiá-lo. O carro era uma armadilha de aço, podia marcá-lo. Colocou a arma no bolso, junto com o rolo de esparadrapo, e segurou a gaze na mão esquerda, pronto para pressioná-la contra a testa logo que o sangue escorresse. Depois saiu do carro e começou a andar mancando, tão rápido quanto podia. Devia haver uma esquina ali por perto, um táxi. Steppdeckstrasse. Marie St. Jacques continuou a correr pelo meio da avenida larga e deserta, passando por baixo dos postes de luz e fazendo sinais para os carros que passavam pela Löwenstrasse. Eles passavam correndo por ela. Ela virava-se a cada carro que aparecia e implorava atenção, levantando as mãos. Os carros aceleravam e passavam. Zurique era assim. E a Löwenstrasse à noite era muito larga, muito escura e ficava muito perto do parque deserto e do rio Sihl.
Um homem, no entanto, tomou consciência dela. Com os faróis apagados, enxergou a mulher, e disse ao seu companheiro em suíço: — Pode ser ela. Aquele tal de Chernak mora a um quarteirão daqui, mais ou menos. — Pare, deixe que ela se aproxime. Ela estava usando um vestido de seda... É ela! — Vamos averiguar antes de informar pelo rádio. Os dois saíram do cano, movendo-se discretamente pelas margens da avenida. Usavam ternos sociais comuns, de homens de negócio, tinham rostos agradáveis, mas eram sérios, pareciam homens de negócio mesmo. A mulher em pânico se aproximou. Caminharam rapidamente em sua direção, no meio da rua. O motorista chamou-a. — Was ist passiert, Fräulein? — Ajudem-me! — gritou ela — Não... não falo alemão. Nicht sprechen. Chamem a polícia. A... Polizei! O companheiro do motorista falou num tom autoritário, tentando acalmá-la — Somos da polícia — disse em inglês. — Zurich Sicherheitpolizei. Não estávamos certos, senhorita, mas a senhorita é a mulher do Carillon du Lac? — Sim! — gritou ela. — Ele não me soltava! Continuou a me bater e a me amedrontar com um revólver! Foi horrível! — Onde está ele agora? — Está ferido. Levou um tiro. Fugi do carro... Ele estava no carro quando fugi! — Apontou para o lado de baixo da Löwenstrasse. — Lá. A duas quadras, acho. No meio do quarteirão. Um cupê, um cupê cinza. Tem um revólver. — Nós também temos, senhorita — disse o motorista. — Venha conosco, acomode-se no assento traseiro do carro que ficará completamente a salvo; seremos cuidadosos. Rápido agora. Aproximaram-se do cupê cinza, encostaram, os faróis apagados. Não havia ninguém dentro. Mas havia muita gente conversando excitadamente na calçada e nos degraus do número 37. O companheiro do motorista virou-se e falou com a mulher, aterrorizada no assento de trás. — Esta é a residência de um homem chamado Chernak. Ele o mencionou? Disse que iria vê-lo? — Ele veio vê-lo e me fez vir junto! Ele o matou! Matou aquele velho aleijado! — Der Sender — schnell — disse o companheiro do motorista, enquanto puxava um microfone do painel. — Wir sind zwei Strassen von da. — O carro arrancou; a mulher agarrou-se no assento da frente.
— Mas o que estão fazendo? Um homem foi morto lá! — E precisamos encontrar o assassino — disse o motorista. — Como você disse, ele estava ferido e deve estar ainda por esta área. Este carro não é marcado e podemos descobri-lo. Vamos esperar, é claro, para nos certificarmos até que o pessoal da inspeção chegue, mas os nossos deveres são completamente diferentes. — O carro diminuiu a marcha, encostando no meio-fio, bem mais à frente do número 37 da Löwenstrasse. O homem falou ao microfone, enquanto o motorista explicava a sua posição oficial. Houve um ruído de estática no painel onde estava o microfone, depois foram ouvidas as palavras: — Wir kommen binnen zwanzig Minuten. Wartet. — Nosso superior logo estará aqui — disse. — Temos que esperá-lo. Quer falar com você. Marie St. Jacques encostou-se no banco, fechando os olhos e respirando fundo. — Oh, Deus... Quisera ter alguma coisa para beber! O motorista riu e fez um sinal com a cabeça para o companheiro, que tirou do porta-luvas uma garrafinha e entregou-lhe, sorrindo. — Não somos muito chiques, senhorita. Não temos copos nem taças, mas temos brandy. Para emergências como esta, é claro. Por favor, com os nossos cumprimentos. Ela sorriu em agradecimento e aceitou a garrafa. — Vocês são duas pessoas muito simpáticas e jamais poderão saber como lhes sou grata. Se algum dia forem ao Canadá, far-lhes-ei a melhor comida francesa da província de Ontário. — Obrigado, senhorita — disse o motorista. Bourne examinou a bandagem do ombro, tentando enxergar no reflexo escuro do espelho sujo e riscado à luz fraca da sala imunda. Estivera certo a respeito da Steppdeckstrasse. Aquela imagem da fachada vermelho-desbotada era precisa, até o detalhe das vidraças quebradas e dos gradis enferrujados. Nenhuma pergunta lhe fora feita quando alugara o quarto, apesar de o seu ferimento estar bem visível. No entanto, fora-lhe feita uma declaração pelo administrador da pensão, depois de Bourne ter-lhe pago. — Se for alguma coisa de maior gravidade, pode-se encontrar um médico que mantenha a boca fechada. — Aviso-o se precisar. O ferimento não era assim tão grave. O esparadrapo agüentaria até que pudesse encontrar um médico que não praticasse a profissão assim tão sub-repticiamente, ainda mais na Steppdeckstrasse. Se uma situação de tensão resultar em ferimento, esteja consciente de que este dano pode ser tanto psicológico quanto físico. Você pode ter uma revolta verdadeira contra a dor e o ferimento do corpo. Não se arrisque e, se houver tempo, dê-se uma oportunidade de se ajustar. Não entre em pânico...
Mas ele entrara em pânico, algumas partes do seu corpo estavam geladas. Embora a bala tivesse penetrado no seu ombro e estivesse com um ferimento na testa, ferimentos reais e dolorosos, nenhum deles era tão sério que pudesse imobilizá-lo. Não podia se mexer tão rápido quanto desejava, nem com a força que sabia possuir, mas ainda assim podia se locomover. Algumas mensagens já tinham sido enviadas e recebidas, do cérebro para os músculos e as pernas. Ele ainda podia funcionar. E podia funcionar melhor ainda depois de um repouso. Agora não tinha mais um salvo-conduto, tinha que estar de pé bem antes do amanhecer e descobrir uma nova forma de sair de Zurique. O gerente da pensão, lá embaixo, parecia gostar de dinheiro. Ele o acordaria, aquele desleixado senhorio, dali a uma hora, mais ou menos. Deitou-se no colchão mole e cheio de reentrâncias e encostou a cabeça no travesseiro, olhando fixamente a lâmpada nua pendurada no teto. Tentou não ouvir nenhuma palavra e descansar. Mas elas vinham, apareciam na sua mente, enchiam suas ore lhas como batidas de timbales. Um homem foi morto... Mas você aceitou aquele trabalho... Virou-se para a parede, fechando os olhos e tentando bloquear aquelas palavras. Então apareceram outras palavras e ele sentou-se. O suor começava a escorrer-lhe da testa. Eles vão pagar pelo seu cadáver!... Carlos vai me pagar muito bem! Por Cristo, ele vai me pagar! Carlos. Um grande sedã parou em frente ao cupê e estacionou no meio-fio. Atrás deles, o número 37 da Löwenstrasse, os carros de patrulha tinham chegado quinze minutos antes; a ambulância, havia menos de cinco. Grupos de pessoas dos prédios em volta faziam fila na calçada próximo à escada; mas agora a excitação era muda. Uma morte ocorrera, um homem fora morto à noite, naquele lado quieto da Löwenstrasse. Havia grande excitação; afinal, o que acontecera no Número 37 poderia acontecer no 32, no 40 ou no 53. O mundo estava ficando maluco, e Zurique junto. — Nosso superior chegou, senhorita. Podemos levá-la até ele, por favor? — O motorista saiu do carro e abriu a porta para Marie St. Jacques. — Certamente. — Pisou na calçada e sentiu a mão do homem em seu braço. Era muito mais gentil do que a força grosseira com que aquele animal a agarrava, encostando o cano da pistola em seu rosto. Estremeceu à simples lembrança. Aproximaram-se da parte traseira do sedã e ela entrou. Sentouse atrás; olhou para o homem que estava ao seu lado e ficou paralisada de repente, incapaz de respirar. O homem sentado ao seu lado evocava-lhe uma memória de terror. A luz que vinha da rua refletia-se nos seus óculos de armação metálica e dourada. — Você!... Você estava no hotel! Era um deles!
O homem balançou a cabeça cansado, sua fadiga era bem aparente. — Certo. Somos um grupo especial da polícia de Zurique. E antes de conversarmos mais, quero deixar-lhe bem claro que em nenhum momento, durante todos aqueles acontecimentos do Carillon du Lac, você esteve em perigo de ser ferida por nós. Somos atiradores muito treinados, nenhum daqueles tiros poderia ter-lhe atingido. Muitos nem foram dados porque você estava muito próxima do homem que estávamos procurando. O seu estado de choque melhorou, a autoridade do homem dava-lhe segurança. — Obrigada por tudo isso. — É um talento menor — respondeu ele. — Agora, como já sei, você o viu por último no assento da frente do carro que está ali. — Sim. Estava ferido. — Era muito grave? — O bastante para perder a consciência. Segurava uma atadura na cabeça e o sangue corria-lhe do ombro — quero dizer, pelo pano do casaco. Quem é ele? — Os nomes não são importantes, ele usa muitos. Mas como testemunhou, é um assassino. Um assassino brutal. E tem que ser encontrado antes que volte a matar de novo. Já estiamos à sua procura há alguns anos. Muitos policiais, de muitos paises. E agora temos uma oportunidade que ninguém antes teve: sabemos que ele está em Zurique e está ferido. Claro que não ficará por aqui, mas também não pode ir muito longe. Falou de como ia sair da cidade? — Ia alugar um carro. Em meu nome, creio. Não tem carteira de motorista. — Estava mentindo. Viaja com muitos documentos falsos. Você era uma refém que ia ser sacrificada. Agora, desde o início, conte-me tudo o que ele lhe disse. Onde foram, com quem ele se encontrou, tudo o que se lembrar. — Há um restaurante, o Drei Alpenhäuser, onde havia um imenso homem, muito gordo, que estava morrendo de medo... — Marie St. Jacques contou tudo que pôde se lembrar. De vez em quando o policial interrompia, fazia perguntas sobre o que ela dissera, sobre uma frase, uma reação ou. uma decisão súbita do assassino. Constantemente ele tirava os óculos de armação dourada, limpava-os com um ar ausente, enquanto segurava com força a armação, como se aquela pressão controlasse a sua irritação. O interrogatório durou quase vinte e cinco minutos. Depois o policial tomou uma decisão e deu uma ordem ao motorista. — Drei Alpenhäuser. Schnell! — E virou-se para Marie St. Jacques. — Vamos testar aquele homem diante do que ele disse. A sua incoerência foi bastante intencional; ele sabe muito mais do que disse à mesa. — Incoerência... — Ela disse a palavra devagar, lembrando-se do próprio uso que fizera dela. — Steppdeck... Steppdeckstrasse. Vidraças quebradas, quartos... — O quê?
— Uma pensão na Steppdeckstrasse. Foi isso o que ele disse. Tudo aconteceu muito rápido, mas ele disse isto. E logo antes de eu ter fugido do carro, repetiu esta palavra. Steppdeckstrasse. E O motorista falou. — Ich kenne diese Strasse. Früher gab es Textilfabriken da. — Não entendo — disse Marie St. Jacques. — É uma parte abandonada da cidade sobre a qual não dispomos de muitas referências — respondeu o policial. — São oficinas de velhas fábricas têxteis. Um refúgio para os menos afortunados... e outros. Los! — ordenou. E puseram-se a caminho
Capítulo8 Um ruído! Um ruído do lado de fora do quarto. Parecia um estalido, uma nota aguda; um som penetrante, que depois foi diminuindo, ficando distante. Bourne abriu os olhos. A escada! A escada daquele corredor imundo do lado de fora do quarto! Alguém começara a subir os degraus e parara, tomando consciência do barulho que seu peso fazia sobre a madeira rachada e empenada. Um hóspede da pensão da Steppdeckstrasse não teria tais cuidados. Silêncio. Craque. Mais próximo agora. Quem quer que fosse, aceitara o risco. O tempo talvez fosse mais urgente do que o risco, e a velocidade lhe dava cobertura. Jason rolou para fora da cama, agarrou a arma que estava perto da sua cabeça e se jogou contra a parede perto da porta. Curvou-se e ficou ouvindo os passos — era um homem — do homem correndo, não mais preocupado com o barulho que fazia, querendo apenas chegar ao seu destino. Bourne não tinha dúvida alguma do que se tratava: tinha certeza. A porta se abriu repentinamente. Empurrou-a de volta, depois jogou todo o seu peso contra a madeira, prendendo o intruso no batente da porta, enquanto lhe esmurrava o estômago, o peito e o braço, preso entre o vão da porta e a parede. Depois, puxou a porta de volta, levantou a perna e enfiou o dedo do pé direito na garganta do homem, que caíra ao chão. Então abaixou-se e segurou com a mão esquerda a cabeleira loura, puxando o corpo para dentro do quarto. A mão do homem soltou-se, mole e lassa, a arma desprendeu-se e caiu. Era um revólver de cano longo com um silenciador. Jason fechou a porta e ficou em silêncio, tentando ouvir mais algum barulho. Nada. Olhou para o homem, que estava desacordado Seria ladrão? Assassino? O que seria? Seria um policial? Ou o administrador da pensão, que decidira ignorar o código da Steppdeckstrasse, resolvera ganhar o prêmio que estava sendo oferecido por sua cabeça? Bourne virou o corpo do intruso e tirou-lhe a carteira. Sua segunda natureza fez com que retirasse o dinheiro da carteira, mesmo sabendo que era ridículo fazer tal coisa, pois tinha consigo uma pequena fortuna. Examinou os vários cartões, a carteira de motorista e sorriu. Mas o sorriso desapareceu imediatamente. Não havia nada engraçado: os nomes que estavam nos cartões eram todos diferentes assim como o nome que constava na carteira. Portanto, não era um policial. Era um profissional contratado para matar um homem ferido na Steppdeckstrasse. Alguém o pagara. Quem? Quem poderia saber que ele estava lá? A mulher? Teria ele mencionado a Steppdeckstrasse quando vira aquela fileira de casas, à procura do número 37? Não, não fora ela. Ele possivelmente dissera alguma coisa, mas ela não teria entendido nada. E se tivesse, não seria um profissional que apareceria; ao contrário, os arredores da pensão estariam cercados pela polícia. A imagem de um homem gordo transpirando sobre a mesa lhe veio à cabeça. Aquele mesmo homem, enquanto enxugava o suor dos lábios grossos, falara sobre a coragem de uma insignificante ovelha — quem sobrevivera? Seria isso um exemplo da sua técnica de sobrevivência? Será que sabia da
Steppdeckstrasse? Conhecia os hábitos do seu freguês, cuja visão o aterrorizava? Será que viera até esta casa imunda e deixara um envelope? Jason pôs a mão na testa e fechou os olhos. Por que não posso me lembrar? Quando esta névoa desaparecerá? Será que desaparecerá? Não se martirize... Bourne abriu os olhos e fixou-os no homem louro. E quase imediatamente começou a gargalhar. Acabara de ser apresentado ao seu novo visto de saída de Zurique e, em vez de reconhecê-lo logo, perdia tempo e se atormentava. Pôs a carteira no bolso, enfiando-a com força por trás da carteira do Marquês de Chamford, pegou a arma e colocou-a por dentro do cinto, depois, levou o homem inconsciente para cima da cama. Um minuto depois o homem já estava amarrado ao colchão e amordaçado com um pedaço de lençol. Ficaria assim, onde estava, por algumas horas. E dali a algumas horas Jason estaria fora de Zurique, por cortesia do suado gordo. Dormira com as roupas do corpo. Não tinha nada para levar senão o sobretudo. Vestiu-o e testou a perna; um pouco tarde, pensou. No calor daqueles minutos anteriores, esquecera-se da dor. Mas ela persistia, e ele continuava a mancar; mas nada disso o imobilizava. Já o ombro não estava em boa forma, Uma paralisia lenta começava a se espalhar — tinha que procurar um médico. A cabeça... Não queria pensar na cabeça! No corredor pouco iluminado, depois de fechar a porta, ficou imóvel, ouvindo. De cima vinha o barulho de uma risada. Encostou as costas contra a parede, de arma em punho. A risada desapareceu; era uma gargalhada de bêbado — incoerente e sem propósito. Em seguida, foi mancando até a escada, segurou-se no corrimão e começou a descer. Estava no terceiro andar de um prédio de quatro andares. Insistira que queria um quarto bem no alto, logo que andar alto lhe aparecem na mente instintivamente. Por que lhe aparecera esta frase? O que significava, nesta situação, alugar um quarto imundo por uma noite? Um santuário? Chega! Segundo andar. Cada passo dado fora acompanhado dos rangidos da escada de madeira. Se o administrador saísse agora do seu apartamento no andar térreo para satisfazer a curiosidade de saber quem estava descendo — bem, seria a ultima coisa que faria, pois ele o deixaria desacordado por muitas horas. Um barulhos Um rangido. Como um roçar de fazenda macia contra a madeira áspera. Fazenda contra madeira. Alguém estava escondido no pequeno prolongamento do corredor, entre o fim de um lance de escada e o começo de outro. Sem quebrar o ritmo do andar, olhou para o escuro. Havia três portas em reentrância na parede da direita, como no andar de cima. Em uma delas... Deu um passo, aproximando-se. Não era na primeira, estava fechada. E também não seria na última. A parede que cercava o corredor formava um cul-de-sac, não havia nenhum quarto onde pudesse
entrar. Devia estar na segunda porta. Sim, na segunda porta. Um homem podia sair de lá de repente, jogando-se para a direita ou para a esquerda, ou podia até mesmo atirar-se de ombros contra uma vítima insuspeita, jogando-a por sobre o corrimão lá para baixo. Bourne virou-se para a direita, passando o revólver para a mão esquerda. Tirou do cinto a arma com silenciador. Já bem próximo da porta, levantou a pistola automática em direção à escuridão, enquanto girava encostado à parede. — Was ist?... — Um braço apareceu. Jason atirou uma vez, dilacerando a mão do homem. — Ahh! — O homem cambaleou, em choque, incapaz de apontar a arma. Bourne atirou outra vez, acertando-o na coxa. Ele rolou no chão, contorcendo-se e se encolhendo de dor. Jason deu um passo à frente e ajoelhou-se, o joelho em cima do tórax do homem, a arma apontada para a sua cabeça. Depois sussurrou. — Há mais alguém lá embaixo? — Nein! — disse o homem, estremecendo de dor. — Zwei... somos dois apenas. Fomos pagos. — Por quem? — Você sabe. — Um homem chamado Carlos? — Não vou responder a essa pergunta. Mate-me primeiro. — Como sabia que eu estava aqui? — Chernak. — Ele está morto. — Agora. Não ontem. Chegou uma mensagem de Zurique: que você estava vivo. Nós procuramos todos... Em todas as partes. Chernak sabia. Bourne arriscou. — Você está mentindo! — E enfiou o revólver na garganta do homem. — Nunca contei a Chernak que estava na Steppdeckstrasse. O homem estremeceu de novo, o pescoço contorcido. — Talvez nem precisasse. Aquele porco nazista tinha informantes em todos os cantos. Por que seria diferente com a Steppdeckstrasse? Ele podia descrevê-lo. Quem mais poderia? — Um homem no Drei Alpenhäuser. — Nunca ouvimos falar de tal homem. — Quem é “nós”?
O homem engoliu, os lábios se esgarçaram em dor. — Homens de negócio... apenas negócio. — E o serviço de vocês é matar. — Como se você pudesse ter algo contra. Mas, nein. Você devia ser aprisionado, não morto. — Onde? — Seríamos avisados pelo rádio, no carro. — Terrível — disse Jason positivamente. — Vocês não são apenas de segunda categoria, mas também acomodados. Onde está o carro? — Lá fora. — Dê-me as chaves. — O rádio podia identificar. O homem tentou resistir, empurrou o joelho de Bourne e começou a rolar em direção à parede. — Nein! — Você não tem escolha. — Jason bateu com o cabo da pistola em seu crânio, O suíço desmaiou. Bourne encontrou as chaves — havia três em um chaveiro de couro — E pôs o revólver dele em seu bolso. Era uma arma pequena, muito menor do que a que tinha em mãos, e sem silenciador, o que dava crédito ao que o homem dissera, que ele devia ser pego sem ser morto, O homem louro que ficara lá em cima fora o ponto de avanço e necessitava da proteção de uma arma com silenciador, se por acaso viesse a precisar usá-la. Mas qualquer tiro que pudesse ser ouvido trairia complicações. Este suíço do segundo andar era um apoio e devia usar a arma apenas como ameaça. Mas então por que estava no segundo andar? Por que não seguira o colega e subira a escada. Alguma coisa parecia estranha, mas não havia tempo para pensar em táticas Havia um carro do lado de fora e ele estava com as chaves dele. Nada podia ser desprezado. A terceira arma. Levantou-se com esforço, sentindo dores, e achou o revólver que tomara do francês no elevador do Gemeinschaft Bank. Levantou a perna esquerda da calça e colocou a arma dentro do elástico da meia. Lá estaria segura. Depois fez uma pausa para respirar e readquirir o controle e foi em direção à escada, sem levar em consideração a dor no ombro esquerdo, que estava mais forte e a paralisia, que se espalhava agora mais rapidamente. O comando do cérebro para os membros era menos claro. Pedia a Deus que ainda pudesse dirigir. No quinto degrau parou de repente, pondo-se à escuta, tentando captar sons de tocaia, como os que ouvira antes. Nada. O homem ferido podia ter sido taticamente deficiente, mas dissera a verdade.
Jason apressou-se em descer os degraus. Sairia de Zurique — de alguma forma — e encontraria um médico em algum lugar. Avistou o carro facilmente. Era diferente dos outros automóveis sujos e velhos que estavam na rua. Um sedã comprido e muito bem-cuidado. Pôde distinguir a saliência da base de uma antena que saía do teto. Andou até o carro, passou a mão pelo painel e pelo pára-lama esquerdo — não havia nenhum alarme instalado. Abriu a porta, ainda prendendo a respiração — podia estar errado quanto ao alarme. Mas não estava. Depois entrou, sentou-se em uma posição bem cômoda por trás do volante e ficou agradecido pelo fato de o carro ser automático. A arma com silenciador, que colocara na cintura, o atrapalhava um pouco. Colocou-a no assento ao lado, depois tentou, com a mesma chave com que abrira a porta, dar partida no motor. Mas não era a chave certa. Tentou a outra, que também não entrou no contato. Devia ser a chave do tanque, pensou. A chave certa devia ser a terceira. Seria mesmo? Continuou tentando. Nenhuma cabia na abertura. A chave não entrava. Tentou novamente a segunda — não entrava. Depois a primeira. Nada. Nenhuma das chaves cabia na ignição. Ou será que o comando do cérebro para os membros e para os dedos estava truncado? Talvez a coordenação estivesse ruim. Desgraça! Tentar de novo! Uma luz potente acendeu-se à sua esquerda, queimando-lhe os olhos, cegando-o. Agarrou a arma, mas um segundo facho de luz surgiu da direita, a porta do carro foi aberta de repente e uma luz forte iluminou a sua mão, enquanto outra mão tirava a arma do assento. — Saia! — A ordem veio da sua esquerda. O cano de um revólver foi encostado ao seu pescoço. Saiu; os olhos tinham mil pontos de cintilação, faiscavam. Logo que a visão lhe foi voltando lentamente, a primeira coisa que viu foi o contorno de dois círculos. Dois círculos dourados: os óculos do assassino que o caçara durante toda a noite! O homem falou: — Dizem as leis da física que a cada ação corresponde uma reação oposta e equivalente. O comportamento de certos homens em determinadas condições é igualmente previsível. Para um homem como você, alguém tem que montar um esquema de desafio, cada combatente tem que saber o que fazer quando cai. E se não cair, então você é preso. Se cair, você é desviado, embalado em uma falsa esperança de estar progredindo, escapando. — É uma alta escala de riscos — disse Jason. — Para os que estão no desafio. — Foram bem pagos. E tem mais uma coisa — sem garantia, é claro, mas ainda assim com uma garantia. O enigmático Bourne. não mata indiscriminadamente. Não por compaixão, naturalmente, mas por uma razão muito mais prática. Os homens nunca se esquecem quando são poupados. Assim, ele se infiltra nos exércitos dos outros. Refinadas táticas de guerrilha aplicadas a um campo de batalha muito sofisticado. Dou-lhe os parabéns. — Você é um asno! — Foi tudo o que Jason pôde pensar em dizer. — Mas os seus dois homens
estão vivos, se é isso que deseja saber. Uma outra figura apareceu, vinda da escuridão do edifício, ao lado de um homem baixo e atarracado. Era a mulher! Era Marie St. Jacques. — É ele — disse ela baixinho, o olhar firme. — Oh, meu Deus... — Bourne balançou a cabeça em descrença. — Como conseguiu isso, doutora? — ele lhe perguntou, levantando a voz. — Alguém estava vigiando o meu quarto no Carillon? A cena do elevador foi marcada para o momento certo? Você é bastante convincente. E eu que pensei que você estava querendo apenas achar um carro de polícia!... — Da forma como aconteceu nem foi preciso — ela respondeu. — Eles são da policia. Jason olhou para o assassino à sua frente; o homem ajeitava os óculos dourados. — Dou-lhe os parabéns! — disse ele. — Um talento menor — respondeu o assassino. — As condições foram propícias, foi você mesmo quem as criou. — O que vai acontecer agora? O homem lá em cima disse que eu devia ser preso sem ser morto. — Você se esqueceu. Ele sabia o que devia dizer. Foi tudo planejado. — O suíço fez uma pausa. — Então é assim que você é. Muitos de nós ficamos imaginando como seria, durante estes últimos dois ou três anos. Quanta especulação foi feita! Quantas contradições! Ele é alto, sabe? Não, é de altura média. É louro, não, tem cabelos bem escuros. Olhos azuis claros, é claro; não, é quase certo que são castanhos. Seus traços são finos; não, são bem comuns até, é impossível distingui-lo em uma multidão. Mas nada era comum; tudo era extraordinário quando se falava de você. Os seus traços mais pronunciados foram suavizados, a sua característica facial foi abrandada. Mude a cor dos seus cabelos, e seu rosto ficará mudado... Alguns tipos de lentes de contato são criadas para mudar apenas a cor dos olhos... Use óculos e já é outro homem. Para vistos, passaporte... muito próprio para mudanças. Era esse o perfil. Tudo se encaixava. Não tinha todas as respostas, mas já tinha mais do que a verdade que gostaria de ouvir. — Gostaria de acabar logo com tudo isso — disse Marie St. Jacques, dando um passo à frente. — Assinarei tudo o que for preciso — no escritório de vocês, é claro. Assim suponho. Mas depois tenho que voltar ao hotel. Nem preciso lhes contar o que passei esta noite. O suíço lançou um olhar para ela por trás daqueles óculos de armação dourada. O homem atarracado, que a trouxera lá do escuro, segurou-lhe o braço. Ela olhou assustada para os dois, e depois para a mão que a segurava.. E depois olhou para Bourne. Sua respiração parou por um momento quando percebeu o que estava acontecendo. Uma terrível constatação! Arregalou os olhos.
— Deixe-a ir — disse Jason. — Ela está a caminho do Canadá. Vocês nunca mais a verão. — Seja prático, Bourne. Ela nos viu. Nós somos profissionais; existem as regras. — O homem agitou o revólver debaixo do rosto de Jason, depois encostou o cano na sua garganta. Correu a mão esquerda pela roupa da vítima, encontrou o revólver no seu bolso e o tirou. — Já pensei — disse ele, e virou-se para o homem atarracado. — Leve-a no outro carro. Para o Limmat. Bourne gelou. Marie St. Jacques devia ser morta, o corpo jogado às águas do Rio Limmat. — Espere um pouco! — Jason deu um passo à frente. O revólver foi empurrado contra o seu pescoço, forçando-o a retroceder até encostar no carro. — Você está sendo estúpido! Ela trabalha para o governo canadense. Eles vão dar busca por toda Zurique. — E por que se preocupa? Você não estará mais aqui. — Porque é uma perda! — gritou Bourne. — Somos profissionais, lembra-se? — Você me chateia. — O assassino virou-se para o homem atarracado. — Geh! Schnell. Guisan Quai! — Berre o quanto puder! — gritou Jason. — Comece a gritar! Não pare! Não pare! Ela tentou, mas o grito logo foi cortado por uma pancada na garganta, que lhe paralisou as cordas vocais. Ela caiu. O seu futuro carrasco levou-a para um pequeno sedã preto, indescritível. — Que estúpido! — disse o assassino, olhando para Bourne através das lentes com armação dourada. — Você apenas apressou o inevitável. E por outro lado, agora vai ser mais simples. Posso deixar um homem para atender os nossos feridos. É tudo tão militar, não é? É realmente um campo de batalha. — Virou-se para o homem que estava com a lanterna — Dê o sinal para Johann entrar. Voltaremos para buscá-los A lanterna foi acendida e apagada duas vezes. Um quarto homem, o que abrira a porta do pequeno sedã para a mulher condenada, fez um sinal com a cabeça. Marie St. Jacques foi jogada no assento de trás do carro e a porta, fechada. O homem que se chamava Johann começou a subir os degraus e fez um sinal de cabeça para o executor. Jason sentiu náuseas quando o motor do pequeno sedã acelerou e o carro arrancou para a frente, saindo do meio-fio e descendo a Steppdeckstrasse. O pára-choque cromado do carro, todo retorcido, desapareceu no escuro ao longe. Dentro daquele carro estava uma mulher a quem ele nunca vira antes em toda a sua vida... Até três horas atrás. E ele a levara à morte. — Não lhe faltam soldados — disse ele. — Se existisse uma centena de homens em quem eu pudesse acreditar, eu os pagaria generosamente. Como dizem, a reputação sempre vem antes. — Suponhamos que eu lhe pague. Você estava no banco. Sabe que tenho fundos.
— Provavelmente milhões, mas eu não tocaria em uma nota sequer. — Por quê? Está com medo? — É mais certo. A riqueza é relativa ao tempo em que uma pessoa tem para gozá-la. Eu não teria nem cinco minutos. — O assassino virou-se para o subordinado. — Ponha-o lá dentro. Amarre-o, Quero fotografias dele nu — antes e depois de nos deixar. Vocês vão encontrar uma grande quantidade de dinheiro junto com ele; deixem onde está. Eu dirijo. — E olhou novamente para Bourne. — Carlos vai ganhar a primeira cópia. E não tenho dúvida de que poderei vender as outras cópias com bastante lucro no mercado livre. As revistas pagam um bom preço. — E por que Carlos iria acreditar em você? Por que alguém deve acreditar em você? Você mesmo já disse: ninguém sabe como eu sou. — Terei cobertura — disse o suíço. — O suficiente para este dia. Dois banqueiros de Zurique se adiantarão em identificá-lo como Jason Bourne. O mesmo Jason Bourne que se deparou com os padrões excessivamente rígidos mantidos pela lei suíça para a movimentação de uma conta numerada. Isso será o bastante. — Ele disse ao atirador. — Depressa! Ainda tenho que enviar uns telegramas. E dinheiro para receber. Imediatamente um braço foi passado em volta do outro de Jason, apertando-lhe a garganta. O cano de um revólver foi empurrado contra a sua espinha; a dor se espalhou por todo o peito, enquanto era carregado para dentro do carro. O homem que o segurava era um profissional; mesmo se não estivesse ferido seria impossível quebrar aquele grilhão. A habilidade do atirador, no entanto, não satisfazia o líder de óculos daquela caça. Entrou no carro, pondo-se na direção, e deu nova ordem. — Quebre-lhe os dedos — disse. O fecho do braço quase sufocou Jason, enquanto o cabo do revólver batia-lhe repetidamente sobre a mão — mãos. Instintivamente, Bourne pusera a mão direita sobre a esquerda, protegendo-a. Logo que o sangue começou a jorrar das costas da mão esquerda, ele mexeu os dedos, deixando que o sangue cobrisse também a mão direita. E sufocou os gritos. Quando o gancho no pescoço ficou um pouco mais solto, gritou. — Minhas mãos! Estão quebradas! — Gut! Mas não estavam. A esquerda estava bem machucada, a ponto de não poder ser, usada, mas não a direita. No escuro, movimentou os dedos. A mão estava intacta. O carro ganhou velocidade na Steppdeckstrasse, depois virou numa rua e foi em direção ao Sul. Jason caiu sobre o assento, arquejando. O atirador começou a rasgar-lhe as roupas, arrancando a camisa e procurando tirar o cinto. Em poucos segundos a parte de cima do seu corpo estaria nua. Passaporte, papéis, cartões e dinheiro seriam perdidos, todas as possibilidades de fugir de Zurique estariam sendo tiradas dele. Era agora ou nunca. Gritou.
— Minha perna! Miserável! — Jogou-se para a frente; a mão direita rapidamente no escuro por baixo da calça, até sentir o cabo da pistola automática. — Nein! — rosnou o profissional da frente. — Segure-o! Vigie-o! Ele sabia, era conhecimento instintivo. Mas era muito tarde, também. Bourne segurou a arma no chão, no escuro, enquanto o forte soldado o segurava de novo. Caiu com a pancada, o revólver estava agora na altura da cintura, apontado diretamente para o peito do atacante. Atirou duas vezes. O homem caiu para trás. Jason atirou mais uma vez, a pontaria segura: o coração fora perfurado. O homem caiu sobre o assento. — Largue-a! — exclamou Bourne, passando o revólver por cima do assento arredondado da frente e encostando o cano da arma na base do crânio do motorista. — Deixe-a cair! Com a respiração difícil, o matador deixou a arma cair. — Podemos conversar — disse, segurando firmemente o volante. — Somos profissionais. Podemos conversar. — O imenso automóvel corria, ganhando velocidade, enquanto o motorista pisava mais ainda o acelerador. — Reduza! — Qual é a sua resposta? — O carro acelerava mais. À frente estavam os faróis do tráfego intenso; eles estavam deixando o distrito de Steppdeckstrasse e entrando nas ruas mais movimentadas da cidade. — Você quer sair de Zurique, posso levá-lo. Sem mim, você não pode. Tudo que tenho a fazer é girar o volante e jogar o carro contra a calçada. Nada tenho a perder, Herr Bourne. Há policiais por todos os lados lá na frente, e creio que você não quer se encontrar com a policia. — Nós conversaremos — mentiu Jason. Tudo era uma questão de tempo, frações de segundo eram muito importante. Agora, os dois estavam em um cerco veloz, que em si mesmo já era uma armadilha. Nenhum dos dois era digno de crédito; ambos sabiam muito bem disso. Um teria que usar aquela fração extra de segundo que o outro iria perder. Eram profissionais. — Aperte os freios — disse Bourne. — Ponha a sua arma no assento ao meu lado. Jason soltou a arma, que caiu em cima da arma do assassino, o barulho do metal pesado à prova de contato. — Feito. O assassino tirou o pé do acelerador e colocou-o no freio. Fez uma pressão leve primeiro, depois em curtas estocadas, enquanto o imenso automóvel se jogava para a frente e para trás. As cutucadas no pedal começaram a ficar mais rápidas. Bourne entendeu. Fazia parte da estratégia do motorista: o equilíbrio era um fator de vida e morte O ponteiro do velocímetro girou para a esquerda: 30 quilômetros, 18 quilômetros, 9 quilômetros. Quase pararam. Era o momento exato para usar aquele meio segundo extra: o equilíbrio era um fator importante, a vida por um fio.
Jason segurou o homem pela nuca, agarrou-lhe o pescoço e sacudiu-o para fora do assento. Depois levantou a mão esquerda, que ainda sangrava, e a estendeu para a frente, lambuzando os olhos do assassino. Soltou o seu pescoço, enquanto aproximava a mão direita das armas que estavam sobre o assento. Bourne conseguiu apanhar uma das armas e empurrar a mão do assassino para fora do assento. O homem gritou, a visão toda manchada e a arma fora do alcance. Jason jogou-se contra o peito do homem, esmagando-o contra a porta e dando uma estocada com o cotovelo esquerdo em sua garganta, ao mesmo tempo em que segurava o volante com a palma da mão ensangüentada. Depois, girou o volante para a direita, jogando o carro contra uma pirâmide de lixo que estava sobre a calçada. O automóvel abriu caminho por entre o monte de entulho — era como um imenso inseto sonâmbulo rastejando sobre o lixo; a aparência escondia a violência dentro de sua casca. O homem debaixo dele deu um empurrão para cima e rolou no assento. Bourne segurou a automática na mão, os dedos tentando cravar-se no espaço do gatilho. Abaixou o pulso e atirou. O seu quase executor caiu, com um buraco vermelho-escuro na testa. Na rua, os homens correram em direção ao que parecia ser um perigoso acidente. Jason jogou o corpo morto no assento ao lado e pôs-se atrás do volante. Engrenou a ré e o sedã andou um pouco desajeitadamente, saindo do entulho, descendo a calçada e saindo para a rua. Depois baixou o vidro da janela e gritou para os que estavam querendo ajudar no salvamento e se aproximavam, — Sinto muito! Tudo está bem. Apenas uma bebedeira. O pequeno grupo de cidadãos consternados dispersou-se rapidamente, alguns faziam gestos de admoestações, outros corriam de volta para os seus acompanhantes e companheiros. Bourne respirou profundamente, tentando controlar o involuntário tremor que lhe percorria todo o corpo. Engatou a marcha e o carro foi em frente. Tentava ver as ruas de Zurique com o que ainda tinha na memória, mas era uma memória que não lhe servia para nada. Sabia vagamente onde estava — onde estivera — e, mais importante ainda, sabia com mais clareza onde ficava o Guisan Quai, ao lado do Rio Limmat. Geh! Schnell! Guisan Quai! Marie St. Jacques seria morta no Guisan Quai, seu corpo jogado no rio. Só havia uma faixa onde o Guisan e o Limmat se encontravam: ficava na boca do Lago de Zurique, no início da praia do lado Oeste. Em algum lugar, em um estacionamento vazio ou em um terreno deserto, de frente para a água, um homem baixo e atarracado estava pronto para levar a cabo uma ordem de execução; uma ordem que lhe fora dada por um homem morto. Talvez por esta hora a arma já tivesse sido acionada, ou uma faca tivesse sido cravada no alvo certo. Não havia como saber, embora Jason soubesse que precisava descobrir. Seja lá quem fosse ele, ou o que fosse... Não fugiria assim, cegamente. Seu lado mais profissional, no entanto, dizia-lhe para desviar e entrar na escura e larga passagem à sua frente. Havia dois homens mortos dentro do carro e eles eram um risco e um peso que não podiam ser tolerados. Os preciosos segundos que ia gastar para livrar-se deles poderiam evitar no entanto o perigo que representavam se um guarda de trânsito, por acaso, olhasse para dentro do carro e lá pudesse
entrever a morte. Fez a conta aproximada de vinte e dois segundos. Levou menos de um minuto para tirar do carro os seus quase executores. Antes de voltar a entrar no carro, ainda mancando, olhou-os por um momento. Estavam encolhidos de forma obscena, um junto ao outro, encostados em uma imunda parede de tijolos. No escuro. Entrou no carro, pôs-se atrás da direção e deu a ré para sair da passagem. Geh! Schneil! Guisan Quai!
Capítulo9 Jason chegou a um cruzamento. O sinal estava vermelho. Luzes. À sua esquerda, alguns quarteirões para o Leste, podia distinguir algumas luzes contra o céu noturno. Uma ponte! O rio Limmat! O sinal ficou verde e ele virou o sedã para a esquerda. Estava de volta à Bahnhofstrasse. O cais começava logo em frente. A avenida larga fazia uma curva em volta das águas: as margens do rio e a frente do lago se encontravam. Momentos depois, à sua esquerda, delineava-se o contorno de um parque, no verão, refúgio de vagabundos. Agora estava escuro, não havia turistas nem habitantes de Zurique. Passou por uma entrada de veículos. Uma pesada corrente, suspensa entre dois postes de pedra, impedia a entrada. Passou por uma segunda entrada, outra corrente proibindo o acesso ao parque. Mas esta era diferente. Tinha alguma coisa diferente, estranha. Parou o carro e olhou mais de perto, pegando a lanterna que estava no assento ao lado, a lanterna que tirara dos seus quase executores. O quê? O que era diferente? Não era a corrente. Era embaixo da corrente, na calçada branca, mantida impecável pelo pessoal da limpeza. Havia marcas de pneu no chão. Era estranho que tivesse alguma marca naquela limpeza toda. No verão, nem teriam sido notadas, mas agora sim. Era como se a imundície da tivesse viajado até ali. Bourne apagou a lanterna e deixou-a sobre o assento. A dor da mão esquerda, que fora golpeada, de repente se confundiu com a lenta agonia do ombro esquerdo e do braço. Tinha que cortar toda a dor da mente, estancar o sangramento da melhor forma possível. A camisa fora rasgada; rasgou-a mais um pouco e arrancou uma tira de pano. Depois amarrou-a em volta da mão esquerda usando os dentes para dar um nó na tira. E já estava pronto, como sempre. Pegou a arma — a arma do seu quase executor — e examinou o pente de balas: estava cheio. Esperou um pouco até que dois carros passassem, apagou os faróis e fez uma curva em forma de U, estacionando bem perto da corrente. Saiu do carro, testou a perna na calçada e andou com cuidado até o poste onde estava amarrada a corrente. Levantou o gancho do círculo de ferro que saía da pedra, abaixou a corrente, cuidando para não fazer barulho, e voltou para o carro. Depois engrenou a marcha e encostou o pé no acelerador, de leve, e retirou-o. Estava circulando por uma larga área escura, que ficara ainda mais escura depois que saíra da entrada branca e entrara por uma meia de asfalto. Mais adiante, a umas duzentas jardas de distância, ficava a linha reta e escura do paredão marítimo. Um paredão que não continha o mar, mas as correntes do Limmat, que se encontravam com as águas do Lago de Zurique. Mais ao longe, dava para divisar as luzes dos barcos, balouçando em grande esplendor. E mais além ainda estavam as luzes da Velha Cidade. As luzes enevoadas dos holofotes dos píeres escurecidos. Os olhos de Jason acolhiam a tudo, pois a distância era o seu pano de fundo; estava à procura de formas e contornos. Para a direita. A direita. Apareceu um contorno mais escuro ainda do que o paredão, uma intromissão preta sobre um preto de menor intensidade, menos preto — estava escuro, quase impossível de discernir. Mas lá estava. Cem jardas à frente... noventa... oitenta e cinco... Desligou o motor e parou o carro. Ficou sentado sem se mexer, imóvel perto da janela aberta, espiando a escuridão, tentando
enxergar melhor. O barulho do vento que vinha das águas devia ter encoberto qualquer ruído do carro. Ruídos. Um grito. Baixo, abafado na garganta... De medo. Depois, som de uma bofetada, agudo, depois outro, e outro mais. Um começo de grito, que foi abafado, engolido, ecoando no silêncio. Bourne saiu do carro em silêncio, O revólver na mão direita, a lanterna desajeitadamente presa nos dedos ensangüentados da mão esquerda, caminhou em direção àquela forma indistinta e escura. A cada passo que dava, mancando, fazia um exame silencioso daquela mancha. O que viu era igual ao que vira por último, quando o pequeno sedã desaparecera nas sombras da Steppdeckstrasse. O brilhante metal cromado do pára-choque amassado reluzia agora sob as luzes noturnas. Quatro bofetadas em sucessão rápida. Carne contra carne, socos dados freneticamente e recebidos com abafados gritos de terror. Depois dos gritos, respirações convulsas e movimentos. Movimento dentro do carro! Jason se agachou o mais que pôde e deu a volta no carro, com cuidado, indo até a janela traseira do lado direito. Depois foi se levantando devagar e de repente, usando a voz como arma de choque, gritou, e ao mesmo tempo acendeu a poderosa lanterna. — Não se mexa ou atiro! O que viu lá dentro deixou-o revoltado e furioso. Marie St. Jacques estava com as roupas todas rasgadas, retalhadas em tiras. O corpo quase nu estava preso naquelas mãos em garra, que lhe amassavam os seios e abriam as pernas. O órgão protuberante e intumescido do homem que devia ser o seu executor estava à vista, fora da calça. Infligia-lhe a última indignidade antes de executar a sentença de morte. — Saia, seu filho da puta! Uma explosão de cacos de vidro. O homem que violentava Marie St. Jacques percebeu o óbvio. Bourne não podia atirar, tinha medo de acertar a mulher; ele a fizera rolar e arrebentara com o salto do sapato a janela do carro, O vidro estilhaçou-se. Alguns fragmentos finos cobriram o rosto de Jason. Este fechou os olhos e se afastou, mancando, para evitar a chuva de cacos de vidro. A porta se abriu uma fagulha de luz acompanhou a explosão. Um calor, uma dor quente se espalhou pelo lado direito de Bourne. O tecido do seu casaco fora arrebentado; o sangue recobria o que restava de sua camisa. Apertou o gatilho. Enxergava vagamente a figura que rolara ao chão. Atirou de novo, a bala raspou a superfície do asfalto. O executor rolara e saíra de sua vista, entrando na escuridão da noite. Jason sabia que não podia ficar onde estava, seria aprontar a sua própria execução. Apressou-se puxando a perna, até a frente da porta aberta. — Fique aí dentro! — gritou para Marie St. Jacques.
A mulher começara a se mexer, em pânico. — Diabo! Fique aí dentro! Um tiro. A bala se cravou no metal da porta. Uma silhueta correu por cima do paredão. Bourne deu dois tiros e sentiu-se grato por ter ouvido um gemido na distância. Ele o ferira, mas não o matara. De qualquer forma, o executor não funcionaria tão bem quanto há alguns segundos. Luzes. Luzes fracas... quadradas. Quadrados iluminados. O que era? O que seriam? Olhou para a esquerda e viu o que antes não enxergara, Uma pequena estrutura de tijolos, uma espécie de habitação junto ao paredão. As luzes foram acesas lá dentro. Devia ser um posto de vigia; quem estava lá dentro com certeza ouvira os tiros. — Was ist los? Wer ist da? A voz vinha do vulto de um homem — um homem arcado, velho —, que estava parado na porta iluminada. Em seguida, o facho de uma luz de lanterna dançou pela escuridão. Bourne seguiu-lhe o rastro com os olhos, esperando que aquela luz pudesse iluminar o executor. E iluminou. Ele estava agachado contra o muro. Jason se levantou e atirou. Ao ouvir o tiro, o homem moveu a lanterna em sua direção. Ele era agora o alvo. Dois tiros vieram da escuridão, uma bala ricocheteou em uma tira de metal da janela. O aço abriu-lhe o pescoço. O sangue jorrou. Alguém correu. O executor corria em direção à luz. — Nein! Estava na casa. O vulto que estava na porta foi agarrado por um braço que era tanto a sua coleira quanto a sua jaula. A luz se apagou. Contra a luz das janelas, Jason podia ver o assassino empurrando o vigia para fora, usando o velho como proteção levando-o para a escuridão. Bourne ficou olhando até não enxergar mais nada. Depois levantou a arma por cima da capota do carro. Estava completamente exangue, o corpo esgotado. Ouviu-se um último tiro, seguido de um grito gutural e, mais uma vez, passos em corrida. O assassino executara a sua sentença de morte, e não fora com a mulher que fora condenada, mas com o velho. E agora corria, fugia. Bourne não podia mais correr. A dor por fim o imobilizara. A vista estava embaralhada, o instinto de sobrevivência completamente exaurido. Abaixou-se e sentou-se no chão. Mais nada, não havia mais nada. Não se importava com mais nada. O que quer que ele fosse, não importava. Não tinha importância. A mulher, a Dra. St. Jacques, rastejou para fora do carro, segurando suas roupas; cada movimento era feito em pânico. Olhou para Jason. Descrença, horror e confusão apareciam-lhe nos olhos. — Vá embora — sussurrou ele na esperança de que ela pudesse ouvi-lo. — Há um carro lá atrás, as chaves estão dentro. Saia daqui. Ele pode trazer outros homens, não sei.
— Você veio à minha procura — disse ela. Sua voz saía de um túnel de espanto. — Sala! Entre naquele carro e sala correndo daqui, doutora. E se alguém tentar lhe parar desta vez, passe por cima. Procure a polícia... policiais de verdade, com uniformes, sua tola! — Sentia a garganta ardendo, o estômago frio, gelado. Fogo e gelo. Já sentira aquilo antes. Os dois. Onde foi? — Você salvou a minha vida — continuou ela num tom baixo, as palavras flutuando no ar. — Você veio à minha procura. Você voltou por minha causa e salvou... a minha... vida. — Não transforme isso no que não é. Você é acidental, doutora. Você é apenas um reflexo, um instinto nascido de memórias perdidos, condutos elétricos que foram excitados pelo cansaço, Vê, conheço os nomes... Não me importo mais. Estou ferido... Oh, meu Deus, estou ferido. — Você estava livre. Podia ter ido embora, mas não foi. Voltou para me buscar. Ouviu-a através das ondas de dor. Viu-a e o que viu era irrazoável — tão irrazoável quanto a dor. Ela estava ajoelhada ao seu lado, tocando-lhe o rosto Pare! Não toque a minha cabeça. Deixe-me. — Por que fez isso? — Era a voz dela, não dele. Ela lhe fazia uma pergunta. Será que não podia entender? Ele não podia responder. O que estava fazendo agora? Ela rasgara um pedaço de tecido e o passava em torno do seu pescoço... E mais um pedaço agora, um pouco mais largo, um pedaço do vestido. Ela abriu o seu cinto e empurrou o pano macio em direção à pele quente do seu quadril direito. — Não foi por você. — Ele encontrou as palavras e as usou rapidamente. Queria a paz da escuridão — como já desejara antes, embora não se lembrasse quando. Sabia que poderia encontrá-la se ela o deixasse. — Aquele homem... ele me viu. Pode me identificar. Era ele. Eu queria ele. Agora, vá embora! — E pelo menos mais uma meia dúzia de homens pode identificá-lo — respondeu ela com um tom diferente na voz. — Não acredito em você. — Acredite-me! Ela agora estava de pé ao seu lado. E em seguida já não estava. Fora embora. Ela o deixara. Agora a paz poderia chegar rapidamente. Seria engolido pelas águas turbulentas e a dor seria lavada, desapareceria totalmente. Encostou-se no carro e deixou- se boiar nas correntes de sua mente. Mas ouviu um barulho. Um motor trabalhando. Mas nem se importava; ele apenas interferia na liberdade de seu mar particular. Em seguida sentiu uma pressão no braço: era uma mão. Depois outra, gentilmente puxando-o para cima. — Venha — disse a voz — ajude-me. — Deixe-me. Largue-me! — gritou. Gritara mas não fora obedecido. Estava estarrecido. Toda
ordem devia ser obedecida. Mas nem sempre; alguma coisa lhe dizia isso. O vento voltara; não era um vento de Zurique, era um vento de qualquer outro lugar, em uma noite escura. E apareceu um sinal, um holofote ofuscante. E ele foi novamente jogado para cima, batido pelas furiosas correntes. — Está tudo bem. Você está bem — disse aquela voz enlouquecedora, que não dava atenção às suas ordens. — Fique de pé. Levante-se!... Assim. Conseguiu. Agora, para dentro do carro. Vá se deitando... devagar. Assim. Ele estava caindo... caindo no poço escuro do céu. Em seguida a queda parou, tudo parou, havia silêncio e quietude. Podia ouvir a própria respiração. E passos, agora. Podia ouvir passos... Uma porta se fechando e em seguida aquele barulho, aquele motor rolando embaixo dele, na sua frente, em algum lugar... Movimento, estava se balançando em círculos. O balanço parou, ele caía novamente, depois parou de novo. Um outro corpo estava em cima do seu, uma mão o segurava, o abaixava. Seu rosto estava frio. Depois não sentiu mais nada. Estava sendo levado novamente pelas correntes, agora mais suaves. Escuridão total. Havia vozes acima dele, na distância, mas não muito longe. Algumas formas vieram lentamente à visão, iluminadas pelas lâmpadas da cabeceira. Estava em uma sala ampla, sobre uma cama, uma cama estreita. Estava coberto. Do outro lado da sala estavam duas pessoas... Um homem vestido com um sobretudo e uma mulher... Uma mulher vestida com uma saia vermelho-escura e uma blusa branca. Vermelho-escuro. Os cabelos eram... Era a Dra. St. Jacques? Era ela, em pé, perto de uma porta, conversando com um homem que segurava unta maleta de couro na mão esquerda. Falavam em francês. — Sobretudo repouso — dizia o homem. — Se não me encontrar, qualquer pessoa pode tirar os pontos. Podem ser retirados daqui a uma semana, creio. — Obrigado, doutor. — Eu que lhe agradeço. Foi bastante generosa. Agora tenho que ir. Talvez ainda tenha notícias suas, talvez não. O médico abriu a porta e saiu. Depois que se foi, a mulher abaixou-se a aferrolhou a porta, virou-se e viu que Bourne a olhava. Então caminhou devagar, com cautela, em direção à sua cama. — Pode me ouvir? — perguntou ela. Ele fez que sim com a cabeça. — Você está ferido — disse ela —, e bastante. Mas se ficar quieto não será necessário ir para um hospital. Este era um médico... é óbvio. Paguei a ele com o dinheiro que encontrei com você. Muito mais do que o usual, mas me disseram que podia confiar nele. Aliás, era idéia sua. Enquanto estávamos no carro, você repetia que tinha que encontrar um médico, um médico a quem você pudesse pagar para ficar em silêncio, sem contar nada. Não foi difícil.
— Onde estamos? — Ele podia ouvir a sua própria voz. Estava fraca, mas ainda assim podia ouvi-la. — Em uma vila chamada Lenzburg, a cerca de vinte milhas de Zurique. O médico é de Wohlen. É uma cidade que fica perto daqui. Ele o verá daqui a uma semana, se você ainda estiver aqui. — Como? — Tentou levantar-se mas faltou-lhe força. Ela tocou-lhe o ombro; era uma ordem para que ficasse deitado. — Vou lhe dizer o que aconteceu. Talvez isso responda às suas perguntas. Pelo menos assim espero, porque se não responder, não tenho certeza de poder lhe responder mais nada. — Ela ficou imóvel, olhando-o, o tom de voz controlado. — Aquele animal estava me violentando — depois disso, ele tinha ordens de me matar. Teria sido impossível sobreviver. Na Steppdeckstrasse, você tentou detêlos, e quando não conseguiu disse-me para gritar, para gritar bem alto. Era tudo o que você podia fazer, e ao ter me dado este aviso você se arriscou a ser morto naquele momento. Mais tarde, libertou-se deles de alguma forma — não sei como, sei que você saiu mortalmente ferido — e depois voltou para me procurar. — A ele — interrompeu Jason. — Queria encontrá-lo. — Você me disse isso. E só posso lhe dizer o que já disse antes. Não acredito em você. Não que você seja um mentiroso qualquer, mas porque isto não se encaixa com os fatos. Trabalho com estatísticas, senhor Washburn, ou senhor Bourne, seja lá qual for o seu nome. Respeito os dados observáveis e posso detectar qualquer incorreção. Sou treinada para isso. Dois homens entraram naquele prédio à sua procura e ouvi você dizer que os dois ainda estavam vivos. Eles também podiam identificálo. E há o dono do Drei Alpenhäuser, que também pode. Esses são os fatos, e você os conhece tão bem quanto eu. Não, você voltou para me procurar. Voltou e salvou a minha vida. — Continue — disse ele. A voz ganhava força. — O que aconteceu? — Tomei uma decisão. Foi a decisão mais difícil de toda a minha vida. Creio que uma pessoa só pode tomar uma decisão como esta se, depois que quase perdeu a vida por um ato de violência, sua vida é salva por alguém diferente. Decidi ajudá-lo. Apenas por uns tempos — por algumas horas, talvez —, mas vou ajudá-lo a sair daqui. — Por que não procurou a policia? — Quase fiz isso. E acho que nem posso lhe explicar por que não procurei a policia. Talvez tenha sido aquele estupro, não sei. Estou sendo honesta com você. Sempre me disseram que é a experiência mais horrível por que uma mulher pode passar. E agora acredito. E ouvi a raiva e... a revolta na sua própria voz quando você gritou com ele. Nunca vou me esquecer daquele momento enquanto viver, tanto quanto desejo esquecê-lo. — E a polícia? — repetiu ele. — O homem do Drei Alpenhäuser disse que a polícia estava à sua procura. Que um número de um telefone fora dado em Zurique. — Fez uma pausa. — Eu não podia entregá-lo à polícia. Não para
eles. E não depois do que você fez. — Mesmo sabendo quem sou? — perguntou ele. — Sei apenas o que ouvi. E o que ouvi não corresponde ao homem ferido que voltou para me buscar e ofereceu a sua vida pela salvação da minha. — Isso não é muito inteligente. — É assim que sou, senhor Bourne. Presumo que seja Bourne, é como ele o chamou. Muito inteligente! — Bati em você. Amedrontei-a, ameacei-a de morte. — Se eu fosse você e alguns homens estivessem tentando me matar, acho que provavelmente teria feito o mesmo — se fosse capaz. — Então você saiu de Zurique? — Não de imediato. Esperei uma meia hora mais ou menos. Tinha que me acalmar, tomar uma decisão. Sou metódica. — Começo a perceber isso. — Estava um trapo, toda suja, precisava de roupas, passar uma escova no cabelo e me pintar. Não podia continuar como estava. Então achei uma cabine de telefone perto do rio. Não tinha ninguém por peno. Desci do carro e dei um telefonema para uma pessoa no hotel ... — O francês? O belga? — interrompeu Jason. — Não. Eles estiveram na conferência de Bertinelli, se me reconheceram no palco com você, creio que deram o meu nome para a policia. Chamei uma mulher que é membro da nossa delegação. Ela detesta Bertinelli e ficara no quarto. Já trabalhamos juntas há muitos anos e somos amigas. Disse-lhe que se ouvisse qualquer coisa a meu respeito, não desse atenção, eu estava perfeitamente bem. E de qualquer forma, se alguém perguntasse por mim, devia dizer que eu estava com um amigo, que ia passar a tarde com ele — a noite, se insistissem. E que eu saíra da conferência de Bertinelli mais cedo. — Metódica — disse Bourne. — Sim. — Marie permitiu-se um sorriso. — Pedi-lhe que fosse até o meu quarto — o quarto dela fica perto do meu, e a camareira da noite sabe que somos amigas. Se ninguém estivesse lá, ela devia pôr algumas roupas e objetos de maquilagem em uma maleta e voltar para o quarto dela. Eu a chamaria em cinco minutos. — E ela aceitou tudo ó que você disse? — Já lhe disse, somos amigas. Ela sabia que eu estava bem, talvez um pouco excitada, mas bem. E sabia que eu queria que ela fizesse o que pedi. — Marie fez uma pausa novamente. — Provavelmente
pensou que eu estivesse contando a verdade. — Continue. — Chamei-a novamente, e ela já estava com as minhas coisas. — O que quer dizer que os outros dois delegados não deram o seu nome para a polícia. Senão o seu quarto estaria sendo vigiado, fechado. — Não sei se deram ou não. Mas se deram a minha amiga provavelmente deve ter sido interrogada depois. E deve ter dito simplesmente o que lhe contei. — Ela estava no Carillon, e você lá embaixo, perto do rio. Como conseguiu pegar as suas coisas? — Foi muito simples. Um tanto deselegante, mas simples. Ela falou com a camareira da noite, dizendo-lhe que eu estava tentando evitar um homem que estava no hotel e que ia me encontrar com outro. Eu precisava das minhas roupas e será que ela poderia sugerir uma forma de entregar-me a maleta? Deixar em um carro... perto do rio. Um garçom que não estava de serviço me trouxe a maleta. — Ele não ficou surpreso com a sua aparência? — Ele não teve chance de ver nada. Abri o porta-malas, fiquei no carro e pedi que colocasse a maleta atrás. Eu deixara uma nota de dez francos no pneu sobressalente. — Você não é metódica, é formidável. — Metódica basta. — Como encontrou o médico? — Aqui mesmo. O concierge, não sei como é chamado aqui na Suíça. Lembre-se, eu o amarrei da melhor forma que pude, reduzi o sangramento tanto quanto pude. Como a maioria das pessoas, tenho uma noção básica de primeiros socorros. Isso quer dizer que tive que tirar toda a sua roupa. Achei o dinheiro e então entendi o que você queria dizer quando falava em chamar um médico a quem pudesse pagar. Você tem milhares e milhares de dólares; sei fazer as conversões de libra para dólar. — Isso é apenas o começo. — O quê? — Não é nada, não. — Tentou levantar-se de novo. Era muito difícil. — Você não está com medo de mim? Com medo do que fez? — É claro que sim. Mas sei o que você fez por mim. — Você tem mais confiança do que eu teria se estivesse em tais circunstâncias.
— Então, talvez você não esteja assim tão consciente das circunstâncias. Você ainda está muito fraco e estou com a arma. Além disso, você está completamente sem roupa. — Nenhuma? — Nem mesmo cueca. Joguei tudo fora. Você ficaria muito engraçado correndo pelas ruas apenas com um cinto de plástico cheio de dinheiro na cintura. Bourne riu, embora estivesse sentindo dores, lembrando-se de La Ciotat e do Marquês de Chamford. — Metódica — disse ele. — Muito. — O que vai acontecer agora? — Anotei o nome do médico e paguei o quarto por uma semana. A partir de hoje, o concierge vai lhe trazer as refeições. Vou ficar aqui até o meio da semana. São quase seis horas, logo vai amanhecer. Depois vou voltar para o hotel para pegar o resto das minhas coisas, as passagens aéreas, e fazer o melhor possível para nada dizer sobre você. — Suponhamos que você não possa? Que seja identificada? — Nego tudo. Estava muito escuro e todo mundo em pânico... — Agora não está sendo muito metódica. Pelo menos não tão metódica quanto a polícia de Zurique. Tenho uma forma melhor. Chame sua amiga e diga-lhe para fazer as suas malas e pagar a sua conta. Pegue quanto dinheiro quiser de mim e tome o primeiro avião para o Canadá. É mais fácil negar tudo isso de longa distância. Ela olhou-o em silêncio, depois fez um sinal com a cabeça. — Isso é muito tentador. — É bem lógico. Ela continuou a olhar para ele por mais um instante, a tensão dentro dela crescia e se refletia em seus olhos. Depois virou-se e foi até a janela; e ficou olhando para os primeiros raios de sol da manhã. Ele olhou-a, sentindo a sua intensidade, conhecendo-lhe os caminhos, vendo seu rosto na luz pálida do amanhecer. Nada podia fazer. Ela devia fazer o que sentia, porque agora já estava livre do terror. Livre daquela terrível degradação que nenhum homem poderia realmente entender. Livre da morte. E ao fazer o que fizera, ela quebrara todas as regras. Ela olhou em sua direção, os olhos brilhando. — Quem é você? — Você ouviu o que disseram. — Só sei o que vi! O que senti! — Não tente justificar o que fez. Você apenas fez, só isso. Deixe estar.
Deixe estar. Oh, Deus, você podia ter-me deixado em paz. E teria havido paz. Mas agora você me devolveu parte da minha vida e tenho que lutar de novo, de novo começar a encarar tudo. De repente ela estava aos pés da cama, com a arma na mão. Apontou-a para ele e a voz tremeu. — Devo desfazer tudo, então? Devo chamar a polícia e dizer-lhes para vir e prendê-lo? — Poucas horas atrás eu teria dito vá em frente. Agora já não consigo. — Então quem é você? — Dizem que meu nome é Bourne, Jason Charles Bourne. — O que significa isso: “dizem”? Ele olhou firmemente para a arma, para o círculo escuro do cano. Nada restava senão a verdade — como ele a conhecia. — O que significa? — repetiu ele. — Você sabe quase tudo que sei, doutora. — O quê? — E você tem que ouvir também. Talvez isso a faça sentir- se melhor. Ou pior, não sei. Mas tem que ser assim, porque não sei mais o que lhe dizer. Ela abaixou a arma. — Dizer-me o quê? — A minha vida começou há cinco meses em uma pequena ilha do Mediterrâneo chamada Île de Port Noir... O sol já estava alto em cima das árvores que rodeavam a casa. Seus raios eram filtrados pelo galhos que balançavam ao vento e refletiam pelas janelas, manchando as paredes com formas irregulares de luz e sombra. Bourne recostou-se no travesseiro, exausto. Terminara de contar; não havia mais nada a dizer. Marie estava sentada do outro lado da sala, em uma poltrona de couro, as pernas cruzadas por baixo da cadeira. Os cigarros e o revólver estavam sobre uma mesa à sua esquerda.. Ela se movimentara muito pouco, o olhar fixo em seu rosto; até mesmo quando fumava, seu . olhar nunca se desviava dele. Era uma analista técnica, estava avaliando os dados, filtrando os fatos, como as árvores filtram a luz do sol. — Você continuava a repetir — disse ela com suavidade, quase soletrando as palavras seguintes — “não sei e “quisera saber...” E tinha um olhar espantado; eu estava assustada. Eu lhe perguntava, o que é?. O que você vai fazer? E você dizia de novo: “Quisera saber.” Meu Deus, o que você passou... O que está passando! — Depois de tudo o que lhe fiz, ainda pode pensar no que acontece comigo? — São duas linhas de ocorrência separadas — disse ela com ar ausente, franzindo a testa
pensativa. — Separadas... — Relacionam-se na origem, mas se desenvolvem independentemente. Bobagens da economia... E depois, na Löwenstrasse, antes de irmos para o apartamento de Chernak, pedi-lhe para não me obrigar a ir com você. Eu estava certa de que se ouvisse mais alguma coisa você me mataria. Foi quando você disse a coisa mais estranha possível: “O que você ouviu não faz mais sentido para mim do que para você. Talvez até menos...” Pensei que você fosse louco. — O que tenho é uma forma de insanidade mental. Uma pessoa mentalmente sã tem memória. Eu não tenho. — Por que não me disse que Chernak tentou matá-lo? — Não houve tempo, e achei que não fazia diferença. — Naquele momento não fazia — para você. Para mim fazia. — Por quê? — Porque tinha esperança de que você não fosse atirar em ninguém que não tivesse tentado matá-lo primeiro. — Mas ele tentou. Eu estava ferido. — Eu não sabia disso, você não me disse. — Não entendo. Marie acendeu um cigarro. — É difícil explicar mas durante todo o tempo em que você me manteve como refém, e até mesmo quando me batia e me arrastava e encostava o revólver no meu estômago ou contra a minha cabeça — Deus sabe o quanto eu estava aterrorizada! — mesmo assim pensei ter visto alguma coisa em seus olhos. Pode chamar relutância. É a melhor palavra que consigo encontrar para descrever. — Acho que serve. Qual seu ponto de referência? — Não tenho certeza. Talvez tenha ligação com alguma coisa que você disse no reservado do Drei Alpenhäuser. Aquele homem gordo estava se aproximando e você me disse para ficar encostada à parede e cobrir meu rosto com a mão. “Para o seu próprio bem”, você disse. “Ele não precisa identificar você.” — Não precisava. — “Para o seu próprio bem” não é argumento de um assassino patológico. Acho que me agarrei a isso — para manter a minha própria sanidade, talvez —, nisso e no seu olhar.
— Ainda não entendi. — O homem que usava aqueles óculos de armação dourada, e que me convenceu que era um policial, disse que você era um assassino brutal, que tinha que ser detido antes que matasse de novo. Se não fosse por Chernak eu não teria acreditado nele. E por dois motivos. A polícia não se comporta dessa forma; eles não usam armas em lugares escuros e cheios de gente. E você era um homem que estava tentando defender a sua vida — que tenta defender a sua vida. Mas não é um assassino. Bourne levantou a mão. — Perdoe-me, mas isso me parece um julgamento baseado em uma falsa gratidão. Você diz que tem respeito pelos fatos — então, olhe para eles. Repito: você ouviu bem o que eles disseram — não levando em conta o que você pensa, viu ou sentiu —, ouviu as palavras. Resumindo: envelopes cheios de dinheiro me foram passados para que eu fizesse alguns trabalhos. Acho que esses trabalhos são bem claros. E aceitei-os. Eu tinha uma conta bancária numerada no Gemeinschaft Bank no total de quase cinco milhões de dólares. Onde consegui tanto dinheiro? Onde um homem como eu — com as habilidades que tenho e que são bem claras — obtém essa soma de dinheiro? — Jason olhou para o teto. A dor voltava, aquele sentido de futilidade também. — Estes são os fatos, doutora St. Jacques. Está na hora de ir-se. Marie levantou-se da cadeira e esmagou o cigarro. Depois pegou a arma e se aproximou da cama. — Você está muito ansioso em se condenar, não está? — Respeito os fatos. — Então, se o que diz é verdade, também tenho uma obrigação, não é? Estando do lado da lei, como membro da ordem social, devo chamar a policia de Zurique e dizer-lhes que você está aqui. — Ela levantou a.arma. Bourne olhou-a. — Pensei... — Por que não? — interrompeu ela. — Você é um homem condenado que quer acabar com tudo isso, não é? Está aí deitado falando nisso. E sem, se me perdoa, qualquer autopiedade esperando apelar para a minha... como é mesmo?... falsa gratidão. Bem acho que é melhor você entender uma coisa. Não sou boba. Se pensasse por um minuto apenas que você é o que diz ser, eu não estaria aqui. E nem você. Fatos que não podem ser documentados ainda assim são fatos. Você não tem fatos, tem conclusões, suas próprias conclusões, baseadas em declarações feitas por homens que sabe que não prestam. — E tenho uma inexplicável conta bancária de cinco milhões de dólares.: Não se esqueça disso. — E como poderia? Sou um gênio das finanças. Essa conta não pode ser explicada da forma que você quer, mas há uma cláusula anexa que lhe dá um certo grau de legitimidade. E pode ser inspecionada — provavelmente violada — por qualquer diretor legal de uma corporação chamada qualquer-coisa mais Seventy One: Essa não deve ser a companhia de um assassino pago. — A corporação tem um nome, mas não está registrada. — Em uma lista de telefone. Você é ingênuo! Mas voltemos a você. Agora. Devo realmente chamar a polícia?
— Sabe a minha resposta. Não posso detê-la, mas não gostaria que fizesse isso. Marie abaixou a arma. — E não vou. Pela mesma razão pela qual você não quer que eu o faça. Não acredito no que eles dizem, não mais do que você. — Então em que acredita? — Já lhe disse; não estou certa. Tudo o que sei é que há sete horas estava sob o domínio de um animal, com sua boca enorme em cima de mim, as mãos me agarrando... E sabia que ia morrer. Depois um homem veio à minha procura — um homem que devia ter continuado a fugir, mas que veio à minha procura — e se ofereceu para morrer por mim. Acho que confio nele. — E se estiver errada? — Então terei cometido um engano terrível. — Obrigado. Onde está o dinheiro? — Sobre a cômoda. Dentro da carteira do passaporte. E também. na carteira. Junto com o nome do médico e o recibo pelo quarto. — Pode me passar o passaporte, por favor? É o número da vigência suíça. — Eu sei. — Marie os trouxe. — Dei ao concierge trezentos francos pelo quarto e duzentos por ter-me informado o nome do médico. Os serviços do médico custaram quatrocentos e cinqüenta francos, aos quais acrescentei mais cento e cinqüenta como pagamento pela cooperação. Ao todo paguei mil e cem francos. — Não precisava me prestar contas — disse ele. — Você deve saber. O que vai fazer? — Dar-lhe dinheiro para voltar para o Canadá. — Quero dizer depois. O que vai fazer depois? — Vou ver como me sinto. Provavelmente pagarei o concierge para me comprar algumas roupas. Depois far-lhe-ei algumas perguntas. Ficarei bem. — Tirou da carteira uma quantidade de notas e entregou-as a ela. — Isso é mais do que cinqüenta mil francos. — Fiz você passar por um mau bocado. Marie St. Jacques olhou para o dinheiro e depois a arma que tinha na mão esquerda. — Não quero seu dinheiro — disse ela deixando a arma sobre a mesinha de cabeceira. — O que quer dizer?
Ela se virou e foi até a poltrona. Sentou-se e olhou para ele. — Acho que quero ajudá-lo. — Espere um pouco... — Por favor — interrompeu-o ela. — Não faça perguntas, por favor. Não diga nada por um instante.
IVRO II
Capítulo10 Nenhum dos dois sabia quando acontecera ou se na verdade acontecera mesmo. E se acontecera, até que ponto poderiam preservar ou aprofundar aquilo. Não havia nenhum drama essencial, nenhum conflito a ser ultrapassado, nenhuma barreira a ser transposta. Em necessária apenas a comunicação através de palavras e olhares — e talvez tão vital quanto palavras e olhares — com o freqüente acompanhamento de um sorriso. A vida deles naquele quarto de uma hospedaria da vila era tão clínica quanto podia ser em uma enfermaria de hospital. Durante o dia Marie se incumbia das coisas práticas como roupas, refeições, mapas e jornais. Por sua própria vontade decidiu levar o carro roubado dez milhas para o sul da cidade de Reinach, onde o abandonou, tomando um táxi de volta para Lenzbifrg. Enquanto ela estava fora, Bourne se limitava a descansar e fazer exercícios motores. De algum lugar do seu passado ele sabia que para se recobrar eram necessários os dois, descanso e mobilidade, e se dedicava rigorosamente a isso. Já estivera nessa antes... antes de Port Noir. Quando estavam juntos, conversavam. No início fora um pouco difícil, uma situação delicada, cheia de perguntas e curiosidades de dois estranhos que foram postos juntos e sobreviveram às ondas do cataclisma. Tentavam viver uma normalidade onde ela não podia existir. Mas tudo se tomava bem mais fácil quando ambos aceitavam a anormalidade essencial: não havia o que conversar que não estivesse relacionado ao que acontecera. E se havia, começava a aparecer durante aqueles momentos em que a sondagem do já-acontecido estava temporariamente exaurida, e os silêncios eram trampolins para o alivio, para outras palavras e pensamentos. Era durante esses momentos que Jason ficava conhecendo os fatos mais importantes sobre a mulher que salvam a sua vida. Ele protestava, porque ela o conhecia tanto quanto ele mesmo se conhecia, mas ele não conhecia quase nada sobre ela: De onde ela tinha vindo? Por que uma mulher tão atraente, de cabelos vermelho-escuro e pele clara, obviamente criada em alguma fazenda, desempenhava o papel de doutora em economia? — Por que estava cheia da fazenda — respondeu Marie. — Brincadeira! De uma fazenda? Verdade? — Bem, na verdade, um pequeno rancho. Pequeno em comparação com os grandes de Alberta. No tempo do meu pai, quando um franco-canadense ia ao Oeste comprar terras, havia uma série de restrições, embora não escritas. Por, exemplo, não entre em competições com oi que têm mais terra e são melhores do que você. Ele costumava dizer que se usasse o nome de St. James em vez de St. Jacques seria um homem muito mais rico hoje. — Ele era rancheiro? Marie riu. — Não, era um contador que se tornou rancheiro. E por causa de um bombardeiro Vickers, durante a guerra. Era piloto da Força Aérea canadense. Acho que quando viu aquele céu todo... Acho que depois daquela imensidão, um escritório de contabilidade seria muito enfadonho.
— Precisa ter muita paciência. — Mais do que você pensa. Ele vendeu gado dos outros em terras que não possuía, antes de comprar seu próprio rancho. Francês até a alma, como diziam. — Acho que eu iria gostar dele. — Acho que sim. Ela morara em Calgary com os pais e dois irmãos até completar dezoito anos, quando foi para a Universidade de McGill, em Montreal, para começar uma vida que jamais sonhara. Fora uma aluna indiferente, que preferia cavalgar pelos campos montada em um belo animal do que ficar presa na estrutura entediante de uma escola-convento em Alberta, descobrindo a excitação de usar o cérebro. — Era assim mesmo, simples — ela lhe contou. — Eu encarava os livros como inimigos naturais e, de repente, lá estava, em um lugar cercado de pessoas que eram prisioneiras deles, e se divertiam muito com isto. Tudo o que acontecia era discussão de conversa. Conversa durante o dia todo, a noite toda — nas salas de aula e seminários; em grupos, nos reservados dos restaurantes, por cima das canecas de cerveja. Acho que foi a conversa que me ligou. Isso faz algum sentido para você? — Não tenho lembrança, mas posso entender — disse Bourne. — Não tenho lembrança de colegas ou amigos, coisas assim, mas tenho certeza de que vivi isso também. — Sorriu. — Conversar por sobre canecas de cerveja é uma imagem boa, forte. Ela sorriu em resposta. — E eu estava multo impressionada com aquele departamento. Era uma robusta moça de Calgary, competindo com dois irmãos que podiam beber mais cerveja do que a metade dos outros rapazes da universidade em Montreal. — Você deve ter ficado ressentida. — Não. Apenas com inveja. Um novo mundo fora apresentado a Marie St. Jacques. E ela nunca mais voltou ao seu antigo mundo. Exceto por alguns períodos de férias. As estadias mais prolongadas em Calgary foram ficando cada vez menos freqüentes. Seus círculos de amizade, em Montreal, foram se expandindo, os verões sendo tomados pelos empregos, tanto dentro quanto fora da universidade. Primei ro, ela se sentiu atraída pela história, depois percebeu que a história era formada pelas forças econômicas — poder e significado tinham que lhes ser conferidos e então experimentou as teorias econômicas. E foi absorvida por elas. Durante cinco anos permaneceu na McGill, onde completou o mestrado e recebeu uma bolsa-deestudos canadense para Oxford. — Foi um dia e tanto! Pensei que o meu pai fosse ter um ataque. Ele deixou os seus preciosos rebanhos com os meus irmãos a tempo de voar para o Leste e tentar me fazer mudar de opinião. — Para fazê-la mudar de opinião? Ele era um contador, você ia fazer um doutorado em economia!
— Não cometa este equívoco — exclamou Marie. — Contadores e economistas são inimigos naturais. Um enxerga árvores, o outro, florestas; e são visões completamente diferentes. Além disso, ele não é apenas canadense, é franco-canadense. Ele deve ter me achado uma traidora de Versalhes. Mas acho que se acalmou quando lhe contei que uma das condições para ganhar a bolsa era o compromisso de trabalhar para o Governo durante um período mínimo de três anos. Então disse que eu “podia servir melhor à causa estando lá dentro”. Vive Québec libre — vive la France! Os dois riram. Os três anos de compromisso com Ottawa foram se estendendo por motivos lógicos: cada vez que pensava em sair, era promovida ou lhe davam um grupo de trabalho maior, um escritório mais amplo... — O poder corrompe, é claro — sorriu ela — e ninguém conhece isso melhor do que um burocrata de carreira, a quem os bancos e as corporações perseguem para ver se arranjam recomendações especiais. Mas acho que Napoleão se expressou bem melhor. “Dêem-me medalhas em quantidade suficiente e ganharei qualquer guerra.” E, assim, fiquei. Gosto muito do meu trabalho. Funciona bem, e isso me deixa muito contente; o que ajuda bastante. Jason olhava-a enquanto ela falava. Por baixo daquele exterior controlado havia uma grande exuberância, uma qualidade infantil. Era uma entusiasta que refreava o seu entusiasmo cada vez que ele se tomava mais proeminente. É claro que era competente no que fazia; suspeitava que ela jamais fizera qualquer coisa a que não tivesse se aplicado ao máximo. — Tenho certeza que você é... que você é competente, quero dizer. Mas não sobra muito tempo para outras coisas, não é? — Que outras coisas? — Oh, as coisas comuns. Marido, família, casa com cerquinha na frente. — Tudo isso deve chegar um dia; não os excluí. — Mas não chegaram! — Não. Houve alguns casos, mas nenhuma aliança. Nem diamantes, também. — Quem é Peter? O sorriso se apagou. — Eu esquecera. Você leu o telegrama. — Sinto muito. — Não é nada. Já passou... Peter? Adoro Peter. Vivemos juntos quase dois anos, mas não deu certo. — Ele parece não guardar ressentimentos. — É melhor que não guarde! — Ela riu de novo. — É o diretor da seção e espera ser chamado
pelo gabinete em breve. Se não se comportar, contarei ao Ministério da Fazenda o que não sabem sobre ele, e ele voltará a ser apenas um funcionário SX-Dois. — Ele disse que ia buscá-la no aeroporto no dia 26. É melhor passar-lhe um telegrama. — Sim, eu sei. Aquela partida, no entanto, não era comentada. Haviam evitado o assunto como se fosse uma eventualidade muito distante. Não estava relacionado com o já-acontecido, era alguma coisa que ainda ia acontecer. Marie dissera que queria ajudá-lo, ele aceitara, supondo que ela estivesse se deixando levar por uma falsa gratidão, e ela resolvera ficar com ele um dia ou dois — e lhe era grato por isso. Mas qualquer coisa além disso seria impossível de pensar. Por isso não conversavam a respeito da partida. Haviam trocado palavras e olhares, alguns sorrisos, sentiam-se bem. Em alguns momentos houvera alguns ímpetos mais calorosos, mas os dois compreenderam e se controlaram. Qualquer coisa além disso era impensável. E, assim, retornaram à normalidade, ao já.acontecido. Mais para ele do que para eles, pois ele era a equivoca razão pela qual estavam juntos ... juntos no quarto de uma pequena hospedaria de uma vila da Suíça. Anormalidade. Não fazia parte do razoável e ordenado mundo de Marie St. Jacques, e por que não fazia sua mente ordenada e analítica estava sendo provocada. Coisas irrazoáveis deviam ser examinadas, esclarecidas. Ela tornou-se inexorável em sua investigação, tão insistente quanto George Washburn fora na Île de Port Noir, mas sem a paciência do médico. Pois ela não tinha tanto tempo; ela sabia disso e chegava à beira da grosseria. — Quando lê os jornais, o que mais lhe chama a atenção? — Tudo. Parece universal. — Sério. O que lhe é mais familiar? — Quase tudo, mas não posso lhe dizer o porquê. — Dê-me um exemplo. — Esta manhã. Havia uma história sobre um suprimento americano de armas para a Grécia, o subseqüente debate nas Nações Unidas e o protesto dos soviéticos. Entendi o significado, a luta pelo poder no Mediterrâneo, a entrada do Oriente Médio. — Dê-me outro. — Havia um artigo sobre a interferência da Alemanha Oriental no escritório de Bonn em Varsóvia. Os blocos orientais, ocidentais... Entendi também. — Você percebe a relação, não é? Você é politicamente — geopoliticamente — receptivo. — Ou então tenho uma percepção perfeitamente normal dos acontecimentos correntes. Mas
acho que não era um diplomata. O dinheiro no Gemeinschaft é muito maior do que qualquer quantia que se possa ganhar em um emprego governamental. — Concordo. Ainda assim, você é politicamente bem-informado. E a respeito de mapas? Você me pediu para lhe comprar alguns mapas. O que lhe vem à mente quando os olha? — Em alguns casos os nomes engatilham imagens, como aconteceu em Zurique. Prédios, hotéis, ruas... rostos, algumas vezes. Mas nunca nomes. Os rostos nunca têm nomes. — Você deve ter viajado muito. — Acho que sim. — Você sabe que sim. — Está bem, viajei. — Como? — O que quer dizer com “como”? — Era quase sempre de avião, carro... Você dirigia sempre? — Os dois, acho. Por quê? — Aviões significariam maiores distâncias. As pessoas se encontravam com você? Estes rostos se localizam em aeroportos, hotéis? — Ruas — respondeu ele involuntariamente. — Ruas!? Por que em mas? — Não sei. Via esses rostos na rua... e em lugares reservados. Escuros. — Restaurantes? Cafés? — Sim. E quartos. — Quartos de hotel? — Sim. — Escritórios, não? — Às vezes. Não muito. — Está bem. As pessoas se encontravam com você. Rostos de homens? Mulheres? Ambos? — Homens, a maior parte. Algumas mulheres, mas eram homens em sua maioria.
— Sobre o que falavam? — Não sei. — Tente lembrar-se. — Não posso. Não me lembro de nenhuma voz, nenhuma palavra. — Havia encontros? Você se encontrava com pessoas; isso quer dizer que tinha encontros. Eles se encontravam com você ou você ia encontrá-los? Quem marcava esses encontros? Alguém tinha que marcar. — Telegramas. Telefonemas. — De quem? De onde? — Não sei. Vinha a mim. — Nos hotéis? — Acho que sim, a maioria. — Você me disse que o subgerente do Carillon disse que você recebia mensagens. — Então, elas chegavam aos hotéis. — De qualquer coisa Seventy One? — Treadstone. — Treadstone. É a sua companhia, não? — Não significa nada para mim. Sequer consegui encontrá-la. — Concentre-se — Estou concentrado. Não estava registrada. Telefonei a Nova Iorque. — Você parece achar pouco comum! Não é. — Por que não? — Podia ser uma companhia separada, mas no mesmo escritório de outra, ou uma subsidiária oculta — uma corporação feita apenas para fazer aquisições para uma companhia maior e cujo nome levanta o preço das negociações. É muito comum hoje em dia. — A quem está tentando convencer?
— A você. É bem possível que você seja um negociante de interesses financeiros americanos. Tudo indica que sim: fundos preparados para serem usados imediatamente, um capital à mão, mantendo os interesses em segredo até a aprovação da corporação. Estes fatos, acrescidos da sua boa antena para as ocorrências e mudanças políticas, indicam que você pode ser um agente de compras de total confiança. E muito provavelmente um grande investidor, associado ou até meio-dono desta companhia maior. — Você fala rápido, hein? — Não disse nada que não fosse lógico. — Tem um ou dois furos. — Onde? — Aquela conta não tinha nenhuma retirada. Apenas depósitos. Eu não estava comprando, estava vendendo. — Você não sabe, não pode se lembrar. Pagamentos podem ser feitos e logo depois os depósitos podem ser feitos, também. A curto prazo. — Nem mesmo sei o que quer dizer isso. — Um tesoureiro que conhecesse certas estratégias de imposto reconheceria. Qual é o outro furo? — As pessoas não tentam matar alguém para que comprem alguma coisa a um preço mais baixo. Eles podem mostrar e pôr à venda, mas não costumam matar. — Costumam, se um erro gigantesco foi cometido. Ou se aquela pessoa foi confundida com outra qualquer. O que estou tentando lhe dizer é que você não pode ser o que não é! Não importa o que digam. — Está assim convencida? — Estou. Passei três dias com você. Conversamos, eu ouvi. Um terrível erro foi cometido. Ou uma espécie de conspiração. — Envolvendo o quê? Contra o quê? — É isto que deve descobrir. — Obrigado. — Diga-me uma coisa. O que lhe vem à mente quando pensa em dinheiro? Pare! Não faça isto! Não entende!? Você está errada. Quando penso em dinheiro penso em matar.
— Não sei — disse ele. — Estou cansado. Preciso dormir. Mande seu telegrama de manhã. Diga a Peter que você vai voltar. Já passava da meia-noite, era o começo do quarto dia, e o sono não lhe vinha. Bourne ficou a contemplar o teto, a madeira escura que refletia a luz da mesa, do outro lado da saia. A luz que ficava acesa durante a noite. Marie simplesmente a deixara acesa, sem dar nenhuma explicação. Pela manhã ela iria embora e ele tinha que pensar em seus próprios planos. Ficaria na hospedaria por mais alguns dias, veria o médico em Wohlen e tiraria os pontos. Depois Paris. O dinheiro estava em Paris. E mais alguma coisa... Ele sabia, podia sentir. Uma resposta final estava em Paris. Você não está desamparado. Vai encontrar seu caminho. O que encontraria? Um homem chamado Carlos? Quem era Carlos, e o que representava para Jason Bourne? Ouviu o barulho de tecido no sofá encostado à parede. Olhou, espantado de ver que Marie não dormia. Ao contrário olhava fixamente para ele, diretamente para ele. — Você errado, sabe? — disse ela. — A respeito de quê? — Do que está pensando. — Você não sabe o que estou pensando — Sim, sei. Vi o seu olhar. Está vendo coisas das quais não tem certeza, com medo que sejam verdadeiras. — Elas são — respondeu ele. — Explique-me a Steppdeckstrasse. Aquele homem gordo do Drei Alpenhäuser. — Não posso, mas nem você pode. — Elas existem. Eu as vi e elas existem. — Descubra por quê. Você não pode ser o que não é, Jason. Descubra. — Paris — disse ele. — Sim, Paris. — Marie levantou-se do sofá. Vestia uma camisola amarelo-clara, quase branca, com botõezinhos de pérola no pescoço. Uma camisola leve, que ondulou com seus passos enquanto se aproximou da cama, descalça. Pôs-se ao seu lado, olhando-o. Depois, levantou as mãos e começou a desabotoá-la. Deixou-a cair, enquanto se sentava na cama, os seios próximos ao rosto dele. Inclinou-se para ele, procurando-lhe o rosto, segurou-o com as mãos, gentilmente. Os olhos, como nos dias anteriores, estavam fixos nele. — Obrigada por ter salvo a minha vida — sussurrou ela.
— Obrigado pela minha — respondeu ele, sentindo o desejo que sabia que ela também sentia, tentando imaginar se uma dor também acompanhava o desejo dela, como acompanhava o dele. Não tinha lembrança de uma mulher, e talvez porque não tivesse nenhuma lembrança, ela era tudo o que ele podia imaginar; tudo e mais, muito mais. Ela afastava a escuridão, fazia cessar a dor. Ele tivera medo de lhe confessar. E agora ela estava lhe comunicando que tudo ficaria bem se fosse apenas por um momento, uma hora ou mais. Pela memória daquela noite ela lhe dava uma recordação, porque ela também desejava se libertar dos tumultos da violência. A tensão fora suspensa, ficariam em paz por uma ou duas horas. Era tudo o que ele pedia, mas Deus do céu, como precisava dela! Procurou-lhe o seio e puxou para si os seus lábios; sua umidade o excitava, levava-lhe para longe todas as dúvidas. Ela levantou as cobertas e achegou-se a ele. Ela repousava em seus braços, a cabeça sobre o seu peito, cuidando para não lhe tocar no ferimento do ombro. Depois, levantou-se com cuidado, deslocando o peso do corpo sobre os cotovelos. Ele olhou-a. Os seus olhares se encontraram e os dois sorriram Ela levantou a mão esquerda e pôs o dedo indicador sobre os seus lábios. Falou suavemente. — Tenho uma coisa para dizer e não quero que você me interrompa. Não vou mandar o telegrama para Peter. Não ainda. — Mas espere um pouco! — Ele afastou-lhe a mão do rosto. — Por favor, não me interrompa. Eu disse “não ainda”. Isso não quer dizer que não vá mandálo; mas não vou por enquanto. Vou ficar com você. Vou para Paris com você. Ele forçou as palavras. — Suponha que eu não queira. Ela se inclinou para a frente, passando os lábios na face dele. — Isso não cola. O computador rejeitou. — Se fosse você não teria tanta certeza assim. — Mas você não é. Eu sou eu, e sei a forma como você me abraçou e tentou dizer tantas coisas que não podia! Coisas que acho que queríamos dizer um ao outro nesses últimos dias. Não posso explicar o que aconteceu. Oh, acho que tudo está em alguma obscura teoria psicológica em algum lugar: duas pessoas medianamente inteligentes foram jogadas juntas num inferno e conseguiram rastejar para fora dele... juntas. E talvez seja só isso. Mas aqui está, agora; e não posso fugir disso. Não posso fugir de você. Porque você precisa de mim, e você me deu a sua vida. — O que a faz pensar que preciso de você? — Posso fazer algumas coisas por você que você não pode fazer sozinho. Foi só nisso que pensei nas duas últimas horas. — Ela se levantou um pouco mais, nua ao lado dele. — De certa forma,
você está envolvido com uma grande soma de dinheiro. E creio que você não distingue um débito de um capital ativo. Talvez antes distinguisse, mas não agora. Eu distingo. E mais uma coisa. Tenho uma posição de destaque no Governo canadense. Tenho acesso a todas as formas de informação. E proteção. As finanças internacionais são podres e o Canadá foi violado. Montamos a nossa própria proteção, e faço parte dela. É por isso que eu estava em Zurique. Para observar e relatar possíveis alianças, não para discutir teorias abstratas. — E o fato de ter esta licença, este acesso, pode me ajudar? — Acho que sim. Uma proteção da embaixada é muito importante. Mas dou-lhe a minha palavra que ao primeiro sinal de violência, mando o telegrama e caio fora. Pondo de lado os meus próprios medos, acho que não serei um peso para você. Não sob essas condições. — Ao primeiro sinal... — Bourne repetiu as palavras, examinando-a. — E sou eu quem determina quando e onde? — Se quiser. A minha experiência é limitada. Não vou discutir. Ele continuou a olhá-la, a segurar o seu olhar naquele momento prolongado e engrandecido pelo silêncio. Depois perguntou: — Por que está fazendo isso? Você acabou de dizer: somos duas pessoas medianamente inteligentes, que estão se arrastando para fora de um inferno. Isso pode ser tudo o que somos. Vale a pena? Ela ficou sentada, imóvel. — Eu também disse mais alguma coisa. Talvez você tenha se esquecido. Há quatro noites um homem que podia ter continuado a correr e fugir voltou para me procurar e me deu a sua vida. Acredito neste homem. Mais do que ele mesmo, acho. Na verdade, isso é o que tenho a oferecer. — Aceito — disse ele se aproximando dela. — Não devia, mas aceito. Preciso desesperadamente desta crença. — Pode me interromper agora — disse ela num sussurro, abaixando o lençol e encostando seu corpo no dele. — Faça amor comigo; eu também tenho necessidade. Passaram-se mais três dias e três noites; dias cheios do calor e do conforto da excitação daquela descoberta. Viviam com a intensidade de duas pessoas cientes de que tudo podia mudar. E quando a mudança chegasse, seria rápida. E, por isso, havia muita coisa a falar; coisas a dizer que não podiam mais ser evitadas. A fumaça do cigarro subia da mesa em espirais, juntamente com o bafo do café quente e amargo. O concierge, um suíço exuberante cujos olhos viam mais do que a boca revelava, deixara alguns minutos antes, junto com o petit déjeuner, os jornais de Zurique, em inglês e francês. Jason e Marie sentaram-se um na frente do outro e puseram-se a examinar as notícias. — Tem alguma coisa no seu? — perguntou Bourne. — Aquele velho, o vigia do Guisan Quai, foi enterrado anteontem. A polícia ainda não tem nada
de concreto. “Continuam as investigações”, diz aqui. — A informação é um pouco mais extensa neste — disse Jason, tentando segurar as páginas do seu jornal, desajeitadamente por causa das ataduras na mão esquerda. — Como está? — perguntou Marie, olhando para a sua mão. — Melhor. Já movimento melhor os dedos agora. — Eu sei. — Oh, você tem uma mente suja. — Embrulhou o jornal. — Aqui está. Repetem as coisas que já disseram outro dia. As balas e as manchas de sangue estão sendo analisadas. — Bourne levantou os olhos. — Mas tem mais alguma coisa: remanescentes de roupa, que antes não foram mencionados. — É problemático? — Não para mim. Minhas roupas foram compradas de segunda mão em Marselha. E o seu vestido? Era alguma criação especial? — Você me encabula. Não era. Todas as minhas roupas são feitas por uma mulher em Ottawa. — Não podem servir de pista, então. — Não vejo como. A seda veio de uma peça que um funcionário FS-Três da nossa seção trouxe de Hong-Kong. — Você comprou alguma coisa nas lojas do hotel? Algo que estivesse usando naquele dia? Um lenço, um alfinete, alguma coisa assim? — Não. Não sou muito de compras assim. — Ótimo. E a sua amiga... Não fizeram muitas perguntas? — Não na portaria, já lhe disse isso. Apenas os dois homens que você viu comigo no elevador. — Da delegação francesa e da belga? — Sim. Tudo estava bem. — Vamos repassar. — Não há nada para repassar. Paul — o de Bruxelas — não viu nada. Ele foi tirado da cadeira com um golpe e lá ficou, estatelado no chão. Claude — ele tentou nos deter, lembra-se? — primeiro pensou que era eu quem estava lá no palco, debaixo da luz, mas antes que pudesse ir até a policia foi ferido na multidão e levado para a enfermaria... — E, depois, quando já podia falar — interrompeu Jason, tentando lembrar-se das palavras dela
— já não tinha mais certeza. — Sim. Mas acho que ele sabia qual era o meu propósito no seminário, a minha apresentação não o enganou. Se sabia, isso apenas reforçaria a sua decisão de ficar de fora da questão. Bourne pegou seu café. — Deixe-me repassar isso de novo — disse. — Você estava à procura de... alianças? — Bem, na verdade, algumas informações sobre alianças. Ninguém vai aparecer e dizer que existem interesses financeiros em seu país, e que estão usando os interesses do nosso país de forma a poderem comprar sua entrada no mercado de matérias- primas do Canadá, ou de qualquer outro lugar. Mas a gente observa quem se encontra nos jantares, ou para drinques. Ou algumas vezes é algum palerma, como um delegado de, digamos, Roma — que você sabe que está sendo pago pelo Agnelli —, que aparece e pergunta se Ottawa é muito séria nas suas leis. — Acho que ainda não entendi muito bem. — Mas devia. O seu próprio país é muito sensível com relação a esta matéria. Quem possui o quê? Quantos bancos americanos são controlados pelo dinheiro da OPEP? Quantas indústrias pertencem aos consórcios europeus e japoneses? Quantas centenas de milhares de acres foram adquiridos por capital que veio da Inglaterra, da Itália ou da França? Todos nós nos preocupamos com isso. — É? Marie riu. — É claro. Nada torna um homem mais nacionalista do que saber que o seu país está sendo comprado pelos estrangeiros. Ele consegue se ajustar, com o tempo, à idéia de ter perdido uma guerra — porque isso significa que o inimigo era mais forte —, mas perder a sua economia significa que o inimigo era mais esperto. O período da ocupação é bem mais longo, e mais profundas as cicatrizes. — Você já pensou bastante sobre essas coisas, não? Por um breve momento o olhar de Marie perdeu a sua ponta de humor; ela respondeu-lhe com seriedade. — Sim, já. Acho que são importantes. — Você conseguiu saber de alguma coisa em Zurique? — Nada assustador — disse ela. — O dinheiro está voando por todos os cantos; os sindicatos estão tentando descobrir os investimentos internos, enquanto as máquinas burocráticas olham para outro lado. — Aquele telegrama de Peter dizia que os seus relatórios diários eram de primeira. O que ele quis dizer? — Descobri um número estranho de associados econômicos que creio podem estar usando figuras importantes do Canadá para comprar propriedades canadenses. Não estou sendo discreta, mas é que não significariam nada para você.
— Não estou tentando espionar — replicou Jason. — Mas acho que você me pôs numa dessas suas associações. Não com relação ao Canadá, mas de forma geral. — Não o excluo, a estrutura é assim. Você podia ser parte de uma associação qualquer, combinada, que procura por todos os meios fazer negócios ilegais. É uma coisa que posso muito bem averiguar, mas prefiro solucionar isso com um telefonema. Não com palavras escritas nem com um telegrama. — Agora, estou espionando. O que você quer dizer? — Se existe uma Treadstone Seventy One por trás de uma multinacional qualquer, há muitos meios de descobrir que companhia é essa. Quero falar com Peter, de um desses telefones públicos em Paris. Vou lhe dizer que encontrei o nome da Treadstone Seventy One em Zurique e que isso me deixou um pouco preocupada. Vou pedir para fazer uma PC — Pesquisa Confidencial — e voltar a chamá-lo depois. — E se ele a descobrir? — Se existir, ele a descobrirá. — Depois, posso entrar em contato com quem quer que seja que estiver listado como “diretores”. — Muito cuidadosamente — continuou Marie. — Através de intermediários. Por meu intermédio, se quiser. — Por quê? — Pelo que eles fizeram. Ou não fizeram, realmente. — O que foi? — Eles não o procuraram durante quase seis meses. — Você não sabe — e eu não sei. — O banco sabe. Milhões de dólares foram deixados intocados, sem serem procurados, e ninguém se incomodou em descobrir por quê. É isso que não posso entender. É como se você tivesse sido abandonado. É aí que pode estar o engano. Bourne se inclinou, olhando para a mão enfaixada, lembrando-se da visão da arma esmagando repetidas vezes os seus dedos, dentro de um carro em velocidade na Steppdeckstrasse. Depois levantou os olhos e olhou para Marie. — O que está tentando dizer é que se fui abandonado é porque esse engano é tomado como verdade pelos diretores da Treadstone. — Possivelmente. Eles podem pensar que você os envolveu em transações ilegais — com elementos criminais — que poderiam custar-lhes muitos milhões mais. E que tenha posto em risco
muitas companhias, por expropriação dos governos irados. Ou que você tenha se juntado a um sindicato internacional do crime, provavelmente sem saber. Qualquer coisa assim. Isso seria o bastante para eles não chegarem perto do banco. Não quereriam ser culpados por essa cumplicidade. — Assim, num certo sentido, não importa o que o seu amigo Peter venha a saber. Vou ficar no ponto zero. — Nós ficamos; mas não é zero, é mais quatro e meio ou cinco numa escala de dez. — Mesmo que fosse nove, nada realmente mudou. Alguns homens querem me matar e não sei por quê. Outros poderiam detê-los, mas não vão fazer isso. Aquele homem no Drei Alpenhäuser disse que a Interpol montou armadilhas para mim, e se eu cair em uma não terei nenhuma resposta. Sou tão culpado quanto atacado, porque não sei do que sou culpado. Não ter memória de nada me serve como defesa; e é possível que eu não tenha nenhuma defesa. — Recuso-me a acreditar nisso, e você deve fazer o mesmo. — Obrigado. — É verdade, Jason. Pare com isso. Pare com isso. Quantas vezes não digo isso para mim mesmo? Você é o meu amor, a única mulher que jamais conheci, e acredita em mim. Por que não posso acreditar em mim mesmo? Bourne levantou-se examinando as pernas, como sempre fazia. A mobilidade lhe voltava, o ferimento era menos grave do que a sua imaginação o permitira acreditar. Marcara um encontro aquela noite com o Dr. Wohlen, para remover os pontos. Amanhã efetuar-se-ia a mudança. — Paris — disse Jason. — A resposta está em Paris. Sei disso tanto quanto sabia daqueles triângulos em Zurique. Só não sei por onde começar. É uma loucura! Sou um homem à espera de uma imagem, de uma palavra ou de uma frase — ou até de uma caixa de fósforos — que me possam dizer alguma coisa. Que me remetam a algum lugar diferente — Por que não esperamos até eu ter notícias de Peter? Posso telefonar-lhe amanhã, podemos estar em Paris amanhã. — Porque não iria fazer nenhuma diferença, não vê? Não importa o que ele consiga, a única coisa que preciso saber não está no que ele vai encontrar. Pela mesma razão que a Treadstone não chegou nem perto do banco. Eu. Tenho que saber por que alguns homens querem me matar, por que alguém chamado Carlos vai pagar — o que era mesmo? — uma fortuna pelo meu cadáver. Só conseguiu chegar até aí; foi imediatamente interrompido por uma batida na mesa. Marie deixara cair a xícara e olhava espantada para ele, o rosto branco, como se o sangue lhe tivesse sido drenado da cabeça. — O que você acabou de dizer? — perguntou. — O quê? Disse que tenho que saber...
— O nome. Você acabou de dizer o nome Carlos. — Isto mesmo. — Em todos os momentos em que conversamos, todos os dias em que estivemos juntos, você nunca o mencionou. Bourne olhou para ela, tentando se lembrar. Era verdade; ele lhe contara tudo o que lhe viera à mente; no entanto, de alguma forma, esquecera-se de Carlos... quase propositalmente, como se a omissão tivesse sido para bloquear alguma coisa. — Acho que não — disse ele. — Você parece conhecê-lo. Quem é Carlos? — Você está brincando? Se está, a brincadeira não é muito agradável. — Não estou tentando ser engraçado. Acho que não tem nada de engraçado nisso. Quem é Carlos? — Meus Deus, você não sabe? — exclamou ela, estudando os seus olhos. —. É parte do que lhe foi tirado. — Quem é Carlos? — Um assassino. É conhecido como “o assassino da Europa”. Um homem procurado há vinte anos e que se acredita já ter matado entre cinqüenta a sessenta importantes figuras políticas e militares. Ninguém sabe como ele é... mas dizem que opera fora de Paris. Bourne sentiu uma onda de frio por todo o corpo. O táxi que os levava a Wohlen era um Ford inglês, que pertencia ao cunhado do concierge. Jason e Marie sentaram-se no banco de trás, o campo escuro passava rapidamente pela janela. Os pontos tinham sido removidos, no lugar foram colocadas ataduras macias, presas por largas tiras de esparadrapo. — Volte para o Canadá — disse Jason suavemente, quebrando o silêncio entre eles. — Irei, já lhe disse isso. Ainda tenho alguns dias. Quero ver Paris. — Não a quero em Paris. Telefonar-lhe-ei para Ottawa. Você mesma pode fazer a pesquisa sobre a Treadstone e me passar a informação pelo telefone. — Pensei que você disse que não fazia nenhuma diferença. Porque você tinha que saber o porquê; o quem era sem sentido, até que você conseguisse entender. — Darei um jeito. Preciso apenas de um homem. Encontra-lo-ei. — Mas você não sabe por onde começar. É um homem à espera de uma imagem, de uma frase, ou de uma caixa de fósforos. Tudo isso pode não estar lá.
— Alguma coisa estará lá. — Alguma coisa está, mas você não a vê. Eu vejo. É por isso que você precisa de mim. Conheço as palavras, os métodos. Você não. Bourne olhou-a; estava manchada pelas sombras que passavam correndo. — Acho que é melhor ser mais clara. — Os bancos, Jason. As conexões da Treadstone estão nos bancos. Mas não da forma que você pensa. * O velho curvado vestido com um sobretudo puído e com uma boina preta na mão atravessou a nave lateral da igreja da vila de Arpajon, a dez milhas de Paris. Os sinos da tarde anunciavam a hora do Ângelus, que ecoava pelas paredes de pedra e madeira. O homem tomou seu lugar na quinta fila e esperou que os sinos parassem de tocar. Era o seu sinal. Fora isso que ele aceitara; sabia que durante o repicar dos sinos alguém, um homem mais jovem — mais impiedoso do que qualquer homem vivo — já havia circulado a pequena igreja e estudado todos que estavam por lá, dentro ou fora. Se aquele homem visse alguma coisa que não esperava ver, alguém que considerava uma ameaça a sua pessoa, não haveria nenhuma pergunta, mas simplesmente uma execução. Esse era o jeito de Carlos. E apenas aqueles que sabiam que as suas vidas podiam ser tiradas porque haviam sido seguidos aceitavam dinheiro para serem mensageiros do assassino. Eram todos como ele, velhos, dos velhos tempos, vidas já no fim, os meses limitados pela idade avançada ou pela doença. Carlos não permitia nenhum risco; o único consolo era que se um deles morria no serviço — ou por suas próprias mãos —, algum dinheiro seria enviado para as mulheres velhas, ou para as suas filhas ou para os seus filhos. Era preciso dizer: havia uma certa dignidade em ser encontrado a serviço de Carlos. Ele era generoso. Isto era o que o seu pequeno exército de frágeis velhos entendia. Ele lhes dava um objetivo de vida para os seus dias finais. O mensageiro segurou sua boina e continuou a andar pela nave lateral até a fila de confessionários, que ficava encostada à parede. Foi até o quinto, abriu a cortina e entrou, ajustando a visão à luz de uma única vela que brilhava do outro lado da cor- tina translúcida que separava o padre do pecador. Sentou-se no pequeno banco de madeira e olhou o perfil que estava lá dentro, no lugar sagrado. Era o mesmo, a figura encapuzada de um homem vestido com um hábito de monge. O mensageiro não tentou imaginar como seria aquele homem, não era seu direito especular sobre tais coisas. — Angelus Domini — disse ele. — Angelus Domini, filho de Deus — sussurrou a figura encapuzada. — Seus dias estão em paz? : — Estão chegando ao fim — respondeu o velho, dando a resposta apropriada — mas em paz. — Ótimo. É importante ter um sentido de segurança na sua idade — disse Carlos. — Vamos aos
negócios. Conseguiu as notícias de. Zurique? — O olheiro está morto, e mais dois outros. E possivelmente um terceiro também. A mão de um outro ficou muito ferida, ele não pode trabalhar. Caim desapareceu. Acham que a mulher está com ele. — Uma estranha mudança nos acontecimentos — disse Carlos. — Há mais ainda. O que teve ordem de matá-la desapareceu. Devia levá-la ao Guisan Quai. Ninguém sabe o que aconteceu. — Exceto que um vigia foi morto no lugar dela. É possível que ela nunca tenha sido uma refém, mas, ao contrário, a isca de uma armadilha. Uma armadilha que voltou-se contra Caim. Quero pensar sobre isso. Por enquanto, aqui estão as minhas instruções. Está pronto? O velho procurou e pegou do bolso um toco de lápis e um pedaço de papel. — Muito bem. — Telefone para Zurique. Quero um homem amanhã em Paris, que tenha visto Caim e possa reconhecê-lo. Também Zurique deve entrar em contato com Koenig, no Gemeinschaft, e dizer-lhe que mande a sua fita de Nova Torque. Ele deve usar a caixa postal da Village Station. — Por favor — interrompeu o idoso mensageiro. — Estas velhas mãos já não escrevem como antigamente. — Desculpe-me — sussurrou Carlos. — Estou preocupado e não percebi. Desculpe-me. — Não é nada. Não é nada. Continue. — Por fim, quero que o nosso grupo alugue quartos a uma quadra do banco da Rua Madeleine. Desta vez o banco será a ruína de Caim. O enganador será preso na fonte do seu orgulho impróprio. Um preço de barganha, tão desprezível quanto ele... a menos que ele seja uma outra coisa.
Capítulo11 Um pouco afastado, Bourne ficou a olhar Marie, que passava pela alfândega do aeroporto de Berna, à espera que aparecesse algum sinal de interesse ou reconhecimento de alguém que estivesse na multidão ali por perto do embarque da Air France. Eram quatro horas da tarde, a hora de vôo mais concorrida para Paris, hora em que os privilegiados homens de negócios se apressavam em voltar para a cidade das luzes, depois de terem realizado aborrecidos serviços para as suas companhias nos bancos de Berna. Marie olhou por cima dos ombros enquanto passava pelo portão de embarque. Ele fez um sinal com a cabeça, esperou que ela desaparecesse de vista, depois virou-se e caminhou em direção ao balcão da Swissair. George B. Washburn fizera uma reserva no vôo das 16h30min para Orly. Encontrar-se-iam no café que Marie se lembrava de ter freqüentado nos seus dias de Oxford. Chamava-se Au Coin de Cluny e ficava no bulevar Saint-Michel, a algumas quadras da Sorbonne. Se por qualquer razão não se encontrassem lá, Jason a encontraria por volta das nove horas na escadaria do Museu Cluny. Bourne estava atrasado, embora estivesse ali por perto. A Sorbonne tinha uma das mais vastas bibliotecas de toda a Europa, e em algum lugar daquela biblioteca estavam os números de jornais mais antigos. As bibliotecas das universidades não estavam subordinadas aos empregados do Governo; os estudantes usavam-nas durante as tardes. Era o que ele iria fazer tão logo chegasse a Paris. Havia algo que ele precisava saber. Todos os dias leio os jornais. Em três línguas. Há seis mesa, um homem foi morto e sua morte foi registrada na primeira página de todos esses jornais. Fora isso o que dissera aquele homem gordo em Zurique. Deixou a maleta na portaria da biblioteca e foi em direção ao segundo andar, virando à esquerda, na imensa sala de leitura. A Salle de Lecture ficava naquele anexo, os jornais eram fixados em hastes e pendurados em trilhos; os volumes começavam precisamente há um ano daquela data. Caminhou por entre os trilhos, contou seis meses atrás e em seguida retirou o primeiro volume de jornais relativo às primeiras dez semanas antes daquela data, há um ano. Levou-os até a mesa mais próxima e, sem sentar-se, começou a folhear as páginas de frente, jornal por jornal. Grandes homens haviam morrido, enquanto outros haviam feito discursos e pronunciamentos; o dólar caíra, o ouro subira; tentativas de golpe, governos tinham titubeado entre ação e paralisação. Mas nenhum homem fora morto, nenhum que merecesse manchete; não houvera nenhum acidente — ou seja, nenhum assassinato. Jason voltou aos trilhos e recomeçou a pesquisar. Duas sema nas, doze semanas, vinte semanas antes. Quase oito meses. E nada. Isso o assustou. Ele voltara no tempo, não fora adiante daquela data, há seis meses. Um erro podia ter sido cometido em uma das duas direções; um erro de alguns dias, de uma semana, ou até mesmo duas. Recolocou os jornais nos trilhos e tirou novos volumes, de quatro e cinco meses atrás.
Aviões tinham se chocado no ar e revoluções sangrentas haviam irrompido; homens santos haviam falado apenas para serem reprovados por outros homens santos; pobreza e doença eram encontradas onde todos sabiam que podiam ser encontradas; mas nenhum homem importante fora morto. Foi até o último dos volumes, as sombras da dúvida e da culpa se aclarando em cada virada de página. Será que o homem gordo e suado de Zurique mentira? Seria tudo mentira? Tudo mentira? Estaria ele vivendo um pesadelo que poderia desaparecer com... EMBAIXADOR LELAND ASSASSINADO EM MARSELHA! As grossas letras negras da manchete saltaram da página, ferindo-lhe os olhos. Não era uma dor imaginada nem inventada, mas uma dor aguda, que penetrou-lhe as órbitas e queimou-lhe a cabeça. Sua respiração parou; os olhos estavam fixos no nome LELAND. Ele o conhecia; podia até ver seu rosto, ver realmente. As sobrancelhas grossas, uma testa larga, nariz achatado, ossos da face salientes e, estranhamente, lábios finos, encimados por um bigode grisalho impecável. Conhecia aquele rosto, aquele homem. E o homem fora morto com uma única bala vinda de um rifle de alta potência de uma janela da praia. O Embaixador Howard Leland caminhava por um píer às cinco horas da tarde em Marselha. E sua cabeça foi explodida por um tiro. Bourne nem precisava ler o segundo parágrafo para saber que Howard Leland era o Almirante H. R. Leland, da Marinha dos Estados Unidos até que, depois de um compromisso temporário como diretor do Serviço de Inteligência Naval, foi indicado para aquela embaixada do Quai d’Orsay, em Paris. Como ele também nem precisava ler o resto do artigo, onde os vários motivos para o assassinato eram especulados, para ficar sabendo de tudo; ele já sabia. A função básica de Leland em Paris era dissuadir o Governo francês de autorizar maciças vendas de armas — e em particular frotas de jatos Mirage — para a África e o Oriente Médio. Conseguira o suficiente para irritar as partes interessadas de todos os pontos do Mediterrâneo. Presumia-se que fora morto por causa desta sua interferência; uma punição que servira de aviso para os demais, Os compradores e vendedores da morte não podiam ser passados para trás. E o vendedor da morte que o matara fora muito bem pago, por trás da cortina, com todas as pistas apagadas. Zurique. Um mensageiro para um homem sem pernas, outro para um homem obeso, em um restaurante movimentado, para os lados da Falkenstrasse. Zurique. Marselha. Jason fechou os olhos, a dor agora intolerável. Fora retirado do mar há cinco meses, e seu porto de origem era Marselha. E se fora Marselha, a praia teria sido sua rota de fuga, provavelmente em um barco alugado para levá-lo pelo extenso Mediterrâneo. Tudo se encaixava muito bem, cada peça do
quebra-cabeças se encaixava na outra com precisão. Como podia saber de todas es sas coisas se não fosse aquele mesmo vendedor da morte de uma janela da costa de Marselha? Abriu os olhos, a dor inibindo-lhe o pensamento, embora não de todo. Tomara uma decisão tão clara quanto aquele quadro com peças se encaixando, tão clara quanto o resto da sua limitada memória. Não deveria haver nenhum encontro com Marie St. Jacques em Paris. Talvez um dia ele lhe escrevesse uma carta, dizendo as coisas que agora não podia dizer, se ainda estivesse vivo e ainda pudesse escrever uma carta. Agora não escreveria. Não poderia deixar nenhuma palavra escrita, nem de agradecimento nem de amor; nenhuma explicação. Ela esperaria por ele, mas ele não apareceria. Devia afastar-se dela; ela não devia envolver-se com um camelô da morte. Ela estava errada; seus receios mais terríveis eram verdadeiros. Oh, Deus! Podia lembrar-se claramente do rosto de Howard Leland! E nem sequer havia uma única fotografia naquela página de jornal. Aquela página de frente, com uma manchete terrível que engatilhava tantas coisas, confirmava tantas outras... A data. Quinta-feira, 26 de agosto. Marselha. Era uma data que ele não esqueceria pelo resto da vida, sua convulsionada vida. Quinta-feira, 26 de agosto... Alguma coisa estava errada, O que era? Quinta-feira?... Quinta-feira não significava nada para ele. E vinte e seis de agosto?... O dia vinte e seis!? Não, não podia ser no dia vinte e seis! Estava errado! Ele ouvira isso muitas vezes. O diário de Washburn — as anotações diárias que fizera do seu paciente. Quantas vezes Washburn recapitulara cada fato, cada frase, anotando todos os dias os seus pequenos progressos? Foram muitas vezes, nem dava para contar. E foram tantas que seria impossível esquecer! Você foi trazido até a minha porta na manhã de terça-feira, vinte e quatro de agosto, precisamente às oito horas e vinte minutos. Suas condições eram as... Terça-feira, 24 de agosto. 24 de agosto. Ele não estava em Marselha no dia vinte e seis! Não podia ter atirado daquela janela. Não era ele o camelô da morte de Marselha. Não fora ele quem matara Howard Leland! Há seis meses um homem foi morto... Mas não fazia seis meses ainda, quase mas ainda não. E ele não matara esse homem; nesse dia, ele estava quase morto na casa de um alcoólatra, na Île de Port Noir. As sombras estavam se aclarando agora; a dor começava a retroceder. Um certo orgulho tomou conta dele, ele descobrira uma mentira concreta! E se havia uma, poderia haver muitas outras! Bourne olhou para o relógio: nove e quinze. Marie já havia deixado o café, devia estar à sua espera na escadaria do Museu Cluny. Recolocou os volumes nos trilhos e foi em direção à porta larga, que parecia porta de catedral, da sala de leitura. Estava com pressa.
Atravessou o bulevar Saint-Michel, acelerando o passo. Tinha a impressão bem clara de saber o que era ter uma trégua agora, e queria compartilhar esta rara experiência. Por um momento estava fora da escuridão violenta, muito além das águas turbulentas. Encontrara um momento de luz, de sol — como os momentos e os dias ensolarados que passara naquela hospedaria da vila — e tinha que procurar quem lhe dera tudo aquilo. Encontrá-la, abraçá-la, e dizer que havia esperança. Viu-a na escada, os braços cruzados, protegendo-se do vento gélido que vinha do bulevar. Ela não o percebeu logo, seus olhos espreitavam a rua com árvores alinhadas dos dois lados. Estava ansiosa, impaciente e inquieta; uma mulher impaciente à procura de alguma coisa e com medo de não encontrála. Há dez minutos ele pensara em não vir. Ela o viu. O rosto tomou-se radiante, com um sorriso cheio de vida. Correu ao seu encontro enquanto ele subia os degraus. Encontraram-se e, por um momento, nenhum dos dois disse uma palavra; estavam aquecidos e sós no Saint-Michel. — Esperei e esperei — ela disse por fim. — Estava com tanto medo, tão preocupada! Aconteceu alguma coisa? Você está bem? — Estou bem. Melhor do que nunca. — O quê? Segurou-a pelos ombros. — “Há seis meses um homem foi morto”... Lembra-se? A alegria fugiu-lhe dos olhos. — Sim, me lembro. — Não fui eu quem o matou — disse Bourne. — Não podia ter sido eu. Descobriram um pequeno hotel longe do movimentado bulevar. O saguão e os quartos eram muito velhos, mas havia uma certa pretensão de elegância antiga que lhes dava um ar atemporal. Era um lugar quieto e repousante, engastado no meio de um carnaval, preso à sua identidade própria e aceitando a passagem do tempo sem, no entanto, associar-se a ela. Jason fechou a porta cumprimentando com a cabeça o grisalho porteiro, cuja indiferença se transformara em indulgência depois da nota de vinte francos. — Ele pensa que você é um provinciano adúltero todo afogueado com um programa noturno — disse Marie. — Espero que você tenha notado que vim diretamente para a cama. — Seu nome é Hervé, e ele será bastante atencioso conosco. Não tem necessidade de dividir a riqueza. — Aproximou-se e tomou-a nos braços. — Obrigado por me ter salvo a vida — disse. — Não é nada, meu amigo. — Ela levantou-se e segurou-lhe o rosto nas mãos. — Mas não me faça esperar assim de novo. Quase fiquei maluca; tudo o que podia pensar era que alguém o reconhecera... ou que alguma coisa terrível havia acontecido.
— Esqueceu que ninguém sabe como eu sou? — Não se fie nisso, não é verdade. Havia quatro homens na Steppdeckstrasse, inclusive aquele bastardo do Guisan Quai. Eles estão vivos, Jason. E eles o viram. — Na verdade não. Viram um homem de cabelos escuros com bandagens no pescoço e na cabeça e que andava mancando. Apenas dois estiveram perto de mim: o que estava no segundo andar e aquele porco do Guisan. O primeiro não poderá deixar Zurique por enquanto; não pode andar e pouco restou da sua mão esquerda. O segundo recebeu a luz das lanternas nos olhos, não me viu bem. Ela largou-o, enrugando a testa; a mente alerta estava se questionando. — Não pode ter tanta certeza. Eles estiveram lá e o viram. Mude seu cabelo... e você fica com outro rosto. Geoffrey Washburn, Île de Port Noir. — Repito, eles viram um homem de cabelos negros que estava no escuro. Você sabe usar uma solução de água oxigenada? — Nunca usei. — Então vou procurar uma loja amanhã de manhã. Montparnasse é o melhor lugar para isso. Louros se divertem mais, não é o que dizem? Ela examinou-lhe o rosto. — Estou tentando imaginar como você vai ficar. — Diferente. Não muito, mas o suficiente. — Talvez esteja certo. Espero que sim, meu Deus. — Ela beijou-lhe a face, sinal de que iria começar a falar. — Agora, diga-me o que aconteceu. Onde você foi? O que soube sobre esse... esse incidente de seis meses atrás? — Não foi há seis meses. E, por isso, eu não podia tê-lo matado. — Contou-lhe tudo, exceto aqueles breves instantes em que pensara em não vê-la mais. Não precisava contar, ela mesma acabou tocando no assunto. — E se aquela data não estivesse muito clara em sua mente você não viria ao meu encontro, não é? Ele balançou a cabeça. — Provavelmente não. — Eu sabia. Senti isso. Por um instante, quando saí do café e fui até a escadaria do museu, quase nem podia respirar. Era como se estivesse sufocada. Pode acreditar nisso? — Não quero acreditar. — Nem eu, mas aconteceu. Estavam sentados. Ela na cama, ele na única poltrona que havia ali por perto. Ele estendeu a
mão procurando a dela. — Ainda não tenho muita certeza de que devia estar aqui... Conheci aquele homem, vi o seu rosto; eu estava em Marselha quarenta e oito horas antes de ele ser mono! — Mas não foi você quem o matou. — Então por que eu estava lá? Por que as pessoas pensam que fui eu? Minha nossa, é uma loucura! — Saiu da poltrona, a dor voltou-lhe aos olhos. — Mas eu havia esquecido. Não sou normal, sou? Porque esqueci tudo, anos... Uma vida toda. Marie falou por falar, sem compaixão na voz. — As respostas lhe virão. De uma fonte ou outra; depois, de você mesmo. — Talvez não seja possível. Washburn disse que eram como blocos reagrupados, diferentes túneis... diferentes janelas. — Jason foi até a janela; abraçando-se a si mesmo no peitoril da janela, pôsse a olhar lá para baixo, para as luzes de Montparnasse. — As paisagens não são as mesmas; nunca serão. Em algum lugar lá fora existem pessoas a quem conheço e que me conhecem. Algumas milhas mais distante existem outras pessoas que são minhas conhecidas e não são... Ou até, oh, Deus, talvez uma esposa e filhos... Não sei. Continuo a rolar no vento, me virando sem nunca poder pousar no solo. Cada vez que tento sou jogado para cima de novo. — Para o céu? — perguntou Marie. — Sim. — Você pulou de um avião — declarou ela. Bourne virou-se. — Eu nunca disse isso! — Você falou sobre isso enquanto dormia, uma noite dessas. Você estava suando, o rosto afogueado e quente, e tive que enxugá-lo com uma toalha. — Por que não me disse nada? — Eu disse, de certa forma. Perguntei-lhe se você era um piloto, ou se voar lhe incomodava. Especialmente à noite. — Eu não sabia do que você falava. Por que não me forçou? — Fiquei com receio. Você esteve bem próximo da histeria, e não tenho nenhuma prática com essas coisas. Posso ajudá-lo a lembrar-se, mas não posso lidar com o seu inconsciente. E acho que ninguém pode, a não ser um médico. — Um médico? Estive com um durante quase seis meses. — Pelo que me contou dele, acho que seria bom procurar outra opinião. — Não! — respondeu, confuso com a sua própria irritação.
— Por que não? — Marie levantou-se da cama. — Você precisa de ajuda, meu querido. Um psiquiatra pode... — Não! — Ele gritou sem querer, furioso consigo mesmo. — Não vou fazer isso. Não posso. — Por favor, diga-me por quê — perguntou ela calmamente, pondo-se na sua frente. — Eu... Eu... não posso fazer isto. — Só me diga por quê, só isso. Bourne olhou-a fixamente, depois virou-se e olhou para fora, pela janela, as mãos no peitoril. — Porque tenho medo. Alguém mentiu, e fiquei muito grato por isso, muito mais do que lhe posso dizer. Mas e se não houver mais mentiras, suponhamos que o resto seja verdade. O que posso fazer, então? — Você está dizendo que não quer descobrir? — Não é bem assim. — Ele se inclinou na janela, o olhar fixo nas luzes lá embaixo. — Tente me entender — disse. — Tenho que saber algumas coisas.., o suficiente para tomar uma decisão... mas talvez não tudo. Uma parte de mim tem que ser capaz de ir embora, desaparecer. Tenho que ser capaz de dizer para mim mesmo, o que foi não é mais e há uma possibilidade de nunca ter sido, porque não tenho nenhuma lembrança disso. O que uma pessoa não pode se lembrar não existe.., ao menos pa ra ele. — Virou-se para Marie. — O que estou tentando lhe dizer é que talvez seja melhor assim. — Você quer evidências, mas não provas, é isso que está dizendo? — Quero algumas setas apontando para uma ou outra direção, dizendo-me quando fugir ou não. — Dizendo a você. E nós? — Isso virá com as setas, não é? Você sabe disso. — Então vamos procurá-las — respondeu ela. —. Tenha cuidado. Você pode não querer viver com o que poderá vir a saber. É isso o que quero dizer. — Posso viver com você. E isso é verdadeiro. — Ela se levantou e tocou-lhe o rosto. — Venha. Ainda são cinco horas em Ontário e posso pegar Peter no escritório. Ele pode começar a procurar a Treadstone... e nos dar o nome de alguém aqui na embaixada que possa nos ajudar, se precisarmos. — Vai dizer a Peter que está em Paris? — De qualquer forma ele vai ficar sabendo pela telefonista, mas a chamada não dará pistas deste hotel. E não se preocupe, manterei tudo “em família”, serei casual. Vim a Paris passar uns dias porque meus parentes em Lyon são simplesmente chatíssimos. Ele vai aceitar esta desculpa. — Será que ele conhece alguém na embaixada aqui?
— Peter faz questão de conhecer alguém em cada lugar. É um dos seus traços menos atraentes. — Parece que sim. — Bourne pegou seus casacos. — De pois do seu telefonema, podemos jantar. Nós dois bem que podemos tomar um drinque. — Vamos passar pelo banco, na Rua Madeleine. Quero ver uma coisa. — O que você pode ver à noite? — Uma cabine de telefone. Espero que tenha uma ali por perto. Havia. Em diagonal à entrada do banco, na rua da frente. O homem alto e louro, com óculos de armação de tartaruga, olhou para o relógio. O sol da tarde batia na Rua Madeleine. As calçadas estavam repletas de gente, o tráfego nas ruas confuso, como era sempre em Paris. Ele entrou na cabine telefônica e desembaraçou o fio do telefone, que estava solto e fora do gancho. O fio tinha um nó. Era um sinal cortês para a próxima pessoa a utilizar o telefone, avisando que o aparelho estava com defeito — isso reduziria a chance de ocuparem a cabine. Dera certo. Olhou para o relógio de novo; começara a contagem. Marie estava dentro do banco. Ela telefonaria dali a poucos minutos. Tirou algumas moedas do bolso, colocou-as na beirada da mesinha do telefone e se encostou no vidro da cabine, os olhos postos no banco, do outro lado da rua. Uma nuvem escondeu um pouco a luz do sol e ele pôde ver-se refletido no vidro. Aprovou a nova imagem, lembrando-se da espantada reação do cabeleireiro em Montparnasse, que o isolara em uma cabine fechada com cortinas enquanto operava a sua transformação, tingindo-lhe os cabelos de louro. A nuvem passou, a luz do sol reapareceu, e o telefone tocou. — É você? — perguntou Marie St. Jacques. — Sim — respondeu Bourne. — Certifique-se do nome e da localização do escritório. E deixe seu francês mais aspirado, pronuncie erradamente algumas palavras para que ele saiba que você é americano. Diga-lhe que não está acostumado com os telefones de Paris. Depois faça tudo em seqüência. Telefono-lhe de novo daqui a cinco minutos. — Relógio pronto. — O quê? — Nada. Eu quis dizer, vamos começar. — Está bem... O relógio está pronto. Boa sorte. — Obrigado. — Jason abaixou a alavanca do telefone, soltou-a e discou o número que memorizara.
— Banco de Valois. Bom dia. — Preciso de ajuda — disse Bourne, continuando a usar as palavras que Marie lhe dissera para usar. — Transferi recentemente considerável quantia da Suíça, por mala postal, e gostaria de saber se já está disponível. — O senhor tem que falar com o nosso Departamento de Serviços Estrangeiros, senhor. Vou pôlo em contato. Um dique e em seguida outra voz feminina. — Serviços Estrangeiros. Jason repetiu seu pedido. — Pode me dar o seu nome, por favor? — Preferiria falar com um funcionário do banco primeiro. Houve uma pausa na linha. — Muito bem, senhor. Vou transferir a ligação para o escritório do vice-presidente d’Amacourt. A secretária do Sr. d’Amacourt era mais difícil; a burocracia bancária estava em ação, como previra Marie. Então, Bourne mais uma vez usou as palavras de Marie. — Estou me referindo a uma transferência de Zurique, vinda do Gemeinschaft Bank, da Bahnhofstrasse. É uma transferência na ordem de sete cifras. O Sr. d’Amacourt, por favor. Tenho pressa. A demora não fora causada pela secretária. Um vice-presidente com voz perplexa entrou na linha. — Em que posso servi-lo? — O senhor é d’Amacourt? — perguntou Jason. — Sou Antoine d’Amacourt, sim. E quem, se posso perguntar, está na linha? — Ótimo! Deviam ter-me dado o seu nome em Zurique. Certificar-me-ei disso da próxima vez, com certeza — disse Bourne. A redundância era intencional, para marcar o seu sotaque americano. — Desculpe-me, pode repetir? O senhor prefere falar em inglês? — Sim — respondeu Jason; e começou a. falar em inglês.— Estou tendo muito trabalho com este telefone — olhou para o relógio, tinha menos de dois minutos. — Meu nome é Bourne, Jason Bourne. Há oito dias transferi quatro milhões e meio de francos do Gemeinschaft Bank, de Zurique. Foi-me assegurado que a transação seria confidencial. — Todas as transações são confidenciais, senhor. — Certo. Ótimo. O que quero saber é se já está tudo pronto. — Devo lhe dizer — continuou o alto funcionário do banco — que os negócios confidenciais excluem confirmações de tais transações para partes desconhecidas que telefonem.
Marie estava certa, a sua lógica tornou-se clara para Jason. — Eu assim esperava. Mas como já disse a sua secretária, estou com muita pressa. Tenho que deixar Paris daqui a algumas horas e preciso pôr tudo em ordem. — Então sugiro-lhe que venha ao banco. — Sei disso — disse Bourne, satisfeito que a conversa tomasse o rumo que Marie previra. — Gostaria que tudo já estivesse pronto quando eu chegasse ao banco. Onde fica o seu escritório? — No andar térreo, senhor. Do lado de trás, depois do portão, na porta do centro. Temos recepcionista. — Mas entrarei em contato, para os negócios, apenas com o senhor, não? — Se o senhor assim o deseja, embora qualquer funcionário... — Olhe, senhor — exclamou o irado americano —, estamos falando de uma soma superior a quatro milhões de francos! — Apenas comigo, senhor Bourne. — Certo. Ótimo. — Jason pôs os dedos no gancho do telefone. Restavam quinze segundos. — Olhe, são 14h35min agora... Baixou duas vezes a alavanca, interrompendo a ligação, mas sem desligar o telefone. — Alô? Alô? — Sou eu, senhor. — Malditos telefones! Ouça, eu... — Baixou a alavanca novamente, três vezes em um segundo, rapidamente. — Alô, Alô? — Senhor, por favor, se o senhor me der o número do seu telefone... — Telefonista? Telefonista? — Senhor Bourne, por favor... — Não posso ouvi-lo! — Quatro segundos. três segundos, dois segundos. — Espere um minuto, telefono de novo. — Baixou a alavanca e interrompeu a linha, desligando o telefone. Passaram-se mais três segundos e em seguida o telefone tocou. — O nome dele é d’Amacourt, o escritório fica no andar térreo, atrás, porta central. — Entendi — disse Marie, desligando. Bourne discou novamente para o banco, pondo mais fichas no telefone. — Je parlais avec Monsieur d’Amaeourt quand on m’a coupé... — Je regrette, monsieur.
— Senhor Bourne? — D’Amacourt? — Sim. Sinto muito que tenha tido problemas com o telefone. O senhor estava dizendo? Sobre a hora... — Oh, sim. Passa um pouco das 14h30min. Estarei aí lá pelas 15h. — Espera-lo-ei com prazer, senhor. Jason deu novamente um nó no fio do telefone e deixou-o solto. Depois saiu da cabine e caminhou com passos rápidos pela multidão até a proteção do toldo de uma loja. Virou-se para a loja e esperou; os olhos estavam fixos no banco, do outro lado da rua, enquanto se lembrava de outro banco em Zurique e das sirenes da Bahnhofstrasse. Os próximos vinte minutos diriam se Marie estava certa ou não. Se estava, não haveria sirene alguma na Rua Madeleine. A mulher esguia, com um chapéu de aba larga que lhe cobria parcialmente o rosto, desligou o telefone público preso na parede do lado direito do banco. Abriu a carteira, tirou um pó-de-arroz e ostensivamente refez a maquilagem, ajeitando o espelho em ângulo com o lado esquerdo, depois com o direito. Satisfeita, repôs o pó na bolsa e a fechou, passou em frente às caixas e foi em direção aos fundos, no andar térreo. Depois parou em um balcão do centro, pegou uma caneta presa por uma correntinha e começou a preencher um formulário que estava em cima do mármore. A menos de dez pés dali ficava um pequeno portão de ferro, flanqueado por uma grade de madeira que percorria toda a extensão do saguão. Do outro lado do portão e da grade ficavam as escrivaninhas dos executivos menos graduados e, atrás destas, as escrivaninhas dos secretários mais graduados — cinco ao todo. Estas mesas ficavam em frente a cinco portas na parede de trás. Marie leu o nome pintado em letras douradas no centro da porta M.A.R. D’AMACOURT VICE-PRESIDENTE CONTAS NO EXTERIOR E DIVISAS Aconteceria a qualquer momento — se fosse para acontecer, se ela estivesse certa. E se ela estivesse, tinha que saber antes como era o senhor A. R. d’Amacourt, pois ele era o homem com quem Jason iria se encontrar, se aproximar dele e conversar. Mas não no banco. Aconteceu. Houve um nervosismo controlado no comportamento dos funcionários. A secretária, que estava na escrivaninha em frente ao escritório de d’Amacourt, correu lá para dentro com o bloco de papel na mão. Saiu depois de trinta segundos, pegou o telefone e discou três números — isso significava uma chamada interna — e ditou-os, lendo o que estava no seu bloco de anotações. Passaram-se dois minutos. A porta do escritório de d’Amacourt se abriu e o vice-presidente se postou na soleira da porta. Era um ansioso executivo, preocupado com os possíveis atrasos. Homem de meia-idade, tinha o rosto mais velho do que a sua idade indicava, mas esforçava-se por parecer jovem.
O cabelo fino e ralo era tingido e penteado de forma a esconder os pontos onde rareava; os olhos eram encaixados em pequenas órbitas de carne, o que evidenciava as longas horas passadas com bom vinho. Eram olhos frios, dardejantes, que aparentavam um homem exigente, prudente com os seus deveres. Fez uma pergunta à secretária, aos gritos. Ela fez o possível para manter a compostura. D’Amacourt entrou no escritório novamente sem fechar a porta — a porta da jaula do irado felino fora deixada aberta. Passou-se mais um minuto. A. secretária continuou voltada para a direita, a olhar para alguma coisa — a procurar por alguma coisa. Quando a encontrou, suspirou aliviada, fechando um pouco os olhos. Do outro lado, na parede da esquerda, uma luz verde de repente se acendeu acima dos dois painéis de madeira escura — estavam usando o elevador. Segundos depois a porta se abriu e um homem de mais idade e muito elegante saiu do elevador carregando um pequeno invólucro preto, não maior do que a sua mão. Marie olhou-o bem, sentia-se ao mesmo tempo satisfeita e receosa. Estava certa. O invólucro preto fora tirado de um arquivo confidencial de dentro de uma das salas reservadas e fora assinado e liberado por um homem acima de qualquer suspeita ou tentação — a idosa figura que avançava pelas filas de escrivaninhas em direção ao escritório de d’Amacourt. A secretária levantou-se da cadeira, cumprimentou o executivo e o acompanhou até o escritório de d’Amacourt. Em seguida saiu, fechando a porta atrás de si. Marie olhou para o relógio, os olhos acompanhando o rápido ponteiro dos segundos. Estava à espera de mais uma pequena evidência, que logo poderia ser comprovada se pudesse ir até o outro lado das grades e dar uma olhada na mesa da secretária. Se era para acontecer, aconteceria dali a poucos segundos, e seria por um breve momento. Dirigiu-se ao portão, abriu a carteira e sorriu vagamente para a recepcionista, que falava ao telefone. Murmurou o nome d’Amacourt para a espantada recepcionista, avançou e abriu o portão. Entrou depressa; parecia uma cliente muito decidida, ou até mesmo muito ilustre, do Banco Valois. — Pardon, madame... — A recepcionista pôs a mão no telefone, acrescentando: — Em que posso servi-la? Marie pronunciou de novo o nome — parecia agora uma cliente muito cortês atrasada para um compromisso e não desejava importunar uma funcionária tão ocupada. — Monsieur d’Amacourt. Acho que estou atrasada, preciso falar com a sua secretária. — E continuou a andar pelo corredor em direção à mesa da secretária. — Please, madam — a recepcionista a achou. — Tenho que anunciar... O rumor das máquinas elétricas e das conversas abafou as suas palavras. Marie se aproximou da secretária, o rosto sério e ela a olhou tão espantada quanto a recepcionista. . — Sim? Em que posso servi-la? — Senhor d’Amacourt, por favor.
— Creio que ele está em reunião, senhora. A senhora tem hora marcada? — Oh, sim, claro — disse Marie abrindo novamente a carteira. A secretária olhou para o seu programa batido à máquina que estava sobre a mesa. — Acho que não tenho nenhuma hora marcada para agora. — Oh, céus! — exclamou a confusa cliente do Banco Valois. — Agora que reparei. É para amanhã, não para hoje! Sinto muito! Virou-se e voltou para o portão. Já vira o que queria, a última evidência. Apenas um botão estava aceso no telefone de d’Amacourt. Ele fizera, sem o auxílio da secretária, uma chamada para fora. A conta pertencente a Jason Bourne tinha específicas e confidenciais instruções que não deviam ser reveladas nem ao próprio correntista. Bourne olhou para o mostrador do relógio; ainda estava sob o abrigo do toldo da loja. Eram 14h49min. Marie estaria novamente perto do telefone em frente ao banco, era um par de olhos lá dentro. Os próximos minutos lhes dariam uma resposta; talvez ela até já a tivesse. Movimentou-se um pouco em direção ao canto esquerdo da vitrine da loja, mantendo o banco sempre na mira. Uma balconista da loja sorriu para ele; lembrou-se que não devia chamar nenhuma atenção sobre si. Puxou do bolso uma carteira de cigarro, acendeu um e olhou de novo para o relógio. Oito para as três. De repente, ele os viu. Ele. Três homens muito bem-vestidos caminhavam rapidamente pela Rua Madeleine, conversando casualmente, mas com os olhos fixos à frente. Pediam licença para passar entre os pedestres mais lentos, pediam desculpas com uma cortesia não-parisiense. Jason se concentrou no homem do meio. Era ele. Um homem chamado Johann. Faça um sinal para Johann entrar. Viremos para apanhá-los. Um homem alto e magro, com óculos de aros dourados, dissera estas palavras na Steppdeckstrasse. Johann. Haviam-no mandado de Zurique para cá. E ele vira Jason Bourne. Isso lhe dizia uma coisa: não havia fotografias dele. Os três chegaram à entrada. Johann e o homem à sua direita entraram; o terceiro homem ficou parado perto da porta. Bourne voltou à cabine telefônica, ia esperar mais quatro minutos e fazer a sua última chamada para Antoine d’Amacourt. Jogou o cigarro para fora da cabine e o amassou debaixo da sola do sapato. Depois abriu a porta. — Monsieur... — Uma voz veio-lhe das costas. Jason virou-se, prendendo a respiração. Um homem desconhecido, com um começo de barba apontando no rosto, fez um sinal com a mão em direção ao telefone. — Le téléphone... ii ne marche paz. Regardez la corde. — Merci bien. Je vais essayer quand même.
O homem deu de ombros e foi-se. Bourne entrou na cabine, os quatro minutos já se tinham esgotado. Tirou do bolso as moedas — o bastante para duas chamadas — e discou o primeiro número. — Banco Valois. Bom dia. Dez segundos depois d’Amacourt estava no telefone, a voz tensa. — É o senhor, senhor Bourne? Pensei que tivesse me dito que estava a caminho do escritório. — Mudei de plano. Devo telefonar-lhe amanhã. — De repente, pelo vidro da cabine, Jason viu um carro encostar no outro lado da rua, em frente ao banco. O terceiro homem, que ficara na porta de entrada, fez um sinal de cabeça para o motorista. — ... eu possa fazer? — D’Amacourt fizera uma pergunta. — Desculpe-me, o que disse? — Perguntei se há alguma coisa que eu possa fazer. Já tenho a sua conta, tudo está pronto aqui a sua espera. Estou certo que sim, pensou Bourne. A estratégia valia a pena. — Olhe, tenho que voltar para Londres esta tarde. Vou pegar uma ponte aérea, mas estarei de volta amanhã. Mantenha tudo pronto, certo? — Para Londres, senhor? — Telefono amanhã. Agora tenho que pegar um táxi para Orly. — Desligou e ficou observando a entrada do banco. Em menos de meio minuto Johann e seus companheiros saíram correndo. Conversaram com o terceiro homem e depois os três embarcaram no carro. A fuga se transformara em caçada, agora a caminho do Aeroporto de Orly. Jason guardou o número da placa do automóvel. Depois discou mais um número. Se o telefone do banco não estivesse sendo usado, Marie o atenderia antes mesmo de ele começar a tocar. Foi o que ela fez. — Sim? — Viu alguma coisa? — Muita. d’Amacourt é o seu homem.
Capítulo12 Andaram pela loja, indo de balcão em balcão. Marie permaneceu próxima à larga vitrine, mantendo um olhar vigilante na entrada do banco do outro lado da Rua Madeleine. — Peguei duas estolas para você — disse Bourne. — Não devia. Os preços estão muito altos. — Já são quase quatro horas. Se ele não saiu até agora, só vai sair quando terminar o expediente. — Provavelmente não. Se ia encontrar-se com alguém já devia ter saído. Mas temos que saber. — Garanto-lhe, seus amigos estão em Orly, correndo de avião em avião. Não há meios de eles saberem se estou em um deles porque não sabem que nome estou usando. — Dependem do homem de Zurique para reconhecê-lo. — Ele está à procura de um homem com cabelos escuros e que manca, não à minha procura. Venha, vamos entrar no banco. Você pode me mostrar d’Amacourt. — Não podemos fazer isso — disse Marie balançando a cabeça. — As câmaras no teto têm lentes largas. Se forem ver os filmes depois, vão ver você. — Um homem louro e de óculos? — Ou eu. Estava lá. A recepcionista ou a secretária podem me identificar. — Você está querendo me dizer que há uma conspiração normal lá dentro? Duvido. — Eles poderiam inventar uma porção de razões para fazer rodar esses filmes. Marie estacou. Agarrou o braço de Jason, apontando com os olhos o banco do outro lado da janela. — Lá está ele! Aquele com o sobretudo de lapela de veludo... d’Amacourt. — O que está ajeitando as mangas? — Sim. — Já o vi. Vejo-a depois, no hotel. — Tenha cuidado. Tenha muito cuidado. — Pague as estolas; estão no balcão de trás. Jason saiu da loja, protegendo-se do sol, procurando por uma passagem onde pudesse atravessar a rua. Não havia nenhuma. D’Amacourt virara à direita e andava normalmente. Não parecia estar com
pressa. Não ia encontrar ninguém. Ao contrário, havia um certo ar de gabolice na postura. Bourne chegou à esquina e atravessou a rua no sinal. Estava atrás do banqueiro. D’Amacourt parou numa banca para comprar um vespertino. Jason ficou à espera em uma loja de objetos esportivos, depois continuou a segui-lo enquanto ele percorria o quarteirão. Mais à frente havia um café; janelas escuras, pesada entrada de madeira e fechos de ferro. Não precisava de muita imaginação para perceber o seu interior. Devia ser um lugar para os homens, e para as mulheres que vinham com os homens. Era um lugar tão bom quanto qualquer outro para uma discussão calma com Antoine d’Amacourt. Jason andou mais depressa, aproximando-se do banqueiro. Falou em um francês meio desajeitado com sotaque inglês, o mesmo que usara ao telefone. — Bonjour, monsteur. Je... pense que vous... êtes Mc sieur d’Amacourt. Estava certo, não estava? O banqueiro parou. Seus olhos frios pareciam amedrontados, lembrando-se. A gabolice murchou um pouco em seu bem-talhado sobretudo. — Bourne? — sussurrou. — Seus amigos devem estar muito confusos neste instante. Espero que estejam percorrendo todo o Aeroporto de Orly, talvez possam até pensar que o senhor lhes deu uma pista falsa, uma informação errada. Talvez até propositadamente. — O quê? — Os olhos assustados se arregalaram. — Entremos — disse Jason, tomando o braço de d’Ama-court com um toque firme. — Acho que podemos conversar. — Não sei de nada, absolutamente nada! Segui apenas as exigências da conta. Não estou envolvido! — Sinto. Quando falei com o senhor pela primeira vez, o senhor me disse que não podia confirmar nada sobre os meus negócios ao telefone. Não podia discutir assuntos de negócios com alguém a quem não conhecia. E vinte minutos depois o senhor me disse que já estava com tudo pronto. Isso é uma confirmação, não é? Vamos entrar. O café era, de certa forma, uma versão em miniatura do Drei Alpenhäuser de Zurique. Os reservados fechados eram compridos, as repartições que os separavam, altas, e a luz, mortiça. Mas depois disso as aparências mudavam; o café da Rua Madeleine era completamente francês, garrafas de vinho em vez de canecas de cerveja. Bourne pediu um reservado no canto. O garçom os instalou. — Peça um drinque — disse Jason. — Vai precisar. — Presunção sua — respondeu friamente o banqueiro. — Vou tomar um uísque. Os drinques vieram logo; o breve intervalo da espera foi consumido por d’Amacourt tirando nervosamente um maço de cigarros do seu bem-talhado sobretudo. Bourne riscou um fósforo e o segurou bem perto do rosto do banqueiro. Muito perto.
— Merci — D’Amacourt deu uma tragada, tirou o cigarro da boca e engoliu metade do copo de uísque. — Não sou o homem com quem deve conversar — disse. — Com quem, então? — Um dos donos do banco, talvez. Não sei, mas sei que não é comigo que deve conversar. — Explique-se. — Alguns acordos foram feitos. Um banco de organização particular tem mais flexibilidade do que uma instituição particular, que tem acionistas. — Como? — Há uma grande distância, devemos dizer, no que diz respeito às exigências de certos clientes e os bancos geminados. Menor investigação do que a que deve ser exigida de uma companhia listada na Bolsa. O Gemeinschaft de Zurique também é uma instituição privada. — As exigências foram feitas pelo Gemeinschaft? — Pedidos... exigências... sim. — Quem é o dono do Valois? — Quem? Muitos — é um consórcio. Dez ou doze homens e suas famílias. — Então tenho que falar com o senhor, não é? Quero dizer, seria tolice minha correr por toda Paris ao encalço deles. — Sou apenas um executivo. Um empregado. — D’Ama-court engoliu o restante do uísque, amassou o cigarro e procurou outro. E pelos fósforos, também. — Quais são os acordos? — Eu poderia perder a minha posição, senhor! — O senhor poderia perder a sua vida — disse Jason, perturbado pelo fato de as palavras lhe saírem com tanta facilidade. Não sou tão privilegiado quanto o senhor pensa. — Nem tão ignorante como quer me fazer acreditar — disse Bourne, perscrutando o banqueiro do outro lado da mesa. — Seu tipo é facilmente reconhecível, d’Amacourt. Está nas suas roupas, na forma como penteia os cabelos, como anda; você é muito pomposo. Um homem como você não é vicepresidente do Banco Valois sem fazer perguntas. Você se protege. Não faz uma sujeira qualquer se não for para proteger seu próprio rabo. Agora, diga-me que acordos foram esses. Você não é importante para mim, estou sendo claro? D’Amacourt riscou um fósforo e o segurou perto do cigarro, enquanto olhava fixamente para Jason. — Não precisa me ameaçar, senhor. O senhor é um homem muito rico. Por que não me paga? —
O banqueiro sorriu nervosamente. — O senhor, incidentalmente, é bastante rico. Fiz uma ou duas perguntas. Paris não é Zurique. Um homem da minha posição tem que ter palavras ou respostas. Bourne se recostou na cadeira, mexendo no copo, o barulho dos cubos de gelo incomodava obviamente d’Amacourt. — Dê-me um preço razoável — disse ele —, e nós o discutiremos. — Sou um homem razoável. Vamos deixar que a decisão seja feita sobre o valor, e seja feita pelo senhor. Banqueiros do mundo inteiro são recompensados por seus agradecidos clientes a, quem aconselham. Gostaria de pensar que o senhor é meu cliente. — Sei que gostaria. — Bourne sorriu, sacudindo a cabeça como resposta ao sangue frio do homem. — Assim escorregamos do suborno para a gratificação. Como compensação pelos serviços e conselhos pessoais. D’Amacourt encolheu os ombros. — Aceito a definição, e se algum dia for interpelado, repetirei as suas palavras. — Os acordos? — Acompanhando a transferência do capital de Zurique veio une fiche confidentielle. — Une fiche? — interrompeu Jason, lembrando-se daquele momento no escritório de Apfel, no Gemeinschaft, quando Koenig entrou dizendo estas palavras. — Já ouvi isso antes. O que é? — Na verdade, termo datado. Vem da metade do século dezenove, quando foi uma prática muito comum nas grandes casas bancárias — sobretudo na dosRothschilds — para acompanhar o curso da circulação internacional do dinheiro. — Obrigado. Agora, o que é isso mais detalhadamente? — Instruções separadas e seladas para serem abertas e seguidas quando a conta em questão é movimentada. — Movimentada? — O capital é retirado ou depositado. — Suponhamos que eu vá até uma caixa, apresente um cartão do banco e peça por dinheiro? — Dois asteriscos apareceriam no computador que faz as transações. O senhor seria enviado ao meu escritório. — De qualquer forma, fui enviado ao senhor. A telefonista me deu o número do seu escritório. — Uma oportunidade irrelevante. Existem outros dois funcionários no Departamento de Serviços Estrangeiros. Se o senhor fosse posto em contato com qualquer um dos dois, a fiche faria com que eles o enviassem a mim. Sou o executivo-chefe.
— Percebo. — Mas Bourne não estava muito certo de ter percebido. Havia um furo na seqüência, um espaço que precisava ser preenchido. — Espere um minuto. Você não sabia de nada sobre a fiche quando lhe foi levada a minha conta-corrente. — E por que a pedi? — interrompeu d’Amacourt, antecipando a pergunta. — Seja razoável, senhor. Ponha-se no meu lugar. Um homem telefona e se identifica, depois diz que está “falando sobre mais de quatro milhões de francos”. Quatro milhões. O senhor não ficaria ansioso para ser útil? Ajeitar as coisas aqui e ali, facilitar? Olhando para o elegante banqueiro, Jason percebeu que ele dissera a coisa mais natural. As instruções. Quais eram? — Para começar, um número de telefone — fora da lista, é claro — devia ser chamado, e todas as informações seriam dadas. — Lembra-se do número? — Faço questão de esquecer tais coisas. — Aposto que sim. Por quê? — Tenho que me proteger, senhor. De que forma o senhor poderia tê-lo obtido? Apresento a pergunta... como o senhor diria?... retoricamente. — Isso quer dizer que tem a resposta. Como foi que o obteve? Se surgir de alguma forma... De quem? — Em Zurique. O senhor pagou um preço muito alto para que alguém quebrasse não apenas o regulamento mais rígido do Bahnhofstrasse, mas também as leis da Suíça. — Já sei quem é o homem — disse Bourne, enquanto lhe vinha à memória, o rosto de Koenig. — Ele já cometeu este crime antes. — No Gemeinschaft? Está brincando? — Jamais. Seu nome é Koenig, sua mesa fica no segundo andar — Lembrar-me-ei disso. — Tenho certeza que sim. O número? — D’Amacourt deulhe o número. Jason anotou-o num guardanapo de papel. — Como posso ter certeza de que esse número é verdadeiro? — O senhor tem uma garantia razoável. Ainda não fui pago. — Ótimo. — E como o valor é intrínseco à nossa discussão, devo dizer-lhe que este é o segundo número de telefone, o primeiro já foi cancelado.
— Explique isso. D’Amacourt se inclinou para a frente. — Uma fotocópia da fiche original chegou juntamente com os papéis da transferência. Estava selada em um invólucro preto, aceito e assinado pelo chefe dos registros. O cartão que estava dentro fora validado por um sócio do Gemeinschaft e visado pelo costumeiro representante suíço. As instruções eram simples, bem claras. Para qualquer assunto que dissesse respeito à conta-corrente de Jason C. Bourne, devia ser feita imediatamente uma chamada para os Estados Uni dos. Os detalhes seriam dados... O cartão, neste trecho, estava alterado; o número de Nova Iorque, apagado; um número em Paris fora inserido, junto com uma rubrica. — Nova Iorque — interrompeu Bourne. — Como o senhor sabe que era Nova Iorque? — O número de código da área do telefone estava incidentalmente incluído, posto na frente do número, e permaneceu intacto. Era 212. Como vice-presidente dos Serviços Estrangeiros, faço estas chamadas diariamente. — Foi um trabalho muito sujo. — Possivelmente. Pode ter sido feito com pressa, ou não entenderam muito bem o que devia ser feito. Por outro lado, não há forma de apagar o corpo de instruções sem passar novamente pelo representante. Um risco menor, se levarmos em consideração o número de telefones em Nova Iorque. De qualquer maneira, a substituição me deu campo para fazer uma ou duas perguntas. As mudanças são o anátema de um banqueiro. — D’Amacourt bebeu o que restava do seu drinque. — Mais um? — Não, obrigado. Prolongaria a nossa conversa. — Foi o senhor quem parou. — Estou pensando, senhor. Talvez o senhor possa ter em mente uma cifra muito vaga. Antes que eu continue a conversa... Bourne estudou o homem. — Podem ser cinco — disse depois. — Cinco o quê? — Cinco cifras. — Continuarei. Conversei com uma mulher... — Com uma mulher? Como começou a conversa? — Com sinceridade. Eu era o vice-presidente do Valois, e estava seguindo instruções do Gemeinschaft de Zurique. O que mais podia dizer? — Continue.
— Eu disse que havia entrado em contato com um homem que dizia se chamar Jason Bourne. Ela me perguntou quando acontecera isso; eu respondi que há poucos minutos. Então, ela ficou muito ansiosa em saber sobre o que tínhamos conversado, qual fora a substância da nossa conversa. Nesse ponto expus as minhas preocupações. A fiche, que declarava especificamente que deveria ser feita uma chamada para Nova Iorque, e não para Paris. Naturalmente, ela disse que isso não era um problema meu, e que a mudança fora autorizada através de uma assinatura. E perguntou se eu não me importava se Zurique fosse informada de que um funcionário do Valois se recusara a seguir as instruções do Gemeinschaft. — Pare um pouco — interrompeu Jason. — Quem era ela? — Não tenho idéia. — Você quer dizer que conversaram durante todo esse tempo e ela não lhe disse quem era? Você não perguntou? — Esta é a natureza da fiche. Se algum nome é pronunciado, muito bem. Se não, não se pergunta. — Mas o senhor não hesitou em perguntar o número do telefone. — Apenas um recurso; eu precisava de informações. O senhor transferiu quatro milhões e meio de francos: uma grande quantia. E devia ser, portanto, um cliente poderoso, talvez, com ligações ainda mais poderosas... A gente recusa, depois concorda, e recusa novamente, apenas para concordar de novo. É assim que a gente fica sabendo das coisas. Sobretudo se o interlocutor demonstra ansiedade. Posso lhe assegurar que ela mostrou. — O que o senhor apreendeu? — Que o senhor devia ser considerado um homem perigoso. — De que maneira? — A definição foi deixada em aberto. Mas só o fato de o termo ter sido usado foi suficiente para que eu perguntasse por que a Sûreté não fora envolvida. A resposta dela foi extremamente interessante. “Ele está além da Sûreté, além da Interpol”, foi o que ela disse. — O que isso significou para o senhor? — Que era um assunto muito complicado, e por muitos motivos. E que seria melhor deixar tudo confidencial. Mas, desde que a nossa conversa começou, no entanto, percebi outra coisa. —O quê? — Que o senhor realmente deveria me pagar bem, pois tenho que ser extremamente cauteloso. Os que estão a sua procura estão talvez além da Süreté, além da Interpol.
— Chegaremos lá. O senhor disse a essa mulher que eu estava a caminho do seu escritório? — Em quinze minutos. Ela me pediu para ficar ao telefone por uns momentos que logo voltaria. É óbvio que deve ter feito outra chamada. Voltou com as instruções finais. O senhor devia ser retido em meu escritório até que um homem chegasse a minha secretária e perguntasse sobre um assunto de Zurique. E quando saísse, devia ser identificado por um gesto ou um aceno de cabeça; não poderia haver nenhum erro. O homem veio, é claro. E é claro, também, que o senhor nunca chegou. Então, ele esperou perto do caixa, com um companheiro. Quando o senhor telefonou dizendo que estava a caminho de Londres, deixei o meu escritório à procura do homem. Minha secretária o indicou e eu lhe contei tudo. O resto o senhor já sabe. — O senhor não achou estranho que eu devesse ser identificado? — Não só estranho como absurdo. Uma fiche é uma coisa — chamadas telefônicas, comunicações sem a identificação de rostos —, mas ser envolvido diretamente, assim abertamente, como era, já é outra coisa. Eu disse isso para a mulher. — O que ela lhe disse? D’Amacourt limpou a garganta. — Deixou bem claro que a parte que ela representava — e cujo poder era, realmente, confirmado pela própria fiche — deveria incentivar a minha cooperação. O senhor vê, eu nada escondi... Aparentemente, eles não sabem como é o senhor. — Um homem que me viu em Zurique estava no banco. — Então seus companheiros não confiam na vista dele. Ou talvez no que ele pensou ver. — Por que o senhor diz isso? — Mera observação, senhor. A mulher foi muito insistente. O senhor deve entender, recusei energicamente qualquer participação ativa; que não fosse da natureza da fiche. Ela disse que não havia uma fotografia sua. Uma mentira óbvia, é claro. — É mesmo? — Naturalmente. Todos os passaportes têm fotografias. Qual o funcionário da imigração que não pode ser comprado ou ludibriado? Dez segundos em uma sala de controle de passaportes, uma foto da foto, e está feito o acordo. Não! Eles cometeram um sério equívoco. — Acho que sim. — E o senhor — continuou D’Amacourt — acabou de me dizer mais uma coisa. Sim, o senhor realmente tem que me pagar muito bem. — O que foi que eu lhe disse? — Que o seu passaporte não o identifica como Jason Bourne. Quem é o senhor?
Jason não respondeu logo; mexeu nos óculos novamente. — Alguém que pode lhe pagar um bom dinheiro. — O bastante. O senhor é um cliente chamado Bourne. E devo ser muito cauteloso. — Quero o número daquele telefone de Nova Iorque. Pode me dar? Pagar-lhe-ei um prêmio vultoso. — Quisera poder. Não vejo como. — Pode ser retirado do cartão, da fiche. Talvez através de uma lente poderosa. — Quando eu disse que estava apagado, senhor, eu não quis dizer que estava completamente riscado. Estava apagado — eliminado. — Então, alguém o tem em Zurique. — Ou foi destruído. — A última pergunta — disse Jason, agora ansioso para sair. — É a seu respeito, aliás. É a única forma de ser pago. — A pergunta será permitida, naturalmente. Qual é? — Se eu tivesse aparecido no Valois sem antes ter feito a chamada, sem lhe ter avisado que iria, o senhor teria feito uma outra chamada telefônica? — Sim. Ninguém pode desconsiderar a fiche. Ela vem do escritório dos conselheiros. A minha dispensa viria em seguida. — Então, como nós podemos tirar o nosso dinheiro? D’Amacourt franziu os lábios. — Há uma maneira. A retirada in absentia. Os formulários são preenchidos, as instruções dadas por carta, a identificação confirmada e autenticada por uma firma de procuradores, através de cartório. Não tenho poder algum para intervir nisso. — Assim mesmo, teria que fazer a chamada? — É uma questão de tempo. Se um procurador com quem o Valois já fez muitos negócios me telefonar pedindo que eu prepare, digamos, um número de cheques a serem emitidos em favor de uma transferência estrangeira que ele já averiguou e investigou bem, eu o farei. Ele declarará que vai mandar os formulários completos e os cheques, é claro, preenchidos ao “portador”, o que não constitui prática muito incomum nestes dias de impostos excessivos. Um mensageiro chegaria com a carta durante as horas de maior atividade e minha secretária — uma estimada secretária, em quem tenho muita confiança, e que trabalha comigo há muitos anos — simplesmente me traria os formulários para que eu os assinasse e a carta para que eu a rubricasse. — E sem nenhum problema — interrompeu Bourne — a respeito dos demais papéis que o
senhor teria que assinar? — Exatamente. Depois, eu faria a chamada; provavelmente vendo se antes o mensageiro já saiu com sua pasta. — O senhor não teria em mente, por acaso, o nome de uma firma de advogados em Paris, teria? Ou um procurador específico? — Por acaso me ocorreu agora um nome. — Quanto ele vai custar? — Dez mil francos. — É muito caro! — Não muito. Ele foi um juiz, um homem honrado. — E o senhor? Quanto? Vamos deixar claro isso. — Como já disse, sou bastante razoável, e a decisão deve ser sua. Já que mencionou um número com cinco cifras, podemos tornar as suas palavras mais consistentes. Cinco cifras, começando com o número cinco. Cinqüenta mil francos. — Isso é um ultraje! — Como também o é o que o senhor fez, monsieur Bourne. — Une fiche confidentielle — disse Marie, sentada em uma cadeira perto da janela. O sol do fim da tarde batia nos edifi ias ornamentados do bulevar Montparnasse. — Então foi esse o estratagema que usaram. — Posso lhe deixar impressionada — sei de onde veio. Jason serviu-se de um drinque da garrafa que estava em cima do balcão e levou-o para a cama. Sentou-se de frente pan ela. — Quer ouvir? — Nem preciso — respondeu ela olhando para a janela, preocupada. — Sei exatamente de onde vem e o que significa. É um choque, isso sim. — Por quê? Pensei que você já esperasse por uma coisa assim. — Pelos resultados sim, mas não pela maquinação. Uma fiche é um golpe arcaico e ilegítimo, quase totalmente restrito aos bancos particulares do Continente. As leis americanas, canadenses e do Reino Unido proíbem o seu uso. Bourne lembrou-se das palavras de d’Amacourt e as repetiu. — “Vem de poderosos conselheiros”, foi o que ele disse. — Ele está certo. — Marie olhou para ele. — Você não vê? Eu sabia que havia uma bandeira
atada à sua conta. Isto quer dizer que alguém foi subornado para colher maiores informações. Isso não é muito comum. Os banqueiros não são santos. Mas isso é diferente. Esta conta em Zurique foi aberta — desde o princípio — com a fiche como parte de sua atividade. E, provavelmente, com o seu próprio conhecimento. — Treadstone Seventy One — disse Jason. — Sim. Os donos do banco trabalharam junto com a Treadstone. E, considerando a extensão da sua participação, você tinha conhecimento disso. — Mas alguém foi subornado. Koenig. Ele substituiu um número de telefone por outro. — Ele foi muito bem pago, posso lhe assegurar. Podia pegar dez anos de cadeia na Suíça. — Dez? É demais! — As leis suíças são assim. Devem ter-lhe pago uma pequena fortuna. — Carlos — disse Bourne. — Carlos... Por quê? O que eu represento para ele? Continuo a me perguntar. E continuo a dizer o seu nome, a repeti-lo! E não me lembro de nada; nada mesmo. Apenas um... um.... Nem sei. Nada. — Mas há alguma coisa, não é? — adiantou Marie. — O que é, Jason? Em que você está pensando? — Não estou pensando... Não sei. — Então está sentindo. Alguma coisa. O que é? — Não sei. Medo, talvez... Raiva, nervosismo. Não sei. — Concentre-se! — Diabo, você acha que não estou me concentrando? Acha que nunca me concentro? Tem alguma idéia do que seja isso? — Bourne ficou tenso, chateado com sua explosão. — Sinto muito. — Não é nada. Nada. Estas são as dicas, as chaves que você tem que procurar — nós temos que procurar. O seu amigo médico de Port Noir estava certo, as coisas lhe vêm à mente provocadas por outras. Como você mesmo disse, por uma caixa de fósforos, um rosto, a fachada de um restaurante. Vimos isso acontecer. E agora é um nome, um nome que você evitou durante quase uma semana, enquanto me contava tudo o que lhe acontecera durante os cinco meses anteriores, até o menor detalhe possível. Mesmo assim, você nunca mencionou Carlos. E devia, mas não mencionou. Isso significa alguma coisa para você, não percebe? Este nome convulsiona tudo dentro de você, coisas que querem sair de lá. — Eu sei. — Querido, há uma livraria famosa no bulevar Saint-Germain que é de uma bicha louca por
revistas. Um andar inteiro abarrotado de velhos números de antigas revistas, milhares. Ele até mesmo cataloga os assuntos, separa-os em um índice, como um bibliotecário. Gostaria de descobrir se Carlos está naquele índice. Vamos até lá? Bourne sentiu uma dor aguda no peito. Não tinha nenhuma relação com os seus ferimentos, era medo. Ela percebeu. E entendeu também. Ele sentiu, mas não podia compreender. — Há números atrasados de jornais na Sorbonne — disse ele, levantando os olhos para ela. — Um deles me pôs em uma situação difícil por uns momentos. Até que pensei mais a respeito do assunto. — Uma mentira foi descoberta. Isso foi o mais importante. — Mas não estamos procurando por uma mentira agora, estamos? — Não. Estamos procurando a verdade. Não tenha nenhum receio, meu querido. Eu não tenho. Jason levantou-se. — Está bem. Saint-Germain entra no programa. Nesse meio tempo, telefone para aquele sujeito da embaixada. — Bourne procurou no bolso o guardanapo de papel com o número do telefone. Ele também anotara o número da chapa do carro que saíra correndo do banco, na Rua Madeleine. — Aqui está o número que d’Amacourt me deu, e também o número da placa do carro. Veja o que ele pode fazer. — Está bem. — Marie pegou o guardanapo e se aproximou do telefone. Um pequeno bloco com espiral estava ao lado do aparelho. Ela folheou-o. — Aqui está. Seu nome é Dennis Corbelier. Peter disse que lhe telefonaria lá pelo meio-dia, hora de Paris. E que eu podia confiar nele; é tão conhecido quanto qualquer adido da embaixada. — Peter o conhece, não é? Não é apenas um nome de alguma lista? — Foram colegas na Universidade de Toronto. Posso telefonar-lhe daqui mesmo, não é? — É claro, Mas não diga onde está. Marie pegou o telefone. — Dir-lhe-ei a mesma coisa que disse a Peter. Que estou me mudando de hotel, mas que ainda não sei para onde vou — Pediu uma linha e depois discou o número da Embaixada do Canadá, que ficava na Avenida Montaigne. Quinze segundos mais tarde ela conversava com Dennis Corbelier, o adido. Marie entrou no assunto quase imediatamente. — Presumo que Peter lhe tenha dito que vou precisar de sua ajuda. — Mais do que isso — respondeu Corbelier —, ele me explicou que você esteve em Zurique. Não sei se entendi tudo o que ele disse, mas sei do que se trata. Parece que hoje em dia existem muitas manobras no mundo das finanças. — Mais do que o normal, O problema é que ninguém quer dizer quem manobra quem. Esse é o meu problema.
— Como posso ajudá-la? — Tenho uma placa de carro e o número de um telefone, os dois aqui de Paris. O telefone não está na lista, seria meio constrangedor se eu ligasse para lá. — Diga-me quais são — disse ele. — A mari usque ad mari — disse Corbelier, recitando o lema nacional do seu país. — Temos muitos amigos em lugares esplêndidos. Quase sempre trocamos favores, em geral na área dos narcóticos, mas somos maleáveis. Por que não almoçamos juntos amanhã? Levarei o que encontrar. — Gostaria muito, mas amanhã não vai dar. Vou passar o dia com um velho amigo. Talvez outro dia. — Peter me disse que eu seria um idiota se não tentasse. Ele diz que você é uma tremenda mulher. — Ele é gentil, e você também. Telefono-lhe amanhã à tarde, então. — Ótimo. Vou trabalhar nisso. — Falo com você amanhã. E obrigada de novo. — Marie pôs o telefone no gancho e olhou o relógio. — Devo telefonar para Peter daqui a três horas. Não me deixe esquecer. — Você acha realmente que ele já deve ter alguma coisa? — Ele tem. Começou ontem, telefonou para Washington. Foi o que Corbelier acabou de dizer. Nós todos fazemos trocas. Esta informação aqui por aquela lá, um nome do nosso lado por um nome do seu lado. — Parece traição. — É o contrário. Estamos tratando de dinheiro, não de mísseis. Dinheiro ilegalmente transado, despistando as leis favoráveis aos nossos interesses. A menos que você queira que os xeques da Arábia possuam a Grumman Aircraft. Então estaremos falando sobre mísseis... se eles abandonarem as suas plataformas de lançamento. — Desarmou a minha objeção. — Temos que ver o homem de d’Amacourt amanhã de manhã; é a primeira coisa a fazer. Calcule quanto você quer retirar — Tudo. — Tudo? — Isso mesmo. Se você fosse um dos diretores da Treadstone, o que faria se ficasse sabendo que estavam faltando seis milhões de francos de uma conta de uma associada?
— Compreendo. — D’Amacourt sugeriu uma série de cheques ao portador. — Ele disse isso? Cheques? — Sim. Alguma coisa errada? — Claro que sim. O número desses cheques poderia ser perfurado em fita fraudulenta, que poderia ser enviada para os bancos de todos os lugares. Você terá que ir a um banco para poder resgatálos; os pagamentos seriam suspensos. — Ele é um vencedor, não é? Ganha dos dois lados. O que podemos fazer? — Aceite a metade do que ele lhe ofereceu — a parte ao portador. Mas não em cheques. Em títulos ao portador, e de vários valores nominais. São muito mais fáceis para corretagem. — Você ganhou o seu jantar — disse Jason abaixando-se e acariciando-lhe o rosto. — “Percuro ganhá meu sustentu, patrão” — respondeu ela segurando-lhe a mão. — Primeiro, o jantar; depois, Peter... e depois a livraria de Saint-Germain. — Uma livraria em Saint-Germain — repetiu Bourne, enquanto a dor voltava ao seu peito novamente. O que seria? Por que estava com tanto medo? Saíram do restaurante no bulevar Raspail e andaram até a companhia telefônica na Rua Vaugirard. Havia algumas cabines de vidro encostadas às paredes e um balcão grande e circular no centro, onde os funcionários preenchiam as fichas, assinalando as cabines para os que faziam as chamadas. — As linhas estão descongestionadas, senhora — disse a funcionária para Marie. — Sua chamada levará poucos minutos. Número doze, por favor. — Obrigada. Cabine doze? — Sim, senhora. Em frente. Enquanto atravessavam o salão cheio até a cabine, Jason segurou-lhe o braço. — Sei por que as pessoas usam esses lugares — disse. — São cento e dez vezes mais rápidos do que um telefone de hotel. — Esta é apenas uma das razões. Tinham acabado de chegar à cabine e de acender os cigarros quando ouviram o ruído de duas campainhas curtas tocando lá dentro, Marie abriu a porta e entrou com o bloquinho espiral e um lápis na mão. Ela pegou o aparelho. Sessenta segundos mais tarde, Bourne, atônito, a viu olhar fixamente para a parede, paralisada, o rosto branco. Começou a gritar e deixou cair a bolsa. O conteúdo se espalhou pelo chão da pequena
cabine. O bloco de papel foi aparado na prateleira, o lápis foi quebrado com a tensão da mão. Ele correu para dentro da cabine; ela estava quase desmaiando. — Aqui é Marie St. Jacques, de Paris, Lisa. Peter está à espera da minha chamada. — Marie? Oh, meu Deus... — A voz da secretária diminuiu e foi substituída por outras vozes no fundo. Vozes excitadas, abafadas por uma mão em concha sobre o telefone. Depois um ruído de movimento, o telefone sendo passado ou tomado por outra pessoa. — Marie, aqui é Alan — disse o primeiro assistente do diretor da seção. — Estamos todos no escritório de Peter. — Qual é o problema, Alan? Não tenho muito tempo, posso falar com ele, por favor? Houve um momento de silêncio. — Quisera tornar isso mais fácil para você, mas não sei como. Peter está morto, Marie. — Ele está... o quê?! — A polícia foi chamada há alguns minutos; já está vindo. — A policia? O que aconteceu? Oh, Deus, ele está morto? O que aconteceu? — Estamos tentando reconstruir tudo juntos. Estamos examinando a sua agenda de telefones, mas não podemos tocar em nada que esteja em cima da sua escrivaninha. — Sua escrivaninha...? — Anotações ou memorandos, qualquer coisa parecida. — Alan! Diga-me o que aconteceu! — Foi isso — não sabemos. Ele não nos disse o que estava fazendo. Tudo o que sabemos é que foi chamado duas vezes ao telefone esta manhã, dos Estados Unidos — uma chamada era de Washington, a outra., de Nova torque. Por volta do meio-dia disse a Lisa que ia ao aeroporto encontrarse com alguém. Não disse quem era. A polícia o encontrou há uma hora em um desses túneis usados para embarcar carga. Foi terrível. Ele foi morto a tiros. Na garganta... Marie? Marie? O velho com os olhos profundos e um começo de barba branca se aproximou mancando da cabine escura do confessionário. Piscava os olhos constantemente, tentando enxergar a figura de capuz por trás da cortina opaca. A visão não era fácil para este mensageiro de oitenta anos de idade. Mas a sua mente era lúcida, e isso era o que importava. — Angelus Domini — ele — Angelus Domini, filho de Deus — sussurrou a figura encapuzada. — Seus dias estão em paz? — Eles se aproximam do fim, mas estão em paz.
— Ótimo... Zurique? — Encontraram o homem do Guisan Quai. Estava ferido. Encontraram-no através de um médico conhecido do Verbrecherwelt. Depois de severo interrogatório ele admitiu ter atacado a mulher. Caim voltou para procurá-lo, foi Caim quem atirou nele. — Então era uma combinação, a mulher e Caim? — O homem do Guisan Quai acha que não. Ele era um dos dois que a encontraram na Löwenstrasse. — Ele também é um tolo. Ele matou o vigia? — Ele admite isso e se defende. Não tinha outra escolha, tinha que fugir. — Não tem que se defender de nada, mesmo que seja a coisa mais inteligente que possa fazer. Ele ainda tem a arma? — A sua gente tem. — Ótimo. Há um prefeito de polícia, em Zurique. Esta arma deve ser entregue a ele. Caim é enganoso, a mulher é menos. Ela tem companheiros em Ottawa, eles vão entrar em contato. Nós a enganamos, nós o pegamos. Está pronto com o seu lápis? — Sim, Carlos.
Capítulo13 Bourne segurou-a gentilmente na cabine fechada e foi abaixando-a, até sentá-la no banquinho preso à parede. Estava trêmula, a respiração tensa, os olhos petrificados, parados. — Eles o mataram. Eles o mataram! Meu Deus, o que fiz? Peter! — Você não fez nada! Se alguém fez alguma coisa, fui eu. Não você. Ponha isso na cabeça. — Jason, estou com medo. Ele estava tão longe... e eles o mataram! — Treadstone? — Quem mais? Houve duas chamadas telefônicas. Washington... Nova Iorque. Ele foi ao aeroporto encontrar-se com alguém — Como? — Oh, Jesus Cristo... — Lágrimas vieram-lhe aos olhos. — Atiraram nele. Na garganta — sussurrou ela. Bourne, de repente, sentiu uma dor forte; não podia localizá-la, mas lá estava, impossibilitandoo de respirar. — Carlos — disse, sem saber por quê. — O quê? — Marie olhou espantada para ele. — O que você disse? — Carlos — repetiu ele devagar. — Uma bala na garganta é Carlos. — O que você está tentando dizer? — Não sei. — Segurou-a pelo braço. — Vamos sair daqui. Você está bem? Pode caminhar? Ela fez que sim com a cabeça, fechando os olhos levemente e respirando profundamente. — Sim. — Vamos parar para tomar alguma coisa; ambos estamos precisando. Depois iremos procurá-la. — Procurar o quê? — Uma livraria em Saint-Germain. Havia três números de revista catalogados sob o assunto “Carlos”. Uma cópia da edição internacional da revista Potomac Quarterly e dois números parisienses de Le Globe. Não leram os artigos na livraria. Em vez disso, compraram os três números, tomaram um táxi e voltaram para o hotel, em Montparnasse. Lá começaram a ler os artigos. Marie estava sentada na cama e Jason, em uma poltrona próxima à janela. Passaram-se alguns minutos. Marie pulou e disse de repente:
— Está aqui. — E havia medo em seus olhos e em sua voz. — Leia. — “Uma forma particular e muito brutal de punição é usada por Carlos e/ou seu pequeno grupo de militantes. É a morte em decorrência de um tiro na garganta, sendo a vítima abandonada para morrer lentamente, enquanto sofre dores excruciantes. É a punição reservada aos que quebram o código de silêncio ou a lealdade exigida pelo assassino, ou aos que se negam divulgar informações...” Marie parou, incapaz de continuar a leitura. Recostou-se e fechou os olhos. — Ele não confessaria nada, e foi morto por isso. Oh, meu Deus... — Ele não podia contar-lhes o que não sabia — disse Bourne. — Mas você sabia! — Marie sentou-se novamente, os olhos bem abertos. — Você sabia sobre o tiro na garganta! Você falou nisso! — Falei. Eu sabia. Mas é tudo o que posso lhe dizer. — Como? — Quisera poder responder, mas não posso. — Pode me servir um drinque? — Claro. — Jason levantou-se e foi até o balcão. Encheu dois copos curtos com uísque e olhou em direção a ela. — Quer que eu peça gelo? Hervé está aqui, será rápido. — Não. Não será suficientemente rápido. — Ela jogou a revista em cima da cama e virou-se para ele — contra ele, talvez: — Estou ficando louca! — Estamos no mesmo barco. — Quero acreditar em você. Acredito. Mas eu... eu... — Não tem certeza — completou Bourne. — Como eu também não posso ter. — Levou-lhe o copo. — O que quer que eu diga? O que posso dizer? Que sou um dos militantes de Carlos? Que quebrei o código do silêncio ou da lealdade? E por isso conhecia o método da execução? — Pare com isso! Chega! — Digo muito isso para mim mesmo. “Chega!” Não pense, tente se lembrar, mas logo adiante a linha emperra. Não vá tão longe, não se aprofunde tanto! Uma mentira pode ser descoberta apenas para levantar mais dez outras perguntas, intrínsecas àquela mentira. Talvez seja como acordar depois de uma bebedeira, sem estar muito certo com quem você brigou ou dormiu ou — maldição! — quem você matou. — Não... — Marie foi obrigada a dizer. — Você é você. Não me tire isso.
— Não quero. Nem mesmo quero tirar isso de mim. — Jason voltou à poltrona e sentou-se, o rosto voltado para a janela. — Você descobriu... um método de execução. Descobri outra coisa. Eu já sabia; como sabia tudo sobre Howard Leland. Nem mesmo precisaria ler aquela notícia. — Ler o quê? Bourne pegou o número de três anos antes da Potomac Quarterly. A revista estava aberta em uma página onde havia o desenho de um homem barbado, de linhas duras, inconclusivas, como se fosse um retrato falado. — Leia — disse ele. — Começa no canto esquerdo, debaixo do título “Mito ou Monstro”. Depois quero fazer um jogo com você. — Jogo? — Sim. Li apenas os dois primeiros parágrafos, e você que acreditar nisso. — Está bem. — Marie olhou-o, espantada. Depois abaixou a revista aproximando-a da luz e leu. MITO OU MONSTRO “Por mais de uma década, o nome “Carlos” tem sido sussurrado nas ruas ermas de cidades tão diversas quanto Paris, Teerã, Beirute, Londres, Cairo e Amsterdã. Tido como o maior terrorista, sua prática tem sido apenas matar e assassinar, sem qualquer ideologia política aparente. No entanto, há evidências concretas de que ele tem se responsabilizado por proveitosas execuções pan grupos extremistas como a OLP e Baader-Meinhof, tanto como executor quanto como orientador. Na verdade, é através do seu aparecimento infreqüente e devido aos conflitos internos de tais organizações terroristas que uma imagem mais clara de “Carlos” começa a se delinear. Alguns informantes estão saindo dos sangrentos confrontos e começam a falar. Conquanto as histórias de suas façanhas dêem chance a se criar imagens de um mundo dominado pela violência e pela conspiração, potentes explosivos e freqüentes intrigas, carros velozes e mulheres fáceis, os fatos parecem indicar tanto um Adam Smith quanto um Ian Fleming. “Carlos” fica reduzido às proporções humanas e, na compreensão dos fatos, aparece como um homem realmente amedrontado, O mito sado-romântico se transforma em um monstro inteligente e sedento de sangue, que comete assassinatos com a experiência de um analista completamente ciente das ondulações do mercado, custos, distribuições e divisões do trabalho do submundo. É um negócio muito arriscado, e “Carlos” é um mestre, conhece o seu valor, medido em dólares. O retrato começa com um nome reputado, de certa forma estranho, como estranha é a profissão do seu portador. Ilich Ramirez Sanchez. Dizem que é venezuelano, filho de um devoto fanático, embora não muito proeminente, do marxismo, um advogado (o nome Ilich é uma homenagem paterna a Vladimir Ilyich Lênin, o que explica parcialmente as incursões de “Carlos” no terrorismo extremista), que enviou o jovem Rússia, para estudar, tendo sido a maior parte de sua educação feita lá, inclusive treino de espionagem em Novgorod. É aqui que o retrato falha e os rumores e especulações passam a criá-lo. E, de acordo com isso, um dos comitês do Kremlin, que regularmente controla e vigia os estudantes estrangeiros para futuras infiltrações, percebeu quem era Ilich Sanchez e não o aceitou. Ele
era um paranóico, que via como solução para tudo uma bem-colocada bomba ou bala; a recomendação era enviar o jovem de volta a Caracas e dissociar todo e qualquer laço com a família. E assim, rejeitado por Moscou e ao mesmo tempo profundamente antagônico às sociedades ocidentais, Sanchez começou a construir o seu próprio mundo, um mundo onde ele pudesse ser o líder supremo. Que melhor forma poderia arranjar para se tornar um assassino apolítico, cujos serviços pudessem ser contratados pelas maiores correntes políticas e filosóficas do mundo? O retrato, depois disso, se torna claro outra vez, fluente em várias línguas, inclusive na sua própria língua nativa, o espanhol, bem como o russo, francês e inglês, Sanchez usou o seu treino soviético como trampolim para refinar as suas técnicas. Muitos meses de estudo se seguiram à sua expulsão de Moscou. Alguns dizem que ficou sob a tutela dos cubanos, particularmente de Che Guevara, Tornou-se um mestre na ciência e uso de todas as formas de armas e explosivos; não havia arma que não soubesse abrir e carregar, mesmo de olhos vendados; não havia explosivo que não pudesse analisar pelo cheiro e toque e saber como detoná-lo de uma dúzia de formas diferentes. Estava preparado. Escolheu Paris como base de operações e foi dada a partida. Era um homem para ser alugado, e que podia matar quando os outros não ousavam aceitar este serviço. E novamente o retrato fica esmaecido, sobretudo por não se conhecer registros de seu nascimento. Qual a idade de “Carlos”? Quantos alvos dizimados podem lhe ser atribuídos e quantos são apenas mitos — assumidos ou declarados por outros? Os correspondentes de Caracas têm dificuldade em desenterrar qualquer certidão de nascimento em qualquer ponto do país com o nome de llich Ramirez Sanchez. Por outro lado, existem muitos Sanchez. na Venezuela, e muitos também com o nome Ramirez junto, embora nenhum com o prenome Ilich. Teria sido um nome adicionado mais tarde? Ou será a omissão uma simples prova a mais da eficiência de “Carlos”? O consenso é que o assassino beira os 35-40 anos de idade. Mas ninguém pode realmente afirmar. POR TRÁS DOS ARBUSTOS EM DALLAS? Entretanto, um fato indiscutível é que os lucros dos primeiros assassinatos capacitaram-no a montar uma organização que pode ser invejada por uma analista de operação da General Motors. É o capitalismo em sua forma mais eficiente: lealdade e eficiência extraídas em partes iguais do medo e do prêmio. A conseqüência da deslealdade vem rapidamente — a morte — como também vêm com muita rapidez os benefícios do serviço prestado — generosas bonificações e grandes subsídios para despesas. A organização parece ter escolhido executivos em todos os lugares; e estes rumores bem-fundados levam a uma pergunta óbvia. De onde vieram os lucros iniciais? Quem eram os primeiros mortos? O mais especulado aconteceu há treze anos em Dallas. Não importa quantas vezes seja debatida a morte de John F. Kennedy, ninguém jamais explicou satisfatoriamente até hoje a súbita explosão de fumaça que saiu de um arbusto a trezentas jardas do desfile de automóveis. A fumaça foi registrada por uma câmara; dois policiais de motocicleta, com rádio, conseguiram captar ruído(s). Muito embora nenhuma cápsula de bala ou marcas de pés fossem descobertos. De fato, a única informação sobre o assim chamado monte de arbustos, naquele momento, foi considerada tão irrelevante que foi enterrada no FBI-Dallas, no departamento de investigações, e nunca foi incluída no Relatório da Comissão Warren. A informação foi dada por um espectador, K. M. Wright, do Norte de Dallas, que, quando interrogado, fez a declaração:
“Diabos, o único filho da puta que estava ali por perto era o velho Burlap Billy, e ele estava a um par de jardas de distância dali.” O “Billy” a que ele se referia era um idoso vagabundo de Dallas, freqüentemente visto mendigando pelas áreas dos turistas; o nome “Burlap” se deve à sua predileção em amarrar os sapatos com panos velhos para angariar a simpatia dos seus alvos. De acordo com os nossos correspondentes, as declarações de Wright nunca vieram a público. No entanto, há seis semanas, um terrorista libanês capturado acabou confessando, depois de interrogatório em Tel Aviv. Implorando para ser poupado da execução, disse que possuía informações extraordinárias sobre o assassino “Carlos”. O serviço de informação de Israel expediu os relatórios para Washington. Nossos correspondentes no Capitólio conseguiram obter alguns trechos. Declaração: “ ‘Carlos’ estava em Dallas em novembro de 1963. Fazia-se passar por cubano e foi ele quem programou Oswald. Ele estava por trás. Foi uma operação sua.” Pergunta: “Que provas você tem?” Declaração: “Ouvi-o dizer isso. Ele estava sobre um pequeno aterro coberto de arbustos, atrás de um socalco de terreno. Seu rifle tinha uma mira embutida.” Pergunta: “Isso nunca foi relatado antes; por que ele não foi visto?” Declaração: “Ele deve ter sido visto, mas ninguém o teria notado. Vestia-se como um velho, com um sobretudo esfarrapado, e seus sapatos estavam embrulhados em lona para evitar deixar marcas no chão.” A informação de um terrorista decerto não constitui prova, mas também não devia ser ignorada. Sobretudo quando diz respeito a um mestre assassino, conhecido como um doutor da impostura, que tão surpreendentemente corrobora um relatório desconhecido, e que nunca foi publicado, sobre um momento de crise nacional nunca investigado. Isso, por certo, deve ser levado a sério. Como muitos outros que estiveram direta ou indiretamente associados ao trágico evento em Dallas, “Burlap Billy” foi encontrado morto alguns dias depois, devido a uma dose excessiva de drogas. Era conhecido como um velho que se embebedava sempre com vinhos baratos; nunca entretanto ninguém soube que usava narcóticos. Nem mesmo poderia comprá-los. Teria sido “Carlos” o homem que estava por trás dos arbustos? Que extraordinário começo para uma extraordinária carreira! Se Dallas foi de fato “operação” sua, quantos milhões de dólares lhe foram realmente passados? Decerto mais do que o suficiente para estabelecer uma rede de informações e militantes que formam, agora, verdadeira corporação. O mito tem muita substância. Carlos pode multo bem ser um monstro de carne e muito sangue.” Marie pôs a revista de lado. — Qual é o jogo? — Já terminou? — Jason afastou-se da janela.
— Sim. — Creio que fizeram uma porção de declarações. Teoria, suposições, equações. — Equações? — Se alguma coisa aconteceu aqui e houve um efeito lá, é porque devem ter alguma relação. — Você quer dizer conexões — disse Marie. — Está bem, conexões. Está tudo aí, não está? — De certa forma, sim. Não é uma síntese muito clara; há uma porção de especulações, rumores e informações de segunda mão. — Há fatos, no entanto. — Dados. — Ótimo. Dados. Está bem. — Qual é o jogo? — repetiu Marie. — Tem um nome bem simples. Chama-se “Armadilha”: — Armadilha para quem? — Para mim. — Bourne sentou-se com o corpo para a frente. — Quero que me faça algumas perguntas. Qualquer coisa que esteja na reportagem. Uma frase, o nome de uma cidade, um rumor, um fragmento de... dado. Qualquer coisa. Vamos ver quais são as minhas respostas. Minhas respostas “no escuro”. — Querido, isso não é prova de... — Faça-as! — ordenou ele. — Está bem. — Marie levantou o número da Potomac Quarterly. — Beirute — disse ela. — Embaixada — respondeu ele. — Um alto funcionário da CIA fazendo-se passar por adido. Baleado na rua. Trezentos mil dólares. Marie olhou para ele. — Eu me lembro... — começou ela a dizer. — Eu não! — interrompeu Jason. — Continue. Ela o olhou de novo, depois voltou à revista. — Baader-Meinhof. — Stuttgart. Regensburg. Munique. Duas mortes e um seqüestro, creditados a Baader. Honorários de... — Bourne parou, depois sussurrou atônito — dos Estados Unidos. Detioit...
Wilmington, Delaware. — Jason, o que são. — Continue, por favor. — A palavra Sanchez. — O nome é Ilich Ramirez Sanchez — respondeu ele. — Ele é... Carlos. — Por que o Ilich? Bourne fez uma pausa, os olhos vagos. — Não sei. — É russo, não é espanhol. Sua mãe era russa? — Não... Sim. Sua mãe. Devia ser a sua mãe... Acho. Mas não tenho certeza. — Novgorod. — Campo de espionagem. Comunicações, capitais, tráfico de freqüência. Sanchez é um graduado. — Jason, você leu isso aqui! — Não li nada! Por favor, continue. Os olhos de Marie voltaram ao início do artigo. — Teerã. — Oito mortos. Créditos divididos — Khomeini e OLP. Pagamento: dois milhões. Fonte: setor sudoeste da União Soviética. — Paris — disse Marie rapidamente. — Todos os contratos serão feitos em Paris. — Que contratos? — Os contratos... Mortes. — Mortes de quem? Contratos de quem? — Sanchez... Carlos. — Carlos? Então, são contratos de Carlos, suas mortes. Nada têm a ver com você. — Os contratos de Carlos — disse Bourne, como se estivesse atordoado. — Nada a ver com... comigo — repetiu ele quase sussurrando.
— É isso mesmo, Jason. Nada disso tem a ver com você! — Não! Isso não é verdade! — gritou Bourne, levantando-se bruscamente da cadeira e permanecendo parado, olhando-a fixamente. — Nossos contratos — acrescentou ele rapidamente. — Você não sabe o que está dizendo! — Estou respondendo! No escuro! É por isso que tive que vir a Paris! — Ele girou nos calcanhares e foi até a janela, segurando-se na moldura. — É sobre isso que é o jogo — continuou. — Não estamos à procura de uma mentira, estamos à procura da verdade, lembra-se? Talvez a tenhamos encontrado. Talvez o jogo a tenha revelado. — Este não é um teste válido! É um exercício doloroso sobre lembranças incidentais. Se uma revista como a Potomac Quarterly imprimiu isto, deve ter sido feita a mesma coisa pela metade dos jornais do mundo. Você poderia ter lido isso em qualquer lugar. — O fato é que retive tudo. — Não totalmente. Você não sabia de onde vinha o Ilich, que o pai de Carlos era um advogado marxista na Venezuela. São pontos importantes, acho. Você não mencionou nada sobre os cubanos. Se tivesse, teria sido levado à mais chocante das especulações aqui escritas. Não disse uma palavra sequer sobre isso. — Do que você está falando? — Dallas — disse ela. — Novembro, 1963. — Kennedy — respondeu Bourne. — É isso mesmo? Kennedy? — Aconteceu nessa época — Jason ficou imóvel. — Também, mas não é a isso que me refiro. — Sei — disse Bourne. Sua voz estava de novo grave, como se estivesse falando no vácuo. — Uma elevação gramada... arbustos... Burlap Billy. — Você leu isto! — Não. — Então já ouviu antes, leu antes. — É possível, mas não é importante, é? — Pare com isso, Jason! Chega!
— Estas palavras, de novo. Quisera poder parar. — O que está tentando me dizer? Que você é Carlos? — Deus, não! Carlos quer me matar, e nem falo russo. Disso pelo menos tenho certeza. — Então, o que é? — O que eu disse no começo. O jogo. O jogo se chama “Armadilha para um Militante”. — Militante? — Sim. Alguém que desertou de Carlos. É a única explicação, a única razão de eu saber o que sei. Sobre todas essas coisas. — Por que diz desertou? — Porque ele quer me matar. Ele tem que me matar, ele pensa que sei mais sobre ele do que qualquer outra pessoa viva. Marie estivera curvada sobre a cama. Esticou as penas para fora, estendeu as mãos ao lado do corpo. — Isso é um resultado da deserção. E a causa? Se é verdade, então você foi, se tornou... — Ela parou. — Levando tudo em consideração, é um pouco tarde para procurar uma posição moral — disse Bourne percebendo a dor desse conhecimento no rosto da mulher a quem amava. — Eu podia pensar em várias razões, clichês. Que tal se eu tivesse me desentendido com ladrões... matadores? — Não tem sentido! — gritou Marie. — Não há um pingo de evidência. — Há, e muitas, você bem sabe. Eu podia ter-me vendido por um preço mais alto para um licitante mais poderoso, ou poderia ter roubado grandes somas de dinheiro dos pagamentos. Poderia ter feito um desvio. Isso explicaria a conta em Zurique. — Parou por um momento, olhando para a parede em cima da cama, sentindo, sem ver. — Isso explicaria Howard Leland, Marselha, Beirute, Stuttgart... Munique. Explicaria tudo. Todos os fatos esquecidos que querem vir à tona. E mais especialmente um. Por que evitei o seu nome, por que nunca o mencionei? Estou assustado. Estou com medo dele. Passou-se um momento em silêncio; era alguma coisa além do medo. Marie assentiu com a cabeça. — Tenho certeza que você acredita nisso — disse — e, de certa forma, eu gostaria que fosse verdade. Mas acho que não é. Você quer acreditar nisso porque isso dá credibilidade ao que você disse. E também uma resposta... uma identidade. Pode não ser a identidade que você quer, mas só Deus sabe que é muito melhor do que ficar vagando cegamente por aquele terrível labirinto que você encara todos os dias. Qual quer coisa serviria, creio. — Fez uma pausa. — E eu gostaria que fosse verdade, porque assim não estaríamos aqui agora. — O quê?
— Essa é a inconsistência, querido. O número ou o símbolo que não se encaixa na sua equação. Se você fosse o que diz ser e estivesse com medo de Carlos — e Deus sabe que deveria estar — Paris seria o último lugar do mundo para onde você se sentiria compelido a voltar. Estaríamos em outro lugar qualquer; você mesmo afirmou isso. Você fugiria; pegaria o dinheiro de Zurique e desapareceria. Mas não está fazendo isso. Ao contrário, está voltando para o esconderijo de Carlos. Isso quer dizer que não é um homem amedrontado nem culpado. — Não há mais nada. Vim a Paris para descobrir, só isso. — Então fuja. Teremos o dinheiro amanhã de manhã, nada o prende — nada nos prende. Isso também é simples. — Marie olhou-o demoradamente. Jason olhou para ela, depois desviou o olhar. Foi até o balcão e serviu-se de um drinque. — Resta considerar a Treadstone — ele disse na defensiva. — Por que considerá-la mais do que Carlos? Aí está a sua verdadeira equação: Carlos e Treadstone. Um homem a quem eu amei muito foi morto pela Treadstone. Essa é mais uma razão para fugirmos, para sobrevivermos. — Achei que você gostaria de descobrir quem o matou — disse Bourne — e fazê-lo pagar por isso. — Quero. E muito. Mas outros podem achá-lo. Tenho. outras prioridades, e a vingança não está em primeiro lugar. Nós estamos. Você e eu. Ou esse é apenas o meu julgamento? Os meus sentimentos? — Você sabe muito bem! — Segurou com força o copo e olhou em direção dela. — Eu te amo — sussurrou. — Então vamos fugir! — disse ela, levantando a voz quase mecanicamente, dando um passo em direção a ele. — Vamos esquecer tudo isso, esquecer realmente, e fugir tão rápido quanto pudermos, para o mais longe que pudermos! Vamos! — Eu... eu... — Jason gaguejou, a névoa se interpondo, enfurecendo-o. — Há... coisas. — Que coisas? Nós nos amamos, encontramos um ao outro! Podemos ir para qualquer lugar, ser quem quisermos. Não há nada que possa nos deter, há? — Apenas eu e você — repetiu ele suavemente, as névoas agora se fechando, sufocando-o. — Sei. Sei. Mas tenho que pensar. Há tanta coisa a aprender, tanta coisa que tem que aparecer! — E por que é assim tão importante? — É... É importante, apenas isso. — Você não sabe? — Sim... Não, não tenho certeza. Não me pergunte agora.
— Se não perguntar agora, quando? Quando posso perguntar? Quando passará? Ou será para sempre?! — Chega! — De repente ele gritou, batendo c’ copo contra a bandeja de madeira. — Não posso fugir! Não vou! Tenho que ficar aqui, tenho que saber! Marie correu para ele. Pôs as mãos sobre o seu ombro e passou-as pelo rosto, enxugando-lhe a transpiração. — Agora você conseguiu falar. Pôde se ouvir, meu querido? Você não pode fugir porque está próximo, agora. E quanto mais próximo chega mais tudo isso se torna enlouquecedor para você. E se você fugisse, seria pior. Você não conseguiria viver, tudo seria um grande pesadelo. Sei disso. Ele procurou o rosto dela e acariciou-o. — Você sabe disso? — É claro. Mas era você quem tinha que dizer isso e não eu. Ela o abraçou, descansando a cabeça no seu peito. — Eu tinha que forçá-lo a confessar isso. E o mais engraçado é que eu podia fugir. Eu podia entrar em um avião hoje à noite e ir com você aonde quisesse, desaparecer sem olhar para trás, mais feliz do que jamais fui em toda a minha vida. Mas você não podia fazer isso. Porque o que está — ou não está — aqui em Paris o consumiria até você não mais poder suportar. Esta é a mais incrível ironia, meu querido. Eu podia viver com isso, mas você não. — Você fugiria? — perguntou Jason. — E sua família, seu emprego... as pessoas que você conhece? — Não sou criança nem boba — respondeu ela rapidamente. — Eu me protegeria, de certa forma, mas acho que não levaria isso muito a sério. Eu pediria uma licença médica ou por motivos pessoais. Fadiga emocional, estafa. Poderia voltar, mais tarde, o departamento entenderia. — Peter? — Sim. — Ela ficou em silêncio por um momento. — Caminhamos de uma relação para outra; a segunda foi a mais importante para nós dois, acho. Ele era como um irmão um pouco deficiente, de certa forma; um irmão que você deseja que triunfe, apesar das suas falhas, porque você sabe que por dentro ele é uma pessoa muito digna e decente. — Sinto muito. Realmente sinto muito. Ela levantou os olhos para ele. — Você também é assim. Tem a mesma decência. Quando se faz o tipo de trabalho que faço, a decência se toma muito importante. Não são os humildes que vão herdar a terra, Jason, mas os corruptos. E tenho a impressão de que a distância entre a corrupção e o assassinato é um passo muito curto. — Treadstone Seventy One? — Sim. Nós estávamos certos. Quero que os descubram, quero que paguem pelo que fizeram. E você não pode fugir. Ele passou os lábios pela face dela, depois pelos cabelos, e a abraçou. — Eu devia mandá-la
embora — disse. — Eu devia pedir-lhe para sair da minha vida. Não posso fazer isso, mas bem sei que devia. — Não faria nenhuma diferença se fizesse. Eu não iria, meu amor. * O escritório do advogado ficava no bulevar de la Chapelle, a sala de livros mais parecia a decoração de um palco do que a de um escritório, tudo muito apropriado, tudo estava em seu devido lugar. Acordos eram feitos naquela sala, não contratos. Quanto ao advogado, o muito digno cavanhaque branco e o pincenê de prata sobre o nariz aquilino não escondiam a sua verdadeira raiz. Ele até insistiu em conversar usando um inglês pobre; evidentemente, mais tarde usaria este fato como defesa por não ter entendido algumas coisas. Marie foi quem mais falou, enquanto Bourne acatava — era um cliente à procura de orientação. Ele fazia as observações sucintamente, trocando os cheques ao portador por ações ao porta dor, pagáveis em dólares, em títulos que iam de um máximo de vinte mil dólares até um mínimo de cinco. Instruiu o advogado para dizer ao banco que todas as séries deviam ser partidas em séries descontínuas de três em três, os fiadores internacionais deviam ser diferentes a cada quinto dos certificados. Seu objetivo não era confundir o procurador; ela complicou tanto a emissão dos títulos que seguir o seu curso estava muito além das possibilidades da maioria dos bancos ou corretoras. Nem teriam os bancos ou corretoras trabalho em localizá-los, pois seu pagamento já estava garantido. Quando o irritado advogado de cavanhaque já estava quase concluindo a sua conversa telefônica com um igualmente perturbado Antoine d’Amacourt, Marie levantou a mão. — Perdoe-me, mas o senhor Bourne insiste em que o senhor d’Amacourt também inclua duzentos mil francos em dinheiro, cem mil incluídos com os títulos e cem mil para ficar de posse do senhor d’Amacourt. Sugere ainda que a segunda parte, os cem mil do senhor d’Amacourt, sejam assim divididos: setenta e cinco mil para o senhor d’Amacourt e vinte e cinco mil para o senhor. Acha que tem um grande débito para com os senhores, pelos seus conselhos e o trabalho adicional que lhes causou. É desnecessário dizer que nenhuma cláusula específica de quebra de contrato faz-se necessária. Com estas palavras, a irritação e a perturbação do advogado desapareceram e foram substituídas por uma gentileza incomum desde a corte de Versalhes. Os arranjos foram feitos de acordo com o inusitado — mas perfeitamente compreensível — pedido do senhor Bourne e da sua estimada conselheira. Uma pasta para documentos, de couro, foi providenciada pelo senhor Bourne para os títulos e o dinheiro. Ela seria transportada por um mensageiro especial, armado, que deixaria o banco às 14h3omin e se encontraria com o senhor Bourne às 15h na Pont Neuf. O distinto cliente identificar-se-ia com um pequeno pedaço de couro que fora cortado dessa pasta e que, quando colocado no lugar e encaixado, provaria ser a pasta certa. Juntamente com isso, seriam ditas as seguintes palavras: “Herr Koenig manda os seus cumprimentos de Zurique.” Todos os detalhes preparados. Exceto um, que foi esclarecido pela conselheira do senhor
Bourne. — Reconhecemos que as exigências da fiche devem ser executadas ao pé da letra, e assim espera o senhor d’Amacourt — disse Marie St. Jacques. — No entanto, também reconhecemos que o tempo pode se transformar em uma vantagem para o senhor Bourne, que na verdade conta com ela. Se não for assim, receio ter que — embora agora esteja aqui anonimamente — como membro da Comissão Internacional Bancária, ser compelida a relatar certas aberrações de procedimentos bancários e legais, tais como as que testemunhei. Tenho certeza de que isso não se fará necessário, todos nós fomos bem pagos, n’est-ce pas, monsieur? — C’est vrai, madame! Em negócios bancários e legais — como na vida, o tempo é tudo A senhora não tem o que recear. — Estou certa disso — disse Marie. Bourne examinou os encaixes do silenciador, satisfeito por ter removido as partículas de pó e fiapos que se haviam juntado na arma pela falta de uso. Deu uma volta final no encaixe, abriu e examinou o carregador de balas. Havia ainda seis cartuchos; ele estava pronto. Enfiou a arma no cinto e abotoou a jaqueta. Marie não o vira com a arma. Estava sentada na cama, de costas para ele, falando ao telefone com o adido da embaixada canadense, Dennis Corbelier. A fumaça espiralada do cigarro subia de um cinzeiro próximo ao livro de anotações. Ela estava anotando as informações de Corbelier. Agradeceu e desligou o telefone. Depois ficou imóvel por dois ou três segundos, o lápis ainda na mão. — Ele nada sabe sobre Peter — disse voltando-se para Jason. — É estranho! — Muito — concordou Bourne. — Pensei que ele seria um dos primeiros a saber. Você disse que estavam fazendo uma busca na caderneta de telefones de Peter e que ele fizera uma chamada para Paris, para Corbelier. Você acha que alguém o estaria seguindo? — Nem mesmo considerei essa possibilidade. Estava pensando nos jornais, nos telegramas. Peter foi... encontrado há dezoito horas, e apesar de eu ter sido muito casual a seu respeito, ele era um homem importante do governo canadense. Sua morte seria uma notícia importante, e ainda mais assim, por assassinato... E não foi sequer comentada nos jornais. — Dê um telefonema para Ottawa esta noite. Tente descobrir por quê. — Vou fazer isso. — O que lhe disse Corbelier? — Oh, sim. — Marie passou os olhos pela caderneta de anotações. — A placa do carro da Rua Madeleine não tem significado, é um carro alugado no Aeroporto De Gaulle para um tal de Jean-Pierre
Larousse. — Ou um John Smith qualquer — interrompeu Jason. — Exato. Ele teve melhor sorte com o número do telefone que d’Amacourt deu a você, mas não percebe o que uma coisa tem a ver com a outra. Nem eu, na verdade. — É assim estranho? — Acho que sim. É uma linha de telefone particular pertencente a uma casa de modas em SaintHonoré. Les Classiques. — Uma casa de modas? Você quer dizer ateliê? — Deve ter um. Mas é principalmente uma elegante loja de roupas. Como a Casa Dior, ou a Givenchy. Haute couture. No mercado, Corbelier disse que a casa é conhecida como a Casa de René. O Bergeron. — Quem? — René Bergeron, desenhista de modas. Um estilista. Já é conhecido há bastante tempo, está quase sempre no auge do sucesso. Conheço-o porque a minha humilde costureira lá no Canadá copia os seus modelos. — Você tem o endereço? Marie fez que sim. — Por que Corbelier não sabia da morte de Peter? Por que ninguém sabe? — Talvez você possa saber, quando telefonar. Talvez seja pelas diferenças de horário; é muito tarde para entrar nas edições matinais dos jornais aqui de Paris. Trago os jornais da tarde. — Bourne foi até o armário pegar o sobretudo, consciente do peso que pusera no cinto. — Vou ao banco. Seguirei o mensageiro até a Pont Neuf. — Vestiu o casaco, ciente de que Marie não o ouvia. — Queria perguntarlhe, esses camaradas usam uniforme? — Quem? — Os mensageiros de banco. — Isso é uma matéria para os jornais, e não para o serviço de telex que os jornais usam. — Como? — A diferença de horário. Os jornais não devem ter a notícia, mas os serviços de telex saberiam, por certo. E as embaixadas têm teletipo, eles saberiam. Não foi comunicado, Jason. — Você telefona hoje à noite — disse ele. — Estou indo. — Você perguntou sobre os mensageiros. Se eles usam uniformes?
— Eu estava curioso. — Na maioria das vezes sim. Também dirigem aquelas caminhonetes blindadas. Mas fui bem clara a respeito disso. Se uma destas caminhonetes fosse usada, deveria estacionar a uma quadra da ponte. E o mensageiro deveria fazer o resto do percurso a pé. — Ouvi, mas não estava muito certo de ter compreendido. Por quê? — Um mensageiro bem-armado é ruim, mas é necessário, por uma questão de segurança. Uma caminhonete é muito óbvia, poderia ser facilmente seguida. Você não vai mudar de idéia e deixar que eu o acompanhe? — Não. — Acredite em mim, nada sairá errado; aqueles dois ladrões não permitiriam. — Então não há nenhuma razão para você ir até lá. — Você está brincando. — Estou com pressa. — Sei. E pode se movimentar mais rápido sem mim. — Marie levantou-se e se aproximou dele. — Entendo. — Inclinou-se para ele, beijando-o nos lábios. De repente, sentiu a arma no cinto. E olhouo diretamente nos olhos. — Você está preocupado, não é? — É apenas precaução. — Sorriu, tocando-lhe o rosto. — É uma enorme quantia que tem que nos manter por um bom tempo. — Gostei disso. — Do dinheiro? — Não. Do nós. — Marie enrugou a testa. — Um cofre. — Você continua falando sem seqüência. — Você não pode deixar os títulos negociáveis, que valem mais de um milhão de dólares, em um quarto de hotel em Paris. Tem que ter um cofre. — Podemos fazer isso amanhã. — Largou-a, indo em direção à porta. — Enquanto eu estiver fora, procure a Les Classiques na lista telefônica e disque para o número indicado. Descubra até que horas fica aberta. — Depois, saiu depressa. Bourne acomodou-se no banco traseiro do táxi estacionado e pela janela olhou para o banco. O motorista cantarolava uma melodia desconhecida enquanto lia o jornal, satisfeito com a nota de cinqüenta francos que recebera como adiantamento. E o taxímetro ainda funcionava; o passageiro insistira nisso.
O furgão blindado apareceu na janela de trás do lado direito; a antena do rádio saía do centro da capota, como um gurupés afilado saindo da proa de um barco. Parou em uma área autorizada para estacionamento de veículos, exatamente em frente do táxi onde estava Jason. Dois diminutos faroletes apareceram acima do vidro redondo à prova de balas, na porta de trás. O sistema de alarme fora ligado. Bourne inclinou-se para a frente, os olhos presos no homem uniformizado que saíra da porta lateral e abrira seu caminho por entre a multidão na calçada, em direção à entrada do banco. Sentiu-se aliviado. O homem não era um dos três bem-vestidos que vieram ontem ao Valois, Quinze minutos depois o mensageiro saiu do banco, a pasta de couro na mão esquerda, a direita no coldre aberto. O pedaço rasgado do lado da pasta podia ser visto claramente. Jason sentiu o fragmento de couro no bolso de sua camisa; aquilo, nada mais nada menos, servia como a primeira combinação que podia proporcionar-lhe uma vida além de Paris, além de Carlos, possivelmente. Se tal vida pudesse existir e ele pudesse aceitá-la sem o terrível labirinto do qual não conseguia escapar... Mas era muito mais do que apenas isso. Em um labirinto construído pelos homens, as pessoas se moviam, corriam, demo- liam muros, o próprio contato uma forma de progresso, ainda que cegamente. Seu labirinto pessoal não tinha nenhuma parede, nenhum corredor definido onde ele pudesse correr. Apenas o espaço e as sombras ameaçadoras do escuro que via tão claramente quando abria os olhos à noite e sentia o suor pingando-lhe do rosto. Por que era sempre o espaço, a escuridão e os fortes ventos? Por que sempre tinha a sensação de estar mergulhando verticalmente no espaço à noite? Um páraquedas. Por quê? Então outras palavras lhe vieram à cabeça. Não tinha idéia de onde vinham, mas lá estavam, podia ouvi-las. O que acontece quando a sua memória se vai? E a sua identidade, Sr. Smith? Chega! A caminhonete blindada adentrou o tráfego na Rua Madeleine. Bourne tocou o ombro do motorista. — Siga aquela caminhonete, mas mantenha pelo menos dois carros entre nós — disse em francês. O motorista virou-se, um pouco assustado. — Acho que o senhor pegou o táxi errado, senhor Tome de volta o seu dinheiro. — Faço parte da companhia a que pertence aquele blindado, seu imbecil. É um trabalho especial. — Desculpe-me, senhor. Não o perderemos. — O motorista entrou no tráfego, em diagonal. O furgão tomou o caminho mais rápido em direção ao Sena, indo por ruas laterais. Depois virou no Ouai de la Rapée e foi em direção à Pont Neuf. Então, a dois ou três quarteirões da ponte, mais ou menos, diminuiu a marcha, encostando ao meio- fio, como se o mensageiro achasse estar muito adiantado para o seu encontro. Mas, na verdade, pensou Bourne, estava quase atrasado. Faltavam cinco minutos para as três, tempo suficiente para que o mensageiro estacionasse e caminhasse o quarteirão, como lhe fora prescrito, até a ponte. Então por que o furgão diminuíra a marcha? Diminuíra? Não, parara. Nem se movimentava! Por quê?
O trânsito?... Bom Deus, é claro — o trânsito! — Pare aqui — disse Bourne ao motorista. — Encoste no meio-fio. Depressa! — O que é, senhor? — Você é um homem de sorte — disse Jason; — A minha companhia tem grande satisfação em lhe pagar um adicional de cem francos se você simplesmente for até lá na frente, até a janela da frente daquele furgão, e disser algumas palavras ao motorista. — O que disse, senhor? — Na verdade, estamos testando aquele motorista. Ele é novo. Aceita os cem francos? — Só vou até a janela e digo algumas palavras? — Só isso. Cinco segundos, no máximo. Depois pode voltar para o seu táxi e ir embora. — Não há nenhuma complicação, nenhum problema? Não quero ter problemas. — Minha firma é uma das mais respeitáveis da França. Você já deve ter visto as nossas caminhonetes por todo canto. — Não me lembro... — Esqueça! — Bourne pôs a mão no trinco da porta. — Quais são as palavras? Jason entregou-lhe os cem francos. — Apenas isto: “Herr Koenig. Saudações de Zurique.” Pode se lembrar delas? — “Koenig. Saudações de Zurique.” Nenhuma dificuldade. — E você vem atrás de mim. — Está bem. — Foram rapidamente em direção à caminhonete, aproximando-se pelo lado direito, pela estreita passagem entre os carros e a rua; os carros e as caminhonetes passavam por eles, em marcha lenta, parando e andando, do lado esquerdo. O furgão era uma armadilha de Carlos, pensou Bourne. O assassino abrira seu caminho também entre as fileiras dos mensageiros armados. Um nome apenas e um encontro revelado por um rádio podia trazer a um mensageiro mal-pago no seu próprio serviço uma grande quantidade de dinheiro. Bourne. Pont Neuf. Tão simples! Este mensageiro em especial estava menos preocupado em se prontificar a fazer o trabalho do que ficar à espera de que os militantes de Carlos chegassem à Pont Neuf em tempo. O trânsito de Paris era bem-conhecido; qualquer um podia se atrasar. Jason parou o motorista do táxi, passando-lhe mais uma nota adicional. de duzentos francos. Os olhos do homem arregalaram-se diante da nota.
— Senhor? — A minha companhia vai ser muito generosa com o senhor. Este homem deve ser disciplinado porque cometeu uma grave infração. — O que, senhor? — Depois de dizer “Herr Koenig. Saudações de Zurique”, diga também: “O esquema mudou. Há um passageiro no meu táxi que precisa vê-lo.” Decorou? Os olhos do motorista voltaram-se para a nota. — Sem problema. — E pegou o dinheiro. Beiraram o lado da caminhonete. Jason estava com as costas rentes ao aço da caminhonete, a mão direita escondida debaixo do casaco segurando a arma no cinto. O motorista se aproximou da janela e bateu no vidro. — Você aí dentro! Herr Koenig! Saudações de Zurique! — gritou. A janela foi baixada, não mais do que uma ou duas polegadas. — O que é isso? — uma voz gritou lá de dentro. — O senhor devia estar na Pont Neuf, senhor! O motorista não era nenhum idiota e estava ansioso para se livrar o mais rapidamente possível da sua tarefa. — Não eu, seu burro! — gritou através do barulho do trânsito. — Estou lhe dizendo o que me mandaram dizer! O esquema foi mudado. Tem um homem lá atrás que diz que tem que vê-lo. — Diga-lhe para se apressar — disse Jason — segurando uma nota de cinqüenta francos fora da vista da janela. O motorista olhou para o dinheiro e voltou ao mensageiro. — Seja rápido! Se não vier já, vai perder o emprego! — Agora saia daqui! — disse Bourne. O motorista correu passando por Jason e agarrando, de passagem, a nota, enquanto corria para o táxi. Bourne ficou onde estava. De repente ficou alarmado com o que ouviu através da cacofonia do trânsito barulhento, das buzinas, canos de escape e motores na rua cheia de carros. Havia vozes dentro da caminhonete. Não um homem falando no rádio, mas dois homens discutindo. O mensageiro não estava sozinho, havia outro homem com ele. — Estas foram as ordens. Você o ouviu bem. — Ele devia vir a você. Devia aparecer. — Ë o que ele vai fazer. E vai apresentar o pedaço de couro, que deve se encaixar perfeitamente na pasta! Você espera que ele faça isso no meio da rua, com todo esse trânsito? — Não estou gostando disso!
— Você me pagou para ajudá-lo a encontrar alguém, não para perder o meu emprego. Eu vou! — Tem que ser na Pont Neuf! — Vá tomar no eu! Depois, Bourne ouviu o barulho de passos lá dentro. — Vou com você! A porta da caminhonete se abriu. Jason virou-se contra a porta, a mão ainda dentro do casaco. Um rosto de criança foi esmagado contra o vidro da porta do carro, os olhos se fecharam, as feições jovens se contorceram, formando uma feia máscara. Susto e insulto na intenção infantil daquele rosto. Os ruídos das buzinas raivosas ecoaram em contraponto, enchendo a rua movimentada com um só grito. O trânsito havia parado. O mensageiro pisou no estribo de metal, a pasta na mão esquerda. Bourne estava pronto. No instante em que o mensageiro pôs o pé na rua ele bateu a porta de volta contra o corpo do outro homem, esmagando-lhe a rótula e a mão, que se estendera para a frente. O homem gritou, girando para dentro da caminhonete de novo. Jason gritou para o mensageiro com o pedaço de couro na mão livre. — Sou Bourne! Aqui está o pedaço de couro! E você deixa essa arma no coldre ou não apenas vai perder o emprego como também a vida, seu filho da puta! — Eu não queria machucá-lo, senhor! Eles queriam encontrá-lo! Não têm nenhum interesse na sua captura, o senhor tem a minha palavra! A porta se abriu. Jason fechou-a de novo com o ombro e depois abriu-a para ver o rosto do militante de Carlos, a mão na arma. O que viu foi o cano de uma arma, o orifício negro em sua direção. Rodou para fora, percebendo que aquela pequena demora do tiro fora causada por uma explosão, um rangido que saíra da caminhonete blindada. O alarme disparara, soando na dissonância da rua movimentada. O tiro, em comparação, parecia silencioso; a erupção do asfalto, perto de Jason, nem fora ouvida. Mais uma vez ele bateu a porta. E dessa vez ouviu o impacto de metal contra metal; batera na arma do militante de Carlos. Puxou a arma do cinto, ajoelhou-se na rua e abriu a porta. Era o mesmo rosto de Zurique, o matador a quem chamavam Johann, o homem que haviam trazido para Paris para reconhecê-lo. Bourne atirou duas vezes, o homem arqueou-se para trás. O sangue jorrava-lhe da testa. O mensageiro! A pasta de documentos! Jason viu o homem. Ele se abaixara próximo à caminhonete, protegendo-se; com a arma na mão, gritava por socorro. Bourne pôs-se de pé e arremessou-se em direção à arma apontada, segurando-a pelo cano e torcendo-o para tirá-la da mão do mensageiro. Agarrou a pasta de documentos e gritou. — Nenhum mal, não é? Dê-me isso, seu bastardo! — Jogou a arma do homem debaixo do
furgão, levantou-se e desapareceu na massa histérica que se formava na calçada. Depois correu cegamente; os corpos à sua frente eram os muros móveis do seu labirinto. Mas havia uma diferença essencial entre esta armadura e a que ele usava todos os dias. Não havia escuridão, O sol da tarde estava brilhante, tão ofuscante quanto a sua corrida através do labirinto.
Capítulo14 — Está tudo aqui — disse Marie. Ela coletara os certificados nominais, os trocos e moedas sobre a mesa. — Eu lhe disse que estaria tudo aqui. — Mas quase não deu certo. — O quê? — O homem a quem chamavam Johann, aquele de Zurique. Está morto. Eu o matei. — Jason, o que aconteceu? Ele contou-lhe tudo. — Contavam com a Pont Neuf — disse. — Acho que o carro que os seguia ficou preso no trânsito e chamou o carro do mensageiro pelo rádio, dizendo-lhe para retardar um pouco. Tenho certeza que foi isso. — Oh, Deus, eles estão em todos os lugares! — Mas não sabem onde eu estou — disse Bourne olhando-se no espelho que ficava sobre o balcão, examinando os seus cabelos louros enquanto colocava os óculos de armação de tartaruga. — E o único lugar no mundo em que não esperam me encontrar neste momento — mesmo que tenham imaginado que já sei de tudo — é uma loja de modas na Saint-Honoré. — Les Classiques? — perguntou Marie, atônita. — Certo. Você fez a ligação? — Sim. Mas isso é insano! — Por quê? — Jason saiu da frente do espelho e olhou-a. — Pense nisso. Há vinte minutos a armadilha deles degringolou-se. Deve haver muita confusão, recriminações, acusações de incompetência, ou coisas piores. Agora mesmo, neste preciso momento, estão muito mais preocupados consigo mesmos do que comigo; nenhum deles quer ganhar uma bala na garganta. Não vai demorar muito, vão se reagrupar logo, e rapidamente. Carlos os obrigará a isso. Mas durante a próxima hora, mais ou menos, estarão tentando perceber o que aconteceu; e o único lugar em que não vão procurar por mim é em um ponto de trabalho, em um esconderijo que não têm a menor idéia que eu já conheça.. — Alguém vai reconhecê-lo! — Quem? Trouxeram um homem de Zurique para fazer isso, e ele está morto. Não têm a mínima idéia de como sou. — O mensageiro. Eles o levarão, porque ele o viu. — Nas próximas horas ele estará muito ocupado com a polícia.
— D’Amacourt. O advogado! — Acho que eles devem estar a caminho da Normandia ou de Marselha; ou então, se tiveram sorte, já saíram do país. — E supondo que possam ser detidos, presos? — Suposição?! Você acha que Carlos exporia um ponto seu, um lugar escondido, onde recebe as suas mensagens? Nunca! — Jason, estou com medo. — Eu também. Mas não de ser reconhecido. — Bourne virou-se para o espelho. — Eu podia dar uma longa dissertação sobre classificações faciais e abrandamento de feições, mas não vou. — Você está falando sobre as evidências da sua cirurgia. De Port Noir. Você me contou. — Não contei tudo. — Bourne inclinou-se sobre o balcão, olhando fixamente para o seu rosto. — De que cor são os meus olhos? — O quê? — Não, não olhe para mim. Agora, diga-me, de que cor são os meus olhos? Os seus são castanhos raiados de verdes. E os meus? — Azuis... azulados. Cinza... Realmente... — Marie parou. — Não estou bem certa. Suponho que seja uma falta minha. — Não. É perfeitamente normal. Basicamente, são castanho-avermelhados, mas nem sempre. Eu mesmo já notei isso. Quando uso uma camisa ou uma gravata azul, eles se tomam mais azuis; Se uso um casaco ou uma jaqueta marrom, eles são cinzas. Quando estou nu, são estranhamente indefinidos. — Isso não é assim tão estranho. Tenho certeza de que muitas pessoas também são assim. — Eu também. Mas quantos usam lentes de contato quando têm a visão normal? — Lentes de... — Foi exatamente o que eu disse — interrompeu Jason. — Certos tipos de lentes de contato são usadas apenas para mudar a cor dos olhos. E são bem mais eficientes quando os olhos são castanho-avermelhados. Quando Washburn examinou pela primeira vez os meus olhos, havia evidência de uso prolongado de lentes de contato. É uma das chaves, não é? — É o que você quiser que seja — disse Marie. — Se é que isso é verdade. — E por que não seria?
— Porque o módico estava quase o tempo todo mais bêbado do que sóbrio. Você me contou isso. Ele amontoou conjeturas e conjeturas, e muito provavelmente todas elas deformadas pelo álcool. Ele nunca foi muito específico. Nem podia. — Ele estava empenhado em uma coisa. Eu sou um cama- leão, desenhado para ser um modelo flexível. E eu queria descobrir de quem; talvez agora possa. Graças a você, tenho um endereço. Alguém por lá deve saber a verdade. Um homem, apenas, isso é tudo o que preciso saber. Uma pessoa com quem eu possa me confrontar, me revelar se necessário. — Não posso detê-lo. Mas, por Deus, tenha cuidado. Se o reconhecerem, eles o matarão. — Não lá; não farão nada lá. Seria péssimo para os negócios. Isto é Paris. — Não acho nada engraçado, Jason. — Nem eu. Estou contando com isso seriamente. — O que você vai fazer? Quero dizer, como? — Saberei melhor quando estiver lá. Quando puder ver se alguém está perdido por lá, parecendo nervoso ou ansioso, ou à espera de um telefonema, como se sua vida dependesse disso. — E dai? — Farei o mesmo que fiz com d’Amacourt. Esperarei do lado de fora e o seguirei. Sei seguir de perto, não o perderei de vista. E serei muito cuidadoso. — Você me telefonará? — Tentarei. — Fico louca esperando. Ainda mais sem saber de nada. — Não espere. Você não pode depositar os títulos em algum lugar? — Os bancos estão fechados. — Vá a um hotel; os bons hotéis têm caixa-forte. — Mas é preciso alugar um apartamento. — Instale-se num apartamento. No Meurice ou no George Cinq. Deixe a pasta na portaria, mas depois volte para cá. Marie balançou a cabeça. — Assim, sem fazer nada? — Então, telefone para Ottawa. Descubra o que aconteceu.
— Farei isso. Bourne foi até a mesa de cabeceira e pegou um maço de notas de cinco mil francos. — Com suborno é sempre mais fácil — disse. — Não creio que vá ser necessário, mas talvez eu possa precisar. — Talvez — concordou Marie. E logo em seguida acrescentou: — Você ouviu o que disse? Você deu o nome de dois hotéis. — Ouvi. — Ele virou-se e olhou-a. — Já estive aqui antes. Muitas vezes. Morei aqui, mas não nesses hotéis. Em ruas fora de mão, acho. Que não eram encontradas tão facilmente. Passou-se um momento em silêncio, o medo era elétrico. — Eu o amo, Jason. — Eu também a amo — respondeu Bourne. — Volte para mim. Não importa o que acontecer, volte para mim. A iluminação era suave e dramática, algumas luzes de refletores vinham do teto marrom escuro, envolvendo em agradáveis combinações de tons amarelos manequins e clientes ricamente vestidas. Os balcões de jóias e de acessórios eram forrados de veludo preto, sedas de vermelho e verde brilhantes, fluindo sobre a reluzente meia-noite com brilhos de ouro e prata ressaltados pela luz indireta da sala. Os corredores faziam curvas graciosas, em semi-círculos, dando uma ilusão de espaço ampliado, pois Les Clasiques não era uma loja muito grande. Era, no entanto, bonita e bem-freqüentada, localizada em um dos trechos mais valorizados . de Paris. Salas de prova com portas de vidro fume ficavam nos fundos, por trás de uma sacada onde deviam ficar os gerentes. Uma escada acarpetada se elevava do lado direito, ao lado de uma mesa de telefone, onde estava sentado um homem de meia-idade, estranhamente vestido com um terno muito conservador, operando o painel da mesa de telefone, falando em um microfone que era a extensão de um fone de ouvido. As vendedoras eram em sua maioria mulheres altas, esguias, de corpos e rostos magros, carnes lívidas de antigas modelos que desfilaram modas, mas cujo bom gosto e inteligência as elevara a posições mais altas do que as das suas irmãs de profissão. Elas não tinham mais necessidade de exercer a profissão. Os poucos homens em evidência também eram esguios; corpos finos, realçados por roupas bem-cortadas, gestos rápidos, posturas dançantes. Uma música suave e romântica se espalhava pelo ambiente, em crescendos abstratamente pontuados pelos pequenos fachos de luz dos refletores em miniatura. Jason vagou entre as alas, estudando os manequins, tocando os tecidos, dando a sua própria avaliação. Uma avaliação que encobria o seu próprio espanto. Onde estava a confusão, a ansiedade que esperava encontrar naquele ponto central de mensagens de Carlos? Olhou as portas do escritório, abertas, e o único corredor, que se bifurcava. Homens e mulheres passavam casualmente por ele, andando pelo pavimento; de vez em quando paravam, conversavam, trocavam pequenas informações irrelevantes. Fofocas. Em nenhum canto daquele espaço parecia haver qualquer indicação de urgência, não havia sinal de que uma armadilha tivesse explodido perto deles, de que um matador importado — o único homem em Paris que trabalhava para Carlos e podia identificar o alvo — fora morto com um tiro na cabeça, morto na traseira
de uma caminhonete blindada no Quai de la Rapée. Era incrível! Não apenas porque a atmosfera era completamente oposta ao que ele previra; ele também não esperara encontrar um caos, longe disso. Os militantes de Carlos eram muito controlados para terem esse comportamento. Ainda assim, esperara alguma coisa. E não havia ali nenhum rosto tenso ou olhos relampejantes; nenhum movimento abrupto, que pudesse significar alarme. Nada fora do comum. O mundo elegante da haute couture continuava a girar na sua elegante órbita, sem se importar com os acontecimentos que poderiam tirá-lo de seu eixo de rotação. Ainda assim, devia haver um telefone particular em algum lugar, e alguém, que não apenas falava por Carlos, mas que também tinha a autorização de pôr em movimento três matadores em uma única caçada. Uma mulher... Ele a viu; tinha que ser ela. Descia a escada acarpetada. Uma mulher alta e imperiosa, com um rosto que a idade e os cosméticos tinham transformado em uma máscara fria. Foi detida no meio do caminho por um daqueles varapaus bem-vestidos, que lhe entregou um recibo de compra para a sua aprovação. Ela passou os olhos pelo papel, depois olhou para baixo, para um nervoso homem de meiaidade, que estava perto de um balcão de jóias. O olhar que endereçou-lhe foi curto, mas evidenciava muito bem a mensagem: Está bem, “mon ami”, pegue a sua bugiganga, mas pague logo a conta. Do contrário, pode ficar em maus lençóis da próxima vez. Ou pior. Posso contar a sua esposa. Em segundos a reprovação terminara e um sorriso, tão falso quanto a sua máscara, apareceu na boca larga. Com um aceno de cabeça e um gesto floreado, a mulher pegou o lápis do vendedor e rubricou o cartão de venda. Depois continuou a descer a escada, o vendedor a seguia, conversando. Era evidente que ele a lisonjeava. No último degrau ela se virou, passou a mão na coroa de cabelos escuros e raiados e deu uma batidinha no pulso do vendedor, num gesto de agradecimento. Havia pouca placidez em seus olhos. Pareciam bem cientes de tudo, como nenhum par de olhos que ele já vira antes, exceto daqueles que ele conhecera em Zurique, por trás dos óculos de aro dourado. Instinto. Ela era o seu objetivo. Restava pensar como chegar a ela. Os primeiros movimentos da pavana tinha que ser muito sutis, comedidos, mas de modo a chamar-lhe a atenção. Ela tinha que vir até ele. Os minutos seguintes deixaram Jason atônito — isto é, ficou atônito consigo mesmo. O termo era “fazer o papel de”, e ele entendia muito bem disso. Mas o que mais o impressionava era a facilidade com que escorregava para um personagem que lhe era tão distante — do que ele conhecia de si mesmo. Onde há poucos minutos fizera algumas aprovações, agora inspecionava os artigos, tirava algumas roupas dos cabides, segurava os tecidos para examiná-los contra a luz. Observava com cuidado as costuras, os botões e as casas, passava os dedos nas golas, afofando-as e depois soltando-as. Era um conhecedor da boa roupa, um comprador experimentado, que sabia o que queria e se desfazia rapidamente daquilo que lhe desagradava. Não examinava as fichas de preço; obviamente, não tinham nenhum interesse para ele. Esse fato despertou o interesse da imperiosa mulher, que continuou a olhar em sua direção. Ela era uma vendedora, seu corpo côncavo, flutuando sobre o carpete, se aproximou dele. Ele sorriu com cortesia, mas disse que preferia escolher sozinho. Menos de trinta segundos depois ele estava atrás de
três manequins, cada um vestido com as mais caras criações que se encontravam na Les Classiques. Levantou as sobrancelhas, fez um muxoxo de aprovação com a boca enquanto espiava por entre os manequins para a mulher que estava por trás do balcão. Ela sussurrou ao vendedor que antes falara com ela; depois, balançou a cabeça e encolheu os ombros.. Bourne permaneceu com as mãos nos quadris, mexendo com as bochechas, a respiração calma, enquanto os olhos corriam de um manequim a outro; era um homem incerto, pronto para fazer uma escolha. E um cliente em potencial, especialmente um cliente que não olhava os preços e que estava precisando do auxílio da pessoa mais capaz que estava ali por perto — ele estava irresistível. A suntuosa mulher passou a mão nos cabelos e graciosamente venceu os corredores em sua direção. A pavana chegara ao fim do seu primeiro movimento; os dançarinos se curvaram, preparando-se para a gavota. — Vejo que o senhor está em dúvida quanto aos nossos melhores modelos, monsieur — disse a mulher em inglês, presumindo que esta fosse a sua língua, julgamento feito por olhos muito experientes. — Acredito que sim — respondeu Jason. — Vocês têm uma coleção muito interessante, mas a gente tem sempre que investigar, selecionar, não é? — A eterna e inevitável escala de valores, monsieur. No entanto, todas as nossas criações são exclusivas. — Cela va sans dire, madame. — Ah, vous parlez français? — Un peu. Razoavelmente. — É americano? — Raramente vou para lá — disse Bourne. — Estes modelos são exclusivos? — Oh, sim. Nosso desenhista é contratado exclusivo; tenho certeza de que já ouviu falar nele: René Bergeron. Jason enrugou a testa. — Sim. Já ouvi. É muito respeitado, mas nunca fez uma aparição internacional, não é? — Fará, monsieur. É inevitável; a sua reputação cresce a cada nova estação. Há poucos anos trabalhou para St. Laurent, depois para a Casa Givenchy. Alguns dizem que ele fazia bem mais do que apenas cortar os modelos, se o senhor me entende. — Não é difícil compreender. — E como aqueles mexeriqueiros tentaram derrubá-lo, deixá-lo para trás! É vergonhoso! Porque ele adora as mulheres, exalta-as, e não as veste como meninos, vous comprenez? — Je vous comprends parfaitement.
— Ele será mundialmente conhecido um dia, em breve, e eles nem serão capazes de chegar à bainha das suas criações. Pense nestas criações como trabalhos de um futuro mestre, monsieur. — É muito convincente. Vou levar estes três. Creio que são manequim 42? — Quarenta e quatro, monsieur. Serão ajustados, é claro. — Acho que não, mas tenho certeza de que há bons costureiros em Cap-Ferrat. — Naturellement — concordou a mulher rapidamente. — E também... — Bourne hesitou, novamente enrugando a testa. — E já que estou aqui, para economizar tempo selecione mais alguns para mim, nesta mesma linha. Com estampas diferentes, modelos diferentes, mas relacionados a esse tipo, se isso faz sentido. — É um bom sentido, monsieur. — Obrigado, fico muito grato. Fiz uma longa viagem, vim das Baamas, estou exausto. — Gostaria de sentar-Se, então? — Na verdade, gostaria de um bom drinque. — Pode ser conseguido, é claro. E quanto à forma de pagamento, monsieur...? — Je paierai cash, creio — disse Jason, certo de que a compra paga em dinheiro seria notada pelos administradores da Les Classiques. — Cheques e contas são como rastros de caça nas florestas, não é? — O senhor é sábio e perspicaz. — O rígido sorriso quebrou novamente a máscara, os olhos dissimulados. — Sobre o drinque, por que não no meu escritório? É bem reservado, poderá relaxar, e lhe trarei algumas seleções para a sua aprovação. — Esplêndido. — E quanto ao preço, monsieur? — Les meilleurs, madame. — Naturellement. — Uma mão pálida e fina lhe foi estendida. — Sou Jacqueline Lavier, sócia da Les Classiques. — Obrigado. — Bourne estendeu-lhe a mão, mas não se apresentou. Logo daria um nome mas não em lugar assim tão público. E oportunamente. Por enquanto, o dinheiro era a sua apresentação. — Seu escritório? O meu está a milhares de milhas daqui. — Por aqui, monsieur. — Aquele rígido sorriso mais uma vez apareceu, quebrando a máscara facial, como se fosse uma camada fina de gelo se rompendo. Madame Lavier fez um gesto em direção à
escada, O mundo da haute couture continuava, sua órbita não fora interrompida pela morte no Quai de la Rapée. Não havia interrupção — isso era um pouco perturbador para Jason e, também, muito estranho. Ele estava convicto que a mulher ao seu lado era portadora de comandos mortais, abortados com um tiro seu há uma hora. As ordens teriam sido dadas por um homem sem rosto, que exigia obediência ou morte. No entanto, não havia a mínima indicação de que uma mecha de seu cabelo perfeitamente arrumado tivesse sido perturbada por uma mão de dedos nervosos; nenhuma palidez na máscara cinzelada que pudesse demonstrar medo. Mesmo assim, não havia ninguém superior a ela lá na Les Classiques, ninguém mais que pudesse ter um número de telefone particular em um escritório particular. Parte de uma equação estava faltando... mas a outra já fora perturbadoramente confirmada. Ele mesmo, O camaleão. A charada funcionara. Ele estava no campo inimigo, convencido, sem dúvida alguma, de que não fora reconhecido. Todo esse episódio tinha uma qualidade déjá vu. Já fizera essas coisas antes, já experimentara as sensações dessa mesma ação. Era um homem percorrendo uma floresta desconhecida e, mesmo assim, instintivamente, conhecia o seu caminho, tinha certeza de saber onde as armadilhas estavam e como evitá-las. O camaleão era um perito. Chegaram até a escada e começaram a subir os degraus. No alto, à direita, o operador de meiaidade, vestido de forma bem conservadora, falava suavemente ao microfone do seu aparelho, acenando com a cabeça grisalha, quase cansado, como se estivesse assegurando a quem estava na linha que o mundo deles era tão sereno como devia ser. Bourne parou no sétimo degrau. Foi uma pausa involuntária. A cabeça daquele homem vista de trás, o perfil do rosto, o cabelo cinza já ralo — o jeito de os fios caírem por cima da orelha... Já vira aquele homem antes! Em algum lugar no passado, no seu esquecido passado. Ele podia se lembrar. Aquela figura surgia da escuridão... com alguns raios de luz. Explosões, névoas; ventos açoitantes, prolongados e seguidos de silêncios cheios de tensão. O que era? Onde? Por que a dor voltara-lhe aos olhos de novo? O homem de cabelos grisalhos começou a se virar na sua cadeira giratória. Jason desviou o olhar antes que ele o visse. — Vejo que o senhor está impressionado pela nossa mesa telefônica — disse Madame Lavier — É uma coisa que acredito combinar muito bem com Les Classiques e que a distingue das demais lojas de Saint-Honoré. — De que forma? — perguntou Bourne, enquanto continuavam a subir os degraus. A dor na vista fazia com que ele piscasse muito. — Quando um cliente telefona a Les Classiques, não é atendido por uma mulher de voz impessoal; ao contrário, é atendido por um cavalheiro que tem todas as informações na ponta da língua. — Um toque de classe. — Outros cavalheiros também pensam assim — acrescentou ela. — Sobretudo quando fazem compras por telefone, quando preferem mantê-las confidencialmente. Não há nenhum rastro em nossa floresta, monsieur.
Alcançaram o espaçoso escritório de Jacqueline Lavier. Era a toca de uma eficiente executiva. Uma grande quantidade de papel formava diversas pilhas separadas sobre a mesa. Em um cavalete encostado à parede estavam alguns desenhos em aquarela, alguns apenas começados, outros deixados intactos, claramente rejeitados. As paredes eram cheias de fotos do beautiful people, cuja beleza quase sempre é escondida pelas bocas escancaradas, de sorrisos tão falsos quanto o da máscara que ocupava aquele escritório. Havia uma certa qualidade vulgar no ar perfumado. Aqueles eram os alojamentos de uma esperta tigresa velha, rápida no ataque e fulminante se alguém a ameaçasse, ameaçasse as suas possessões ou a impedisse de saciar os seus apetites. Mas ela era bem-disciplinada; tudo levado em conta, era uma boa ligação para Carlos. Quem era aquele homem na mesa do telefone? Onde ele o vira antes? Foi-lhe oferecido um drinque de uma bandeja com muitas garrafas; escolheu um brandy. — Por favor, sente-se, monsieur. Vou pedir a ajuda do próprio René, se puder encontrá-lo. — É muita gentileza sua, mas estou certo de que o que a senhora escolher será bastante satisfatório. Tenho um certo instinto em reconhecer o bom gosto; o seu está em todos os recantos deste escritório. Gostei dele. — O senhor é muito generoso. — Só quando tenho certeza — disse Jason, ainda em pé. — Na realidade, gostaria de apreciar estas fotos. Vejo um bom número de conhecidos, até amigos. Uma porção destes rostos passam pelos bancos das Baamas com certa freqüência. — Estou certa que sim — concordou Lavier em um tom que deixava transparecer respeito por aquelas avenidas das finanças. — Não devo me demorar, monsieur. Não iria se demorar, pensou Bourne, logo que a sócia da Les Classiques saiu do escritório. Mine. Lavier não permitiriaque um alvo cansado e rico pudesse ter tempo para pensar. Logo voltaria com os mais dispendiosos modelos e criações que pudesse arrebanhar. Assim, se naquela sala houvesse alguma coisa capaz de lançar alguma luz sobre a intermediária de Carlos — ou sobre a sua operação assassina —, devia ser encontrada rapidamente. E se estivesse lá, estaria próxima à mesa. Jason circulou em volta da cadeira imperial encostada à parede, fingindo profundo interesse pelas fotos, mas se concentrou na mesa. Havia faturas, recibos, e contas atrasadas juntamente com promissórias cobradas, à espera da assinatura de Lavier. Um livro de endereços estava aberto, havia quatro nomes na página. Aproximou-se para ver mais claramente. Eram nomes de companhia, os contatos individuais estavam postos entre chaves, com a posição da pessoa sublinhada. Gostaria de memorizar cada nome de companhia, cada um dos seus contatos. Estava quase conseguindo quando seus olhos foram atraídos por um cartão de endereços. Apenas uma parte aparecia, o resto estava escondido debaixo do telefone. E havia mais alguma coisa — quase imperceptível. Uma fita adesiva transparente estava colada na beira do cartão, prendendo-o no lugar. A própria fita era relativamente nova e fora pregada recentemente sobre o papel pesado e a madeira lustrosa. Estava limpa, não havia manchas nem dobraduras nas margens ou sinais de estar lá há muito tempo.
Instinto. Bourne levantou o telefone para afastá-lo de cima do cartão. O telefone tocou. A campainha vibrava em sua mão, um som enervante. Recolocou-o sobre a mesa e afastou-se. Imediatamente um homem em mangas de camisa entrou pela porta aberta, vindo do corredor. Parou, olhou espantado para Bourne, os olhos assustados, mas cauteloso, tentando evitar qualquer demonstração. O telefone tocou pela segunda vez, o homem foi até a mesa e atendeu-o. — Alô? — Ouviu em silêncio, a cabeça baixa, concentrando-se no que ouvia. Era queimado de sol, musculoso, com idade indeterminada, a pele queimada de sol escondia a idade. O rosto era tenso, os lábios finos, o cabelo, tosado e grosso, era castanho-escuro, os fios disciplinados. Os tendões dos braços se moviam por baixo da carne enquanto ele transferia o aparelho de uma mão para a outra, falando asperamente. — Pas ici. Sais pas. Téléphonez plus tard... — Desligou o telefone e olhou para Jason. — Où est Jacqueline? — Um pouco mais devagar, por favor — disse Bourne, mentindo em inglês. — O meu francês é um pouco limitado. — Sinto — respondeu o homem bronzeado. — Estou à procura de Madame Lavier. — A dona? — O título serve. Onde está ela? — Esgotando. os meus fundos. — Jason sorriu, levando o copo aos lábios. — Oh? E quem é o senhor, monsieur? — Quem é você? O homem estudou Bourne atentamente. — René Bergeron. — Oh, senhor! — exclamou Jason. — Ela está a sua procura. O senhor é muito bom, senhor Bergeron. Ela me disse que eu devia encarar as suas criações como obras de um mestre do futuro. — Bourne sorriu novamente. — O senhor é a razão pela qual eu talvez tenha que telegrafar para as Baamas pedindo que me mandem uma grande soma em dinheiro. — O senhor é muito gentil, monsieur. E peço-lhe desculpas por ter entrado assim. — Foi melhor o senhor ter atendido o telefone. A escola Berlitz me considera um fracasso. — Compradores, estoquistas, são todos uns verdadeiros idiotas. Com quem, monsieur, tenho a honra de falar? — Briggs — disse Jason, sem ter a mínima idéia de onde lhe viera o nome, e atônito que lhe tivesse vindo à mente tão depressa e com tanta naturalidade. — Charles Briggs. — É um prazer conhecê-lo. — Bergeron estendeu a mão, o aperto foi forte. — Disse que
Jacqueline estava à minha procura? — Por minha causa, creio. — Vou procurá-la. — O desenhista deixou a sala rapidamente. Bourne aproximou-se da mesa, mantendo os olhos na porta; depois pegou o telefone. Empurrou o aparelho um pouco para o lado e deixou à vista o cartão. Havia dois números de telefone: o primeiro podia reconhecer como um número de Zurique; o segundo era de Paris. Instinto. Ele estava certo, e o pedaço de fita transparente era o único sinal de que precisara. Olhou bem para os números e os memorizou. Depois pôs o telefone de novo no lugar e afastou- se da mesa. Acabara de fazer isso quando Madame Lavier entrou na sala com uma meia dúzia de vestidos no braço. — Encontrei René na escada. Ele aprovou a minha seleção com entusiasmo. E também me disse que o seu nome é Briggs, monsieur. — Eu mesmo devia ter-lhe dito — disse Bourne, sorrindo em resposta à voz amuada de Lavier. — Mas não me lembro de a senhora ter perguntado. — “Rastros na floresta”, monsieur. Aqui está, trouxe-lhe uma festa! — Ela separou os vestidos, colocando-os cuidadosamente em várias cadeiras. — Realmente acredito que estão entre as mais finas criações que René nos trouxe. — Trouxe? Ele não trabalha aqui, então? — É uma forma de falar. Seu ateliê fica no final do corredor, mas é uma sagrada sacristia. Até mesmo eu tremo quando entro lá. — São magníficos — continuou Bourne, passeando os olhos de um para outro. — Mas não quero sufocá-la com tudo isto; quero apenas pacificá-la — acrescentou, apontando para três vestidos. — Levarei estes. — Uma boa seleção, monsieur Briggs! — Ponha-os na mesma caixa, por favor. — Naturalmente. Ela é de fato uma mulher de sorte. — Uma boa companheira, mas muito criança. Uma criança mimada, creio. No entanto, sei que também estive fora muito tempo e não lhe dei muita atenção; dessa forma, acho que posso fazer as pazes. Esta é uma razão por que a mandei para Cap Ferrat. — Sorriu, pegando a carteira Louis Vuitton. — La facture, si il vous plate? — Vou mandar uma das moças expedir tudo. — Madame Lavier apertou um botão do interfone próximo ao telefone. Jason observou-a atentamente, preparando-se para comentar a chamada que
Bergeron atendera logo que percebeu que os olhos da mulher se fixaram no telefone, um pouquinho fora do lugar. — Faites venir Janine — avec les robes. La facture aussi. — Empertigou-se. — Outro brandy, monsieur Briggs? — Merci bien. — Bourne estendeu-lhe o copo. Ela o pegou e foi até o bar. Jason sabia que ainda não era hora de pôr em prática o que tinha em mente; logo chegaria a ocasião — assim que ele lhe entregasse o dinheiro —, mas não agora. Podia, no entanto, continuar a construir as fundações com a sócia da Les Classiques. — Esse camarada Bergeron — disse ele — tem contrato exclusivo com a casa? Madame Lavier virou-se com o copo na mão. — Oh, sim. Somos uma família muito unida aqui. Bourne aceitou o brandy, agradeceu com a cabeça a bebida e sentou-se em uma poltrona em frente à mesa. — Esse é um acordo bem positivo — disse casualmente. A vendedora alta e magra com quem ele antes falara entrou no escritório com um livro de vendas na mão. As instruções foram dadas rapidamente, algumas cifras a mais, as roupas arrumadas e separadas enquanto o livro de vendas passava de mãos. Lavier entregou-o para que Jason conferisse. — Voici la facture, monsieur — disse ela. Bourne balançou a cabeça, dispensando a inspeção. — Con bien? — perguntou. — Vingt-mille, soixante francs, monsieur — respondeu a sócia da Les Classiques, observando a sua reação de pássaro precavido. Não houve qualquer reação. Jason simplesmente tirou cinco notas de cinco mil francos e entregou-lhe. Ela assentiu com a cabeça e deu o dinheiro para a esguia vendedora, que caminhou cadavericamente para fora do escritório, levando os vestidos. — Tudo será embrulhado e trazido de novo para cá, juntamente com o seu troco. — Lavier foi até a mesa e sentou-se. — O senhor está a caminho de Ferrat, então. Vai ser adorável. Ele havia pago, a hora chegara. — Uma última noite em Paris antes de voltar para o jardim de infância — respondeu Jason levantando o copo e fazendo um brinde zombando de si mesmo. — Sim, o senhor mencionou que sua amiga é bastante jovem. — Uma criança, foi o que eu disse, e é isso o que ela é. É uma boa companhia, mas acho que prefiro a companhia de mulheres mais maduras. — O senhor deve gostar muito dela — contestou Lavier, tocando o seu cabelo perfeitamente bem-penteado, aceitando a lisonja. — O senhor lhe compra coisas tão adoráveis e — francamente — tão caras! — Um preço menor, considerando o que ela deve tentar escolher. — Realmente.
— Ela é a minha esposa, a terceira para ser exato, e é preciso manter as aparências nas Baamas. Mas nem tanto lá nem tanto cá; minha vida está equilibrada. — Tenho certeza que sim, monsieur. — Falando nas Baamas, me ocorreu um pensamento há poucos minutos. Foi por isso que lhe perguntei a respeito de Bergeron. — Qual foi? — Pode pensar que sou impetuoso. Mas asseguro-lhe que não o sou. Mas quando alguma coisa me toca, gosto de explorá-la. Já que Bergeron é seu criador exclusivo, a senhora já pensou em abrir uma filial nas ilhas? — Nas Baamas? — E mais para o Sul. Na direção do Caribe, talvez. — Monsieur, Saint-Honoré sozinha já é mais do que podemos manter. Terra malcuidada fica alqueivada, como dizem. — Não teria que atendê-la de perto; não da forma como pensou. Uma concessão aqui, outra ali, as criações podem ser exclusivas, os donos das casas podem ganhar uma percentagem básica. Apenas uma butique ou duas se espalhando, mas, é claro, com muita cautela. — Isso exige capital considerável, monsieur Briggs. — Preços fixos, no início. O que a senhora deve chamar de quotas. São altos, mas não proibitivos. Nos hotéis mais finos e clubes depende apenas de como lidar com a administração. — E o senhor os conhece? — Muito bem. Como lhe disse, estou apenas fazendo uma observação, mas acho que a minha idéia tem um certo mérito. As suas etiquetas terão uma certa distinção — Les Classiques, Paris, Baamas... Caneel Bay, talvez. — Bourne engoliu o que restava do brandy. — Mas, provavelmente, a senhora me toma por louco. Considera tudo isso apenas conversa... Embora eu já tenha conseguido fazer uns dólares assumindo riscos que me aparecem de repente, assim, na excitação de um momento. — Riscos? — Jacqueline Lavier passou de novo a mão nos cabelos. — Não jogo fora as minhas idéias, madame. Em geral eu as estimulo. — Sim, entendo. Como o senhor diz, a idéia em si tem bastante mérito. — Creio que sim. É claro, eu gostaria de saber qual a espécie de acordo que a senhora tem com Bergeron. — Tudo poderia ser arranjado, monsieur.
— Digo-lhe uma coisa — disse Jason. — Se está livre, vamos conversar sobre isso à noite, podemos jantar. É a minha última noite em Paris. — E o senhor prefere a companhia de mulheres mais maduras — concluiu Jacqueline Lavier, a máscara quebrada em um sorriso; de novo o gelo quebrou-se em torno dos olhos, agora mais harmoniosamente. — C’est vrai, madame. — Pode ser — disse ela estendendo a mão para pegar o telefone. O telefone. Carlos. Ele a quebraria, pensou Bourne. Ele a mataria se fosse preciso. Mas saberia a verdade. Marie caminhou no meio da multidão em direção à companhia telefônica da Rua Vaugirard. Fora ao Meurice, deixara a pasta na portaria e permanecera sentada no quarto exatamente durante vinte e cinco minutos. Até não poder mais agüentar. Acomodara-se em uma cadeira de frente para uma parede branca, pensando em Jason, naquela loucura dos últimos oito dias, que a impulsionara em um círculo de insanidade muito além do que ela mesma poderia compreender. Jason. O atencioso, amedrontador e confuso Jason Bourne. Um homem com tanta violência dentro de si e, ao mesmo tempo, estranhamente cheio de compaixão. E terrivelmente capaz de lidar com um mundo que os homens comuns não conhecem. De onde teria ele surgido? De onde teria vindo esse homem a quem ela amava? Quem o ensinara a encontrar seu caminho pelas ruas escuras e afastadas de Paris, Marselha e Zurique... ou pelas ruas do Oriente, talvez? O que seria para ele o Extremo Oriente? Como aprendera tantas línguas? Que línguas seriam? Ou língua? Tao. Che-sah. Tam quan. Era outro mundo, e ela nada conhecia a respeito dele. Mas ela conhecia Jason Bourne, ou o homem chamado Jason Bourne, e se agarrava à decência que sabia encontrar-se lá dentro. Oh, Deus, como ela o amava! Ilich Ramirez Sanchez. Carlos. O que era ele para Jason, o que ele significava para Jason Bourne? Chega! Gritou para si mesma, naquele quarto, sozinha. Depois, fez o que vira Jason fazer tantas vezes: levantara-se da cadeira, como se o movimento físico pudesse clarear as sombras — ou permitir que elas fossem ultrapassadas. Canadá. Tinha que telefonar para Ottawa e descobrir por que a morte de Peter — o seu assassinato — ficara em silêncio, sem nenhum comentário dos jornais. Não fazia sentido; ela se opunha àquilo com todo o seu coração. Porque Peter também era um homem decente. E fora morto por homens
indecentes. Alguém poderia lhe dizer por quê. Do contrário, ela mesma comunicaria aquela morte — aquele assassinato. Gritaria alto para o mundo que conhecia, dizendo: “Façam alguma coisa!” E, assim, deixara o Meurice, tomara um táxi para a Rua Vaugirard e pedira a ligação para Ottawa. Agora, estava à espera da ligação do lado de fora da cabine, a ira aumentando, um cigarro apagado amassado entre os dedos.. Quando a campainha tocou ela nem teve tempo de deixá-lo no cinzeiro. A campainha tocou. Ela abriu a porta de vidro da cabine — É você, Alan? — Sim — foi a resposta curta. — Alan, o que está acontecendo? Peter foi assassinado e não foi escrita nem uma única palavra em qualquer jornal ou rádio! Acho que nem a embaixada sabe disso! É como se ninguém desse a mínima! O que vocês estão fazendo? — O que nos foi mandado. E é isso que você tem que fazer. — O quê? Foi Peter! Ele era seu amigo! Ouça bem, Alan... — Não! — a interrupção foi áspera. — Você, ouça. Saia de Paris. Agora! Tome o próximo avião diretamente para cá. Se tiver algum problema, a embaixada poderá solucionar — mas deve falar com o embaixador, entendeu? — Não! — gritou Marie St. Jacques. — Não entendo! Peter foi morto e ninguém se importa! Tudo o que você está dizendo é apenas tolice burocrática! Não se envolva. Por Deus, nunca se envolva! — Fique fora disso, Marie! — Ficar de fora do quê? É isso que você não está me dizendo, não é? Bem, é melhor você... — Não posso! — Alan abaixou a voz. — Não sei. Estou apenas lhe dizendo o que me mandaram dizer. — Quem? — Não pode fazer esta pergunta. — Mas estou fazendo! — Ouça, Marie. Não fui para casa nestas últimas vinte e quatro horas. Estive aqui as últimas doze horas à espera do seu telefonema. Tente me entender — não estou apenas sugerindo que você volte: são ordens do seu Governo. — Ordens? Sem qualquer explicação?
— É assim mesmo. Só vou dizer isso. Querem que você saia daí, eles o querem sozinho... É isso que deve fazer. — Sinto, Alan — mas não é assim. Adeus. — Bateu o telefone e logo depois segurou o pulso para fazer parar a tremedeira. Oh, Deus, ela o amava tanto! E eles estavam tentando matá-lo. Jason, meu Jason. Todos o querem morto. Por quê? O homem classicamente vestido que estava no painel da mesa telefônica puxou a alavanca que bloqueava todas as linhas, reduzindo as chamadas a um sinal de ocupado. Fazia isso uma ou duas vezes por hora para clarear a mente e limpá-la das insanidades que fora obrigado a dizer durante os minutos antecedentes. A necessidade de cortar todas as ligações em geral lhe ocorria logo depois de uma conversa particularmente tediosa. E acabara de ter uma assim. A esposa de um deputado tentando esconder do marido o extraordinário preço de uma única compra e dividi-lo em vários pagamentos, para que o marido não desconfiasse. Demais! Precisava de alguns minutos para respirar. A ironia o feria. Não fazia muito tempo e os outros sentavam-se à mesa telefônica para ele. Nas suas companhias em Saigon e na sala de comunicação de suas vastas fazendas, no Delta do Meckong. E ali estava ele agora, na mesa telefônica de outra pessoa, nas redondezas perfumadas de Saint-Honoré. O poeta inglês já dissera: há mais disparidades e vicissitudes na vida do que uma única filosofia pode invocar. Ouviu risos na escada e olhou para cima. Jacqueline saía mais cedo. Sem dúvida alguma, com um dos seus célebres conhecidos cheios da nota. Não havia nenhuma dúvida quanto a isso, Jacqueline tinha grande talento para tirar ouro de uma mina bem guardada, até mesmo diamantes dos De Beers. Ele não podia ver o homem que estava com ela porque ele estava do outro lado de Jacqueline, a cabeça virada para o outro lado. Mas depois, por um breve momento, ele o viu. Os olhos o perceberam, foi um momento curto e explosivo. O grisalho operador da mesa telefônica de repente não conseguia mais respirar. Ficou parado, num momento de descrença, olhando espantado para um rosto que já não via há anos. Um rosto que quase sempre vira no escuro, pois haviam trabalhado à noite... e mor rido à noite. Oh, meu Deus — era ele! Ele, que aparecia de um pesadelo vivo — ou morto — de milhões de milhas. Era ele! O homem grisalho levantou-se da mesa telefônica como se estivesse em transe. Tirou o fone da cabeça e deixou-o cair ao chão. O painel fez um ruído enquanto a mesa acendia e os chamados eram feitos sem serem recebidos, respondidos apenas pelos discordantes. Saiu da plataforma e encaminhou-se para a ala do lado, rapidamente, para ter melhor visão de Jacqueline Lavier e do fantasma que a acompanhava. O fantasma que era um matador — mais do que qualquer outro homem que já vira. Um matador. Disseram que poderia acontecer, mas nunca acreditara em tal possibilidade. Agora acreditava neles. Aquele era o homem. Podia vê-los claramente. Podia vê-lo. Estavam andando no centro do corredor em direção à
entrada. Tinha que detê-los. Tinha que detê-la! Mas se corresse e gritasse seria morto. Uma bala na cabeça, imediatamente. Chegaram às portas; ele abriu-as e acompanhou-a até a calçada. O homem grisalho saiu correndo do seu esconderijo pela ala do lado e foi até a janela da frente. Lá fora ele acenara para um táxi Abrira a porta, fazendo com que Jacqueline entrasse. Oh, Deus! Ela estava entrando! O homem de meia-idade virou-se e correu o mais que pôde em direção à escadaria. Esbarrou com dois clientes espantados e uma vendedora, atirando os três para fora do seu caminho. Subiu os degraus correndo, passou pela sacada e sumiu no corredor de trás, entrando pela porta aberta do ateliê. — René! René! — gritou, irrompendo na sala. Bergeron levantou os olhos da prancheta, espantado. — O que é? — Aquele homem com Jacqueline! Quem é ele? Quanto tempo esteve aqui? — Oh? O americano, provavelmente — disse o desenhista. — Seu nome é Briggs. Uma vaca gorda; nos fez muito bem hoje; gastou bastante na loja. — Aonde eles foram? — Eu nem sabia que eles tinham saído. — Ela saiu com ele! — A nossa Jacqueline sabe se comportar, não é? Ela tem bom senso. — É preciso encontrá-los! Encontrá-la! — Por quê? — Ele sabe. Ele a matará! — O quê? — É ele! Juro! Aquele homem é Caim!
Capítulo15 — O homem é Caim — disse o Coronel Jack Manning abruptamente, como se esperasse ser contrariado por pelo menos três dos quatro civis que estavam na reunião do Pentágono, em volta da mesa. Os outros eram mais velhos do que ele e cada um se considerava o mais experimentado. Nenhum deles estava preparado para receber bem a notícia de que o exército colhera informações que as suas organizações haviam falhado em obter. Havia um quarto civil cuja opinião não contava. Era um membro do Comitê de Superintendência do Congresso e, como tal, devia ser tratado com deferência, mas não muito seriamente. — Se não nos mexermos agora — continuou Manning —, mesmo correndo o risco de tornar público tudo o que sabemos, ele pode fugir da rede novamente. Como há onze dias, quando estava em Zurique. Estávamos convencidos de que ele ainda estava lá. E, cavalheiros, é Caim. — Isto é quase uma declaração — disse o acadêmico careca do Conselho de Segurança Nacional, enquanto lia a folha com o resumo sobre Zurique que se achava à frente de cada delegado, em cima da mesa. Seu nome era Alfred Gillette, especialista em seguro pessoal e de avaliação, considerado pelo Pentágono muito brilhante, vingativo, e com amigos em altos escalões. — Acho isso extraordinário — acrescentou Peter Knowlton, um dos diretores associados da Agência Central de Inteligência; um homem de cinqüenta e poucos anos, que perpetuava a forma de vestir, a aparência e a atitude de um Ivy Leaguer de há trinta anos. — As nossas fontes tinham a informação de que Caim tava em Bruxelas, e não em Zurique, ao mesmo tempo — há onze dias. As nossas fontes raramente se equivocam. — Isto é quase uma declaração — disse o terceiro civil, o único na mesa a quem Manning realmente respeitava. Era o mais velho, um homem chamado David Abbott, antigo nadador olímpico cujo intelecto combinava muito bem com seu preparo físico. Já estava na casa dos sessenta, mas ainda tinha postura ereta e a mente sagaz como sempre; a idade, no entanto, transparecia-lhe na linha do rosto, mostrando as tensões de uma vida que ele jamais revelaria. Ele sabia sobre o que estava falando, pensou o coronel. Embora fosse membro vitalício do onipotente Comitê dos Quarenta, estivera com a CIA desde as suas origens. Monge Silencioso das Operações Secretas era o apelido que lhe fora dado pelos colegas na comunidade do serviço de inteligência. — Em meus dias na Agência — continuou Abbott, entredentes — as fontes sempre estavam tanto em oposição quanto em concordância. — Temos métodos diferentes de verificação — insistiu o diretor associado. — Com todo o respeito, senhor Abbott, mas nossos equipamentos de transmissão são quase instantâneos. — Isso é equipamento, e não verificação. Mas não vou argumentar nem discutir; parece que temos uma discordância. Vejamos, Bruxelas ou Zurique. — O caso de Bruxelas é incontestável — insistiu Knowlton com firmeza. — Ouçamos — disse o calvo Gillette ajustando os óculos. — Podemos voltar ao resumo de Zurique; está bem à nossa frente. E, também, nossas fontes têm algo a oferecer, embora não esteja em conflito com Bruxelas ou Zurique. Aconteceu há seis meses.
O grisalho Abbott olhou para Gillette. — Seis meses atrás? Não me lembro de o CNS ter comunicado qualquer coisa a respeito de Caim há seis meses. — Foi inteiramente confirmado — respondeu Gillette. — Tentamos não sobrecarregar nosso comitê com fatos infundados. — Isso também é quase uma declaração — disse Abbott, sem precisar esclarecer. — Congressista Walters — interrompeu o coronel olhando em direção ao homem da Superintendência —, tem alguma pergunta a fazer antes de continuarmos? — Que diabo, sim — disse arrastadamente o cão de guarda congressista do Estado do Tennessee, os olhos inteligentes vagando pelos rostos em torno da mesa —, mas já que sou novo nisto, continue. Depois verei por onde começar. — Muito bem, senhor — disse Manning fazendo um aceno de cabeça para Knowlton, o homem da CIA. — O que é isto sobre Bruxelas, há onze dias? — Um homem foi morto na Place Fontainas — um comerciante de diamantes entre Moscou e o Oeste. Operava através de um ramo da Russolmaz, firma soviética sediada em Genebra e que agencia todas essas compras. Sabemos que é uma das formas que Caim usa para converter seu capital. — O que liga esta morte a Caim? — perguntou o dúbio Gillette. — O método, primeiro. A arma era uma agulha comprida, usada em um quarteirão cheio de gente, ao meio-dia, com precisão cirúrgica. Caim já usou este método antes. — É certo — concordou Abbott. . — Também houve um romeno em Londres, mais ou menos há um ano; e outro, algumas semanas antes dele. Ambos estavam ligados a Caim. — Ligados, mas não foi confirmado — objetou o Coronel Manning. — Eram ambos altos desertores políticos, podiam ter sido capturados pelo KGB. — Ou por Caim, com menos riscos para os soviéticos — declarou o homem da CIA. — Ou por Carlos — acrescentou Gillette alteando a voz. — Nem Carlos nem Caim dão importância à ideologia, ambos se vendem. Por que sempre que aparece uma morte de grande conseqüência a atribuímos a Caim? — Porque sempre que o fazemos — respondeu Knowlton, e sua condescendência era aparente — é porque fontes bem-informadas não têm conhecimento de qualquer outro, o que faz com que raramente possa haver erro. — É muito provável — disse Gillette desagradavelmente. — Voltando a Bruxelas — interrompeu o coronel. — Se foi Caim, por que mataria um intermediário da Russolmaz? Ele o usou.
— Um intermediário mantido em sigilo — corrigi o diretor da CIA. — E por um bom número de razões, de acordo com nossos informantes, O homem era um ladrão. E por que não? A maioria dos seus clientes também o era; não podiam tirar a limpo certas coisas. Deve ter enganado Caim, e se o fez, foi sua última transação. Ou pode ter sido ingênuo a ponto de querer especular sobre a identidade de Caim. E qualquer insinuação sobre esse assunto o levaria à agulha. Ou talvez Caim apenas quisesse apagar sua pista em circulação. E mesmo sem levar em conta essas circunstâncias, mais as fontes, restanos pouca dúvida. Devia ser Caim. — Haverá muito mais, logo que eu puder esclarecer Zurique — disse Manning. — Podemos continuar com o resumo? — Um momento, por favor. —. David Abbott falou casual- mente enquanto acendia o cachimbo. — Creio ter o nosso colega do Conselho de Segurança mencionado uma ocorrência ligada a Caim que se passou há seis meses. Talvez devêssemos ouvi-lo. — Por quê? — perguntou Gillette, os olhos de coruja por trás das lentes dos óculos sem aro. — O fator tempo tira qualquer conexão com Bruxelas ou Zurique. Também mencionei esse fato. — Sim, mencionou — concordou o outrora formidável Monge Silencioso das Operações Secretas. — Achei, no entanto, que qualquer revisão pudesse auxiliar. Como você também disse, podemos voltar ao resumo, está a nossa frente. Mas não é tão relevante, vamos continuar com Zurique. — Obrigado, senhor Abbott — disse o coronel. — Os senhores notarão que há onze dias quatro homens foram mortos em Zurique. Um deles era um vigia em uma área de estacionamento próxima ao Rio Limmat. Do que se pode presumir que ele não estava envolvido com as atividades de Caim, mas foi enredado nelas. Dois outros foram encontrados em uma rua sem saí da, no lado Oeste da cidade; aparentemente, são mortes não relacionadas uma à outra, exceto pela quarta vítima. Ela está ligada com estes homens mortos — todos três faziam parte da rota Zurique-Munique, do submundo — e está, sem dúvida alguma, em conexão com Caim. — É Chernak — disse Gillette, lendo o resumo. — Enfim, suponho que seja Chernak. Reconheço o nome e de alguma forma o associo com a ficha de Caim. — E deve — respondeu Manning. — Isso primeiro apareceu num relatório G-Dois, há dezoito meses, e veio à baila novamente há um ano. — Seis meses atrás, então — interpôs-se Abbott, devagar, olhando para Gillette. — Sim, senhor — continuou o coronel. — E se já existiu algum exemplo do que comumente chamam de escória-da-terra, esse era Chernak. Durante a guerra era recruta tcheco em Dachau, um interrogador trilíngile, tão brutal quanto os guardas do campo. Mandou poloneses, eslovacos e judeus para os chuveiros da morte depois das sessões de tortura, nas quais extraía — e fabricava — “incriminações” que os comandantes de Dachau queriam ouvir. Fazia qualquer coisa em troca de favores dos seus superiores, e os mais sádicos parceiros eram escolhidos para acompanhar as suas experiências. O que não perceberam era que ele estava catalogando as experiências deles. Depois da guerra fugiu, perdeu as penas em um terreno minado e ainda assim conseguiu sobreviver muito bem
com as suas extorsões do que sabia de Dachau. Caim o encontrou e o usou como intermediário para pagamentos das suas mortes. — Agora espere um pouco! — objetou Knowlton energicamente. — Já vimos toda essa matéria sobre Chernak. Se você se lembra, foi a Agência quem primeiro o descobriu; já podíamos tê-lo denunciado há muito tempo se o Estado não tivesse interferido no interesse de alguns poderosos oficiais anti-soviéticos do Governo de Bonn. Você quer dizer que Caim usou Chernak; mas não tem certeza de nada mais do que nós. — Nós sabemos — disse Manning. — Há sete meses e meio recebemos uma informação confidencial sobre um homem que tem um restaurante chamado Drei Alpenhäuser. Foi-nos dito que ele era um intermediário entre Caim e Chernak. Mantivemo-lo sob observação por várias semanas, mas nada foi descoberto. Era uma figura menor do submundo de Zurique, isso era tudo. Não o vigiamos muito, não o suficiente. — O coronel fez uma pausa, sentindo-se muito satisfeito porque todos os olhos estavam postos nele. — Quando soubemos da morte de Chernak, negociamos. Há cinco noites, dois dos nossos homens se esconderam no Drei Alpenhäuser, depois que o restaurante fechou. Encurralaram o dono e o acusaram de negociar com Chernak, de trabalhar para Caim; fizeram um diabo de show. Os senhores bem podem imaginar o choque que tiveram quando o homem caiu, literalmente caiu, aos seus pés, de joelhos, pedindo para ser protegido. Admitiu que Caim estava em Zurique na noite em que Chernak foi morto e que, de fato, ele vira Caim naquela noite e que Chernak aparecera na conversa. E de forma bem negativa. O militar fez nova pausa, o silêncio foi preenchido por um assobio baixo e lento de David Abbott, o cachimbo perto do seu rosto pétreo. — Agora, isto é uma declaração — disse o Monge baixinho. — Por que a Agência não foi notificada dessa informação que o senhor recebeu há sete meses? — perguntou Knowlton, da CIA, acremente. — Eu não a aprovara. — Em suas mãos; teria sido diferente nas nossas. — É possível. Admiti que não ficamos com ele por muito tempo. O poder humano é limitado. Quem de nós pode manter indefinidamente uma vigilância improdutiva? — Podíamos tê-la dividido, se soubéssemos. — E podíamos ter-lhe poupado o tempo que gastou em formar o seu arquivo de Bruxelas se tivéssemos sido informados disso. — De onde veio a informação? — perguntou Gillette, interrompendo com impaciência, os olhos grudados em Manning. — Foi anônima. — Você combinou assim? — A expressão de pássaro de Gillette escondia o seu espanto.
— Era uma das razões pelas quais a vigilância inicial foi limitada. — Sim, é óbvio, mas você quer dizer que nunca tentou descobrir de onde vinha? — Claro que sim — replicou o coronel, irritado. — Aparentemente sem muito entusiasmo — continuou Gillette iradamente. — Nunca lhe ocorreu que alguém em Langley, ou no Conselho, pudesse ter ajudado, pudesse ter preenchido esta falha? Concordo com Peter. Devíamos ter sido informados. — Há uma razão pela qual não foram. — Manning respirou profundamente; em ambientes menos militares isso teria sido interpretado como um suspiro. — O informante deixou bem claro que se chamássemos qualquer outro serviço, ele não voltaria a fazer nenhum contato novamente. Achamos que tínhamos que nos ater a isso; como já fizemos antes. — O que você disse? — Knowlton deixou de lado a folha do resumo e olhou espantado para o oficial do Pentágono. — Não é nenhuma novidade, Peter. Cada um de nós tem as suas próprias fontes e as protege. — Estou ciente disso. Foi por isso que vocês não foram informados a respeito de Bruxelas. Os dois parasitas nos disseram para deixar o Exército de fora. Silêncio. Quebrado pela voz acre de Alfred Gillette, do Conselho de Segurança. — Qual é a freqüência desse “já fizemos antes”, coronel? — O quê? — Manning olhou para Gillette, mas consciente de que David Abbott olhava para ambos com grande interesse. — Gostaria de saber quantas vezes lhes foi dito para manter as suas fontes em sigilo. Refiro-me a Caim, é claro. — Algumas vezes, acho. — Acha? — A maioria das vezes. — E você, Peter? Como tem sido com a Agência? — Fomos muito limitados em termos de divulgação em profundidade. — Pelo amor de Deus, o que significa isso? — A interrupção veio do mais inesperado membro da conferência: o congressista da Superintendência. — Não me entendam mal, ainda nem comecei. Quero apenas acompanhar a linguagem. — Virou-se para o homem da CI — O que foi que disse? O quê em profundidade? — Divulgação, congressista Walters; está em todo o fichário de Caim. Corremos o risco de
perder nossos informantes se os levamos ao conhecimento de outras unidades de serviço de informação. Asseguro-lhe, é um comportamento normal. — Soa como se vocês estivessem pondo uma novilha em um tubo de ensaio. — Quase com os mesmos resultados — acrescentou Gillette. — Sem perigo de contaminar ou corromper a sua descendência. E, visto por outro ângulo, sem perigo de cruzar arriscando-se a obter desvios na pureza da raça. — Um belo jogo de frases — disse Abbott, com o rosto enrugado e áspero — mas não estou certo de entendê-lo. — Eu diria que está bem claro — replicou o homem do Conselho Nacional de Segurança, olhando para o Coronel Manning e Peter Knowlton. — Os dois ramos mais ativos do serviço de inteligência do país tinham informações sobre Caim — durante estes três últimos anos — e não houve qualquer cruzamento entre os ramos à procura das origens dessas informações ou de sua fraude. Apenas recebemos todas as informações como bona fide data, as guardamos e aceitamos como válidas. — Bem, já estou por aqui há um bom tempo — talvez até muito tempo, acho — mas não há nada aqui que eu já não tenha ouvido antes — disse o Monge. — Os informantes são pessoas muito astutas e defensivas; guardam os seus contatos com ciúme. Nenhum deles está nesse negócio por caridade, apenas pelos ganhos e pela sobrevivência. — Creio que o senhor está subestimando o meu ponto de vista — disse Gillette, enquanto tirava os óculos. — Eu disse anteriormente que eu estava alarmado com tantos assassinatos recentes que estão sendo atribuídos a Caim — atribuídos aqui a Caim — quando me parece que o assassino mais completo dos nossos tempos — e talvez de toda a história — tenha sido relegado a um papel relativamente secundário. Acho que isso não está certo. Creio que Carlos é o homem em quem devíamos nos concentrar. O que aconteceu a Carlos? — Questiono o seu julgamento, Alfred — disse o Monge. — O tempo de Carlos já passou. Caim está atuando agora. A velha ordem mudou; há um novo tubarão e, suspeito, muito mais ardiloso e voraz se movendo sob essas águas de hoje. — Não posso concordar com isso — disse o homem da Segurança Nacional, com os olhos de coruja sondando o mais velho funcionário da comunidade do serviço de inteligência. — Desculpe-me, David, mas isso me espanta. É como se o próprio Carlos estivesse manipulando este comitê, para desviar a nossa atenção dele e nos fazer concentrar em assunto de menor importância. Estamos gastando todas as nossas energias em busca de um tubarão de praia, sem dentes, enquanto o cabeça-de-martelo cruza as águas em completa liberdade. — Ninguém está querendo se esquecer de Carlos — objetou Manning. — Ele simplesmente não tem andado tão ativo quanto Caim. — Talvez — disse Gillette friamente — isso seja exatamente o que Carlos quer de nós, ou quer que acreditemos. E, por Deus, estamos acreditando.
— Pode duvidar? — perguntou Abbott. — O arquivo dos feitos de Caim é desconcertante. — Posso eu duvidar disso? — repetiu Gillette. — Esta é a pergunta, não é? Mas algum de nós pode ter certeza? Essa também é uma pergunta válida. Agora descobrimos que o Pentágono e a Agência Central de Inteligência têm literalmente operado independentemente, sem mesmo conferir a autenticidade de suas fontes. — Um costume raramente transgredido nesta cidade — disse Abbott, deleitado com a situação. Novamente o congressista da Superintendência interrompeu. — O que está tentando dizer, senhor Gillette? — Gostaria de ter maiores informações sobre as atividades de alguém chamado Ilich Ramirez Sanchez. Que é... — Carlos — disse o congressista. — Lembro-me da leitura que fiz. Entendo. Obrigado. Continuem, cavalheiros. Manning falou rapidamente. — Podemos voltar a Zurique, por favor? A nossa missão agora é ir em busca de Caim de novo. Podemos dar a nova, espalhá-la através do Verbrecherwelt, recolher todas as informações que temos, pedir a cooperação da polícia de Zurique. Não podemos mais perder outro dia. O homem que está em Zurique é Caim. — Então, o que havia em Bruxelas? Knowlton, da CIA, fez a pergunta para si mesmo e para os que estavam à mesa. — O método era de Caim, os informantes não se equivocariam. Qual seria o propósito? — Dar-lhe informações falsas, é óbvio — disse Gillette. — E antes que tomemos qualquer providência drástica com relação a Zurique, sugiro que cada um dos senhores dê uma olhada nos arquivos de Caim e reexamine cada fonte que lhe tenha sido dada. Façam com que todas as estações européias recolham cada informante que tenha aparecido miraculosamente com informações. Tenho a impressão de que podem encontrar algo inesperado: a fina mão latina do nosso Ramirez Sanchez. — Já que insiste tanto em esclarecimentos, Alfred — interrompeu Abbott —, por que não nos conta sobre aquela ocorrência não-confirmada de seis meses atrás? Parece que estamos enrascados aqui; talvez possa nos ajudar. Pela primeira vez durante a reunião, o abrasivo delegado do Conselho de Segurança Nacional parecia hesitar. — Recebemos uma informação, lá por meados de agosto, de uma fonte confiável, em Aix-en-Provence, de que Caim estava a caminho de Marselha. — Agosto? — exclamou o coronel. — Marselha? Foi Leland! O Embaixador Leland foi morto a tiros em Marselha. Em agosto! — Mas não foi Caim quem usou aquele rifle. Foi uma morte feita por Carlos; isso foi confirmado. As marcas dos tiros eram as mesmas de tiros anteriores, e foram feitas três descrições de um homem de cabelos escuros no terceiro e quarto andares do armazém, com uma sacola. Nunca houve
qualquer dúvida de que Leland foi assassinado por Carlos. — Por Cristo — berrou o oficial. — Isso foi depois do fato, depois da morte! Não importa de quem, mas havia um contrato sobre Leland... Isso não lhe ocorreu antes? Se tivéssemos sabido de Caim, poderíamos ter protegido Leland. Ele era propriedade militar! Maldição, podia estar vivo hoje! — Muito improvável — replicou Gillette, calmamente. — Leland não era a espécie de homem capaz de morar em um abrigo. E de acordo com o seu estilo de vida, qualquer observação sobre isso não surtiria efeito algum. Além disso, se nossa estratégia tivesse sido conjunta, avisar Leland teria sido contra-producente. — Por quê? — perguntou o Monge rispidamente. — Esta é a sua versão. A nossa fonte devia estabelecer contato com Caim entre meia-noite e três horas, na Rua Sarrasin, no dia 23 de agosto. O episódio só foi acontecer no dia 25. Como estou dizendo, se tivéssemos agido em conjunto, teríamos pegado Caim. Mas não foi assim. Caim nunca apareceu. — E a sua fonte insistiu em cooperar apenas com você — disse Abbott. — Se todos os demais fossem excluídos. — Sim — acenou com a cabeça Gillette, tentando esconder o seu embaraço. — No nosso julgamento, o risco de Leland fora eliminado — o que em termos de Caim deu certo — e as vantagens para capturar Caim seriam maiores do que nunca. Finalmente encontramos alguém desejoso de vir identificar Caim. Algum dos senhores teria agido de forma diferente? Silêncio. Desta vez quebrado pela entrada do astuto congressista de Tennessee. — Cristo Todo-Poderoso... Que bando de tapeadores. Silêncio, rompido pela voz pensativa de David Abbott. — Posso louvá-lo, senhor, por ser o primeiro homem honesto mandado para cá vindo das Montanhas. O fato de não estar oprimido com a atmosfera rarefeita destes ambientes altamente selecionados não nos passa despercebido. É alentador. — Acho que o congressista não captou completamente a sensibilidade do... — Oh, cale-se, Peter — disse o Monge. — Creio que o congressista quer dizer alguma coisa. — Apenas como sugestão — disse Walters. — Acho que todos são de maioridade; supõe-se portanto que saibam o melhor. Supõe-se que sejam capazes de manter conversas inteligentes, de trocar informações, respeitar os assuntos confidenciais e procurar soluções comuns. Mas, em vez disso, parecem um bando de garotos pulando dentro de um parque disputando a posse de um anel de latão barato. Não é uma boa forma de gastar o dinheiro de quem paga impostos. — O senhor está simplificando muito, congressista, interrompeu Gillette. — Está se referindo a um utópico aparato para descobrir fatos. Não existe tal coisa.
— Estou me referindo a homens razoáveis, senhor. Sou um advogado, e antes de vir para este maldito circo lidei com vários níveis de matérias e assuntos confidenciais. E isso durante todos os dias da minha vida. O que há de tão novo nisso? — E qual é a sua posição? — perguntou o Monge. — Quero uma explicação. Durante mais de dezoito meses sentei-me à mesa do subcomitê do Conselho de Assassinatos. Avancei a custo através de mil e uma páginas com centenas de nomes e o dobro dessa quantidade de teorias. Não creio que haja uma conspiração insinuada ou um assassino suspeito que não conheça. Vivi com esses nomes e essas teorias por quase dois malditos anos, até que pensei não ter mais nada para aprender. — Diria que suas credenciais são impressionantes — interrompeu Abbott. — Acho que são; é por isso que aceitei a cadeira da Superintendência. Pensei que podia dar uma contribuição mais efetiva, mas agora não estou tão certo. De repente comecei a pensar: o que vou fazer agora? — Por quê? — perguntou Manning apreensivamente. — Porque estive sentado aqui ouvindo quatro dos senhores descreverem uma operação que vem durando três anos, envolvendo redes de pessoas, informantes e postos de inteligência através de toda a Europa — tudo centrado em um assassino cuja “lista de ocorrências” é desconcertante. Estou certo? — Continue — replicou Abbott calmamente, segurando o seu cachimbo, a expressão enlevada. — Qual é a sua pergunta? — Quem é ele? Quem é afinal esse tal Caim?
Capítulo16 O silêncio durou precisamente cinco segundos, durante os quais houve troca de olhares, pigarros, mas sem que ninguém se mexesse nas cadeiras. Era como se estivessem tomando uma decisão em silêncio, sem discussões: toda evasiva deveria ser evitada. O congressista Efrem Walters, das montanhas do Tennessee através da Yale Law Review, não podia ser dispensado com uma simples e fácil conversa que tratasse com a delicada confidencialidade daquelas manobras clandestinas. Conversa fiada estava fora de cogitação. David Abbott pôs seu cachimbo sobre a mesa; este barulho foi a sua introdução. — Quanto menor divulgação pública dermos a Caim, melhor para nós todos. — Isto não é resposta — disse Walters. — Mas aceito como um começo. — E é. Ele é um assassino profissional — isto é, um especialista treinado em todos os métodos de tirar a vida. E essa sua especialidade está à venda; ele não tem qualquer motivação pessoal ou política; está no negócio apenas para auferir lucros — e a tabela dos seus preços é diretamente proporcional à sua reputação. O congressista assentiu com a cabeça. — E assim, mantendo estreita repressão à sua reputação, vocês estão coibindo uma publicidade gratuita. — Exatamente. há uma porção de maníacos neste mundo com uma série de inimigos, reais ou imaginários, que podiam facilmente gravitar em torno de Caim se o conhecessem. Infelizmente, são muitos os que já fazem isso. Até hoje, trinta e oito mortes podem ser diretamente atribuídas a ele, e mais umas doze ou quinze provavelmente também o possam. — Esta é a sua lista de “feitos”? — Sim. E estamos perdendo a batalha. Sua reputação cres ce a cada nova morte. — Ele esteve inativo por algum tempo — disse Knowlton, da CIA. — Durante alguns meses, até recentemente, pensamos que talvez o tivéssemos apanhado. Muitas vezes os próprios matadores se eliminam entre si; pensamos que ele podia ser um desses casos recentes. — Quais? — perguntou Walters. — Um banqueiro em Madri, que subornava a Europolitan Corporation para compras do seu Governo na África. Foi morto por um tiro dado de um carro em alta velocidade no Paseo de la Castellana. Um guarda-costas, que também era seu motorista, conseguiu atirar no matador e no motorista do carro. Durante algum tempo acreditamos que esse matador fosse Caim. — Lembro-me desse incidente. Quem pagou por esse assassinato? — Um sem-número de companhias — respondeu Gillette — que queriam vender carros a preço de ouro e ascensão direta para os ditadores fabricados.
— O que mais? Quem mais? — O xeque Mustafá Kalig de Omã — disse o Coronel Manning. — Ele foi dado como morto em um golpe malsucedido. — Nada disso — continuou o oficial. — Não houve nenhum atentado. Os informantes G-Dois confirmaram. Kalig era muito impopular, mas os outros xeques não são tolos. A história do golpe foi uma forma de encobrir o assassinato, que podia ser tentador para outros matadores profissionais. Três desordeiros sem entidade, do Corpo de Oficiais, foram executados para conferir maior credibilidade à mentira. Por um momento pensamos que um deles fosse Caim; o tempo correspondia à sua inatividade. — Quem pagaria Caim para assassinar Kalig? — Já nos perguntamos isso muitas vezes — disse Manning. — A única resposta possível veio de uma fonte que se dizia bem-informada, mas não houve nenhuma maneira de averiguar. Disse que Caim fez isso a fim de provar para si mesmo que seria capaz de tal coisa. Os xeques do petróleo viajam com o serviço de segurança mais impenetrável do mundo. — E há mais uma dúzia de outros incidentes — acrescentou Knowlton. — Probabilidades que entram na mesma escala de personalidades muito bem-protegidas e que foram mortas. As fontes de informação que nos chegaram implicam Caim. — Compreendo. — O congressista pegou a folha do resumo sobre Zurique. — Mas pelo que posso deduzir, os senhores não sabem quem é ele. — Jamais uma descrição correspondeu a outra — interpôs Abbott. — Aparentemente, Caim é um virtuose em disfarces e camuflagem. — Mesmo assim, as pessoas o têm visto e falado com ele. As suas fontes, esses informantes, o homem de Zurique, nenhum deles pode vir a público e testemunhar que o viram, eu sei, mas decerto foram interrogados. Vocês já devem ter matéria para chegar a uma composição aproximada, um retrato, alguma coisa. — Fizemos várias composições e montamos vários modelos — replicou Abbott —, mas uma descrição consistente ainda não é possível. Aos informantes Caim jamais se deixou ver à luz do dia. Marca os encontros à noite, em salas escuras ou galerias. Se já se encontrou com mais de uma pessoa ao mesmo tempo — como Caim — não sabemos. Contaram-nos .que ele nunca fica de pé, está sempre sentado — em algum restaurante mal-iluminado, em uma cadeira de canto, ou em um carro estacionado. Algumas vezes usa óculos grossos, outras vezes não os usa; em um encontro ele pode ter cabelos escuros, em outro, brancos, ou ruivos, ou até mesmo estar usando chapéu. — E a língua? — Chegamos mais perto nesse campo — disse o diretor da CIA, ansioso para apresentar as pesquisas de sua companhia. — Fala fluentemente o inglês, o francês e muitos dialetos orientais.
— Dialetos? Que dialetos? Uma língua, não engloba os seus dialetos? Que língua é, então? — Naturalmente. São de origem vietnamita. — Viet... — Walters se inclinou para a frente. — Por que será que tenho a impressão de que estou chegando a um ponto em que vocês ainda não tocaram? — Provavelmente porque você é astuto no exame das coisas, conselheiro. — Abbott riscou um fósforo e acendeu o seu cachimbo. — Razoavelmente alerta — concordou o congressista. — E então, o que é? — Caim — disse Gillette desviando o olhar rapidamente e de uma forma estranha para David Abbott — sabemos de onde ele vem. — De onde? — Do Sudeste da Ásia — respondeu Manning, como se estivesse tentando suportar a dor de um ferimento feito a faca. — Pelo que pudemos constatar, especializou-se nos dialetos da orla para poder ser entendido nos países das montanhas entre as fronteiras do Camboja e do Laos, bem como na zona rural do Vietnã do Norte. Aceitamos estes dados, eles parecem convincentes. — Com relação a quê? — Operação Medusa. — O coronel pegou um envelope de papel pardo, comprido e largo, que estava à sua esquerda. Abriu-o e tirou de dentro uma pasta, das muitas que lá estavam, e a colocou próximo a ele. — Esta é a pasta de Caim — disse, fazendo um sinal de cabeça em direção ao envelope. — Este é o material da Medusa, os aspectos relacionados a Caim. O congressista do Tennessee recostou-se na cadeira. Um sorriso sarcástico apareceu-lhe nos lábios. — Cavalheiros, os senhores me matam com todos esses títulos piedosos. Isso é estranho, é muito sinistro e nefasto. Acho que os meus amigos aqui fizeram um curso sobre esta matéria. Continue, coronel. O que é essa Medusa? Manning lançou um olhar rápido para David Abbott. Depois falou. — Foi um desenvolvimento do conceito de busca-e-destruição, criado para funcionar atrás das linhas inimigas durante a Guerra do Vietnã. No fim da década de sessenta e começo da de setenta, unidades de voluntários americanos, franceses, britânicos, australianos e nativos se formaram em grupos para operar nos territórios ocupados pelos norte-vietnamitas. As prioridades do trabalho deles eram romper as comunicações inimigas e as linhas de suprimento, localizar os campos de prisioneiros e, por último, mas não em importância, assassinar os lideres das aldeias conhecidos por terem cooperado com os comunistas, assim como os comandantes inimigos sempre que possível. — Era uma guerra dentro da própria guerra — interrompeu Knowlton. — Infelizmente, as diferenças raciais e lingüísticas tornaram essa participação infinitamente mais perigosa do que, digamos, os movimentos secretos da resistência germânica ou holandesa, ou mesmo da resistência francesa na Segunda Guerra Mim dial. Por conseguinte, o recrutamento dos ocidentais não era sempre
tão seletivo quanto devia ser. — Havia dúzias desses grupos — continuou o coronel —, recrutados entre os comandantes de Marinha, das antigas tropas, que conheciam as linhas costeiras onde estavam os plantadores de origem francesa, cuja única esperança de salvação residia na vitória americana. Havia desocupados britânicos e australianos que já viviam há muitos anos na Indochina, bem como pessoal do exército americano, altamente motivado, e oficiais civis, de carreira, do serviço de inteligência. E também, o que era inevitável, uma grande facção de criminosos empedernidos. Na sua maioria, contrabandistas. — homens que lidavam com contrabando de armas, narcóticos, ouro e diamantes, através da área costeira do Mar do Sul da China. Eram enciclopédias ambulantes no que tocava a aterrissagens noturnas e rotas por dentro das florestas. Muitos dos que empregamos eram fugitivos ou estavam fugidos dos Estados Unidos, um grande número tinha boa escolaridade, eram todos muito aproveitáveis. Precisávamos da experiência deles. — Isso é quase uma seção especial de voluntários — interrompeu o congressista. — Pessoal de linha da Marinha e do Exército; desocupados britânicos e australianos, colonialistas franceses e pelotões de ladrões. Como conseguiram que eles trabalhassem juntos? — Cada um de acordo com os seus merecimentos — disse Gillette. — Promessas — emendou o coronel. — Garantia de contratação, promoções, perdões, prêmios em dinheiro e, em alguns casos, oportunidades de desviar fundos da própria operação. Como vê, todos pareciam um pouco doidos, todos compreendemos isso. Treinamo-los secretamente para usarem códigos, métodos de transporte, prepararem ciladas e mortes — e até mesmo para usarem armas que o comando de Saigon desconhecia. Como Peter mencionou, os riscos eram muito grandes — a captura resultava em tortura e execução. O preço era alto e eles o pagavam. A maioria das pessoas os chamaria de paranóicos, mas eram gênios no que se referia a chacina e assassinato. Sobretudo assassinatos. — Qual era o preço? — A Operação Medusa sustentou mais de noventa por cento dos feridos. Mas há um certo embaraço — dentre os que não voltaram grande número nunca teve mesmo a intenção de voltar. — Dessa facção de ladrões e fugitivos? — Sim. Alguns roubaram considerável soma de dinheiro da Medusa. E achamos que Caim é um deles. — Por quê? — Pelo seu modus operandi. Ele tem usado códigos, feito armadilhas, usado métodos para matar e de transporte desenvolvidos e especializados no treinamento da Medusa. — Então, pelo amor de Deus — interrompeu Walters —, vocês têm pistas para identificá-lo! Não me importo onde eles estejam escondidos — e estou bem certo de que vocês não querem torná-los públicos — mas tenho certeza de que alguns registros foram guardados.
— Sim, foram, e extraímos todas as informações desses arquivos clandestinos, inclusive para este material aqui. — O oficial bateu no arquivo à sua frente. — Estudamos tudo, colocamos listas nominais debaixo de microscópios, alimentamos os computadores com fatos — tudo o que podíamos fazer. E ficamos na mesma. — É inacreditável — disse o congressista. — Ou de uma incrível incompetência. — Na realidade, não — protestou Manning. — Olhe para o homem, para o material que tivemos para trabalhar. Depois da guerra, Caim fez reputação através de quase toda a Ásia Oriental, de Tóquio até as Filipinas, mais a Malásia e Cingapura, infiltrando-se em Hong-Kong. no Camboja, no Laos e em Calcutá. Há cerca de dois anos e meio alguns relatórios começaram a aparecer nas nossas estações da Ásia e nas embaixadas. Havia um assassino profissional de aluguel: seu nome era Caim. Altamente profissional e impiedoso. Estes relatos começaram a crescer com uma freqüência alarmante. Parecia que Caim estava envolvido em cada morte importante. As fontes telefonavam para as embaixadas no meio da noite, ou paravam os adidos nas ruas, sempre com as mesmas informações. Era Caim; tinha sido Caim; Caim era um deles. Um assassinato em Tóquio; um carro que explodira em Hong-Kong; uma caravana de narcóticos atacada de emboscada no Triângulo; um banqueiro morto a tiros em Calcutá; um embaixador assassinado em Moulmein; um técnico russo ou um homem de negócios americano morto nas próprias ruas de Xangai. Caim estava em todos o lugares, seu nome era sussurrado por uma dúzia de informantes de confiança em cada setor vital do serviço de inteligência. Muito embora ninguém — nem uma pessoa sequer em toda a área do Pacífico — aparecesse com uma identificação qualquer. Por onde poderíamos começar? — Mas nessa época ainda não fora feita a sua ligação com a Medusa? — perguntou o homem do Tennessee. — Sim. Seguramente. — Então deve haver algum material junto ao dossiê individuo, ora! O coronel abriu a pasta que tirara do arquivo de Caim. — Estas são as listas de baixa. Entre os brancos ocidentais que desapareceram da Operação Medusa — e quando digo desapareceram quero dizer que sumiram sem deixar traço algum — existem esses. Setenta e três americanos, quarenta e seis franceses, trinta e nove australianos, e quarenta e quatro britânicos, e uma quantidade estimada em cinqüenta brancos do sexo masculino que serviam de contato e que foram recrutados entre os neutros em Hanói e treinados no campo — a maioria deles nós nem chega- mos a conhecer. São mais de duzentas e trinta possibilidades. Quantos são aliados? Quantos estão vivos? Quantos mortos? Mesmo se soubéssemos o nome de todos os homens que realmente viveram, qual seria o dele? De onde é ele? Nem temos certeza da sua nacionalidade. Achamos que ele é americano, mas não há provas suficientes. — Caim é um dos nomes que fazem parte da nossa constante pressão sobre Hanói para descobrir os MIAs — explicou Knowlton. — Continuamos a reciclar as listas das divisões. — E há uma coisa estranha aqui, também — acrescentou o oficial do Exército. — As forças de contra-inteligência de Hanói descobriram e executaram vintenas de homens da Medusa. Eles sabiam da nossa operação, e nós nunca excluímos a possibilidade dessa infiltração. Hanói sabia que o pessoal da
Medusa não pertencia às tropas combatentes, eles nem usavam uniformes. E nenhuma explicação foi exigida. Walters levantou a mão. — Posso? — disse, fazendo um gesto de cabeça em direção às páginas grampeadas. — Certamente. — O oficial entregou-as ao congressista. Você entende, é claro, que esses nomes ainda permanecem em segredo, de resto como a própria Operação Medusa. — De quem é esta decisão? — É uma ordem do Executivo, ainda não quebrada por nenhum dos presidentes, baseada na recomendação da Junta dos Chefes de Pessoal. Foi aprovada pelo Comitê do Senado para Serviços do Exército. — Isso é uma verdadeira bomba, não é? — Foi feita baseada no interesse nacional — disse o homem da CIA. — Neste caso; não vou discutir — concordou Walters. — O espectro de tal operação não faria muito pela glória do nosso Exército, da Velha Glória. Não treinamos assassinos, e muito menos os colocamos no campo de batalha. — Folheou as páginas. — E entre estas folhas aqui está um assassino que nós treinamos e colocamos em campo e que agora não conseguimos encontrar. — Acreditamos que sim — disse o coronel. — Você disse que ele fez reputação na Ásia, mas mudou-se depois para a Europa. Quando? — Cerca de um ano atrás. — Por quê? Tem alguma idéia? — A óbvia, creio — disse Peter Knowlton. — Passou para o outro lado. Alguma coisa saiu errada e ele se sentiu ameaçado. Era um matador branco entre orientais, isso pelo menos é um conceito perigoso; já era tempo de se mudar. Deus sabia que a sua reputação estava feita; não haveria falta de emprego na Europa. David Abbott pigarreou, limpando a garganta. — Gostaria de oferecer uma outra possibilidade, baseada em algo que Alfred disse há poucos minutos. — O Monge fez uma pausa e depois apontou com a cabeça em direção a Gillette. — Ele disse que fomos forçados a nos concentrar em um “tubarão sem dentes e de praia, enquanto o cabeça-de-martelo cruzava os mares livremente”. Creio que foi essa a frase, embora a seqüência das palavras possa estar errada. — Sim — disse o homem do Conselho de Segurança. — Referia-me a Carlos, é claro. Não devíamos procurar Caim, mas sim Carlos. — É claro. Carlos. O mais esquivo matador da história moderna, um homem que a maioria de
nós acredita ser o responsável — de uma forma ou de outra — pelos mais trágicos assassinatos do nosso tempo. Você está bastante certo, Alfred, e, de certa forma, eu estava errado. Não podemos nos esquecer de Carlos. — Obrigado — disse Gillette. — Estou contente de ter feito o comentário certo. — Você fez. Na minha opinião, pelo menos. Mas também me fez pensar. Pode imaginar a tentação de um homem como Caim, operando nos sombrios confins de uma área de numerosos inativos e fugitivos, em meio a sistemas de governo atolados na corrupção? Como ele deve ter invejado Carlos! Como deve ter tido ciúmes do mundo mais veloz, brilhante e luxuoso da Europa! Quantas vezes não deve ter dito para si mesmo: “Sou melhor do que Carlos.” Não importa que esses camaradas sejam frios, eles têm um ego imenso. Acho que ele foi para a Europa ao encontro desse mundo melhor... E para destronar Carlos. O pretendente, senhor, sempre quer o título. Quer ser o campeão. Gillette olhou com espanto para o Monge. — É uma teoria bastante interessante! — E se eu segui-la — interpelou o congressista da Superintendência — e rastrear Caim, vou dar com Carlos. — Exatamente. — Não estou muito certo de seguir esse raciocínio — disse o diretor da CIA, perturbado. — Por quê? —. Dois garanhões em um mesmo padoque — respondeu Walters. — Eles se atrapalham. — Um campeão não entrega o titulo assim, com facilidade. — Abbott procurou o cachimbo. — Luta até o fim para retê-lo. Como diz o congressista, continuamos a rastrear Caim, mas também devemos procurar outros rastros na floresta. E quanto a nós, se encontrarmos Caim, talvez devêssemos esperar um pouco. Esperar que Carlos fosse atrás dele. — Daí, então, pegar os dois — acrescentou o militar. — Muito esclarecedor — disse Gillette. A reunião acabara, seus membros se preparavam para sair. David Abbott estava perto do coronel do Pentágono, que recolhia as páginas da pasta da Medusa; pegara as folhas de baixas e se preparava para colocá-las na pasta. — Posso dar uma olhada? — perguntou Abbott. — Não temos cópia lá no Grupo dos Quarenta. — Foram estas as nossas instruções — respondeu o oficial, passando as páginas grampeadas para o homem mais velho. — E acho que vieram de você. Apenas três cópias. Aqui, na Agência e no Conselho. — Realmente vieram de mim. — O Monge silencioso sorriu benignamente. — Há civis demais do meu lado.
O coronel virou-se para responder a uma pergunta feita pelo congressista do Tennessee. David Abbott não ouviu. Enquanto isso, seus olhos percorreram rapidamente as colunas de nomes. Estava alarmado. Um dos nomes fora riscado; fora considerado, então. E isso era o que eles não podiam se permitir. Nunca. Onde estava? Era o único homem naquela sala que sabia o nome; podia sentir o coração bater no peito ao chegar à última página. Lá estava o nome. Bourne, Jason C. — Último paradeiro conhecido: Tam Quan. — O que teria acontecido? — pensou ele. * René Bergeron bateu o telefone que estava em cima da sua mesa; a voz estava apenas um pouco mais controlada do que o gesto. — Tentamos todos os cafés, todos os restaurantes e bistrôs que ela costuma freqüentar! — Não há registro dele em nenhum hotel de Paris — disse o grisalho operador da mesa de telefones, sentado próximo a um segundo aparelho, perto de uma mesa de desenho. — Já se passaram mais de duas horas, até agora; ela já pode estar morta. Se não estiver, deve estar desejando ter sido morta. — Ela quase não tem nada para lhe dizer — refletiu Bergeron. — Menos do que nós; ela nada sabe a respeito dos velhos. — Ela sabe o bastante; é chamada Parc Monceau. — Ela entregou mensagens, mas nem sabe para quem. — Sabe por quê. — Caim também, posso assegurar-lhe. E ele cometeria um erro grotesco com Parc Monceau. — O desenhista inclinou-se para a frente, seus braços musculosos estavam em tensão, enquanto segurava uma mão na outra, olhando fixamente para o homem grisalho. — Conte-me de novo; tudo o que se lembra. Por que está tão convicto de que ele é Bourne? — Eu não disse isto. Disse que ele é Caim. Se você observar acuradamente os seus métodos, este é o homem. — Bourne é Caim. Nós descobrimos isso através dos registros da Medusa. É por isso que você foi empregado e está aqui. — Então ele é Bourne. Mas não é o nome que usou. É claro, havia um grande número de homens na Medusa que não permitiriam que os seus verdadeiros nomes fossem usados. Para esses, falsas identidades foram garantidas. Tinham registro como criminosos. Ele podia ser um deles.
— Por que ele? Outros também desapareceram. Você desapareceu. — Eu poderia dizer simplesmente por que ele estava aqui em Saint-Honoré. Isso seria suficiente. Mas há mais, muito mais. Observei-o atuando. Fui designado para uma missão que ele comandava; não foi uma experiência que possa ser esquecida, nem ele pode ser esquecido facilmente. Esse homem podia ser — seria — o seu Caim. — Conte-me. — Descemos de pára-quedas à noite, sobre um setor chamado Tam Ouan. Nosso objetivo era resgatar um americano chamado Webb; preso pelos vietcongues. Não sabíamos, mas as possibilidades de sobrevivência eram mínimas Até mesmo o vôo de Saigon foi horrível; ventos fortíssimos a mil pés, o avião vibrando como se fosse partir em dois. Ainda assim, ele nos mandou saltar. — E você saltou? — Ele tinha um revólver apontado para as nossas cabeças. Apontava o revólver para cada um que se aproximava da portinhola do corredor. Poderíamos sobreviver aos elementos naturais não a uma bala no crânio. — Quantos vocês eram? — Dez. — Podiam tê-lo desarmado. — Você não o conhece! — Continue — disse Bergeron, concentrado, imóvel à mesa. — Oito de nós conseguimos nos reagrupar no chão. Os dois restantes presumimos que não tivessem sobrevivido ao salto. Foi uma surpresa eu ter sobrevivido. Eu era o mais velho e não era nada forte, mas conhecia bem a região. Foi por isso que fui enviado. — O homem grisalho fez uma pausa, balançando a cabeça ao reviver as suas lembranças. — Menos de uma hora depois percebemos que aquilo fora uma armadilha. Corríamos como lagartos pela floresta. E durante a noite ele saía sozinho cruzando as explosões de morteiros e granadas. Para matar. Sempre voltava antes do amanhecer para nos forçar a ir cada vez mais em direção ao campo. Naquela.época pensei que era puro suicídio. — E por que vocês iam? Ele teria que lhes dar uma razão. Vocês eram da Medusa, não eram soldados subalternos. — Ele disse que era a única forma de sairmos de lá com vida. E havia uma certa lógica nisso. Estávamos por trás das linhas; precisávamos de todos os suprimentos que pudéssemos encontrar nos acampamentos — isso se conseguíssemos. Ele disse que nós tínhamos que obter esses suprimentos, que não tínhamos outra escolha. Se qualquer um de nós discutisse, ele lhe daria um tiro na cabeça; e sabíamos que faria isso. Na terceira noite tomamos o acampamento e encontramos o homem chamado Webb mais morto que vivo, mas ainda respirando. E também encontramos os dois do nosso grupo.
Ambos vivos e assombrados com o que acontecera. Um homem branco e um vietnamita tinham sido pagos pelos vietcongues para nos armar uma cilada, acho. — Caim? — Sim. Os vietnamitas nos viram antes e fugiram. Caim atirou no homem branco, na cabeça. Acho que ele simplesmente se aproximou dele e atirou diretamente em sua cabeça. — Ele os trouxe de volta? Cruzando as linhas? — Quatro homens, sim, e o que se chamava Webb. Cinco foram mortos. — Foi durante aquela terrível viagem de volta que pensei entender por que os boatos deviam ser verídicos — que ele era o recruta mais bem pago da Medusa. — Em que sentido? — Era o homem mais frio que jamais conheci, o mais perigoso e o mais imprevisível. Naquela época pensei que aquela devia ser uma estranha guerra para ele; ele era um Savonarola, mas sem o princípio religioso, apenas com a sua estranha moralidade, centrada em si mesmo. Todos os homens eram seus inimigas — sobretudo os líderes —, e não dava a menor importância para qualquer ideologia. — O homem de meia-idade fez outra pausa, fixou os olhos na prancheta de desenho, a mente devia estar a milhares de milhas de distância, longe no espaço e no tempo. — Lembre-se, a Medusa estava cheia de homens de tipos diferentes e desesperados. Muitos eram paranóicos no ódio aos comunistas. Era matar um comunista e Cristo parecia sorrir — estranhos exemplos da catequese cristã. Outros, como eu, tiveram as suas fortunas roubadas pelos vietminh e a única maneira de reavê-las seria os americanos vencerem a guerra. A França nos abandonara em Dienbienphu. Mas havia muitos que viam a possibilidade de fazer fortuna na própria Medusa. As sacolas de dinheiro para pagamento sempre continham de cinqüenta., a setenta e cinco mil dólares americanos. Um mensageiro especial que desviasse a metade de dez ou quinze corridas de entrega daquelas sacolas podia se aposentar em Cingapura ou Kuala Lumpur ou até mesmo formar a sua própria rede de tráfico de narcóticos no Triângulo. Além de o preço de venda ser exorbitante — quase sempre obtinha-se o perdão pelos crimes cometidos no passado —, as oportunidades eram ilimitadas. Foi nesse último grupo que classifiquei esse homem estranho. Era um pirata da época moderna no mais puro sentido. Bergeron soltou as mãos. — Espere um pouco. Você usou a frase “uma missão que ele comandou”. Havia homens do Exército na Medusa, você tem certeza de que ele não era um oficial americano? — Americano com toda a certeza, mas não do Exército. — Por quê? — Odiava todos os aspectos do militarismo. Seu desprezo pelo Comando de Saigon transparecia em cada decisão que ele tomava; considerava os militares tolos e incompetentes. De um ponto qualquer as ordens nos eram transmitidas pelo rádio e recebidas em Tam Quan Uma vez ele interrompeu as transmissões e mandou que um general do regimento se fodesse, porque ele não iria obedecer. Um oficial do Exército não faria isso.
— A menos que estivesse para abandonar a sua profissão — disse o desenhista. — Como Paris abandonou você, e você fez o melhor que pôde, roubando da Medusa, traçando as suas próprias atividades patrióticas — sempre que pôde. — Meu país me traiu antes que eu o traísse, René. — Voltando a Caim. Você disse que Bourne não era o nome que ele usava. Qual era? — Não me lembro. Como eu disse, para muitos os sobre- nomes não eram relevantes. Pan mim era simplesmente “DeIta”. — Do Mekong? — Não, do alfabeto, creio. — Alfa, Bravo, Charlie... Delta — disse Bergeron pensativamente, em inglês. — Mas em muitas operações a palavra código “Charlie” foi substituída por “Caim”, porque “Charlie” tornou-se sinônimo de vietcongue. “Charlie” foi transformado para “Caim”. — É isso mesmo. E, assim, Bourne assumiu “Caim”. Ele podia ter escolhido “Echo” ou “Foxtrot” ou “Zulu”. Uma porção de outros. Qual é a diferença? O que você acha? — Ele escolheu Caim deliberadamente. Era simbólico. Ele queria deixar isso claro desde o início. — Deixar claro o quê? — Que Caim tomaria o lugar de Carlos. Pense. “Carlos” é um nome espanhol que equivale a Charles — Charlie. A pala- na código “Caim” foi a substituição escolhida para “Charlie” — Carlos. Era sua intenção desde o início. Caim tomaria o lugar de Carlos. E ele queria que Carlos soubesse disso. — E Carlos sabe? — É claro. A notícia foi espalhada por toda Amsterdã e Berlim, Genebra e Lisboa, Londres e aqui mesmo, em Paris. Caim é mais barato; os contratos podem sem feitos com maior facilidade, seus preços são menores do que as taxas cobradas por Carlos. Ele desgasta a imagem de Carlos! A cada dia que passa, ele desgasta mais e mais a sua fama! — Dois matadores na mesma arena. Só poderá existir um. — E este será Carlos. Pegamos o pardal numa armadilha. Ele está em algum lugar perto daqui a duas horas de Saint-Honoré. — Mas onde? — Não importa. Nós o encontraremos. Afinal de contas, ele nos encontrou. Ele voltará, seu ego exigirá isso. E então o gavião passará com suas garras e apanhará o pardal. Carlos o matará.
O velho ajustou a muleta debaixo do braço esquerdo, abriu o cortinado preto e deu um passo em direção ao confessionário. Não estava se sentindo bem; a lividez da morte estampava-se-lhe no rosto, e ele estava muito contente que o vulto vestido de padre, do outro lado da cortina transparente, não pudesse vê-lo muito bem. O matador não lhe daria mais nenhum trabalho se ele parecesse muito cansado. E ele precisava de trabalho, agora. Faltavam apenas algumas semanas e ele tinha muitos encargos. Falou. — Angelus Domini. — Angelus Domini, filho de Deus — lá de dentro veio o sussurro. — Os teus dias estão em paz? — Encaminham-se para o fim, mas estão em paz. — Sim. Acho que este será o seu último trabalho para mim. No entanto, é um trabalho tão importante que você receberá cinco vezes mais do que o pagamento costumeiro. Espero que isso possa ajudá-lo. — Obrigado, Carlos. Você sabe, então. — Sei. Isso é o que deverá fazer, então. Essa informação deve deixar este mundo juntamente com você. Não pode haver nenhum erro. — Sempre fui cuidadoso. Irei para a morte sendo cuidadoso também. — Morra em paz, velho amigo. Assim é mais fácil... Você irá à embaixada vietnamita perguntar por um adido chamado Phan Loc. Quando estiver sozinho com ele diga-lhe as seguintes palavras: “Em março de 1968, Medusa, setor Tam Quan. Caim estava lá. E o outro também.” Guardou? — Em março de 1968, Medusa, setor Tam Quan. Caim estava lá. E o outro também. — Ele vai lhe dizer quando voltar. Será uma espera de algumas horas apenas.
Capítulo17 — Acho que já é tempo de falarmos sobre uma fiche confidentielle chegada de Zurique. — Meu Deus! — Não sou o homem a quem você procura. Bourne segurou a mão da mulher, para evitar que ela saísse correndo pelos corredores cheios do elegante restaurante de Argenteuil, nos arredores de Paris. A pavana terminara, a gavota também. Estavam sozinhos; o abrigo de veludo transformara-se em jaula de ferro. — Quem é você? — perguntou Lavier numa careta, tentando desprender sua mão da dele; as veias do pescoço ficaram mais pronunciadas. — Um americano rico que vive nas Baamas. Você não acredita nisso? — Eu devia ter adivinhado — disse ela — quando você rejeitou o troco e não pagou em cheque, mas com dinheiro vivo. Você nem sequer olhou para a nota. — Nem para os preços. E foi isso que fez você se aproximar de mim. — Fui uma tola. Os ricos sempre olham para os preços, mesmo que seja apenas pelo prazer de desprezá-los. — Lavier falava enquanto olhava em volta, procurando um espaço entre os corredores, um garçom a quem pudesse chamar. Fugir. — Não tente — disse Jason, olhando-a bem nos olhos. — Será tolice. Melhor conversarmos. Melhor para nós dois. A mulher olhou-o espantada, acentuando o confronto do silêncio hostil, na sala ampla e repleta de murmúrios, com a luz mortiça das velas e as intermitentes explosões de risos que vinham das mesas vizinhas. — Vou lhe perguntar de novo — disse ela. — Quem é você? — Meu nome não é importante. Basta o que lhe dei. — Briggs? É falso. — Como também é falso Larousse. E esse nome consta da lista de aluguel de um carro que foi buscar três matadores no Banco Valois. Eles falharam lá. E também falharam esta tarde na Pont Neuf. Ele fugiu. — Oh, Deus! — gritou ela, tentando livrar-se dele. — Eu disse não! — Bourne segurou-a com firmeza, puxando-a de volta.
— E se eu gritar, monsieur? — A máscara bem-empoada quebrou-se em várias linhas de virulência, o batom vermelho- brilhante mostrava um roedor velho e atocaiado rosnando. — Gritarei mais alto — respondeu Jason. — Nós dois seremos expulsos daqui, e quando estivermos lá fora acho que você não vai poder se defender. Por que não conversamos? Podemos aprender alguma coisa um com o outro. Afinal de contas, não somos empregadores, somos empregados. — Nada tenho a lhe dizer. — Então começo. E talvez você mude de idéia. — Afrouxou um pouco o pulso dela, cautelosamente. A tensão permaneceu ao rosto branco e empoado, mas foi afrouxando na medida em ele a soltava. Estava pronta para ouvir. — Você pagou alguém em Zurique. Estamos à procura do mesmo homem e sabemos por que nós o queremos. Soltou-a. — Por que estão à sua procura? Ela ficou em silêncio por um momento, estudando-o, os olhos ainda amedrontados, mas cheios de fúria. Bourne sentiu que fizera a pergunta de modo acertado, porque se Jacqueline não lhe dissesse, nada, tudo não passaria de um grande engano. Poderia lhe custar a vida se fizesse mais algumas perguntas. — Quem é ”nós” — perguntou ela. — Uma companhia que quer o seu dinheiro de volta. Uma grande quantia que está com ele. — Ele não o ganhou, então? Jason sabia que precisava ter muita cautela. Ela pensava que ele sabia muito mais do que, na realidade, sabia. — Digamos que há uma disputa. — Mas como poderia? Ou ele ganhou ou não ganhou esse dinheiro, não pode haver meio termo. — É a minha vez, agora — disse Bourne. — Você respondeu a uma pergunta com outra pergunta, e eu permiti. Agora vamos voltar. Por que você o quer? Por que o telefone particular de uma das melhores lojas de Saint-Honoré foi posto em uma fiche em Zurique? — Foi um ajuste, monsieur. — Para quem? — Você está louco? — Está bem, vamos deixar isso de lado, por enquanto. Achamos que já sabemos isso. — Impossível! — Talvez não. Então, foi um acordo... para matar um homem? — Nada tenho a dizer.
— No entanto, há um minuto, quando mencionei o carro, você tentou fugir. Isso significa alguma coisa. — Uma reação perfeitamente natural. — Jacqueline Lavier tocou a haste da sua taça de vinho. — Fui eu quem alugou o carro. E não me importo em lhe contar isso porque não há nenhuma prova de que tenha sido eu, realmente. Além do aluguel, nada mais sei sobre o que aconteceu. — De repente ela segurou com força o cálice, a máscara do rosto se tornou um misto de fúria controlada e medo. — Quem são os seus? — Já lhe disse. Uma companhia que quer de volta o seu dinheiro. — Mas você está interferindo! Saia de Paris! Esqueça-se disso tudo! — Por que deveria? Somos a parte lesada; queremos a folha de balanço corrigida e revista. Estamos autorizados a fazer isso. — Autorizados coisa nenhuma! — disse com veemência Mme. Lavier. — O erro foi de vocês e vão pagar por ele! — Erro? — Ele agora devia ser muito cuidadoso. Estava chegando ao que queria — estava aqui, quase aflorando, os olhos da verdade quase aparecendo por baixo da camada de gelo. Saia dessa! O roubo não foi um erro cometido pela vítima. O erro estava na sua escolha, monsieur. Escolheram o homem errado. — Ele roubou milhões em Zurique — disse Jason. — E você sabe disso. Desviou milhões, e se vocês pensam que vão tirar dele esse dinheiro — que é o mesmo que tentar tirá-lo de nós —, estão muito enganados. — Não queremos dinheiro algum! — Fico contente em saber disso. Quem é “nós”? — Pensei que você disse que sabia. — Eu disse que tinha uma idéia. O suficiente para entregar o nome de alguns homens: Koenig, em Zurique, e d’Amacourt aqui em Paris. Se decidirmos fazer isso, poderá ser um grande embaraço para vocês, não é? — Dinheiro? Embaraço?! Isto não é problema. Você está devorado pela estupidez, todos vocês! Vou repetir, saiam de Paris! Esqueçam-se disso. Não é mais da conta de vocês. — Não achamos que é da sua. Francamente, não achamos vocês muito competentes. — Competentes? — repetiu Lavier, como se não acreditasse no que ouvia. — Isso mesmo.
— Você tem idéia do que está dizendo? De quem está falando? — Não importa. A não ser que vocês recuem e desistam, a minha recomendação é que esclareçam tudo logo, e publicamente. Cobranças ridículas — que nem são procuradas por nós, é claro. Expor Zurique, os Valois, chamar a Súreté, a Interpol... tudo e todos para criar uma grande caçada humana — uma caçada maciça. — Você é louco! E tolo. — Não de todo. Temos amigos influentes; teremos a informação antes de vocês. Estaremos no lugar certo à hora certa. Nós o pegaremos. — Vocês não vão pegá-lo. Ele desaparecerá novamente! Não podem perceber isso? Ele está em Paris e uma rede de pessoas que ele nem conhece está a sua procura. Ele pode ter escapado uma vez, duas, mas não vai escapar a terceira! Agora caiu na armadilha. Nós o pegamos. — Não queremos que vocês o peguem. Não é do nosso interesse. — Estava quase chegando o momento, pensou Bourne. Quase. Mas não ainda; antes o medo dela teria que se misturar com a raiva. Ela teria que ser levada a revelar a verdade. — Este é o nosso ultimato, e vocês serão os responsáveis se não o aceitarem — porque, do contrário, vão se juntar a Koenig e d’Amacourt. Chamem de volta os seus rastreadores hoje à noite. Se não fizerem isso, vamos nos mexer primeiro, já de manhã cedo; vamos começar a gritar. Les Classiques será a loja mais popular em Saint-Honoré, mas não entre as pessoas certas, creio. A máscara empoada partiu-se. — Vocês não ousariam! Como se atrevem? Quem são vocês para dizer uma coisa dessas!? Ele fez uma pausa, depois disse abruptamente. — Um grupo de pessoas que não se importa muito com o seu Carlos. Lavier gelou, arregalou os olhos, esticando a pele rígida numa cicatriz tensa. — Você sabe — sussurrou. — E acha que podem se opor a ele? Acham que são páreo para Carlos? — Em certo sentido sim. — Estão loucos. Não se dá um ultimato a Carlos. — Acabei de dar um. — Então, você está morto. Se levantar a voz para qualquer um, estará morto hoje mesmo. Ele tem homens em todos os lugares; eles o pegarão na rua. — Talvez o fizessem se soubessem a quem pegar — respondeu Jason. — Você se esqueceu. Ninguém sabe quem ele é. Mas sabemos quem vocês são. E Koenig e d’Amacourt também. No instante em que nós os entregarmos, vocês estarão mortos. Carlos não poderia mais ficar com você. Mas ninguém me conhece.
— Está se esquecendo, senhor. Eu o conheço. — É a menor das minhas preocupações. Tente me encontrar depois que todo o dano estiver feito e antes que a decisão quanto ao seu futuro seja tomada. Não levará muito tempo. — Isso é uma loucura! Você aparece de repente e fala como um louco. Não pode fazer isso! — Está sugerindo que façamos um trato? — é concebível — disse Jacqueline Lavier. — Tudo é possível. — Você está em posição de poder negociar? — Estou em posição de poder levar adiante isso... de forma bem melhor do que um ultimato. Os outros, vão pensar que a decisão vem de quem realmente decide. — O que está dizendo agora é o que eu já disse há uns minutos: podemos conversar. — Podemos conversar, monsieur — concordou Mme. Lavier, os olhos lutando pela vida. — Então vamos começar com o óbvio. — O que é? Agora. A verdade. — O que significa Bourne para Carlos? Por que ele o quer? — O que significa Bourne... — A mulher parou, o veneno e o medo tomaram lugar em seu rosto, transformando a máscara interior em uma expressão de choque. — Você ainda pergunta isso? — Vou perguntar de novo — disse Jason, ouvindo as batidas do seu coração ficarem mais altas. — O que significa Bourne para Carlos? —. Ele é Caim! Vocês sabem disso tão bem quanto nós! Ele foi o erro de vocês, a escolha de vocês! Vocês escolheram o homem errado! Caim. Ouviu o nome e os ecos irromperam numa trovoada ensurdecedora. E em cada ruído vinha a dor junto, raios queimando um após o outro pela sua cabeça, mente e corpo, retesando sob o ataque do nome. Caim. Caim. As névoas voltaram. A escuridão, o vento, as explosões. Alfa, Bravo, Caim, Delta, Echo, Foxtrot... Caim, Delta. Delta, Caim, Delta... Caim. Caim é para Charlie. Deita é para Caim!
— O que há? O que há com você? — Nada. — Bourne pusera a mão direita sobre o pulso esquerdo, segurando-o com firmeza, com tanta firmeza que pensou que a pressão romperia a pele. Tinha que fazer alguma coisa; tinha que parar com aquela tremedeira, diminuir o zumbido nos ouvidos, rechaçar a dor. Tinha que desanuviar a mente. Os olhos da verdade estavam postos nele, espantados; ele não podia desviar aquele olhar. Chegara, estava lá, estava em casa, e o frio o fazia tremer. — Continue — disse, impondo-se um controle de voz que resultou num sussurro. Ele nada podia fazer. — Você está se sentindo mal? Está muito pálido e... — Estou bem — ele a interrompeu logo. — Eu disse, continue. — O que há para lhe contar? — Diga tudo. Quero ouvir tudo de você. — Por quê? Não há nada que você não saiba. Vocês escolheram Caim e dispensaram Carlos. E agora pensam que podem dispensá-lo novamente. Erraram, e vão errar novamente. Vou matá-la. Vou agarrá-la pelo pescoço e bloquear-lhe a respiração. Conte-me! Pelo amor de Cristo, conte-me! Até o fim, é onde está o meu começo! Tenho que saber de tudo. — Isso não importa — disse ele. — Se quer fazer um acordo — mesmo que seja só para salvar a sua vida — diga-me por que devemos ouvi-los. Por que Carlos é tão obstinado... tão paranóico... a respeito de Bourne? Explique-me isso como eu nunca tivesse ouvido antes. Se não me contar, esses nomes que não devem ser mencionados serão espalhados por toda Paris, e vocês estarão todos mortos até amanhã à tarde. Lavier estava rígida, a máscara de alabastro imóvel. — Carlos vai seguir Caim até os confins da terra, para matá-lo. — Já sabemos disso. Queremos saber por quê. — Ele tem que fazer isso. Olhe para você. Para pessoas como você. — Isso não faz sentido. Você não sabe quem somos. — Nem preciso. Sei o que fizeram. — Fale! — Já falei. Vocês pegaram Caim em vez de Carlos — esse foi o erro de vocês. Escolheram o homem errado. Pegaram o assassino errado. — O assassino... errado? — Vocês não foram os primeiros, mas serão os últimos. O arrogante fingidor estará morto logo,
logo, aqui em Paris, façamos ou não um acordo. — Pegamos o assassino errado... — As palavras flutuaram no elegante e perfumado ar do restaurante. A trovoada ensurdecedora fora abafada, mas ainda estava forte, ecoando longe, entre as nuvens escuras da tempestade. As névoas estavam sendo varridas, o vapor circulava em torno dele. Começou a enxergar, a perceber. E o que via era o perfil de um monstro. Não de um mito, mas de um monstro. E mais outro monstro. Havia dois. — Duvida? — perguntou a mulher. — Não interfira com Carlos. Deixe-o pegar Caim; deixe-o vingar-se. — Fez uma pausa. Em seguida, tirou as duas mãos de cima da mesa, devagar. Ratazana! — Nada prometo, mas vou contar para você, por causa da perda que o seu pessoal teve. É possível — apenas possível, você me entende — que o seu trato possa ser honrado por aquele que vocês deviam ter escolhido antes, em primeiro lugar. — O que nós devíamos ter escolhido... Porque escolhemos o homem errado. — Percebe, não é, monsieur? Carlos deve saber que você percebe isso. Talvez — apenas talvez — possa ter simpatia pelas suas perdas, se ficar convencido de que vocês perceberam o erro. — É esse o seu trato? — disse Bourne secamente, tentando encontrar uma linha de pensamento. — Qualquer coisa é possível. Nada de bom pode vir das suas ameaças, posso lhe assegurar. Para todos nós, e sou bastante franca para me incluir também. Haverá apenas sentenças de morte, e Caim continuará a rir. Vocês não perderiam apenas uma vez, mas duas. — Se isso é verdade — Jason engoliu, quase sufocando-se com o ar seco que entrou pelo vazio de sua garganta —, então terei que explicar ao meu pessoal por que nós... escolhemos... o homem errado, — Pare! Chega! Acabe logo essa declaração. Controle-se. — Diga-me tudo o que você sabe sobre Caim. — Para quê? Que importância tem isso? — Lavier pôs os dedos em cima da mesa, unhas brilhantes e vermelhas, dez lâminas de uma arma afiada. — Se escolhemos o homem errado, é porque tínhamos a informação errada. — Vocês ouviram dizer que ele era igual a Carlos, não é? Que os seus honorários eram mais razoáveis, o seu aparato um pouco mais contido, e por menos intermediários estarem envolvidos, não havia possibilidade de um contrato ser investigado. Não foi isso? — Talvez. — É claro que sim. É o que foi dito a todos, e é tudo mentira. A força de Carlos está em suas fontes de informação, que são em maior número — informação infalível. Com o seu sistema bemelaborado de atingir as pessoas certas no momento mais preciso, ele comete menos mortes. — Parece com os outros. Havia muitos em Zurique, e muitos aqui em Paris, também.
— Todos falsos, monsieur. Todos. — Falsos? — Para ser bem clara, faço parte da operação há alguns anos, e já me encontrei, de uma forma ou de outra, com dúzias que faziam o seu papel — nenhum é importante. Mas nunca me encontrei com uma única pessoa que tivesse falado diretamente com Carlos, e muito menos que tenha qualquer idéia de como ele é. — Este é Carlos. Quero saber a respeito de Caim. O que você sabe a respeito de Caim. — Controle-se. Você não pode se virar. Olhe para ela! Olhe para ela! — Por onde devo começar? — Com o que lhe vier primeiro à mente. De onde ele veio? — Não desvie o olhar! — Sudeste da Ásia, é claro. — É claro... — Oh, Deus! — Veio da Medusa americana, sabemos.. Medusa! Os ventos, a escuridão, os holofotes, a dor... A dor rasgou o seu crânio agora; ele não estava onde estava, mas onde estivera. Um mundo distante no tempo e no espaço. A dor. Oh, Jesus, a dor.. Tao! Che-sah! Tam Quan! Alfa, Bravo, Caim... Delta Delta... Caim! Caim é para Charlie. Delta é para Caim. — O que há? — A mulher olhou-o assustada; estava estudando o seu rosto, os olhos à procura dos seus. — Você está transpirando. Suas mãos estão trêmulas. Está passando mal? — Já passa. — Jason livrou a mão que segurava o pulso pegou um guardanapo para enxugar a testa. — Isso aparece com a pressão, não?
— Com a pressão, sim. Continue. Não há muito tempo, tenho que me encontrar com pessoas, tomar algumas decisões. A sua vida, provavelmente, está no meio disso tudo. Vamos, de volta a Caim. Você disse que ele veio da... Medusa americana. — Les mercenaires du diable — disse ela. — Era o apelido dado ao pessoal da Medusa pelos colonialistas da Indochina — o que restou deles. É bem apropriado não acha? — O que penso não importa. Nem o que sei. Quero ouvir o que você pensa, o que você sabe a respeito de Caim. — O seu mal-estar o deixa muito grosseiro. — A minha impaciência me deixa muito impaciente. Você disse que escolhemos o homem errado; se fizemos isso foi porque tivemos uma informação errada. Les mercenaires du diable. Está querendo dizer que Caim é francês? — De forma alguma. Você me testa de maneira muito pobre. Apenas disse isso para lhe mostrar o quanto sabemos a respeito da Medusa. — Com “nós” você quer dizer o pessoal que trabalha para Carlos. — Que seja. — Acho que sim. Se Caim não é francês, o que é então? — Americano, sem dúvida alguma. Oh, Deus. — Por quê? — Porque tudo o que ele faz tem o selo da audácia americana. Empurra e arrasta sem nenhuma fineza, roubando créditos que não são dele, propagando mortes que não são suas. Estudou os métodos de Carlos e seus contatos como nenhum outro homem vivo. Sabemos que ele costuma recitá-los como se fossem seus clientes em potencial muito mais comumente do que costuma se colocar no lugar de Carlos e convencer os tolos que é ele, e não Carlos, quem aceita e preenche os contratos. — Lavier fez uma pausa. — Eu o atingi, não? Ele fez o mesmo com você — com o seu pessoal —, não é? — Talvez. — Jason segurou o pulso novamente, enquanto as declarações lhe voltavam à mente. Declarações feitas como resposta às chaves de um jogo perigoso. Stuttgart. Regensburg. Munique. Duas mortes e um seqüestro, créditos de Baader. Dinheiro dos Estados Unidos... Teerã? Oito mortes. Créditos divididos — Khomeini e OLP. Pagamento, dois milhões. Sudeste soviético. Paris?... Todos os contratos serão processados através de Paris. Contratos de quem?
De Sanchez... Carlos. — ... sempre um engenho tão transparente. A mulher falara e ele não a ouvira. — O que disse? — Você estava se lembrando, não é? Ele usou o mesmo estratagema com você — com o seu grupo. É assim que ele arranja trabalho. — Trabalho? — Bourne deixou os músculos do estômago bem retesados até que a dor o trouxesse de volta à mesa da sala cheia de velas do Argenteuil. — Ele aceita trabalhos, então — ele comentou desinteressadamente. — E os leva avante com grande habilidade; ninguém lhe nega isso. O seu número de mortes é impressionante. Em muitas coisas ele é um segundo com relação a Carlos — nunca seu igual, mas está muito acima de les guérilleros. É um homem de muita esperteza, extremamente inventivo, uma arma letal treinada pela Medusa. Mas é a sua arrogância e as suas mentiras à custa de Carlos que o farão cair. — E isso faz dele um americano? Ou é a sua predisposição? Tenho a impressão de que vocês gostam do dinheiro americano, mas é só do que gostam. — Grande habilidade; extremamente inventivo; uma arma letal treinada... Port Noir, La Ciotat, Marselha, Zurique, Paris. — Está fora de cogitação, monsieur. A identificação é positiva. — Como conseguiu? Lavier tocou a haste do seu cálice de vinho, o indicador com a ponta vermelha dava voltas no vidro. — Um homem descontente foi comprado em Washington. — Washington? — Os americanos também estão à procura de Caim — com uma ansiedade parecida com a de Carlos, creio. Medusa nunca foi divulgada publicamente, e Caim parece ter provado aos americanos que é um grande empecilho. Este tal homem descontente estava numa boa posição e pôde nos dar muitas informações, inclusive os registros da Medusa. Foi fácil, só comparar os nomes da lista com os de Zurique. Foi simples para Carlos, não seria para mais ninguém. Muito simples, pensou Jason, sem saber por que este pensamento o tomou de surpresa. — Compreendo — disse ele. — E você? Como o encontrou? Não Caim, é claro, mas Bourne. Através das névoas da ansiedade, Jason lembrou-se de outra declaração. Não dele, mas uma feita por Marie — Facílimo — respondeu. — Pagamos o dinheiro dele com um depósito a curto prazo em conta-corrente, que foi desviado para outra. Os números puderam ser rastreados; é uma tática de verificação do imposto.
— E Caim permitiu isso? — Ele nem soube. Os totais foram pagos... através de uma conta em números — como números de telefone — numa fiche. — Eu o admiro. — Não é preciso, mas tudo o que você sabe sobre Caim é que merece admiração! Tudo o que fez até agora foi apenas explicar uma identidade... Agora, continue. Tudo o que você sabe sobre esse tal de Bourne. — Seja cuidadoso. Cuidado com a tensão da voz. Você está apenas... avaliando dados. Marie, você disse isso. Querida, querida Marie. Graças a Deus você não está aqui. — O que sabemos dele é incompleto, Ele conseguiu roubar a maior parte dos registros mais importantes. Uma lição que, em dúvida alguma, aprendeu com Carlos. Mas não tudo; conseguimos montar um esquema. Antes de ele ser recrutado para a Medusa, muito provavelmente foi um homem de negócios que falava francês e vivia em Cingapura, representando uma coletividade de importadores de Nova Torque e Califórnia. A verdade é que foi demitido pela coletividade, que depois tentou extraditálo pan os Estados Unidos, instaurando um processo de acusação. Roubara centenas de milhares de dólares da coletividade. Em Cingapura era conhecido como uma figura solitária, muito poderoso nas operações de contrabando, e por demais impiedoso. — Antes disso! — interrompeu Jason, sentindo de novo a transpiração surgir-lhe nas têmporas. — Antes de Cingapura. De onde ele veio? — Seja cuidadoso! As imagens! Ele podia ver as ruas de Cingapura. Rua Príncipe Eduardo, Kim Chuan, Rua Boon Tat, Maxwell, Cuscaden. — Essa é a parte dos registros que foi roubada e ninguém mais pôde encontrar. Existem apenas rumores, e são todos infundados Por exemplo, foi dito que ele era um jesuíta apóstata que ficara louco; outra especulação era de que ele foi um jovem banqueiro pego desviando fundos junto com outros banqueiros de Cingapura. Mas não é nada concreto, nada que possa servir como pista. Antes de Cingapura, nada. Você está errada, há muita coisa. Mas não faz parte de tudo isso... Há um espaço vazio que pode ser preenchido, e você pode me ajudar. Talvez ninguém possa, ninguém deva. — Até agora você não me contou nada interessante — disse Bourne. — Nada relativo ao que procuro. — Então não sei o que você quer! Faz-me perguntas, quer detalhes, e quando lhe dou respostas você as rejeita como sem importância. O que quer? — O que você sabe sobre o... trabalho de Caim? Já que quer fazer um trato, dê-me uma razão para isso. Se a nossa informação for diferente, estaria além do que ele fez, não é? Qual foi a primeira vez que ele despertou a sua atenção? A atenção de Carlos? Rápido! — Há dois anos — disse Mme. Lavier, desconcertada com a impaciência de Jason e amedrontada. — Chegou uma informação da Ásia sobre um homem branco que oferecia serviços espantosamente similares aos de Carlos. Ele logo se transformou em uma indústria. Um embaixador foi
assassinado em Moulmein; dois dias mais tarde um político japonês muito conhecido foi morto em Tóquio, antes do debate em Diet. Uma semana depois, o carro do editor de um jornal explodiu em Hong-Kong, e menos de quarenta e oito horas depois um banqueiro foi morto em uma rua de Calcutá. Atrás de cada uma dessas mortes estava Caim. Sempre Caim. — A mulher parou, à espera da reação de Bourne. Não houve nenhuma. — Você não percebe? Ele estava em toda parte. Ele correu de um assassinato para outro, aceitando contratos com tanta rapidez que não há dúvida de que ele tinha que ser descuidado. Era um homem com muita pressa, construindo a sua reputação tão rapidamente que até mesmo chocava o profissional mais calejado. Ninguém duvidava que ele fosse um profissional, menos ainda Carlos. Algumas instruções foram mandadas: descobrir esse homem, procurar saber tudo o que era possível sobre ele. Você vê, Carlos entendeu o que nenhum de nós conseguiu. E em menos de doze meses ele provou estar certo. Chegaram as respostas dos informantes de Manila, Osaka, Hong-Kong e Tóquio. Caim estava se mudando para a Europa, diziam; ia fazer de Paris a sua base de operações. O desafio era claro, a luta começara. Caim vinha para destruir Carlos. Tornar-se-ia o novo Carlos, oferecendo os seus serviços, os serviços que eram exigidos pelos que dele precisavam. Como o senhor o encontrou, Monsieur — Moulmein, Tóquio, Calcutá... — Jason ouviu os nomes saindo da sua garganta. E novamente eles flutuavam, suspensos no ar perfumado, como sombras de um passado esquecido. — Manila, HongKong... — Parou, tentando clarear as névoas, espiando os contornos das formas que se mantinham correndo à frente de sua vista. — Esses lugares e muitos outros — continuou Lavier. —Foi esse o erro de Caim, e ainda é. Carlos pode representar muitas coisas para diversas pessoas, mas entre os que se beneficiaram da sua confiança e generosidade, há lealdade. Seus informantes e mercenários nunca estão dispostos a se vender, embora Caim os tente de vez em quando. Dizem que Carlos é rápido em fazer Julgamentos duros, mas também dizem que é melhor um Satã que se conhece do que um sucessor seu que não se conhece. O que Caim não percebeu — e ainda não percebe — é que toda teia formada por Carlos é muito vasta. Quando Caim se mudou para a Europa, não sabia que as suas atividades já eram conhecidas em Berlim, Lisboa, Amsterdã... e em lugares tão distantes quanto Omã. — Omã — disse Bourne involuntariamente. — O xeque Mustafá Kalig — sussurrou para si mesmo. — Isso nunca ficou provado! — Lavier exclamou desafiadoramente. — Uma cortina de fumaça e confusão muito bem montada, o próprio contrato foi uma ficção. Ele tomou para si o crédito de um assassinato interno; ninguém poderia ter passado por aquela segurança do xeque! Foi uma mentira! — Uma mentira — repetiu Jason. — Tantas mentiras! — acrescentou Mme. Lavier desdenhosamente. — Ele não é nenhum bobo, no entanto. Mente em segredo, deixa passar uma alusão aqui, outra ali, sabendo que elas serão exageradas quando forem passadas adiante e ficarão diferentes da sua própria substância. Provoca Carlos a cada instante, promovendo-se à custa do homem de quem quer tomar o lugar. Mas não é páreo para Carlos; aceita contratos que não pode levar adiante. Vocês são apenas um exemplo; sabemos que existem muitos outros. Dizem que é por isso que durante muitos meses ele andou evitando pessoas como vocês.
— Evitando pessoas... — Jason segurou o pulso outra vez; a tremedeira começara de novo, o som das trovoadas distantes vibrando em diferentes regiões do seu crânio. — Você está... certa disso? — Completamente. Ele não estava morto, estava escondido. Caim assumiu mais de uma tarefa, e isso foi inevitável. Aceitou trabalhos em demasia para um tempo muito curto. No entanto, sempre que faz isso, comete em seguida uma morte desnecessária, um assassinato espetacular, que não foi pedido, apenas para manter a sua glória. Seleciona uma figura proeminente e o chacina. O assassinato é um choque para todos, e, logo em seguida, é creditado, sem dúvida alguma, a ele, O embaixador que estava de viagem a Moulmein foi um exemplo; ninguém o contratara para matá-lo. Houve também mais dois que ficamos sabendo — um Comissário russo em Xangai e, mais recentemente, um banqueiro em Madri... As palavras saíam febrilmente dos lábios vermelhos e brilhantes, que se mexiam continuamente na parte inferior da máscara que o fitava. Ele ficou ouvindo-as; já as ouvira antes, já as vivera antes. Não eram mais nenhuma sombra, simples lembranças daquele passado esquecido. Imagens e realidade se fundiam. Ela não tinha começado nenhuma sentença que ele não pudesse terminar, nem sequer mencionou um nome, uma cidade ou um incidente com o qual ele não estivesse instintivamente familiarizado. Ela estava falando sobre... ele. Alfa, Bravo, Caim, Delta.. Caim é para Charlie, e Delta é para Caim. Jason Bourne era o assassino chamado Caim. Havia uma última pergunta, uma breve trégua que pairava acima da escuridão daquelas duas noites antes, na Sorbonne. Marselha. 23 de agosto. — O que aconteceu em Marselha? — perguntou ele. — Marselha? — a mulher se encolheu. — Como você pode? Que mentiras lhe disseram? Que mentiras mais? — Diga-me apenas o que aconteceu. — Você está se referindo a Leland, é claro. O onipresente embaixador cuja morte foi exigida pelo... paga pelo contrato aceito por Carlos. — E se eu lhe disser que há muitos que pensam que Caim foi o responsável? — Foi o que ele quis que todos pensassem. Foi o último insulto a Carlos — roubar dele esta morte. O pagamento era irrelevante para Caim; apenas queria mostrar ao mundo — ao nosso mundo — que podia chegar antes e fazer o trabalho para o qual Carlos fora pago para fazer. Mas ele não chegou,
você sabe. Não teve nada a ver com a morte de Leland. — Ele estava lá. — Ele caiu em uma armadilha. Pelo menos nunca apareceu. Alguns disseram que ele fora morto, mas como não apareceu nenhum cadáver, Carlos não acreditou nisso. — Como foi que aconteceu.. esta suposta morte de Caim? Madame Lavier se encolheu de novo, balançando a cabeça em movimentos rápidos e curtos. — Dois homens na praia tentaram obter esse crédito, tentaram ser pagos por isso. Um deles nunca mais foi visto; pode-se presumir que Caim o tenha matado, se era mesmo Caim. Eram gentalha das docas. — Qual foi a cilada? — A cilada alegada, monsieur. Disseram que tiveram notícia de que Caim ia se encontrar com alguém na Rua Sarrasin uma noite antes do assassinato, mais ou menos. Disseram que deixaram mensagens obscuras na rua e atraíram Caim, ou quem acharam ser Caim, até os píeres, até um barco de pesca. Nem a traineira nem o comandante foram vistos de novo; devem ter tido certeza — mas, como digo, não houve nenhuma prova. Nem mesmo uma descrição adequada de Caim que pudesse ser comparada com o homem que foi levado da Rua Sarrasin. De qualquer forma, é aqui que tudo termina. Você está errada. É aqui que começa. Para mim, pelo menos. — Compreendo — disse Bourne, tentando novamente dar naturalidade à voz. — A nossa informação é diferente, naturalmente. Fizemos uma escolha diante do que sabíamos. — A escolha errada, monsieur. O que lhe contei é a verdade. — Sim, sei. — Fazemos o nosso trato, então? — Por que não? — Bien. — Aliviada, a mulher levou a taça de vinho aos lábios. — Você verá, será melhor para todos nós. — Agora realmente não... não importa. — Ele não podia ser ouvido, e sabia disso, O que dissera? O que acabara de dizer? Por que dissera aquilo?... A névoa se fechava novamente, as trovoadas ficavam mais altas; a dor voltara às suas têmporas. — Quero dizer... quero dizer, como você diz, é melhor para todos nós. — Ele podia sentir — ver — os olhos de Lavier postos nele, estudando-o. — É uma solução bem razoável. — Naturalmente que sim. Você não está se sentindo bem? — Já disse que não é nada, passa logo.
— Estou aliviada. Agora, dar-me-ia licença por um momento? — Não. — Jason segurou-lhe o braço. — Je vous prie, monsieur. O toalete, só isso. Se não se importa, pode ficar do lado de fora da porta. — Vamos sair. Você pode parar no caminho. — Bourne fez sinal para o garçom, — Como quiser disse ela, olhando em sua direção. Ele ficou no corredor escuro, debaixo das luzes que vinham do teto. Do outro lado do corredor ficava o banheiro feminino, marcado por letras pequenas e douradas: FEMMES. Gente bonita — mulheres belíssimas, homens simpáticos — continuavam a passar por ele. Era a mesma freqüência da Les Classiques. Jacqueline Lavier se sentia em casa. Ela já estava no banheiro há mais de dez minutos, fato que teria perturbado Jason se ele tivesse condição de se concentrar no tempo, agora. Mas não podia; estava em fogo. Ruídos e dores pelo corpo todo o consumiam, os nervos estavam tensos, expostos, as fibras intumescidas, com as constantes pontadas. Olhou para a frente, uma longa lista de homens mortos às suas costas, O passado estava nos olhos da verdade; eles o haviam procurado e o haviam visto. Caim... Caim... Caim.. Balançou a cabeça e olhou para o teto escuro. Tinha que agir; não podia se permitir afundar, mergulhar no abismo das trevas e dos ventos cortantes. Tinha que tomar algumas decisões... Não, elas já estavam tomadas; agora, era apenas uma questão de pô-las em funcionamento. Marie. Marie? Oh, Deus, meu amor, como nos enganamos! Respirou fundo e olhou para o relógio — o cronômetro que trocara por uma peça fina de ouro, que pertencera a um marquês, no Sul da França. Ele é um. homem de grande habilidade, extremamente inventivo... Não havia qualquer alegria naquela avaliação. Olhou para a porta do banheiro das mulheres. Onde estava Jacqueline Lavier? Por que não saía de lá? O que pensava fazer ficando lá dentro? Tivera a presença de espírito de perguntar ao maître se havia telefone lá dentro; o homem respondera negativamente, apontando para uma cabine telefônica perto da entrada. Ela estava ainda perto dele quando ele fez essa pergunta; e ouvira a resposta, entendendo por que ele a fizera. De repente, uma luz forte o cegou. Afastou-se, encolhendo-se contra a parede, os olhos cobertos com as mãos. A dor! Oh, Cristo! Os olhos estavam em fogo! Em seguida ouviu algumas palavras entre os risos polidos dos homens bem..vestidos e das mulheres que passavam casualmente pelo corredor. — Como lembrança do seu jantar no Roget, monsieur — disse uma recepcionista muito animada, segurando uma câmara fotográfica pela barra vertical — A fotografia ficará pronta em poucos minutos. Com os cumprimentos de Roget.
Bourne continuou rígido, sabendo que não podia esmagar a máquina fotográfica, enquanto o medo de uma nova percepção chegava até ele. — Por que eu? — perguntou. — A sua noiva pediu, monsieur — respondeu a moça, apontando com a cabeça para o banheiro. — Conversamos lá dentro. O senhor tem sorte, ela é uma mulher encantadora. Pediu-me para lhe entregar isto. — A recepcionista passou-lhe um bilhete dobrado; Jason o pegou, enquanto ela saracoteava de volta para a entrada do restaurante. O seu mal-estar me perturba, como tenho certeza que o per turba, também, meu novo amigo. Você pode ser o que diz ser, como pode não ser. Terei a resposta em meia hora mais ou menos. Uma chamada telefônica foi feita por uma solícita pessoa que jantara aqui; e essa fotografia está a caminho de Paris. Você não poderá impedir, como não poderá impedir quem está para chegar a Argenteuil. Se nós realmente temos o nosso trato, nada disso irá perturbá-lo — como a sua doença me perturba — e podemos voltar a conversar tão logo os meus companheiros cheguem. Dizem que Caim é um camaleão, que tem várias aparências bem convincentes. Também dizem que é inclinado à violência e a acessos temperamentais. E isso é um mal-estar, não? Ele correu pela rua, em Argenteuil, atrás do sinal de um táxi, que virou na esquina e desapareceu. Depois parou, respirando convulsivamente, procurando em todas as direções por outro táxi; mas nenhum apareceu. O porteiro do Roget lhe dissera que um táxi levaria dez ou quinze minutos para chegar, por que o monsieur não pediu um com antecedência? A cilada estava pronta e ele caíra nela. Em frente! Uma luz, outro táxi! Correu; tinha que pará-lo, tinha que voltar para Paris. Para Marie. Estava de volta ao labirinto, correndo cegamente, e percebendo, enfim, que não havia possibilidade de fuga. Mas tinha que correr sozinho; esta decisão era irrevogável. Não haveria nenhuma discussão, nenhuma conversa, nem lamúrias — argumentos baseados no amor e na incerteza. Porque a certeza já estava bem clara. Já sabia quem era... o que tinha sido; era condenado, culpado — e suspeito. Uma hora ou duas sem nada dizer. Apenas trocar olhares, conversar calmamente sobre qualquer coisa, menos a verdade. Amor. E depois sairia; ela jamais saberia quando e ele jamais lhe contaria o porquê. Ele lhe devia isto; doeria muito no início, por um breve momento, mas a última dor seria muito menor do que a causada pelo estigma de Caim. Caim! Marie. Marie! O que fiz? —. Táxi! Táxi!
Capítulo18 Saia de Paris! Agora! Não importa o que esteja fazendo. pare e saia!... São ordens do seu Governo. Eles querem que você saia daí. Marie amassou o cigarro no cinzeiro sobre a mesinha de cabeceira. Seu olhar escorregou para o número de três anos atrás da Potomac Quarterly, seu pensamento pairou por um momento naquele terrível jogo que Jason a forçara a compartilhar. — Não quero ouvir! — disse para si mesma, em voz alta, assustada com o som da sua própria fala no quarto vazio. Foi até a janela, a mesma janela onde ele estivera, olhando para fora, amedrontado, tentando fazê-la compreender. Tenho que saber algumas coisas... o suficiente para tomar uma decisão... mas talvez não precise saber de tudo. Uma parte de mim tem que ser capaz de... de correr, desaparecer. Tenho que ser capaz de dizer para mim mesmo: o que foi não é mais e há possibilidade de nunca ter sido, porque não tenho nenhuma lembrança do que foi, O que uma pessoa não consegue se lembrar é porque não existiu... para a pessoa. — Meu querido, meu querido. Não deixe que eles façam isto com você! — Suas palavras não a espantaram desta vez, porque era como se ele estivesse no quarto, ouvindo, prestando atenção às suas próprias palavras, pronto para correr, desaparecer... com ela. Mas bem no seu íntimo sabia que ele não poderia fazer isso; ele não conseguiria viver com uma meia verdade, ou com três quartos de uma mentira, Querem pegá-lo sozinho. Quem seriam eles? A resposta estava no Canadá, e o Canadá estava interceptado para ela; era outra cilada. Jason estava certo sobre Paris; ele também sentia isso. Não importa o que fosse, estava ali. Se ele pudesse encontrar uma pessoa para levantar o véu e o deixar descortinar por si mesmo o fato de estar sendo manipulado, então outras perguntas podiam ser feitas e as respostas não o levariam mais à autodestruição. Se pudesse ser convencido de que devia esquecer quaisquer que fossem os crimes cometidos e perceber que era o joguete de um crime muito maior, então seria capaz de fugir, ir embora com ela. Tudo era relativo. O homem a quem amava tinha que encarar que não era o seu passado que não existia mais; que o seu passado existira e ele podia viver com ele, pondo-o para escanteio. Era esse o raciocínio de que ele precisava, a convicção de que, independente do que ele tivesse sido antes, estava muito aquém do que os seus inimigos queriam fazer o mundo acreditar; do contrário não o usariam assim. Era o bode expiatório, a sua morte devia ocupar o lugar da morte de outra pessoa. Se ele apenas pudesse ver isso; se ela pudesse convencê-lo disso! Do contrário ela o perderia. Eles o levariam; eles o matariam. Eles.
— Quem é você? — ela gritou pela janela para as luzes de Paris. — Onde está você? Sentia um vento frio a bater-lhe no rosto, como se os vidros da janela tivessem se derretido e o ar gelado da noite estivesse penetrando no quarto. A garganta ficou apertada e, por um instante, não pôde engolir... Nem respirar. O momento passou e a respiração voltou ao normal. Estava com medo; isso já acontecera antes, naquela primeira noite dos dois em Paris, quando ela deixara o café e fora à procura dele, na escadaria do Cluny. Estava andando em passos rápidos pelo bulevar Saint-Michel quando isso acontecera: o vento frio, a impossibilidade de engolir... Naquele instante, também não conseguira respirar. Mais tarde soube a razão; naquele momento, Jason, a alguns quarteirões dali, na Sorbonne, estivera rastreando uma informação que momentos depois anularia — mas daquela vez ele conseguira chegar a isto. Conseguira desvencilhar-se da idéia de não mais voltar para ela. Pare! — gritou. — É loucura! — acrescentou mexendo a cabeça e olhando para o relógio. Ele saíra há cinco horas; onde estaria? Onde estaria ele? Bourne desceu do táxi em frente ao movimentado e elegante hotel de Montparnasse. A hora seguinte seria a mais difidil da breve vida de que ele tinha mem6ria — uma vida que em um vazio até Port Noir, e, de lá para a frente, fora um pesadelo. O pesadelo continuaria, mas iria viver sozinho com ele; amava-a muito, não iria pedir que compartilhasse isso com ele. Encontraria uma forma de desaparecer, levando com ele a evidência que o atava a Caim. Seria simples; sairia para um pretenso encontro e não retornaria. Depois escreveria um bilhete: Está tudo acabado. Encontrei as minhas indicações. Volte para o Canadá e não diga nada. Será melhor para nós dois. Saberei onde encontrá-la. A última frase era injusta — jamais voltaria a procurá-la. Mas era preciso manter a pequena e leve esperança, mesmo que fosse para ir ao seu encontro num avião em vôo para Ottawa. Com o tempo — no tempo — aquelas semanas que haviam passado juntos se apagariam e ficariam reduzidas a um segredo enevoado, um guardado de pequenas riquezas para ser aberto e tocado em momentos calmos e silenciosos. E nada mais, pois a vida é sentida pelo poder das memórias vivas, as que adormecem perdem o significado. Ninguém sabia disso melhor do que ele. Atravessou o saguão e cumprimentou o concierge, sentado no banco atrás do balcão de mármore, lendo um jornal, com um gesto de cabeça. O homem quase nem levantou o olhar, apenas notou a sua entrada. O elevador roncou e grunhiu até o quinto andar. Jason respirou profundamente e abriu a porta; antes de tudo, teria que evitar a dramaticidade — sem levantar suspeitas através de pala- nas ou olhares, O camaleão tinha que sair da floresta em silêncio, sem deixar nenhum traço. Sabia o que iria dizer, já pensara nisso cuidadosamente, como sabia o que escreveria no bilhete. — Passei a maior parte da noite perambulando por aí — disse enquanto a abraçava e desmanchava-lhe os cabelos, aninhando a cabeça dela no seu ombro... as palavras lhe doíam — ... correndo atrás de vendedoras cadavéricas, ouvindo alegres bobagens e tomando café fantasiado de tolo rabugento. Lês Classiques foi uma perda de tempo; aquilo lá é um zoológico. Os macacos e os pavões dão um show infernal, mas acho que ninguém sabe nada. Há talvez uma pessoa que pode saber e que
está lá, mas também pode ser apenas um astuto francês à procura de um americano marcado. — Ele? — perguntou Marie. O seu tremor estava passando. — Um homem que operava a mesa de telefones — disse Bourne, tentando repelir as imagens de explosões e escuridão, ventos fortes, enquanto lembrava-se do rosto que ele não recordava, mas que conhecia muito bem. Esse homem hoje era apenas um instrumento; não fazia parte da realidade. Afastou as imagens. — Concordei em me encontrar com ele cerca de meia-noite no Bastringue, na Rua Hautefeuille. — O que ele disse? — Muito pouco, mas o suficiente para despertar o meu interesse. Ele estava me observando enquanto eu fazia algumas perguntas. O lugar estava muito cheio, pude me movimentar livremente, conversar com as vendedoras. — Perguntas? Que perguntas você fez? — Sobre tudo que pude me lembrar. Sobre a gerente, ou qualquer coisa assim. Levando em consideração o que aconteceu esta tarde, se ela estava ligada a Carlos, deve ter quase ficado histérica. Observei-a. Ela não mudou o comportamento, permaneceu como se nada tivesse acontecido, como se tivesse tido um bom dia na loja. — Mas ela era uma ligação, como você diz. D’Amacourt explicou isso. A fiche. — Mas indireta. Ela recebe um telefonema e lhe dizem o que fazer antes que ele faça qualquer outro telefonema. — Na realidade, pensou Jason, o recurso que inventara era baseado na realidade. Jacqueline Lavier era, na verdade, uma ligação indireta. Você não pode ter feito perguntas sem parecer suspeito — reclamou Marie. — Posso — respondeu Bourne —, se eu for um escritor americano que está escrevendo um artigo sobre as zonas de comércio em Saint-Honoré para uma revista nacional. — Boa desculpa, Jason. — Deu certo. Ninguém quer ficar de fora. — O que conseguiu saber? — Como quase todas as outras lojas, Les Classiques tem a sua própria clientela, muito rica, formada por pessoas que se conhecem entre si, com todas aquelas intrigas maritais e de adultérios, que combinam bem com a decoração do ambiente. Carlos sabia o que estava fazendo; lá existe um serviço normal de fofocas e informações. — As pessoas lhe contaram isto? — perguntou Marie, segurando-lhe os braços e olhando em seus olhos.
— Não tão claramente — respondeu ele, ciente das dúvidas e da sua descrença. — Tudo sempre recaía sobre esse tal de Bergeron, mas uma coisa leva à outra. E a gente pode compor o quadro todo. Todos parecem gravitar em torno dessa gerente. Pelo que pude perceber, ela é uma fonte de informações sociais, embora nada mais pudesse me dizer além de que fez um favor para alguém — um acordo — e que esse alguém está ligado a outro alguém, que fez um favor para outro alguém. A fonte podia não ser confidencial, mas é tudo o que consegui. — Por que o encontro de hoje à noite no Bastringue? — Ele se aproximou de mim quando eu estava saindo e me disse uma coisa muito estranha. — Jason não precisou inventar esta parte da mentira. Ele lera as palavras num bilhete em um restaurante elegante de Argenteuil a menos de uma hora. — Ele disse: “Você pode ser o que diz ser, como pode não ser.” Foi aí que sugeriu tomarmos um drinque mais tarde, fora de Saint-Honoré. — Bourne percebeu que as dúvidas dela tinham sido eliminadas. Já fizera isto; ela aceitara o trançado de mentiras. E por que não? Era um homem de grande habilidade, extremamente inventivo. O elogio não lhe era muito repugnante; ele era Caim. — Ele pode ser quem você procura, Jason. Você que precisava apenas de um homem, bem pode ser ele! — Veremos. — Bourne olhou para o relógio. A contagem regressiva para a sua partida começara, não podia mais desistir. Temos quase duas horas. Onde você deixou a pasta? — No Meurice. Registrei-me lá. — Vamos buscá-la e jantar. Você ainda não comeu, não é — Não... — A expressão de Marie estava um pouco esquisita. — Por que não a deixamos lá? Está bem segura; não precisamos nos incomodar com ela. — Precisamos, se tivermos que sair daqui de repente — disse ele bruscamente, indo até o balcão. Tudo era agora apenas uma questão de passos; traços de atrito gradualmente entrando no discurso, na fala, na aparência, no toque. Nada de alarme, nada de falsos heroísmos; ela poderia perceber através dessas táticas. Apenas o suficiente para compreender a verdade, quando lesse as suas palavras. “Está tudo acabado. Encontrei as minhas indicações”... — O que há, querido? — Nada. — O camaleão sorriu. — Estou apenas cansado — e provavelmente um pouco desencorajado. — Céus, por quê? Um homem quer se encontrar com você confidencialmente mais tarde hoje à noite, um telefonista! Ele poderá levá-lo a algum lugar. Além disso, você está convencido de que essa mulher é um contato de Carlos; talvez ela possa lhe dizer alguma coisa — queira ou não. De uma forma um tanto macabra, acho que você ficaria contente. — Acho que não posso lhe explicar — disse Jason, olhando agora para o reflexo dela no
espelho. — Você teria que entender o que encontrei lá. — O que encontrou? — Ela fez uma pergunta. — O que encontrei. — Ele fez uma afirmação. — É um mundo muito diferente — continuou, procurando pela garrafa de uísque e um copo — de gente diferente. É sedoso, bonito e frívolo, com refletores e veludo negro. Nada é levado a sério, exceto fofoca e indulgência com relação a tudo. Qualquer um daqueles levianos — inclusive aquela mulher -— poderia ser uma boa ligação para Carlos sem nunca saber disso, sem nunca sequer suspeitar disso. Um homem como Carlos usa tais pessoas; qualquer um como ele faria isso, inclusive eu mesmo... Foi o que descobri. É desencorajante. — E não é razoável. Seja lá o que você acredita, essas pessoas decisões muito conscientemente. A indulgência sobre a qual falou exige isso; eles devem pensar bem. E quer saber o que acho? Acho que você está cansado, com fome, e precisa de um drinque ou dois. Gostaria que você desmarcasse o encontro de hoje à noite; já basta por hoje. — Não posso fazer isso — disse ele asperamente. — Está bem, não pode — ela respondeu na defensiva. — Sinto muito, estou irritado. — Sim. Sei. — Ela foi para o banheiro. — Vou me refrescar um pouco e depois poderemos ir. Tome um bom gole, querido. Você está com os dentes à mostra. — Marie? — Sim? — Tente entender, O que descobri lá me deixa muito aborrecido. Pensei que seria diferente, mais fácil. — Enquanto você estava à procura, eu estava espera, Jason. Sem saber. Isso também não foi fácil. — Achei que você fosse telefonar para o Canadá. Não telefonou? Ela ficou imóvel por um instante. — Não. — disse. — Era muito tarde. A porta do banheiro fechou-se; Bourne foi até a mesa, do outro lado da sala, abriu a gaveta, pegou papel e caneta e escreveu as seguintes palavras: Está tudo acabado, Encontrei as minhas indicações. Volte para o Canadá e não diga nada. Será melhor para nós dois. Sei onde encontrá-la. Depois dobrou o papel, colocou-o em um envelope e deixou-o aberto, enquanto procurava a carteira. Pegou tanto a conta francesa quanto a suíça e colocou-as por trás do bilhete. Depois fechou o envelope e escreveu na frente: MARIE.
Queria desesperadamente acrescentar: Meu amor, meu querido amor. Mas não o fez. Não podia. A porta do banheiro se abriu. Imediatamente pôs o envelope no bolso do paletó. — Foi rápido — disse. — Foi? Acho que não. O que você está fazendo? Eu queria uma caneta — respondeu, pegando a esferográfica. — Se aquele camarada tem algo a me dizer, quero estar pronto para anotar tudo. Marie estava perto do balcão; olhou para o copo seco e vazio. Você não tomou o seu drinque. — Nem usei o copo. — Estou vendo. Podemos ir? Esperaram no corredor pelo elevador que rangia; havia um silêncio estranho entre eles, quase insuportável. Ele pegou a mão dela; quando a tocou, ela segurou firme a sua mão, olhando-o nos olhos. Os olhos dela lhe diziam que o seu controle fora testado e ela não sabia por quê. Sinais silenciosos tinham sido emitidos e recebidos, não eram altos nem contundentes, não chegavam a ser um alarme, mas tinham sido acionados e ela os percebera. Fazia parte da contagem regressiva, rígida, irreversível, o prelúdio para a partida dele. Oh, Deus, eu a amo tanto! Você está ao meu lado, estamos de mãos dadas e eu estou morrendo. Mas você não pode morrer comigo. Não deve. Eu sou Caim. — Ficaremos bem — disse ele. A gaiola de metal vibrava nervosamente, fazendo ruídos durante a descida. Jason abriu a porta de grades e, de repente, prendeu a respiração. — Oh, Cristo, esqueci! — O quê? — A minha carteira. Deixei-a na gaveta do balcão esta tarde, caso acontecesse alguma eventualidade em Saint-Honoré. Espere-me no saguão. — Orientou-a gentilmente em direção ao elevador e apertou o botão para descer. — Já voltarei. — Depois fechou a grade, as travas cruzadas cortaram a visão dos seus olhos espantados. Ele se virou e foi rapidamente em direção ao quarto. No quarto tirou o envelope do bolso do paletó e o colocou encostado na base da luminária da cabeceira. E ficou a olhá-lo, a dor insuportável. — Adeus, meu amor — murmurou.
Bourne esperou na garoa, fora do Hotel Meurice, na Rua de Rivoli, observando Marie através das portas de vidro da entrada. Ela estava no balcão da portaria, já assinara o pedido da pasta, que lhe estava sendo entregue por cima do balcão. E agora pedia a conta a um dos funcionários, que parecia espantado, pois ela pagaria pôr um quarto ocupado menos de seis horas. Dois minutos se passaram antes que a conta lhe fosse apresentada. Relutantemente, embora, pois esse não era o comportamento normal de um hóspede do Meurice. Na verdade, toda Paris evitava visitantes tão inibidos. Marie saiu e foi ao seu encontro no escuro, no lado esquerdo da cobertura da entrada do hotel. A noite estava coberta de bruma e garoava. Ela entregou-lhe a pasta, tinha um sorriso forçado nos lábios, a voz um pouco tensa. — Aquele homem não gostou muito do que fiz. Tenho certeza de que ele está convencido que usei o quarto para alguma pequena trapaça. — O que você lhe disse? — perguntou Bourne. — Que os meus planos haviam mudado, só isso. — Ótimo. Quanto menos se diz melhor. O seu nome está no cartão de registro de hóspedes. Pense em uma razão para ter estado lá. — Pensar?... Devo inventar uma razão?! — Olhou-o nos olhos, o sorriso se desvanecera. — Quero dizer, nós vamos inventar uma razão. Naturalmente. — Naturalmente. — Vamos. — Foram em direção à esquina, o trânsito estava barulhento, a garoa engrossava, a bruma estava mais condensada, em breve cairia uma chuva forte. Segurou-a pelo braço — não para guiá-la, nem era um gesto de simples cortesia — apenas para tocá-la, ter em suas mãos uma parte dela. Restava pouco tempo. Sou Caim. Sou a morte. — Podemos ir mais devagar? — perguntou de repente — O quê? — Jason percebeu que estava quase correndo. Durante os últimos instantes quase estivera de volta ao labirinto, correndo lá para dentro, escorregando, sentindo e não se sentindo. Olhou em frente e encontrou uma resposta. Na esquina, um táxi vazio parara próximo a uma vistosa banca de jornais. O motorista gritava pela janela com o jornaleiro. — Quero pegar aquele táxi — disse Bourne sem diminuir a marcha — Vai chover muito. Chegaram a esquina, ofegantes Mas o táxi arrancou, virando à esquerda na Rua de Rivoli. Jason olhou para o céu escuro, sentindo a umidade escorrer-lhe pelo rosto calmamente. A chuva chegara. Olhou para Marie, iluminada pelas luzes vibrantes da banca de jornais. Ela se encolhera por causa da repentina chuva. Não. Ela não tinha se encolhido por causa da chuva; olhava fixa- mente para alguma coisa... descrente, parecendo em choque. Estava horrorizada. Súbito, gritou, o rosto contorcido, os
dedos da mão direita afundados contra a boca. Bourne segurou-a com firmeza, trazendo a sua cabeça para junto do tecido molhado do seu sobretudo; ela não parava de gritar. Ele se virou, tentando saber a causa daquela histeria. E viu. Naquele inacreditável e rápido instante soube que a contagem regressiva não continuaria. Ele cometera o crime final e não podia mais deixá-la. Não agora; ainda não. No primeiro suporte da banca estava pendurado um tablóide matutino, as letras pretas ressaltando nos círculos de luz: ASSASSINATO EM PARIS MULHER PROCURADA PELAS MORTES DE ZURIQUE É SUSPEITA DE ESTAR ENVOLVIDA EM ROUBO DE MILHÕES Debaixo das letras gritantes estava uma fotografia de Marie St. Jacques. — Pare! — sussurrou Jason usando seu próprio corpo para esconder-lhe o rosto do jornaleiro curioso. Procurou no bolso duas moedas, jogou-as no balcão, pegou dois jornais e foi levando-a pela rua escura e molhada de chuva. Agora, os dois estavam no mesmo labirinto. Bourne abriu a porta e fez com que Marie entrasse. Ela permaneceu imóvel, olhando para ele, o rosto pálido demonstrando medo, a respiração difícil, misto de medo e raiva. — Vou buscar um drinque — disse Jason, indo até o balcão. Enquanto servia a bebida, seus olhos vagaram pelo espelho e teve o imperioso impulso de esmagar o copo, tão desprezível lhe parecia sua imagem. O que fizera? Oh, Deus! Sou Caim. Sou a morte. Ouviu O ruído dela se movimentando. Era muito tarde para detê-la, ela estava muito longe, ele não podia ir até lá e rasgar aquela coisa horrível que estava em suas mãos. Oh, Cristo, ele esquecera! Ela encontrara o envelope na mesa de cabeceira e estava lendo o bilhete. Seu grito era de decepção e dor. — Jasonnn!... — Não! Por favor! — Correu até ela e a abraçou. — Isso não é verdade, não tem valor! Não vale mais! — Ele gritava inutilmente, vendo as lágrimas correrem-lhe pelos olhos. — Ouça! Isso escrevi antes, não tem valor agora. — Você ia embora! Meu Deus, você ia me deixar! — Os olhos dela ficaram com uma expressão vazia, como dois círculos cheios de pânico. — Eu sabia! Senti isso!
— Fiz com que você sentisse! — disse, forçando-a a olhar para ele. — Mas agora tudo está bem. Não vou deixá-la! Olhe para mim. Não vou deixá-la! Ela gritou de novo. — Eu quase nem podia respirar! Estava tão frio! Ele puxou-a para si, envolvendo-a nos braços. — Temos que começar de novo. Tente entender. É diferente agora, não posso mudar o que foi, mas não vou deixá-la. Não assim, dessa forma Ela pôs as mãos no seu peito e afastou-se um pouco, o rosto sulcado de lágrimas um pouco afastado, perguntando: — Por quê? Por quê, Jason? — Mais tarde. Não agora. Não diga nada, por enquanto. Abrace-me, deixe-me abraçá-la. O tempo passou, a histeria se aplacara e o perfil da realidade voltou. Bourne levou-a até a poltrona e ambos sorriram. Ajoelhou se ao lado dela, segurando-lhe a mão em silêncio. — Você quer o drinque? — ele disse, finalmente. — Acho que sim — respondeu ela. E por um instante apertou com força a sua mão, enquanto ele se levantava do chão. — Já está no copo há um bom tempo. — Não perdeu o sabor. Foi até o balcão e voltou com dois copos de uísque pela metade. Ela pegou o seu. — Sente-se melhor? — perguntou ele. — Mais calma. Ainda um pouco confusa... amedrontada, é claro. Talvez até com raiva, também. Nem tenho certeza. Estou com muito medo de pensar nisso. — Bebeu com os olhos fechados, a cabeça encostada na poltrona. — Por que fez isso, Jason? — Achei que devia. É a resposta mais simples. — E não é resposta de forma alguma. Mereço mais do que isso. — Sim, merece. Vou lhe dar uma resposta completa. Agora tenho que fazer isso e você tem que escutar tudo; tem que me compreender. Tem que se proteger, também. — Proteger... Ele levantou a mão, fazendo um sinal para interrompê-la. — Mais tarde saberá por quê. Saberá de tudo, se quiser. Mas a primeira coisa a fazer agora é saber o que aconteceu — não a mim, mas a você. É por aqui que temos que começar. Pode ser? — Deus sabe o quanto quero — sorriu ela debilmente. — O jornal? — Sim.
— Está aqui. — Jason foi até a cama onde jogara os dois jornais. — Nós dois vamos lê-lo. — Sem jogos? — Sem jogos. Leram o longo artigo em silêncio; um artigo falava de morte e intriga em Zurique. De vez em quando Marie ficava ofegante, chocada com o que lia; às vezes balançava a cabeça em descrença. Bourne nada disse. Via a mão de Ilich Ramirez Sanchez em tudo aquilo. Carlos seguirá Caim até os confins da Terra. Carlos o matará. Marie St. Jacques estava marcada para o sacrifício, era uma isca fácil, que podia morrer na cilada armada para apanhar Caim. Sou Caim. Sou a morte. O artigo, na verdade, compunha-se de duas partes .— uma estranha mistura de fatos e conjecturas, especulações no lugar de evidências. A primeira parte falava de uma funcionária do Governo canadense, uma economista, Marie St. Jacques. Ela fora colocada na cena de três assassinatos e suas impressões digitais haviam sido confirmadas pelo Governo canadense. Além disso a polícia encontrara uma chave do Hotel Carillon du Lac, aparentemente perdida durante a violência ocorrida no Guisan Quai. Era a chave do quarto de Marie St. Jacques, que lhe fora entregue pelo porteiro do hotel, que aliás se lembrava muito bem dela — lembrava-se de uma hóspede que parecia estar em estado de grande ansiedade e perturbação. A última peça da evidência era uma arma descoberta não muito longe da Steppdeckstrasse, em um corredor próximo ao local de duas outras mortes. Os especialistas apontaram-na como a arma do crime. E novas impressões tinham sido colhidas, e outra vez confirmadas pelo Governo canadense. Pertenciam à mulher, Marie St. Jaeques. Neste ponto, o artigo se desviava dos fatos. Falava de rumores que circulavam na Bahnhofstrasse sobre um roubo multimilionário de dólares efetuado por manipulação de um computador que lidava com contas numeradas e confidenciais. Uma delas pertencia a uma companhia americana chamada Treadstone Seventy One. O banco também fora comunicado; era, claro, o Gemeinschaft. Mas tudo o mais estava muito nublado, obscuro. Era mais especulação do que fatos. De acordo com “fontes anônimas”, um homem americano, de posse dos códigos, transferiu milhões para um banco em Paris, passando a nova conta para contistas específicos que deviam assumir todos os direitos de posse. Os cessionários estavam à espera do dinheiro em Paris e, depois da compensação, desviaram os milhões e desapareceram. O sucesso da operação foi descoberto pelos americanos através dos códigos certos da conta do Gemeinschaft, o que se tornou possível pelo rastreamento das seqüências numeradas do banco, relacionadas com ano, mês e dia da entrada, sendo isto um procedimento normal nas transações confidenciais. Tal análise só poderia ser feita através de sofisticada técnica de computador e um grande conhecimento das práticas bancárias da Suíça. Quando interrogado, um funcionário do banco, Herr Walther Apfel, declarou estar sendo feita uma investigação com relação aos assuntos que dizem respeito à companhia americana mas, de acordo com a lei suíça, o “banco não tinha mais nenhum comentário a fazer — a ninguém”. Em seguida, a indicação de Marie St. Jacques ficava esclarecida. Era descrita como economista do Governo, profunda conhecedora dos procedimentos bancários internacionais, bem como perita
programadora de computadores. Era suspeita de cumplicidade, tendo sido a sua perícia usada para o roubo. E havia, também, um homem suspeito; ela fora vista em sua companhia no Carillon du Lac. Marie acabou de ler o artigo antes de Bourne, e deixou o jornal cair ao chão. Com o barulho, Bourne levantou o olhar de onde estava, na borda da cama. Ela olhava fixamente para a parede em frente, num estado de meditação, estranho e sereno. Essa era a última reação que ele esperaria. Acabou de ler o seu jornal, sentindo-se deprimido e desesperançado — e, por um momento, sem poder falar. Depois conseguiu falar. — Mentiras — disse —, e criadas por minha causa, pelo que sou e por quem sou. Encontrando você, eles me encontrarão. Sinto muito, muito mais do que posso lhe dizer. Marie desviou o olhar da parede e olhou para ele. — É mais do que mentiras apenas, Jason. Há muitas verdades também. — Verdades? A única verdade é que você esteve em Zurique. Você nunca tocou numa arma, nunca esteve numa ruela perto da Steppdeckstrasse, não perdeu nenhuma chave de hotel e nunca esteve próxima ao Gemeinschaft. — De acordo, mas não é dessa verdade que estou falando. — Então do que é? — O Gemeinschaft, a Treadstone Seventy One, Apfel. Isso tudo é verdadeiro. E o fato de serem mencionados — especialmente a comunicação de Apfel — é incrível. Os banqueiros suíços são pessoas muito cautelosas. Não ridicularizam as leis, não dessa forma; as sentenças de prisão são multo severas. Os estatutos sobre as contas confidenciais estão entre os mais sacrossantos da Suíça. Apfel poderia ir para a prisão por muitos anos por ter dito o que disse, até mesmo por ter aludido a tal conta, e muito mais por tê-la confirmado nominalmente. A menos que tenha sido ordenado a dizer o que disse por uma autoridade suficientemente poderosa para infringir as leis. — Parou, os olhos novamente fixos na parede. — Por quê? Por que o Gemeinschaft ou a Treadstone ou até mesmo Apfel fazem parte dessa história? — Já lhe disse. Estão à minha procura e sabem que estamos juntos. Carlos sabe que estamos juntos. Encontrando você, vai me encontrar. — Não, Jason. Isso está acima de Carlos. Você realmente não entende as leis da Suíça. Nenhum Carlos poderia se alardear com isso. — Olhou para ele, mas os olhos não o viam; olhava através de suas próprias névoas. — Esta não é uma história só, são duas. E as duas construídas sobre mentiras. A primeira está ligada à segunda por uma tênue especulação — especulação pública — sobre uma crise bancária que nunca viria a público, a menos que, e até que, uma investigação particular provasse os fatos. E a segunda história — a falsa declaração de que alguns milhões foram roubados do Gemeinschaft — foi igualmente ligada à falsa história de que estou sendo procurada pela morte de três homens em Zurique. Foi acrescida. Deliberadamente. — Explique-me isso, por favor.
— É isso, Jason. Acredite-me quando lhe afirmo; está bem à nossa frente, — O quê? — Alguém está tentando nos enviar uma mensagem.
Capítulo19 O sedã do Exército corria velozmente pelo East River Drive em Manhattan. Os faróis iluminavam os flocos remanescentes da nevasca de fim de inverno. O major, sentado no assento de trás do carro, cochilava; seu corpanzil estava encostado ao canto, as pernas estendidas em diagonal. Trazia uma maleta no colo, com uma fina corda de náilon presa ao pegador por um grampo de metal. A corda passava por dentro de sua manga direita e ia até a túnica interna, prendendo-se ao cinto. Este estratagema de segurança fora removido apenas duas vezes nas últimas nove horas. A primeira durante a partida do major de Zurique, e a segunda com a sua chegada no Aeroporto Kennedy. Nos dois lugares, no entanto, o pessoal do Governo dos Estados Unidos ficara observando os funcionários da alfândega — e mais precisamente, vigiando a maleta. Não sabiam por que, apenas ordens de vigiar a fiscalização e que, ao menor desvio dos procedimentos normais — que pudesse significar qualquer interesse indevido com relação à maleta —, deviam intervir. E usar armas, se necessário. De repente soou uma campainha, um ruído grave; o major abriu os olhos e levou a mão esquerda à frente do rosto. Era o ruído do despertador de pulso. Apertou o botão e girou um outro, o do mostrador de radium. Seu relógio mostrava as horas em dois fusos: o primeiro dava a hora de Zurique, o segundo, a de Nova Iorque. O alarme fora posto para funcionar há vinte e quatro horas quando o oficial recebera suas ordens. A transmissão viria dali a três minutos. Isto é, pensou o major, se Iron Ass fosse tão preciso quanto esperava que seus subordinados fossem. O oficial espreguiçou-se desajeitadamente, balançando a maleta que estava no colo; depois inclinou-se para a frente e deu uma ordem ao motorista. — Sargento, gire o botão para 1430 megahertz, por — Sim, senhor. — O sargento ligou dois botões do que ficava embaixo do painel do carro; depois girou o sintonizador para a freqüência de 1430. — Pronto, major. — Obrigado. O microfone alcança até aqui atrás? — Não sei. Nunca tentei, senhor. — O motorista puxou o pequeno microfone de plástico de sua caixa e esticou o fio espiralado por cima do assento. — Acho que sim — concluiu. Um barulho de estática saiu do microfone, o botão do transmissor procurava eletronicamente a freqüência. A mensagem viria em seguida. Veio. — Treadstone? Treadstone, confirme, por favor. — Treadstone recebendo — disse o Major Gordon Webb. — Estou ouvindo, continue. — Qual é a sua posição? — Cerca de uma milha ao sul de Triborough, no East River Drive. — Sua noção de localização é boa — respondeu a voz. — Fico contente em saber. Isso me faz ganhar o dia... senhor.
Houve uma pausa breve, sem que o comentário do major recebesse resposta. — Continue até a Rua Setenta e Quatro Leste, 139. Confirme repetindo. — Rua Setenta e Quatro Leste, um, três, nove. — Mantenha o seu veículo fora da área. Aproxime-se a pé. — Entendido. — Fora do ar. — Fora do ar. — Webb baixou o botão de transmissão e devolveu o microfone ao motorista. — Esqueça aquele endereço, sargento. Seu nome está agora muito próximo de uma promoção. — Certo, major. Não ouvi nada mais do que o barulho de estática. Mas como não sei onde é, e estas rodas não podem ir até lá sozinhas, onde o senhor quer que o deixe? Webb sorriu. — Não mais de duas quadras daqui. Eu preferiria dormir na sarjeta se tivesse que andar mais do que isso. — Que tal entre a Lex e a Rua Setenta e Dois? — São duas quadras? — Não mais de três. — Se são três, você volta a ser civil. — Então não poderei vir buscá-lo mais tarde, major. Os civis não estão qualificados para estes deveres. — Como quiser, capitão. — Webb fechou os olhos. Depois de dois anos ele estava para ver a Treadstone Seventy One. Podia sentir uma sensação de antecipação; mas não sentia. Apenas um certo desgaste, uma impressão de futilidade. O que acontecera? O barulho incessante dos pneus no calçamento era quase hipnótico, mas o ritmo era quebrado pelas intrusões rápidas e bruscas do barulho do concreto contra as rodas em atrito. Esses ruídos lhe traziam lembranças de um passado distante, barulhos da selva confluindo em um único som. E da noite — aquela noite —, quando as luzes ofuscantes e as explosões em ritmo contínuo cresciam à sua volta, anunciando a morte próxima. Mas não morreu; um milagre fora forjado por um homem que lhe devolvera a vida. E os anos se passaram; aquela noite, aqueles dias, nunca mais foram esquecidos. O que acontecera? — Chegamos, major. Webb abriu os olhos, limpou com a mão o suor que se lhe formara na testa, olhou para o relógio a maleta e segurou a maçaneta da porta.
— Estarei de volta entre as 23h e 23h30min, sargento. Se não puder estacionar, cruze por aqui que vou ao seu encontro. — Sim, senhor. — O motorista vir pan trás. — O major pode me dizer se depois vamos muito longe? — Por quê? Você tem outra corrida? — Ora, senhor. Estou a seu serviço, até que o senhor ordene o contrário, o senhor bem sabe disso. Mas essas “lanchas” gastam muita gasolina, como os Shermans de antigamente. Se vamos longe, será melhor que eu encha o tanque. — Desculpe. — O major fez uma pausa. — Okay. Você vai ter que descobrir onde ficar, de qualquer forma, porque não sei. Iremos para uma base particular em Madison, Nova Jérsei. Tenho chegar lá o mais tardar a uma hora da manhã. — Tenho uma vaga idéia — disse o motorista. — Às 23h 30min tudo estará pronto, senhor — Muito bem, às 23h, então. E obrigado. — Webb saiu do carro, fechou a porta e esperou até que o sedã marrom entrasse no fluxo do trânsito da Rua Setenta e Dois. Desceu o meio-fio e foi em direção à Rua Setenta e Um. Quatro minutos mais tarde ele estava em frente a um edifício de granito marrom, muito bemconservado, cujo desenho de contornos suaves e ricos combinava com os demais edifícios à sua volta, naquela rua ladeada de árvores. Era uma rua quieta, onde circulava muito dinheiro — dinheiro antigo. Era o último lugar em Manhattan onde alguém poderia suspeitar que uma pessoa pudesse abrigar um dos mais sensíveis serviços de operação de inteligência do país. E há vinte minutos o Major Gordon Webb era uma das oito ou dez pessoas no país que sabiam da sua existência. Treadstone Seventy One. Subiu os degraus, sabendo que a pressão do seu peso sobre a tela de arame encaixada na pedra debaixo dele impulsionava aparelhos eletrônicos que, por sua vez, ativavam câmaras que iriam reproduzir sua imagem nas telas do interior do edifício. Além disso, pouco sabia; exceto que a Treadstone Seveaty One nunca fechava; era operada e monitorizada durante as vinte e quatro horas do dia por um grupo selecionado, de poucas pessoas e com identidades desconhecidas. Chegou ao último degrau e apertou a campainha, uma campainha comum numa porta incomum, o major bem podia observar isso. A madeira pesada era rebitada com aço por dentro; os desenhos e ornamentos em ferro eram na verdade uma proteção, a grande maçaneta encobria um instrumento metálico que lançava uma série de dardos de dentro dos seus receptores de aço ao toque da mão humana, se o alarme estivesse ligado. Webb levantou o olhar para as janelas. Cada vidraça, ele sabia, tinha a espessura de uma polegada e era capaz de suportar o impacto de uma bala calibre 30. A Treadstone Seventy One era uma fortaleza. A porta se abriu e o major involuntariamente sorriu para a figura que o recebeu, pois ela parecia totalmente deslocada. Era uma pequena mulher de aparência elegante e cabelos grisalhos, feições
suaves e aristocráticas e uma postura que impressionava. Sua voz confirmava o julgamento que ele fizera; era uma pessoa vinda do meio-Atlântico, educada nas melhores escolas e em meio a inumeráveis jogos de pólo. — Que bom que o senhor apareceu, major. Jeremy nos escreveu dizendo que o senhor viria. Entre. É um grande prazer revê-lo. — É muito bom vê-la de novo, também — respondeu Webb, entrando no foyer e terminando a sua declaração depois que a porta já se fechara —, mas não tenho certeza de nos termos visto antes. A mulher sorriu. — Oh, jantamos juntos muitas vezes. — Com Jeremy? — Sim, é claro. — Quem é Jeremy? — Um sobrinho dedicado, que também é seu amigo dedicado. Um jovem muito bom; é uma pena que ele não exista. — Ela segurou-o pelo braço, enquanto avançavam pelo corredor. — Isso é por causa dos vizinhos que eventualmente possam estar passando aí pela frente. Entre, agora, estão à sua espera. Passaram por uma arcada que dava em uma imensa sala de jantar; o major olhou para dentro. Havia um piano próximo às janelas da frente e uma harpa ao seu lado. E em todos os cantos — em cima do piano e das mesas luzidias, refletindo as luzes indiretas, descansavam molduras de prata com fotografias. Eram lembranças de um passa cheio de graça e fortuna. Barcos, homens e mulheres sobre os deques, em navios no alto-mar, muitos retratos de militares. E, também, dois cândidos instantâneos de uma pessoa montada e pronta para um jogo de pólo. Era uma sala que realmente pertencia a um prédio de granito pardo em uma rua como aquela. Chegaram ao final do corredor; havia uma grande porta de mogno, ornamentada em baixorelevo, em ferro, parte decoração e parte segurança. Se havia alguma câmara de infravermelho, Webb não podia perceber o lugar das lentes. A mulher de cabelos grisalhos apertou um botão de campainha embutido e completamente imperceptível; o major ouviu um pequeno rumor. — Ele chegou, cavalheiros. Parem de jogar pôquer e comecem a trabalhar Abra, Jesuíta — Jesuíta — perguntou Webb, espantado — É uma velha piada — respondeu a mulher. — É do tempo que vocês provavelmente ainda jogavam bola de gude e detestavam as meninas. A porta se abriu e a idosa mas ainda empertigada figura de David Abbott apareceu. — É um prazer vê-lo, major — disse o antigo Monge Silencioso dos Serviços Secretos estendendo a mão. — É bom estar aqui, senhor. — Webb apertou-lhe a mão. Outro homem idoso e imponente
apareceu ao lado de Abbott. — Um amigo de Jeremy, não há dúvida — disse o homem, a voz profunda beirando o humor. — Tempos terríveis exigem apresentações convenientes, meu jovem. Venha, Margaret. Há um bom fogo na lareira lá em cima. — Virou-se para Abbott. — Vocês me avisam quando forem sair, David? — A mesma hora de sempre para mim, espero — respondeu o Monge. — Vou mostrar a esses dois como telefonar para você. Foi então que Webb percebeu que havia um terceiro homem na sala; ele estava parado no escuro, e o major o reconheceu imediatamente. Era Elliot Stevens, o auxiliar mais velho do Presidente dos Estados Unidos — alguns até diziam que era o seu alter ego. Estava na casa dos quarenta, era esguio, usava óculos e tinha uma postura franca de autoridade. — ...será bom. — O imponente homem idoso que ainda não tinha tido tempo para se apresentar, estava falando; Webb não o ouvira, sua atenção estava voltada para o auxiliar da Casa Branca. — Ficarei à espera. — Até a próxima vez — continuou Abbott, olhando gentilmente em direção à mulher grisalha. . — Muito obrigado, Irmã Meg. E mantenha o seu hábito sempre passado. Podem descer. — Você ainda está fraco, Jesuíta. O casal saiu, fechando a porta atrás de si. Webb ficou parado por um momento, balançando a cabeça e sorrindo. O homem e a mulher do número 139 da Rua Setenta e Um Leste moravam em baixo, esta sala pertencia à casa de granito, e tudo fazia parte de uma rua rica, quieta e cheia de árvores. — Vocês já o conhecem há muito tempo, não é? — Uma vida toda, temos que dizer — respondeu Abbott. — Era um iatista que usamos nas caçadas do Adriático durante a operação Donovan, na Iugoslávia. Mikhailovitch dizia que velejava sobre os seus nervos, domando os piores ventos à vontade. E não pensem que a Irmã Meg ficava atrás, seus tolos. Ela foi uma das moças do Intrepid, uma piranha com dentes muito afiados. — Eles têm uma história e tanto — Que nunca será contada — disse Abbott, encerrando o assunto. — Gostaria que conhecesse Elliot Stevens. Acho que não preciso lhe dizer quem é ele. Webb, Stevens. Stevens, Webb. — Isso está parecendo uma firma de advocacia — disse Stevens amigavelmente, atravessando a sala e estendendo a mão. — É um prazer conhecê-lo, Webb. Fez boa viagem? — Prefiro um transporte militar. Odeio essas terríveis linhas aéreas comerciais. Pensei que um agente da alfândega, no Aeroporto Kennedy, fosse cortar a linha da minha maleta. — Você parece muito respeitável nesse uniforme — riu o Monge. — Parece até um contrabandista.
— Ainda não tenho muita certeza de ter entendido a necessidade do uniforme — disse o major, levando a maleta para uma mesa encostada à parede e desatando a corda de náilon presa ao cinto. — Eu nem precisaria dizer-lhe — respondeu Abbott — que a mais estrita segurança é quase sempre uma questão de ser-se o mais óbvio possível na aparência. Um oficial do Exército que pertence ao serviço de inteligência, vagando por Zurique sem nenhuma proteção nesta época atual, podia levantar suspeitas. — Então, não entendo, também — disse o auxiliar da Casa Branca, juntando-se a Webb perto da mesa e observando o major manipular o náilon e o fecho. — Uma presença óbvia não levantaria ainda mais as suspeitas? Pensei que vindo disfarçado ele teria menor probabilidade de correr riscos. — A viagem de Webb para Zurique foi uma viagem de rotina, de exame, pré-datada na programação dos G-Dois. Ninguém engana ninguém nessas viagens; são o que são e nada mais. São viagens para descobrir novas fontes e pagar informantes. Os soviéticos fazem isso o tempo todo; nem se preocupam mais em esconder. Nem nós, francamente. — Mas não foi esse o propósito dessa viagem — disse Stevens, começando a entender. —. Então, o óbvio esconde o não-óbvio. — Isso mesmo. — Posso ajudar? — O auxiliar do presidente parecia fascinado pela maleta. — Obrigado — disse Webb. — Puxe a corda, apenas. Foi o que Stevens fez. — Sempre pensei que fossem correntes em volta do pulso — disse — e não náilon. — Já tivemos muitas mãos decepadas — explicou o major, e sorriu à reação do homem da Casa Branca. — Há um fio de aço correndo por dentro do náilon. — Libertou a maleta e abriu-a em cima da mesa, olhando em volta para a elegância e distinção dos móveis daquele abrigo-biblioteca. No lado de trás da sala existiam duas portas francesas que pareciam dar para um jardim externo, a sombra de um muro de pedra delineava-se através das janelas de vidro grosso. — Então, esta é a Treadstone Seventy One. Não é como a imaginei. — Feche as cortinas de novo, sim, Elliot? — disse Abbott. O auxiliar presidencial foi até as janelas francesas e cerrou as cortinas. Abbott foi até uma prateleira, abriu um estojo que havia embaixo e pôs a mão dentro dele. Ouviu-se um chiado seco. Toda a prateleira saiu da parede e, lentamente, movimentou-se para a esquerda. Do outro lado havia um console com um rádio eletrônico, um dos mais sofisticados que Gordon Webb jamais vira. — É mais do que você havia imaginado? — perguntou o Monge. — Jesus!... — O major assobiou enquanto examinava os botões, calibrações, os cabos múltiplos e os instrumentos de sintonia embutidos no painel. As salas de guerra do Pentágono tinham um equipamento muito mais elaborado, mas esta era uma estação miniaturizada igual às mais bemequipadas do serviço de inteligência.
— Eu também assobiaria se estivesse vendo pela primeira vez — disse Stevens, na frente da grossa cortina. — Mas o senhor Abbott, pessoalmente, já me fez esta demonstração. Isso é apenas o começo. Mais cinco botões e este lugar fica parecendo uma base SAC de Omaha. — Esses mesmos botões também transformam esta sala em uma graciosa biblioteca do East Side. — O homem idoso pôs a mão dentro do pequeno estojo embutido e em segundos apenas a enorme estante de livros voltou ao seu lugar. Dirigiu-se depois para a estante do lado e novamente abriu o estojo embutido embaixo da prateleira, enfiando a mão lá dentro. A estante começou a girar, saiu da parede e, em seguida, no seu lugar estavam três altos arquivos fechados. O Monge tirou uma chave e abriu uma gaveta do arquivo — Não estou fazendo nenhuma demonstração, Gordon. Quando acabarmos, quem que você olhe isto aqui. Mostro-lhe como lidar com os botões do comando. Se tiver algum problema, o nosso anfitrião tomará conta de tudo. — O que devo procurar? — Vamos chegar lá; agora, quero ouvir tudo sobre Zurique. O que conseguiu saber? — Desculpe-me, senhor Abbott — interrompeu Stevens. — Se eu estiver sendo lento, é porque tudo isso é muito novo para mim. Mas eu estava pensando em uma coisa que o senhor disse há minutos, sobre a viagem do Major Webb. — O que é? — O senhor disse que a viagem estava pré-datada nos programas dos G-Dois. — É verdade. — Por quê? A presença do major obviamente era para confundir Zurique, não Washington. Ou era? O Monge sorriu. — Agora vejo por que o Presidente o mantém por perto. Nunca duvidamos de que Carlos tenha comprado o seu caminho em um ou dois círculos — ou dez — de Washington. Ele procura os homens descontentes e lhes oferece o que eles não têm. Um Carlos não poderia existir sem tais pessoas. O senhor deve se lembrar, ele não apenas vende a morte, também vende os segredos de uma nação. E, muito freqüentemente, para os soviéticos, mesmo que seja apenas para provar a eles como foram grosseiros ao bani-lo. — O presidente gostaria de saber disso — disse o auxiliar. — Isto explicaria muitas coisas. — É por isso que está aqui, não é? — disse Abbott. — Acho que sim. — E Zurique é um bom lugar para se começar — disse Webb, levando a maleta para uma poltrona em frente aos fichários. Sentou-se, espalhando as pastas dentro do arquivo aos seus pés e pegou algumas folhas de papel. — O senhor pode duvidar de que Carlos está em Washington, mas posso confirmar isso.
— Onde? Treadstone? — Não há prova concreta ainda, mas essa suposição não pode rejeitada. Ele descobriu a fiche. Ele a alterou. — Bom Deus, como!? — O como eu apenas posso supor; quem, eu sei. — Quem? — Um homem chamado Koenig. Até há três dias ele estava cuidando das verificações bancárias do Gemeinschaft. — Três dias atrás? Onde está ele agora? — Morto. Um estranho acidente de automóvel na estrada por onde ele passava todos os dias. Aqui está o relatório policial; eu o traduzi. — Abbott pegou os papéis e sentou-se em uma cadeira próxima. Elliot Stevens permaneceu sentado; Webb continuou. — Há alguma coisa muito interessante nisso. Não nos diz nada que já não saibamos, mas há uma chamada que eu gostaria de salientar. — O que é? — perguntou o Monge, lendo. — Aqui está descrito o acidente. A curva, a velocidade do veículo, o aparente desvio para evitar a colisão. — Está no final. E menciona a morte no Gemeinschaft; o ferrolho da arma, que nos fez de bestas. — Menciona? — Abbott virou a ágina. — Olhe só. As últimas duas frases. Vê o que quero dizer? — Não exatamente — replicou Abbott, enrugando a testa. — Aqui apenas declara que Koenig era empregado do Banco Gemeinschaft, onde recentemente tivera lugar um homicídio... e ele fora testemunha do início do tiroteio. Isso é tudo. — Não acho que seja “tudo” — disse Webb. — Creio que havia mais alguma coisa. Alguém começou a levantar uma questão, mas ela ficou no ar. Eu gostaria de descobrir quem tem o lápis vermelho para riscá-lo dos noticiários policiais de Zurique. Podia ser um homem de Carlos; sabemos que ele tem um homem lá. O Monge recostou-se na cadeira, a testa enrugada. — Digamos que você esteja certo; por que a referência toda não foi omitida? — Muito óbvio. A morte realmente aconteceu; Koenig era uma testemunha; o oficial de investigação que escreveu o relatório teve, legitimamente, que perguntar por quê. — Mas se ele especulou sobre algum contato não estaria perturbado que a informação fosse omitida?
— Não necessariamente. Estamos falando sobre um banco na Suíça. Certas áreas são oficialmente invioláveis, a menos que haja provas. — Nem sempre. Acho que você se saiu muito bem com os jornais. — Não-oficialmente. Apelei para o jornalismo sensacionalista e libidinoso, e — embora quase o tenha matado — consegui que Walther Apfel corroborasse uma metade. — Interrupção — disse Elliot Stevens. — Acho que é aqui que o Escritório Oval tem que entrar. Presumo, pelos jornais, que você está se referindo à mulher canadense. — Na verdade não. Essa história já tinha saído; não pudemos detê-la. Carlos está ligado à polícia de Zurique; foram eles que lançaram aquela reportagem. Simplesmente a ampliamos e a ligamos a uma história igualmente falsa sobre milhões que tinham sido roubados do Gemeinschaft. — Webb fez uma pausa e olhou para Abbott. — Precisamos conversar sobre isso; pode não ser falsa, afinal de contas. — Não posso acreditar nisso — disse o Monge. — Não quero acreditar — respondeu o major. — Nunca. — Você se importaria de retroceder? — perguntou o auxiliar da Casa Branca, sentado do lado oposto do oficial do Exército. — Tenho que saber disso tudo muito bem. — Deixe-me explicar — interrompeu Abbott, percebendo o espanto no rosto de Webb. — Elliot está aqui a mando do presidente. É sobre a morte no aeroporto de Ottawa. — É uma confusão horrível — disse Stevens secamente. — O Primeiro-Ministro quase disse ao Presidente para retirar as nossas estações da Nova Escócia. É um canadense fanático. — E como foi que ficou? — perguntou Webb. — Muito mal. Tudo o que sabem é que um economista de carreira, do Ministério da Fazenda, andou fazendo umas discretas indagações sobre uma corporação americana não registrada e acabou sendo morto por causa disso. Para piorar as coisas, o serviço de inteligência canadense foi informado que devia ficar fora disso tudo; porque tratava-se de uma operação americana altamente confidencial. — Quem fez isso? — Acho que ouvi o nome Iron Ass aparecendo por aqui e ali — disse o Monge. — O General Crawford? Aquele estúpido cu-de-ferro, filho da puta! — Pode imaginar? — disse Stevens espantado. — O homem deles é morto e nós temos a audácia de lhes dizer para ficarem de fora. — Ele estava certo, é claro — corrigiu Abbott. — Tinha que ser feito com calma, sem lugar para
desentendimentos. Tinha que ser posta uma tenaz imediatamente, o choque tinha que ser suficientemente ultrajante pan deter tudo. Isso me deu tempo para chegar a MacKenzie Hawkins — Mac e eu trabalhamos em Burma, ele agora está aposentado, mas eles ainda o ouvem com respeito. Estão cooperando conosco agora, e isso é o mais importante, não é? — Há outras considerações, senhor Abbott — protestou Stevens. — Eles estão em níveis diferentes, Elliot. Nós, trabalhadores durões, estamos calejados; não precisamos perder tempo com cenas diplomáticas. Garanto-lhe que estas poses são necessárias, mas não fazem parte do nosso ofício, não é uma preocupação nossa. — Mas é uma preocupação do Presidente, senhor. Isso faz parte do seu trabalho duro de cada dia. E é por isso que tenho que voltar com um bom apanhado dos fatos, com um quadro muito claro. — Stevens fez uma pausa e virou-se para Webb. — Agora, por favor, deixe-me rever tudo. Mais exatamente, o que você fez e por quê? Que papel desempenhamos com relação a essa mulher canadense? — De início, nada mesmo. Isso foi uma iniciativa de Carlos. Alguém do alto escalão da polícia de Zurique está na lista de pagamento de Carlos. Foi a polida de Zurique quem levantou essa prova evidente, ligando-a às três mortes. E isso é burlesco; ela não é nenhuma assassina. — Está bem, está bem — disse o auxiliar. — Isso, então, pertence a Carlos. Por que ele fez isso? — Para fazer Bourne aparecer. Bourne e St. Jacques estão juntos. — Bourne é este assassino que se chama a si mesmo de Caim, certo? — Sim — disse Webb. — Carlos jurou matá-lo. Caim tem se movimentado muito próximo de Carlos por toda a Europa e Oriente Médio, mas não há nenhuma fotografia dele, ninguém realmente sabe como ele é. Assim, fazendo circular uma foto grafia da mulher — e deixe-me dizer-lhes, está em todos os jornais de lá —, alguém talvez possa localizá-la. Se ela for encontrada, as chances são de que Caim — Bourne — também o seja. E Carlos matará os dois. — Certo. De novo esse Carlos. E agora, o que você fez? — O que eu disse. Fui até o Gemeinschaft e convenci o banco a confirmar o fato de que a mulher devia — apenas devia — ser ligada ao roubo. Não foi fácil, mas afinal foi o homem deles, o tal de Koenig, quem foi subornado, não foi nenhum dos nossos. Essa é uma questão interna; eles querem pôr fim a isso tudo. Depois, chamei os jornais e indiquei Walther Apfel. Mulher misteriosa, assassinato, milhões roubados; os editores pularam em cima. — Por Cristo, por quê? — gritou Stevens. — Você usou uma cidadã de outro país para uma estratégia do serviço de inteligência dos Estados Unidos! Uma funcionária de um Governo aliado. Estão loucos? Apenas exacerbaram a situação, vocês a sacrificaram! — Você está errado — disse Webb. — Estamos tentando salvar a vida dela. Viramos a arma de Carlos contra ele mesmo.
— Como? O Monge levantou a mão. — Antes de respondermos, temos que voltar a outro assunto. Porque a resposta a isso pode lhe dar uma indicação de como essa informação deve permanecer reservada. Alguns momentos atrás perguntou ao major como o homem de Carlos podia ter encontrado Bourne — encontrado a fiche, que identificava Bourne como Caim. Acho que já sei, mas quero que ele mesmo lhe conte. Webb inclinou-se para a frente. — Os registros da Operação Medusa — disse baixo e com certa relutância. — Medusa...? — A expressão de Stevens escondia o fato de que a Medusa fora o assunto das minutas anteriores e confidenciais da Casa Branca. — Estão enterrados todos os registros — disse. — Uma correção — interrompeu Abbott. — Há ainda um original e duas cópias, que andam às voltas entre o Pentágono, a CIA e o Conselho de Segurança Nacional O acesso a eles é privilégio de um grupo selecionado, que está entre os membros mais graduados de cada unidade. Bourne saiu da Medusa; uma revisão dos nomes da Medusa e dos registros bancários revelou seu nome. Alguém deu o registro a Carlos. Stevens olhou espantado para o Monge. — Está querendo dizer que Carlos está... ligado a... a homens dessa espécie? É uma afirmação extraordinária. — É a única explicação — disse Webb. — Mas por que Bourne usaria o seu próprio nome? — Foi necessário — respondeu Abbott. — Era uma parte vital do retrato. Tinha que ser autêntico; tudo tinha que ser autêntico. Tudo. — Autêntico? — Talvez agora você possa entender — continuou o major. — Ao ligar St. Jacques aos milhões supostamente roubados do Gemeinschaft, estamos tentando dizer a Bourne que apareça. Ele sabe que não é verdade. — Para Bourne aparecer? — O homem chamado Jason Bourne — disse Abbott, levantando-se e caminhando devagar em direção às cortinas — é um funcionário americano do Serviço de Inteligência. Não existe nenhum Caim, não o que Carlos acredita existir. É uma isca, uma cilada para Carlos; isso é o que ele é. Ou foi. O silêncio foi breve, quebrado logo em seguida pelo homem da Casa Branca. — Acho melhor que se explique. O Presidente tem que saber. — Acho que sim — murmurou Abbott, abrindo as cortinas e olhando para fora com ar ausente. — É um dilema insolúvel, na verdade. Os presidentes mudam, homens diferentes de apetites diferentes
se sentam no Salão Oval. No entanto, uma longa fileira de estratégias do Serviço de Inteligência não muda; não uma estratégia como essa. Mesmo assim, uma observação improvisada, feita em frente a um copo de uísque numa conversação pós-presidencial, ou uma frase egoísta escrita num livro de memórias, pode mandar esta mesma estratégia diretamente para o inferno. Não há um dia sequer em que não nos preocupemos com esses homens que sobreviveram à Casa Branca. — Por favor — interrompeu Stevens — Peço-lhes que se lembrem que estou aqui a mando do atual presidente. Se o aprovam ou não, não importa. Ele tem o direito, por lei, de saber. E em seu nome, insisto neste direito. — Muito bem — disse Abbott, ainda olhando para fora. — Há três anos tomamos emprestada uma página da história dos britânicos. Criamos um homem que nunca existiu. Se você se lembra, antes da invasão da Normandia, o serviço de inteligência britânico fez boiar um corpo na costa de Portugal, sabendo que quaisquer documentos escondidos nele encontrariam imediatamente o caminho da Embaixada alemã, em Lisboa. Uma vida foi criada para aquele corpo morto; um nome, uma graduação como oficial da Marinha, escolarização, treinamentos, passagens e licenças de viagem, carteira de motorista, cartões diversos de clubes privés de Londres e uma meia dúzia de cartas pessoais. Espalharam-se boatos e suposições, alusões vagas, e algumas referências mais diretas, cronológicas e geográficas. Tudo mostrando a invasão que estava sendo preparada a cem milhas de distância das praias da Normandia, seis semanas antes da data prevista para a invasão, em junho. Depois que os agentes alemães efetuaram intensas buscas por toda a Inglaterra — e, incidentalmente, controladas e monitorizadas pelo MI-5 —, o Alto Comando de Berlim engoliu a história e deslocou uma grande parte das suas defesas. Mais do que as que foram perdidas, milhares e milhares de vidas foram salvas por esse homem, que nunca existiu. — Abbott soltou a cortina e caminhou cansadamente de volta para a sua cadeira. — Já ouvi esta história — se o auxiliar da Casa Branca..—E? — A nossa foi uma variação dessa — disse o Monge, enquanto se sentava. — Criamos um homem vivo, uma lenda rapidamente espalhada, aparecendo em todos os cantos ao mesmo tempo, atravessando todo o Sudeste da Ásia, superando Carlos a todo instante, especialmente quanto à quantidade de feitos. Sempre que havia uma morte, uma morte inexplicada, ou uma figura proeminente envolvida em uma morte inexplicável, em um acidente fatal, lá estava Caim. Fontes de confiança — informantes pagos para cumprir um trabalho cuidadoso — alimentaram o seu nome; embaixadas, postos de escuta, redes inteiras do Serviço de Inteligência eram repetidamente levadas a comunicar relatórios que se concentravam nas atividades de Caim, rapidamente em expansão. As suas “mortes” aumentavam mensalmente; às vezes semanalmente. Ele estava em todos os lugares... e existia. De maneira completa. — Você quer dizer que este Bourne existia? — Sim. Gastou muitos meses aprendendo tudo o que existia sobre Carlos, estudando todos os arquivos que tínhamos, todos os assassinatos em que Carlos estivera envolvido. Estudou atentamente todas as táticas de Carlos, seus métodos de operação, tudo. A maior parte desse material nunca viu a luz do dia, e provavelmente nunca verá. É explosivo — governos e ligações internacionais se comeriam. Não havia nada, literalmente, que Bourne não conhecesse — do que podia ser conhecido — sobre Carlos; Em seguida, começou a aparecer, sempre com aparência diferente, falando muitas línguas,
falando sobre coisas, para círculos selecionados de criminosos empedernidos, que apenas um matador profissional falaria. Depois desapareceu, deixando atrás de si o medo, homens e mulheres assustados. Tinham visto Caim; existia, e era impiedoso. Era essa a imagem que Bourne transmitia. — Ele viveu assim durante três anos? — perguntou Stevens. — Sim. Mudou-se para a Europa, era o mais completo assassino branco da Ásia, graduado pela infame Medusa, desafiando Carlos no seu próprio território. E durante esse processo salvou quatro homens marcados por Carlos, roubou os créditos de outras mortes feitas por Carlos, zombou dele em todas as oportunidades... Sempre tentando forçá-lo a aparecer. Passou quase três anos vivendo essa espécie de mentira, a mais perigosa que um homem pode viver, vivendo uma existência que apenas muito poucos homens podem conhecer. A maioria teria se acabado; e essa possibilidade não está fora de cogitações. — Que espécie de homem ele é? — Um profissional — respondeu Gordon Webb. — Alguém que tem treino e capacidade e que achava que Carlos deve ser descoberto e detido. — Mas três anos...? — Se isso parece incrível — disse Ahbou —, você tem que saber ainda que ele submeteu-se a uma cirurgia. Foi como um último adeus ao passado, uma despedida do homem que era para ser o homem que não era. Acho que não há uma forma de uma nação poder pagar um homem como Bourne pelo que ele fez. Talvez a única forma seja dar-lhe a chance de se sair bem — e, por Deus, tenho a intenção de fazer isso. — O Monge parou de falar exatamente durante dois segundos, depois acrescentou. — Se ele é Bourne. Era como se Elliot Stevens tivesse sido batido com um martelo invisível. — O que disse? — perguntou. — Acho que segurei isso até o fim. Quero que entenda o quadro todo antes que eu lhe descreva a falha — que pode não ser uma falha —, ainda não sabemos. Muitas coisas aconteceram, muitas coisas que não fazem sentido, mas não sabemos de nada ainda. Esta é a razão pela qual não pode haver nenhuma interferência dos demais escalões, nada de pílulas açucaradas da diplomacia, que poderiam pôr a descoberto a estratégia toda. Podemos condenar um homem à morte, um homem que nos deu muito mais do que a maioria. Se ele se sair bem, talvez possa voltar para a sua própria vida, anonimamente, sem que a sua identidade seja revelada. — Gostaria que me explicasse is — disse o atônito auxiliar da Presidência. — Lealdade, Elliot, não deve ficar restrita apenas aos que comumente são chamados de “bons meninos”. Carlos conseguiu formar uma militância de homens e mulheres que lhe são completamente devotados. Podem não conhecê-lo, mas o reverenciam. No entanto, se ele puder pegar Carlos — ou armar-lhe uma cilada, para que possamos pegá-lo — e depois sumir, poderá voltar livre para casa. — Mas você disse que ele pode não ser Bourne!
— Eu disse que não sabemos. Era Bourne no banco, as assinaturas eram autênticas. Mas será ainda Bourne? Os próximos dias nos dirão isso. — Se ele aparecer — acrescentou Webb. — É um assunto delicado — continuou o idoso homem. — Há tantas variáveis! Se ele não é Bourne — ou se ele mudou-se para o outro lado — isso explicaria a chamada para Ottawa e a morte no aeroporto. Pelo que podemos deduzir, o conhecimento da mulher foi usado para retirar o dinheiro de Paris. Tudo o que Carlos teve que fazer foi inquirir do Ministério da Fazenda do Canadá algumas coisas. O resto é brincadeira de criança para ele. Matar o contato, deixá-la em pânico, interceptá-la e usá-la para conter Bourne. — Você tem possibilidade de lhe mandar uma mensagem? — perguntou o major. — Tentei e falhei. Fiz com que MacHawkins telefonasse a um homem que também trabalhou com St. Jacques, um homem chamado Alan qualquer-outra-coisa. Ele instruiu-a para voltar ao Canadá imediatamente. Mas ela desligou o telefone. — Diabos! — explodiu Webh. — Exatamente. Se pudéssemos tê-la feito voltar, já estaríamos sabendo de tanta coisa! Ela é a chave. Por que ela está com ele? E ele com ela? Nada faz sentido. — Muito menos para mim — disse Stevens. Seu espanto transformou-se em raiva. — Se quer a cooperação do Presidente — nada prometo — é melhor ser mais claro. Abbott virou-se para ele. — Há seis meses, Bourne desapareceu — disse. — Alguma coisa aconteceu, e não temos certeza do que foi, mas podemos montar um quadro de probabilidades. Ele disse em Zurique que ia para Marselha. Tarde — muito tarde — fomos entender. Ficou sabendo que Carlos aceitara um contrato pan matar Howard Leland e tentou impedi-lo. Depois mais nada; desapareceu. Foi morto? Teria tido um colapso pela tensão? Teria... desistido? — Não posso aceitar isso — interrompeu Webb iradamente. — Não vou aceitar! — Sei que não — disse o Monge. — É por isso que quero que você examine aquele arquivo. Você conhece os códigos dele; ainda estão todos lá. Veja se consegue perceber alguns desvios em Zurique. — Por favor! — interrompeu Stevens. — O que você acha? Já deve ter encontrado alguma coisa concreta, alguma coisa com a qual posso fazer um julgamento. Preciso disso, senhor Abbott. O Presidente precisa. — Como eu gostaria de ter! — respondeu o Monge. — O que encontramos? Tudo e nada. Foram quase três anos da mais cuidadosa e bem-sucedida decepção dos nossos registros. Todos os atos falsos foram documentados, todos os movimentos, definidos e justificados; cada homem e mulher — informantes, contatos e fontes — ganhou um rosto, uma voz e uma história para contar. A cada mês, a cada semana, estávamos um pouco mais próximos de Carlos. Depois, nada. Silêncio. Seis meses de um
grande vazio silencioso. — Não agora — se opôs o auxiliar do Presidente. — O silêncio foi quebrado. Por quem? — Essa é a pergunta básica, não é? — disse o idoso homem, com a voz cansada. — Meses de silêncio, de repente uma explosão de atividades não autorizadas e incompreensíveis. A conta foi mexida, a fiche alterada, milhões transferidos — aparentemente roubados. E, acima de tudo, muitos homens foram mortos e muitas armadilhas preparadas para outros tantos homens. Mas para quem, por quem? — O Monge meneou a cabeça cansado. — Quem é este homem que está lá?
Capítulo20 A limusine estava estacionada entre dois postes, do outro lado da rua, em frente às portas pesadas e bem-decoradas da casa de granito escuro. No banco da frente estava o chofer uniformizado; essa era uma visãO comum naquela rua ladeada.de árvores. Incomum, no entanto, era o estranho fato de dois homens estarem sentados no banco de trás, sem fazer qualquer movimento e sem a intenção aparente de descerem do carro. Pareciam estar vigiando a entrada da casa, confiantes de estarem longe do alcance das lentes de uma câmara de infravermelho. Um dos homens ajustou os óculos no rosto, os olhos por trás das grossas lentes pareciam os de uma coruja, suspeitando de tudo o que inspecionavam. Alfred Gillette, o diretor do Departamento de Arregimentação e Avaliação de Pessoal, do Conselho de Segurança Nacional, falou: — Como vai ser gratificante estar lá quando toda aquela arrogância se derreter. E melhor ainda é ser o instrumento. — Você realmente o detesta, não é? — disse o companheiro de Gillette, um homem de ombros largos, vestido com uma capa de chuva preta, com um acento eslavo de alguma parte da Europa. — Abomino-o. Ele significa tudo o que odeio em Washington. As escolas certas, casas em Georgetown, fazendas na Virgínia, calmos encontros nos clubes privados. Eles têm aquele mundinho fechado e você não pode se intrometer — eles mandam em tudo. Os bastardos! A pequena nobreza superior e convencida de Washington. Usam os intelectos dos outros, o trabalho dos outros, tudo de acordo com as decisões que trazem apenas o imprimatur deles. E se você está de fora, se torna parte daquela entidade amorfa, um “excelente quadro de auxiliares”. — Você exagera — disse o europeu, os olhos postos na casa. — Você não se saiu mal por lá. Do contrário, nunca poderíamos ter entrado em contato com você. Gillette franziu a testa. — Se não me saí mal é porque me tornei indispensável a muitos, como David Abbott. Tenho em minha cabeça um milhão de informações e fatos de que eles não podem lembrar-se. É simplesmente muito mais fácil para eles me colocarem onde estão as perguntas, onde os problemas precisam de soluções. Diretor de Arregimentação e Avaliação de Pessoal. Criaram esse título, esse posto, para mim. E sabe por quê? — Não, Alfred — respondeu o europeu, olhando para o relógio — não sei por quê. — Porque não têm paciência de gastar e horas estudando e lendo centenas de resumos e dossiês. Preferem jantar no Sans Souci ou ataviar-se em frente às comissões do Senado, lendo as páginas preparadas por outros — por esses desconhecidos e anônimos, que pertencem ao “excelente quadro de auxiliares”. — Você é um homem amargo — disse o europeu. — Mais do que você imagina. Uma vida toda fazendo o trabalho que esses bastardos deviam fazer por si mesmos. E para quê? Um título e um almoço ocasional onde o meu cérebro é espicaçado entre o camarão e a entrada! Por homens como este arrogante David Abbott. Eles não são nada sem
pessoas como eu. — Não subestime o Monge. Carlos não o subestima. — Mas como? Ele não tem o que avaliar. Tudo o que Abbott faz é em segredo; ninguém sabe quantos equívocos já cometeu. E se algum vem à luz, homens como eu são considerados os culpados. O europeu deixou de olhar pela janela e encarou Gillette. — Você é muito emocional, Alfred — disse friamente. — Tem que ter muito cuidado com isso. O burocrata sorriu. — Nunca atrapalha: acho que as minhas contribuições para Carlos farão tudo isso desaparecer. Digamos que estou me preparando para um confronto que jamais evitaria por nada deste mundo. — Uma declaração honesta — disse o homem de ombros largos. — E você? Você me encontrou. — Eu sabia o que procurava. — O europeu voltou a olhar pela janela. — Refiro-me a você. Ao trabalho que você faz. Para Carlos. — Não tenho razões assim tão complicadas. Vim de um país onde os homens cultos são promovidos pelo capricho de alguns débeis mentais que recitam a litania marxista de cor. Carlos também sabia o que procurava. Gillette riu, os olhos quase brilhando. — Não somos tão diferentes, afinal de contas. Mude as linhas-mestras do nosso sistema ocidental para Marx e está feito um paralelo. — Talvez — concordou o europeu, olhando de novo para o relógio. — Não deve demorar mais. Abbott sempre toma o avião da meia-noite, ele presta conta de horário, em Washington. — Está certo de que ele virá sozinho? — Sempre sai sozinho. E, por certo, não deverá ser visto com Elliot Stevens. Webb e Stevens também vão sair separada- mente; a intervalos de vinte minutos, como saem todos os que são chamados. — Como você encontrou a Treadstone? — Não foi muito difícil. Você contribuiu, Alfred; você fazia parte do excelente quadro de auxiliares. — O homem riu; os olhos estavam postos fixamente na casa. — Caim saíra da Medusa, você nos disse isso; e se as suspeitas de Carlos estão certas, isso significa que temos aí a mão do Monge, nós sabíamos disso; isso o ligava a Bourne. Carlos nos instruiu para manter Abbott sob vigilância ininterrupta. Alguma coisa saiu errada. Quando aqueles tiros em Zurique foram ouvidos em Washington, Abbott ficou descuidado. E o seguimos até aqui. Era apenas uma questão de persistência. — Isso o levou até o Canadá? Ao homem em Ottawa?
— O homem em Ottawa se revelou por si mesmo, quando procurou a Treadstone. Quando ficamos sabendo quem era a moça, passamos a vigiar o Ministério da Fazenda, principalmente a seção dela. Uma chamada foi feita de Paris; era ela pedindo-lhe que começasse uma pesquisa. Não sabemos por que, mas desconfiamos que Bourne estivesse tentando dividir a Treadstone. Se ele mudou de lado, esta é a forma de se desvincular e ficar com todo o dinheiro. Não tem importância. De repente, o cabeça desta seção, de quem ninguém fora do Governo do Canadá ouvira falar antes, foi transformado em um problema da maior prioridade. As informações do Serviço de Inteligência estavam queimando os contatos. Isso significava que Carlos estava certo; que você estava certo, Alfred. Não existe nenhum Caim. Ele é uma invenção, uma armadilha. — Desde o começo — insistiu Gillette. — Eu lhe disse isso. Foram três anos de relatos falsos e fontes inverídicas. Está tudo lá. — Desde o começo — murmurou o europeu. — Sem dúvida, a maior criação do Monge... até que alguma coisa aconteceu e a sua criação se transformou. Tudo se transformou; todas as fendas se abriram. — E o fato de Steven estar aqui confirma tudo. O Presidente insiste em saber de tudo. — Ele tem que saber. Há uma incômoda suspeita em Ottawa de que o chefe de uma seção do Ministério da Fazenda foi morto pelo Serviço de Inteligência americano. — O europeu desviou o olhar da janela e olhou para o burocrata. — Lembre-se, Alfred, simplesmente queremos saber o que aconteceu. Apresentei-lhe os fatos como conhecemos; eles são irrefutáveis e Abbott não pode negá-los. Mas devem ser apresentados como se fossem obtidos independentemente, por suas próprias fontes. Você está apavorado, exige um relato, todo o Serviço de Inteligência foi enganado. — E foi! — exclamou Gillette. — Enganado e usado. Ninguém em Washington sabe de alguma coisa sobre Bourne, ou sobre a Treadstone. Excluíram todos os demais; isso é apavorante. Nem preciso enganar. Esses arrogantes bastardos! — Alfred — avisou o europeu, levantando a mão no escuro — lembre-se para quem está trabalhando. A ameaça não pode ser baseada na emoção, mas em uma afronta fria e profissional. Ele logo vai suspeitar de você; e você deve desfazer imediatamente toda suspeita. Você é o acusador, não ele. — Lembrar-me-ei. — Ótimo. — Luzes de faróis apareceram no vidro. — O táxi de Abbott chegou. Tomo conta do motorista. — O europeu se inclinou para a direita e apertou um botão que ficava debaixo do descanso do braço, na porta. — Estarei no meu carro, do outro lado da rua, ouvindo. — Falou com o chofer, em seguida. — Abbott logo estará saindo. Você já sabe o que fazer. O chofer balançou a cabeça. Os dois homens saíram da limusine ao mesmo tempo. O motorista deu a volta no carro, como se fosse escoltar um patrão rico até o lado Sul da rua. Gillette olhou pela janela de trás; os dois homens ficaram juntos por alguns segundos, depois se separaram, o europeu avançou para o táxi, que se aproximava, a mão levantada, uma nota entre os dedos. O táxi seria
dispensado; quem o chamara havia mudado de idéia. O chofer correu para o lado Norte da rua e estava agora escondido nas sombras da escadaria, duas portas depois da Treadstone Seventy One. Trinta segundos mais tarde os olhos de Gillette se dirigiram para a porta da casa. Uma luz saiu pela porta, enquanto um David Abbott impaciente saía à rua, olhando para um lado e para outro, depois para o relógio, um pouco preocupado. O táxi estava atrasado e ele tinha que pegar um avião; seus rígidos esquemas deviam ser seguidos. Abbott desceu os degraus, virou à esquerda na calçada, procurando o táxi, na expectativa de sua chegada. Em alguns segundos ele passaria pela frente do motorista. Passou, os dois homens estavam fora do alcance das lentes da câmara. Foi interceptado rapidamente, a discussão rápida. Dali a instantes, um David Abbott completamente aturdido entrava na limusine, e o motorista desaparecera. — Você! — disse o Monge. Tinha raiva e revolta na voz. — De todos, você! — Não acho que você esteja em posição de ser desdenhoso... e muito menos arrogante. — O que você fez! Como ousa? Zurique. Os registros da Medusa Foi você! — Os registros da Medusa, sim. Zurique, também. Mas não se trata de saber o que eu fiz; tratase de saber o que você fez. Mandamos os nossos próprios homens para Zurique dizendo-lhes o que procurar. Descobrimos. O nome dele é Bourne, não é? É o homem que você chama de Caim. O homem que você inventou. Abbott manteve-se de sobreaviso. — Como conseguiu descobrir esta casa? — Persistência. Mandei segui-lo — Mandou que me seguissem? O que pensa que está fazendo? — Tentando obter uma declaração direta. Uma declaração sobre o que você tramou e sobre o que mentiu, sem nos contar a verdade. O que pensa que estava fazendo? — Oh, meu Deus! Seu tolo! — Abbott respirou profundamente. — Por que fez isso? Por que você mesmo não me procurou? — Porque você não fez nada. Você manipulou toda a comunidade do Serviço de Inteligência. Milhões de dólares, milhares de horas de trabalho de homens, embaixadas, estações alimentadas com mentiras e distorções sobre um assassino que nunca existiu. Oh, lembro-me de suas palavras — que desafio a Carlos! Que armadilha irresistível! Só que nós também fomos os seus joguetes e, como membro responsável pelo Conselho de Segurança, ofendi-me profundamente com isso. Vocês todos são iguais. Quem os elegeu Deus para que pudessem quebrar assim as regras — não, não apenas as regras, mas as leis, também — e nos fazer passar por palhaços? — Não havia outro jeito — disse o velho, cansado; o rosto era uma massa de gretas na luz fraca. — Quantos sabem? Diga-me a verdade.
— Tentei conter a informação. Isso eu lhe dei de presente. — Pode não ser o suficiente. Oh, Cristo! — Pode não durar, questão de tempo — disse o burocrata enfaticamente. — Quero saber o que aconteceu. — O que aconteceu? — Com essa grande estratégia de vocês. Parece ter... rasgado nas costuras. — Por que diz isso? — É perfeitamente óbvio. Você perdeu Bourne; não pode encontrá-lo. O seu Caim desapareceu com uma fortuna que estava a seu dispor num banco em Zurique. Abbott ficou em silêncio por um minuto. — Espere aí. O que ligou você a isso? — Você — disse Gillette depressa. Estava prudentemente chegando à pergunta-isca. — Devo dizer que admirei o seu controle quando aquele asno do Pentágono falou tão sabiamente sobre a Operação Medusa... sentado diretamente em frente ao próprio homem que a criou. — História! — A voz do velho cresceu forte. — Aquilo nada lhe teria explicado. — Digamos que foi muito incomum você não dizer nada. Quero dizer, quem naquela mesa sabia mais sobre a Medusa do que você? Mas você, não dizer uma só palavra? Isso me fez pensar. Assim, neguei veementemente a atenção que estava sendo dada a este assassino, Caim. Você não podia resistir, David. Você tem que me dar uma razão muito plausível para continuar a procura. Caim. Você jogou Carlos na caça. — Era verdade — interrompeu Abbott. — Certamente que sim; você sabia quando usar esse estratagema e eu sabia quando enfocá-lo. Bem engenhoso. Uma cobra saindo da cabeça da Medusa, sustentada por um título mítico. O contendor se atira no ringue do campeão para tirá-lo do seu canto. — Foi tudo dito desde o início, desde o início. — Por que não? Como estou dizendo, foi muito engenhoso, até o último momento, feito por sua própria gente contra Caim. Quem melhor para fazer isso, para relacionar os movimentos a Caim, senão o único homem no Comitê dos Quarenta que tem todos os relatórios de todas as conferências das operações secretas. Você nos usou a todos! O Monge assentiu com a cabeça. — Muito bem. Até certo ponto você tem razão, houve alguns graus de abuso — em minha opinião, totalmente justificados —, mas não é o que você pensa. Há considerações e balanços a fazer; sempre há, não acho que possa ser diferente. Treadstone é composta por um pequeno grupo de homens que estão entre os de maior confiança do Governo. São da Força G-
Dois, do Senado, da CIA, do Serviço de Inteligência Naval e até, francamente, da Casa Branca. Se existisse algum abuso sério, nenhum deles hesitaria em deter a operação. Nenhum jamais tentou fazer isso, e peço-lhe para não fazê-lo, também. — Eu viria a fazer parte da Treadstone? — Você já faz parte dela agora. — Compreendo. O que aconteceu? Onde está Bourne? — Gostaria de saber. Nem mesmo temos certeza de que ele seja Bourne. — Você nem mesmo tem certeza de quê?! — Compreendo. O que aconteceu? Onde está Bourne? — Gostaria de saber. Nem mesmo temos certeza de que ele seja Bourne. — Você nem mesmo tem certeza de quê?! O europeu desligou o botão do painel. — É isso — disse. — É isso que precisávamos saber. — Ele virou-se para o chofer ao seu lado. — Rápido, agora. Vá até a escada. Lembre-se, se algum deles sair, você tem precisamente três segundos antes que a porta se feche. Trabalhe rápido. O homem uniformizado desceu primeiro; atravessou a calçada em direção à Treadstone Seventy One. De uma das casas vizinhas um casal de meia-idade se despedia em voz alta dos seus anfitriões. O chofer diminuiu o passo, procurou um cigarro no bolso, parou para acendê-lo. Agora fazia o papel de um enfastiado motorista matando o tempo daquela tediosa vigília. O europeu olhou, depois desabotoou a capa e tirou um revólver de cano longo com um silenciador. Destravou-o e enfiou a arma de volta no coldre; depois saiu do carro e atravessou a rua até a limusine. Os espelhos haviam sido postos no ângulo certo; estando no ponto cego, não havia possibilidade de que um dos homens pudesse vê-lo se aproximar. O europeu fez uma parada rápida na parte de trás do carro e depois estendeu a mão e abriu a porta da frente, do lado direito, entrando imediatamente. Apontou a arma por cima do assento. Alfred Gillette engoliu em seco, a mão esquerda tentava alcançar o trinco da porta. O europeu travou o comutador de quatro contatos que trancava a porta. David Abbott permaneceu imóvel, olhando espantado para o invasor. — Boa noite, Monge — disse o europeu. — Outra pessoa, de quem ouço dizer que sempre veste um hábito de religioso, lhe envia as congratulações. Não apenas por Caim, mas pela sua administração pessoal da Treadstone. O Iatista, por exemplo. Já foi uma vez um agente superior. Gillette conseguiu falar; era uma mistura de grito e sussurro. — O que é isto? Quem é você? — gritou, simulando ignorar a situação. — Oh, deixe isso pra lá, meu amigo. Isso não é necessário — disse o homem armado. — Posso ver pela expressão do senhor Abbott que ele já percebeu que as dúvidas que tinha sobre você são reais.
A gente sempre deve acreditar nas primeiras intuições, não é, Monge? Você estava certo, é claro, é claro. Encontramos outro homem descontente; o seu sistema os reproduz com uma rapidez alarmante. Ele, realmente, nos deu os arquivos da Medusa; e eles, sem dúvida, nos levaram a Bourne. — O que está fazendo? — gritou Gillette. — O que está dizendo! — Você é um chato, Alfred. Mas sempre fez parte de um excelente quadro de auxiliares. É muito mau que não tenha escolhido com qual dos quadros ficar; a sua espécie nunca escolhe mesmo. — Seu!... — Gilete levantou-se do assento, o rosto contorcido. O europeu atirou, a arma fez um ruído surdo e curto no interior da limusine. O burocrata tombou, o corpo desmoronou contra a porta, os olhos de coruja arregalados para a morte. — Acho que você não o lamenta — disse o europeu. — Não — respondeu o Monge. — É Bourne quem está lá, sabe. Caim mudou de lado, acabou-se. O longo período de silêncio terminou. A cobra da cabeça da Medusa resolveu dar o bote sozinha. Ou talvez tenha sido comprado. Isso também é possível, não é? Carlos compra muitos homens, o que está agora aos seus pés 6 um exemplo. — Você não saberá nada de mim. Nem tente. — Não há nada para saber. Já sabemos tudo. Delta, Charlie... Caim. Mas os nomes não são mais importantes; nunca foram, na verdade. Tudo o que resta é isolá-lo — apartar o frade que toma as decisões. Você. Bourne está em uma armadilha. Ele está acabado. — Há outros que tomam decisões. Ele os alcançará. — Se fizer isso, eles o matarão. Não há nada mais desprezível do que um homem que muda de lado, mas para que um homem possa ser considerado traidor, tem que haver prova irrefutável de que ele tenha permanecido fiel, para inicio de conversa. Carlos tem esta prova, ele era seu, suas origens são tão confidenciais quanto tudo o mais nos arquivos da Medusa O velho franziu a testa; estava com medo, não pela sua vida, mas por causa de uma coisa infinitamente mais indispensável. — Você está louco — disse. — Não há prova. — Esta é a falha, a sua falha. Carlos é perfeito, os seus tentáculos alcançam todos os recessos escondidos. Você precisava de um homem da Medusa, alguém que tivesse vivido e desaparecido. Escolheu um homem chamado Bourne porque as circunstâncias do seu desaparecimento haviam sido apagadas, eliminadas de todos os registros existentes — assim você pensava. Mas não levou em conta o próprio pessoal de campo de Hanói, que se infiltrou na Medusa; esses registros existem. No dia 25 de março de 1968, Jason Bourne foi executado por um oficial da Inteligência americana nas florestas de Tam Quan.
O Monge fez um movimento para a frente, Não havia nada a fazer senão um último gesto, um último desafio. O europeu atirou. A porta da casa se abriu. O motorista sorriu, escondido nas sombras da escadaria. O auxiliar da Casa Branca estava sendo acompanhado pelo velho que vivia na Treadstone, o que eles chamavam Iatista. O matador sabia que isso significava que os alarmes básicos estavam desligados. Três segundos se passaram. — Foi bom ter aparecido — disse o Iatista, apertando mão do auxiliar. — Obrigado, senhor. Estas foram as últimas palavras que os dois homens disseram. O motorista fez pontaria por cima do muro de tijolos e apertou o gatilho duas vezes. Os dois tiros abafados pareciam ruídos indistintos, sufocados pelo barulho da cidade ao longe. O Iatista caiu para dentro da casa; o auxiliar da Casa Branca pôs a mão no peito e rodou para dentro da soleira da porta. O motorista deu a volta pelo muro de tijolos e correu em direção aos degraus, segurando o corpo de Stevens antes que ele caísse. Com força de touro, o matador levantou o homem da Casa Branca jogando-o de volta para dentro do foyer, um pouco mais longe do Iatista. Depois virou-se para dentro da porta pesada, de chapa de aço. Sabia o que procurar, e encontrou. Em toda a extensão das almofadas da porta, subindo até a parede, havia um cabo grosso, da mesma cor da porta. Fechou a porta, levantou a arma e atirou no cabo, que começou a soltar fagulhas e ruídos de estática; as câmaras de segurança tinham sido destruídas, as telas deviam estar escuras. Depois abriu a porta para fazer um sinal. Nem foi necessário. O europeu atravessava rapidamente a rua. Em segundos ele já subira os degraus e entrara, olhando em volta para o foyer e o corredor — depois para a porta no final do corredor. Juntos os dois homens levantaram do chão um tapete, o europeu fechou a porta amassando o tapete, unindo o pano ao aço, de forma que restou um espaço de duas polegadas. Nenhum alarme podia ser ouvido. Ficaram em pé, silenciosos. Sabiam que se fossem descobertos a reação viria em seguida. E veio; uma porta se abriu no andar de cima. Em seguida, o ruído de passos e algumas palavras ditas por uma mulher. — Querido! Acabo dc notar que aquela câmara está completamente desarranjada. Pode examinar, por favor? — Depois uma pausa e a mulher falou de novo. — Pensando bem, por que não dizer a David? — E outra pausa, nova espera. — Não incomode o Jesuíta, querido. Peça a David! Dois passos. Silêncio. Ruído de roupas. O europeu olhou para a escada. Uma luz apagou-se. David. Jesuíta... Monge! — Pegue-a! — vociferou para o motorista, a arma apontada para o fim do corredor. O homem uniformizado correu para a escada; ouviu-se um tiro; o tiro de uma arma poderosa. O motorista estava com a mão no ombro, o casaco cheio de sangue, a pistola apontada para cima, atirando repetidas vezes para o buraco escuro da escada.
A porta no final do corredor abriu-se de repente, o major ficou parado, em estado de choque, com a pasta do arquivo na mão. O europeu atirou duas vezes; o corpo de Gordon Webb arcou para trás, a garganta tinha uma abertura de bala, os papéis da pasta voaram para longe dele. O homem com a capa de chuva subiu correndo os degraus até onde estava o motorista; mais para cima, perto do corrimão, estava a mulher grisalha, morta, a cabeça e o pescoço abertos — Você está bem Pode se mover? — perguntou o europeu. O motorista respondeu que sim com a cabeça. — Esta puta quase arrebentou o meu ombro, mas posso me arranjar. — Você deve! — ordenou o superior, tirando a capa. — Ponha a minha capa. Quero o Monge aqui! Rápido! — Jesus... — Carlos quer o Monge aqui dentro! O homem vestiu a capa desajeitadamente e começou a descer os degraus, passando pelos corpos do Iatista e do auxiliar da Casa Branca. Cuidadosamente, com muita dor, atravessou a porta e foi até a entrada da casa. O europeu ficou a observá-lo, segurando a porta, certificando-se de que o homem podia cumprir a sua tarefa. Podia; era um touro, e Carlos satisfazia todos os seus apetites. O motorista traria o corpo de David Abbott de volta para a casa e, sem dúvida alguma, como se estivesse ajudando um bêbado a entrar em casa. Depois conteria a hemorragia o tempo suficiente para levar o corpo de Alfred Gillette até o rio, onde o enterraria em um lodaçal. Os homens de Carlos eram capazes de tais proezas; eram todos uns animais fortes. Animais descontentes, que haviam encontrado as suas motivações de vida em um único homem. O europeu virou-se e avançou pelo corredor; tinha muito trabalho a fazer, O último isolamento do homem chamado Jason Bourne. Era mais do que podia esperar; os arquivos eram um presente muito maior do que sonhara. Junto estavam várias pastas com todos os códigos e métodos de comunicação usados pelo mítico Caim. Agora não mais tão mítico, pensou o europeu, enquanto recolhia os papéis. A cena estava pronta, os quatro corpos já estavam na posição certa dentro da pacífica e elegante biblioteca. David Abbott foi posto sentado em uma cadeira, o corpo caído, os olhos mortos, em choque; Elliot Stevens estava a seus pés; o Iatista estava curvado por cima da mesa da parede com uma garrafa de uísque entornando da mão, enquanto Gordon estava esparramado no chão, agarrado à maleta. A cena indicava que a violência cometida fora inesperada; a conversa fora interrompida por um repentino tiroteio. * O europeu andou em volta da sala com suas luvas de camurça, fazendo uma apreciação de sua mestria, e era realmente mestria. Dispensara o motorista, limpara todas as maçanetas e todas as
superfícies de madeira. Estava na hora do toque final. Foi até uma mesa onde havia copos de brandy sobre uma bandeja de prata, pegou um copo e olhou-o contra a luz. Como esperava, estava imaculado. Ele o recolocou na bandeja e pegou um pequeno estojo de plástico de dentro do bolso. Abriu-o e tirou de lá uma fita adesiva transparente, segurando-a, também, contra a luz. Lá estavam elas, tão claras como retratos — pois eram retratos, tão inegáveis quanto qualquer fotografia. Haviam sido tiradas de um copo de Perrier que ficara num escritório do Banco Gemeinschaft, em Zurique. Eram as impressões digitais da mão direita de Jason Bourne. O europeu pegou o copo de brandy e, com a sua paciência de artista, imprimiu a fita na superfície do copo. Depois, cuidadosamente, puxou-a. E de novo levantou o copo para vê-lo contra a luz; as impressões podiam ser vistas perfeitamente. Depois levou o copo até um canto da sala e deixou-o cair ao chão. Ajoelhou-se, estudou os fragmentos, retirou alguns e jogou os demais para baixo da cortina. Eram suficientes.
Capítulo21 — Mais tarde — disse Bourne, jogando a mala em cima da cama. — Temos que sair daqui. Marie sentou-se na poltrona. Ela relera o artigo do jornal, selecionando algumas frases e repetindo-as. Sua concentração era total, estava absorta, cada vez mais confiante em sua análise. — Estou certa, Jason. Alguém nos está mandando uma mensagem. — Conversamos sobre isso mais tarde; já ficamos aqui muito tempo. Este jornal estará circulando por todo o hotel durante a próxima hora e os jornais da manhã vão estar muito piores. Não há tempo para moderação; você esteve num saguão de hotel e também foi vista neste aqui por muitas pessoas. Arrume as suas coisas. Marie levantou-se, mas não fez nenhum movimento. Ao contrário, permaneceu no lugar, forçando-o a olhar para ela. — Vamos falar sobre uma porção de coisas, mais tarde — disse com firmeza na voz. — Você ia me deixar, Jason, e quero saber por quê. — Já lhe disse que vou contar — respondeu sem nenhuma evasiva —, porque você tem que saber, e estou falando sério. Mas agora quero sair daqui. Que diabo, arrume as suas coisas! Ela piscou, a súbita raiva dele surtiu efeito imediato. — Sim, é claro — sussurrou ela. Desceram de elevador até o saguão. Logo que o chão de mármore gasto apareceu, Bourne teve a sensação de que estavam e a jaula, expostos e vulneráveis; se a máquina parasse, seriam pegos. Em seguida entendeu por que a sensação era tão forte. Lá embaixo, no lado esquerdo, ficava o balcão da portaria. E o concierge estava sentado com uma pilha de jornais à sua direita. Eram cópias do mesmo tablóide que Jason pusera na pasta de couro que Marie levava. O concierge pegara um jornal e o lia avidamente, cutucando os dentes com um palito; o último escândalo lhe chamara a atenção. — Siga em frente — disse Jason. — Não pare, vá direto até a porta. Encontro-a lá fora. — Oh, meu Deus! — sussurrou ela vendo o concierge. — Vou pagar a ele o mais depressa possível. O barulho dos saltos de Marie no chão de mármore era uma distração que Bourne queria evitar. O concierge levantou os olhos e Jason pôs-se imediatamente na sua frente, bloqueando-lhe a visão. — Foi muito agradável — disse em francês —, mas estou com muita pressa. Tenho que ir para Lyon hoje à noite. Pode arredondar a conta para quinhentos francos. Não tive tempo para deixar gorjetas. A parte financeira distraiu-o, cumprindo o seu propósito. O concierge somou o total rapidamente e apresentou a conta. Jason pagou-a e foi em direção à escada, podendo ainda ouvir o grito de surpresa que explodiu da boca aberta de espanto do concierge. O homem olhava espantado para a pilha de
jornais à sua direita, os olhos fixos na fotografia de Marie St. Jacques. Levantou os olhos para as portas de vidro da entrada; Marie estava parada na calçada. Depois olhou para Bourne; fizera a conexão e estava inibido por um medo repentino. Jason caminhou rapidamente em direção às portas de vidro, abrindo-as com os ombros, enquanto olhava para trás, para a portaria. O concierge estava pegando no telefone. — Vamos! — gritou para Marie. — Procure um táxi! Encontraram um na Rua Lecourbe, a cinco quadras do hotel. Bourne fez o papel de um turista americano inexperiente, usando um francês inadequado, o mesmo que lhe servirá tão bem no Valois. Explicou para o motorista que ele e sua petite amie queriam sair do centro de Paris por um ou dois dias, ir para algum lugar onde pudessem ficar sozinhos. Talvez ele pudesse indicar alguns lugares Foi o que fez. — Tem uma pequena hospedaria fora de Issyles-Moulineaux, chamada La Maison Carrée — disse, — E outra em Ivry sur Seine, que vocês iriam gostar. É bem reservado, monsieur. Ou talvez o Auberge du Coin, em Montrouge; é muito discreto. — Vamos para o primeiro — disse Jason. — Foi o primeiro que lhe veio à mente. Quanto tempo leva até lá? — Não mais do que quinze, vinte minutos, monsieur. — Ótimo. — Bourne virou-se para Marie e disse baixinho: — Mude o seu cabelo. — O quê? — Mude o penteado. Prenda-o ou penteie-o para trás, não importa, mas mude o penteado. Saia da vista do espelho retro- visor. Depressa! Alguns momentos depois, os cabelos longos e avermelhados de Marie estavam penteados para trás, afastados do rosto e do pescoço, arrumados com o auxílio de um espelho e alguns grampos que ela retirara da carteira. Fizera um coque bem-apertado. Jason olhou para ela na luz fraca. — Limpe o batom. Todo. Ela tirou um pano e limpou a boca. — Assim? — Isso. Tem um lápis de sobrancelha? — É claro. — Deixe as sobrancelhas mais grossas, um pouquinho mais. Alongue-as um pouco; curve os finais, também. Ela seguiu as suas instruções novamente. — E agora? — perguntou. — Assim está melhor — ele examinando-a. As mudanças tinham sido pequenas, mas os efeitos
grandes.. Ela se transformara sutilmente de uma mulher elegante e suave para uma imagem mais grosseira. Pelo menos à primeira vista não parecia ser a mulher cuja foto estava no jornal, e isso era tudo o que importava. — Quando chegarmos a Moulineaux — sussurrou ele — saia depressa e fique em pé, parada. Não deixe que o motorista a veja. — É um pouco tarde para isso, não é? — Faça o que eu digo. Ouça-me. Sou um camaleão chamado Caim e posso lhe ensinar muitas coisas que não me interessa ensiná-la, mar por ora são necessárias. Posso mudar a minha cor para me acomodar a qualquer pano de funda na floresta, posso me movimentar com o vento só em cheirá-lo. Posso encontrar meu caminho através das florestas naturais e das feitas pela mão do homem. Alfa, Bravo, Charlie, Delta... Delta é para Charlie e Charlie é para Caim. Sou Caim. Sou a morte. E devo dizer-lhe quem sou; e vou perdê-la. — Meu querido, o que é? — O quê? — Você está olhando para mim sem respirar. Você está bem? — Desculpe-me — disse, desviando o olhar e voltando a respirar. — Estou planejando os nossos movimentos. Saberei melhor o que fazer logo que chegarmos lá. Chegaram à hospedaria. Havia um estacionamento cercado, do lado direito; algumas pessoas saíam do jantar pela entrada de madeira trançada. Bourne inclinou-se para a frente, no assento. — Deixe-nos dentro da área do estacionamento, se não se importa — disse ao motorista, sem dar nenhuma explicação para pedido tão estranho. — Certamente, monsieur — respondeu o motorista, inclinando a cabeça e depois dando de ombros. Seus movimentos pareciam aceitar o fato de que seus passageiros eram, realmente, um casal discreto. A chuva se transformara em uma garoa cinzenta. O táxi foi embora; Bourne e Marie permaneceram nas sombras das folhagens, do lado da taverna, até ele desaparecer. Jason colocou as malas no chão úmido. — Espere aqui — disse. — Onde vai? — Telefonar pedindo um táxi. O segundo táxi os deixou no distrito de Montrouge. Este motorista estava singularmente desinteressado pelo casal de rostos sérios que, sem dúvida alguma, devia ser da província e muito provavelmente estava à procura de alojamentos baratos. Se tivesse pego num jornal e visto uma fotografia de uma franco-canadense envolvida com assassinato e roubo em Zurique, jamais a ligaria à
mulher que estava no banco traseiro do seu carro. O Auberge du Coin não correspondia ao nome. Não era uma hospedaria antiga localizada em uma vila reclusa, do interior. Ao contrário, era uma estrutura grande, de dois andares, um pouco distanciada da auto-estrada. No mínimo, parecia-se com todos os motéis do mundo, que se alastravam pelos arredores das cidades; o comércio garantindo o anonimato dos seus hóspedes. Não era difícil imaginar a quantidade de encontros registrados sob nomes falsos. E, assim, registraram-se sob nomes diferentes e ganharam um quarto onde todos os acessórios eram aparafusados no chão ou presos com pregos sem cabeça nos móveis de fórmica. Havia, no entanto, uma coisa positiva: um geladeira no corredor. E sabiam que ela funcionava por causa do barulho que fazia. Mesmo com a porta fechada. — Tudo bem, agora. Quem nos estaria mandando uma mensagem? — perguntou Bourne, em pé, segurando a garrafa de uísque. — Se eu soubesse, entraria em contato com eles — respondeu ela, sentada à mesa, de frente para ele, com as pernas cruzadas, olhando-o firmementê. — Pode estar ligado à causa de sua fuga. — Se fosse isso, seria uma armadilha. — Não seria uma armadilha. Um homem como Walther Apfel não faria o que fez para tramar uma armadilha. — Se fosse você não teria tanta certeza disso. — Bourne foi até a única poltrona que havia, de plástico, e sentou-se. — Koenig fez isso; ele me marcou muito bem lá na sala de espera. — Ele era um pé-de-chinelo subornado, não um banqueiro. Agiu sozinho. Apfel não faria isso. Jason olhou-a. — O que você quer dizer? — A declaração de Apfel tinha que ser esclarecida por seus superiores Foi feita em nome do banco. — Se tem tanta certeza, vamos telefonar para Zurique. — Não é isso que querem. Ou não têm a resposta ou não podem dá-la. As últimas palavras de Apfel foram que eles não tinham mais comunicados a fazer. A ninguém. Isso também fazia parte da mensagem. Devemos entrar em contato com outra pessoa. Bourne bebeu; precisava do álcool, pois estava se aproximando o momento em que devia começar a contar a história de um matador chamado Caim. — Então, estamos de volta a quem? — disse ele. — De volta à armadilha. — Você parece saber quem é, não? — Marie apanhou seus cigarros sobre a mesa. — É por isso que você foge, não é?
— A resposta para as duas perguntas é sim. — O momento chegara. A mensagem fora enviada por Carlos. Sou Caim e você tem que me deixar. Vou perder você. Mas primeiro Zurique, e você tem que me entender. — Esse artigo foi feito para me descobrir. — Não vou discutir isso — ela o interrompeu deixando-o surpreso. — Tive bastante tempo para pensar nisso; eles sabem que esta evidência é falsa — e, assim, é ridícula. A policia de Zurique agora está à espera que eu entre em contato com a Embaixada do Canadá... — Marie parou, um cigarro apagado na mão. — Meu Deus, Jason, é isso que eles querem que façamos! — Quem quer que entremos em contato? — Quem nos enviou a mensagem. Sabem que não tenho outra escolha senão telefonar para a Embaixada e obter a proteção do Governo canadense. Não havia pensado nisso porque eu já tinha falado antes com a Embaixada, com — como era mesmo o seu nome? — aquele Dennis Corbelier. E ele nada tinha a me dizer. Apenas fez o que lhe pedi para fazer, nada mais. Mas isso foi ontem, não hoje, não esta noite. — Marie dirigiu-se ao telefone na mesa de cabeceira. Bourne levantou-se rapidamente da cadeira e segurou-a pelo braço. — Não — disse com firmeza. — Por que não? — Porque você está errada. — Estou certa, Jason! Deixe-me provar isso. Bourne pôs-se na sua frente. — Acho que é melhor você ouvir o que tenho a lhe contar. — Não! — gritou ela, assustando-o. — Não quero ouvir nada. Não agora! — Há uma hora, em Paris, era a única coisa que você queria ouvir. Ouça! — Não! Há uma hora eu estava morrendo. Você tinha mudado de idéia e estava pronto para fugir Sem mim E agora sei que isso vai se repetir sempre até que tudo esteja terminado para você. Você ouve palavras, vê imagens e fragmentos de coisas que lhe vêm à memória e que não pode entender, mas só porque elas estão lá, na sua mente, você se condena. Sempre irá se condenar, até que alguém possa provar-lhe que não importa o que você foi... outros o usaram, e vão sacrificá-lo. Mas há também outra pessoa lá que quer ajudá-lo, ajudar-nos. Essa é a mensagem! Sei que estou certa. E quero provar isso para você. Deixe-me! Bourne segurou-a pelos braços em silêncio, olhando para o seu rosto, o seu adorável rosto cheio de dor e esperança inútil, os olhos suplicantes. A terrível dor se espalhara por todo o seu corpo. Talvez fosse melhor assim; ela iria comprovar por si mesma, e o medo faria com que depois ela o ouvisse e entendesse. Não havia mais nada para eles. Sou Caim... — Está bem, você pode telefonar, mas tem que ser feito do meu modo. — Soltou-a e foi até o telefone, discou para a portaria do Auberge du Coin. — Aqui é do quarto 341. Acabo de ter notícias de
amigos de Paris; eles virão nos encontrar daqui a pouco. Vocês têm um quarto no corredor de baixo para eles? Ótimo. O nome é Briggs, um casal americano. Descerei e pagarei adiantado. Podem deixar a chave comigo? Esplêndido! Obrigado. — O que está fazendo? — Tentando provar uma coisa para você — disse ele. — Dê-me um vestido — continuou. — O mais longo que tiver. — Se quer fazer o seu telefonema, vai fazer como estou lhe dizendo. — Você está louco. — Pode ser — disse ele — tirando na maia uma camisa e uma calça. — O vestido, sim? Quinze minutos mais tarde, o quarto do senhor e da senhora Briggs, seis portas depois, do outra lado do corredor, estava pronto. As roupas estavam nos lugares certos, as luzes acesas, algumas não funcionavam porque as 1âmpadas haviam sido retiradas. Jason voltou para o quarto; Marie estava perto do telefone. — Estamos prontos. — O que você fez? — O que eu queria fazer; o que tinha que fazer. Agora, pode telefonar. — É muito tarde. E se ele não estiver lá? — Acho que vai estar. Se não estiver, vão lhe dar o número do telefone da sua casa, O nome dele estava nas cadernetas de telefone em Ottawa; tinha que estar. — Suponho que sim. — Então ele será alcançado. Você se lembra do que eu lhe disse para comunicar? — Sim, mas não tem importância; não é importante. Sei que não estou errada. — Veremos. Diga apenas as palavras que lhe falei. Vou ficar ao seu lado, ouvindo. Em frente, vá! Ela foi até o telefone e discou o número. Segundos depois, Dennis Corbelier estava na linha. Passavam quinze minutos de uma hora da manhã. — Deus Poderoso, onde você está? — Você esperava que eu lhe telefonasse, então? — Oh, eu estava à espera, sim! Isto aqui está completamente virado. Estou aqui à espera do seu telefonema desde as cinco horas da tarde.
— Alan também estava. Em Ottawa. — Que Alan? Do que você está falando? Onde você está? — Primeiro quero saber o que você tem a me dizer. — Dizer a você? — Você tem uma mensagem para mim, Dennis. O que é? — O que é o quê? Que mensagem? O rosto de Marie ficou pálido. — Não matei ninguém em Zurique. Eu não faria... — Então, pelo amor de Deus — interrompeu o adido —, venha para cá! Dar-lhe-emos toda a proteção que pudermos. Ninguém poderá lhe tocar aqui! — Dennis, ouça-me! Você esteve esperando que eu lhe telefonasse, não é? — Sim, é claro. — Alguém lhe mandou esperar, não é verdade? Uma pausa. Quando voltou a falar, a voz estava baixa. — Sim, ele mandou Eles mandaram. — O que eles lhe disseram? — Que você precisava da nossa ajuda. E muito. Marie respirou aliviada. — E querem nos ajudar? — Com nós — respondeu Corbelier — você está querendo dizer que ele está com você, então? O rosto de Bourne estava perto do dela, a cabeça curvada para ouvir as palavras de Corbelier. Ele acenou com a cabeça. — Sim — respondeu ela. — Estamos juntos, mas ele saiu por alguns minutos. É tudo mentira; eles lhe disseram isso, não é? — Tudo o que disseram é que você devia ser descoberta e protegida. Eles querem ajudá-la: querem mandar um carro para buscá-la. Um dos nossos carros, da diplomacia. — Quem são eles? — Não os conheço pelo nome; mas não é preciso. Conheço-os pela posição. — Posição? — São especialistas, FS-Cinco. Não se consegue muito mais do que isso.
— Você confia neles? — Meu Deus, sim! Procuraram-me por toda Ottawa. As ordens vêm de lá. — Eles estão na Embaixada, agora? — Não, estão num posto avançado. — Corbelier fez uma pausa, estava exasperado. — Jesus Cristo, Marie, onde você está? Bourne acenou com a cabeça novamente e ela falou. — Estamos no Auberge du Coin, em Montrouge. Sob o nome de Briggs. — Vou mandar o carro para aí agora mesmo. — Não, Dennis! — Marie protestou, olhando para Jason; os olhos dele diziam que continuasse a seguir as suas instruções. — Mande um pela manhã. Logo de manhã cedo — daqui a quatro horas, se puder. — Não posso fazer isso! É pelo seu próprio bem. — Mas você tem que fazer; você não entende! Ele foi induzido a fazer algo e agora está com medo; quer fugir. Caiu numa armadilha. Se ele soubesse que o chamei, estaria fugindo agora. Dê-me tempo. Posso convencê-lo a mudar de idéia. Algumas horas, apenas. Ele está confuso, mas no íntimo sabe que estou certa. — Marie disse essas palavras olhando para Bourne. — Que espécie de filho da puta ele é? — Alguém aterrorizado — respondeu ela. — Que foi manipulado. Preciso de tempo. Dê-me tempo. — Marie.. .? — Corbelier parou. — Está bem, logo de manhã cedo. Digamos... lá pelas seis horas. E, Marie, eles querem ajudá-la. Eles podem ajudá-la. — Sei. Boa noite. — Boa noite. Marie desligou o telefone. — Agora, vamos esperar — disse Bourne. — Não sei o que você quer provar. É claro que ele vai chamar o FS-Cinco, e é claro que eles vão aparecer aqui. O que você espera? Ele apenas admitiu o que ia fazer, o que pensa que deve fazer. — E esses homens do corpo diplomático, esses FS-Cinco, são os que estão nos enviando a
mensagem? — Acho que eles nos levarão a eles. Ou se os que nos mandaram a mensagem estão muito longe, eles nos porão em contato com eles. Nunca estive muito certa de nada na minha vida profissional. Bourne olhou para ela. — Espero que você esteja certa, por que é a sua vida que me preocupa. Se a evidência contra você em Zurique não for parte de nenhuma mensagem, se foi posta lá por especialistas para me descobrirem — se a polícia de Zurique acredita nisso — então realmente sou esse homem aterrorizado de que você falou a Corbelier. Ninguém quer tanto que você fique bem quanto eu. Mas acho que você não está bem. As duas e três as luzes do corredor do hotel bruxulearam e se apagaram, deixando o longo corredor quase totalmente escuro. A luz que vinha da escada era a única fonte de iluminação. Bourne estava em pé, próximo à porta do quarto, a pistola na mão, as luzes apagadas, observando o corredor por uma fenda entre a porta e o batente. Marie estava atrás dele, espiando por cima do seu ombro. Nenhum dos dois falou. Os ruídos dos passos eram abafados. Dois passos diferentes subiam a escada, o que era proposital, feito de forma casual. Em poucos segundos os vultos de dois homens podiam ser vistos aparecendo nas sombras. Marie engasgou-se e fez um ruído involuntário; Jason levantou a mão e fechou-lhe a boca com força. Ele entendeu; ela reconhecera um dos dois homens: era um homem a quem vira apenas uma vez. Em Zurique, na Steppdeckstrasse, minutos antes de um outro ter ordenado a sua execução. Era o homem louro que haviam mandado para o quarto de Bourne, o sentinela avançado que trouxeram a Paris para que identificasse o alvo que havia perdido. Na sua mão esquerda tinha uma pequena lanterna, na direita, um revólver de cano longo, com silenciador. Seu companheiro era baixo, mais compacto, o andar parecia o passo de um animal, os ombros e a cintura se movimentavam em compasso com as pernas. As lapelas do sobretudo estavam levantadas, a cabeça coberta por um chapéu de aba larga, sombreando o rosto. Bourne olhou para ele, havia alguma coisa familiar naquele vulto, naquela figura, no jeito de andar, na postura da cabeça. O que era? O que era? Ele o conhecia. Mas não havia tempo para pensar nisso; os dois homens estavam se aproximando da porta do quarto reservado em nome do Sr. e Sra. Briggs. O homem louro levantou a lanterna em direção aos números da porta, depois desceu o facho de luz para a maçaneta e a fechadura. O que se seguiu foi uma impressionante amostra de eficiência. O homem atarracado segurava um aro cheio de chaves na mão direita; selecionava uma chave específica para aquela fechadura. Na mão esquerda tinha uma arma com automática, não muito diferente da poderosa Sternlicht Luger usada pela Gestapo na Segunda Guerra Mundial. Uma arma que podia abrir paredes de concreto e cortar cercas de aço e cujo ruído parecia uma leve tosse reumática; a arma ideal para tirar inimigos das suas tocas à noite, em proximidades quietas, próximas de residências, sem precisar fazer nenhum distúrbio, apenas deixar que seja reconhecido um desaparecimento pela manhã. O homem mais baixo inseriu a chave e girou-a em silêncio, depois virou o cano da arma para a
fechadura. Três rápidas tosses acompanhadas de três raios de luz; a madeira da estrutura despregou alguns parafusos. A porta soltou-se e os dois matadores entraram. Houve um momento de silêncio e, em seguida, uma erupção de tiros abafados e raios de fogo brancos faiscando no escuro. A Porta foi batida, mas não ficou fechada, voltando a abrir-se enquanto ruídos altos, de coisas quebradas e esbarrões, vinham do quarto. Em seguida, uma lâmpada foi acesa; logo depois um tiro fez com que ela estourasse e se arrebentasse no chão. Barulho de vidro quebrado. Um grito frenético saiu da garganta de um homem furioso. Os dois matadores correram para fora, as armas levantadas, preparando-se para uma armadilha, espantados de que não houvesse nenhuma. Chegaram à escadaria e desceram correndo os degraus. Uma porta à direita do quarto invadido se abriu. Um hóspede insone apareceu na porta, espiou para fora e depois deu de ombros e voltou para dentro. O silêncio voltou ao corredor escuro. Bourne ficou no lugar em que estava, parado, os braços em volta de Marie St. Jacques. Ela tremia, sua cabeça estava encostada no peito dele, soluçava em silêncio, histérica, sem poder acreditar. Deixou alguns minutos passarem, até que o tremor dela passasse um pouco e ela voltasse a respirar normalmente. Ele não podia esperar muito mais; ela tinha que ver com os próprios olhos. Ver tudo, a impressão seria indelével; ela precisava entender de um vez por todas. Sou Caim. Sou a morte. — Venha — sussurrou ele. Guiou-a para o corredor em direção à porta do quarto, segurando-a com firmeza. O quarto agora seria a sua última prova. Abriu a porta quebrada e entraram. Ela parou, ficou imóvel, hipnotizada pela visão e cheia de repulsa pelo que via. Numa porta aberta do lado direito ela viu a silhueta de um vulto. A luz era pouca, só podia ver o seu contorno; e só depois que os olhos se ajustaram à mistura de escuridão e reflexos de luz, que vinham de fora, percebeu a figura de uma mulher com um vestido longo. O tecido se movimentava suavemente à brisa que vinha de fora, pela janela aberta. Janela. Bem em frente estava uma outra figura, quase invisível; mas lá estava, sua forma era uma sombra apenas, obscura e quase indistinta, só contornada pela luz esmaecida que vinha da estrada. Também parecia se movimentar um pouco, um leve movimento do tecido — do braço. — Oh, Deus! — disse Marie, gelada. — Acenda as luzes, Jason. — Nenhuma delas está funcionando — respondeu ele. — Apenas as duas lâmpadas de cabeceira; uma eles encontraram. — Atravessou o quarto cuidadosamente e se aproximou da lâmpada, que estava no chão, perto da parede. Ajoelhou-se e acendeu-a. Marie estremeceu. Dependurado na porta do banheiro, preso por pedaços de pano rasgados da cortina, estava o seu vestido longo, ondulando ao sopro de um vento que vinha do banheiro. Estava perfurado pelas balas. Próximo à janela, um pouco mais longe, a camisa e calça de Bourne, que tinham sido presas à moldura de madeira, estavam com as mangas e as pernas dilaceradas, crivadas de bala. A brisa que entrava fazia com que o tecido se movimentasse. O pano branco da camisa estava perfurado em meia
dúzia de lugares, uma linha diagonal de balas transpassando o peito. — Esta é a sua mensagem — disse Jason. — Agora você sabe o que é. E agora acho que é melhor você ouvir o que tenho a lhe dizer. Marie não respondeu. Caminhou devagar até o vestido, examinando como se não pudesse acreditar no que via. E, inesperadamente, virou-se, os olhos faiscando as lágrimas já interrompidas. — Não! Está errado! Alguma coisa está terrivelmente errada! Telefone para a Embaixada! — O quê?! — Faça como digo. Agora! — Pare, Marie. Você tem que entender. — Não, que diabo! Você tem que entender! Não aconteceria desse jeito. Não pode. — Mas aconteceu. — Telefone para a Embaixada! Use este telefone aqui! Chame por Corbelier. Rápido, pelo amor de Deus! Se eu significo alguma coisa para você, faça o que estou lhe pedindo. Bourne não podia se negar. A intensidade dela estava matando os dois, a ela e a ele. — O que lhe digo? — perguntou aproximando-se do telefone. — Primeiro chame-o! É isso que receio, que... oh, Deus, estou assustada! — Qual é o número? Ela lhe deu o número, ele discou e esperou um longo tempo para ser atendido. Quando o foi, a telefonista estava em pânico, a voz se alteava e, alguns momentos depois, parecia incompreensível. No fundo ela podia ouvir gritos, ordens ríspidas dadas em inglês e em francês. Segundos depois, soube por quê. Dennis Corbelier, o adido canadense, saíra da embaixada, na Avenida Montaigne, à 1h40min e enquanto descia os degraus do edifício, fora alvejado na garganta. Estava morto. — Há outra parte na mensagem, Jason — sussurrou Marie, branca, olhando fixamente para ele. — E agora vou ouvir tudo o que você tem a dizer. Porque sei que existe alguém tentando entrar em contato com você, tentando ajudá-lo. Uma mensagem foi enviada, mas não para nós, não para mim. Apenas para você, e apenas você pode entendê-la.
Capítulo22 Um por um os quatro homens chegaram ao repleto Hilton Hotel, na Rua Sessenta, em Washington, DC. Cada um tomou um elevador, descendo um ou dois andares acima ou abaixo do seu lugar de destino e fazendo a pé o resto do percurso. Não havia hora marcada para o encontro, fora dos limites do Distrito de Colúmbia; a crise era sem precedentes. Eram os homens da Treadstone Seventy One — os sobreviventes. Os demais estavam mortos, chacinados num massacre em uma rua quieta e flanqueada por árvores em Nova Iorque. Dois dos rostos eram familiares ao público, um mais do que o outro. O primeiro era o do senador do Colorado; o segundo, era do General-de-Brigada I. A. Crawford — Irwin Arthur, apelidado de Iron Ass — reconhecido porta-voz dos dados G-2 para os bancos. Os outros dois homens eram desconhecidos, exceto nos corredores dos seus próprios andares de trabalho. Um era um homem de meia-idade, oficial naval, lotado no Controle de Informação, 5.° Distrito Naval. O quarto, e último, tinha quarenta e seis anos e era veterano da CIA. Homem esguio, de aparência irada, caminhava com a ajuda de uma bengala. Seu pé fora destroçado por uma granada no Sudeste da Ásia; fora agente secreto na Operação Medusa. Seu nome era Alexander Conklin. Não havia uma mesa de conferência na sala; era um ambiente com duas camas, um sofá e duas poltronas, mais uma mesa de café. Um lugar estranho para encontro de tal importância! Não havia nenhum sistema de computadores para clarear telas escuras com letras verdes, nenhum equipamento eletrônico de comunicação que tivesse alcance em Londres, ou Paris ou Istambul. Era apenas um simples quarto de hotel, desprovido de tudo, menos das quatro mentes que detinham os segredos da Treadstone Seventy One. O senador sentou-se no final do sofá, o oficial naval no outro extremo. Conklin se acomodou em uma poltrona, estendendo a perna rígida à sua frente, a bengala entre as pernas, enquanto o General-deBrigada Crawford permaneceu de pé, o rosto afogueado, os músculos do maxilar pulsando de ira. — Falei com o Presidente — disse o senador, esfregando a testa; a falta de sono era visível em seu rosto. — Tive que fazer isso; vamos nos encontrar hoje à noite. Digam-me tudo o que puderem, cada um de vocês, O senhor começa, general. Em nome de Deus, o que aconteceu? — O Major Webb devia pegar o seu carro às 23h, na esquina das Ruas Lexington com Setenta e Dois. A hora chegou e ele não apareceu. Por volta das 23h30min o motorista começou a ficar preocupado por causa da distância até o aeroporto de Nova Jérsei. O sargento lembrou-se do endereço — principalmente porque lhe fora dito para esquecê-lo —, fez a volta e parou na porta. Os trincos de segurança tinham sido travados e a porta abriu-se com facilidade; todos os fios de alarme tinham sido cortados. Havia sangue no chão do foyer, uma mulher estava morta na escada. Foi até o fim do corredor, em direção à sala de operações, e encontrou os corpos. — Esse homem merece uma promoção — disse o oficial naval. — Por que diz isso? — perguntou o senador.
Crawford respondeu. — Teve a presença de espírito de chamar o Pentágono e insistir em falar apenas confidencialmente, com o pessoal interno. Especificou a freqüência do rádio, a hora e o lugar da recepção, e disse que tinha que falar com o emissário. Não disse uma palavra para ninguém até que o atendi ao telefone. — Ponha-o na Escola de Guerra, Irwin — disse Conklin sorrindo entre dentes, uma das mãos na bengala — Ele é mais inteligente do que a maioria dos palhaços que você tem lá. — Isso não apenas é desnecessário, Conklin — admoestou o senador —, mas claramente ofensivo. Continue, por favor, general. Crawford trocou olhares com o homem da CIA, — Telefonei para o Coronel Paul McQaren, em Nova Iorque, dei-lhe algumas ordens e disse-lhe para não fazer absolutamente nada até que eu chegasse. Depois telefonei para Conklin e George, que estão aqui, e voamos juntos. — Chamei uns especialistas em impressões, de Manhattan — acrescentou Conklin. — Um bureau que já usamos antes e no qual podemos confiar. Não lhes disse o que estávamos procurando, mas lhes disse para investigar o lugar e me entregarem pessoalmente o que encontrassem. — O homem da CIA parou, levantando a bengala em direção ao oficial naval. — Depois, George lhes deu uma lista de vinte e sete nomes, todos os homens que sabíamos terem suas impressões nos arquivos do FBI. Vieram com a mostra que não esperávamos, não queríamos... nem acreditávamos que pudesse ser. — As impressões de Delta — disse o senador. — Sim — concordou o oficial naval. — Os nomes que lhes submeti eram de pessoas que — até mesmo remotamente — não deviam conhecer o endereço da Treadstone, inclusive, incidentalmente, todos nós. A sala fora completamente limpa de todos os traços; todas as superfícies, maçanetas e copos — exceto um. Era um copo quebrado, de brandy, apenas alguns poucos fragmentos em um canto por baixo da cortina, mas o suficiente. As impressões estavam lá: do terceiro dedo e do indicador da mão direita. — Você tem toda certeza? — perguntou o senador, devagar. — As impressões não podem mentir, senhor — disse o oficial. — Estavam lá, com um resto de brandy ainda grudado nos fragmentos. Fora dessa sala, DeIta é o único que conhece a Rua Setenta e Um. — Podemos ter certeza absoluta disso? Os outros podem ter dito alguma coisa. — Não há nenhuma possibilidade — interrompeu o general-de-brigada. — Abbott jamais o revelaria, e Elliot Stevens soube do endereço apenas quinze minutos antes de chegar lá, depois que nos telefonou de uma cabine. Além disso, presumindo o pior, ele não estaria querendo programar a sua própria execução. — E o Major Webb — insistiu o senador. — O major — respondeu Crawford — recebeu o endereço pelo rádio, dado por mim, no
Aeroporto Kennedy. Como o senhor sabe, era uma freqüência especial, G-Dois. Quero lembrar- lhes, também, que ele perdeu a vida. — Sim, é claro. — O idoso senador balançou a cabeça. — É inacreditável. Por quê? — Gostaria de trazer à baila um assunto difícil — disse o General-de-Brigada Crawford. — De início eu não estava muito entusiasmado sobre o candidato. Entendi as razões de David e concordei que ele tinha qualificação, mas se os senhores se recordam, ele não foi uma escolha minha. — Não sabia que tínhamos tantas possibilidades de escolha — disse o senador. — Tínhamos um homem — um homem qualificado, como vocês concordaram —, ansioso para ir em serviço confidencial por um período de tempo indeterminado, arriscando a própria vida todos os dias, e cortando todos os laços com o passado. Quantos desses homens já existiram? — Devíamos ter encontrado um mais equilibrado, contrapôs o brigadeiro. — Enfatizei isso naquele tempo. — Você enfatizou — corrigiu Conklin — a sua própria definição de homem equilibrado, que eu, naquele tempo, apontei como inepta. — Nós dois estivemos na Medusa, Conklin — disse Crawford irado, mas contido. — Você não tem uma perspicácia assim tão exclusiva. O comportamento de Delta no campo era contínua e publicamente hostil ao comando. Eu estava em posição de observar esse comportamento mais claramente do que você. — A maioria das vezes ele tinha todo o direito de ser hostil ao comando. Se você tivesse passado mais tempo no campo e menos em Saigon, iria entender isso. Como eu entendi. — Pode surpreendê-lo — disse o brigadeiro, levantando a mão num gesto de trégua —, mas não estou defendendo as grosseiras imbecilidades que predominaram em Saigon, ninguém pode fazer isso. Estou tentando descrever um padrão de comportamento que podia ter levado ao que aconteceu na noite anterior à noite passada, na Rua Setenta e Um. Os olhos do homem da CIA permaneceram em Crawford; a sua hostilidade desaparecera, enquanto ele fazia um gesto positivo com a cabeça. — Sei que sim. Desculpe. Esse é o ponto crucial de tudo, não é? Não é fácil para mim. Trabalhei com Delta em meia dúzia de setores, fui locado com ele em Phnom Penh antes que a Medusa fosse sequer uma centelha de luz nos olhos do Monge. Nunca voltou a ser o mesmo depois de Phnom Penh; por isso foi para a Medusa, por isso estava desejoso de se tornar Caim. O senador inclinou-se para a frente, no sofá. — Ouvi isso, mas conte-me de novo. O Presidente tem que saber de tudo. — Sua mulher e duas crianças foram mortas num píer do Rio Mekong, bombardeadas por um aeroplano que caiu à deriva — ninguém nunca soube de que lado era, a identidade nunca foi descoberta. Ele odiava aquela guerra, odiava todo mundo que fazia parte dela. Ele ficou fora de si. — Conklin fez uma pausa, olhando para o brigadeiro. — E acho que o senhor está certo, general. Ele ficou fora de si
novamente. Estava nele. — O que foi? — perguntou o senador repentinamente. — A explosão, acho — disse Conklin. — Aquela maldita explosão. Ele foi além dos seus limites e o ódio tomou conta dele. Não é difícil, é preciso tomar muito cuidado. Ele matou aqueles homens, aquela mulher, como um louco em um delírio deliberado. Nenhum deles esperava aquilo, talvez a mulher na escada, sim. Provavelmente ela ouviu os gritos. Ele não é mais Delta. Ele agora criou um mito chamado Caim, que não é mais um mito, também. É realmente ele. — Depois de tantos meses... — O senador encostou-se na poltrona, a voz mais baixa. — Por que voltou?De onde? — De Zurique — respondeu Crawford. — Webb estava em Zurique, e acho que ele era o único que podia tê-lo trazido de volta. O “porquê” nunca saberemos, talvez ele esperasse ter-nos encurralado a todos lá. — Ele não sabe quem somos — protestou o senador. — Seus únicos contatos eram com o Iatista, sua mulher e David — E Webb, é claro — acrescentou o general. — É claro — concordou o senador. — Mas não na Treadstone, nem mesmo ele ia lá. — Não importa — disse Conklin, batendo no tapete com a bengala. — Ele sabe que existe uma junta; Webb deve ter-lhe dito que todos estaríamos lá, esperando que realmente estivéssemos lá. Temos uma porção de perguntas — sobre esses últimos seis meses, e agora sobre muitos milhões de dólares. Delta poderia ter considerado isso a solução perfeita. Podia nos pegar e depois desaparecer. Sem deixar marcas. — Por que está assim tão certo? — Porque: primeiro, ele esteve lá — respondeu o homem do Serviço de Inteligência, elevando a voz. — Temos as suas impressões num copo de brandy que nem mesmo foi bebido até o fim. E, segundo, é uma armadilha clássica com algumas centenas de variações. — Poderia explicar isso? — Você permanece em silêncio — disse o general, olhando para Conklin — até que o seu inimigo não pode mais agüentar e se expõe. — E nós nos tomamos o inimigo? Inimigo dele? — Não há mais dúvidas quanto a isso, agora — disse o oficial naval. — Por qualquer razão, Delta nos traiu. Já aconteceu antes — graças a Deus não muito freqüentemente. Sabemos o que fazer. O senador mais uma vez se inclinou para a frente no sofá. — O que vão fazer?
— A sua fotografia nunca circulara antes — explicou Crawford. — Vamos fazê-la circular agora. Vamos mandá-la para todas as estações e postos de escuta, para todas as fontes e informantes que temos. Ele vai ter que ir a algum lugar, vai começar por um lugar que conhece, mesmo que seja apenas para comprar outra identidade. Vai gastar dinheiro; e logo será encontrado. E quando for, as ordens serão claras. — Vocês cuidarão dele imediatamente? — Nós o mataremos — disse Conklin simplesmente. — Não se pode dar uma oportunidade a um homem como Delta, e não se pode arriscar que um outro Governo faça isso. Não com tudo o que ele sabe. — Não posso dizer ao Presidente uma coisa dessas. Existem as leis. — Não para DeIta — disse o agente. — Ele está muito além das leis. Além de qualquer possibilidade de recuperação. — Além... — Isso mesmo, senador — interrompeu o general. — Além de recuperação. Acho que o senhor conhece o significado dessa frase. O senhor tem que tomar uma decisão, se deve ou não revelar ao presidente. Seria melhor... — Você têm que explorar todas as possibilidades — disse o senador, interrompendo bruscamente o oficial. — Falei com Abbott na semana passada. Disse-me que havia uma estratégia em processo para localizar Delta. Zurique, o banco, a comunicação da Treadstone; tudo faz parte disso, não é? — Faz, mas terminou — disse Crawford. — Se as evidências na Rua Setenta e Um foram suficientes para você, devia ter terminado. Foi dado um sinal bem claro para que Delta aparecesse. Ele não apareceu. O que mais você quer? — Quero estar absolutamente convencido. — Quero-o morto — as palavras de Conklin, embora ditas com calma, tiveram o efeito de uma tempestade repentina e fria. — Ele não apenas quebrou todas as regras a que nos propusemos — não importa quais —, mas cavou a sua própria sepultura. Ele fede; ele é Caim. Usamos tanto o nome Delta — nem usamos Bourne, mas Delta — que até acho que esquecemos. Gordon Webb era seu irmão. É preciso encontrá-lo. Matá-lo.
IVRO III
Capítulo23 Faltavam dez minutos para as três da manhã quando Bourne se aproximou da portaria do Auberge du Coin, enquanto Marie passava direto, indo esperá-lo na entrada. Para alívio de Jason, não havia jornais sobre o balcão. O funcionário, no entanto, tinha uma feição semelhante à do seu colega do Centro de Paris. Era um careca, de estrutura pesada, e estava com os olhos semicerrados, inclinado na cadeira, os braços cruzados em frente do corpo e a expressão cansada pela interminável noite que se arrastaria ainda à sua frente. Mas esta seria uma noite que ele se lembraria para sempre, pensou Bourne. E não apenas por causa dos danos feitos no quarto do andar de cima, que só seria descobertos pela manhã Um porteiro da noite, em Montrouge, devia possuir algum meio de transporte — Acabei de telefonar para Rouen — disse Jason, pondo as mãos sobre o balcão, desempenhando o papel de um homem irritado com os inesperados eventos do seu mundo pessoal. — Tenho que sair já e preciso alugar um carro. — Por que não? — disse o homem entredentes, enquanto se levantava da cadeira. — O que o senhor prefere, monsieur? uma carruagem dourada ou um tapete mágico? — Como?! — Aqui alugamos quartos, não automóveis. — Tenho que estar em Rouen antes do amanhecer. — Impossível. A menos que encontre um táxi com um motorista bastante louco para estar rodando por aí a esta hora. — Acho que você não me entendeu. Posso sofrer uma considerável perda de capital e muitos outros danos se não estiver em meu escritório amanhã de manhã, às oito horas. Estou disposto a pagar generosamente. — O senhor tem um problema, monsieur. — Decerto há alguém por aqui disposto a me emprestar o seu carro por digamos... mil, mil e quinhentos francos. — Mil, mil e quinhentos, monsieur? — Os olhos semicerrados se arregalaram, esticando a pele do rosto. — Em dinheiro, monsieur? — Naturalmente. A minha companheira o traria de volta amanhã à tarde. — Não há pressa, monsieur. — Como? É claro, não há nenhuma razão para eu não tomar um táxi. Também posso pagar pela confiança.
— Não sei onde arranjar um — interrompeu o porteiro, persuasivamente. — Por outro lado, o meu Renault não é novo e talvez não seja uma máquina rápida na estrada, mas é um bom carro, até mesmo precioso. O camaleão mudou de cor novamente, tinha passado outra vez pelo que não era. Mas, agora, já sabia quem era, e compreendia. Madrugada. Desta vez não estavam no quarto aquecido de uma hospedaria de vila: não havia papel de parede para ser respingado pela luz da manhã que invadia o quarto pela janela, nem folhagens do lado de fora para filtrar a claridade, os primeiros raios de sol se espalhavam, coroando o campo francês, delineando os campos e as montanhas de Saint-Germain-en-Laye. Estavam sentados no pequeno carro estacionado fora da estrada, na curva de uma rua deserta e distante. A fumaça em espiral dos cigarros saía pelas janelas parcialmente abertas. Ele começara aquela primeira narrativa, na Suíça, com estas palavras: Minha vida começou há seis meses, em uma pequena ilha do Mediterrâneo, chamada fie de Port Noir... Desta vez ele havia começado a narrativa com uma declaração direta e clara: Sou conhecido como Caim. Contara tudo, não deixara nada do que pôde ter-se lembrado, inclusive as imagens terríveis que lhe haviam explodido na mente quando ouvira as palavras de Jacqueline Lavier, no restaurante iluminado por velas, em Argenteuil. Nomes, incidentes, cidades... assassinatos. — Tudo se encaixava. Não havia nada que não soubesse, nada que não estivesse no fundo negro da minha memória, e tenasse fugir, escapar. Era a verdade. — Era a verdade — repetiu Marie. Ele olhou para ela. — Estávamos errados, não percebe? — Talvez. Mas certos, também. Você estava certo e eu estava certa. — A respeito do quê? — De você. Tenho que repetir, calma e logicamente. Você me ofereceu a sua vida antes mesmo de me conhecer; isso não é uma decisão de um homem como esse que você descreveu. Se esse homem existiu, não existe mais. — Os olhos de Marie pareciam implorar; a voz estava calma e controlada. — Você mesmo disse, Jason. “O que um homem não pode se lembrar é porque não existe para ele.” Talvez você deva encarar isso, olhar de frente. Pode fugir disso? Bourne assentiu com a cabeça; o terrível momento chegara. — Sim — disse. — Mas sozinho. Não com você. Marie tragou o cigarro, olhando para ele, a mão trêmula. — Compreendo. Esta é a sua decisão, então?
— Tem que ser. — Você desaparecerá heroicamente para que eu não seja corrompida. — É preciso. — Obrigada, muito obrigada. Que espécie de gente você acha que é? — O quê? — Que espécie de gente acha que é? — Sou o homem a quem chamam Caim. Sou procurado por muitos governos — pela polícia — desde a Ásia até a Europa. Alguns homens em Washington querem me matar pelo que acham que sei sobre essa Medusa; um assassino conhecido como Carlos quer me dar um tiro na garganta como recompensa pelo que eu lhe fiz. Pense nisso por um momento. Quanto tempo pensa que ainda posso continuar a fugir antes que alguém de um desses exércitos me encontre, arme uma cilada e me mate? É essa forma que você quer que a sua vida termine? — Por Deus, não! — exclamou Marie. Alguma coisa muito óbvia surgira em sua mente analítica. — A minha intenção é apodrecer numa prisão suíça durante cinqüenta anos ou ser enforcada por coisas que não fiz em Zurique! — Há uma forma de cuidar do que aconteceu em Zurique. Já pensei nisso, posso dar um jeito. — Como? — Ela bateu o cigarro no cinzeiro. — Pelo amor de Deus, que diferença faz? Uma confissão, entregando-me, ainda não sei, mas posso arrumar a sua vida de novo. Tenho que arrumá-la! — Não dessa forma. — Por que não? Marie acariciou-lhe o rosto, a voz agora mais suave, a irritação do momento anterior tinha passado. — Porque novamente acabei de provar o meu ponto de vista. Até mesmo um homem condenado — e consciente da sua culpa — enxergaria isso. O homem chamado Caim jamais faria o que você acaba de fazer. Para ninguém. — Sou Caim! — Mesmo que eu seja: forçada a acreditar que você foi Caim, agora você não é mais. — Uma tentativa de reabilitação? Uma lobotomia? Perda total da memória? Isso pode ser verdadeiro, mas não vai deter ninguém que está à minha procura. Não vai impedi-lo — ou impedi-los de puxar um gatilho. — Esta é a pior parte, e ainda não consegui admiti-la.
— Então você não está olhando para os fatos. — Estou considerando dois fatos que você parece ter rejeitado. Não posso. Vou viver com eles o resto da minha vida porque sou a responsável. Dois homens foram mortos com a mesma brutalidade porque se interpuseram entre você e uma mensagem que alguém tentava mandar-lhe. E através de mim. — Você viu a mensagem de Corbelier. Quantas perfurações de bala havia lá? Dez, quinze? — Então ele foi usado! Você o ouviu no telefone e eu também. Ele não estava mentindo; estava tentando nos ajudar. Se não estava tentando ajudá-lo, tentava ajudar-me, com toda certeza. — É... possível. — Tudo é possível. Não tenho respostas, Jason, apenas coisas dispersas, discrepâncias, coisas que não podem ser explicadas — mas que deviam ser esclarecidas. Você nunca, nem uma vez, demonstrou inclinação ou impulso para ser o que diz ter sido. E sem essas coisas um homem como o que você descreve não poderia existir. Ou, pelo menos, você não poderia ser ele. — Sou ele. — Ouça-me. Você me é muito caro, meu querido, e isso bem poderia me cegar, eu sei. Mas conheço-me muito bem. Não sou nenhum brotinho na flor da idade todo derretido; já vi muita coisa nesse mundo e costumo julgar com severidade e muito cuidado as pessoas que me atraem. Talvez para confirmar os meus próprios valores — e são valores. Meus, de mais ninguém. — Parou por um momento e desviou o olhar dele. — Vi um homem ser torturado — por ele mesmo e por outros — sem gritar. Você deve ter gritado silenciosamente, mas não permitiu que seus gritos fossem uma carga para os outros; só sua. Você sonda e escava e tenta entender. E isso, meu amigo, não faz parte da mente de um assassino com sangue-frio. Assim como o que você fez e quer fazer por mim não faz parte da mente de um criminoso. Não sei o que você foi antes, ou de que crimes se julga culpado, mas eles não são o que você acredita que sejam — o que os outros querem que você acredite que é. Isso me traz de volta aos valores dos quais falei. Sei por mim. Não poderia amar o homem que você diz ser. Amo o homem que sei que você é. E você acaba de confirmar que é este homem. Nenhum assassino faria o que você quer fazer. E essa oferenda, senhor, devo dizer-lhe, é respeitosamente rejeitada por mim. — Você é uma tola! — explodiu Jason. — Posso ajudá-la; você não pode me ajudar! Deixe que eu faça alguma coisa, pelo amor de Deus! — Não posso! Não dessa forma... De repente Marie ficou imóvel. Seus lábios se abriram. — Acho que acabo de fazer — disse, num sussurro. — Fazer o quê? — perguntou Bourne, irritado. — Alguma coisa por nós. — Ela virou-se para ele. — Acabei de mencionar uma coisa; uma coisa que já estava em minha mente há muito tempo: “O que os outros querem que você acredite...” — Mas do que está falando?
— Sobre os seus crimes... que os outros querem que você acredite que são seus. — Estão ligados a mim. São meus. — Espere um minuto. E se eles estiverem na sua mente e não forem seus? Suponhamos que a evidência desses crimes tenha sido criada — com toda a perícia do que foi criado contra mim, em Zurique —, mas que pertença a uma outra pessoa. Jason, você não sabe quando perdeu a sua memória! — Em Port Noir. — Lá foi onde você começou a criar uma memória, não onde a perdeu. Antes de Port Noir. Isso poderia explicar tudo. Não poderia explicar você, as contradições entre você e o homem que as pessoas pensam que você é. — Você está errada. Nada podia explicar essas lembranças — as imagens — que estão na minha mente. — Talvez você só se lembre do que lhe disseram — disse Marie. — Repetidas vezes. Até que sua memória fosse tomada por essas repetições. Fotografias, gravações, estímulos visuais e orais. — Você está descrevendo um vegetal ambulante que sofreu uma lavagem cerebral. Não sou isto. Ela olhou para ele e falou com calma. — Estou descrevendo um homem inteligente, muito doente, e cujo lastro mental foi conformado de acordo com a pretensão de outros homens. Você sabe que um homem assim pode ser encontrado com muita facilidade? Existem nos hospitais de todos os lugares, nos sanatórios particulares e nas enfermarias do Exército. — Fez uma pausa, depois continuou. — Aquele artigo de jornal continha outra verdade. Sou razoavelmente perita em lidar com computadores, qualquer um que exerça o meu trabalho costuma ser. Se eu estivesse à procura de uma linha-curva para incorporar fatores isolados, eu saberia como fazê-la. Fazendo a analogia, alguém poderia ter procurado um homem hospitalizado por amnésia e cujo lastro mental incorporasse habilidades especiais, línguas e características raciais. Os cadastros médicos disponíveis poderiam ter providenciado muitos candidatos. Talvez não existam tantos assim que estejam no seu caso; talvez alguns poucos, talvez apenas um. Mas era de apenas um homem que eles precisavam. Bourne olhou para o campo, tentando abrir as portas de aço da sua mente, tentando encontrar um pouco da esperança que ela possuía. — O que está dizendo é que sou a reprodução de uma ilusão — ele disse. — Este é o efeito final, mas não é o que estou dizendo. Estou querendo dizer que é possível que você esteja sendo manipulado. Usado. Isso explicaria muita coisa. — Ela segurou-lhe a mão. — Você sempre me diz que algumas vezes as coisas parecem querer explodir e sair de você — arrebentar a sua cabeça. — Palavras — lugares, nomes — que puxam outras coisas. — Jason, não é possível que elas engatilhem coisas falsas? Coisas que lhe foram repetidas muitas vezes e que você não pode reviver. Você não pode vê-las claramente porque elas não são você.
— Duvido. Vi o que sou capaz de fazer. Já fiz tudo isso antes. — Talvez você tivesse feito por outras razões!... Que diabo! Estou lutando pela minha vida! Por nossas vidas!... Está bem! Você pode pensar, você pode sentir. Pense agora, sinta agora! Olhe para mim e diga que você já olhou bem para o seu interior, para dentro de você, dos seus pensamentos e sensações, e que sabe, sem nenhuma dúvida, que você é este assassino chamado Caim! Se pode fazer isso, faça, de verdade, e depois me leve de volta para Zurique, aceite a culpa por tudo e saia da minha vida! Mas se não pode, fique comigo e deixe-me ajudá-lo. E me ame, pelo amor de Deus! Me ame, Jason. Bourne segurou-lhe a mão com firmeza, como se segura a mão de uma criança trêmula e nervosa. — Não é uma questão de sentir ou pensar. Vi a conta no Gemeinschaft; os depósitos são antigos. E correspondem a todas as coisas que percebi. — Mas essa conta, essas entradas, podem ter sido criadas ontem, na semana passada, ou há seis meses. Tudo o que você ouviu e leu sobre você mesmo podia fazer parte de alguma coisa projetada por aqueles que desejam que você tome o lugar de Caim. Você não é Caim, mas querem que você pense que é, e querem que os outros pensem também. Mas tem alguém por lá que sabe que você não é Caim e está tentando lhe dizer isto. Também tenho a minha prova. O meu amante está vivo, mas dois amigos meus estão mortos porque se colocaram entre você e quem lhe mandou a mensagem. Alguém que está tentando lhe salvar a vida. Eles foram mortos pelas mesmas pessoas que querem sacrificar você pan Carlos, no lugar de Caim. Você disse antes que tudo se encaixava. Não se encaixava, Jason. Mas isto se encaixa! Isto explica você. — Um abrigo oco que nem mesmo possui as lembranças que tem? Com demônios correndo lá dentro e chutando as paredes? Não é uma apresentação muito agradável. — Não são demônios, meu querido. São partes de você — raiva, fúria, e gritos para se libertarem, porque não pertencem ao abrigo que você lhes deu. — E se eu quebrar este abrigo, o que vou encontrar? — Muitas coisas. Algumas boas, outras más, muitas delas já bem machucadas. Mas Caim não vai estar lá, juro-lhe. Acredito em você, meu querido. Por favor, não desista. Ele manteve-se a distância, uma parede de vidro fora erigida entre eles. — E se estivermos errados? Reconhecidamente errados? O que vai acontecer? — Daí então deixe-me. Ou mate-me. Não me importa. — Eu a amo. — Eu sei. É por isto que não tenho medo. — Descobri dois números de telefone no escritório de Lavier; o primeiro é de Zurique, o outro é daqui de Paris. Com um pouco de sorte eles podem me levar ao único número que preciso.
— Nova Iorque? Treadstone? — Sim. A resposta está lá. Se eu não sou Caim, alguém por lá deve saber quem sou. Voltaram para Paris supondo que estariam menos expostos se estivessem em meio àquela multidão de pessoas, mais bem- escondidos do que em uma hospedagem do interior, isolada. Um homem louro, com óculos de aros de tartaruga, e uma mulher muito bonita, mas de rosto sério, sem maquilagem, os cabelos presos, como uma séria estudante da Sorbonne, não pareciam muito deslocados em Montmartre. Alugaram um quarto no Terrasse, na Rua de Maistre, registrando-se como casados em Bruxelas. No quarto, ficaram imóveis por uns momentos, nenhuma palavra era necessária para o que cada um sentia. Depois, se aproximaram, abraçando-se, afastando o mundo ofensivo que lhes recusava a paz, que os mantinha em equilíbrio precário sobre arames esticados, próximos um do outro, mas em cima de um profundo abismo. Se um dos dois caísse, seria o fim de ambos. Bourne não podia mudar, por enquanto, a cor do seu cabelo. Ficaria falso, e não havia lugar para artifícios. — Precisamos de descanso — disse. — Precisamos dormir um pouco. Vamos ter um dia cheio. Amaram-se. Gentilmente, plenamente, em meio ao calor e conforto da cama. Houve um momento, um momento tolo em que o ajuste dos corpos em determinado ângulo era vitalmente necessário, e riram. Foi um riso calmo, no início um pouco embaraçoso. Mas a observação fora feita, a apreciação daquela tolice era intrínseca a algo muito profundo entre eles. Abraçaram-se com mais força e intensidade quando o momento passou, mais e mais imbuídos em afastar os terríveis ruídos e suspiros do mundo escuro que os mantinha girando conforme a direção dos ventos. Estavam, de repente, irrompendo daquele mundo, mergulhando em outro muito melhor, onde a luz do sol e o azul das águas tomavam o lugar da escuridão. E corriam para ele febrilmente, furiosamente, até irromperem em seu interior, encontrando-o. Exaustos, adormeceram com os dedos entrelaçados. Bourne acordou primeiro, consciente das buzinas e do barulho dos motores no trânsito de Paris, lá embaixo, nas ruas. Olhou para o relógio, passavam dez minutos de uma hora. Haviam dormido quase cinco horas, provavelmente muito menos do que precisavam, na verdade, mas fora suficiente. Ia ser um dia intenso. Fazendo o que, ele ainda não sabia, sabia apenas que havia dois números de telefone que deviam levá-lo a um terceiro. Em Nova Iorque. Virou-se para Marie, que respirava profundamente ao seu lado, o rosto — aquele rosto adorável — próximo à beirada do travesseiro, os lábios abertos, perto dos dele. Beijou-a e ela estendeu os braços em sua direção, os olhos ainda fechados. — Você é um sapo e vou transformá-lo num príncipe — disse ela com voz de sono. — Ou é o contrário? — Isso não está no meu atual sistema de referência.
— Então tem que continuar a ser um sapo. Pule, sapinho. Mostre-me como se pula. — Sem tentações. Só pulo quando como moscas. — Sapos comem moscas? Acho que sim. Que horror. É horrível! — Vamos lá, abra os olhos. Temos que começar a pular. Temos que começar a caçar. Ela piscou e olhou para ele. — Caçar para quê? — Para mim — disse ele. Em uma cabine de telefone da Rua Lafayette, pediram uma chamada para um número em Zurique em nome de um Sr. Briggs. Bourne pensou que Jacqueline Lavier não teria perdido tempo em distribuir os seus alarmes; um deles já devia ter chegado a Zurique. Quando ouviu a campainha tocar na Suíça, Jason afastou-se e entregou o aparelho a Marie. Ela sabia o que dizer. Mas nem teve tempo de dizer nada. A telefonista internacional, em Zurique, entrou na linha. — Sentimos muito, mas o número chamado não consta mais da lista. — Mas estava funcionando há poucos dias — reclamou Marie. — É uma emergência, telefonista. Tem outro número? — O telefone não está mais funcionando, madame. Não existe outro número. — Talvez eu lhe tenha dado o número errado. É muito urgente. Podia me dar o nome de quem possuía este telefone? — Sinto muito, mas isto não é possível. — Estou lhe dizendo, é uma emergência! Posso falar com o seu chefe? Por favor? — Ele não poderia ajudá-la. Este numero pertence a uma lista não-publicada. Boa tarde, madame. A linha foi desligada. — Foi desligado — disse ela. — Levou muito tempo para descobrir isso — respondeu Bourne, olhando para os lados. — Vamos sair daqui. — Você acha que podem nos localizar? Aqui, em Paris? Em um telefone público? — Em três minutos o centro telefônico pode ser localizado e o distrito determinado. Em quatro, podem reduzir os quarteirões em número de doze apenas, depois fica fácil localizar.
— Como sabe? — Quisera poder dizer-lhe. Vamos. — Jason. Por que não esperamos aqui perto, escondidos, para observar? — Porque não sei o que devo observar, e eles sabem. Eles devem ter uma fotografia, podem avisar os homens de toda essa área. — Mas não estou parecida com a foto dos jornais. — Não, você. Eu. Vamos! Caminharam depressa entre o fluxo e refluxo da multidão rrante, até chegarem ao bulevar Malesherbes, dez quarteirões de onde estavam. Outra cabine telefônica. Esta seria uma ligação diferente, sem o auxílio da telefonista, pois era para Paris. Marie entrou na cabine com as moedas na mão e discou o número. Estava bem-preparada. Mas as palavras que lhe chegaram aos ouvidos a deixaram completamente atônita: — La résidence du Général Villiers. Bonjour?... Allô? Allô? Por um momento Marie ficou paralisada, incapaz de falar. Ficou olhando espantada para o aparelho. — Je m’excuse — sussurrou. — Une erreur. — E desligou. — O que foi? — perguntou Bourne, abrindo a porta de vidro. — O que aconteceu? Quem era? — Não faz sentido — disse ela. — É da casa de um dos homens mais poderosos e respeitáveis da França.
Capítulo24 — André François Villiers — repetiu Marie, acendendo um cigarro. Haviam voltado para o quarto no Terrasse, para pensar um pouco sobre aquelas coisas, tentar absorver aquela espantosa informação. — Pertence a Saint-Cyr, é herói da Segunda Guerra Mundial, uma lenda da Resistência, e, até o seu atrito com a Argélia, era o herdeiro de De Gaulle. Jason, ligar esse homem com Carlos é simplesmente inacreditável. — Mas a ligação existe. Acredite-me. — É muito difícil. Villiers é um homem honrado, da velha guarda francesa, tem uma linhagem familiar que começou no século dezessete. Hoje é um dos deputados da Assembléia Nacio- nal — politicamente mais direitista do que Carlos Magno, para ser franca —, mas é um homem da lei-e-dodireito do Exército. É como fazer uma ligação entre Douglas MacArthur e um chefe da Máfia. Não faz sentido. — Então vamos procurar algum sentido. Qual foi a causa do atrito com De Gaulle? — A Argélia. No começo dos anos sessenta, Villiers fazia parte da OAS — era um dos coronéis argelianos sob o comando de Salan. Opuseram-se aos acordos de Evian, que deram inde pendência à Argélia, acreditando que ela pertencia, por direito, à França. — Os coronéis loucos da Argélia — disse Bourne, como tantas outras palavras e frases que dizia sem saber por quê. — Isso tem algum significado para você? — Deve ter, mas não sei o que é. — Pense — disse Marie. — Por que os “coronéis loucos” deviam sensibilizá-lo? Qual é a primeira coisa que lhe vem à mente? Rápido! Jason olhou para ela, desamparado; depois as palavras saíram: — Bombardeamentos... infiltrações. Provocateurs. Foram estudados; os mecanismos foram estudados. — Por quê? — Não sei. — São decisões baseadas no que se descobre? — Acho que sim. — Que espécie de decisões? O que foi decidido? — Rupturas.
— O que isto significa para você? Rupturas. — Não sei! Não posso pensar! — Está bem... está bem. Voltaremos a isso outra hora. — Não há tempo. Vamos voltar a Villiers. Depois da Argélia, o que aconteceu? — Houve uma reconciliação, até certo ponto, com De Gaulle. Villiers nunca esteve diretamente implicado com o terrorismo, e o seu registro militar assim o exigia. Ele voltou para a França — foi muito bem-vindo, realmente — como lutador de uma causa perdida, mas respeitável. Reassumiu o seu comando, elevando-se ao posto de general, antes de entrar para a política. — É um político atuante, então? — É mais um porta-voz. Um estadista respeitado. É ainda um militarista ativo, ainda fica exaltado com as reduzidas forças militares da França. — Howard Leland — disse Jason. — Aí está a sua conexão com Carlos. — Como? Por quê? — Leland foi assassinado porque interferiu na questão dos incrementos de armas para exportação, no Quai D’Orsay. Não precisamos de mais nada. — Parece incrível, um homem como ele... — A voz de Marie sumiu, ela estava chocada com a lembrança. — O filho dele foi morto. Foi um caso político, há cerca de cinco ou seis anos — Conte-me. — Seu carro explodiu na Rua du Bac. Saiu em todos os jornais do mundo. Ele era um político trabalhista e, como o pai, um conservador, fazendo oposição aos socialistas e comunistas em todas as eleições. Era membro jovem do Parlamento, obstrucionista dos programas de despesas do Governo, mas na verdade muito popular. Era um aristocrata muito charmoso. — Quem o matou? — Segundo as especulações, fanáticos comunistas. Ele conseguira bloquear algumas leis favoráveis à extrema esquerda. Depois da sua morte, eles se dividiram e a legislação conseguiu passar. Muitos pensam que foi por isso que Villiers deixou o Exército e ficou na Assembléia Nacional. É por isso que é tão improvável, tão contraditório. Afinal, o filho dele foi assassinado; o que se pode deduzir disso é que ele não teria nenhum relacionamento com um assassino. — E tem mais uma coisa. Você disse que ele foi muito bem-vindo em Paris porque nunca esteve diretamente implicado com o terrorismo. — Se esteve — interrompeu Marie — foi escondido. Eles são muito mais tolerantes com as causas passionais por aqui, pois aqui negócios de Estado e de cama estão ligados. E ele era um legítimo
herói, não se esqueça disso. — Mas uma vez terrorista, sempre terrorista, não se esqueça disso. — Não posso concordar. As pessoas mudam. — Não em relação a algumas coisas. Nenhum terrorista se esquece do quanto foi eficiente; eles vivem disso. — Como você sabe? — Não estou muito certo de querer me fazer esta pergunta agora. — Então não a faça. — Mas estou certo a respeito de Villiers. Vou me encontrar com ele. — Bourne foi até a mesa de cabeceira e pegou a lista telefônica. — Vejamos se ele está na lista ou se esse número é particular. Vou precisar do endereço dele. — Você não vai chegar perto dele. Se ele é um contato de Carlos, estará bem vigiado. Eles o matarão na hora; eles têm a sua fotografia, lembra-se? — Isso não vai ajudá-los. Não serei o que eles procuram. Aqui está, Villiers, A. F. — Parc Monceau. — Ainda não posso acreditar nisso. Se ela soubesse, essa Lavier, para quem estava telefonando, teria ficado em estado de choque. — Ou assustada. A ponto de fazer qualquer coisa. — Não lhe parece estranho que ela tivesse este número? — Não nas circunstâncias atuais. Ele quer que os seus boca-moles saibam que não está brincando. Ele quer Caim. Marie ficou de pé. — Jason? O que é um “boca-mole”? Bourne levantou os olhos para ela. — Não sei... Alguém que trabalha para uma pessoa cegamente. — Cego? Sem ver? — Sem saber. Pensando que está fazendo uma coisa quando, na verdade, está fazendo outra. — Não entendo. — Digamos, eu lhe peço para vigiar um carro em determinada esquina. O carro nunca aparece, mas o fato de você estar lá é um sinal para alguém que a está vigiando de que alguma coisa aconteceu.
— Aritmeticamente, uma mensagem que não pode ser rastreada. — Sim, acho que sim. — Foi o que aconteceu em Zurique. Walther Apfel foi um “boca-mole”. Comunicou aquela história sobre o roubo sem saber o que realmente estava dizendo. -Q — Você estava sendo informado de que devia procurar alguém a quem conhece muito bem. — Treadstone Seventy One — disse Jason. — Voltamos a Villiers. Carlos me encontrou em Zurique através do Gemeinschaft. Isto quer dizer que ele devia saber tudo sobre o Gemeinschaft. E, portanto, devia saber tudo sobre a Treadstone. Isso quer dizer que Villiers também deve saber. Se não souber, pode haver uma forma de procurar se informar para nós. — Como? — Seu nome. Se ele é tudo o que você diz, ele deve preservar-se muito bem. O honorável da França tendo ligação com um porco como Carlos. Isto deve ter algum efeito. Ameaçá-lo-ei de ir à polícia, aos jornais. — Ele simplesmente negará tudo. Dirá que é um ultraje. — Deixe dizer. Não é. Esse era o seu número no escritório de Lavier. Além disso, qualquer desmentido viria na mesma página da informação de sua morte. — Mas você ainda tem que procurá-lo. — Vou. Sou um pouco camaleão, lembra-se? A rua ladeada de árvores em Parc Monceau parecia-lhe de alguma forma familiar; não que antes tivesse passado por ali. Ao contrário, era a atmosfera. Duas filas de casas bem-cuidadas, de pedra, as portas e janelas brilhantes, ferragens reluzentes, escadarias muito bem-lavadas, e as salas iluminadas deixando à mostra as plantas de ornamento. Era uma rua habitada por pessoas de alto poder aquisitivo, em um bairro de alta classe. Sabia que já estivera em um bairro assim antes e que isso tinha significado alguma coisa na sua vida. Eram 19h35 mm. Uma noite fria de março. O céu estava limpo e o camaleão vestido para a ocasião. Os cabelos louros de Bourne estavam cobertos por um boné, o pescoço encoberto pela gola levantada da jaqueta, que tinha impresso nas costas o nome de uma agência de correios. Sobre o ombro, as alças de couro de uma mochila quase vazia. Estava no fim de um dia de trabalho, entregando as últimas correspondências. Tinha ainda duas ou três paradas para fazer, talvez quatro ou cinco, se achasse necessárias. Na hora saberia. Os envelopes não eram, na realidade, envelopes. Eram anúncios de publicidade oferecendo os prazeres do Bateaux Mouche, que ele retirara do saguão de um hotel. Selecionaria uma série de casas próximas à residência do General Villiers e colocaria as brochuras nas caixas de correspondência. Seus olhos captariam tudo o que vissem; procurava, acima de tudo o mais,
uma coisa apenas: que espécie de segurança teria Villiers? Quem guardava o general e quantos estavam por lá? E porque estava convencido de que encontraria alguns homens dentro de carros e outros caminhando em seus postos, ficou atônito ao perceber que não havia ninguém. André François Villiers, um militarista, porta-voz da sua causa, a conexão mais importante de Carlos, não tinha nenhum serviço de segurança externo. Se tinha alguma proteção, ela se concentraria apenas dentro de casa. Considerando a grandiosidade do seu crime, Villiers era um arrogante a ponto de ser assim descuidado, ou então um tolo. Jason subiu os degraus de uma residência vizinha; a porta de Villiers não estava a mais de vinte pés de distância. Colocou a brochura na caixa, olhando para as janelas da casa de Villiers, procurando um rosto, um vulto. Não havia nada. A porta, próxima dali, de repente se abriu. Bourne se agachou, enfiou a mão dentro da jaqueta, procurando a arma, e pensando que ele fora um tolo, alguém mais observador do que ele o enxergara. Mas as palavras que ouviu lhe diziam o contrário. Um casal de meia-idade — uma governanta uniformizada e um homem vestido com um paletó escuro — conversava na porta. — Veja bem se os cinzeiros estão limpos — disse a mulher. — Você bem sabe que ele detesta cinzeiros sujos. — Ele dirigiu esta tarde — respondeu o homem. — Isso quer dizer que devem estar completamente entulhados. — Limpe-os na garagem; você tem bastante tempo. Ele não vai descer antes de dez minutos. Precisa chegar a Nanterre só às oito e meia. O homem assentiu com a cabeça, levantando a lapela de sua jaqueta enquanto descia os degraus. — Dez minutos — disse casualmente. A porta se fechou e o silêncio voltou à rua tranqüila. Jason se levantou, pôs a mão no gradil, vendo o homem descer os degraus com pressa em direção à calçada. Não tinha muita certeza de saber onde ficava Nanterre, sabia apenas que era um subúrbio de Paris. E se Villiers estava indo para lá, dirigindo o carro, não havia razão para adiar o confronto. Bourne trocou a alça da mochila de ombro e desceu rapidamente as escadas, virando à esquerda na calçada. Dez minutos. Jason olhou pela janela para a porta aberta, o General-de-Exército André François Villiers apareceu. Era de estatura média, entroncado, homem de sessenta e poucos anos, quase setenta, talvez. Estava sem chapéu, tinha o cabelo cortado rente, já grisalho, e uma barba branca, meticulosamente cuidada. Sua postura era visivelmente militar, impunha o corpo no espaço, conquistando-o como se estivesse quebrando muros invisíveis que iam ruindo à sua passagem. Bourne olhou bem para ele, fascinado, tentando imaginar que insanidade poderia ter levado um homem daqueles a ingressar no obsceno mundo de Carlos. Quaisquer que fossem as razões, tinham que
ser muito poderosas, porque ele era poderoso. E isso o tomava perigoso — porque ele era respeitado e ouvido por seu Governo. Villiers virou-se e falou com a governanta, olhando para o relógio. A mulher fez um sinal com a cabeça, depois fechou a porta, enquanto o general descia bruscamente os degraus e dava a volta no sedã, entrando no lugar do motorista. Deu a partida e começou a rodar lentamente. Jason esperou até que o sedã chegasse na esquina. Ele virou à direita. Então, Jason acelerou devagar o seu Renault, tirando-o do meio-fio. Chegou à esquina a tempo ainda de ver Villiers virar à direita novamente. Havia uma certa ironia na coincidência, um certo presságio para quem acredita em tais coisas. A rota que o General Villiers escolheu para contornar o subúrbio de Nanterre incluía uma extensão de rua afastada, fora da cidade, do lado do campo, quase idêntica àquela em Saint-Germain-en-Laye, onde, doze horas atrás, Marie implorara a Jason que não se entregasse — ou a sua vida ou a dela. Havia alguns pedaços de terra pan pastagem de gado, campos que se fundiam nas montanhas; mas o lugar não era coroado pela luz da manhã. A luz vinha da lua fria que iluminava a terra. Ocorreu a Bourne que esta extensão da estrada, isolada e silenciosa, poderia ser um lugar tão bom quanto qualquer outro para interceptar o general na volta. Não seria difícil para Jason segui-lo à distância de um quarto de milha. De repente surpreendeuse ao perceber que praticamente estava atrás do velho soldado. Villiers diminuíra a marcha e dobrava para um atalho de cascalho que saía do bosque. Lá ao longe uma área de estacionamento estava iluminada. Uma placa estava pendurada por duas correntes em um poste alto: L’ARBALÉTE. o general ia se encontrar com alguém, para jantar, em um restaurante de beira de estrada, não no subúrbio de Nanterre, mas ali por perto. No campo. Bourne passou pela entrada e estacionou do lado de fora; o lado direito do carro estava encoberto pelas folhagens. Tinha que pensar novamente; tinha que se conter. Havia um fogo queimando-lhe a mente; queimando e crescendo, se espalhando. Estava diante de uma oportunidade extraordinária. Considerando os vários eventos — o grande embaraço experimentado por Carlos na noite passada, no motel de Montrouge, era possível que André Villiers tivesse sido chamado a um restaurante afastado para um encontro de emergência. Talvez até mesmo com o próprio Carlos. Se fosse este o caso, os arredores estariam guardados e um homem, cuja fotografia fora distribuída para esses mesmos guardas, seria imediatamente morto com um tiro logo que reconhecido. Por outro lado, a chance de observar de perto um núcleo pertencente a Carlos — ou o próprio Carlos — era uma oportunidade que nunca mais lhe seria dada. Tinha que entrar no L’ARBALÉTE. Era uma compulsão dentro dele; tinha que correr o risco. Qualquer risco. Era uma loucura! Mas ele não era mesmo são. Tanto quanto o era um homem que possuía memória. Carlos. Encontrar Carlos! Deus do céu, por quê? Sentiu a arma no cinto; estava seguro. Saiu do carro e vestiu o sobretudo, cobrindo a jaqueta de letras nas costas. Pegou um chapéu de aba estreita que estava no assento, feito de tecido macio, e encobriu os cabelos. Depois tentou se lembrar se usava os óculos de aro de tartaruga quando a fotografia foi tirada, em Argenteuil. Não, não estava; ele os havia tirado à mesa, quando aquelas pontadas sucessivas começaram a atravessar a sua cabeça, trazidas por palavras que lhe falavam de um passado muito familiar, muito assustador para olhar de frente. Os óculos estavam no bolso da camisa,
caso precisasse deles. Travou a porta e avançou pelo bosque. A luz que vinha dos refletores do restaurante atravessava as árvores e ficava cada vez mais forte à medida que as folhagens iam rareando. Bourne chegou à beira da curta passagem que saía do bosque; o caminho de cascalho ia dar na área de estacionamento. Saiu do lado do rústico restaurante. Uma fileira de pequenas janelas cobria toda a extensão do edifício, a luz trêmula de velas iluminava os vultos do outro lado do vidro, os vultos dos freqüentadores. Seus olhos se desviaram para o segundo andar — a área não tinha o comprimento do primeiro andar, só a metade, o lado de trás era um terraço aberto. A parte fechada, no entanto, parecia igual à do primeiro andar. Uma fileira de janelas, um pouco mais largas talvez, mas uma ao lado da outra, e todas iluminadas por velas. Alguns vultos estavam passando por lá, mas eram diferentes dos freqüentadores do primeiro andar. Eram homens. Estavam em pé, movimentando-se casual- mente, os copos nas mãos, enquanto a fumaça dos cigarros subia em espirais acima das suas cabeças. Era impossível dizer quantos eram — mais de dez, menos de vinte, talvez. Lá estava ele, indo de um grupo para outro, a barba branca era um sinal fácil de identificar, desviando-se de lá para cá, constantemente interceptado pelos vultos que estavam perto das janelas. O General Villiers tinha, sem dúvida alguma, vindo até Nanterre para um encontro, e as circunstâncias favoreciam uma reunião para discutir as falhas que permitiam que um homem chamado Caim ainda estivesse vivo. As circunstâncias. Que circunstâncias? Onde estavam os guardas? Quantos eram e onde ficavam os seus postos? Mantendo-se por trás das árvores, Bourne chegou-se à frente do restaurante, puxando para baixo alguns ramos e galhos das folhagens, em silêncio, os pés andavam sobre a vegetação rasteira. Ficou imóvel, tentando encontrar homens escondidos entre as folhagens ou nas sombras do edifício. Não encontrou nenhum e afastou-se um pouco do caminho, até alcançar os fundos do restaurante. Uma porta se abriu, a luz saiu forte para fora, e um homem de paletó branco apareceu. Ficou parado por um instante, as mãos em concha, tentando acender um cigarro. Bourne olhou para a esquerda, para a direita e para cima, em direção ao terraço; ninguém apareceu. Se um guarda estivesse por ali, teria ficado alarmado pela luz repentina tão próxima da sala de reunião. Não havia nenhum guarda lá fora. A proteção estaria — como devia estar na casa de Villiers em Parc Monceau — dentro do próprio edifício. Outro homem apareceu na porta, também vestindo um paletó branco mas com o chapéu de chefe de cozinha. Sua voz soou irada, falava em um dialeto francês da Gasconha. — Enquanto você mija, nós suamos! O carrinho de massas está quase vazio. Encha-o. Agora, seu filho da puta! O homem das massas virou-se e deu de ombros; amassou o cigarro e entrou, fechando a porta. A luz desapareceu; havia apenas o clarão do luar, suficiente para iluminar o terraço. Não havia mais ninguém por lá, nenhum guarda patrulhando as largas portas duplas que davam para a sala. Carlos. Encontrar Carlos. Tocaiar Carlos. Caim é para Charlie, e Delta é para Caim. Bourne calculou a distância e os obstáculos. Não estava a mais de quarenta pés dos fundos do
edifício, a dez ou doze do gradil que rodeava o terraço. Havia dois respiradouros na parede de fora, saía vapor dos dois e, ao lado deles, um cano de escoamento que alcançava o gradil. Se pudesse escalar o cano e conseguisse se segurar em um dos respiradouros, poderia agarrar-se em uma das grades da sacada e pular para dentro do terraço. Mas não podia fazer nada disso com aquele sobretudo. Tirou-o, deixando-o no chão, com o chapéu em cima. Cobriu-os com grama. Em seguida, avançou correndo pelo chão de cascalho até chegar perto do cano. No escuro, forçou o metal; estava bem-preso. Tentou alcançar o cano o mais alto que pôde, depois pulou, agarrando-se firmemente, com os pés grudados à parede, pondo um na frente do outro, até que seu pé esquerdo ficou paralelo ao primeiro respiradouro. Segurando-se bem, conseguiu escorrega o pé para a cavidade do respiradouro e dar um impulso para cima. Já estava próximo do gradil; mais um impulso e alcançaria a balaustrada. A porta se abriu de repente, embaixo dele, a luz branca se espalhou pelo cascalho, iluminando o bosque. Um vulto saiu lá de dentro tropeçando, tentando manter o equilíbrio, seguido pelo chefe de chapéu branco, que gritava. — Seu mijão! Você está bêbado, é isso! Passou toda a noite bêbado! Deixou cair massa pela sala de jantar toda. Que sujeira! Saia; não vou lhe dar nem um centavo! A porta se fechou. Jason segurou-se no cano, os braços e os pés doíam, filetes de suor escorriamlhe da testa. O homem lá embaixo cambaleou de volta, fazendo gestos obscenos com a mão direita para o chefe, que não estava mais lá. Levantou os olhos para a parede e deu com o rosto de Bourne. Jason segurou a respiração quando seus olhos se encontraram; o homem olhou espantado, depois piscou e olhou de novo. Balançou a cabeça, fechou os olhos, depois arregalou-os bem em direção à sua visão, mas sem muita certeza do que via. Afastou-se um pouco, escorregou para a frente e arrancou num passo lento; obviamente concluíra que a visão na parede era resultado do seu excesso de trabalho. Virou no canto do prédio, um homem em paz com sua consciência por ter rechaçado a tolice que assaltara seus olhos. Bourne voltou a respirar novamente, deixando que seu corpo despencasse contra a parede para poder descansar um pouco. Mas só por um momento; a dor do calcanhar passara para o pé, era um início de câimbra. Deu um impulso com o corpo e agarrou-se com a mão direita à barra de ferro que formava a base do gradil, e depois também com a mão esquerda. Ajudando-se com os joelhos, foi subindo pela parede lentamente, até que sua cabeça estivesse acima da beirada do terraço. Estava vazio. Jogou a perna direita para cima, balançou o corpo e pulou por cima do gradil. Era um terraço usado para jantares na primavera e no verão; o chão era de ladrilho e acomodava umas quinze mesas. No centro da parede, separando a parte fechada do terraço aberto, estavam as portas duplas que vira do bosque. Os vultos lá dentro estavam agora todos imóveis, parados. Por um instante, Jason ficou imaginando se não fora acionado algum alarme — se não estavam à sua espera. Ficou imóvel com a mão na arma, preparado; mas nada aconteceu. Então, aproximou-se da parede, encostado às sombras, e foi se chegando, de costas contra a parede, às portas. Devagar foi aproximando a cabeça do vidro da porta, olhando para dentro. O que viu era hipnotizante e assustador. Os homens estavam alinhados — em três filas
separadas, quatro homens em cada uma — de frente para André Villiers, que lhes dirigia a palavra. Eram ao todo treze homens, doze não apenas de pé e imóveis mas ouvindo com toda a atenção o que lhes era dito. Eram homens já de certa idade; todos antigos soldados. Nenhum estava uniformizado; nas lapelas estavam presas as fitas e cores regimentais, encimadas por condecorações por valor e mérito. Esses homens estavam acostumados ao comando — ao poder. Isto estava estampado em seus rostos, nos olhos, na forma como ouviam o seu interlocutor — respeitosa mas não cegamente, fazendo um sério julgamento do que ouviam. Seus corpos eram velhos, mas havia uma energia vigorosa que se desprendia deles. Havia muita energia naquela sala. Este era o aspecto mais amedrontador. Se esses homens pertencessem a Carlos, as forças do assassino não apenas estavam longe de serem desmanteladas, mas eram ainda extraordinariamente perigosas. Porque estes não eram homens comuns, eram soldados profissionais, já bem-escolados. A menos que estivesse completamente equivocado, pensou Bourne, a profunda experiência e possibilidade de influência que pairavam naquela sala eram espantosas. Os loucos coronéis da Argélia — o que restara deles? Homens conduzidos por lembranças de uma França que não existia mais, de um mundo que se acabara, trocado por outro, que achavam frágil e ineficiente. Tais homens podiam muito bem fazer um pacto com Carlos, apenas pelo poder que isto lhes conferia. Lutar. Atacar. Matar. Decisões de vida ou morte que uma vez já tinham feito parte da sua estrutura de trabalho revividas agora por uma força que podia servir as causas que acreditavam ínviaveis. Uma vez terrorista sempre terrorista. E o assassinato era o centro do tenor. O general estava elevando a voz; Jason tentou ouvir as palavras através do vidro. Elas vieram claras. “... a nossa presença será sentida e o nosso propósito entendido. Estamos juntos em nossos postos, e eles são irremovíveis. Seremos ouvidos! Em memória de todos aqueles que caíram — nossos irmãos de túnica e artilharia —, que ofereceram as suas vidas pela glória da França. Forçaremos o nosso amado país a se lembrar, e a se fortalecer pela força dos seus nomes, sem ser deles um lacaio! Os que se opõem a nós conhecerão a nossa ira. Nisto, também estamos unidos. Rezamos a Deus Poderoso para que os que se foram antes de nós encontrem paz, porque nós ainda estamos vivendo em conflito... Cavalheiros: entrego-lhes a Nossa dama — a nossa gloriosa França!” Seguiram-se ruídos de aprovação, os velhos soldados em posição de sentido. E, em seguida, outra voz se elevou, cantando melodiosamente, e depois acompanhada pelas demais. Allons enfants de la patrie, Le jour de gloire est arrivé... Bourne virou-se, nauseado com o que vira. Perda de vidas em nome da glória; a morte dos camaradas caídos evocando outras mortes. Era exigido; e se isso significava um pacto com Carlos, que assim fosse. O que o perturbava tanto? Por que de repente era acometido por sentimentos de raiva e futilidade? O que desencadeara aquela revolta que sentia tão fortemente? Já sabia. Odiava homens como André Villiers, desprezava todos aqueles homens. Eram velhos que tinham feito as guerras e roubado as
vidas dos jovens... e das crianças. Por que as névoas o envolviam novamente? A dor era tão aguda! Não havia tempo para perguntas, nem forças para tolerálas. Teve que afastar da mente a dor e se concentrar em André François Villiers, guerreiro e senhor da guerra, cujas causas eram antigas, pertenciam ao ontem, mas cujo pacto com um assassino chamava a morte hoje. Encurralaria o general. Quebrá-lo-ia. Faria com que dissesse tudo o que sabia e, depois, provavelmente o mataria. Homens como Villiers roubavam a vida dos jovens e das crianças. Não mereciam viver. Estou dentro do meu labirinto novamente. E as paredes estão cheias de espinhos encravados. Oh, Deus, como eles ferem. Jason pulou por cima do gradil e foi-se abaixando até alcançar o cano; todos os seus músculos doíam. A dor também tinha que ser apagada. Ainda tinha que chegar a um trecho deserto da estrada e, no clarão do luar, armar uma emboscada para um irmão da morte.
Capítulo25 Bourne ficou à espera no Renault, a duzentas jardas do restaurante, com o motor ligado, preparado para acelerar e passar na frente tão logo avistasse Villiers. Alguns já haviam deixado o restaurante, todos em carros separados. Os conspiradores nunca apregoavam a sua sociedade e aqueles velhos eram conspiradores no sentido mais lato da palavra. Haviam trocado todas as honras adquiridas pela convivência letal da arma de um assassino e sua organização. A idade e a inclinação tirara-lhes a razão, mesmo porque haviam passado sua vidas roubando a vida dos outros... dos jovens e das crianças. O que é isso? Por que esta idéia não me deixa? Alguma coisa muito terrível está enterrada em seu interior, lá no fundo, tentando sair, tentando me matar. O medo e a culpa me atravessam... mas por que e para que, não sei. Por que esses velhos encanecidos me provocam tais sentimentos de medo e culpa... e repugnância? Eles representam a guerra. A morte. Tanto na terra quanto no céu. No céu... a morte vinda do céu. Ajude-me, Marie. Pelo amor de Deus, ajude-me! Lá vinha. Os faróis apareceram na estrada, o longo chassi escuro iluminado pelos faróis. Jason permaneceu com os faróis apagados enquanto saía do escuro. Acelerou até chegar à primeira curva, acendeu os faróis e apertou o acelerador até o fim. Aquele ponto isolado da estrada estava próximo, tinha que chegar lá bem depressa. Passavam de dez minutos das onze horas. Como há três horas, a linha dos campos ia acabar nas montanhas, iluminadas pelo clarão da lua agora no centro do céu. Chegou; conseguiu chegar. O acostamento era largo, margeando as pastagens; os dois automóveis poderiam portanto se afastar da estrada, O objetivo imediato, no entanto, era fazer com que Villiers parasse o carro. O general era velho mas não frágil; se a tática levantasse suspeitas, ele entraria pelo campo e escaparia. Tudo era uma questão de tempo e de conjugar o inesperado no momento próprio. Bourne manejou o Renault para fazer o retorno, esperando que as luzes dos faróis aparecessem a distância. Em seguida acelerou, virando a direção violentamente para a direita e para a esquerda. O automóvel adernou de um lado para o outro na estrada — era um motorista que perdera a direção do seu carro, incapaz de controlá-lo em linha reta mas, ainda assim, em alta velocidade. Villiers não teve outra escolha; diminuiu a marcha, enquanto Jason acelerava em sua direção. Então, subitamente, quando os dois carros não estavam a mais de vinte pés de uma colisão, Bourne virou a direção para a esquerda, freando e derrapando, os pneus cantando. Parou, abriu a janela e elevou a voz em um grito indeterminado. Meio grito, meio exclamação; podia ser a explosão de um homem doente, de um bêbado, mas não era assustador. Colocou a mão na moldura da janela e ficou em silêncio, agachado no assento, a arma no colo. A porta do sedã se abriu; ele espiou através da direção. O velho não estava armado, aparentemente; e não parecia suspeitar de nada; estava apenas aliviado por ter sido evitada uma batida. O general caminhou na frente dos faróis até a janela do Renault, gritando ansiosamente, num francês interrogativo, que devia usar no seu comando do Saint-Cyr.
— O que significa isto? O que pensa que está fazendo? Você está bem? — Segurou-se na janela. — Sim, mas o senhor não está — respondeu Bourne em inglês, levantando a arma. — O quê... — O velho engasgou, permanecendo de pé, ereto. — Quem é você e o que significa isto? Jason saiu do Renault, com a mão esquerda em cima do cano da arma. — Fico contente em saber que entende e fala fluentemente o inglês. Ande de volta para o seu carro e ponha-o para fora da estrada. — E se me recusar? — Matá-lo-ei agora mesmo. Não precisa muito para me provocar. — Estas palavras são das Brigadas Vermelhas? Ou do ramo parisiense do Baader-Meinhof? — Por quê? Poderia dar-lhes uma contra-ordem, se fossem? — Eu cuspiria neles! E em você também! — Ninguém jamais duvidou de sua coragem, general! Agora ande para o seu carro. — Não é uma questão de coragem! — disse Vililers sem se mexer. — É uma questão de lógica. Você nada ganha se me matar e multo menos ainda se me seqüestrar. Às minhas ordens são firmes e compreendidas inteiramente pelo meu quadro de auxiliares e pela minha família. Os israelenses estão absolutamente certos: não pode haver qualquer negociação com os terroristas. Use sua arma, seu sujo! Ou então suma daqui! Jason olhou bem para o velho soldado. De repente, estava completamente aturdido, incerto, mas não estava com vontade de se deixar enganar. Eram os olhos furiosos do homem que o olhava fixamente. Um nome completamente imundo combinado com outro inflado de honras dadas pela sua nação causaria um outro tipo. de explosão; ele poderia ver nos olhos do velho. — Lá, no restaurante, o senhor disse que a França não podia ser lacaia de ninguém. Mas um general da França tornou- se lacaio de alguém. O General André Villiers, um mensageiro de Carlos, contato de Carlos, militante de Carlos, lacaio de Carlos. Os olhos furiosos cresceram nas órbitas, se arregalaram, mas não da forma que Jason esperava. A fúria se transformou em ódio, não em choque, nem histeria, mas em repúdio profundo. A mão de Villiers foi em direção ao rosto de Jason, num golpe rápido e preciso, doloroso. Mais uma bofetada brutal; a força da pancada fez com que Jason caísse, O velho se adiantou, bloqueado pelo cano da arma, mas sem nenhum medo, sem se deixar inibir pela sua presença, preocupado apenas em infligir uma punição. Os golpes se sucediam, dados por um homem possesso. — Porco! — gritou Villiers. — Canalha, seu porco sujo! Imundo!
— Eu atiro! Eu o mato! Pare! — Mas Bourne não podia puxar o gatilho. Estava encostado contra o cano, os ombros esmagados contra a capota. E o velho continuava a atacar, socando-o com as mãos. — Mate-me se for capaz — se tiver a ousadia! Sujo! Canalha! Jason jogou a arma no chão, levantou os braços para desviar os golpes de Villiers. Segurou o pulso direito do velho, depois o esquerdo, agarrando o braço que estava levantado, pronto para outro golpe, como uma espada. Torceu os dois com violência, forçando Villiers a se curvar, fazendo com que o velho soldado ficasse imóvel. Os rostos dos dois estavam próximos, o peito do velho soldado voltando à posição ereta. — Está querendo .me dizer que não é um homem de Carlos? Nega isso? Villiers avançou de novo, tentando livrar-se de Bourne, arremetendo o forte tórax contra Jason. — Eu o insulto! Animal! — Que diabo, sim ou não? O velho cuspiu no rosto de Bourne, os olhos estavam em fogo, mas turvados, banhados em lágrimas. — Carlos matou o meu filho — disse num sussurro. — Matou o meu único filho na Rua du Bac. A vida do meu filho voou pelos ares com cinco cartuchos de dinamite na Rua du Bac! Jason foi lentamente reduzindo a pressão dos dedos. Respirando pesadamente, falou tão calmamente quanto podia. — Ponha o seu carro no campo e fique lá. Precisamos conversar, general. Está acontecendo algo que o senhor não sabe; é melhor descobrirmos o que é. — Nunca! É impossível! Não pode ser! — Mas é — disse Bourne, sentado com Villiers no assento da frente do seu sedã. — Um incrível engano deve ter sido cometido! Você não sabe o que está dizendo! — Nenhum engano — e sei o que estou dizendo, porque eu mesmo encontrei o número. Não é apenas o número certo, mas é um magnífico esconderijo. Ninguém em sã consciência iria ligá-lo a Carlos, especialmente à luz da morte recente do seu filho. Sabe-se que é um assassinato de Carlos? — Eu preferiria usar uma linguagem diferente, monsieur. — Sinto muito. Mas é necessário. — Sabe-se? Entre a Sûreté, sim, por certo. Entre es grupos do Serviço de Inteligência do Exército e na Interpol também, certamente. Li os relatórios. — O que diziam?
— Presumiam que Carlos fez um favor aos seus amigo do tempo mais radical. A ponto de permitir que eles mesmos ficassem com o crédito do seu ato, embora em silêncio. Foi uma morte politicamente motivada, compreende? Meu filho foi sacrificado como exemplo para os outros que também se opunham aos fanáticos. — Fanáticos? — Os extremistas estavam tentando formar uma falsa coligação com os socialistas, fazendo promessas que não tinham nenhuma intenção de cumprir. Meu filho entendeu isso perfeitamente; fez uma campanha contra e iniciou uma legislação para bloquear o alinhamento. Foi morto por isso. — É por isso que o senhor se retirou do Exército e candidatou-se às eleições? — Com todo o meu coração. Em geral é o filho que dá continuidade ao trabalho do pai... — O velho fez uma pausa, a luz da lua iluminou-lhe a face fatigada. — Nesta questão, é do direito do pai dar continuidade ao trabalho do filho. Ele não era um soldado, nem eu sou um político, mas conheço bem armas e explosivos. As causas que ele defendia foram moldadas na sua consciência por mim, a sua filosofia refletia a minha própria, e foi morto por causa disso. A minha decisão foi clara. Eu levaria adiante a nossa crença para a arena política e deixaria que os seus inimigos lutassem contra mim; foi o que resolvi fazer. O soldado estava bem-preparado para eles. — Mais do que apenas um soldado, deduzo. — O que quer dizer? — Aqueles homens lá no restaurante. Tinham cara de administrarem a metade do Exército francês. — Eles já fizeram isso, monsieur. Já foram conhecidos antes como os jovens comandantes irados de Saint-Cyr. A República era corrompida, os militares, incompetentes, a Maginot, uma piada. Se tivessem cuidado disso tudo, a França não teria caído. Tornaram-se os líderes da Resistência; lutaram contra Boche e Vichy por toda a Europa e Âfrica. — O que fazem agora? — A maioria vive de pensões, muitos ainda são obcecados pelo passado. Pedem à Virgem que isso não se repita. Em muitas áreas, no entanto, vêem que tudo está começando a se repetir. O Exército está reduzido a um espetáculo fora de moda. Os comunistas e socialistas, na Assembléia, estão sempre desgastando a força de tudo. O aparato de Moscou está começando a se formar; nada muda com o passar das décadas. Uma sociedade livre está pronta para a infiltração e, uma vez que isso aconteça, as mudanças não param até que essa sociedade é refeita em outros moldes. A conspiração impera em todos os lados; essa situação não pode continuar assim invencível. — Isto seria visto por alguns como puro extremismo, também. — Pelo quê? Sobrevivência? Resistência? Honra? Tudo isso é muito anacrônico para você?
— Não acho. Mas bem posso imaginar uma porção de danos cometidos sob esses nomes. — As nossas filosofias diferem, e não me importo em discuti-las. Você me perguntou sobre os meus companheiros e lhe dei a resposta. Agora, por favor, de onde vem esta incrível desinformação sua? É impressionante. Você não sabe o que é perder um filho, ter um filho morto estupidamente. A dor volta e não sei por quê. Dor e vazio, um vácuo no céu... do céu. A morte no céu e vinda do céu. Jesus, como isso dói! Isso. O que é isso? — Posso ser solidário — disse Jason segurando o pulso para deter o súbito tremor. — Mas é uma história que se encaixa. — Nem por um segundo! Como você disse, ninguém em sã consciência poderia me ligar a Carlos, ainda menos ele, aquele porco assassino. É um risco que ele não aceitaria. É inimaginável. — Exatamente. E é por isso mesmo que o senhor está sendo usado; por que é uma coisa inimaginável. O senhor é o perfeito receptor para as suas instruções. — Impossível! Como? — Alguém que usa o seu telefone está em contato direto com Carlos. Devem ser usados códigos, algumas palavras para que esta pessoa atenda ao telefone. Provavelmente quando o senhor não está lá. Possivelmente até mesmo quando o senhor está. O senhor mesmo atende ao telefone? Villiers franziu a testa. — Na verdade, não. Não este número. Tenho que evitar muitas pessoas, e tenho uma linha particular. — Quem a atende? — Em geral a governanta ou o seu marido, que é mordomo e motorista ao mesmo tempo. Foi meu motorista durante os meus últimos anos no Exército. Ou então minha mulher, é claro. Ou minha secretária, que geralmente trabalha no meu escritório em casa; é minha assistente há vinte anos. — Quem mais? — Ninguém mais. — Empregadas? — Nenhuma permanente; quando há necessidade são contratadas por serviço. Temos mais fortuna no nome Villiers do que nos bancos. — Faxineiras? — Duas. Vêm duas vezes por semana e nem sempre são as mesmas. — É melhor vigiar o seu chofer e a sua assistente.
— Que disparate! A lealdade deles está acima de qualquer suspeita. — A de Brutus também estava, e César era bem mais poderoso. — Você não pode estar falando sério! — Mas estou falando sério. É melhor acreditar em mim. Tudo o que lhe contei é verdade. — Mas você não me contou muita coisa, não é? O seu nome, por exemplo. — Não é necessário. Saber o meu nome iria apenas magoá-lo. — Em que sentido? — Na hipótese remota de que eu esteja errado quanto ao posto na sua casa — embora esta possibilidade não exista. O velho assentiu com a cabeça, do jeito que os velhos costumam fazer quando repetem as palavras que os surpreendem a ponto de os deixarem descrentes. Seu rosto se movimentava para baixo e para cima à luz da lua. — Um homem sem nome me tocaia em uma estrada à noite, me mostra uma arma e me faz acusações obscenas — uma coisa tão vil que tive vontade de matá-lo —, e ele espera que eu aceite a sua palavra. A palavra de um homem sem nome, que me é desconhecido, sem me oferecer nenhuma credencial, a não ser que Carlos está à sua procura. Diga-me, por que eu deveria acreditar em um homem destes? — Porque sim — respondeu Bourne. — Ele não teria nenhuma razão para lhe procurar se ele não acreditasse que era verdade. Villiers olhou para Jason. — Não, há uma razão melhor. Há pouco tempo você me salvou a vida. Jogou sua arma de lado e não atirou em mim. E podia. Facilmente. No entanto, escolheu me implorar para conversarmos. — Acho que não lhe implorei. — Estava em seus olhos, meu jovem. Sempre aparece nos olhos. E geralmente na voz, mas deve-se ouvir com cuidado. A súplica pode ser fingida, a raiva não. Ou é real ou é apenas aparência. A sua raiva era real... como a minha. — O velho fez um gesto em direção ao pequeno Renault, que estava próximo, no campo. — Siga-me de volta para Parc Monceau. Poderemos conversar mais em meu escritório. Eu juraria por minha vida que você está errado, mas você mesmo me disse que César estava cego pela falsa devoção. E ele realmente tinha muito mais poder do que eu. — Se eu entrar naquela casa e alguém me reconhecer, sou um homem morto. E você também. — A minha assistente saiu logo depois das cinco horas, hoje à tarde; o motorista, como você o chama, se retira o mais tardar às dez horas, para assistir interminavelmente à sua televisão. Você me espera lá fora, enquanto entro e examino. Se tudo estiver normal, chamo-o; se não, volto e saio. Então, siga-me de novo. Vou parar em algum lugar e depois continuaremos.
Jason examinou Villiers bem de perto, enquanto ele falava. — Por que quer que eu o siga de volta para Parc Monceau? — Para onde mais? Acredito no choque de um confronto inesperado. Um deles está deitado na cama vendo televisão num quarto do terceiro andar. E há outra razão. Quero que minha esposa ouça o que você tem a dizer. Ela é a mulher de um velho soldado e tem antenas para coisas que geralmente escapam ao oficial de campo. Confio muito na percepção dela; ela pode reconhecer algum comportamento diferente se o ouvir. Bourne tinha que dizer aquilo. — Embosquei-o fingindo ser outra coisa; o senhor pode me armar uma emboscada fingindo ser outra coisa. Como posso saber que Parc Monceu não é uma armadilha? O velho não hesitou. — Você tem a palavra de um general da França, só isso. Se não lhe é suficiente, pegue sua arma e saia. — É suficiente — disse Bourne — Não por ser a palavra de um general, mas porque é a palavra de um homem cujo filho foi morto na Rua du Bac. A volta para Paris pareceu mais longa para Jason. Lutava com as imagens novamente; imagens que lhe faziam suar, sentir dor. A dor começara a surgir nas têmporas e descia para o peito, formando um nó em seu estômago — intensas pontadas agudas, ele tinha vontade de gritar. Morte no céu... vinda do céu. Não no escuro, mas à luz do sol ofuscante. Sem ventos que cortassem meu corpo levando-o para uma escuridão mais intensa, para o silêncio e o mau cheiro da floresta... das margens dos rios, O silêncio seguido pelo grasnido dos pássaros e o súbito ruído de engrenagens de máquinas. Pássaros... máquinas caindo do céu ao sol ofuscante. Explosões. Morte. Do jovem e da criança. Chega! Pare com isso! Segure a direção! Concentre-se na estrada, não pense! O pensamento é muito doloroso e você não sabe por quê. Entraram na rua ladeada de árvores em Parc Monceau. Villiers estava um pouco à frente, com um problema inexistente há poucas horas: agora, havia uma porção de carros estacionados na rua. Havia, no entanto, um espaço vazio do lado esquerdo, na frente da casa do general, um espaço onde caberiam os dois canos. Villiers pôs a mão para fora da janela, fazendo sinal para Jason aproximarse dele. Súbito aconteceu. Os olhos de Jason foram desviados para uma luz que saía da porta, iluminando de repente duas figuras; o reconhecimento de uma delas foi tão surpreendente e incomum que ele se viu puxando a arma do cinto. Seria uma armadilha? A palavra de um general francês seria assim tão falsa? Villiers manobrava o seu sedã para estacioná-lo. Bourne virou-se no assento, olhando em todas as direções; não havia ninguém chegando ou aparecendo, ninguém vinha ao seu encontro. Não era uma
armadilha. Era alguma coisa diferente, e devia fazer parte de alguma trama que o velho soldado desconhecia. Do outro lado da rua, na escadaria da casa de Villiers, estava uma mulher ainda bastante moça — uma mulher exuberante. Falava depressa, fazia alguns gestos ansiosos para um homem que estava parado em um dos degraus e que constantemente assentia com a cabeça, como se estivesse aceitando instruções. Esse homem era o telefonista da Les Classiques, de cabelos grisalhos, boa aparência. O homem cujo rosto Jason conhecia tão bem, e mesmo assim não conhecia. O rosto que desencadeara tantas outras imagens na sua cabeça... imagens violentas e dolorosas como as que o haviam dilacerado há meia hora. Mas tinha uma diferença. Este rosto lhe trazia de volta a escuridão e os ventos torrenciais da noite, explosões que se faziam ouvir uma após outra, ruídos de tiroteio ecoando pelas miríades de túneis da floresta. Bourne desviou o olhar da porta e olhou para Villiers pela janela da frente. O general apagara os faróis e estava prestes a sair do carro. Jason soltou a embreagem e deixou o carro rodar para a frente até encostar no pára-choque do sedã. Villiers virou-se no assento. Bourne apagou a luz dos faróis e acendeu a luz de dentro do carro. Depois levantou a mão — com a palma. para baixo — duas vezes, avisando ao velho soldado que ficasse onde estava. Villiers fez um sinal com a cabeça e Jason apagou a luz. Olhou de novo para a porta. O homem descia os degraus, mas foi interrompido por uma última ordem da mulher. Bourne podia vê-la claramente agora. Estava próxima dos quarenta, tinha cabelos curtos e escuros, um corte bem-moderno, emoldurando um rosto bronzeado pelo sol. Era uma mulher alta, escultural; na realidade, uma figura fina, a linha dos seios acentuada pela fazenda transparente do vestido longo e branco, muito bem–talhado que lhe acentuava a pele bronzeada. Se fazia parte da casa, Villiers não a mencionara. Talvez uma visita que sabia quando ir à casa do velho; era uma estratégia para deixar informações e ir buscá-las. Isso significava que tinha um contato lá na casa de Villiers. O velho devia conhecê-la, mas não muito bem. O telefonista de cabelos grisalhos fez um último sinal com a cabeça, desceu os degraus e atravessou rapidamente o quarteirão. A porta fechou-se, as lanternas do jardim iluminavam a escada deserta e a porta de madeira ornada com ferragens reluzentes. Por que aqueles degraus e aquela porta significavam alguma coisa para ele? Imagens. Realidade irreal. Bourne desceu do Renault, vigiando as janelas, atento a qualquer movimento de cortina, mas não houve nada. Foi até o carro de Villiers, a janela da frente estava abaixada, o rosto do general virado, as suas grossas sobrancelhas arqueadas em curiosidade. — Pelos céus, o que está fazendo? — ele perguntou. — Lá, na sua casa — disse Jason, agachando-se na calçada. — O senhor viu o que eu vi?
— Acho que sim. E dai? — Quem era a mulher? O senhor a conhece? — Meu Deus! Claro que sim. É a minha mulher. — A sua mulher? — O choque de Bourne estampou-se no rosto. — Pensei que o senhor disse... pensei que o senhor disse que ela era uma mulher idosa. Que o senhor queria que ela me ouvisse porque, com o tempo, o senhor aprendera a respeitar o seu julgamento. Sobre assuntos de campo, o senhor disse. Foi isso o que o senhor disse. — Não exatamente. Eu disse que ela era a mulher de um velho soldado E eu realmente respeito muito o seu julgamento. É a minha segunda mulher — a minha bem mais jovem segunda mulher — mas tão devotada quanto a minha primeira, que morreu há oito anos. — Oh, meu Deus... — Não deixe que nossas diferenças de idade o afetem. Ela tem orgulho e é feliz em ser a segunda Madame Villiers. Tem-me sido uma grande ajuda na Assembléia. — Sinto muito — sussurrou Bourne. — Cristo, sinto muito. — O que há? Você a confundiu com outra pessoa? As pessoas quase sempre fazem isso; ela é uma mulher e tanto! Tenho muito orgulho dela. — Villiers abriu a porta do carro, enquanto Jason ficou de pé na calçada. — Espere aqui — disse o general — vou entrar e examinar tudo; se estiver normal, abro a porta e faço-lhe um sinal. Se não estiver, volto para o carro e iremos para outro lugar. Bourne ficou imóvel em frente de Villiers, impedindo que o velho avançasse. — General, tenho que perguntar-lhe uma coisa. Nem sei como fazer a pergunta, mas sei que devo fazê-la. Disse-lhe que encontrei o número do seu telefone em um posto que servia de comunicação para Carlos. Não lhe disse onde era este posto, só lhe disse que foi confirmado por alguém que admitiu que passava mensagens de e para contatos de Carlos. — Bourne respirou profundamente, os olhos vagaram para a porta do outro lado da rua. — Agora tenho que lhe fazer uma pergunta e, por favor, pense bem antes de me responder. A sua mulher compra roupas em uma loja chamada Les Classiques? — Aquela de Saint-Honoré? — Sim. — Não. — O senhor tem certeza? — Absoluta. Nunca vi nenhuma nota de compra de lá, e ela mesma me disse que não gosta das criações da casa. Minha mulher conhece muito bem estes assuntos de moda. — Oh, Jesus!
— O que é? — General, não posso entrar em sua casa. Não importa o que o senhor vá encontrar lá dentro, não posso entrar. — Por que não? O que está dizendo? — O homem que estava na escada conversando com a sua mulher... Ele é do posto; e o posto fica lá, na Les Classiques. Ele é um contato de Carlos. O sangue fugiu do rosto de André Villiers. Virou-se e olhou fixamente para o outro lado da rua ladeada de árvores, para a sua casa, para aquela reluzente porta com as ferragens refletindo a luz das lâmpadas do jardim. O mendigo com o rosto marcado pela varíola coçou os ralos fios de barba, tirou a boina puída e arrastou-se por entre as portas de bronze da pequena igreja em Neuffly-sur-Seine. Atravessou a ala direita sob o olhar desaprovador de dois padres. Os dois clérigos estavam aborrecidos; aquela era uma paróquia da burguesia refinada, e a compaixão bíblica não encontrava lá o seu lugar. Os ricos tinham os seus privilégios. Um deles era manter uma certa fachada de dignidade — para o benefício de outras dignidades —, e aquele ancião, desgrenhado e desprezível, não se ajustava aos seus moldes. O mendigo fez uma leve tentativa de se ajoelhar, levantou-se, depois foi sentar-se num banco da segunda fileira, fez o sinal da cruz e se ajoelhou; a cabeça em oração, a mão direita tentando levantar a manga esquerda do sobretudo. No pulso tinha um relógio, em completa contradição com o seu vestuário. Era um relógio digital, caro, com números bem visíveis e mostrador brilhante. Era um objeto do qual nunca se separaria, pois fora presente de Carlos. Uma vez ele chegara quinze minutos atrasado para a confissão, deixando o seu benfeitor um pouco irritado, e a única desculpa era dizer que não possuía um relógio que lhe indicasse as horas com precisão. No encontro seguinte, Carlos passou-o por baixo da diáfana etamine que separava o pecador do homem santo. Estava na hora, hora e minutos precisos. O mendigo levantou-se e foi em direção à segunda cabine da direita, abriu a cortina e entrou. — Angelus Domini. — Angelus Domini, filho de Deus. — O sussurro que vinha de trás do pano preto era áspero. — Teus dias estão em paz? — Estão em paz... — Muito bem — interrompeu o vulto. — O que me trouxe? Minha paciência está chegando ao fim. Pago milhares — centenas de milhares — pela incompetência e falhas. O que aconteceu em Montrouge? Quem foi o responsável pelas mentiras ditas na embaixada, na Montaigne? Quem as aceitou?
— O Auberge du Com foi apenas uma armadilha, não havia ninguém lá para matar. Ë difícil dizer exatamente o que aconteceu. Se o adido chamado Corbelier passou mentiras, o nosso pessoal está convencido que foi sem saber. Ele foi enganado pela mulher. — Ele foi enganado por Caim! Bourne consegue rastrear todas as fontes, alimenta-as com informações falsas, depois todas ficam queimadas e confirmam tudo. Mas por quê? Para quem? Já sabemos o que e quem ele é, agora, mas ele não comunica nada a Washington. Ele se recusa a aparecer. — Para sugerir uma resposta — disse o mendigo — eu teria que retroceder a muitos anos atrás, mas é possível que ele não queira nenhuma interferência dos seus superiores. O Serviço de Inteligência da América tem o seu quinhão de autocratas vacilantes, que raras vezes se comunicam inteiramente uns com os outros. Nos dias da Guerra Fria, muito dinheiro podia ser ganho vendendo-se a mesma informação três ou quatro vezes para as mesmas estações. Talvez Caim esteja esperando para encontrar uma direção única e agir, sem que nenhuma estratégia precise ser argüida pelos seus superiores. — A idade não embruteceu o seu sentido de manobra, velho amigo. É por isso que o chamei. — Ou talvez — continuou o mendigo — ele realmente tenha trocado de lado. Isso acontece. — Acho que não, mas não faz mal. Washington pensa que sim. O Monge está morto, todos os da Treadstone estão mortos. Caim está sendo acusado como matador. — O Monge? — disse o mendigo. — Um nome do passado. Ele foi muito ativo em Berlim, em Viena. Nós o conhecemos muito bem, era saudável. Aí está a sua resposta, Carlos. Foi sempre o estilo do Monge reduzir o número até ficar com poucas possibilidades. Ele trabalhava com a teoria de que os seus círculos estavam infiltrados, comprometidos. Deve ter ordenado que Caim relatasse tudo apenas a ele. Isso explicaria a confusão de Washington, os meses de silêncio. — E explicaria os nossos? Durante meses e meses não houve nenhuma palavra, nenhuma atividade. — Muitas possibilidades. Doença, exaustão, recolhimento para novo treinamento. Até mesmo para espalhar a confusão entre os inimigos. O Monge tinha uma catedral cheia de truques. — No entanto, antes de morrer, disse a um companheiro seu que não sabia o que acontecera. Que nem mesmo ele tinha certeza de que o homem era Caim. — Quem era esse companheiro? — Um homem chamado Gillette. Era nosso homem, mas Abbott não poderia ter descoberto isso. — Outra explicação possível. O Monge tinha intuição sobre tais homens. Foi dito em Viena que David Abbott desacreditaria de Cristo na montanha e procuraria uma padaria, de tão descrente. — É possível. Suas palavras são confortadoras; você vê coisas que outros nem percebem. — Já tive muita experiência; já fui homem de envergadura. Infelizmente joguei fora todo o
dinheiro. — Ainda joga. — Um libertino — o que mais posso lhe dizer? — Obviamente alguma coisa mais. — Você tem boa percepção, Carlos Devíamos nos ter encontrado nos velhos tempos. — Agora você já está ficando presunçoso. — Sempre. Sabe que eu sei que você pode me esmagar e acabar com a minha vida no momento que quiser, por isso sei que ainda sou de valor. E não apenas pelas palavras que vêm da minha experiência. — O que tem a me dizer? — Isto pode não ser de grande valor, mas já é alguma coisa. Vesti umas roupas respeitáveis e passei o dia no Auberge du Coin. Havia um homem, um homem obeso — que foi interrogado e logo depois dispensado pela Súreté — cujos olhos estavam muito intranqüilos. Transpirava muito. Tive uma conversa com ele, mostrando-lhe uma identificação oficial da OTAN, que fiz no começo dos anos cinqüenta. Parece que ele negociou o aluguel de um automóvel às três horas da manhã de ontem para um homem louro que estava em companhia de uma mulher. A descrição se enquadra na fotografia tirada em Argenteuil. — Aluguel? — Parece. O carro deveria ser trazido no outro dia pela mulher. — Nunca será entregue. — É claro que não, mas aí pode-se levantar uma pergunta, não é? Por que Caim se daria ao trabalho de arranjar um automóvel dessa forma? — Para fugir para mais longe possível tão rapidamente quanto pudesse. — Nesse caso a informação não tem qualquer valor — disse o mendigo. — Mas também há muitas formas de viajar mais rápido e menos sorrateiramente. E Bourne raramente poderia confiar em um ganancioso porteiro noturno; poderia ter procurado uma recompensa da Súreté. Ou de qualquer outro. — Qual é o seu ponto de vista? — Creio que Bourne pode ter arranjado esse carro com o único propósito de seguir alguém aqui, em Paris. Nenhum atraso em lugares públicos onde pudesse ser reconhecido; nenhum carro alugado que pudesse ser rastreado; nenhuma caça a táxis para andar se escondendo. Em vez disso, uma simples troca de placa e um indescritível Renault preto andando pelas ruas movimentadas. Onde se poderia começar a
procurá-lo? O vulto virou-se. — Aquela mulher, a Lavier — disse o assassino, em voz baixa. — E todos os demais de quem ele suspeita na Les Classiques. É o único lugar por onde ele pode começar. Serão vigiados, e dentro de alguns dias — horas, talvez — um Renault indescritível será visto e ele será encontrado. Você tem uma descrição completa do carro? — Três dentes no pára-lama esquerdo traseiro. — Ótimo. Espalhe para os velhos. Façam uma operação pente-fino nas ruas, garagens, estacionamentos. Quem o encontrar nunca mais precisará voltar a trabalhar. — Falando em tais assuntos... Um envelope foi passado por entre a barra da cortina e o feltro azul da moldura. — Se a sua teoria for provada, considere isso um agradecimento. — Eu estou certo, Carlos. — Por que está tão convicto? — Porque Caim faz o que você faria, o que eu teria feito — nos velhos tempos. Ele deve ser respeitado. — Ele deve ser morto — disse o assassino. — Há similaridades na contagem do tempo. Daqui a poucos dias será dia vinte e cinco de março. Em março, no dia 25 de março de 1968, Jason Bourne foi executado nas florestas de Tam Quan. Agora, anos mais tarde — perto do mesmo dia — um outro Jason Bourne está sendo caçado. Os americanos estão tão ansiosos quanto nós para vê-lo mono. Quero ver que de nós vai puxar o gatilho antes, desta vez. — Isso é importante? — Eu o quero — sussurrou o vulto. — Ele nunca foi real, e esse é o seu crime contra mim. Diga aos velhos que se algum deles o encontrar, que notifique Parc Monceau, mas não façam nada. Mantenham-no sob constante vigilância, mas não façam nada! Quero-o vivo no dia vinte e cinco de março. No dia 25 de março eu mesmo o executarei e entregarei o seu corpo aos americanos. — A notícia será dada imediatamente. — Angelus Domini, filho de Deus. — Angelus Domini — respondeu o mendigo.
Capítulo26 O velho soldado caminhou em silêncio ao lado do homem mais jovem na ruela iluminada pela luz da lua, no Bois de Boulogne. Nenhum dos dois falou, pois muita coisa já fora dita — admitida, discutida, negada e reafirmada. Villiers tinha que refletir e analisar, aceitar ou rejeitar violentamente o que acabara de ouvir. Sua vida seria bem mais suportável se ele pudesse revidar com fúria, atacar a mentira e encontrar novamente a paz. Mas não podia fazer isso impunemente; era um soldado e recusarse a admitir não era do seu feitio. Havia muita verdade no que o mais novo lhe dissera. Estava patente em seus olhos, em sua voz, em cada gesto seu que pedia compreensão. O homem sem nome não mentia. A última traição estava na casa de Villiers. E isso explicaria muitas coisas que ele antes não ousara questionar. O velho estava a ponto de chorar. Para o homem sem memória havia quase nada para inventar ou mudar; o camaleão não fora solicitado. A sua história era muito convincente porque a parte mais vital fundamentava-se na verdade. Tinha que encontrar Carlos e descobrir o que o assassino sabia; não haveria nenhuma possibilidade de vida para ele se não conseguisse o seu intento. Além disso, ele nada mais diria. Não mencionara Marie st. Jacques, nem a Île de Port Noir, ou as mensagens que lhe foram enviadas por desconhecidos, ou aquela estrutura oca e vazia que tanto podia quanto não podia ser alguém que ele foi ou não — uma pessoa que nem mesmo podia ter certeza de que os fragmentos de memória que possuía eram realmente seus. Nada disso foi mencionado. Ao contrário, recontou tudo o que sabia sobre o assassino chamado Carlos. E esse conhecimento era tão amplo que, enquanto falava, Villiers olhava para ele espantado, reconhecendo algumas informações que já sabia e que eram altamente confidenciais; chocado com novos dados, dados surpreendentes, que estavam de acordo com cerca de umas doze teorias, mas que para os seus ouvidos nunca tinham sido antes tão bem-esclarecidas. Por causa do filho, o general tivera acesso aos arquivos mais confidenciais do seu país sobre Carlos, e nada naqueles registros contradizia a ordem dos fatos apresentados pelo mais jovem. — Esta mulher com quem você falou, em Argenteuil, aquela que visita a minha casa, que admitiu para você que era mensageira... — O nome dela é Lavier — interrompeu Bourne. O general fez uma pausa. — Obrigado. Ela percebeu você; mandou que tirassem a sua foto. — Sim. — Eles não tinham nenhuma fotografia antes? — Não. — Então, enquanto você caça Carlos, ele, por sua vez, está a sua caça. Mas você não tem nenhuma fotografia; apenas conhece dois mensageiros, um dos quais estava em minha casa.
— Sim. — Falando com minha mulher. — Sim. O velho virou-se. O período de silêncio recomeçara. Chegaram ao final do caminho, onde havia um lago em miniatura. Era rodeado de cascalho branco, bancos a espaços de dez ou quinze pés em volta das águas, como uma guarda de honra em volta de um túmulo de mármore preto. Foram até o segundo banco. Villiers quebrou o silêncio. — Gostaria de me sentar — disse. — Com a idade vem a decadência da resistência física. Isso sempre me embaraça. — Mas não devia — disse Bourne sentando-se ao seu lado. — Não devia — concordou o general —, mas é assim que acontece. — Fez uma pausa por um momento e depois acrescentou baixinho: — Quase sempre quando estou na companhia de minha mulher. — Mas isso não é necessário — disse Jason. — Você se engana a meu respeito. — O velho virou-se para o mais novo: — Não estou me referindo à cama. Há vezes em que simplesmente acho necessário interromper as minhas atividades — sair de um jantar mais cedo, negar-me a passar algumas semanas no Mediterrâneo, ou declinar um convite para alguns dias nas montanhas de Gstaad. — Não sei se entendi bem. — Minha esposa e eu estamos quase sempre separados. Em vários aspectos temos vida separada, compartilhando, é claro, das atividades um do outro. — Ainda não entendi. — Devo ser ainda mais constrangedor? — disse Villiers. — Quando um homem mais velho encontra uma belíssima mulher, bem mais jovem, para compartilhar a sua vida, certas coisas são entendidas, outras não tão prontamente. Há, é claro, uma absoluta segurança financeira e, em meu caso, um certo grau de vida pública. Conforto das pessoas, acesso às grandes casas, amizade fácil com as celebridades — tudo muito compreensível. Em troca destas coisas, a gente leva uma companheira bonita e agradável para a sua casa, exibe-a aos seus pares — de certo modo uma forma de dar continuidade à sua virilidade. Mas sempre pairam dúvidas. — O velho soldado parou por alguns momentos; o que tinha a dizer não lhe era muito fácil. — Será que ela procura um amante? — continuou com voz calma. — Será que sente necessidade de um homem mais jovem, um corpo mais firme, mais apropriado ao seu corpo? É aceitável que ela sinta isso — pode-se até sentir um alívio, imagino, na esperança de que ela tenha compostura para ser discreta. Um estadista corneado perde o seu eleitorado mais rapidamente do que se for um bêbedo esporádico; porque isso significa que ele perdeu
completamente a garra. E há outras preocupações, também. Será que ela abusa do seu nome? Publicamente condena um adversário que se está tentando convencer? Porque estas são as inclinações das jovens; são facilmente manejáveis, faz parte dos riscos da troca. Mas fica sempre uma dúvida mais reticente, que se provada e justificada não pode ser tolerada. E isso acontece se ela faz parte de um desígnio, de um plano qualquer. Desde o início. — O senhor já sentiu isso, então? — perguntou Jason. — Sensações não são realidade! — revidou o velho soldado com veemência. — Na observação de campo elas não têm lugar. — Então por que o senhor está me contando isto? Villiers jogou a cabeça para trás, depois para a frente, olhando para a água do pequeno lago. — Pode haver uma explicação simples para o que vimos hoje à noite. Rezo para isso, e vou dar a ela todas as oportunidades possíveis para isso. — Fez outra pausa. — Mas em meu coração sei que não há possibilidade. Soube no exato instante em que você me contou a história da Les Classiques. Olhei para outro lado da rua, para a porta da minha casa, e de repente uma série de coisas se encaixaram no lugar certo. Dolorosamente. Porque nestas últimas duas horas fiz o papel do advogado do diabo, não há possibilidade de continuar. Antes desta mulher, o meu filho. — Mas o senhor disse que confiava no julgamento dela. E que ela era uma grande ajuda. — Verdade. Veja, eu queria confiar nela, desesperadamente. A coisa mais fácil deste mundo é uma pessoa convencer-se de que está certa. E quando se fica velho, isto é ainda mais fácil. — O que foi que se encaixo no lugar certo? — A própria ajuda que ela me deu, a confiança que depositei nela. — Villiers virou-se e olhou para Jason. — Você tem um conhecimento extraordinário sobre Carlos. Estudei aqueles arquivos mais detalhadamente do que qualquer homem vivo, por que eu daria muito mais do que qualquer homem vivo para vê-lo preso e executado, eu mesmo substituiria todo o pelotão de fuzilamento. E volumosos como são, aqueles arquivos não chegam a conter tudo o que você sabe. E ainda assim a sua concentração está fixada nas suas mortes, nos seus métodos de assassinato. Você desdenhou o outro lado de Carlos. Ele não vende apenas armas: vende os segredos de um país. — Sei disso— disse Bourne. — Não é o lado que... — Por exemplo — continuou o general, como se não tivesse ouvido Jason —, tenho acesso a documentos confidenciais que tratam da segurança militar e nuclear da França. Talvez apenas outros cinco homens — todos acima de qualquer suspeita — dividam esse conhecimento. Mesmo assim, com regularidade constante, descobrimos que Moscou conhece tal coisa, Washington tal outra, Pequim outra mais... — O senhor discute tais assuntos com sua mulher? — perguntou Bourne, surpreso. — Naturalmente que não. Trago estes papéis para casa, eles são guardados em uma caixa-forte
no meu escritório. Ninguém tem permissão de entrar naquela sala se não for na minha presença. Há apenas mais uma pessoa que tem a chave, uma outra pessoa que conhece a localização do sistema de alarme. Minha mulher. — Acho que é tão perigoso quanto discutir os assuntos confidenciais. Tanto um quanto outro poderiam ser tirados dela à força. — Mas há uma razão. Estou numa idade em que o inesperado é uma ocorrência diária; é só olhar as páginas de óbitos. Se alguma coisa me acontecer ela tem ordens para telefonar para o Conselheiro Militar, ir até o meu escritório e ficar próxima à caixa-forte até que o pessoal da segurança chegue. — Ela não poderia permanecer na porta, apenas? — Os homens da minha idade sempre falecem em cima de suas escrivaninhas. — Villiers fechou os olhos. — E teria que ser ela. Uma única casa, um único lugar, ninguém acreditaria possível. — Tem certeza? — Mais do que ouso admitir para mim mesmo. Foi ela quem insistiu no casamento. Sempre coloquei o problema da diferença de idade, mas ela não levava a sério. Eram os anos que passaríamos juntos o que contava, dizia, não os que separavam as nossas datas de nascimento. Ofereceu-se para assinar um acordo renunciando a todos os direitos à herança dos Villiers e, é claro, não aceitei, pois isso já era uma prova suficiente da sua confiança. O provérbio está certo: “Um velho bobo é duas vezes mais bobo.” No entanto, sempre me ficaram dúvidas, que vieram com as viagens, as inesperadas separações. — Inesperadas? — Ela tem muitos interesses, em várias áreas, que exigem a sua atenção. Um museu francosuíço em Grenoble, uma galeria de artes em Amsterdã, um monumento à Resistência em Boulogne surMer, uma absurda reunião oceanográfica em Marselha. Discutimos calorosamente sobre esta última. Eu precisava dela em Paris; havia algumas funções diplomáticas a que eu precisava comparecer com ela. Ela não ficou. Era como se tivesse sido mandada para estar aqui, estar lá, e depois em mais algum lugar em determinados momentos. Grenoble — próximo à fronteira Suíça, unta hora de Zurique. Amsterdã. Boulogne-sur-Mer — sobre o canal, uma hora de distância de Londres. Marselha... Carlos. — Quando foi a conferência em Marselha? — perguntou Jason. — Em agosto, acho.No fim do mês. — No dia 26 de agosto, às cinco horas da tarde, o Embaixador Howard Leland foi assassinado em Marselha. — Sim, sei — disse Villiers. — Você já disse isto antes. Lamento o homem, não os seus julgamentos. — O velho soldado parou; olhou para Bourne. — Meu Deus — sussurrou. — Ela deve terse encontrado com ele. Carlos a chamou e ela foi. Ela obedeceu.
— Não fui assim tão longe — disse Jason. — Juro que pensei nela apenas como receptor de recados — uma informante cega. Nunca fui tão longe. De repente, da garganta do velho saiu um grito — profundo e cheio de agonia e ódio. Levou as mãos ao rosto, jogou a cabeça para trás mais uma vez, o rosto iluminado pela luz da lua, e chorou. Bourne não se mexeu; nada podia fazer. — Sinto muito — disse. O general readquiriu o. autocontrole. — Eu também — ele respondeu depois. — Peço desculpas. — Não precisa. — Acho que sim. Discutiremos isso mais tarde. Vou fazer o que devo. — O que é? O soldado sentou-se bem-ereto no banco, o maxilar firme. — Você pode fazer esta pergunta? — Preciso fazê-la. — O que ela fez não é diferente de ter matado o meu filho, o filho que ela não gerou. Fingia venerar a sua memória. No entanto, foi e é cúmplice de sua morte. E ao mesmo tempo cometeu uma traição contra a nação a que servi toda a minha vida. — Vai matá-la? — Vou matá-la. Ela vai me dizer a verdade e depois vai morrer. — Ela vai negar tudo o que o senhor disser. — Duvido. — Isso é loucura! — Meu jovem, passei mais da metade de um século preparando emboscadas e lutando contra os inimigos da França, mesmo que fossem franceses. A verdade será confessada. — O que o senhor acha que ela vai fazer? Ficar sentada ouvindo-o calmamente, admitindo que é culpada? — Ela não vai fazer nada calmamente. Mas vai confessar; vai declarar tudo. — E por que o faria? — Porque quando eu a acusar, ela terá a oportunidade de matar-me. Quando tentar fazer isto, terei tudo confirmado, não é?
— O senhor correria este risco? — Devo. — Suponhamos que ela não aja assim, que não tente matá-lo. — Então tudo terá uma explicação diferente — disse Villiers. — Nesse caso, eu me protegeria, se fosse o senhor, monsieur. — Ele balançou a cabeça. — Não vai ser assim. Nós dois sabemos disso, eu muito mais do que você. — Ouça — insistiu Jason. — O senhor disse que primeiro foi o seu filho. Pense nele! Procure o assassino, não a sua cúmplice. Ela é uma grande dor para o senhor, mas ele é uma dor ainda maior. Pegue o homem que matou o seu filho! No final, o senhor terá em suas mãos os dois. Não a enfrente ainda, não ainda. Use tudo o que sabe contra Carlos. Cace-o comigo. Ninguém antes esteve tão perto dele. — Você me pede muito mais do que posso lhe dar — disse o velho. — Não se o senhor pensar em seu filho. Se pensar em si mesmo, sim. Mas não se pensar na Rua du Bac. — O senhor é excessivamente cruel, monsieur. — Eu estou certo, e o senhor sabe disso. Uma nuvem tapou a luz da lua por um instante. A escuridão era completa; Jason tremeu. O velho soldado falou, havia resignação em sua voz. — Sim, você está certo — disse. — Excessivamente cruel, mas excessivamente certo também. Ë o assassino e não a puta que deve ser detido. Como podemos trabalhar juntos? Caçar juntos? Bourne fechou os olhos por um momento, aliviado. — Não faça nada. Carlos tem que me procurar por toda Paris. Matei alguns dos seus homens, descobri um ponto e um contato. Estou muito perto dele. A menos que nós dois estejamos equivocados, seu telefone vai estar muito ocupado. Tratarei disso. — Como? — Vou interceptar uma meia dúzia de empregados da Lês Classiques. Alguns vendedores, a Lavier, talvez Bergeron, e certamente o telefonista. Eles vão falar. E eu também. Esse seu telefone vai trabalhar um bocado. — Mas e eu? O que faço? — Permaneça em casa. Diga que não está se sentindo bem. E sempre que o telefone tocar fique próximo de quem responder. Ouça a conversa, tente pegar os códigos, questione os empregados quanto ao que lhes for dito. Talvez até possa ouvir os telefonemas. Se ouvir alguma coisa, ótimo, mas
provavelmente não vai ouvir nada. Quem estiver na linha saberá que o senhor está em casa. Ainda assim, o senhor terá frustrado a entrega. E dependendo de onde estiver a sua mulher... — Onde aquela puta está! — interrompeu o velho soldado. — ... na hierarquia de Carlos, talvez até consigamos forçá-lo a aparecer. — De novo, como? — As suas linhas de comunicação serão rompidas. O posto de informações mais seguro e camuflado estará bloqueado. Ele vai exigir um encontro com sua mulher. — Ele provavelmente não anunciaria o local. — Ele vai ter que dizer a ela. — Bourne fez uma pausa, outro pensamento lhe veio à cabeça. — Se o rompimento da comunicação for muito severo, logo será dado um telefonema, ou uma pessoa que o senhor não conhece chegará à sua casa e, logo depois, sua mulher vai lhe dizer que tem que ir a algum lugar. Quando isto acontecer, peça-lhe insistentemente um número de telefone onde ela possa ser encontrada em caso de necessidade. Seja firme nesse ponto; o senhor não está tentando interromper a sua saída, mas vai ter que entrar em contato com ela. Diga-lhe qualquer coisa — use o tipo de relação que ela desenvolveu na sua vida em comum. Diga que é sobre uma matéria muito confidencial, sobre um assunto militar que o senhor ainda não pode conversar até que algumas coisas se esclareçam. Mas que o senhor precisa discutir o assunto com ela antes de fazer um último julgamento. Ela vai engolir essa isca. — Para que servirá? — Ela vai lhe dizer onde vai estar. Onde Carlos vai estar, talvez. Se não for Carlos, certamente alguém dele. Depois, entre em contato comigo. Dar-lhe-ei o nome de um hotel e o número do meu quarto. O nome sob o qual estou registrado é sem significado, não o leve a sério. — Por que não me diz o seu verdadeiro nome? — Porque se o senhor algum dia o mencionar — conscientemente ou não — será morto. — Não sou senil. — Não, não é. Mas é um homem que foi muito maltratado. Foi ferido gravemente, acho. O senhor pode arriscar a sua vida, não eu. — O senhor é um homem muito estranho, monsieur. — Sim. Se eu não estiver lá quando me telefonar, uma mulher o atenderá. Ela saberá onde estou. Poderemos marcar um horário para as mensagens. — Uma mulher? — O general afastou-se um pouco. — Você contou nada a respeito de qualquer mulher, ou de outra pessoa.
— Não há mais ninguém. Sem ela eu não estaria vivo. Carlos está a nossa procura, ele tentou matar-nos. — Ela sabe alguma coisa a meu respeito? — Sim. Ela é a pessoa que disse que não poderia ser verdade. Que o senhor não poderia ser aliado de Carlos. Porque eu pensei que fosse verdade. — Talvez eu possa vê-Ia. — Acho que não. Até que Carlos seja preso — se ele puder ser preso —, não podemos ser vistos com o senhor. Entre todos, não podemos ser vistos com o senhor. Afinal de contas — se é que existe um afinal de contas —, o senhor pode não querer ser visto conosco. Comigo. Estou sendo honesto com o senhor. — Entendo isso, e respeito. Logo que puder, agradeça por mim a esta mulher. Agradeça-lhe por não ter acreditado que eu pudesse ter parte com Carlos. Bourne assentiu com a cabeça. — O senhor tem certeza de que a sua linha particular não está interceptada? — Absoluta. Ela corre numa linha especial, como todos os telefones dos demais conselheiros. — Sempre que estiver à espera de uma chamada minha, responda e pigarreie duas vezes. Saberei que é o senhor. Se por qualquer razão não puder falar, diga-me para telefonar para a sua secretária pela manhã. Eu voltarei a chamá-lo dez minutos depois. Qual é o número? Villiers deu-lhe o número. — O seu hotel? — perguntou o general. — O Terrasse. Na Rue de Maistre. Montmartre. Quarto 420. — Quando vai começar? — O mais cedo que puder. Amanhã, ao meio-dia. — Seja cauteloso — disse o velho soldado, inclinando-se para a frente, como um comandante instruindo os seus oficiais. — Vá com calma.
Capítulo27 — Ela foi tão gentil que simplesmente tenho que fazer alguma coisa por ela — dizia Marie em francês, muito agitada ao telefone. — Como também pelo gentil jovem — que doçura — tão atencioso. Vou lhe contar, o vestido foi um succès fou! Fico tão agradecida! — Por suas descrições, madame — respondeu com voz grave o telefonista da Les Classiques —, tenho certeza de que se refere a Janine e a Claude. — Sim, é claro. Janine e Claude, agora me lembro. Vou deixar para cada um deles um bilhete como agradecimento pessoal. O senhor, por acaso, sabe o sobrenome deles? Quero dizer, parece-me grosseiro endereçar os envelopes simplesmente para “Janine” e “Claude”. Parece que estou deixando bilhetes para os meus criados, o senhor não acha? Poderia perguntar a Jacqueline? — Não é necessário, madame. Eu os conheço. E devo lhe dizer, madame, que a senhora é tão sensível quanto generosa. Janine Dolbert e Claude Oreale. — Janine Dolbert e Claude Oreale — repetiu Marie, olhando para Jason. — Janine é casada com aquele pianista elegante, não é? — Creio que a Srta. Dolbert não é casada com ninguém. — É claro. Estou pensando em outra pessoa. — Se me permite, madame, não estou me recordando do seu nome. — Oh, que desatenção a minha! — Marie afastou o aparelho do ouvido e levantou a voz. — Querido, já está de volta? É cedo ainda! Que bom! Estou falando com aquelas pessoas amáveis da Les Classiques... Sim, sim, agora mesmo, meu querido. — Aproximou o telefone dos lábios novamente. — Muito obrigada. O senhor foi muito gentil. — E desligou. — Como me saí — Se algum dia decidir abandonar a economia — disse Jason, examinando a lista de telefones de Paris — entre para algum negócio de vendas. Comprei todas as palavras que você disse. — As descrições estavam próprias? — Demais. Um bom comentário, sobre o pianista. — Mas me deixou um pouco confusa, porque se ela fosse casada o telefone deveria estar em nome do marido. — Mas não é — interrompeu Bourne. — Aqui está. Dolbert, Janine, Rua Losserand. — Jason anotou o endereço. — Oreale, começa com O, de Olseau, não é? Não é Au. — Acho que não. — Marie acendeu um cigarro. — Você irá mesmo até a casa deles?
Bourne assentiu com a cabeça. — Se eu os encontrar em Saint-Honoré, Carlos me verá. — E os outros? Lavier, Bergeron, e aquele do telefone? — Amanhã. Hoje é dia dos peixes miúdos. — Do quê? — De fazer com que todos falem. Que comecem a andar por aí dizendo coisas que não deviam ser ditas. E logo as notícias correrão a loja toda por intermédio de Dolbert e Oreale. Vou entrar em contato com mais dois esta noite; eles chamarão Lavier e o telefonista. Teremos a primeira corrente elétrica, e depois a segunda. O telefone do general vai começar a funcionar esta tarde. Pela manhã o pânico será completo. — Duas perguntas — disse Marie, levantando-se da beira da cama e aproximando-se dele. — Como você vai conseguir tirar duas pessoas da Les Classiques em horário comercial? E quais as pessoas que vai ver hoje à noite? — Ninguém vive em uma completa roda viva — respondeu Bourne, olhando para o relógio. — Especialmente na haute couture. São 11h15min agora. Vou até o apartamento da Dolbert lá pelo meiodia e faço o administrador entrar em contato com ela pelo telefone. Ele lhe dirá para vir imediatamente. Há um problema urgente e muito pessoal para ela resolver. — E qual é o problema? — Não sei, mas quem não tem um? — Vai fazer o mesmo com Oreale? — Provavelmente serei mais efetivo. — Você é espantoso, Jason. — Sou muito sério — disse Bourne, enquanto deslizava o dedo pela coluna de nomes da lista. — Aqui está. Oreale, Claude Giselle. Sem comentários. Rua Racine. Estarei com ele lá pelas três; quando terminar, ele irá direto para a Saint-Honoré e começará a abrir a boca. — E os outros dois? Quem são? — Vou conseguir os nomes com Oreale ou Dolbert, ou com os dois. Eles não sabem, mas vão espalhar a segunda corrente elétrica. Jason escondeu-se na entrada de um prédio, na Rua Losserand. Ele estava próximo da entrada do pequeno prédio de apartamentos de Janine Dolbert onde, minutos antes, um superintendam, espantado e grato pela súbita oferta de dinheiro, obedecera ao jovem e bem-falante cavalheiro estrangeiro e chamara a Srta. Dolbert em seu trabalho para lhe dizer que um cavalheiro numa limusine com motorista já passara por lá duas vezes e perguntara por ela. Ele voltaria logo; o que ele devia fazer?
Um pequeno táxi preto encostou no meio-fio e uma agitada e cadavérica Janine Dolbert literalmente saltou do carro. Jason correu para interceptá-la na calçada, já próxima da entrada do edifício. — Foi rápida — disse ele tocando-lhe o cotovelo. — É muito bom vê-la de novo. Você me foi de muita ajuda naquele dia. Janine Dolbert olhou espantada para ele, a boca aberta, tentando lembrar-se. Depois ficou atônita. — Você! O americano — disse em inglês. — Monsieur Briggs, não é? O senhor é o que... — Dispensei meu motorista por uma hora. Queria vê-la em particular. — A mim? Para quê? — Não sabe? Então, por que correu para cá? Os olhos arregalados debaixo do cabelo curto e encaracolado estavam fixos nos seus, seu rosto era ainda mais pálido à luz do sol. — Você é da House of Azur, então? — perguntou ela, tentando especular. — Pode ser. — Bourne segurou-lhe o cotovelo com mais força. — Então? — Entreguei o que prometi. Não haverá mais nada, concordamos com isto. — Tem certeza. — Não seja idiota! Você não conhece a couture de Paris. Alguém pode ficar furioso com alguém mais e fazer comentários desairosos em seu próprio estúdio. Que desvios mais estranhos! E quando ficar pronta a linha de outono, com você exibindo metade das criações de Bergeron, antes mesmo que ele o faça, quanto tempo ainda pensa que vou poder continuar na Les Classiques? Sou a segunda preferida de Lavier, uma das poucas que têm acesso ao seu escritório. É melhor tomarem conta de mim, como prometeram. Em alguma das suas lojas de Los Angeles. — Vamos dar uma caminhada — disse Jason, empurrando-a gentilmente. — Você encontrou o homem errado, Janine. Nunca ouvi falar da House of Azur e não tenho o menor interesse em desenhos roubados — exceto se puder usar essa informação. — Oh, meu Deus... — Continue andando — Bourne segurou-lhe o braço com firmeza. — Disse que quero falar com você. — Sobre o quê? O que quer de mim? Como descobriu o meu nome? — As palavras lhe saíam da boca depressa, agora, uma frase atrás da outra. — Tirei minha hora de almoço mais cedo e devo voltar logo. Estamos muito ocupados hoje. Por favor, está machucando o meu braço. — Sinto.
— O que eu disse... Era tolice. Uma mentira. No primeiro andar ouvimos muitos rumores; eu estava apenas testando você. Era isso o que eu estava fazendo, testando você! — Você é muito convincente mesmo. Vou aceitar. — Sou fiel a Lãs Classiques. Sempre fui. — É uma boa qualidade, Janine. Admiro a lealdade. Estava dizendo isso mesmo ainda no outro dia para... como é mesmo o seu nome?... Aquele simpático camarada do telefone. Qual é mesmo o nome dele? Esqueci. — Philippe — disse a vendedora assustada, toda obsequiosa. — Philippe d’Anjou. — Isso mesmo. Obrigado. — Chegaram a um passeio estreito, calçado com pedras, entre dois prédios. Jason guiou-a para lá. — Vamos andar um pouco por aqui, assim ficamos fora da rua. Não se preocupe, você não vai se atrasar. Serão apenas alguns minutos. — Caminharam uns dez passos pela calçada. Bourne parou, Janine Dolbert encostou-se em uma parede de tijolos. — Cigarro? — perguntou ele, tirando um maço do bolso. — Obrigada, aceito. Ele o acendeu e notou que a mão dela estava trêmula. — Mais relaxada, agora? — Sim, Não, na verdade, não. O que quer, Monsieur Briggs? — Para começar, meu nome não é Briggs, e acho que você sabe muito bem disso. — Eu não. Por que saberia? — Eu tinha certeza que a número um da Lavier teria lhe fofocado. — Monique? — Use as sobrenomes, por favor. É necessário termos todos os detalhes. — Brielle, então — disso Janine franzindo a testa, curiosa. — Ela o conhece? — Por que não pergunta a ela? — Como quiser. Do que se trata monsieur? Jason balançou a cabeça. — Você realmente não sabe, não é? Três quartos das pessoas empregadas na Les Classiques estão trabalhando conosco e uma das mais brilhantes nem mesmo foi contatada. É claro, é possível que alguém tenha pensado que você é um risco; acontece. — O que está acontecendo? Que risco? Quem é você? — Não há tempo agora. Os outros podem lhe contar tudo. Estou aqui porque nunca recebemos
um relato seu e, no entanto, você costuma conversar com os clientes mais importantes. — Tem que ser mais claro, monsieur. — Digamos que sou o porta-voz de um grupo de pessoas — americanos, franceses, ingleses e alemães — à procura de um assassino que matou lideres políticos e militares dos nossos países. — Matou? Militares, políticos... — Janine abriu a boca, a cinza do cigarro caiu sobre a sua mão. — O que é isto? Do que está falando? Nunca ouvi nada sobre isto! — Só posso pedir desculpas — disse Bourne suavemente, sendo sincero. Você devia ter sido contatada há algumas semanas. Foi um erro de quem me precedeu. Sinto muito; deve ser um pouco chocante para você. — Isso é um choque, monsieur — sussurrou a vendedora, o corpo tenso e encurvado, parecendo um caniço encostado aos tijolos. — Está falando de coisas que não entendo. — Mas agora entendo — interrompeu Jason. — Nem uma palavra sobre os demais. o está claro. — Mas não para mim. — Estamos chegando perto de Carlos. Do assassino conhecido como Carlos. — Carlos? — O cigarro caiu da mão de Dolbert, o choque fora total. — Ele é um dos seus freqüentadores mais assíduos, tudo evidencia isto. Já estamos próximos dele, já resumimos as possibilidades para oito homens. A cilada está pronta para qualquer dia desses, e estamos tomando toda a precaução. — Precaução...? — Há sempre o perigo de reféns, sabemos disso. Estamos prevendo um tiroteio, mas será rápido. O problema básico é o próprio Carlos. Ele jurou jamais ser preso vivo; anda pelas ruas embrulhado em explosivos calculados como mais poderosos do que uma bomba de mil libras. Mas isso podemos manejar. Nossos atiradores estarão em cena; uma bala certeira na cabeça e tudo estará terminado. — Une seule balle... De repente, Bourne olhou para o relógio. — Já tomei muito o seu tempo. Você tem que voltar para a loja e tenho que voltar para o meu posto. Lembre-se, se me vir por aí, não me conhece. Se eu entrar na Les Classiques, trate-me como se eu fosse qualquer um dos seus ricos clientes. Exceto se você perceber um cliente que desconfie ser o nosso homem; então, não perca tempo e me avise logo. De novo devo lhe dizer que sinto muito por lhe incomodar assim. Foi uma quebra de comunicação, só isso. Acontece. — Une rupture...? Jason assentiu com a cabeça, virou-se e começou a atravessar o corredor, em direção à rua.
Parou e olhou para trás, para Janine Dolbert. Ela estava estática, letargicamente encostada à parede; para ela o elegante mundo da haute couture girava fora da órbita. Philippe d’Anjou. O nome nada lhe significava, mas era inevitável. Bourne começou a repetir aquele nome silenciosamente, tentando provocar a lembrança de alguma imagem... assim como o rosto do telefonista grisalho lhe provocara imagens de escuridão e reflexos de luz. Philippe d’Anjou. Nada.. Nada mesmo. Ainda assim, parecia ter acontecido alguma coisa, alguma coisa que fazia com que o estômago de Jason desse um nó, os músculos ficassem rígidos e inflexíveis, uma extensão de carne dura e contraída... na escuridão. Sentou-se perto da janela da frente e da porta de um café, na Rua Racine, preparado para levantar-se e sair no instante em que visse o vulto de Claude Oreale chegar à porta do antigo edifício, do outro lado da rua. Seu quarto ficava no quinto andar, em um apartamento que dividia com dois outros homens. O único acesso era uma escada velha e angular. Quando entrasse no edifício, Bourne tinha certeza de que ele começaria a correr. Porque fora dito a Claude Oreale, que fora tão efusivo com Jacqueline Lavier naquela escada em Saint-Honoré, por uma locadora sem dentes, ao telefone, que viesse com sua sale gueule para a Rua Racine para acabar com toda aquela gritaria e quebra-quebra no quinto andar, em seu apartamento. Ou ele parava com aquilo ou ela chamaria a polícia; ele tinha vinte minutos para aparecer. Ele levou quinze apenas. Seu corpo ágil, enfiado em um terno Pierre Cardin — a abertura do paletó batendo ao vento — podia ser visto a correr pela calçada, vindo da saída próxima do metrô. Desviava-se das pessoas, evitando esbarrar, com a agilidade de um corredor fora de forma e treinado pelo Ballet Russe. Seu pescoço fino ia à frente do peito bem-vestido, os cabelos pretos e longos eram penteados pelo vento numa linha horizontal. Chegou à entrada e agarrou-se ao corrimão, pulando para os degraus e subindo a escada escura. Jason saiu depressa do café e atravessou correndo a rua. Lá dentro, correu para a velha escada e começou a subir os degraus rachados. No quarto andar já podia ouvir as batidas na porta de cima, do quinto. — Ouvrez! Ouvrez! Vite, nom de Dieu! — Oreale parou, o silêncio lá dentro era mais assustador do que qualquer outra coisa. Bourne subiu os degraus restantes até poder ver Oreale por entre as grades do corrimão. O frágil corpo do vendedor estava colado à porta, os braços s e as mãos com os dedos esticados, a orelha colada à madeira, o rosto afogueado. Jason gritou com voz gutural, usando um francês burocrático, enquanto aproximava. — Süreté! Fique exatamente onde está, meu jovem. Não faça nada desagradável. Estivemos vigiando você e seus amigos. Sabemos da câmara escura. — Não! — gritou Oreale. — Nada tenho a ver com isso, juro! Câmara escura? Bourne levantou a mão. — Fique quieto. Não grite assim! — E imediatamente inclinou-se sobre o corrimão, olhando para baixo. — Não podem me envolver! — continuou o vendedor. — Não estou envolvido! Já disse a eles
tantas vezes para se livrarem de tudo aquilo! Um dia ainda se matam. Drogas são para os idiotas! Meu Deus, está tão silencioso lá dentro! Acho que estão mortos! Jason saiu de perto do corrimão e se aproximou de Oreale com as palmas das mãos levantadas. — Já lhe disse para se calar — disse em voz baixa e áspera. — Entre e fique quieto! Isso tudo foi em benefício daquela velha puta lá embaixo. O vendedor estava transfigurado, seu pânico se transformara em histeria silenciosa. — O quê?! — Você tem uma chave — disse Bourne. — Abra e entre. — Está travada por dentro — respondeu Oreale. — Fica sempre fechada nestes momentos. — Seu tolo, tínhamos que falar com você! Tínhamos que trazê-lo para cá sem que ninguém soubesse. Abra esta porta. Rápido! Como um coelho assustado, Claude Oreale procurou no bolso a sua chave. Abriu a porta e empurrou-a para dentro, parecendo um homem entrando em um jazigo cheio de cadáveres mutilados. Bourne empurrou-o para dentro, entrou e fechou a porta. O que podia ser visto na sala não correspondia ao resto do prédio. Era uma sala grande, cheia de móveis macios e luzidios, caros, com dúzias de almofadas de veludo vermelho e amarelo jogadas sobre os sofás, as cadeiras e no chão. Era uma sala bem erótica, um luxuoso santuário centrado naqueles escombros. — Tenho pouco tempo — disse Jason. — Tempo apenas para os negócios. — Negócios? — perguntou Oreale, a expressão do seu rosto completamente paralisada. — Esta... esta câmara escura? O que é? Que câmara escura? — Esqueça. Temos outras coisas melhores. — Que negócios? — Recebemos ordens de Zurique e queremos que você as comunique à sua amiga Lavier. — Madame Jacqueline? Minha amiga? — Não podemos confiar nos telefones. — Que telefones? Ordens? Que ordens? — Carlos está certo. — Carlos? Quem é esse Carlos? — O assassino.
Claude Oreale gritou. Levou a mão à boca, mordeu a junta do indicador e gritou. — O que está dizendo? — Fique quieto! — Por que está me dizendo isto? — Você é o número cinco. Contamos com você. — Cinco o quê? Para quê? — Para ajudar Carlos a escapar da rede. Estão chegando muito perto. Amanhã, depois de amanhã, ou talvez um dia depois. Ele deve ficar de fora; ele tem que ficar de fora. Eles vão cercar a loja, terão atiradores a cada pés. O tiroteio cruzado será fatal; se ele estiver lá poderá ocorrer um massacre. Todos vocês. Mortos. Oreale gritou de novo, a junta do dedo já vermelha. — Pare com isto! Não sei do que você está falando! Você é um louco e não vou ouvir mais nada — não ouvi nada. Carlos, fogo cruzado... massacres! Deus, estou me sentindo sufocado... Preciso de ar! — Você vai ganhar dinheiro. Muito dinheiro, acho. Lavier vai ficar-lhe muito agradecida. Também d’Anjou. — D’Anjou? Ele me despreza! Chama-me de pavão, insulta-me a cada oportunidade que tem. — É o seu modo, é claro. Na verdade, gosta muito de você — talvez mais do que você saiba. Ele é o número seis. — Que números são esses? Pare de falar em números! — E de que forma podemos distinguir vocês e designar as tarefas? Não podemos usar nomes. — Quem não pode? — Todos nós, que trabalhamos para Carlos. O grito era de romper os tímpanos, enquanto o sangue jorrava do dedo de Oreale. — Não vou ouvir! Sou um couturier, um artista! — Você é o número cinco. Faça exatamente como estamos lhe dizendo, ou nunca mais verá esta gruta passional aqui. — Ahhh! — Pare de gritar! Nós o apreciamos; sabemos que está sob tensão. Aliás, não confiamos no guarda-livros. — Trignon?
— Use só os primeiros nomes. É importante manter tudo em sigilo. — Pierre, então. É odiável. Desconta até as chamadas telefônicas. — Achamos que ele trabalha para a Interpol. — Interpol? — Se ele está trabalhando, vocês todos podem passar dez anos na cadeia. Vocês serão comidos vivos, Claude. — Ahhh! — Cale a boca! Apenas diga a Bergeron tudo o que nós pensamos. Vigie Trignon, sobretudo durante os próximos dois dias. Se ele deixar a loja por qualquer razão, fique atento. Isso pode significar que a cilada está se fechando. — Bourne foi até a porta, as mãos no bolso. — Tenho que voltar, agora. E você também. Diga a todos, do número um até o seis, tudo o que eu lhe disse. É necessário que as notícias se espalhem. Oreale gritou novamente, desta vez em histeria. — Números! Sempre números! Que números? Sou um artista, não um número! — Você não terá um rosto, a menos que volte correndo para lá, tão rápido quanto chegou até aqui. Procure Lavier, d’Anjou, Bergeron. Tão rápido quanto puder. Depois os outros. — Que outros? — Pergunte ao número dois. — Dois? — Dolbert. Janine Dolbert. — Janine. Ela também? — Isso mesmo. Ela é o dois. O vendedor jogou os braços para cima em protesto. — Isso é uma loucura! Nada tem sentido! — A sua vida tem, Claude — disse Jason. — Valorize-a. Estarei esperando do outro lado da rua. Deixe o apartamento daqui a exatamente três minutos. E não use o telefone; saia e volte para Les Classiques. Se não tiver saído em três minutos terei que voltar. — Tirou a mão do bolso e mostrou-lhe o revólver. Oreale expirou uma golfada de ar, seu rosto ficou pálido quando viu a arma.
Bourne saiu e fechou a porta. O telefone tocou na mesa de cabeceira. Marie olhou para o relógio; eram 20h15min e por um momento sentiu uma repentina pontada de medo. Jason dissera que telefonaria às 21h. Ele saíra do La Terrasse logo depois do escurecer, perto das 19h, para falar com uma vendedora chamada Monique Brielle. O esquema era bem preciso, só seria interrompido em caso de emergência. Teria acontecido alguma coisa? — É o quarto 420? — A voz era gutural. Marie sentiu-se aliviada; era André Villiers. O general telefonara no fim da tarde para dizer a Jason que o pânico se espalhara pela Les Classiques; que sua esposa fora chamada ao telefone mais de seis vezes durante a última hora e meia. Nenhuma vez, no entanto, ele pôde ouvir alguma coisa mais substancial; a cada vez que ele pegava o telefone a conversa se transformava em falatório inócuo e em gracejos. — Sim — disse Marie. — É o 420. — Desculpe-me, nunca nos falamos antes. — Sei quem é o senhor. — Também sei quem é você. Posso tomar a liberdade de lhe agradecer? — Entendo. Não tem de quê. — Agora, ao substancial. Estou telefonando do meu escritório e, é claro, esta linha não tem nenhuma extensão. Diga ao nosso amigo comum que a crise se acelerou. Minha mulher recolheu-se ao seu quarto, diz que está nauseada, mas aparentemente não está doente a ponto de deixar de telefonar. Várias vezes, como antes, peguei o telefone e percebi que estavam alertas a qualquer interferência. Todas as vezes pedi desculpas, um pouco rispidamente, dizendo que estava à espera de uma chamada. Francamente, não tenho certeza de que ela se tenha convencido disso mas, naturalmente, não pode me questionar. Eu ficaria grosseiro, mademoiselle. Há uma irritação sub-reptícia crescendo entre nós, e abaixo da superfície está a violência. Que Deus possa me dar forças! — Só posso lhe pedir para se lembrar do objetivo — interrompeu Marie. — Lembre-se do seu filho. — Sim — disse o velho calmamente. — Meu filho. E esta puta que diz reverenciar a sua memória! Sinto muito. — Tudo bem. Transmitirei tudo o que me disse ao nosso amigo. Ele vai telefonar dentro de uma hora. — Por favor — interrompeu Villiers. — Há mais coisas. É por isso que lhe telefonei. Duas vezes enquanto minha mulher estava ao telefone, as vozes tiveram um sentido para mim. A segunda eu reconheci; um rosto me veio à lembrança instantaneamente. É um telefonista de Saint-Honoré.
— Sabemos seu nome. E o primeiro? — Foi estranho. Eu não conhecia a voz, não tinha nenhuma referência para me lembrar de um rosto, mas entendi por que ele telefonara. Era uma voz estranha, metade sussurro metade comando, um eco de si mesma. Foi a ordem que me assustou. Veja, não era um tom normal, de conversa, era a comunicação de uma ordem. E se alterou no mesmo instante em que entrei na linha, é claro; passaram a transmitir um sinal previamente combinado, de despedida, mas o resíduo permaneceu. Esse resíduo, até mesmo o tom, é bem conhecido de qualquer soldado; é o seu meio e ênfase. Estou sendo claro? — Acho que sim — disse Marie gentilmente, percebendo que se o velho estivesse subentendendo o que ela pensava que estivesse, a tensão que sofria devia ser insuportável. — Tenha certeza disso, mademoiselle — disse o general — era aquele porco assassino. — Villiers parou, sua respiração era audível, as palavras que se seguiram estavam abafadas, eram de um homem próximo ao choro. — Ele estava... instruindo... minha... mulher... — A voz do velho soldado desafinou. — Desculpe-me por isto. Não tenho o direito de sobrecarregá-la. — O senhor tem todo o direito — disse Marie, de repente um pouco preocupada. — O que está acontecendo deve ser muito doloroso para o senhor e é pior ainda porque o senhor não tem com quem conversar. — Estou conversando com você, mademoiselle. Não devia, mas estou. — Quisera poder continuar conversando. Gostaria que um de nós dois pudesse estar com o senhor. Mas isso não é possível e sei que o senhor entende isso. Por favor, tente suportar. É muito importante que nenhuma conexão seja feita entre o senhor e o nosso amigo. Poderia lhe custar a vida. — Acho que já a perdi. — Ça c’est absurde — disse Marie rispidamente, como uma bofetada proposital no rosto do velho soldado. — Vous êtes um soldat. Arrêtez ça immédiatement! — C’est l’institutrice qui corrige te mauvais élève. Vouz avez bien raison. — On dit que vous êtes un géant. Je te crois. — Fez-se silêncio do outro lado da linha; Marie prendeu a respiração. Quando Villiers voltou a falar ela respirou novamente. — Nosso amigo em comum é um afortunado. Você é uma mulher extraordinária! — De forma alguma. Só quero que meu amigo volte logo para mim. Não há nada de extraordinário nisso. — Talvez não. Mas eu também gostaria de ser seu amigo. Você fez com que um velho se lembrasse de quem e o que é. Ou quem e o que foi; e o que tem que voltar a ser novamente. Agradeçolhe por esta segunda chance.
— Não tem de que... meu amigo. — Marie desligou, seu- indo-se emocionada e perturbada ao mesmo tempo. Não estava muito convicta de que Villiers pudesse agüentar as próximas vinte e quatro horas. E se não pudesse, o assassino saberia o quanto já fora descoberto. Ordenaria que todos os contatos da Les Classiques fugissem de Paris e desaparecessem. Ou haveria um mar de sangue em Saint-Honoré, e o resultado seria o mesmo. Se isso acontecesse, não haveria nenhuma resposta. Nenhum endereço em Nova Iorque, nenhuma mensagem a ser decifrada, nenhum mensageiro a ser descoberto. E o homem a quem amava teria que voltar para o seu labirinto. E ele a deixaria.
Capítulo28 Bourne avistou-a na esquina; estava iluminada pelas luzes da rua e vinha em direção ao pequeno hotel onde morava. Monique Brielle, a funcionária número um de Jacqueline Lavier, era de estrutura mais pesada e sinuosa do que Janine Dolbert. Ele lembrava-se de tê-la visto na loja. Havia certa segurança em seu porte, seu modo de andar era o de uma mulher confiante e segura, segura de suas habilidades. Passos muito firmes. Jason pôde entender por que ela era a número um de Lavier. Eles logo se encontrariam, o impacto da mensagem seria assustador, a ameaça estava implícita. Era hora de começar a segunda descarga elétrica. Ficou imóvel e a deixou passar pela calçada; os saltos batiam marcialmente sobre o piso. A rua não estava muito cheia, mas também não estava deserta. Havia umas doze pessoas no quarteirão. Seria necessário isolá-la, afastá-la dali, dos possíveis ouvintes, porque ele lhe diria palavras que nenhum mensageiro se arriscaria a deixar que fossem ouvidas. Achegou-se a ela a menos de trinta pés da entrada do pequeno hotel; diminuiu o passo e pôs-se ao seu lado. — Entre em contato com Lavier agora mesmo — disse em francês, olhando em frente. — Perdão. O que disse? Quem é o senhor, monsieur? — Não pare! Continue a andar. Passe adiante da entrada. — O senhor sabe onde moro? — Há muito pouca coisa que não sabemos. — E se eu entrar? Há um porteiro lá... — Também há Lavier — interrompeu Bourne. — Você perderá o seu emprego e nunca mais será capaz de encontrar outro em Saint-Honoré. Eu acho que este será o menor dos seus problemas. — Quem é você? / — Não sou seu inimigo — Jason olhou-a. — Não me faça sê-lo. — Você. O americano! Janine... Claude Oreale! — Carlos — completou Bourne. — Carlos? Que loucura é esta? A tarde toda, só Carlos! E números! Todos têm um número que não conhecem! E falam de armadilhas e homens armados! É uma loucura! — Está acontecendo. Mantenha-se no mesmo passo. Por favor. Pelo seu próprio bem. Ela continuou a andar, o passo menos seguro, o corpo enrijecido, uma marionete dura e embaraçada em seus cordéis. — Jacqueline falou conosco — disse ela com voz grave. — Ela nos disse que tudo isto era uma loucura, que isto — você — estava a fim de arruinar Les Classiques. Que uma outra casa deve tê-lo pago para nos arruinar.
— O que você esperava que ela dissesse? — Você é um provocador pago. Ela nos disse a verdade. — Ela também lhes disse para se manterem calados? Para não dizerem uma palavra sobre isso tudo a ninguém? — Naturalmente, — E acima de tudo — continuou Jason, como se não a tivesse ouvido — para não manterem contato com a polícia, o que, sob as atuais circunstâncias, seria a coisa mais lógica a fazer. E, de certa forma, a única coisa a fazer. — Sim, naturalmente... — Nada de natural — contradisse Bourne. — Olhe, sou apenas um passador de recados, provavelmente não tenho posição mais alta do que a sua. Não estou aqui para convencê-la, estou aqui apenas para entregar uma mensagem. Fizemos um teste com Dolbert, passamos-lhe uma falsa informação. — Janine? — A perplexidade de Brielle era um misto de confusão e espanto. — As coisas que ela disse eram incríveis! Tão incríveis quanto os histéricos gritos de Claude — e as coisas que ele disse! Mas o que ela disse era o oposto do que ele disse. — Nós sabemos; foi intencional. Ela estava conversando com Azur. — A House of Azur? — Teste-a amanhã. Questione-a. — Questioná-la? — É, faça isso. Pode ter ligações. — Com o quê? Interpol? Armadilhas? É a mesma loucura! Ninguém sabe sobre o que você está falando! — Lavier sabe. Entre em contato com ela agora mesmo. — Chegaram ao final do quarteirão; Jason tocou-lhe o braço. — Vou deixá-la aqui, nesta esquina. Vá para o seu hotel e telefone para Jacqueline. Diga-lhe que é muito mais sério do que pensávamos. Tudo está se desmoronando. E o pior é que alguém cometeu uma traição. Não foi Dolbert, nenhuma das vendedoras, mas alguém em posição mais alta. Alguém que sabe de tudo. — Traição? O que significa isso? — Existe um traidor, na Les Classiques. Diga-lhes para ter cuidado. Com todos. Se não for cuidadosa, pode ser o fim de tudo para todos nós. — Bourne soltou-lhe o braço, deu um passo para fora do meio-fio e atravessou a rua. Do outro lado avistou uma entrada e foi em sua direção.
Virando a cabeça ainda pôde ver Monique Brielle no meio do quarteirão, correndo em direção à entrada do hotel. O primeiro pânico da segunda descarga começara. Era hora de telefonar para Marie. — Estou preocupada, Jason. Isso está acabando com ele! Ele quase se desesperou ao telefone. O que acontece quando ele a vê? O que sente e pensa? — Ele pode suportar — disse Bourne, olhando para o trânsito nos Champs-Elysées de dentro da cabine telefônica. Gostaria de estar mais seguro com relação a André Villiers. — Se ele não agüentar, eu o matei. Não quero esse peso na minha consciência, mas fiz isto. Eu devia ter calado a minha boca; e eu mesmo devia tê-la pego. — Você não podia ter feito isso. Viu d’Anjou na escada; não podia ter entrado. — Eu podia ter pensado em alguma coisa para fazer. Como concordamos, sinto-me engenhoso — mais do que gosto de pensar. — Mas você está fazendo alguma coisa! Está criando pânico, forçando os que passam as ordens de Carlos a se mostrarem. Alguém vai ter que deter o pânico. E você mesmo disse que achava que Jacqueline Lavier não estava em posição tão alta para dar esse comando. Jason, você vai encontrar alguém, e então o reconhecerá. Você o pegará! Tenho certeza! — Assim espero. Cristo, assim espero! Sei o que estou fazendo. Mas, de vez em quando... — Bourne parou. Detestava ter que confessar isto, mas era preciso — devia dizer a ela. — Fico confuso. É como se eu estivesse partido ao meio, uma parte de mim diz: “Salve-se” e a outra... Deus, ajude-me... diz: “Pegue Carlos.” — É o que você está fazendo desde o início, não é? — disse Marie suavemente. — Não me importo com Carlos! — Jason gritou, limpando o suor que lhe aparecera na testa e sentindo frio. — Isso me deixa maluco — acrescentou, sem ter certeza se dissera as palavras ao telefone ou se para ele mesmo. — Querido, volte. — O quê? — Bourne olhou para o telefone, e novamente não tinha certeza de ter ouvido as palavras, ou se apenas quisera ouvi-las e as inventara. Estava acontecendo de novo. As coisas pareciam ser e não ser. O céu lá fora estava muito escuro; lá fora, numa cabine de telefone dos Champs-Elisées. Uma vez já fora claro, tão brilhante que ofuscava. E quente, não frio. Com pássaros gritando e ruídos súbitos de metal... — Jason! — O quê? — Volte. Querido, por favor, volte.
— Por quê? — Você está cansado. Precisa descansar. — Ainda tenho que me encontrar com Trignon. Pierre Trignon. É o guarda-livros. — Faça isto amanhã. Pode esperar até amanhã. — Não. Amanhã é para os capitães. — O que estava dizendo? Capitães, Tropas. Pessoas aos encontrões, em pânico. Mas era o único jeito, o único jeito. O camaleão era um... provocador. — Ouça-me — disse Marie, a voz intensa. — Alguma coisa está acontecendo com você. Isto já aconteceu antes; nós dois sabemos disso, meu querido. E quando isso acontece, você tem que parar, também sabemos disso. Volte para o hotel, por favor. Bourne fechou os olhos, o suor estava desaparecendo e o ruído do trânsito lá fora tomou o lugar dos gritos dos pássaros em seus ouvidos. Podia ver as estrelas na noite fria, não mais a ofuscante luz solar, nem o insuportável calor. Tinha passado. Fosse o que fosse, tinha passado. — Estou bem. Verdade. Estou bem agora. Foi só um mau momento, só isso. — Jason? — Marie falou devagar, forçando-o a ouvi-la. — O que causou isso? — Não sei. — Você acabou de ver a Brielle. Ela lhe disse alguma coisa? Alguma coisa que fez você se lembrar de outra? — Não tenho certeza. Eu estava muito ocupado tentando descobrir o que dizer. — Pense, querido! Bourne fechou os olhos, tentando lembrar-se. Teria acontecido alguma coisa? Alguma coisa que tivesse sido dita casualmente ou tão rápido que se perdera naquele momento? — Ela me chamou de provocateur — disse Jason, sem saber por que a palavra lhe voltara. — Mas isto é o que sou mesmo, não é? É o que estou fazendo. — Sim — concordou Marie. — Tenho que ir — continuou Bourne. — A casa de Trignon fica perto daqui. Quero alcançá-lo antes das dez. — Tenha cuidado. — Marie falou como se seus pensamentos estivessem em outro lugar qualquer. — Terei. Eu a amo. — Acredito em você — disse Marie St. Jacques.
A na estava quieta; o quarteirão era uma mistura estranha de lojas e apartamentos, bem própria do centro de Paris, explodindo em movimento durante o dia e deserto à noite. Jason chegou à pequena casa de apartamentos que constava da lista telefônica como a residência de Pierre Trignon. Subiu os degraus e entrou no aconchegante foyer. A luz era fraca; havia uma fileira de caixas de correspondência do lado direito, cada uma tinha logo embaixo um pequeno alto-falante que servia para o visitante identificar-se. Jason correu os dedos pelos nomes impressos embaixo das caixas: M. PIERRE TRIGNON — 42. Apertou o pequeno botão preto duas vezes; dez segundos mais tarde ouviu um ruído de estática. — Oui? — Monsiew Trignon, s’il vous plaît? — Ici. — Télégramme, monsieur. Je ne peux pas quitter ma bicyclette. — Télégramme? Pour moi? Pierre Trignon não era homem de receber telegramas com muita freqüência, pelo menos era o que indicava a sua voz surpresa. O resto de suas palavras nem sequer foi ouvido, mas uma voz de mulher, ao fundo, parecia chocada, relacionando o telegrama a imagens de desastres. Bourne esperou do lado de fora da porta de vidro opaco. Segundos depois ouviu barulho de passos se aproximando. Alguém descia correndo — obviamente Trignon — os degraus. A porta se abriu, escondendo Jason; um homem careca, pesadão, com suspensórios enrugando a carne por baixo da imensa camisa branca, foi até as caixas de correspondência e parou na de número 42. — Monsieur Trignon? O homem pesadão virou-se, o rosto rechonchudo tinha uma expressão indefesa. — Um telegrama! Recebi um telegrama! — gritou. — Foi você quem me trouxe o telegrama? — Peço desculpas por este estratagema, Trignon, mas foi para o seu próprio bem. Achei que você não gostaria de ser interrogado na frente de sua mulher, da família. — Interrogado? — exclamou o guarda-livros, os lábios grossos e protuberantes caídos, os olhos assustados. — Eu? Sobre o quê? O que é isto? Por que está aqui na minha casa? Sou um cidadão cumpridor das leis! — Você trabalha em Saint-Honoré? Para uma firma chamada Les Classiques? — Sim. Quem é você? — Se preferir, podemos ir até o meu escritório — disse Bourne. — Quem é você?
— Sou um investigador especial do Bureau de Taxas e Registros, Divisão de Fraude e Conspiração. Venha — meu carro oficial está aí fora. Vamos? — Aí fora? Vamos? Estou sem paletó, sem casaco! Minha mulher. Ela está lá em cima, esperando que eu leve o telegrama. Um telegrama! — Pode lhe mandar um, se preferir. Agora vamos. Já perdi todo o meu dia com isso, quero acabar logo. — Por favor, monsieur — protestou Trignon. — Não faço questão de ir a lugar algum! Disse que tinha perguntas. Faça as suas perguntas e deixe-me subir. Não tenho vontade alguma de ir até o seu escritório. — Pode levar alguns minutos — disse Jason. — Telefonarei para minha mulher e dir-lhe-ei que é um engano. Que o telegrama é para o velho Gravet; ele mora aqui no primeiro andar e quase não pode ler. Ela vai entender. Madame Trignon não entendeu, mas suas ásperas objeções foram imediatamente caladas pelo tom mais áspero de Monsieur Trignon. — Pronto, vê? — disse o guarda-livros afastando-se da caixa de correspondência, o cabelo ralo colado na cabeça com o suor. — Não há razão para ir a algum lugar. O que são alguns poucos minutos na vida de um homem? O show da televisão será repetido daqui a um ou dois meses. Agora pelo amor de Deus, o que é isto, monsieur? Meus livros são imaculados! É claro que não posso ser responsável pelo trabalho do contador. Isso é outra firma, ele é outra firma. Francamente, nunca gostei dele; faz juras em demasia, o senhor entende o que quero dizer? Mas também, quem sou eu para falar? — As mãos de Trignon estavam levantadas, as palmas viradas para cima, o rosto aberto em um sorriso obsequioso. — Para começar — disse Bourne, desprezando os protestos — não deixe os limites da cidade de Paris. Se for chamado por qualquer razão, pessoal ou profissional, para fazer isto, notifique-nos. Francamente, isto não lhe será permitido. — O senhor certamente está brincando, monsieur! — Caro que não. — Não tenho razão alguma para deixar Paris — nem dinheiro para isso. Mas que isto me seja imposto é inacreditável! O que fiz? — O Bureau vai intimar a loja a mostrar seus livros pela manhã. Esteja preparado. — Intimar? Qual é causa? Estar preparado para quê? — Pagamentos para os assim chamados fornecedores, cujas faturas são fraudulentas. A mercadoria nunca foi recebida — nem havia intenção de recebê-la. E os pagamentos foram direto para um banco em Zurique.
— Zurique? Não sei do que está falando! Nunca emiti cheque algum para Zurique. — Não diretamente, sabemos disso. Mas foi fácil emiti-los para firmas inexistentes. O dinheiro foi remetido para Zurique. — Todas as faturas são rubricadas por Madame Lavier! Não pago nada por minha própria conta! Jason fez uma pausa, franzindo a testa. — Agora é você quem está brincando! — disse. — Dou-lhe a minha palavra! É a norma da casa. Pode perguntar a qualquer um! Les Classiques não paga um sou, a menos que seja autorizado pela Madame. — O que está dizendo, então, é que recebe ordens diretamente dela. — Mas naturalmente! — E de quem ela recebe ordens? Trignon sorriu maliciosamente. — Dizem que é diretamente de Deus, quando não é o oposto. É claro, é uma piada, monsieur. — Gostaria que fosse mais sério. Quem são os donos da Les Classiques? — É uma sociedade, monsieur. Madame Lavier tem muitos amigos ricos; eles investiram na habilidade dela. E, é claro, nos de René Bergeron. — Estes investidores se encontram com freqüência? Fazem sugestões sobre as normas da loja? Ou talvez indiquem algumas firmas com as quais a loja deve negociar... — Eu não saberia lhe dizer, monsieur. Naturalmente, todos têm amigos. — Podemos estar preocupados com as pessoas erradas — interrompeu Bourne. — É bem possível que você e Madame Lavier — como os únicos diretamente envolvidos com as finanças diárias — estejam sendo usados. — Usados para quê? — Para desviar dinheiro para Zurique. Para a conta de um dos mais depravados matadores da Europa. Trignon teve uma convulsão, o imenso estômago estremecia. Encostou-se na parede. — Em nome de Deus, o que está dizendo? — Preparem-se. Sobretudo você! Era você quem preparava os cheques, e mais ninguém. — Mas apenas sob aprovação! — Alguma vez você conferiu a mercadoria para ver se estava de acordo com as faturas?
— Este não é o meu trabalho! — Então, em essência, você emitia pagamentos para mercadorias que nunca via. — Nunca vejo nada! Apenas faturas que já tenham sido rubricadas. Só pago essas! — É melhor encontrar todas elas. Você e Madame Lavier, é melhor começarem a procurar tudo em seus arquivos. Porque vocês dois — e você, mais especialmente — vão se dar mal. A responsabilidade é de vocês. — Responsabilidade? Que responsabilidade? — Por falta de sentença especifica, vamos chamá-la cumplicidade em múltiplos homicídios. — Múltiplos... — Assassinatos. A conta em Zurique pertence ao assassino conhecido como Carlos. Você, Pierre Trignon, e sua empregadora. Madame Jacqueline Lavier, estão diretamente implicados em financiar o mais procurado dos assassinos da Europa. Ilich Ramirez Sanchez, conhecido como Carlos. — Ahhh!... — Trignon sentou-se no chão do foyer. Os olhos mostravam o seu estado de choque, as feições gorduchas estavam deformadas. — Toda a tarde... — murmurou. — As pessoas corriam em volta, encontros históricos nos corredores, olhavam para mim de forma estranha, passavam pelo meu escritório e viravam a cabeça. Oh, meu Deus! — Se eu fosse você, não perderia tempo. A manhã logo estará chegando e com ela possivelmente o dia mais dIfícil de sua vida. — Jason foi em direção à porta de saída e parou, a mão na maçaneta. — Não é do meu dever avisá-lo, mas se eu fosse você, entraria em contato com Madame Lavier agora mesmo. Comece a preparar a sua defesa — isso pode ser tudo que lhes resta. Uma execução pública não está fora de cogitações. O camaleão abriu a porta e saiu; a noite fria açoitou-lhe o rosto. Pegar Carlos. Armar uma emboscada para Carlos. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Falso! Descubra o número de Nova Iorque. Descubra a Treadstone. Descubra o significado de uma mensagem. Descubra o emissor. Descubra Jason Bourne. A luz do sol refletia-se pelas janelas de vidro pintado. O velho de rosto escanhoado, vestido com um terno antigo, atravessou o corredor da igreja em Neuilly-sur-Seine. O padre alto que estava perto do suporte com as velas para a novena olhou para ele, surpreso: o velho despertara-lhe uma sensação de familiaridade. Por um instante o clérigo pensou já ter visto aquele homem antes, mas não sabia onde. Ontem aparecera um mendigo desgrenhado, parecido com ele, com a mesma altura, o mesmo... Não, os
sapatos deste velho estavam polidos, seus cabelos brancos bem-penteados e o terno, embora de corte antigo, era de boa qualidade. — Angelus Domini — disse o velho ao abrir a cortina do confessionário. — Basta! — sussurrou o vulto por detrás da etamine. — O que conseguiu saber em SaintHonoré? — Pouca coisa, mas com muito respeito pelos seus métodos. — Há um método? — É irregular, parece. Ele seleciona as pessoas que não sabem de nada e as usa para instigar o caos. Sugiro que não seja feito mais nada na Les Classiques. — Naturalmente — concordou o vulto. — Mas qual é o propósito dele? — Além do caos? — perguntou o velho. — Eu diria que é provocar desconfianças entre os que sabem de alguma coisa. A mulher chamada Brielle disse que um americano lhe mandara dizer a Lavier que havia um “traidor” lá dentro. Uma declaração falsa, é claro. Quem ousaria? A noite passada foi uma loucura, como você sabe. O guarda-livros, Trignon, ficou maluco. Esperou até as duas horas da manhã na frente da casa de Lavier e literalmente assaltou-a quando ela voltou do hotel de Brielle, gritando e chorando na rua. — A própria Lavier não se comportou muito bem. Estava quase em pânico quando telefonou para Parc Monceau; foi-lhe dito para não voltar a telefonar de novo. Ninguém deve telefonar para lá... nunca mais. Nunca. — Já recebemos a ordem. Os poucos que conhecem o número já o esqueceram. — É bom certificar-se disso. — O vulto de repente se movimentou, a cortina se mexeu. — É claro, espalhar desconfiança! Advém o caos. Não há mais nenhuma dúvida quanto a isto, agora. Ele vai pegar os contatos, tentar arrancar informações deles e, quando falharem, vai jogá-los para os americanos e seguir em frente. Mas vai tentar estas abordagens sozinho, isso faz parte do seu ego. Ele é um homem louco. Um obcecado. — Ele pode ser as duas coisas — contrapôs o velho — mas é também um profissional. Vai querer certificar-se de que todos os nomes sejam realmente entregues aos seus superiores, caso falhe. E, assim, não importa que você o pegue ou não, os contatos serão pegos. — Eles estarão mortos — disse o assassino. — Menos Bergeron. Ele é muito valioso. Diga-lhe que vá para Atenas; ele sabe para onde. — Devo deduzir que vou ficar no lugar de Parc Monceau? — Isto seria impossível. Mas por enquanto você vai entregar as minhas decisões finais.
— E a primeira pessoa com quem devo falar é Bergeron. Ir para Atenas. — Sim. — Então, Lavier e d’Anjou estão marcados? — Estão marcados. Um chamariz raramente sobrevive, e eles não sobreviverão. Você também pode entregar outra mensagem, para os dois grupos que estão cobrindo Lavier e d’Anjou. Diga-lhes que eu os estarei vigiando — o tempo todo. Não pode haver nenhum engano. Agora era a vez de o velho fazer uma pausa para despertar silenciosamente a atenção do vulto. — Guardei o melhor para o fim, Carlos. O Renault foi encontrado há uma hora e meia, em uma garagem em Montmartre. Foi levado para lá na noite passada. Na quietude do confessionário o velho podia ouvir a respiração lenta e deliberada da figura do outro lado do pano. — Presumo que você tenha tomado medidas para que ele esteja sendo vigiado até agora, e seguido até agora. O mendigo de encomenda riu baixinho. — De acordo com suas últimas instruções, tomei a liberdade de pagar um amigo, um amigo que tem um carro. Ele, por sua vez, empregou três conhecidos seus. Juntos, estão fazendo quatro turnos de seis horas na rua, em frente à garagem. Não sabem de nada, é claro. Apenas que devem seguir o Renault a qualquer hora do dia e da noite. — Você não me desaponta. — Não posso deixar que isto aconteça. E, desde que Parc Monceau foi eliminado, não tenho mais um número de telefone para lhes dar a não ser o meu próprio que, como você sabe, é o de um velho e desmantelado café no Quartier. O dono do café e eu fomos amigos nos velhos tempos, em dias melhores. Posso pedir-lhe as mensagens a cada cinco minutos e ele não vai se importar. Sei onde ele conseguiu o dinheiro para pagar o seu negócio, e quem ele teve que matar para obtê-lo. — Você se comportou muito bem, você tem muito valor. — Também tenho um problema, Carlos. Como nenhum de nós pode telefonar para Parc Monceau, como vou poder encontrá-lo? No momento em que precisar, digamos, por exemplo, no caso do Renault. — Sim, estou ciente do problema. Você sabe o que está me pedindo? — Eu preferiria não ter que pedir. Minha única esperança é que, quando tudo isso terminar e Caim já estiver morto, você se lembre das minhas contribuições e, em vez de me matar, mude o número. — Você está se antecipando. — Nos velhos tempos esse foi o meu meio de sobrevivência. O assassino murmurou sete números. — Você é o único homem vivo que tem este número.
Naturalmente, será impossível rastreá-lo. — Naturalmente. Quem esperaria que um velho mendigo pudesse conhecer este número? — A cada hora que passa você se aproxima mais de um melhor padrão de vida. A rede está se fechando; a cada hora que passa ele mais se aproxima de uma das várias armadilhas. Caim será pego e o corpo de um impostor será mandado de volta para os espantados estrategistas que o criaram. Eles contaram com um ego monstruoso e ele correspondeu. Afinal, ele foi apenas um boneco, um boneco caro e dispendioso. Todos sabiam disso, menos ele. Bourne pegou o telefone. — Sim? — Quarto 420? — Continue, general. — As chamadas telefônicas pararam. Ela não está mais sendo chamada — pelo menos não ao telefone. O nosso casal de empregados saiu e o telefone tocou apenas duas vezes. Nas duas, ela me pediu para atender. Ela realmente não quis falar. — Quem chamou? — Os farmacêuticos, com uma receita, e um jornalista pedindo uma entrevista. Ela não poderia saber quem estava telefonando. — O senhor teve a impressão de que ela estava querendo livrar-se do senhor ao mandá-lo atender o telefone? Villiers fez uma pausa, a resposta veio irada. — Era isto, o efeito foi pouco sutil, até ela comunicar que iria almoçar fora; Disse que tinha uma reserva no George Cinq e que eu poderia me encontrar com ela lá se ela realmente decidisse ir. — Se ela for, preciso chegar lá antes. — Comunicar-lhe-ei. — O senhor disse que ela não está sendo chamada pelo telefone. “Pelo menos, não ao telefone”, acho que foi isso o que o senhor disse. O senhor quis dizer alguma outra coisa com isso? — Sim. Há trinta minutos uma mulher veio até aqui. Minha mulher não queria, mas acabou recebendo-a. Vi apenas o seu rosto no corredor, mas foi o suficiente. A mulher estava em pânico. — Descreva-a. Villiers descreveu a mulher. — É Jacqueline Lavier — disse Jason.
— Achei que devia ser ela mesma. Aparentemente, a sua armadilha foi um sucesso. Era óbvio que ela não dormira. Antes de levá-la para a biblioteca, minha mulher me disse que ela era uma velha amiga e que estava passando por uma crise no casamento. Mas, na idade dela, é clero que não existem mais crises de casamento, apenas a aceitação ou a separação. — Não consigo entender por que ela foi à sua casa. É muito arriscado. Não tem sentido. A menos que ela tenha feito isso por conta própria, ao saber que nenhuma chamada mais devia ser feita. — Estas coisas todas me ocorreram — disse o soldado. — E senti necessidade de respirar um pouco de ar, de dar uma caminhada em volta do quarteirão. A minha assistente me acompanhou: era um velho trôpego fazendo a sua caminhada diária sob o olhar vigilante de uma acompanhante. Mas os meus olhos também estavam vigilantes. Lavier foi seguida. Dois homens estavam sentados em um carro ali perto, quatro casas depois da minha. O automóvel era equipado com um rádio. Não pertenciam a nenhuma das casas da rua. Estava estampado no rosto deles, na forma como vigiavam a minha casa. — Como você sabe que ela não veio com eles? — Moramos numa rua silenciosa. Quando Lavier chegou, eu estava na sala de estar tomando café e ouvi seus passos na escada. Fui até a janela a tempo de ver o táxi ir embora. Ela veio de táxi e foi seguida. — Quando ela saiu? — Ela ainda não saiu. E os homens continuam lá fora. — Que carro é? — Um Citroen. Cinza. As primeiras três letras da placa são NYR. — Há pássaros no ar, seguindo um contato. De onde vieram os pássaros? — Como? Não entendi. O que disse? Jason balançou a cabeça. — Não tenho certeza. Mas não tem importância. Vou tentar chegar aí antes que Lavier saia. Faça o que puder para me ajudar. Interrompa a sua mulher e diga que precisa falar com ela por alguns minutos. Insista para que a sua “velha amiga” fique; diga alguma coisa, mas certifique-se de que ela não saia. — Farei o possível. Bourne desligou e olhou para Marie, que estava perto da janela, do outro lado do quarto. — Está funcionando. Eles estão começando a levantar suspeitas entre eles mesmos. Lavier foi a Parc Monceau e está sendo seguida. Começam a suspeitar deles mesmos. — Há pássaros no ar — disse Marie. — O que você quis dizer com isto? — Não sei; mas não é importante. Não há tempo agora.
— Acho que é importante, Jason. — Não agora. — Bourne foi até a cadeira onde deixara o sobretudo e o chapéu. Vestiu-os rapidamente e aproximou-se do balcão; abriu a gaveta. Pegou o revólver. Por um instante contemplou-o, liberando as recordações. As imagens voltaram ao passado; um passado que era todo seu e, no entanto, não o era totalmente. Zurique. A Bahnhofstrasse e o Carillon du Lac; o Drei Alpenhäuser e a Löwenstrasse; uma pensão imunda na Steppdeckstrasse. Aquela arma simbolizava todos esses lugares, pois ela quase lhe tirara a vida em Zurique. Mas agora ele estava em Paris. E tudo que começara em Zurique estava em movimento. Encontrar Carlos. Armar uma cilada para Carlos. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Ë falso! Que diabo, é falso! Descobrir a Treadstone. Descobrir a mensagem. Descobrir um homem.
Capítulo29 Jason encostou-se bem no canto do banco traseiro quando o táxi entrou no quarteirão de Villiers, em Parc Monceau. Perscrutou os carros alinhados no meio-fio; não havia nenhum Citroen cinza, nem placa com as letras NYR. Mas lá estava Villiers. O velho soldado estava sozinho na calçada, quatro portas depois da sua casa. Dois homens... num carro quatro casas depois da minha. Ele estava onde o carro estivera antes; era um sinal. — Arrêtez, s’il vous plaît — disse Bourne ao motorista. — Le vieux là-bas. Je veux parler avec lui. — Abaixou o vidro e inclinou-se para fora do carro. — Monsieur? — Em inglês — respondeu Villiers, aproximando-se do táxi. — Era um velho a conversar com um estrangeiro. — O que aconteceu? — perguntou Jason. — Não pude detê-las. Elas saíram. — Elas? — Minha mulher saiu com aquela outra, a Lavier. Fui obstinado mas não adiantou. Disse-lhe para esperar o meu telefonema no George Cinq, era um assunto de extrema importância e eu precisava do seu conselho. — E o que ela disse? — Que não tinha certeza se estaria no George Cinq. Porque a amiga insistia em ver um padre em Neuilly-sur-Seine, na Igreja do Santíssimo Sacramento. E ela se sentia na obrigação de acompanhá-la. — O senhor fez alguma objeção? — Energicamente. E pela primeira vez em nossa vida conjugal ela expôs os meus próprios pensamentos. Disse: “Se o seu desejo é investigar os meus atos, André, por que não telefona para a paróquia? Tenho certeza que alguém poderá me reconhecer e me chamar ao telefone.” Será que ela estava me testando? Bourne pensou. — Talvez. Alguém a veria lá, ela tornaria isso possível. Mas chamá-la ao telefone já seria outra coisa. Quando saíram? — A menos de cinco minutos. Os dois homens que estavam no Citroen seguiram-nas. — Elas estavam no seu cano?
— Não. Minha mulher chamou um táxi. — Vou até lá — disse Jason. — Achei que devia — disse Villiers. — Procurei o endereço da igreja. Bourne pôs uma nota de cinqüenta francos sobre o encosto do assento dianteiro. O motorista pegou-a. — É multo importante para mim chegar a Neuilly-sur-Seine o mais rápido possível. Na Igreja do Santíssimo Sacramento. Sabe onde fica? — Como não, monsieur? É a paróquia mais bonita deste distrito. — Se chegar lá bem depressa terá mais cinqüenta francos. — Voaremos sobre as asas dos santíssimos anjos, monsieur! Voaram, e o projétil voador pôs em risco quase todo o tráfego na pista. — Lá estão as torres de Santíssimo Sacramento, monsieur — exclamou o motorista vitorioso, doze minutos depois, apontando três altas torres de pedra, pela janela do carro. — Mais um minuto ou talvez dois, se esses idiotas que deviam ser retirados da rua permitirem... — Mais devagar — interrompeu Bourne. Sua atenção fora desviada para um automóvel um pouco mais à frente. Tinham acabado de dobrar uma esquina e ele o vira. Era um Citroen cinza, com dois homem no assento da frente. Os carros pararam no sinal. Jason pôs a segunda nota de cinqüenta francos por cima do banco e abriu a porta. — Voltarei logo. Se o sinal abrir, siga em frente, devagar que eu pulo para dentro. Bourne desceu do carro, mantendo-se abaixado e correu por entre os carros, até que avistou as letras NYR; os números que se seguiam eram 768, mas não tinham importância. O motorista do táxi fizera jus ao seu dinheiro. O sinal mudou e a fila de automóveis avançou como se fosse um comprido inseto juntando sua carapuça. O táxi vinha próximo à calçada. Jason abriu a porta e entrou. — Você trabalha bem — disse para o motorista. — Mas não estou muito certo sobre o trabalho que estou fazendo. — Um problema de coração. É preciso pegar o traidor no ato. — Na igreja, monsieur? O mundo anda multo rápido para mim. — Não no trânsito — disse Bourne. Aproximaram-se do último quarteirão antes da Igreja do Santíssimo Sacramento. O Citroen fez a curva, havia um único carro entre o sedã e um táxi, cujos passageiros Jason não podia distinguir. Qualquer coisa incomodava Jason. A vigilância dos dois homens era muito óbvia, muito aberta. Era como se os militantes de Carlos quisessem que as pessoas que estavam no táxi soubessem que eles as estavam acompanhando.
É claro! A mulher de Villiers estava no táxi. Com Jacqueline Lavier. E os dois homens do Citroen queriam que a mulher de Villiers soubesse que eles a estavam seguindo. — Lá está a Santíssimo Sacramento — disse o motorista, entrando na rua onde a igreja se elevava no esplendor do seu estilo medieval inferior, no centro de um gramado bem-tratado, entrecruzado de caminhos de pedra e pontilhado de esculturas. — O que devo fazer, monsieur? — Encoste naquele espaço — ordenou Jason, apontando para um espaço na fila dos carros encostados. O táxi com a mulher de Villiers e Lavier parou em frente a uma entrada guardada por um santo de concreto, A bela mulher de Villiers saltou primeiro do carro, estendendo a mão para Jacqueline Lavier, que desceu à calçada muito pálida. Usava óculos de sol, com armação cor-de-laranja, e levava uma bolsa branca; mas perdera toda a sua elegância. Os cabelos com mechas prateadas escorriam lisos do alto da cabeça em linhas esparsas dos lados do rosto, que mais parecia uma máscara mortuária. Suas meias estavam rasgadas. Ela estava há uns trezentos pés dele, mas Bourne quase podia sentir a respiração irregular, difícil e acompanhada de movimentos hesitantes da antiga figura régia caminhando à luz do sol. O Citroen ultrapassara o táxi e estava encostado no meio- fio. Nenhum dos homens saiu do carro, mas uma fina vara de metal, refletindo a luz do sol, começou a se elevar da capota do carro. A antena do rádio estava sendo ativada, códigos eram emitidos em freqüência especial e secreta. Jason estava hipnotizado, não pela visão ou percepção do que estava sendo feito, mas por alguma outra coisa. As palavras lhe vieram à mente; não sabia de onde, mas apareceram, estavam na sua cabeça. Delta para Almanac; Delta para Almanac. Não vamos responder. Repita, negativo, irmão. Almanac para Delta. Vocês vão responder, como foram ordenados. Abandonar, abandonar. Acabou. Delta para Almanac. Você acabou, irmão, Vá se foder! Delta está fora do ar, equipamento estragado. De repente a escuridão tomou conta dele, a luz do sol desaparecera. Não havia mais as torres altas da igreja se elevando contra o céu; ao contrário, apareceram formas escuras e irregulares de folhagens se movimentando debaixo da luz das nuvens iridescentes. Tudo se movimentava, tudo se movimentava; ele tinha que se movimentar também. Ficar imóvel significa morrer. Movimente se! Pelo amor de Cristo, movimente-se! E retire-os de lá. Um por um. Aproxime-se agachado; domine o medo — o terrível medo — e reduza os números. É a única coisa a fazer. Reduza os números. O Monge deixara isso bem claro. Faca, arame, joelho, dedo; você conhece os pontos fracos de lesão. De morte. A morte é apenas um número estatístico para os computadores. Para você significa a sobrevivência. O Monge.
O Monge? A luz solar voltou-lhe à vista, cegando-o por um momento; estava com um pé na calçada, os olhos no Citroen, que estava a cem jardas dali. Era difícil ver com clareza; por que era tão difícil? Estafa, névoa... não era a escuridão agora. Mas a impenetrável névoa. Sentia calor. Não, sentia frio. Frio! Levantou a cabeça, de repente consciente de onde estava e o que fazia. Encostara o rosto contra a janela; sua respiração embaçara o vidro. — Vou sair por alguns minutos — disse Bourne. — Espere aqui. — O dia todo, se quiser, monsieur. Jason levantou a gola do sobretudo, abaixou um pouco o chapéu e colocou os óculos de aro de tartaruga. Passou por um casal que ia em direção a um bazar de objetos religiosos, ultrapassou-o, pôs-se atrás de uma mãe com uma criança, do lado de fora da calçada. Viu claramente o Citroen, o táxi chamado para Parc Monceau não estava mais lá, fora dispensado pela mulher de Villiers. Isso era muito estranho, Bourne pensou; os táxis não estavam tão fáceis. Três minutos mais tarde a razão ficou clara... e perturbadora. A mulher de Villiers saiu a passos largos da igreja, caminhando rapidamente, sua figura alta e escultural despertando os olhares admirados dos que passavam. Encaminhou-se diretamente para o Citroen, falou com os homens que estavam na frente e depois abriu a porta de trás. A bolsa. Uma bolsa branca! A mulher de Villiers estava com a bolsa que há alguns minutos estava nas mãos de Jacqueline Lavier. Ela entrou pela porta de trás do Citroen e fechou a porta. O motor do sedã foi ligado e o carro acelerou, prelúdio de uma partida rápida e repentina. Enquanto o carro rodava, distanciando-se, a fina vara de metal, que era a antena do veículo, começou a ficar mais e mais curta, até retrair-se inteiramente em sua base. Onde estava Jacqueline Lavier? Por que ela entregara a bolsa para a mulher de Villiers? Bourne começou a se movimentar, e parou em seguida, o instinto o colocando de sobreaviso. Uma cilada? Se Lavier fora seguida, os que a seguiram também deviam estar sendo rastreados — e não por ele. Olhou para os lados, estudando os pedestres na calçada, depois cada carro, cada motorista e passageiro, à procura de um rosto que não pertencesse, como dissera Villiers sobre os dois homens no Citroen, a Parc Monceau. Não havia nada estranho naquela multidão de pessoas, nenhum olhar faiscante, ou mãos escondidas em bolsos descomunais. Ele estava sendo muito cauteloso; Neuilly-sur-Seine não era uma cilada armada. Começou a andar em direção à igreja. Parou; seus pés de repente ficaram presos à calçada. Um padre saía da igreja, um padre vestido com um terno preto, um colarinho engomado e um chapéu que lhe encobria parcialmente o rosto. Ele já o vira antes. Não há muito tempo, nem em um passado esquecido, mas recentemente. Muito recentemente. Semanas, dias... Talvez há algumas horas. Onde? Onde? Ele o conhecia! Conhecia aquele andar, a inclinação da cabeça, os ombros largos, que pareciam ficar no lugar acima do movimento fluido do corpo. Era um homem carregando uma arma! Onde acontecera isto?
Zurique? No Carillon du Lac? Dois homens abrindo caminho por entre a multidão, convergindo, agentes da morte. Um deles usava óculos de armação dourada, e não era este. Aquele homem estava morto. Seria o outro homem do Carillon du Lac? Ou no Guisan Quai? Um animal grunhindo, de olhos selvagens para a presa a ser violentada. Seria ele? Ou outra pessoa. Um homem vestido com um casaco escuro, no corredor do Auberge du Coin, as luzes enfraquecidas, apenas a débil iluminação da escada a iluminar a emboscada. Uma emboscada invertida, quando aquele homem usara a sua arma no escuro contra formas que pensou serem humanas. Seria esse homem? Bourne não sabia. Sabia apenas que já vira aquele padre antes, mas não como padre. Como um homem carregando uma arma. O matador, com roupas de padre, vestido com aquele terno preto, chegou ao fim do caminho de pedra e virou à direita depois do santo de concreto. Seu rosto foi iluminado por um instante. Jason gelou; a pele. A pele do matador era escura; e não era queimada pelo sol, mas escura de nascimento. Uma pele latina, de matiz formado, há muitas gerações, por antepassados que haviam morado no ou próximo do Mediterrâneo. Antepassados que imigraram, dando a volta no globo... atravessando mares. Bourne ficou paralisado pelo choque de sua própria certeza. Ele via Ilich Ramirez Sanchez. Apanhar Carlos. Armar uma cilada para Carlos. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Jason abriu violentamente o casaco, a mão direita no cabo da arma que estava em seu cinto. Começou a correr pela calçada, esbarrando contra pessoas, empurrando um vendedor ambulante para fora do seu caminho, passando por um mendigo que estava esgaravatando uma lixeira... O mendigo! A mão do mendigo estava no bolso. Bourne virou-se a tempo de ver o cano de uma automática sair do casaco puído, os raios de sol refletindo-se no metal. O mendigo tinha uma arma! Sua mão magra segurava a arma com firmeza. Os olhos estavam fixos num ponto. Jason saiu correndo pela rua, inclinando-se do lado de um carro pequeno. Ouviu os tiros passarem sobre ele, do seu lado, atravessando o ar. Gritos e movimentos de dor vinham das pessoas na calçada. Bourne passou por entre dois carros e correu para o outro lado da na. O mendigo estava fugindo; um velho com olhos de aço estava correndo por entre a multidão, desaparecendo. Pegue Carlos. Arme uma cilada para Carlos. Caim é. . .! Jason virou-se de novo e correu impelindo o corpo para a frente, jogando tudo que aparecia na sua frente para fora do caminho, correndo em direção ao assassino. Parou, ofegante, confuso e com raiva, o ódio brotando no peito, agudas pontadas de dor voltaram às suas têmporas. Onde estava ele? Onde estava Carlos? De repente, viu-o novamente; o matador tinha se colocado atrás da direção de um grande sedã preto. Bourne começou a correr de novo pelo trânsito, esmurrando as capotas e carroçarias dos carros à sua frente, enquanto avançava para o assassino. Súbito dois carros bloquearam-lhe a passagem, dois carros que haviam acabado de bater. Espalmou as mãos sobre um cromado brilhante e pulou para o lado, enquanto os dois pára-choques colidiam. E de novo teve que parar, os olhos novamente queimando de dor para o que via, sabendo que era impossível continuar. Chegara tarde. O sedã preto encontrara uma passagem e entrara no trânsito. Ilich Ramirez Sanchez apressava-se em fugir. Jason voltou para a calçada enquanto as sirenes dos carros de polícia chamavam a atenção de
todos. Alguns pedestres haviam sofrido escoriações, outros estavam machucados e alguns mortos; um mendigo atirara neles. Lavier! Bourne pôs-se a correr de novo, de volta para a Igreja do Santíssimo Sacramento. Chegou à entrada de pedra, sob o olhar do santo de concreto, e virou à esquerda, correndo em direção às portas ornadas, em arco, e subiu os degraus de mármore. Na igreja de estilo gótico, cheia de estrados com velas tremulando, raios coloridos vinham das janelas de vidro pintado, no alto das paredes de pedra escura, e fundiam-se no chão. Caminhou pelo corredor central, olhando para os devotos, à procura de cabelos com mechas prateadas e um rosto pálido. Lavier não estava ali, embora não devesse ter saído. Devia estar em algum lugar da igreja. Jason virou-se, olhando à volta do corredor; por trás do estrado, onde tremeluziam as chamas das velas, passava um padre. Bourne esquivou-se por um banco estofado e saiu do outro lado, no corredor da direita. Conseguiu interceptá-lo. — Desculpe-me, padre — disse. — Acho que perdi alguém. — Ninguém se perde na casa de Deus, senhor — respondeu o clérigo sorrindo. — Ela pode não estar perdida em espírito, mas se eu não encontrar o resto dela, vai ficar muito chateada. É uma emergência que deve ser resolvida no seu trabalho, O senhor está aqui há tempo, padre? — Recebo os que pertencem ao nosso rebanho e precisam de orientação. Sim, estou aqui há uma hora. — Duas mulheres entraram aqui há poucos minutos. Uma era bem alta, usava um casaco colorido e um lenço escuro na cabeça, acho. A outra era um pouco mais velha, não tão alta, e não estava em boas condições de saúde. Por acaso o senhor as viu? O padre assentiu com a cabeça. — Sim. Havia pesar no rosto dessa mulher, ela estava pálida e atormentada. — Sabe para onde ela foi? Acho que a amiga mais nova dela já foi embora. — Uma amiga devotada, devo dizer. Ela acompanhou a pobre mulher até o confessionário, ajudando-a a entrar. A purificação da alma nos dá a todos força para os momentos de desespero. — Até o confessionário? — Sim — o segundo confessionário da direita. Ela está com um padre confessor muito compassivo, devo acrescentar. Um padre visitante, da arquidiocese de Barcelona. Um homem marcante, também. Sinto muito comunicar-lhe que este é o seu último dia. Ele deve voltar para a Espanha... — O padre franziu a testa. — Não é estranho? Há poucos momentos eu pensei ter visto o padre Manuel indo embora. Acho que ele já deve ter sido substituído, agora. Não importa, a cara senhora está em boas
mãos. — Tenho certeza disso — disse Bourne. — Obrigado, padre. Vou esperar por ela. — Jason voltou para o corredor, para a fila de confessionários. Seus olhos estavam postos no segundo confessionário, onde um pequeno pedaço de tecido branco estava à mostra. O confessionário esta ocupado, uma alma se purificava. Sentou-se no primeiro banco ajoelhou-se, voltando a cabeça lentamente para olhar par a parte de trás da igreja. O padre alto estava ainda na entrada, com sua atenção voltada para os distúrbios da rua. Lá fora as sirenes podiam ser ouvidas a distância, se aproximando. Bourne levantou-se e foi até o segundo confessionário. Abriu as cortinas e olhou para dentro. Viu o que já esperava ver. Apenas o método era um tanto duvidoso. Jacqueline Lavier estava morta, o corpo caído para a frente, virado para o lado, encostado no banco. Seu rosto-máscara voltado para cima, os olhos muito abertos, olhando da morte para o teto. O casaco estava aberto, o tecido do vestido manchado de sangue. A arma fora um abridor de cartas, longo e fino, enfiado debaixo do seio esquerdo. Os dedos estavam agarrados ao cabo, as unhas tinham a mesma cor do sangue. Aos pés, a bolsa — não a bolsa branca, que ela trazia nas mãos há dez minutos, mas uma bolsa da moda, com as iniciais de Yves St. Laurent estampadas no tecido, um sinal da haute couture. A razão da troca parecia-lhe muito clara. Dentro da bolsa deviam estar alguns papéis identificando aquele trágico suicídio, aquela mulher extenuada e tão cheia de pesar que tirou a própria vida enquanto procurava absolvição aos olhos de Deus. Carlos fora perfeito, brilhantemente perfeito. Bourne fechou as cortinas e saiu do confessionário. Na torre alta, os sinos do Angelus matinal soavam esplendidamente. O táxi vagou sem rumo pelas ruas de Neuilly-sur-Seine. No assento de trás, Jason deixou a mente vagar. Era desimportante esperar, talvez até fatal. As estratégias mudavam como mudavam as condições, e eles haviam passado por um turno mortal. Jacqueline Lavier fora seguida. Sua morte era inevitável, mas estava fora de seqüência. Muito precipitada; ela ainda era valiosa. Mas Bourne logo entendeu. Ela não fora morta porque fora desleal a Carlos, mas porque o desobedecera. Ela fora a Parc Monceau — esse fora o seu erro. Havia um outro receptor na Les Classiques. Um telefonista grisalho, que se chamava Philippe d’Anjou e cujo rosto lhe evocava imagens de violência e escuridão, relâmpagos e trovoadas. Ele estivera no passado de Bourne, disso Jason tinha certeza, e por causa disso a caçada devia ser cautelosa; ele ainda não sabia o que aquele homem significava para ele. Mas era um receptor e também devia estar sendo vigiado, como Lavier fora seguida e vigiada, uma isca a mais de um outro cerco que, quando se fechasse, traria a morte. Seriam os únicos, os dois? Haveria alguém mais? Mais um vendedor obscuro e sem rosto, talvez, nem mesmo um vendedor, mas uma outra pessoa. Um fornecedor que talvez passasse horas e
horas na Saint-Honoré defendendo legitimamente a causa da haute couture e, na verdade, defendendo outra bem mais vital para ele. Ou para ela. Ou para o musculoso desenhista, René Bergeron, cujos movimentos eram tão rápidos e... fluidos. Bourne ficou tenso de repente, encostou o pescoço nas costas do assento — uma lembrança o assaltara. Bergeron. A pele escura de sol, os ombros largos, acentuados pelas mangas da camisa enroladas... ombros encimando uma cintura afilada, pernas fortes que se movimentavam sorrateiramente como um animal, um gato. Seria possível? As outras conjeturas seriam apenas fantasmas compostos de fragmentos de imagens familiares de que ele se convencera que teriam que compor Carlos? Estaria o assassino — desconhecido para os seus receptores — dentro do seu próprio aparelho, controlando e dando forma a cada movimento? Seria Bergeron? Tinha que encontrar um telefone agora mesmo. Cada minuto perdido seria um minuto afastado da sua resposta; e se perdesse muitos, não teria nenhuma resposta. Mas ele mesmo não podia fazer o telefonema; a seqüência de acontecimentos fora muito rápida, ele tinha que fazer uma pausa, rever suas próprias informações. — Encoste na primeira cabine telefônica que encontrar — disse ao motorista, ainda um pouco perturbado pelo caos que se instalara na Igreja do Santíssimo Sacramento. — Como desejar, monsieur. Mas tente entender, monsieur, já passou da hora de eu voltar para a garagem. E bastante. — Entendo. — Lá tem um telefone. — Ótimo. Encoste. A cabine vermelha com os vidros brilhando à luz do sol parecia uma grande casa de boneca vista do lado de fora. Dentro cheirava a urina. Bourne discou para o Terrasse, inseriu as moedas e pediu o quarto 420. Marie respondeu. — O que aconteceu? — Não tenho tempo para explicar. Quero que você telefone para Les Classiques e pergunte por René Bergeron. D’Anjou provavelmente estará ao telefone; invente um nome e diga que está tentando falar com Bergeron na linha particular de Lavier há uma hora mais ou menos. Diga que é urgente, que você tem que falar com ele. — Quando ele atender, o que digo? — Acho que ele não vai atender, mas se atender desligue. E se d’Anjou voltar à linha perguntelhe quando Bergeron estará de volta. Volto a lhe chamar daqui a três minutos.
— Querido, você está bem? — Tive uma experiência religiosa muito profunda. Conto-lhe mais tarde. Jason manteve os olhos no relógio, nos infinitesimais movimentos do fino, delicado e impetuoso ponteiro agonizando lentamente no mostrador. Começou a sua própria contagem regressiva aos trinta segundos, calculando as batidas do coração, que ecoavam na garganta, contava duas batidas e meia por segundo. Aos dez segundos começou a discar, inseriu as moedas, e falou com a telefonista do Terrasse a menos de cinco segundos da hora marcada. Marie atendeu ao telefone no mesmo instante em que ele começou a tocar. — O que aconteceu? — perguntou ele. — Pensei que você ainda estivesse conversando. — Foi uma conversa muito curta. Acho que d’Anjou estava muito desconfiado. Ele deve ter uma lista de nomes daqueles que têm o número particular, não sei. Mas parecia distante, hesitante. — O que ele disse? — Monsieur Bergeron está escolhendo tecidos no Mediterrâneo. Partiu hoje de manhã e não voltará nas próximas semanas. — É possível que eu o tenha acabado de ver a centenas de milhas do Mediterrâneo. — Onde? — Na igreja. Se era Bergeron, ele deu a absolvição com a ponta de um instrumento penetrante. — Do que você está falando? — Lavier está morta. — Oh, meu Deus! O que você vai fazer? — Conversar com um homem que acho que conheci. Se ele tiver um cérebro na sua cabeça, ele me ouvirá. Está marcado para ser exterminado.
Capítulo30 — D’Anjou. — Delta? Quando foi que.. Acho que conheço a sua voz de algum lugar. Ele dissera! O nome fora dito, O nome que nada lhe significava e significava tudo ao mesmo tempo. D’Anjou o conhecia. Philippe d’Anjou era parte do seu passado esquecido. Delta. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Delta. Delta. Delta! Ele conhecera este homem e este homem tinha a resposta! Alpha, Bravo, Caim, Delta, Echo, Foxtrot... Medusa. — Medusa — disse ele suavemente, repetindo o nome, que era um grito silencioso em seus ouvidos. — Paris não é Tam Quan, Delta. Não há mais nenhuma dívida entre nós. Não espere nenhum pagamento. Agora trabalhamos para pessoas diferentes. — Jacqueline Lavier está morta. Carlos a matou em Neuilly sur-Seine há menos de trinta minutos. — Nem tente. Há duas horas Jacqueline estava para sair da França. Ela me telefonou do Aeroporto de Orly. Vai se encontrar com Bergeron... — Para escolher tecidos no Mediterrâneo? — interrompeu Jason. D’Anjou fez uma pausa. — A mulher que acabou de perguntar por René, ao telefone. Pensei nisso. Nada muda. Falei com ela; ela me telefonou de Orly. — Ela foi obrigada a lhe dizer isto. Parecia estar sendo pressionada? — Ela estava aborrecida, e ninguém sabe o porquê melhor do que você. Você fez um trabalho espetacular por aqui, Delta. Ou Caim. Ou qualquer outro nome que você esteja usando agora. É claro que ela não estava em si, é por isso que está saindo por uns tempos. — É por isso que ela está morta. E você será o próximo. — Estas últimas vinte e quatro horas foram dignas de você. Agora não. — Ela foi seguida; você está sendo seguido. Vigiado a cada passo. — Se estou sendo vigiado é para a minha própria proteção. — Então por que Lavier está morta? — Não acredito que esteja.
— Ela cometeria suicídio? — Nunca. — Telefone para a reitoria da Igreja do Santíssimo Sacramento, em Neuilly-sur-Seine. Pergunte sobre a mulher que se matou enquanto se confessava. O que tem a perder? Volto a telefonar-lhe. Bourne desligou o telefone e saiu da cabine. Desceu o meio-fio e procurou por um táxi. O próximo telefonema para Philippe d’Anjou seria feito a uns dez quarteirões dali. O homem da Medusa não se convenceria assim tão facilmente, e até que ficasse convencido, Jason não se arriscaria a ser procurado por antenas exploradoras, que podiam localizar o lugar da chamada. Delta? Acho que conheço a sua voz de algum lugar... Paris não é Tam Quan. Tam Quan... Tam Quan, Tam Quan! Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Medusa! Pare! Não pense em coisas que... não pode pensar. Concentre-se no que é. Agora. Você. Não no que os outros dizem que você é — nem mesmo no que você pode pensar que é. Apenas no presente, no agora. E o agora é um homem que pode lhe dar algumas respostas. Trabalhamos para pessoas diferentes... Esta era a chave. Diga..met Por amor de Crista, diga-me! Quem é? Quem é o meu empregador, d’Anjou? Um táxi fez uma curva perigosamente próxima das suas rótulas. Jason abriu porta e entrou. — Place Vendôme — disse, sabendo que estaria próximo de Saint-Honoré. Era necessário estar o mais próximo possível para poder pôr em ação a estratégia que começava a vir à tona. Ele estava com vantagem; era uma questão de usá-la para um propósito duplo. D’Anjou tinha que ser convencido de que os que o estavam seguindo eram os seus executores. Mas o que aqueles homens não podiam saber é que um outro os estaria seguindo. A Vendôme estava movimentada como sempre, o trânsito selvagem como sempre, também. Bourne viu uma cabine telefônica em uma esquina e desceu do táxi. Entrou na cabine e discou para Les Classiques; passavam-se quatorze minutos da chamada que fizera de Neuilly-sur-Seine. — D’Anjou? — Uma mulher suicidou-se enquanto se confessava, é tudo o que sei. — Vamos, você não acreditaria nisso. Medusa não acreditaria. — Dê-me só um instante para desligar o aparelho. — A linha foi cortada por alguns segundos. D’Anjou voltou. — Uma mulher de meia-idade, cabelos com mechas prateadas, roupas caras e uma bolsa St. Laurent. Esta pode ser a descrição de dez mil mulheres em Paris. Como posso saber que você não pegou uma, matou-a e a está usando agora como estratégia para esta chamada?
— Oh, é claro! Levei-a para dentro da igreja como uma pietà, enquanto o sangue do seu ferimento pingava pelo corredor. Seja razoável, d’Anjou. Vamos começar com o óbvio. A bolsa não era dela; ela estava com uma bolsa branca. Ela não andaria por aí com outra bolsa, fazendo propaganda de uma casa concorrente. — Isso dá crédito ao que acredito. Não era Jacqueline Lavier. — Dá mais ainda para mim. Os papéis naquela bolsa a identificam como outra pessoa. O corpo logo será reclamado. Ninguém toca na Les Classiques. — Só porque você afirma isso? — Não. Porque é o mesmo método usado por Carlos em cinco mortes que posso mencionar. — Ele podia. Esta era a parte aterrorizadora. — Um homem desaparece, a polícia acredita que ele é uma pessoa, a morte é um enigma, os assassinos são desconhecidos. Depois descobrem que ele é outra pessoa. E nessa hora Carlos já está em outro país, com outro contrato de morte para cumprir. Lavier foi apenas uma variação do método, só isso. — Palavras, Delta. Você nunca disse muito, mas, quando disse, foram as mesmas palavras. — E se você ainda estiver em Saint-Honoré daqui a três ou quatro semanas — mas não vai estar — vai ver como tudo terminará. Um avião acidentado ou um barco perdido no Mediterrâneo. Os corpos carbonizados, sem possibilidade de serem reconhecidos, ou simplesmente desaparecidos. As identidades dos mortos, no entanto, logo serão conhecidas. Lavier e Bergeron. Mas apenas um está realmente morto — Madame Lavier. Porque monsieur Bergeron é um privilegiado — mais do que você sabe. Bergeron estará de volta aos seus negócios. E quanto a você, será apenas um número em um necrotério de Paris. — E você? — De acordo com o plano, estarei morto também. Querem me pegar através de você. — Muito lógico. Nós dois somos da Medusa, eles sabem disso — Carlos sabe disso. É de se supor que você me reconheceu. — E você a mim? D’Anjou fez uma pausa. — Sim — disse. — Como lhe disse, agora trabalhamos para empregadores diferentes. — É sobre isso que quero conversar. — Nada de conversa, Delta. Mas, pelo amor dos velhos tempos — pelo que você fez por nós todos em Tam Quan —, siga os conselhos de um medusiano. Saia de Paris ou logo será o homem morto que mencionou. — Não posso fazer isso.
— Você deve. Se tiver a oportunidade, eu mesmo puxo o gatilho. E serei bem pago por isto. — Então, vou lhe dar essa oportunidade. — Desculpe-me se considero isso ridículo. — Você não sabe o que quero, ou o quanto desejo me arriscar para obter o que quero. — Você sempre se arrisca pelo que quer. Mas o verdadeiro perigo fica sempre com o seu inimigo. Conheço-o, Delta. E devo voltar aos telefones. Desejo-lhe uma boa caça, mas... Era hora de usar a única arma que reservara, a única ameaça que manteria d’Anjou pa linha. — Para quem você agora vai pedir instruções, se Parc Monceau acabou? A tensão foi acentuada pelo silêncio de d’Anjou. Quando respondeu, sua voz era apenas um sussurro. — O que disse? — É por isso que ela foi morta, você bem sabe. E é por isso que você será morto, também. Ela foi a Parc Monceau e morreu por causa disso. Você também esteve em Parc Monceau e vai morrer por isso. Carlos não pode mais ficar com você; você já sabe demais. Por que ele iria pôr em perigo um acordo como este? Ele vai usá-lo até você me cercar e pegar, depois vai matá-lo e começar com outra Les Classiques. De um medusiano para outro, pode duvidar disso? O silêncio foi mais longo desta vez, mais intenso do que antes. Estava claro que o velho medusiano estava se fazendo uma porção de perguntas. E perguntas difíceis — O que quer de mim? Deixe-me de lado. Bem sabe que fazer reféns é coisa insignificante. Mesmo assim me provoca, me assombra com o que conseguiu saber. Não tenho nenhuma serventia para você, nem morto nem vivo. O que é que quer? — Informação. Se a tiver, sairei de Paris hoje à noite e nem Carlos nem você jamais voltarão a ter notícias de mim. — Que informação? — Se eu lhe perguntasse agora você mentiria. Mas quando eu o vir, me dirá a verdade. — Com um arame em volta do pescoço? — No meio da multidão? — Uma multidão? À luz do dia? — Daqui a uma hora. Fora do Louvre. Perto dos degraus. No ponto de táxi. — No Louvre? Multidão? Informação que você acha que tenho e que o fará ir embora? Você não pode, em sã consciência, esperar que eu discuta o meu empregador. — Não o seu. O meu.
— Treadstone? Ele sabia. Philippe d’Anjou tinha a resposta. Fique calmo. Não demonstre ansiedade. — Seventy One — completou Jason. — Apenas uma pergunta simples e desaparecerei em seguida. E logo que você me der a resposta — a verdade — dar-lhe-ei algo em troca. — O que poderia eu querer de você, senão você mesmo? — Informação que lhe permita sobreviver. Não é garantida, mas acredite-me, quando eu lhe contar, você não vai poder sobre viver sem ela. Parc Monceau, d’Anjou. Silêncio de novo. Bourne podia imaginar o antigo medusiano, grisalho, olhando para a sua mesa telefônica, o nome do bairro rico de Paris ecoando cada vez mais alto em sua mente. Houve morte em Parc Monceau e d’Anjou sabia disso tanto quanto sabia, com toda a certeza, que a mulher morta em Neuilly-sur-Seine era Jacqueline Lavier. — O que seria essa informação? — perguntou d’Anjou. — A identidade do seu empregador. Um nome e prova suficiente para poder ser fechada em um envelope e entregue a um procurador para ser mantida em segredo por toda a sua vida. Mas se sua vida terminar de forma inatural, mesmo acidentalmente, ele será instruído a abrir o envelope e revelar o seu conteúdo. É proteção, d’Anjou. — Compreendo — disse o medusiano. — Mas você me disse que estou sendo vigiado, seguido. — Proteja-se — disse Jason. — Diga-lhes a verdade. Você tem um número para onde telefonar, não tem? — Sim, existe um número, um homem. — A voz elevou-se um pouco, assustada. — Entre em contato com ele. Diga-lhe exatamente o que eu disse... exceto sobre a troca de informações, é claro. Diga que entrei em contato com você e lhe propus um encontro. Diga-lhe que vai ser daqui a uma hora, do lado de fora do Louvre. Diga a verdade. — Você está louco! — Sei o que estou fazendo. — Em geral sabia. Você está criando a sua própria armadilha, preparando a sua própria execução. — E com isso você poderá ser muito bem-recompensado. — Ou planejar a minha própria execução, se o que você diz é verdade. — Vamos descobri se é. Entrarei em contato com você de uma forma ou de outra, confie na minha palavra. Eles têm a minha fotografia; vão me reconhecer quando eu entrar em contato com você.
É melhor uma situação controlada do que uma em que não existe controle algum. — Agora estou ouvindo DeIta de novo — disse d’Anjou. — Ele não cria a sua própria armadilha; ele não caminha em frente a um pelotão de fuzilamento e pede uma venda. — Não — concordou Bourne. — Você não tem escolha, d’Anjou. Uma hora. Fora do Louvre. O sucesso de qualquer armadilha está na simplicidade. Uma armadilha de reversão, pela sua natureza de uma única complicação, deve ser rápida e ainda mais simples. As palavras lhe vieram enquanto esperava no táxi, em Saint-Honoré, passando pela rua da Les Classiques. Ele pedira ao motorista para dar a volta no quarteirão duas vezes; era um turista americano cuja esposa fazia compras na faixa da haute couture. Mais cedo ou mais tarde ela sairia de uma das lojas e ele a veria. Mas viu foi a vigilância de Carlos. A antena recoberta de borracha do sedã preto era a prova e o sinal de perigo. Ele se sentiria mais seguro se aquele rádio transmissor fosse cortado. Mas não havia jeito de conseguir isto. A única alternativa era a confusão de informações. A qualquer hora durante os próximos quarenta e cinco minutos, Jason faria o melhor possível para se certificar de que a mensagem errada fosse emitida por aquele rádio. Da sua posição, escondido no banco de trás, estudou os dois homens que estavam dentro do carro, do outro lado da rua. Se havia alguma coisa que os tornava diferentes dos demais homens em Saint-Honoré, era o fato de eles não conversarem. Philippe d’Anjou saiu à calçada, um chapéu de feltro mole cobrindo-lhe os cabelos grisalhos. Seu olhar correu a rua, informando Bourne de que o antigo medusiano pedira proteção. Ele discara um número, comunicara a sua surpreendente informação; e sabia que havia um carro preparado para seguilo. Um táxi, aparentemente chamado por telefone, encostou no meio-fio. D’Anjou falou com o motorista e entrou. Do outro lado da rua, uma antena elevou-se por cima da capota do carro; a caça começara. O sedã saiu atrás do táxi de d’Anjou; era a confirmação de que Jason precisava. Inclinou-se para a frente e falou com o motorista. — Esqueci-me — disse irritado. — Ela disse que esta manhã estaria no Louvre. As compras seriam à tarde. Cristo, estou meia hora atrasado! Leve-me ao Louvre, por favor? — Mais oui, monsieur, Le Louvre. Duas vezes durante a curta corrida paraa a fachada monumental, que dava frente para o Sena, o táxi de Jason passou pelo sedã preto, apenas para logo em seguida ser ultrapassado por ele. A proximidade deu a Bourne a oportunidade de ver exatamente o que precisava ver. O homem ao lado do motorista, dentro do sedã, falava com freqüência no microfone do rádio de mão. Carlos tentava se certificar de que a armadilha não tinha nenhum furo, outros homens deviam estar fechando o cerco no lugar da execução. Chegaram à enorme entrada do Louvre. — Entre na fila dos demais táxis — disse Jason.
— Mas eles estão à espera de passageiros, monsieur. Já tenho um passageiro, o senhor. Vou deixá-lo na... — Faça como eu disse — falou Bourne. Passou por cima do banco uma nota de cinqüenta francos. O motorista virou e entrou na fila. O sedã preto estava a vinte jardas dali, do lado direito. O homem do rádio havia se virado no assento e olhava para fora da janela esquerda traseira. Jason acompanhou o seu olhar e viu o que sabia que veria. Algumas centenas de pés para o lado Oeste do imenso quarteirão estava um automóvel cinza, o mesmo carro que seguira Jacqueline Lavier e a mulher de Villiers até a Igreja do Santíssimo Sacramento e saíra com a última, de Neuilly-sur-Seine, depois que ela acompanhou Lavier até a sua última confissão. A antena do carro podia ser vista se retraindo. Do lado direito, os militantes de Carlos não estavam mais com o microfone. A antena do sedã preto também estava encolhendo; o contato fora feito, a visão fora confirmada. Quatro homens. Eram os executores de Carlos. Bourne se concentrou na multidão em frente à entrada do Louvre e logo avistou o elegantemente vestido d’Anjou. Ele andava bem devagar, cauteloso, de um lado para outro do grande bloco de granito branco que flanqueava a escada de mármore do lado esquerdo. Agora. Era de mandar um sinal que confundisse. — Saia da fila — ordenou Jason. — Como, monsieur? — Duzentos francos se fizer exatamente o que eu lhe disser. Saia e entre no começo da fila, depois dê duas guinadas para a esquerda e recue para estacionar na próxima travessa. — Não estou entendendo, monsieur. — Não precisa. Trezentos francos. O motorista virou para a direita e foi até o início da fila, onde girou a direção, virando o carro para a esquerda, em direção à fila de carros estacionados. Bourne tirou a arma automática do cinto e a manteve entre os joelhos. Examinou o silenciador, atarraxando bem o cilindro. — Aonde quer ir, monsieur? — perguntou o assustado motorista, enquanto entravam na travessa e recuavam em direção à entrada do Louvre. — Diminua a marcha — disse Jason.— Aquele carro grande e cinza lá em frente, o que está de frente para a saída do Sena, está vendo? —É claro. — Faça a volta nele, devagar, para a direita. — Bourne escorregou para o lado esquerdo do banco e abaixou o vidro, mantendo a cabeça e a arma escondidas. Mostraria ambas em poucos
segundos. O táxi se aproximou da carroçaria do sedã, o motorista girou a direção novamente. Estavam paralelos ao carro. Jason pôs a cabeça e a arma à vista, fez pontaria para a janela de trás do lado direito do sedã cinza e atirou. Cinco tiros, um atrás do outro, estilhaçando o vidro, assombrando os dois homens, que gritaram um para o outro, jogando-se no assento. Mas eles o tinham visto: Esta era a confusão que queria provocar. —. Saia daqui! — gritou Bourne para o motorista aterrorizado, enquanto jogava trezentos francos por sobre o assento e fazia passar pelo vão da janela o seu chapéu de feltro macio. O táxi disparou em direção aos portões de pedra do Louvre. Agora. Jason abaixou-se no banco do carro, abriu a porta e rolou para fora, para o calçamento de pedras, gritando uma última ordem para o motorista. — Se quer continuar vivo, saia já daqui! O táxi acelerou para a frente, o motor disparado, o motorista aos gritos. Bourne se aproximou de dois carros estacionados, escondido do sedã cinza, e começou a se levantar levemente, espiando pelas janelas. Os homens de Carlos eram rápidos, profissionais, não perdiam qualquer momento na caça. Mantiveram o táxi à vista, aquele carro não era páreo para o sedã poderoso. E naquele táxi estava o alvo. O homem que estava na direção do sedã trocou a marcha e avançou, enquanto seu companheiro segurava o microfone, a antena se elevando da base. Ordens estavam sendo gritadas para o outro sedã, próximo dos grandes degraus de pedra. O táxi, em alta velocidade, virou na rua perto do Sena, o imenso carro cinza imediatamente atrás dele. Quando passaram bem perto de Jason, as expressões dos rostos dos dois homens diziam tudo. Tinham Caim à vista, o cerco se fechara e logo iriam receber a sua recompensa. Uma armadilha de reversão, pela sua natureza de uma única complicação, deve ser rápida e ainda mais simples. Era uma questão de minutos... Ele tinha apenas poucos minutos se tudo fosse como acreditava ser. D’Anjou! O contato cumprira o seu papel — o seu papel menor — e era válido, como Jacqueline Lavier o fora. Bourne correu para longe dos dois carros em direção ao sedã preto, que não estava a mais de cinqüenta jardas dali. Podia ver os dois homens; eles se aproximavam de Philippe d’Anjou, que ainda andava de lá para cá em frente ao curto lance de degraus da escada de mármore. Um tiro certeiro, de qualquer um dos homens, e d’Anjou estaria morto. E a Treadstone Seventy One perder-se-ia com ele. Jason correu mais rápido, a mão dentro do casaco, segurando a pesada automática. Os militantes de Carlos estavam apenas a algumas jardas dali, se apressando agora; a execução seria rápida, o homem condenado estaria riscado antes mesmo de entender o que estava acontecendo. — Medusa — gritou Bourne, sem saber por que gritara aquele nome em vez do nome de d’Anjou.— Medusa — Medusa!
D’Anjou levantou a cabeça, o choque estampado em seu rosto. O motorista do sedã preto haviase voltado, a arma levantada para Jason enquanto seu companheiro se dirigia para d’Anjou, a arma apontada para o antigo medusiano. Bourne abaixou-se para a direita, a automática estendida, firmada pela mão esquerda. Atirou em meia altura, o tiro foi certeiro; o homem que se aproximava de d’Anjou caiu para trás, enquanto suas pernas enrijecidas se paralisavam. Caiu sobre o calçamento de pedra. Dois tiros zumbiram por sobre a cabeça de Jason; as balas foram se alojar no metal atrás dele. Rolou para a esquerda, a arma novamente firmada, dirigida para o segundo homem; puxou o gatilho duas vezes. O motorista gritou, o sangue jorrou do seu rosto, enquanto ele caía. A histeria tomou conta da multidão. Homens e mulheres gritavam, pais se jogavam sobre os filhos para protegê-los com os seus corpos, outros subiam correndo os degraus em direção às grandes portas do Louvre, enquanto guardas tentavam sair. Bourne ficou de pé, procurando por D’Anjou. O velho se escondera atrás do bloco de granito branco, a figura macilenta agora saía do seu santuário, desajeitadamente agachado, aterrorizado. Jason correu por entre a multidão em pânico, enfiou a automática no cinto, foi abrindo caminho por entre os corpos histéricos que estavam entre ele e o homem que poderia lhe dar as respostas. Treadstone. Treadstone! Aproximou-se do grisalho medusiano. — Levante-se! — ordenou. — Vamos sair daqui! — Deita!... Era um homem do Carlos! Conheço-o, eu o usei! Ele ia me matar! — Eu sei. Venha! Rápido! Outros logo voltarão para nos procurar. Venha! Um pedaço de pano preto apareceu nos olhos de Bourne, no canto dos olhos. Ele se virou, instintivamente jogando d’Anjou para o chão, enquanto quatro rápidos tiros saiam de uma arma que estava nas mãos de uma figura escura, próxima à fila de táxis. Fragmentos de granito e mármore explodiram em volta. Era ele! Os ombros largos e pesados que flutuavam no espaço, a cintura delgada, acentuada por um bem-talhado terno preto... O rosto de pele escura encerrado em um lenço de seda branca debaixo do chapéu preto de aba estreita. Carlos! Pegue Carlos! Cerque Carlos! Caim é para Charles e Delta é para Caim! É falso! Descubra a Treadstone! Descubra a mensagem; para um homem! Encontre Jason Bourne! Estava ficando maluco! Imagens embaciadas que vinham do passado e convergiam na terrível realidade do presente, deixando-o louco. As portas da sua mente se abriam e fechavam, se abriam de repente, se fechavam de repente; a luz acendia-se e se propagava em um momento, no outro tudo ficava escuro. A dor voltava às suas têmporas com as agudas e dissonantes notas da ensurdecedora trovoada. Pôs-se a correr atrás do homem vestido com o terno preto e o lenço branco envolto no rosto. Então viu os olhos e o cano da arma, três órbitas escuras postas nele como reflexos escuros de raio laser. Bergeron?... Era Bergeron? Era? Ou Zurique... ou... Não havia tempo! Desviou para a esquerda, depois jogou-se para a direita, fora da linha de fogo. As balas riscaram as pedras, os ruídos das balas ricocheteando seguiam-se a cada nova explosão. Jason virou-se e se jogou debaixo de um carro estacionado. Por entre as rodas, pôde ver a figura de preto fugindo correndo. A dor
permaneceu, mas a trovoada parou. Arrastou-se no pavimento, levantou-se e correu de volta para os degraus do Louvre. O que fizera? D’Anjou tinha-se ido! Como acontecera!? A armadilha de reversão não fora uma armadilha, afinal de contas. A sua própria estratégia fora usada contra ele, permitindo que o único homem que poderia lhe dar respostas fugisse. Seguira os militantes de Carlos, mas Carlos o seguira! Desde Saint-Honoré. Fora tudo por nada; um vazio doentio tomou conta dele. Em seguida, ouviu as palavras, ditas de um automóvel próximo. Philippe d’Anjou apareceu cautelosamente à vista. — Tam Quan nunca parece muito longe, não é? Para onde devemos ir, Delta? Não podemos ficar aqui. Sentaram-se em um reservado fechado com cortinas em um café repleto na Rua de Pilon, uma rua afastada que não passava de um corredor de Montmartre. D’Anjou bebericava seu brandy duplo, a voz era baixa e pensativa. — Vou retornar para a Ásia — disse. — Para Cingapura ou Hong-Kong, ou talvez mesmo para Seychelles. A França nunca foi muito boa para mim; e agora está acabado. — Não precisa — disse Bourne. Engoliu o uísque, o líquido cálido espalhando-se rapidamente, levando-o à calma. — Falo sério. Você me diz o que eu preciso. Eu lhe dou... — Ele parou, as dúvidas o assaltaram; não, ele diria. — Dar-lhe-ei a identidade de Carlos. — Não estou remotamente interessado — respondeu o antigo medusiano, olhando firmemente para Jason. — Dir-lhe-ei tudo o que puder. Por que eu esconderia alguma coisa? Obviamente não procurarei as autoridades, mas se tenho informações que podem ajudá-lo a pegar Carlos, o mundo ficaria um lugar mais seguro para mim, não é? Pessoalmente, no entanto, não quero nenhum envolvimento. — Não está nem mesmo curioso? — Academicamente, talvez. Porque a sua expressão me diz que vou ficar chocado. Assim, façame as suas perguntas e depois me surpreenda. — Você ficará chocado. Sem qualquer aviso d’Anjou disse o nome calmamente. — Bergeron? Jason não se mexeu; mudo, olhou atônito para o mais velho. D’Anjou continuou. — Já pensei muitas vezes nisso. A cada vez, no entanto, acabei rejeitando a idéia. — Por quê? — interrogou Bourne, recusando-se a reconhecer a precisão medusiana. — Veja só, não tenho muita certeza — apenas sinto que está errado. Talvez porque eu tenha
aprendido mais sobre Carlos através de René Bergeron do que através de outra pessoa. Ele é obcecado por Carlos; já trabalha para ele há muitos anos e tem muito orgulho da sua confiança. O problema é que fala muito sobre ele. — O ego falando através da segunda personalidade adotada? — É possível, suponho, mas é incoerente com a precaução extraordinária que Carlos tem com o literalmente impenetrável muro de confidencialidade que construiu à sua volta. Não tenho muita certeza, é claro. Mas duvido que seja Bergeron. — Você disse o nome, não eu. D’Anjou sorriu. — Não tem com que se preocupar, Delta. Faça as suas perguntas. — Pensei que fosse Bergeron. Sinto muito. — Não é nada. Até pode ser ele mesmo. Eu lhe disse, a mim não importa. Daqui a poucos dias estarei de volta à Ásia, seguindo o franco, o dólar, ou o iene. Nós, os medusianos, sempre fomos muito engenhosos, não é? Jason não sabia por que, mas o rosto ansioso de André Villiers lhe veio à mente. Prometera a si mesmo saber o que pudesse para o velho soldado. Não teria essa oportunidade de novo. — Onde entra a mulher de Villiers? As sobrancelhas de d’Anjou se arquearam. — Angélique? Mas é claro — você mencionou Parc Monceau, não foi? Como ... — Os detalhes não são importantes agora. — Certamente, não para mim. — E sobre ela? — Bourne insistiu. — Você olhou-a bem? A pele? — Estive bem próximo. Ela é bem-queimada de sol. Muito alta e queimada. — Ela mantém a pele bem-queimada. A Riviera, as Ilhas Gregas, Costa del Sol, Gstaad; nunca está com a pele clara. — É muito conveniente. — Também é um artifício muito bom. Encobre o que ela é. Para ela não há palidez de outono ou de inverno, a cor não sai do seu rosto, dos braços ou das pernas longas. O matiz atraente da sua pele está sempre igual, porque não sai. Com ou sem Saint-Tropez ou Costa Brava ou os Alpes. — Do que está falando?
— Embora a perturbadora Angélique Villiers seja tida como parisiense, ela não o é. É hispânica. Venezuelana, para ser mais preciso. — Sanchez — sussurrou Bourne. — Ilich Ramirez Sanchez. — Sim. Entre os muito poucos que falam dessas coisas, dizem que ela é prima em primeiro grau de Carlos, sua amante desde quatorze anos. São rumores — entre essas poucas pessoas — de que além dele mesmo ela é a única pessoa na Terra por quem ele se preocupa. — E Villiers é boca-mole inconsciente? — Palavras da Medusa, Delta? — D’Anjou balançou a cabeça. — Sim, Villiers é o boca-mole. Carlos brilhantemente criou ligações dentro de muitos dos mais sensíveis departamentos do Governo francês, inclusive nos arquivos do próprio Carlos. — Brilhantemente criado — disse Jason, lembrando-se. — Porque é impensável. — Totalmente. Bourne inclinou-se para a frente, a interrupção foi abrupta. — Treadstone — disse. E segurou com as duas mãos o copo à sua frente. — Conte-me sobre a Treadstone Seventy One. — O que posso dizer a você? — Tudo que eles sabem. Tudo o que Carlos sabe. — Não sei se sou capaz de dizer isto. Ouço coisas, junto- as, mas exceto com relação ao que diz respeito à Medusa, sou consultado raramente, e muito menos recebo confidências. Era tudo o que Jason podia fazer para se controlar, se refrear de perguntar sobre a Medusa, sobre Deita e Tam Quan; os ventos na noite, a escuridão e as expulsões de luz que o cegavam sempre que ouvia as palavras. Não podia; algumas coisas tinham que ser presumidas; tinha que passar por cima de algumas coisas, sem qualquer indicação. Era uma questão de prioridades. Treadstone. Treadstone. Treadstone Seventy One... — O que você ouviu? O que juntou? — O que ouvi e o que juntei nem sempre foram compatíveis. Ainda assim, fatos óbvios me ficaram bem claros. — Com relação a quê? — Quando eu percebi que era você, eu já sabia. Delta fez um acordo lucrativo com os americanos. Outro acordo lucrativo, de um tipo diferente do anterior, talvez. — Fale sobre isso mais claramente, por favor. — Há onze anos, os rumores em Saigon eram de que o gélido Delta era o mais bem-pago de
todos os medusianos. Certamente, você foi o mais capaz que conheci e, assim, presumi que você fizera uma barganha dura. Você deve ter feito uma barganha ainda mais dura para fazer o que está fazendo agora. — O que é? Do que você ouviu. — Do que sabemos. Foi confirmado em Nova Iorque. O Monge confirmou antes de morrer, foi o que me disseram. E é bem-coerente com o seu comportamento desde o início. Bourne segurou o copo, evitando os olhos de d’Anjou. O Monge. O Monge. Não pergunte. O Monge está morto, seja lá quem ou o que ele foi. Não é pertinente ao agora. — Repito — disse Jason —, o que é que eles sabem do que estou fazendo? — Ora, Delta, sou eu quem está partindo. Não tem importância... — Por favor — interrompeu Bourne. — Muito bem. Você concordou em se tornar Caim. O matador mítico com uma lista interminável de contatos, que nunca existiram, todos criados do nada, aos quais foram dadas substâncias de todas as formas por fontes de confiança. Tudo proposital. Para perseguir Carlos — “desgastando sua imagem a todo instante”, que foi a maneira como Bergeron se expressou —, fazer concorrência com os seus preços, espalhar as suas deficiências e conclamar a sua própria superioridade. Em essência, concorrer com Carlos e depois pegá-lo. Este foi o seu acordo com os americanos. Raios de sua própria luz iluminaram os cantos escuros da mente de Jason. À distância, portas começavam a se abrir, mas ainda estava muito longe, e se abriam apenas parcialmente. Mas havia luz onde antes havia apenas escuridão. — Então, os americanos são... — Bourne não terminou o que dizia, na esperança de que d’Anjou terminasse por ele. — Sim — disse o medusiano. — Treadstone Seventy One. A unidade mais controlada do serviço de inteligência americano desde as Operações Consulares do Departamento de Estado. Criadas pelo mesmo homem que formou a Medusa. David Abbott. — O Monge — disse Jason baixinho, instintivamente. Outra porta fora parcialmente aberta. — Caro. Quem mais poderia fazer o papel de Caim a não ser o homem da Medusa conhecido como DeIta? Como eu digo, no mesmo instante em que o vi, soube. — Um papel — Bourne, parou, a luz crescia mais e brilhante, aquecedora, sem cegar. D’Anjou inclinou-se para a frente. — É aqui, é claro, que o que ouvi e o que juntei eram incompatíveis. Diziam que Jason Bourne aceitara a tarefa por razões que eu sabia não serem verdadeiras. Estive lá, eles não; não poderiam saber. — O que diziam? O que você ouviu?
— Que você era um oficial americano, provavelmente do Exército, que pertencia ao Serviço de Inteligência. Pode imaginar? Você. Delta! Um homem que desprezava tudo isso, e que nem por isso deixava de ser americano. Eu disse a Bergeron que era impossível, mas não estou certo de que ele tenha acreditado em mim — O que você lhe disse? — O que eu acreditava. O que ainda acredito. Não foi por dinheiro — nenhuma quantia podia tê-lo forçado a fazer isto — tinha que ser alguma coisa diferente. Acho que você fez isso pela mesma razão que tantos outros concordaram com a Medusa, há onze anos. Para limpar o nome em algum lugar, ser capaz de voltar a alguma coisa que antes você tivera e que lhe fora barrada. Não sei, é claro, naturalmente, e não espero que você me confirme, mas isto é o que penso. — É possível que você esteja certo — disse Jason. Prendeu a respiração, os ventos frios do alívio sopravam para longe as névoas. Fez sentido. Uma mensagem foi enviada. Podia ser esta. Descubra a mensagem. Descubra o emissor. Treadstone! — Isto nos leva de volta às histórias — continuou d’Anjou — sobre DeIta. Quem foi ele? O que foi ele? Este homem culto, estranhamente quieto, que pôde se transformar em uma arma letal nas selvas. Que exigia de si mesmo e dos outros além da tolerância possível e para nenhuma causa. Nunca entendemos. — Nunca foi necessário. Há ainda alguma coisa mais que possa me dizer? Eles sabem a localização precisa da Treadstone? — Certamente. Soube isso de Bergeron. Uma residência em Nova Iorque, na cidade de Nova Iorque, na Rua Setenta e Um Leste, número 139. Não é isso? — Possivelmente... Mais alguma coisa? — Apenas o que você já sabe, a estratégia que admito me escapar. — Qual? — Que os americanos pensam que você os traiu, trocou de lado. Melhor dizendo, querem que Carlos acredite que você trocou de lado. — Por quê? — Ele estava mais próximo ainda. Estava aqui! — A história é um longo período de silêncio que coincidiu com a inatividade de Caim. Mais os fundos roubados, porém, em sua maior parte, pelo silêncio. Era isto. A mensagem. O silêncio. Os meses em Port Noir. Toda aquela loucura em Zurique, em Paris. Ninguém podia saber o que acontecera. Estavam lhe dizendo para voltar. Para aparecer. Você estava certa, Marie, meu amor, meu querido amor. Você estava certa desde o início. — Nada mais, então? — perguntou Bourne, tentando controlar a impaciência da voz, ansioso
agora, além de qualquer ansiedade que ele conhecera, para voltar para Marie. — É tudo o que sei — mas, por favor, entenda, nunca me contaram nada disso. Fui trazido para cá por causa do meu conhecimento sobre a Medusa — e era do conhecimento geral que Caim era da Medusa —, mas nunca fiz parte do círculo menor de Carlos. — Você esteve bem próximo. Obrigado. — Jason colocou algumas notas sobre a mesa e começou a sair do reservado. — Uma coisa, apenas — disse d’Anjou. — Não tenho certeza de que isto possa ser relevante a essa altura, mas eles sabem que o seu nome não é Jason Bourne. — O quê? — 25 de março. Não se lembra, Delta? É daqui a dois dias, e a data é muito importante para Carlos. As ordens se espalharam. Ele quer o seu corpo no dia vinte e cinco. Quer entregar o seu cadáver para os americanos neste dia. — O que está tentando dizer? — No dia 25 de março de 1968, Jason Bourne foi executado em Tam Quan. Você o executou.
Capítulo31 Ela abriu a porta.por um momento, ele ficou olhando-a, vendo aqueles grandes olhos castanhos que se fixavam no seu rosto, olhos de medo e curiosidade. Ela sabia. Não a resposta, mas que havia uma resposta, e que ele voltara para lhe contar. Ele entrou, ela fechou a porta. — Aconteceu — disse ela. — Aconteceu. — Bourne estendeu-lhe os braços. Ela foi ao seu encontro. Abraçaram-se, o silêncio dizia mais do que qualquer palavra. — Você estava certa — murmurou ele, com os lábios encostados aos seus sedosos cabelos. — Há muita coisa que ainda não sei — e talvez nunca venha a saber — mas você tinha razão. Não sou Caim, porque nunca existiu nenhum Caim, nunca. Não o Caim de quem eles falam. Este nunca existiu. Foi um mito inventado para induzir Carlos a aparecer. Sou esta criação. Um homem da Medusa, chamado Delta, que concordou em se transformar em uma mentira chamada Caim. Sou este homem. Ela se afastou um pouco, ainda abraçada a ele. — Caim é para Charlie... — ela pronunciou as palavras serenamente. — E Delta é para Caim — completou Jason. — Você me ouviu dizer isto? Marie assentiu com a cabeça. — Sim. Uma noite, naquele quarto na Suíça, você gritou estas frases. Nunca mencionou Carlos, apenas Caim... Delta. Comentei com você pela manhã, mas você nem me respondeu. Ficou olhando pela janela. — Porque eu não havia entendido. E ainda não entendo, mas já aceito. Isto explica tanta coisa! Ela assentiu com a cabeça novamente. — O provocateur. As palavras-código que você usa, as frases estranhas, as percepções. Mas por quê? Por que você? — Para limpar uma ficha, limpar meu nome. Foi o que ele disse. — Quem disse? — D’Anjou. — O homem que estava na escada em Parc Monceau? O telefonista? — O homem da Medusa. Conheci-o na Medusa. — O que ele disse? Bourne contou-lhe. E enquanto contava, podia perceber nela o alívio que também sentia nele. Havia uma luz nos olhos dela e um soluço mudo em sua garganta. Pura alegria explodia da sua garganta. Ela quase não podia esperar que ele terminasse para poder abraçá-lo novamente.
— Jason! — gritou ela pondo-lhe as mãos no rosto. — Querido, meu querido! O meu amigo voltou para mim! É tudo como nós sabíamos, como sentíamos! — Não tudo — disse ele acariciando-lhe a face. — Sou Jason para você e sou Bourne para mim, porque é este o nome que me foi dado, e tenho que usá-lo porque não tenho outro. Mas não é o meu nome. — É invenção? — Não, ele era real. Dizem que eu o matei em um lugar chamado Tam Quan. Ela tirou as mãos do seu rosto e as colocou no ombro, segurando-o. — Devia haver uma razão. — Espero que sim. Mas não sei. Talvez tenha sido pela ficha que tentei limpar. — Não tem importância — disse ela soltando-o. — Está no passado, há mais de dez anos. O importante agora é que você fale com o homem da Treadstone, porque estão tentando entrar em contato com você. — D’Anjou disse que era informação corrente que os americanos pensavam que eu virara a casaca. Estão sem notícias minhas há mais de seis meses e acham que tirei os milhões de Zurique. Devem achar que sou o erro de cálculo mais dispendioso já registrado. — Você vai explicar tudo o que aconteceu. Você não quebrou conscientemente todos os seus acordos. E, por outro lado, você não pode continuar. É impossível. Todo o treino que você recebeu não significa nada para você. Está apenas na sua memória, em fragmentos — imagens e frases que você não pode relacionar com nada. Pessoas a quem devia conhecer e não têm nomes, não têm razão alguma para estarem em sua memória e serem o que são. Bourne tirou o casaco e a automática do cinto. Examinou o cilindro — aquela extensão feia do cano da arma que reduzia a contagem de decibéis e tornava um tiro apenas um ruído surdo. Aquilo o deixava nauseado. Foi até o balcão, pôs a arma dentro de uma gaveta e fechou-a. Por um instante, ficou segurando os puxadores da gaveta, os olhos fixos no rosto que se refletia no espelho, um rosto sem nome. — O que devo lhes dizer? — perguntou. — Aqui é Jason Bourne chamando. É claro, sei que este não é o meu nome verdadeiro, porque não sei que matei um homem que se chamava Jason Bourne. Mas este é o nome que vocês me deram... Sinto muito, cavalheiros, mas alguma coisa me aconteceu no caminho para Marselha. Perdi uma coisa — nada que possam avaliar — pois perdi a minha memória. Agora, acho que temos um acordo, mas não me lembro qual é, exceto algumas frases loucas como “pegue Carlos!”, e “cerque Carlos!”, e alguma coisa mais sobre Delta que é Caim e Caim que deve ficar no lugar de Charlie e que Charlie é realmente Carlos. Coisas assim, que podem levar os senhores a pensar que me lembro de tudo. Talvez até possam pensar: “Temos um bastardo de primeira aqui. Vamos deixá-lo por umas duas décadas em uma prisão bem-apertada. Ele não apenas nos pegou, mas o que é pior, provou ser-nos um terrível embaraço. — Bourne virou-se para Marie. — Não estou brincando. O que digo?
— A verdade — respondeu ela. — Eles vão aceitá-la. Eles lhe mandaram uma mensagem, estão tentando encontrá-lo. Se os seis meses são importantes, por que não telefona para Washburn, em Port Noir? Ele tem registros — extensos, detalhados. — Ele pode não responder. Fizemos o nosso próprio acordo. Por ter me tratado, ele devia receber um quinto de Zurique sem ser descoberto. Enviei-lhe um milhão de dólares americanos. — E você acha que isto faria com que ele deixasse de ajudá-lo? Jason fez uma pausa. — Pode ser impossível para ele. Ele tem um problema, é alcoólatra. Não é bêbado. Muito pior; ele sabe disso e gosta. Quanto tempo pode ele durar com um milhão de dólares? Mais exatamente, quanto tempo você pensa que aqueles piratas da praia vão deixá-lo viver, depois de descobrirem? — Mesmo assim, você ainda pode provar que esteve lá. Você estava doente e isolado. Não esteve em contato com ninguém. — Como os homens da Treadstone podem se certificar? Do ponto de vista deles, sou uma enciclopédia ambulante de assuntos secretos. Tinha que ser para fazer o que fiz. Como podem estar certos de que não conversei com as pessoas erradas? — Diga-lhes para mandar averiguar em Port Noir. — Seriam recebidos com silêncio e olhares vazios. Deixei aquela ilha no meio da noite, com metade da praia atrás de mim com facas e com ganchos. Se alguém por lá conseguiu fazer algum dinheiro com Washburn, logo perceberá e se negará a falar. — Jason, não sei o que você está querendo. Você tem a sua resposta, a resposta que procurava desde que acordou naquela manhã em Port Noir. O que mais quer? — Quero ser cuidadoso, só isto — disse Bourne inflamado. — Quero “olhar antes de pular” e estar bem certo de “fechar a porta do estábulo” e “Jack seja esperto, Jack seja rápido, Jack, pule por cima do castiçal — mas por Cristo, não caia em cima da vela”. Que tal, como jogo de memória? — Ele estava gritando; parou. Marie atravessou o quarto e ficou à sua frente. — É muito bom. Mas não é isto, não é? Quero dizer, ser cuidadoso. Jason balançou a cabeça. — Não, não é — disse. — A cada passo tive medo, medo das coisas que aprendi. Agora, no final, estou com mais medo ainda. Se não sou Jason Bourne, quem sou realmente? O que deixei para trás? Isso já lhe ocorreu? — Com todas as suas ramificações, meu querido. De certa forma, estou muito mais assustada do que você. Mas acho que isso não pode nos deter. Quisera que pudesse, mas sei que não pode. O adido da Embaixada Americana, na Avenida Gabriel, entrou no escritório do PrimeiroSecretário e fechou a porta. O homem à escrivaninha levantou os olhos.
— Tem certeza de que é ele? — Só tenho certeza de que ele usou as palavras-chave — disse o adido, indo até a escrivaninha com um cartão tarjado de vermelho na mão. — Aqui está o sinal — continuou entregando o cartão para o Primeiro-Secretário. — Já chequei as palavras que ele usou, e se este sinal é certo, eu diria que ele está dizendo a verdade. O homem à escrivaninha estudou o cartão. — Quando ele usou o nome Treadstone? — Apenas depois que o convenci de que ele não iria falar com ninguém no Serviço de Inteligência americano a menos que ou até que me desse uma boa razão para isto. Acho que ele pensou que eu ia estourar meus miolos quando ele disse que era Jason Bourne. Quando simplesmente lhe perguntei o que podia fazer por ele, pareceu parado, quase como se fosse desligar o telefone. — Não disse que havia um sinal para ele? — Eu estava esperando por isto, mas não mencionou nada. De acordo com esse esquema de oito palavras — “Oficial experimentado em campo. Possível deserção ou detenção pelos inimigos” — ele podia apenas ter dito a palavra “sinal” e estaríamos em sincronia. Mas não disse. — Então talvez não seja o genuíno. — Mas o resto se encaixa. Disse que D.C. está à sua procura há mais de seis meses. Foi aí que usou o nome da Treadstone. Ele era da Treadstone, coisa que supunha muito fantástica. Também me disse para averiguar as palavras-chave Delta, Caim e Medusa. As duas primeiras estão no cartão de sinais, eu as conferi. Não sei o que significa Medusa. — Não sei o que significa tudo isto — disse o Primeiro- Secretário. — Exceto que tenho ordens de manter sob vigilância estas comunicações, informar tudo detalhadamente para Langley, e pelo telefone direto para aquele espectro do Conklin. Dele já ouvi falar: é um grande filho da puta que perdeu o pé há dez ou doze anos em Nam. Ele aperta uns botões muito estranhos na Companhia. Também sobreviveu a todos os expurgos, o que me leva a crer que é um homem a quem não querem ver vagando pelas ruas à procura de emprego. Ou de editor. — Quem você acha que é este tal de Bourne? — perguntou o adido. — Nunca vi uma caçada assim tão firme, e ao mesmo tempo sem nenhuma estrutura, feita a uma pessoa em todos esses meus anos de trabalho para os Estados Unidos. — É alguém que eles querem muito. — O Primeiro-Secretário levantou-se da escrivaninha. Obrigado por isto. Direi a D.C. como você trabalhou bem. Qual é o esquema? Acho que ele não lhe deu um número de telefone. — De forma alguma. Ele queria voltar a telefonar daqui a quinze minutos, mas fiz o meu papel de burocrata apressado e sem tempo. Disse-lhe para telefonar daqui a uma hora mais ou menos. Seria depois das cinco, e assim poderíamos ganhar mais uma hora ou duas enquanto estou fora para o jantar. — Acho que não. Não podemos nos arriscar a perdê-lo. Vou deixar que Conklin trace o plano da
caça. Ele tem o controle sobre isto, Ninguém faz nada com relação a Bourne a menos que seja autorizado por ele. Alexander Conklin estava sentado atrás da sua mesa, no escritório de paredes brancas em Langley, Virgínia, enquanto ouvia o homem da Embaixada falando de Paris. Ele estava convencido, era Delta. A referência à Medusa era a prova, pois era um nome que ninguém mais sabia senão Delta. Aquele bastardo! Estava agora tentando fazer o papel de agente em dificuldades, porque os seus controles, no telefone da Treadstone, não respondiam às palavras-chave apropriadas — sejam lá quais fossem — pois os mortos não podem falar. Estava se utilizando do esquecimento para tentar sair da arapuca! O sangue-frio daquele bastardo era terrível. Bastardo, bastardo! Matar os controles e usar estas mortes para evitar a sua caça. Qualquer tipo de caça. Quantos homens já haviam feito isto antes, pensou Alexander Conklin. Ele próprio num controle de fontes de informação, nas montanhas de Huong Khe, um maníaco dera ordens loucas, morte certa para uns doze pares de medusianos numa caçada fechada. Um jovem oficial do serviço de inteligência chamado Conklin rastejou de volta para a Base do Campo Kilo com um rifle norte-vietnamita, de calibre russo, e atirou duas balas na cabeça do maníaco. Medida de segurança mais duras foram impostas à força, mas a caça foi cancelada, Mas ele não deixara nenhum pedaço de copo nos caminhos da selva da Base de Campo Kilo. Pedaços com impressões que identificasse o atirador de tocaia como um recruta ocidental da própria Medusa. Mas foram encontrados alguns pedaços de copo na Rua Setenta e Um sem que o matador soubesse — porque Deita não sabia disso.. — Em um ponto questionamos seriamente se ele seria o genuíno — disse o Primeiro-Secretário da Embaixada, falando com voz grossa, como para preencher o abrupto silêncio de Washington. — Um oficial de campo experimentado teria dito ao adido para checar o sinal, mas aquele sujeito não fez isto. — Uma inadvertência — respondeu Conklin, retrocedendo, na memória, ao brutal enigma que era Delta-Caim. — Qual é o combinado? — Inicialmente Bourne insistiu em telefonar daqui a quinze minutos, mas instruí meu auxiliar para ser comedido e esperar. Por exemplo, poderíamos usar a hora do jantar... — O homem da Embaixada tentava se certificar de que um executivo da Companhia, em Washington, percebera a perspicácia das suas contribuições. Nisso ele gastaria quase um minuto; Conklin já ouvira muitas variações antes. Delta. Por que trocara de lado? A loucura devia ter se apossado dele e ele perdera a cabeça, só tinha os instintos de sobrevivência. Vagueara tanto, por tanto tempo; devia saber que mais cedo ou mais tarde eles o encontrariam, o matariam. Jamais haveria outra alternativa; ele sabia disso desde o momento em que trocara de lado ou rompera, fosse lá o que fosse. Não havia mais lugar onde pudesse se esconder; era um alvo procurado pelo globo todo. Jamais poderia saber quando alguém sairia das sombras para dar cabo da sua vida. Era uma realidade com a qual todos conviviam, o mais persuasivo argumento contra a traição. E então, outra solução tinha que ser buscada: a sobrevivência. O bíblico Caim era o primeiro a cometer fratricídio. Teria o seu nome mítico o levado àquela decisão obscena, àquela estratégia? Seria assim tão simples? Deus sabia que esta era a solução perfeita. Matar todos eles,
matar seus irmãos. Webb se fora; o Monge também; o Iatista e a mulher... Quem poderia negar as instruções que Delta recebera se aqueles quatro eram os que lhe davam as instruções? Ele retirara os milhões e os distribuíra como fora mandado. Receptores que de nada sabiam, e ele presumira que era intrínseco à estratégia do Monge. Quem era Delta para questionar o Monge? O criador da Medusa, o gênio que o recrutara e criara a ele, Caim. A solução perfeita. Para ser completamente convincente, só faltava a morte de um irmão, sentir o próprio pesar. Um julgamento oficial lhe seria oferecido. Carlos tinha se infiltrado e quebrado a Treadstone. O assassino vencera, a Treadstone fora abandonada. Aquele bastardo! — . .. e assim, basicamente, pensei que o plano da caça deveria vir do senhor. — O PrimeiroSecretário, em Paris, tinha terminado de falar. Era um asno, mas Conklin precisava dele; uma melodia tinha que ser ouvida enquanto outra estava sendo tocada. — Você fez a coisa certa — disse o respeitoso executivo de Langley. — Farei com que o pessoal aqui fique sabendo que você trabalhou muito bem. Foi perfeito; precisamos de tempo, mas Bourne não sabe disso. E também não podemos dizer-lhe, o que torna tudo bem consciente. Estamos num aparelho direto, posso falar mais claramente? — Claro. — Bourne está sob pressão. Ele esteve... detido... por um bom período de tempo. Estou sendo claro? — Os soviéticos? — Perto de Lubyanka. Sua fuga foi feita através de um duplo registro. Está familiarizado com o termo? — Sim, estou. Moscou pensa que ele está trabalhando para eles, agora. — Mas isto é o que eles pensam. — Conklin fez uma pausa. — E não estamos ainda bem certos. Coisas estranhas aconteceram por lá. O Primeiro-Secretário assobiou baixinho. — Que encruzilhada! Como vai conseguir uma solução? — Com a sua ajuda. Mas a classificação de prioridade é muito alta, é mais alta do que a Embaixada, ou do que o nível de Embaixada. Você está no quadro; foi convocado. Pode aceitar a condição ou não, é com você. Se aceitar, acho que virá imediatamente uma recomendação do Escritório Oval. Conklin podia ouvir a respiração lenta em Paris. — Farei o que puder, é claro. Pode dizer.
— Você já fez. Nós o queremos mantido a distância. Quando voltar a telefonar, você mesmo deverá falar com ele. — Naturalmente — interrompeu o homem da Embaixada. — Diga-lhe que! você relacionou os códigos. Diga-lhe que Washington está mandando um oficial de registros diretamente da Treadstone num avião militar. Diga que D.C. quer que ele se mantenha escondido e longe da Embaixada; todos os passos estarão sendo vigiados. Depois perguntelhe se ele quer proteção. Se quiser, descubra onde quer ir buscar esta proteção. Mas não mande ninguém. Quando me chamar novamente, já terei entrado em contato com alguém de lá. Dar-lhe-ei um nome então e você pode oferecer-lhe um olheiro. — Um olheiro? — Uma identificação visual. Alguma coisa, ou alguém, que ele possa reconhecer. — Um dos seus homens? — Sim, achamos que é melhor assim. Além de você, não há por que envolver a Embaixada. Na realidade, é vital que não se envolva a Embaixada nisto. Assim, qualquer conversa que você tenha deve ser passada adiante. — Posso tomar conta disso — disse o Primeiro-Secretário. — Mas como a conversa que eu vou ter com ele vai ajudá-lo a determinar se ele tem realmente um duplo registro? — Porque não será apenas uma conversa. Serão umas dez, — Dez? — Isto mesmo. As suas instruções para Bourne — nossas, por seu intermédio — são as de que ele deve lhe telefonar de hora em hora para confirmar se está em território salvo. Até a última hora, quando você vai lhe dizer que o oficial da Treadstone chegou a Paris e vai se encontrar com ele. — Em que isto vai resultar? — perguntou o homem da Embaixada. — Ele vai continuar a circular... se não for nosso. Há uma meia dúzia de agentes soviéticos bemconhecidos em Paris, todos com telefones falsos. Se estiver trabalhando com Moscou, as chances são de que ele pelo menos use um deles. Estaremos atentos. E se for, assim que acabar, acho que você vai se lembrar para sempre da noite que passou na Embaixada. Para o resto da sua vida. Recomendações presidenciais têm possibilidades de elevar a carreira de um homem a altos níveis. É claro, você não tem lugar tão mais alto para ir... — Há maiores e mais altos, Senhor Conklin — interrompeu o Primeiro-Secretário. A conversa acabara, o homem da Embaixada voltaria a telefonar depois que ouvisse Bourne. Conklin levantou-se da cadeira e capengou pela sala indo até um fichário cinza na parede do outro lado. Destrancou a primeira gaveta. Dentro havia uma pasta grampeada contendo um envelope selado onde
estavam os nomes e endereços de homens que podiam ser chamados para trabalhos de emergência. Já tinham sido bons homens antigamente, leais, que por qualquer razão não podiam mais entrar em uma lista de pagamentos de Washington. Em todos os casos fora necessário retirá-los do quadro oficial, relocá-los com novas identidades — aos que eram fluentes em outras línguas quase sempre era dada uma cidadania para cooperarem com governos estrangeiros. Simplesmente desapareceram. Eram os banidos, homens que haviam ido muito além das leis a serviço do seu país, que em geral mataram no interesse de seu próprio país. Mas o seu país não poderia continuar a tolerar a sua existência oficial; seus segredos haviam sido expostos, suas ações conhecidas. Ainda assim, podiam ser chamados de vez em quando. Pagamentos eram desviados para contas que não estavam sob fiscalização oficial, alguns acertos intrínsecos eram feitos quanto a esses pagamentos. Conklin levou de volta o envelope para a mesa e rasgou a fita do selo; seria liberado, remarcado. Havia um homem em Paris, um homem dedicado, que surgira dos corpos de oficiais da Inteligência do Exército, um tenente-coronel, que agora devia estar com trinta e cinco anos. Podia contar com ele, ele entendia as prioridades nacionais. Matara um fotógrafo de esquerda em uma vila próxima a Hue, há uns doze anos. Há três minutos já estivera com o homem ao telefone; a chamada não fora registrada nem gravada. Ao antigo oficial foi dado um novo nome e um rápido processo de expulsão, incluindo uma viagem paga pelos Estados Unidos durante a qual o banido em questão foi em missão especial para eliminar os que controlavam à sua estratégia. — Um registro duplo? — perguntou o homem em Paris. — Moscou? — Não, nada com os soviéticos — respondeu Conklin, ciente de que se Delta pedira proteção haveria conversa entre os dois homens. — Foi um trabalho secreto de longo alcance para atrair Carlos. — O assassino? — Isto mesmo. — Você pode dizer que não é Moscou, mas não vai me convencer. Carlos foi treinado em Novgorod, e tanto quanto sei, ainda é malvisto pelo KGB. — Talvez. Os detalhes não são para encurtar, mas é suficiente dizer que estamos convencidos de que o nosso homem foi comprado; ele fez alguns milhões e agora quer um passaporte livre. — Então, ele entregou os controles e os dedos apontados contra Carlos. O que não vai significar nada, exceto mais uma morte. — Isto mesmo. Queremos continuar a caça, deixá-lo pensar que está em casa, livre. Melhor ainda, gostaríamos de uma confissão, qualquer informação que pudermos obter, e é por isso que estou agindo do meu jeito. Mas é completamente secundário tirá-lo de onde está. Muitas pessoas, de muitos lugares, estiveram comprometidas em colocá-lo onde ele agora está. Pode ajudar? Haverá um prêmio. — O prazer é meu. E fique com o prêmio, odeio fodidos como ele. Estouram redes inteiras de
trabalho. — Vai ser um trabalho duro, ele é dos melhores. Sugiro que você tenha um auxiliar, ao menos um. — Tenho um, de Saint-Gervais, que vale por cinco. Ele trabalha por pagamento. — Contrate-o. Aqui estão os pormenores. O controle em Paris é de uma embaixada, simulado; o rapaz da embaixada não sabe de nada, mas está em comunicação com Bourne e vai pedir proteção para ele. — Farei o jogo — disse o antigo oficial do Serviço de Inteligência. — Continue. — Não há muito mais, por enquanto. Conseguirei um jato em Andrews. O meu ETA, em Paris, estará em algum lugar entre as 23h e a meia-noite, hora local. Quero ver Bourne dentro de uma hora mais ou menos e depois estar de volta para cá, em Washington, amanhã. É apertado, mas é assim que tem que ser. — Assim será então. — O sujeito da Embaixada é o Primeiro-Secretário. Seu nome é... Conklin forneceu-lhe os pormenores mais específicos que ainda faltavam e os dois homens inventaram números básicos para os seus contatos iniciais em Paris. Palavras de código que diriam ao homem da Agência Central de Inteligência se existia ou não algum problema quando estivessem conversando. Conklin desligou. Tudo começava exatamente da forma que Delta esperaria que começasse. Os herdeiros da Treadstone seguiriam as normas, e as normas eram específicas quando as estratégias falhavam. E os estrategistas também. Deviam ser apagados, cortados, nenhuma conexão oficial ou comunicação era permitida. Estratégias e estrategistas que falhavam eram um grande embaraço para Washington. E desde o seu começo a Treadstone Seventy One usara, abusara e manipulara cada unidade maior da comunidade do Serviço de Inteligência dos Estados Unidos e de alguns governos estrangeiros. Delta sabia de tudo isso, e porque ele próprio destruíra a Treadstone, apreciaria as precauções, as anteciparia e ficaria até mesmo alarmado se elas não existissem. E quando fosse interrogado, reagiria com falsa fúria e angústia artificial sobre a violência ocorrida na Rua Setenta e Um. Alexander Conklin ouviria com toda a atenção tentando discernir alguma informação genuína, até mesmo o esboço de uma explicação razoável mas não levaria nada em conta. Pedaços quebrados de vidro não podiam aparecer do outro lado do Atlântico apenas para serem escondidos debaixo de uma cortina grossa e pesada de uma casa de granito escuro de Manhattan. E impressões digitais eram a prova mais acurada de que um homem estivera no lugar, mais do que uma fotografia. Não havia jeito de serem modificadas. Conklin daria a Delta o benefício de dois minutos para dizer o que lhe viesse à sua mente ágil. Ele ouviria e, em seguida, puxaria o gatilho.
Capítulo32 — Por que estão fazendo isto? — perguntou Jason, sentado ao lado de Marie, no café apinhado. Acabara de fazer a quinta chamada telefônica, cinco horas depois de ter feito o primeiro contato com a embaixada. — Querem que eu continue fugindo. Estão me forçando a fugir, e não sei por quê. — Você está se forçando — disse Marie. — Podia ter telefonado do quarto. — Não, não podia. Por alguma razão qualquer eles querem que eu saiba disso. Cada vez que telefono, aquele filho da puta pergunta onde estou agora, se estou em “território livre”. Que frase estúpida, “território livre”! Mas ele está dizendo outra coisa. Está me avisando que cada contato tem que ser feito de um lugar diferente, de forma que ninguém, fora ou dentro, possa me rastrear em um único telefone, em um endereço único. Não me querem em custódia, mas me querem em um fio. Eles me querem, mas estão com medo de mim; não faz sentido! — Não é possível que você esteja imaginando estas coisas? Ninguém disse nada, nem remotamente fizeram qualquer alusão. — Não precisam. Está no que não dizem. Por que simplesmente não me disseram para ir imediatamente à embaixada? Por que não me ordenaram? Ninguém podia me tocar lá; é território americano. Mas não fizeram isto. — As ruas estão sendo vigiadas. Eles lhe disseram isto. — Você sabe que aceitei isto — cegamente — até trinta segundos atrás, quando isso tudo me deixou um pouco espantado. Por quem? Quem está vigiando as ruas? — Carlos, obviamente. Seus homens. — Você sabe muito bem e eu também — ou pelo menos podemos presumir — mas eles não sabem. Posso não saber quem sou ou de onde vim, mas sei o que me aconteceu durante as últimas vinte e quatro horas. Eles não. — Eles também podiam presumir, não? Podem ter visto homens estranhos em carros, ou ali por perto, durante muito tempo e muito à vista. — Carlos é mais inteligente. E há muitos meios de um veículo entrar de repente nos portões de uma Embaixada. Os contingentes da Marinha são treinados em todos os lugares para fazerem coisas desse tipo. — Acredito em você. — Mas eles não fizeram isto; nem mesmo sugeriram que eu fizesse. Ao contrário, estão me mantendo a distância, forçando-me a fazer o jogo deles. Que diabo, por quê? — Você mesmo disse, Jason. Estão sem saber nada de você há seis meses. Estão sendo
cuidadosos. — Por que desta forma? Lá dentro daqueles portões eles podem fazer o que quiserem comigo. Podem me controlar. Tanto podem me dar uma festa quanto me jogar em uma cela. Mas não, não querem me tocar e também não querem me perder. — Estão esperando pelo homem que vem de Washington. — Que melhor lugar para esperá-lo senão na Embaixada? — Bourne empurrou a cadeira. — Alguma coisa está errada.Vamos sair daqui. Alexander Conklin, herdeiro da Treadstone, levou exatamente seis horas e doze minutos para atravessar o Atlântico. Para voltar, tomaria o primeiro vôo do Concorde que saísse de Paris pela manhã e alcançaria Dulles por volta de 7h30min de Washington, depois Langley, cerca das 9 horas. Se alguém tentasse entrar em contato com ele por telefone ou perguntasse por seu paradeiro à noite, um obsequioso major do Pentágono daria qualquer informação falsa. E ao Primeiro-Secretário da Embaixada em Paris seria dito que se mencionasse alguma vez que tivera uma única conversa sequer com o homem de Langley seria rebaixado ao posto de adido mais baixo e mandado para um novo posto na Terra do Fogo. Era garantido. Conklin foi diretamente para uma fileira de telefones públicos na parede e telefonou para a Embaixada. O Primeiro-Secretário estava cheio de um certo sentimento de realização. — Tudo está de acordo com o esquema, Conklin — disse o homem da Embaixada, a ausência do “senhor” era um sinal de igualdade. O executivo da Companhia estava agora em Paris, e cada terra com seu hábito... — Bourne está desconfiado. Durante a nossa última comunicação ele perguntou repetidas vezes por que não estava sendo chamado para a Embaixada. — Perguntou? — A princípio Conklin ficara surpreso. Depois entendeu. Delta simulava as reações de um homem que nada sabia sobre os eventos da Rua Setenta e Um. Se fosse mandado ir à Embaixada, teria passado pelo crivo. Sabia mais, não poderia haver nenhuma conexão oficial. A Treadstone era um anátema, uma estratégia desacreditada, uma grande complicação, um grande embaraço. — Você reiterou que as ruas estavam sendo vigiadas? — Naturalmente. Então, ele me perguntou quem o estava vigiando. Pode imaginar? — Posso. O que você disse? — Que ele sabia tão bem quanto eu. E, considerando tudo, achei que era contraproducente discutir tais assuntos pelo telefone. — Muito bem. — Preferi pensar assim. — E o que ele respondeu? Aceitou?
— De uma forma estranha, sim. Disse: “Compreendo.” Só isso. — Mudou de idéia quanto à questão? — Continuou a recusar. Até mesmo quando insisti. — O Primeiro-Secretário fez uma breve pausa. — Ele não, quer ser vigiado, não é? — disse confidencialmente. — Não, não quer. Para quando espera o seu próximo telefonema? — Daqui a quinze minutos. — Diga-lhe que o oficial da Treadstone chegou. — Conklin pegou o mapa do bolso; já estava dobrado na área, a rota marcada em tinta azul. — Diga-lhe que o encontro foi marcado para 1h30min na estrada entre Chevreuse e Rambouillet, a sete milhas para o sul de Versalhes, no Cemitério de Noblesse. — 1h30min, estrada entre Chevreuse e Rambouillet... o cemitério. Ele sabe como chegar lá? — Já esteve lá antes. Se ele disser que vai de táxi, diga-lhe para tomar as medidas normais de precaução e dispensá-lo logo em seguida. — Não vai parecer estranho? Ao motorista, quero dizer. É uma hora meio estranha, de madrugada. — Eu disse que é para você “lhe dizer” isto. Obviamente ele não vai pegar um táxi. — É óbvio — disse o Primeiro-Secretário rapidamente, recobrando-se por ter dito o desnecessário. — Como não chamei o seu homem aqui, devo telefonar-lhe e dizer-lhe que você chegou? — Farei isso. Você ainda tem o seu número? — Sim, é claro. — Queime-o — ordenou Conklin. — Antes que ele o queime. Telefono-lhe daqui a vinte minutos. Um trem passou pelo nível mais baixo, no metrô; as vibrações foram sentidas em toda a plataforma de cima. Bourne pôs o telefone no gancho, na parede de concreto, e ficou olhando por um momento para o aparelho. Outra porta fora parcialmente aberta em algum lugar da sua distante mente; a luz estava ainda muito longe, muito fraca para que ele pudesse enxergar lá dentro. Ainda assim, havia imagens. Na estrada para Rambouillet... através de uma passagem em arco de ferro batido, cruzado... uma inclinação suave de colina, com mármore branco. Cruzes — grandes, maiores, mausoléus... e esculturas espalhadas por todo o lugar. O Cemitério de Noblesse. Um cemitério, mas que era muito mais do que um lugar de repouso para os mortos. Era um ponto, mas ainda mais do que apenas isto. Um lugar onde as conversas aconteciam entre enterros e esquifes. Dois homens vestidos sombriamente, entre pessoas também vestidas sombriamente, movimentando-se entre as pessoas de luto e trocando as palavras que deviam ser passadas adiante.
Havia um rosto, mas estava um pouco apagado, fora de foco; ele via apenas os olhos. E este rosto fora de foco e estes olhos tinham um nome. David... Abbott. O Monge. O homem que conhecia mas não conhecia. O criador da Medusa e de Caim. Jason piscou algumas vezes e balançou a cabeça várias vezes para desmanchar a súbita névoa. Procurou Marie com o olhar. Ela estava ali perto, do lado esquerdo, encostada à parede, supostamente perscrutando a multidão na plataforma, vigiando alguém, possivelmente vigiando-o. Mas não; ela estava olhando para ele, a testa franzida em preocupação. Ele fez um sinal com a cabeça, tranqüilizando-a; não era um mau momento para ele. Ao contrário, imagens lhe haviam chegado. Ele já estivera no cemitério; e logo saberia. Encaminhou-se até Marie; ela se virou e o acompanhou enquanto se dirigiam para a saída. — Ele está aqui — disse Bourne. — O homem da Treadstone já chegou. Vou me encontrar com ele perto de Rambouillet. Em um cemitério. — É um toque bem vampiresco. Por que um cemitério? — Deve ser para me tranqüilizar. — Bom Deus, como? — Já estive lá antes. Já encontrei algumas pessoas lá... um homem. Ao indicá-lo como o lugar do encontro — um encontro inusual —, o homem da Treadstone está tentando me dizer que está sendo verdadeiro. Ela tomou-lhe o braço quando começaram a subir os degraus em direção à rua. — Quero ir com você. — Sinto muito. — Você não pode me excluir! — Posso, porque não sei que vou encontrar lá. E se não for o que espero, vou precisar de alguém do meu lado. — Querido, isto não faz sentido! Estou sendo procurada pela polícia. Se me encontrarem mandar-me-ão de volta para Zurique no próximo avião; você mesmo disse isto. Que utilidade eu teria para você em Zurique? — Não você. Villiers. Ele confia em nós, confia em você. Você pode ir até ele se eu não voltar até o amanhecer ou não telefonar explicando por quê. Ele pode fazer um bom barulho, e Deus sabe que ele está pronto para isto. É o único amparo que temos, o único. Para ser mais específico, a mulher dele é — por intermédio dele. Marie assentiu com a cabeça, aceitando a sua lógica. — Ele está pronto — concordou ela. — Como você irá até Rambouillet?
— Temos um carro, não se lembra? Vou levá-la para o hotel, depois irei até a garagem. Ele entrou no elevador da garagem em Montmartre e apertou o botão para o quarto andar, Sua mente estava fixa no cemitério que ficava próximo de Chevreuse e Rambouillet, em uma estrada onde já dirigira, mas não tinha nenhuma idéia de quando fora nem com que propósito. Era por isso que agora queria ir até lá, não para esperar até que sua chegada coincidisse mais estreitamente com a hora do encontro. Se as imagens que lhe haviam chegado mente não estivessem completamente distorcidas, aquele era um cemitério enorme. Onde mais precisamente entre aqueles acres de túmulos e esculturas seria o encontro? Ele chegaria lá a uma hora, deixando tempo — uma meia hora — para olhar pelos caminhos à procura de luz de faróis ou de um sinal. Outras coisas lhe viriam à mente. A porta do elevador abriu-se. O pavimento estava com três quartos do seu espaço ocupado por carros, e o resto vazio. Jason tentou lembrar-se de onde estacionara o Renault; era num canto bem mais longe, ele se lembrava disto, mas era do lado direito ou do esquerdo? Foi pelo lado esquerdo, o elevador ficara do lado esquerdo quando ele trouxe o carro há alguns dias. Parou, a lógica abruptamente o orientando. O elevador ficara do seu lado esquerdo quando ele entrara, não depois que estacionara o carro; estava, portanto, à sua direita. Virou-se em um movimento rápido, os pensamentos numa estrada entre Chevreuse e Rambouillet. Talvez pelo movimento súbito, por ter-se virado repentina- mente ou porque era uma vigilância inexperiente, Bourne não o sabia bem e nem se importava em pensar no assunto. Fosse o que fosse, aquele movimento salvou-lhe a vida, disto tinha certeza. Uma cabeça de homem se escondeu atrás da capota de um carro na segunda fileira do lado direito; esse homem por certo o espionava. Um vigilante experiente ter-se-ia levantado, segurando um chaveiro que aparentemente pegara do chão do carro, ou examinado um dos pára-brisas e depois ido embora. Só não faria o que aquele homem fizera, correndo o risco de ser visto se escondendo. Jason manteve o passo, os pensamentos agora fixos no novo esquema. Quem seria aquele homem? Como fora encontrado? E logo em seguida as duas respostas vieram tão claras, tão óbvias, que ele se sentiu um tolo, O porteiro do Auberge du Coin. Carlos fora cuidadoso — como sempre — com todos os detalhes, qualquer possibilidade de falha era examinada. E um desses detalhes era um porteiro em serviço durante uma das suas falhas. Um homem como ele faz sondagens, depois interroga; não teria sido difícil. Mostrar uma faca ou um revólver seria o suficiente. A informação sairia dos lábios trêmulos do porteiro da noite com toda a facilidade, e os militantes de Carlos receberiam ordens de se espalhar por toda a cidade, cada distrito dividido em setores, à procura de um determinado Renault preto. Uma laboriosa procura, não impossível, facilitada pelo motorista que nem se incomodara em trocar as placas do carro. Durante quantas horas seguidas a garagem teria sido vigiada? Quantos homens estariam ali? Dentro, fora? Quando chegariam os outros? Carlos chegaria? As perguntas eram secundárias. Ele tinha que sair. Podia sair sem o carro, talvez, mas a dependência que isso lhe daria deixa-lo-ia indefeso; precisava de transporte e era para já. Nenhum táxi iria levar um estranho até um cemitério fora de Paris, em Rambouillet, a uma hora da manhã. E não
havia mais tempo para pensar em roubar um outro carro na rua. Parou, tirou cigarro e fósforo do bolso. Depois, ao acender o fósforo, pôs as mãos em concha e virou a cabeça para proteger a chama. Pelo canto do olho pôde ver uma sombra — uma forma quadrada, atarracada; o homem se abaixara mais uma vez, agora por trás da carroçaria de um carro próximo. Jason agachou-se, girou para a esquerda e se pôs para fora do corredor entre dois carros, quebrando a queda com as palmas das mãos, a manobra feita em silêncio. Arrastou-se por trás das rodas traseiras do automóvel à sua direita, os braços e as pernas trabalhando rapidamente, calmamente, pelo corredor estreito, entre os veículos, como uma aranha escapulindo por uma teia. Agora estava atrás do homem. Ele arrastou-se para a frente em direção ao corredor e levantou-se nos joelhos, esticando o rosto junto ao metal macio. Espiou por cima de um farol. O homem atarracado estava à vista, em pé. Evidentemente estava espantado, pois se movimentava hesitantemente em direção ao Renault, o corpo abaixa do de novo, tentando espiar pela janela da frente. O que viu o deixou ainda mais assustado; não havia nada, ninguém. Engasgou- se, a respiração inaudível era um prelúdio para a fuga. Fora enganado e sabia disto, e não estava a fim de esperar pelas conseqüências — e isto significava mais alguma coisa para Bourne. O homem fora informado sobre o motorista do Renault, o medo estava explicado. O homem começou a correr em direção à rampa de saída. Agora. Jason levantou-se e correu diretamente para o corredor, entre os carros, encontrando-se com o homem em fuga, segurando-o pelas costas e jogando-o no chão de concreto. Malhou o pescoço grosso do homem e bateu com o seu crânio contra o pavimento. Com os dedos da mão esquerda pressionou as órbitas do homem. — Você tem exatamente cinco segundos para me dizer quem está lá fora — disse em francês, lembrando-se do rosto contorcido de um outro francês, num elevador de Zurique. Haviam vários homens lá fora daquela vez, homens que queriam matá-lo, na Bahnhofstrasse. — Diga-me! Agora! — Um homem, só um homem, só! Bourne voltou a torcer-lhe o pescoço, afundando mais os dedos nos olhos do homem. — Onde? — Num carro — disse o homem em um só fôlego. — Estacionado do outro lado da rua. Meu Deus, você está me cegando! — Ainda não. Você saberá quando eu fizer isto. Que tipo de carro? — Estrangeiro. Não sei. Italiano, acho. Ou americano. Não sei. Por favor! Meus olhos! — Que cor? — Escuro! Verde, azul, muito escuro. Oh, meu Deus! — Quem? Jason voltou a torcer o pescoço, e fez mais pressão nos olhos. — Você me ouviu — você pertence ao grupo de Carlos!
— Não conheço nenhum Carlos. Telefonamos para um homem, existe um numero. Isto é tudo. — Ele foi chamado? — O homem não respondeu. Bourne enfiou mais ainda os dedos nos olhos. — Diga-me! — Sim. Tive que chamar. — Quando? — Há poucos minutos. O telefone da segunda rampa. Meu Deus! Não posso enxergar. — Sim, pode. Levante-se! — Jason soltou o homem, fazendo com que ficasse de pé. — Vá até o carro. Rápido! — Bourne empurrou o homem para trás, em direção aos automóveis estacionados perto do corredor onde estava o Renault. O homem virou-se, protestando, desamparado. — Você me ouviu. Depressa! — gritou Jason. — Estou apenas ganhando uns poucos francos. — Agora pode dirigir por eles. — Bourne empurrou-o em direção ao Renault. Momentos depois o automóvel preto dobrava a rampa de saída em direção a uma cabine de vidro com um único empregado e uma máquina registradora. Jason estava no assento preto, a arma apontada para o pescoço machucado do homem. Bourne entregou-lhe uma nota e o cartão datado pela janela; o empregado pegou-os. — Motorista! — disse Bourne. — Faça exatamente o que lhe disse! O homem acelerou e o Renault saiu correndo em direção à saída. O homem fez o retorno ruidosamente na rua e parou de repente em frente ao Chevrolet verde-escuro. Uma porta do carro se abriu, passos correndo. — Jules? Que se passe-i-il? C’est toi qui conduis? — Uma figura apareceu na janela aberta. Bourne levantou a automática, apontando-a para o rosto do homem. — Dê dois passos para trás — disse em francês. — Não mais, apenas dois. E pare. Bateu na cabeça do homem chamado Jules. — Saia. Devagar. — Íamos apenas segui-lo — protestou Jules, saindo para a calçada. — Segui-lo e relatar onde estava. — Vão fazer melhor do que isto — disse Bourne, saindo do Renault e pegando o seu mapa de Paris. — Vão dirigir para mim. Por uns momentos. Entrem no carro, os dois! Cinco milhas tora de Paris, na estrada para Chevreuse, os dois homens foram mandados sair do carro. Era uma auto-estrada escura, parcamente iluminada. Não havia loja, edifícios, casas ou telefones na estrada, numa distância de três milhas. — Que número vocês deviam chamar? — exigiu Jason. — Não mintam. Vocês ficarão em
piores condições, terão mais trabalho. Jules deu-me o número. Bourne assentiu com a cabeça e entrou no Chevrolet. O velho com o sobretudo puído sentou desajeitadamente nas sombras da cabine telefônica vazia. O pequeno restaurante estava fechado; a sua presença lá fora uma acomodação feita por um amigo dos velhos dias, dos melhores dias. Ficou olhando para o aparelho na parede, tentando imaginar quando tocaria. Era apenas uma questão de tempo. E quando tocasse, ele, por sua vez, faria uma chamada e os melhores dias estariam de volta, para sempre. Seria em Paris a ligação de Carlos. Isto seria murmurado entre os demais velhos, e o resto seria seu novamente. O ruído alto do telefone ecoou pelas paredes do restaurante deserto, O mendigo levantou-se e correu. O coração batia desordenadamente em antecipação. Era o sinal. Caim fora cercado! Os dias de paciente espera tinham sido apenas um prefácio para a boa vida que teria agora. Tirou o telefone do gancho. — Sim? — É Jules! — gritou a voz quase sem fôlego. O rosto do velho tornou-se pálido, as batidas do seu coração cresceram, altas, quase nem podia ouvir as coisas terríveis que lhe estavam sendo ditas. Já ouvira o suficiente. Era um homem morto, Explosões de luz e calor acompanharas as vibrações que lhe tomaram conta do corpo. Não havia ar, apenas uma luz as ensurdecedoras erupções que lhe subiam do estômago para a cabeça. O mendigo caiu ao chão, a corda esticada do telefone ainda em suas mãos. Olhou fixamente para o medonho aparelho que lhe trazia aquelas terríveis notícias, O que podia fazer? Em nome de Deus, o que faria? Bourne caminhou pelas veredas por entre os túmulos, forçando-se a liberar a mente, como Washburn lhe recomendara em Port Noir. Precisava ser uma esponja agora, mais do que nunca; o homem da Treadstone tinha que entender. Ele tentava, com toda a concentração possível, tirar algum sentido do que não se lembrava, dar significado às imagens que lhe vinham sem aviso. Não quebrara acordo algum; não mudara de lado ou fugira... Era um aleijado; simplesmente isto. Tinha que encontrar o homem da Treadstone. Onde dentro daqueles silenciosos acres de terra e silêncio estaria ele? Onde ele esperava que ele estivesse? Jason chegara ao cemitério bem antes de uma hora, o Chevrolet era um carro bem mais rápido do que o velho e desmantelado Renault. Entrara pelos portões, dirigira algumas centenas de jardas pela estrada, virara em um acostamento e estacionara razoavelmente fora de visão. Na volta para os portões começara a chover. Era uma chuva fria, chuva de março, silenciosa, seu barulho fazia pequenas intrusões no silêncio. Passou por um grupo de túmulos dentro de um lote demarcado por uma cerca de ferro, o centro marcado por uma cruz de alabastro que se elevava do chão e tinha uns oito pés. Ficou em frente a ela
por um instante. Já estivera ali? Seria outra porta a se abrir para ele, da distância? Ou procurava desesperadamente uma? Mas em seguida a imagem lhe veio. Não era nesse grupo de túmulos em particular, nem a alta cruz de alabastro, nem o cercado de ferro. Era a chuva. Uma chuva repentina. Muitas pessoas chorando, juntas, vestidas de preto em volta de um túmulo, o ruído dos guarda-chuvas se abrindo. E dois homens se aproximando, os guarda-chuvas se encostando por um breve instante apenas. Desculpas silenciosas pronunciadas enquanto um envelope marrom e comprido era passado de mão em mão, de bolso em bolso, sem ser notado pelos presentes. E havia mais alguma coisa. Uma imagem puxava outra, alimentando a sua imagem, vista há apenas alguns minutos. A chuva caindo em cascatas sobre o mármore branco; não uma chuva fria e leve, mas uma tempestade, caindo sobre as paredes de uma brilhante superfície branca... com colunas... fileiras de colunas dos dois lados, uma réplica em miniatura de um tesouro antigo. Do outro lado da colina. Perto dos portões. Um mausoléu branco, a versão menor do Partenâo. Passara por ele há menos de cinco minutos, o havia olhado, mas não o vira. Foi lá que aquela súbita chuva caíra, onde os dois guarda-chuvas haviam se tocado e um envelope fora entregue. Girou o botão do seu relógio de radium. Passavam quatorze minutos de uma hora. Começou a correr de volta para o caminho. Ainda era cedo; havia tempo para ver os faróis de um carro, ou um fósforo sendo aceso ou... O raio de uma lanterna. Lá estava, no alto da colina, se movimentando para cima e para baixo, intermitentemente, voltando para os portões, como se quem estava segurando a lanterna estivesse à espera de alguém. Bourne teve um desejo incontrolável de correr por entre os túmulos e as esculturas gritando alto. Estou aqui! Sou eu. Entendi a sua mensagem. Voltei! Tenho tanta coisa a lhe dizer... e você tem tanta coisa para me dizer! Mas não gritou nem correu. Acima de tudo, tinha que demonstrar controle, Pois o que o afligia era tão incontrolável! Tinha que parecer completamente lúcido — são, dentro dos limites de sua própria memória. Começou a descer a colina na chuva fria e leve, na esperança de que o seu sentido de urgência lhe permitisse lembrar-se da luz de uma lanterna. A lanterna. Alguma coisa era estranha no facho de luz a quinhentos pés dali, mais para baixo. Ela tinha movimentos verticais curtos, enfáticos... como se o homem que a estava segurando estivesse se comunicando enfaticamente com outro. E estava. Jason agachou-se, espiando através da chuva, os olhos presos na direção de um reflexo de luz faiscante, forte, que brilhava sempre que o facho de luz batia no objeto à sua frente. Arrastou-se, o corpo colado ao chão, cobrindo quase cem pés em um segundo, o olhar ainda no facho de luz e no reflexo. Agora já podia ver com maior clareza; parou e ficou prestando atenção. Havia dois homens, um que segurava a lanterna e o outro um rifle de cano curto, o metal grosso da arma muito conhecido de Bourne. A uma distância de até trinta pés aquela arma podia arrebentar um homem, fazendo-o explodir no ar. Era uma arma muito estranha para estar em poder de um oficial de registros que tivesse sido enviado por Washington. O facho de luz foi dirigido para o lado do mausoléu branco; o vulto segurando o rifle retraiu-se imediatamente, escondendo-se atrás de uma coluna a não mais de vinte pés dali, longe do homem que estava com a lanterna.
Jason não tinha mais o que pensar; sabia o que fazer. Se havia uma arma mortal, que assim fosse, mas não seria usada nele. Ajoelhado, calculou a distância e procurou enxergar alguns pontos do santuário, tanto para esconderijo quanto para proteção. Saiu, enxugando a chuva do rosto, ciente da arma no cinto, sabendo que não poderia usá-la. Avançou de túmulo em túmulo, de estatueta em estatueta, para a direita; depois foi se dirigindo para a esquerda até que o semicírculo estivesse quase fechado, completo. Estava a quinze pés do mausoléu; o homem com a arma mortal estava em pé, do lado da coluna da esquerda, debaixo do pórtico curto, para evitar a chuva. Afagava a arma como se ela fosse um objeto sexual, abrindo-lhe as dobras, incapaz de resistir de espiar para dentro. Correu a palma da mão sobre as cápsulas, o gesto era obsceno. Agora. Bourne arrastou-se para fora do túmulo, as mãos e os joelhos impulsionando o corpo sobre a grama úmida, até que chegou a seis pés do homem. Levantou-se silenciosamente, uma pantera mortal encolhendo-se à sua frente, uma mão em direção ao cano da arma e a outra em direção à cabeça do homem. Segurou o rifle e a cabeça do homem apertando com os dedos da mão esquerda o cano da arma e com os dedos da mão direita o cabelo do homem. A cabeça ficou virada pan trás, a garganta estendida, o grito foi quase mudo. Bateu a cabeça do homem contra o mármore branco com tanta força que a respiração que se seguiu indicava grave contusão. O homem começou a cair; Jason segurou-o contra a parede, deixando que o corpo escorregasse silenciosamente para o chão, entre as colunas. Revistou o homem. Tirou de um estojo de couro uma Magnum calibre 375 automática, que estava dentro do seu casaco, uma navalha muito afiada que estava numa bainha do cinto e um revólver calibre 22, que estava num coldre, junto ao seu calcanhar. Não parecia alguém mandado pelo Governo, aquilo era o arsenal de um matador profissional. Quebre-lhe os dedos. As palavras voltaram-lhe à lembrança; elas tinham sido ditas por um homem com óculos de aro dourado, dentro de um sedã grande e que corria velozmente pela Steppdeckstrasse. Havia uma razão por trás daquela violência. Jason segurou a mão direita do homem e curvou os seus dedos para trás, até ouvir o estalar de ossos. Depois fez o mesmo com os dedos da mão esquerda, enquanto fechava a boca do homem com o cotovelo entre os seus dentes. Nenhum ruído além do som da chuva, e nenhuma das mãos poderia ser usada para segurar uma arma ou como arma; as próprias armas estavam fora do alcance, nas sombras. Jason levantou-se e pôs o rosto para fora da coluna. O oficial da Treadstone estava agora dirigindo a luz diretamente para a terra à sua frente. Era um sinal estacionário, o facho de luz como um pássaro perdido que devia voltar ao lar. Devia significar outras coisas também, e os minutos seguintes lhe diriam isso. O homem virou-se em direção ao portão, dando um passo, como se tivesse ouvido alguma coisa. E pela primeira vez Bourne viu a bengala, percebeu que ele mancava. O oficial de registro da Treadstone Seventy One era um aleijado... como ele também o era. Jason abaixou-se no prime túmulo, fez a volta por trás e espiou por cima da beirada do mármore. O homem da Treadstone tinha a atenção voltada para os portões. Bourne olhou para o relógio: era 1h27min. Ainda restava algum tempo. Afastou-se do túmulo, colou-se à terra e se arrastou até ficar fora da vista; depois levantou-se e correu, retirando-se até o arco do topo da colina. Ficou parado por um instante, permitindo que a sua respiração e o pulsar do coração voltassem à normalidade. Depois, procurou uma caixa de fósforos no bolso e, protegendo-se da chuva, riscou um fósforo e o acendeu.
— Treadstone? — disse alto o suficiente para ser ouvido lá embaixo. — Delta Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Por que o homem da Treadstone usara Delta, em vez de Caim? DeIta não fazia parte da Treadstone; desaparecera com a Medusa. Jason começou a descer a colina, a chuva fria lhe açoitava o rosto; a mão instintivamente escondida debaixo do paletó, segurando a automática presa no cinto. Foi até o terreno em frente ao branco mausoléu. O homem da Treadstone caminhou capengando em sua direção, depois parou, levantou a lanterna, o facho fez com que Bourne virasse a cabeça. — Faz bastante tempo — disse o oficial aleijado, abaixando a lanterna. — O nome é Conklin, caso você tenha esquecido. — Obrigado. Esqueci. E esta é apenas uma das coisas. — Uma de que coisas? — Que esqueci. — Mas você se lembrou deste lugar. Imaginei que fosse se lembrar mesmo. Li os registros diários de Abbott, foi aqui que vocês se encontraram pela última vez, fizeram a última troca de informações. Durante um enterro do Estado, de um ministro qualquer, não foi? — Não sei. É sobre isto que temos que conversar. Vocês não tiveram notícias minhas nestes últimos seis meses. Há uma explicação. — Realmente? Vamos ouvi-la. — A forma mais simples de comunicar isto é que fui ferido, levei alguns tiros, os efeitos dos ferimentos causaram-me um severo... deslocamento. Desorientação é uma palavra melhor, creio. — Soa bem, O que significa? — Sofri uma perda de memória. Total. Passei meses em uma ilha do Mediterrâneo — no sul de Marselha — sem saber quem eu era ou de onde tinha vindo. Há um médico lá, um inglês chamado Washburn, que manteve os meus registros médicos. Ele pode comprovar o que estou lhe dizendo. — Estou certo que sim — disse Conklin assentindo com a cabeça. — E aposto que estes registros são detalhados. Cristo, você pagou muito bem! — O que quer dizer? — Também temos um registro. Um funcionário do banco de Zurique, que pensou que estava sendo testado pela Treadstone, transferiu um milhão e meio de francos suíços para Marselha, para uma conta impossível de ser localizada. Obrigado por ter dado o nome.
— Isto faz parte do que vocês têm que compreender. Eu não sabia. Ele salvou a minha vida, deixou-me bem de novo. Eu quase estava morto quando fui levado para ele. — E então decidiu que um milhão de dólares era um bom pagamento, não é? Cortesia dos cofres da Treadstone. — Já lhe disse, eu não sabia. Treadstone não existia para mim; e de muitas formas ainda não existe. — Esqueci. Você perdeu a memória. Qual era mesmo a palavra? Desorientação. — Sim, mas não é suficientemente forte. A palavra é amnésia. — Vamos ficar com a desorientação. Porque me parece que você se orientou direto para Zurique, direto para o Gemeinschaft. — Havia um negativo implantado sob a minha pele, perto dos quadris. — Caro que havia, você insistiu neste ponto. Poucos de nós entenderam o porquê. É a melhor segurança que se pode ter. — Não sei do que você está falando. Não pode entender isso? — Claro. Você apenas encontrou um negativo com um número e imediatamente presumiu o nome de Jason Bourne. — Não aconteceu dessa forma. A cada dia eu ia aprendendo alguma coisa, um passo de cada vez, cada dia uma nova revelação. Um funcionário de um hotel me chamou de Bourne; e só fui conhecer o nome Jason no dia em que fui ao banco. — Lá você soube exatamente o que fazer — interrompeu Conklin. — Sem nenhuma hesitação. Entre a entrada e a saída, quatro milhões se foram. — Washburn me disse o que fazer. — Depois uma mulher surgiu, que por coincidência era um gênio das finanças, e lhe disse como desviar o resto. E antes disso, você foi até Chernak na Löwenstrasse e matou três homens que nós não conhecíamos, mas sabíamos muito bem quem eram. E aqui, em Paris, outro bom truque na transferência de uma caminhonete blindada. Outro sócio? Você cobriu todos os rastros, todos os malditos rastros. Até que lhe restou apenas uma coisa para fazer. E você — seu filho da puta —, você fez tudo. — Não pode me ouvir? Esses homens tentaram me matar; estavam à minha procura, desde Marselha. Além disso, honestamente não sei do que você está falando. As coisas me vêm à mente, algumas vezes. Rostos, ruas, edifícios; algumas vezes são apenas imagens que não posso localizar, mas sei que significam alguma coisa, mas não posso me relacionar com elas. E nomes — aparecem alguns nomes, mas sem rostos. Que diabo, eu sou amnésico! Esta é a verdade!
— Um desses nomes não seria Carlos, seria? — Sim, e você bem sabe disto. Este é o ponto; sabe muito mais sobre isto do que eu. Posso recitar mil fatos sobre Carlos, mas não sei por quê. Foi-me dito, por um homem que estava quase a caminho da Ásia, que eu tinha um acordo com a Treadstone. O homem trabalhava para Carlos. Ele disse que Carlos sabe. E que Carlos estava fechando o cerco sobre mim, e que vocês espalharam que eu mudara de lado. Ele não podia entender a estratégia, e eu nada podia lhe dizer. Vocês pensaram que troquei de lado porque não tinham notícias minhas, e eu não podia entrar em contato com vocês porque eu não sabia quem vocês eram. E ainda não sei quem são! — Ou o Monge, suponho. — Sim, sim... o Monge. Seu nome era Abbott. — Muito bom. E o Iatista? Você se lembra do Iatista, não se lembra? E da sua mulher? — Eliot Stevens? — Não. Nada. — Os nomes. Eles estão na minha mente sim. Mas não os rostos. — Ou... Gordon Webb. — Conklin disse o nome calmamente. — O quê? — Bourne sentiu a pontada no peito, depois uma dor pungente, aguda, que passava das têmporas para os olhos. Seus olhos estavam em fogo! Fogo! Explosões e escuridão, ventos fortes e dor... Almanac para Delta! Abandone, abandone! Você vai fazer como foi mandado. Abandone! — Gordon... — Jason ouviu as suas próprias palavras, mas era longe, muito longe, numa ventania distante. Fechou os olhos, que queimavam, e tentou afastar as névoas. Depois abriu os olhos e não ficou surpreso em ver a arma de Conklin apontada para a sua cabeça. — Não sei como fez aquilo, mas conseguiu fazer. A única coisa que lhe sobrou e você fez o que fez. Conseguiu voltar para Nova Iorque e chaciná-los a todos. Matou-os brutalmente, seu filho da puta! Juro por Cristo, eu gostaria de levá-lo de volta e vê-lo amarrado a uma cadeira elétrica, mas não posso. Só posso fazer o mais parecido. Eu mesmo tirarei a sua vida. — Não vou a Nova Iorque há meses. E antes disto não sei — mas não pelo menos nestes últimos seis meses. — Mentiroso! Por que não fez aquele trabalho realmente bem? Por que não realizou bem a sua proeza, de forma a poder ir aos funerais? O do Monge foi há poucos dias; você veria uma porção de velhos amigos. E o do seu irmão! Jesus Poderoso! Você poderia ter acompanhado a esposa dele pela ladeira, saindo da igreja. Poderia até ter feito um discurso elogioso, seria o fim! Pelo menos falar bem do irmão que você matou. — Irmão!?... Pare com isto! Pelo amor de Cristo, pare!
— Porque deveria? Caim está vivo! Nós o fabricamos e ele adquiriu vida! — Não sou Caim. Ele nunca existiu! Eu nunca existi! — Então você sabe! Mentiroso! Bastardo! — Ponha a arma de lado. Estou lhe dizendo, abaixe esta arma! — Não há qualquer chance. Jurei que lhe daria apenas mais dois minutos porque queria ouvir o que você ainda tinha a dizer. Bem, já ouvi tudo e cheira mal, fede. Quem lhe deu este direito? Todos nós perdemos coisas, faz parte do trabalho, e se você não gosta do seu maldito trabalho, sai. Se não consegue se adaptar, falha; foi o que pensei que você fizera, e estava ansioso para passar por cima de você, para convencer os outros a deixarem você falhar! Mas não, você voltou, e virou a sua arma contra nós. — Não! Não é verdade! — Diga isto aos laboratórios técnicos, que têm oito fragmentos de um copo com duas impressões digitais suas. Do dedo indicador e do terceiro da mão direita. Você esteve lá e chacinou cinco pessoas. Você — um deles — puxou as suas armas — plural — e os matou a todos. Um cenário perfeito. Uma estratégia desacreditada. Cápsulas diferentes, múltiplas balas, infiltração. O fim da Treadstone e você caindo fora, livre. — Não, você está errado! Foi Carlos. Não eu, Carlos. Se o que você está dizendo foi na Rua Setenta e Um, foi ele! Ele sabe. Eles sabem. Uma residência na Rua Setenta e Um, número 139. Eles sabem dela! Conklin fez um sinal de cabeça, seus olhos estavam embaçados, havia repugnância neles, que transparecia na luz fraca, através da chuva. — Tão perfeito — disse lentamente. — O principal movente da estratégia estoura-a ao fazer um acordo com o alvo. O que você leva além daqueles quatro milhões? Carlos vai lhe dar imunidade de seu próprio estigma de perseguição? Vocês dois fazem um adorável par! — Isso é loucura! — E muito razoável — completou o homem da Treadstone. — Apenas sete pessoas vivas sabiam daquele endereço antes das sete e meia da noite, na última sexta-feira. Três deles foram mortos, e somos os quatro restantes. Se Carlos o descobriu, apenas uma pessoa poderia ter-lhe contado. Você. — Como poderia? Eu não sabia. E ainda não sei! — Você acabou de dizer. — Conklin agarrou a arma com a mão esquerda; era um prelúdio para atirar, firmando o pé aleijado. — Não faça isto! — Bourne gritou, sabendo que não adiantaria implorar. Girou para a esquerda quando gritou, o pé direito lançando-se contra o pulso que segurava a arma. Che-sah! Esta era a palavra desconhecida, um grito silencioso em sua cabeça. Conklin caiu para trás, atirando para o ar. Jason girou
e abaixou-se, agora chutando com o pé esquerdo a arma, que voou da mão que a segurava. Conklin rolou no chão, os olhos na coluna distante, esperando uma explosão da arma que estouraria, explodiria o seu atacante. Não! O homem da Treadstone rolou de novo. Agora para o lado direito, as feições torcidas, em choque, os olhos selvagens focados sobre... Havia mais alguém! Bourne se agachou lançando-se em diagonal para trás, enquanto quatro tiros vieram em sucessão rápida, três sons de balas ricocheteando no ar. Rolou várias vezes, tirando a automática do cinto. Viu o homem na chuva; uma silhueta levantou-se por trás do túmulo. Atirou duas vezes, o homem caiu. A dez pés dali, Conklin estava jogado no gramado úmido, as duas mãos abertas no chão, tentando pegar o metal de um revólver. Bourne levantou-se e correu; ajoelhou-se ao lado do homem da Treadstone; com uma mão segurava-lhe o cabelo molhado, com a outra a sua automática com o cano encostado no crânio de Conklin. Das colunas ao longe veio um grito prolongado e trêmulo. Um grito que cresceu, aumentou de volume e depois cessou. — É do seu pistoleiro — disse Jason, virando a cabeça de Conklin para o lado. — Treadstone emprega pessoas muito estranhas. Quem era o outro homem? De que lista de mortos você o tirou? — Foi um homem melhor do que você jamais foi — respondeu Conklin, a voz tensa, a chuva brilhando no rosto iluminado pelo facho de luz da lanterna caída a seis pés dali, no chão. — Todos eles são. Todos eles perderam tanto quanto você, mas nunca se viraram contra nós. Podemos contar com eles! — Não importa o que eu disser, você não vai acreditar em mim. Você não quer acreditar em mim! — Porque sei o que você é — o que você fez. Você acabou de confirmar tudo. Pode me matar, mas eles vão pegá-lo. Você é pior do que tudo. Pensa que é especial. Sempre pensou. Vi você depois de Phnom Penh — todo mundo perdeu alguma coisa lá, mas isso não importou. Era somente você, apenas você! Depois na Medusa! Nenhuma regra para Delta! O animal queria apenas matar. É este o tipo que sempre se vira contra os outros. Bem, eu também perdi, mas nunca mudei de lado. Continue! Mate-me! Depois pode voltar para Carlos. Mas quando eu não voltar, eles vão saber. Virão à sua procura e não vão parar até encontrá-lo. Vamos! Atire! Conklin gritava, mas Bourne quase nem podia ouvi-lo. Ouvira, ao contrário, duas palavras, e as pontadas lhe martelavam as têmporas. Phnom Penh, Phnom Penh. A morte nos céus, vinda dos céus. Morte do jovem e da criança. Grasnido de pássaros, barulho de máquinas e o fedor da morte na selva... e um rio. Ele estava novamente cego, em fogo novamente. A seus pés o homem da Treadstone fugira. A sua figura aleijada estava se arrastando em pânico, se arremessando para fora, as mãos tateando a grama úmida. Jason piscou, tentando forçar a mente a voltar ao presente. Então, imediatamente, percebeu que tinha que apontar a sua automática e atirar. Conklin encontrara a sua arma e a apontava para ele. Mas Bourne não podia puxar o gatilho. Jogou-se para a direita, rolando no chão, indo parar nas colunas do mausoléu. Os tiros de Conklin eram selvagens, o aleijado era incapaz de firmar a perna ou a arma. Em seguida, os tiros
pararam e Jason levantou-se, o rosto contra a macia e úmida pedra. Levantou o olhar, a automática apontada; tinha que matar aquele homem, porque aquele homem iria matá-lo, matar Marie, e ligar os dois a Carlos. Conklin cambaleava pateticamente em direção aos portões, virando-se constantemente, a arma apontada. Ia em direção a um carro estacionado na estrada, do lado de fora. Bourne levantou a arma, a figura do aleijado estava na sua mira. Um instante e tudo estaria acabado, seus inimigos da Treadstone estariam mortos e a esperança seria encontrada com esta morte, pois haveria homens razoáveis em Washington. Mas não podia fazer isto, não podia puxar o gatilho. Abaixou a arma e ficou se sentindo desamparado, encostado à coluna de mármore, enquanto Conklin entrava no carro. O carro. Tinha que voltar a Paris. Havia um jeito. Sempre houvera. Ela estava lá! Ele bateu à porta, a mente correndo, analisando os fatos, absorvendo-os e descartando-os tão rapidamente quanto lhe chegavam, uma estratégia estava se desenvolvendo. Marie reconheceu a batida e abriu a porta. — Deus meu, olhe só para você! O que aconteceu? — Não há tempo — disse, entrando ligeiro e indo em direção ao telefone, do outro lado do quarto. — Era uma armadilha. Estão convencidos de que troquei de lado, me vendi a Carlos. — O quê? — Dizem que voei para Nova Iorque na semana passada, na última sexta-feira. E que matei cinco pessoas... Entre eles um irmão. — Jason fechou os olhos por um instante. — Havia um irmão — há um irmão. Não sei, não posso pensar nisso agora. — Você nunca deixou Paris! E pode provar isto! — Como? Oito, dez horas, só isso seria necessário. E oito ou dez horas sem prova é tudo o que eles agora precisam. Quem irá me ajudar? — Eu irei. Você esteve comigo. — Eles pensam que você faz parte disto — disse Bourne, pegando o telefone e discando. — De tudo, do roubo, da troca, de Port Noir, de toda essa maldita história. Ligaram você a mim. Carlos conseguiu maquinar isto, um arranjo de impressões digitais. Cristo! Como conseguiu? O que você está fazendo? Vai telefonar para quem? — O nosso defensor, lembra-se? O único que temos, Vil- hera. A mulher de Villiers. É ela. Vamos tomá-la, arruiná-la, torturá-la se necessário. Mas não vai ser; ela não vai lutar, porque não pode vencer... Maldição, por que ele não atende?
— O telefone particular fica em seu escritório. São três horas da manhã. Ele provavelmente es... — Atendeu! General? É o senhor? — Jason teve que perguntar; a voz do outro lado da linha estava estranhamente calma, mas não com a calma do sono interrompido. — Sim, sou eu, meu jovem amigo. Desculpe-me a demora. Eu estava no andar de cima, com a minha mulher. — É sobre ela que quero falar. Temos que nos movimentar. Agora. Avise a Inteligência francesa, a Interpol e a Embaixada americana, mas diga-lhes para não intervirem até que eu a veja e fale com ela. Temos que conversar. — Acho que não, senhor Bourne... Sim, sei seu nome, meu amigo. Quanto à sua conversa com minha mulher, acho que não será possível. Sabe, acabei de matá-la.
Capítulo33 Jason olhou fixamente para a parede do quarto do hotel, para o revestimento de papel com os desenhos apagados, traços que se encaixavam um no outro, ornamento de contornos sem significado no material já gasto. — Por quê? — perguntou tranqüilamente ao telefone. — Pensei que o senhor havia entendido. — Tentei, meu amigo — disse Villiers. Sua voz não traduzia raiva nem pesar. — Os santos sabem o quanto tentei, mas não pude me controlar. Fiquei olhando para ela... Vi o filho que ela não havia gerado, atrás dela, morto por aquele porco sujo que era o seu mentor. Minha puta era a puta de outro... do animal. Não podia ser diferente e, como fiquei sabendo, não foi. Acho que ela percebeu o ultraje em meus olhos, e os céus sabem que o ultraje estava realmente em meus olhos. — O general fez uma pausa, a lembrança agora lhe em dolorosa. — Ela viu não apenas o ultraje, mas a verdade. Viu que eu sabia. O que ela era, o que foi durante os anos em que passamos juntos. No final, dei-lhe a chance que ia lhe dar, como lhe contei. — De matá-lo? — Sim. E não seria difícil. Porque na gaveta da mesinha de cabeceira que fica entre as nossas camas havia uma arma na gaveta. Ela deitou-se na cama dela, como uma Maia de Goya, esplêndida em sua arrogância, envolvida com os seus pensamentos particulares, como eu estava devorado pelos meus. Abri a gaveta para pegar os fósforos e voltei para a minha cadeira e o cachimbo, deixando-a aberta, o cabo do revólver à mostra. — Foi o meu silêncio, imagino, e o fato de não poder tirar os meus olhos dela que a forçaram a me notar e se concentrar em mim. A tensão entre nós crescera muito e pouca coisa tinha que ser dita para abrir as comportas. E — Deus me ajude — eu disse. Ouvi-me perguntando: “Por que você fez isto?” A acusação estava então completa. Chamei-a de minha puta, a puta que matou o meu filho. — Ela olhou-me espantada por alguns minutos. Os olhos desviaram-se para a gaveta aberta e a arma... e depois para o telefone. Fiquei parado, as brasas do meu cachimbo queimando, soltas... chauffé au rouge. Ela sentou-se na cama, pôs as duas mãos na gaveta aberta e pegou a arma. Não a detive; ao contrário, tive que ouvir tudo dito por ela mesma, ouvir a acusação que me era feita como a que lhe fazia. O que ouvi irá para o túmulo comigo, porque assim restará a honra deixada por mim e por meu filho. Não seremos desprezados pelos que deram muito menos do que nós. Nunca. — General... — Bourne balançou a cabeça, incapaz de pensar claramente, sabendo que teria que esperar um pouco para encontrar o fio dos seus pensamentos. — General, o que aconteceu? Ela lhe disse o meu nome. Como? O senhor tem que me dizer isto. Por favor. — Com prazer. Ela disse que você era um insignificante pistoleiro que queria pisar nos calos de um gigante. Que você era um ladrão de Zurique, um homem a quem o seu próprio povo renegava. — Ela chegou a lhe dizer quem era o meu povo?
— Se disse não ouvi. Eu estava vesgo, surdo, minha raiva era incontrolável. Mas você nada tem a temer. O Capítulo está encerrado, minha vida estará acabada logo que eu der um telefonema. — Não! — gritou Jason. — Não faça isso! Não agora. — Devo. — Por favor. Não faça o jogo da puta de Carlos. Pegue Carlos! Arme uma cilada para Carlos! — Levantando o desprezo para o meu próprio nome ao mentir como essa puta? Manipulado pela cadela desse animal? — Que diabo — e o seu filho? Cinco bastões de dinamite na Rua du Bac! — Deixe-o em paz. Deixe-o em paz. Está acabado. — Não está acabado! Ouça-me! Dê-me um momento, é só isso o que lhe peço. — As imagens na mente de Jason corriam furiosamente pelos seus olhos, chocando-se, suplantando-se umas às outras. Mas estas imagens tinham um significado. Um propósito. Pôde sentir as mãos de Marie em seu braço, segurando-o firmemente, de alguma forma sustentando seu corpo em um ancoradouro de realidade. — Alguém ouviu o tiro? — Não houve tiro. O coup de grâce é mal-entendido nesses tempos. Prefiro a intenção original. Exaltar o sofrimento de um camarada ferido ou de um inimigo respeitável. Não é usado para putas. — O que quer dizer? O senhor disse que a matou. — Estrangulei-a, forçando seus olhos a me olharem enquanto perdia a respiração. — Mas ela tinha a arma apontada para o senhor... — Completamente ineficiente quando os olhos de alguém estão queimando e inflamados pelas brasas de um cachimbo. Agora é indiferente, ela deve ter vencido. — Ela venceu se o senhor deixar ficar como está! Não pode ver isso? Carlos venceu! Ele o arrasou! E o senhor não teve inteligência para fazer outra coisa senão sufocá-la até morrer! E o senhor fala de desprezo? O senhor o está comprando; nada mais restou senão o desprezo! — Por que insiste, senhor Bourne? — perguntou Villiers extenuadamente. — Não quero caridade da sua parte, nem da parte de ninguém. Simplesmente, deixe-me em paz. Aceito as coisas como elas são. O senhor não me ajuda em nada. — Mas poderei, se me ouvir! Apanhe Carlos, cerque Carlos! Quantas vezes terei que dizer isto? É ele quem o senhor quer! Ele é o culpado de tudo! E é ele que quero! Sem ele estou morto. Nós estamos mortos. Pelo amor de Deus, ouça-me! — Gostaria de ajudá-lo, mas não posso. Não poderei, se prefere.
— Pode sim. — As imagens lhe vieram à cabeça. Ele sabia onde estava, para onde ia. O significado e o propósito vieram juntos, ao mesmo tempo. — Inverta a armadilha. Não toque em nada. Deixe tudo como estava. — Não entendo. Como é possível isto? — O senhor não matou a sua mulher. Eu a matei! — Jason! — gritou Marie, segurando-lhe com força o braço. — Sei o que estou fazendo — disse Bourne. — Pela primeira vez, realmente sei o que estou fazendo. É engraçado, mas parece que eu já sabia desde o início. Parc Monceau estava em silêncio, a rua deserta, algumas luzes brilhando no frio, luzes de pórtico, bruxuleando na névoa. Todas as janelas das luxuosas casas estavam escuras, exceto as da residência de André François Villiers, o lendário soldado de Saint Cyr e da Normandia, membro da Assembléia Nacional da França... assassino da própria mulher. As janelas da frente, do andar de cima e do lado esquerdo da varanda tinham uma luz fraca. Era o quarto onde o dono da casa assassinara a dona da casa, onde um velho soldado se deixara guiar pela memória e sufocara a vida da puta de um assassino. Villiers não concordou com nada; ficara muito atordoado para responder qualquer coisa. Mas Jason defendera a sua posição tão enfaticamente que as palavras ecoaram pelo telefone. Apanhe Carlos! Não se entregue por causa da puta do matador! Pegue o homem que matou o seu filho! O homem que pôs cinco bastões de dinamite em um carro na Rua du Bac e dizimou a última linhagem dos Villiers. É ele que o senhor quer. Apanhe-o! Pegar Carlos. Cercar Carlos. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Estava tão claro para ele. Não havia outro modo. No final, seria o começo — como o começo lhe fora revelado. Para sobreviver teria que fazer com que o assassino se rendesse; se falhasse, seria um homem morto. E não haveria mais vida para Marie St. Jacques. Ela seria destruída, presa, e talvez até mesmo assassinada, por um ato de fé que se tornara um ato de amor. A marca de Caim estava nela, o embaraço só seria evitado com a sua retirada. Ela era um frasco de nitroglicerina se equilibrando no alto de um arame esticado no centro de um desconhecido depósito de munição. Usar uma rede. Retirá-la. Uma bala na cabeça neutralizaria os explosivos da sua mente. Ela não poderia ser ouvida! Havia tanta coisa que Villiers tinha que entender, e tão pouco tempo para explicar. A própria explicação era limitada tanto pela memória do que não existia quanto pelas afirmações do velho soldado. Um equilíbrio delicado teria que ser encontrado ao falar com ele, deveriam ser estabelecidos parâmetros quanto ao tempo e às contribuições mais imediatas do general. Jason entendeu; ele pedia a um homem que colocava a sua honra acima de tudo para mentir ao mundo. Para Villiers fazer isto, o motivo teria que ser muito digno. — Apanhe Carlos! Havia uma segunda entrada para o primeiro andar da casa do general, à direita da escada, depois do portão, onde as compras eram entregues para a cozinha térrea. Villiers concordara em deixar o portão
e a porta destrancados. Bourne não se incomodara de dizer ao velho soldado que não tinha importância; ele entraria de qualquer forma, um grau de perigo era intrínseco à sua estratégia. Mas havia o risco de que a casa de Villiers estivesse sendo vigiada, havia boas razões para que Carlos fizesse aquilo, e iguais razões para que não o fizesse. Levando tudo em consideração, o assassino deveria se decidir a ficar tão distante de Angélique Villiers quanto lhe fosse possível, sem se arriscar a que um dos seus homens pudesse ser pego, expondo assim a sua conexão, a conexão de Parc Monceau. Por outro lado, a morta Angélique era sua prima e amante... a única pessoa na face da terra com quem ele se preocupava. Philippe d’Anjou. D’Anjou! É claro que haveria alguém vigiando a casa — ou dois ou dez! Se d’Anjou tivesse saído da França, Carlos poderia presumir o pior; se o homem da Medusa não tivesse ido embora, o assassino iria ficar muito mal. O colonialista estaria perdido, todas as palavras trocadas com Caim seriam reveladas. Onde? Onde estariam os homens de Carlos? Era muito estranho, pensou Jason. Se não houvesse ninguém a postos em Parc Monceau naquela noite, toda a sua estratégia seria inútil. Mas não seria; eles estavam lá. Em um sedã — o mesmo que estivera nos portões do Louvre há doze horas, com os mesmos homens — os matadores que davam cobertura a outros mata dores. O carro estava a cinqüenta pés dali, do lado esquerdo, com total visibilidade da casa de Villiers. Mas estariam aqueles homens deitados no assento, os olhos abertos e alertas a tudo o que lá ocorresse? Bourne não poderia saber, havia automóveis alinhados no meio-fio dos dois lados da rua. Agachou-se nas sombras do prédio da esquina, em diagonal aos dois homens no sedã estacionado. Sabia o que tinha que ser feito, mas não tinha muita certeza de como deveria fazê-lo. Precisava de algo que desviasse a atenção dos militantes de Carlos, visível o bastante para fazer aparecer todos os outros, que deviam estar escondidos na rua, sobre algum telhado ou por trás de alguma janela. Fogo. Que surgisse de repente, longe da casa de Villiers, mas mesmo assim suficientemente próximo e assustador para despertar a rua quieta e deserta, ladeada de árvores. Movimentos... sirenes. Explosivos... explosões. Poderia conseguir isto. Era apenas uma questão de equipamento. Bourne arrastou-se de volta para a esquina e correu em silêncio para a porra seguinte, onde parou e tirou o casaco e o sobretudo. Depois, tirou a camisa e rasgou-a totalmente em tiras. Em seguida voltou a vestir os dois casacos, levantou as lapelas, abotoou o sobretudo, e saiu com a camisa embaixo do braço. Espiou na chuva noturna, examinando os automóveis na rua. Precisava de gasolina, mas estava em Paris e a maioria dos tanques de gasolina dos carros ficava trancada. A maioria, mas não todos; deveria haver um tanque aberto entre os carros enfileirados no meio-fio. Encontrou o que queria, bem à sua frente, acorrentada ao portão. Era uma bicicleta motorizada, maior do que um patinete, menor do que uma bicicleta, O tanque de gasolina era uma bola de metal entre o guidão e o assento. A tampa deveria estar presa com uma corrente, mas não devia haver um cadeado. Oito litros de combustível não eram quarenta; o risco de um roubo tinha que ser bem pensado antes de continuar, e dois galões de gasolina quase nem valiam uma multa de 500 francos. Jason se aproximou da bicicleta, olhou bem para a rua; não havia ninguém, nenhum ruído além dos pingos de chuva batendo no chão. Abriu a tampa do tanque de gasolina da bicicleta, desatarraxando-a com facilidade. Melhor ainda, a abertura era larga, o nível da gasolina estava bem alto, o tanque quase cheio. Recolocou a tampa; não estava pronto ainda para banhar a camisa. Precisava de
outra peça. Encontrou-a na outra esquina, perto de um bueiro. Era uma pedra deslocada, que saíra do seu lugar por causa dos carros que subiam no meio-fio. Usando o salto do sapato, desprendeu-a do meio-fio irregular e a pegou juntamente com um fragmento menor de pedra. Com o fragmento no bolso e a pedra grande na mão, voltou para a bicicleta. Testou o peso da pedra grande... o alcance do braço. Daria, ambos serviriam. Três minutos depois, tirou lentamente a camisa de dentro do tanque de gasolina, o vapor se misturou à chuva, resíduos de óleo cobriram suas mãos. Embrulhou o pano em volta da pedra, torcendo e cruzando as mangas, amarrando-as juntas, com força, segurando o seu míssil no lugar. Estava pronto. Arrastou-se de volta para a beirada do prédio na esquina da rua de Villiers. Os dois homens no sedã ainda estavam abaixados no assento da frente, a atenção voltada pan a casa de Villiers. Atrás do sedã estavam estacionados outros três canos, um Mercedes pequeno, uma limusine marrom-escura e um Bentley. Bem à frente de Jason, depois do Bentley, havia uma construção de pedra branca com as janelas esmaltadas de preto. Uma luz no corredor interno iluminava o batente da janela e uma escada; do lado esquerdo ficava uma sala de jantar; podia ver as cadeiras e uma comprida mesa na luz refletida de um espelho rococó em um aparador ao lado. As janelas daquela sala de jantar de frente para uma rua original e rica de Paris serviriam ao seu propósito. Bourne pôs a mão no bolso e puxou a pedra; era quase um quarto do tamanho da pedra que estava embrulhada na camisa embebida com a gasolina, mas serviria ao seu propósito. Movimentou-se pouco a pouco pelo canto da construção, levantou os braços e atirou a pedra o mais longe que pôde por cima do sedã. O barulho ecoou por toda a rua silenciosa. E seguiram-se outros ruídos, enquanto a pedra batia contra a capota de um carro e depois caía ao chão. Os dois homens do sedã ficaram de sobreaviso. O que estava ao lado do motorista abriu a porta do carro e jogou-se ao chão, com uma arma na mão. O motorista abaixou o vidro e depois ligou os faróis, o facho de luz refletiu-se nos metais cromados do carro à sua frente. Foi um ato completamente estúpido, servindo apenas para denotar o medo dos homem que vigiavam Parc Monceau. Agora. Jason atravessou a rua correndo, com a atenção presa aos dois homens, que cobriam os olhos com as mãos, tentando enxergar através do brilho da luz que se refletia contra eles. Conseguiu chegar até a carroceria do Bentley, com a pedra embaixo do braço e um punhado de fósforos na mão direita. Agachou-se, riscou os fósforos, colocou a pedra grande no chão e depois segurou-a por uma das mangas esticadas. Segurou os fósforos acesos por baixo do pano embebido em gasolina, que explodiu em chamas imediatamente. Levantou-se rapidamente, girando a pedra pela manga, pulou para cima da calçada arremessando com toda força seu míssil em direção à gigantesca esquadria de madeira da janela, e correu pela beirada da construção quando ouviu o impacto. O barulho de vidro do foi uma súbita intrusão na quietude da rua batida de chuva. Bourne correu para a esquerda pela avenida estreita, depois voltou para o quarteirão de Villiers, escondendo-se
novamente as sombras. O fogo se espalhou, impulsionado pelo vento que entrava pela janela quebrada, atingindo rapidamente o forro das cortinas. Trinta segundos depois a sala era um forno flamejante, o fogo engrandecido pelo reflexo do grande espelho. Gritos, luzes que se acendiam nas janelas mais próximas e logo em seguida nas mais distantes. Passou-se um minuto e o caos se alastrou. A porta da casa em chamas foi aberta rapidamente e apareceram alguns vultos — um homem de mais idade em roupas de dormir, uma mulher de negligê e com um chinelo só — em pânico. Outras portas se abriram, outros vultos apareceram, sonolentos, tentando compreender o caos reinante, alguns corriam para a casa tomada pelo fogo — um vizinho estava com problemas. Jason correu em diagonal atravessando o cruzamento, era mais um vulto correndo na multidão que se formava rapidamente. Parou onde estivera há alguns minutos, na beirada da construção da esquina, e lá ficou, imóvel, tentando ver os militantes de Carlos. Ele estivera certo, os dois homens não eram os únicos guardas postados em Parc Monceau. Havia quatro homens agora, perto do sedã, conversando rapidamente. Não, cinco. Um outro apareceu repentinamente pela calçada, indo para perto dos outros quatro. Ouviu sirenes. Soando cada vez mais alto, aproximando-se. Os cinco homens estavam alarmados. Uma decisão teria que ser tomada; todos eles não poderiam ficar onde estavam. Talvez procurassem testemunhas para serem ouvidas sobre o incidente. Um acordo. Ficaria apenas um dos homens — o quinto. Ele assentiu com um sinal de cabeça e atravessou rapidamente a rua indo para o lado da casa de Villiers. Os outros entraram no carro e enquanto os carros de bombeiros dobravam a esquina, o sedã fazia a curva saindo do lugar onde estivera estacionado e correndo em direção oposta à do carro vermelho. Apenas um obstáculo sobrara: o quinto homem. Jason fez a volta na construção, aparecendo a meio-caminho entre a esquina e a casa de Villiers. Agora era apenas uma questão de tempo e choque. De repente, Bourne começou a correr, uma corrida igual à das pessoas que corriam em direção à casa em fogo, a cabeça em direção à esquina, correndo parcialmente em direção oposta, uma figura que passava despercebida pelo comportamento dos demais, apenas a direção era conflitante. Passou pelo homem sem ser notado — mas ele seria notado se continuasse até a escadaria do portão da casa de Villiers e a abrisse. O homem olhava para lá e para cá em várias direções, preocupado, espantado, talvez até amedrontado pelo fato de ser agora a única patrulha na rua. Estava de pé em frente a uma cerca baixa; de outro portão, de outra escada de outra casa luxuosa de Parc Monceau. Jason parou, deu dois passos rápidos em direção ao homem, depois girou nos calcanhares, equilibrando-se no pé esquerdo e jogou o outro pé contra o meio do corpo do homem, atirando-o para trás do cercado de ferro. O homem gritou enquanto caía no estreito corredor de concreto. Bourne pulou o cercado, as juntas das mãos enrijecidas, os calcanhares impulsionando o corpo para a frente. Aterrissou sobre o peito do homem. O impacto quebrou- lhe as costelas, as juntas duras apertaram a garganta do homem. O militante de Carlos estava aleijado. E só voltaria a si muito depois de alguém levá-lo para um hospital. Jason revistou-o; havia apenas uma única arma em um coldre em volta do peito. Bourne tirou-a e colocou-a no bolso do seu sobretudo. Ele a daria para Villiers. Villiers. O caminho agora estava limpo.
Subiu os degraus até o terceiro andar. Na metade do caminho pôde ver uma nesga de luz acima da porta do quarto; do outro lado daquela porta estava um velho que era a sua única esperança. Se alguma vez em toda a sua vida — lembrada ou esquecida — ele teve que ser convincente, era agora. E sua convicção era real — não havia espaço para o camaleão agora. Tudo em que ele acreditava baseavase em um único fato. Carlos teria que vir à sua procura. Esta era a verdade, a armadilha. Chegou ao patamar e virou à esquerda, em direção à porta do quarto. Parou por um instante, tentando diminuir o eco do coração batendo descompassadamente no peito — crescendo, ficando mais alto, as batidas mais rápidas. Parte da verdade, não toda ela. Nenhuma invenção, apenas uma omissão. Um acordo... um contrato... com um grupo de homens — homens honrados, que estavam à procura de Carlos. Isso era tudo o que Villiers tinha que saber, era tudo o que tinha que aceitar. Ele não poderia saber que lidava com um amnésico, do contrário não saberia se era ou não um homem desonrado. O lendário soldado de Saint-Cyr, Argélia e Normandia não aceitaria isso. Não agora, aqui, no final de sua vida. Oh, Deus, o equilíbrio era tênue! O limite entre a crença e a descrença era tão fino... tão fino quanto o era para o corpo cujo nome não era Jason Bourne. Abriu a porta e entrou — para o inferno particular de um homem velho. Do lado de fora, além das cortinas drapejadas, as sirenes esbravejavam e as pessoas gritavam. Espectadores em uma arena escondida, zombando do desconhecido, desconhecendo a sua causa insondável. Jason fechou a porta e ficou parado. O quarto grande estava escurecido, repleto de sombras; a única luz vinha de uma mesa de cabeceira. Seus olhos foram apresentados a uma cena que desejaria não ter visto. Villiers arrastara uma cadeira de espaldar alto, de escrivaninha, para o quarto e estava sentado nela aos pés da cama, olhando fixamente para a mulher morta em cima das cobertas. A cabeça bronzeada de Angélique Villiers estava deitada sobre um travesseiro, os olhos esbugalhados, explodindo das órbitas. A garganta estava intumescida, a carne avermelhada, a contusão se espalhara por todo o pescoço. O corpo ainda estava torcido, em contraste com a cabeça reta, contorcido em luta furiosa, as pernas longas e desnudas estendidas, os quadris virados, o negligê aberto e rasgado, os seios saltando da seda — até mesmo na morte havia sensualidade nela. Não fora feita nenhuma tentativa de esconder a mulher devassa. O velho soldado estava sentado, parecendo uma criança assustada, punida por uma ação insignificante, o sugestivo crime lhe escapava da razão atormentada, e talvez até de si próprio. Ele desviou o olhar da mulher morta e olhou para Bourne. — O que aconteceu lá fora? — perguntou em voz baixa. — Os homens estavam vigiando a sua casa. Os homens de Carlos, cinco deles. Provoquei um incêndio no quarteirão; ninguém se feriu. Só ficou um homem; tirei-o de ação. — É engenhoso, senhor Bourne. — Sou engenhoso — concordou Jason. — Mas eles logo estarão de volta. O fogo logo será apagado e eles voltarão; antes disso, se Carlos manejar tudo, e acho que ele vai conseguir. Se conseguir,
ele logo mandará alguém para cá. Ele mesmo não virá, é claro, mas um dos seus pistoleiros logo estará aqui. Quando este homem o encontrar... e ela. .. eles o matarão. Carlos a perde, mas ainda assim sai ganhando. Ele ganha um segundo tempo; ele o usou através dela e no final ainda o matará. Ele irá embora, e o senhor estará morto. As pessoas poderão tirar a conclusão que quiserem, mas acho que não vão elogiá-lo. — Você é muito preciso. Seguro do seu julgamento. — Sei do que estou falando. Eu preferiria não ter que dizer o que vou dizer agora, mas não há tempo para sentimentos. — Não me restou nenhum. Diga o que tem a dizer. — Sua esposa lhe disse que era francesa, não é? — Sim. Do sul. A família dela era de Loures Barouse, perto da fronteira espanhola. Ela veio para Paris há alguns anos. Vivia com uma tia. O que há sobre isto? — O senhor alguma vez esteve com a família dela? — Não. — Eles não vieram para o seu casamento? — Levando em conta uma série de coisas, achamos que seria melhor não pedir que viessem. A diferença de idade poderia lhes perturbar. — E quanto à tia, aqui em Paris? — Ela morreu antes que eu conhecesse Angélique. Qual é o problema? — Sua esposa não era francesa. Duvido até que tivesse uma tia aqui em Paris, e a família dela não veio de Loures Barouse, embora a fronteira espanhola tenha alguma implicação. Podia encobrir uma porção de coisas, explicar uma porção de coisas. — Que quer dizer? — Ela era venezuelana. Prima de Carlos em primeiro grau e sua amante desde os quatorze anos. Formavam um par há muito tempo. Disseram-me que ela era a única pessoa no mundo por quem ele se preocupava. — Uma cadela. — O instrumento de um assassino. Fico imaginando quantos alvos ela conseguiu derrubar. Quantos homens valiosos estão mortos por sua causa! — Não posso matá-la duas vezes.
— Pode usá-la. Usar a sua morte. — Que loucura é esta? — A única loucura será o senhor jogar fora a sua própria vida. Carlos ganhará; continuará a usar suas armas... e bastões de dinamite... e o senhor será apenas mais um número. Outra morte, somada a sua longa lista de cadáveres distintos. Isso sim é que é loucura. — E você é um homem razoável? Está assumindo a culpa por um crime que não cometeu! Pela morte de uma cadela? Perseguido por uma morte que não é sua? — Isto faz parte. Parte essencial, na verdade. — Não me fale de insanidade ou loucura, meu jovem. Peço-lhe, saia. O que você me contou me dá a coragem de enfrentar Deus Todo-Poderoso. Se alguma morte pode ser justificada, é esta, e feita pelas minhas próprias mãos. Olharei para os olhos de Cristo e jurarei isto. — Está escrevendo a sua morte — disse Jason, percebendo pela primeira vez o volume de uma arma no bolso do paletó do velho. — Não irei a julgamento, se é isto que está pensando. — Oh, isto é perfeito, general! O próprio Carlos não poderia ter inventado nada melhor. Nem vai precisar gastar um movimento sequer; ele nem mesmo terá que usar a própria arma. Mas as pessoas que contam saberão que ele fez isto, que foi ele quem causou isto tudo. — Os que contam de nada saberão. Une affaire de coeur... une grave maladie... Não estou preocupado com as línguas dos assassinos e ladrões. — E se eu disser a verdade? Contar por que o senhor a matou? — Quem o ouviria? Mesmo que sobrevivesse para poder falar. Não sou tolo, senhor Bourne. O senhor está fugindo de mais gente além de Carlos. Está sendo procurado por muitos, não por apenas um. Já me disse isto. Não me disse o seu nome... Para a minha própria segurança, disse. Quando, e se isto tudo terminar, você disse que seria eu quem não me importaria de ser visto com você. Estas não são palavras de um homem em quem se pode confiar. — O senhor confiou em mim. — Eu lhe disse por que — disse Villiers, desviando o olhar, olhando para a mulher morta. — Estava em seus olhos. — A verdade? — A verdade. — Então olhe para mim agora. A verdade ainda está lá. Naquela estrada para Nanterre, o senhor me disse que ouviria o que tinha a dizer porque eu o deixei viver. Estou tentando lhe salvar a vida
novamente. O senhor pode sair e continuar a viver livremente, incólume, lutando pelas coisas que o senhor diz que lhe são importantes, que foram importantes para o seu filho. O senhor pode vencer!... Não me entenda mal, não estou tentando ser nobre ou generoso. O senhor estará vivo e se fizer o que lhe pedi poderei permanecer vivo. Esta é a única forma de ficar livre. O velho soldado levantou os olhos. — Por quê? — Eu lhe disse que queria Carlos porque alguma coisa me foi tirada, uma coisa muito necessária para a minha vida e a minha própria sanidade mental. Ele foi a causa disto. Esta é a verdade — acredito que esta é a verdade — mas não toda a verdade. Há outras pessoas envolvidas, algumas decentes, outras nem tanto, e o meu acordo com elas é pegar Carlos, cercar Carlos. Querem o que o senhor quer. Mas aconteceu alguma coisa que não posso explicar — nem vou tentar — e estas pessoas pensam que os traí. Pensam que fiz um pacto com Carlos, que os roubei e matei outras pessoas que eram os meus contatos. Têm homens por todos os lugares e as ordens são para me executar imediatamente. O senhor estava certo: estou fugindo de outras pessoas além de Carlos. Estou sendo procurado por homens a quem não conheço e não posso ver. Por motivos errados. Não fiz o que eles dizem que fiz, mas ninguém quer me ouvir. Não tenho pacto algum com Carlos — o senhor sabe que não tenho. — Acredito em você. Não há nada que me impeça de fazer uma chamada telefônica em seu favor. Devo-lhe isto. — Como? O que o senhor vai dizer? “O homem que conheço como Jason Bourne não tem pacto algum com Carlos. Sei disso porque ele me desmascarou a amante de Carlos, que era a minha própria esposa, a esposa a quem matei para que não trouxesse a desonra para o meu nome. Estou pronto para chamar a Sûreté e confessar o meu crime — embora, é claro, eu não vá lhes contar por que a matei. Ou por que vou me matar”... É isto, general? É isto o que o senhor vai dizer? O velho olhou em silêncio para Bourne, a contradição fundamental ficara-lhe clara. — Então não posso lhe ajudar. — Ótimo. Muito bom. Carlos ganha tudo. Ela ganha. O senhor perde. O seu filho perde também. Continue — chame a polícia, depois encoste o cano da arma na boca e se mate com um tiro na cabeça. Continue! É o que o senhor quer! Mate-se, deite-se e morra! O senhor não presta para mais nada. É um velho cheio de autopiedade, velho! Deus sabe que o senhor não é mesmo páreo para Carlos. Não é páreo para o homem que pôs cinco bastões de dinamite na Rua du Bac e matou o seu filho. As mãos de Villiers começaram a tremer. O tremor se espalhou por toda a cabeça. — Não faça isto. Estou lhe dizendo, não faça isto. — Dizendo a mim? Quer dizer que está me dando uma ordem? O pequeno velho com os imensos botões de metal está me dando uma ordem? Muito bem, esqueça-a! Não obedeço a homens como o senhor! Porque vocês são umas fraudes. São piores do que todas as pessoas que matam. Pelo menos eles têm estômago para fazer o que dizem que vão fazer! Vocês não! Tudo o que têm é empáfia. Palavras vazias e lugares-comuns. Deite-se e morra, velho! Mas não me dê uma ordem! Villiers soltou as mãos e levantou-se abruptamente da cadeira, o corpo todo agora tremendo —
Eu lhe disse. Chega! — Não estou interessado no que me diz. Eu estava certo quando o encontrei pela primeira vez. Você pertence a Carlos. Você foi o seu lacaio em vida e agora vai ser o seu lacaio na morte. O rosto do velho soldado estava contorcido de dor. Ele puxou a arma, o gesto era patético; a ameaça, no entanto, era real. — Já matei muitos homens no meu tempo. Na minha profissão era inevitável, quase sempre perturbador. Não quero matá-lo agora, mas eu o matarei se não respeitar os meus desejos. Deixe-me. Saia desta casa. — Isso é espantoso! Você deve ser uma ligação muito importante de Carlos. Você me mata, ele ganha por vantagem! — Jason deu um passo à frente, ciente do fato de que este era o primeiro movimento que fazia desde que entrara na sala. Viu os olhos de Villiers se arregalarem; a arma estremeceu, a sombra oscilava projetada na parede. Uma pequena pressão e o gatilho seria ativado, a bala encontraria o seu alvo. Porque, apesar da loucura do momento, a mão que empunhava aquela arma passara a vida toda segurando aquele aço; o gesto seria certeiro. Se ele quisesse. Este era o risco que Bourne tinha que correr. Sem Villiers, nada mais restava; o velho tinha que entender isto. Jason, de repente, gritou: — Vá em frente! Atire. Mate-me. Siga as ordens de Carlos! Você é um soldado. Tem que cumprir as ordens. Leve-as adiante. O tremor da mão de Villiers aumentou, as juntas dos dedos ficaram mais brancas quando a arma foi levantada com o cano apontando para a cabeça de Bourne. Em seguida Jason ouviu o sussurro que saía da garganta do velho. — Vous êtes un soldat... arrêtez... arrêtez. — O quê? — Sou um soldado. Alguém me disse isto muito recentemente, uma pessoa que lhe é muito cara. — Villiers falou tranqüilamente. — Ela envergonhou um velho guerreiro ao lembrá-lo de quem ele era... quem ele tinha sido. “On dit que vous êtes un géant. Je le crois.” Ela teve a graça, a bondade de me dizer isto também. Fora-lhe dito que eu era um gigante, e ela acreditava nisto. Ela estava errada — Deus Poderoso, ela estava errada — mas devo tentar. — André Vililers abaixou a arma, havia dignidade naquela submissão. A dignidade de um soldado. De um gigante. — O que quer que eu faça? Jason voltou a respirar. — Que force Carlos a vir ao meu encalço. Mas não aqui, não em Paris. Nem mesmo na França. — Onde, então? Jason ficou onde estava. — Pode me tirar do país? Preciso lhe dizer, estou sendo procurado. Meu nome e minha descrição, a esta altura, já devem estar em todos os balcões do serviço de imigração da Europa. — Pelas razões errada — Pelas razões erradas.
— Acredito em você. Há muitas formas. O Conselho Militar tem meios e fará o que eu e pedir — Com uma identidade falsa? Sem lhes dizer por quê? — A minha palavra é suficiente. Ganhei-a por merecimento. — Outra pergunta. Esse seu ajudante, de quem o senhor falou: o senhor confia nele — realmente confia nele? — Pela minha vida. Acima de todos os homens. — E pela vida de outra pessoa? A pessoa que o senhor corretamente disse que me era muito cara? — Naturalmente. Por quê? Vai viajar sozinho? — Tenho que viajar sozinho. Ela não me deixará ir. — Mas você tem que lhe dizer alguma coisa. — Direi. Que estou escondido em Paris, ou em Bruxelas, ou em Amsterdã. Cidades onde Carlos opera. Mas ela tem que ser tirada de lá. O nosso carro foi encontrado em Montmartre. Os homens de Carlos estão dando buscas em cada rua, cada apartamento, cada hotel. O senhor está trabalhando comigo agora; seu ajudante poderá levá-la para o campo — ela ficará salva lá. Direi isto a ela. — Tenho que fazer uma pergunta, agora O que pode acontecer se você não voltar? Bourne tentou afastar o tom de súplica em sua voz. — Terei tempo no avião. Escreverei tudo o que aconteceu, tudo de que me... lembrar. Enviarei para o senhor e o senhor tomará as decisões. Com ela. Ela o chamou de gigante. Tome as decisões certas. Proteja-a. — “Vous êtes un soldat... arrêtez.” Você tem a minha pala- na. Ela não sofrerá nada. — Isto é tudo que posso lhe pedir. Villiers jogou a arma sobre a cama, que foi cair entre as pernas retorcidas da mulher morta; o velho soldado tossiu de repente, desdenhosamente. A pose de soldado voltara. — Agora, às coisas práticas, meu jovem lobo — disse. A autoridade lhe voltara desajeitadamente, mas definida. — Qual é a sua estratégia? — Para começar, o senhor está em estado de colapso, mais do que choque. É um autômato, caminhando ao léu, no escuro, seguindo instruções que não entende, mas tem que obedecer. — Não é muito diferente da realidade, não acha? — interrompeu Villiers. — Antes que um jovem com verdade nos olhos tivesse me forçado a ouvi-lo. Mas como este estado pode ser provocado? E por quê? — Tudo o que o senhor sabe — tudo de que se lembra — é que um homem irrompeu na sua
casa durante o fogo e bateu com um revólver na sua cabeça; o senhor ficou inconsciente. Quando acordou, encontrou a sua esposa morta, estrangulada, com um bilhete perto do corpo. É o que está escrito no bilhete que o deixa fora de si. — E o que seria? — perguntou o velho soldado cautelosamente. — A verdade — disse Jason. — A verdade que o senhor nunca pode permitir que ninguém saiba. O que ela era de Carlos, o que ele era dela. O assassino que escreveu a nota deixou o número de um telefone, dizendo-lhe que o senhor poderia confirmar o que está escrito. Logo que estiver ciente, pode destruir o bilhete e relatar o assassinato da forma que quiser. Mas, por lhe dizer a verdade — por ter matado a mulher que fez parte da morte do seu filho —, ele quer que o senhor deixe uma mensagem escrita. — Para Carlos? — Não. Ele mandará um contato. — Obrigado por isto. Eu não estaria muito certo de poder continuar, se soubesse quem ele era. — A mensagem chegará a ele. — Qual é? — Escrevê-la-ei para o senhor; o senhor poderá entregá-la ao homem que ele enviar. Tem que ser exato, tanto em relação ao que diz quanto em relação ao que não diz. — Bourne olhou para a mulher morta, para o inchaço da sua garganta. — Tem um pouco de álcool? — Uma bebida? — Não. Álcool comum. Perfume serve. — Tenho álcool na prateleira de remédios. — Poderia pegar para mim? E também uma toalha, por favor. — O que vai fazer? — Colocar as minhas mãos onde estiveram as suas. Se por acaso forem fazer alguma perícia, embora eu ache que ninguém vá interrogá-lo... Enquanto faço isto, telefone para quem tem que me ajudar a sair do país. O tempo é importante. Tenho que estar a caminho antes que o senhor telefone para o mensageiro de Carlos. E bem antes de chamar a polícia. Eles vigiarão os aeroportos. — Posso me retardar até o amanhecer, imagino. O estado de choque de um velho, como você disse. Não mais do que isso. Para onde você vai? — Para Nova Iorque. Pode arranjar? Tenho um passaporte que me identifica como um homem chamado George Washburn. É um trabalho bem-feito.
— E torna o meu bem mais fácil. Você terá um visto diplomático. Livre nos dois lados do Atlântico. — Como um cidadão inglês? O passaporte é britânico. — Se for um arranjo da OTAN, sim. Canais de Conselheiros... Você pode ser parte de um grupo Anglo-Americano engajado em negociações militares. Favorecemos o seu retorno para os Estados Unidos para instruções mais detalhadas. Não é incomum, e o suficiente para fazê-lo passar pelos dois serviços de imigração. — Bom. Já revi os horários. Há um vôo às sete horas da manhã, da Air France, para o Kennedy. — Você estará nele. — O velho fez uma pausa; ainda não terminara. Deu um passo em direção a Jason. Por que Nova Iorque? O que o deixa assim tão certo de que Carlos o seguirá até Nova Iorque? — Duas perguntas com respostas diferentes — disse Jason. — Tenho que entregá-lo onde ele me marcou por matar quatro homens e uma mulher a quem não conheço... um desses homens me era muito chegado, era parte de mim, acho. — Não o entendo. — Não tenho certeza de me entender, também. Mas não há tempo. Tudo estará explicado no que vou lhe escrever do avião. Tenho que provar que Carlos sabia. Um prédio em Nova Iorque, onde tudo aconteceu. Eles têm que entender. Ele sabia do edifício. Confie em mim. — Confio. A segunda pergunta, então. Por que ele virá à sua procura? Jason olhou de novo para a mulher morta sobre a cama. — Por instinto, talvez. Matei a única pessoa sobre a face da terra com quem ele se importava. Se ela fosse uma outra pessoa e Carlos a matasse, eu o seguiria à sua procura pelo mundo todo, até que o encontrasse. — Ele pode ser mais prático. Acho que foi isso que você me disse. — Há mais alguma coisa — respondeu Jason, desviando os olhos de Angélique Villiers. — Ele não tem nada a perder, só a ganhar. Ninguém sabe como ele é, mas ele me conhece de vista. Ainda assim, ele não sabe do meu estado mental. Interrompeu-me a vida, isolou-me, transformou-me em alguém que nunca fui. Talvez ele tenha sido bem-sucedido; e talvez eu seja louco, insano. Deus sabe que tê-la matado foi uma loucura. Meus medos são irracionais. Serei irracional? Um homem irracional, um homem louco é um homem em pânico, e deve ser morto. — O seu medo é irracional? Você pode ser morto? — Não sei. Sei apenas que não tenho escolha. — Ele não tinha. No final fora como no começo. Apanhe Carlos. Cerque Carlos. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. O homem e o mito por fim eram um só, as imagens e a realidade se fundiam. Não havia outro jeito. Dez minutos haviam se passado desde que ele telefonara para Marie, mentira para ela, e ouvira a
calma aceitação da sua voz, sabendo que isso significava que ela precisava de tempo para pensar. Ela não acreditara nele, mas implicitamente acreditava nele. Ela também não tinha outra escolha. E ele não poderia reduzir a sua dor; não houvera tempo, não havia tempo. Tudo agora estava em movimento, Villiers estava no andar de baixo telefonando para um número de emergência do Conselho Militar da França, tentando conseguir que um homem com passaporte falso pudesse voar de Paris com a categoria diplomática. Em menos de três horas um homem estaria voando por cima do Atlântico, se aproximando do aniversário de sua própria execução. Era a chave; era a armadilha. Fora o último ato irracional, insanidade, na ordem daquela data. Bourne ficou parado perto da escrivaninha. Depôs a caneta e estudou as palavras que escrevera no bloco de papel de uma mulher morta, Eram as palavras que um velho espantado e alquebrado devia repetir ao telefone para um contato desconhecido que viria pedir o papel para entregar a Ilich Ramirez Sanchez. Matei a sua cadela devassa e voltarei para matá-lo. Existem setenta e uma ruas nas selvas. Uma selva tão densa como Tam Quan,. mas havia um caminho que você não conheceu, um cofre no porão do qual você nada sabia — como nunca soube acerca de mim no dia da minha execução, há onze anos. Outro homem sabia e você o matou. Não faz mal. Naquela caixa-forte estão os documentos que me deixarão livre. Você pensou que me tornei Caim sem esta última proteção? Washington não ousará tocar-me! Parece justo que no dia da morte de Bourne, Caim pegue os documentos que lhe garantam uma vida muito longa. Você marcou Caim. Agora marco você. Voltarei e você se unirá a esta puta. Delta Jason pôs o bilhete sobre a escrivaninha e se aproximou da mulher morta, O álcool já estava seco, a garganta inchada, preparada. Inclinou-se e abriu os dedos, colocando as mãos onde outras mãos tinham sido postas. Loucura.
Capítulo34 A luz matinal iluminou as torres da igreja em Levallois-Per ret, a noroeste de Paris. A manhã de março estava fria, a chuva da noite anterior dera lugar à névoa matinal. Algumas mulheres idosas, de volta para os seus apartamentos vindas do trabalho noturno em turnos de limpeza das propriedades da cidade, arrastavam-se para dentro e para fora das portas de bronze, segurando os livros de oração. Orações começando, orações terminando e depois um precioso sono antes de seguir para a labuta da sobrevivência do dia. Junto com as velhas, estavam uns homens malvestidos na sua maioria velhos também, alguns pateticamente novos — com os seus sobretudos, procurando o calor da igreja; as garrafas nos bolsos, e depois a perspectiva de um precioso esquecimento e outro dia para sobreviver. Um dos velhos, no entanto, não acompanhava o movimento de arrebatamento dos demais. Era um velho apressado. Havia relutância — talvez medo — em rosto vincado e encovado, mas nenhuma hesitação em seus movimentos ao subir os degraus e cruzar as portas, passar pelas velas chamejantes e ir diretamente para o corredor esquerdo da igreja. Era uma hora estranha para procurar a confissão; no entanto, aquele velho mendigo foi direto para o primeiro confessionário, abriu as cortinas e entrou. — Angelus Domini... — Trouxe? — A pergunta lhe foi sussurrada lá de dentro. A silhueta vestida de padre atrás da cortina tremia de raiva. — Sim. Ele me entregou. Estava como se fosse uma pessoa em estado de estupor, chorando, pedindo-me para sair. Queimou o bilhete de Caim no seu coração e diz que negará tudo se uma única palavra for mencionada. — O velho atirou as páginas do papel escrito por baixo da cortina. — Ele usou o bloco dela... — O sussurro do assassino irrompeu lá dentro. A mão se delineou nas sombras, amparando a cabeça; um grito mudo de angústia foi ouvido por trás da cortina. — Peço-lhe que se lembre, Carlos — implorou o mendigo. — O mensageiro não é responsável pelas notícias que traz. Eu podia ter-me recusado a ouvir o trazê-las para você. — Como? Por quê.. — Lavier. Ele a seguiu a Parc Monceau, depois seguiu as duas até a igreja. Vi-o em Neuilly-surSeine quando estava fazendo a sua cobertura. Contei-lhe isto. — Sei. Mas por quê? Ele poderia tê-la usado de cem maneiras diferentes! Contra mim! Por que isto? — Está no seu bilhete. Ficou louco. Ele foi muito longe, Carlos. Isto acontece; tenho visto. Um homem com duplo registro, sem as suas fontes e os seus controles; não tem ninguém para confirmar qual era a sua primeira tarefa. Os dois lados querem o seu cadáver. Está confinado a ponto de nem mais saber quem é. — Ele sabe... — O sussurro foi pronunciado com fúria controlada. — Ao assinar o nome Delta
ele está me dizendo que sabe. Nós dois sabemos de onde vem, de onde ele vem. O mendigo fez uma pausa. — Se isto é verdade, então ele ainda é perigoso para você. Ele está certo. Washington não o tocará. Pode não querer reconhecê-lo, mas afastará os seus carrascos. Talvez eles até mesmo sejam forçados a lhe oferecer um privilégio ou dois como pagamento pelo seu silêncio. — Pelos papéis de que ele fala? — perguntou o assassino. — Sim. Nos velhos tempos — em Berlim, Praga; Viena — isto era chamado “pagamento final”. Bourne usa “proteção final”, uma variação menor. São papéis controlados por uma primeira fonte de controle e pelo próprio inflitrador para serem usados caso a estratégia não dê certo e o enviado seja morto, sem outras ruas se abrindo para ele. — Não é uma coisa que você tenha estudado em Novgorod; os soviéticos não usam estes acordos. Os desertores soviéticos, no entanto, insistem muito neles. — Eles são incriminadores, então? — Até certo ponto sim. Em geral para quem foi usado. Por que os distúrbios devem ser sempre evitados. Carreiras, muitas carreiras são destruídas por isto. Mas não sou eu quem deve lhe dizer isto. Você tem usado esta técnica brilhantemente. — “Setenta e uma ruas na selva”... — Lia o papel que tinha nas mãos, impondo uma calma gélida à voz. — “Uma selva tão densa quanto Tam Quan...“ Desta vez a execução será feita como foi programada. Jason Bourne não deixará esta Tam Quan vivo. Sob qualquer outro nome que estiver escondido Caim será morto e Delta morrerá pelo que fez. Angélique — você tem a minha palavra. — O encantamento cessou, a mente do assassino logo foi em direção ao prático. — Villiers tinha alguma idéia de quando Bourne deixou a sua casa? — Ele não sabia. Já lhe disse, ele quase nem estava lúcido, estava em estado de choque desde o telefonema. — Não faz mal. Os primeiros vôos para os Estados Unidos começaram há uma hora, Ele deverá estar em um deles. Estarei em Nova Iorque com ele, e desta vez não o perderei de vista. Minha faca tem um corte de navalha. Descascarei o seu rosto; os americanos terão de volta o seu Caim, mas sem o rosto! Então, podem dar a este Bourne, a este Deita, o nome que quiserem. O telefone de listas azuis tocou na mesa de Alexander Conklin. Era um ruído abafado, o som grave dava-lhe um tom lúgubre. O telefone de listras azuis era a linha que ligava Conklin diretamente com as salas dos computadores e os bancos de dados. Ninguém no escritório podia atender às chamadas. O executivo da Agência Central de Inteligência apareceu subitamente, capengando, abrindo a porta, desacostumado com a bengala que lhe fora providenciada pelos G-2, SHAPE, de Bruxelas, a noite anterior, quando comandara um transporte militar para o Campo Andrews, em Maryland. Jogou com raiva a bengala enquanto ia até o telefone. Seus olhos estavam injetados pela falta de sono, a respiração era curta; o homem responsável pela dissolução da Treadstone estava exausto. Estivera em
comunicação confidencial com doze canais de operações clandestinas — em Washington e algumas cidades do outro lado do oceano —, tentando desfazer a loucura das últimas vinte e quatro horas. Espalhou a informação que encontrara nos arquivos para todos os postos da Europa e colocou agentes no eixo Paris-Londres-Amsterdã. Bourne estava vivo e era muito perigoso; tentara matar os seus controles em D.C.; poderia estar em qualquer lugar de Paris nas próximas dez horas. Todos os aeroportos e estações de trem deviam ser vigiados, todas as redes clandestinas deviam ser ativadas. Era preciso encontrá-lo! Matá-lo! — Sim? — Conklin segurou-se na mesa e pegou o telefone. — Aqui é do Computador Dock 12 — disse uma voz masculina. — Dispomos de informação. Pelo menos o Estado não tem qualquer registro sobre o assunto. — O quê, por Cristo? — O nome que nos deu há quatro horas. Washburn. — O que há com ele? — Um George P. Washburn foi liberado de Paris para Nova Iorque em um vôo da Air France esta manhã. Washburn é um nome muito comum; pode ser apenas um homem de negócios com conexões, mas estava assinalado no mostrador, e como os papéis eram da diplomacia da OTAN, confirmamos com o Estado. Nunca ouviram falar dele. Não há ninguém com o nome de Washburn envolvido em negociações com a OTAN ou com o governo francês. — Então como ele foi liberado? Quem lhe deu o visto de saída diplomático? — Voltamos a checar com Paris. Não foi fácil. Aparentemente, foi um acordo do Conselho Militar. É um grupo grande. — O Conselho? Desde quando liberam o nosso pessoal? — Não tem que ser o “nosso” pessoal ou o pessoal “deles”; pode ser qualquer um. É apenas uma cortesia do país que hospeda, e era um vôo francês. É uma forma de arranjar lugar decente em um avião lotado. Incidentalmente, o passaporte de Washburn nem mesmo é americano. É inglês. Há um médico, um inglês chamado Washburn... Era ele! Era DeIta. E o Conselho francês coopera com ele. Mas por que Nova Iorque? O que existia em Nova Iorque para ele? E quem assim tão bem-colocado em Paris poderia ter atendido Delta? O que ele lhes dissera? Oh, Cristo! Até que ponto ele lhes contara? — Quando o vôo chegou? — perguntou Conklin. — Dez e trinta e sete da manhã. Há pouco mais de uma hora. — Está bem — respondeu o homem cujo pé fora decepado na Medusa, enquanto com dificuldade dava a volta na mesa para sentar-se em sua cadeira. — Você já passou a notícia. Agora
quero que isto seja riscado dos rolos. Apague tudo. Tudo o que me passou. Está claro? — Entendido, senhor. Apagar, senhor. Conklin desligou o telefone. Nova Iorque. Nova Iorque? Não Washington, mas Nova Iorque! Não havia mais nada em Nova Iorque. Deita sabia disso. Se ele estivesse à procura de alguém da Treadstone — se ele estava à procura dele — teria tomado um avião diretamente para Dulles. O que havia em Nova Iorque? E por que Delta usara deliberadamente o nome Washburn? Era o mesmo que telegrafar informando uma estratégia; ele sabia que o nome seria achado mais cedo ou mais tarde.., mais tarde... Claro, depois que ele tivesse entrado! Delta estava dizendo que usaria de força para o que restara da Treadstone. Estava a ponto de expor não apenas a operação Treadstone, mas só Deus poderia saber aonde ele queria chegar. Possivelmente, todas as redes que ele usara como Caim, os postos de escuta e ondas ersatz, consulados que não passavam de estações de espionagem eletrônica... Até mesmo o espectro sangrento da Medusa. Sua conexão com o Conselho era uma prova para a Treadstone do quanto ele já se infiltrara. O fato de poder chegar a um grupo tão seleto de estrategistas indicava que nada mais poderia detê-lo. Maldição, detê-lo para quê? Qual era a sua intenção? Tinha milhões; podia ter sumido! Conklin balançou a cabeça, lembrando-se. Houve um tempo em que poderia ter deixado Delta desaparecer; dissera isto para si mesmo há doze horas, num cemitério nos arredores de Paris. Um homem só pedir tanto, e ninguém melhor do que Conklin sabia disto: outrora um dos melhores oficiais que detinham os segredos de campo da comunidade da inteligência. Apenas neste caso; o hipócrita lugar-comum de ainda estar vivo crescia amargo e apodrecido a cada dia. Dependia do que ele fora antes e no que se transformara com a sua deformidade. Apenas quando... Mas Delta não desaparecera! Voltara com declarações insanas, exigências insanas... táticas loucas, que nenhum funcionário do serviço secreto poderia sequer imaginar. Mas não importava toda a infor mação explosiva que tinha ou até que ponto se infiltrara, nenhum homem são voltava a um campo minado cercado pelos inimigos. E toda a chantagem do mundo não seria capaz de trazê-lo de volta... Nenhum homem são. Nenhum homem são. Conklin encostou-se no espaldar da cadeira. Não sou Caim. Ele nunca foi. Nunca fui! Não estive em Nova Iorque... Foi Carlos. Não eu, mas Carlos! Se o que você está dizendo aconteceu na Rua Setenta e Um foi ele. Ele sabe! Mas Delta estivera na casa de granito marrom da Rua Setenta e Um. Impressões — terceiro dedo e do indicador, mão direita. E o método de transporte estava agora explicado: Air France, com a cobertura do Conselho... O fato: Carlos jamais teria sabido. As coisas me vêm... rostos, ruas, prédios. Imagens que não posso situar... Sei de mil fatos sobre Carlos, mas não sei por quê! Conklin fechou os olhos. Havia uma frase, uma simples frase de código usada no começo da Treadstone. Qual era? Vinha da Medusa... Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Era essa. Caim para Carlos. Delta-Bourne transformara-se em Caim, a isca para atrair Carlos.
Conklin abriu os olhos. Jason Bourne devia ficar no lugar de Ilich Ramirez Sanchez. Esta era a estratégia da Treadstone Seventy One. Era a chave de toda aquela decepção, a paralaxe que lançaria Carlos para fora da sua posição e o exporia às suas vistas. Bourne. Jason Bourne. Um homem totalmente desconhecido, um nome enterrado por mais de uma década, um pedaço de homem deixado abandonado na selva. Mas ele existira; isto também fazia parte da estratégia. Conklin separou as pastas sobre a mesa, até que encontrou a que procurava. Não tinha título, apenas uma inicial e dois números, seguidos de um X preto, indicando que era a única pasta que continha as origens da Treadstone. T-71 X. O nascimento da Treadstone Seventy One. Abriu-a, receoso de ver o que já sabia estar lá. Data da execução. Setor de Tam Quan. 25 de março... Os olhos de Conklin moveram-se para o calendário sobre a mesa. 24 de março. — Oh, meu Deus — sussurrou. E pegou o telefone. O Dr. Morris Panov atravessou as portas duplas da ala de psiquiatria, no terceiro andar do Anexo Naval de Bethesda, e se aproximou do balcão das enfermeiras. Sorriu para a auxiliar uniformizada que revisava cartões de registro sob o rigoroso olhar da enfermeira-chefe do andar, em pé ao seu lado. Aparentemente, a jovem estagiária tirara do lugar a ficha de um paciente — se não o próprio paciente — e sua chefe não queria que acontecesse aquilo de novo. — Não deixe que a carranca de Annie a engane — disse Panov para a aturdida moça. — Por baixo destes olhos frios e desumanos há um coração de puro granito. Na verdade, escapou do quinto andar há duas semanas, mas todos nós temos medo de contar isso a alguém. A ajudante riu-se; a enfermeira balançou a cabeça, exasperada. O telefone tocou na mesa atrás do balcão. — Pode atender, sim, querida — disse Annie para a jovem. A auxiliar assentiu com a cabeça e retirou-se para a mesa. A enfermeira virou-se para Panov. — Doutor Mo, como posso colocar alguma coisa na cabeça dessas meninas com o senhor por perto? — Com amor, querida Annie. Com amor. Mas não perca as correntes da sua bicicleta. — O senhor é incorrigível. Diga-me, como vai o seu paciente na ala Cinco-A? Sei que está muito preocupado com ele. — Ainda estou.
— Ouvi dizer que passou a noite inteira acordado. — Havia um filme às três da manhã na televisão que eu queria ver. — Não faça isto, Mo — disse maternalmente a enfermeira. — Você é muito jovem para acabar lá. — E talvez muito velho para evitar, Annie. Mas obrigado. De repente Panov e a enfermeira constataram que ele estava sendo chamado. A estagiária, de olhos arregalados, falava ao microfone. — Dr. Panov, por favor. Telefone para... — Sou o Dr. Panov — disse o psiquiatra em um murmúrio a sotto voce para a moça. — Não queremos que ninguém por aqui fique sabendo. Annie Donovan que aí está é na verdade a minha mãe que veio da Polônia. Quem é? A estagiária olhou para o crachá em seu paletó branco; depois piscou e respondeu: — Um Sr. Alexander Conklin, senhor. — Oh? — Panov ficou surpreso. Alex Conklin fora seu paciente por cinco anos, entrando e tendo alta, até que os dois concordaram que ele se ajustara tão bem quanto podia — o que na realidade não era muito. Havia tanta coisa, e era tão pouca, que podiam fazer por eles. O que Conklin queria devia ser relativamente sério para que o estivesse chamando em Bethesda e não em seu consultório particular. — Onde posso atender, Annie? — Na Sala Um — disse a enfermeira, apontando para o outro lado do corredor. — Está vazia. Transfiro a ligação. Panov foi até a porta; um sentimento inquietante assaltou-o. — Preciso de umas respostas rápidas, Mo — disse Conklin, a voz tensa. — Não sou muito bom em respostas rápidas, Alex. Por que não aparece para me ver esta tarde? — Não é para mim. É para outra pessoa. Possivelmente. — Sem jogos, por favor. Pensei que já tivéssemos superado isto. — Sem jogos. Esta é uma emergência Quatro-Zero, e preciso de ajuda. — Quatro-Zero? Chame um dos homens do seu quadro. Nunca pedi este tipo de trabalho. — Não posso. É muito difícil. — Então é melhor rezar e pedir a Deus.
— Mo, por favor! Quero apenas confirmar possibilidades, o resto eu mesmo posso arranjar. E não tenho nem mais cinco segundos a perder. Um homem pode estar às voltas por aqui, pronto para matar alguns fantasmas, ou o que ele acha que é fantasma. Já matou de verdade muita gente importante e não tenho certeza se ele realmente sabe disto. Ajude-me, ajude-o! — Se puder. Continue. — Um homem é colocado em uma situação de extrema tensão e de multa inconstância por um longo período e durante todo o tempo é mantido oculto, disfarçado. O próprio disfarce é uma isca — muito visível e muito negativa, e a pressão para que mantenha esta aparência é constante. O propósito é fazer aparecer um alvo semelhante à isca, ao se conseguir convencer o alvo de que a isca é uma ameaça e forçá-lo a vir às claras... Está me acompanhando até aqui? — Até aqui — disse Panov. — Você diz que sempre houve pressão constante sobre a isca para que ela se mantivesse com um perfil negativo e bem visível, aparente. Qual era a situação do ambiente? — Tão bruta quanto você possa imaginar. — Por quanto tempo? — Três anos. — Bom Deus? — disse o psiquiatra. — Sem tréguas? — Nenhuma. Vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Três anos. Sem ser ele mesmo. — Quando vocês, seus tolos, vão aprender? Até mesmo os prisioneiros nos piores campos podem ser eles mesmos e conversar com outras pessoas, que também são elas mesmas... — Panov parou, apreendendo as próprias palavras e o significado do que Conklin queria. — É este o problema, não é? — Não tenho muita certeza — respondeu o funcionário do serviço de inteligência. — Está um pouco nublado, confuso, até mesmo contraditório, O que quero perguntar é o seguinte: um homem sob tais circunstâncias pode começar a... acreditar que ele é a isca, assumir as suas características, absorver o dossiê estudado a ponto de acreditar que é ele? — A resposta para esta pergunta é tão óbvia que estou surpreso que você a tenha feito. É claro que pode. Provavelmente o fará. É uma representação insuportavelmente prolongada, que não pode ser suportada, a menos que a crença passe a fazer parte da sua realidade cotidiana. Um ator que nunca sai do palco numa peça que não termina. Dia após dia, noite após noite. — O médico parou novamente, depois continuou com cuidado. — Mas esta não é verdadeiramente a sua pergunta, é? — Não —. respondeu Conklin. — Vou mais adiante. Além da isca. Preciso fazer isto; é a única coisa que tem sentido. — Espere um minuto — interrompeu Panov rispidamente. É melhor parar por aqui, porque não
estou confirmando nenhum diagnóstico às cegas. Não para o que você está querendo. De forma alguma, Charlie. Isto lhe dá uma licença pela qual não me responsabilizarei — com ou sem honorários de consulta. — “De forma alguma... Charlie.” Por que disse isto, Mo? — O que está querendo dizer com por que eu disse isto? É uma expressão. Ouço-a todo tempo. Garotos em sujos jeans na esquina; jogadores em meus salões preferidos. — Como sabe o que estou querendo? — disse o homem da CIA. — Porque tive que ler os livros, e você não é muito sutil. Está quase descrevendo um caso clássico de esquizofrenia paranóica de múltiplas personalidades. Não é que o seu homem esteja apenas assumindo o papel da isca, mas a própria isca está transferindo a sua identidade para a pessoa a quem procura. O alvo. É isto o que você tem, Alex. Está me dizendo que o seu homem é três pessoas: ele mesmo, a isca e o alvo. E repito. De forma alguma, Charlie. Não confirmarei nada disto, nem remotamente, sem um exame completo. Isso pode lhe dar direitos que você não tem: três razões para se livrar. De forma alguma! — Não estou lhe pedindo que confirme coisa alguma! Só quero saber se é possível. Pelo amor de Cristo, Mo, há um homem muito experiente em assassinatos rondando por aqui com uma arma, matando gente que ele diz desconhecer mas com quem trabalhou há três anos. Ele nega que esteve em determinado lugar, quando suas próprias impressões digitais provam o contrário! Diz que algumas imagens lhe vêm à mente — rostos que não consegue localizar, nomes que ouviu mas não sabe onde. Diz que nunca foi a isca; nunca foi ele! Mas foi! É! Isto é possível? Isto é tudo o que quero saber. Poderiam a tensão; o tempo e as pressões diárias perturbarem-no deste jeito? Dividi-lo em três? Panov prendeu a respiração por um momento. — É possível. — disse calmamente. — Se os fatos que você relata são precisos, é possível. Isto é tudo o que lhe direi, porque há muitas outras possibilidades. — Obrigado — e Conklin fez uma pausa. — Uma última pergunta. Digamos que havia uma data — um mês e um dia — muito significativa para o dossiê do enganado, o dossiê da isca. — Tem que ser mais específico. — Serei. Era a data em que o homem cuja identidade foi tomada para isca foi morto. — Então, obviamente não é parte do dossiê de trabalho, mas é do conhecimento do seu homem. Estou acompanhando? — Sim, ele a conhecia. Digamos que esteve lá. Ele se lembraria? — Não como isca. — Mas como um dos outros três?
— Presumindo que o alvo também conhecesse este dado, ou que a tivesse comunicado através da sua transferência, sim. — Há também um lugar onde a estratégia foi formulada, onde a isca foi criada. Se o nosso homem estiver nas proximidades desse lugar e se a data da morte estiver próxima, ele será levado para lá? Esta necessidade apareceria, e se tornaria importante para ele? — Sim, se estivesse associada com o lugar original da morte. Porque a isca nasceu lá. É possível. Isto dependeria de quem ele foi naquele momento. — Supondo que ele foi o alvo? — E conhecesse o lugar? — Sim, porque uma outra parte dele o conhecia. — Então, ele será levado para lá. Seria uma compulsão inconsciente. — Por quê? — Para matar a isca. Ele mataria tudo o que estivesse à vista, mas o objetivo principal seria a isca. Ele mesmo. Alexander Conklin recolocou o fone no gancho, o inexistente pulsava, os pensamentos tão convolutos que teve que fechar os olhos novamente para encontrar forças. Estivera errado em Paris... em um cemitério nos arredores de Paris. Desejara matar um homem pelas razões erradas, porque as verdadeiras razões estavam acima da sua compreensão. Lidava com um homem enlouquecido. Alguém cujas aflições não eram explicadas em vinte anos de treino, mas compreensíveis se se pensasse nas dores e perdas, nas intermináveis ondas de violência... todas findando em futilidade. Ninguém sabia verdadeiramente nada. Nada fazia sentido. Um Carlos fora cercado, morto hoje, e outro tomaria seu lugar. Por que fizemos isto... David? David. Por fim digo o seu nome. Já fomos amigos antes, David. . . Delta. Conheci a sua esposa e os seus filhos. Bebemos juntos algumas vezes, em postos avançados da Ásia. Foi o melhor oficial de serviço estrangeiro no Oriente. E todos sabiam disso. Ia ser a chave da nova política, o que estava sempre à mão, perto. E de repente aconteceu aquilo. A morte veio dos céus, no Mekong. E você mudou, David. Todos nós perdemos, mas só você se tornou Delta. Na Medusa. Eu não conhecia você assim tão bem — drinques e um ou dois jantares não fazem uma amizade tão pr xima —, mas poucos de nós nos transformamos em animais. Você se tornou um, Delta. E agora tem que morrer. Ninguém mais pode suportá-lo. Nenhum de nós, — Deixe-me, por favor — disse o General Villiers para o seu ajudante, enquanto se sentava na frente de Marie St. Jacques, em um café de Montmartre. O auxiliar assentiu com a cabeça e se dirigiu a uma mesa afastada do reservado; ele se afastaria, mas ficaria de guarda. O exausto velho soldado olhou para Marie. — Por que insistiu que eu viesse para cá? Ele queria que você ficasse longe de Paris. Deilhe a minha palavra.
— Longe de Paris e longe da corrida — disse Marie, comovida com a visão do rosto perturbado do velho. — Sinto muito. Não quero ser outra carga para o senhor. Ouvi as notícias pelo rádio. — É insano — disse Villiers, pegando o brandy que seu auxiliar pedira para ele. — Três horas com a polícia, vivendo uma terrível mentira, condenando um homem por um crime que era meu. — A descrição foi precisa, fantasticamente precisa. Ninguém poderia deixar de reconhecê-lo. — Ele mesmo me deu os dados. Sentou-se em frente ao espelho de minha mulher e me disse o que devia dizer, enquanto olhava o seu próprio rosto da maneira mais estranha possível. Disse que era o único jeito. Carlos só poderia se convencer se eu fosse à polícia e iniciasse uma caça a ele. Ele estava certo, é claro. — Ele estava certo — concordou Marie. — Mas não está em Paris, Bruxelas ou Amsterdã. — Como disse? — Quero que me diga para onde ele foi. — Ele mesmo lhe disse. — Ele mentiu para mim. — Como pode ter certeza? — Porque sei quando ele me diz a verdade. Compreende, nós dois a reconhecemos. — Vocês dois...? Acho que não estou entendendo. — Eu sei. Eu tinha certeza de que ele não lhe contara. Quando mentiu para mim ao telefone, dizendo as coisas que disse com toda aquela hesitação, sabia que eu percebia que era tudo mentira. Não consegui entender. Não consegui juntar as coisas, até que ouvi as notícias pelo rádio. As suas e a outra. Aquela descrição... tão completa, tão total, até mesmo da cicatriz em sua têmpora esquerda. Então percebi. Ele não ia ficar em Paris nem perto de Paris. Estava indo para longe — para onde esta descrição pudesse significar alguma coisa — para onde Carlos pudesse ser conduzido e entregue às pessoas com quem Jason tem um acordo. Estou certa? Villiers colocou o copo na mesa. — Dei-lhe a minha palavra. Você deve ser levada para um lugar seguro no campo. Não entendo as coisas que está dizendo. — Então, vou tentar ser mais clara — disse Marie, inclinando-se para a frente. — Havia um outro noticiário no rádio, um que obviamente o senhor não ouviu porque estava com a polícia ou no seu retiro. Esta manhã dois homens foram encontrados mortos em um cemitério próximo a Rambouillet. Um deles é um assassino muito conhecido em Saint-Gervais. O outro foi identificado como um antigo funcionário do Serviço de Inteligência americano, residente em Paris; um homem muito controverso, que matou um jornalista no Vietnã e teve a possibilidade de escolher: retirar-se do Exército ou enfrentar uma corte marcial.
— Está dizendo que estes incidentes têm relação? — perguntou o velho. — Jason recebeu instruções da Embaixada Americana para ir ao cemitério na noite passada encontrar-se com um homem que veio de Washington. — Washington? — Sim. Seu acordo era feito com um pequeno grupo de homens do Serviço de Inteligência americano. Tentaram matá-lo na noite passada; acham que devem matá-lo. — Bom Deus, por quê? — Porque não podem confiar nele. Não sabem o que ele fez nem onde esteve durante um longo tempo. E ele também não pode lhes contar. Marie fez uma pausa, fechando os olhos por um instante. — Ele não sabe quem é. Como não sabe quem são eles; e os homens de Washington pagaram outros homens para matá-lo ontem à noite. Este homem não quis ouvi-lo; pensam que ele os traiu, roubou-lhes milhões, matou homens dos quais ele nunca sequer ouviu falar. E não é verdade. Mas ele não tem nenhuma resposta clara, também. É um homem com apenas fragmentos de memória, e cada fragmento o condena e acusa. É quase totalmente amnésico. O rosto enrugado de Villiers estava atônito, os olhos atormentados pela lembrança. — “Por todas as razões erradas...” Foi isso que ele me disse. “Eles têm homens em todos os lugares... as ordens são para me executar imediatamente. Estou sendo procurado por homens a quem não conheço e não posso ver. Por todas as razões erradas.” — Por todas as razões erradas — enfatizou Marie, estendendo a mão por cima da mesa e tocando o braço do homem. — E eles têm homens espalhados por todos os cantos, homens com ordens de matá-lo assim que o encontrarem. Onde quer que vá, estarão à sua espera. — Como saberão para onde ele está indo? — Ele lhes dirá. Faz parte de uma estratégia. E quando fizer isto, eles o matarão. Está entrando em sua própria armadilha. Por alguns momentos Villiers ficou em silêncio, sentindo-se culpado. Por fim falou num sussurro. — Deus Poderoso, o que fiz? — O que achou que estava certo. O que ele lhe convenceu de que era o certo. Não pode se culpar; nem a ele, na verdade. — Ele disse que escreveria tudo o que acontecera com ele, tudo de que se lembrasse... Como esta afirmação lhe deve ter sido dolorosa! Não posso esperar por essa carta, senhorita. Nós não podemos. Preciso saber de tudo o que tem a me dizer. Agora. — O que podemos fazer? — Ir até a Embaixada Americana, ao embaixador. Agora. Tudo.
Marie St. Jacques recolheu a mão lentamente enquanto se recostava. Os cabelos ruivos espalharam-se no espaldar estofado da banqueta. Os olhos estavam distantes, enevoados com as lágrimas que se formavam. — Ele me contou que sua vida começou em uma pequena ilha do Mediterrâneo chamada Île de Port Noir... O Secretário de Estado entrou furioso na sala do diretor de Operações Consulares, a seção do departamento que lidava com as atividades clandestinas. Caminhou a passos largos pela sala e foi até a mesa do atônito diretor, que se levantou à vista do poderoso homem, com uma expressão que era um misto de choque e espanto. — Senhor Secretário?... Não recebi nenhuma mensagem do seu escritório, senhor. Eu teria vindo aqui imediatamente. O Secretário de Estado jogou um bloco oficial de papel amarelo sobre a mesa do diretor. Na parte de cima da folha havia uma coluna de seis nomes, escritos com traços grossos por uma caneta de ponta de feltro. BOURNE DELTA MEDUSA CAIM CARLOS TREADSTONE — O que significa isto? — perguntou o secretário. — Que diabo significa isto?! O diretor da Op-Cons inclinou-se por cima da mesa. — Não sei, senhor. São nomes, é claro. Um código para o alfabeto — a letra D — e uma referência à Medusa; isto ainda é uma informação classificada como confidencial, mas já ouvi falar dela. E suponho que o nome “Carlos” deve se referir ao assassino; quisera que pudéssemos saber mais sobre ele. Mas nunca ouvi “Bourne” nem “Caim” nem “Treadstone”. — Então, venha até o meu escritório e ouça a gravação de uma conversa telefônica que acabei de ter com Paris. Aí então ficará sabendo de tudo sobre estes nomes! — explodiu o Secretário de Estado. — Estão gravadas coisas extraordinárias naquela fita, inclusive assassinatos em Ottawa e Paris e alguns acordos muito estranhos que o nosso Primeiro-Secretário teve na Rua Montaigne com um homem da CIA. Há também graves mentiras sobre as autoridades de governos estrangeiros e sobre as nossas próprias unidades do serviço de inteligência — e ainda sobre os jornais europeus — tudo sem o consentimento ou o conhecimento do Departamento de Estado! Isso é um logro global espalhando desinformações por mais países do que sequer ouso pensar. Estamos providenciando o vôo, em custódia diplomática, de uma mulher canadense — uma economista do Governo de Ottawa, que está sendo procurada por assassinato em Zurique. Fomos forçados a dar asilo a uma fugitiva, a subverter as leis —
porque se esta mulher diz a verdade, estamos fodidos! Quero saber o que está acontecendo. Cancele tudo que estiver em sua agenda — tudo mesmo. Você vai passar o resto do dia, e a noite toda se for preciso, pro curando esta maldita coisa. Há um homem rondando por aqui, um homem que não sabe quem é, mas que tem mais informação confidencial na cabeça do que os computadores do serviço de inteligência! Passava da meia-noite quando um exausto diretor das Operações Consulares conseguiu fazer conexão; quase a esquecera. O Primeiro-Secretário, na Embaixada de Paris, sob a ameaça de demissão instantânea, lhe comunicara o nome de Alexander Conklin. Mas Conklin não pôde ser encontrado em lugar algum. Ele retornara a Washington em um jato militar que saíra de Bruxelas naquela manhã e que desaparecera de Langley às 13h22min, sem deixar um número de telefone — nem mesmo um número de emergência — onde pudesse ser encontrado. E pelo que o diretor fora informado sobre Conklin, esta sua omissão era extraordinária. O homem da CIA era comumente conhecido como tubarão-assassino; comandava estratégias individuais pelo mundo todo, onde quer que houvesse suspeita de traição e deserção. Vários homens em muitas estações precisariam de sua aprovação ou desaprovação a qualquer momento. Não era lógico que ele rompesse este fio por doze horas. Como também não era normal que os seus registros de telefonemas tivessem sido apagados; não havia nada dos últimos dois dias — e a Agência Central de Inteligência tinha regulamentos específicos para estes registros. Investigações sobre responsabilidades eram a nova ordem. No entanto, o diretor da Op-Cons percebera um fato: Conklin fizera parte da Medusa. Usando como ameaça a vingança do Departamento de Estado, o diretor pedira um circuito fechado de leitura dos registros de telefonemas de Conklin feitos nas últimas cinco semanas. Relutantemente a CIA liberou a projeção dos registros, e o diretor passara duas horas em frente a uma tela, instruindo os operadores em Langley a repetirem as fitas até que ele mandasse parar. Oitenta e seis caracteres haviam sido acionados, e a palavra Treadstone mencionada; nenhum respondera. Então o diretor voltou-se para as possibilidades; havia um militar que ele não considerara devido a sua notória antipatia pela CIA. Mas Conklin lhe telefonara duas vezes em doze minutos há uma semana. O diretor apelou para as suas fontes no Pentágono e descobriu o que procurava: Medusa! O General-de-Brigada Irwin Arthur Crawford, oficial de carreira, encarregado do banco de dados do Serviço de Inteligência do Exército, antigo comandante em Saigon ligado às operações secretas — ainda classificadas como confidenciais. Medusa. O diretor usou o aparelho da sala de reuniões, que não era ligado à mesa telefônica. Discou para a casa do general em Fairfax, e quando o telefone tocou pela quarta vez Crawford atendeu. O homem do Departamento de Estado se identificou e perguntou se o general se importava em ligar para o Estado, ficando então sob verificação. — Por que eu iria fazer isto? — Refere-se a um assunto relativo à Treadstone — Telefonar-lhe-ei então.
Dezoito segundos depois ele telefonou, e nos dois minutos seguintes o diretor passara a informação do Estado. — Não há nada lá que desconheçamos — disse o general. — Desde o começo há um comitê de controle para isto; o Escritório Oval recebeu um relatório uma semana depois da inauguração. Nosso objetivo foi procurar seguir as regras, pode estar certo disso. — Queria poder acreditar nisso — respondeu o homem do Estado. — Isto está relacionado com aquele negócio em Nova Iorque há uma semana? Elliot Stevens — aquele Major Webb e David Abbott? Onde as circunstâncias foram, podemos dizer, consideravelmente alteradas? — Você está ciente das alterações? — Sou o chefe Op-Cons, general. — Sim, claro que estaria... Stevens não era casado. O resto é compreensível. Roubo e homicídio eram preferíveis. A resposta é afirmativa. — Compreendo... Seu homem, Bourne, voou para Nova Iorque ontem de manhã. — Sei. Sabemos — isto é, Conklin e eu. Somos os herdeiros. — Esteve em contato com Conklin? — Falei com ele pela última vez por volta das 13 horas. Ligação não registrada, reservada. Ele insistiu nisso, francamente. — Ele desapareceu de Langley. Não há qualquer número onde possa ser encontrado. — Sei disso também. Nem tente. Com o devido respeito, diga ao Secretário para afastar-se disso. Você também, não se envolva. — Estamos envolvidos, general. Estamos trazendo a canadense através de um visto diplomático. — Pelo amor de Deus, por quê? — Fomos forçados, ela nos obrigou. — Então mantenha-a isolada. Você tem que fazer isto! Ela é nossa solução, seremos responsáveis. — Acho melhor se explicar. — Estamos lidando com um homem doente. Um esquizofrênico com múltiplas personalidades. Ele é um pelotão de fuzilamento ambulante; poderia matar uma dúzia de pessoas inocentes de uma só vez, uma só explosão na cabeça, e ele nem saberia — Como o senhor sabe?
—. Porque ele já matou. Aquele massacre em Nova Iorque — foi ele. Matou Stevens, o Monge, Webb — até mesmo Webb — e mais dois outros que você não conheceu. Agora entendemos. Ele não foi responsável, mas isso não altera nada. Deixe-o por nossa conta. Para Conklin. — Bourne? — Sim. Temos provas. Impressões digitais. Elas foram confirmadas pelo Bureau. Foi ele. — Um homem de vocês deixaria impressões digitais? — Deixou. — Não poderia — disse o homem do Departamento de Estado. — O quê? — Diga-me, de onde surgiu esta conclusão de insanidade? Esta esquizofrenia múltipla ou sei lá como você a chama? — Conklin conversou com um psiquiatra — um dos melhores —, uma autoridade em abalos nervosos por estresse. Alex descreveu todo o seu histórico — e foi brutal. O médico confirmou nossas suspeitas. As suspeitas de Conklin. — Confirmou-as? — perguntou o diretor espantado. — Sim. — Baseado no que Conklin disse? No que ele achou que sabia? — Não há outra explicação. Deixe-o conosco. É um problema nosso. — O senhor é um tolo, general. Devia se ater ao seu banco de dados ou talvez a uma artilharia mais primitiva. — Sinto-me ressentido. — Ressinta-se à vontade. Se o senhor fez o que penso, não vai lhe restar muita coisa mais além de ressentimento. — Explique-se — disse Crawford rispidíssimo. — O senhor não está lidando com um homem louco, nem insano, ou com qualquer dessas esquizofrenias múltiplas — e duvido que o senhor entenda alguma coisa mais sobre isso do que eu. O senhor está lidando com uni homem amnésico, um homem que vem tentando há meses descobrir quem é e de onde vem. E de acordo com uma gravação de telefonema que temos aqui, estamos sabendo que ele tentou lhe dizer isto, tentou dizer a Conklin, mas Conklin não ouviu. Nenhum de vocês ouviu... Vocês mandam um homem para fora em trabalho especial, secreto, durante três anos — três anos — para prender Carlos, e quando a estratégia falha, presumem o pior!
— Amnésia?... Não, você está enganado! Falei com Conklin; ele ouviu. Você não entende, nós dois conhecíamos... — Não quero ouvir o seu nome! — interrompeu o diretor das Operações Consulares. O general fez uma pausa: — Nós dois conhecíamos... Bourne... há anos. Acho que você sabe de onde; já me disse o nome. Foi o mais estranho homem a quem já conheci, tão perto da paranóia quanto qualquer um naquelas circunstâncias. Aceitou missões — riscos — que nenhum homem são aceitaria. Mesmo assim, nunca pediu nada. Estava tão cheio de ódio! — E isso o tomou candidato a uma prisão psiquiátrica dez anos mais tarde? — Sete anos — corrigiu Crawford. — Tentei avisar que selecionasse alguém da Treadstone. Mas o Monge disse que ele era o melhor. Eu não podia discutir isso, não em termos de habilidade. Mas fiz as minhas objeções. Ele era psicologicamente um caso limite; e sabíamos por quê. Eu estava certo. Ainda afirmo isso. — O senhor não vai afirmar nada, general. Vai cair do cavalo. Porque o Monge estava certo. O seu homem é o melhor, com ou sem memória. Ele está nos trazendo Carlos, entregando-o diretamente para vocês em frente às suas portas. Isto é, vai entregá-lo, a não ser que vocês o matem. — A respiração baixa e brusca de Crawford era precisamente o que o diretor temia ouvir. Continuou. — Não pode entrar em contato com Conklin, pode? — perguntou. — Não. — Ele fracassou, não foi? Tomou suas próprias providências, desviou pagamentos através de terceiros desconhecidos entre si, com fontes impossíveis de serem checadas, todas as conexões com a Agência e a Treadstone obliteradas. E agora existem fotografias nas mãos de homens que Conklin nem conhece. Não me fale em pelotão de fuzilamento. O de vocês está em forma, mas vocês não o podem ver — nem sabem onde está. Mas está preparado — meia dúzia de rifles prontos para atirarem quando o homem condenado aparecer. Estou descrevendo bem o cenário? — Não espera que eu responda a isso — disse Crawford. — Não precisa. Aqui é da Operações Consulares; já estive lá uma vez. Mas vocês estavam certos sobre uma coisa. Este é seu problema; pertence a sua corte. Não nos envolveremos. Esta é a minha recomendação para o Secretário. O Departamento de Estado não pode saber quem são vocês. Considere esta chamada não registrada. — Entendido. — Sinto muito — disse o diretor com sinceridade, percebendo a inutilidade na voz do general. — Algumas vezes tudo explode. — Sim. Aprendemos isso na Medusa. O que vai fazer com a moça? — Nem sabemos ainda o que vamos fazer com você.
— Isto é fácil. Eisenhower na conferência: “Que U-Dois?” Vamos continuar, sem resultados preliminares. Nada. Podemos apagar a moça dos livros de Zurique. — Diremos a ela. Pode ajudar. Cercá-la-emos de elogios; com ela tentaremos uma posição mais substancial. — Tem certeza? — interrompeu Crawford. — Sobre a posição? — Não. A amnésia. Tem certeza? — Ouvi aquela fita pelo menos umas vinte vezes, ouvi a voz dela. Nunca estive tão certo de alguma coisa em toda a minha vida. Por acaso, ela chegou há algumas horas. Está no Hotel Pierre, sob vigilância. Nós a traremos para Washington de manhã, depois que soubermos o que vamos fazer. — Espere aí! — A voz do general elevou-se. — Não amanhã! Ela está aqui...? Pode me arranjar um visto para vê-la? — Não cave o seu próprio túmulo, general. Quanto menos nomes ela souber melhor. Ela estava com Bourne quando ele telefonou para a embaixada; ela já sabe do Primeiro-Secretário, e agora, provavelmente, de Conklin. Ele tem que agüentar a queda sozinho. Fique fora disto. — Você acabou de me dizer para entrar nisso. — Não desta forma. O senhor é um homem decente, como eu. Somos profissionais. — Você não entende! Temos fotografias, sim, mas elas podem ser inúteis. Elas já têm três anos, e Bourne mudou, mudou drasticamente. É por isso que Conklin está em cena — onde, não sei — mas está. É o único que o viu, mas era de noite e estava chovendo. Ela pode ser a nossa única chance. Ela esteve com ele — viveu semanas com ele. Ela o conhece. É possível que o reconheça antes de qualquer outro. — Não entendo. — Explico tudo. Entre os muitos talentos de Bourne está a habilidade em mudar a aparência, em desaparecer na multidão, no campo ou entre árvores — estar onde não se pode vê-lo. Se o que você diz é certo, ele não deve se lembrar, mas tínhamos uma palavra para ele na Medusa. Seus homens costumavam chamá-lo... camaleão. — Este é o seu Caim, general. — Foi o nosso Delta. Nunca houve ninguém como ele. E é por isso que a moça pode ajudar. Agora. Dê-me o visto! Deixe-me vê-la, falar com ela. — Se lhe dermos um passe, estaremos reconhecendo-o. Não sei se podemos fazer isto. — Pelo amor de Deus, você acabou de dizer que somos homens decentes! Não somos? Podemos
salvar a vida dele! Talvez. Se ela estiver comigo e o encontrarmos, poderemos tirá-lo de lá! — De la? Está me dizendo que sabe exatamente onde ele estará? — Sim. — Como? — Porque ele não iria a nenhum outro lugar. — E o tempo? — perguntou o incrédulo diretor das Operações Consulares. — Sabe quando ele estará lá? — Sim. Hoje. É a data de sua própria execução.
Capítulo35 O rádio transistor berrava um rock em vibrações metálicas, e o motorista do táxi, de cabelos longos, batia com a palma da mão no volante e acompanhava o ritmo com o maxilar. O táxi entrou na Rua Setenta e Um e ficou preso na fila de carros engarrafados desde a saída da East River Drive. Os ânimos iam se tornando arrebatados enquanto as máquinas roncavam paradas e os carros se adiantavam apenas para frearem ruidosamente logo em seguida, a centímetros dos pára-choques dos carros da frente. Eram 8h45min, a hora mais movimentada do tráfego de Nova Iorque. Bourne encostou-se no canto do assento e ficou a olhar para a rua ladeada de árvores por baixo da aba do chapéu e por detrás das lentes escuras de seus óculos de sol. Já estivera lá; era uma sensação indelével. Já andara por aqueles quarteirões, já vira as entradas das casas, as fachadas das lojas e as paredes cobertas de hera — tão deslocadas naquela cidade, mas tão apropriadas àquela rua. Já notara antes os jardins do terraço e os associara com um jardim muito gracioso a alguns quarteirões dali, na direção do parque, além de um par de elegantes portas francesas no fim de uma... sala... grande... complicada. Esta sala ficava em um prédio alto, estreito, construído com pedras marrons, irregulares e pontudas, com uma coluna de janelas largas, em caixilhos de chumbo, que se elevavam em quatro andares. Janelas com vidros grossos refratários à luz tanto para dentro como para fora, em sutis flashes de púrpura e azul. Vidros antigos, talvez, ornamentais... à prova de balas. Uma residência de granito marrom com uma escada de largos degraus do lado de fora. Eram degraus estranhos, diferentes, incomuns, todos cruzados com arestas pretas que se salientavam na superfície, protegendo quem descia. Os sapatos não escorregavam no gelo ou na neve... e o peso das pessoas que subiam a escada imediatamente acionava instrumentos eletrônicos dentro da casa. Jason conhecia a casa, sabia que se aproximava dela. O eco em seu peito acelerou e foi ficando cada vez mais alto à medida que se aproximava do quarteirão. Logo a veria, e enquanto segurava o pulso trêmulo percebeu por que Parc Monceau tocara tais cordas nos olhos de sua mente. Aquela pequena parte de Paris era muito parecida com este pequeno trecho da Upper East Side. Exceto pela isolada introdução de uma maltratada pia de água benta ou uma mal concebida fachada branca, os quarteirões podiam ser idênticos. Pensou em André Villiers. Escrevera tudo de que se lembrara, pois a memória lhe viera nas páginas de um bloco de anotações comprado às pressas no Aeroporto Charles de Gaulle. Desde o primeiro momento, encontrado como um homem semi- morto, de quem foram retiradas balas de revólver, que acabara de abrir os olhos em uma sala úmida e encardida na Île de Port Noir, até as amedrontadoras revelações de Marselha, Zurique e Paris — sobretudo Paris, onde o manto de assassino lhe caíra sobre os ombros e a experiência de matador provara ser sua. Era, sob todos os pontos de vista, uma confissão, terrível tanto em relação ao que não podia explicar quanto ao que descrevia. Mas era a verdade como ele a conhecia, infinitamente mais justificativa depois de sua morte do que antes. Nas mãos de André Villiers ela seria bem usada; decisões acertadas seriam tomadas em relação a Marie St. Jacques. E a certeza disso dava-lhe a liberdade de que ele precisava agora. Pusera as folhas em um envelope e o enviara para Parc Monceau do Aeroporto Kennedy. Quando a carta chegasse a Paris, ele estaria ou vivo ou morto; mataria Carlos ou Carlos o mataria. Em algum lugar naquela rua — tão parecida com uma há milhares de milhas de distância — um homem cujos ombros flutuavam
rigidamente acima de uma cintura afilada vida à sua procura. Era a única coisa da qual tinha certeza; porque ele também faria o mesmo se estivessem em seu lugar. Em algum lugar daquela rua... Lá estava! Estava lá; o sol da manhã luzindo sobre o esmalte preto da porta e dos metais reluzentes, penetrando as janelas que se elevavam com uma coluna larga e brilhante de azul-purpurino, ressaltando o esplendor ornamental do vidro, mas não a sua resistência aos impactos de rifles de grande potência e armas automáticas de pesado calibre. Ele estava aqui, e, por motivos — emoções — que ele mesmo não podia definir, seus olhos ficaram marejados e a garganta embargada. Tinha a incrível sensação de que voltara para um lugar que era tão parte sua como o seu próprio corpo, ou o que quer que tivesse sobrado de sua mente. Não um lar; não havia conforto ou serenidade quando olhava aquela elegante residência da East Side. Mas havia mais algo — uma irresistível sensação de retorno. Estava de volta ao começo, o começo, da partida e da criação, noite negra e irrupção da alvorada. Alguma coisa estava lhe acontecendo; segurou o pulso com mais força, tentando desesperadamente controlar o impulso quase incontrolável de saltar do táxi e atravessar a rua correndo em direção àquela monstruosa e silenciosa estrutura de pedra granítica e vidros de intenso azul. Queria subir correndo os degraus e bater os punhos contra a pesada porta escura. Deixem-me entrar! Estou aqui! Vocês têm que me deixar entrar! Não entendem? JÁ ENTREI! As imagens apareciam-lhe em frente aos olhos; ruídos assaltavam-lhe os ouvidos. Uma dor aguda continuava a explodir em suas têmporas. Estava em uma sala escura — aquela sala —, olhando para uma tela onde outras imagens, imagens interiores, continuavam a aparecer e desaparecer em sucessão rápida, ofuscante. Quem é ele? Rápido. Você está muito atrasado! Você é um homem morto. Onde fica esta rua? O que ela significa para você? Quem você encontrou lá? O quê? Bom. Não complique; diga o mínimo possível. Aqui está uma lista: oito nomes. Quem são os contatos? Rápido! Aqui está outra. Métodos de misturar crimes. Quais são os seus?... Não, não, não! Delta deve fazer isto, não Caim! Você não é Delta, você não é você! Você é Caim. Você é um homem chamado .Bourne. Jason Bourne! Você cometeu um lapso. Tente de novo. Concentre-se. Esqueça tudo o mais. Apague todo o passado! Ele não existe para você. Você é apenas o que é aqui, o que se tornou aqui! Oh, Deus. Marie dissera isto. Talvez você saiba apenas o que lhe foi dito... Repetido várias vezes. Até que não houvesse mais nada... Coisas que lhe foram ditas... mas você não pode reviver... porque elas não são suas. O suor escoria-lhe pelo rosto umedecendo os olhos, enquanto ele afundava os dedos no pulso, tentando expulsar de sua mente a dor e os ruídos e luzes. Escrevera para Carlos que voltava para pegar documentos secretos... “proteção final”. Naquele momento a frase lhe parecera muito fraca; quase a riscara. Queria uma razão mais forte para estar voando para Nova Iorque. Ainda assim, o instinto lhe dissera que deixasse a frase; fazia parte do seu passado... de alguma forma. E agora ele a entendia. Sua identidade estava dentro daquela casa. Sua identidade. E viesse Carlos à sua procura ou não, ele teria que descobri-la. Teria!
De repente tudo parecia loucura! Balançou violentamente a cabeça para trás e para a frente, tentando sufocar a compulsão, silenciar os gritos que o rodeavam... gritos seus, sua voz. Esqueça Carlos. Esqueça a cilada. Entre naquela casa! Foi lá; lá foi o começo de tudo! Chega! A ironia era macabra. Não havia proteção final naquela casa, apenas uma última explicação para si mesmo. E não tinha sentido algum sem Carlos. Os que o procuravam sabiam disto e não lhe davam importância; queriam-no morto por isto. Mas ele estava tão perto... teria que descobri-la. Está lá. Bourne levantou o olhar; o motorista de cabelos compridos observava-o pelo espelho retrovisor. — É uma enxaqueca — disse Jason secamente. — Dê a volta no quarteirão. Neste mesmo quarteirão. Estou um pouco adiantado para o meu encontro. Dir-lhe-ei onde me deixar. — O dinheiro é seu, senhor. A casa de granito marrom estava agora atrás deles, passando rapidamente, em uma breve abertura do trânsito. Bourne virou-se no assento e olhou-a pelo vidro de trás. O ataque retrocedera, os ruídos e imagens do pânico pessoal diminuíam; apenas a dor permaneceu, mas também passaria logo, ele sabia. Foram minutos extraordinários. As prioridades haviam sido desviadas, a compulsão tomara o lugar da razão, o empurrão do desconhecido fora tão forte que por um momento ou dois ele quase perdera o controle. Não podia deixar que aquilo acontecesse de novo; a própria armadilha era tudo. Tinha que ver aquela casa novamente. Tinha o dia todo para trabalhar, para apurar sua estratégia, suas táticas para a noite, mas um segundo e mais calmo julgamento fazia-se, agora, necessário. Outros viriam durante o dia, avaliações mais corretas. O camaleão que havia nele seria colocado em ação. Dezesseis minutos mais tarde era óbvio que o que quer que ele pretendesse estudar não tinha mais importância. De repente tudo ficou diferente, tudo mudara. A fila do trânsito no quarteirão estava lenta, outra casualidade fora acrescentada à rua. Um caminhão de mudança estava estacionado em frente à casa. Homens de macacões fumavam seus cigarros e tomavam café, retardando o momento de começarem a trabalhar. A pesada porta preta estava aberta e um homem de paletó verde, com o emblema da companhia de mudanças no bolso esquerdo, estava em pé no foyer, prancheta na mão. A Treadstone estava sendo desfeita! Em poucas horas estaria vazia, uma casca. Não podia ser! Eles tinham que parar! Jason inclinou-se para a frente, com dinheiro na mão. A dor já passara; tudo agora tinha que ser movimento. Tinha que alcançar Conklin em Washington. Não mais tarde — não quando todas as peças já estivessem sobre o tabuleiro —, mas agora! Naquele instante! Conklin tinha que lhes dizer que parassem! Toda a sua estratégia era baseada no escuro... sempre no escuro. O reflexo de qualquer luz deveria aparecer primeiro em um dos corredores, depois no outro, depois contra as paredes escuras e as janelas escurecidas. Tudo adequadamente estudado, devagar, aparecendo em uma posição, depois em outra. Um assassino seria levado para uma construção de pedra à noite. À noite. Aconteceria à noite! Não agora! Saiu. — Ei, senhor! — gritou o motorista pela janela aberta.
Jason se inclinou. — O que é? — Eu só queria agradecer. Isto faz... Um tiro. Por cima do seu ombro! Seguido de uma tosse que era o começo de um grito. Bourne olhou espantado para o motorista, para o filete de sangue que lhe apareceu na orelha esquerda. Estava morto, fora morto por uma bala destinada a Jason; uma bala que viera de uma janela em algum lugar da rua. Jason jogou-se ao chão, depois pulou para a esquerda e girou para o meio-fio. Mais dois tiros vieram em rápida sucessão: o primeiro alojou-se no lado do carro, o segundo explodiu no asfalto. Inacreditável! Estava marcado antes mesmo de a caça começar! Carlos estava lá. Em posição! Ele ou um dos seus homens ocupara um andar alto, uma janela ou um telhado de onde se podia ver toda a rua. Ainda assim a possibilidade de morte indiscriminada causada por um assassino de uma janela ou um telhado era loucura; a polícia logo viria, a rua seria bloqueada, até mesmo uma cilada invertida poderia ocorrer. E Carlos não era louco! Aquilo não tinha sentido. Nem Bourne tinha mais tempo para especulações; tinha que sair da cilada que lhe fora armada... da cilada ao inverso. Tinha que alcançar o telefone! Carlos estava lá! Às portas da Treadstone! Ele o trouxera de volta. Efetivamente, ele o trouxera de volta! Aquela era a sua prova! Levantou-se e começou a correr, desviando-se por entre os pedestres. Chegou à esquina e virou à direita — a cabine estava a vinte passos, mas também era uma armadilha. Não podia usá-la. Do outro lado da rua havia uma fiambreria com uma pequena placa retangular acima da porta: TELEFONE. Jason saiu do meio-fio e começou a correr de novo, evitando os automóveis. Um deles estaria fazendo o trabalho ordenado por Carlos. Esta ironia também era macabra. — A Agência Central de Inteligência, senhor, é fundamentalmente uma organização para descobrir fatos — disse o homem que estava na linha, condescendentemente. — O tipo de atividades que o senhor descreve não é a nossa especialidade, apesar de alguns filmes e escritores desinformados acharem que é. — Maldição! Ouça-me! — disse Jason, fazendo uma concha com a mão no bocal do telefone, dentro da loja cheia de gente. — Apenas diga-me onde está Conklin. É uma emergência! — O seu escritório já lhe informou, senhor. O senhor Conklin saiu ontem à tarde e espera-se que volte no final da semana. Já que diz conhecer o senhor Conklin, sabe do acidente ocorrido em serviço. Ele sai com muita freqüência para fazer fisioterapia... — Pode parar com isto! Eu o vi em Paris — fora de Paris — há duas noites. Ele saiu de Washington para ir ao meu encontro. — Quanto a isto — interrompeu o homem em Langley — quando sua ligação foi transferida para o meu escritório, já tínhamos checado. Não há registro de viagem do senhor Conklin neste último ano. — Então é assunto morto! Ele estava lá! Se está à procura de códigos — disse Bourne
desesperadamente —, não os tenho. Mas alguém que trabalha com Conklin reconhecerá estas palavras: Medusa, DeIta, Caim... Treadstone! Alguém tem que reconhecer. — Ninguém reconhece. O senhor já foi informado disso. — Por alguém que não reconhece. Mas há os que reconhecem. Acredite-me! — Sinto muito. Eu realmente... — Não desligue! —. Havia outro jeito; um que ele não se importara em usar, mas agora não havia alternativa. — Há cinco ou seis minutos, saltei de uni táxi na Rua Setenta e Um. Alguém tentou tirar-me a vida. — Tirar... a vida? — Sim. O motorista falou comigo e inclinei-me para ouvir o que ele dizia. Este movimento salvou-me a vida, mas o motorista está morto, com uma bala no crânio. Esta é a verdade, e sei que o senhor tem meios para checá-la. Há pelo menos meia dúzia de carros de polícia por lá agora. Confira. É o aviso mais veemente que lhe posso dar. Houve um breve silêncio em Washington. — Como o senhor perguntou pelo senhor Conklin — pelo menos usou o seu nome —, vou acompanhar este caso. Onde poderei encontrá-lo? — Espero na linha. Esta chamada está sendo feita por um cartão de crédito internacional. Emissão francesa em nome de Chamford. — Chamford? O senhor disse... — Por favor. — Volto logo. A espera era intolerável, e ainda pior por causa do severo olhar de Hassid, contando moedas com uma das mãos, um pãozinho na outra, e migalhas soltas pela barba. Um minuto mais tarde o homem de Langley voltava à linha; a raiva agora substituía o compromisso. — Acho que esta conversa chegou ao fim, senhor Bourne ou Chamford, ou como achar melhor. Telefonamos para a polícia de Nova Iorque; não houve qualquer incidente na Rua Setenta e Um como o que o senhor descreveu. E o senhor tinha razão. Temos meios de checar tudo. Aviso-o de que existem leis sobre telefonemas como este, e penalidades bem rígidas. Bom dia, senhor. Ouviu-se um estalido. A linha ficou muda. Bourne fitou o disco com descrença. Durante meses os homens em Washington estiveram à sua procura, querendo matá-lo pelo silêncio que não podiam entender. Agora, quando ele se apresentava — quando se lhes apresentava como o único objetivo de seus três anos de acordo —, era demitido. Eles ainda não o iriam ouvir. Mas aquele homem o ouvira. E voltara à linha para negar uma morte que ocorrera há alguns minutos. Não podia ser... era insano. O fato acontecera.
Jason colocou o fone no gancho, sendo tentado a fugir da loja cheia. Ao contrário, encaminhouse calmamente para a porta, pedindo licença por entre as filas de gente próximas ao balcão, os olhos nos vidros da frente, perscrutando a multidão na calçada. Lá fora tirou o sobretudo, carregando-o no braço, e trocou os óculos escuros pelos de aro de tartaruga. Pequenas alterações, mas ele não ficaria tanto tempo onde estava indo para que isso representasse um grande erro. Atravessou rapidamente o cruzamento em direção à Rua Setenta e Um. Na próxima esquina misturou-se com pedestres que esperavam o sinal abrir. Virou a cabeça para a esquerda, a face comprimida no colarinho. O trânsito se movimentava, mas o táxi desaparecera: fora retirado dali com precisão cirúrgica, um órgão doente e feio excisado do corpo para que as funções vitais novamente entrassem no processo normal. Isto demonstrava a precisão de um assassino mestre, que sabia com precisão o momento de enfiar suavemente uma faca. Bourne virou-se ligeiro, invertendo a direção, e rumou para o Sul. Tinha que encontrar uma loja, tinha que mudar a aparência. O camaleão não poderia esperar. Marie St. Jacques estava irada enquanto permanecia de pé na frente do general Irwin Crawford na suíte do Pierre Hotel. — Vocês não ouviram! — ela acusou. — Nenhum de vocês ouviu. O senhor tem idéia do que lhe fez? — Muito claramente — respondeu o oficial. Havia desculpas em seu reconhecimento, não na voz. — Só posso lhe repetir o que já disse. Não sabíamos a que ouvir. A defasagem entre a aparência e a realidade ultrapassava o nosso entendimento, e obviamente o dele próprio. E se estava além do dele, por que não poderia estar além do nosso? — Ele tem tentado conciliar a aparência e a realidade, como disse o senhor, há muitos meses! E tudo o que fizeram foi mandar homens para que o matassem! Ele tentou dizer-lhes isso. Que espécie de gente são vocês? — Imperfeita, Srta. St. Jacques. Imperfeita mas decente, acho. É por isto que estou aqui. A contagem do tempo começou e quero salvá-lo se puder, se nós pudermos. — Deus, vocês me deixam nauseada! — Marie parou, balançou a cabeça e continuou suavemente. — Farei o que o senhor me pedir, sabe disso. Pode encontrar esse Conklin? — Estou certo que sim. Ficarei nos degraus daquela casa até que ele não tenha outra escolha a não ser ir me ver. Entretanto, talvez não seja propriamente ele a nossa preocupação. — Carlos? — Talvez outros. — O que quer dizer? — Explicarei no caminho. Nossa principal preocupação agora — nossa única preocupação agora — é achar Delta.
— Jason? — Sim. O homem a quem você chama Jason Bourne. — E ele desde o início foi um dos seus — disse Marie. — Não havia ficha alguma para limpar, algum pagamento ou perdão que estivesse sendo barganhado? — Nada. Tudo lhe será contado no devido tempo, mas não agora. Fiz algumas manobras para que você possa ficar em um carro oficial em frente à casa. Você usará binóculos e poderá reconhecê-lo melhor do que ninguém. Talvez consiga vê-lo. Rezo para que consiga. Marie foi ligeiro até o armário e apanhou o seu casaco. — Uma noite ele me disse que era um camaleão... — Ele se lembrou? — interrompeu Crawford. — Lembrou-se do quê? — Nada. Ele tinha grande habilidade para entrar e sair de situações sem ser notado. Foi isto o que eu quis dizer. — Espere aí — disse Marie. Aproximou-se do militar, os olhos de repente pregados nele de novo. — Está dizendo que temos que encontrar Jason, mas há uma forma melhor. Deixe-o vir até nós. Até mim. Deixe-me nos degraus daquela casa. Ele me verá, me dirá alguma coisa! —. E entregando a quem quer que esteja lá dois alvos? — O senhor não conhece o seu próprio homem, general. Eu disse “me dirá alguma coisa”. Mandará alguém, pagará um homem ou unia mulher na rua para me entregar uma mensagem. Conheçoo. Fará isto. É o caminho mais certo. — Não posso permitir tal coisa. — Por que não? Vocês já fizeram tudo o mais tão estupidamente! Cegamente! Façam uma coisa com inteligência! — Não posso. Esta sugestão poderia até solucionar problemas que você nem conhece, mas não posso fazer isso. — Dê-me uma razão. — Se Delta está certo, se Carlos veio à sua procura e está naquela rua, o risco é muito grande. Carlos conhece-a por fotografias. Ele a matará. — Estou ansiosa para me arriscar. — Pois eu não. Eu gostaria de pensar que estou falando pelo meu Governo, quando digo isso.
— Francamente, não acho que o senhor fala pelo seu Governo. — Deixe isto para outros. Vamos, por favor? — Serviço Geral de Administração — falou a desinteressada voz da telefonista. — O senhor J. Petrocelli, por favor — disse Alexander Conklin, a voz tensa, os dedos limpando o suor da testa, de pé perto da janela, o telefone na mão. .— Depressa, por favor! — Todo mundo está tão apressado... — As palavras foram cortadas e em seu lugar ouviu-se o tilintar do telefone. — Petrocelli, Divisão de Reclamação de Faturas. — O que os seus empregados estão fazendo? — explodiu o homem da CIA, o choque calculado para ter o efeito de um tiro. O silêncio foi breve. — Neste instante, ouvindo uma besta fazendo uma pergunta idiota. — Bem, ouçam mais. O meu nome é Conklin, da Agência Central de Inteligência, CIA, licença Quatro-Zero. Você sabe o que isso quer dizer? — Não entendi nada do que tem dito seu pessoal nestes últimos dez anos. — Então é melhor que entenda isso de uma vez. Levei quase uma maldita hora, mas acabei de encontrar o despachante de uma companhia de mudança aqui de Nova Iorque. Ele disse que tinha uma fatura assinada por você para retirar toda a mobília de uma casa de granito marrom, na Rua Setenta e Um, número 139, para ser mais claro. — Ah, sim, lembro-me disso. Qual é o problema? — Quem lhe deu esta ordem? Esse território é nosso. Retiramos o nosso equipamento na semana passada, mas não pedimos — repito, não pedimos — mudança alguma. — Espere um instante — disse o burocrata. — Vi a fatura. Quero dizer, li-a antes de assiná-la. Vocês, meus camaradas, me deixam espantado. A ordem veio diretamente de Langley com prioridade. — De quem em Langley? — Só um instante e já lhe digo. Tenho uma cópia da fatura em meu arquivo; está aqui em minha mesa. — O barulho de papel podia ser ouvido pelo telefone. De repente o barulho parou e Petrocelli voltou a falar. — Aqui está, Conklin. Faça a sua reclamação para o seu próprio pessoal do Controle Administrativo. — Eles não sabiam o que estavam fazendo. Cancele a ordem. Chame de volta a companhia de mudança e diga-lhes para saírem de lá! Já! — Agora mesmo, senhor fantasma.
— O quê!?? — Traga uma requisição de prioridade por escrito aqui para o meu escritório antes das três horas da tarde e pode ser — pode ser, apenas — que eu consiga isso para amanhã. Aí recolocaremos tudo em seus devidos lugares. — Recolocarão tudo de volta? — É isso mesmo. Você nos manda tirar, tiramos. Você nos manda recolocar, recolocamos. Temos métodos e procedimentos a seguir, tal como vocês. — Aquele equipamento — aquilo tudo estava hipotecado! Não era — não é — uma operação para a Agência. — Então por que está me telefonando? O que você tem a ver com tudo aquilo? — Não tenho tempo para explicar. Apenas tire todos os seus homens de lá. Telefone para Nova Iorque e tire-os de lá! Essas são ordens Quatro-Zero. — Podem ser até Cento e Quatro e você continua fazendo bazófia. Olhe, Conklin, nós dois sabemos que você pode ter o que quiser se eu puder ter o que preciso. Faça tudo direitinho, legalmente. — Mas não posso envolver a Agência! — Mas eu também não posso me envolver. — Aquele pessoal tem que sair de lá! Estou lhe dizendo... — Conklin parou, os olhos na casa de granito marrom lá embaixo, do outro lado da rua, seus pensamentos momentaneamente paralisados. Um homem alto vestindo um sobretudo preto subia os degraus de concreto. Parou e ficou imóvel em frente à porta. Era Crawford. Mas o que ele estava fazendo? O que ele estava fazendo ali? Perdera a razão, estava fora de si! Ele era um alvo em mira, podia estragar a cilada! — Conklin? Conklin...? — A voz flutuou fora do telefone enquanto o homem da CIA desligava o telefone. Conklin virou-se para o homem atarracado que estava ali perto, em uma janela ao lado. Trazia um rifle na imensa mão, com um visor telescópico preso ao cano. Alex não sabia o nome do homem e nem queria sabê-lo. Já pagara muito para não ser sobrecarregado. — Está vendo aquele homem lá fora com o sobretudo preto, parado na porta? — perguntou. — Estou sim. Ele não é quem procuramos. É muito velho. — Pois vá lá e diga-lhe que há um aleijado do outro lado da rua que quer falar com ele. Bourne saiu da loja de roupas usadas na Terceira Avenida, parando em frente à janela de vidro sujo para avaliar sua aparência. Serviria, tudo estava bem coordenado. O chapéu de tricô de lã preta cobria-lhe a cabeça até o meio da testa; o paletó do exército, amassado e remendado, era bem grande
para ele; a camisa de flanela xadrez, vermelha, e as largas calças de fazenda cáqui, mais os pesados sapatos de sola grossa e bico redondo compunham um traje bem-coordenado. Agora só faltava treinar uma forma de andar que combinasse com a roupa. O caminhar de um homem forte e cujo corpo já começara a mostrar os efeitos de uma vida de tensão física, cuja mente já aceitara a cotidiana inevitabilidade do trabalho duro, e o prêmio eram seis pacotes de dinheiro no final do turno servil. Encontraria aquele jeito de andar; já o usara antes em algum lugar. Mas antes de esquadrinhar a imaginação, devia dar um telefonema; havia uma cabine telefônica no quarteirão, um tubo metálico onde havia um telefone preso por uma corrente de aço dentro de unia concha acústica. Encaminhou-se para a cabine, as pernas automaticamente mais rígidas, os pés imprimindo peso sobre a calçada, os braços rigidamente encostados ao corpo, os dedos das mãos um pouco separados e curvados pelos anos de trabalho servil. Uma expressão severa, rígida, em seu rosto viria mais tarde. Não já. — Belkins, Mudanças e Guarda-móveis — anunciou a telefonista de algum lugar no Bronx. — Meu nome é Johnson — disse Jason com impaciência, mas educadamente. — Receio ter um problema, e espero que possam me ajudar. — Tentaremos, senhor! Do que se trata? — Eu estava a caminho da casa de um amigo na Rua Setenta e Um... um amigo que morreu recentemente, o que me deixou muito pesaroso... para pegar algumas coisas que eu lhe havia emprestado Quando cheguei lá, a caminhoneta de vocês estava parada em frente à casa. É muito embaraçoso, mas acho que seus homens levaram junto as minhas coisas. Com quem posso falar sobre isso? — Bem senhor teria que falar com o despachante. — Pode me dizer o seu nome, por favor? — Como? — O seu nome. — Claro. Murray. Murray Schumach. Farei a ligação. Dois estalidos precederam um longo ruído abafado na linha. — Aqui é Schumach. — Sr. Schumach? — Isso mesmo. Bourne repetiu toda a sua embaraçante história. — É claro, posso facilmente obter uma carta do meu procurador, mas o item em questão quase não tem valor...
— O que é? — Uma vara de pescar. Não é uma das mais caras, mas tem uma carretilha muito antiga, do tipo que não encrenca a cada cinco minutos. — Sim, sim, sei o que quer dizer. Pesco na baía de Sheepshead. Já não fazem mais essas carretilhas como antigamente. Tenho a impressão que é por causa da liga. — É, acho que o senhor tem razão, senhor Schumach. Sei exatamente em que armário ele a guardava. — Ora, mas que diabo, é apenas uma vara de pescar! Vá até lá e procure um camarada chamado Dugan, o supervisor do trabalho. Diga-lhe que eu lhe autorizei a pegá-la, mas vai ter que assinar por isso. Se ele bronquear, diga-lhe para sair e me telefonar, porque os telefones da casa estão desligados. — Senhor Dugan. Muito obrigado, senhor Schumach. — Céus, aquele lugar está um inferno hoje! — Desculpe-me, não entendi bem. — Nada, nada. Um espertalhão me telefonou dizendo-me que saísse de lá. Com o trabalho da firma garantido em dinheiro. Pode acreditar nisso? Carlos. Jason podia acreditar sim. — É difícil, senhor Schumach. — Boa pesca — disse o homem da Belkins. Bourne encaminhou-se para o lado oeste da Rua Setenta com a Avenida Lexington. A três quarteirões para o sul, descobriu o que procurava: uma loja de sortimentos e roupas para marinheiros. Entrou. Oito minutos mais tarde saiu carregando quatro cobertores marrons e seis largos cintos de lona com fivelas de metal. Nos bolsos do uniforme estavam duas lanternas. Elas estavam no balcão parecendo algo que não eram na verdade, acionando imagens em sua memória, de volta a um tempo em que havia significado e objetivos em sua mente. E raiva. Jogou o equipamento sobre o ombro esquerdo e saiu em direção à Rua Setenta e Um. O camaleão tomava a direção da selva, uma selva tão densa quanto aquela esquecida de Tam Quan. Eram dez e quarenta e oito quando chegou à esquina do quarteirão ladeado de árvores que escondia os segredos da Treadstone Seventy One. Encaminhava-se para o início — o seu início —, e o medo que sentia não era pelo dano físico. Estava preparado para isso, todos os tendões tensos, os músculos de prontidão; seus joelhos e pés, mãos e cotovelos preparados para serem usados como armas, os olhos eram alarmes que mandariam sinais instantâneos para estas armas. Seu medo era muito mais
profundo. Entraria no lugar de seu nascimento e estava atemorizado com o que poderia encontrar lá — lembrar lá. Pare! A armadilha é tudo. Caim é para Charlie e Delta é para Caim! O trânsito estava bem menos intenso, a hora do grande movi mento cessara, a rua estava nos estertores silenciosos da madrugada. Os pedestres passavam sem pressa alguma; os automóveis desviavam-se calmamente do caminhão de mudanças, as buzinas iradas haviam sido substituídas por expressões de irritação. Jason atravessou no sinal para o lado da Treadstone; a estrutura marrom, estreita e alta, da casa, coberta de granito pontiagudo e irregular e com grossos vidros azulados ficava quase no final do quarteirão. Com os cobertores e os cintos no lugar, e já cansado, o trabalhador de passo lento caminhava ao lado de um casal muito bem-vestido, dirigindo-se à casa. Chegou aos degraus de concreto enquanto dois homens musculosos, um preto e um branco, traziam pan fora uma harpa coberta. Bourne parou e gritou em dialeto vulgar. — Ei! Onde está o Dugan? — Onde mais? — respondeu o branco, apontando com a cabeça para a casa. — Sentado em uma cadeira de balanço. — Ele não fez força o dia todo, não carregou nada mais pesado do que aquela prancheta, meu chapa — acrescentou o preto. — Ele é um executivo, não é isso, Joey? — É um cara nojento, é o que ele é. Que qui há? — Schumach me mandou — disse Jason. — Ele queria outro homem por aqui e achou que vocês precisavam desse material. Pediu-me que trouxesse isso. — Murray, o perigoso! — riu o preto. — Sabe, meu chapa? Ainda não lhe tinha visto. Acabou de ser contratado? — Leva essa merda para o executivo — rosnou Joey, continuando a descer os degraus. — Ele pode designar uma função para isso, que tal essa, Pete? Designar — gosta da palavra? —. Adoro, Joey. Você é um bom dicionário. Bourne subiu os degraus marrom-avermelhados, passando pelos homens, e foi até a porta. Entrou e viu a escada à direita, e o corredor estreito e comprido à sua frente, que dava para outra porta a trinta pés dali. Já subira aqueles degraus mais de mil vezes e caminhara por aquele corredor mais algumas centenas de vezes. Voltara, e uma sobrepujante sensação de terror o assaltou. Começou a andar pelo corredor estreito e escuro; podia ver raios de luz entrando pelas distantes portas de estilo francês. Aproximava-se da sala onde Caim nascera. Aquela sala. Segurou os cintos no ombro e tentou parar de tremer. Marie inclinou-se para a frente no banco de trás do sedã oficial, de binóculo em punho. Algo acontecera; ela não tinha certeza do que era, mas podia muito bem imaginar. Um homem atarracado e
baixo passara em frente aos degraus da casa de granito marrom poucos minutos antes, diminuindo o passo ao se aproximar do general, obviamente dizendo-lhe alguma coisa. O homem continuara a atravessar o quarteirão e segundos mais tarde Crawford o seguira. Conklin fora achado. Teria sido um pequeno progresso se o que o general disse fosse verdade. Pistoleiros, desconhecidos do empregador e este, por sua vez, desconhecido deles. Pagos para matar um homem... por motivos errados! Oh, Deus, ela os desprezava a todos! Homens irracionais e estúpidos. Jogando com a vida dos outros, sem saber de nada, e achando que sabiam tanto! Eles não o haviam escutado! Nunca o escutaram, até que fosse tarde demais, e agora apenas com proibições severas e lembranças fortes do que deveria ter sido — se as coisas tivessem acontecido como deviam, mas não foi o que aconteceu. A corrupção veio da cegueira, as mentiras vieram da obstinação e dos embaraços. Não criem problemas para os poderosos — o napalm já dizia tudo. Marie olhou pelo binóculo. Um homem da Belkins se aproximava dos degraus, cobertores e cintos sobre o ombro, caminhando atrás de um casal idoso, obviamente moradores do quarteirão, que haviam saído para uma caminhada. O homem com o uniforme e o chapéu de tricô preto parara; começou a conversar com dois homens que carregavam um objeto de forma triangular. O quê? Havia alguma coisa... alguma coisa estranha. Ela não podia ver o rosto do homem, fora do alcance de sua visão, mas havia algo com relação ao pescoço, o lado da cabeça... o que era? O homem começou a subir os degraus, era um homem de aspecto grosseiro, preocupado com o seu dia de trabalho, antes mesmo de ele ter começado... Um homem desleixado. Marie largou o binóculo; estava muito ansiosa, pronta a ver coisas que não estavam lá. Oh, Deus, meu amor, meu Jason. Onde está você? Volte para mim. Deixe-me encontrá-lo, não me deixe por causa destes homens cegos e irracionais. Não deixe que eles nos separem. Onde estava Crawford? Ele prometera mantê-la informada sobre tudo. Fora uma estúpida. Ela não confiava nele, em nenhum deles; não confiava na inteligência deles. Ele prometera... onde estava ele! Falou para o motorista: — Pode abaixar a janela, por favor? Está muito abafado aqui dentro. — Sinto muito, senhorita, não posso — respondeu o motorista militar, vestido com roupas civis. — Mas vou ligar o ar condicionado, está bem? As janelas e portas eram controladas por botões que apenas motorista podia alcançar. Estava presa em uma tumba de vidro e metal, em uma rua escura, ladeada de árvores. — Não acredito em uma palavra! — disse Conklin capengando com raiva, em direção à janela. Inclinou-se no parapeito, olhando para fora, a mão esquerda no rosto, a junta do dedo indicador encostada nos dentes. — Nenhuma maldita palavra! — Porque não quer acreditar, Alex — contradisse Crawford. — A solução é bastante fácil, Está
aqui mesmo e é muito simples. — Você não ouviu aquela fita. Você não ouviu Villiers! — Ouvi a mulher; e ela é tudo o que tenho para ouvir. Ela disse que nós não ouvimos... você não ouviu. — Então ela está mentindo! — Desajeitadamente, Conklin se virou. — Cristo, é claro que ela está mentindo! Por que não? É mulher dele. Fará qualquer coisa para tirá-lo do anzol. — Você está errado e sabe muito bem disso. O fato de ela estar aqui prova que você está errado. E prova que estive errado em aceitar como verdade o que você me contou. Conklin respirava ofegantemente, a mão direita tremia segurando a bengala. — Talvez... talvez nós, talvez... — Não terminou. Olhou para Crawford desamparado. — Devemos deixar que tudo se solucione? — perguntou o militar calmamente. — Você está cansado, Alex. Não dormiu nesses últimos dias, está exausto. Vou fazer de conta que não ouvi nada disso. — Não. — O homem da CIA balançou a cabeça com os olhos fechados, o rosto refletindo seu profundo desgosto. — Não, você não ouviu nada, e eu não disse nada. Eu só gostaria de saber por onde devo começar, que diabo! — Sei — disse Crawford, indo até a porta e abrindo-a. — Entre, por favor. O homem atarracado entrou, os olhos faiscando ao verem o rifle encostado contra a parede. Olhou para os dois homens, a compreensão estampada no rosto. — O que houve?! — O exercício de pontaria foi suspenso — disse Crawford. — Acho que vocês já podem recolher este material. — Que exercício? Fui pago para protegê-lo. — O pistoleiro olhou para Alex. — O senhor quer dizer que não precisa mais de proteção, senhor? — Você sabe exatamente o que queremos dizer — disse rispidamente Conklin. — Todos os sinais estão suspensos, todas as estipulações. — Que estipulações? Não sei de nenhuma estipulação. Os termos do meu contrato são muito claros. Estou protegendo-o, senhor. — Bom, ótimo — disse Crawford. — Agora o que precisamos saber é quem mais lá fora está protegendo-o. — Quem mais, onde? — Fora desta sala, deste apartamento. Em outras salas, na rua, talvez até em carros. Precisamos saber.
O homem atarracado foi até o rifle e o pegou. — Receio, cavalheiros, que os senhores estejam confusos. Fui pago por um contrato individual. Se outros também foram contratados, não sei de nada. Não os conheço. — Você sabe muito bem! Você os conhece! — gritou Conklin. — Quem são eles? Onde estão? — Não tenho nenhuma idéia... senhor. — O gentil pistoleiro segurou o rifle no braço direito, o cano virado para baixo, em direção ao chão. Levantou-o alguns centímetros, não mais do que isso, num movimento quase imperceptível. — Se os meus serviços não são mais necessários, vou embora. — Pode alcançá-los? — interrompeu o general. — Nós o pagaremos generosamente. — Já fui generosamente pago, senhor. Não seria correto aceitar dinheiro por um serviço que não posso realizar. E por isso é desnecessário continuar. — A vida de um homem está correndo perigo lá fora! — gritou Conklin. — E a minha também — disse o pistoleiro aproximando-se da porta, a arma levantada. — Adeus, cavalheiros. — E saiu. — Jesus! — urrou Alex, indo até a janela. A bengala batera contra o aquecedor. — O que podemos fazer? — Para começar, livre-se daquela companhia de mudança. Não sei que papel aquilo faz em sua estratégia, mas agora é apenas uma complicação. — Não posso. Já tentei! Não tenho nada a ver com isso. O Controle da Agência pegou os nossos papéis quando retiramos o equipamento. Viram que uma loja estava sendo fechada e disseram à Administração do Serviço Geral para fazer o diabo conosco. — Com toda a rapidez — disse Crawford assentindo com a cabeça. — O Monge deixou todo aquele material sob assinatura; sua declaração absolve a Agência. Está nos arquivos dele. — Seria muito bom se dispuséssemos de vinte e quatro horas. Nem mesmo sabemos se temos vinte e quatro minutos. — Ainda assim vamos precisar disso. O Senado fará inquérito. Secreto, assim espero... Feche a rua. — O quê? — Você me ouviu — feche a rua! Chame a policia, diga- lhes para fechar a rua! — Através da Agência? Isto é uma questão doméstica. — Então farei isto. Através do Pentágono, da Junta de Comandantes, se preciso. Estamos aqui inventando desculpas, quando tudo está exatamente em frente aos nossos olhos! Limpe a rua, feche-a,
traga um caminhão. Ponha-a dentro dele, coloque-a num alto-falante! Deixe-a dizer o que quiser, deixea gritar à vontade. Ela estava certa. Ele virá ao encontro dela! — Você sabe o que está dizendo? — perguntou Conklin. — Vão fazer perguntas. Jornais, televisão, rádio. Tudo virá a público. Publicidade. — Estou ciente disso — disse o general. — Também estou ciente de que ela nos conseguirá isso, se não der certo. Ela tem que fazer isso de qualquer forma, não importa o que possa acontecer, mas eu preferiria antes tentar salvar um homem de quem jamais gostei e nunca aprovei. Mas já o respeitei, e agora o respeito ainda mais. — E quanto ao outro homem? Se Carlos realmente está lá fora, você está lhe abrindo os portões. Estará lhe oferecendo de mãos beijadas a fuga. — Não criamos Carlos. Criamos Caim e abusamos dele. Usamos a sua mente, a sua memória. Devemos-lhe isso. Vá lá embaixo e traga a mulher. Vou usar o telefone. Bourne entrou na grande biblioteca onde os raios do sol brilhavam através das duas elegantes portas francesas, abertas no outro lado da sala. Além dos vidros da janela ficavam os altos muros em volta do jardim... tudo à sua volta lhe era doloroso; conhecia os objetos e não os conhece agora. Eram fragmentos de sonhos — mas sólidos, que podiam ser tocados, sentidos, usados — de forma alguma efêmeros. No canto, uma mesa comprida, encostada à parede, onde o uísque era servido, poltronas de couro onde os homens se sentavam e conversavam, prateleiras que abrigavam os livros e outras coisas — escondiam-nas — e que apareciam com o toque de alguns botões. Era a sala onde nascera um mito, um mito que correra todo o sudeste da Ásia e aparecera repentinamente na Europa. Viu a grande saliência tubular no teto, e a escuridão voltou, seguida por raios de luz e imagens projetadas em uma tela. Vozes gritavam em seus ouvidos. Quem é ele? Rápido. Você está muito atrasado! Você é um homem morto! Onde fica esta rua? O que ela significa para você? Quem você encontrou lá?... Métodos de morte. Quais são os seus? Não!... Você não é Deita, você não é você!... Você é apenas o que é aqui, o que aqui se tornou! — Ei! Quem é você, afinal? — A pergunta foi gritada por um corpulento homem sentado em uma poltrona perto da porta, prancheta sobre os joelhos. Jason passara por ele. — Você é Dugan? — perguntou Bourne. — Sim. — Schumach me mandou. Disse que você precisava de outro homem. — Para quê? Já tenho cinco, e essa merda desse lugar tem os batentes muito estreitos, quase não se pode passar por eles. — Não sei. O Schumach me mandou, é só isso que sei. Disse-me para trazer essas coisas. — Bourne deixou cair os cobertores e cintos.
— Murray mandando coisas? Quero dizer, isso é novidade. — Eu não... — Eu sei, eu sei! O Schumach mandou você. Pergunte ao Schumach. — Você não pode. Ele in mandou dizer-lhe que estava indo para Sheepshead. Vai voltar esta tarde. — Oh, grande! Vai pescar e me deixa com essa merda... Você é novo. É biscateiro? — Sou. — Este Murray é grande. Tudo o que preciso é de outro biscateiro! Dois idiotas espertos e agora quatro biscateiros. — Quer que eu comece aqui? Posso começar aqui. — Não, seu idiota! Biscateiros começam em cima, nunca ouviu falar disso? É bem mais longe, capisce? — Sim, eu capisce. — Jason apanhou os cobertores e as tiras de lona. — Deixe esses trens aqui — não vai precisar disso. Vá lá para cima, último andar, e comece a carregar os móveis pesados de madeira, os mais pesados que puder, e não me embrome. Bourne circulou o lance do segundo andar e começou a subir os estreitos degraus para o terceiro andar, como se estivesse sendo levado por uma força magnética muito além da sua compreensão. Estava sendo empurrado para outra sala no alto da casa de granito marrom, uma sala que abrigava tanto o conforto do silêncio quanto a frustração da solidão. O andar de cima estava escuro, não havia luz acesa nem raios de sol entrando pelas janelas. Chegou ao último andar e lá ficou, parado, por um momento, em silêncio. Que sala era aquela? Havia três portas, duas do lado esquerdo do corredor, uma do lado direito. Encaminhou-se devagar em direção à segunda porta, à esquerda, quase escondida no escuro. Era ali; era ali que seus pensamentos lhe voltavam na escuridão... lembranças que lhe obsedavam, lhe doíam. A luz do sol e o mau cheiro do rio, a selva... ruídos de máquinas no céu, vindos do céu. Oh, Deus, como doía! Pôs a mão na maçaneta, girou-a e abriu a porta. Estava escuro, mas não de todo. Havia uma pequena janela no fim da sala, uma sombra escura se abaixou, fechando-a, mas não completamente. Podia ver uma fina linha de luz, tão estreita que mal aparecia, onde a forma escura se encostava contra o batente da janela. Dirigiu-se à janela, àquela fina linha de luz. Um arranhão! Um arranhão no escuro! Girou aterrorizado com os artifícios da sua próprIa mente. Mas não era artifício! Havia um brilhante cintilar no espaço, o reflexo do brilho de um metal. Uma faca lhe retalhava o rosto.
— Eu teria muito prazer em vê-lo morrer pelo que fez — disse Marie olhando Conklin fixamente. — E esta constatação me repugna. — Então não posso lhe dizer mais nada — respondeu o homem da CIA atravessando a sala, capengando até o general. — Outras decisões poderiam ser tomadas — por ele e por você. — Poderiam? E por onde ele começaria? Quando aquele homem tentou matá-lo em Marselha? Ou na Rua Sarrasin? Quando o procuraram em Zurique? Ou quando atiraram nele em Paris? E ele durante todo esse tempo não sabia por que tudo acontecia. O que poderia ele fazer? — Aparecer! Que diabo, aparecer! — E ele apareceu. E quando o fez, você tentou matá-lo. — Você estava lá! Estava com ele. E você não perdeu a memória. — Presumindo que eu soubesse a quem me dirigir, você teria me ouvido? Conklin respondeu ao seu olhar. — Não sei — respondeu cortantemente, e virou-se para Crawford. — O que está acontecendo? — Washington vai me telefonar de volta daqui a dez minutos. — Mas o que está acontecendo? — Não estou muito certo que você queira ouvir. Invasão federal às leis e estatutos estaduais e municipais. É preciso obter licenças. — Jesus! — Olhe! — O militar de repente inclinou-se na janela. — O caminhão está indo embora. — Alguém se intrometeu — disse Conklin. — Quem? — Vou descobrir. — O homem da CIA capengou até o telefone. Havia pedaços de papel em cima da mesa, números de telefone escritos às pressas. Escolheu um e discou. — Ligue-me com Schumach... por favor... Schumach? Aqui é Conklin, da CIA. Quem lhe deu a ordem? A voz do despachante na linha podia ser ouvida por toda a sala. — Que ordem!? Sai de cima de mim! Estamos fazendo aquele trabalho e vamos terminá-lo! Francamente, acho que você é doido... Conklin bateu o telefone. — Cristo... oh, Cristo! — Sua mão tremia quando pegou o fone. Levantou-o e discou novamente, os olhos em outro pedaço de papel. — Petrocelli. Reclamações — ordenou. — Petrocelli? É Conklin de novo. — Você sumiu. O que aconteceu?
— Não há tempo. Ouça-me. Aquela requisição de prioridade do Controle da Agência. Quem a assinou? — O que quer dizer com quem a assinou? O camarada lá de cima, o que sempre assina McGovern. O rosto de Conklin ficou branco. — Era isso o que eu temia — sussurrou enquanto abaixava o fone. Virou-se para Crawford, a cabeça tremendo enquanto falava. — A ordem para a Administração do Serviço Geral foi assinada por um homem que se aposentou há duas semanas. — Carlos... — Oh, Deus! — gritou Marie. — O homem carregando os cobertores e os cintos! O jeito da sua cabeça, do pescoço. Virado para o lado direito. Era ele! Quando sua cabeça dói ele a vira um pouco para a direita. Era Jason! Ele entrou. Alexander Conklin voltou para a janela, os olhos presos na porta de madeira laqueada do outro lado da rua. Estava fechada. A mão! A pele... os olhos escuros naquela fina estria de luz. Carlos! Bourne jogou a cabeça para trás quando o fio da lâmina cortou-lhe a carne debaixo do queixo, o sangue jorrando, manchando a mão que segurava a faca. Levantou o pé direito, chutou o joelho do atacante invisível, depois girou e jogou o salto esquerdo contra a virilha do homem. Carlos gritou e a navalha apareceu novamente no escuro, agora vindo em sua direção, a linha de assalto desta vez diretamente para o seu estômago. Jason pulou para trás, cruzando os pulsos, golpeando, sustando o braço escuro que era uma extensão da arma. Torceu os dedos para dentro, virou suas mãos juntas, forçando o antebraço por baixo do pescoço ensangüentado e depois esticando o braço para cima. A faca cortou-lhe a roupa e passou por seu peito. Bourne moveu o braço para baixo, torcendo o punho agora em seu poder, empurrando o ombro contra o corpo do assassino e girando novamente enquanto Carlos se desequilibrava para a esquerda, o braço quase fora do encaixe. Jason ouviu o barulho da faca ao cair no chão. Cambaleou em direção ao barulho e ao mesmo tempo tentou pegar a arma que estava em seu cinto. Mas ela se embaraçou na roupa; ele rolou no chão, mas não tão rapidamente quanto devia. A biqueira de metal de um sapato bateu no lado de sua cabeça — na têmpora — e ondas de dor atravessaram-no. Rodou de novo, rápido, mais rápido, até bater contra a parede; encolheu-se sobre os joelhos, tentando enxergar através das indistintas sombras da escuridão quase total. Vislumbrou o contorno de uma mão contra a fina linha de luz que vinha da janela; jogou-se contra ela, suas próprias mãos agora eram garras, seus braços aríetes a golpearem. Agarrou a mão, torcendo-a para trás, quebrando o pulso. Um grito encheu a sala. Um grito e o ruído grave, mortal, de um tiro. Uma incisão gelada fora feita na parte superior esquerda do peito de Bourne a bala se alojara entre o ombro e a espádua. Na agonia, agachou-se e levantou-se de novo, empurrando o matador com a arma contra a parede, em cima da quina de um móvel. Carlos afastou-se, enquanto dois tiros silenciosos dispararam selvagemente. Jason mergulhou para a esquerda, conseguindo livrar a arma e apontando-a para os ruídos da escuridão. Atirou, a
explosão surda fora inútil. Ouviu a porta bater, fechando-se. O matador escapara pelo corredor. Tentando encher os pulmões de ar, Bourne arrastou-se até a porta. Quando se aproximou dela, seu instinto ordenou-lhe que ficasse de lado e batesse com o punho na parte de cima da madeira. O que se seguiu foi a essência de um terrível pesadelo. Súbito, ouviu-se a explosão de uma pistola automática, enquanto a madeira ficava em pedaços, os fragmentos voando pela sala. No instante em que o tiroteio parou, Jason empunhou sua arma e atirou diagonalmente através da porta; o tiroteio se repetiu. Bourne girou novamente, afastando-se, encostando-se na parede. O tiroteio cessou e ele atirou de novo. Eram agora dois homens muito próximos um do outro, querendo acima de tudo matar-se um ao outro. Caim é para Charlie e Delta é para Caim. Pegar Carlos. Encurralar Carlos. Matar Carlos. Em seguida já não estavam a centímetros um do outro. Jason ouviu passos correndo, depois o ruído de um corrimão sendo quebrado enquanto um vulto corria escada abaixo. Carlos fugia. Aquele porco, aquele animal, fora buscar socorro; estava ferido. Bourne limpou o sangue do rosto, do pescoço, e passou pelo que ainda restava da porta. Abriu-a e saiu para o corredor estreito, a arma na mão. Com muita dor conseguiu subir a escadaria escura. De repente ouviu tiros vindos de baixo. — Que diabo está fazendo, homem? Pete! Pete! Dois ruídos metálicos encheram o ar. — Joey! Joey! Mais um tiro; e barulhos de corpos caindo em algum lugar lá embaixo. — Jesus! Jesus, Mãe de...! Dois ruídos metálicos novamente, seguidos por um grito gutural de morte. Um terceiro homem fora morto. O que aquele terceiro homem dissera? Dois sabidões e agora quatro biscateiros. O caminhão de mudanças era uma operação de Carlos! O assassino trouxera com ele dois militantes — os primeiros três biscateiros. Três homens armados, e ele estava apenas com um revólver. Encurralado no último andar da casa. E Carlos ainda estava lá dentro. Lá dentro. Se ele pudesse sair, Carlos é que estaria encurralado! Se pudesse sair. Sair! Havia uma janela no fim do corredor. Jason virou-se em direção a ela, cambaleando, segurando o pescoço, encolhendo o ombro para minorar a dor no peito. Abriu a janela; pequena, de vidro fino, enquanto os raios de luz púrpura e azul entravam pelo vidro. Era inquebrável, o batente preso com rebites; não havia jeito de tirar nenhuma das vidraças. Em seguida, seus olhos voltaram-se para baixo, para a Rua Setenta e Um. O caminhão de mudanças se fora! Alguém o levara embora... um dos militantes de Carlos! Sobraram dois. Dois homens, não três. E ele estava no andar de cima, havia sempre mais vantagem para que está no andar de cima. O rosto retorcido de dor, um pouco encurvado, Bourne aproximou-se da primeira porta à esquerda, paralela ao último lance da escada. Abriu-a e deu um passo para dentro. Pelo que podia ver, a sala era um quarto comum: lâmpadas, mobília pesada, quadros nas paredes. Pegou a primeira lâmpada,
puxou o fio da parede e levou-a para perto do corrimão. Depois levantou-a acima da cabeça e jogou-a para baixo, dando um passo para trás, enquanto o metal e o vidro se quebravam lá embaixo. Houve outro tiroteio, as balas estilhaçando o teto. Jason gritou, deixando que o grito se transformasse em choro, e o choro em lamento prolongado. Depois o silêncio. Foi até o corrimão. Esperou. Silêncio. Aconteceu. Podia ouvir os passos lentos e cautelosos; o matador estivera escondido no segundo andar. Os passos se aproximaram, ficando mais nítidos. Uma sombra apagada projetou-se na parede. Agora. Bourne levantou-se de onde estava e atirou quatro vezes, em rápida sucessão, contra a figura que estava na escada. Uma linha de furos de bala e o sangue jorrando apareceram no colarinho do homem. O matador girou, urrando de raiva e dor, enquanto o pescoço se arqueava para trás e o corpo era arremessado pelos degraus abaixo até ficar imóvel, esparramado, o rosto contra os três primeiros degraus. Nas mãos uma automática, parada. Agora. Jason correu para a escada, desceu-a correndo, segurando-se no corrimão, tentando manter o que lhe restava de equilíbrio. Não podia perder um minuto; talvez nunca mais tivesse outro. Se ia chegar ao segundo andar teria que ser agora, imediatamente depois da morte do militante. E assim que pulou por cima do corpo morto, Bourne constatou que era mesmo um militante, e não Carlos. O homem era alto e tinha a pele muito clara, as feições nórdicas. Jason correu para o saguão do segundo andar, procurando as sombras, agarrando-se às paredes. Parou, ficou ouvindo. Ouviu um arranhão agudo a distância, um breve ruído vindo de baixo. Agora sabia o que devia fazer. O assassino estava no primeiro andar. E o som não fora deliberado, não fora alto nem suficientemente prolongado para ser uma armadilha. Carlos estava ferido — uma rótula esmagada ou um pulso quebrado poderiam desorientá-lo a ponto de fazê-lo colidir com um móvel qualquer ou raspar a roupa contra a parede com a arma na mão, perdendo por um breve instante o equilíbrio, como Bourne perdia o seu. Era isso o que precisava saber. Jason agachou-se, subiu de novo a escada para perto do corpo estendido nos degraus. Tinha que descansar um pouco, estava perdendo as forças e muito sangue. Tentou comprimir a carne do alto de sua garganta e pressionar o ferimento no peito — qualquer coisa que pudesse estancar a hemorragia. Inútil; para permanecer vivo teria que sair da casa de granito, ir para longe do lugar onde Caim nascera. Voltou a respirar novamente; estendeu a mão e alcançou a arma automática nas mãos do morto. Estava pronto. Estava morrendo e estava pronto. Pegar Carlos. Cercar Carlos... Matar Carlos! Não podia sair, sabia disso. O tempo não estava do seu lado. O sangue se escoaria antes que isso acontecesse. O fim era o começo: Caim era para Carlos e Delta era para Caim. Apenas uma pergunta agonizante permanecia: quem era Delta? Não importava. Tudo isso ficara para trás agora, logo seriam as sombras, não violentas, mas pacíficas... a liberdade da própria pergunta. E com a sua morte Marie ficaria livre, o seu amor ficaria livre. Homens decentes cuidariam dela, orientados por um homem decente em Paris, cujo filho fora morto na Rua du Bac, a vida destruída pela amante de um assassino. Dentro dos próximos minutos, pensou Jason, silenciosamente checando o pente de balas da automática, cumpriria a sua promessa para aquele homem, levaria avante o acordo que tinha com homens a quem desconhecia. Fazendo isto, conseguiria provar tudo. Jason Bourne morrera uma vez neste mesmo dia; morreria de novo, mas levaria Carlos consigo. Estava pronto.
Abaixou-se, ficando de bruços, as mãos acima dos cotovelos, arrastando-se no topo da escada. Podia sentir o cheiro de sangue abaixo dele, o odor adocicado penetrando-lhe nas narinas; mostrandolhe um aspecto prático: o tempo estava correndo. Chegou ao último degrau, colocou-se de pé, procurando no bolso uma das lanternas que comprara na loja de artigos do Exército e da Marinha na Avenida Lexington. Sabia agora por que sentira a compulsão de comprá-las. Reportara-se à esquecida Tam Quan, completamente esquecida a não ser por suas brilhantes e ofuscantes luzes. Os sinaleiros lhe haviam lembrado de alguma coisa; eles poderiam incendiar toda a selva agora. Puxou o pavio encerado de dentro do sinaleiro, levou-o aos dentes e mordeu a corda, encurtando o pavio para pouco mais de dois centímetros. Do outro bolso tirou um isqueiro de plástico; pressionou-o contra o sinaleiro, os dois em sua mão esquerda. Depois, segurou a arma contra o ombro direito, encostando o metal contra o pano de sua roupa ensopada de sangue; era mais seguro. Estendeu as pernas e, como uma cobra, começou a descer o último lance da escada, a cabeça para baixo, os pés para cima, as costas arranhando a parede. Chegou no meio da escada. Silêncio, escuridão, todas as luzes apagadas... Luzes? Luz? Onde estavam os raios de sol que vira no corredor há alguns minutos? Eles se haviam escoado por um par de portas francesas no outro lado da sala — aquela sala — depois do corredor, mas agora Jason só via a escuridão. A porta fora fechada, a porta abaixo dele, a única que restava naquele corredor, também estava fechada, marcada por um tênue raio de luz no alto. Carlos tentava fazê-lo escolher. Por trás de qual das portas? Ou o assassino estaria usando uma estratégia melhor? Estaria ele na escuridão daquele mesmo corredor escuro? Bourne sentiu uma pontada de dor na espádua, depois o sangue jorrou, encharcando a camisa de flanela por baixo do uniforme. Outro aviso: restava pouco tempo. Encostou-se contra a parede, a arma apontada para a escuridão do corredor. Agora! Puxou o gatilho. As explosões em staccato rasgaram as colunas e o gradil do corrimão caiu, as balas ricocheteando nas, paredes e na porta lá embaixo. Soltou o gatilho, segurando o isqueiro na mão direita e o sinaleiro na esquerda. Acendeu o isqueiro e encostou-o no pavio. Depois levou a mão de volta à arma e novamente apertou o gatilho, fazendo explodir tudo lá embaixo. Um candelabro de vidro caiu ao chão, as balas ricocheteando a escuridão. E subitamente — luz! Luz ofuscante quando o sinaleiro acendeu, incendiando a selva, as chamas subindo pelas árvores e paredes, os caminhos escondidos e os corredores de mogno. O cheiro fétido da morte e da selva estava em todos os lugares, e ele estava lá. Almanc para Delta. Almanac para Delta. Abandone! Abandone! Nunca. Não agora. Não no fim. Caim é para Carlos e Delta é para Caim. Cerque Carlos. Mate Carlos! Bourne pôs-se de pé, as costas contra a parede, o sinaleiro na mão esquerda, a arma explosiva na direita. Mergulhou na rasteira vegetação atapetada, abrindo a porta com um pontapé, molduras de prata flamejando e troféus caindo das mesas e prateleiras, explodindo no ar. Contra as árvores. Parou; não havia ninguém naquela sala tranqüila, elegante, à prova de som. Ninguém na selva. Girou e voltou para o corredor, furando as paredes com um prolongado tiroteio. Ninguém.
A porta no final do corredor estreito e escuro. Lá dentro ficava a sala onde Caim nascera. Onde Caim morreria, mas não sozinho. Segurou o fogo, passando o sinaleiro para a mão direita por baixo da arma e pegando no bolso o segundo sinaleiro. Tirou-o do bolso e de novo puxou o pavio e levou-o aos dentes, cortando a corda, desta vez a poucos milímetros do contato com a gelatina incendiária. Aproximou o sinaleiro da chama, a explosão de luz foi tão brilhante que lhe doeu nos olhos. Desajeitadamente, segurou os dois sinaleiros na mão esquerda e movimentando-se, as pernas e braços perdendo a batalha para o equilíbrio, aproximou-se da porta. Estava aberta. O assassino estava se ajeitando, mas no instante em que olhou para aquela porta, Jason instintivamente soube de algo que Carlos não sabia. Fazia parte do seu passado, da sala onde Caim nascera. Estendeu a mão direita, encostando a arma entre o antebraço e o quadril, e pegou na maçaneta. Agora. Abriu um pouco a porta e arremessou para dentro os dois sinaleiros acesos. Uma explosão em staccato de um revólver Sten ecoou através da sala, através de toda a casa, mil ruídos mortos formando um acorde, contínuo, enquanto as balas se alojavam na porta forrada por uma placa de aço. O tiroteio cessou, o pente de balas terminara. Agora. Bourne colocou de novo a mão no gatilho, jogou o ombro contra a porta e entrou, atirando em círculo enquanto rolava no chão, movendo as pernas como se fossem ponteiros de relógio. Tiros retornavam selvagemente, enquanto Jason apontava sua arma em direção aos tiros. Um urro de fúria ecoou na escuridão da sala; Bourne percebeu então que as cortinas haviam sido fechadas, interrompendo a luz das portas francesas. Mas então por que havia tanta luz... uma luz que aumentava da escuridão? Era-lhe opressivo, causando-lhe explosões na cabeça, agudas pontadas de dor nas têmporas. A tela! A imensa tela fora baixada do teto e esticada até o chão, a flama brilhante e larga era o fogo branco de uma chama fria e brilhante. Jogou-se para trás da mesa, procurando a proteção de um bar de frio cobre; levantou-se e puxou novamente o gatilho, desencadeando novo tiroteio — o tiroteio final. Acabara o último pente de balas. Levantou a arma pela coronha e jogou-a contra a figura vestida de macacão branco com um lenço de seda que lhe caíra do rosto. O rosto! Ele o conhecia! Já o vira antes! Onde?... Onde? Em Marselha? Sim... Não! Zurique? Paris? Sim e não! De repente surpreendeu-se naquele instante na luz escura e trêmula, o rosto do outro lado da sala era conhecido de muitos, não apenas dele. Mas de onde? Onde? Como tantas outras coisas, ele o conhecia e não o conhecia. Mas ele o conhecia! Apenas não conseguia se lembrar do nome. Pôs-se de pé detrás do bar de frio cobre pesado. Um tiro, dois... três, a segunda bala abriu-lhe a carne do braço esquerdo. Puxou a pistola automática do cinto, restavam-lhe três balas. Uma delas tinha que ir de encontro ao seu alvo — Carlos. Havia um débito a ser pago em Paris, e um contrato a ser cumprido, o seu amor estaria longe e seguro com a morte do assassino. Pegou o isqueiro de plástico, acendeu-o e encostou-o em um pedaço de pano que estava pendurado em um gancho. O pano pegou fogo, ele o segurou e atirou-o para a sua direita, enquanto se jogava para a esquerda. Carlos atirou no pedaço de pano em fogo, enquanto Bourne girava nos joelhos, apontando a arma e puxando o gatilho
duas vezes. O vulto perdeu o equilíbrio mas não caiu. Ao contrário, agachou-se, depois se levantou como uma pantera, as mãos espalmadas. O que estava fazendo? Então Jason percebeu. O assassino agarrou uma ponta da imensa tela branca, puxando-a do teto para baixo com todo o seu peso e força. Ela desceu sobre Bourne, obliterando-lhe a visão e bloqueando-lhe todo o pensamento. Ele gritou enquanto a tela branca caía sobre ele, de repente mais amedrontado por causa dela do que por causa de Carlos ou outro ser humano qualquer sobre a face da terra. Aquilo o deixou aterrorizado e furioso, cortando-lhe os pensamentos em fragmentos; as imagens cruzavam-se em seus olhos, enquanto vozes iradas lhe gritavam nos ouvidos. Levantou a pistola e atirou contra aquele barulho terrível. Enquanto batia com as mãos selvagemente contra a tela, tentando empurrar o pano branco para longe do seu corpo, entendeu. Ele atirara a sua última bala, sua última. Como uma lenda chamada Caim, Carlos conhecia e distinguia pelo som todos os tipos de armas existentes sobre a face da terra; ele contara os tiros. O assassino arremessou-se contra ele, a automática na mão apontada contra a sua cabeça. — A sua decisão, Delta. No dia marcado. Por tudo o que você fez. Bourne encurvou as costas, rolando furiosamente para a direita; pelo menos morreria em movimento! Tiros encheram a sala, como agulhas quentes entrando pelo seu pescoço, furando suas pernas, cortando sua cintura. Girar, girar! De repente os tiros pararam, e na distância ele podia ouvir ruídos de insistentes batidas contra a madeira e o aço, cada vez mais fortes. E uma batida ensurdecedora no corredor escuro fora da biblioteca, seguida por gritos de homens correndo, e de algum lugar no mundo lá fora, o barulho insistente de sirenes. — Aqui dentro! Ele está aqui dentro! — gritou Carlos. Que loucura! O assassino orientava os invasores em sua direção, em sua direção! A razão era insana, nada na Terra tinha sentido. A porta foi aberta por um homem alto vestido com um sobretudo preto; tinha mais alguém com ele, mas Jason não podia ver. As névoas encheram-lhe os olhos, formas e sons tramando-se obscuros, manchados. Ele estava rolando no espaço. Para longe... longe. Mas de repente viu uma coisa que não queria ver. Os ombros rígidos que flutuavam acima da cintura afilada correndo para fora da sala em direção ao corredor mal-iluminado. Carlos. Seus gritos haviam aberto a armadilha! Ele invertera a armadilha! No caos, trapaceara os caçadores. Estava fugindo! — Carlos... — Bourne sabia que não podia ser ouvido; e o que saiu da sua garganta sangrando foi apenas um sussurro. Tentou novamente, forçando o som a sair do seu estômago. — É ele. É... Carlos! Havia confusão, ordens gritadas inutilmente, comandos engolidos em consternação. Então
divisou um vulto. Um homem capengava em sua direção, um aleijado que tentara matá-lo em um cemitério nos arredores de Paris. Não restara nada! Jason rastejou em direção à chama ofuscante, flamejante. Agarrou-a e segurou-a como se fosse uma arma, fazendo pontaria para o assassino de bengala. — Venha! Venha Chegue perto, seu bastardo! Queimarei seus olhos! Você pensa que vai me matar mas não vai! Vou matá-lo! Vou queimá-lo! — Você não entende — disse a voz trêmula do assassino aleijado. — Sou eu, Delta. Conklin. Eu estava enganado. A flama chamuscou suas mãos, seus olhos!... Loucura. As explosões estavam a sua volta agora, cegando, ensurdecendo, pontuadas de guinchos agudos que vinham da selva, e rompendo a cada detonação. A selva! Tam Quan! O úmido e quente odor fétido estava em todos os lugares, mas eles haviam chegado lá! O campo da base era deles! Uma explosão à sua esquerda, ele podia vê-la. Bem alta, acima do chão, suspensa entre as árvores, as pontas agudas de uma gaiola de bambu. O vulto lá dentro se movimentava. Estava vivo! Era preciso chegar até ele, alcançá-lo! Um grito veio da sua direita. Ofegante, tossindo por causa da fumaça, um homem capengava em direção à densa folhagem, um rifle na mão. Era ele, o cabelo loiro visto na luz, um pé quebrado por causa do salto de pára-quedas. O bastardo! Um sujeito imundo que treinara com eles, estudara os mapas com eles e voara para o Norte com eles... o tempo todo armando uma cilada contra eles! Um traidor com um rádio onde comunicava aos inimigos exatamente onde procurá-los naquela selva impenetrável que era Tam Quan. Era Bourne! Jason Bourne. Traidor, sujo! Pegue, não deixe que ele alcance os outros! Mate-o! Mate Jason Bourne! Ele é seu inimigo! Fogo! Ele não caiu! A cabeça que fora separada do corpo ainda estava lá. E vinha em sua direção! O que estava acontecendo? Loucura. Tam Quan... — Venha conosco — disse o vulto que capengava, saindo da floresta para o que sobrara de uma sala elegante. Aquela sala. — Não somos seus inimigos. Venha conosco. — Deixem-me! — Bourne emergiu de novo, agora para trás da tela caída. Era seu santuário, seu esconderijo de morte, o cobertor jogado sobre um homem à morte, o linho para o seu caixão. — Vocês são meus inimigos. Vou levá-los todos comigo! Sou Delta! Caim é para Charlie e Delta é para Caim! O que mais querem de mim? Fui e não fui! Sou e não sou! Seus bastardos, bastardos! Venham! Cheguem mais perto! Outra voz foi ouvida, uma voz mais grave, mais calma, menos insistente. — Tragam-na.
Tragam-na para cá. De algum lugar longe as sirenes se aproximavam num crescendo, e em seguida pararam. Veio a escuridão e as ondas carregaram Jason para o céu noturno, apenas para jogarem seu corpo para baixo novamente, deixando-o cair em um abismo de águas revoltas e violentas. Estava entrando na eternidade da memória sem peso. Uma explosão encheu o céu, um diadema de fogo levantou-se das águas escuras. E em seguida ouviu as palavras faladas das nuvens, enchendo a terra. — Jason, meu amor. Meu único amor. Segure minha mão. Segure-a. Com força, Jason. Com força, meu querido. E a paz chegou com a escuridão.
Epílogo O general colocou o arquivo no sofá ao seu lado. — Não preciso disto — disse para Marie St. Jacques, sentada à sua frente, numa cadeira de espaldar reto. — Já repeti isto tudo muitas vezes, tentando achar onde erramos. — Vocês fizeram suposições quando ninguém podia fazê-las — disse a única pessoa, além dos dois, na suíte do hotel. Era o Dr. Morris Panov, psiquiatra. Ele estava perto da janela; o sol da manhã entrava, deixando seu rosto nas sombras. — Permiti que fizessem suposições, viverei com isto para o resto da minha vida. — Faz quase duas semanas, já — disse Marie impaciente. — Eu gostaria de saber mais especificamente. Acho que sou capaz de entender. — Você é. Foi uma insanidade chamada licença. — Insanidade — concordou Panov. — E também proteção —. acrescentou Crawford. — Assino esta parte. Deveria continuar por um bom tempo ainda. — Proteção? — Marie franziu a testa. — Chegaremos lá — disse o general, olhando para Panov. — Do ponto de vista de todos, é vital. Acho que todos nós aceitamos isso. — Por favor! Jason... quem é ele? — Seu nome é David Webb. Era oficial de carreira do serviço estrangeiro, um especialista em Extremo Oriente, até a sua separação do Governo, há cinco anos. — Separação? — Renúncia por acordo mútuo. Seu trabalho na Medusa impedia uma carreira sistemática no Departamento de Estado. “Delta” era indigno, e quase todos sabiam que ele era Webb. Tais homens são quase sempre malvistos nas mesas diplomáticas de reunião. Não acho que deveria ser assim. Ferimentos viscerais são facilmente reabertos com a presença deles. — Ele era tudo o que dele diziam? Na Medusa? — Sim. Estive lá. Ele era tudo o que diziam. — É difícil acreditar — disse Marie. — Ele perdeu algo muito especial, e não pôde suportar isso. Apenas pôde continuar, ir em frente.
— O que era? — Sua família. Sua mulher era de Thai; tinham dois filhos, um menino e uma menina. Ele estava locado em Phnom Penh, sua casa era nas margens do Rio Mekong. Numa tarde de domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam fora, no dique, um avião se extraviou em círculos e mergulhou, bombardeando a área. Quando ele chegou ao rio, o dique fora bombardeado, a mulher e os filhos estavam flutuando na água, os corpos estraçalhados. — Oh, Deus! — sussurrou Marie. — A quem pertencia o avião? — Nunca foi identificado. Hanói disse que não era seu, Saigon disse que era nosso. Lembre-se, o Camboja era neutro; ninguém queria ser o responsável. Webb teve que ser transferido; foi para Saigon e treinou para a Medusa. Trouxe um intelecto de especialista para uma operação muito brutal. Tomou-se Delta. — Foi quando ele se encontrou com d’Anjou? — Mais tarde, sim. Delta já era bastante famoso na época. O Serviço de Inteligência nortevietnamita oferecera um prêmio. extraordinário por sua cabeça, e não é segredo que entre os nossos muitos queriam que a sua captura fosse bem-sucedida. Depois Hanói descobriu que o irmão mais novo de Webb era oficial do Exército em Saigon, e tendo estudado bem Delta — sabendo que o irmão estava perto — decidiu armar uma cilada; eles nada tinham a perder. Raptaram o tenente Gordon Webb e levaram-no para o Norte, mandando de volta para o Cong um informante com a notícia de que ele estava preso no setor de Tam Quan. Delta mordeu a isca; juntamente com o informante — um agente duplo —, formou um grupo de medusianos que conheciam a área e escolheu uma noite em que nenhum avião de combate poderia voar para o Norte. D’Anjou estava nesta unidade. E outro homem a quem Webb não conhecia, um homem branco, comprado por Hanói, técnico em comunicações, que podia reunir os componentes eletrônicos de um rádio de alta freqüência no escuro. O que ele realmente fez, delatando a posição do grupo. Webb conseguiu vencer a cilada e encontrou o irmão. Também descobriu o agente duplo e o homem branco. Os vietnamitas escaparam na selva; o homem branco não. Delta o executou assim que o divisou. — E esse homem? Os olhos de Marie estavam presos em Crawford. — Jason Bourne. Era um medusiano de Sidney, da Austrália; um atravessador de armas, tóxicos e escravos por todo o Sudeste da Ásia. Um homem violento com um recorde criminal que era não obstante brilhante — se o preço fosse bastante bom. Estava nos interesses da Medusa empanar as circunstâncias de sua morte; tornou-se um desaparecido em ação de uma unidade especializada. Anos mais tarde, quando a Treadstone estava sendo formada e Webb voltou, ele próprio tomou o nome de Bourne. Porque preenchia os requisitos de autenticidade, de investigação. Tomou o nome do homem que o traiu, do homem que ele matara em Tam Quan. — Onde estava ele quando foi chamado para a Treadstone? — perguntou Marie. — O que fazia? — Lecionava em uma pequena universidade de Nova Hampshire. Levava uma vida isolada, alguns diziam que destrutiva. Para ele. — Crawford pegou o arquivo de registros. — Estes são os fatos
essenciais, senhorita St. Jacques. Outras áreas são da competência do Dr. Panov, que já deixou bem claro que minha presença não é necessária. Há no entanto um pequeno detalhe que deve ser muito bem entendido. É uma ordem direta da Casa Branca. — A proteção — disse Marie, e suas palavras eram uma declaração. — Sim. Aonde ele for, seja qual for a identidade que vier assumir, ou o sucesso de seu disfarce, ele será integralmente vi giado. Durante todo o tempo, mesmo que! nada aconteça. — Por favor, explique-me isso. — Ele é o único homem vivo que viu, Carlos. Como Carlos. Conhece a identidade dele, mas este conhecimento está bloqueado em algum lugar de sua mente, faz parte de um passado do qual não se lembra. Percebemos pelo que ele disse que Carlos é alguém que muitos conhecem — uma figura bastante conhecida de um governo de algum lugar, ou das comunicações, da sociedade, ou do grupo de banqueiros internacionais. Isto coaduna com uma teoria corrente, O problema é que algum dia esta identidade poderá vir à tona na mente de Webb. Sabemos que vocês conversaram muito com o Dr. Panov. Creio que ele confirmará tudo o que eu lhe disse. Marie virou-se para o psiquiatra. — É verdade, Mo? — É possível — respondeu Panov. Crawford saiu da sala e Marie serviu-se e ao médico de café. Panov foi até o sofá onde o general estivera sentado. — Ainda está quente — disse, sorrindo. — Crawford estava suando nos seus famosos costados. Ele tem todos os motivos para isso, todos eles têm. — O que vai acontecer? — Nada. Absolutamente nada até que eu lhes diga que podem continuar. E isto pode não ser daqui a muitos meses, um par de anos, por tudo que sei. Não antes que ele esteja pronto. — Para o quê? — As perguntas. E fotografias — pilhas delas. Estão fazendo uma compilação fotográfica, uma enciclopédia baseada nas esparsas descrições que ele lhes forneceu. Não me entenda mal; um dia ele terá que começar. Ele vai querer isso, nós todos queremos que ele o faça. Carlos tem que ser preso, e não é intenção minha fazer qualquer chantagem para que eles nada façam. Muitas pessoas deram muito; ele deu bastante. Mas agora é ele quem vem em primeiro lugar. Sua cabeça está em primeiro lugar. — É isso que quero dizer. O que vai acontecer a ele? Panov colocou a xícara em cima da mesa. — Ainda não estou muito certo. Tenho muito respeito pela mente humana para enganar você com psicologia barata; tem muita coisa em mãos erradas. Já estive em todas as reuniões — eu mesmo insisti nisto — e conversei com os outros especialistas e
neurocirurgiões. É verdade que podemos entrar com uma faca e encontrar os centros mais agitados, reduzir as ansiedades, dar-lhe um pouco de paz. Até mesmo, talvez fazê-lo voltar ao que foi. Mas este não é o tipo de paz que ele quer... e há um risco muito maior. Podemos retirar muitas coisas, tirar as coisas que ele já encontrou — continuará a encontrar. Com cuidado. Com o tempo. — Tempo? — Acredito que sim. Porque os padrões já foram estabelecidos. Há crescimento, a dor do reconhecimento e a excitação da descoberta. Isto lhe diz alguma coisa? Marie olhou para os olhos escuros e cansados de Panov; havia uma luz neles. — Para todos nós — disse ela. — Isto mesmo. De certa forma, ele é um microcosmos simbolizando todos nós. Quero dizer, todos nós tentamos descobrir quem afinal de contas somos nós, não é? Marie foi até a janela da frente da casa à beira-mar, as dunas elevando-se atrás, os jardins cercados. E guardas. A cada cinqüenta pés um homem armado. Ela podia vê-lo a muitas jardas dali, perto da praia; ele observava as conchas na água, saltando pelas ondas que iam bater gentilmente na praia. As semanas haviam sido muito boas para ele. Seu corpo estava coberto de cicatrizes, mas inteiro de novo, de novo firme. Os pesadelos ainda estavam lá, e alguns momentos de angústia lhe voltavam durante o dia, mas de qualquer forma eram bem menos aterrorizantes. Começava a enfrentar, começava a rir de novo. Panov estivera certo. As coisas estavam acontecendo para ele; imagens lhe voltavam mais claras, com significado mais profundo, quando antes não tinham significado algum. Algo acontecera agora! Oh, Deus, o que era? Ele se jogara na água e se debatia, gritando. De repente, ele saiu, pulando as ondas em direção à praia. A distância, na cerca de arame farpado, um guarda se virou, um rifle foi posto debaixo do braço e um rádio portátil tirado do cinto. Ele começou a correr pela areia molhada em direção à casa, o corpo sendo arremessado para a frente, gingando, os pés cavando furiosamente a superfície macia, deixando para trás espumas de água e areia. O que era? Marie ficou gelada, preparada para o momento que sabiam que um dia chegaria, preparada para o som de um tiro. Ele entrou porta adentro, o peito arfando. Olhou para ela, os olhos tão claros quanto ela jamais os vira. Ele falou com voz macia, tão macia que ela quase não podia ouvi-lo. Mas o ouviu. — Meu nome é David... Ela caminhou lentamente em sua direção. — Olá, David — disse.
Para Shannon Paige Ludlum Seja bem-vinda, meu amor Tenha uma grande vida
Capítulo 1 Kowloon. A fervilhante extensão final da China que não é parte do norte, exceto em espírito... mas o espírito vai fundo e penetra pelas cavernas das almas dos homens, sem qualquer consideração pelos aspectos práticos, duros e irrelevantes das fronteiras políticas. A terra e a água são a mesma coisa, e é a vontade do espírito que determina como o homem as usará... outra vez sem qualquer consideração por abstrações como a liberdade inútil ou o confinamento de que se pode escapar. A preocupação é apenas com barrigas vazias, com as barrigas das mulheres, as barrigas das crianças. Sobrevivência. Não há mais nada. Todo o resto é estrume espalhado pelos campos inférteis. Era o pôr-do-sol, e tanto em Kowloon como no outro lado de Victoria Harbor, na ilha de Hong Kong, um manto invisível baixava gradativamente sobre o caos do dia no território. Os estridentes Aiyas! dos mascates das ruas eram abafados pelas sombras, enquanto negociações discretas nos níveis superiores das estruturas frias e imponentes, de vidro e aço, que marcavam a silhueta da colônia terminavam com acenos de cabeça e dar de ombros, e breves sorrisos de silenciosa aquiescência. A noite estava chegando, anunciada por um ofuscante sol laranja, penetrando por uma imensa, irregular e fragmentada muralha de nuvens a oeste — hastes bem definidas de energia inflexível, prestes a mergulharem além do horizonte, relutantes em permitirem que aquela parte do mundo esquecesse a luz. Em breve a escuridão se estenderia pelo céu, mas não por baixo. Ali, as luzes feéricas de invenção humana iluminariam o mundo com fulgor — essa parte do mundo em que a terra e a água são avenidas de acesso e conflito. E com o interminável e estridente carnaval noturno, outros jogos começariam, jogos que a raça humana deveria ter abandonado com a primeira luz da Criação. Mas não havia vida humana então... e assim, quem podia registrar? Quem sabia? Quem se importava? A morte não era uma mercadoria. Uma pequena embarcação, o potente motor contrastando com o exterior em péssimas condições, avançava em alta velocidade pelo Canal Lamma, contornando a costa, em direção ao porto. Para um observador desinteressado, seria apenas mais uma xiao wanju, o legado ao primogênito de um pescador outrora insignificante que obtivera uma pequena fortuna... uma noite de sorte incrível no mahjong, haxixe do Triângulo, jóias contrabandeadas de Macau, quem se importava como? O filho poderia lançar suas redes ou transportar sua mercadoria com mais eficiência, usando um hélice veloz em vez da vela lenta de um junco ou o lento motor de uma sampana. Mesmo os guardas chineses da fronteira e as patrulhas marítimas ao largo das praias de Shenzhen Wan não disparavam contra aqueles transgressores de menor importância; nada significavam, e quem sabia quantas famílias além dos Novos Territórios no continente poderiam se beneficiar? Podia ser até a família de um deles. As doces ervas das colinas ainda podiam encher as barrigas... talvez as deles mesmos. Quem se importava? Que viessem. E que fossem. A pequena embarcação com a lona Bimini envolvendo os dois lados da cabine de proa diminuiu a velocidade e ziguezagueou cautelosamente pela flotilha dispersa de juncos e sampanas, voltando aos apinhados atracadouros em Aberdeen. Uns após outros, os tripulantes dessas embarcações gritaram insultos irados para a intrusa, seu motor insolente e sua esteira ainda mais insolente. Mas todos se tornavam estranhamente silenciosos quando a agressiva intrusa passava; alguma coisa sob a lona reprimia as súbitas explosões de fúria.
A embarcação disparou pelo corredor do porto, uma trilha de água escura, agora margeado pelas luzes brilhantes da ilha de Hong Kong à direita e de Kowloon à esquerda. Três minutos depois o motor de popa mudou de maneira audível para o registro mais baixo, enquanto o costado passava devagar por duas barcaças imundas atracadas, esgueirando-se para um espaço vazio no lado oeste do Tsim Sha-tsui, o apinhado e valorizado cais de Kowloon. As hordas estridentes de mercadores, preparando suas armadilhas noturnas para os turistas, não prestaram a menor atenção; era apenas mais uma jigi voltando da pescaria. Quem se importava? Depois, como já acontecera com os tripulantes das embarcações no canal, as pessoas nos estandes mais próximos da insignificante intrusa, começaram a se aquietar. Vozes excitadas silenciaram, em meio a estridentes ordens e contra-ordens, enquanto os olhos eram atraídos para um vulto subindo a escada escura e oleosa para o píer. Era um homem santo. O corpo estava envolto por um cafetã branco, que acentuava a altura e a magreza... muito alto para um Zhongguo ren, talvez com mais de um metro e oitenta. Mas pouco se podia ver do rosto, pois a túnica era folgada e a brisa soprava o tecido branco pelas feições morenas, ressaltando o branco dos olhos... olhos determinados, olhos fanáticos. Qualquer um podia perceber que não era um sacerdote comum. Era um heshang, um eleito, escolhido pelos anciãos de muita sabedoria, que podiam perceber o conhecimento espiritual interior de um jovem monge destinado a coisas mais elevadas. E não fazia mal que um monge assim fosse alto e esguio, que tivesse olhos de fogo. Tais homens santos atraíam atenção para si mesmos, para a sua presença — para seus olhos —, e a decorrência era contribuições generosas, tanto por medo como por reverência; principalmente por medo. Talvez aquele heshang viesse de uma das seitas místicas que vagueavam pelas colinas e florestas de Guangze ou de uma fraternidade religiosa das montanhas da distante Qing Gaoyuan — descendentes, ao que se dizia, de um povo dos longínquos Himalaias — sempre muito ostentosos e a que geralmente se devia temer, pois poucos compreendiam os seus obscuros ensinamentos. Eram ensinamentos versados em suavidade, mas com insinuações sutis de agonia indescritível, caso suas lições fossem ignoradas. Havia agonia demais na terra e na água... quem precisava de mais? Assim, era melhor dar aos espíritos, aos olhos de fogo. Talvez ficasse registrado. Em algum lugar. O vulto de branco passou lentamente pelas multidões que se abriam à sua frente no cais, passou pelo congestionado píer da Star Ferry e desapareceu no crescente pandemônio do Tsim Sha-tsui. O momento passara, os estandes retomaram à sua histeria. O sacerdote encaminhou-se para leste, pela Salisbury Road, até alcançar o Peninsula Hotel, cuja elegância discreta estava perdendo a batalha contra o ambiente ao redor. Virou para o norte pela Nathan Road, seguindo até o começo da Golden Mile, a rua das ruas, exuberante, em que multidões opostas clamavam por atenção. Tanto os nativos quanto os turistas observavam o imponente homem santo em sua passagem pelas lojas apinhadas e vielas abarrotadas de mercadorias, discotecas de três andares e cafés eróticos, onde cartazes enormes e amadorísticos apregoavam os encantos orientais, por cima de estandes que ofereciam as iguarias fumegantes do dim sum. Andou por quase dez minutos pelo carnaval esfuziante, de vez em quando respondendo a olhares com ligeiros acenos de cabeça, duas vezes sacudindo-a com firmeza ao dar ordens para o mesmo Zhongguo ren baixo e musculoso, que alternadamente o seguia e depois o ultrapassava, com passos rápidos, que pareciam de uma dança, virando-se para contemplar os olhos ardentes à procura de um sinal.
O sinal veio — dois bruscos acenos de cabeça —, e o sacerdote virou-se e passou pela entrada de cortina de contas de um cabaré ruidoso. O Zhongguo ren permaneceu do lado de fora, a mão discretamente por baixo da túnica folgada, os olhos correndo pela rua frenética, um lugar que não podia entender. Era uma insanidade! Uma afronta! Mas ele era o tudi; protegeria o homem santo com sua própria vida, por maior que fosse a agressão à sua sensibilidade No interior do cabaré, as intensas camadas de fumaça eram cortadas por luzes coloridas errantes, a maior turbilhonando em círculos e se concentrando num palco elevado, onde um grupo de rock ululava num frenesi ensurdecedor, uma mistura incrível de punk e Extremo Oriente. Calças pretas lustrosas, bem justas e malfeitas, tremiam vertiginosamente em pernas compridas e esguias, por baixo de blusões pretos de couro, sobre camisas brancas de seda abertas até a cintura, cada cabeça raspada, cada rosto grotesco, pintados, para acentuar seu caráter oriental essencialmente passivo. E como a enfatizar o conflito entre Oriente e Ocidente, a música dissonante parava de vez em quando, de maneira inesperada, e afloravam os acordes melancólicos de uma melodia chinesa simples, enquanto os vultos se enrijeciam sob o bombardeio turbilhonante dos refletores. O sacerdote permaneceu imóvel por um momento, contemplando a sala vasta e apinhada. Diversos fregueses, em graus variados de embriaguez, fitaram-no das mesas. Vários rolaram moedas em sua direção antes de se virarem para o outro lado, uns poucos se levantaram, largaram dólares de Hong Kong ao lado de seus drinques e se encaminharam para a porta. O heshang estava causando efeito, mas não o desejado pelo homem obeso, de smoking, que se aproximou dele. — Posso servi-lo em alguma coisa, Homem Santo? — indagou o gerente do cabaré. O sacerdote inclinou-se para a frente e sussurrou no ouvido do homem, pronunciando um nome. Os olhos do gerente se arregalaram, ele fez uma reverência e depois gesticulou para uma mesa pequena, junto à parede. O sacerdote acenou com a cabeça em agradecimento e acompanhou o gerente até a cadeira, enquanto os fregueses próximos olhavam, contrafeitos. O gerente inclinou-se e disse, com uma reverência que não sentia: — Gostaria de tomar algum refresco, Homem Santo? — Leite de cabra, se por acaso tiver. Se não, água pura será mais do que suficiente. E obrigado. — É um privilégio do estabelecimento. O gerente fez outra reverencia e afastou-se, tentando definir o dialeto lento e suave que não conseguia identificar. Mas não importava. Aquele sacerdote alto, de túnica branca., tinha negócios a tratar com o laoban, e isso era tudo o que importava. Chegara mesmo a pronunciar o nome do laoban, um nome raramente falado na Golden Mile. Naquela noite em particular, o poderoso taipan estava ali.., numa sala que não admitiria publicamente conhecer. Mas não cabia ao gerente informar ao laoban que o sacerdote se encontrava no cabaré; o homem de túnica deixara isso bem claro. Insistira que naquela noite a priva cidade devia ser absoluta. Quando o augusto taipan desejasse recebê-lo, um homem viria encontrá-lo. E assim tinha de ser; era a maneira do discreto laoban, um dos mais ricos e ilustres taipans de Hong Kong.
— Mande um garoto da cozinha sair à rua para providenciar leite de cabra —ordenou o gerente asperamente ao responsável pelo andar. — E diga a ele para se apressar. A existência de sua fétida prole vai depender disso. O homem santo permaneceu sentado à mesa, passivamente, os olhos ardentes agora mais suaves, observando a atividade insensata, ao que tudo indicava sem condenar nem aceitar, mas apenas com a compaixão de um pai a contemplar filhos desgarrados. Abruptamente, através das luzes em movimento, houve uma claridade intrometida. A várias mesas de distância, um fósforo forte se acendeu e apagou. Depois outro e finalmente um terceiro, este último levantado para uma cigarrilha preta e comprida. A sucessão de clarões de fósforos atraiu a atenção do sacerdote. Virou a cabeça lentamente na direção da chama, fixando-se no chinês solitário, barbudo e rudemente vestido que se desenhava na fumaça. Os olhos se encontraram; o aceno de cabeça do homem santo foi quase imperceptível, mal chegou a ser um movimento? sendo correspondido por um gesto também quase indefinível, enquanto o fósforo se extinguia. Segundos depois, a mesa do fumante rudemente vestido pegou fogo, e as chamas se elevavam da superfície, espalhando-se depressa por todos os artigos de papel que ali estavam — guardanapos, cardápios, cestas de dim sum, em erupções isoladas de desastre em potencial. O desgrenhado chinês gritou e virou a mesa, com o maior estardalhaço, enquanto garçons corriam, berrando, na direção das chamas. Fregueses por todos os lados se levantaram, enquanto o fogo no chão — filetes de chamas azuis — inexplicavelmente se espalhava em torno dos pés a baterem. O pandemônio aumentou, enquanto as pessoas tentavam apagar as pequenas fogueiras com toalhas de mesa e aventais. O gerente e seus assistentes gesticulavam freneticamente, gritando que estava tudo sob controle, o perigo já passara. O conjunto de rock passou a tocar com uma intensidade ainda maior, tentando atrair a multidão de volta à sua órbita, afastando-a da área do pânico que já definhava. E, de repente, houve um distúrbio ainda maior, uma erupção mais violenta. Dois empregados do cabaré colidiram com o Zhongguo ren em trajes esfarrapados, cuja negligência e fósforos enormes haviam causado o incêndio. Ele reagiu com cuteladas rápidas de Wing Chun — as mãos rígidas acertando em omoplatas e gargantas — enquanto os pés acertavam em barrigas, jogando os dois shi-ji para cima dos fregueses ao redor. A agressão física aumentou o pânico, o caos. O corpulento gerente, agora gritando, tentou intervir e também caiu, atordoado por um pontapé bem colocado nas costelas. O Zhongguo ren barbudo pegou então uma cadeira e jogou-a contra os vultos que berravam perto do homem caído, enquanto três outros garçons se metiam na confusão, em defesa de seu Zongguan. Homens e mulheres que apenas poucos segundos antes se limitavam a gritar passaram agora a sacudir os braços, agredindo qualquer um e todos que estivessem próximos. O grupo de rock atingiu seu limite máximo, a dissonância frenética à altura da cena. O tumulto era total, e o atarracado camponês olhou para o outro lado da sala, na direção da mesa pequena junto da parede. O sacerdote desaparecera. O Zhongguo ren barbudo pegou uma segunda cadeira e espatifou-a contra uma mesa próxima, depois sacudiu uma perna quebrada para a multidão. Não faltava muito agora, mas aqueles poucos momentos eram cruciais. O sacerdote passou pela porta do outro lado, na parede ao lado da entrada do cabaré. Fechou-a depressa, ajustando os olhos à semi-escuridão do corredor comprido e estreito. O braço direito estava
rígido por baixo das dobras da túnica branca, o esquerdo estendido em diagonal pela cintura, também oculto pelo pano branco. No fim do corredor, a não mais que sete ou oito metros, um homem surpreso afastou-se abruptamente da parede, a mão direita enfiada sob o paletó para sacar, de um coldre invisível no ombro, um revólver enorme e de grosso calibre. O homem santo acenou com a cabeça, devagar, impassível, repetidamente, enquanto se adiantava, em passos graciosos, apropriados a uma procissão religiosa. — Amita-fo, Amita-fo — murmurou ele suavemente, várias vezes, enquanto se aproximava do homem. — Tudo é sereno, tudo é paz, os espíritos assim querem. — Jou matyeh? — O guarda estava ao lado de uma porta; empurrou a arma para a frente e acrescentou, no cantonês gutural de quem foi criado nos povoados do norte. — Está perdido, sacerdote? O que está fazendo aqui? Saia! Não pode entrar aqui! — Amita-fo, Amita-fo... — Saia! Agora! O guarda não teve qualquer chance. O sacerdote puxou, das dobras na cintura, uma faca de gume duplo, fina como uma navalha. Passou-a pelo pulso do homem, quase separando do braço a mão que empunhava a arma, e depois passou a lâmina, com precisão cirúrgica, pela garganta de seu oponente; ar e sangue esguicharam, a cabeça foi arremessada para trás, numa massa de vermelho brilhante. O guarda caiu ao chão, já um cadáver. Sem a menor hesitação, o sacerdote-assassino guardou a faca manchada de sangue na túnica e do lado direito tirou uma pequena metralhadora Uzi, o pente curvo com mais munição do que precisaria. Levantou o pé e lançou-o contra a porta com a força de um tigre das montanhas, depois correu para o interior, ao encontro do que sabia estar ali. Cinco homens — Zhongguo ren — estavam sentados em torno de uma mesa, com bules de chá e copos de uísque forte perto de cada um; não havia papéis escritos em qualquer parte, não havia anotações ou memorandos, apenas ouvidos e olhos vigilantes. E à medida que cada par de olhos se virou em choque, os rostos se contorceram em pânico. Dois negociantes bem vestidos enfiaram as mãos por dentro dos paletós impecáveis, enquanto giravam em suas cadeiras; outro se jogou sob a mesa, enquanto os dois restantes se levantavam de um pulo, gritando, e corriam inutilmente para as paredes forradas de seda, desesperados, rogando por um perdão, mesmo sabendo que não haveria nenhum. Uma saraivada implacável atingiu os Zhongguo ren. O sangue jorrou de ferimentos fatais, crânios foram crivados de balas, olhos perfurados, bocas dilaceradas, num vermelho intenso, em gritos sufocados de morte. As paredes, o chão e a mesa envernizada reluziam de maneira chocante, com a prova sangrenta da morte. Por toda parte. Estava acabado. O assassino contemplou sua obra. Satisfeito, ajoelhou-se ao lado de uma poça grande e estagnada de sangue, e passou nela o indicador. Tirou um pedaço de pano escuro da manga esquerda e estendeu-o por cima do que fizera. Levantou-se e saiu correndo da sala, desabotoando a túnica branca enquanto atravessava o corredor escuro; a túnica estava inteiramente aberta quando chegou à porta de ligação com o cabaré. Removeu a faca do tecido e ajeitou-a na bainha à cintura. Unindo as dobras do
tecido com uma das mãos, o capuz no lugar, a arma letal segura do lado, abriu a porta e passou para o caos ruidoso, que não apresentava qualquer sinal de diminuir. Mas também por que deveria ser diferente? Ele se ausentara por apenas trinta segundos, não mais do que isso, e seu homem era bem treinado. — Faai-di! — O grito partiu do camponês barbudo e atarracado de Cantão, a três metros de distância, que virava outra mesa e riscava mais um fósforo, largando-o no chão. — A polícia vai chegar a qualquer momento! O homem do bar acabava de pegar o telefone! Eu vi! O sacerdote-assassino tirou a túnica do corpo e o capuz da cabeça. Às luzes frenéticas, seu rosto era tão macabro quanto o de qualquer componente do grupo de rock. Uma maquilagem intensa contornava os olhos, linhas brancas definindo o formato de cada um, o rosto de um castanho anormal. — Siga na minha frente! — ordenou ele ao camponês. Largou a túnica e a Uzi no chão, ao lado da porta, depois tirou um par de finas luvas cirúrgicas e guardou-as na calça de flanela. Chamar a polícia para um cabaré na Golden Mile não era uma decisão tomada facilmente. Havia multas altas para administração insatisfatória, penalidades rigorosas pelos riscos para os turistas. A polícia conhecia esses riscos e agia rapidamente quando eles ocorriam. O assassino correu atrás do camponês de Cantão, que se juntou à multidão em pânico na entrada do cabaré, gritando para sair. O pequeno homem era um touro; os corpos à frente se afastaram sob a força de seus golpes. Os dois passaram pela porta e saíram para a rua, onde outra multidão se concentrara, gritando perguntas e epítetos, gozando o infortúnio do estabelecimento. Esgueiraram-se pelos espectadores excitados, e outro chinês baixo e musculoso, que esperava lá fora, acompanhou-os. Este pegou o braço do sacerdote sem hábito e levou-o para o mais estreito dos becos, onde tirou duas toalhas de baixo da túnica. Uma era macia e seca, a outra estava dentro de um plástico, quente, úmida e perfumada. O assassino pegou a toalha úmida e começou a esfregá-la no rosto, em torno dos olhos, pela carne exposta do pescoço. Virou a toalha e repetiu o processo, com pressão ainda maior, limpando as têmporas e a linha dos cabelos, até que a pele branca apareceu. Enxugou-se com a segunda toalha, alisou os cabelos escuros e endireitou a gravata por cima da camisa creme, sob o blazer azul-marinho. — Jau! — ordenou ele a seus dois companheiros, que saí ram correndo e desapareceram no meio da multidão. E um ocidental solitário e bem-vestido saiu para a rua dos prazeres orientais. Dentro do cabaré, o nervoso gerente censurava o homem do bar por ter chamado a jing cha; as multas cairiam em sua cabeça de merda! Pois a comoção inexplicavelmente se desvanecera, deixando os fregueses aturdidos. Garçons acalmavam os fregueses, dando tapinhas em ombros e removendo os destroços da confusão, endireitando mesas, providenciando novas cadeiras e distribuindo doses grátis de uísque. O grupo de rock concentrou-se nas músicas modernas prediletas e a ordem foi restabelecida, tão depressa quanto fora abalada. Com um pouco de sorte, pensou o gerente de smoking, a explicação de que um barman mais afoito confundira um bêbado beligerante com algo mais grave seria aceitável para
a polícia. E, de repente, todos os pensamentos de multas e pressão oficial se desvaneceram quando se olhos foram atraídos para um pano branco no chão, no outro lado da sala... diante da porta para as salas internas. Pano branco, um branco imaculado... o sacerdote? A porta! O laoban! A reunião! Respiração ofegante, o rosto coberto de suor, o obeso gerente correu entre as mesas até a túnica descartada. Ajoelhou-se, os olhos arregalados, prendendo a respiração ao ver o cano escuro de uma arma estranha saindo por baixo das dobras brancas. E o que o deixou sufocado, em seu terror que se avolumava, foi a visão de pequenas manchas e filetes finos de sangue lustroso e ainda não de todo seco no pano. — Go hai maiyeh? A pergunta foi feita por um segundo homem de smoking, só que sem o realce conferido pela faixa — na verdade, irmão do gerente e seu primeiro-assistente. E ele acrescentou uma imprecação, baixinho, enquanto o irmão recolhia a arma de aparência estranha na túnica manchada de sangue: — Oh, maldito seja o cristão Jesus! — Venha! — ordenou o gerente, levantando-se e encaminhando-se para a porta. — A polícia! — protestou o irmão. — Um de nós tem de esperar aqui, falar com os guardas, acalmá-los, fazer o que for possível. — Talvez não possamos fazer outra coisa que não oferecer as nossas cabeças! Depressa! A prova estava no corredor escuro. O guarda abatido estava caído num rio do próprio sangue, a arma empunhada por uma mão quase que totalmente cortada do pulso. E a prova se tornava completa e irrefutável na sala de reunião. Cinco cadáveres ensangüentados estavam espalhados ali, numa confusão terrível. Um deles, de forma específica, chocante, atraiu o interesse horrorizado do gerente. Aproximouse do corpo e crânio perfurados. Com um lenço, limpou o sangue e contemplou o rosto. — Estamos perdidos — balbuciou ele. — Kowloon está perdida, Hong Kong está perdida, tudo está perdido. — Como assim? — Este homem é o Vice-Primeiro-Ministro da República Popular, sucessor do próprio Presidente. — Olhe aqui! O irmão primeiro-assistente estava inclinado sobre o corpo do laoban morto. Ao lado do cadáver ensangüentado, crivado de balas, havia um lenço preto. Estava aberto, os arabescos brancos exibindo manchas vermelhas. O irmão levantou o lenço e descobriu aturdido o que estava escrito no círculo de sangue por baixo: JASON BOURNE. O gerente levantou-se de um pulo.
— Grande Jesus Cristão! — exclamou ele, o corpo inteiro tremendo. — Ele voltou! O assassino está de novo na Ásia! Jason Bourne! Ele voltou!
Capítulo 2 O sol mergulhava por trás das Montanhas Sangre de Cristo, na região central do Cobrado, enquanto o helicóptero Cobra emergia ruidosamente da claridade intensa — uma gigantesca silhueta em movimento — e descia para o limiar da floresta na encosta. A pista de concreto ficava a várias dezenas de metros de uma casa grande e retangular, de madeira e vidro grosso. Além dos geradores e discos de comunicações camuflados, não havia qualquer outra estrutura à vista. Arvores altas formavam uma muralha compacta, escondendo a casa de todos os forasteiros. Os pilotos daqueles aparelhos extremamente manobráveis eram recrutados entre os oficiais superiores do complexo de Cheyenne, em Cobrado Springs. Nenhum deles tinha patente inferior à de coronel, e todos haviam sido submetidos ao crivo do Conselho de Segurança Nacional, em Washington. Nunca falavam de suas viagens ao refúgio na montanha; o destino era sempre eliminado dos planos de vôo. As instruções eram transmitidas pelo rádio depois que os helicópteros já estavam no ar. O local não constava de qualquer mapa público, e seu sistema de comunicações estava além do escrutínio de aliados e inimigos. A segurança era total; tinha de ser. Aquele era um lugar para estrategistas; seu trabalho era tão sensível e freqüentemente acarretava implicações globais tão delicadas que os planejadores não podiam ser vistos juntos fora dos prédios do governo ou mesmo lá dentro, jamais em salas contíguas com portas de ligação. Havia olhos hostis e inquisitivos por toda parte — tanto aliados como inimigos — que estavam a par do trabalho daqueles homens; se os observassem juntos, os alarmes disparariam no mundo inteiro. O inimigo era vigilante, e os aliados resguardavam ciosamente os seus feudos de informações. As portas do Cobra se abriram. Uma escada de aço foi baixada e um homem obviamente aturdido desceu para a luz dos refletores. Estava acompanhado por um general-de-divisão. O civil era esguio, de meia-idade, estatura mediana, vestia um terno listrado, camisa branca e gravata estampada. Mesmo ao sopro forte das pás do rotor em desaceleração, seu aprumo impecável se manteve intacto, como se fosse algo muito importante para ele e que não podia ser afetado. Ele seguiu o general, subindo um caminho de concreto até uma porta no lado da casa. A porta foi aberta quando os dois se aproximaram. Mas só o civil entrou; o general acenou com a cabeça, oferecendo uma saudação informal, que os militares veteranos reservam para os paisanos e oficiais do mesmo posto. — Foi um prazer conhecê-lo, Sr. McAllister — disse o general. — Será levado de volta por outro. — Não vai entrar? — Nunca estive aí dentro — respondeu o general, sorrindo. — Apenas me certifico de que é de fato a pessoa e a levo do Ponto B ao Ponto C. — Parece um desperdício para alguém do seu posto, general. — Provavelmente não é — comentou o militar, sem acrescentar qualquer outro comentário. — E agora tenho outros deveres a cumprir. Adeus. McAllister avançou por um corredor comprido, acompanhado agora por um homem corpulento, de rosto jovial, bem vestido, que apresentava todas as características externas de um agente da
Segurança Interna — fisicamente ágil e competente, anônimo numa multidão. — Fez boa viagem, senhor? — perguntou o homem mais jovem. — E alguém pode fazer uma boa viagem numa coisa daquelas? O guarda riu. — Por aqui, senhor. Passaram por várias portas, nos dois lados do corredor, chegando à extremidade, onde havia uma porta dupla maior, com duas luzes vermelhas nos cantos superiores, esquerdo e direito. Eram câmaras em circuitos separados. Edward McAllister não via artefatos assim desde que deixara Hong Kong, dois anos antes... e mesmo então porque fora designado por um breve período para o MI-6 do Serviço de Informações britânico, Setor Especial, para consultas. Em sua opinião, os britânicos pareciam paranóicos em questões de segurança. Jamais compreendera aquela gente, especialmente depois que lhe concederam uma citação por lhes prestar um serviço mínimo, que eles já deviam para começo de conversa dominar por completo. O guarda bateu na porta, houve um discreto estalido e ele a abriu, dizendo: — Seu outro convidado, senhor. — Muito obrigado — agradeceu uma voz. O atônito McAllister reconheceu a voz no mesmo instante, de dezenas de noticiários de rádio e televisão, ao longo dos anos, as inflexões aprendidas numa escola preparatória exclusiva e diversas universidades de prestígio, com uma carreira de pós-graduação nas Ilhas Britânicas. Mas não houve tempo para se recompor. O homem de cabelos grisalhos, impecavelmente vestido, rosto alongado e vincado, que acusava os seus setenta e tantos anos, levantou-se de trás de uma mesa grande e atravessou a sala cautelosamente, com a mão estendida. — Que bom que tenha vindo, Sr. Subsecretário! Posso me apresentar? Sou Raymond Havilland. — Sei quem é, Sr. Embaixador. É um privilégio conhecê-lo, senhor. — Embaixador sem pasta, McAllister, o que significa que só restou pouco privilégio. Mas ainda há muito trabalho. — Não posso imaginar qualquer Presidente dos Estados Unidos nos últimos vinte anos que tenha sobrevivido sem o senhor. — Alguns se confundiram, Sr. Subsecretário. Mas com sua experiência no Departamento de Estado, desconfio que sabe disso melhor do que eu. — O diplomata virou a cabeça. — Eu gostaria de apresentá-lo a John Reilly. Jack é um desses associados do Conselho de Segurança Nacional muito bem informados, sobre os quais não deveríamos ter qualquer conhecimento. Mas ele não é tão assustador, não é?
— Espero que não — murmurou McAllister, atravessando a sala e indo apertar a mão de Reilly, que se levantara de uma das duas cadeiras de couro na frente da mesa. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Reilly. — O prazer é meu, Sr. Subsecretário — disse o homem um tanto obeso, de cabelos ruivos e testa sardenta. Os olhos por trás dos óculos de aros de aço não transmitiam qualquer jovialidade; eram penetrantes e frios. Encaminhando-se para trás da mesa e indicando a cadeira vazia à direita para McAllister, Havilland disse: — O Sr. Reilly está aqui para cuidar que eu me mantenha na linha. Pelo que compreendo, isso significa que há algumas coisas que posso dizer, outras não, e umas poucas que só ele pode dizer. — O embaixador sentou. — Se isso lhe parece enigmático, Sr. Subsecretário, receio que seja tudo o que posso lhe oferecer a essa altura. — O que aconteceu durante as últimas cinco horas, desde que recebi a ordem para me apresentar na Base Andrews da Força Aérea, tem sido um enigma, Embaixador Havilland. Não tenho a menor idéia do motivo pelo qual me trouxeram até aqui. — Pois então vou explicar, em termos gerais —disse Havilland, olhando para Reilly e inclinando-se por cima da mesa. — Está em condições de prestar um serviço extraordinário a seu país... e a interesses muito além deste país... superando qualquer coisa que possa ter feito durante a sua longa e notável carreira. McAllister estudou o rosto austero do embaixador, sem saber como responder. — Minha carreira no Departamento de Estado tem sido satisfatória e, espero, profissional, mas não pode ser classificada de notável, no sentido mais amplo da palavra. Para ser franco, as oportunidades nunca se apresentaram. — Há uma agora. E se encontra numa posição excepcional para realizá-la. — De que forma? E por quê? — O Extremo Oriente — respondeu o diplomata, com uma estranha inflexão na voz, como se a resposta constituísse uma indagação. — Está no Departamento de Estado há mais de vinte anos, desde que concluiu o curso de doutorado em Estudos do Extremo Oriente, em Harvard. Serviu a seu país de maneira louvável, passando muitos anos na Ásia. Desde que voltou de seu último posto, seus julgamentos foram extremamente valiosos na formulação da política para aquela parte conturbada do mundo. É considerado um brilhante analista. — Agradeço suas palavras, mas quero lembrar que havia outros na Ásia. E muitos outros, que alcançaram uma posição igual ou superior à minha. — Acidentes de percurso, Sr. Subsecretário. Vamos falar francamente: tem se saído muito bem.
— Mas o que me distingue dos outros? Por que sou mais qualificado para essa oportunidade do que eles? — Porque nenhum outro se compara ao senhor como um especialista nos problemas internos da República Popular da China... creio que desempenhou um papel fundamental nas conferências comerciais entre Washington e Pequim. Além disso, nenhum dos outros passou sete anos em Hong Kong. — Raymond Havilland fez então uma pausa e depois acrescentou: — E, finalmente, nenhum outro em nossos postos asiáticos jamais foi designado ou aceito pelo MI-Seis britânico, Setor Especial. — Ahn... — McAllister compreendeu que a última qualificação, que lhe parecia a menos importante, tinha um certo significado para o diplomata. — Meu trabalho no serviço de informações foi mínimo, Sr. Embaixador. A aceitação do Setor Especial foi baseada mais em sua própria... desinformação; creio que é esta a palavra, do que em qualquer talento especial meu. Eles simplesmente acreditavam nos conjuntos errados de fatos e as somas não conferiam. Não levei muito tempo para encontrar os “dados corretos”, como me lembro que eles disseram. — Eles confiaram em você, McAllister. E ainda confiam. — Posso presumir que essa confiança é essencial para essa oportunidade, qualquer que seja? — Claro. É vital. — E posso agora saber qual é a oportunidade? — Pode sim. — Havilland olhou para o terceiro participante da reunião, o homem do Conselho de Segurança Nacional. — Se quiser... — Muito bem, é a minha vez — disse Reilly, um tanto afável. Deslocou o tronco enorme na cadeira e fitou McAllister, os olhos ainda rígidos, mas sem a frieza que haviam exibido antes, como se agora pedisse por alguma compreensão. — Nossas vozes estão sendo gravadas neste momento... é seu direito constitucional saber disso... mas é um direito bilateral. Deve jurar que vai manter em segredo absoluto as informações que lhe serão transmitidas aqui, não apenas no interesse da segurança nacional, mas também no interesse possivelmente mais amplo de condições mundiais específicas. Sei que tudo isso parece uma isca para aguçar seu apetite, mas não é essa a intenção. Estamos falando muito sério. Vai concordar com isso? Se violar o juramento pode ser processado em julgamento secreto, sob os estatutos de sigilo da segurança nacional. — Como posso concordar com uma condição dessas se ainda não tenho a menor idéia de qual é a informação? — Posso lhe oferecer uma idéia geral e será suficiente para responder sim ou não. Se a resposta for não, será levado de volta a Washington. Ninguém sairá perdendo. — Pode falar.
— Muito bem. — Reilly falava em tom calmo e suave. — Vamos discutir determinados eventos que ocorreram no passado... não a história antiga, mas também não acontecimentos atuais. As ações foram repudiadas... enterradas, para ser mais preciso. Isso lhe parece familiar, Sr. Subsecretário? — Sou do Departamento de Estado. Enterramos o passado quando não há qualquer sentido em revelá-lo. As circunstâncias mudam, os julgamentos feitos de boa fé ontem podem se tornar um problema amanhã. Não podemos controlar essas mudanças, e o mesmo acontece com os russos e chineses. — É isso mesmo! — exclamou Havilland. — Ainda não — objetou Reilly, levantando a mão para o embaixador. — O subsecretário é evidentemente um diplomata experiente. Não disse sim nem não. —O homem do CSN tornou a fitar McAllister, os olhos por trás dos óculos de aros de aço outra vez penetrantes e frios. — Qual é a sua resposta, Sr. Subsecretário? Quer continuar ou prefere parar por aqui? — Uma parte de mim quer se levantar e sair daqui o mais depressa possível — respondeu McAllister, olhando alternadamente para os dois homens. — A outra parte quer ficar. — Fez uma pausa, os olhos se fixando em Reilly, depois acrescentou: — Quer tenha sido essa a sua intenção ou não, o fato é que meu apetite está aguçado. — É um preço muito alto a pagar por sentir fome —comentou o irlandês. — É mais do que isso. — O subsecretário falava suave- mente. — Sou um profissional... e se sou o homem de que precisa, então não tenho opção, não é mesmo? — Infelizmente, preciso ouvir uma resposta direta — insistiu Reilly. — Quer que eu repita a pergunta? — Não será necessário. — McAllister franziu o rosto, concentrado em algum pensamento. — Eu, Edward Newington McAllister, compreendo perfeitamente que tudo o que se disser durante esta reunião... — Fez uma pausa, fitando Reilly nos olhos. — Presumo que vai preencher os detalhes, como horário, local e pessoas presentes. — Data, local, hora e minuto, identificações... tudo está sendo devidamente registrado. — Obrigado. Vou querer uma cópia antes de ir embora. — Não tem problema. — Sem altear a voz, Reilly olhou para a frente e deu uma ordem. — Por favor, anote isso.Quero uma cópia desta gravação para o participante no momento de sua partida. Providencie também o equipamento para ele verificar o conteúdo no local. Vou rubricar a cópia... Continue, por favor, Sr. McAllister. — Agradeço a presteza... Em relação ao que se disser nesta reunião, aceito a condição de sigilo absoluto. Não falarei com ninguém a respeito de qualquer aspecto da conversa, a menos que seja instruído em contrário, pessoalmente, pelo Embaixador Havilland. Compreendo também que posso ser processado em julgamento secreto se violar este acordo. Contudo, se tal julgamento vier a ocorrer,
reservo-me o direito de confrontar meus acusadores, não suas declarações ou depoimentos. Acrescento isto porque não posso conceber quaisquer circunstâncias em que pudesse violar o juramento que acabo de prestar. — Mas há circunstâncias em que isso pode acontecer — ressaltou Reilly, gentilmente. — Não pelo meu código. — Extremo maltrato físico, agentes químicos, ser enganado por homens e mulheres mais experientes. Há sempre meios, Sr. Subsecretário. — Faço questão de repetir. Caso eu venha a ser processado algum dia... e isso já aconteceu com outros... reservo-me o direito de confrontar qualquer um e todos os meus acusadores. — Está certo. Reilly tornou a olhar para a frente e disse: — Encerre a gravação e desligue os microfones. Confirme. — Confirmado — respondeu uma voz estranha, saindo de um alto-falante em algum lugar por cima. — Vocês estão agora... desligados. — Continue, Sr. Embaixador — disse o homem de cabelos ruivos. — Só vou interromper quando julgar necessário. — Tenho certeza que sim, Jack. —Havilland virou-se para McAllister. — Retiro minha declaração anterior. Ele é mesmo um terror. Depois de quarenta e tantos anos de serviço, me aparece um fedelho ruivo que deveria fazer uma dieta para me dizer quando devo me calar. Os três homens sorriram; o idoso embaixador conhecia o momento e o método para reduzir a tensão. Reilly sacudiu a cabeça e abriu os braços, com expressão jovial. — Eu nunca faria isso, senhor... ou, pelo menos, não de maneira muito óbvia. — O que acha, McAllister? Vamos desertar para Moscou e dizer que foi ele o recrutador. Os russos provavelmente nos dariam dachas e ele iria para Leavenworth. — O senhor receberia a dacha, Sr. Embaixador. Eu partilharia um apartamento com uma dúzia de siberianos. Não, obrigado. Não é a mim que ele está interrompendo. — Muito bom. Fico surpreso que nenhum daqueles intrometidos bem-intencionados do Gabinete Oval jamais o tenha escolhido para a sua equipe ou pelo menos o tivesse mandado para a ONU. — Eles nem tinham conhecimento da minha existência. — Essa situação vai mudar. — Havilland ficou abrupta- mente sério. Fez uma pausa, olhando para o subsecretário, depois continuou, em voz mais baixa: — Já ouviu falar alguma vez no nome de Jason Bourne?
— Como alguém que trabalhou na Ásia poderia deixar de ouvir? — respondeu McAllister. — De trinta e cinco a quarenta assassinatos, o assassino de aluguel que se esquivou a todas as armadilhas. Um matador patológico, cuja única moral era o preço do crime. Dizem que era americano... que é americano, não sei direito, pois desapareceu por completo... e que era um padre despojado do hábito, um importador que roubou milhões, um desertor da Legião Estrangeira francesa e só Deus sabe quantas outras histórias. A única coisa que sei com certeza é que ele nunca foi apanhado e que nosso fracasso em capturá-lo foi um fardo para a diplomacia americana em todo o Extremo Oriente. — Havia algum padrão em suas vítimas? — Absolutamente nenhum. Foram as mais variadas, a torto e a direito, pode-se dizer assim. Dois banqueiros aqui, três adidos ali... significando agentes da CIA... um ministro de estado de Délhi, um industrial de Cingapura e numerosos... até demais... políticos, de um modo geral homens decentes. Seus carros eram bombardeados nas ruas, os apartamentos explodidos. Houve também maridos e esposas infiéis, amantes de todos os tipos, envolvidos em vários escândalos. Não havia ninguém que não matasse, nenhum método que fosse muito brutal ou aviltante para ele. Oferecia soluções finais para egos feridos... Não havia padrão nenhum, apenas dinheiro. A oferta mais alta. Ele era um monstro... é um monstro, se ainda está vivo. Mais uma vez, Havilland inclinou-se para a frente, os olhos fixados no Subsecretário de Estado. — Disse que ele desapareceu por completo. Apenas isso? Não soube de mais nada, não ouviu quaisquer rumores ou informações confidenciais de nossas embaixadas ou consulados na Ásia? — É claro que houve rumores, mas nenhum jamais foi confirmado. A história que ouvi com mais freqüência veio da polícia de Macau, onde a presença de Bourne foi constatada pela última vez. Disseram que ele não estava morto nem aposentado. Em vez disso, seguira para a Europa, à procura de clientes mais ricos. Se for verdade, pode ser apenas a metade da história. A polícia também declarou que diversos informantes revelaram que vários contratos saíram errados para Bourne. Em um caso, ele matou o homem errado, uma figura eminente do submundo malasiano. Em outro, teria estuprado a mulher de um cliente. Talvez o círculo estivesse se fechando sobre Bourne... e talvez não. — Como assim? — A maioria de nós aceitou a primeira metade da história não a segunda. Bourne não mataria o homem errado, especialmente alguém assim; não cometia esse tipo de erro. E se violentou a mulher de um cliente... o que é duvidoso... seria por ódio ou vingança. Teria obrigado o marido manietado a assistir e depois mataria os dois. A maioria de nós presumiu que a primeira história era a verdadeira. Bourne foi para a Europa, onde havia peixes maiores para fritar... e matar. — Vocês estavam condicionados a aceitar essa versão — comentou Havilland, recostando-se na cadeira. — Como assim? — O único homem que Jason Bourne matou na Ásia pós- Vietnam foi um agente furioso que tentou matá-lo.
McAllister estava aturdido. — Não estou entendendo. — O Jason Bourne que acaba de descrever nunca existiu. Era um mito. — Não pode estar falando sério. — Estou sim. Foram tempos turbulentos no Extremo Oriente. As redes de tráfico de tóxicos, operando do Triângulo Dourado, travavam uma guerra desorganizada e secreta. Cônsules, vicecônsules, policiais, políticos, quadrilhas de criminosos, patrulhas de fronteira... as ordens sociais mais altas e mais baixas... todos estavam sendo afetados. Dinheiro em quantidades incríveis era o instrumento de corrupção. Sempre e onde quer que ocorresse um assassinato bem divulgado... independente das circunstâncias ou de quem fosse acusado... Bourne entrava em cena e assumia o crédito pela morte. — Ele era o assassino — insistiu um confuso McAllister. — Havia os sinais, os seus sinais! Todo mundo sabia disso! — Todo mundo presumia, Sr. Subsecretário. Um telefonema irônico para a polícia, uma pequena peça de roupa enviada pelo correio, um lenço preto encontrado nas moitas no dia seguinte. Tudo era parte da estratégia. — Estratégia? Mas do que está falando? — Jason Bourne... O Jason Bourne original... era um assassino condenado, um fugitivo que morreu com uma bala na cabeça, num lugar chamado Tam Quan, nos últimos meses da guerra no Vietnam. Foi uma execução na selva. O homem era um traidor. O cadáver ficou lá para apodrecer... ele simplesmente desapareceu. Vários anos depois, o homem que o executou assumiu sua identidade para um dos nossos projetos, um projeto que quase deu certo, que deveria ter dado certo, mas que acabou fracassando. — Corno assim? — Escapou do nosso controle. Esse homem... um homem de bravura excepcional... passou três anos trabalhando para nós com o nome de Jason Bourne. Foi ferido, e o resultado foi uma amnésia. Ele perdeu a memória, não sabia quem era nem quem deveria ser. — Santo Deus! — Ele estava entre o fogo e a frigideira. Com a ajuda de um médico alcoólatra numa ilha do Mediterrâneo, tentou reconstituir sua vida, sua identidade. Mas, infelizmente, não conseguiu. Ele fracassou, mas a mulher que o amparara não. Seus instintos eram acurados; tinha certeza de que ele não era um assassino. Deliberadamente, forçou-o a analisar suas palavras, a avaliar seus talentos, até efetuar os contatos que o levariam de volta a nós. Acontece que nós, embora possuindo o mais sofisticado serviço de informações do mundo, não demos atenção ao fator humano. Preparamos uma armadilha
para matá-lo... — Devo interromper, Sr. Embaixador — disse Reilly. — Por quê? — protestou Havilland. — Foi o que fizemos, e a conversa não está mais sendo gravada. — Um indivíduo tomou essa decisão, não o governo dos Estados Unidos. isso deve ficar bem claro, senhor. — Está certo — concordou Havilland, acenando com a cabeça. — Seu nome era Conklin, mas isso é irrelevante, Jack . O pessoal do governo aceitou. Simplesmente aconteceu. — O pessoal do governo também contribuiu para salvar sua vida. — Só depois do fato consumado — murmurou Havilland. — Mas por quê? — indagou McAllister, agora inclinado para a frente, fascinado pela estranha história. — Ele era um dos nossos. Por que alguém haveria de querer matá-lo? — Sua perda de memória foi encarada como outra coisa. Acreditou-se erroneamente que ele mudara de lado, que matara três dos seus controles e sumira com muito dinheiro... fundos do governo, num total de quase cinco milhões de dólares. — Cinco milhões? — Atônito, o subsecretário de Estado arriou lentamente na cadeira. — Recursos dessa magnitude estavam à disposição dele pessoalmente? — Estavam —respondeu o embaixador. — E também eram parte do projeto, da estratégia. — Presumo que é nisso que o silêncio se torna necessário... no projeto. — É indispensável — interveio Reilly. — Não por causa do projeto em si... apesar de não termos apresentado desculpas pela operação... mas por causa do homem que recrutamos para se tornar Jason Bourne e do lugar de onde ele saiu. — A história está cada vez mais enigmática. — Vai ficar claro. — Falem sobre o projeto, por favor. Reilly olhou para Raymond Havilland, que acenou com a cabeça e disse: — Criamos um assassino a fim de atrair para uma armadilha o mais terrível assassino da Europa. — Carlos?
— Capta as coisas depressa, Sr. Subsecretário. — Quem mais podia ser? Na Ásia, Bourne e o Chacal estavam sendo constantemente comparados. — Essas comparações foram devidamente incentivadas — explicou Havilland. — E muitas vezes ampliadas e espalhadas pelos estrategistas do projeto, um grupo conhecido como Casa de Pedra 71. O nome derivou de uma casa segura na Rua 71, em Nova York, onde o ressuscitado Jason Bourne foi treinado. Era o posto de comando do projeto, e não deve esquecer esse nome. — Estou entendendo... — murmurou McAllister, pensativo. — As comparações, aumentando a reputação de Bourne, serviam como um desafio a Carlos. Foi nesta altura que Bourne se transferiu para a Europa... a fim de levar o desafio diretamente ao Chacal. Para forçá-lo a se expor, confrontando o desafiante. — Muito perspicaz, Sr. Subsecretário. Em suma, era essa mesmo a estratégia. — Era extraordinária, brilhante mesmo. E não é necessário ser um perito para se compreender isso. Deus sabe que eu não sou. — Mas pode se tornar... — E disse que o homem que se tornou Bourne, o assassino mítico, passou três anos representando o papel e depois foi ferido... — Levou um tiro —interrompeu Havilland. — Membranas do crânio foram destruídas. — E ele perdeu a memória? — Completamente. — Que coisa terrível! — Apesar de tudo o que lhe aconteceu e com a ajuda da tal mulher... ela era uma economista que trabalhava para o governo canadense, diga-se de passagem... ele chegou bem perto de descobrir tudo. Não acha que é uma história extraordinária?, — É simplesmente incrível. Mas que espécie de homem faria isso... seria capaz de fazer isso? O ruivo John Reilly tossiu de leve; o embaixador olhou para ele e passou-lhe a palavra. — Estamos chegando agora ao ponto zero — anunciou o cão de guarda, deslocando o corpanzil na cadeira para fitar McAllister. — Se ainda tem alguma dúvida, talvez eu aceite que pule fora agora. — Não gosto de me repetir. Já tem a sua gravação. — A vontade é sua.
— Imagino que isso é outra maneira que vocês têm de dizer que pode não haver sequer um julgamento. — Eu nunca diria isso. McAllister engoliu em seco, sustentando o olhar calmo do homem do CSN. Depois de um momento, virou-se para Havilland e disse: — Continue, por favor, Sr. Embaixador. Quem é esse homem? De onde ele veio? — Seu nome é David Webb. É no momento professor- associado de Estudos Orientais numa pequena universidade no Maine. Casou com a canadense que literalmente o guiou para fora de seu labirinto. Sem ela, Webb teria sido morto... mas também sem ele, a canadense acabaria como um cadáver em Zurique. — Extraordinário! — murmurou McAllister, a voz quase inaudível. — Ela é a segunda esposa de Webb. Seu primeiro casamento terminou num ato trágico de massacre brutal... o momento em que sua história começou para nós. Há alguns anos, Webb era um jovem diplomata, servindo em Phnom Penh, um brilhante estudioso do Extremo Oriente, que falava fluente- mente várias línguas orientais e era casado com uma tailandesa, a quem conhecera no curso de pós-graduação. Tinham dois filhos e moravam numa casa à beira do rio. Era uma vida ideal para um homem assim. Combinava o conhecimento de que Washington precisava na região com a oportunidade de viver em seu próprio museu. Foi então que começou a escalada no Vietnam. E veio a manhã em que um caça a jato solitário... ninguém sabe realmente de que lado, mas também ninguém jamais disse isso a Webb... sobrevoou o local em baixa altitude e metralhou sua mulher e filhos, enquanto brincavam na água. Os corpos ficaram crivados de balas. Flutuaram para a margem do rio, enquanto Webb tentava alcançá-los. Ele recolheu-os, gritando impotente para o avião que desaparecia lá em cima. — Que coisa horrível! — sussurrou McAllister. — Foi nessa ocasião que Webb se transformou. Virou um homem que nunca fora, que nunca se imaginara capaz de ser. Tornou-se um guerrilheiro, conhecido como Delta. — Delta? — repetiu o subsecretário de Estado. — Um guerrilheiro? Não estou entendendo. — Nem poderia. — Havilland olhou para Reilly e depois voltou a se fixar em McAllister. — Como Jack deixou bem claro, estamos agora no ponto zero. Webb foi para Saigon, dominado pelo ódio. Ironicamente, através dos esforços de um agente da CIA chamado Conklin, que anos mais tarde tentou matá-lo, ingressou numa unidade de operações clandestinas chamada Medusa. Jamais se usavam nomes em Medusa, apenas as letras do alfabeto grego... e Webb tornou-se Delta Um. — Medusa? Nunca ouvi falar. — Ponto zero — disse Reilly. — O arquivo de Medusa ainda é secreto, mas recebemos permissão para uma revelação limitada neste caso. Os grupos da Medusa eram integrados por elementos internacionais que conheciam os territórios norte e sul do Vietnam. Para ser franco, quase todos eram
criminosos... traficantes de tóxicos, ouro, armas, jóias, toda e qualquer espécie de contrabando. Havia também assassinos, fugitivos condenados à morte à revelia... e um punhado de colonos cujos negócios tinham sido confiscados, pelos dois lados. Contavam conosco... o Tio Grande... para resolver todos os seus problemas, em troca de se infiltrarem em áreas inimigas, matando os suspeitos de colaboração com os vietcongues e os chefes de aldeia que julgávamos hostis, além de promoverem, sempre que possível, a fuga de prisioneiros de guerra. Eram equipes de assassinato... esquadrões da morte, se preferir assim... e isso explica quase tudo. Mas é claro que nunca o diremos. Erros foram cometidos, milhões roubados. E é claro também que a maioria daquele pessoal nunca seria aceita em qualquer exército civilizado, inclusive Webb. — Com seus antecedentes, suas credenciais acadêmicas, como ele pôde ingressar voluntariamente num grupo assim? — Webb tinha um motivo irresistível — comentou Havilland. — Para ele, aquele avião em Phnom Penh era norte-vietnamita. — Alguns diziam que ele era louco — continuou Reilly. — Outros afirmavam que era um tático extraordinário, o supremo guerrilheiro, capaz de compreender a mente oriental e líder dos mais agressivos grupos da Medusa, temido pelo Comando de Saigon tanto quanto pelo inimigo. Webb era incontrolável, as únicas regras que seguia eram as suas. Parecia empenhado numa caçada pessoal, à procura do homem que pilotara aquele avião e destruíra sua vida. Tornou-se a sua guerra, a sua ira; quanto mais violenta ficava, mais satisfatória para ele... ou talvez mais o aproximasse de seu desejo de morte. — Morte?...? O subsecretário de Estado deixou a palavra pairando no ar. — Era a teoria predominante na ocasião — explicou o embaixador. — A guerra terminou para Webb... ou Delta... tão desastrosamente quanto para o resto de nós — acrescentou Reilly. — Talvez pior, porque nada restou para ele. Não havia mais propósito, nada para atacar, ninguém para matar. Até que o abordamos e lhe oferecemos uma razão para continuar a viver. Ou talvez uma razão para continuar a tentar morrer. — Transformando-se em Bourne e saindo à procura de Carlos, o Chacal — arrematou McAllister. — Exatamente — confirmou o homem do Conselho de Segurança Nacional. Houve um breve momento de silêncio, rompido por Havilland: — Precisamos de sua volta. As palavras foram pronunciadas suavemente, mas caíram como um machado em madeira dura. — Carlos tornou a aparecer?
O embaixador sacudiu a cabeça. — Não na Europa. Precisamos dele de volta na Ásia, e não podemos desperdiçar um minuto sequer. — Alguém mais? Outro... alvo? — McAllister engoliu em seco, involuntariamente. — Já falaram com ele? — Não podemos abordá-lo. Não diretamente. — Por que não? — Ele não nos deixaria passar por sua porta. Não confia em qualquer coisa ou pessoa de Washington; não se pode culpá-lo por isso. Por dias e semanas ele gritou por socorro, mas não quisemos escutar. Em vez disso, tentamos matá-lo. — Devo objetar outra vez — interveio Reilly. —Não fomos nós. Foi um indivíduo, com base numa informação errada. E o governo investe no momento mais de quatrocentos mil dólares por ano num programa de proteção a Webb. — De que ele escarnece. Acha que não passa de uma armadilha para Carlos, caso o Chacal venha a descobri-lo. Está convencido de que vocês não se importam com ele e não sei se está muito longe da verdade. Ele viu Carlos. O fato de que o rosto ainda não entrou em foco em sua mente é algo que Carlos desconhece. O Chacal tem todos os motivos para procurar Webb. E se isso acontecer, vocês terão a sua segunda oportunidade. — As possibilidades de Carlos encontrá-lo são tão remotas que se tornam praticamente inexistentes. Os registros da Casa de Pedra estão enterrados; e mesmo que isso não acontecesse, não contêm qualquer informação atualizada sobre o paradeiro de Webb ou o que ele faz. — Não venha com essa, Sr. Reilly — protestou Havilland, irritado. — Os registros revelam seus antecedentes e qualificações. Com base nisso, até que ponto seria difícil? Ele é obviamente um acadêmico. — Não estou lhe fazendo qualquer oposição, Sr. Embaixador — respondeu Reilly, um tanto abrandado. — Só quero deixar tudo bem claro. Vamos ser francos. Webb tem de ser tratado com o maior cuidado. Já recuperou grande parte de sua memória, mas não toda. De qualquer forma, recordou o bastante sobre Medusa para constituir uma ameaça considerável aos interesses do país. — Como assim? — indagou McAllister. — Talvez não tenha sido a melhor e provavelmente não foi a pior, mas foi em suma uma estratégia militar em tempo de guerra. — Uma estratégia que não foi aprovada, não foi registrada e nem reconhecida. Não há qualquer documento oficial. — Como é possível? A operação foi financiada, e quando recursos são aplicados...
— Não precisa me explicar os regulamentos — interrompeu-o o obeso agente de informações. — Não estamos sendo gravados agora, mas não esqueça que tenho o seu juramento. — É essa a sua resposta? — Não. É a seguinte: não há estatuto de limitação e prescrição dos crimes de guerra, Sr. Subsecretário... e assassinatos e outros crimes violentos foram cometidos contra nossas próprias forças e contra o pessoal aliado. De um modo geral, foram cometidos por assassinos e ladrões no processo de saquear, estuprar e matar. Quase todos eram criminosos patológicos. Por mais eficaz que tenha sido sob muitos aspectos, Medusa foi um erro trágico, nascido do ódio e da frustração numa situação em que a vitória era impossível. De que adiantaria reabrir todas as velhas feridas? Além dos processos contra nós, iríamos nos tornar parias aos olhos de grande parte do mundo civilizado. — Com já mencionei, não acreditamos em reabrir feridas no Departamento de Estado — comentou McAllister suave- mente, com alguma relutância. Voltando-se para o embaixador, acrescentou: — Estou começando a compreender. Quer que eu entre em contato com esse David Webb e tente persuadi-lo a voltar à Ásia. Para outro projeto, outro alvo... embora eu nunca tenha usado antes, em toda a minha vida, a palavra nesse contexto. E presumo que pedem a minha ajuda porque há paralelos evidentes no início de nossas carreiras... somos homens da Ásia. Assim, presumivelmente, temos percepções comuns em relação ao Extremo Oriente. E acham que ele vai me escutar. — Essencialmente, é isso. — Contudo, assegura que ele não quer qualquer contato conosco. É onde minha compreensão falha. Como eu poderia conseguir alguma coisa? — Faremos tudo juntos. E como ele outrora fazia as regras para si mesmo, também vamos fazêlas agora. É indispensável. — Por causa de um homem que vocês querem que seja morto? — “Eliminado” é uma palavra mais apropriada. Tem de ser feito. — E Webb pode fazê-lo? — Não. Jason Bourne pode. Nós o despachamos sozinho para a clandestinidade por três anos, sob uma pressão extraordinária... e de repente ele perdeu a memória, passou a ser caçado como um animal. Apesar disso, conservou a capacidade de se infiltrar e matar. Estou sendo um tanto rude. — Posso compreender. Já que não estamos sendo gravados... e caso isso ainda aconteça... — O subsecretário lançou um olhar de desaprovação para Reilly, que sacudiu a cabeça e deu de ombros. — Posso saber quem é o alvo? — Pode, sim... e quero que grave o nome na memória, Sr. Subsecretário. É um ministro de Estado chinês, Sheng Chou Yang.
McAllister corou, furioso. — Não preciso gravar o nome e acho que sabe disso muito bem. Ele trabalhava no grupo de planejamento econômico chinês e ambos participamos de conferências comerciais em Pequim, no final dos anos setenta. Li muito a seu respeito, analisei-o. Sheng era meu equivalente e eu não podia fazer por menos... um fato que desconfio que o senhor também sabe. — Acha mesmo? — O embaixador de cabelos grisalhos alteou as sobrancelhas escuras e ignorou a censura. — E o que os seus estudos revelaram? O que aprendeu a respeito de Sheng? — Ele era considerado muito inteligente, muito ambicioso... mas isso fica evidente por sua ascensão na hierarquia de Pequim. Foi reconhecido por observadores do Comitê Central há alguns anos, na Universidade Fudan, em Xangai. Inicialmente porque conhecia muito bem a língua inglesa e porque possuía uma noção firme e até mesmo sofisticada da economia ocidental. — E que mais? — Foi considerado um material promissor e, depois de uma doutrinação profunda, enviaram-no para a Escola de Economia de Londres, a fim de realizar estudos de pós-graduação. E foi assim que a coisa pegou. — Pode explicar isso? — Sheng é um marxista irredutível em termos de estado centralizado, mas tem um saudável respeito pelos lucros capitalistas. — Ahn... — murmurou Havilland. — Quer dizer que ele aceita o fracasso do sistema soviético? — Atribuiu esse fracasso à tendência russa para a corrupção e a conformidade insensata nos escalões superiores e o álcool nas camadas inferiores. Para seu crédito, eliminou uma parcela considerável desses abusos nos centros industriais. — Não parece que ele foi treinado na IBM? — Sheng é responsável por muitas das novas políticas comerciais da República Popular da China. E, com isso, ganhou muito dinheiro pan seu país. — O subsecretário de Estado tornou a se inclinar para a frente, os olhos intensos, uma expressão espantada... talvez atordoada fosse uma definição mais acurada. —Por que alguém no Ocidente haveria de querer Sheng morto? É um absurdo! Ele é nosso aliado econômico, um fator de estabilização política na maior nação do mundo, que se opõe a nós ideologicamente! Por intermédio dele e de outros homens iguais, conseguimos chegar a vários acordos. Sem ele, qualquer que seja o curso, há o risco de desastre. Sou um analista profissional da China, Sr. Embaixador. E insisto: o que está sugerindo é um absurdo. Um homem do seu gabarito deveria reconhecer isso antes de qualquer outro. O idoso diplomata fitou seu acusador nos olhos com expressão firme, e quando falou foi devagar, escolhendo as palavras com todo cuidado:
— Há poucos momentos, estávamos no ponto zero. Um ex-funcionário do serviço diplomático chamado David Webb tornou-se Jason Bourne para um propósito. Da mesma forma, Sheng Chou Yang não é o homem que você conhece, não é o homem que estudou como seu equivalente. Ele virou esse homem com um propósito. — Mas do que está falando? — protestou McAllister, na defensiva. — Tudo o que eu disse a respeito de Sheng está registrado... em registros oficiais... a maioria ultra-secreta e somente para os olhos de quem está autorizado. — Somente para os olhos? — repetiu o embaixador, em tom de cansaço. — Para os ouvidos e para as línguas também... mexendo tão depressa quanto um tigre abana a cauda. Porque um carimbo oficial foi acrescentado a observações registradas, consultadas por homens que não têm a menor idéia de onde vieram as informações... estão lá e isso é suficiente. Mas não é, Sr. Subsecretário. Nunca foi. — É evidente que possui outras informações de que não disponho — disse friamente o homem do Departamento de Estado. — Se é que é mesmo informação, e não desinformação. O homem que descrevi... o homem que conheci... é Sheng Chou Yang. — Assim como o David Webb que lhe descrevemos era Jason Bourne?... Por favor, não fique irritado. Não estou fazendo um jogo. É importante que compreenda que Sheng não é o homem que conheceu. Nunca foi. — Então quem conheci? Quem era o homem que participou daquelas conferências? — Ele é um traidor, Sr. Subsecretário. Sheng Chou Yang é um traidor de seu país. Quando sua traição for desmascarada... como é inevitável... Pequim vai responsabilizar o Mundo Livre. As conseqüências desse erro irremediável são inconcebíveis. Contudo, não há qualquer dúvida quanto a seu propósito. — Sheng... um traidor? Não posso acreditar! Ele é idolatrado em Pequim! Um dia ainda vai se tornar presidente! — Se isso acontecer, a China será governada por um nacionalista fanático, cujas raízes ideológicas estão em Formosa. — Está louco... completamente louco! Mas espere um instante! Disse que ele tinha um objetivo... “não há qualquer dúvida quanto a seu propósito”, foi o que falou. — Sheng e seu pessoal tencionam assumir o controle de Hong Kong. Ele está preparando uma blitz econômica secreta, pondo todo o comércio e todas as instituições econômicas do território sob o controle de uma comissão “neutra”, uma espécie de câmara de compensação, aprovada por Pequim... o que significa aprovada por ele. O instrumento para isso será o tratado britânico que expira em 1997, e sua comissão constitui um prelúdio supostamente razoável à anexação e controle. Vai acontecer quando o caminho estiver livre para Sheng, quando não houver mais obstáculos à sua frente. Quando sua palavra for a única que conta em questões econômicas. Pode ser dentro de um ou dois meses. Ou daqui a uma semana.
— Acha mesmo que Pequim concordou com isso? — pro testou McAllister. — Está errado. Isso é uma loucura! A República Popular jamais vai tocar em Hong Kong em termos substantivos. Afinal, os chineses movimentam sessenta por cento de sua economia através do território. Os Acordos da China garantem cinqüenta anos de Zona Econômica Livre, e Sheng é um dos signatários, o mais importante! — Mas Sheng não é Sheng... não como o conhece. — Mas então quem ele é? — Prepare-se para uma surpresa, Sr. Subsecretário. Sheng Chou Yang é o primogênito de um industrial de Xangai que fez sua fortuna no mundo corrupto da velha China, o Kuomintang de Cbiang Kai-shek. Quando ficou patente que a revolução de Mao seria vitoriosa, a família fugiu, como aconteceu com tantos latifundiários e senhores da guerra, levando tudo o que podiam transferir. O velho é agora um dos mais poderosos taipans de Hong Kong... mas não sabemos exatamente qual deles. A colônia vai se tornar uma propriedade sua e da família, por cortesia de um ministro de Pequim, que por acaso é seu filho mais querido. E suprema ironia, a vingança final do patriarca... Hong Kong será controlada pelos próprios homens que corromperam a China Nacionalista. Durante anos eles exploraram o país sem qualquer consciência, lucrando com o trabalho árduo de um povo faminto e privado de qualquer direito, abrindo caminho para a revolução de Mao. E se isso lhe parece o jargão comunista, devo ressaltar que a maior parte é embaraçosamente acurada. Agora, alguns fanáticos, criminosos de colarinho branco, liderados por um maníaco, querem recuperar o que nenhum tribunal internacional da história jamais lhes concederia. Havilland fez uma pausa e depois exclamou furioso uma única palavra: — Maníacos! — Mas se não sabe quem é esse taipan, como pode ter certeza de que qualquer parte da história é verdadeira? — As fontes são ultra-secretas, mas foram confirmadas — interveio Reilly. — A história foi ouvida pela primeira vez em Formosa. Nosso informante original foi um membro do gabinete nacionalista, que achava que era um plano desastroso, que só podia levar a um derramamento de sangue em todo o Extremo Oriente. E nos suplicou que impedíssemos a sua consumação. Foi encontrado morto na manhã seguinte, com três balas na cabeça e a garganta cortada... para os chineses, isso significa um traidor morto. Desde então, cinco outras pessoas foram assassinadas, os corpos mutilados da mesma forma. É verdade. A conspiração está em pleno andamento e baseada em Hong Kong. — Mas é uma insanidade! — Para ser mais objetivo, nunca dará certo — declarou Havilland. — Se houvesse uma oração para o caso, poderíamos olhar para o outro lado e até dizer Vá com Deus! Mas não é possível. A coisa vai estourar, como aconteceu com a conspiração de Lin Piao contra Mao Tsé-tung em 1972. E quando isso acontecer, Pequim vai culpar o dinheiro americano e formosino, em cumplicidade com o britânico... além da aquiescência silenciosa das principais instituições financeiras do mundo. Oito anos de progresso econômico serão destruídos de um momento para o outro porque um grupo de fanáticos quer
vingança. Em suas palavras, Sr. Subsecretário, a República Popular é uma nação desconfiada e turbulenta... e se me permite acrescentar algumas observações dos talentos que me atribui... tem um governo que pode se tornar paranóico a qualquer instante, obcecado com a traição, tanto interna como externa. A China vai acreditar que o mundo está empenhado em isolá-la economicamente, afastá-la dos mercados internacionais e subjugá-la, enquanto os russos sorriem no outro lado das fronteiras do norte. Vai reagir com rapidez e fúria, confiscando tudo, absorvendo tudo. Suas tropas vão ocupar Kowloon, a ilha, assim como os florescentes Territórios Novos. Investimentos de trilhões estarão perdidos. Sem a competência da colônia, o comércio vai definhar, uma força de trabalho de milhões de pessoas ficará no caos... a fome e a doença vão predominar. O Extremo Oriente vai pegar fogo, e o resultado final pode ser o desencadeamento de uma guerra em que nenhum de nós quer sequer pensar. — Santo Deus! — balbuciou McAllister. — Isso não pode acontecer! — Tem razão, não pode mesmo. — Mas por que Webb? — Não Webb — corrigiu Havilland. — Jason Bourne. — Está certo. Por que Bourne? — Porque espalhou-se por Kowloon a notícia de que ele já está lá. — O quê? — E sabemos que ele não está. — O que disse? — Ele atacou. Ele foi morto. Ele voltou à Ásia. — Webb? — Não, Bourne. O mito. — Não estou entendendo mais nada! — Posso lhe garantir que Sheng Chou Yang está entendendo muito bem. — Como assim? — Ele o trouxe de volta. Os talentos de Jason Bourne estão outra vez à venda... e, como sempre, seu cliente está além da possibilidade de descoberta. Nesse caso, o cliente é o mais improvável que se possa imaginar. Um eminente porta-voz da República Popular, que precisa eliminar sua oposição, tanto em Hong Kong como em Pequim. Durante os últimos seis meses, diversas vozes poderosas no Comitê Central de Pequim se tornaram estranhamente silenciosas. Segundo os anúncios oficiais do governo, vários membros morreram, o que é compreensível, levando-se em consideração a idade avançada de quase todos. Dois morreram supostamente em acidentes... um deles num desastre de avião, o outro de
hemorragia cerebral quando escalava as montanhas de Shaoguan... se não é verdade, pelos menos é imaginativo. E mais outro foi “removido”... um eufemismo para cair em desgraça. E, finalmente, o caso mais extraordinário, o vice-primeiro-ministro da República Popular foi assassinado em Kowloon, quando ninguém em Pequim sabia que ele estava lá. Foi um episódio macabro, cinco homens massacrados no Tsim Sha Tsui, com o assassino deixando seu cartão de visitas. O nome Jason Bourne estava escrito a sangue no chão. Um ego de impostor exibia o crédito pela matança. McAllister piscou várias vezes, os olhos se deslocando de um lado para outro, rapidamente, a esmo. — Tudo isso está muito além da minha capacidade. — Uma pausa e ele voltou a ser um profissional, olhando firme para Havilland e indagando: — Existe alguma ligação? O embaixador acenou com a cabeça. — Os relatórios de nosso serviço de informações são específicos. Todos esses homens se opunham às políticas de Sheng... alguns abertamente, outros cautelosamente. O vice-primeiro-ministro, um velho revolucionário e veterano da Longa Marcha de Mao, era especialmente franco. Não suportava o arrivista Sheng. Mas o que estava fazendo secretamente em Kowloon, em companhia de banqueiros? Pequim não foi capaz de responder. Assim, para resguardar as aparências, era necessário que o assassinato nunca tivesse ocorrido. Com a sua cremação, ele tornou-se uma não-pessoa. — E com o “cartão de visitas” do assassino.., o nome escrito em sangue... o segundo vínculo é com Sheng — comentou o subsecretário de Estado, a voz quase trêmula, enquanto massa geava nervosamente a testa. — Por que ele faria isso? Por que deixaria o seu nome? — Ele está no negócio e foi um massacre espetacular. Está começando a compreender agora? — Não tenho certeza do que está querendo dizer com isso. — Para nós, esse novo Bourne é o caminho direto para Sheng Chou Yang. É a nossa armadilha. Um impostor está se apresentando como o mito, mas se o mito original descobrir e remover o original, estará em condições de alcançar Sheng. É realmente muito simples. O Jason Bourne que nós criamos vai substituir esse novo assassino que está usando o seu nome. Depois de assumir a posição necessária, o nosso Jason Bourne envia um alarme urgente... aconteceu algo drástico que ameaça toda a estratégia de Sheng... e Sheng tem de reagir. Não pode evitá-lo, pois sua segurança tem de ser absoluta, suas mãos precisam estar limpas. Ele será obrigado a se manifestar, quanto menos não seja para matar seu pistoleiro de aluguel, eliminar qualquer associação. E quando isso acontecer, desta vez não vamos falhar. — É um círculo — disse McAllister, quase num sussurro, enquanto olhava fixamente para o embaixador. — E por tudo o que me falou, Webb não vai chegar nem perto, muito menos aceitar sua participação. — Nesse caso, devemos lhe oferecer um motivo muito forte para agir —sugeriu Havilland, suavemente. —Em minha profissão... vamos ser francos, sempre foi a minha profissão... procuramos por padrões, padrões que levem um homem a entrar em ação.
Franzindo o rosto, os olhos fundos e vazios, o idoso embaixador recostou-se na cadeira; era evidente que não estava em paz consigo mesmo. — Às vezes, são realizações terríveis.., até mesmo repulsivas... mas não se pode deixar de avaliar o bem maior, os benefícios maiores. Para todos. — Isso não me diz nada. — David Webb tornou-se .Jason Bourne essencialmente por um motivo... o mesmo motivo que o levou para Medusa. Uma esposa lhe foi tirada; seus filhos e a mãe de seus filhos foram mortos. — Oh, não... — É nesse ponto que eu me retiro — murmurou Reilly, levantando-se
Capítulo 3 Marie! Oh, Deus, Marie, aconteceu de novo! Uma comporta se abriu e não pude controlar a situação. Bem que tentei, minha querida, tentei com o maior empenho, mas acabei sendo engolfado... fui arrastado pela correnteza e estava me afogando! Sei o que você vai dizer se eu lhe contar. É por isso que não vou contar, mesmo sabendo que você vai ver em meus olhos, ouvir em minha voz... de alguma forma, só você sabe como. Vai dizer que eu deveria ter ido para casa ao seu encontro, conversar com você, ficar com você. Poderíamos então resolver tudo juntos. Juntos! Oh, Deus! O quanto você pode suportar? O quanto eu posso ser injusto? Por quanto tempo pode continuar assim? Eu a amo tanto, de tantas maneiras, que há ocasiões em que tenho de fazer tudo sozinho. Quanto menos não seja para lhe proporcionar uma folga por algum tempo, para deixá-la respirar por algum tempo, sem ficar com os nervos à flor da pele enquanto cuida de mim. Mas deve compreender, meu amor, que eu posso fazer! Fiz esta noite e me acalmei. Estou completamente calmo agora, estou bem agora. E voltarei para casa agora, voltarei para você, melhor do que me encontrava antes. Tenho de voltar, porque sem você não me resta coisa alguma. O rosto encharcado de suor, o training grudado ao corpo, David Webb corria ofegante pela relva fria do campo escuro, passando pelas arquibancadas e subindo pelo caminho cimentado para o ginásio da universidade. O sol de outono desaparecera por trás dos prédios de pedra do campas, seu fulgor incendiava o céu vespertino, enquanto pairava sobre os distantes bosques do Maine. O frio de outono era penetrante e ele estremeceu. Não era o que os seus médicos desejavam. Não obstante, ele seguira os conselhos médicos; fora um daqueles dias. Os médicos do governo haviam lhe dito que se houvesse ocasiões — e certamente ocorreriam —em que imagens súbitas e perturbadoras ou fragmentos de memórias aflorassem em sua mente, a melhor maneira de controlar a situação era com um exercício físico vigoroso. Seus eletrocardiogramas indicavam um coração saudável, os pulmões se encontravam num estado razoável, apesar de ele ser bastante tolo para fumar; e como o corpo tinha condições de agüentar a punição, era a melhor maneira de aliviar a mente. O que precisava em momentos assim era de serenidade. — O que há de errado com uns poucos drinques e cigarros? — ele dissera aos médicos, enunciando a sua preferência genuína. — O coração bate mais depressa, o corpo não sofre e a mente certamente se torna mais aliviada. — São depressivos — fora a resposta do único homem que ele escutava. — Não passam de estimulantes artificiais que só servem para conduzir a uma depressão adicional, a uma ansiedade ainda maior. Corra, nade ou faça amor com sua esposa... ou qualquer outra mulher, diga-se de passagem. Não seja um idiota para voltar aqui como um inválido... Se não se importa com você, pelo menos pense em mim. Trabalhei muito com você, seu ingrato. Vá logo embora, Webb. Pegue a sua vida... o que pode se lembrar... e trate de aproveitá-la. Está melhor do que a maioria das pessoas. Não se esqueça disso ou vou cancelar os nossos porres mensais controlados nos bares de nossa escolha e você que se dane. E que se dane de qualquer forma, porque vou sentir saudade de nossos porres... Vá embora, David. Está na hora de você ir. Morris Panov era a única pessoa além de Marie que podia alcançá-lo. O que de certa forma era
irônico, pois inicialmente Mo não era um dos médicos do governo; o psiquiatra não solicitara nem lhe fora oferecida a autorização de segurança para ouvir os detalhes secretos dos antecedentes de David Webb, em que estava sepultada a mentira de Jason Bourne. Mesmo assim, Panov se impusera, ameaçando as revelações mais embaraçosas se não lhe concedessem autorização e uma participação na terapia subseqüente. Seu raciocínio era simples, pois quando David estivera prestes a ser liquidado por homens desinformados, que estavam convencidos de que ele tinha de morrer, essa desinformação fora involuntariamente fornecida por Panov, deixando-o furioso pela maneira como acontecera. Ele fora abordado em pânico por alguém que não era propenso ao pânico e que fizera perguntas “hipotéticas” sobre um agente secreto possivelmente perturbado, numa situação potencialmente explosiva. Suas respostas foram contidas e equivocas; não podia e não faria o diagnóstico de um paciente que nunca vira... mas era possível e havia até precedentes, embora é claro que nada podia ser considerado sequer remotamente relevante, sem um exame físico e psiquiátrico. A palavra chave era nada; não deveria ter dito nada, conforme declarou depois. Pois suas palavras nos ouvidos de amadores selaram a ordem para a execução de Webb — a sentença de morte de “Jason Bourne” — um ato que só malograra no último instante, graças ao próprio David, enquanto os carrascos do esquadrão da morte ainda se encontravam em suas posições invisíveis. Não apenas Morris Panov ingressara na junta médica no Hospital Walter Reed e posteriormente no complexo médico na Virginia, mas também literalmente comandara o espetáculo... o espetáculo de Webb. O filho da puta está com amnésia, seus imbecis! Vem tentando dizer isso a vocês há semanas, num inglês perfeitamente lúcido.., desconfio que lúcido demais para a mentalidade distorcida de vocês. Haviam trabalhado juntos por meses, como médico e paciente.. e finalmente como amigos. Ajudara muito que Marie adorasse Mo... Santo Deus, como ela precisava de um aliado! O fardo que David fora para a esposa era indescritível, desde aqueles primeiros dias na Suíça, quando ela começara a compreender a angústia interior do homem que a mantinha cativa, até o momento em que assumira o compromisso — contra a vontade violenta dele — de ajudá-lo, jamais acreditando no que ele próprio acreditava, dizendo-lhe insistentemente que não era o assassino que se considerava, não era o criminoso que os outros diziam ser. A convicção de Marie tornara-se como uma âncora nos mares turbulentos de David, seu amor fora a base de uma sanidade a emergir. Sem Marie, ele era um homem sem amor, descartado e morto; sem Mo Panov era pouco mais que um vegetal. Mas com os dois a ampará-lo, estava afastando as nuvens turbilhonantes e tornando a encontrar o sol. Fora por isso que ele optara por uma hora de corrida em torno da pista deserta e fria, em vez de seguir para casa, depois do seminário ao final da tarde. Os seminários semanais muitas vezes se prolongavam além da hora marcada para terminar; por isso, Marie nunca planejava o jantar, sabendo que sairiam para comer fora, os dois guardas discretos em algum lugar na escuridão por trás... como o que andava agora por trás dele pelo campo, quase invisível, o outro sem dúvida no interior do ginásio. Que loucura! Ou será que não? O que o levara ao “exercício vigoroso” sugerido por Panov fora uma imagem que surgira de súbito em sua mente, enquanto estava conferindo provas de seus alunos, várias horas antes, na sala. Era um rosto... um rosto que conhecia e de que se lembrava, um rosto que amava muito. Um rosto de garoto que envelhecera em sua tela interior, até chegar a um retrato completo de uniforme, desfocado, imperfeito, mas uma parte dele. Enquanto lágrimas silenciosas rolavam por suas faces, ele compreendera que se tratava do irmão morto de que lhe haviam falado, o prisioneiro de guerra que
resgatara na selva de Tam Quan anos antes, em meio a explosões terríveis e um traidor que executara, chamado Jason Bourne. Não fora capaz de controlar as imagens violentas e fragmentadas; mal conseguira chegar ao fim do seminário encurtado e saíra mais cedo alegando uma dor de cabeça muito forte. Precisava aliviar as pressões, aceitar ou rejeitar as camadas a descascar da memória, com a ajuda da razão, que lhe dizia para ir ao campo e correr contra o vento, qualquer vento forte., Não podia sobrecarregar Marie cada vez que uma comporta arrebentava; amava-a demais para isso. Quando podia cuidar pessoalmente, tinha de fazê-lo. Era um compromisso que assumira consigo mesmo. Abriu a porta pesada, especulando por um instante por que a entrada de cada ginásio era projetada com o peso de uma ponte levadiça. Entrou e atravessou o chão de pedra, passando por uma arcada e descendo por um corredor de paredes brancas, até chegar à porta do vestiário dos professores. Ficou satisfeito porque o vestiário estava vazio; não sentia a menor disposição para uma conversa inconseqüente, e se tivesse de mantê-la, certamente pareceria mal-humorado, até mesmo estranho. Podia também dispensar os olhares curiosos que provavelmente provocaria. Estava quase na beira; tinha de voltar gradativamente, lentamente, primeiro dentro de si mesmo, depois com Marie. Oh, Deus, quando tudo aquilo acabaria? Quanto podia pedir a ela? Mas também nunca precisava pedir... Marie dava sem que lhe fosse pedido. Webb alcançou a fileira de armários. O seu ficava quase no fim. Foi andando por entre o banco de madeira comprido e os armários de metal ligados. Os olhos foram subitamente atraídos para um objeto à frente. Correu em sua direção; um bilhete dobrado estava preso na porta de seu armário. Pegouo e abriu-o: Sua esposa telefonou. Quer que você ligue para ela assim que puder. Diz que é urgente. Ralph. O zelador do ginásio poderia demonstrar um mínimo de inteligência para sair e gritar por ele!, pensou Webb irritado, enquanto girava a combinação e abria o armário. Depois de vasculhar os bolsos da calça à procura de moedas, foi até o telefone público na parede. Inseriu uma moeda, perturbado ao constatar que a mão tremia. E de repente compreendeu o motivo. Marie nunca usava a palavra “urgente”. Evitava palavras assim. — Alô? — O que houve? — Achei que você estaria aí — disse Marie. — A panacéia de Mo, a que ele garante que vai curá-lo, se não provocar antes uma parada cardíaca. — O que houve? — Venha para casa, David. Tem alguém aqui que deseja falar com você. Depressa, querido. O Subsecretário de Estado Edward McAllister reduziu sua apresentação a um mínimo, mas incluiu determinados fatos para indicar a Webb que não era dos escalões inferiores do Departamento. Por outro lado, não exagerou sua importância; era o burocrata seguro, confiante de que qualquer competência que possuía podia acarretar mudanças na administração. — Se quiser, Sr. Webb, nosso assunto pode esperar até que vista alguma roupa mais confortável.
David ainda estava de shorts e camisa de malha, manchados de suor, pois pegara suas roupas no armário e deixara o ginásio apressado, voltando de carro para casa. — É melhor não —disse ele. —Não creio que o seu assunto possa esperar... a julgar pelo lugar de onde vem, Sr. McAllister. — Sente-se, David. — Marie St. Jacques Webb entrou na sala, trazendo duas toalhas. —Sente-se também, Sr. McAllister. Ela entregou uma toalha a Webb, enquanto os homens sentavam, de frente um para o outro, ao lado da lareira apagada. Marie foi postar-se atrás do marido e começou a enxugar seu pescoço e ombros com a segunda toalha, a luz de um abajur acentuando a tonalidade avermelhada de seus cabelos castanhos, as feições adoráveis, na sombra, os olhos fixados no homem do Departamento de Estado. — Por favor, comece a falar — acrescentou ela. — Como já combinamos, tenho autorização do governo para ouvir qualquer coisa que possa dizer. — Houve alguma dúvida? —indagou David, olhando para ela e depois para o visitante, sem fazer qualquer tentativa de disfarçar sua hostilidade. — Absolutamente nenhuma — respondeu McAllister, sorrindo de modo contrafeito, mas sincero. — Ninguém que tenha tomado conhecimento das contribuições de sua esposa se atreveria a excluí-la. Onde outros fracassaram, ela foi bem-sucedida. — Isso diz tudo — concordou Webb. — Sem dizer nada, é claro. — Ei, David, pare com isso. Relaxe. — Desculpe. Ela tem razão. — Webb tentou sorrir, mas não conseguiu muito bem. — Estou sendo preconceituoso e não devia... não é mesmo? — Eu diria que tem todo o direito de ser — comentou o subsecretário. — Tenho certeza de que eu seria, se estivesse no seu lugar. Apesar de nossos antecedentes serem muito parecidos... também servi no Extremo Oriente por alguns anos... ninguém jamais me teria considerado para a missão que o senhor assumiu. Aquilo por que passou está anos-luz além de mim. — E além de mim também. Obviamente. — Não do meu ponto de vista. Deus sabe que o fracasso não foi seu. — Agora está sendo gentil. Não é ofensa, mas gentileza demais... de sua posição... me deixa nervoso. — Pois então vamos tratar imediatamente do problema que me trouxe aqui, está bem? — Por favor.
— E espero que não tenha me julgado com muito rigor. Não sou seu inimigo, Sr. Webb. Quero ser seu amigo. Posso apertar botões que podem ajudá-lo, protegê-lo. — Do quê? — De uma coisa que ninguém esperava. — Pode falar. — Daqui a trinta minutos, sua segurança será dobrada — anunciou McAllister, os olhos fixos nos de David. — Essa é a minha decisão e vou quadruplicá-la, se julgar necessário. Todas as chegadas ao campus serão investigadas, o terreno será examinado de hora em hora. Os guardas em rodízio não serão mais parte do cenário, simplesmente mantendo-o à vista. Em vez disso, eles ficarão muito à vista. Tudo bastante óbvio e, espero, ameaçador. — Oh, Deus! — Webb inclinou-se abruptamente para a frente. —É Carlos! — Achamos que não— respondeu o homem do Departamento de Estado, sacudindo a cabeça. — Não podemos excluir Carlos, mas é uma possibilidade muito remota, altamente improvável. — Ahn... — murmurou Webb. — Deve ser isso mesmo. Se fosse o Chacal, seus homens estariam espalhados por toda parte e fora de vista. Deixariam que ele viesse para cima de mim e só então o pegariam... e se eu fosse morto, o custo seria aceitável. — Não para mim. Não precisa acreditar nisso, mas estou falando sério. — Obrigado. Mas qual é o problema? — Sua ficha foi violada... isto é, o arquivo de Casa de Pedra foi violado. — Violado? Uma revelação não-autorizada? — Não a princípio. Houve autorização, porque estava ocorrendo uma crise... e, de certa forma, não tínhamos alternativa. E de repente tudo escapou ao controle e agora estamos preocupados. Pelo senhor. — Volte atrás, por favor. Quem teve acesso ao arquivo? — Um homem de dentro. Suas credenciais eram as melhores, ninguém podia questioná-las. — Quem era ele? — Um homem do MI-Seis britânico, operando de Hong Kong, em quem a CIA confiava há muitos anos. Ele chegou a Washington e foi procurar diretamente seu contato na Agência, pedindo que lhe providenciasse tudo o que havia sobre Jason Bourne. Alegou que havia uma crise no território em decorrência direta do projeto Casa de Pedra. Também deixou claro que para haver uma troca de informações importantes entre os serviços britânico e americano... continuar a haver... era melhor que o seu pedido fosse atendido.sem demora.
— Ele precisava apresentar um motivo muito bom. — E foi o que aconteceu. McAllister fez uma pausa, nervoso, piscando os olhos e esfregando a testa com os dedos estendidos. — E qual foi? — Jason Bourne está de volta — respondeu McAllister, suavemente, —Tornou a matar. Em Kowloon. Marie deixou escapar uma exclamação aturdida; apertou o ombro direito do marido, os olhos grandes e castanhos com uma expressão furiosa, assustada. Ficou olhando fixamente, em silêncio, para o homem do Departamento de Estado. Webb não se mexeu. Em vez disso, estudou McAllister, como um homem que estivesse observando uma cobra. — Mas que história é essa? — sussurrou ele, para no instante seguinte altear a voz ao acrescentar: — Jason Bourne... aquele Jason Bourne... não existe mais. Nunca existiu! — Você sabe disso e nós também. Na Ásia, porém, a sua tenda está bem viva. Sua criação, Sr. Webb... e uma criação brilhante, se quer saber minha opinião. — Não estou interessado em sua opinião, Sr. McAllister. — David retirou a mão da esposa de seu ombro e levantou-se. — Em que esse agente do MI-Seis estava trabalhando? Qual é a sua idade? Qual é o seu fator de estabilidade, seu registro? Deviam ter uma ficha atualizada do homem. — Claro que tínhamos, e não havia nada de irregular. Londres confirmou sua extraordinária folha de serviços, sua situação atual, além das informações que ele nos trouxe. Como chefe de posto do MI-Seis, ele foi chamado pela polícia de Kowloon-Hong Kong, por causa da natureza potencialmente explosiva dos acontecimentos. O próprio Foreign Office estava por trás dele. — Errado!—gritou Webb, sacudindo a cabeça. Uma pausa e ele continuou, baixando a voz: — Ele foi usado, Sr. McAllister. Alguém lhe pagou uma pequena fortuna para obter aquele arquivo. E ele usou a única mentira que daria certo e todos vocês engoliram! — Infelizmente, não é mentira... não pelo que ele sabia. Acreditou nas evidências, e Londres também acredita. Um Jason Bourne está de volta à Ásia. — E se eu lhe dissesse que não seria a primeira vez que o controle central é alimentado com uma mentira, a fim de que um homem que trabalha demais, corre muitos riscos e é mal pago possa virar? Tantos anos, tantos perigos e ele nada tem em retribuição. Resolve então aproveitar a oportunidade que lhe proporciona uma pensão substancial pelo resto da vida. Nesse caso, aquele arquivo. — Se foi isso, não vai lhe adiantar muita coisa. Ele morreu.
— Ele o quê? — Foi baleado mortalmente em Kowloon, há duas noites, em sua sala, uma hora depois de chegar a Hong Kong. — Mas isso não pode acontecer! — exclamou David, aturdido. — Um homem que troca de lado sempre providencia algum apoio. Faz um dossiê contra seu benfeitor antes de cometer o ato, informando-o que se alguma coisa lhe acontecer será entregue às pessoas certas. É o seu seguro... sua única garantia. — Ele estava limpo — insistiu McAllister. — Ou era estúpido. — Ninguém pensa assim. — E o que pensam? — Que ele estava investigando um caso extraordinário que poderia eclodir na maior violência pelos submundos de Hong Kong e Macau. O crime organizado se torna de repente completamente desorganizado, uma situação não muito diferente das guerras das tongs, as sociedades secretas chinesas, nos anos vinte e trinta. As mortes vão se acumulando. Quadrilhas rivais promovem distúrbios, os cais se transformam em campos de batalha, armazéns e até mesmo navios cargueiros são explodidos por vingança ou para eliminar concorrentes. As vezes só é necessária a existência de várias facções poderosas e beligerantes... e um Jason Bourne ao fundo. — Mas como não existe nenhum Jason Bourne, é trabalho da polícia, e não do MI-Seis. — O Sr. McAllister acaba de dizer que o homem foi chamado pela polícia de Hong Kong — interveio Marie, lançando um olhar duro para o subsecretário de Estado. — E parece evidente que o MISeis concordou com a decisão. Por quê? — Não é nada disso! — insistiu David, inflexível, a respiração ofegante. — Jason Bourne não foi uma criação das autoridades policiais — protestou Marie, virando-se para o marido. — Foi criado pelo serviço secreto americano, por intermédio do Departamento de Estado. Mas desconfio que o MI-Seis entrou no caso por um motivo mais importante do que a descoberta de um assassino que se faz passar por Jason Bourne. Estou certa, Sr. McAllister? — Está sim, Sra. Webb. Um motivo muito mais importante. Em nossas discussões, nos últimos dois dias, diversos membros de nossa seção concluíram que a senhora compreenderia a situação muito melhor do que nós. Vamos dizer que se trata de um problema econômico que pode levar a uma terrível agitação política, não apenas em Hong Kong, mas no mundo inteiro. É uma economista altamente considerada pelo governo canadense. Já assessorou embaixadores e delegações canadenses no mundo inteiro. — Vocês dois se importariam de explicar ao homem que equilibra o orçamento por aqui?
— Este não é um momento para se permitir distúrbios no mercado de Hong Kong, Sr. Webb, nem mesmo... e talvez especialmente... em seu mercado ilegal. Distúrbios acompanhados por violência dão a impressão de instabilidade do governo, até mesmo de uma instabilidade mais profunda. Este não é um momento para dar aos expansionistas da China Vermelha mais munição do que eles já possuem. — E que mais, por favor? — O tratado de 1997 — respondeu Marie. — Falta apenas uma década para o prazo terminar. É por isso que os novos Acordos estão sendo negociados com Pequim. Apesar disso, todo mundo está nervoso, todo mundo está apreensivo, é melhor ninguém balançar o barco. Estabilidade e tranqüilidade são essenciais agora. David olhou para ela e depois tornou a se fixar em McAllister. Acenou com a cabeça. — Estou entendendo. Costumo ler os jornais e revistas... mas acontece que não é um assunto sobre o qual eu tenha profundos conhecimentos. — Os interesses de meu marido são outros — informou Marie a McAllister. — O estudo dos povos e suas civilizações. — Isso mesmo — confirmou David. — E daí? — Eu me interesso por dinheiro e o constante intercâmbio de dinheiro... sua expansão, os mercados e suas flutuações... a estabilidade ou sua carência. E se Hong Kong não for qualquer outra coisa, é dinheiro. Trata-se mais ou menos de seu único produto. A colônia não tem praticamente qualquer outra razão para existir. Suas indústrias morreriam sem dinheiro; sem a entrada de água, a bomba puxa em seco. — E se a estabilidade acaba, vem o caos — acrescentou McAllister. — Era a desculpa dos velhos senhores da guerra na China. A República Popular avança para suprimir o caos, reprime os agitadores e subitamente nada mais resta, além de um gigante desajeitado a cuidar de toda a colônia e dos Novos Territórios. As cabeças mais frias de Pequim são ignoradas, em favor dos elementos mais agressivos, que querem salvar as aparências, através do controle militar. Os bancos sofrem um colapso, o comércio de todo o Extremo Oriente é paralisado. O caos. — E a República Popular faria isso? — Hong Kong, Kowloon, Macau e todos os territórios fazem parte de sua “grande nação sob o céu”... até os Acordos da China deixam isso bem claro. Constituem uma só entidade, e os orientais, como sabe muito bem, não toleram uma criança desobediente. — Está querendo me dizer que um homem se passando por Jason Bourne pode fazer isso... pode provocar esse tipo de crise? Não posso acreditar. — Parece uma história extraordinária, mas pode perfeitamente acontecer. O problema é que o
mito o acompanha, esse é o fator hipnótico. Muitos assassinatos lhe são atribuídos, quanto menos não seja para distanciar os verdadeiros assassinos dos locais... conspiradores políticos fanáticos, tanto da direita como da esquerda usando a imagem letal de Bourne. Quando se pensa mais um pouco a respeito, não se conclui que foi exatamente assim que se criou o mito? Sempre que alguém de importância, em qualquer lugar da China Meridional, era assassinado, você, como Jason Bourne, cuidava para que a morte lhe fosse creditada. Ao final de dois anos, você era notório, embora só tivesse na verdade matado um homem, um informante bêbado de Macau que tentou estrangulá-lo. — Não me lembro disso — murmurou David. O homem do Departamento de Estado acenou com a cabeça em simpatia. — Foi o que me disseram. Mas se os homens assassinados forem personalidades políticas poderosas... como o governador da Coroa, um negociador da República Popular ou qualquer outra pessoa assim... então toda a colônia entra em alvoroço. — McAllister fez uma pausa, sacudindo a cabeça como a encerrar o assunto, com uma expressão de cansaço. — Mas isso é uma preocupação nossa e não sua. Posso lhe garantir que temos os melhores homens da comunidade de informações trabalhando no caso. Seu problema, Sr. Webb, é a sua própria pessoa. E neste momento, por uma questão de consciência, é também um problema meu. Precisamos protegê-lo. — Aquele arquivo nunca deveria ter sido entregue a ninguém — comentou Marie, friamente. — Não tínhamos opção. Trabalhamos em estreita colaboração com os britânicos. Precisávamos provar que Casa de Pedra estava acabada, encerrada por completo. Que seu marido estava a milhares de quilômetros de Hong Kong. — Disse onde ele estava? — gritou Marie. — Mas como pôde fazer isso? — Não tínhamos opção — repetiu McAllister, tornando a esfregar a testa. —Devemos cooperar quando afloram determinadas crises. Tenho certeza de que pode compreender isso. — O que não posso compreender, antes de mais nada, é por que havia um arquivo sobre meu marido! — protestou Marie, furiosa. — Era uma operação de sigilo, sigilo absoluto! — O financiamento do Congresso a operações secretas exigia isso. É a lei. — Não me venha com essa —berrou David, também furioso. — Já que está tão bem informado a meu respeito, então sabe também de onde saí. E quero que me responda uma coisa: onde estão todos os registros da Medusa? — É uma coisa que não posso responder. — Pois acaba de fazê-lo. — O Dr. Panov pediu a vocês que destruíssem todos os arquivos de Casa de Pedra — insistiu Marie. — Ou pelo menos que usassem nomes falsos. Mas estou vendo que nem isso fizeram. Que espécie de homens são?
— Eu teria concordado com as duas coisas! — exclamou McAllister, com uma veemência súbita e surpreendente. — Lamento muito, Sra. Webb. Perdoe-me. Foi antes do meu tempo... E também me sinto ofendido. É possível que esteja certa, talvez nunca devesse existir um arquivo. Há sempre meios... — Não me venha com essas besteiras — interrompeu-o David, a voz abafada. —É tudo parte de outra estratégia, outra armadilha. Vocês querem Carlos e não se importam com os meios para agarrá-lo. — Eu me importo, Sr. Webb... e também não precisa acreditar nisso. O que representa o Chacal para mim... ou para a Seção do Extremo Oriente? É um problema europeu. — Está querendo dizer que passei três anos de minha vida caçando um homem que não significava absolutamente nada? — Claro que não. Os tempos mudam, as perspectivas mudam. E às vezes tudo se torna completamente inútil. — Oh, Deus! — Relaxe, David —murmurou Marie, sua atenção se concentrando por um instante no homem do Departamento de Estado, muito pálido, as mãos apertando os braços da cadeira. — Vamos todos relaxar. — Depois, ela fitou o marido nos olhos e acrescentou: — Aconteceu alguma coisa esta tarde, não é mesmo? — Eu lhe contarei depois. — Está certo. — Marie virou-se para McAllister, enquanto David tomava a sentar, o rosto contraído e cansado, mais velho do que parecia poucos minutos antes. — Não é verdade que tudo o que nos disse até agora está levando a alguma conclusão? Não há mais alguma coisa que quer que a gente saiba? — Tem toda razão... e não é fácil para mim. Não esqueçam, por favor, que só recentemente fui designado e recebi plena autorização para conhecer o dossiê secreto do Sr. Webb. — Inclusive a história de sua esposa e filhos no Camboja? — Inclusive. — Pois então diga logo o que tem a falar, por favor. McAllister tornou a estender os dedos finos e massageou nervosamente a testa. — Pelo que descobrimos... e Londres confirmou há cinco horas... é possível que seu marido seja um alvo. Um homem quer matá-lo. — Mas não Carlos, não o Chacal — murmurou David, inclinando-se para a frente. — Isso mesmo. Ou pelo menos ainda não conseguimos estabelecer qualquer ligação.
— E o que vocês sabem? — indagou Marie, sentando no braço da poltrona de David. — O que já descobriram? — O agente do MI-Seis em Kowloon tinha muitos documentos confidenciais em sua sala, alguns dos quais poderiam ser vendidos por muito dinheiro em Hong Kong. Contudo, só levaram o arquivo sobre Casa de Pedra... o arquivo sobre Jason Bourne. Foi a confirmação que Londres nos forneceu. É como se fosse um aviso: ele é o homem que queremos, apenas Jason Bourne. — Mas por quê? — gritou Marie, a mão apertando o pulso de David — Porque alguém foi morto — respondeu David, calmamente. — E outra pessoa quer acertar as contas. — E nisso que estamos trabalhando — confirmou McAllister, acenando com a cabeça. —E já fizemos algum progresso. — Quem foi morto? — perguntou o ex-Jason Bourne. — Antes de responder, quero que saiba que tudo o que temos é o que nosso pessoal em Hong Kong conseguiu descobrir. De um modo geral, não passa de especulação. Não existe qualquer prova. E lembre-se de que eles estão trabalhando sozinhos. — Como assim? Onde estavam os britânicos? Afinal, vocês lhes entregaram o arquivo de Casa de Pedra! — Eles nos deram a prova de que um homem foi morto por alguém que se identificou como a criação de Casa de Pedra, a nossa criação... você. Mas não estavam dispostos a identificar suas fontes, assim como também não revelamos os nossos contatos, Nosso pessoal tem trabalhado vinte e quatro horas por dia, sondando todas as possibilidades, tentando descobrir quem foram as fontes principais do MI-Seis, na suposição de que uma delas tenha sido responsável pela morte. Depararam com um rumor em Macau... mas chegaram à conclusão de que era apenas um rumor. — Repito a minha pergunta — insistiu David. — Quem foi morto? — Uma mulher — respondeu o homem do Departamento de Estado. — A esposa de um banqueiro de Hong Kong chamado Yao Ming, um taipan cujo banco é apenas uma fração de sua vasta fortuna. Sua riqueza é tão grande que ele tem sido bem recebido até em Pequim, como investidor e consultor. É um homem influente, poderoso, a um ponto indescritível. — Quais foram as circunstâncias? — Horríveis, mas não excepcionais. A esposa era uma atriz de importância menor que participou de diversos filmes dos irmãos Shaw, bem mais moça do que ele. Era também tão fiel quanto uma cadela no cio, se me permitem falar assim... — Por favor, continue — disse Marie.
— O marido fingia ignorar isso. Ela era o seu troféu, jovem e bonita. A mulher também pertencia ao jet set da colônia, que tem a sua quota de personagens repulsivos. Num fim de semana, jogando alto nos cassinos de Macau, no outro apostando nas corridas de cavalos em Cingapura ou voando para as Pescadores, a fim de assistir às competições de roleta russa nas casas de ópio, milhares e milhares de dólares sendo apostados em quem vai morrer primeiro, enquanto dois homens sentam frente a frente, separados por uma mesa pequena, girando o tambor de um revólver com uma só bala. Há uma pequena diferença da roleta russa tradicional, pois eles apontam o revólver um para o outro. E é claro que, em tudo isso, há também um consumo indiscriminado de tóxicos, O último amante da mulher foi um distribuidor. Os fornecedores dele eram de Guangzhou, suas rotas, os canais a leste da fronteira de Lok Ma Chau. — Segundo os relatórios que conheço, é um dos percursos mais amplos, com muito tráfico passando por lá — interrompeu David. —Por que se concentraram nele... em sua operação? — Porque sua operação, como tão apropriadamente chamou, estava se tornando rapidamente a única na cidade, ou pelo menos naquele percurso. Ele estava sistematicamente eliminando os concorrentes, subornando as patrulhas marítimas chinesas para afundar suas embarcações e liquidar os tripulantes, Ao que parece, suas medidas eram eficazes, pois muitos corpos crivados de balas flutuaram até os brejos lamacentos e as margens do rio. As facções estavam em guerra e o distribuidor... o amante da jovem esposa... foi marcado para execução. — Nas circunstâncias, ele deveria estar consciente dessa possibilidade. E deve ter se cercado de uma dúzia de guarda- costas. — Acertou de novo. E esse tipo de segurança exige os talentos de uma lenda. Seus inimigos contrataram essa lenda. — Bourne — murmurou David, sacudindo a cabeça e fechando os olhos. — Isso mesmo, Há duas semanas o traficante e a esposa de Yao Ming foram mortos na cama, no Hotel Lisboa, em Macau, E foi um massacre sangrento. Os corpos ficaram quase irreconhecíveis. A arma do crime foi uma metralhadora Uzi. O incidente foi abafado. As autoridades da polícia e do governo foram subornadas com muito dinheiro... dinheiro de um taipan. — Deixe-me adivinhar o resto — disse David, numa voz sem qualquer inflexão. — A Uzi. Foi a mesma arma usada num crime anterior atribuído a esse Bourne. — Uma arma igual foi deixada no lado de fora de uma sala de reuniões num cabaré no Tsim Sha Tsui de Kowloon. Havia cinco cadáveres na sala. Três das vítimas estavam entre os mais ricos homens de negócios da colônia. Os britânicos não quiseram fornecer mais informações, apenas nos mostraram algumas fotografias bem ilustrativas. — Esse taipan, Yao Ming... — murmurou David. — O marido da atriz. Ele é a ligação que seu pessoal encontrou, não é mesmo? — Descobriram que ele era uma das fontes do MI-Seis. Suas Ligações em Pequim o transformavam num contribuinte importante para o serviço secreto. Ele era muito valioso.
— E depois sua esposa foi morta, sua amada e jovem esposa... — Eu diria o seu amado troféu — interveio McAllister. — Tiraram o seu troféu. — Tem razão. O troféu é muito mais importante do que a esposa. — Passei muitos anos no Extremo Oriente. Há uma expressão para isso... creio que em mandarim... mas não consigo me lembrar qual é. — Ren you jiaqian — disse David. — O preço da imagem de um homem. — Acho que é isso mesmo. — Só pode ser. O homem do MI-Seis foi procurado por seu contato transtornado, o taipan, recebeu a ordem de obter a ficha de Jason Bourne, o assassino que matou sua esposa... seu troféu... ou, em poucas palavras, o serviço secreto britânico poderia não receber mais informações das fontes em Pequim. — Foi o que o nosso pessoal concluiu. E o agente do MI-Seis acabou sendo liquidado, porque Yao Ming não podia se permitir a menor associação com Bourne. O taipan tem de permanecer inatingível, intocável. Quer vingança, mas não com qualquer possibilidade de ser descoberto. — O que dizem os britânicos? — indagou Marie. — Em termos bem objetivos, disseram que deveríamos permanecer à distância de toda a situação. Londres foi rude. Fizemos a maior confusão com Casa de Pedra e não querem a nossa inépcia em Hong Kong durante estes momentos difíceis. — Eles já confrontaram Yao Ming? — indagou David, observando atentamente o subsecretário. — Quando mencionei o nome, disseram que era inadmissível. Para dizer a verdade, ficaram surpresos, mas isso não alterou a posição que assumiram. Se houve alguma diferença, mostraram-se foi ainda mais irritados. — Um intocável — murmurou David. — Provavelmente querem continuar a usá-lo. — Apesar do que ele fez? — interveio Marie. — Apesar do que já pode ter feito e do que ainda pode fazer a meu marido? — É um mundo diferente — respondeu McAllister, suavemente. — Cooperaram com eles... — Não havia alternativa.
— Pois então insistam que cooperem com vocês. Exijam! — Se isso acontecesse, eles poderiam exigir outras coisas de nós. Não é possível. — Mentirosos! — exclamou Marie, virando o rosto, repugnada. — Não contei nenhuma mentira, Sra. Webb. — Por que será que eu não confio no senhor? — indagou David. — Provavelmente porque não pode confiar em seu governo, Sr. Webb... e não tem muitos motivos para confiar. Só posso lhe dizer que sou um homem de consciência. Pode ou não aceitar essa declaração... me aceitar ou não... mas enquanto isso providenciarei para que permaneça são e salvo. — O senhor me olha de uma maneira estranha... por quê? — Porque nunca estive na situação em que me encontro agora. A campainha da porta soou. Sacudindo a cabeça ao som, Marie levantou-se e atravessou rapidamente a sala, até o vestíbulo. Abriu a porta. Por um momento, prendeu a respiração, olhando aturdida para os dois homens, parados lado a lado, ambos levantando carteiras de plástico preto, com suas identificações, um emblema prateado no topo, uma águia gravada, refletindo à luz das luzes da varanda. Mais além, encostado no meio-fio, havia um segundo sedã escuro; dentro, podia-se ver as silhuetas de outros homens e o brilho de um cigarro aceso... outros homens, outros guardas. Marie sentiu vontade de gritar, mas não o fez. Edward McAllister acomodou-se no lugar do passageiro do seu carro do Departamento de Estado e olhou pela janela fechada para o vulto parado na porta. O ex-Jason Bourne estava imóvel, os olhos rigidamente fixos no visitante de partida. — Vamos sair daqui — disse McAllister ao motorista, um homem mais ou menos de sua idade, calvo, com óculos de aros de tartaruga. O carro arrancou, o motorista cauteloso, na rua estranha e estreita, arborizada, a um quarteirão da praia rochosa, na pequena cidade do Maine. Nenhum dos dois falou por vários minutos; o silêncio foi finalmente rompido pelo motorista: — Como correu tudo? — Como? — repetiu McAllister. — O embaixador poderia dizer: “Todas as peças estão no lugar.” A fundação está lá, a lógica está lá; o trabalho missionário foi concluído. — Fico contente em saber disso. — Fica mesmo? Pois então também estou contente. — McAllister levantou a mão direita trêmula, os dedos finos massageando a têmpora. — Não, não estou! Ao contrário, estou me sentindo muito mal!
— Sinto muito... — E por falar em trabalho missionário, eu sou um cristão. Ou seja, eu creio... nada tão exagerado como ser um crente fervoroso, achar que nasci de novo, ensinar na escola dominical ou me prostrar no templo. Mas eu acredito. Minha esposa e eu vamos à igreja episcopaliana pelo menos duas vezes por mês e meus dois filhos são acólitos. Sou generoso porque quero ser. Pode compreender isso? — Claro. Não tenho esses sentimentos, mas compreendo. — Mas acabo de sair da casa daquele homem! — Ei, fique calmo. Qual é o problema? McAllister olhava fixamente para a frente, os faróis que corriam em sentido contrário criando sombras que passavam por seu rosto. E murmurou: — Que Deus tenha misericórdia de minha alma..
Capítulo 4 Gritos preencheram subitamente a escuridão, uma cacofonia de vozes rugindo, cada vez mais próxima e mais intensa. E depois os corpos impetuosos os envolviam, corriam à frente, berrando, os rostos contorcidos em frenesi. Webb caiu de joelhos, cobrindo o rosto e o pescoço com as mãos, da melhor forma que podia, balançando os ombros para a frente e para trás, vigorosamente, criando um alvo em movimento dentro do círculo de ataque. As roupas escuras constituíam um fator positivo nas sombras, mas de nada adiantaria se houvesse uma rajada indiscriminada, liquidando também pelo menos um dos guardas. Só que as balas nem sempre eram a escolha de um assassino. Havia os dardos... mísseis letais com veneno, disparados por armas de ar comprimido, perfurando a carne exposta, provocando a morte em poucos minutos. Ou segundos. Uma mão apertou seu ombro. Ele virou-se abruptamente, levantando o braço e desalojando a mão, enquanto dava um passo para a esquerda, agachando-se como um animal. — Está bem, Professor? —indagou o guarda à sua direita, sorrindo ao clarão da lanterna. — O que aconteceu? — Não é sensacional? —gritou o guarda da esquerda, aproximando-se, enquanto David levantava. — O quê? — Garotos com esse espírito. Deixa a gente feliz só de assistir. Estava acabado. A área do campus se encontrava outra vez em silêncio; à distância, entre os prédios de pedra junto das quadras de esporte e do estádio, podia-se avistar as chamas de uma fogueira, através das arquibancadas vazias. Uma festa do futebol americano alcançava o seu clímax, e os guardas estavam rindo. — O que acha, Professor? — acrescentou o homem da esquerda. — Não se sente melhor agora, conosco aqui e todo o resto? Estava acabado. A loucura auto-infligida terminara. Ou será que não? Por que seu peito latejava tanto? Por que se sentia tão atordoado, tão assustado? Alguma coisa estava errada. — Por que toda essa parada me perturba? — indagou David, ao café da manhã, na copa da velha casa vitoriana alugada. — Sente falta de seus passeios pela praia — comentou Marie, ajeitando o único ovo pochê do marido sobre a única fatia de torrada. — Coma isto antes de fumar um cigarro. — Não é isso. A coisa me perturba. Há uma semana que sou um alvo numa galeria de tiro superficialmente protegida. Ocorreu-se ontem à tarde.
— Como assim? — Marie despejou a água e pôs a panela na pia da cozinha, os olhos fixos em David. — Seis homens estão ao seu redor, quatro nos “flancos” você disse, dois outros espiando tudo à frente e atrás. — Uma parada. — Por que chama assim? — Não sei. Todos estão em seus lugares. marchando ao rufar dos tambores. Não sei. — Mas sente alguma coisa? — Acho que sim. — Pois então me conte. Esses seus sentimentos já me salvaram a vida, no Guisan Quai, em Zurique. Eu gostaria de ouvir... isto é, talvez não goste, mas é melhor. David rompeu a gema do ovo na torrada. — Pode imaginar como seria fácil para alguém... alguém que parecesse bastante jovem para se passar por estudante... passar por mim num caminho e disparar um dardo com uma arma de ar comprimido? Poderia encobrir o som com uma tosse ou uma risada e eu ficaria com cem centímetros cúbicos de estricnina na corrente sangüínea. — Você sabe muito mais sobre essas coisas do que eu. — Tem toda razão. Porque seria assim que eu faria. — Nada disso. Seria assim que Jason Bourne faria... não você. — Muito bem, estou me projetando. O que não invalida o pensamento. — O que aconteceu ontem à tarde? David ficou brincando com a torrada e o ovo em seu prato. — O seminário terminou depois da hora prevista, como sempre. Estava escurecendo, os guardas assumiram suas posições e começamos a atravessar o campus, a caminho do estacionamento. Havia uma festa da torcida... nossa insignificante equipe de futebol americano vai enfrentar outra, também insignificante, mas muito grande para nós. A multidão passou por nós... garotos correndo para uma fogueira por trás das arquibancadas, berrando, entoando canções de luta, numa animação cada vez maior. E pensei: Vai ser agora. Este é o momento em que vai acontecer, se é que alguma coisa vai acontecer. E pode estar certa de que durante aqueles poucos momentos eu fui Bourne. Agachei-me, dei um passo para o lado, observei todos que podia ver... estava à beira do pânico. — E que mais? —indagou Marie, preocupada com o silêncio repentino do marido. — Meus supostos guardas estavam olhando ao redor e rindo. Os dois na frente estavam se
divertindo com a cena. — E isso o deixou perturbado? — Instintivamente. Eu era um alvo vulnerável, no meio de uma multidão excitada. Os nervos diziam isso; a mente não precisava fazê-lo. — Quem está falando agora? — Não tenho certeza. Sei apenas que durante aqueles poucos momentos nada fazia sentido para mim. E apenas poucos segundos depois, como a ressaltar os sentimentos que eu não expressara, o homem por trás de mim, à esquerda, aproximou-se e disse mais ou menos o seguinte: “Não é sensacional ver garotos com esse tipo de espírito? Não o faz se sentir bem?” Murmurei alguma coisa insana e ele acrescentou... e repito as suas palavras com exatidão... “O que acha, Professor? Não se sente melhor agora, conosco aqui e todo o resto?” — David fez uma pausa, levantando os olhos para a mulher. — Eu me sentia melhor agora... eu? — Ele sabia qual era a função deles — protestou Marie. — Proteger você... Tenho certeza de que estava perguntando se você se sentia mais seguro. — Será mesmo? E o que eles pensavam? Aquela multidão de garotos a berrar, a semi-escuridão, os corpos indefinidos, rostos obscuros... e ele aderindo à confusão, rindo... todos estavam rindo. Estão mesmo aqui para me proteger? — O que mais poderia ser? — Não sei. Talvez simplesmente eu tenha passado por onde eles jamais estiveram. Talvez eu esteja apenas pensando demais, pensando em McAllister e seus olhos. Exceto pelas piscadelas, eram olhos de peixe morto. Podia-se ler naqueles olhos qualquer coisa que se quisesse... dependendo da maneira como se sentia. — O que ele disse a você foi um choque — comentou Marie, encostando-se na pia, os braços cruzados sob os seios, observando o marido atentamente. — Não podia deixar de ter um efeito terrível sobre você. Teve em mim. — Provavelmente é isso mesmo — concordou David, acenando com a cabeça. — É irônico, mas assim como há muitas coisas que eu gostaria de lembrar, há muitas outras que eu gostaria de esquecer. — Por que não telefona para McAllister e diz.a ele o que está sentindo, o que pensa? Tem os telefones dele, de casa e do escritório. Mo Panov lhe diria para fazer isso. — Tem razão, Mo diria isso. — David comeu a torrada com ovo sem muita vontade. — “Se há um meio de se livrar de uma ansiedade específica, então trate de aproveitá-lo o mais depressa possível”... seria isso que ele diria. — Pois então faça-o.
David sorriu, com o mesmo entusiasmo com que comia a torrada com ovo. — Talvez eu faça, talvez não. Prefiro não anunciar uma paranóia latente, passiva, recorrente ou como quer que eles chamem. Mo voaria até aqui e viraria minha cabeça pelo avesso. — Se ele não vier, eu bem que posso fazer isso. — Ni shi nühaizi — disse David, usando o guardanapo de papel, enquanto levantava e se aproximava de Marie. — E o que isso significa, meu inescrutável marido e amante de número 87? — Deusa cadela. Significa, numa tradução livre, que você é uma garota pequena... e não tão pequena assim... e que ainda posso vencê-la três em cada cinco vezes na cama, onde há coisas melhores para fazer do que lhe dar uma surra. — Tudo isso numa frase tão curta? — Não desperdiçamos palavras... pintamos quadros. E agora tenho de partir. A aula esta manhã vai ser sobre Rama II do Sião e suas pretensões aos estados malaios no início do século XIX. É um pé no saco, mas importante. E o pior é que tenho um estudante de intercâmbio de Moulmein, na Birmânia, e acho que ele sabe mais do que eu. — Sião? — murmurou Marie, segurando-o pelo braço. — É a Tailândia. — Isso mesmo, é a Tailândia agora. — Sua esposa, seus filhos... não dói, David? Ele fitou-a com um amor intenso. — Não pode doer tanto quando não posso ver muito claramente. E às vezes torço para nunca poder. — Não penso assim. Quero que você os veja, ouça, sinta. E saiba que eu também os amo. — Oh, Deus! Ele abraçou-a, os corpos se unindo num calor e afeição que somente aos dois pertencia. A linha estava ocupada pela segunda vez e por isso David repôs o fone no gancho e voltou a concentrar sua atenção no Sião sob Rama II de W. F. Vella, a fim de verificar se o estudante birmanês estava certo sobre o conflito de Rama II com o sultão de Kedah, pela disposição da ilha de Penang. Era um momento de confrontação nos rarefeitos bosques acadêmicos; os pagodes de Moulmein da poesia de Kipling haviam sido substituídos por um esperto estudante de pós-graduação que não tinha qualquer respeito por seus superiores... Kipling compreenderia tal situação e trataria de combatê-la.
Houve uma batida na porta que foi aberta antes que David pudesse dizer para a pessoa entrar. Era um dos guardas, o homem que lhe falara ao final da tarde anterior, durante a concentração que antecedia o jogo... no meio da multidão, entre o barulho, intrometendo-se em seus medos. — Tudo bem, Professor? — Tudo bem. Seu nome Jim, não é mesmo? — Não, Johnny. E não tem importância. Não esperamos que grave os nossos nomes direito. — Algum problema? — Justamente o oposto, senhor. Vim me despedir... em nome de todos, o contingente inteiro. Está tudo limpo e pode voltar à vida normal. Recebemos ordens para nos apresentarmos a B-Um-L. — Como? — Parece meio tolo, não acha? Em vez de dizer “Voltar ao quartel-general”, eles chamam de BUm-L, como se alguém pudesse não entender. — Eu não entendo. — Base-Um-Langley. Somos da CIA, nós seis, mas acho que já sabia disso. — Estão indo embora? Todos vocês? — Isso mesmo. — Mas pensei... pensei que houvesse uma crise aqui. — Está tudo limpo. — Não recebi o aviso de ninguém. McAllister não me disse nada. — Desculpe, mas não o conheço. Acabamos de receber a ordem. — Não pode simplesmente aparecer e dizer que vão embora sem nenhuma explicação! Fui informado de que eu era um alvo! Que um homem em Hong Kong queria me matar! — Não sei se recebeu essa informação ou se apenas imaginou, mas sei que temos um legítimo problema A-um em Newport News. Temos de nos apresentar e nos lançar na nova missão. — Um legítimo A-um...? E como eu fico? — Descanse bastante, Professor. Disseram-nos que está precisando. O agente da CIA virou-se abruptamente, passou pela porta e fechou-a.
Não sei se recebeu essa informação ou se apenas imaginou... O que acha, Professor? Não se sente melhor agora, conosco aqui e todo o resto? Parada...? Charada! Onde estava o telefone de McAllister? Onde? Guardara duas cópias, uma em casa e outra na gaveta da escrivaninha... não, na carteira! Encontrou a anotação. O corpo todo tremia, de medo e raiva, enquanto discava. — Gabinete do Sr. McAllister — disse uma voz de mulher. — Pensei que fosse sua linha particular. Foi o que ele me disse. — O Sr. McAllister está ausente de Washington, senhor. Quando isso acontece, devemos receber e registrar as ligações. — Registrar as ligações? Mas onde ele está? — Não sei, senhor. Sou do serviço de secretaria. Ele telefona para cá de dois em dois dias. Quem devo informar que ligou? — Isso não é o bastante! Meu nome é Webb... Jason Webb... não, David Webb! Preciso falar com ele agora! Imediatamente! — Vou transferir a ligação para o departamento que está cuidando dos chamados urgentes... Webb bateu o telefone. Tinha o número da casa de McAllister; discou-o. — Alô? Outra voz de mulher. — O Sr. McAllister, por favor. — Ele não está. Se quiser deixar seu nome e telefone, darei o recado. — Quando? — Ele deve telefonar amanhã ou depois. É o que sempre faz. — Precisa me dar o telefone do lugar onde ele se encontra agora, Sra. McAllister... é a Sra. McAllister, não é mesmo? — Espero que sim, depois de dezoito anos. Quem deseja falar com meu marido? — Webb... David Webb. — Mas é claro! Edward raramente fala do trabalho... e é claro que não o fez no seu caso... mas
comentou que você e sua linda esposa são extremamente simpáticos. Nosso filho mais velho, que está na escola preparatória, parece muito interessado pela sua universidade. No último ano as suas notas caíram um pouco e as médias não foram muito altas, mas ele tem uma perspectiva da vida maravilhosa e entusiasmada, tenho certeza de que seria... — Sra. McAllister — interrompeu-a David, bruscamente — preciso falar com seu marido o mais depressa possível! — Lamento muito, mas acho que não será possível. Ele está no Extremo Oriente e é claro que não tenho um telefone em que posso encontrá-lo lá. Em emergências, sempre ligamos para o Departamento de Estado. David desligou. Tinha de alertar — telefonar — Marie. A linha deveria estar desocupada agora; estava ocupada há quase uma hora e não havia ninguém com quem sua esposa pudesse falar por tanto tempo, nem mesmo o pai, a mãe ou os dois irmãos no Canadá. Havia a mais profunda afeição entre todos, mas ela era uma independente do Ontário. Não era francófila como o pai nem doméstica como a mãe; embora adorasse os irmãos, também não se incluía entre os lassos rústicos e francos, como eles. Descobrira outra vida nas camadas estratificadas da economia superior, com um doutorado e um ótimo emprego no governo canadense. E, finalmente, casara com um americano. Quel dommage! A linha ainda estava ocupada! Mas que droga, Marie! E de repente David ficou imóvel, o corpo inteiro se transformando por um instante num bloco de gelo. Mal podia se mexer, mas mesmo assim se esforçou e saiu correndo da pequena sala, atravessando o corredor com tanta velocidade que esbarrou em três estudantes e outro professor, jogando dois contra as paredes e os outros no chão; era um homem subitamente possuído. Chegando na frente da casa, ele pisou no freio, o carro parando com um ranger. David saltou e subiu correndo o caminho até a porta. Estacou abruptamente. os olhos arregalados, prendendo a respiração. A porta estava aberta e no painel afundado estava impressa a marca de uma mão em vermelho... sangue. David entrou correndo, derrubando tudo em seu caminho. Móveis viraram e abajures se espatifaram, enquanto ele revistava o andar térreo. E depois subiu, as mãos rígidas como se fossem blocos de granito, todos os nervos alertas a qualquer som, o instinto de matador tão aguçado e nítido quanto a mancha vermelha que vira na porta. Por um momento, compreendia e aceitava o fato de que era o assassino — animal letal — que Jason Bourne fora. Se a esposa estivesse lá em cima, mataria quem quer que tentasse fazer mal a ela... ou que já tivesse feito. Deitado de bruços no chão, David empurrou a porta do quarto. A explosão destruiu a parede do corredor. Ele rolou sob o impacto para o outro lado; não tinha arma, mas dispunha de um isqueiro. Revistou os bolsos da calça, retirando todas as anotações rabiscadas que os professores sempre guardam. Reuniu-as, virou-se para a esquerda e acendeu o
isqueiro; a chama foi imediata. Jogou a tocha em fogo no interior do quarto, enquanto comprimia as costas contra a parede e se levantava, virando a cabeça para as outras duas portas do segundo andar, fechadas. Golpeou com os pés, um estrondo depois de outro, enquanto se jogava pelo assoalho e rolava para as sombras. Nada. Os dois cômodos estavam vazios. Se houvesse um inimigo ali, então estava no quarto. Mas, a esta altura, a colcha pegara fogo. As chamas se elevavam gradativamente para o teto. Só restavam poucos segundos. Agora! Mergulhou para o interior do quarto, pegando a colcha em chamas e girando-a num círculo, enquanto se agachava e rolava pelo chão, espalhando cinzas por toda parte. Durante todo o tempo, esperava um impacto frio que nem gelo no ombro ou braço, mas sabendo que poderia superar e dominar o inimigo. Oh, Deus! Era outra vez Jason Bourne! Não havia nada. Sua Marie não estava ali; nada havia além de um artefato primitivo, feito com barbante, que disparara uma espingarda, apontada para matar, quando abrisse a porta do quarto. David apagou as chamas com os correu para o abajur na mesinha-de-cabeceira e acendeu-o. Marie! Marie! E foi então que ele viu. Um bilhete no travesseiro de Marie: “Uma esposa por uma esposa, Jason Bourne. Ela está ferida, mas não morta, enquanto a minha está morta. Sabe onde me encontrar e a ela, se for discreto e afortunado. Talvez possamos chegar a um acordo, pois também tenho inimigos. Se não for possível, o que é a morte de mais uma filha?” David gritou, caindo sobre os travesseiros, tentando abafar a indignação e o horror que subiam por sua garganta, procurando reprimir a dor que lhe lateja nas têmporas. Depois virou-se e olhou para o teto, dominado por uma passividade terrível e brutal. Coisas esquecidas afloraram subitamente... coisas que jamais revelara, nem mesmo para Morris Panov. De corpos arriando sob a sua faca, tombando sob a sua arma de fogo... não eram mortes imaginárias, mas reais. Haviam-no transformado no que não era, mas fizeram um bom trabalho. Ele se tornara a imagem do homem que não deveria ser. Tornara-se esse homem. Sobrevivera... sem saber quem era. E agora conhecia os dois homens em seu íntimo que constituíam seu ser completo. Sempre se lembraria de um porque era o homem que queria ser, mas no momento tinha de ser o outro... o homem que desprezava. Jason Bourne levantou-se e foi ao armário embutido, onde havia uma gaveta trancada, a terceira na escrivaninha do móvel. Levantou a mão e pegou uma chave presa com uma fita adesiva no teto do armário. Inseriu-a na fechadura e abriu a gaveta. Lá dentro, havia duas automáticas desmontadas, quatro rolos de arame fino que podia esconder nas palmas das mãos, três passaportes legais em três nomes diferentes e seis cargas de explosivo plastique, que poderiam destruir cômodos inteiros. Usaria uma ou todas. David Webb encontraria a esposa. Ou Jason Bourne se tomaria o terrorista com quem ninguém jamais sonhara, nem mesmo nos sonhos mais delirantes. Não se importava... coisas demais lhe haviam
sido arrebatadas. Não suportaria mais. Bourne ajustou as diversas peças e pôs um pente de balas na segunda automática. Estava pronto. Voltou à cama e deitou, olhando para o teto. Sabia que a logística acabaria se definindo. E a caçada começaria. Encontraria Marie... viva ou morta... e se ela estivesse morta, ele mataria, mataria e continuaria a matar! Quem quer que fosse o culpado, não escaparia dele. Nem de Jason Bourne.
Capítulo 5 Mal conseguindo se controlar, ele compreendeu que a calma era impossível. A mão apertou a automática, enquanto a mente turbilhonava em rajadas surrealistas e rápidas, à medida que uma opção após outra afloravam em sua cabeça. Acima de tudo, não podia ficar parado; tinha de se manter em movimento. Tinha de se levantar e entrar em ação! O Departamento de Estado. Os homens que conhecera durante os últimos meses no remoto e secreto complexo médico da Virginia... aqueles homens insistentes e obcecados que o interrogaram implacavelmente, mostrando dezenas de fotografias, até que Mo Panov lhes ordenara que parassem. Descobrira seus nomes e os anotara, pensando que um dia poderia querer saber quem eram... sem qualquer outro motivo que não a desconfiança instintiva; eram os homens que haviam tentado matá-lo apenas poucos meses antes. Contudo, nunca lhes perguntara seus nomes e eles também não os revelaram, exceto como Harry, BilI ou Sam, presumivelmente na teoria de que as identidades concretas só serviriam para aumentar sua confusão. Mas, discretamente, ele lera os crachás de identificação, anotando os nomes, depois que se retiravam, em pedaços de papel, que guardara com seus pertences pessoais na gaveta da cômoda. Quando Marie o visitava, o que acontecia todos os dias, ele lhe entregava os nomes e recomendava que os escondesse na casa... e escondesse bem. Posteriormente, Marie admitira que obedecera às suas instruções, embora achasse que suas suspeitas eram exageradas, um caso de destruição além do necessário. Até a manhã em que, poucos minutos depois de uma sessão acalorada com os homens de Washington, David lhe pedira que deixasse imediatamente o complexo médico, seguindo de carro para o banco em que tinha um cofre e fazendo o seguinte: pôr uma pequena mecha de seus cabelos no fundo inferior esquerdo do cofre, trancá-lo, sair do banco e voltar duas horas depois, a fim de verificar se os cabelos ainda estavam ali. Não estavam. Marie prendera bem a mecha; não poderia cair se o cofre não fosse aberto. Ela a encontrara no chão de ladrilhos da caixa-forte do banco. — Como soube? — indagara Marie. — Um dos meus amigáveis interrogadores ficou irritado e tentou me provocar. Mo saíra da sala por alguns minutos e ele quase me acusou de fingir, de esconder as coisas. Eu sabia que você viria me visitar e resolvi fazer uma experiência. Queria conferir pessoalmente até que ponto eles iriam... até que ponto poderiam ir. Nada fora sagrado então e nada era sagrado agora. Tudo era simétrico demais. Os guardas haviam sido retirados, suas próprias reações condescendentemente questionadas, como se fosse ele quem pedira a proteção adicional e nunca tivesse existido a insistência de um certo Edward McAllister. Horas depois, Marie fora seqüestrada, de acordo com um roteiro detalhado com muita precisão por um homem nervoso de olhos de peixe morto. E agora esse mesmo McAllister se encontrava subitamente a vinte e cinco mil quilômetros de distância do seu autodeterminado ponto zero. O subsecretário teria mudado de lado? Fora comprado em Hong Kong? Traíra Washington, assim como o homem a quem jurara proteger? Afinal, o que estava acontecendo? O que quer que fosse, entre os segredos profanos estava o codinome Medusa. Nunca fora mencionado durante os interrogatórios, não houvera qualquer
alusão a respeito. Era como se o batalhão ignorado de psicóticos e assassinos nunca houvesse existido; sua história fora eliminada dos registros. Mas essa história podia ser reconstituída.... e seria por aí que ele começaria. David deixou o quarto e desceu para o seu estúdio, outrora uma pequena biblioteca ao lado do vestíbulo, na velha casa vitoriana. Sentou à escrivaninha, abriu a última gaveta e retirou diversos cadernos de anotações e outros papéis. Pegou uma espátula de latão e levantou o fundo falso; havia ali outros papéis. Era um sortimento vago e confuso de recordações fragmentadas, imagens que lhe haviam surgido nas horas mais inesperadas, de dia e de noite. Havia pedaços de papel e páginas arrancadas de pequenos blocos de anotações, papéis timbrados diversos, em que ele anotara as cenas e palavras que explodiam em sua cabeça. Era uma massa de evocações dolorosas, muitas tão torturadas que não podia partilhá-las com Marie, temendo que a dor fosse grande demais, as revelações de Jason Bourne excessivamente brutais, que a esposa não seria capaz de confrontar. Entre os segredos ali registrados estavam os nomes dos peritos em operações clandestinas que o haviam interrogado tão intensamente na Virginia. Os olhos de David se focalizaram de repente na arma terrível, de grosso calibre, na beira da mesa. Sem percebê-lo, trouxera a arma do quarto; contemplou-a fixamente por um momento, depois pegou o telefone. Era o começo da hora mais angustiante e irritante de sua vida, pois a cada momento Marie ficava mais longe. As duas primeiras ligações foram atendidas por esposas ou amantes; os homens que tentava encontrar subitamente não estavam, quando ele se identificava. Ainda estavam à margem! Os homens não fariam contato sem ele e essa autorização estava sendo negada. Oh, Deus, ele deveria ter imaginado! — Alô? — É a residência de Lanier? — É, sim. — Quero falar com William Lanier, por favor. Diga a ele que é urgente, um alerta Cento e Dezesseis. Meu nome é Thompson. Departamento de Estado. — Um momento, por favor — respondeu a mulher, obviamente preocupada. Alguns segundos depois uma voz de homem perguntou: — Quem está falando? — Aqui é David Webb. Lembra-se de Jason Bourne, não é mesmo? — Webb? — Houve uma pausa, povoada pela respiração de Lanier. — Por que disse que seu nome era Thompson? Foi um alerta da Casa Branca?
— Tive a impressão de que você poderia não querer falar comigo. Entre as coisas de que me lembro, está a de que vocês não fazem contato com determinadas pessoas sem autorização. Estão fora dos limites. Simplesmente comunicam a tentativa de contato. — Então presumo que também se lembra que é altamente irregular ligar para alguém como eu por um telefone domiciliar. — Telefone domiciliar? Isso inclui agora a proibição de falar com as pessoas no lugar em que moram? — Você sabe muito bem do que estou falando. — Expliquei que era uma emergência. — Não pode ter nada a ver comigo — protestou Lanier. — Você é um arquivo morto em minha seção... — Completamente morto? — Não foi isso o que falei. Só quis dizer que você não está mais entre as minhas atribuições, e a política é não interferir com o trabalho dos outros. — Que outros? — indagou David, bruscamente — Como vou saber? — Está insinuando que não tem o menor interesse pelo que posso lhe dizer? — Não tem a menor importância se estou interessado ou não. Você não consta de qualquer das minhas listas e isso é tudo o que preciso saber. Se tem alguma coisa a dizer, ligue para o seu contato autorizado. — Já tentei. A esposa disse que ele estava no Extremo Oriente. — Experimente o escritório. Certamente alguém por lá vai processá-lo — Sei disso e não me agrada ser processado. Quero falar com alguém que eu conheça... e conheço você, Bill. Está lembra do? Era “BilI” na Virginia... foi assim que você me disse para chamálo. Estava interessado demais no que eu tinha a dizer naquela ocasião. — Era outro tempo, agora é diferente. Não posso ajudá-lo, Webb, porque não posso aconselhálo. Não importa o que você me diga, não posso responder. Não estou atualizado sobre a sua situação... há quase um ano que não tenho qualquer informação. Seu contato é que está a par de tudo... E tenho certeza de que poderá encontrá-lo. Torne a ligar para o Departamento de Estado. E, agora, vou desligar. — Medusa — sussurrou David. —. Está me entendendo, Lanier? Medusa. — Medusa o quê? Está tentando me dizer alguma coisa?
— Vou revelar tudo, está me ouvindo? Vou denunciar toda aquela sujeira, a menos que me dêem as respostas que estou querendo! — Por que em vez disso não se deixa processar? — disse friamente o homem das operações secretas. — Ou então se interne num hospital. Houve um estalido abrupto e David, suando, também desligou. Lanier não tinha conhecimento de Medusa. Se soubesse alguma coisa, teria permanecido ao telefone, descobrindo tudo o que pudesse, pois Medusa cruzava as linhas de “política” e de estar “atualizado”. Mas Lanier também era um dos interrogadores mais jovens, não devia ter mais do que trinta e três ou trinta e quatro anos; era muito inteligente, mas não um veterano do serviço. Alguém uns poucos anos mais velho provavelmente teria recebido autorização para saber de tudo, seria informado sobre o batalhão renegado que ainda era mantido sob sigilo absoluto. David estudou os nomes na lista e os telefones correspondentes. Tornou a tirar o fone do gancho. — Alô? Uma voz de homem. — É Samuel Teasdale? — Isso mesmo. Quem está falando? — Fico contente por ter sido você a ter atendido e não sua esposa. — O padrão da esposa, sempre que possível — comentou Teasdale, subitamente cauteloso, — Só que a minha não está mais disponível. Neste momento viaja por algum lugar do Caribe, em companhia de alguém que nunca conheci. Agora que já conhece a história da minha vida, pode me dizer quem é você? — Jason Bourne... está lembrado? — Webb? — Eu me lembro vagamente desse nome. — Por que está me telefonando? — Você se mostrou cordial. Lá na Virginia, disse-me para tratá-lo por Sam. — Está bem, Davey, está bem. Tem toda razão. Eu lhe disse que me chamasse de 5am... é assim que os amigos me tratam, Sam... — Teasdale estava surpreso, transtornado, procurando por palavras. — Mas isso aconteceu há quase um ano, Davey. Você conhece as regras. Uma pessoa é designada para lhe falar, no local ou no Departamento de Estado. É essa a pessoa com quem deve manter contato... a pessoa que está a par de tudo. — E você não está, Sam?
— Não em relação a você. Lembro a diretiva que chegou a nossas mesas duas semanas depois que você deixou a Virginia. Todos os pedidos de informações relativos ao “referido indivíduo” devem ser encaminhados à Seção tal e tal, tendo o “referido indivíduo” acesso total e contato direto com agentes no local e no Departamento. — Os agentes... se é isso que eles eram... foram removidos, e meu contato de acesso total e direto desapareceu. — Ora, não venha com essa — protestou Teasdale, suavemente, desconfiado. — Isso é absurdo. Não pode ter acontecido. — Mas aconteceu! — berrou David. — E minha esposa também aconteceu! — O que houve com sua esposa? Do que está falando? — Ela desapareceu, seu filho da puta... todos vocês não passam de filhos da puta! Deixaram que acontecesse! — David segurou o pulso da mão que empunhava o telefone, apertando com toda força para impedir que tremesse. — Quero respostas, Sam. Quero saber quem deu a ordem, quem virou. Tenho uma idéia do responsável, mas preciso de respostas para agarrá-lo... agarrar a todos vocês, se for necessário. — Pare por aí! — interrompeu Teasdale, furioso. — Se está tentando me comprometer, quero que saiba que está fazendo um péssimo trabalho! Ninguém vai me neutralizar! Se quer berrar, então procure os seus psiquiatras, não a mim! Não sou obrigado a falar com você. Tudo o que tenho de fazer é informar que você me telefonou, providência que tomarei assim que desligar. E quero acrescentar que não vou permitir que ninguém jogue um balde de merda na minha cabeça. Trate de cuidar bem dessa sua cabeça! — Medusa! — berrou David. — Ninguém quer falar sobre o codinome Medusa, não é mesmo? Até hoje a história continua muito bem escondida, não é mesmo? Não houve um estalido desta vez. Teasdale não desligou. Em vez disso, falou incisivamente, a voz não deixando transparecer qualquer comentário: — Rumores... Como os arquivos de Hoover... dão para algumas histórias enquanto se toma uns tragos, mas não valem coisa alguma. — Não sou um rumor, Sam. Eu vivo, respiro, vou ao banheiro e suo... como estou suando neste momento. Isso não é um rumor. — Teve seus problemas, Davey. — Eu estava lá! Lutei com Medusa! Algumas pessoas diziam que eu era o melhor... ou o pior. Por isso é que fui escolhido, por isso me tornei Jason Bourne. — Não sei de nada a respeito. Nunca discutimos o problema, e portanto não posso saber. Alguma vez falamos a respeito, Davey?
— Pare de usar essa porta desse nome! Eu não sou Davey! — Éramos “5am” e “Davey” na Virginia... não se lembra? — Isso não importa! Todos estávamos empenhados em jogos. Morris Panov era o nosso árbitro, até o dia em que você resolveu endurecer. — Pedi desculpas — disse Teasdale, gentilmente. —Todos temos maus dias. Já lhe falei sobre minha esposa. — Não estou interessado em sua esposa, mas na minha! E vou desmascarar Medusa, a menos que obtenha algumas respostas, alguma ajuda! — Tenho certeza de que poderá obter qualquer ajuda que julgar necessária se falar com seu contato no Departamento de Estado. — Ele não está lá! Sumiu por completo! — Então peça para falar com o substituto imediato. E vai ser processado. — Processado? Oh, Deus, o que você é afinal? Um robô? — Apenas um homem tentando realizar seu trabalho, Sr. Webb... e temo não poder fazer mais nada para ajudá-lo. Boa noite. Houve um estalido e Teasdale não estava mais na linha. Havia outro homem, pensou David, numa intensidade febril, olhando para a lista, estreitando os olhos invadidos pelo suor. Um homem tranqüilo, menos áspero que os outros, um sulista, cuja fala lenta e arrastada era uma cobertura para uma mente ágil ou a resistência a um trabalho em que se sentia contrafeito. Não havia tempo para invenção. — E da residência de Babcock? — Claro — respondeu uma voz de mulher, suave e musical. —Não o nosso lar, é claro, como sempre faço questão de ressaltar, mas residimos aqui. — Posso falar com Harry Babcock, por favor? — E posso saber quem deseja falar, por favor? Ele pode estar lá fora no jardim com as crianças, mas também pode ter ido ao parque. É muito bem iluminado hoje em dia... não como antes... e não se precisa temer por sua segurança, desde que se permaneça... Uma cobertura para mentes ágeis, tanto o Sr. como a Sra. Harry Babcock. — Meu nome é Reardon e sou do Departamento de Estado. Há uma mensagem urgente para o Sr. Babcock. Minhas instruções são para encontrá-lo o mais depressa possível. Trata-se de uma emergência.
Houve o eco de um fone sendo coberto, com sons abafados mais além, Harry Babcock entrou na linha, a fala lenta e incisiva. — Não conheço nenhum Sr. Reardon. Todas as minhas mensagens são transmitidas por um controle que se identifica. É um controle, senhor? — Nunca soube de ninguém que viesse do jardim ou do parque no outro lado da rua tão depressa, Sr. Babcock. — Não é extraordinário? Talvez eu devesse estar correndo nos Jogos Olímpicos. Mas conheço sua voz, só não consigo identificar o nome. — Que tal Jason Bourne? A pausa foi breve... uma mente muito ágil. — Esse nome já ficou no passado distante, não é mesmo? Eu diria que há cerca de um ano. É você, não é, David? Não era uma pergunta. — Sou eu mesmo, Harry. Preciso conversar com você. — Nada disso, David. Deve falar com outros, não comigo. — Está me dizendo que fui cortado? — Eu não seria tão brusco e descortês, David. Teria o maior prazer em ouvir como você e a simpática Sra. Webb estão indo em sua nova vida. Massachusetts, não é mesmo? — Maine. — Isso mesmo. Desculpe. Está tudo bem? Como tenho certeza que compreende, meus colegas e eu estamos envolvidos com tantos problemas que não pudemos nos manter em contato com o seu caso. — Alguém disse que vocês estavam proibidos de se envolverem. — Acho que ninguém tentou. — Quero conversar, Babcock — disse David, bruscamente. — Mas eu não quero —respondeu Harry Babcock, incisivo, a voz quase glacial. — Sigo os regulamentos e, para ser franco, você está cortado para homens como eu. Não questiono os motivos... as coisas mudam, sempre mudam. — Medusa! — exclamou David. — Não vamos falar a meu respeito, mas sim sobre Medusa! A pausa foi mais prolongada do que antes. Quando Babcock falou, as palavras eram mais frias
do que nunca: — Este telefone é seguro, Webb, por isso vou dizer tudo o que quero. Você quase.foi liquidado há um ano e teria sido um erro. Nós o lamentaríamos sinceramente. Mas se romper os fios, não haverá qualquer lamentação amanhã. Exceto, é claro, de parte de sua esposa. — Seu filho da puta! Ela desapareceu! Alguém a levou! E vocês canalhas deixaram que acontecesse! — Não tenho a menor idéia do que está falando. — Meus guardas foram retirados, todos eles, até o último, e minha mulher foi seqüestrada. Quero respostas, Babcock, ou vou revelar tudo o que sei. E agora faça exatamente o que eu mandar ou haverá lamentações como nunca sonhou... para todos vocês, suas mulheres, seus filhos órfãos... pode pensar em todo mundo que vai caber. Ou já esqueceu que sou Jason Bourne? — O que não esqueci é que você é um maníaco. Com ameaças assim, só vai conseguir que enviemos uma equipe à sua procura. Ao melhor estilo Medusa. Gosta da idéia? Subitamente, um zumbido intenso entrou na linha; era ensurdecedor, estridente, levando David a afastar o fone do ouvido. E, depois, a voz calma de uma telefonista comunicou: — Estamos interrompendo a ligação para uma emergência. Pode falar, Cobrado. — É Jason Bourne quem está na linha? — indagou uma voz de homem com sotaque da Costa Atlântica dos Estados Unidos, uma voz refinada, aristocrática. — Sou David Webb. — Claro que sim... mas também é Jason Bourne. — Era — murmurou David, hipnotizado por algo que não podia definir. — As linhas conflitantes de identidade se misturam, Sr. Webb. Especialmente para alguém que passou por tanta coisa. — Mas quem é você? — Um amigo, pode estar certo. E um amigo adverte alguém a quem chama de amigo. Fez algumas acusações afrontosas a alguns dos mais dedicados servidores de nosso país, homens que nunca permitirão o desaparecimento de cinco milhões de dólares... um dinheiro que continua inexplicado até hoje. — Quer me revistar? — Não, assim como também não estou interessado em investigar os caminhos tortuosos pelos quais sua eficiente esposa escondeu o dinheiro em uma dúzia de bancos europeus...
— Ela sumiu! Foram seus homens dedicados os responsáveis? — Descreveram você como alguém com esgotamento nervoso... “frenético”, para ser mais preciso... a fazer acusações espantosas, relacionadas com sua esposa. — Relativas a... Essa não! Ela foi seqüestrada de nossa casa! E alguém a está mantendo cativa porque me quer! — Tem certeza? — Pergunte ao peixe morto do McAllister. A história é dele, inclusive o bilhete. E de repente ele está no outro lado do mundo! — Um bilhete? — Muito claro. Muito específico. É história de McAllister e ele deixou que acontecesse! Vocês deixaram que acontecesse! — Talvez você devesse examinar o bilhete mais atentamente. — Por quê? — Não importa. Pode se tomar tudo mais claro para você com alguma ajuda... ajuda psiquiátrica. — Como assim? — Pode estar certo de que queremos fazer tudo o que for possível por você. Passou por muita coisa... mais do que qualquer homem deveria passar... e sua extraordinária contribuição não pode ser ignorada, mesmo que o caso seja levado a um tribunal. Pusemos você na situação e ficaremos do seu lado... mesmo que isso implique violar leis, coagir tribunais. — Mas do que está falando? — berrou David. — Um respeitável médico militar matou a esposa, tragicamente, há alguns anos. A história saiu nos jornais. A tensão tornou-se demais. E as pressões sobre você foram dez vezes maiores. — Não acredito nisso! — Vamos pôr as coisas de outra maneira, Sr. Bourne. — Eu não sou Bourne! — Está certo, Sr. Webb. Vou ser franco. — Já é um passo à frente!
— O senhor não está bem. Passou por oito meses de tratamento psiquiátrico... e ainda há uma boa parte de sua vida de que não consegue se lembrar. Nem mesmo sabia o seu nome. Está tudo nos registros médicos, registros meticulosos que deixam bem claro o estado avançado de sua doença mental, sua compulsão para a violência e rejeição obsessiva da própria identidade. E, em seu tormento, o senhor fantasia, finge ser pessoas que não é. Parece ter a compulsão de ser alguém que não o senhor mesmo. — isso é loucura e sabe muito bem! Tudo mentira! — “Loucura” é uma palavra dura, Sr. Webb, e as mentiras não são minhas. Contudo, é meu dever proteger nosso governo da calúnia, das acusações infundadas que podem prejudicar seriamente o país. — Por exemplo? — Sua fantasia secundária sobre uma organização desconhecida que chama de Medusa. Tenho certeza de que sua esposa vai voltar... se ela puder, Sr. Webb. Mas se persistir nessa fantasia, nessa invenção de sua mente torturada que o senhor chama Medusa, vamos considerá-lo um esquizofrênico paranóico, um mentiroso patológico propenso à violência incontrolável e à auto-ilusão, Se um homem assim alega que a esposa está desaparecida, quem sabe para onde a viagem patológica pode levá-lo? Estou sendo claro? David fechou os olhos, o suor escorrendo pelo rosto. — Muito claro — murmurou ele, desligando. Paranóico... patológico. Miseráveis! Tornou a abrir os olhos, querendo descarregar a raiva arremetendo contra alguma coisa... qualquer coisa! Mas de repente ficou imóvel, enquanto outro pensamento lhe ocorria, o pensamento óbvio. Morris Panov! Mo classificaria os três monstros pelo que ele sabia que eram. Incompetentes e mentirosos, manipuladores e protetores egoístas de burocracias corruptas... e possivelmente ainda pior, muito pior. David estendeu a mão para o telefone e, tremendo, discou o número que tantas vezes no passado lhe trouxera uma voz tranqüilizante e racional, proporcionando um senso de valor, quando sentia que muito pouco de valor restava em sua pessoa. — David, que prazer ouvi-lo! — exclamou Panov, com uma afeição genuína. — O prazer não será tão grande, Mo. É o pior telefonema que já lhe dei. — Ora, David, está sendo dramático demais. Passamos por muita coisa... — Escute!— berrou David. Ela desapareceu! Eles a seqüestraram! As palavras saíram num jorro, as seqüências carecendo de ordem, os tempos confusos. — Pare, David! — ordenou Panov, — Volte atrás. Quero ouvir tudo desde o começo. Quando esse homem foi procurá-lo... depois que... depois das lembranças de seu irmão. — Que homem?
— O homem do Departamento de Estado. — Está bem, está bem! McAllister era o seu nome. — Comece daí. Nomes, títulos, posições. E soletre o nome daquele banqueiro em Hong Kong. E, pelo amor de Deus, fale devagar! David tornou a apertar o pulso que empunhava o fone. Começou de novo, impondo um falso controle à voz; tornou-se estridente, tensa, adquirindo velocidade involuntariamente. Acabou conseguindo relatar tudo que podia lembrar, sabendo horrorizado que não se lembrara de tudo. Espaços em branco desconhecidos acarretavam-lhe uma profunda angústia. Estavam voltando... os terríveis espaços em branco. Dissera tudo o que podia dizer no momento; não restava mais nada. — David — começou Mo Panov, firmemente —, quero que faça uma coisa por mim. Agora. — O quê? — Pode lhe parecer uma tolice, até mesmo um tanto absurdo, mas sugiro que desça a rua até a praia e faça uma caminhada pela beira d’água. Meia hora, quarenta e cinco minutos, só isso. Escute a arrebentação, as ondas quebrando nos rochedos. — Não pode estar falando sério! — Claro que estou, David. Lembra que concordamos um dia que havia ocasiões em que as pessoas deveriam pôr a cabeça na geladeira... e Deus sabe que faço isso com mais freqüência do que um psiquiatra relativamente respeitado deveria fazer. As coisas podem nos sufocar, e antes de fazermos qualquer coisa, precisamos nos livrar de um pouco da confusão. Faça o que estou pedindo, David. Voltarei a lhe telefonar assim que puder, não devo demorar mais que uma hora. E quero você mais calmo do que está agora. Era uma loucura, mas como acontecia com tanta coisa que Panov sugeria, suavemente, às vezes casualmente, havia verdade em suas palavras. David caminhou pela praia fria e rochosa, jamais esquecendo por um instante sequer o que acontecera; se foi pela mudança de cenário, o vento ou o barulho incessante e repetitivo do mar, o fato é que se descobriu a respirar mais firmemente... ainda profundamente, tão trêmulo quanto antes, mas sem os registros mais altos da histeria. Olhou para o relógio, o mostrador luminoso ressaltado pelo luar. Caminhara de um lado para outro por trinta e dois minutos; era toda a indulgência que podia suportar. Subiu pelo caminho através das dunas cobertas por uma vegetação rasteira e alcançou a rua, encaminhando-se para sua casa, acelerando a cada passo. Sentou na cadeira atrás da escrivaninha, os olhos fixados no telefone, que começou a tocar. Atendeu antes que a campainha parasse. — Mo? — Sim. — Estava muito frio na praia. Obrigado.
— Eu é que devo agradecer. — O que descobriu? E foi então que a extensão do pesadelo começou. — Há quanto tempo Marie desapareceu, David? — Não sei com certeza. Uma hora, duas, talvez mais. Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa? — Ela não poderia ter saído para fazer compras? Ou vocês dois tiveram uma briga e ela resolveu passar algum tempo sozinha? Ambos sabemos que as coisas se tornam às vezes muito difíceis para ela... você mesmo faz questão de ressaltar isso. — Mas do que está falando? Há um bilhete explicando tudo! E sangue... a impressão de uma mão em sangue! — Já mencionou isso antes, mas são pistas incriminadoras. Por que alguém faria isso? — Como eu vou saber? Foi feito... eles fizeram! Está tudo aqui! — Chamou a polícia? — Claro que não! Não é um caso para a polícia! E para nós... para mim! Será que não pode compreender isso? O que descobriu? Por que está falando assim? — Porque tenho. Em todas as sessões, em todos os meses em que conversamos, nunca dissemos qualquer coisa que não a verdade um para o outro, porque a verdade é o que você precisa saber. — Pelo amor de Deus, Mo, é Marie! — Deixe-me acabar, por favor, David. Se eles estão mentindo... e já mentiram antes... vou descobrir e denunciá-los. Não poderia fazer outra coisa. Mas vou relatar exatamente o que eles me disseram, qual a história que o segundo homem da Seção do Extremo Oriente me contou e o que falou o chefe de segurança do Departamento de Estado, de acordo com o registro oficial dos acontecimentos. — Registro oficial? — Isso mesmo. Ele disse que você procurou o controle de segurança há pouco mais de uma semana. Segundo o registro, estava bastante agitado... — Eu os procurei? — Foi o que ele disse.. Segundo o registro, você alegou que recebera ameaças. Sua fala estava “incoerente”.., foi a palavra que eles usaram... e exigiu uma segurança adicional imediatamente. Por causa da indicação de confidencial em sua ficha, o pedido foi encaminhado aos escalões superiores, que decidiram: “Vamos dar o que ele quer. É melhor esfriá-lo.”
— Não posso acreditar! — Isso não é tudo, David. E quero que me escute, porque escutei o que você disse. — Está bem. Continue. — Assim é melhor. Calma. Fique frio... não, risque a palavra “frio”. — Por favor, continue. — Depois que as patrulhas estavam postadas... novamente segundo os registros... você entrou em contato mais duas vezes, queixando-se de que os guardas não estavam cumprindo o seu dever. Disse que bebiam em seus carros na frente de sua casa, que riam de você quando o acompanhavam pelo campus, que eles... e aqui vou reproduzir literalmente... “escarneciam do que deveriam estar fazendo”. Gravei essa frase. — Escarneciam? — Calma, David. Estou chegando ao fim dos registros. Você fez um último contato, declarando enfaticamente que queria que todos fossem removidos... que os guardas eram seus inimigos, os homens que queriam matá-lo. Em suma, você convertera os homens que tentavam protegê-lo em inimigos que iriam atacá-lo. — E tenho certeza que isso se ajusta perfeitamente a uma dessas conclusões psiquiátricas idiotas de que estou convertendo... ou pervertendo.., minhas ansiedades em paranóia. — Tem razão, ajusta-se perfeitamente — murmurou Panov. — Até demais. — O que disse o segundo homem do Extremo Oriente? Panov permaneceu em silêncio por um momento. — Não é o que você quer ouvir, David, mas ele foi inflexível. Nunca ouviram falar de um banqueiro ou de qualquer taipan influente chamado Yao Ming. Disse que, pela situação atual de Hong Kong, teria memorizado o dossiê se tal pessoa existisse. — Ele acha que inventei tudo? O nome, a esposa, a ligação com os tóxicos, os lugares, as circunstâncias... a reação britânica! Pelo amor de Deus, eu não poderia inventar essas coisas, mesmo que quisesse! — Seria mesmo demais para você — concordou o psiquiatra, suavemente. — E também está ouvindo pela primeira vez tudo o que acabei de lhe contar e nada faz sentido. Não é assim que costuma recordar as coisas. — Mo, é tudo mentira! Nunca entrei em contato com o Departamento de Estado. McAllister esteve aqui e contou a nós dois tudo o que lhe relatei, inclusive a história de Yao Ming E agora ela desapareceu e me deixaram uma pista para seguir. Por quê? Pelo amor de Deus, o que estão querendo
fazer conosco? — Perguntei por McAllister —informou Panov, o tom subitamente furioso. — O segundo homem do Extremo Oriente verificou com o setor de trânsito do Departamento de Estado e tornou a me ligar. McAllister voou para Hong Kong há duas semanas. Assim, de acordo com sua agenda meticulosa, não poderia ter ido à sua casa no Maine. — Mas ele esteve aqui! — Acho que acredito em você. — O que isso significa? — Entre outras coisas, que posso perceber a verdade em sua voz, às vezes mesmo quando você não pode. E também que a expressão “escarnecer” de alguma coisa geralmente não consta do vocabulário de um psicótico em estado de grande agitação... certamente não no seu, mesmo nos momentos mais delirantes. — Não estou entendendo. — Alguém conferiu onde você trabalhava e o que fazia para viver e concluiu que seria apropriado acrescentar uma linguagem mais elevada. O que se chama de cor local, em seu caso. — Uma pausa e Panov explodiu: — Santo Deus, o que estão fazendo? — Trancando-me no starting gate1* — murmurou David. — Estão me forçando a sair em busca do que querem. — Filhos da puta! — É o que se chama de recrutamento. — David olhava fixamente para a parede. — Mantenhase a distância, Mo, pois não há nada que possa fazer. Eles ajustaram todas as peças em seus devidos lugares. Estou recrutado. David desligou. Atordoado, deixou o pequeno escritório e foi parar no vestíbulo vitoriano, contemplando os móveis virados, os abajures quebrados, porcelanas e vidros espalhados pelo chão da sala de estar. E nesse instante afloraram as palavras que Panov pronunciara no início da terrível conversa: “São pistas incriminadoras”. Percebendo apenas vagamente para onde seus passos o levavam, aproximou-se da porta da frente e abriu-a. Forçou-se a olhar para a mão gravada no centro do painel superior, o sangue seco escuro à luz das lâmpadas da varanda. Chegou mais perto e examinou-a. Era a impressão de uma mão, mas não uma mão impressa. Havia o contorno de uma mão — a impressão, a palma, os dedos estendidos — mas não as falhas na forma sangrenta, não as superposições ou depressões que uma mão sangrando deixaria ao ser comprimida contra a madeira dura, nenhuma marca de identificação, nenhuma parte isolada que gravaria as suas características específicas. Era como
uma sombra achatada e colorida de um pedaço de vitral, sem outros planos que não a impressão única. Uma luva? Uma luva de borracha? David desviou os olhos e encaminhou-se lentamente para a escada do meio do vestíbulo, os pensamentos se concentrando hesitantes em outras palavras, pronunciadas por outro homem. Um homem estranho, com uma voz hipnótica. Talvez você devesse examinar o bilhete mais atentamente... Pode se tornar tudo mais claro para você com alguma ajuda... ajuda psiquiátrica. David soltou um grito súbito, o terror se avolumando em seu íntimo, enquanto corria para a escada e subia para o quarto. Parou e ficou olhando fixamente para o bilhete datilografado na cama. Pegou-o com um medo repulsivo e levou-o para a penteadeira de Marie. Acendeu o abajur e examinouo sob a luz. Se o coração em seu peito pudesse explodir, então teria acabado naquele momento. Em vez disso, Jason Bourne estudou o bilhete friamente. Os erres um pouco inclinados e irregulares estavam ali, assim como os dês, as hastes superiores incompletas, partidas no meio da marca. Filhos da puta! O bilhete fora escrito em sua própria máquina. Recrutamento.
Capítulo 6 David sentou nos rochedos por cima da praia, sabendo que tinha de pensar com toda lucidez. Precisava definir o que tinha pela frente e o que esperavam dele, para depois formular um plano melhor do que a trama de quem quer que o estivesse manipulando. Acima de tudo, sabia que não podia se entregar ao pânico, nem mesmo à percepção do pânico, pois um homem em pânico era perigoso, um risco a ser eliminado. Se fosse além da conta, só estaria assegurando a morte de Marie e a sua; era muito simples. Tudo era frágil... violentamente frágil. David Webb estava fora de cogitação. Jason Bourne tinha de assumir o controle. Oh, Deus! Era uma loucura! Mo Panov lhe recomendara que andasse pela praia — como Webb — e agora ele estava sentado ali — como Bourne — pensando nas coisas da maneira como Bourne pensaria. Tinha de negar uma parte de si mesmo e aceitar a parte oposta. Estranhamente. não era impossível, nem mesmo intolerável, pois Marie dependia de sua ação. Seu amor, seu único amor... Não pense assim. Jason Bourne falou: Ela é um bem precioso que tiraram de você! Trate de recuperá-la. Jason Bourne falou: Não, não é um simples bem precioso, é minha vida! Jason Bourne: Então viole todas as regras! Descubra-a! Traga-a de volta! David Webb: Não sei como. Ajude-me! Pois então me use! Use tudo o que aprendeu comigo. Tem os instrumentos, há anos que os possui. Era o melhor em Medusa. Acima de tudo, havia controle. Você pregava isso, vivia assim. E permaneceu vivo. Controle. Uma palavra muito simples. Uma demanda terrível. David desceu dos rochedos e subiu outra vez o caminho pela vegetação rasteira, retornando à velha casa vitoriana, detestando o seu vazio repentino, assustador e injusto. Enquanto andava, um nome passou num relance por seus pensamentos; depois voltou e persistiu. Lentamente, o rosto que pertencia a esse nome entrou em foco... bem devagar, pois o homem despertava ódio em David, um sentimento que não era menos intenso do que a tristeza que também evocava. Alexander Conklin tentara matá-lo — duas vezes — e quase conseguira. E Alex Conklin — segundo o seu depoimento, suas numerosas sessões psiquiátricas com Mo Panov e as vagas recordações que David pudera fornecer — fora um amigo íntimo do funcionário do serviço diplomático de David Webb, sua esposa tailandesa e seus filhos, no Camboja, uma vida inteira atrás. Quando a morte caíra do céu, enchendo o rio com círculos de sangue, David fugira às cegas para Saigon, dominado por uma raiva incontrolável. Fora seu amigo na CIA, Alex Conklin, quem lhe encontrara um lugar no batalhão ilegítimo que chamavam Medusa. Se puder sobreviver ao treinamento na selva, será um homem como eles querem. Mas tome cuidado com eles... com todos eles, sem exceção, em cada minuto. São capazes de cortarem seu braço
para ficarem com o relógio. Eram essas as palavras que David lembrava e também recordava, especificamente, que haviam sido pronunciadas pela voz de Alexander Conklin. Ele sobrevivera ao treinamento brutal e se tomara Delta. Nenhum outro nome, apenas uma progressão no alfabeto. Delta Um. E depois da guerra Delta se tornara Caim. Caim é para Delta e Delta é para Carlos. Fora esse o desafio lançado a Carlos, o assassino. Criado por Casa de Pedra 71, um assassino chamado Caim pegaria o Chacal. Fora como Caim, um nome que o submundo da Europa sabia que era na verdade o Jason Bourne da Ásia, que David acabara sendo traído por Conklin. Um simples ato de fé da parte de Alex poderia ter feito toda a diferença. Mas Alex não pudera encontrar qualquer base dentro de si para oferecê-lo; sua amargura pessoal impedia essa caridade. Acreditara no pior do ex-amigo, porque seu senso de martírio o levava a querer acreditar. Provocara seu amor-próprio ferido, convencendo-o de que era melhor do que o ex-amigo. Em seu trabalho com Medusa, Conklin tivera o pé direito destruído por uma mina de terra, o que encerrara a sua brilhante carreira como estrategista de campo. Um homem aleijado não podia continuar em ação no campo, onde uma crescente reputação talvez o conduzisse por caminhos ascendentes já percorridos por homens como Allen Dulles e James Angleton; e Conklin não possuía os talentos indispensáveis para a luta interna burocrática em Langley. Ele começara a definhar, um tático outrora extraordinário a observar os talentos inferiores ultrapassarem-no, sua competência só procurada em segredo, a cabeça de Medusa sempre nos bastidores, perigoso, alguém para se manter a distância. Dois anos de castração imposta, até que um homem conhecido como Monge — um Rasputin das operações secretas — procurara-o porque um certo David Webb fora escolhido para uma missão extraordinária e Conklin o conhecia há anos. Casa de Pedra 71 estava criada, Jason Bourne tornara-se o seu produto, e Carlos o Chacal, o alvo. E durante trinta e dois meses Conklin controlara a operação, a mais secreta de todas as operações secretas, até que tudo desmoronara com o desaparecimento de Jason Bourne e a retirada de mais de cinco milhões de dólares da conta da missão em Zurique. Sem qualquer indício em contrário, Conklin presumira o pior. O lendário Bourne resolvera virar; a vida no mundo clandestino se tornara insuportável para ele, e a tentação de mais de cinco milhões de dólares fora grande demais para resistir. Ainda mais para alguém conhecido como o camaleão, um especialista em cobertura total, que falava várias línguas e podia mudar de aparência e estilo de vida com tão pouco esforço que era capaz de literalmente desaparecer. Uma armadilha para um assassino fora armada e depois a isca sumira, revelando um ladrão ardiloso. Para o entrevado Alexander Conklin, não era apenas o ato de um traidor, mas também uma traição intolerável. Considerando tudo o que fora feito com ele, seu pé agora apenas um peso morto e desajeitado, inserido cirurgicamente em carne roubada, uma carreira outrora brilhante para sempre perdida, a vida pessoal uma solidão que só podia ser preenchida com a entrega total à Agência — uma devoção que não tinha retribuição — que direito tinha qualquer outro de mudar de lado? Que outro homem dera tanto quanto ele? Assim, seu antigo amigo íntimo, David Webb, transformara-se no inimigo, Jason Bourne. E não somente o inimigo, mas uma obsessão. Ajudara a criar o mito; haveria agora de destruí-lo. A primeira tentativa fora com dois assassinos profissionais, nos arredores de Paris. David estremeceu ao recordar, ainda contemplando um derrotado Conklin se afastando a claudicar, o vulto entrevado sob a mira de sua arma.
A segunda tentativa estava ainda enevoada para David. Talvez nunca a lembrasse completamente. Ocorrera na casa segura da operação, na Rua 71, em Nova York, uma engenhosa armadilha montada por Conklin, que malograra pelos esforços histéricos de David para sobreviver e, estranhamente, pela presença de Carlos, o Chacal. Mais tarde, quando a verdade se tornara conhecida, de que o “traidor” não cometera qualquer traição, mas em vez disso sofria de uma aberração mental chamada amnésia, Conklin desmoronara. Durante os meses angustiantes da convalescença de David, na Virginia, Alex tentara repetidamente encontrar o antigo amigo íntimo, a fim de explicar, contar a sua parte da terrível história... e pedir desculpas, com todas as fibras do seu ser. David, no entanto, não tinha o perdão em sua alma. E declarara: — Se ele passar por aquela porta, vou matá-lo. Isso vai mudar agora, pensou David, enquanto avançava apressado pela rua, a caminho de casa. Quaisquer que fossem os defeitos e traições de Conklin, poucos homens na comunidade de informações possuíam os conhecimentos e fontes que ele acumulara ao longo da vida. Há meses que David não pensava em Alex; lembrou-se dele agora, recordando de repente a última vez em que seu nome aparecera numa conversa. Mo Panov apresentara seu veredicto: — Não posso ajudá-lo, porque ele não quer ser ajudado. Vai levar a sua última garrafa de fel para a vasta e negra sala de operações no céu aberto em seu crânio misericordiosamente morto. Ficarei surpreso se ele sobreviver à sua aposentadoria ao final do ano. Por outro lado, se ele continuar bebendo como está, podem metê-lo numa camisa-de-força e tirá-lo de circulação. Juro que não sei como ele consegue trabalhar todos os dias. Aquela pensão é uma tremenda terapia de sobrevivência... melhor do que qualquer coisa que Freud nos tenha deixado. Panov fizera o comentário há mais de cinco meses. Conklin ainda estava no mesmo lugar. Desculpe, Mo. A sobrevivência dele, de um jeito ou de outro, não é problema meu. Pelo que me diz respeito, ele já está morto. Não está morto agora, pensou David, enquanto subia correndo os degraus da varanda vitoriana. Alex Conklin estava muito vivo, bêbado ou não; e mesmo que estivesse preservado em bourbon, ainda tinha as suas fontes, os contatos que cultivara durante uma vida inteira de devoção ao mundo da espionagem, que acabara por rejeitá-lo. Era um mundo em que as dívidas eram cobradas e pagas por medo. Alexander Conklin. Número Um na lista de alvos de Jason Bourne. David abriu a porta e mais uma vez parou no vestíbulo, só que seus olhos não viam os escombros. Em vez disso, o lógico nele ordenou-lhe que voltasse ao estúdio e iniciasse o processo; não havia nada além de confusão sem ordem imposta, e a confusão levava a indagações... algo que não podia se permitir agora. Tudo devia ser preciso na realidade que estava criando, a fim de desviar a curiosidade da realidade que existia.
Sentou-se à mesa e tentou se concentrar. Lá estava o sempre presente caderno de espiral da College Shop. David abriu a capa grossa para a primeira folha pautada e estendeu a mão para um lápis... Não conseguia pegá-lo! A mão se sacudia tanto que todo o corpo tremia. Prendeu a respiração e fechou a mão, comprimindo-a até que as unhas penetraram na carne. Cerrou os olhos, tornou a abri-los, forçando a mão a voltar ao lápis, ordenando que cumprisse sua função. Devagar, de forma um tanto desajeitada, os dedos agarraram o lápis amarelo. levando-o à posição correta. As palavras saíam quase ilegíveis, mas estavam ali. A universidade — telefonar reitor e diretor do departamento. Crise na família, não Canadá — pode ser verificado. Invente — talvez um irmão na Europa. Uma licença — uma licença rápida. Mas imediato. Vai se manter em contato. Casa — ligar para administradora, a mesma história. Pedir a Jack para verificar periodicamente. Ele tem a chave. Ligar termostato em 15°C. Correspondência — preencher formulário no correio. Reter toda correspondência. Jornais — cancelar. As pequenas coisas, todas as malditas pequenas coisas — o trivial cotidiano insignificante adquiria uma enorme importância e precisava cuidar de tudo, a fim de que não houvesse qualquer sinal de partida brusca, sem um retorno planejado. Isso era vital; tinha de se lembrar em cada palavra que dissesse. As perguntas deviam ser reduzidas a um mínimo, as especulações inevitáveis mantidas em proporções controláveis, o que significa que precisava confrontar a conclusão óbvia de que os guardacostas recentes estavam de alguma forma relacionados com a licença. Para romper a ligação, o meio mais plausível era enfatizar a curta duração da licença e enfrentar a questão com um repúdio direto. Por exemplo: “Diga-se de passagem, se estão especulando se isso tem alguma coisa a ver com minha preocupação pela segurança pessoal, quero que saibam que não há a menor relação. Aquilo é um Capítulo encerrado. Afinal, não sou tão importante assim.” Saberia melhor como responder ao conversar com o reitor da universidade e o diretor do departamento; suas reações o orientariam. Se é que alguma coisa poderia orientá-lo. Se é que fosse capaz de pensar. Não vacile agora... continue em frente! Mexa esse lápis! Encha a página com coisas a fazer... e depois outra página e mais outra! Passaportes, iniciais em carteiras ou camisas correspondendo aos nomes usados; reservas em aviões — vôos de conexão, nada de viagens diretas... Oh, Deus, para onde? Marie onde você está? Pare com isso! Controle-se. Você é capaz, tem de ser capaz. Não tem alternativa; portanto, seja o que já foi outrora. Sinta o gelo. Seja o gelo. Inesperadamente, a carapaça que ele estava construindo ao seu redor foi estilhaçada pelo som ensurdecedor da campainha do telefone, em cima da mesa, a poucos centímetros da mão. David olhou para o aparelho, engolindo em seco, imaginando se conseguiria parecer sequer remotamente normal. A campainha tornou a soar, numa terrível insistência. Você não tem alternativa. Atendeu, apertando o fone com tanta força que as articulações ficaram brancas. E conseguiu balbuciar uma única palavra:
— Alô? — Aqui é o centro telefônico especial, de comunicação por satélite... — Como? O que foi que disse? — Tenho uma ligação para o Sr. Webb. É ele quem está falando? — É, sim. E no instante seguinte o mundo que David conhecia explodiu em mil espelhos partidos, cada um oferecendo uma imagem de tormento indescritível. — David — Marie? — Não entre em pânico, querido! Está me entendendo? Não entre em pânico! A voz saía em meio à estática; ela fazia um esforço para não gritar, mas não conseguia se controlar. — Você está bem? O bilhete dizia que estava machucada... ferida! — Estou bem. Apenas alguns arranhões, mais nada — Onde você está? — No outro lado do oceano, e tenho certeza que dirão isso a você. Mas não sei direito. Eles me doparam. — Oh, Deus! Não consigo mais suportar! Eles levaram você! — Trate de se controlar, David. Sei o que isso está fazendo com você, mas eles não sabem. Entende o que estou dizendo? Eles não sabem. Marie estava enviando uma mensagem codificada; não era difícil decifrar. Ele tinha de ser o homem que odiava. Tinha de ser Jason Bourne, e o assassino estava vivo e muito bem, residindo no corpo de David Webb. — Está certo. Tem toda razão. Eu já estava começando a enlouquecer. — Sua voz está sendo amplificada... — Era de imaginar. — Estão deixando eu falar com você para que saiba que estou viva.
— Machucaram você? — Não intencionalmente — O que significam “arranhões”? — Eu me debati. E lutei. Não se esqueça de que fui criada num rancho. — Oh, não... — David, por favor! Não deixe que eles façam isso com você! — Comigo? É com você! — Sei disso, querido. Acho que estão testando você. Pode compreender? Novamente a mensagem. Jason Bourne pelo bem dos dois... por suas vidas. — Claro, claro. — Ele diminuiu a intensidade da voz, tentando se controlar. — Quando aconteceu? — Esta manhã, cerca de uma hora depois que você saiu. — Esta manhã? Oh, Deus, o dia inteiro! Como foi? — Bateram na porta. Dois homens... — Quem? — Só tenho permissão para dizer que são do Extremo Oriente. Na verdade, não sei mais nada além disso. Convidaram-me a acompanhá-los e recusei. Corri para a cozinha e avistei uma faca. Atingi um dos homens na mão. — A marca na porta... — Não estou entendendo. — Não tem importância. — Um homem quer falar com você, David. Escute o que ele tem a dizer, mas não com raiva, não com fúria... pode compreender? — Claro que posso. Está certo. Compreendo. A voz do homem entrou na linha. Era hesitante, mas precisa, quase britânica na pronúncia, alguém que aprendera inglês com um inglês ou com alguém que vivera na Inglaterra. Mesmo assim, era inconfundivelmente oriental; o sotaque era do sul da China, o tom, as vogais curtas e as consoantes bruscas indicando que era cantonês.
— Não queremos fazer mal algum à sua esposa, Sr. Webb, mas será inevitável, se não houver outro jeito. — Eu não faria isso, se fosse você — respondeu David, friamente. — É Jason Bourne quem está falando? — Isso mesmo. — O reconhecimento é o primeiro passo em nosso acordo. — Que acordo? — Você tirou uma coisa de grande valor de um homem. — E vocês me tiraram uma coisa de grande valor. — Ela está viva. — E é bom que continue assim. — A outra pessoa está morta. Você a matou. — Tem certeza? Bourne não concordaria prontamente, a menos que isso atendesse a seus propósitos. — Temos certeza. — Qual é a prova? — Você foi visto. Um homem alto, que permaneceu nas sombras e correu pelos corredores do hotel, descendo pela escada de emergência, com a agilidade de um lince. — Então não fui realmente visto, não é mesmo? Nem poderia. Eu estava a milhares de quilômetros de distância. Bourne sempre se daria uma opção. — Nesta era de aviões rápidos, que diferença faz a distância? — O oriental fez uma pausa e depois acrescentou, bruscamente: — Cancelou suas aulas por um período de cinco dias, há duas semanas e meia. — E se eu lhe dissesse que compareci a um simpósio sobre as dinastias Sung e Yuan em Boston... o que estava de acordo com minhas funções... O homem interrompeu-o cortesmente:
— Fico surpreso por Jason Bourne empregar uma desculpa tão lamentavelmente fraca. Ele não queria ir a Boston. O simpósio estava a anos-luz de suas aulas, mas fora convidado oficialmente. O pedido viera de Washington, do Programa de Intercâmbio Cultural, através do Departamento de Estudos Orientais da universidade. Oh, Deus, todas as peças se ajustavam! — Desculpa para quê? — Para estar onde não estava. Uma enorme multidão se confundindo no recinto, certas pessoas pagas para jurar que o viram. — Isso é ridículo, para não dizer obviamente amadorístico. Não pago a ninguém. — Você foi pago. — É mesmo? Como? — Através do mesmo banco que já usou antes. Em Zurique. O Gemeinschaft, em Zurique... na Bahnhofstrasse, é claro. — E estranho que eu não tenha recebido um extrato — comentou David, prestando toda atenção. — Quando era Jason Bourne, na Europa, nunca precisou disso, pois sua conta era de três zeros... a mais confidencial, o que significa absolutamente secreta na Suíça. Contudo, encontramos a cópia de uma transferência para o Gemeinschaft entre os papéis de um homem... um homem morto, é claro. — Foi o que imaginei. Mas não o homem que eu supostamente matei. — Claro que não. Era o homem que ordenou a morte do outro... juntamente com um galardão muito apreciado de meu empregador. — Um galardão não é um troféu? — As duas coisas são conquistadas, Sr. Bourne. Mas já chega. Você é você. Vá para o Regent Hotel, em Kowloon. Registre-se sob qualquer nome que quiser, mas peça a suíte seis-nove-zero,,, diga que acha que foi feita uma reserva. — Muito conveniente. Meus próprios aposentos. — Vai poupar tempo. — Mas levarei algum tempo para arrumar tudo por aqui. — Temos certeza de que não vai provocar alarme e agirá o mais depressa que puder. Esteja lá no final da semana. — Pode contar com as duas coisas. Coloque minha esposa de volta na linha.
— Lamento, mas não posso fazer isso. — Mas você pode ouvir tudo o que dissermos! — Falará com ela em Kowloon. Houve um estalido ressonante e David não pôde ouvir mais nada na linha além da estática. Desligou; apertara o fone com tanta força que estava com uma cãibra entre o polegar e o indicador. Conseguiu retirar a mão cerrada e sacudiu-a vigorosamente. Sentia-se grato porque a dor lhe permitia retornar à realidade de maneira mais gradativa. Segurou a mão direita com a esquerda, prendendo-a firmemente. Comprimiu o polegar esquerdo na cãibra. Enquanto observava os dedos relaxarem, compreendeu o que tinha de fazer... e fazer sem desperdiçar uma hora nas questões triviais insignificantes que se tornavam agora tão importantes. Tinha de entrar em contato com Conklin em Washington, o rato de esgoto que tentara matá-lo, em plena luz do dia, na Rua 71, em Nova York. Alex, bêbado ou sóbrio, não fazia distinção entre as horas do dia e da noite, assim como as operações que conhecia tão bem, pois não havia noite e dia quando se tratava de seu trabalho. Havia apenas a luz fria de lâmpadas fluorescentes em escritórios que nunca fechavam. Se fosse necessário, ele pressionaria Alexander Conklin até que o sangue esguichasse dos olhos do rato de esgoto; descobriria o que precisava saber, pois tinha certeza de que Conklin era capaz de obter a informação. David levantou-se, meio trôpego, deixou o estúdio e foi para a cozinha, onde se serviu de um drinque, outra vez grato porque a mão, embora ainda trêmula, já se mostrava um pouco mais controlável. Podia delegar algumas coisas. Jason Bourne jamais delegava qualquer coisa, mas ele ainda era David Webb e havia diversas pessoas no campus em que podia confiar... certamente não com a verdade, mas com uma mentira útil. Ao voltar ao estúdio e ao telefone, ele já escolhera o seu conduto. Essa não, conduto! Uma palavra do passado da qual ele pensara estar livre para esquecer. Mas o rapaz faria o que ele pedisse; afinal, a tese de mestrado do estudante de pós-graduação seria analisada por seu conselheiro, um certo David Webb. Aproveite a vantagem,quer seja a escuridão total ou a luz do sol ofuscante, mas use-a para assustar ou use-a com compaixão, o que funcionar melhor. — James? Aqui é David Webb. — Oi, Sr. Webb. Onde foi que me estrepei? — Não é nada disso, um. Estou com um problema e precisando de uma ajuda extracurricular. Está interessado? Vai exigir algum tempo. — Neste fim de semana? Durante o jogo? — Não. Apenas amanhã de manhã. Talvez uma hora, se tanto. E depois uma pequena bonificação em termos de seu curriculum vitae, se é que isso não parece uma coisa insignificante. — Pode falar. — Confidencialmente... e eu agradeceria se mantivesse assim... terei de me ausentar por uma
semana, talvez duas. Estou prestes a ligar para os poderes constituídos e sugerir que você fique no meu lugar. Não vai ser problema para você. É a derrubada dos manchus e os acordos sino-soviéticos, que parecem bastante familiares hoje. — De 1900 a 1912 — disse o candidato a mestrado, com absoluta confiança. — Pode refinar um pouco... e não esqueça os japoneses, Port Arthur e o velho Teddy Roosevelt. Apresente tudo e faça comparações. É o que eu faria. — Pode ser feito... e será feito. Consultarei as fontes. Que tal amanhã? — Tenho de partir esta noite, um. Minha esposa já viajou. Tem um lápis à mão? — Claro. — Sabe o que dizem sobre o acúmulo de jornais e correspondência. Quero que ligue para o serviço de entrega do jornal e procure a agência do correio, pedindo que guardem tudo... assine qualquer coisa que for necessária. Depois, ligue para a Administradora Scully, aqui na cidade, fale com Jack ou Adele e diga... O candidato a mestrado estava recrutado. O telefonema seguinte foi muito mais fácil do que David esperava, já que o reitor da universidade se preparava para um jantar em sua homenagem e estava muito mais interessado no discurso que faria do que na licença de um obscuro — embora insólito — professor-associado. — Por favor, fale com o diretor do departamento, Sr. Wedd. Estou preocupado neste momento em levantar recursos para a universidade. Não foi tão fácil tratar com o diretor do departamento. — Tem alguma relação com os homens que circulavam com você na semana passada, David? Afinal, meu velho, sou uma das poucas pessoas por aqui que sabem que você esteve envolvido com coisas secretas lá em Washington. — Não tem a menor relação, Doug. Aquilo foi um absurdo desde o começo, o que não acontece agora. Meu irmão sofreu um grave acidente, seu carro ficou totalmente destruído. Tenho de passar alguns dias em Paris, talvez uma semana. É só isso. — Estive em Paris há dois anos. Os motoristas por lá são inteiramente doidos. — Não são piores que os de Boston, Doug, e muito melhores que os do Cairo. — Acho que posso dar um jeito. Uma semana não é tanto tempo assim, e Johnson passou quase um mês ausente, com pneumonia... — Já tomei as providências necessárias... dependendo de sua aprovação, é claro; Jim Crowther. um aluno do mestrado, ficará no meu lugar. É uma matéria que ele conhece e tenho certeza de que fará
um bom trabalho. — Ah, sim, Crowther... um rapaz brilhante, apesar da barba. Jamais confiei em barbas, mas também estava aqui nos anos sessenta. — Tente deixar crescer a barba. Pode libertá-lo. — Vou ignorar o comentário. Tem certeza de que não tem nada a ver com aquele pessoal do Departamento de Estado? Preciso saber de todos os fatos, David. Como é o nome de seu irmão? Em que hospital de Paris ele está? — Não sei qual é o hospital, mas Marie provavelmente sabe. Ela partiu esta manhã. Até a volta, Doug. Ligarei para você amanhã ou depois. Tenho de ir agora para o Aeroporto Logan de Boston. — David... — O que é? — Por que tenho a sensação de que você não está sendo absolutamente sincero? David se lembrou. — Porque nunca estive antes nessa situação... pedir um favor a um amigo por causa de alguém em quem eu preferia não pensar. E David desligou. O vôo de Boston para Washington foi irritante, por causa de um professor fossilizado de pedantismo — um curso que David nunca fizera — que sentou ao seu lado. A voz do homem era tão exasperantemente autêntica quanto o tom solene do experiente ator de televisão que assumia o papel de douto veterano de uma corretora e insistia: — Eles merecem! A frase se repetiu interminavelmente na cabeça de David, independente do que o professor dizia... e ele não parava de falar. Só quando pousaram no Aeroporto Nacional é que o pedante admitiu a verdade: — Fui um chato, mas peço que me perdoe. Tenho pavor de voar e por isso não parei de falar. Uma tolice, não acha? — Não acho, não. Mas por que não disse logo? Não é nenhum crime. — Imagino que me omiti com medo da pressão de um igual ou de uma condenação desdenhosa. — Lembrarei disso na próxima vez em que sentar ao lado de alguém como você. — David sorriu. — Talvez eu pudesse ajudar.
— É muita gentileza sua. E muita sinceridade. Obrigado... muito obrigado. — Não foi nada. David foi pegar sua mala e saiu do terminal à procura de um táxi. Ficou contrariado porque os táxis não estavam aceitando passageiros isolados, mas insistindo em levar duas ou três pessoas que seguissem na mesma direção. Foi uma mulher que sentou ao seu lado no banco de trás, uma mulher atraente, que usou a linguagem do corpo, em combinação com os olhos suplicantes. Não fazia sentido para ele e por isso David não fez sentido para a mulher, mas agradeceu a ela por deixá-lo primeiro. Registrou-se no Jefferson Hotel, na Rua 16, sob um nome falso, inventado no momento. O hotel, no entanto, fora escolhido com extremo cuidado; ficava a um quarteirão e meio do apartamento de Conklin, o mesmo apartamento em que o servidor da CIA vivia há quase vinte anos, quando não estava em campo. Fora um endereço que David fizera questão de descobrir, antes de deixar a Virginia... outra vez o instinto, a desconfiança visceral. Ele tinha também o número de um telefone, mas sabia que era inútil; não podia ligar para Conklin. O ex-estrategista de operações secretas erguera defesas, mais mentais do que físicas, e David queria confrontar um homem despreparado. Não haveria qualquer aviso, apenas uma presença cobrando uma divida, que deveria ser paga agora. David consultou o relógio; faltavam dez minutos para ameia-noite, um momento tão bom quanto outro qualquer e melhor do que a maioria. Tomou um banho, trocou de camisa e tirou da mala uma das duas armas desmontadas, tirando-a do saco grosso, revestido internamente com papel laminado. Juntou as peças, testou o mecanismo de disparo, empurrou o pente na câmara. Estendeu a arma e estudou sua mão, satisfeito ao constatar que não havia mais qualquer tremor. Sentia-se limpo e discreto. Oito horas antes não teria acreditado que pudesse empunhar uma arma, pois teria medo de que disparasse. Mas isso fora oito horas antes, não era mais agora. A arma era agora uma parte integrante dele, algo com que se sentia perfeita mente á vontade, uma extensão de Jason Bourne. Deixou o Jefferson e desceu a Rua 16, virando à direita na esquina e notando os números decrescentes dos velhos prédios de apartamentos... muito antigos, lembrando-o das velhas casas com fachada de pedra do Upper East Side de Nova York. Havia uma lógica curiosa na observação, levandose em consideração o papel de Conklin no projeto Casa de Pedra, refletiu David. A casa segura do projeto em Manhattan era uma estrutura estranha, estofada, com um vidro azulado nas janelas superiores. Ele podia agora vê-la nitidamente, ouvir as vozes com clareza, sem realmente compreender... a fábrica de incubação de Jason Bourne. Faça de novo! Quem é o rosto? Quais são os seus antecedentes? Seu método de matar? Errado! Você está errado! Faça de novo! Quem é este? Qual a ligação com Carlos? Pense! Não pode haver erros!
Uma casa de pedra. Onde o seu outro eu fora criado, o homem de que tanto precisava agora. Lá estava, o apartamento de Conklin. Era no segundo andar, de frente. As luzes estavam acesas; Alex se encontrava em casa e acordado. David atravessou a rua, consciente de que uma chuva fina e enevoada povoara subitamente o ar, difundindo o clarão dos lampiões, halos por baixo dos globos de vidro ondulados. Subiu os degraus e abriu a porta do pequeno saguão; entrou e estudou os nomes nas caixas de correspondência dos seis apartamentos. Cada uma tinha um círculo perfurado por baixo do nome, pelo qual o visitante se anunciava. Não havia tempo para qualquer invenção complicada. Se o veredicto de Panov era acurado, sua voz seria suficiente. Apertou o botão de Conklin e esperou por uma resposta, que só veio depois de quase um minuto. — Quem está ai? — Harry Babcock — disse David, exagerando o sotaque. — Preciso falar com você, Alex. — Harry? Mas o que... Claro, claro, pode subir! A campainha zumbiu, parou por um instante... um dedo momentaneamente deslocado. David entrou e subiu correndo a escada estreita para o segundo andar, torcendo para estar na frente da porta quando Conklin a abrisse. Chegou menos de um segundo antes de Alex, que com os olhos apenas parcialmente focalizados puxou a porta e começou a gritar. David adiantou-se, pondo a mão no rosto de Conklin, dando-lhe uma chave de braço e fechando a porta com o pé. Não atacava uma pessoa fisicamente há muito tempo, há tanto tempo que não podia lembrar com precisão. Devia parecer estranho, até mesmo incômodo, mas não era nenhuma das duas coisas. Ao contrário, era perfeitamente natural. Oh, Deus! — Vou retirar a mão, Alex. Mas se você começar a gritar, a mão volta. E não vai sobreviver se isso acontecer. Entendido? David retirou a mão ,empurrando ao mesmo tempo a cabeça de Conklin. — É uma surpresa e tanto —murmurou o homem da CIA, tossindo e cambaleando trÔpego, ao ser solto. — E também pede por um drinque. — Aposto que tem sido uma dieta constante. — Somos o que somos. Meio desajeitado, ConkLin abaixou-se para pegar um copo vazio na mesinha ã frente de um sofá grande e muito usado. Levou-o para uni bar encostado na parede, feito com uma placa de cobre, onde garrafas idênticas de bourbon estavam alinhadas numa fila única. Não havia coqueteleiras nem água, apenas um balde de gelo; não era um bar para as visitas. Era para o anfitrião, o metal reluzente proclamando que se tratava de uma extravagância que o residente se permitia. O resto da sala não tinha
a mesma classe. De certa forma, aquele bar de cobre era uma declaração. — A que devo este prazer duvidoso? — indagou Conklin, servindo-se de uma dose. — Recusouse a me receber na Virginia... disse que me mataria, e isso é um fato. Foi mesmo o que disse. Você me mataria se eu passasse por aquela porta... foram suas palavras. — Você está bêbado. — Provavelmente. Mas é o que quase sempre acontece a esta hora. Quer começar com um sermão? Não vai adiantar nada, mas pode.fazer uma tentativa, se quiser. — Está doente. — Não, estou bêbado. Foi o que você disse antes. Estou me repetindo? — Ad nauseam. — Desculpe por isso. — Conklin largou a garrafa no bar, tomou vários goles do copo, olhou para David. — Não passei por sua porta, você é que passou pela minha. mas suponho que isso é irrelevante. Veio aqui para finalmente executar a ameaça, consumar a profecia, converter os erros passados em acertos ou como quer que prefira chamar? Duvido muito que esse volume um tanto óbvio por baixo de seu paletó seja uma garrafa de uísque. — Não sinto mais o impulso irresistível de vê-lo morto, mas ainda assim posso matá-lo. Você tem condições para provocar esse impulso com a maior facilidade. — Fascinante. Como eu faria isso? — Basta não me fornecer o que preciso... e tenho certeza de que você pode fornecer. — Deve saber de alguma coisa que desconheço. — Sei que tem vinte anos de operações secretas e que conhece muito bem a maioria. — História —murmurou o homem da CIA, tomando outro gole. — Pode ser ressuscitada. Ao contrário da minha, sua memória está intacta. A minha é limitada, o que já não acontece com a sua. Preciso de informações, preciso de respostas. — Sobre o quê? Para quê? — Seqüestraram minha esposa — respondeu David simplesmente, uma simplicidade de gelo. — Levaram Marie. Os olhos de Conklin piscaram, através do olhar fixo.
— Diga de novo. Acho que não ouvi direito. — Ouviu, sim! E vocês, filhos da puta, estão por trás dessa história nojenta! — Eu não! Eu não faria isso... não poderia! Mas o que está dizendo afinal? Marie desapareceu? — Está num avião sobrevoando o Pacífico. E devo acompanhá-la. Vou voar para Kowloon. — Está louco! Perdeu o juízo! — Preste atenção, Alex, preste muita atenção a tudo o que vou dizer... As palavras tornaram a sair rapidamente, mas agora com um controle que não conseguira na conversa com Morris Panov. Embriagado, Conklin tinha percepções mais aguçadas do que a maioria dos homens sóbrios na comunidade de informações, e era indispensável que ele compreendesse. David não podia se permitir qualquer lapso na narrativa; tinha de ser clara e objetiva desde o início... desde o momento em que falara com Marie pelo telefone do ginásio e a ouvira dizer: “Venha para casa, David. Tem alguém aqui que deseja falar com você. Depressa, querido.” Enquanto ele falava, Conklin claudicou através da sala e foi sentar-se no sofá, os olhos jamais se desviando do rosto de David. Quando David terminou de descrever o hotel da esquina, Conklin sacudiu a cabeça e estendeu a mão para o copo. — É fantástico — murmurou ele, depois de um período de silêncio, de concentração intensa a lutar contra os vapores do álcool. Tornou a largar o copo. — É como se uma estratégia fosse montada e perdesse o fio. — Perdesse o fio? — Escapasse ao controle. — Como? — Não sei —continuou o antigo tático, tremendo um pouco, fazendo um esforço para não engrolar as palavras. — Você recebe um roteiro que pode ou não ser acurado, depois os alvos mudam... sua esposa por você... e a peça é cancelada. Você reage de maneira previsível, mas quando menciona Medusa é informado em termos expressos que será liquidado se persistir. — Era de se esperar. — Não é assim que se prepara um alvo. Subitamente sua mulher passa para um plano secundário, e Medusa é o perigo predominante. Alguém calculou mal. Alguma coisa perdeu o fio, alguma coisa aconteceu. — Você tem o resto desta noite e o dia de amanhã para me obter algumas respostas. Estou no vôo das sete da noite para Hong Kong.
Conklin inclinou-se para a frente, sacudindo a cabeça devagar. A trêmula mão direita tornou a se estender para pegar o copo com bourbon. — Está no lado errado da cidade —murmurou ele, tomando um gole. — Pensei que sabia disso, já que fez uma alusão ao meu elixir. Sou inútil para você. Estou fora dos limites, um autêntico caso de cesta de lixo. Ninguém me diz nada... e por que deveriam? Não passo de uma relíquia, Webb. Ninguém quer ter qualquer relação comigo. Estou liquidado, mais um passo e ficarei além da salvação... o que acredito ser uma expressão gravada nessa sua cabeça doida. — Tem razão. Sei o que significa: “Mate-o. Ele sabe demais.” — E talvez você queira me empurrar para esse ponto, não é? Dê-lhe corda, desperte a Medusa adormecida, cuide para que ele receba o que merece dos seus. Seria uma retribuição justa. — Você me pôs nessa situação —comentou David, tirando a arma do coldre sob o paletó. — É verdade. — Conklin acenou com a cabeça, olhando para a arma. — Porque conheci Delta e para mim qualquer coisa era possível... vi você em ação. Deus do céu, você estourou a cabeça de um homem... um dos seus próprios homens... em Tam Quan só porque acreditava... não sabia com certeza, apenas acreditava... que ele estava transmitindo pelo rádio a posição de um pelotão na Trilha Ho Chi Minh! Não houve acusações, não houve defesa, apenas mais uma execução sumária na selva. Por acaso você estava certo, mas também podia estar enganado. Podia tê-lo pressionado, detido, talvez conseguíssemos descobrir algumas coisas por seu intermédio. Mas Delta não admitia essas atitudes. Criava as suas próprias regras. E por isso era claro que podia ter virado em Zurique! — Não me lembro dos detalhes específicos sobre Tam Quan, mas outros sabiam de tudo — disse David, com uma raiva sob controle. — Precisava tirar nove homens de lá... e não havia lugar para um décimo que poderia nos retardar ou mesmo nos liquidar, denunciando a nossa posição. — Muito bem! São suas regras! É bastante inventivo; portanto, encontre um paralelo aqui e pelo amor de Deus puxe o gatilho como fez com ele... nosso genuíno Jason Bourne! Eu lhe disse em Paris para fazer isso! — Respirando fundo, Conklin fez uma pausa, fixando os olhos injetados em David. E depois de uma pausa, acrescentou num sussurro queixoso: — Eu lhe disse naquela ocasião e torno a pedir agora. Liquide-me. Não tenho coragem de fazê-lo pessoalmente. — Éramos amigos, Alex! — gritou David. — Você estava sempre em nossa casa! Comia conosco e brincava com as crianças! Nadava com elas no rio! Oh, Deus! Estava tudo voltando. As imagens, os rostos... Oh, não, os rostos... Os corpos flutuando em círculos de água e sangue... Controle-se! Rejeite tudo isso! Rejeite! E tem de ser agora. Agora! — Isso aconteceu em outra terra, David. Além do mais...
Acho que você não quer que eu complete a frase. — Além do mais, aquela mulher está morta. Prefiro que não repita a frase. — E nada mais importa — disse Conklin, a voz rouca tomando mais um pouco do uísque. — Éramos ambos eruditos, não é mesmo?... Não posso ajudá-lo. — Pode, sim. E vai. — Esqueça, soldado. Não há a menor possibilidade. — Dívidas devem ser pagas. E estou cobrando as suas. — Sinto muito. Pode puxar esse gatilho a qualquer momento que quiser. Mas se não o fizer, quero que saiba que não vou me pôr além da salvação e perder tudo o que estou para ganhar... e ganhar de forma legítima. Se me permitirem ir para o pasto, pode estar certo de que vou pastar muito bem. Eles já levaram demais. Quero um pouco de volta. O agente da CIA levantou-se e atravessou a sala desajeitadamente, voltando ao bar de cobre. Claudicava ainda mais do que David podia lembrar; o pé direito não era mais útil que um coto se arrastando pelo chão, o esforço dolorosamente óbvio. — A perna está pior, não é mesmo? — perguntou David, bruscamente. — Posso viver com isso. — E pode também morrer com isso. — David levantou a automática. — Porque eu não posso viver sem minha mulher e você não se importa com isso. Sabe no que isso o transforma, Alex? Depois de tudo o que fez com a gente, de todas as mentiras, as armadilhas, a escória que usou para nos pegar... — A você! — interrompeu Conklin, enchendo o copo e olhando para a arma. —Não a ela. — Mate um de nós e matará os dois... mas você não é capaz de compreender isso. — Nunca tive esse luxo. — Sua nojenta autocompaixão não permitiria. Quer apenas chafurdar sozinho e deixar que a bebida pense por você. “Por causa de uma porra de uma mina, lá se vai o Diretor, o Monge, o Raposa Cinzenta... o Angleton dos anos oitenta.” Você é patético. Tem sua vida, sua mente... — Pois acabe com tudo! Atire! Puxe o gatilho mas me deixe alguma coisa. Conklin tomou subitamente todo o uísque do copo, seguindo-se uma tosse prolongada, com ânsias de vômito, o corpo todo se sacudindo. Depois do espasmo, ele fitou David, os olhos marejados de lágrimas, as veias vermelhas saltadas. — Acha que eu não tentaria ajudá-lo se pudesse, seu filho da puta? — balbuciou ele, a voz rouca. — Acha que gosto de todo esse ‘pensamento’ a que me entrego? É você quem está sendo obtuso,
David, é você quem está sendo obstinado. Não pode compreender, não é? O homem da CIA estendeu o copo para a frente, segurando-o com dois dedos, deixou-o cair; espatifou-se, e os fragmentos voaram em todas as direções. E depois voltou a falar, a voz estridente, monótona, enquanto por baixo dos olhos remelentos um sorriso triste se insinuava nos lábios: — Não posso suportar outro fracasso, velho amigo. E pode estar certo de que eu fracassaria. Mataria vocês dois, e acho que não poderia viver com isso. David baixou a arma. — Não com o que você tem na cabeça, não com o que descobriu. De qualquer forma, vou correr o risco. Minhas opções são limitadas, e escolho você. Para ser franco, não conheço mais ninguém. Além disso, tenho várias idéias, talvez mesmo um plano, mas precisa ser armado com a maior rapidez. — É mesmo? Conklin encostou-se no bar, para se apoiar. — Posso fazer um café, Alex?
Capítulo 7 O café puro teve o efeito de deixar Conklin um pouco sóbrio, mas não tanto quanto a confiança de David nele. O ex-Jason Bourne respeitava os talentos de seu mais implacável inimigo do passado, e deixou-o compreender isso. Conversaram até quatro horas da madrugada, refinando os contornos indefinidos de uma estratégia, baseando-a na realidade, mas levando-a muito além. E à medida que o álcool diminuía, Conklin foi funcionando cada vez melhor. Passou a dar forma ao que David formulara apenas vagamente. Percebeu a solidez básica das idéias de David e encontrou as palavras para expressálas. — Está descrevendo uma situação de crise crescente, baseada no fato do seqüestro de Marie, depois confundindo-a com mentiras. Mas, como disse, tudo tem de ser feito em alta velocidade, atingindo-os com força e depressa, sem trégua. — Use a verdade completa primeiro — interveio David, falando rapidamente. —Cheguei aqui com a ameaça de matá-lo. Fiz acusações baseado em tudo o que aconteceu... da história de McAllister à declaração de Babcock de que mandariam um grupo de execução à minha procura... até aquela voz anglicizada de gelo seco que me disse que parasse e desistisse de Medusa ou me chamariam de louco e me internariam num hospício. Nada disso pode ser negado. Aconteceu e estou ameaçando denunciar tudo, inclusive Medusa. — Pois então vamos passar para a grande mentira — disse Conklin. servindo mais café. — Uma saída tão discreta que vai lançar tudo e todos na maior confusão. — Como? — Ainda não sei. Teremos de pensar a respeito. Deve ser algo totalmente inesperado, algo que vai desnortear os estrategistas... quem quer que sejam. O instinto me diz que em algum ponto eles perderam o controle. Se estou certo, um deles terá de fazer contato. — Pois então pegue suas anotações — insistiu David. — Comece a analisá-los e descubra cinco ou seis pessoas que sejam competidoras lógicas. — Isso pode levar horas, até mesmo dias. As barricadas estão levantadas e eu precisaria contorná-las. Não dispomos de tempo... você não dispõe de tempo. — Tem de haver tempo! Comece a agir! — Há um meio melhor, David. Panov o indicou a você. — Mo? — Sim. Os registros no Departamento de Estado... os registros oficiais. — Os registros...? — David esquecera momentaneamente, o que não acontecera com Conklin. — Como assim?
— É por onde começaram a criar o novo arquivo sobre você. Entrarei em contato com a Segurança Interna com outra versão, pelo menos uma variação que pedirá respostas de alguém... se é que estou certo, se é que a coisa perdeu o fio. Os registros não passam de um instrumento, apenas registram, não confirmam a acurácia. Mas o pessoal da segurança responsável pelos registros vai disparar os foguetes se pensar que houve alguma interferência no sistema. E farão o trabalho por nós... Ainda assim, precisamos da mentira. — Alex... —murmurou David, inclinando-se para a frente, em sua cadeira diante do sofá comprido e velho. — Há poucos momentos você usou o termo “saída”... — Significa simplesmente uma interferência no roteiro, um rompimento do padrão. — Sei o que significa... mas o que me diz de usarmos aqui literalmente? Não uma mera “saída”, mas uma ‘fuga”. Estão me chamando de patológico, esquizofrênico... isso significa que fantasio, às vezes digo a verdade e às vezes não, supostamente não sou capaz de perceber a diferença. — É exatamente o que estão dizendo — confirmou Conklin. — Alguns podem até acreditar. E daí? — Por que não levamos até o fim? Diremos que Marie fugiu, conseguiu escapar. Entrou em contato comigo e estou indo encontrá-la. Alex franziu o rosto, depois os olhos foram se arregalando gradativamente, as rugas desaparecendo. — É perfeito — murmurou ele. — É simplesmente perfeito! A confusão vai se espalhar como fogo em mato seco. Em qualquer operação tão profunda, apenas dois ou três homens estão a par de todos os detalhes. Os outros são mantidos na ignorância. Pode imaginar algo assim? Um seqüestro sancionado oficialmente! Uns poucos no núcleo podem entrar em pânico e colidir entre si, tentando salvar a pele. Muito bom, Sr. Bourne. Estranhamente, David não se ressentiu com o comentário, limitou-se a aceitá-lo, sem pensar. — Estamos ambos exaustos — disse ele, levantando-se. — Sabemos para onde estamos indo. Assim, vamos dormir um pouco e repassar tudo pela manhã. Você e eu aprendemos há muitos anos a diferença entre um pouco de sono e absolutamente nenhum. — Vai voltar para o hotel? — Claro que não — respondeu David, contemplando o rosto pálido e contraído do homem da CIA. — Só quero que me arrume um cobertor. Ficarei aqui mesmo, na frente do bar. — Deveria também ter aprendido quando não precisa se preocupar com algumas coisas — comentou Alex, levantando-se do sofá e claudicando em direção a um armário embutido perto do pequeno vestíbulo. —Se esta vai ser minha última aventura... de um jeito ou de outro... darei o melhor
de mim. Pode até servir para me definir algumas coisas. Ele virou-se, depois de pegar um cobertor e um travesseiro no armário, e acrescentou: — Acho que se pode classificar de um estranho pressentimento, mas sabe o que fiz ontem à noite, depois do trabalho? — Claro que sei. Entre outras pistas, há um copo quebrado no chão. — Antes disso. — O que foi? — Passei por um supermercado e comprei uma tonelada de comida. Carne, ovos, leite... até mesmo aquele grude que chamam de mingau de aveia. Nunca faço isso. — Estava precisando de uma tonelada de comida. Isso acontece. — Quando acontece, vou a um restaurante. — Onde está querendo chegar? — Você dorme; o sofá é bastante grande. Eu vou comer. Quero pensar mais um pouco. Farei um bife, talvez alguns ovos. — Precisa dormir. — Duas horas ou duas e meia serão suficientes. E depois provavelmente comerei um pouco daquele horrível mingau de aveia. Alexander Conklin atravessou o corredor do quarto andar do Departamento de Estado, o claudicar reduzido pela pura força de vontade, a dor maior por causa disso. Sabia o que estava lhe acontecendo: tinha um trabalho pela frente que queria muito realizar bem, até mesmo de forma brilhante, se é que a expressão ainda tinha alguma relevância para ele. Alex compreendia que meses de abuso como sangue e o corpo não podiam ser superados em poucas horas, mas podia convocar alguma coisa do seu íntimo. Era um senso de autoridade, misturado com uma ira justificada. Ah, que ironia! Um ano antes ele queria destruir o homem que chamavam de Jason Bourne; agora, era uma obsessão repentina e crescente ajudar David Webb... porque erradamente tentara matar Jason Bourne. Sabia que essa atitude poderia lançá-lo numa situação sem salvação, mas era certo que assumisse o risco. Talvez a consciência nem sempre produzisse covardes. Às vezes fazia um homem se sentir melhor consigo mesmo. E também parecer melhor, refletiu ele. Forçara-se a andar muito mais quarteirões do que deveria, deixando que o frio vento de outono nas ruas acrescentasse alguma cor a seu rosto, o que há anos não acontecia. Combinando com a barba bem feita e um terno listrado devidamente passado que há meses não usava, não tinha agora muita semelhança com o homem que David encontrara na noite anterior. O resto era representa-
ção, ele sabia disso também, enquanto se aproximava das sacrossantas portas do Chefe de Segurança Interna do Departamento de Estado. Pouco tempo se perdeu em formalidades, ainda menos em conversa informal. A pedido de Conklin — leia-se exigência da Agência —, um assessor saiu da sala. Ele fitou o rude general que fora do G-2 do Exército e agora comandava a Segurança Interna do Departamento de Estado. Alex tencionava assumir o controle com suas primeiras palavras. — Não estou aqui numa missão diplomática entre serviços, General... é General, não é mesmo? — Ainda sou chamado assim. — Por isso, não estou preocupado em ser diplomático, entende? — Entendo pelo menos que estou começando a não gostar de você. — Eis aí algo que não me preocupa absolutamente. O que me interessa é um homem chamado David Webb. — O que há com ele? — O fato de reconhecer o nome tão prontamente não é muito tranqüilizador. O que está acontecendo, General? — Quer um megafone, idiota? — Quero respostas, Cabo... é isso o que você e este serviço são para nós. — Tome cuidado, Conklin. Quando me telefonou, com sua suposta emergência e a devida confirmação, resolvi fazer algumas consultas. Essa sua grande reputação anda um pouco cambaleante hoje em dia, e uso o termo com perfeito cabimento. Não passa de um bêbado e isso não é segredo para ninguém. Assim, tem menos de um minuto para dizer o que quer, antes de ser expulso. E pode escolher.., o elevador ou a janela. Alex calculara a probabilidade de o fato de beber ser telegrafada. Fitou nos olhos o chefe da Segurança Interna e falou calmamente, até suavemente: — General, vou responder a essa acusação com uma frase. Se algum dia chegar aos ouvidos de outra pessoa, saberei de onde partiu, e a Agência também saberá. — Conklin fez uma pausa, os olhos penetrantes. — Nossos perfis são muitas vezes o que queremos que sejam, por motivos que não podemos revelar. Tenho certeza de que compreende o que estou querendo dizer. O homem do Departamento de Estado sustentou o olhar de Alex com uma expressão relutantemente compreensiva. — Essa não! — murmurou ele. — Costumávamos promover a desonra dos homens que
mandávamos para Berlim. — Muitas vezes por sugestão nossa — confirmou Conklin, acenando com a cabeça. — E isso é tudo o que falaremos do assunto. — Está certo. Eu estava alheio ao assunto, mas posso garantir que o perfil projetado está dando certo. Fui informado por um dos seus subdiretores que era melhor me manter a distância de meia sala do seu bafo. — Nem mesmo quero saber quem foi, General, porque posso rir na cara dele. Se quer saber a verdade, eu não bebo. Alex experimentou uma compulsão infantil de cruzar os dedos fora de vista, as pernas ou até os dedos dos pés. Mas nenhum método lhe ocorreu no momento, e ele acrescentou bruscamente, a voz inflexível: — Vamos voltar a David Webb. — Qual é seu interesse? — Meu interesse? Minha vida, soldado! Alguma coisa está acontecendo e quero saber o que é. O filho da puta entrou à força em meu apartamento ontem à noite e ameaçou me matar. Fez algumas acusações absurdas, indicando homens de sua folha de pagamento, como Harry Babcock, Samuel Teasdale e William Lanier. Fomos conferir. Eles estão em sua divisão de operações secretas, em plena ação. Afinal, o que eles fizeram? Um deles chegou a declarar que mandariam um grupo de execução à procura de Webb. Mas como alguém pode falar assim? Outro lhe disse que voltasse para o hospital... ele esteve em dois hospitais e em nossa clínica conjunta muito particular na Virginia... nós todos o internamos lá... e saiu com a ficha limpa. Também tem alguns segredos na cabeça que nenhum de nós quer que sejam divulgados. O problema é que esse homem está prestes a explodir por causa de alguma coisa que vocês, seus idiotas, fizeram, deixaram acontecer ou fecharam os olhos quando ocorreu. Ele alega que tem provas de que vocês voltaram à sua vida e a viraram pelo avesso, que lhe prepararam uma armadilha e levaram o que ele tinha de mais precioso. — Mas qual é a prova? — indagou o aturdido general. — Ele falou com a esposa — respondeu Conklin, a voz subitamente sem qualquer inflexão. — E daí? — Ela foi tirada de casa por dois homens que a doparam e meteram num jato particular, levando-a para a Costa do Pacífico. — Está querendo dizer que ela foi seqüestrada? — Exatamente. E o que deve deixar vocês preocupados é que ela ouviu os dois homens conversando com o piloto e concluiu que toda a história suja tinha alguma relação com o Departamento de Estado... por motivos desconhecidos... houve até menção ao nome de McAllister. Para sua
informação, ele é um dos subsecretários para o Extremo Oriente. — Mas isso é uma loucura! — E vai ser mais do que uma loucura... para todos nós. Ela escapou durante uma escala para reabastecimento em San Francisco. Foi quando entrou em contato com Webb no Maine. Ele está indo encontrá-la... só Deus sabe onde... e é melhor que vocês providenciem algumas boas respostas, a menos que possam provar que o homem é um lunático e que talvez tenha matado a mulher... e torço para que possam... que não houve nenhum seqüestro... e sinceramente espero que não tenha havido. — Ele é mesmo doido! — exclamou o chefe da Segurança Interna do Departamento de Estado. — Li os registros. Tinha de ler... alguém ligou ontem à noite para falar sobre esse Webb. Não me pergunte quem, pois não posso revelar. — Mas o que está acontecendo afinal? — indagou Conklin, inclinando-se através da mesa, as má na beirada, tanto para se apoiar quanto para aumentar o efeito. — Ele é paranóico! O que mais posso dizer? Inventa coisas e acredita nelas. — Não foi isso que os médicos do governo concluíram — comentou Conklin, friamente. — Acontece que sei alguma coisa a respeito. — Mas eu não sei de nada! — E provavelmente nunca saberá. Mas como membro sobrevivente da operação Casa de Pedra, procure alguém que possa me dizer as palavras certas e me deixar tranqüilo. Alguém por aqui abriu uma lata de vermes que precisamos tampar o mais depressa possível. Conklin tirou do bolso um caderninho de anotações e uma caneta esferográfica; escreveu um número, rasgou a folha e largou-a na mesa. — É um telefone seguro; uma verificação só levaria a um endereço falso. — Os olhos de Conklin eram duros, a voz firme, o ligeiro tremor contribuindo para torná-la ainda mais ameaçadora. — Deve ser usado entre três e quatro horas desta tarde, em nenhum outro momento. Providencie para que alguém entre em contato comigo. Não quero saber quem vai ser ou como você vai fazer. Talvez tenha de convocar uma de suas famosas conferências de política, mas quero respostas... nós queremos respostas. — Pode estar completamente enganado, e sabe disso! — Espero que tenha razão. Mas se eu não estiver, vocês aqui vão ser crucificados... e de maneira impiedosa... por entrarem em território proibido. David estava grato por haver tantas coisas a fazer, pois sem isso poderia mergulhar num limbo mental e ficar paralisado pela tensão de saber tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Depois que Conklin partira para Langley, ele voltara ao hotel e iniciara a lista inevitável. Listas contribuíam para acalmá-lo; eram preliminares à atividade necessária e o forçavam a se concentrar em questões específicas, em vez de pensar nos motivos de cada escolha. Remoer as razões entrevaria sua mente tão gravemente quanto a
mina aleijara o pé direito de Conklin. Também não podia pensar em Alex, pois havia incontáveis possibilidades e impossibilidades. Nem podia telefonar para o seu antigo inimigo. Conklin era meticuloso; era de fato o melhor. O ex-estrategista projetava cada ação e a subseqüente reação. Sua primeira conclusão fora a de que, minutos depois de ligar para o chefe da Segurança Interna do Departamento de Estado, outros telefones seriam usados e dois seriam indubitavelmente grampeados. Ambos seus. O do apartamento e o telefone que usava em Langley. Por isso, a fim de evitar quaisquer interrupções ou interceptações, ele não tencionava voltar ao escritório. Iria se encontrar com David mais tarde, trinta minutos antes de sua partida para Hong Kong. — Acha que chegou aqui sem que ninguém o seguisse? — ele dissera a David. — Não tenho tanta certeza. Eles estão programando-o e sempre que alguém aperta um teclado fica de olho no número constante. — Quer fazer o favor de falar inglês? Ou mandarim? Posso entender essas línguas, não essa merda que você fala. — Podem ter posto um microfone debaixo de sua cama. Só espero que você não seja de falar dormindo. Não haveria contato até se encontrarem no saguão do Aeroporto DulIes. Era por isso que David se encontrava agora numa loja de malas na Wyoming Avenue. Comprou uma grande bolsa de viagem, a fim de substituir sua mala; já se descartara da maior parte das roupas que trouxera. Coisas — precauções — estavam lhe voltando, entre as quais o risco injustificado de esperar na área de bagagem de um aeroporto. Como queria o anonimato maior da classe econômica, era melhor duas peças de bagagem. Compraria o que precisasse onde quer que estivesse, o que significava que precisava de bastante dinheiro, para isso e quaisquer emergências. Esse fato determinou sua parada seguinte, um banco na Rua 14. Um ano atrás, enquanto os investigadores do governo examinavam o que restava de sua memória, Marie retirara discretamente os fundos que David deixara no Gemeinschaft Bank, em Zurique, bem como o dinheiro que ele transferira para Paris como Jason Bourne. Despachara o dinheiro para as Ilhas Caimãs, onde conhecia um banqueiro canadense, abrindo uma conta convenientemente confidencial. Considerando o que Washington fizera com seu marido —os danos à sua mente, o sofrimento físico e quase a perda da vida, porque muitos homens se recusa ram a ouvir os seus pedidos de socorro —, Marie não estava exigindo tanto assim do governo. Se David decidisse iniciar um processo —o que, apesar de tudo, não estava fora de cogitação —, qualquer advogado esperto arrancaria nos tribunais uma indenização superior a dez milhões de dólares, não apenas cinco milhões. Ela expusera seus pensamentos sobre uma possível indenização a um extremamente nervoso subdiretor da CIA. Não discutira os fundos desaparecidos, a não ser para comentar que, com o seu treinamento financeiro, sentia-se consternada por saber que tão pouca proteção era dispensada aos dólares arduamente ganhos dos contribuintes americanos. Formulara a crítica com voz chocada, embora gentil, mas seus olhos diziam outra coisa. Deixara evidente que se tratava de uma mulher muito inteligente e altamente motivada, e seu recado fora entendido. Homens mais sábios e cautelosos perceberam a lógica de suas especulações e concluíram que era melhor esquecer o assunto. Os fundos
estavam sob o código ultra-secreto, apenas para apropriações de emergência. Sempre que precisavam de um dinheiro extra — para uma viagem, um carro, a casa — Marie ou David telefonava para o banqueiro nas Caimãs, que transferia um crédito para alguma das cinco dúzias de bancos correspondentes na Europa, Estados Unidos, Ilhas do Pacífico e Extremo Oriente, com exceção das Filipinas. De uma cabine telefônica na Wyoming Avenue, David fez uma ligação a cobrar, espantando um pouco o banqueiro amigo pela quantia que queria imediatamente e os fundos que precisava ter disponíveis em Hong Kong. A ligação a cobrar custou menos de oito dólares; o dinheiro a ser transferido passava de meio milhão de dólares. — Posso presumir, David, que minha querida amiga, a sábia e gloriosa Marie, aprova a operação? — Foi ela quem me pediu que ligasse para você. Disse que não pode perder tempo com insignificâncias. — É típico dela. Os bancos que vai usar serão... David transpôs as portas de vidro grosso do banco na Rua 14 e passou vinte irritantes minutos com um vice-presidente que tentou ao máximo tornar-se um amigo instantâneo, e saiu com cinqüenta mil dólares, quarenta mil em notas de quinhentos e o resto misturado. Pegou um táxi e seguiu para um apartamento em North West, onde vivia um homem que conhecera em seus dias como Jason Bourne, um homem que fizera um trabalho extraordinário para Casa de Pedra 71 do Departamento de Estado. Era um preto de cabelos prateados que fora motorista de táxi até o dia em que um passageiro deixara uma câmara Hasselblad em seu carro e nunca a reclamara. Por vários anos, o motorista experimentara e acabara encontrando a sua verdadeira vocação. Em termos simples, ele era um gênio em “alteração” — sua especialidade eram passaportes, carteiras de motorista com fotografia e outros documentos de identidade para os que se encontravam em conflito com a lei, especialmente com prisão decretada. David não se lembrara do homem, mas sob a hipnose de Panov dissera o seu nome — por mais improvável que pudesse parecer, era Cactus — e Mo levara o fotógrafo à Virginia, a fim de ajudar a reavivar uma parte da memória de David. Na primeira visita, transpareceram afeição e preocupação nos olhos do preto idoso. Embora lhe fosse bastante inconveniente, ele pedira permissão a Panov para visitar David uma vez por semana. — Por que, Cactus? — Ele está perturbado, senhor. Percebi isso através da lente há cerca de dois anos. Alguma coisa está faltando nele, mas apesar disso é um bom homem. Posso conversar com ele. E gosto dele, senhor. — Venha quando quiser, Cactus. E, por favor, acabe com esse negócio de “senhor”. Reserve esse privilégio para mim... senhor. — Puxa, como os tempos mudam. Chamo um dos meus netos de um bom negrinho e ele quer me arrebentar a cabeça.
— E bem que deveria... senhor. David saltou do táxi e pediu ao motorista para esperar, mas ele recusou. David deu-lhe uma gorjeta mínima e subiu o caminho de pedra coberto de plantas, que levava à velha casa. Sob alguns aspectos, fazia-o lembrar da casa no Maine, muito grande, muito frágil e precisando de reparos. Ele e Marie haviam decidido comprar uma casa na praia assim que passasse um ano; não ficaria bem um professor-associado recém-nomeado se instalar no distrito mais caro. Tocou a campainha. A porta foi aberta, e Cactus, estreitando os olhos por baixo de uma pala verde, cumprimentou-o casualmente, como se estivessem se encontrando a todo instante. — Tem calotas no seu carro, David? — Não estou de carro nem de táxi, O motorista não quis esperar. — Deve ter ouvido todos aqueles rumores infundados espalhados pela imprensa fascista. Não dou importância às histórias. Só tenho três metralhadoras nas janelas. Vamos, entre logo. Tenho sentido saudade. Por que não telefonou para este velho amigo? — Seu número não está na lista, Cactus. — Deve ter havido um esquecimento. Conversaram por vários minutos na cozinha de Cactus, por tempo suficiente para que o fotógrafo-especialista compreendesse que David estava com pressa. O velho levou David para seu estúdio, colocou seus três passaportes sob uma lâmpada para estudá-los e instruiu ao cliente para sentar na frente de uma câmara com a lente aberta. — Vamos tornar os cabelos mais claros, mas não tão louro como você ficou depois de Paris. A tonalidade varia com a claridade, e podemos usar as mesmas fotos dessas coisinhas com diferenças consideráveis... ainda conservando o rosto. Vamos deixar as sobrancelhas de lado, pois acabaria virando a maior confusão. — E os olhos? — Não há tempo para aquelas lindas lentes de contato que arrumaram para você antes, mas podemos dar um jeito. Há óculos comuns com os prismas certos coloridos nos lugares certos. Você fica com olhos azuis, castanhos ou pretos, como quiser. — Quero os três. — São bem caros, David... e só com dinheiro na mão. — Tenho bastante comigo. — Então não deixe a notícia se espalhar. — Agora, os cabelos. Quem?
— Nesta mesma rua. Uma sócia minha que tinha um salão de beleza até que os tiras resolveram verificar os quartos por cima. Ela faz um bom trabalho. Vou levá-lo até lá. Uma hora mais tarde, David saiu de baixo de um secador de cabelos no cubículo pequeno e bem-iluminado, contemplando os resultados no espelho grande. A proprietária do estranho salão, uma preta baixa com cabelos grisalhos impecáveis e olhos avaliadores, postou-se ao seu lado. — É você, mas não é você — comentou ela, primeiro acenando com a cabeça e depois sacudindo-a. — Devo reconhecer que foi um bom trabalho. Realmente, concluiu David, observando-se atentamente. Os cabelos escuros estavam agora não apenas muito mais claros, mas também combinavam com a tonalidade da pele de seu rosto. Além disso, os cabelos pareciam ter agora uma textura mais leve, uma aparência arrumada mas também casual... um penteado elegante e informal, como diziam os anúncios. O homem que contemplava era ao mesmo tempo ele próprio e outra pessoa que tinha uma semelhança extraordinária... mas não era ele. — Concordo plenamente — murmurou David. — Está muito bom. Quanto? — Trezentos dólares. Isso inclui, é claro, cinco pacotes de xampu especial com instruções para o uso e a boca mais fechada de Washington. A primeira coisa vai durar por uns dois meses, a outra, pelo resto de sua vida. — Você é maravilhosa. —David tirou do bolso o prendedor de dinheiro de couro, contou as notas e entregou-as. — Cactus disse que você ligaria para ele quando acabássemos. — Não há necessidade. Ele calculou bem o tempo. Está na sala de visitas. — Sala de visitas? — Na verdade não passa de um corredor com um sofazinho e um abajur, mas gosto de chamar de sala de visitas. Não acha que soa mais simpático? A sessão de fotografia correu depressa, interrompida por Cactus para alterar as sobrancelhas com uma escova de dentes e um spray para as três fotos separadas, para a mudança de camisa e paletó — o preto idoso tinha um guarda-roupa à altura de uma loja de aluguel de roupas — e finalmente para dois óculos diferentes, de aros de tartaruga e aros de aço, que alteraram seus olhos castanho-claros respectivamente para azuis e castanho-escuros, para dois dos passaportes. Depois, como um cirurgião meticuloso, o especialista tratou de ajustar as fotos em seus lugares, efetuando as perfurações originais do Departamento de Estado com extrema habilidade, sob uma enorme lente de aumento, usando um instrumento de sua invenção. Ao terminar, entregou os três passaportes para aprovação de David. — Não há nenhum inspetor da alfândega que possa pegar esses passaportes — comentou Cactus, confiante. — Parecem mais autênticos do que antes.
— Fiz uma limpeza, o que significa que acrescentei alguns vincos e um pouco de envelhecimento. — Um trabalho sensacional, velho amigo... mais velho do que posso me lembrar, e sei disso. Quanto lhe devo? — Não tenho a menor idéia. Foi um trabalho pequeno e tem sido um ano muito bom, com toda essa confusão por aí... — Quanto, Cactus? — O que acha que está bom? Não sei como você está na folha de pagamento de Tio Sam. — Estou muito bem, obrigado. — Quinhentos está ótimo. — Pode me chamar um táxi? — Demora muito e ainda se tem de torcer para que o motorista venha até aqui. Meu neto está à sua espera. Vai levá-lo para onde quiser. Ele é como eu, não faz perguntas. E você está com pressa, David, dá para perceber. Vamos embora. Eu o acompanharei até a porta. — Obrigado. Deixarei o dinheiro aqui no balcão. — Está certo. Tirando o dinheiro do bolso, de costas para Cactus, David contou seis notas de quinhentos dólares e deixou-as no lado mais escuro do balcão do estúdio. Os passaportes a mil dólares cada eram uma pechincha, mas deixar mais do que isso poderia ofender o velho amigo. David voltou ao hotel, deixando o carro a vários quarteirões de distância, no meio de um cruzamento movimentado, a fim de que o neto de Cactus não ficasse comprometido por um endereço. O rapaz estava cursando a Universidade Americana; embora obviamente adorasse o avó, era também óbvio que estava apreensivo com seu envolvimento nas atividades do velho. — Vou saltar aqui — disse David, no tráfego engarrafado. — Obrigado — murmurou o jovem preto, a voz calma e jovial, os olhos inteligentes demonstrando alívio. — Não sabe como agradeço. David fitou-o nos olhos. — Por que fez isso? Afinal, para alguém que vai ser advogado, acho que deveria estar com as antenas ligadas em torno de Cactus o tempo todo. — E estou, constantemente. Mas ele é um velho sensacional, que tem feito muito por mim E
ainda me disse uma coisa. Falou que seria um privilégio para mim conhecer você, que talvez daqui a alguns anos ele me conte quem era o estranho em meu carro. — Espero poder voltar muito mais cedo e lhe contar pessoalmente. Não creio que eu seja um privilégio, mas há uma história para contar que pode acabar nos livros jurídicos. Adeus. De volta ao quarto no hotel, David enfrentou uma lista final, que não precisava ser escrita, pois já conhecia todos os itens. Tinha que selecionar as poucas roupas que levaria na bolsa grande de vôo e livrar-se de todo o resto, inclusive das duas armas que trouxera do Maine, em sua indignação. Uma coisa era desmontar armas e embrulhar as peças em papel laminado, outra muito diferente era conduzilas por um portão de segurança. Seriam descobertas; ele seria detido. Tinha de limpá-las meticulosamente, destruir os percussores e largá-las num ralo de esgoto. Compraria uma arma em Hong Kong; não seria difícil. Havia uma última coisa que precisava fazer, uma coisa angustiante. Tinha de se forçar a sentar e reconstituir tudo o que fora dito por Edward McAllister naquele início de noite no Maine... tudo o que haviam falado, especialmente as palavras de Marie. Alguma coisa estava enterrada em algum ponto daquela hora tensa de revelação e confrontação e David sabia que a perdera... e continuava perdendo. Olhou para o relógio. Eram três e trinta e sete; o dia estava passando depressa, nervosamente. Ele precisava manter o controle. Oh, Marte, onde você está? Conklin pôs o copo com ginger ale pura no balcão sujo e escalavrado do bar imundo na Rua 9. Era um freguês habitual pelo simples motivo de que ninguém em seu círculo profissional — e no que restava do círculo social — jamais passaria por aquelas portas de vidro. Havia uma certa liberdade no conhecimento e os outros fregueses aceitavam-no, o “manco” que sempre tirava a gravata no momento em que entrava, claudicando até um banco ao lado da máquina de pinball, na extremidade do balcão. E sempre que isso acontecia, havia um copo grosso cheio de bourbon à sua espera. Além disso, o proprietário-bartender não tinha objeções quanto a Alex receber telefonemas na cabine antiquada junto à parede. Era o seu “telefone seguro”, e estava tocando agora. Conklin arrastou-se pelo assoalho, entrou na velha cabine, fechou a porta e tirou o fone do gancho. — Alô? — É da Casa de Pedra? —perguntou uma voz de homem, com sotaque estranho. — Eu estive lá. Você também? — Não, não estive, mas tenho acesso a todo o arquivo, a toda a confusão. A voz!, pensou Alex. Como David a descrevera? Anglicizada? Um sotaque do meio-atlântico, refinada, certamente não tinha nada de vulgar. Era o mesmo homem. Os gnomos tinham trabalhado; eles haviam feito algum progresso. Alguém estava com medo. — Nesse caso tenho certeza de que sua memória pode lembrar tudo o que registrei, pois eu
estive lá e escrevi tudo... do princípio ao fim. Fatos, nomes, eventos, circunstâncias, antecedentes... tudo mesmo, inclusive a história que Webb me contou ontem à noite. — Então posso presumir que se alguma coisa terrível acontecer, seu volumoso relatório pode acabar num subcomitê do Senado ou com uma matilha de cães de guarda da Câmara dos Representantes. Estou certo? — Fico contente que possamos nos compreender. — Não vai adiantar coisa alguma — comentou o homem, condescendente. — Se alguma coisa terrível acontecer, eu não me importaria, não é mesmo? — Está prestes a se aposentar. E bebe muito. — Nem sempre. Há geralmente um motivo para as duas coisas em se tratando de um homem da minha idade e competência. Não poderiam estar ligadas a um determinado arquivo? — Esqueça. Vamos conversar. — Não antes de você dizer alguma coisa mais próxima. Afinal, Casa de Pedra vazou aqui e ali. A referência não é substantiva. — Está certo. Medusa. — Mais forte... mas ainda não o suficiente. — Muito bem. A criação de Jason Bourne. O Monge. — Mais quente. — Fundos desaparecidos... sem prestação de contas e jamais recuperados... estimados em torno de cinco milhões de dólares. Zurique, Paris e outros pontos a oeste. — Houve rumores. Preciso de uma pedra fundamental. — Pois vou lhe dar. A execução de Jason Bourne. A data foi 23 de maio, em Tam Quan... e o mesmo dia, em Nova York, quatro anos depois. Na Rua 71. Casa de Pedra 71. Conklin fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o vazio na garganta. — Está certo — murmurou ele. — Você entrou no círculo. — Não posso lhe dar meu nome. — E o que vai dar? — Uma palavra: Recue.
— Acha que vou aceitar? — Tem de aceitar — disse a voz, as palavras incisivas. — Bourne é necessário no lugar para onde está indo. — Bourne? — repetiu Alex, olhando fixamente para o aparelho. — Isso mesmo, Jason Bourne. Ele não pode ser recrutado pelos meios normais, e ambos sabemos disso. — E por isso seqüestram sua esposa? Mas que animais! — Ela nada sofrerá. — Não pode garantir isso. Não tem o controle absoluto da situação. Deve estar usando segundas e terceiras pessoas neste momento. Se bem conheço meu ofício... e pode estar certo de que conheço mesmo... eles provavelmente foram contratados no escuro, a fim de que ninguém possa chegar a vocês por intermédio deles. Nem mesmo sabe quem são... Oh, Deus, você não teria me telefonado se soubesse! Se pudesse entrar em contato com eles e obter as confirmações que deseja, não estaria falando comigo! Houve uma pausa antes que a voz refinada voltasse a se manifestar: — Então ambos mentimos, não é mesmo, Sr. Conklin? Não houve fuga da mulher, não houve telefonema para Webb. Não houve nada. Estava pescando e eu também, ambos acabamos de mãos vazias. — É uma autêntica barracuda, Sr. Sem-Nome. — Já passou por onde estou, Sr. Conklin. Inclusive por David Webb... E agora, o que pode me dizer? Alex sentiu de novo o vazio na garganta, desta vez acompanhado por uma pontada de dor no peito. — Você os perdeu, não é mesmo? — balbuciou ele. Perdeu a mulher. — Quarenta e oito horas não é permanente — respondeu a voz, cautelosa. — Mas vem tentando tudo para fazer contato! — acusou Conklin. — Chamou os seus condutos, o pessoal que contratou os cegos, e subitamente eles não estavam.., não pôde encontrá-los. Oh, Deus, você perdeu o controle! Perdeu o fio! Alguém interferiu em sua estratégia e não tem a menor idéia de quem seja. Ele entrou em seu roteiro e roubou-o de você! — Nossas salvaguardas são amplas — protestou o homem, sem a convicção que demonstrara antes. — Os melhores homens no campo estão atuando em cada distrito. — Inclusive McAllister? Em Kowloon? Hong Kong?
— Sabe disso? — Sei. — McAllister é um idiota, mas é bom no que faz. E é verdade, ele está lá. Não estamos em pânico. Vamos recuperar. — Recuperar o quê?—indagou Alex, dominado pela raiva. — A mercadoria? Sua estratégia fracassou! Alguém mais está no comando. Por que ele lhe devolveria a mercadoria? Matou a mulher de Webb, Sr. Sem-Nome! O que pensava que estava fazendo? — Queríamos apenas levá-lo até lá — respondeu a voz. na defensiva. — Explicar as coisas, mostrar a ele. Precisamos dele. Ele parou de falar por um momento. Ao recomeçar, já estava outra vez sereno: — E. pelo que sabemos, tudo ainda está ligado. As comunicações são notoriamente ruins naquela parte do mundo. — Há desculpa para tudo neste negócio. — Na maioria dos negócios, Sr. Conklin... Como interpreta a nova situação? Agora sou eu quem está perguntando... e com absoluta sinceridade. Tem alguma reputação. — Tinha, Sem-Nome. — Reputações não podem ser tiradas ou negadas, apenas aumentadas... em termos positivos ou negativos, é claro. — É uma fonte de informações desautorizadas, e sabe disso. — Também estou certo. Dizem que você era um dos melhores. Qual a sua interpretação? Alex sacudiu a cabeça, dentro da cabine; o ar era abafado, o barulho do lado de fora do seu telefone “seguro” aumentava cada vez mais no bar miserável da Rua 9. — O que eu disse antes. Alguém descobriu o que vocês estavam planejando... a pressão sobre Webb... e decidiu assumir o controle. — Mas por quê? — Porque essa pessoa, quem quer que seja, deseja Jason Bourne muito mais do que vocês — arrematou Alex, desligando em seguida. Eram seis e vinte e oito quando Conklin entrou no saguão do Aeroporto Dulles. Esperara num táxi no final da rua do hotel de David e o seguira, dando instruções precisas ao motorista. Acertara em cheio, mas não havia sentido em sobrecarregar David com o conhecimento. Dois Plymouths cinzas
seguiram o táxi de David, alternando as posições durante o percurso. Então era assim Um certo Alexander Conklin podia ser crucificado, mas também era possível que isso não acontecesse. As pessoas no Departamento de Estado estavam se comportando de maneira estúpida, pensou ele, enquanto anotava as placas dos Plymouths. Foi localizar David num reservado escuro no fundo do restaurante no aeroporto. — É você, não é mesmo? — murmurou Alex, arrastando o pé morto para o banco. — É verdade que os louros se divertem mais? — Deu certo em Paris. O que descobriu? — Descobri vermes por baixo das pedras que não conseguem encontrar o caminho para a luz do dia. Mas também eles não saberiam o que fazer com a luz do sol, não é mesmo? — A luz do sol ilumina, o que já não acontece com você. Corte as besteiras, Alex. Tenho de passar pelo portão dentro de poucos minutos. — Em poucas palavras, eles criaram uma estratégia para atrair você a Kowloon. Baseava-se numa experiência anterior... — Pode pular essa parte — interrompeu-o David. — Por quê? — O homem disse que precisavam de você. Não de você... Webb. Precisavam de Bourne. — Porque dizem que Bourne já se encontra lá. Relatei o que McAllister me contou. Ele entrou nisso? — Não. Claro que não ia me entregar tanto, mas talvez eu possa usar a informação para pressioná-los. Mas ele me disse outra coisa, David, e você tem de saber. Não conseguem localizar seus condutos, e por isso não sabem quem são os cegos ou o que está acontecendo. Acham que é temporário, mas perderam Marie. Alguém mais quer você por lá e assumiu o controle. David levou a mão à testa, os olhos fechados. Subitamente, em silêncio, as lágrimas rolaram por suas faces. — Estou de volta, Alex. De volta a tanta coisa que não posso lembrar. Eu a amo muito e preciso demais dela! — Pare com isso! — ordenou Conklin. — Você me deixou claro ontem à noite que eu ainda tinha uma mente, embora o corpo já não fosse a mesma coisa. Mas você tem as duas coisas. Aplique toda pressão neles! — Como? — Seja o que eles querem que se torne... seja o camaleão! Seja Jason Bourne! — Já tem tanto tempo...
— Você ainda é capaz de fazê-lo. Desempenhe o papel que lhe deram. — Não tenho alternativa, não é mesmo? Pelos alto-falantes, soou a última chamada do vôo 26 para Hong Kong. Havilland, o de cabelos grisalhos, repôs o fone no gancho, recostou-se na cadeira e olhou para McAllister, no outro lado da sala. O subsecretário de Estado estava parado ao lado de um enorme globo terrestre a girar, empoleirado sobre um tripé todo ornamentado, na frente de uma estante. O dedo indicador estava pousado na região meridional da China, mas os olhos se fixavam no embaixador. — Está feito —anunciou o diplomata. — Ele está no avião para Kowloon. — Deus sabe que é uma coisa horrível — murmurou McAllister — Sei que parece assim para você, mas deve avaliar as vantagens antes de fazer um julgamento. Estamos livres agora. Não somos mais responsáveis pelos eventos que ocorrerem. Estão sendo manipulados por uma parte desconhecida. — Que somos nós! Repito: Deus sabe que é uma coisa horrível! — Seu Deus considerou as conseqüências se fracassarmos? — Somos dotados de livre-arbítrio. Somente nossa ética nos restringe. — Uma banalidade, Sr. Subsecretário. Devemos pensar no bem maior. — Há também um ser humano, um homem que.estamos manipulando, levando-o de volta a seus pesadelos. Acha que temos esse direito? — Não temos alternativa. Ele é capaz de fazer o que ninguém mais pode... se lhe dermos um motivo para tal. McAllister tornou a girar o globo, que ficou rodando enquanto ele se encaminhava para a mesa. — Talvez eu não devesse dizê-lo, mas vou falar assim mesmo — murmurou ele, parando na frente de Raymond Havilland. — Acho que você é o homem mais imoral que já conheci. — Uma questão de aparências, Sr. Subsecretário. Tenho uma graça salvadora que se sobrepõe a todos os pecados que já cometi. Farei qualquer coisa, assumirei as piores venalidades. a fim de impedir que este planeta exploda. E isso inclui a vida de um certo David Webb... conhecido no lugar em que eu o quero como Jason Bourne.
Capítulo 8 A neblina erguia-se como camadas de echarpes diáfanas sobre Victoria Harbor, enquanto o enorme jato circulava, no acesso final ao Aeroporto Kai-tak. O nevoeiro do início da manhã era denso, a promessa de um dia úmido na colônia. Lá embaixo, na água, os juncos e sampanas balançavam ao lado dos cargueiros, barcaças e barcas de vários níveis, além das patrulhas marítimas ocasionais que circulavam pelo porto. Enquanto o avião descia para o aeroporto de Kowloon, as fileiras irregulares de edifícios na ilha de Hong Kong adquiriram a aparência de gigantes de alabastro, estendendo-se pela neblina e refletindo os primeiros raios penetrantes do sol da manhã. David estudou a paisagem lá embaixo, tanto como alguém sob uma terrível tensão quanto como um homem consumido por uma curiosidade estranhamente desligada. Marie estava em algum lugar daquele território fervilhante e superpovoado... esse era o seu pensamento predominante e a coisa mais angustiante em que pensar. Apesar disso, outra parte dele era como um cientista dominado por uma ansiedade fria, espiando pela lente embaçada de um microscópio, tentando discernir o que o olho e a mente pudessem compreender. O conhecido e o desconhecido se juntavam, e o resultado era a confusão e o medo. Durante as sessões com Panov na Virginia, David lera e relera centenas de folhetos de turismo ilustrados, descrevendo todos os lugares em que se sabia que o mítico Jason Bourne estivera; fora um exercício contínuo e muitas vezes doloroso de auto-sondagem. Fragmentos lhe ocorriam em relances de reconhecimento, mui tos eram breves e confusos demais, outros prolongados, as recordações súbitas espantosamente acuradas, as descrições suas, não as dos manuais dos agentes de viagens. Olhando para baixo agora, viu muito do que sabia que conhecia, mas não podia lembrar especificamente. Por isso, desviou os olhos e concentrou-se no dia que teria pela frente. Telegrafara para o Regent Hotel em Kowloon, do Aeroporto Dulles, solicitando um quarto por uma semana, em nome de Howard Cruett, a identidade no refinado passaporte de olhos azuis de Cactus. E acrescentara: “Creio que já foram tomadas providências por nossa firma para a suíte seis-nove-zero, se estiver disponível. O dia da chegada está confirmado, o vôo não.” A suíte estaria disponível. O que precisava descobrir era quem a tornara disponível. Seria o primeiro passo em direção a Marie. E antes, depois ou durante o processo, havia coisas para comprar... algumas seriam simples de comprar, outras não, mas não seria impossível descobrir até as mais inacessíveis. Aquela era Hong Kong, a colônia da sobrevivência e dos instrumentos de sobrevivência. Era também o único lugar civilizado do mundo em que as religiões floresciam, mas o único deus comumente reconhecido por crentes e descrentes era o dinheiro. Como Marie dissera: — Não tem outra razão para existir. A manhã morna recendia aos odores de uma humanidade apinhada e apressada; estranhamente, porém, os cheiros não eram desagradáveis. As calçadas estavam sendo freneticamente lavadas com mangueiras, o vapor se elevando dos pavimentos que secavam ao sol. A fragrância de ervas fervendo
em óleo espalhava-se pelas ruas estreitas, saindo de carrocinhas e barracas clamando por atenção. Os ruídos se acumulavam, transformavam-se numa sucessão de crescendos constantes, exigindo aceitação e uma venda ou pelo menos uma negociação. Hong Kong era a essência da sobrevivência; era preciso trabalhar furiosamente, ou não se sobrevivia. Adam Smith estava superado e desatualizado; nunca poderia conceber um mundo assim. Escarnecia das disciplinas que ele projetara para uma economia de livre mercado; era uma loucura. Era Hong Kong. David ergueu a mão para chamar um táxi, sabendo que já fizera isso antes, conhecendo as portas de saída para as quais se encaminhara depois da demora enfadonha na alfândega, convencido de que já passara pelas ruas por que o motorista o conduzia... não realmente lembrando, mas de certa forma conhecendo. Era ao mesmo tempo confortador e profundamente assustador. Conhecia e não conhecia. Era um fantoche sendo manipulado no palco de seu próprio espetáculo secundário e não sabia quem era o títere e quem o controlava. — Foi um engano — disse David ao recepcionista, no outro lado do balcão de mármore oval, no meio do saguão do Regent. —Não quero uma suíte. Prefiro algo menor. Um quarto simples ou de casal servirá. — Mas as providências já foram tomadas, Sr. Cruett — respondeu o desconcertado recepcionista, usando o nome no passaporte falso de David. — Quem cuidou disso? O jovem oriental verificou a assinatura na lista de reservas do computador. — A reserva foi autorizada pelo assistente da gerência, Sr. Liang. — Nesse caso, por cortesia, devo falar com o Sr. Liang, não é mesmo? — Receio que será necessário. Não sei se há qualquer outra acomodação disponível. — Não tem problema. Encontrarei outro hotel. — é considerado um hóspede muito importante, senhor. Espere um instante que vou falar com o Sr. Liang. David acenou com a cabeça, enquanto o recepcionista, com a reserva na mão, passava por baixo do balcão na extremidade esquerda e atravessava apressado o saguão apinhado, a caminho de uma porta no outro lado. David correu os olhos pelo saguão opulento, que num certo sentido começava lá fora, no imenso pátio circular, com seus chafarizes altos, e estendia-se pelas elegantes portas de vidro, atravessando o chão de mármore para um semicírculo de janelas altas, de vidro fumê, por cima de Victoria Harbor. A cena em constante movimento além era um acréscimo hipnótico à mise en scène do salão curvo na frente da parede de vidros de cor suave. Havia dezenas de mesinhas e sofás de couro, a maioria ocupada, com garçons e garçonetes uniformizados circulando de um lado para o outro. Era uma arena em que turistas e negociadores igualmente podiam contemplar o panorama do comércio do porto, apresentado à frente dos altos prédios da ilha de Hong Kong, à distância. A visão marinha lá fora era familiar a David, mas nada mais. Nunca antes estivera no interior daquele hotel extravagante; ou pelo
menos nada do que via ali despertava-lhe qualquer lampejo de reconhecimento. Subitamente, seus olhos foram atraídos para a visão do recepcionista atravessando o saguão apressado, vários passos à frente de um oriental de meia-idade, obviamente o assistente da gerência do Regent, Sr. Liang. O homem mais jovem tornou a passar por baixo do balcão e retomou sua posição na frente de David, os olhos obsequiosos se arregalando ao máximo que podiam, em expectativa. Segundos depois o executivo do hotel chegou, fazendo uma ligeira mesura de cintura como convinha à sua posição profissional. — Este é o Sr. Liang, senhor — anunciou o recepcionista. — Em que posso servi-lo? — disse o homem. — E posso acrescentar que é um prazer recebê-lo como nosso hóspede? David sorriu e sacudiu a cabeça, polidamente. — Infelizmente, talvez isso tenha de ficar para outra ocasião. — Está insatisfeito com as acomodações que lhe foram reservadas, Sr. Cruett? — Claro que não. E provavelmente até gostaria muito. Mas, como eu disse a seu jovem funcionário, prefiro aposentos menores, um quarto de solteiro ou mesmo de casal, mas não uma suíte. Contudo, fui informado de que talvez não haja qualquer outra coisa disponível. — Seu telegrama mencionava expressamente a suíte seis- noventa, senhor. — Sei disso e peço desculpas. Foi obra de um representante de vendas solícito demais. — David franziu o rosto, numa expressão amigável e inquisitiva, depois indagou, cortesmente: — Por falar nisso, quem tomou as providências necessárias? Tenho certeza de que não fui eu. — Talvez o seu representante — sugeriu Liang, os olhos evasivos. — O representante de vendas? Ele não teria autoridade para tanto. Disse que foi uma das companhias daqui. Não podemos aceitar, é claro, mas eu gostaria de saber quem fez uma oferta tão generosa. Estou certo, Sr. Liang, já que autorizou pessoalmente a reserva, que pode me dar a informação. Os olhos neutros tornaram-se mais distantes, depois piscaram; era o bastante para David, mas a farsa tinha de ser levada até o fim. — Creio que um dos nossos funcionários... e temos muitos... veio me procurar com a solicitação, senhor. Há sempre muitas reservas, temos um movimento tão grande, que não posso me lembrar direito. — Deve haver instruções sobre a conta. — Temos muitos clientes honrados, cuja palavra pelo telefone é suficiente.
— Hong Kong mudou. — Está sempre mudando, Sr. Cruett. É possível que seu anfitrião tencione lhe contar pessoalmente. Não seria apropriado que eu me intrometesse em tais desejos. — Seu senso de confiança é admirável. — Apoiado por um código de conta em nosso computador, naturalmente. Liang ensaiou um sorriso; era falso. — Já que não tem mais nada, vou ver se me arranjo por mim mesmo. Tenho amigos no Pen, no outro lado da rua — disse David, referindo-se ao reverenciado Peninsula Hotel — Não será necessário. Podemos providenciar novas acomodações. — Mas seu recepcionista disse... — Ele não é o gerente-assistente do Regent, senhor. Liang lançou um rápido olhar furioso ao jovem por trás do balcão, que se apressou em protestar, defensivo: — A tela mostra que não há mais nada disponível! — Cale-se! — Liang sorriu no instante seguinte, tão falso quanto antes, consciente de que indubitavelmente perdera a parada junto com o controle. — Ele é muito jovem.., todos são jovens e inexperientes... mas muito inteligente, com muita boa vontade... Mantemos vários quartos em reserva para ocasiões de mal-entendidos. Tornou a olhar para o recepcionista e falou asperamente, enquanto sorria: — Ting, ruan-ji! — E continuou a falar, rapidamente, em chinês, cada palavra compreendida por um impassível David: —Preste atenção, seu frango sem osso! Não ofereça informações em minha presença, a menos que eu peça! Vai ser jogado na lata de lixo se fizer isso de novo. E agora ponha esse idiota no quarto dois-zero-dois. Está relacionado como reservado; tire- o da lista e tome todas as providências necessárias. Liang, o sorriso artificial ainda mais acentuado, virou-se para David. — É um quarto muito agradável, Sr. Cruett, com uma esplêndida vista do porto. A disputa estava encerrada, e o vencedor minimizou a vitória com um agradecimento persuasivo. — Muito obrigado — disse David, fitando os olhos do subitamente inseguro Liang. — Vai me poupar o trabalho de telefonar para toda a cidade, avisando às pessoas onde estou hospedado.
Ele parou, a mão direita parcialmente levantada, um homem prestes a continuar. David Webb estava agindo com base em um de vários instintos... instintos desenvolvidos por Jason Bourne. Sabia que era o momento de incutir medo. — Quando fala em um quarto com uma esplêndida vista, presumo que está querendo dizer you hao jingse de fang jian. Estou certo? Ou meu chinês é muito ruim? Liang ficou aturdido por um momento, antes de responder, suavemente: — Eu não poderia formular de maneira melhor. O recepcionista providenciará tudo. Espero que aproveite bem sua estada conosco, Sr. Cruett. — A satisfação deve ser medida pelos resultados, Sr. Liang. Este é um provérbio chinês muito antigo ou muito novo, não me lembro qual dos dois. — Desconfio que é novo, Sr. Cruett. É ativo demais para a reflexão passiva, que é a alma de Confúcio, como tenho certeza que sabe. — Isso não é um resultado? — É rápido demais para mim, senhor. — Liang fez uma mesura. — Se precisar de mais alguma coisa, não hesite em me procurar. — Acho que não será necessário, mas de qualquer forma obrigado. Para ser franco, foi um vôo longo e desagradável, por isso vou pedir à telefonista para não completar as ligações até a hora do jantar. — É mesmo? — A insegurança de Liang tornou-se acentuada demais; ele era um homem amedrontado. — Mas certamente, se houver alguma emergência... — Não há nada que não possa esperar. E como não estou na suíte seis-noventa, a telefonista pode simplesmente dizer que sou esperado mais tarde. Não acha que é plausível? Estou muito cansado. Obrigado por tudo, Sr. Liang. — Eu é que agradeço, Sr. Cruett. Liang fez outra mesura, observando os olhos de David à procura de um último sinal. Não encontrou nenhum e virou-se depressa, nervosamente, voltando para sua sala. Faça o inesperado. Confunda o inimigo, deixe-o surpreso. — Jason Bourne. Ou teria sido Alexander Conklin? — É um ótimo quarto, senhor! — exclamou o aliviado recepcionista. — Tenho certeza de que vai ficar muito satisfeito. — O Sr. Liang é muito atencioso. Eu gostaria de demonstrar meu agradecimento... e é o que farei, por sua ajuda. — David tirou do bolso o prendedor de dinheiro de couro, removeu discretamente
uma nota de vinte dólares americanos. Estendeu a mão para um aperto, a nota escondida. — Quando o Sr. Liang encerra seu expediente? O aturdido mas exultante recepcionista olhou para a direita e a esquerda enquanto falava, em frases desconexas: — É muito gentil, senhor. Não é necessário, senhor, mas obrigado, senhor, O Sr. Liang deixa o escritório todas as tardes às cinco horas. Eu também saio a esta hora. Claro que continuaria se a gerência solicitasse, pois me esforço para fazer o melhor que posso, pela honra do hotel. — Tenho certeza disso — comentou David. — E devo acrescentar que o faz com muita competência. Minha chave, por favor. A bagagem deve chegar mais tarde. Atrasou por causa de uma troca de avião. — Não tem problema, senhor! David sentou na cadeira ao lado da janela, olhando através do porto para a ilha de Hong Kong. Nomes afloraram em-sua mente, acompanhados por imagens— Causeway Bay, Wanchai, Repulse Bay, Aberdeen, o Mandarin e, finalmente, tão nítido a distância, Victoria Peak, com sua vista impressionante de toda a colônia. Depois viu, em sua imaginação, as massas de humanidade circulando pelas ruas apinhadas, pitorescas e quase sempre sujas, os saguões e salões de hotéis sempre cheios, sob a luz suave dos lustres de ouro filigranado, os remanescentes bem-vestidos do império misturando-se relutantes com os emergentes empresários chineses... a velha coroa e o dinheiro novo precisavam chegar a um acordo... Vielas... Por algum motivo, vielas abarrotadas e desmanteladas entraram em foco. Vultos correndo pelos caminhos estreitos, esbarrando em gaiolas de passarinhos guinchando e cobras de vários tamanhos a se contorcerem... mercadorias de mascates nos degraus inferiores da escada do comércio no território. Homens e mulheres de todas as idades, de crianças a anciãos, estavam vestidos em trapos, uma fumaça densa e pungente se enroscava lentamente para cima, preenchendo o espaço entre os prédios em deterioração, difundindo a claridade, aumentando a aparência sinistra das paredes de pedras escuras, enegrecidas pelo uso e desuso. Viu tudo, e tudo possuía um significado, mas não podia compreender. Os detalhes específicos se esquivavam; não tinha pontes de referência, e era frustrante. Marie estava por lá! Precisava encontrá-la! Levantou-se de um pulo, desesperado, querendo bater com a cabeça na parede, a fim de desanuviar a confusão. Mas sabia que não adiantaria... nada adiantaria, exceto o tempo, e não podia suportar a pressão do tempo. Tinha de encontrá-la, mantê-la, protegê-la, como Marie outrora o protegera, ao acreditar nele, quando ele próprio não acreditava. David passou pelo espelho por cima da cômoda e contemplou seu rosto pálido e desfigurado. Uma coisa era evidente. Precisava planejar e agir depressa, mas não como o homem que observava no espelho. Tinha de recorrer a tudo o que aprendera e esquecera como Jason Bourne. De algum lugar em seu íntimo, tinha de convocar o passado esquivo e confiar nos instintos não-lembrados. Dera o primeiro passo; a ligação era sólida e sabia disso. De um jeito ou de outro, Liang lhe proporcionaria alguma coisa, provavelmente o nível mais baixo de informação, mas seria um começo... um nome, um lugar ou um ponto de correspondência, um contato inicial que levaria a outro e mais outro. O que precisava fazer era entrar em ação rapidamente, com tudo o que tivesse, sem dar tempo ao
inimigo para manobrar, pressionar quem quer que alcançasse para posições de fala-e-sobrevive ou ficacalado-e-morre... e cumprir a ameaça. Para realizar qualquer coisa, no entanto, devia estar preparado. Tinha de comprar coisas, providenciar uma excursão pela colônia. Queria uma hora ou mais para observar do banco traseiro de um cano, desencavando da memória avariada qualquer coisa que pudesse. Pegou uma lista telefônica do hotel, encadernada em couro vermelho, sentou-se na beira da cama e abriu-a, folheando as páginas rapidamente. O New World Shopping Centre, um complexo magnífico em cinco andares, reúne sob o mesmo teto os melhores produtos dos quatro cantos do mundo... Exagero à parte, o “complexo” ficava ao lado do hotel; serviria a seus propósitos. Limusines disponíveis. Temos uma frota de carros Daimlerier para alugar por hora ou por dia, para negócios ou passeio: turísticos. Por favor, entre em contato com a portaria. Disque 62. Limusines significavam também motoristas experientes, conhecedores dos caminhos confusos, das ruas secundárias, das estradas e dos padrões de tráfego de Hong Kong, Kowloon e dos Novos Territórios... e conhecendo ainda muitas outras coisas. Tais homens conheciam os prós e contras, as profundezas inferiores das cidades que serviam. A menos que estivesse enganado — e o instinto lhe dizia que não estava —, uma necessidade adicional seria atendida. Precisava de uma arma. E, finalmente, havia um banco no Distrito Central de Hong Kong que mantinha um acordo com uma instituição similar a milhares de quilômetros de distância, nas Ilhas Caimãs. Tinha de entrar nesse banco, assinar o que fosse necessário e sair com mais dinheiro do que qualquer homem são levaria em Hong Kong... ou em qualquer outro lugar do mundo, diga-se de passagem. Encontraria algum lugar para guardar o dinheiro, mas não em um banco, onde o horário de funcionamento limitava a sua disponibilidade. Jason Bourne sabia: Prometa a um homem sua vida e geralmente ele vai cooperar; prometa-lhe sua vida e muito dinheiro, e o efeito cumulativo levará à submissão total. David pegou o bloco e o lápis ao lado do telefone, na mesinha-de-cabeceira; iniciou outra lista. As coisas pequenas assomavam-se maiores a cada hora que passava, e não lhe restavam muitas horas. Faltavam poucos minutos para as onze horas. O porto agora faiscava ao sol quase a pino. Tinha muitas coisas para fazer antes das quatro e meia, quando tencionava postar-se discretamente em algum lugar nas proximidades da saída dos empregados, dentro da garagem subterrânea do hotel, ou onde quer que descobrisse que poderia seguir e acuar o pálido Liang, sua primeira conexão. Três minutos depois a lista estava pronta. Rasgou a folha, levantou-se da cama e foi pegar o paletó na cadeira. Abrupta- mente, o telefone tocou, rompendo o silêncio do quarto de hotel. David teve de fechar os olhos, contrair todos os músculos dos braços e da barriga, a fim de não correr para atender, esperando além da esperança pelo som da voz de Marie, mesmo como uma cativa. Não devia atender. Instinto. Jason Bourne. Não tinha controles. Se atendesse, ele passaria a ser o controlado. Deixou o telefone tocar, angustiado, enquanto atravessava o quarto e saía pela porta. Passavam dez minutos de meio-dia quando voltou, carregando diversas bolsas de plástico fino de várias lojas do centro comercial. Largou as bolsas na cama e começou a retirar as compras. Entre os artigos, havia uma capa escura e leve, um chapéu de lona escuro, um par de tênis cinzentos, uma calça preta e um blusão também preto; eram as roupas que usaria à noite. Havia outras coisas: um rolo de linha de pesca com resistência para trinta e três quilos, com dois anzóis do tamanho da palma da mão, através dos quais se podia passar um pedaço de um metro da linha e prender nas duas extremidades, um peso de papel de meio quilo, no formato de um haltere em miniatura, de latão, um furador de gelo e um facão de caça com bainha, bastante afiado, gume duplo, com uma lâmina estreita de dez centímetros.
Essas eram as armas silenciosas que levaria sempre, de dia e à noite. Só restava providenciar mais um item; haveria de encontrá-lo. Enquanto estudava as compras, concentrado nos anzóis e na linha de pesca, David tornou-se consciente de um piscar de luz pequeno e sutil. Pisca, pára... pisca, pára. Era desconcertante, porque não podia localizar a fonte; como acontecia com tanta freqüência, teve de especular se havia mesmo uma fonte ou se a intromissão era apenas uma aberração de sua mente. E depois seus olhos foram atraídos para a mesinha-de cabeceira; os raios do sol entravam pelas janelas abertas para o porto, derramando-se sobre o telefone, mas a luz pulsante estava ali, no canto inferior esquerdo do aparelho... quase imperceptível, mas ali. Era o sinal de mensagem, um pequeno ponto vermelho que brilhava por um segundo, escurecia por um segundo, depois voltava a piscar, sempre nesses intervalos. Uma mensagem não era uma ligação, refletiu David. Foi até a mesa, estudou as instruções no cartão de plástico e depois pegou o fone; apertou o botão apropriado. — Pois não, Sr, Cruett? — disse a telefonista, de sua mesa computadorizada. — Há alguma mensagem para mim? — Há, sim, senhor. O Sr. Liang está tentando localizá-lo... — Pensei que minhas instruções tivessem sido claras — interrompeu-a David. — Não deveria haver ligações até que eu desse uma contra-ordem à mesa. — Desculpe, senhor, mas o Sr. Liang é o gerente-assistente... o superior quando o gerente não está no hotel... como acontece esta manhã... esta tarde. Ele nos disse que é urgente. Vem telefonando para o senhor a intervalos de poucos minutos, durante a última hora. Vou avisá-lo agora, senhor. David desligou. Não estava pronto para Liang ou, mais propriamente, Liang não estava pronto para ele... pelo menos não da maneira como o queria. Liang estava nervoso, possivelmente à beira do pânico, pois era o primeiro e o mais baixo contato e fracassara em deixar o alvo onde deveria, numa suíte grampeada, em que o inimigo poderia ouvir cada palavra. Mas à beira do pânico não era suficiente. David queria Liang além da beira. A maneira mais rápida de levá-lo a esse estado era não permitir qualquer contato, nenhuma discussão, nenhuma explicação para o fato de o alvo recrutado se esquivar ao laço. David tirou as roupas da cama e guardou-as em duas gavetas da cômoda, juntamente com as coisas que estavam na bolsa de vôo; arrumou os anzóis e a linha de pesca entre as camadas de tecido. Pôs o peso de papel em cima de um cardápio do serviço de quarto e meteu a faca de caça no bolso do paletó. Olhou para o furador de gelo e foi subitamente invadido por um pensamento, também nascido de um estranho instinto: um homem consumido pela ansiedade reagiria além do necessário à visão inesperada de algo assustador. A imagem sinistra o chocaria, aprofundando seus medos. David tirou um lenço do bolsinho do paletó, abaixou-se para o furador e limpou o cabo. Pegando o instrumento letal com o lenço, caminhou rapidamente para o pequeno vestíbulo, calculou o nível dos olhos e cravou o furador na parede branca, em frente à porta. O telefone tocou e tornou a tocar, incessantemente, como se estivesse em frenesi. David deixou o quarto e atravessou apressado o corredor, na direção dos elevadores; entrou no corredor lateral e ficou observando.
Não se enganara. Os painéis de metal reluzentes se abriram e Liang saiu correndo do elevador do meio, avançando pelo corredor onde ficava o quarto de David. Passando pelos elevadores, David foi postar-se no canto de seu corredor. Podia ver o nervoso Liang tocar a campainha insistentemente, depois bater na porta, com crescente persistência. Outro elevador se abriu e dois casais saíram, rindo. Um dos homens olhou curioso para David, depois deu de ombros, enquanto o grupo seguia para a esquerda. David tornou a concentrar sua atenção em Liang. O gerente-assistente estava agora frenético, tocando a campainha e batendo na porta. Parou de repente e encostou o ouvido na madeira; satisfeito, enfiou a mão no bolso e retirou um molho de chaves. David recuou prontamente quando Liang virou-se para olhar a um lado e outro, enquanto inseria a chave na fechadura. David não precisava ver; bastava ouvir. Não esperou muito tempo. Um grito gutural abafado foi seguido pelo estrondo da porta. O furador de gelo causara seu efeito. David voltou correndo para o seu santuário, além do último elevador, outra vez comprimindo o corpo contra a parede; e ficou observando. Liang estava visivelmente abalado, a respiração irregular, profunda, enquanto apertava repetidamente o botão do elevador. Uma campainha soou e as portas do segundo elevador se abriram, O gerente-assistente entrou apressado. David não tinha qualquer plano específico, mas sabia vagamente o que tinha de fazer, pois não havia outro meio. Desceu o corredor, passando pelos elevadores, correu pela distância restante até o seu quarto. Entrou e encaminhou-se para o telefone na mesinha-de-cabeceira, apertando os dígitos que gravara na memória. — Portaria — disse uma voz jovial, que não parecia oriental; provavelmente era indiana. — Estou falando com o porteiro-chefe? — indagou David. — Está, sim, senhor. — Não com um assistente? — Não, senhor. Gostaria de falar com algum assistente específico? Talvez alguém para resolver um problema? — Não — respondeu David, suavemente. — Quero falar com você mesmo. Tenho uma situação que deve ser tratada com absoluto sigilo. Posso contar com você? Estou disposto a ser generoso. — É hóspede do hotel? — Sou, sim. — E não há nada de impróprio envolvido, é claro. Nada que possa prejudicar o estabelecimento. — Só vai aumentar sua reputação, ajudando executivos cautelosos que desejam trazer negócios para o território. E muitos negócios. — Estou a seu serviço, senhor.
Ficou acertado que uma limusine Daimlerler com o mais experiente motorista disponível, iria buscá-lo dentro de dez minutos, na saída do pátio na Salisbury Road. O porteiro estaria ao lado do carro e receberia, por seu sigilo, duzentos dólares americanos, cerca de mil e quinhentos dólares de Hong Kong. Não haveria o nome de qualquer pessoa no registro do aluguel — que seria pago em dinheiro, por vinte e quatro horas — apenas o nome de uma firma escolhido ao acaso. E o “Sr. Cruett”, escoltado por um empregado do hotel, poderia usar um elevador de serviço para o nível inferior do Regent, onde havia uma saída que levava ao New World Centre, com acesso direto ao ponto de encontro na Salisbury Road. As cortesias trocadas e o dinheiro passando de mãos, David acomodou-se no banco traseiro do Daimlerler e confrontou o rosto vincado e cansado de um motorista uniformizado de meia-idade, cuja expressão esgotada foi apenas parcialmente atenuada por uma tentativa de ser amável. — Seja bem-vindo, senhor. Meu nome é Pak-fei e vou me esforçar ao máximo para lhe prestar um serviço excelente. Diga-me para onde quer ir e o levarei. Conheço tudo. — Eu estava contando com isso — respondeu David, suavemente. — Como, senhor? — Wo bushi luke — disse David, anunciando que não era um turista. E continuou em chinês: — Mas como há anos não venho aqui, quero efetuar um reconhecimento. Que tal a excursão normal e chata pela ilha e depois uma rápida viagem por Kowloon? Tenho de voltar mais ou menos dentro de duas horas... E daqui por diante vamos falar inglês. — Seu chinês é muito bom... de alta classe, mas compreendo tudo o que diz. Mas apenas duas zhongtou... — Horas — corrigiu-o David. — Não se esqueça de que estamos falando em inglês e não quero ser mal interpretado. Mas essas duas horas e sua gorjeta, assim como as restantes vinte e duas horas e a gorjeta por elas, vão depender da maneira como nos daremos, está certo? — Claro! — exclamou Pak-fei, o motorista, acelerando o Daimlerler e entrando no tráfego insuportável da Salisbury Road. — Vou me esforçar para oferecer um excelente serviço! Foi o que aconteceu, e os nomes e imagens que ocorreram a David no quarto do hotel foram reforçados pelos equivalentes concretos. Ele conhecia as ruas do Distrito Central, reconheceu o Mandarin Hotel e o Hong Kong Club, assim como a Chater Square, com o Supremo Tribunal da colônia, em frente aos grandes bancos de Hong Kong. Percorrera as pistas de pedestres apinhadas para a confusão total que era a Star Ferry, a permanente ligação da ilha de Kowloon por barcas. Queen’s Road, Hillier, Possession Street, a extravagante Wanchai... tudo lhe voltou, no sentido de que já estivera ali, já estivera naqueles lugares, conhecia-os, conhecia as ruas, até mesmo os atalhos para ir de uma parte a outra. Reconheceu o caminho sinuoso para a Aberdeen, prevendo a vista dos pomposos restaurantes flutuantes e, mais além, o incrível congestionamento de juncos e sampanas do povo dos barcos, uma gigantesca comunidade flutuante das pessoas eternamente despojadas; podia até ouvir o estardalhaço e gritos dos jogadores de mah-jongg, apostando encarniçadamente, sob o brilho difuso de lanternas a
balançar, à noite. Conhecera homens e mulheres — contatos e condutos, refletiu ele — nas praias de Shek O e Big Wave, nadara nas águas apinhadas de Repulse Bay, com suas enormes estátuas de imitação e a elegância decadente do velho hotel colonial. Já vira tudo, conhecia tudo, mas não podia relacionar com nada. Consultou o relógio; já estavam passeando há quase duas horas. Havia uma última parada a fazer na ilha e depois submeteria Pak-fei ao teste. — Volte para a Chater Square —disse ele. —Tenho negócios a tratar em um dos bancos. Pode ficar me esperando. O dinheiro não era apenas um lubrificante social e industrial; em quantidades bastante grandes, era também um passaporte para a maneabilidade. Sem dinheiro, homens em fuga ficavam entravados, as opções limitadas, os que estavam em perseguição muitas vezes eram frustrados pela carência de meios para manter a caçada. E quanto mais dinheiro, mais fácil liberá-lo; prova disso é a luta de um homem cujos recursos não lhe permitem solicitar mais que um empréstimo de quinhentos dólares, em comparação com a relativa facilidade de outro que tem uma linha de crédito de quinhentos mil dólares. Foi o que aconteceu com David no banco de Chater Square. Os acertos foram rápidos e profissionais; sem comentários, uma pasta de executivo foi providenciada para o transporte dos fundos, houve a oferta de um guarda para acompanhá-lo até o hotel, caso se sentisse mais seguro assim. Ele recusou, assinou os documentos necessários e não foram feitas mais perguntas. David voltou ao carro na movimentada rua. Inclinou-se para a frente, pousando a mão esquerda no tecido macio do estofamento do banco, a poucos centímetros da cabeça do motorista. Segurava uma nota de cem dólares americanos entre o polegar e o indicador. — Pak-fei, preciso de uma arma. Lentamente, o motorista virou a cabeça. Olhou para a nota, depois virou-se ainda mais para fitar David. Desapareceram a exuberância artificial, o desejo arrogante de agradar. Em vez disso, a expressão no rosto vincado era passiva, os olhos distantes. — Kowloon — murmurou ele. — No Mongkok. E Pak-fei pegou a nota de cem dólares.
Capítulo 9 A limusine Daimler arrastava-se pela rua congestionada em Mongkok, uma massa urbana que possuía a distinção nada invejável de ser o distrito mais densamente povoado na história da humanidade. E povoado, cabe ressaltar, quase que exclusiva mente por chineses. Um rosto ocidental era uma raridade tão grande que atraía olhares curiosos, ao mesmo tempo hostis e divertidos. Nenhum homem ou mulher branca jamais era encorajado a ir a. Mongkok depois do escurecer; nenhum Oriental Cotton Club existia ali. Não era uma questão de racismo, mas o reconhecimento da realidade. Havia pouco espaço para os seus ... e eles zelavam pelos seus como todos os chineses o faziam, desde as primeiras dinastias. A família era tudo, e muitas famílias viviam não na miséria, mas nos limites de um único cômodo, com uma única cama, esteiras espalhadas pelo chão rude mas sempre limpo. Por toda parte a presença de pequenas sacadas confirmava as exigências de higiene, já que ninguém aparecia nelas, a não ser para pendurar interminavelmente a roupa lavada. Essas sacadas abertas ocupavam os lados de prédios de apartamentos adjacentes e pareciam estar em constante agitação, as brisas soprando contra as imensas paredes de pano, fazendo com que trajes de todos os tipos dançassem no lugar, às dezenas de milhares, prova adicional dos números extraordinários que habitavam a área. E não se podia dizer que Mongkok fosse pobre. Por toda parte se avistavam ricos tecidos coloridos, o vermelho intenso sendo o ímã predominante. Podia-se contemplar cartazes enormes e requintados sempre que os olhos se erguiam acima das multidões; anúncios que se elevavam sucessivamente por três andares de altura margeavam as ruas e vielas, os caracteres chineses enfáticos, em suas tentativas de seduzir os consumi dores. Havia dinheiro em Mongkok, dinheiro discreto, assim como dinheiro histérico, mas nem sempre legítimo. O que não havia era excesso de espaço, e o que havia pertencia aos seus, não a forasteiros, a menos que um forasteiro — trazido por um dos seus — também trouxesse dinheiro para alimentar a máquina insaciável que produzia uma enorme variedade de bens terrenos e alguns não tão terrenos assim. Era uma questão de saber onde procurar e dispor do dinheiro para pagar o preço. Pak-fei, o motorista, sabia onde procurar, e Jason Bourne dispunha do dinheiro. — Vou parar e dar um telefonema — disse Pak-fei, estacionando atrás de um caminhão, em fila dupla. — Trancarei o carro e voltarei depressa. — Isso é necessário? — À pasta é sua, senhor, não minha. Santo Deus, pensou David, como ele era idiota! Não levara em consideração a pasta de executivo. Estava carregando mais de trezentos mil dólares no coração de Mongkok como se fosse seu almoço. Pegou a alça, puxando a valise para o colo, e verificou os fechos; estavam seguros, mas se os botões fossem comprimidos, mesmo que de leve, a tampa se abriria. Gritou para o motorista, que já saltara do carro: — Traga-me um rolo de fita! Fita adesiva!
Era tarde demais. Os sons da rua eram ensurdecedores, as multidões pareciam um manto humano em movimento, havia gente por toda parte. E subitamente, uma centena de pares de olhos espiavam de todos os lados, rostos contorcidos se comprimiam contra o vidro — por todos os lados — e David era o centro de um vulcão que acabara de entrar em erupção. Podia ouvir os gritos inquisitivos de Bin go ah? e Chong man tui, mais ou menos o equivalente em inglês a”Quem é ele?” e “Uma boca que está cheia” ou, combinando, “Quem é o mandachuva?” Sentiu-se um animal enjaulado, sendo estudado por uma horda de bestas de outra espécie, talvez malignas. Apertou a pasta, olhando fixamente para a frente, enquanto duas mãos começavam a se introduzir pelo estreito espaço no alto da janela à direita. Lentamente, estendeu a mão para a faca de caça em seu bolso. Os dedos passaram pela abertura. — Jau! — berrou Pak-fei, abrindo caminho pela multidão. — Este é um taipan muito importante, e a polícia lá na rua vai despejar óleo fervendo nos genitais de vocês se o incomodarem! Afastem-se, afastem-se! Ele destrancou aporta, sentou ao volante e tornou a batê-la, com toda força, em meio a imprecações furiosas. Ligou o carro, acelerou, comprimiu a mão contra a buzina poderosa e assim a manteve, aumentando a cacofonia a proporções insuportáveis, enquanto o mar de corpos, devagar, relutante, se abria. O Daimler arremeteu aos solavancos pela rua estreita. — Para onde estamos indo? — gritou David. — Pensei que já estivéssemos no lugar! — O mercador com quem vai negociar transferiu sua base de operações, senhor, o que é bom, pois este não é um dos pontos mais agradáveis de Mongkok. — Deveria ter telefonado primeiro. À situação lá atrás não foi das mais cômodas. — Se me permite, senhor, gostaria de corrigir a impressão de serviço imperfeito — disse Pakfei, olhando para David pelo retrovisor. — Sabemos agora que não está sendo seguido. E, em conseqüência, eu não serei seguido até o lugar para onde vou levá-lo. — Mas do que está falando? — Entra com as mãos vazias num banco na Chater Square e quando sai as mãos não estão mais vazias. Carregam uma pasta. — E daí? David observava atentamente os olhos do motorista, que a todo instante se fixavam em seu rosto. — Nenhum guarda o acompanhou, e há pessoas más que ficam vigiando gente como o senhor.., e muitas vezes avisos são transmitidos por outras pessoas más lá de dentro. Estamos em tempos difíceis e por isso era melhor ter certeza neste caso. — E tem certeza... agora. — Tenho, sim, senhor. — Pak-fei sorriu. — Um automóvel nos seguindo numa rua secundária
em Mongkok é facilmente visto. — Então não houve telefonema. — Claro que houve, senhor. Sempre se deve telefonar antes. Mas foi muito rápido e depois voltei pela calçada sem o quepe, por muitos metros. Não havia homens irados em automóveis, nenhum saltou para correr pela rua. Agora posso levá-lo ao mercador bastante aliviado. — Também fico aliviado — murmurou David, especulando por que Jason Bourne o abandonara temporariamente. — E nem mesmo sabia que deveria estar preocupado... com a possibilidade de alguém me seguir. As densas multidões de Mongkok foram se tomando mais ralas, enquanto os prédios ficavam mais baixos. David pôde divisar as águas de Victoria Harbor por trás de altas cercas de metal. Além das barricadas intimidativas, havia incontáveis armazéns, ao longo das docas onde os navios cargueiros atracavam, onde enormes guindastes se arrastavam e rangiam, levando os containers para os porões. Pak-fei virou na entrada de um armazém isolado, de um só andar; parecia deserto, com asfalto por toda parte, apenas dois carros à vista, O portão estava fechado; um guarda saiu de um cubículo de vidro e encaminhou-se para o Daimler com uma prancheta na mão. — Não vai encontrar meu nome numa lista —disse Pak-fei, em chinês e com singular autoridade, enquanto o guarda se aproximava. — Avise ao Sr. Wu Song que o Regent Número Cinco está aqui e traz um taipan que é tão digno quanto ele. Ele nos espera. O guarda acenou com a cabeça, estreitando os olhos ao sol da tarde, a fim de vislumbrar o importante passageiro. — Aiya! — gritou Pak-fei pela impertinência do homem. Virando-se, ele fitou David e acrescentou, enquanto o guarda corria para o telefone: — Não deve me interpretar mal, senhor. O uso do nome do meu ótimo hotel não tem nada a ver com meu ótimo hotel. Na verdade, se o Sr. Liang ou qualquer outro soubesse que mencionei seu nome num negócio como este, eu seria afastado do meu emprego. Significa apenas que nasci no quinto dia do quinto mês no ano de nosso Senhor Cristão de 1935. — Pode deixar que não contarei a ninguém — disse David, sorrindo interiormente, ao pensar que Jason Bourne, no final das contas, não o abandonara. O mito que ele fora outrora conhecia os caminhos que levavam aos contatos certos — e os conhecia às cegas —, e esse homem ainda existia no fundo de David Webb. A sala branca com cortinas do armazém, cheia de mostruários horizontais trancados, não diferia de um museu exibindo artefatos de civilizações do passado, como instrumentos primitivos, insetos fossilizados, esculturas místicas de religiões antigas. A diferença estava nos objetos. Ali estavam armas de todos os tipos, desde pequenas armas de baixo calibre e rifles a metralhadoras automáticas de mil tiros, com pentes espiralados em armações quase sem peso e foguetes guiados por laser a serem disparados do ombro, um arsenal para terroristas. Dois homens de terno montavam guarda, um no lado de fora da entrada da sala, outro dentro. Como era de se esperar, o primeiro fez uma mesura de desculpa
e passou um detector eletrônico pelas roupas de David e seu motorista. Depois, estendeu a mão para a pasta de David, que a afastou, sacudiu a cabeça e gesticulou para o detector. O guarda passou-o pela superfície da pasta, conferindo os mostradores. — Documentos particulares — disse David em chinês ao surpreso guarda,.enquanto entrava na sala. Ele levou quase um minuto inteiro para absorver o que via, livrar-se de sua incredulidade. Percebeu os avisos em letras grandes — Proibido Fumar — em inglês, francês e chinês, espalhados por todas as paredes, especulou por que estariam ali. Nada estava exposto. Apertou a pasta em sua mão como se fosse uma corda de salvação num mundo que enlouquecera com instrumentos de violência. — Huanying! — exclamou uma voz, seguida pelo aparecimento de um homem de aspecto jovem. Ele saiu de uma porta almofadada, usando um daqueles ternos europeus bem justos que exageram os ombros e comprimem a cintura, as abas traseiras do paletó ondulando como uma cauda de pavão, o produto de designers determinados a serem elegantes, mesmo ao custo de neutralizar a imagem masculina. — Este é o Sr. Wu Song, senhor — disse Pak-fei, fazendo uma reverência primeiro para o mercador e depois para David. — Não é necessário dar seu nome, senhor. — Bu! — disse o jovem mercador, apontando para a pasta de David. — Bu jing ya! — Seu cliente, Sr. Song, fala chinês fluentemente. — O motorista virou-se para David. — Como ouviu, senhor, o Sr. Song protesta contra a presença de sua pasta. — Não pode sair de minha mão — declarou David. — Então não pode haver uma discussão de negócios séria — interveio Wu Song, num inglês impecável. — Por que não? Seu homem verificou. Não tem armas dentro, e mesmo que houvesse e eu tentasse abrir, tenho a impressão de que eu estaria no chão antes de levantar a tampa. — E plástico? —indagou Wu Song. —Microfones de plástico levando a gravadores em que o conteúdo de metal é tão pequeno que permanece ignorado até pelos detectadores mais sofisticados? — Está sendo paranóico. — Como dizem em seu país, isso faz parte do ofício. — Seu conhecimento de expressões idiomáticas é tão bom quanto seu inglês. — Universidade de Columbia, 1973. — Formou-se em armamentos?
— Não. Em marketing. — Aiya! — gritou Pak-fei. Mas já era tarde demais. O rápido diálogo encobrira o movimento dos guardas; eles haviam atravessado a sala e, no último instante, se lançaram sobre David e o motorista. Jason Bourne virou-se, deslocando o braço do atacante de seu ombro, prendendo-o por baixo do seu e torcendo-o, forçando o homem para baixo. Com toda força, bateu com a valise no rosto oriental. Os movimentos estavam lhe voltando. A violência retornava, como acontecera com um amnésico aturdido num barco de pesca, além da arrebentação de uma ilha do Mediterrâneo. Tanto esquecido, tanto inexplicado, mas lembrado. O homem caiu no chão, atordoado, enquanto seu companheiro se virava em fúria para David, depois de derrubar o motorista. Correu para a frente, as mãos levantadas num impulso em diagonal, o peito e os ombros largos constituindo a base do aríete duplo. David largou a pasta, pulou para a direita e tornou a girar, também para a direita, o pé esquerdo saindo do chão e atingindo o chinês na virilha, com tanta força que o homem se dobrou ao meio, gritando. No mesmo instante, David golpeou-o com o pé direito, a ponta acertando a garganta do atacante, direta mente abaixo do queixo; o homem rolou pelo chão, a respiração ofegante, uma das mãos na virilha, a outra comprimindo o pescoço. O primeiro guarda fez menção de se levantar; Bourne adiantou-se e bateu com o joelho no peito do homem, lançando-o no centro da sala, onde ele caiu inconsciente, por baixo de um mostruário. O jovem mercador de armas estava perplexo. Testemunhara o inconcebível, esperando a qualquer momento que o que via se invertesse e seus guardas saíssem vitoriosos. E de repente, de maneira inequívoca, compreendeu que isso não iria acontecer. Saiu correndo em pânico para a porta almofadada, alcançando-a no mesmo instante em que David o alcançava. Segurando-lhe os ombros com enchimento, David girou o mercador de volta pela sala. Wu Song tropeçou nos próprios pés e caiu; levantou as mãos, suplicando: — Não, por favor! Pare! Não posso suportar um confronto físico! Leve o que quiser! — Não pode suportar o quê? — Você me ouviu! Fico doente! — Para que acha que serve tudo isso? — gritou David, gesticulando com o braço pela sala. —Atendo a uma demanda, e é tudo. Leve o que quiser, mas não me toque. Por favor! Repugnado, David encaminhou-se para o motorista caído, que estava se pondo de joelhos, um filete de sangue a escorrer-lhe do canto da boca. — Eu pago pelo que levo — disse ele ao negociante de armas, enquanto segurava o braço do motorista e o ajudava a se levantar. — Está bem? — Está se metendo numa grande encrenca, senhor — balbuciou Pak-fei, as mãos trêmulas, medo nos olhos.
— Não tem nada a ver com você. E Wu Song sabe disso não é mesmo, Wu? — Eu trouxe você aqui! — insistiu o motorista. — Para fazer uma compra. Assim, vamos acabar logo com isso. Mas, primeiro, amarre os dois guardas. Use as cortinas. Pode rasgá-las. Pak-fei olhou suplicante para o jovem mercador. — Grande Jesus Cristão, faça o que ele manda! — gritou Wu Song. — Ele vai me bater! Pegue as cortinas! Amarre os dois, seu imbecil! Três minutos depois David tinha na mão uma arma de aparência estranha, volumosa, mas não grande. Era uma arma bastante moderna; o cilindro perfurado que era o silenciador se ajustava pneumaticamente, reduzindo a contagem de decibéis de um disparo a um mero estalido alto — mas não mais do que um estalido — sem afetar a precisão a curta distância. Tinha nove balas, os pentes removidos e inseridos na base da coronha em poucos segundos; havia três pentes de reserva, um total de trinta e seis balas, a potência de fogo de uma Magnum.357 numa arma com a metade do tamanho e peso de uma Colt.45. — Extraordinária — murmurou David, olhando para os guardas amarrados e um trêmulo Pakfei. — Quem a projetou? Tanta competência estava lhe voltando. Tanto reconhecimento. De onde? — Como um americano, talvez possa ofendê-lo — respondeu Wu Song. — É um homem de Bristol, Connecticut, que compreendeu que a companhia para a qual trabalha nunca o recompensaria adequadamente por sua invenção. Através de intermediários, procurou o mercado clandestino internacional e vendeu-a pelo lance mais alto. — Seu? — Não faço investimentos, apenas vendo. — É verdade, eu tinha esquecido. Você atende a uma demanda. — Exatamente. — Você paga a quem? — Deposito o dinheiro numa conta numerada em Cingapura. Não sei de nada. E sou protegido, é claro. Tudo está aqui sob consignação. — Entendo. Quanto custa esta arma? — Pode levá-la. É um presente meu. — Você fede. E não aceito presentes de pessoas que cheiram mal. Quanto?
Wu Song engoliu em seco. — O preço na lista é de oitocentos dólares americanos. David enfiou a mão no bolso esquerdo e tirou as notas que guardara ali. Contou oito notas de cem dólares e entregou-as ao negociante de armas. — Pagamento integral — disse ele. — Certo. — Amarre-o — ordenou David, virando-se para o apreensivo Pak-fei. — E não precisa ficar preocupado. Amarre-o logo! — Faça o que ele está mandando, seu idiota! — E depois leve os três para fora. Pelo lado do armazém junto do carro. Tome cuidado para não ser visto pelo guarda no portão. — Depressa! — gritou Song. — Ele está furioso! — Tem toda razão — confirmou David. Quatro minutos depois os dois guardas e Wu Song passaram pela porta externa para o intenso sol da tarde, que se tomava ainda mais forte com os reflexos ondulantes nas águas de Victoria Harbor. Os joelhos e braços estavam amarrados com pano rasgado das cortinas, e por isso os movimentos eram hesitantes e trôpegos. O silêncio era garantido por chumaços de pano enfiados nas bocas dos guardas. Tais precauções não eram necessárias para o jovem mercador; ele estava apavorado. Sozinho na sala, David pôs no chão a pasta recuperada e circulou rapidamente, estudando as armas nos mostruários, até encontrar o que queria. Quebrou o vidro com a coronha de sua arma e estendeu a mão para os artefatos que usaria — armas cobiçadas por terroristas em toda pane — granadas de tempo, cada uma com o impacto de uma bomba de dez. quilos. Como ele sabia? De onde vinha o seu conhecimento? Retirou seis granadas e verificou cada carga da bateria. Como podia fazer isso? Como sabia onde procurar, o que comprimir? Não importava. Ele sabia. Olhou para o relógio. Ligou o mecanismo de tempo de todas e saiu correndo pelos mostruários, quebrando os vidros e largando uma granada em cada um. Só lhe restava uma granada e ainda havia dois mostruários; levantou os olhos para os avisos Proibido Fumar em três línguas e tomou outra decisão. Correu, para a porta almofadada, abriu-a e viu o que esperava encontrar. Jogou lá dentro a última granada. David tornou a conferir o relógio, pegou a pasta e saiu, fazendo questão de parecer no controle absoluto da situação. Aproximou-se do Daimler pelo lado do armazém em que Park-fei parecia estar pedindo desculpas a seus prisioneiros, suando profusamente. O motorista estava sendo alternadamente censurado e consolado por Wu Song, que queria apenas ser poupado de qualquer violência adicional.
— Leve-os para o quebra-mar. — ordenou David, apontando para a muralha de pedra que se erguia por cima das águas do porto. Wu Song fitou-o fixamente e indagou: — Quem é você? O momento chegara. Tinha de ser agora. David tornou a olhar para o relógio, enquanto se aproximava do negociante de armas. Pegou Wu Song pelo cotovelo e empurrou o apavorado chinês pelo lado do prédio, até um ponto em que as palavras baixas não seriam ouvidas pelos outros. — Meu nome é Jason Bourne. — Jason Bour...! O oriental engasgou, reagindo como se um estilete tivesse perfurado sua garganta, os olhos testemunhando o ato final e violento de sua própria morte. — E se tem alguma idéia sobre restaurar um ego ferido pela punição de alguém... como meu motorista, por exemplo... é melhor esquecer. Saberei onde encontrá-lo. — David fez uma pausa, por apenas uma fração de segundo. — É um homem privilegiado, Wu, mas com esse privilégio vem uma responsabilidade. Por determinados motivos, você pode ser interrogado e não espero que minta... de qualquer forma, duvido que seja muito bom em mentir... pode dizer que nos encontramos. Aceito isso. Pode até dizer que o roubei, se quiser. Mas se der uma descrição minha acurada, então é melhor estar no outro lado do mundo... e morto. Seria menos doloroso para você. O graduado de Columbia ficou completamente imóvel, o lábio inferior tremendo, enquanto fitava fixamente o oponente. David sustentou o olhar em silêncio, acenando com a cabeça uma vez. Soltou o braço de Wu Song e voltou para junto de Pak-fei e dos dois guardas amarrados, deixando o mercador em pânico com seus pensamentos desesperados. — Faça o que eu mandei, Pak-fei — disse David, olhando mais uma vez para o relógio. — Leve-os para o quebra-mar e diga para se deitarem. Explique que ficarei cobrindo-os com a arma, até passarmos pelo portão. Creio que o empregador deles vai confirmar que sou um atirador relativamente eficiente. O motorista gritou as ordens em chinês, relutante, fazendo uma mesura para o negociante de armas. Wu Song seguiu na frente dos outros, encaminhando-se desajeitado para o quebra- mar, a cerca de setenta metros de distância. David deu uma olhada no interior do Daimler. — Jogue-me as chaves! — gritou ele para Pak-fei, — E depressa! David pegou as chaves no ar e sentou-se ao volante. Ligou o motor, engrenou o Daimler e acompanhou a estranha procissão pelo asfalto por trás do armazém.
Wu Song e os dois guardas deitaram-se de bruços no chão. David saltou do carro, deixando o motor ligado, correu pela traseira para o outro lado, a arma recentemente comprada na mão, o silenciador fixado. — Entre no carro e vamos embora! —gritou para Pak-fei. — Depressa! O motorista embarcou, aturdido. David disparou três tiros, estalidos que levantaram o asfalto poucos centímetros à frente da cara de cada prisioneiro. Foi o suficiente; todos os três rolaram em pânico para a muralha de pedra. David sentou no banco da frente, ao lado do motorista. — Vamos logo! — disse ele, lançando um último olhar ao relógio, a arma estendida pela janela, apontando na direção geral dos três corpos estendidos no chão. — Agora! O portão foi aberto para o respeitável taipan na respeitável limusine. O Daimler passou em disparada e virou à direita no tráfego em velocidade da estrada de pista dupla que levava a Mongkok. — Diminua a velocidade! — ordenou David. — E pare à beira da estrada, na terra. — Esses motoristas são malucos, senhor. Estão acelerando porque sabem que dentro de poucos minutos mal conseguirão andar. Será difícil voltar à estrada. — Acho que não. E aconteceu. As explosões ocorreram uma após a outra, três, quatro, cinco... seis. O isolado armazém de um andar foi arremessado em fragmentos para o céu, as chamas e a densa fumaça preta preenchendo o ar por cima da terra e do porto, levando automóveis, caminhões e ônibus a pararem na estrada, com rangidos de freios. — O senhor? — gritou Pak-fei, escancarando a boca, os olhos esbugalhados se fixando em David. — Eu estive lá. — Nós estivemos, senhor! Sou um homem morto! Aiya! — Não, Pak-fei, não é. Está devidamente protegido. Aceite a minha palavra. Nunca mais ouvirá falar do Sr. Wu Song. Desconfio que ele vai para o outro lado do mundo, provavelmente para o Irã, a fim de ensinar marketing aos mullahs. Não sei quem mais poderia aceitá-lo. — Mas por quê? E como, senhor? — Ele está liquidado. Negociava com o que se chama “consignação”, o que significa que paga à medida que a mercadoria é vendida. Está me entendendo? — Acho que sim, senhor. — Ele não tem mais mercadoria alguma, só que não foi vendida. Simplesmente desapareceu.
— Como, senhor? — Ele guardava bananas de dinamite e caixas de explosivo plástico na sala dos fundos. Eram coisas primitivas demais para ficar nos mostruários. E também muito volumosas. — E o que aconteceu, senhor? — Eu não devia ter fumado um cigarro... Vamos embora, Pak-fei. Tenho de voltar a Kowloon. Ao entrarem no Tsim Sha Tsui, os movimentos da cabeça a se virar constantemente de Pak-fei se intrometeram nos pensamentos de David. O motorista não parava de observá-lo. — O que é, Pak-fei? — Não tenho certeza, senhor. Estou apavorado, é claro. — Não acreditou no que eu lhe disse... que não tem nada a temer? — Não é isso, senhor. Acho que devo acreditar, pois vi o que fez e vi a cara de Wu Song quando falou com ele. Acho que é por sua causa que estou assustado, mas também penso que pode ser um engano, pois me protegeu. Estava nos olhos de Wu Song. Não sei explicar direito. — Não se preocupe. — David meteu a mão no bolso para pegar dinheiro. —Você é casado, Pakfei? Ou tem uma namorada... ou um namorado? Não faz diferença. — Sou casado, senhor. E com dois filhos crescidos, que têm bons empregos. Eles contribuem. Meu ídolo doméstico está e boa situação. — E agora vai ficar ainda melhor. Vá para casa e pegue sua esposa... os filhos também, se quiser... e saia passeando, Pak-fei. Siga para os Novos Territórios, percorrendo muitos quilômetros. Pare e faça uma boa refeição em Tuen Mun ou Yuen Long. E depois passeie mais um pouco. Deixe que sua família aproveite este excelente automóvel. — Para que, senhor? — Uma xiao xin — explicou Ddvid, com o dinheiro na mão. — O que chamamos em inglês de uma pequena mentira inofensiva, que não prejudica ninguém. Quero que a quilometragem no carro corresponda ao lugar para onde me levou esta tarde... e à noite. — Onde, senhor? — Levou o Sr. Cruett primeiro para Lo Wu e depois passou pela base da serra até Lok Ma Chau. — São os pontos de entrada na República Popular. — Isso mesmo. — David tirou duas notas de cem dólares e depois uma terceira. — Acha que pode se lembrar e calcular a quilometragem certa?
— Claro, senhor. — E acha que pode dizer que saltei do carro em Lok Ma Chau e subi pelas colinas durante cerca de uma hora? — acrescentou David, o dedo numa quarta nota de cem dólares. — Dez horas se quiser, senhor. Não preciso dormir. — Uma hora está ótimo. — David estendeu os quatrocentos dólares diante dos olhos surpresos do motorista. — E saberei se não cumprir o nosso acordo — Não precisa se preocupar, senhor! — Pak-fei, uma das mãos no volante, a outra pegando as notas. — Vou buscar minha esposa, os filhos, os pais dela e também os meus. Este animal que estou conduzindo é bastante grande para doze pessoas. Obrigado, senhor! Muito obrigado! — Deixe-me a cerca de dez ruas da Salisbury Road e saia desta área. Não quero que o carro seja visto em Kowloon. — Não seria possível, senhor. Estaremos em Lo Wu, em Le Ma Chau! — A partir de amanhã de manhã, pode dizer o que quiser. Não estarei mais aqui. Vou embora esta noite. Nunca mais me verá. — Entendo, senhor. — Nosso acordo está fechado, Pak-fei. Os pensamentos de Jason Bourne retornaram a uma estratégia que se tornava mais definida a cada movimento que fazia. E cada movimento o levava para mais perto de Marie. Tudo estava mais frio agora. Havia uma certa liberdade em ser o que não era. Desempenhe o papel que lhe deram... Esteja em toda parte ao mesmo tempo. Aplique toda a pressão neles. Às cinco e dois um Liang visivelmente perturbado transpôs rapidamente as portas de vidro do Regent. Olhou ao redor, bastante nervoso, observando os hóspedes que chegavam e partiam, depois virou à esquerda e desceu apressado para a rampa que levava à rua. David observava-o através da água que esguichava dos chafarizes, no outro lado do pátio. Usando isso como cobertura, David correu pela área movimentada, esquivando-se dos carros; chegou à rampa e desceu atrás de Liang para a Salisbury Road. Ele parou no meio do caminho para a rua e virou-se, inclinando o corpo e o rosto para a esquerda. O chinês estacara abruptamente, o corpo inclinado para a frente, como uma pessoa ansiosa e com pressa faz quando se lembra de repente de alguma coisa ou muda de idéia. Só podia ser a segunda alternativa, pensou David, enquanto virava a cabeça cautelosamente e observava Liang atravessar apressado a entrada de carros e se encaminhar para o apinhado New World Shopping Centre. David sabia que o perderia no meio da multidão se não se apressasse; por isso, levantou as mãos,
interrompendo o tráfego, e desceu correndo a rampa, em diagonal, em meio às buzinas estridentes e gritos furiosos dos motoristas. Chegou ao passeio do centro comercial, suando, ansioso. Não podia ver Liang! O mar de rostos orientais tornou-se um borrão, parecendo iguais, mas ao mesmo tempo diferentes. Onde estava ele? David correu para a frente, murmurando desculpas à medida que esbarrava em corpos e rostos aturdidos... e lá estava ele! Tinha certeza de que era Liang... mas não muita certezas não realmente. Vira um vulto de terno escuro virar na entrada do caminho para o porto, uma longa extensão de concreto por cima da água, em que as pessoas pescavam, passeavam ou realizavam os seus exercícios de tai chi pela manhã. Contudo, ele vira apenas as costas de um homem; se não fosse Liang, ele deixaria a rua e o perderia por completo. Instinto. Não o seu; mas o de Bourne... os olhos de Jason Bourne. David desatou a correr, encaminhando-se para a entrada em arcada do passeio. O horizonte de edifícios de Hong Kong faiscava ao sol, a distância, o movimento no porto era intenso, com o final dos trabalhos do dia nas águas. Diminuiu a velocidade ao passar pela arcada; não havia outro caminho para voltar à Salisbury Road. O passeio era um beco sem saída que avançava pelo cais, o que acarretava uma pergunta, além de proporcionar uma resposta a outra. Por que Liang — se é que era mesmo Liang — se metera num beco sem saída? O que o atraía? Um contato, um ponto de correspondência, uma transmissão? O que quer que fosse, significava que o chinês não considerara a possibilidade de estar sendo seguido; essa era a resposta imediata de que David precisava. Dizia-lhe o que precisava saber. Sua presa estava em pânico; o inesperado só podia levá-lo a um pânico ainda maior. Os olhos de Jason Bourne não mentiram. Era mesmo Liang, mas a primeira pergunta permaneceu sem resposta, aumentada até pelo que David viu. Entre os milhares e milhares de telefones públicos em Kowloon — em arcadas apinhadas e em recessos escuros de saguões discretos —, Liang escolhera um telefone na parede interna do passeio. Era exposto, aberto, no meio de um caminho largo, que era um beco sem saída. Não fazia sentido; até o amador mais insignificante possuía os instintos protetores básicos. Quando em pânico, procurava cobertura. Liang enfiou a mão no bolso para pegar moedas. Subitamente, como se ordenado por uma voz interior, David compreendeu que não podia permitir que a ligação se efetuasse. Quando fosse feita, ele é que tinha de fazê-la. Era parte de sua estratégia, uma parte que o levaria para mais perto de Marie! O controle devia estar em suas mãos, não com os outros! Começou a correr, seguindo direto para a proteção de plástico branco do telefone público, querendo gritar, mas sabendo que precisava chegar mais perto para ser ouvido acima do barulho no cais. O chinês acabara de discar; em algum lugar, um telefone estava tocando. — Liang! — berrou David. — Largue esse telefone! Se quer viver, desligue e saia daí! O chinês virou-se, o rosto uma máscara rígida de terror. — Você! — gritou ele histericamente, comprimindo as costas contra o plástico branco. — Não... não! Não agora! Não aqui! Os estampidos soaram de repente, rajadas que se acrescentaram aos sons incontáveis do porto. O pandemônio dominou o passeio, enquanto as pessoas gritavam, jogando-se no chão ou correndo em
todas as direções, para longe do terror da morte instantânea.
Capítulo 10 — Aiya! — berrou Liang, mergulhando para o lado do telefone, enquanto as balas iam se cravar na parede do passeio e passavam zunindo por cima. David avançou para o chinês, rastejando, enquanto tirava a faca da bainha. — Não! —. gritou Liang, enquanto David, deitado de lado, agarrava-o pela frente da camisa e empurrava a lâmina para seu queixo, rompendo a pele, tirando sangue. — Não faça isso! Aiii! O grito histérico se perdeu no pandemônio no caminho. — Dê-me o número! Agora! — Não faça isso comigo! Juro que não sabia que era uma armadilha! — Não é uma armadilha para mim, Liang — murmurou David, ofegante, o suor escorrendo pelo rosto. — É para você! — Para mim? Você está louco! Por que logo eu? — Porque eles já sabem que estou aqui, e você me viu, falou comigo. Deu seu telefonema, e eles não podem permitir que continue vivo. — Mas por quê? — Recebeu o número de um telefone. Fez o seu trabalho e eles não podem deixar pistas. — Isso não explica nada! — Talvez meu nome explique. Eu me chamo Jason Bourne. — Oh, Deus! — balbuciou Liang, o rosto pálido, os lábios entreabertos, fitando David. — Você é uma pista, Liang. E por isso se tornou um homem morto. — Não! Não! — O chinês sacudiu a cabeça. — Não pode ser! Não conheço ninguém, só sei o telefone! É uma sala vazia no New World Centre, um telefone instalado em caráter temporário. Por favor! O número é três-quatro-quatro-zero-um. Não me mate, Sr. Bourne! Pelo amor de nosso Deus Cristão, não me mate! — Se eu pensasse que a armadilha era para mim, já haveria sangue por toda a sua garganta, não no queixo... Três-quatro-quatro-zero-um? — Isso mesmo! O tiroteio cessou da mesma forma súbita e inesperada como começara.
— O New World Centre fica ao lado, não é mesmo? Uma daquelas janelas lá em cima. — Isso mesmo! — Liang estremeceu, incapaz de desviar os olhos do rosto de David. Fechou-os com toda força, as lágrimas escorrendo por baixo das pálpebras, enquanto sacudia a cabeça vigorosamente. — Nunca vi você! Juro pela cruz do santo Jesus! — Às vezes eu me pergunto se estou em Hong Kong ou no Vaticano. David levantou a cabeça e olhou ao redor. Ao longo de todo o passeio, pessoas apavoradas começavam a se levantar, hesitantes. Mães agarravam filhos, homens seguravam mulheres, homens, mulheres e crianças ficavam de joelhos, depois de pé;. e subitamente houve uma debandada em massa para a arcada que levava à Salisbury Road. — Recebeu ordem para dar o telefonema daqui, não é mesmo? — indagou David rapidamente, tomando a se concentrar no assustado gerente-assistente. — Isso mesmo, senhor. — Por quê? Eles explicaram o motivo? — Explicaram, senhor. — Pelo amor de Deus, abra os olhos! — Está bem, senhor. — Liang obedeceu, desviando os olhos enquanto continuava a falar: — Disseram que não confiavam no hóspede que pedisse a suíte seis-nove-zero. Era um homem que poderia obrigar outro a dizer mentiras. Por isso, queriam me observar quando eu lhes falasse... Sr. Bourne... não, eu não disse isso! Sr. Cruett... passei o dia inteiro tentando lhe falar, Sr. Cruett! Queria que soubesse que eu estava sendo insistentemente pressionado, Sr. Cruett. Eles não paravam de me telefonar. Queriam saber quando eu os chamaria... daqui. E eu dizia que o senhor ainda não havia chegado. O que mais podia fazer? Ao tentar localizá-lo constantemente, eu estava querendo avisá-lo. Não é óbvio, senhor? — O óbvio é que você não passa de um imbecil. — Não estou preparado para esse tipo de trabalho. — E por que aceitou? — Dinheiro, senhor. Eu estava com Chiang, com o Kuomintang. Tenho esposa e cinco filhos... dois filhos e três filhas. Tinha de escapar. Eles verificam os antecedentes e nos dão rótulos incontestáveis, sem apelação. Sou um homem culto, senhor. Universidade de Fudan, o segundo da minha turma... possuía meu próprio hotel em Xangai. Mas tudo isso não tem a menor importância agora. Quando Pequim assumir o controle, serei um homem morto, toda a minha família vai morrer. E agora vem me dizer que já posso me considerar um homem morto. O que vou fazer? — Pequim... não vai tocar na colônia, não vai mudar coisa alguma — comentou David,
lembrando os comentários de Marie naquela noite terrível, depois que McAllister fora embora. — A menos que os fanáticos tomem o poder. — Todos eles são loucos, senhor. Não acredite em qualquer outra coisa. Não conhece direito aquela gente. — Talvez não. Mas conheço alguns de vocês. E, para ser franco, prefiro não conhecê-los. — “Aquele que está sem pecado que atire a primeira pe dra”, senhor. — Pedras, mas não as bolsas de prata da corrupção de Chiang, não é mesmo? — Como, senhor? — Quais são os nomes de suas três filhas? Responda depressa! — São... são.. Wang... Wang Sim... — Esqueça! — David olhou para a arcada. — Ni bushi ren! Você não é um homem, é um porco! Passe bem, Liang do Kuomintang. Passe bem enquanto eles permitirem. Se quer saber, não estou absolutamente interessado no que possa acontecer com você. David levantou-se, pronto para se jogar outra vez no chão, ao primeiro clarão irregular em uma janela lá em cima, à esquerda. Os olhos de Jason Bourne eram bastante acurados; não havia nada. David juntou-se à multidão que corria para a arcada e saiu para a Salisbury Road. Ele fez a ligação de uma arcada congestionada e barulhenta ao lado da Nathan Road. Comprimiu o indicador no ouvido direito para escutar melhor. — Wei? — disse uma voz de homem. — Aqui é Bourne e falarei inglês. Onde está minha esposa? — Wode tian ah! Dizem que fala nossa língua em numerosos dialetos. — Já faz muito tempo e quero deixar tudo bem claro. Perguntei por minha esposa. — Liang deu este número? — Ele não tinha alternativa. — E também está morto. — Não me importo com o que faça, mas se estivesse no seu lugar pensaria muito antes de matálo. — Por quê? Ele é inferior a um verme.
— Porque escolheu um idiota... pior do que isso, um idiota histérico. Ele falou com pessoas demais. Uma telefonista me informou que ele ligava para mim a intervalos de poucos minutos... — Ligava para você? — Cheguei esta manhã. Onde está minha esposa? — Liang, o mentiroso! — Não esperava que eu ficasse naquela suíte, não é mesmo? Mandei que ele me arrumasse outro quarto. Fomos vistos conversando... discutindo... na presença de meia dúzia de empregados do hotel. A polícia vai procurar por um americano rico que desapareceu. — A calça de Liang está suja — disse o chin — Talvez seja o suficiente. — É suficiente. E agora vamos falar sobre o paradeiro de minha esposa. — Já ouvi. Não sou privilegiado com essa informação. — Pois então chame alguém que saiba de tudo. Agora! — Vai se encontrar com outros que sabem mais. — Quando? — Entraremos em contato com você. Em que quarto está? — Eu ligo para você. Tem quinze minutos. — Está me dando ordens? — Sei onde você se encontra, em que janela, em que sala... é muito relaxado com o seu rifle. Deveria ter protegido o cano. A luz do sol reflete no metal, o que é básico. Em trinta segundos estarei a trinta metros de sua porta, mas você não sabe onde estou e não pode deixar esse telefone. — Não acredito em você! — Então experimente. Não está me observando agora, mas eu estou observando você. Tem quinze minutos, e quando tornar a ligar, quero falar com minha esposa. — Ela não está aqui! — Se eu achasse que estava, você já seria um homem morto, a cabeça separada do corpo por uma faca e jogada pela janela, para se juntar ao resto do lixo no porto. Se pensa que estou exagerando, verifique por aí. Pergunte às pessoas que já lidaram comigo. Pergunte ao seu taipan, o Yao Ming que não existe. — Não posso fazer sua esposa aparecer de repente, Jason Bourne! — gritou o assustado
capanga. — Descubra o telefone em que poderei falar com ela. Ou ouço a voz de minha esposa... falando comigo... ou não tem mais nada. Exceto o seu cadáver sem cabeça e um lenço preto no pescoço sangrando. Quinze minutos! David desligou e limpou o suor do rosto. Conseguira. A mente e as palavras eram de Jason Bourne... voltara a um tempo apenas vagamente lembrado e instintivamente sabia o que fazer, o que dizer, o que ameaçar. Havia uma lição em algum ponto. A aparência era muito mais importante do que a realidade. Ou havia uma realidade em seu íntimo, clamando para sair, querendo o controle, dizendo a David Webb para confiar no homem dentro dele? David deixou a arcada opressivamente apinhada e virou à direita na calçada também abarrotada. A Milha Dourada do Tsim Sha Tsui estava se preparando para os jogos noturnos, e o mesmo acontecia com ele. Podia voltar ao hotel agora; o gerente-assistente estaria a quilômetros de distância, presumivelmente comprando uma passagem de avião para Formosa, se havia algum fundo de verdade em todas as suas declarações histéricas. David usaria o elevador de serviço para chegar a seu quarto, pois sempre havia a possibilidade de outros o aguardarem no saguão, embora duvidasse. O estande de tiro numa sala vazia no New World Centre não era um posto de comando e o atirador não era um comandante, mas apenas um retransmissor, agora apavorado, temendo por sua vida. A cada passo pela Nathan Road, a respiração de David se tornava mais esbaforida, o peito batia mais forte. Dentro de doze minutos ouviria a voz de Marie. Oh, Deus, como queria ouvi-la! Tinha de ouvir! Era a única coisa que o manteria são, a única coisa que importava. — Seus quinze minutos se esgotaram — disse David, sentado na beira da cama, tentando controlar o coração disparado, especulando se o eco rápido poderia ser ouvido pelo telefone como o escutava, torcendo para que não provocasse qualquer tremor em sua voz. — Ligue para cinco-dois-seis-cinco-três. — Cinco? — David reconheceu a estação. — Ela está em Hong Kong, não em Kowloon. — Ela será transferida imediatamente. — Tornarei a ligar para você depois de falar com ela. — Não há necessidade, Jason Bourne. Homens que sabem de tudo estarão lá e vão falar com você. Minha parte está encerrada e você nunca me viu. — Nem preciso ver. Uma fotografia será tirada quando sair dessa sala, mas não saberá de onde nem por quem. Provavelmente vai avistar uma porção de pessoas... no corredor, elevador ou saguão... mas não saberá qual tem uma câmara cuja lente parece um botão no paletó ou um emblema na bolsa. Passe bem, assecla. Tenha bons pensamentos. David apertou a lingüeta do aparelho, cortando a ligação; esperou três segundos, soltou-a, ouviu o som de ligar, comprimiu os botões. Podia escutar a campainha. Oh, Deus, não conseguia mais
suportar! — Wei? — Aqui é Bourne. Ponha minha esposa na linha. — Como queira. — David? — Você está bem? — gritou David, à beira da histeria. — Apenas cansada, meu querido, .mas isso é tudo. E vocêestá bem? — Eles machucaram você... tocaram em você? — Não, David. Têm sido muito gentis, para dizer a verdade. Mas você sabe como fico cansada às vezes. Lembra daquela semana em Zurique, quando você queria visitar o Fraumünster e os museus, sair para velejar no Limmat e eu disse que não agüentaria? Não houvera nenhuma semana em Zurique. Apenas o pesadelo de uma única noite, quando os dois quase perderam a vida. Ele enfrentando seus executores em potencial na Steppdeckstrasse, ela quase estuprada, condenada à morte na deserta margem do rio, no Guisan Quai. O que Marie estava tentando lhe dizer? — Claro que lembro. — Então não deve se preocupar comigo, querido. Graças a Deus que você está aqui! Eles me prometeram que estaremos juntos em breve. Será como Paris, David. Lembra de Paris, quando eu pensava que perderia você? Mas você veio ao meu encontro e ambos sabíamos para onde ir. Aquela rua adorável, com as árvores de um verde escuro e... — Já chega, Sra. Webb — interveio uma voz de homem, fazendo uma breve pausa e logo acrescentando, diretamente no fone: — Ou devo dizer Sra. Bourne? — Pense, David, e tome cuidado! — gritou Marie, ao fundo. — E não se preocupe, querido! Aquela rua adorável, com as árvores verdes, minha árvore predileta... — Ting zhi! — gritou o homem, dando uma ordem em chinês. — Levem-na daqui! Ela está dando informações! Depressa! Não a deixem falar! — Faça mal a ela de qualquer forma e vai se arrepender pelo resto de sua curta vida — disse David, a voz gelada. — Juro por Cristo que o encontrarei. — Não há motivo para ser desagradável até agora — respondeu o homem, falando devagar, o tom sincero. — Ouviu sua esposa. Ela tem sido bem tratada. Não tem queixas.
— Alguma coisa está errada com ela! O que vocês fizeram que ela não pode me dizer? — É apenas a tensão, Sr. Bourne. E ela estava lhe dizendo alguma coisa, não pode haver qualquer dúvida, em sua ansiedade, tentando descrever este local... de maneira errada, devo acrescentar... mas mesmo que a informação fosse acurada, seria tão inútil para você quanto o número do telefone. Ela está a caminho de outro apartamento, um dos milhões que existem em Hong Kong. Por que haveríamos de lhe fazer algum mal? Seria contraproducente. Um grande taipan quer conhecer você. — Yao Ming? — Como você, ele usa vários nomes. Talvez possam chegar a um acordo. — Ou chegamos ou ele está morto. E você também. — Acredito no que diz, Jason Bourne. Matou um parente meu que estava além do seu alcance, em sua própria ilha-fortaleza, em Lantau. Tenho certeza de que se lembra. — Não mantenho registros. Yao Ming. Quando? — Esta noite. — Onde? — Deve compreender que ele é um homem bastante conhecido e por isso o encontro deve ser num lugar insólito. — Posso escolher? — Isso é inaceitável. Não insista. Lembre-se que estamos com sua esposa. David ficou tenso; estava perdendo o controle de que precisava desesperadamente. — Diga onde. — A Cidade Murada. Presumimos que a conhece. — Já ouvi falar a respeito. — David tentou focalizar a memória que lhe restava. — O mais repulsivo cortiço da face da terra, se bem me lembro. — O que mais poderia ser? É a única possessão legal da República Popular em toda a colônia. Até mesmo o abominável Mao Tsé-tung deu permissão para que nossa polícia fizesse uma limpeza. Mas os servidores públicos não são tão bem pagos como deveriam. Por isso, o lugar continua essencialmente o mesmo. — A que horas? — Depois do escurecer, mas antes de o bazar fechar. Entre nove e meia e quinze para as dez,
pontualmente. — Corno vou encontrar esse Yao Ming... que não é Yao Ming? — Há uma mulher no primeiro quarteirão do mercado que vende entranhas de cobra como afrodisíaco, especialmente de naja. Procure-a e pergunte onde existe uma bem grande. Ela dirá quais os degraus que deve usar, que viela seguir. E haverá alguém à sua espera. — Talvez eu nunca consiga chegar lá. A cor da minha pele não é bem-vinda no lugar. — Ninguém lhe fará mal. Mas sugiro que não use roupas vistosas nem jóias caras. — Jóias? — Se tiver um relógio de alto preço, não o use. Eles cortariam seu braço por um relógio. Medusa. Que assim fosse. — Obrigado pelo aviso, — Só mais uma coisa. Não pense em alertar as autoridades ou seu consulado numa tentativa imprudente de comprometer o taipan. Se o fizer, sua esposa morrerá. — Isso não era necessário. — Com Jason Bourne, tudo é necessário. Será devidamente vigiado — De nove e meia às nove e quarenta e cinco. David desligou e levantou-se da cama. Foi até a janela e olhou para o porto. O que era? O que Marie estava tentando lhe dizer? ...você sabe como fico cansada às vezes. Não, ele não sabia. Marie era uma mulher forte, criada num rancho de Ontario, jamais se queixava de cansaço. ... não deve se preocupar comigo, querido. Uma súplica tola e ela devia saber disso. Marie não desperdiçava momentos preciosos com tolices. A menos... ela estaria divagando de maneira incoerente? Será como Paris, David... ambos sabíamos para onde ir... aquela rua adorável, com as árvores de um verde-escuro... Não, ela não estava divagando, apenas dava essa impressão; havia uma mensagem. Mas qual? Qual era a rua adorável, com “árvores de um verde-escuro”? Nada lhe ocorria, e isso o estava levando à loucura. Falhava a Marie. Ela enviava um sinal e ele não conseguia entender.
Pense, David, e tome cuidado!... não se preocupe, querido! Aquela rua adorável, com as árvores verdes, minha árvore predileta... Que rua adorável? Que árvores verdes, que árvore predileta? Nada fazia sentido... mas devia fazer! Ele deveria ser capaz de reagir, não ficar olhando por uma janela, a memória vazia. Socorro! Socorro!, ele gritou silenciosamente para ninguém. Uma voz interior lhe disse para não se fixar no que não podia compreender. Havia coisas por fazer; não podia seguir voluntariamente para um encontro no campo escolhido pelo inimigo sem algum conhecimento prévio, sem algumas cartas para usar como trunfos... Sugiro que não use roupas vistosas... Não seriam vistosas de qualquer forma, pensou David, mas agora seria justamente algo oposto... e inesperado. Durante os meses em que se livrara das camadas de Jason Bourne, um tema se repetira incessantemente. Mudança, mu dança, mudança. Bourne era um mestre da mudança; chamavam-no “o camaleão”, um homem que podia se fundir com qualquer ambiente, na maior facilidade. Não como algo grotesco, uma caricatura de peruca e nariz de cera, mas como alguém que podia adaptar os elementos essenciais da aparência ao ambiente imediato, de tal forma que as pessoas que haviam encontrado o “assassino” — raramente, no entanto, em plena luz ou parado bem perto — ofereciam as descrições mais variadas do homem caçado por toda Ásia e Europa. Os detalhes estavam sempre em conflito: os cabelos eram escuros ou claros; os olhos castanhos, azuis ou manchados; a pele pálida, bronzeada ou inchada; as roupas bem feitas e discretas, se o encontro ocorria num café elegante e pouco iluminado, ou amarrotadas e ordinárias, se a confrontação era no cais ou nas profundezas inferiores de uma cidade. Mudança. Sem esforço com um mínimo de artifícios. David Webb confiaria no camaleão que tinha dentro de si. Queda livre. Vá para onde Jason Bourne determinar. Depois de saltar do Daimler, ele fora para o Península Hotel e alugara um quarto, depositando a pasta com o dinheiro no cofre do hotel. Tivera a presença de espírito de se registrar sob o nome no terceiro passaporte falso de Cactus. Se houvesse homens á sua procura, usariam o nome, que ele registrara no Regent; era tudo o que tinham. Atravessando a Salisbury Road, usou o elevador de serviço, seguiu apressado para o seu quarto e pôs as poucas roupas de que precisava em sua bolsa de vôo. Mas não cancelou a hospedagem no Regent. Se homens saíssem à sua procura, queria que vigiassem onde não estava. Depois de instalado no Peninsula, tinha tempo para comer alguma coisa e excursionar por várias lojas, até o anoitecer. Quando chegasse o momento, estaria na Cidade Murada... antes das nove e meia. Jason Bourne estava dando as ordens e David Webb tinha de obedecer. A Cidade Murada de Kowloon não tinha qualquer muralha visível ao redor, mas é tão nitidamente definida que parece haver uma, feita com o aço mais duro. É sentida instantaneamente no congestionado mercado que se estende pela rua, na frente de prédios escuros e desmantelados, autênticas choças empilhadas umas por cima das outras, dando a impressão de que a qualquer momento todo o complexo em ruínas pode desabar, deixando apenas escombros, onde antes havia escombros armados. Mas há uma força enganadora, que se encontra ao descer um pequeno lance de degraus para o interior do cortiço interminável. Abaixo do nível da rua, há vielas calçadas com pedras, que na maioria
dos casos são túneis que passam sob as frágeis estruturas. Em corredores imundos, mendigos aleijados competem com prostitutas seminuas e traficantes de tóxicos, à luz fantasmagórica de lâmpadas expostas, pendentes de fios que correm pelas paredes de pedra. Uma umidade pútrida impregna tudo; só há decadência e podridão, mas a força do tempo endureceu essa decomposição, petrificando-a. Dentro das vielas repulsivas, sem qualquer ordem ou equilíbrio, há escadas estreitas e maliluminadas, que levam a uma sucessão vertical de apartamentos miseráveis, a média se elevando a três andares, sendo que dois acima da superfície. No interior dos cômodos pequenos e dilapidados, vende-se a mais ampla variedade de narcóticos e sexo. Tudo se encontra além do alcance da polícia — um acerto tácito de todas as partes — pois poucas autoridades da colônia se arriscam a penetrar pelas entranhas da Cidade Murada. É o seu próprio inferno auto-suficiente. Que assim fosse. Lá fora, no mercado que ocupa a rua coalhada de lixo, onde nenhum tráfego é permitido, mesas imundas, em que se empilham mercadorias refugadas e/ou roubadas, ficam espremidas entre barracas cobertas de fuligem, nas quais bolsões de vapor se elevam de enormes caldeirões de óleo fervendo, em que pedaços suspeitos de carne, aves e cobras são continuamente mergulhados, depois removidos e largados sobre folhas de jornal, para venda imediata. As multidões se deslocam sob a luz fraca dos lampiões de um vendedor para outro, barganhando em vozes estridentes, gritando sem parar, comprando e vendendo. Há também os mascates de meio-fio, homens e mulheres em andrajos, sem barracas ou mesas, as mercadorias espalhadas na calçada. Ficam acocorados por trás de quinquilharias e jóias de fantasia, a maior parte roubada das docas, de gaiolas com besouros rastejando e passarinhos esvoaçando. Perto da entrada do estranho e fétido bazar sentava uma mulher solitária e musculosa, num banquinho de madeira, as pernas grossas entreabertas, esfolando cobras e removendo-lhes as entranhas, os olhos escuros aparentemente obcecados pela serpente se contorcendo em suas mãos. Nos dois lados havia sacos de aniagem em movimento, de vez em quando se convulsionando, quando os répteis condenados se atacavam uns aos outros, numa fúria sibilante, enlouquecidos pelo cativeiro. Sob o pé direito descalço da mulher havia uma enorme naja, o corpo preto imóvel e ereto, os olhos pequenos firmes, hipnotizados pela multidão em movimento constante. A imundície do mercado era uma barricada apropriada à Cidade Murada sem mura lha que ficava além. Virando a esquina no lado oposto do comprido bazar, um vulto desgrenhado entrou na multidão em movimento. O homem vestia um terno marrom ordinário e folgado, a calça enorme, o paletó muito grande, mas apertado nos ombros encurvados. Um chapéu de aba larga, preto e inconfundivelmente oriental, projetava uma sombra permanente em seu rosto. O andar era lento, como convinha a um homem parando na frente de várias barracas e mesas, examinando as mercadorias; mas apenas uma vez ele estendeu a mão hesitante para o bolso, a fim de efetuar uma única compra. O corpo todo parecia vergado, como um homem que passara anos empenhado em trabalho duro nos campos ou nas docas, a dieta nunca suficiente para sustentar um organismo de que tanto se exigia. Havia ainda uma certa tristeza nesse homem, um senso de inutilidade derivado de muito pouco, muito tarde e muito dispendioso, para a mente e o corpo. Era o reconhecimento da impotência, de orgulho abandonado, pois não havia nada de que se orgulhar; o preço da sobrevivência fora demais. E esse homem, esse vulto encurvado que, hesitante, comprou um cone de jornal com um suspeito peixe frito, não era diferente de muitos outros que circulavam pelo mercado... na verdade, podia-se até dizer que ele não se diferenciava em nada dos demais. Aproximou-se da mulher musculosa que estava arrancando as entranhas de uma
cobra ainda a estrebuchar. — Onde está a maior? — perguntou Jason Bourne, em chinês, os olhos fixados na naja imóvel, a gordura escorrendo do jornal sobre a mão esquerda. — Chegou cedo — respondeu a mulher, sem qualquer expressão definida. — Está escuro, mas veio antes da hora. — Fui chamado às pressas. Questiona as instruções do taipan? — Ele é um miserável ordinário para um taipan — exclamou a mulher, num cantonês gutural. — Que me importa? Desça os degraus por trás de mim e pegue a primeira viela à esquerda. Uma puta estará esperando quinze ou vinte metros adiante. Ela espera pelo homem branco para levá-lo ao taipan... Você é o homem branco? Não posso dizer com esta luz e seu chinês é bom... mas não parece um homem branco, não usa roupas de homem branco. — Se estivesse no meu lugar, faria questão de parecer um homem branco, vestir como um homem branco, se alguém mandasse que viesse até aqui? — Eu faria questão como mil demônios de mostrar que era de Qing Gaoyan! — respondeu a mulher, rindo e mostrando os dentes podres. — Especialmente se você leva dinheiro. Está com dinheiro... nosso Zhongguo ren? — Você me lisonjeia, mas não estou. — Você mente. Os brancos mentem com palavras celestiais sobre dinheiro. — Está bem, minto. Espero que sua cobra não me ataque por isso. — Seu tolo! Ele é velho, não tem mais presas, não tem veneno. Mas é a imagem celestial do órgão de um homem. E me traz dinheiro. Você vai me dar dinheiro? — Por um serviço, posso dar. — Aiya! Você quer este velho corpo, deve ter um machado na calça. Corte a puta, não a mim! — Não um machado, apenas palavras — disse Bourne, enfiando a mão direita no bolso da calça. Ele retirou uma nota de cem dólares americanos e aproximou-a do rosto da vendedora de entranhas de serpentes, mantendo-a fora da vista dos outros mascates. — Aiya... aiya! — murmurou a mulher, enquanto Jason afastava a nota de seus dedos ávidos. A cobra morta caiu entre as pernas da mulher. — O serviço — repetiu Bourne. — Como pensou que eu era um dos seus, espero que outros pensem da mesma forma. Tudo o que quero que você faça é dizer a quem perguntar que o homem branco nunca apareceu. Está certo?
— Está! Dê-me o dinheiro! — O serviço? — Você comprou cobras! Cobras! O que sei de um homem branco? Ele nunca apareceu! Tome aqui! Leve sua cobra! Faça amor! A mulher pegou a nota, recolheu as entranhas com a mão e meteu numa bolsa de plástico, em que havia um logotipo. Dizia Christian Dior. Permanecendo encurvado, Bourne fez duas mesuras rápidas e afastou-se da multidão. Foi largar as entranhas da cobra na sarjeta, bastante longe de qualquer lampião para não ser notado. Segurando o cone pingando com o peixe fedorento, ele fingia repetidamente comer, enquanto descia lentamente os degraus e entrava nas profundezas fervilhantes da Cidade Murada. Olhou para o relógio, deixando cair o peixe. Eram nove e quinze; as patrulhas do taipan estariam assumindo as posições. Precisava conhecer a extensão da segurança do banqueiro. Queria que fosse verdade a mentira que dissera ao atirador numa sala vazia por cima do passeio do porto. Em vez de ser vigiado, queria vigiar. Memorizaria cada rosto, cada função na estrutura de comando, a rapidez com que cada guarda tomava uma decisão sob pressão, o equipamento de comunicações; acima de tudo, queria descobrir onde havia fraquezas na segurança do taipan. David compreendia que Jason Bourne estava assumindo o controle; havia um objetivo no que ele estava fazendo. O bilhete do banqueiro começara com as palavras Uma esposa por uma esposa... Só era necessário trocar uma palavra. Um taipan por uma esposa. Bourne entrou na viela à esquerda e percorreu várias dezenas de metros, passando por cenas que ignorou escrupulosa- mente; um residente da Cidade Murada se comportaria assim. Numa escada escura, uma mulher de joelhos realizava o ato pelo qual estava sendo paga, o homem de pé, com o dinheiro na mão, por cima da sua cabeça; um jovem casal, dois viciados óbvios quase em frenesi, suplicavam a um homem num dispendioso blusão preto de couro; um garotinho, fumando um cigarro de maconha, urinava contra a parede de pedra; um mendigo sem pernas passava ruidosamente em sua prancha com rodas pelas pedras do calçamento, entoando “Bong ngo, bong ngo!”, uma súplica por esmolas; em outra escada mal-iluminada um cafetão bem-vestido ameaçava uma de suas prostitutas com o desfiguramento facial se ela não produzisse mais dinheiro. David Webb refletiu que não estava na Disneylândia. Jason Bourne estudava a viela como se fosse uma zona de combate por trás das linhas inimigas. Eram nove e vinte e quatro. Os soldados deviam estar se colocando em seus postos. O homem externo e o homem interno viraram e começaram a voltar. A prostituta do banqueiro estava assumindo sua posição, a blusa vermelha desabotoada, mal cobrindo os seios pequenos; a abertura tradicional na saia preta subia até a coxa. Era uma caricatura. O “homem branco” não devia cometer qualquer erro. Ponto um: Acentuar o óbvio. Uma coisa a lembrar; a sutileza não era tão importante. Vários metros atrás da mulher, um homem falava por um rádio portátil; ele alcançou a mulher, sacudiu a cabeça e se afastou apressado para a extremidade da viela, onde ficavam os degraus. Bourne parou, a postura arriada, virou-se para a parede. Passos soaram atrás dele, apressados, determinados, o ritmo se acelerando. Um segundo chinês aproximou-se e passou, um
homenzinho de meia-idade, num terno escuro, gravata, sapatos tão engraxados que brilhavam. Não era um cidadão da Cidade Murada; sua expressão era uma mistura de apreensão e repulsa. Tinha a aparência e o comportamento de um executivo que recebia a ordem de cumprir deveres que considerava desagradáveis. Um homem da companhia, meticuloso, submisso, preocupado com o resultado final, pois as cifras não mentiam. Um banqueiro? Jason estudou a fileira irregular de escadas; o homem saíra de uma delas. O som dos passos fora abrupto e recente; a julgar pelo ritmo, não haviam começado a mais de sessenta ou setenta metros de distância. A terceira escada à esquerda ou a quarta à direita. Em um dos apartamentos por cima de uma das duas escadas havia um taipan que esperava por sua visita. Bourne precisava descobrir qual e em que nível. O taipan tinha de ficar surpreso, até mesmo chocado. Tinha de compreender com quem estava lidando e o que suas ações lhe custariam. Jason recomeçou a andar, agora assumindo a postura de um bêbado; as palavras de uma antiga canção mandarim lhe ocorreram. “Me li hua cherng zhang liu yue”, entoou ele, baixinho, balançando e batendo de leve na parede, enquanto se aproximava da prostituta. — Tenho dinheiro — disse ele jovialmente, as palavras num chinês impreciso. — E você, linda mulher, tem o que preciso. Para onde vamos? — Para lugar nenhum, bêbado maluco. Fique longe de mim. — Bong ngo! Cheng bong ngo! — berrou o mendigo sem pernas, avançando ruídosamente pela viela. — Cheng gong ngo! — Jau! — gritou a mulher. — Saia daqui antes que eu chute seu corpo inútil para fora da prancha, Loo Mi! Já disse para você não interferir com os negócios! — Esse bêbado ordinário é negócio? Posso lhe arrumar alguém melhor! — Ele não é meu negócio, querido. É uma irritação. Estou esperando por alguém. — Então vou cortar os pés dele! — gritou a figura grotesca, tirando um cutelo da prancha. — Mas que diabo está fazendo? — rugiu Bourne, em inglês, metendo o pé no peito do mendigo e empurrando o homem-tronco e sua prancha para a parede oposta. — Há leis aqui! — berrou o mendigo, a voz estridente. Atacou um aleijado! Está roubando um aleijado! — Pode me processar — disse Jason, virando-se para a mulher, enquanto o mendigo se afastava. — Você... fala inglês. A prostituta estava aturdida. — E você também.
— Fala chinês, mas não é chinês. — Em espírito, talvez. Estava à sua procura. — Você é o homem? — Sou. — Vou levar você ao taipan. — Não. Basta que me diga qual é a escada e o andar. — Não são essas as minhas instruções. — São as instruções novas, dadas pelo taipan. Duvida de suas novas instruções? — Devem ser transmitidas.pelo homem que é o chefe dos outros. — O pequeno Zhongguo ren, de terno escuro? — Ele diz tudo para a gente. E paga pelo taipan. — A quem ele paga? — Pergunte a ele pessoalmente. — O taipan quer saber. — Bourne enfiou a mão no bolso e tirou um maço de notas dobradas. — Ele me disse para dar dinheiro extra a você, se cooperar comigo. Acha que seu chefe pode estar enganando-o. A mulher recuou para a parede, olhando alternadamente para o dinheiro e para o rosto de Bourne. — Se estiver mentindo... — Por que eu mentiria? O taipan quer falar comigo e você sabe disso. Deve me levar até ele. Foi o taipan quem me disse para me vestir assim, me comportar assim, encontrar você e vigiar seus homens. Como eu saberia de você se ele não tivesse me contado? — Lá em cima no mercado. Devia falar com alguém antes de vir para cá. — Não estive lá. Desci direto. — Jason removeu várias notas. — Nós dois estamos trabalhando para o taipan. Tome aqui. Ele quer que você pegue isto e vá embora. Mas não deve subir para a rua. Ele estendeu o dinheiro. — O taipan é generoso — disse a prostituta, estendendo a mão para o dinheiro.
— Qual é a escada? —indagou Bourne, puxando o dinheiro de volta. — Que andar? O taipan não sabia. — Ali — respondeu a mulher, apontando para a parede do outro lado. — A terceira escada, segundo andar. E agora me dê o dinheiro. — Quem está recebendo do chefe? Diga depressa. — No mercado tem a mulher das cobras, o velho ladrão vendendo correntes de ouro falso do norte e o homem do peixe e carne estragados. — Isso é tudo? — É, sim. — O taipan tem razão, está sendo enganado. Ele ficará grato a você. — Bourne desdobrou outra nota. — Mas quero ser justo. Além do que está com o rádio, quantos outros trabalham para o chefe? — Três outros, também com rádios — disse a prostituta, os olhos fixos no dinheiro, a mão avançando devagar. — Pegue isto e vá embora. Siga por aquele lado, e não suba a rua. A mulher pegou as notas e saiu correndo pela viela, os saltos altos ressoando, o vulto desaparecendo na semi-escuridão, Bourne ficou observando até que ela sumiu, depois virou-se e percorreu apressado o caminho para os degraus. Tornou a assumir a aparência encurvada, subindo para a rua. Três guardas e um homem no comando. Ele sabia o que tinha de fazer e precisava ser feito rapidamente. Eram nove e trinta e seis. Um taipan por uma esposa. Encontrou o primeiro guarda conversando com o peixeiro, nervosamente, com gestos bruscos. O barulho da multidão era um obstáculo. O peixeiro não parava de sacudir a cabeça. Bourne escolheu um homem corpulento perto do guarda; saiu correndo e empurrou o inocente espectador para cima do guarda, dando um. passo para o lado, enquanto o homem do taipan recuava. Na breve confusão que se seguiu, Jason puxou o aturdido guarda para o lado, acertando-o na base da garganta com os nós dos dedos; virou-o quando ele começou a cair e, com a mão rígida, golpeou a sua nuca, no alto da espinha. Arrastou o homem inconsciente pela calçada, pedindo desculpas à multidão em chinês por seu amigo bêbado. Largou o guarda nos escombros de uma loja, pegou o rádio e quebrou-o. O segundo homem do taipan não exigiu essa tática. Estava à margem da multidão, sozinho, gritando pelo rádio. Bourne aproximou-se; sua figura lamentável não representava qualquer ameaça e ele estendeu a mão, como se fosse um mendigo. O guarda acenou-lhe para que se afastasse; foi o último gesto de que ele se lembraria, pois Bourne pegou seu pulso, torceu-o e quebrou o braço do homem. Quatorze segundos depois, o segundo guarda do taipan estava caído nas sombras, sobre uma pilha de lixo, o rádio destruído. O terceiro guarda estava em conferência com a mulher das cobras. Para satisfação de Bourne, ela também sacudia a cabeça, como o peixeiro fizera; havia uma certa lealdade na Cidade Murada em
relação aos subornos, O homem tirou o rádio do bolso, mas não teve chance de usá-lo. Jason correu, pegou a velha naja desdentada e jogou sua cabeça na cara do homem. O arquejo horrorizado, seguido por um grito, era toda a reação de que Jason Bourne precisava. Os nervos na garganta constituem uma magnífica rede de fibras imobilizadoras, ligando os órgãos do corpo ao sistema nervoso central. Bourne agiu rapidamente e outra vez arrastou a vítima pela multidão, pedindo desculpas profusamente. Deixou o guarda inconsciente num ponto escuro do concreto. Aproximou o rádio do ouvido; não havia nada no receptor. Eram nove e quarenta. Restava o chefe dos homens. O pequeno chinês de meia-idade, no terno elegante e sapa tos bem engraxados, corria de um lado para outro, tentando localizar seus homens, relutante em fazer o menor contato físico com as hordas em torno das barracas e mesas dos vendedores. Sua visão era dificultada pela pequena altura. Bourne observou para onde ele estava indo, correu na sua frente, depois virou-se abruptamente e desferiu o punho com toda força contra o baixo-ventre do executivo. Enquanto o chinês vergava, Jason passou o braço esquerdo por sua cintura e levantou-o. Carregou o corpo inerte para um trecho da calçada em que dois homens estavam sentados, balançando, passando uma garrafa de um para outro. Jason desferiu uma cutelada no pescoço do banqueiro e largou-o entre os dois homens. Apesar do torpor mental em que se encontravam, os dois bêbados providenciariam para que seu novo companheiro permanecesse inconsciente por um tempo considerável. Havia bolsos a vasculhar, roupas e um par de sapatos a serem removidos. Tudo isso valeria um preço; e qualquer que fosse a quantia que eles conseguiriam obter por seus esforços, já seria uma gratificação e tanto. Eram nove e quarenta e três. Bourne não manteve mais a postura encurvada; o camaleão desaparecera. Correu através da rua transbordante de humanidade e desceu os degraus, entrando na viela. Conseguira! Eliminara a Guarda Pretoriana. Um taipan por uma esposa! Chegou à escada — a terceira, na parede da direita — e sacou a arma extraordinária que comprara de um negociante de armas em Mongkok. O mais silenciosamente possível, experimentando cada degrau com o pé, ele subiu para o segundo andar. Preparou-se diante da porta, equilibrando o peso, levantou a perna esquerda e acertou com toda força a madeira fina. A porta foi arrombada. Jason pulou para o interior do cómodo, agachando-se, a arma estendida. Três homens o fitavam, formando um semicírculo, cada um com uma arma apontada para sua cabeça. Por trás deles, vestindo um traje de seda branca, um enorme chinês estava sentado numa cadeira. O homem acenou com a cabeça para os guardas. Ele perdera. Jason Bourne calculara errado e David Webb morreria. Muito mais angustiante, ele sabia que em breve se seguiria a morte de Marie. Deixe-os disparar, pensou David. Puxar os gatilhos, acabando misericordiosamente com tudo. Ele matara a única coisa que importava em sua vida, — Atirem, seus miseráveis! Atirem!
Capítulo 11 — Seja bem-vindo, Sr. Bourne disse o homem grande no traje de seda branca, acenando para que os guardas se afastassem. — Presumo que percebe a lógica de pôr sua arma no chão e empurrá-la para longe. Sabe que realmente não há alternativa. David olhou para os três chineses; o homem no centro puxava para trás o cão da automática. David pôs a arma no chão e empurrou-a para a frente. — Estava me esperando, não é? —indagou ele suavemente, enquanto o guarda à sua direita pegava a arma. — Não sabíamos o que esperar... exceto o inesperado. Como conseguiu? Meus homens estão mortos? — Não. Estão machucados e inconscientes, mas não mortos. — Extraordinário. Pensava que me encontraria sozinho aqui? — Fui informado de que estava em companhia de seu chefe e três outros, não de seis. Concluí que era lógico. Achei que mais homens chamaria atenção. — Foi por isso que esses homens chegaram mais cedo, a fim de tomar as primeiras providências, não saindo deste buraco desde então. Calculei que poderia querer me capturar para trocar por sua esposa. — É óbvio que ela não tem nada a ver com isso. Solte-a. Ela não pode lhe fazer mal. Mate-me, mas deixe-a partir. — Pi ge! — disse o banqueiro, ordenando que dois dos guardas saíssem do apartamento; eles fizeram uma mesura e se retiraram apressados. Tornando a se virar para David, ele acrescentou: — Este homem vai ficar. Além da imensa lealdade que tem a mim, não fala nem compreende uma só palavra de inglês. — Vejo que confia em seu pessoal. — Não confio em ninguém. O financista gesticulou para uma velha cadeira de madeira no outro lado da sala miserável, revelando no gesto um Rolex de ouro no pulso, diamantes incrustados em torno do mostrador, combinando com as abotoaduras. — Sente-se. Não medi esforços e investi muito dinheiro para promover este encontro. — O chefe dos seus homens... presumo que seja essa a sua função... — disse Bourne, estudando cada detalhe da sala enquanto se encaminhava para a cadeira —, recomendou que não usasse um relógio
caro ao vir aqui. Acho que você não deu atenção ao aviso. — Cheguei num cafetã sujo, com as mangas bastante largas para esconder o relógio. E observando suas roupas, tenho certeza de que o Camaleão compreende. — Você é Yao Ming — murmurou David, sentando. — É um nome que uso e estou certo de que entende. O Camaleão passa por muitos formatos e cores. — Não matei sua esposa... nem o homem que por acaso estava com ela. — Sei disso, Sr. Webb. — Você o quê? David levantou-se bruscamente, e o guarda deu um passo rápido em sua direção, a arma apontada. — Sente-se — repetiu o banqueiro. — Não alarme meu devotado amigo ou ambos podemos lamentar, você muito mais do que eu. — Sabia que não fui eu e ainda assim fez isso conosco! — Sente-se logo, por favor. — Quero uma resposta! — exclamou David, tornando a sentar. — Porque você é o verdadeiro Jason Bourne. É por isso que está aqui, é por isso que sua esposa permanece sob a minha custódia e assim continuará até você realizar o que tenho a lhe pedir. — Falei com ela. — Sei que falou. Eu permiti. — Ela parecia diferente... mesmo se levando em consideração as circunstâncias. É uma mulher forte, mais forte do que eu estava naquelas terríveis semanas na Suíça e Paris. Alguma coisa está errada com ela. Foi drogada? — Claro que não. — Está machucada? — Em espírito, talvez, mas não por qualquer outra forma. Mas devo dizer que ela será machucada e morrerá se você se recusar. Preciso ser mais claro? — É um homem morto, taipan.
— O verdadeiro Bourne fala. Isso é ótimo. Justamente o que preciso. — Explique tudo. — Estou sendo acossado por alguém que usa o seu nome — começou o taipan, a voz dura, a intensidade aumentando. —E muito mais severamente... que os espíritos me perdoem... do que a perda de uma jovem esposa. Por todos os lados, em todas as áreas, o terrorista, esse novo Jason Bourne, ataca. Mata meus homens, explode carregamentos de mercadorias valiosas, ameaça outros taipans de morte se fizerem negócios comigo. Seus honorários exorbitantes são pagos por meus inimigos, em Hong Kong e Macau, nos canais da Deep Bay e até no norte, nas próprias províncias. — Tem uma porção de inimigos. — Meus interesses são amplos. — O que também acontecia, pelo que me disseram, com o homem que não matei em Macau. — Por mais estranho que pareça, ele e eu não éramos inimigos — disse o banqueiro, respirando fundo, apertando o braço da cadeira, num esforço para se controlar. —Em determinadas áreas, nossos interesses convergiam. Foi assim que ele conheceu minha esposa. — Muito conveniente. Ativos partilhados. — Está sendo ofensivo. — Não são minhas regras — respondeu Bourne, os olhos frios fixos no rosto do oriental. — Entre logo no assunto. Minha esposa está viva e a quero de volta, sem qualquer marca ou sequer uma voz alteada contra ela. Se lhe fizerem mal, por qualquer forma, você e seus Zhongguo ren não serão adversários para o que farei. — Não está em condições de fazer ameaças, Sr. Webb. — Webb não está — concordou o homem que fora outrora o mais caçado na Ásia e Europa. — Bourne está. O oriental olhou firme para Jason, depois acenou com a cabeça duas vezes e baixou os olhos, para além do olhar de Webb. — Sua audácia está no mesmo nível de sua arrogância. Vamos ao assunto. É muito simples, muito claro. O taipan subitamente cerrou a mão direita, levantou o punho e bateu com força no frágil braço da cadeira decrépita. — Quero provas contra os meus inimigos! — gritou ele, os olhos furiosos espiando por trás de duas paredes de carne intumescida, parcialmente fechadas. —A única maneira de conseguir isso é você me trazer esse impostor tão verossímil que toma o seu lugar! Quero ele na minha frente, observando-
me, enquanto sente a vida deixá-lo em agonia, até me contar tudo o que preciso saber! Traga-o para mim, Jason Bourne! O banqueiro respirou fundo e depois acrescentou, suavemente: — Então, e só então, voltará a se encontrar com sua esposa. David ficou olhando fixamente para o taipan, em silêncio, por um longo tempo, antes de perguntar: — O que o faz pensar que posso consegui-lo? — Quem melhor para capturar um farsante do que o original? — Palavras — disse David. — Que não fazem o menor sentido. — Ele estudou você. Analisou seus métodos, suas técnicas. Não poderia passar por você se não tivesse feito isso. Descubra-o! Capture-o com as táticas que você criou pessoalmente. — Só isso? — Terá ajuda. Vários nomes e descrições, homens que estou convencido de que têm um envolvimento com esse novo assassino que usa um velho nome. — Em Macau? — Nunca! Não deve ser em Macau! Não pode haver qualquer alusão, ab nenhuma referência, ao incidente no Hotel Lisboa. Está acabado, encerrado; você nada sabe a respeito. Minha pessoa não pode ser associada de jeito nenhum com o que você está fazendo. Não tem nada a ver comigo. Se você aflorar, está caçando um homem que assumiu sua identidade. Está se protegendo, se defendendo. Algo perfeitamente natural, nas circunstâncias. — Pensei que queria provas... — Vão aparecer, quando me trouxer o impostor — gritou o taipan. — Se não é em Macau, onde então? — Aqui, em Kowloon. No Tsim Sha Tsui. Cinco homens foram liquidados na sala dos fundos de um cabaré, entre os quais um banqueiro... como eu, um taipan, meu sócio em diversas ocasiões e não menos influente... assim como outros três cujas identidades foram ocultas. Ao que tudo indica, foi uma decisão do governo. Nunca descobri quem eram. — Mas sabe quem era o quinto homem. — Ele trabalhava para mim. Foi meu representante naquela reunião. Se eu tivesse comparecido,
seu homônimo teria me matado. é por onde você começa, aqui em Kowloon, no Tsim Sha Tsui. Eu lhe darei os nomes dos dois mortos conhecidos e as identidades de muitos homens que eram inimigos de ambos, agora meus inimigos também. E um último aviso, Sr. Bourne. Caso tente descobrir quem eu sou, a ordem será rápida, a execução ainda mais rápida. Sua esposa morrerá. — E você também. Dê-me os nomes. — Estão neste papel — disse o homem que usava o nome Yao Ming, enfiando a mão no bolso do traje de seda branca. — Foram datilografados por uma estenógrafa pública no Mandarin. Não haveria sentido em tentar localizar uma máquina de escrever específica. — Uma perda de tempo — comentou Bourne, pegando o papel. — Deve haver vinte milhões de máquinas de escrever em Hong Kong. — Mas não tantos taipans com o meu tamanho de cintura, não é mesmo? — Eis uma coisa que não esquecerei. — Eu já contava com isso. — Como posso entrar em contato com você? — Não pode. Nunca. Este encontro jamais ocorreu. — Então por que aconteceu? Por que tudo aconteceu? Digamos que eu consiga descobrir e capturar esse cretino que se intitula Bourne... e não há qualquer certeza... o que farei com ele? Deixo-o nos degraus da Cidade Murada? — Pode ser uma esplêndida idéia. Drogado, ninguém lhe prestaria a menor atenção, além de lhe revistar os bolsos. — Eu prestaria a maior atenção. Um prêmio por um prêmio, taipan. Quero uma. garantia absoluta. Quero minha esposa de volta. — O que consideraria tal garantia? — Primeiro, a voz dela ao telefone, convencendo-me de que está ilesa. Depois, quero vê-la.., por exemplo, andando de um lado para outro da rua, sozinha, sem ninguém por perto. — Jason Bourne fala? — Isso mesmo, — Está certo. Desenvolvemos uma indústria de alta tecnologia aqui em Hong Kong, pode perguntar a qualquer pessoa no ramo da eletrônica em seu país. No fundo desta página tem o número de um telefone. Quando e se.. e apenas quando e se... o impostor estiver em suas mãos, ligue para esse número e repita várias vezes as palavras “mulher-serpente”...
— Medusa — sussurrou Jason, interrompendo-o. —Aerotransportada. O taipan arqueou as sobrancelhas, com uma expressão neutra. — Naturalmente, eu estava me referindo à mulher no bazar. — Estava coisa nenhuma. Continue. — Como eu disse, repita as palavras várias vezes, até ouvir uma série de estalidos... — Ligando outro número, ou números — interveio Bourne outra vez. — Creio que está relacionado com o som das palavras — confirmou o taipan. — Não acha engenhoso? — É o que se chama de programação de recepção auditiva, os instrumentos acionados por uma impressão vocal. — Como não está impressionado, deixe-me enfatizar a condição sob a qual a ligação pode ser efetuada. E pelo bem de sua esposa, espero que isso o impressione. A ligação só deve ser efetuada quando você estiver preparado para entregar o impostor poucos minutos depois. Caso você ou qualquer outro use o número e as palavras de código sem essa garantia, eu saberei que está havendo uma busca nas linhas. Nesse caso, sua esposa será morta e o cadáver desfigurado de uma mulher branca, sem identificação, será jogado nas águas ao largo de nossas ilhas. Estou sendo claro? Engolindo em seco, reprimindo a fúria, apesar do medo angustiante, Bourne respondeu friamente: — A condição está perfeitamente compreendida. E agora compreenda a minha condição. Quando e se eu fizer essa ligação, quero falar com minha esposa... não em poucos minutos, mas em segundos. Se isso não acontecer, quem estiver na linha vai ouvir o tiro e você saberá que seu assassino, o prêmio que diz que tem de obter, terá a cabeça estourada. Terá trinta segundos. — Sua condição está compreendida e será atendida. Eu diria que a conferência está encerrada, Jason Bourne. — Quero minha arma. Está com um dos guardas que se retiraram. — Será entregue quando sair. — Ele aceitará minha palavra? — Não será necessário. Se você sair daqui, ele deve lhe entregar. Um cadáver não tem necessidade de arma. O que resta das imponentes mansões da extravagante era colonial de Hong Kong está no alto das colinas, por cima da cidade, numa área conhecida como Victoria Peak, a maior montanha da ilha, o ponto culminante de todo o território. Ali, graciosos jardins complementam caminhos margeados por
roseiras, que levam a mirantes e varandas, de onde os ricos contemplam os esplendores do porto lá embaixo e as ilhas externas a distância. As residências com as vistas mais invejáveis são versões adulteradas das grandes casas da Jamaica. São intrincadas, de pé-direito alto; os cômodos fluem de um para outro nos ângulos mais inesperados, a fim de aproveitar as brisas de verão durante essa estação longa e sufocante; por toda parte há madeira entalhada e envernizada, cercando e reforçando janelas, feitas para resistir aos ventos e às chuvas do inverno na montanha. A força e o conforto se unem nessas mansões menores, os projetos determinados pelo clima. Uma das casas no distrito de Peak, no entanto, diferia das outras. Não no tamanho, força ou elegância, não na beleza dos jardins, que talvez fossem mais amplos que muitos dos vizinhos, não na imponência do portão ou na altura do muro de pedra que cercava a propriedade. Parte do que a fazia parecer diferente era o senso de isolamento que a envolvia, especialmente à noite, quando apenas umas poucas luzes se mantinham acesas nos numerosos cômodos e nenhum som escapava das janelas ou dos jardins. Era como se a casa fosse praticamente desabitada; certamente não havia ali qualquer indício de frivolidade. Mas o que a diferenciava drasticamente eram os homens no portão e outros iguais que se podia avistar da estrada, patrulhando o terreno, além do muro. Estavam armados e em uniformes de campanha. Eram fuzileiros americanos. A propriedade fora arrendada pelo Consulado dos Estados Unidos, por determinação do Conselho de Segurança Nacional. A qualquer indagação, o consulado deveria comentar apenas que durante o mês seguinte numerosos representantes do governo e da indústria americana deveriam chegar à colônia, em momentos diversos e indeterminados, e a segurança e a eficácia das acomodações justificavam o aluguel. Era tudo o que o consulado sabia. Contudo, um pessoal selecionado do MI-Seis britânico, Setor Especial, recebera mais alguma informação, já que sua cooperação era julgada necessária e fora autorizada por Londres. Só que as informações eram limitadas ao que era necessário saber de imediato, algo com que Londres também concordara. Os que se encontravam nos mais altos escalões dos dois governos, inclusive os assessores do Presidente dos Estados Unidos e da PrimeiraMinistra da Inglaterra, haviam chegado à mesma conclusão: quaisquer revelações sobre a verdadeira natureza da propriedade em Victoria Peak poderiam ter conseqüências catastróficas para o Extremo Oriente e o mundo. Era uma casa segura, o quartel-general de uma operação secreta tão sensível que até mesmo o Presidente e a Primeira-Ministra pouco sabiam dos detalhes, conhecendo plenamente apenas os objetivos. Um pequeno sedã subiu para o portão. No mesmo instante, potentes refletores foram acionados, ofuscando o motorista, que levantou o braço para proteger os olhos. Dois fuzileiros se aproximaram, um em cada lado do veículo, empunhando suas armas. — Já deviam conhecer o carro a esta altura — comentou o enorme oriental num traje de seda branca, olhando através da janela aberta. — Conhecemos o carro, Major Lin — respondeu o cabo à esquerda. — Mas precisamos nos certificar do motorista. — Quem poderia se passar por mim? —gracejou o enorme major. — O Homem-Montanha, senhor — respondeu o fuzileiro à direita.
— Ah, sim, estou lembrando. Um campeão americano de luta-livre. — Meu avô sempre falava nele. — Obrigado, filho. Podia pelo menos ter dito seu pai. Posso seguir adiante ou estou preso? — Vamos apagar os refletores e abrir o portão, senhor — disse o primeiro fuzileiro. — Antes que eu me esqueça, Major, obrigado pelo nome daquele restaurante em Wanchai. É um lugar de classe e não estoura a nossa fortuna. — Mas, infelizmente, não encontrou nenhuma Suzie Wong. — Quem, senhor? — Não importa. O portão, por favor. Dentro da casa, na biblioteca que fora convertida em escritório, o Subsecretário do Estado Edward Newington McAllister sentava-se por trás de uma escrivaninha, estudando as páginas de um dossiê, sob a luz forte de um abajur, fazendo marcas nas margens, ao lado de determinados parágrafos e linhas. Estava absorvido na leitura, em total concentração. O interfone soou e ele teve de forçar os olhos e a mão para o aparelho. — O que é? — Escutou por um instante e depois acrescentou: — Mande-o entrar, é claro. McAllister desligou e voltou a atenção ao dossiê à sua frente, o lápis na mão. No alto da página que estava lendo havia as mesmas palavras, na mesma posição, que se repetiam em cada página: Ultra Máximo Secreto. R.P.C. Interno. Sheng Chou Yang. A porta se abriu e o imenso Major Lin Wenzu, do Serviço Secreto Britânico, MI-Seis, Setor Especial, Hong Kong, entrou e fechou a porta, sorrindo para McAllister, que permanecera absorvido no dossiê. — Continua o mesmo, hem, Edward? Enterrado nas palavras... há um padrão, uma linha a seguir. — Eu gostaria de poder encontrá-la — murmurou o subsecretário de Estado, lendo febrilmente. — E vai encontrar, .meu amigo. Qualquer que seja. — Falarei com você dentro de um momento. — Não há pressa. —O major tirou o Rolex e as abotoaduras de ouro. Colocou na mesa e acrescentou: — É uma pena devolver essas coisas. Emprestam certa presença à minha presença. Mas devo lhe tirar o chapéu, Edward. Não são básicas para o meu guarda-roupa, mas foi perfeito, como sempre acontece em Hong Kong, até para alguém do meu tamanho. — Tem razão — concordou o subsecretário, ainda absorvido na leitura.
O Major Lin sentou na cadeira de couro preto na frente da mesa, permanecendo em silêncio por quase um minuto. Era evidente que não podia se conter por mais tempo. — Posso ajudá-lo em alguma coisa, Edward? Ou, sendo mais objetivo, há alguma coisa relacionada com o trabalho em questão? Algo que possa me dizer a respeito? — Receio que não, Lin. — Terá de nos contar, mais cedo ou mais tarde. Nossos superiores em Londres terão de nos contar. “Façam o que ele pedir”, disseram eles. “Registrem todas as conversas e instruções, mas sigam suas ordens e aconselhem-no.” Aconselhar? Não há conselho, apenas tática. Um homem num escritório desocupado disparando quatro balas na parede do passeio do porto, seis na água, o resto cartuchos de pólvora seca... graças a Deus que não houve paradas cardíacas... e críamos a situação que você quer. Isso é algo que podemos compreender... — Concluo que tudo correu muito bem. — Houve um tremendo tumulto, se é isso o que está querendo dizer com “muito bem”. — É isso mesmo. McAllister recostou-se na cadeira, os dedos esguios da mão direita massageando a têmpora. — Ponto marcado, meu amigo. O autêntico Jason Bourne foi convencido e entrou em ação. De quebra, você terá de pagar pela hospitalização de um homem com o braço quebrado e dois outros que alegam ainda se encontrarem em estado de choque, com os pescoços extremamente doídos. O quarto ficou embaraçado demais para dizer qualquer coisa. — Bourne é muito bom no que faz... no que fazia. — Ele é letal, Edward. — Creio que você conseguiu controlá-lo. — Pensando em cada segundo que ele tornaria a agir e destruiria toda aquela sala. Fiquei apavorado. O homem é um maníaco. A propósito, por que ele deve se manter a distância de Macau? É uma restrição estranha. — Não há nada que ele não possa fazer aqui. Os assassinatos ocorreram aqui. Os clientes do impostor estão obviamente aqui em Hong Kong, e não em Macau. — Como sempre, isso não é resposta. — Vamos pôr a situação sob outro ângulo, e isso é o máximo que posso lhe dizer. Na verdade, você já sabe, pois desempenhou o papel esta noite. A mentira sobre a jovem esposa do mítico taipan e seu amante, assassinados em Macau. Tem alguma idéia a respeito? — Um artifício engenhoso — comentou Lin, franzindo o rosto. — Poucos atos de vingança são
tão prontamente compreendidos quanto o “olho por olho”. De certa forma, é a base de sua estratégia... até onde eu sei. — O que acha que Webb faria se descobrisse que não passa de uma mentira? — Ele não poderia descobrir. Você deixou bem claro que as mortes foram abafadas. — Está subestimando-o. Chegando a Macau, ele viraria todas as latas de lixo para descobrir quem é esse taipan. Interrogaria todos os porteiros e até as camareiras... provavelmente ameaçaria ou subornaria uma dúzia de empregados do Hotel Lisboa e a maioria dos policiais, até descobrir a verdade. — Mas temos sua esposa e isso não é mentira. Ele agirá de acordo. — Só que numa dimensão diferente. O que quer que ele pense agora... e certamente deve ter suspeitas... não pode saber, não pode ter certeza. Mas se investigar em Macau e descobrir a verdade, terá provas de que foi enganado por seu governo. — Como, especificamente? Porque a mentira lhe foi transmitida por um alto funcionário do Departamento de Estado... para ser mais preciso, eu. E em sua opinião, ele já foi traído antes. — Até aí nós sabemos. — Quero um homem em plantão permanente na imigração em Macau... vinte e quatro horas por dia. Arrume pessoas em quem possa confiar e entregue fotografias, mas não transmita qualquer informação. Ofereça uma gratificação para quem quer que o localize e lhe telefone. — Pode ser feito, mas tenho certeza de que ele não se arriscaria. Está convencido de que tem tudo contra ele. Basta haver um informante no hotel ou na polícia e sua esposa morre. Ele não correria esse risco. — E nós também não podemos correr o risco, por mais remoto que seja. Se ele descobrir que está sendo usado outra vez... traído outra vez... pode ficar completamente perturbado e fazer e dizer coisas que teriam conseqüências inimagináveis para todos nós. Para ser franco, se ele seguir para Macau, pode se tornar um terrível perigo, em vez do trunfo que pensamos ter criado. — Solução final? — murmurou o major. — Não posso usar essa expressão. — Não creio que será necessário chegar a esse ponto. Fui bastante convincentes Bati com a mão na cadeira e alteei a voz de maneira eficaz. “Sua esposa vai morrer!”, berrei. Ele acreditou em mim. Eu deveria ter estudado para ator. — Trabalhou muito bem. — Foi um desempenho à altura de Akim Tamiroff.
— Quem? — Por favor. Já passei por isso no portão. — Não estou entendendo. — Esqueça. Em Cambridge, disseram que eu conheceria pessoas como você. Tive um professor de História Oriental que declarou que vocês não largam nada, todos vocês. Insistem em guardar os segredos porque os Zhongguo ren são inferiores, não podem compreender. É o que acontece neste caso, yang quizi? — Claro que não. — Então o que estamos fazendo? Posso entender o óbvio. Recrutamos um homem que se encontra em posição singular para caçar um assassino, porque o assassino o está encarnando... encarnando o homem que ele era. Mas chegar a esse ponto... seqüestrar sua esposa, envolver a nós, todos esses jogos elaborados e perigosos... Para falar a verdade, Edward, quando você me apresentou o roteiro, não pude deixar de questionar Londres. E eles me disseram: “Siga as ordens. E acima de tudo, fique calado.” Mas, como acabei de falar, não é suficiente. Precisamos saber mais. Sem isso, como o Setor Especial pode assumir qual quer responsabilidade? — Por enquanto, a responsabilidade é nossa, as decisões são nossas. Londres concordou com isso. Eles não concordariam se não estivessem convencidos de que era a melhor maneira. Tudo deve ser contido. Não há qualquer margem para vazamento ou erro de cálculo. — McAllister inclinou-se para a frente, unindo as mãos, as articulações embranquecendo pela pressão aplicada. — Uma coisa posso lhe dizer, Lin. Juro por Deus que eu gostaria que não fosse uma responsabilidade nossa, especialmente comigo tão próximo do centro. Não que eu tome as decisões finais, mas preferia não tomar nenhuma. Não sou qualificado. — Eu não diria isso, Edward. Você é um dos homens mais meticulosos que já conheci, e provou isso há dois anos. É um analista brilhante. Não precisa possuir pessoalmente a competência, desde que receba ordens de alguém que a tenha. Tudo o que precisa é de compreensão e convicção... e a convicção está estampada em seu rosto transtornado. Fará o que é certo, se lhe couber a execução. — Acho que devo agradecer. — O que você queria foi realizado esta noite. Assim, saberá em breve se o seu caçador ressuscitado ainda conserva a antiga capacidade. Durante os próximos dias, poderemos acompanhar os acontecimentos, mais isso será tudo. Já estão fora do nosso controle. Bourne inicia a sua perigosa jornada. — Quer dizer que ele tem os nomes? — Os nomes autênticos, Edward. Alguns dos piores membros do submundo de Hong Kong e Macau... soldados dos escalões superiores que cumprem ordens, comandantes que promovem negócios e acertam contratos, os mais violentos. Se há alguém no território que conheça esse impostor-assassino,
pode estar certo de que seu nome consta da lista. — Vamos iniciar a segunda etapa. Muito bom. — McAllister separou as mãos e olhou para o relógio. — Puxa, eu não tinha a menor idéia da hora. Foi um dia comprido para você. Não precisava devolver o Rolex e as abotoaduras esta noite. — Eu sabia disso. — Então por que veio? — Não quero sobrecarregá-lo ainda, mas podemos ter um problema imprevisto. Pelo menos uma coisa que você não levou em consideração, talvez tolamente. — O que é? — Talvez a mulher esteja doente. O marido teve essa impressão quando falou com ela. — Está falando sério? — Não podemos excluir essa possibilidade... o médico não pode excluí-la. — O médico? — Achei que não havia necessidade de alarmar você. Convoquei um dos nossos médicos há vários dias... um homem de absoluta confiança. Ela não estava comendo e se queixava de náusea. O médico disse que podia ser ansiedade ou depressão, talvez mesmo um vírus. Receitou antibióticos e tranqüilizantes brandos. Ela não melhorou. Ao contrário, seu estado deteriorou-se rapidamente. Ela se tornou apática, tem acessos de tremedeira, a mente parece vaguear. E posso lhe assegurar que se trata de uma mulher que não é dada a essas coisas. — Mas claro que não é! — exclamou o subsecretário, piscando os olhos rapidamente, os lábios contraídos. — O que podemos fazer? — O médico acha que ela deve ser internada imediatamente no hospital para exames. — Mas não pode ser! Isso está fora de cogitação! O Major Lin levantou-se e avançou até a mesa, lentamente. — Não conheço os desdobramentos da operação, Edward, mas posso determinar vários objetivos básicos, especialmente um. E não posso deixar de lhe perguntar uma coisa: o que acontece com David Webb se sua esposa está gravemente doente? O que acontece com seu Jason Bourne se ela morrer?
Capítulo 12 — Preciso da ficha médica dela o mais depressa que puder providenciar, Major. É uma ordem, senhor, de um ex-tenente do Corpo Médico de Sua Majestade. Ele é o médico inglês que me examinou. É muito cortês, mas frio, e desconfio que é um médico excepcional. Está desconcertado, o que é ótimo. — Vamos providenciar. Há sempre meios. Disse que ela não foi capaz de informar o nome de seu médico nos Estados Unidos? Esse é o chinês enorme que sempre se mostra polido... insinuante até, embora pareça sincero. Ele tem sido gentil comigo, assim como seus homens também são gentis. Está cumprindo ordens — todos estão — mas não sabe por quê. — Mesmo em momentos de lucidez, ela não se lembra de muita coisa, o que não é nada animador. Pode ser um mecanismo de defesa, indicando que ela está consciente da doença progressiva que deseja bloquear e apagar. — Ela não é desse tipo, Doutor. É uma mulher forte. — A força psicológica é relativa, Major. Muitas vezes os mais fortes são avessos a aceitar a própria mortalidade. O ego se recusa. Providencie a sua ficha médica. Preciso tê-la de qualquer maneira. — Um homem vai entrar em contato com Washington e o pessoal por lá cuidará de tudo. Sabem onde ela mora, suas condições, em poucos minutos falarão com os vizinhos. Alguém nos dirá. Descobriremos quem é o médico. — Quero tudo na impressão de computador, transmissão por satélite. Dispomos do equipamento. — Qualquer transmissão de informações deve ser recebida em nosso escritório. — Pois então irei com você. Dê-me só mais alguns minutos. — Está temeroso, não é mesmo, Doutor? — Se for um caso de distúrbio neurológico, é sempre um problema assustador, Major. Se o seu pessoal puder trabalhar depressa, talvez eu consiga falar pessoalmente com o médico dela. Isso seria o ideal. — Não descobriu nada em seus exames? — Apenas possibilidades, nada de concreto. Há dor aqui e não há dor ali. Determinei uma tomografia cerebral computadorizada esta manhã.
— Está mesmo assustado. — Apavorado, Major. Todos vocês estão reagindo exatamente como eu queria. Ah, que fome! Comerei por cinco horas seguidas quando sair daqui... e vou sair! Será que você compreendeu, David? Entendeu o que eu estava lhe dizendo? Os bordos têm folhas de bordos; são tão comuns, querido, tão identificáveis! A folha única é Canadá. A embaixada! E aqui em Hong Kong é o consulado! Foi o que fizemos em Paris, meu querido! Foi terrível naquela ocasião, mas não será terrível agora. Lá em Ottawa informei a muita gente, pessoas que estavam sendo enviadas para todos os cantos do mundo. Sua memória está embotada, meu amor, mas a minha não... E você deve compreender, David, que. as pessoas com que lidei então não são muito diferentes das pessoas que agora me mantêm cativa. Sob alguns aspectos, é claro, não passam de robôs; mas são também indivíduos, que pensam, especulam e questionam por que lhes ordenam que façam determinadas coisas. Mas seguem os regulamentos, querido, porque se não o fizerem terão referências desfavoráveis em suas folhas de serviço, o que equivale a um destino pior do que a demissão — que raramente acontece — porque significa a ausência de promoção, o limbo. Têm sido muito gentis comigo — juro que é verdade —, como se estivessem constrangidos pelas ordens que receberam. Mas, apesar disso, cumprem suas obrigações. Acham que estou doente e se preocupam comigo, uma preocupação genuína. Eles não são criminosos nem carrascos, meu doce David. São burocratas à procura de orientação! São burocratas, David! Toda essa história incrível tem a palavra GOVERNO estampada por toda parte! Tenho certeza! Foi com pessoas assim que trabalhei por muitos anos. Eu era uma delas! Marie abriu os olhos. A porta. estava fechada, o quarto vazio, mas ela sabia que havia um guarda lá fora... ouvira o major chinês dando as instruções. Ninguém tinha permissão para entrar em seu quarto, a não ser o médico inglês e duas enfermeiras específicas, que o guarda conhecera, e que ficariam de plantão até de manhã. Ela conhecia as regras, e com esse conhecimento poderia violá-las. Ela sentou — Puxa, que fome! — e achou uma graça sombria ao pensamento de seus vizinhos no Maine sendo interrogados a respeito de seu médico. Mal conhecia os vizinhos e não havia médico nenhum. Residiam na cidade universitária há menos de três meses, desde o final do verão, para os preparativos de David. Com todos os problemas de alugar uma casa, descobrir o que a nova esposa de um novo professor-associado devia fazer ou ser, encontrar as lojas necessárias, providenciar roupa de cama e mesa — cuidar das mil e uma coisas que uma mulher precisa fazer para criar um lar — não houvera tempo para pensar num médico. Afinal, haviam convivido com médicos por oito meses e, à exceção de Mo Panov, ela teria a maior satisfação em nunca mais ter contato com outro. Acima de tudo, havia David, lutando para escapar de seus túneis pessoais, como ele os chamava, esforçando-se ao máximo para não deixar transparecer a angústia, tão grato quando havia luz e memória. Como ele devorava os livros, como se regozijava quando lhe voltavam trechos amplos de história! Mas a alegria era contrabalançada pela angústia de compreender que segmentos de sua própria vida ainda se mantinham esquivos. E muitas vezes, à noite, ela sentia o colchão ondular e sabia que David estava deixando a cama para ficar sozinho, com seus pensamentos indefinidos e imagens obsedantes. Ela esperava alguns minutos e depois saía para o corredor, ia sentar nos degraus e ficava escutando. E de vez em quando acontecia: o choro suave de um homem forte e orgulhoso em agonia. Ela o procurava e David se virava; o constrangimento e o sofrimento eram demais. Ela dizia:
— Não está lutando sozinho, querido. Estamos lutando juntos. Da mesma forma como fizemos antes. Ele falava então, relutante a princípio, depois se expandindo, as palavras saindo cada vez mais depressa, até que as comportas se rompiam e David encontrava coisas, descobria coisas. Árvores, David! Minha árvore predileta, o bordo. A folha de bordo, David! O consulado, meu querido! Ela tinha trabalho a fazer. Levantou a mão e apertou a campanhia para chamar a enfermeira. Dois minutos depois a porta se abriu e uma chinesa de quarenta e poucos anos entrou, o uniforme de enfermeira engomado e imaculado. — Em que posso servi-la, minha querida? — perguntou ela, jovialmente, num inglês de sotaque agradável. — Estou muito cansada, mas não consigo dormir. Posso tomar uma pílula que me ajude? — Vou falar com o médico. Ele ainda está no hospital. Tenho certeza de que não haverá problema. A enfermeira se retirou e Marie saiu da cama. Foi até a porta, a camisola folgada do hospital escorregando do ombro esquerdo, o ar-condicionado e a abertura nas costas lhe provocando calafrios. Abriu a porta, surpreendendo o guarda jovem e musculoso, sentado numa cadeira, à direita. — Pois não, Sra.?... O guarda levantou-se de um pulo. — Psiu!—ordenou Marie, levando o indicador aos lábios. — Entre aqui! Depressa! Aturdido, o jovem chinês seguiu-a para o interior do quarto. Marie foi rapidamente para a cama e se deitou, mas não puxou as cobertas. Inclinou o ombro direito, a camisola escorregando, segura apenas pela protuberância do seio. — Venha aqui! —sussurrou ela. — Não quero que ninguém mais me escute! — O que é, senhora? — indagou o guarda., os olhos evitando a carne exposta de Marie e se concentrando em vez disso em seu rosto e nos compridos cabelos castanho-avermelhados Ele deu vários passos para a frente, mas ainda se manteve a distância. — A porta está fechada. Ninguém pode ouvir. — Quero que você... O sussurro de Marie tornou-se inaudível. — Nem mesmo eu posso ouvi-la, senhora — comentou o guarda, chegando mais perto. — Você é o mais simpático dos meus guardas. Tem sido muito gentil comigo. — Não havia razão para me comportar de outra forma, senhora.
— Sabe por que estou sendo detida? — Para sua própria segurança — mentiu o guarda, uma expressão neutra. — Ahn... Marie ouviu os passos lá fora se aproximando. Mudou a posição do corpo; a camisola se deslocou, deixando as pernas à mostra. A porta foi aberta e a enfermeira entrou. — Como? — A chinesa estava espantada. Era evidente que seus olhos contemplavam uma cena desagradável. Olhou para o embaraçado guarda, enquanto Marie se cobria. — Eu me perguntava por que você não estava lá fora. — A senhora pediu para falar comigo — respondeu o guarda, recuando. A enfermeira lançou um olhar rápido para Marie. — Foi isso mesmo? — Se é o que ele diz... — Isso é um absurdo — disse o guarda musculoso, encaminhando-se para a porta e abrindo-a. — A senhora não está bem. Sua mente se perde. E ela diz coisas tolas. Ele passou pela porta e fechou-a. A enfermeira tornou a olhar para Marie, desta vez com expressão inquisitiva. — Está se sentindo bem? — Minha mente não se perde e não sou eu quem diz coisas tolas. Mas faço o que me mandam. — Marie fez uma pausa e depois acrescentou: — Quando aquele major imenso deixar o hospital, venha falar comigo, por favor. Tenho uma coisa para lhe dizer. — Lamento, mas não posso fazer isso. Deve descansar. Pegue este sedativo. Vou buscar um copo d’água. — Você é uma mulher — disse Marie, olhando fixamente para a enfermeira. — Isso mesmo. A chinesa pós um pequeno copo de papel com água na mesinha-de-cabeceira, junto com a pílula, e voltou para a porta. Lançou um último e inquisitivo olhar para a paciente e depois saiu. Marie se levantou e foi silenciosamente até a porta. Encostou o ouvido no painel de metal; ouviu lá fora, no corredor, os sons abafados de uma conversa rápida, obviamente em chinês. Independente do que se dizia e da maneira como se fosse resolvida a conversa breve e excitada, ela plantara a semente. Trabalhe o visual, ressaltara Jason Bourne muitas vezes, durante o inferno por que haviam passado na Europa. É mais eficaz do que qualquer outra coisa. As pessoas tirarão as conclusões que você quer com
base no que virem, muito mais do que pelas mentiras mais convincentes que puder lhes contar. Ela foi até o armário e abriu-o. Haviam deixado no apartamento as poucas coisas que compraram para ela em Hong Kong, mas estavam guardados ali a calça comprida, a blusa e os sapatos com que chegara ao hospital; não ocorrera a ninguém tirá-los. Por que deveriam fazer isso? Podiam constatar que ela era uma mulher muito doente. Os tremores e espasmos convenceram a todos; era algo que podiam ver. Jason Bourne compreenderia. Marie olhou para o pequeno telefone branco na mesinhade-cabeceira. Era um aparelho independente, os botões embutidos. Ela especulou, embora não houvesse ninguém que pudesse chamar. Foi até a mesa e pegou o telefone. Estava mudo, como já esperava. Havia a campainha para chamar a enfermeira; era tudo o que precisava e tudo o que lhe permitiam. Foi até a janela e levantou a persiana branca só para se deparar com a noite. As luzes coloridas e ofuscantes de Hong Kong iluminavam o céu, e ela estava mais próxima do céu do que do solo. Como David diria... ou melhor, Jason: Que assim seja. A porta. O corredor. Que assim fosse. Marie foi até a pia. A escova e a pasta de dentes fornecidas pelo hospital ainda se encontravam nos invólucros de plástico; o sabonete também não fora usado, ainda estava na embalagem do fabricante, as palavras garantindo pureza além do hálito de anjos. Ao lado ficava o banheiro; nada tinha de diferente, exceto uma caixa de toalhas higiênicas, com um cartaz pequeno, em quatro línguas, explicando o que não se devia fazer com elas. Marie voltou ao quarto. O que estava procurando? O que quer que fosse, não encontrara. Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá usar. Palavras de Jason; não de David. E foi então que ela viu. Em determinados leitos de hospital — e aquele era assim — há uma alavanca ao pé da cama que, virada para um lado ou outro, o abaixa ou levanta. Essa alavanca pode ser removida — e muitas vezes o é — quando o paciente está recebendo soro ou se o médico deseja que permaneça numa determinada posição, como em tração, por exemplo. Uma enfermeira pode retirá-la, comprimindo-a e depois virando-a para a esquerda, antes de puxá-la. Isso é feito com freqüência durante as horas de visita, quando as pessoas podem ceder ao desejo do paciente de mudar de posição, contra a determinação do médico. Marie conhecia aquele leito e conhecia aquela alavanca. Quando David se recuperava dos ferimentos recebidos em Casa de Pedra 71, fora mantido vivo por alimentação intravenosa; Marie observara as enfermeiras. O sofrimento de seu futuro marido era mais do que ela podia suportar, e as enfermeiras estavam obviamente consciente de que, em seu desejo de tornar as coisas mais fáceis para ele, poderia prejudicar o tratamento médico. Ela sabia como remover a alavanca, que se tornava então um maneável instrumento de ferro. Ela retirou-a e voltou à cama, escondendo a alavanca por baixo das cobertas. Esperou, pensando como eram diferentes seus dois homens... reunidos em um só. Seu amante, Jason, podia ser frio e paciente, aguardando o momento de entrar em ação, confiando na violência para garantir a sobrevivência. E seu marido, David, sempre generoso, tão disposto a escutar, o estudioso, evitando a
violência a qualquer custo, porque já passara por tudo e detestava o sofrimento e ansiedade — acima de tudo, odiava a necessidade de eliminar os próprios sentimentos e se tornar um mero animal. E agora ele estava sendo chamado a se tornar o homem que detestava. David, meu David! Mantenha a sua sanidade! Eu o amo tanto! Ruídos no corredor. Marie olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira. Dezesseis minutos haviam transcorrido. Ela pôs as mãos por cima das cobertas, enquanto a enfermeira entrava no quarto; baixou as pálpebras, como se estivesse sonolenta. — Muito bem, minha cara — murmurou a chinesa, dando vários passos pelo interior do quarto. — Você me comoveu, não posso negar. Mas tenho ordens... instruções expressas a seu respeito. O major e seu médico já foram embora. E agora pode me dizer o que queria. — Não... agora — balbuciou Marie, a cabeça descaindo, o rosto mais adormecido do que desperto. — Estou muito cansada. Tomei... a pílula. — Tem algum problema com o guarda lá fora? — Ele é doente... Nunca me toca... não me importo. Ele me arruma coisas... estou tão cansada... — O que está querendo dizer com “doente”? — Ele... gosta de olhar para mulheres... Não... me incomoda quando estou dormindo. Marie fechou os olhos. — Zang! — murmurou a enfermeira. —O safado, o safado! Ela girou abruptamente nos calcanhares, saiu pela porta, fechou-a e disse ao guarda: — A mulher está dormindo! Pode me entender? — É uma sorte celestial. — Ela diz que você nunca a toca. — Nunca sequer pensei nisso. — Pois não pense agora! — Não preciso dos seus sermões, enfermeira megera. Tenho um trabalho a realizar. — Pois então cuide apenas disso! Falarei com o Major Lin Wenzu de manhã! A enfermeira lançou um último olhar furioso para o guarda e depois afastou-se pelo corredor, o ritmo e a postura agressivos. — Ei, você! — O sussurro áspero veio da porta de Marie, que estava ligeiramente entreaberta.
Ela abriu-a mais um pouco e acrescentou: — Aquela enfermeira! Quem é ela? — Pensei que estava dormindo, senhora — disse o aturdido guarda. — Ela me disse que ia contar isso a você. — Como?. — Ela vai voltar para mim! Diz que há portas de ligação com os outros quartos. Quem é ela? — O que tem com ela? — Não fale! Não olhe para mim! Ela vai ver você! — Ela se afastou pelo corredor, virando à direita. — Nunca se pode saber. E é melhor um demônio que se conhece do que outro que não se conhece. Entende o que estou querendo dizer, não é mesmo? — Nunca sei o que as pessoas estão querendo dizer! — alegou o guarda, em fala suave, mas incisiva. — Não tenho a menor idéia do que ela fala e também não consigo entendê-la, senhora. — Entre aqui. Depressa! Acho que ela é uma comunista! De Pequim! — Pequim? — Não vou com ela! Marie puxou a porta e meteu-se por trás. O guarda entrou rápido no quarto e a porta foi fechada. O quarto estava escuro, a única iluminação vinha do banheiro, bastante reduzida pela porta quase fechada. O homem podia ser visto, mas não podia ver. — Onde está, senhora? Fique calma. Ela não vai levá-la a parte alguma... O guarda não conseguiu dizer mais nada. Marie acertou com a alavanca de ferro na base de seu crânio, com a força de uma mulher criada num rancho de Ontario, acostumada a manejar o relho, O guarda perdeu os sentidos; ela ajoelhou-se e começou a trabalhar rapidamente. O chinês era musculoso, mas não grande, não alto. Marie não era grande, mas era alta para uma mulher. Com um jeito aqui e outro ali, as roupas e sapatos do guarda serviriam para uma saída rápida. Mas seus cabelos constituíam um problema. Correu os olhos pelo quarto. Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá usar. E encontrou. Pendendo de uma barra cromada, na mesinha-de-cabeceira, havia uma toalha de rosto. Marie pegou-a, empilhou os cabelos no alto da cabeça e ajeitou a toalha ao redor. Não havia qualquer dúvida de que parecia absurdo e não resistiria a um exame mais atento, mas à primeira vista dava a impressão de ser uma espécie de turbante. Só de cueca e meias, o guarda gemeu e começou a se erguer, mas logo recaiu na inconsciência. Marie correu para o armário, pegou suas roupas e foi até a porta, entreabrindo-a cautelosamente, apenas
dois ou três centímetros. Duas enfermeiras — uma oriental, a outra européia — conversavam em voz baixa no corredor. A chinesa não era a mulher que voltara para ouvir sua queixa contra o guarda. Outra enfermeira apareceu, acenou com a cabeça para as duas e seguiu direto para uma porta no outro lado. Era um armário de roupa de cama. Um telefone tocou no posto de controle do andar, a cerca de quinze metros de distância, pelo corredor; à frente da mesa circular, o corredor se bifurcava. Um cartaz de Saída estava pendurado do teto, a flecha apontando para a direita. As duas enfermeiras em conversa se viraram e começaram a seguir para a mesa; a terceira deixou o armário, carregando uma pilha de lençóis. A fuga mais certa é realizada em etapas, aproveitando qualquer confusão que ocorra. Marie saiu do quarto e atravessou o corredor até o armário embutido da roupa de cama. Era grande, deu para ela entrar e fechar a porta. Subitamente, o rugido de protesto de uma mulher povoou o corredor, deixando-a paralisada. Podia ouvir passos correndo, se aproximando, depois mais passos. — O guarda! — berrou a enfermeira chinesa, em inglês. — Onde está aquele guarda safado? Marie abriu uma fresta da porta do armário. Três enfermeiras excitadas estavam na porta de seu quarto; e entraram correndo. — Você! Tirou suas roupas! Zangsile homem safado! Procurem no banheiro! — Você! — gritou o guarda, a voz trêmula. — Deixou a mulher escapar! Vai ser responsável perante meus superiores! — Largue-me, homem repulsivo! Você mente! — E uma comunista! De Pequim! Marie saiu do armário embutido, uma pilha de toalhas no ombro, correu para o corredor que se bifurcava e a placa de Saída. — Chamem o Major Lin! Peguei uma espiã comunista! — Chamem a policia! Ele é um pervertido! Deixando o prédio do hospital, Marie correu para o estacionamento, encaminhando-se para a área mais escura. Sentou-se ofegante nas sombras, entre dois carros. Tinha de pensar; precisava avaliar a situação. Não podia cometer qualquer erro. Largou as toalhas e suas roupas, começou a vasculhar os bolsos da roupa do guarda, procurando por uma carteira. Encontrou-a, abriu-a, contou o dinheiro, na semi-escuridão. Havia pouco mais de seiscentos dólares de Hong Kong, o que representava pouco menos de cem dólares americanos. Mal dava para um quarto de hotel; e depois viu um cartão de crédito, emitido por um banco de Kowloon. Não saia de casa sem isso. Se fosse necessário, apresentaria o cartão — apenas se fosse necessário — e se conseguisse encontrar um quarto de hotel. Tirou o dinheiro e o cartão de plástico da carteira, tornou a guardá-la no bolso, iniciou o processo meio sem jeito de trocar de roupa, enquanto estudava as ruas além do terreno do hospital. Para seu alívio, estavam apinhadas, e a multidão constituía a sua segurança imediata.
Um carro apareceu de repente no estacionamento, os pneus rangendo, indo parar diante da porta de EMERGÊNCIA. Marie levantou-se e olhou pelas janelas do automóvel. O corpulento major chinês e o frio e meticuloso médico saltaram do carro e correram para a entrada. Enquanto eles desapareciam no outro lado, Marie saía correndo do estacionamento para a rua. Ela andou por horas, parando para se empanturrar em uma lanchonete, até que não agüentava mais a visão de outro hambúrguer. Foi ao banheiro e contemplou-se no espelho. Emagrecera e estava com olheiras, mas afora isso parecia bem. Os cabelos no entanto constituíam um problema. Estariam vasculhando Hong Kong à sua procura, e os primeiros itens de qualquer descrição seriam os cabelos e a altura. Nada podia fazer quanto à altura, mas era possível modificar drasticamente os cabelos. Foi a uma farmácia e comprou rolinhos e grampos. Depois, lembrando o que Jason lhe pedira para fazer em Paris, quando sua fotografia aparecera nos jornais, puxou os cabelos para trás, prendendo-os num coque e comprimindo os lados contra a cabeça, O resultado era um rosto mais carrancudo, acentuado pela perda de peso e ausência de maquilagem. Era o efeito que Jason — David — quisera em Paris... Não, refletiu ela, não era David em Paris. Era Jason Bourne. E era noite, como fora em Paris. — Por que está fazendo isso, dona? — indagou uma balconista, parada perto do espelho, no balcão de cosméticos. — Tem cabelos muito bonitos. — Estou cansada de escová-los. Só isso. Marie deixou a farmácia, comprou sandálias sem saltos de um mascate na rua e uma imitação de bolsa Gucci de outro, os Gês virados para baixo. Restava-lhe o equivalente a 45 dólares americanos e não tinha ainda a menor idéia de onde passaria a noite. Era ao mesmo tempo muito tarde e muito cedo para ir ao consulado. Uma canadense chegando depois de meia-noite e pedindo abrigo provocaria alarme; além disso, ainda não tivera tempo para definir a melhor maneira de apresentar seu pedido. Para onde poderia ir? Precisava dormir. Não faça qualquer movimento quando estiver exausta. A margem para um erro torna-se grande demais. O descanso é uma arma. Não se esqueça disso. Ela passou por uma arcada que estava fechando. Um jovem casal americano, de jeans, estava barganhando com o proprietário de uma barraquinha de camisetas. — Ei, pare com isso, cara — disse o rapaz. — Não quer fazer mais uma venda esta noite? Vai diminuir um pouco o seu lucro, mas ainda ficará com alguns dineros em seu bolso, não é mesmo? — Nada de dineros — protestou o vendedor, sorrindo. — Somente dólares, e está me oferecendo muito pouco. Tenho filhos. Está tirando a comida preciosa de suas bocas. — Provavelmente ele possui um restaurante — comentou a garota. — Querem um restaurante? Uma autêntica comida chinesa? — Ei, você acertou em cheio, Lacy! — Meu terceiro primo por parte de pai tem uma barraca excelente a duas ruas daqui. Tudo muito
barato e muito bom. — Esqueça — disse o rapaz. — Quatro dólares americanos pelas seis camisas. Pegue ou largue. — Eu pego. Mas só porque você é muito forte para mim. O mascate pegou as notas estendidas e meteu as camisas numa sacola de papel. — Você é uma maravilha, Buzz. — A garota beijou-o no rosto e riu. — Ele ainda está operando com uma margem de lucro de quatrocentos por cento. — Esse é o problema de vocês, graduadas em economia. Não levam em conta a estética. Farejar a caça, o prazer do conflito verbal! — Se algum dia casarmos, vou sustentá-lo pelo resto de minha vida miserável, seu grande negociador. As oportunidades vão surgir. Reconheça-as e trate de aproveitá-las. Marie aproximou-se dos jovens. — Com licença — disse ela, dirigindo-se basicamente à moça. — Ouvi vocês falando... — Eu não fui sensacional? — interrompeu o rapaz. — Muito bom — respondeu Marie. — Mas desconfio que sua amiga tem razão. Aquelas camisetas certamente custaram a ele menos de 25 cents cada uma. — Quatrocentos por cento — interveio a moça, balançando a cabeça. — Keystone afortunado. — Quem é esse cara? — É um termo de joalheria —explicou Marie. — Significa cem por cento. — Estou cercado por filistéias! — exclamou o rapaz. — Sou estudante de História da Arte e algum dia serei diretor do Metropolitan! — Só não deve tentar comprá-lo — comentou a moça, virando-se em seguida para Marie. — Não interprete mal. Não somos inconseqüentes, estamos apenas nos divertindo. E não deixamos que falasse o que queria. — É uma situação bastante embaraçosa, mas o fato é que meu avião atrasou um dia e perdi a excursão pela China. O hotel está lotado e pensei... — Precisa de um lugar para se refestelar? — interrompeu o estudante de História da Arte. — Isso mesmo. Para ser franca, meus recursos são adequados, mas limitados. Sou professora no
Maine... de economia, lamento dizer. — Não precisa lamentar — disse a moça, sorrindo. — Vou me juntar ao grupo amanhã... mas infelizmente será amanhã, não esta noite. — Não podemos ajudá-la, Lacy? — Claro que podemos. Nossa escola tem um acordo com a Universidade Chinesa de Hong Kong. — Não é grande coisa em termos de serviço, mas o preço é ótimo — acrescentou o rapaz. — Três dólares americanos por noite. Mas como eles são antediluvianos! — O que ele está querendo dizer é que há um código puritano. Os sexos são separados. — Garotos e meninas juntos... — entoou o estudante de História da Arte. — Uma ova que estão! Marie sentou na cama na vasta sala, sob um teto de quinze metros de altura; presumia que era um ginásio. Ao seu redor, muitas moças dormiam e outras continuavam acordadas. A maioria estava silenciosa, mas umas poucas roncavam, outras acendiam cigarros e havia corridas esporádicas para o banheiro, onde as lâmpadas fluorescentes permaneciam acesas. Ela estava entre crianças e desejava ser uma criança agora, livre dos terrores que espreitavam por toda parte. David, preciso de você! Pensa que eu sou forte, mas não consigo mais agüentar, querido! O que vou fazer? Como posso fazer? Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá usar. — Jason Bourne.
Capítulo 13 A chuva era torrencial, esburacando a areia, tamborilando nos refletores que iluminavam as grotescas estátuas de Repulse Bay — reproduções de enormes deuses chineses, mitos irados do Oriente em poses furiosas, algumas se erguendo até dez metros de altura. A praia escura estava deserta, mas havia multidões no velho hotel lá em cima, à beira da estrada, assim como no anacrônico estande de hambúrguer, no outro lado. Havia turistas e ilhéus, pessoas que foram à baía para tomar um drinque ou comer alguma coisa, contemplando as estátuas ameaçadoras que repeliam quaisquer espíritos malignos que pudessem emergir do mar. O súbito aguaceiro forçara as pessoas a entrarem; muitas esperavam que a tempestade amainasse para voltarem para suas casas. Encharcado, Bourne agachava-se nas moitas,a seis ou sete metros da base de um ídolo de aparência feroz, no meio do caminho que descia para a praia. Removeu a água do rosto, olhando fixamente para os degraus de concreto que levavam à entrada do velho Colonial Hotel. Esperava pelo terceiro nome na lista do taipan. O primeiro homem tentara prendê-lo numa armadilha na Star Ferry, o ponto de encontro combinado, mas Jason, com as mesmas roupas que usara na Cidade Murada, percebera as duas patrulhas à espreita. Não fora tão fácil como procurar homens com rádios, mas também não fora muito difícil. Na terceira viagem através do porto, não tendo Bourne aparecido na janela designada no lado de boreste, os mesmos dois homens haviam passado por seu contato duas vezes, cada um falando rapidamente e depois seguindo para direções opostas, os olhos fixos em seu superior. Jason esperara até que a barca se aproximasse do cais e os passageiros se encaminhassem em massa para a rampa de saída na proa. Acertara o chinês à direita com um golpe nos rins, enquanto passava no meio da multidão, depois golpeara sua cabeça com o pesado peso de papel de latão; os passageiros seguiam apressados na semi-escuridão. Bourne atravessara entre os bancos vazios do outro lado; enfrentara o segundo homem, enfiando-lhe a arma na barriga, e levara-o para a popa. Empurrara o homem pela amurada e jogara-o no mar; enquanto o apito da barca cortava a noite, indicando que atracava no cais de Kowloon. Fora então procurar o contato, junto à janela, no meio da barca. — Você cumpriu sua palavra — dissera Jason. Desculpe ter me atrasado. — Foi você quem telefonou? Os olhos do contato estudaram surpresos as roupas maltrapilhas de Bourne. — Isso mesmo. — Não parece um homem com o dinheiro de que falou pelo telefone, — Tem direito a essa opinião. Bourne tirara do bolso um maço de notas americanas dobradas, o valor de mil dólares visível. — Você é mesmo o homem. — O chinês olhara rapidamente por cima dos ombros de Jason,
antes de indagar, ansioso: — O que você quer? — Informações sobre alguém para alugar que diz se chamar Jason Bourne. — Procurou a pessoa errada. — Pagarei muito bem. — Não tenho nada para vender. — Acho que tem. — Bourne guardara o dinheiro e sacara a arma, chegando mais perto do homem, enquanto os passageiros de Kowloon embarcavam. — Vai me contar o que estou querendo saber por um preço ou será obrigado a me dizer tudo por sua vida. — Só sei de uma coisa — protestara o chinês. — Minha gente não quer nada com ele! — Por que não? — Ele não é o mesmo homem. — Como assim? Jason prendera a respiração, observando o homem atentamente. — Ele assume riscos que jamais correria antes. — O chinês tornara a olhar além de Bourne, o suor aflorando em sua testa. — Ele volta depois de dois anos. Quem sabe o que aconteceu? Bebida, narcóticos, doença de prostitutas... quem pode saber? — O que está querendo dizer com “riscos”? — Exatamente o que falei. Ele entra num cabaré no Tsim Sha Tsui... está havendo um tumulto, a polícia se encontra a caminho. Mas ele entra assim mesmo e mata cinco homens. Poderia ter sido apanhado, seus clientes descobertos. Jamais faria uma coisa assim há dois anos. — Você pode estar interpretando a seqüência pelo avesso — comentara Jason Bourne. —Talvez ele tenha entrado... como um homem... e provocado o tumulto. Mata como esse homem e escapa como outro, aproveitando a confusão. O oriental fitara por um instante os olhos de Jason, subitamente mais assustado do que antes, tornando a contemplar as roupas maltrapilhas. — É bem possível — murmurara ele, a voz trêmula, agora sacudindo a cabeça para uma lado e depois para outro. — Como se pode entrar em contato com esse Bourne? — Não sei... juro pelos espíritos! Por que me faz essas perguntas?
— Como? — insistira Jason., inclinando-se para o homem, suas testas se encostando, a arma comprimida contra o baixo-ventre do oriental. — Se não querem nada com ele, devem saber onde ele pode ser encontrado, onde se pode fazer o conta to. Vamos, responda logo: onde? — Oh, Jesus Cristão! — Não é dele que quero saber! Bourne! — Macau! Corre o rumor de que sua base é Macau. E juro que isso é tudo o que sei! O homem olhava em pânico para a esquerda e a direita. — Se está tentando descobrir os seus dois homens, não precisa mais se preocupar que vou lhe dizer onde estão — comentara Jason. — Um deles está caído ali, inconsciente, e espero que o outro saiba nadar. — Aqueles homens são... Quem é você? — Acho que você já sabe — respondera Bourne. — Vá para a popa da barca e fique por lá. Se der um passo para a frente antes de atracarmos, nunca mais será capaz de dar outro passo. — Oh, Deus, você é... — Eu não terminaria essa.frase, se fosse você. O segundo nome estava acompanhado por um endereço improvável, um restaurante na Causeway Bay especialista em cozinha francesa clássica. De acordo com breves anotações de Yao Ming, o homem se comportava como o gerente, mas era na verdade o proprietário. Vários garçons eram tão hábeis com armas de fogo quanto com bandejas. O endereço residencial do contato não era conhecido; todos os seus negócios eram realizados no restaurante e desconfiava-se que ele não tinha uma residência permanente. Bourne voltara ao Peninsula, tirara o paletó e o chapéu e atravessara rapidamente o saguão apinhado até o elevador; um casal bem-vestido tentara não demonstrar choque por sua aparência. Ele sorrira e murmurara, à guisa de desculpas: — Uma caçada ao tesouro da companhia. Uma bobagem, não é mesmo? No quarto, ele se permitira uns poucos momentos para ser David Webb outra vez. Fora um erro; não pudera suportar a suspensão do fluxo de pensamento de Bourne. Eu sou ele de novo. Tenho de ser. Ele sabe o que fazer. Eu não sei! Livrara-se da sujeira da Cidade Murada e da umidade opressiva da Star Ferry com um banho de chuveiro, fizera a barba que aflorava no rosto e se vestira para um jantar em estilo francês. Eu vou descobri-lo, Marie! Juro por Deus que vou descobri-lo! Era uma promessa de David Webb, mas era Jason Bourne quem gritava em fúria. O restaurante mais parecia um requintado salão de jantar rococó no Boulevard Montaigne em Paris do que uma estrutura de um só andar em Hong Kong. Lustres intricados pendiam do teto, as
lâmpadas pequenas irradiavam uma claridade suave, velas envoltas por vidro bruxuleavam nas mesas, com os linhos mais puros, os melhores cristais e pratarias. — Infelizmente, monsieur, não temos mesas disponíveis esta noite — dissera o maître, o único francês visível. — Disseram-me para perguntar por Jiang Yu e falar que era urgente — respondera Bourne, mostrando uma nota de cem dólares americanos. — Acha que ele poderia encontrar alguma coisa, se isto o encontrasse? — Eu encontrarei, monsieur. — O maître apertara a mão de Jason sutilmente, recebendo o dinheiro. — Jiang Yu é um excelente membro de nossa pequena comunidade, mas sou eu quem seleciona. Comprenez-vouz? — Absolument. — Bien! Tem o rosto de um homem simpático e sofisticado. Por aqui, monsieur, por favor. O jantar não chegaria a ser desfrutado; os eventos ocorreram muito depressa. Minutos depois da chegada de seu drinque, um chinês esguio, vestido de preto, aproximara-se da mesa. Se havia alguma coisa estranha nele, pensara David Webb, era a tonalidade mais escura da pele e a obliqüidade mais acentuada dos olhos. Era evidente que tinha sangue malásio. Pare com isso!, ordenara Bourne. Não vai nos adiantar coisa alguma! — Pediu para falar comigo? — dissera o gerente, os olhos esquadrinhando o rosto que o fitava. — Em que posso servi-lo? — Primeiro, sentando-se. — E irregular sentar com os fregueses, senhor. — Nem tanto... não se você é proprietário do restaurante. Por favor, sente-se. — Por acaso é outra cansativa intromissão do Serviço de Impostos? Se for, espero que aprecie seu jantar, pelo qual vai pagar. Minhas contas estão cm absoluta ordem, perfeitamente precisas. — Se pensa que sou britânico, então não prestou atenção às minhas palavras. E se por “cansativa” está se referindo a meio milhão de dólares, então é melhor sumir da minha frente e me deixar apreciar o jantar. Bourne recostara-se no reservado, pegando o copo com a mão esquerda para tomar um gole. A mão direita estava oculta. — Quem o mandou? — perguntara o oriental de sangue misturado, enquanto sentava. — Afaste-se da beira. Quero conversar com você discretamente.
— Está certo. — Jiang Yu se postara diretamente em frente a Bourne. — Devo perguntar outra vez: quem mandou você? — E eu devo perguntar: gosta dos filmes americanos? Especialmente dos nossos westerns? — Claro que gosto. Os filmes americanos são muito bonitos e admiro acima de tudo os filmes do Velho Oeste. Muito poéticos na retaliação, violentos com plenos motivos. Estou dizendo as palavras corretas? — Está, sim. Porque neste exato momento você está em um filme. — Como assim? — Tenho uma arma muito especial por baixo da mesa. E aponta para entre as suas pernas. — Em apenas um segundo, Jason puxara a toalha, levantara a arma para mostrar o cano e tornara a ocultála. —Tem um silenciador que reduz o barulho de um 45 a um mero estalar de rolha de champanhe, mas não o impacto. Liao jie ma? — Liao jie... — dissera o oriental, rígido, respirando fundo em seu medo. — Está com o Setor Especial? — Não estou com ninguém, a não ser comigo mesmo. — Quer dizer que não há meio milhão de dólares? — Há tudo o que considere que a sua vida vale. — Por que eu? — Seu nome está numa lista —respondera Bourne, falando a verdade. — Para execução? —- balbuciara o chinês, ofegante, o rosto contorcido. — Isso depende de você. — Devo-lhe pagar para não me matar? — De certa forma, é isso mesmo. — Não ando com meio milhão de dólares nos bolsos. Nem guardo tanto dinheiro no restaurante. — Então me pague com outra coisa. — O quê? Quanto? Está me deixando confuso. — Informações, em vez de dinheiro. — Que informações? — indagara o chinês, o medo se transformando em pânico. — Que
informações eu poderia ter? Por que veio a mim? — Porque tem se envolvido com um homem que quero encontrar. O homem de aluguel que se diz Jason Bourne. — Não! Nunca aconteceu! As mãos do oriental começaram a tremer. As veias em sua garganta latejavam, os olhos desviaram-se do rosto de Jason pela primeira vez. Ele mentira. — Você é um mentiroso — dissera Bourne suavemente, empurrando o braço direito ainda mais por baixo da mesa, enquanto se inclinava para a frente. — Fez a conexão em Macau. — Macau, sim! Mas não houve qualquer conexão! Juro pelas sepulturas de minha família por gerações! — Está muito próximo de perder o estômago e a vida. Foi enviado a Macau para fazer contato com ele. — Fui enviado, mas não cheguei a fazer contato! — Prove. Como faria o contato? — O francês. Eu deveria ficar no alto da escadaria da queimada Basílica de São Paulo, na Calçada, usando um lenço preto no pescoço. Quando um homem se aproximasse de mim... um francês... e comentasse sobre a beleza das ruínas, eu deveria dizer as seguintes palavras: “Caim é por Delta.” Se ele respondesse “E Carlos é por Caim”, eu deveria aceitá-lo como o vínculo com Jason Bourne. Mas juro que ele nunca... . Bourne não ouvira o restante dos protestos do homem. Explosões sucessivas irromperam em sua mente, que fora lançada no passado. Uma luz branca ofuscante enchera seus olhos, os sons estrondosos eram insuportáveis. Caim é por Delta e Carlos é por Caim... Caim é por Delta! Delta Um é Caim! Medusa se mexe; a serpente se livra da pele. Caim está em Paris e Carlos será seu! Eram as palavras, os códigos, os desafios lançados ao Chacal. Eu sou Caim e sou superior e estou aqui! Venha me encontrar, Chacal! Eu o desafio a encontrar Caim, pois ele mata melhor do que você. É melhor me encontrar antes que eu encontre você, Carlos. Não é adversário para Caim! Santo Deus! Quem no outro lado do mundo conheceria essas palavras... poderia conhecê-las? Estavam trancadas nos arquivos mais profundos das operações secretas! Eram uma ligação direta com Medusa! Bourne quase apertara o gatilho da automática escondida, tão súbito fora o choque da incrível revelação. Removera o indicador, colocando-o além da guarda do gatilho; estivera perto de matar um homem por revelar uma informação extraordinária. Mas como poderia ter acontecido? Quem era o conduto para o novo “Jason Bourne” que tinha conhecimento dessas coisas? Ele compreendera que precisava voltar. Seu silêncio estava denunciando-o, revelando seu -
espanto. O chinês fitava-o fixa mente, a mão se estendendo além da beira do reservado. —Puxe essa mão ou seus colhões e seu estômago vão virar picadinho. O ombro do oriental levantara abruptamente e a mão aparecera sobre a mesa. — O que contei é a pura verdade. O francês não apareceu. Se não, eu lhe contaria tudo. E você também contaria, se estivesse no meu lugar. Só protejo a mim mesmo. — Quem mandou você para fazer o contato? Quem lhe deu as palavras para usar? — Sinceramente, não sei de nada a respeito e você deve acreditar nisso. Tudo é feito por telefone, através de intermediários, que só conhecem as informações que transmitem. A prova da integridade está na chegada dos fundos com que me pagam. — E como chegam esses fundos? Alguém tem de entregar a você. — Alguém que não existe, que também foi contratado. Um anfitrião desconhecido de um jantar de luxo pede para falar com o gerente. Aceito seus elogios e durante a conversa um envelope passa para as minhas mãos. E tenho dez mil dólares americanos para fazer contato com o francês. — E o que ocorre em seguida? Como você faz o contato? — E preciso ir a Macau, ao cassino Kam Pek, no centro. É freqüentado quase que exclusivamente por chineses, pois oferece os jogos de fan-tan e dai-sui. Passa-se pela Mesa Cinco e se deixa o telefone de um hotel em Macau... não um telefone particular... e um nome, qualquer nome... não o próprio, é claro. — Ele liga para esse número? — Pode ligar e pode não ligar. Você passa vinte e quatro horas em Macau. Se ele não ligar nesse período, você foi recusado, porque o francês não tem tempo para você. — São essas as regras? — Exatamente. Fui recusado duas vezes e na única vez em que houve aceitação ele não apareceu em Calçada. — Por que acha que foi recusado? Por que acha que ele não apareceu? — Não tenho a menor idéia. Talvez ele tivesse negócios demais para o seu matador. Talvez eu tenha dito as coisas erradas nas duas primeiras ocasiões. Talvez na terceira vez ele concluísse que havia homens suspeitos em Calçada, homens que pensou estarem comigo e terem más intenções em relação à sua pessoa. Não havia ninguém assim, é claro, mas não há apelação. — Mesa Cinco — murmurara Bourne. — Os crupiês. — Os crupiês mudam constantemente. Seu acordo é com a mesa. Creio que há um pagamento
geral. Dividido entre todos. E com toda certeza ele não vai pessoalmente ao Kam Pek... deve contratar uma prostituta das ruas. É muito cauteloso, um verdadeiro profissional. — Conhece alguma outra pessoa que tenha tentado entrar em contato com esse Bourne? — indagara Bourne. — Saberei se estiver mentindo. — Acho que saberia mesmo. O senhor está obcecado... o que não é da minha conta... e me acuou na primeira negativa. Não, senhor, não sei. É a pura verdade, porque não me agrada a perspectiva de te as entranhas estouradas com o estalido de uma rolha de champanhe. — Não poderia ser mais objetivo. Nas palavras de outro homem, acho que acredito em você. — Acredite, senhor. Sou apenas um mensageiro... talvez dos mais caros, é verdade, mas assim mesmo um mero mensageiro. — Pelo que estou informado, seus garçons são outra coisa. — Não estão se mostrando muito observadores. — De qualquer forma, você vai me acompanhar até a porta. E agora havia o terceiro nome, um terceiro homem, no aguaceiro em Repulse Bay. O contato reagira ao código: — Ecoutez, monsieur. “Caim é por Delta e Carlos é por Caim.” — Deveríamos nos encontrar em Macau! — gritara o homem pelo telefone. — Onde você estava? — Ocupado — respondera Jason. — Pode estar muito atrasado. Meu cliente dispõe de pouco tempo e está a par de tudo. Soube que seu homem anda por outras bandas. E ficou contrariado. Você prometeu, Francês! — Onde ele pensa que meu homem anda? — Em outro trabalho, é claro. E lhe contaram até os detalhes. — Pois ele está enganado. O homem se encontra disponível, se o preço for coberto. — Torne a me ligar dentro de alguns minutos. Falarei com meu cliente e verificarei se devemos continuar a conversa. Bourne tornara a telefonar cinco minutos depois. Fora dado o consentimento, marcado o encontro. Repulse Bay. Uma hora da madrugada. A estátua do deus da guerra, no meio da descida para a praia, à esquerda, na direção do píer. O contato usaria um lenço preto no pescoço; o código seria o mesmo.
Jason olhou para o relógio; era uma e doze. O contato estava atrasado, e a chuva não era problema... ao contrário, era uma vantagem, uma cobertura natural. Bourne esquadrinhara cada palmo da área de encontro, doze metros em todas as direções com uma vista direta para a estátua. Cuidara disso depois da hora marcada, ocupando os minutos, enquanto vigiava o caminho até a estátua. Até agora, não havia nada de irregular. Nenhuma perspectiva de armadilha. O Zhongguo ren finalmente surgiu, os ombros vergados, enquanto descia correndo os degraus, debaixo da chuva, a postura do corpo lhe permitindo esquivar-se do aguaceiro. Aproximou-se da estátua do deus da guerra e parou ao chegar perto do ídolo enorme e irado. Contornou os refletores, mas o que se pôde ver por um breve instante de seu rosto transmitia apenas raiva por não avistar ninguém. Francês! Francês! Bourne correu de volta pela folhagem na direção dos degraus, efetuando mais um reconhecimento antes do encontro, reduzindo sua vulnerabilidade. Contornou o enorme poste de pedra que margeava a escadaria e olhou através da chuva para a parte superior do caminho que levava ao hotel. E divisou o que esperava não ver. Um homem de capa e chapéu saiu do velho Colonial Hotel e desatou a correr. Parou no meio do caminho para a escadaria, tirando alguma coisa do bolso; virou-se, houve um pequeno clarão... respondido no mesmo instante por um brilho correspondente, numa das janelas do apinhado saguão. Pequenas lanternas. Sinais. Um sentinela estava a caminho de um posto avançado, enquanto seu intermediário ou apoio confirmava as comunicações. Jason tornou a se virar e retornou pelo caminho que percorrera através dos arbustos encharcados. — Francês, onde você está? — Aqui! — Por que não respondeu antes? Onde? — Bem em frente. No meio dos arbustos. Venha depressa! O contato aproximou-se da folhagem; estava quase em cima. Bourne levantou-se de um pulo e agarrou-o, virando-o e empurrando-o pelas moitas molhadas, ao mesmo tempo em que lhe tapava a boca com a mão esquerda. — Se quer viver, não faça qualquer barulho! Avançando uns dez metros pela vegetação, Jason empurrou o contato contra o tronco de uma árvore. — Quem está com você? —. perguntou ele bruscamente, retirando a mão devagar da boca do homem. — Comigo? Não tem ninguém comigo! — Não minta! — Bourne sacou a arma e encostou-a na garganta do homem. O chinês jogou a cabeça para trás, os olhos arregalados, a boca entreaberta. —Não tenho tempo para armadilhas! Não
tenho tempo nenhum! — E não tem ninguém comigo! Minha palavra nessas questões é a minha própria vida! Sem isso, não tenho profissão! Bourne observou atentamente o homem. Tornou a pôr a arma no cinto, pegou o contato pelo braço e empurrou-o para a direita. — Venha comigo. E não faça barulho. Noventa segundos depois Jason e o contato haviam rastejado pela vegetação encharcada para uma área da trilha a vinte e tantos metros a oeste do imenso ídolo. O aguaceiro encobrira quaisquer ruídos que poderiam ser captados numa noite seca. Subitamente, Bourne segurou o oriental pelo ombro, obrigando-o a parar. O sentinela podia ser divisado à frente, agachado, através do facho de um refletor da estátua, desaparecendo um instante depois. Foi apenas por um breve instante, mas era o suficiente. Bourne olhou para o contato. O chinês estava aturdido. Não conseguia desviar os olhos da área de luz pela qual o sentinela passara. Os pensamentos lhe surgiam rápidos, o terror se acumulava; era patente em seu olhar. — Si — ele murmurou. — Jiagian! — Em simples palavras inglesas — disse Jason, através da chuva. — Aquele homem é um executor? — Shi!... Sim. — O que você me trouxe? — Tudo — balbuciou o contato, ainda em choque. — O primeiro pagamento, as instruções... tudo. — Um cliente não manda dinheiro se vai matar o homem que está contratando. — Sei disso — murmurou o contato, balançando a cabeça e fechando os olhos. — É a mim que eles querem matar. Suas palavras para Liang no passeio do cais haviam sido proféticas, pensou Bourne. Não é uma armadilha para mim... É para você... Já fez o seu trabalho e eles não podem deixar qualquer pista... Não podem permitir que você continue a viver. — Há outro lá em cima, no hotel. Vi quando trocaram um sinal com lanternas. Foi por isso que não pude lhe responder por vários minutos. O chinês virou-se e fitou Jason; não havia qualquer auto- compaixão em seus olhos. — Os riscos da minha profissão — disse ele, simplesmente. — Como dizem os tolos, vou me
juntar a meus ancestrais... e espero que eles não sejam tão tolos. Tome aqui. O contato enfiou a mão no bolso interno e retirou um envelope, acrescentando: — Está tudo aqui. — Conferiu? — Só o dinheiro. Está todo aí. Eu não me encontraria com o Francês com menos do que ele pediu, e o resto não é da minha conta. — De repente, o homem observou Bourne atentamente, piscando os olhos sob o aguaceiro. — Mas você não é o Francês! — Adivinhou — disse Jason. — As coisas aconteceram muito depressa para você esta noite. — Quem é você? — Apenas alguém que apareceu no mesmo lugar em que você se encontrava. Quanto dinheiro trouxe? — Trinta mil dólares americanos. — Se esse é o primeiro pagamento, então o alvo deve ser alguém muito importante. — Presumo que sim. — Fique com o dinheiro. — Como? O que foi que disse? — Já esqueceu que não sou o Francês? — Não estou entendendo. — Não quero sequer as instruções. Tenho certeza de que alguém com o seu calibre profissional pode tirar todo o proveito. Um homem paga bem pelas informações que podem ajudá-lo... e paga muito mais por sua vida. — Mas por que você faria isso? — Porque nada disso me interessa. Só tenho uma preocupação. Quero o homem que se chama Bourne, e não tenho tempo a perder. Você recebe o que acabei de lhe oferecer e mais um dividendo... tirarei você vivo daqui, mesmo que tenha de deixar dois cadáveres na baía. Mas você precisa me entregar o que lhe pedi pelo telefone. Disse que seu cliente contou que o assassino do Francês estava indo para outro lugar. Onde? Onde está Bourne? — Está falando muito depressa... — Já disse que não tenho tempo a perder. Fale logo. Se recusar, vou embora e seu cliente mata
você. Escolha o que preferir. — Shenzen — balbuciou o contato, como se o nome o apavorasse. — Na China? Há um alvo em Shenzen? — É o que se pode presumir. Meu cliente rico tem fontes em Queen’s Road. — O que é isso? — O consulado da República Popular. Foi concedido um visto excepcional. Ao que tudo indica, foi tudo resolvido por uma alta autoridade em Pequim. A fonte não sabia por que, e quando questionou a decisão, foi afastada da seção. E informou a meu cliente. Por dinheiro, é claro. — Por que o visto foi excepcional? — Porque não houve o período de espera e o requerente não apareceu no consulado. Duas coisas sem precedentes. — Ainda assim, foi apenas um visto. — Na República Popular não existe nada como “apenas um visto”. Muito menos para um homem branco que viaja sozinho, com um passaporte duvidoso emitido em Macau. — Macau? — Sim. — Qual é a data de entrada? — Amanhã. A fronteira de Lo Wu. Jason estudou o contato. — Disse que seu cliente tem fontes no consulado. Você também tem? — O que está pensando vai custar muito dinheiro, porque o risco é enorme. Bourne levantou a cabeça e olhou pela chuva para o ídolo iluminado. Havia movimento, o sentinela procurava por seu alvo. — Espere aqui — murmurou ele. O trem do início da manhã de Kowloon para a fronteira de Lo Wu não chegava a demorar uma hora para cobrir o percurso. A compreensão de que estava na China levou menos de dez segundos. Longa Vida para a República Popular!
Não havia necessidade do ponto de exclamação, já que os guardas da fronteira assumiam a posição. Eram rígidos, arrogantes, martelavam os passaportes com seus carimbos de borracha com a fúria de adolescentes hostis. Só que havia um sistema de apoio melhor. Além dos guardas, havia uma falange de moças em uniformes, sorrindo, por trás de várias mesas compridas, sobre as quais estavam pilhas de folhetos exaltando a beleza e as virtudes de sua terra e seu sistema. Se havia hipocrisia em suas posturas, ela não transparecia. Bourne dera ao contato traído e marcado a quantia de sete mil dólares pelo visto. Era válido por cinco dias. O objetivo da visita estava indicado como “investimentos na Zona Econômica”; era renovável no serviço de imigração em Shenzen, com a prova do investimento, juntamente com a presença confirmadora de um banqueiro chinês, através do qual o dinheiro deveria ser aplicado. Em gratidão e sem custo adicional, o contato fornecera o nome de um banqueiro de Shenzen que poderia facilmente oferecer ao “Sr. Cruett” as melhores possibilidades de investimentos; o referido Sr. Cruett ainda estava hospedado no Regent Hotel, em Hong Kong. E houvera mais um bônus do homem cuja vida ele salvara em Repulse Bay: a descrição do homem viajando com um passaporte de Macau e atravessando a fronteira em Lo Wu. Tinha “um metro e oitenta e cinco de altura, oitenta e quatro quilos, pele branca, cabelos castanho-claros”. Jason ficara aturdido com a informação, recordando inconscientemente os dados constantes de seu próprio documento de identidade: “Alt. 1,85; Peso —85 kg; Sexo — Masc.; Cor — Branca; Cab. — Cast.-Claros”. Uma estranha sensação de medo o dominara. Não o medo da confrontação; queria isso, acima de tudo, pois desejava Marie de volta mais do que qualquer outra coisa no mundo. Em vez disso, o que havia era o horror por ser responsável pela criação de um monstro. Um semeador da morte, originário de ‘um vírus letal que ele desenvolvera no laboratório de sua mente e corpo. Fora no primeiro trem que partira de Kowloon, ocupado quase que inteiramente por mão-deobra especializada e pelos executivos permitidos — seduzidos — na Zona Econômica Livre de Shenzen da República Popular, na esperança de atrair investimentos estrangeiros. Em cada parada, no caminho para a fronteira, mais e mais passageiros embarcaram. Bourne circulara pelos vagões, observando atentamente cada um dos homens brancos, um total de apenas quatorze, ao chegarem a Lo Wu. Nenhum deles se ajustava sequer vagamente à descrição do homem de Macau... a descrição de si mesmo. O novo “Jason Bourne” seguiria em outro trem. O original esperaria no outro lado da fronteira. E estava esperando agora. Durante as quatro horas que passou ali, explicou dezesseis vezes ao inquisitivo pessoal da fronteira que aguardava um sócio nos negócios; obviamente, não entendera direito a programação e pegaram um trem antes do horário combinado. Como acontece com as pessoas em qualquer país estrangeiro, mas especialmente no Oriente, o fato de um americano cortês se esforçar para ser compreendido na língua dos nativos era positivamente benéfico. Ofereceram-lhe quatro xícaras de café, sete de chá quente, e duas moças uniformizadas riram muito ao lhe entregarem um sorvete chinês em casquinha, muito doce. Ele aceitou tudo, pois agir de outra forma seria grosseria, e desde que a maioria dos membros da Quadrilha dos Quatro literalmente perdera a cabeça, ser rude era perigoso, exceto para os guardas da fronteira. Eram onze e dez. Os passageiros emergiam do corredor descoberto, comprido, murado, depois de passarem pelo serviço de imigração. Eram quase todos turistas, quase todos brancos, quase todos
aturdidos e intimidados por estarem ali. A maioria se encontrava em pequenos grupos turísticos, acompanhados por guias — um de Hong Kong, outro da República Popular — que falavam de maneira aceitável o inglês, alemão ou francês e alguns, relutantemente, o japonês, pois esses visitantes tão detestados traziam mais dinheiro do que Marx ou Confúcio jamais haviam possuído. Jason observava cada branco com o máximo de atenção. Os muitos que tinham mais de um metro e oitenta de altura eram jovens demais, velhos demais, corpulentos. demais, magros demais ou óbvios demais em suas calças verdes ou amarelas para serem o homem de Macau. Espere! Aquele ali! Um homem mais velho, num terno de gabardine castanho-amarelada, que parecia um turista de estatura mediana, claudicando, tornou-se de repente mais alto... e não estava mancando! Ele desceu rapidamente os degraus por entre a multidão e correu para o enorme estacionamento, ocupado por ônibus e furgões de turismo, além de uns poucos táxis, com um ZHAN — fora de serviço — nas janelas da frente. Bourne correu atrás do homem, esquivando-se por entre os corpos à sua frente, sem se preocupar com quem empurrava para o lado. Era o homem... o homem de Macau! — Ei, você está louco? Ralph, ele me empurroul — Empurre de volta. O que quer que eu faça? — Faça alguma coisa! — Ele já foi. O homem de terno de gabardine pulou pela porta aberta de um furgão verde-escuro, com as janelas escuras, que segundo os caracteres chineses pertencia a um departamento chamado Santuário dos Pássaros de Chutang. A porta foi fechada e o veículo no mesmo instante arrancou de sua vaga no estacionamento, derrapando ao ultrapassar outros veículos na pista de saída. Bourne estava frenético; não podia deixar o homem sumir! Havia um táxi velho à sua direita, o motor ligado, em ponto morto. Ele abriu a porta, recebendo um grito em reação. — Zhan! — berrou o motorista. — Shi ma? — gritou Jason, tirando do bolso dinheiro americano suficiente para garantir cinco anos de fausto na República Popular. — Aiya! — Zou!—ordenou Bourne, sentando-se no banco da frente e apontando para o furgão, que virava no semicírculo. E acrescentou em cantonês: — Acompanhe aquele carro e poderá iniciar o seu próprio negócio na zona. Eu lhe prometo! Marie, estou tão perto! Sei que é ele! Vou pegá-lo! Ele é meu agora! E é a nossa salvação! O furgão passou pela saída, acelerando, seguiu para o sul no primeiro cruzamento, evitando a praça grande, abarrotada de ônibus e multidões de turistas, e evitando o fluxo interminável de bicicletas nas ruas. O motorista do táxi aproximou-se do furgão numa estrada primitiva, pavimentada mais com
argila dura do que com asfalto. O veículo de janelas escuras podia ser visto à frente, iniciando uma curva longa, depois de ultrapassar um caminhão aberto que transportava maquinaria agrícola. Um ônibus de turismo se encontrava na extremidade da curva, balançando na estrada, por trás do caminhão. Bourne olhou além do furgão; havia colinas à frente, a estrada começava a subir. E depois outro ônibus de turismo apareceu, por trás deles. — Schumchun — disse o motorista. — Bin do? — perguntou Jason. — O sistema de abastecimento de água de Schumchun — explicou o motorista, em chinês. — Um reservatório muito bonito, um dos lagos mais belos da China. Manda sua água para o sul, até Kowloon e Hong Kong. Fica cheio de visitantes nesta época do ano. A paisagem de outono é uma beleza. O furgão acelerou de repente, já subindo, afastando-se do caminhão e do ônibus. — Não pode ir mais depressa? Ultrapasse o ônibus e o caminhão! — Tem muitas curvas à frente. — Tente! O motorista pisou o acelerador e ultrapassou o ônibus, deixando de bater por uma questão de centímetros, ao ser forçado a retornar a seu lado da estrada por um caminhão militar que vinha em sentido contrário, com dois soldados na cabine. Tanto os soldados como os guias do ônibus de turismo gritaram para eles através das janelas abertas. — Vão dormir com suas mães horrendas! —gritou o motorista em resposta, inebriado por seu momento de triunfo, apenas para se defrontar com o caminhão largo, transportando maquinaria agrícola, bloqueando a passagem. Estavam entrando numa curva fechada para a direita. Bourne segurou a janela e inclinou-se para fora ao máximo possível, a fim de ver o que havia pela frente. — Não há nenhum carro! — gritou ele para o motorista, através do vento. — Vá em frente! Pode ultrapassar! Agora! O motorista obedeceu, levando o velho táxi ao seu limite, os pneus rangendo na argila dura, derrapando perigosamente na frente do caminhão. Outra curva, também fechada, agora para a esquerda, a subida mais íngreme. À frente, havia uma reta, subindo por uma colina alta. Não se podia ver o furgão em parte alguma; desaparecera além da crista da colina. — Kuai! — gritou Bourne. — Não pode fazer este carro ir mais depressa? — Nunca andou tão depressa! Acho que os espíritos vão
explodir o motor! O que você vai fazer se isso acontecer? Levei cinco anos para comprar esta máquina profana e muitos subornos para poder trabalhar na Zona! O táxi chegou ao topo da colina e começou a descer rapidamente para um enorme vale, à beira de um vasto lago, que parecia se estender por quilômetros. À distância, Bourne podia avistar montanhas de picos nevados e ilhas verdes pontilhando as águas azuis-esverdeadas, até onde a vista podia alcançar. O táxi foi parar ao lado de um pagode grande, vermelho e dourado, o acesso por uma escada comprida, de concreto envernizado. Os balcões abertos davam para o lago. Barraquinhas de refrescos e lojas de antiguidades espalhavam-se em torno do estacionamento, onde se encontravam quatro ônibus de turismo, com os guias bilíngües gritando instruções e suplicando aos seus turistas que não entrassem nos veículos errados, ao final do passeio. O furgão de janelas escuras não estava em parte alguma. Bourne moveu a cabeça rapidamente, procurando em todas as direções. Onde estava? — Para onde vai aquela estrada? —perguntou ele ao motorista, apontando. — Vai para a estação das bombas. Ninguém tem permissão para descer por ali. A estrada é patrulhada pelo exército. Depois da curva, tem uma cerca alta e uma casa da guarda. — Espere aqui. Jason saltou do táxi e começou a se encaminhar para a estrada proibida, desejando ter uma câmara ou um guia... alguma coisa que o caracterizasse como turista. Nas circunstâncias, o melhor que podia fazer era assumir o andar hesitante e a expressão de olhos arregalados de um excursionista. Nenhum objeto era insignificante demais para sua inspeção. Aproximou-se da curva, no caminho mal pavimentado; viu a cerca alta e depois a casa da guarda. Uma barra de metal comprida estendia-se pela estrada, e dois soldados se encontravam ali, conversando, de costas para ele, olhando para o outro lado... na direção de dois veículos estacionados lado a lado, mais abaixo, junto a uma estrutura de concreto quadrada, pintada de marrom. Um dos veículos era o furgão de janelas escuras e o outro, um sedã marrom. O furgão começou a andar. Estava se encaminhando para a barreira! Os pensamentos de Bourne foram rápidos. Não estava armado; era inútil sequer considerar a possibilidade de levar uma arma através da fronteira. Se tentasse deter o furgão e tirar o matador de lá de dentro, o tumulto atrairia os guardas, os rifles poderiam disparar implacavelmente. Portanto, tinha de atrair o homem de Macau para fora... por sua livre e espontânea vontade. Jason estava preparado para o resto; haveria de dominar o impostor, de um jeito ou de outro. Haveria de levá-lo de volta através da fronteira... de um jeito ou de outro. Nenhum homem era adversário para ele; não havia olhos, garganta ou virilha a salvo de um ataque rápido e agonizante. David Webb jamais enfrentara essa realidade. Bourne a vivera. Havia um jeito! Jason correu de volta ao início da curva deserta da estrada, além da vista da barreira e dos soldados. Reassumiu a pose do turista fascinado e ficou escutando. O motor do furgão caiu para ponto
morto; o ranger de metal significava que a cancela estava sendo levantada. Só mais alguns momentos. Bourne manteve-se em sua posição nas moitas, ao lado da estrada. O furgão contornou a curva, enquanto ele calculava seus movimentos com precisão. E de repente estava ali, na frente do veículo grande, com uma expressão apavorada, girando para o lado, abaixo da janela do motorista, batendo com a palma na porta e soltando um grito de dor, como se tivesse sido atropelado, talvez morto. E se jogou no chão, enquanto o furgão parava; o motorista saltou, um inocente prestes a protestar sua inocência. Não teve oportunidade de fazê-lo. O braço de Jason se estendeu e agarrou o homem pelo tornozelo, puxando-o e derrubando-o. O homem foi bater com a cabeça no lado do furgão e escorregou inconsciente para o chão. Bourne arrastou-o para a traseira do furgão, por baixo das janelas escuras. O casaco do homem estava estofado; era uma arma, algo previsível, considerando-se a carga transportada. Jason tirou-a e esperou pelo homem de Macau. Ele não apareceu. O que não era lógico. Bourne foi para a frente do furgão, segurou na beira do assento, no lado do motorista, levantou-se abruptamente, a arma de prontidão, esquadrinhando a traseira do veículo. Não havia ninguém. Estava vazio. Saltou e foi até o motorista, cuspiu em sua cara, deu-lhe alguns tapas, até que recuperasse a consciência. — Nali — sussurrou Bourne, o tom ríspido. — Onde ficou o homem que estava aqui? — Lá atrás! — respondeu o motorista, em cantonês, sacudindo a cabeça. — No carro oficial, com um homem que ninguém conhece. Poupe a minha vida miserável! Tenho sete filhos! — Volte para o volante. — Bourne levantou o homem e empurrou-o para a porta aberta. — E saia daqui o mais depressa que puder. Não havia necessidade de qualquer outro conselho. O furgão disparou da área do reservatório de Schumchun, derrapando na curva para a entrada principal com tamanha velocidade que Jason pensou que despencaria pela margem. Um homem que ninguém conhece. O que isso significava? Não importava, o homem de Macau estava acuado. Encontrava-se num sedã marrom, além do portão da estrada proibida. Bourne voltou ao táxi e sentou no banco da frente; o dinheiro espalhado fora removido do chão. — Está satisfeito? — disse o motorista. — Terei dez vezes o que largou em meus pés indignos? — Corta essa, Charlie Chan. Um carro vai sair por aquela estrada da casa das bombas e você fará exatamente o que eu mandar. Está me entendendo? — E você compreende dez vezes a quantia que deixou em meu táxi velho e sem valor?
— Compreendo perfeitamente. Pode ser quinze vezes, se fizer direito o seu trabalho. Vá para a saída do estacionamento. Não sei quanto tempo teremos de esperar. — Tempo é dinheiro, senhor. — Ora, cale essa boca! A espera foi mais ou menos de vinte minutos. O sedã marrom apareceu e Bourne viu o que não percebera antes. As janelas eram ainda mais escuras que as do furgão; quem quer que se encontrasse lá dentro, estava invisível. E foi nesse instante que Jason ouviu as últimas palavras que desejava ouvir. — Fique com o seu dinheiro — murmurou o motorista. — Voltarei para Lo Wu. Nunca vi você. — Por quê? — Aquele carro é do governo... um dos veículos oficiais do nosso governo... e não serei eu quem vai segui-lo. — Ei, espere um pouco! Espere! Vinte vezes o que lhe dei, com uma gratificação adicional se tudo correr bem. Até eu dar outra instrução, pode ficar bem atrás do carro. Sou apenas um turista que quer conhecer a região. Não... espere! Vou lhe mostrar uma coisa! Meu visto diz que vim aqui para investir dinheiro. E os investidores têm permissão para olhar por aí! — Vinte vezes? — repetiu o motorista, fitando Jason atentamente. — Qual a minha garantia de que vai cumprir sua promessa? — Deixarei o dinheiro no assento, entre nós. Você está guiando; pode fazer uma porção de coisas com este carro para as quais eu não estaria preparado. Não vou tentar pegar o dinheiro de volta. — Está bem. Mas vou ficar bem atrás. Conheço estas estradas. Não há muitos lugares por onde se passar. Cerca de trinta e cinco minutos depois, com o sedã marrom ainda à vista, mas bem na frente, o motorista voltou a falar: — Eles vão para o aeroporto. — Que aeroporto? — É usado pelas autoridades do governo e homens ricos do sul. — Pessoas investindo em fábricas... na indústria? — Esta é a Zona Econômica. — Sou um investidor — murmurou Bourne. É o que diz o meu visto. Vamos em frente. Chegue mais perto. Depressa!
— Há outros cinco veículos entre nós e combinamos... eu fico bem para trás. — Até eu dar outra instrução! A situação mudou. Tenho dinheiro. Estou investindo na China. — Seremos parados no portão. E haverá telefonemas. — Tenho o nome de um banqueiro em Shenzen. — Ele tem seu nome, senhor? E está com uma lista das firmas chinesas com que vem negociando? Em caso positivo, pode ter uma boa conversa no portão. Mas se o banqueiro de Shenzen não o conhecer, será detido por prestar informação falsa. Sua permanência na China será tão longa quanto for necessário para investigá-lo meticulosamente. Semanas, meses. — Tenho de alcançar aquele carro! — Se chegar perto daquele carro, será fuzilado. — Mas que diabo! — exclamou Jason em inglês, para logo depois voltar ao chinês: — Não tenho tempo para explicar, mas preciso ver o homem que está naquele carro. — Isso não é da minha conta — disse o motorista, frio e cauteloso. — Vá até o portão — ordenou Bourne. — Sou um passageiro que pegou em Lo Wu, e isso é tudo. Pode deixar que eu falo tudo. — Está pedindo demais. Não quero ser visto em companhia de alguém como você. — Faça o que estou mandando — disse Jason, tirando a arma do cinto. As batidas em seu peito eram insuportáveis. Bourne estava parado ao lado de uma janela grande, olhando para o aeroporto. O terminal era pequeno, para viajantes privilegiados. A visão incongruente de despreocupados executivos ocidentais carregando pastas e raquetes de tênis enervava Jason, por causa do contraste extremo com os guardas uniformizados, de pé, em posições rígidas. Óleo e água eram aparentemente compatíveis. Falando em inglês para o intérprete, que traduzira acuradamente para o oficial da guarda, ele alegara ser um confuso executivo, instruído pelo consulado na Queen’s Road, em Hong Kong, a ir ao aeroporto para se encontrar com uma alta autoridade que viria de avião de Pequim. Indicara o nome de um homem que conhecera rapidamente no Departamento de Estado em Washington, mas tinha certeza de que o reconheceria. Insinuara que a reunião contava com o beneplácito de homens importantes no Comitê Central. Recebera um passe que limitava seus movimentos ao terminal e depois indagara se o táxi podia permanecer no aeroporto, para o caso de precisar de transporte mais tarde. O pedido fora atendido. — Se quer seu dinheiro, tem de ficar — ele dissera ao motorista, em cantonês, enquanto recolhia as notas dobradas entre os dois.
— Tem uma arma e olhos furiosos. Sei que pode matar. Jason fitara-o nos olhos. — A última coisa no mundo que quero é matar o homem naquele carro. Eu só mataria para proteger sua vida. O sedã marrom com as janelas opacas não estava no estacionamento. Bourne caminhara tão depressa quanto julgara apropriado para o terminal, indo se postar junto à janela, onde se encontrava agora, as têmporas latejando de ira e frustração, pois lá fora, no campo, podia divisar o carro do governo. Estava estacionado na pista, a não mais de quinze metros de distância, mas uma impenetrável muralha de vidro o separava do homem... e da libertação. E subitamente, o sedã disparou para a frente, na direção de um jato de tamanho médio, a várias centenas de metros para o norte, na pista. Bourne aguçou a vista, desejando estar munido de um binóculo. E depois compreendeu que seria inútil; o carro fez a volta na cauda do avião e desapareceu de seu campo de visão. Mas que droga! Poucos segundos depois o jato começou a taxiar para a cabeceira da pista, enquanto o sedã marrom voltava na direção do estacionamento e da saída. O que ele podia fazer? Não posso ser deixado assim! Ele está ali! Ele é meu e está ali! E vai escapar! Bourne correu para o primeiro balcão, assumindo a atitude de um homem profundamente perturbado. — O avião que está prestes a decolar! Eu deveria estar nele! Vai para Xangai e as pessoas em Pequim disseram que eu deveria estar nele! Mandem parar! A funcionária atrás do balcão pegou o telefone. Discou rapidamente, depois deixou escapar um suspiro de alívio pelos lábios contraídos. — Aquele não é o seu avião, senhor. Ele está voando para Guangdong. — Para onde? — A fronteira de Macau, senhor. “Nunca! Não deve ser em Macau!”, gritara o taipan. A ordem será rápida, a execução ainda mais rápida! Sua esposa morrerá!” Macau. Mesa Cinco. O cassino de Kam Pek. “Se ele seguir para Macau”, dissera McAllister, suavemente, “pode se tornar um terrível perigo...”
“Solução final?” “Não posso usar essa expressão.”
Capítulo 14 — Você não vai me dizer isso! Não pode dizer! — Edward Newington McAllister levantou-se da cadeira de um pulo. — É inaceitável! Não posso admitir! Não vou ouvir! — É melhor ouvir, Edward — disse o Major Lin Wenzu. — Aconteceu. — A culpa é minha — acrescentou o médico inglês, parado diante da mesa, na mansão em Victoria Peak, fitando o americano. Todos os sintomas que ela apresentava levavam a um prognóstico de rápida deterioração neurológica. Perda de concentração e de foco visual, falta de apetite e uma correspondente perda de peso... e o que era mais significativo, os espasmos, quando ocorria uma total ausência de controle motor. Pensei sinceramente que o processo degenerativo alcançara uma crise negativa... — E o que isso significa? — Que ela estava morrendo. Claro que não em uma questão de horas, nem mesmo dias ou semanas. Mas o curso parecia irreversível. — Poderia estar certo? — Nada me agradaria mais do que concluir que estava certo, que meu diagnóstico foi pelo menos aceitável. Mas não posso. Nos termos mais simples, fui ludibriado. — Quer dizer que foi golpeado? — Figuradamente, foi o que aconteceu. E onde dói mais, Sr. Subsecretário. No meu orgulho profissional. Aquela mulher me enganou com sua encenação e provavelmente não sabe a diferença entre fêmur e febre. Tudo o que ela fez foi calculado, dos apelos à enfermeira até agredir o guarda e tirar suas roupas. Todos os seus movimentos foram planejados, e o único distúrbio foi meu. — Oh, Deus, tenho de falar com Havilland! — O Embaixador Havilland? — indagou Lin, arqueando as sobrancelhas. McAllister virou-se para ele. — Esqueça que ouviu isso. — Não vou repetir, mas também não posso esquecer. As coisas estão mais claras, Londres está mais clara. Está falando do Estado-Maior, do próprio Olimpo. — Não mencione esse nome para ninguém, doutor — disse McAllister. — Já esqueci. E não tenho certeza se sequer sei quem ele é. — O que posso dizer? O que você vai fazer?
— Tudo o que for humanamente possível — respondeu o major. — Dividimos Hong Kong e Kowloon em seções. Estamos investigando cada hotel, examinando meticulosamente os registros. Alertamos a polícia e as patrulhas marítimas. Todos têm cópias da descrição da mulher e receberam a instrução de que encontrá-la é uma preocupação prioritária do território... — Mas o que você disse? Como pôde explicar? — Pude dar uma ajuda nesse ponto — interveio o médico. — Tendo em vista a minha estupidez, era o mínimo que eu podia fazer. Emiti um alerta módico. Com isso, pudemos recrutar a ajuda de equipes paramédicas, que foram enviadas de todos os hospitais, embora permanecendo em contato pelo rádio para outras emergências, é claro. Estão esquadrinhando as ruas. — Que espécie de alerta médico? — perguntou McAllister bruscamente. — Um mínimo de informações, mas do tipo que cria o maior alvoroço. A mulher visitou uma ilha não-identificada no Estreito de Luzon, proibida aos viajantes internacionais por causa de uma doença virulenta, transmitida por talheres sujos. — Com essa classificação — acrescentou Lin — nosso bom doutor eliminou qualquer hesitação de parte das equipes em abordá-la e detê-la. Não que fossem fazer isso, mas todo cesto tem sua maçã menos do que perfeita, e não podemos permitir nenhuma. Acredito sinceramente que vamos encontrála, Edward. Todos sabemos que ela se destaca numa multidão. Alta, atraente, com aqueles cabelos... e há mais de mil pessoas à sua procura. — Torço para que você esteja certo, mas não posso deixar de me preocupar. Ela foi treinada por um camaleão — disse McAllister. — Como? — Não é nada, doutor — interveio o major. — Apenas um termo técnico em nossa profissão. — Preciso do arquivo, todo ele! — Para que, Edward? — Eles foram caçados na Europa. Agora estão separados, mas ainda são caçados. O que fizeram naquela ocasião? O que vão fazer agora? — Um fio da meada? Um padrão? — Sempre existe — murmurou McAllister, esfregando a têmpora direita. — Com licença, senhores, mas tenho de pedir para que se retirem. Preciso dar um telefonema desagradável. Marie trocou roupas e pagou uns poucos dólares por outras. O resultado foi aceitável: com os cabelos puxados para trás, sob um chapéu de sol mole, de aba larga, era uma mulher de aparência comum, com uma saia pregueada e uma blusa cinza larga, escondendo por completo a silhueta. As sandálias sem saltos diminuíam a sua altura, e a imitação de bolsa Gucci caracterizava-a como uma
crédula turista em Hong Kong, justamente o que ela não era. Ligou para o consulado canadense e foi informada de como poderia chegar lá de ônibus. Ficava na Casa Asiática, décimo quarto andar, Hong Kong. Ela pegou o ônibus na Universidade Chinesa, atravessou Kowloon e o túnel para a ilha, sempre observando atentamente as ruas. Saltou no ponto indicado. Subiu no elevador, convencida de que nenhum dos homens lá dentro lhe lançara um segundo olhar; não era essa a reação habitual. Aprendera em Paris — ensinada por um camaleão — como usar as coisas simples para mudar. As aulas estavam lhe voltando agora. — Sei que parece ridículo — disse ela à recepcionista, em voz descontraída e jovial, um pouco aturdida —, mas tenho um primo em segundo grau, por parte de mãe, servindo aqui, e prometi vir visitá-lo. — Isso não me parece ridículo. — Mas vai parecer quando eu lhe disser que esqueci o nome dele. — As duas mulheres riram. — É verdade que nunca nos encontramos e provavelmente ele prefere continuar assim, mas tenho de dar uma satisfação à família. — Sabe em que seção ele trabalha? — Acho que tem alguma relação com economia. — Deve ser a Divisão de Comércio. — A recepcionista abriu uma gaveta e tirou um folheto branco estreito, com a bandeira canadense impressa na capa. — Aqui está a nossa lista. Por que não senta e dá uma olhada? — Muito obrigada. —Marie foi para uma poltrona de couro e sentou, acrescentando: — Tenho uma terrível sensação de incompetência. Afinal, eu deveria saber o nome dele. Tenho certeza de que você conhece os nomes dos primos em segundo grau por parte de mãe. — Meu bem, não tenho a menor idéia. O telefone da recepcionista tocou; ela atendeu. Virando as páginas, Marie leu rapidamente, esquadrinhando as colunas à procura de um nome que lhe evocasse um rosto. Encontrou três, mas as imagens eram nebulosas, as feições não muito claras. Mas na página doze um rosto e uma voz afloraram em sua mente, ao ler o nome Catherine Staples. Catherine “Geladeira”, Catherine “Neve”, “varapau” Sta ples. Os apelidos eram injustos e não ofereciam um retrato ou avaliação acurada da mulher. Marie conhecera Catherine Staples quando trabalhara na Secretaria do Tesouro, em Ottawa, instruindo ela e outras pessoas da seção, o pessoal do corpo diplomático que estava sendo enviado para postos no exterior. Staples aparecera duas vezes, uma para um curso de atualização sobre o Mercado Comum Europeu... e a segunda, claro, para Hong Kong! Já havia transcorrido treze ou quatorze meses; embora a amizade não pudesse ser chamada de profunda —
quatro ou cinco almoços, um jantar que Catherine preparara e outro com que Marie retribuíra — ela aprendera muito sobre a mulher que fazia o seu trabalho melhor do que a maioria dos homens. Para começar, seu rápido progresso no Departamento de Assuntos Exteriores lhe custara um casamento. Declarara que renunciara ao casamento pelo resto de sua vida, já que as exigências de viagens e as horas de trabalho mais insólitas eram inaceitáveis para qualquer homem que tivesse algum valor. Com cinqüenta e poucos anos, Staples era uma mulher esguia, dinâmica, de estatura mediana, que se vestia com elegância, mas também com simplicidade. Era uma profissional séria, com uma ironia que transmitia sua aversão à incompetência, que sempre percebia e não tolerava. Podia ser generosa e até mesmo gentil com os homens e mulheres desqualificados para as funções em que serviam, já que não eram culpados por isso, mas mostrava-se implacável com os responsáveis pelas indicações, independente de suas posições. Se havia uma frase que resumia Catherine Staples era “dura porém justa”; além disso, ela era também bastante divertida, às vezes, num estilo em que zombava de si mesma. Marie esperava que ela continuasse justa em Hong Kong. — Não há nenhum nome aqui que me lembre alguma coisa — disse Marie, levantando-se e indo devolver a lista à recepcionista. — Estou me sentindo uma idiota. — Tem alguma idéia de sua aparência? — Nunca pensei em perguntar. — Lamento muito. — Pois eu lamento ainda mais. Terei de dar um telefonema muito embaraçoso para Vancouver... Ah, encontrei um nome. Não tem nada a ver com meu primo, mas acho que é amiga de uma amiga. Uma mulher chamada Staples. — Catherine a Grande? Ela está de fato aqui, embora muitas pessoas não se importassem se fosse promovida a embaixadora e enviada para a Europa Oriental. Deixa as pessoas nervosas. É uma mulher difícil. — Quer dizer que ela se encontra aqui agora? — A menos de dez metros de distância. Quer me dar o nome de sua amiga e ver se ela tem tempo para um alô? Marie sentiu-se tentada, mas o ônus da burocracia proibia o atalho. Se a situação era como Marie julgava, um alarme fora enviado a todos os consulados amigos, e Staples podia sentir-se compelida a cooperar. Provavelmente não o faria, mas tinha de manter a integridade de seu cargo. Embaixadas e consulados constantemente solicitavam favores mútuos. Ela precisava de tempo com Catherine e não podia ser num cenário oficial. — É muita gentileza sua — disse Marie à recepcionista. — Minha amiga ficaria feliz... Ei, espere um pouco! Você disse Catherine? — Isso mesmo. Catherine Staples. E pode estar certa de que só existe uma.
— Tenho certeza que sim, mas acontece que o nome da amiga de minha amiga é Christine. Oh, céus, hoje não é o meu dia! Tem sido muito gentil e por isso vou parar de chateá-la e deixá-la em paz. — Foi um prazer conversar com você, meu bem. Devia ver as pessoas que entram aqui, pensando que compraram um Cartier por um preço sensacional, até que pára de funcionar e um relojoeiro informa que por dentro só tem dois elásticos e um ioiô. — Os olhos da recepcionista baixaram para a bolsa Gucci com os gês invertidos. — Essa não... — disse ela devagar. — O que foi? — Nada. Boa sorte com seu telefonema. Marie esperou no saguão da Casa Asiática pelo tempo que achou seguro, depois saiu e ficou andando de um lado para outro, pela frente do prédio, por quase uma hora, na rua apinhada. Passava um pouco de meio-dia e ela já se perguntava se Catherine perdia tempo em almoçar... e um almoço seria uma excelente idéia. Havia ainda outra possibilidade, talvez uma impossibilidade, mas pela qual podia orar, se ainda se lembrasse. David podia aparecer, só que não seria como David, e sim como Jason Bourne, o que podia ser qualquer um. O marido como Bourne seria muito mais esperto; ela testemunhara a sua inventividade em Paris e era de outro mundo, um mundo letal, em que um passo em falso poderia custar a vida de uma pessoa. Cada movimento era premeditado, em três ou quatro dimensões. E se eu...? E se ele...? O intelecto desempenhava um papel muito maior no mundo violento do que os intelectuais não-violentos jamais admitiriam... seus cérebros estourariam num mundo que desdenhavam como bárbaro, porque não podiam pensar bastante depressa ou com profundidade suficiente. Cogito ergo coisa nenhuma. Por que ela estava pensando essas coisas? Pertencia ao segundo mundo, e David também! E no instante seguinte a resposta se tornou evidente. Haviam sido lançados de volta no outro mundo, precisavam sobreviver e encontrar um ao outro. E lá estava ela! Catherine Staples saiu andando — marchando — da Casa Asiática e virou à direita. Estava a menos de doze metros de distância. Marie começou a correr, empurrando as pessoas, na tentativa de alcançá-la. Tente jamais correr, pois isso serve para destacá-la. Não me importo! Preciso falar com ela de qualquer maneira! Staples atravessou a calçada. Havia um carro do consulado à espera no meio-fio, a insígnia da folha de bordo pintada na porta. Ela estava embarcando. — Não! Espere! — gritou Marie, esbarrando em várias pessoas e segurando a porta no instante em que Catherine ia fechá-la. — O que deseja? — gritou Staples, enquanto o motorista se virava no banco da frente, uma arma surgindo do nada. — Por favor! Sou eu! Ottawa! As sessões de instruções!
— Marie? É mesmo você? — Sou eu mesma. Estou com um problema e preciso de sua ajuda. — Entre. — Catherine Staples afastou-se no banco, acrescentando para o motorista: — Pode guardar essa coisa tola. Ela é minha amiga. Cancelando o almoço marcado, sob o pretexto de uma convocação da delegação britânica — uma ocorrência comum durante as conferências com os representantes da República Popular para discutir o tratado de 1997 —, Catherine Staples ordenou ao motorista que as deixasse no início da Food Street, na Causeway Bay. A Food Street oferecia o espetáculo irresistível de cerca de trinta restaurantes no espaço de dois quarteirões. O tráfego era proibido na rua, e mesmo que não fosse, não haveria a menor possibilidade de qualquer veículo motorizado passar pela massa humana em busca de cerca de quatro mil mesas. Catherine levou Marie à entrada de serviço de um restaurante. Tocou a campanhia, e quinze segundos depois a porta foi aberta, acompanhada pelos odores de uma centena de pratos orientais. — Srta. Staples que prazer vê-la! — disse o chinês com um avental branco de cozinheiro... um dos muitos cozinheiros. — Por favor, entre. Como sempre, há uma mesa à sua espera. Enquanto atravessavam o caos da enorme cozinha, Catherine virou o rosto para Marie e comentou: — Graças a Deus que há umas poucas vantagens nesta profissão, tão mal paga. O proprietário tem parentes em Quebec... um excelente restaurante na St. John Street... e providencio para que seu visto seja concedido, como eles dizem, “bem-bem depressa”. Catherine acenou com a cabeça para uma das poucas mesas vazias na área dos fundos, perto da porta da cozinha. Elas sentaram, literalmente ocultas pelo fluxo incessante de garçons passando apressadamente de um lado para outro das portas de vaivém, assim como pelo alvoroço permanente nas dezenas de mesas do restaurante apinhado. — Obrigada por pensar num lugar assim — disse Marie. Staples respondeu com sua voz gutural e inflexível: — Ora, minha cara, qualquer pessoa com a sua aparência que se veste como está vestida agora e se maquila como está agora não quer atrair atenção. — Como costumam dizer, acertou na mosca. A pessoa com quem ia almoçar vai aceitar a história da delegação britânica? — Sem pensar duas vezes. A pátria está recorrendo a suas forças mais persuasivas. Pequim compra de nós vastas quantidades de trigo muito necessário... mas você sabe disso tão bem quanto eu, provavelmente muito mais, até em termos de dólares e cents. — Não estou muito informada atualmente.
— Posso entender. — Staples acenou com a cabeça, olhando firme mas gentilmente para Marie, com expressão inquisitiva. — Eu estava aqui na ocasião, mas ouvimos os rumores e lemos os jornais europeus. Dizer que ficamos em choque não ésufi ciente para descrever o que as pessoas que conheciam você sentiram. Nas semanas que se seguiram, todos tentamos encontrar respostas, mas nos disseram para esquecer o assunto... para o seu bem. “Não tentem descobrir nada”, eles insistiram. “É do interesse dela que ninguém se meta.” Claro que acabamos sendo informados que você foi absolvida de todas as acusações... Mas que frase insultuosa, depois de tudo por que você passou! E depois você desapareceu, ninguém mais teve notícias suas. — Eles disseram a verdade, Catherine. Era do meu interesse... do nosso interesse... que ninguém soubesse de nós. Passamos meses escondidos, e quando retomamos uma vida civilizada, foi num lugar remoto e sob um nome que poucas pessoas conheciam. Os guardas, no entanto, continuaram presentes. — Nós? — Casei com o homem sobre o qual você leu nos jornais. Claro que ele não era o homem descrito pelos jornais. Estava empenhado numa missão secreta para o governo americano. Renunciou a muita coisa de sua vida por esse compromisso terrivelmente estranho. — E agora você está em Hong Kong e me diz que tem um problema. — Isso mesmo, estou em Hong Kong e tenho um grave problema. — Posso presumir que os acontecimentos do ano passado estão relacionados com suas dificuldades atuais? — Acho que sim. — O que pode me contar? — Tudo o que sei, porque quero a sua ajuda. E não tenho o direito de pedi-la se você não souber de tudo o que sei. — Gosto de uma linguagem sucinta. Não apenas pela clareza, mas também porque define a pessoa que a está usando. Você está dizendo também que se eu não souber de tudo provavelmente não poderei fazer nada. — Eu não havia pensado assim, mas provavelmente você tem razão. — Ótimo. Eu a estava testando. Na nouvelle diplomatie a simplicidade franca tornou-se tanto uma cobertura quanto um instrumento. É usada muitas vezes para encobrir a duplicidade, assim como para desarmar um adversário. Estou me referindo às recentes proclamações de seu novo país... novo como uma esposa, é claro. — Sou economista, Catherine, e não diplomata. — Combine os talentos que sei que você possui e poderá escalar as culminâncias de
Washington, como teria feito em Ottawa. Mas também não teria a obscuridade que tanto deseja em sua vida civilizada recuperada. — Nós precisamos disso. É tudo o que importa. — Sondando de novo. Você não é uma mulher desprovida de ambição. Ama esse seu marido. — E muito. Quero encontrá-lo. Quero-o de volta. Catherine levantou a cabeça abruptamente, piscando os olhos. — Ele está aqui? — Em algum lugar. É parte da história. — Não pode se controlar... e é isso mesmo o que estou querendo dizer, Marie... até nos encontrarmos em algum lugar mais discreto? — Aprendi a ter paciência com um homem cuja vida dependia disso, vinte e quatro horas por dia, durante três anos. — Puxa vida! Você está com fome? — Faminta. Isso é também parte da história. Já que você está aqui e me escutando, podemos pedir alguma coisa? — Evite o dim sum; é cozido demais e frito demais. O pato, porém, é o melhor de Hong Kong... Pode esperar, Marie? Prefere ir embora agora? — Claro que posso esperar, Catherine. Toda a minha vida está em jogo. Meia hora não vai fazer qualquer diferença. E se eu não comer, não serei coerente. — Sei disso. É parte da história. Elas sentaram uma na frente da outra, no apartamento de Staples, separadas por uma mesinha, partilhando um bule de chá. — Em trinta anos de serviço diplomático, acho que acabei de ouvir o que representa o mais clamoroso abuso do cargo... em nosso lado, é claro — comentou Catherine. — A menos que tenha ocorrido um sério mal-entendido. — Está dizendo que não acredita em mim. — Ao contrário, minha cara, você não poderia inventar essa história. Tem toda razão. Toda a coisa está impregnada de lógica ilógica. — Eu não falei isso.
— Não precisava falar, pois é evidente. Seu marido é preparado, as possibilidades implantadas, e depois ele é disparado como um foguete nuclear. Por quê? — Já lhe disse. Há um homem matando pessoas que se diz chamar Jason Bourne... o papel que David representou durante três anos. — Um assassino é um assassino, não importa o nome que assuma, quer seja Gêngis Khan ou Jack o Estripador ou, se você quiser, Carlos o Chacal... até mesmo o assassino Jason Bourne. Armadilhas para homens assim são planejadas com o consentimento dos que vão executá-la. — Não estou entendendo, Catherine. — Pois então preste atenção, minha cara. É uma mente antiga que está falando. Lembra quando fui procurá-la para o curso de atualização sobre o Mercado Comum, com ênfase no comércio do bloco oriental? — Claro que lembro. Fizemos um jantar uma para a outra. O seu foi muito melhor que o meu. — Tem razão, foi mesmo. Mas na verdade estive lá para aprender como convencer meus contatos no bloco oriental de que eu poderia usar as taxas de flutuação de câmbio a fim de que as compras efetuadas conosco se tornassem mais lucrativas para eles. Foi o que fiz. E o pessoal de Moscou ficou furioso. — E o que isso tem a ver comigo, Catherine? Staples fitou Marie nos olhos, o comportamento gentil outra vez revestido de firmeza. — Deixe-me explicar. Se você pensasse a respeito, haveria de presumir que eu estava em Ottawa para adquirir uma noção precisa da economia européia, a fim de poder realizar meu trabalho ainda melhor. Num certo sentido, isso era verdade. Só que não era o verdadeiro motivo. Eu estava lá para aprender a usar as flutuações das diversas moedas e oferecer contratos com maiores benefícios para os nossos clientes em potencial. Quando o marco alemão subia, vendíamos por franco, guilda ou qualquer outra moeda. Havia uma cláusula específica nos contratos. — Não era um esquema dos mais proveitosos. — Não estávamos em busca de lucros, mas sim querendo abrir mercados que se encontravam fechados para nós. Os lucros viriam mais tarde. Você foi muito objetiva ao falar da especulação com os taxas de câmbio. Apregoou os seus males, e tive de aprender a ser como um demônio... por uma boa causa, é claro. — Muito bem, você usou a inteligência que tenho, qualquer que seja, para um propósito que eu desconhecia... — É evidente que o objetivo tinha de ser mantido em segredo absoluto. — Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa que lhe contei?
— Posso farejar um pedaço de carne estragada, e lhe garanto que este nariz é experiente. Assim como eu tinha um motivo oculto ao procurá-la em Ottawa, quem quer que esteja fazendo isso com vocês tem uma razão mais profunda do que a captura do impostor de seu marido. — Por que diz isso? — Seu marido disse primeiro. É basicamente um problema de polícia, até mesmo de polícia internacional, um trabalho para a rede de informações altamente respeitada da Interpol. Eles estão muito mais qualificados para isso do que o Departamento de Estado ou o Foreign Office, a CIA ou o MI-Seis. Os serviços de informações exteriores não se preocupam com os criminosos não-políticos... os assassinos comuns... não podem se dar a esse luxo. Quase todos os imbecis revelariam as coberturas que conseguiram assumir se interferissem com o trabalho da polícia. — Não foi o que McAllister falou. Ele garantiu que os melhores agentes dos serviços secretos americanos e ingleses estavam trabalhando no caso. Alegou que se esse assassino que se apresenta como meu marido... o que meu marido era aos olhos dos outros... assassinasse uma alta personalidade política em cada lado ou desencadeasse uma guerra no submundo, a situação de Hong Kong correria risco imediato. Pequim entraria em ação e assumiria o controle, usando como pretexto o tratado de 1997. “O oriental não tolera um filho desobediente”... foram estas as suas palavras. — Inaceitável e inacreditável! — protestou Catherine Staples — Ou seu subsecretário é um mentiroso ou tem o QI de um asno. Apresentou todos os motivos para os nossos serviços secretos permanecerem fora do caso, não se envolverem em hipótese alguma. Até mesmo a insinuação de uma ação secreta seria desastrosa. Isso pode incendiar os homens mais frenéticos do Comitê Central. Mas, independente disso, não acredito em uma só palavra do que ele disse. Londres nunca permitiria, jamais concordaria sequer com a menção do nome do Setor Especial. — Está enganada, Catherine. Não estava prestando atenção. O homem que voou para Washington a fim de buscar o arquivo de Casa de Pedra era britânico, do MI-Seis E foi assassinado por causa desse arquivo. — Já ouvi isso e continuo a não acreditar. Acima de qualquer outra coisa, o Foreign Office insistiria para que toda essa confusão permanecesse aos cuidados da polícia, e somente da polícia. Vivemos em momentos difíceis e não há margem para trapaças, especialmente do tipo que leva uma organização oficial de serviço secreto a se envolver com um assassino. Estou absolutamente convencida de que você foi trazida para cá e forçaram seu marido a segui-la por outro motivo. — Pelo amor de Deus, qual? — gritou Marie, inclinando-se para a frente bruscamente. — Não sei. Talvez haja alguém mais. — Quem? — Isso foge à minha compreensão. Silêncio. Duas mentes extremamente inteligentes refletiam sobre as palavras que cada uma pronunciara.
— Catherine — disse Marie finalmente —, aceito a lógica de tudo o que você diz, mas também falou que toda a situação estava impregnada de lógica ilógica. Vamos supor que eu esteja certa, que os homens que me detiveram aqui não eram assassinos nem criminosos, mas burocratas cumprindo ordens que não compreendiam, que a palavra governo se achava estampada em seus rostos e em suas explicações evasivas, até mesmo em sua preocupação por meu conforto e bem-estar. Sei que você acha que o McAllister que descrevi é um mentiroso ou um tolo... e se ele fosse um mentiroso e não um tolo? Presumindo essas coisas... e creio que são verdadeiras... estamos falando de dois governos agindo de acordo durante estes momentos difíceis. O que acontece nesse caso? — Então há um desastre em desenvolvimento —murmurou Catherine Staples — E tudo gira em torno de meu marido? — Se você está certa, é isso mesmo. — Não acha que é bem possível? — Não quero nem pensar a respeito.
Capítulo 15 Cerca de sessenta e cinco quilômetros a sudoeste de Hong Kong, além das ilhas exteriores do Mar da China Meridional, fica a península de Macau, uma colônia portuguesa apenas nominalmente. As origens históricas estão em Portugal, mas seu apelo moderno e exuberante para o jet set internacional, com o Grande Prêmio anual, os cassinos e iates, está baseado nos luxos e estilos de vida exigidos pelos ricos da Europa. Apesar disso, não se deve cometer qualquer equívoco. É um lugar chinês. Os controles estão em Pequim. Nunca! Não deve ser Macau! A ordem será rápida, a execução ainda mais rápida! Sua esposa morrerá! Mas o assassino estava em Macau, e um camaleão tinha de entrar em outra selva. Esquadrinhando os rostos e espiando os recantos escuros do pequeno e atulhado terminal, Bourne deslocou-se com a multidão para o píer do aerobarco de Macau, viagem que levaria cerca de uma hora. Os passageiros estavam divididos em três categorias distintas: residentes da colônia portuguesa de volta, principalmente chineses, em silêncio; jogadores profissionais, uma mistura racional, conversando discretamente, quando falavam, olhando ao redor a todo instante, a fim de avaliar a concorrência; e foliões da madrugada, turistas efusivos, exclusivamente brancos, muitos embriagados, com chapéus dos formatos mais estranhos e espalhafatosas camisas tropicais. Ele deixara Shenzen e tomara o trem das três horas de Lo Wu para Kowloon. A viagem fora extenuante, seu raciocínio estava embotado, as emoções esgotadas. O impostor-assassino estivera tão perto! Se tivesse conseguido isolar o homem de Macau por menos de um minuto, poderia dominá-lo! Havia meios. Ambos tinham os vistos em ordem; um homem contraído em dor, a garganta lesada a ponto de não poder falar, poderia passar por um homem doente, talvez com alguma moléstia contagiosa, um visitante indesejável, a quem eles teriam o maior prazer em deixar partir. Mas não acontecera, não dessa vez. Ah, se ao menos ele pudesse ter visto o rosto do impostor! E havia ainda a descoberta desconcertante de que aquele novo assassino, o mito que não era nenhum mito, mas sim um assassino brutal, tinha um contato na República Popular. Era profundamente perturbador, pois as autoridades chinesas que reconheciam um homem assim só o faziam para usá-lo. Era uma complicação que David não desejava. Não tinha nada a ver com Marie e com ele, e os dois eram a única coisa com que se importava. Tudo com que se importava! Jason Bourne: Traga o homem de Macau! Ele voltara ao Peninsula, passando pelo New World Centre para comprar uma jaqueta de náilon escuro e um par de tênis azul-marinho. A ansiedade de David Webb era opressiva. Jason Bourne planejava sem ter conscientemente um plano. Pediu uma refeição leve e sentou-se na cama enquanto comia, assistindo ao noticiário da televisão sem prestar atenção. Depois, David recostou-se no travesseiro, especulando de onde vinham as palavras: O descanso é uma arma. Não se esqueça disso. Bourne despertou quinze minutos depois. Jason comprara uma passagem para as oito e meia numa bilheteria do Serviço de Transporte
Coletivo no Tsim Sha Tsui, durante a hora do rush. Para estar certo de que não era seguido — e precisava ter certeza absoluta — pegara três táxis diferentes para chegar a meio quilômetro do píer da barca de Macau uma hora antes da partida. Seguiu a pé o resto do percurso. Iniciara então um ritual para o qual fora treinado. A memória desse treinamento estava meio turva, mas não a sua prática. Fundira-se na multidão na frente do terminal, esquivando-se, andando em ziguezague, passando de um lado para outro, depois se mantendo subitamente imóvel à margem, concentrando-se nos padrões de movimento atrás de si, procurando por alguém que vira um momento antes, um rosto ou um par de olhos ansiosos voltados em sua direção. Não havia ninguém. Mas a vida de Marie dependia da certeza, e por isso ele repetiu o ritual duas vezes, acabando dentro do terminal mal iluminado, com bancos de frente para o cais e para a água. Continuou a procurar por um rosto frenético, uma cabeça que se virasse sem parar, uma pessoa girando, empenhada em encontrar alguém. Mais uma vez, não havia ninguém. Estava livre para seguir para Macau. E se encontrava agora a caminho. Sentou-se num banco lá atrás, junto à janela, observando as luzes de Hong Kong e Kowloon se desvanecerem para um clarão no céu asiático. Novas luzes apareceram e desapareceram, enquanto o aerobarco ganhava velocidade e passava pelas ilhas exteriores, que pertenciam à China. Imaginou homens de uniforme a espiarem por lunetas e binóculos, sem saberem direito o que procuravam, mas tendo recebido a ordem de observar tudo. As montanhas dos Novos Territórios se erguiam ameaçadoras, o luar se refletindo em seus picos e acentuando-lhes a beleza, mas também dizendo: É aqui que você pára. Além deste ponto, somos diferentes. Não era bem assim. Pessoas apregoavam suas mercadorias nas praças de Shenzen. Os artesãos prosperavam, os fazendeiros abatiam seus animais e viviam tão bem quanto as classes instruídas em Pequim e Xangai... e geralmente em habitações melhores. A China estava mudando, não tão depressa para o Ocidente, e certamente ainda era um gigante paranóico, mas a verdade, refletiu David Webb, é que os estômagos distendidos das crianças, tão comum na China de anos atrás, estavam desaparecendo. Muitos dos políticos inescrutáveis nos escalões superiores eram gordos, mas poucos nos campos estavam passando fome. Houvera progresso, concluiu David, quer o resto do mundo aprovasse ou não os métodos. O aerobarco desacelerou, o casco baixando para a água. Passou por um espaço num recife artificial, iluminado por refletores. Estavam em Macau, e Bourne sabia o que tinha de fazer. Levantouse, pediu licença para passar pelo homem sentado ao seu lado e subiu pelo corredor, onde um grupo de americanos, uns poucos de pé, o restante sentado, cantava uma interpretação obviamente ensaiada de Mr. Sandman. Rum bum bum bum... Mr. Sandman, cante-me uma canção Rum bum bum bum Oh, Mr. Sandman... Estavam altos, mas não bêbados, não barulhentos. Outro grupo de turistas, falando alemão, encorajava os americanos, aplaudindo ao final da canção. — Gut!
— Sehrgut! — Wunderbar! — Danke, meine Herren. O americano de pé mais próximo de Jason fez uma reverência para os alemães. Seguiu-se uma conversa breve e cordial, os alemães falando em inglês, o americano respondendo em alemão. — Foi uma lembrança de casa — comentou Bourne para o americano. — Ei, um Landsmann! A canção também inclui você, meu velho. Não acha que algumas dessas músicas antigas são sensacionais? Ei, você está com o grupo? — Qual é o grupo? — O da Honeywell-Porter — respondeu o homem, indicando uma agência de propaganda de Nova York, que Jason sabia ter filiais no mundo inteiro. — Não, não estou. — Foi o que pensei. Somos apenas uns trinta, contando com os australianos, e acho que já conheci todo mundo. De onde você é? Meu nome é Ted Mather e sou do escritório da H.P. em Los Angeles. — Meu nome é um Cruett e sou professor. De Boston. — Beanburg!2 Pois então vou apresentá-lo a um Landsmann. Ou será Sradtsmann? Jim, este é Bernie Beantown. Mather tornou a se inclinar, desta vez para um homem arriado junto à janela, a boca aberta, olhos fechados. Estava obviamente embriagado e usava um quepe de beisebol da equipe do Red Sox. — Não perca tempo em falar, pois ele não pode ouvir. Bernard o Cérebro é do nosso escritório em Boston. Devia tê-lo visto há três horas. Terno impecável, gravata listrada, discorrendo sobre uma dúzia de gráficos que só ele podia compreender. Mas uma coisa posso garantir... ele nos manteve acordado. Acho que foi por isso que todos tomamos alguns tragos... e ele, muitos. Afinal, é a nossa última noite. — Vão voltar amanhã? — No último vôo da noite. Precisamos de algum tempo para nos recuperar. — Por que Macau? — Uma comichão em massa pelas mesas de jogo. É o seu caso também? — Pensei em fazer uma tentativa. Puxa, que saudade aquele quepe me dá! O Red Sox pode
ganhar o título, e até esta viagem eu não havia perdido um jogo! — E Bernie não vai sentir falta de seu chapéu! — O publicitário soltou uma risada, inclinou-se e arrancou o quepe da cabeça de Bernie, o Cérebro. — Tome aqui, Jim, fique com ele. Você merece. O aerobarco atracou. Bourne desembarcou e passou pela imigração junto com a turma da Honeywell-Porter, como se fosse um deles. Ao descerem pela íngreme escada de cimento para o terminal forrado de cartazes, Jason — com a pala do quepe do Red Sox virada para baixo e os passos um pouco trôpegos — avistou um homem junto à parede da esquerda estudando os recém-chegados. O homem tinha na mão uma fotografia, e Bourne compreendeu que o rosto que ali estava era o seu. Riu de um comentário de Ted Mather, enquanto segurava o braço do cambaleante Bemie Beantown. As oportunidades vão se apresentar. Trate de reconhecê-las e agir de acordo. As ruas de Macau são quase tão extravagantemente iluminadas quanto as de Hong Kong, mas falta a sensação de humanidade demais em espaço de menos. E o que é diferente — diferente e anacrônico — são os muitos prédios em que estão fixados modernos anúncios luminosos, com caracteres chineses pulsando. A arquitetura desses prédios é hispânica muito antiga — portuguesa, mais precisamente — de caráter mediterrâneo. Parece que uma cultura inicial se rendeu à incursão impetuosa de outra, mas recusou-se a ceder seu primeiro imprimatur, proclamando a força de sua pedra sobre a impermanência ostentosa dos tubos de vidro coloridos. A história é deliberadamente negada; as igrejas vazias e as ruínas de uma catedral incendiada convivem numa estranha harmonia com os cassinos lotados, em que os crupiês falam cantonês e os descendentes dos conquistadores raramente são vistos. É tudo fascinante e até sinistro. É Macau. Jason afastou-se do grupo da Honeywell-Porter e pegou um táxi, cujo motorista devia ter aprendido a guiar assistindo ao Grande Prêmio de Macau. Foi levado ao cassino Kam Pek, em meio aos protestos do motorista. — O Lisboa para você, não o Kam Pek! O Kam Pek é para os chineses! Dai sui! Fan-tan! — O Kam Pek, cheng nei — disse Bourne, arrematando com o por favor cantonês, mas não acrescentando mais nada. O cassino era escuro. O ar era úmido e malcheiroso, a fumaça que subia em espiral em torno das lâmpadas por cima das mesas era densa, adocicada, pungente. Havia um bar afastado das mesas de jogo. Jason foi até lá e sentou-se num banco, arriando o corpo para reduzir sua altura. Falou em chinês, o quepe de beisebol projetando uma sombra sobre o seu rosto, o que era provavelmente desnecessário, já que mal se podia ler os rótulos das garrafas no outro lado do balcão. Pediu um drinque, e ao ser servido, deu uma generosa gorjeta ao bartender, em dinheiro de Hong Kong. — Mgoi — disse o homem de avental, agradecendo. — Hou — murmurou Jason, acenando com a mão. Estabeleça um contato cordial assim que puder. Especialmente num lugar desconhecido, em que pode haver hostilidade. Esse contato pode lhe oferecer a oportunidade ou o tempo de que precisa. Seria
Medusa ou Casa de Pedra? Mas não importava que ele não pudesse lembrar qual das duas. Jason virou-se lentamente no banco e olhou para as mesas; encontrou o cartaz pendurado com o caracter chinês para “cinco”- Tornou a se virar para o balcão, tirou do bolso o caderninho de anotações e uma caneta esferográfica. Rasgou uma página e escreveu o número do telefone de um hotel de Macau, que memorizara da revista Voyager, distribuída aos passageiros do aerobarco. Escreveu um nome que só lembraria se fosse necessário e arrematou com as seguintes palavras: Não sou amigo de Carlos. Baixou a mão ao lado do balcão, derramou o drinque e pediu outro. Quando foi servido, mostrou-se ainda mais generoso do que antes na gorjeta. — Mgoi saai — disse o bartender, fazendo uma mesura. — Msa — murmurou Bourne, tornando a acenar com a mão e parando o movimento subitamente, em sinal para que o bartender permanecesse ali. —Poderia me prestar um pequeno favor? Não levaria mais que dez segundos. — O que é, senhor? — Entregue este bilhete ao crupiê da Mesa Cinco. É um velho amigo meu e quero que saiba que estou aqui. — Jason dobrou o bilhete e levantou-o. — Pagarei pelo favor. — É um privilégio celestial meu, senhor. Bourne ficou observando. O crupiê pegou o bilhete, abriu-o rapidamente, enquanto o bartender se afastava, e meteu-o por baixo da mesa. A espera começou. Foi interminável, tanto tempo que o bartender foi substituído para o resto da noite. O crupiê foi transferido para outra mesa, e duas horas depois foi também substituído. E duas horas mais tarde um terceiro crupiê assumiu a Mesa Cinco. O assoalho ao seu redor agora encharcado de uísque, Jason logicamente pediu café e contentou-se com um chá; já eram duas e dez da madrugada. Mais uma hora e iria para o hotel cujo telefone escrevera, arrumaria um quarto de qualquer maneira. Estava começando a apagar. E de repente tudo mudou. Estava acontecendo! Uma chinesa com a saia aberta do lado típica das prostitutas encaminhou-se para a Mesa Cinco. Contornou os apostadores até o canto direito e falou rapidamente com o crupiê, que meteu a mão por baixo da mesa e discretamente lhe entregou o bilhete dobrado. Ela acenou com a cabeça e afastou-se, seguindo para a porta do cassino. Ele não aparece pessoalmente, como era de se imaginar. Usa prostitutas da rua. Bourne deixou o bar e foi atrás da mulher. Lá fora, na rua escura, onde havia algumas pessoas, mas parecia deserta para os padrões de Hong Kong, permaneceu uns quinze metros atrás da prostituta, parando de vez em quando para olhar pelas vitrines iluminadas, depois se apressando para não perdê-la. Não aceite o primeiro intermediário. É o que eles esperam. O primeiro pode ser um indigente que está ganhando uns poucos dólares e não sabe de nada. Não aceite nem mesmo o segundo e o
terceiro. Vai reconhecer o contato. Ele será diferente. Um velho encurvado aproximou-se da prostituta. Seus corpos roçaram e ela soltou um grito estridente, enquanto lhe entregava o bilhete. Jason simulou embriaguez e virou-se, seguindo o velho encurvado. Aconteceu quatro quarteirões depois, e o homem era de fato diferente. Um chinês pequeno, bem vestido, o corpo socado, ombros largos e cintura estreita, irradiando força. A rapidez de seus gestos, ao pagar o velho maltrapilho e começar a atravessar a rua em passos rápidos, era um aviso a qualquer adversário. Para Bourne, era um convite irresistível; aquele era um contato com autoridade, um vínculo com o Francês. Jason apressou-se para o outro lado da rua; estava uns cinqüenta metros atrás do homem e perdendo terreno. Não havia sentido em ser sutil por mais tempo, e por isso desatou a correr. Segundos depois estava diretamente atrás do contato, o solado dos tênis amortecendo o barulho de seus passos. Mais à frente havia uma viela entre o que pareciam ser dois prédios do governo, com as janelas às escuras. Tinha de agir depressa, mas de tal maneira que não causasse um tumulto, não oferecendo às pessoas por perto qualquer motivo para gritar ou chamar a polícia. Naquele caso, as chances maiores estavam do seu lado; a maioria das pessoas era constituída por bêbados ou drogados, os outros eram trabalhadores cansados, ansiosos por voltarem para casa depois do expediente. O contato aproximou-se da entrada da viela. Agora! Bourne correu à frente do homem, pelo lado direito, dizendo em chinês: — O Francês! Tenho notícias do Francês! Depressa! Ele entrou pela viela e o contato, aturdido, os olhos arregalados, não teve opção se não acompanhá-lo, como um zumbi. Agora! Arremetendo das sombras, Jason agarrou a orelha esquerda do homem, puxando-a, torcendo-a, empurrando o contato para a frente e levantando o joelho para a base de sua espinha, a outra mão em seu pescoço. Desferiu um chute por trás do joelho do homem, que caiu, girando o corpo e fitando-o. — Você! Ë você! O contato estremeceu na semi-escuridão; de repente, tornou-se mais calmo, determinado. — Não, você não é ele. Sem qualquer movimento de advertência, o chinês impulsionou a perna direita, o corpo deixando o chão numa trajetória acelerada invertida. Acertou os músculos da coxa esquerda de Jason, acompanhando com outro golpe, do pé esquerdo, atingindo o seu abdome, enquanto se levantava de um pulo, as mãos estendidas e rígidas, o corpo musculoso se movendo agilmente, até graciosamente, num semicírculo, em expectativa. O que se seguiu foi uma batalha de animais, dois executores treinados, cada movimento efetuado em intensa premeditação, cada golpe letal recebido com pleno impacto. Um lutava por sua vida, o outro, pela sobrevivência e libertação... e pela mulher sem a qual não podia viver, sem a qual não viveria. Finalmente, a altura, o peso e um motivo além da própria vida fizeram a diferença, proporcionando a vitória a um e a derrota a outro. Engalfinhados contra a parede, ambos suados e contundidos, o sangue escorrendo de bocas e
olhos, Bourne prendeu o pescoço do contato numa chave de braço por trás, comprimindo o joelho esquerdo em suas costas, a perna direita em torno dos tornozelos do homem. — Você sabe o que acontece agora! —sussurrou ele, espaçando as palavras, em chinês, a fim de aumentar a ênfase. — Um pouco de pressão e lá se vai a sua espinha. Não é uma maneira agradável de morrer. E você não precisa morrer. Pode viver, e com mais dinheiro do que o Francês jamais lhe pagaria. Aceite a minha palavra: o Francês e seu matador não vão continuar a existir por muito tempo. Tome a sua decisão. Agora! Jason aumentou a pressão; as veias na garganta do homem estavam distendidas, a ponto de estourarem. — Está bem, está bem! — balbuciou o contato. — Quero viver, não morrer! Eles se sentaram na viela escura, de costas apoiadas na parede, fumando cigarros. O homem falava inglês fluentemente, tendo aprendido com as freiras numa escola católica portuguesa. — Você é muito bom — comentou Bourne, limpando o sangue dos lábios. — Sou o campeão de Macau. É por isso que o Francês me paga. Mas você me superou. Estou desonrado, não importa o que venha a acontecer. — Não está, não. Acontece apenas que conheço mais alguns golpes sujos do que você. Não são ensinados onde você aprendeu e não deveriam ser em parte alguma. Além do mais, ninguém jamais saberá. — Mas eu sou jovem e você é velho! — Nem tanto assim. E me mantenho em boa forma, graças a um médico maluco que me diz o que devo fazer. Quantos anos acha que eu tenho? — Tem mais de trinta! — Certo. — Um velho! — Obrigado. — É também muito forte, muito pesado... mas é mais do que isso. Sou um homem são, mas você não é. — É possível. — Jason esmagou o cigarro no chão. Tirou dinheiro do bolso e acrescentou: — Vamos conversar objetivamente. Eu estava falando sério. Pagarei muito bem. ... Onde está o Francês? — Nem tudo está em equilíbrio. — Como assim?
— O equilíbrio é importante. — Sei disso, mas não entendo onde está querendo chegar. — Há uma falta de harmonia, e o Francês está furioso. Quanto vai me pagar? — Quanto pode me dizer? — Onde o Francês e seu assassino estarão amanhã à noite. — Dez mil dólares americanos. — Aiya! — Mas só se você me levar até lá. — Fica no outro lado da fronteira! — Tenho um visto para Shenzen. É válido por mais três dias. — Pode ajudar, mas não é legal para a fronteira de Guangdong. — Pois então procure uma saída. Dez mil dólares. Americanos — Darei um jeito. — O contato fez uma pausa, os olhos fixos no dinheiro que o americano segurava. — Posso receber o que creio que vocês chamam de adiantamento? — Quinhentos dólares americanos e mais nada. — As negociações na fronteira custarão muito mais. — Ligue para mim. Levarei o dinheiro. — Ligar para onde? — Arrume um quarto de hotel para mim aqui em Macau. Guardarei o dinheiro em seu cofre. — O Lisboa. — O Lisboa, não. Não posso ir para lá. Qualquer outro. — Não há problema. Ajude-me a levantar... Não! Será melhor para a minha dignidade se eu não precisar de ajuda. — Como quiser — disse Jason Bourne. Catherine Staples estava sentada à sua escrivaninha, o fone mudo ainda em sua mão; contemplou-o distraidamente por um momento e depois desligou. Sentia-se aturdida com a conversa que acabara de concluir. Como não havia qualquer força do serviço secreto canadense operando em
Hong Kong, os diplomatas cultivavam suas próprias fontes na polícia da colônia, para as ocasiões em que houvesse necessidade de informações acuradas. Essas ocasiões ocorriam invariavelmente no interesse dos cidadãos canadenses que residiam ou visitavam a colônia. Os problemas variavam dos que eram presos aos que eram assaltados, dos canadenses que eram trapaceados aos que trapaceavam. Havia também problemas mais profundos, questões de segurança e espionagem, a primeira envolvendo as visitas de altas autoridades do governo, a segunda, os meios de proteção contra a vigilância eletrônica e o fornecimento de informações importantes através de atos de chantagem contra o pessoal do consulado. Era do conhecimento discreto mas geral que agentes do bloco soviético e de regimes fanaticamente religiosos do Oriente Médio usavam tóxicos e prostitutas de todos os sexos, de acordo com a preferência de cada um, no empenho incessante de obter informações confidenciais de um governo hostil. Hong Kong era um gigantesco mercado de tóxicos e carne. E fora nessa área que Staples realizara alguns dos seus melhores trabalhos no território. Salvara as carreiras de dois adidos de seu próprio consulado, além de um americano e três britânicos. Fotografias das pessoas em atos comprometedores haviam sido destruídas, juntamente com os negativos correspondentes, os extorsionários banidos da colônia com ameaças não apenas de denúncia, mas também de dano físico. Em um caso, de um funcionário consular iraniano, ele berrara furioso de seus aposentos na Gammon House, acusando-a de se intrometer em assuntos muito acima de sua posição. Ela escutara em silêncio por tanto tempo quanto pudera suportar a voz fanhosa, depois encerrara a conversa com uma declaração brusca: — Será que você não sabia? Khomeini gosta de garotinhos. Tudo isso se tornara possível através de seu relacionamento com um viúvo inglês ao final da meia-idade que optara por se aposentar da Scotland Yard para se tornar o chefe de Assuntos Coloniais da Coroa em Hong Kong. Aos sessenta e sete anos, Ian Ballantyne aceitara o fato de que sua permanência na Scotland Yard chegara ao fim, mas o mesmo não acontecia necessariamente com o uso de seus talentos profissionais. Foi despachado voluntariamente para o Extremo Oriente, onde assumira a divisão de informações da polícia da colônia. À sua maneira tranqüila, moldara uma organização agressivamente eficiente, que sabia mais sobre o mundo secreto de Hong Kong do que qualquer outra das agências que operavam no território, inclusive o MI-Seis, Setor Especial. Catherine e Ian haviam se conhecido num desses insípidos jantares burocráticos impostos pelo protocolo consular. Depois de uma conversa prolongada, entremeada de comentários espirituosos e avaliação de sua companheira à mesa, Ballantyne se inclinava e dissera simplesmente: — Acha que ainda somos capazes de fazer, minha velha? — Vamos tentar — respondera Catherine. E fizeram. Gostaram, e Ian tornou-se um ponto de referência na vida de Catherine, sem vínculos nem compromissos. Gostavam um do outro, e isso era suficiente. E Ian Ballantyne acabara de desmentir tudo o que o Subsecretário de Estado Edward McAllister dissera a Marie Webb e seu marido no Maine. Não havia nenhum taipan em Hong Kong chamado Yao Ming, e suas fontes impecáveis — leia-se bem pagas — em Macau garantiam que não houvera qualquer duplo homicídio no Hotel Lisboa envolvendo a esposa de um taipan e um traficante de tóxicos. Não havia mortes assim desde a partida das forças japonesas de ocupação em 1945. Sempre surgiam
ferimentos a faca e a bala em torno das mesas dos cassinos, além de várias mortes em quartos, atribuídas a super-doses de narcóticos, mas nenhum incidente como o descrito pelo informante de Staples. — É um emaranhado de mentiras, Cathy — dissera Ian. — Com que propósito, não posso imaginar. — Minha fonte é legítima, querido. O que você pode farejar? — Odores repugnantes, minha cara. Alguém está correndo um grande risco por um objetivo considerável. Ele está se cobrindo, é claro... Pode-se comprar qualquer coisa por aqui, inclusive silêncio... mas tudo não passa de ficção. Quer me contar mais alguma coisa? — E se eu lhe dissesse que a história é orientada por Washington, e não pelo Reino Unido? — Eu teria de contestá-la. Para chegar a esse ponto, Londres tem de estar envolvida. — Mas não faz sentido! — Do seu ponto de vista, Cathy. Não conhece o deles. E posso lhe garantir uma coisa... esse maníaco, Bourne, tem todos nós na palma da mão. Uma de suas vítimas é um homem sobre o qual ninguém vai falar. Nem mesmo eu posso lhe dizer o nome dele, minha velha. — Dirá se eu lhe fornecer mais informações? — Provavelmente não, mas deve tentar. Staples continuou sentada à mesa, filtrando as palavras. Uma de suas vítimas é um homem sobre o qual ninguém vai falar. O que Ballantyne estava querendo dizer com isso? O que estava acontecendo? E por que uma economista canadense se encontrava no centro da súbita tempestade? Independente de qualquer coisa, porém, ela estava segura. O Embaixador Havilland, pasta de executivo na mão, entrou no escritório em Victoria Peak. McAllister levantou-se de um pulo, disposto a desocupar a cadeira para o seu superior. — Fique onde está, Edward. Quais são as novidades? — Não há nenhuma, infelizmente. — Não é isso o que estou querendo ouvir! — Sinto muito. — Onde está aquele filho da puta retardado que deixou acontecer?
McAllister empalideceu, enquanto o Maior Lin Wenzu, que não fora visto por Havilland, se levantava do sofá encostado na parede dos fundos. — Sou o filho da puta retardado, o chinês que deixou acontecer, Sr. Embaixador. — Não vou pedir desculpas — disse Havilland, virando-se, a voz áspera. — São os pescoços de vocês que estamos tentando salvar, não os nossos. Vamos sobreviver. Vocês não. — Não tenho o privilégio de compreendê-lo. — A culpa não é dele — protestou o subsecretário de Estado. — Então é sua? — gritou o embaixador. — Era o responsável pela custódia da mulher? — Sou o responsável por tudo aqui. — E uma atitude bastante cristã de sua parte, Sr. McAllister, mas no momento não estamos lendo as escrituras na escola dominical. — A responsabilidade foi minha — interveio Lin. —Aceitei a missão e falhei. Nos termos mais simples, a mulher foi mais esperta do que nós. — Você é Lin, do Setor Especial? — Isso mesmo, Sr. Embaixador. — Ouvi boas referências a seu respeito. — Tenho certeza de que minha atuação neste caso anula — Fui informado de que ela também se mostrou mais esperta do que um médico competente. — É verdade —confirmou McAllister. — Um dos melhores clínicos do território. — Um inglês — acrescentou Lin. — Isso não era necessário, Major. Assim como também não era preciso usar a palavra “china” para se referir a si mesmo. Não sou um racista. O mundo não sabe, mas não tem tempo para essas besteiras. — Havilland foi até a mesa, pôs a pasta em cima, abriu-a e tirou um grosso envelope pardo, com as margens pretas. — Pediram o arquivo de Casa de Pedra. Aqui está. É desnecessário dizer que não pode sair desta sala. Quando não estiver lendo, deve ficar trancado no cofre. — Quero começar o mais depressa possível. — Acha que vai encontrar alguma coisa? — Não sei onde mais procurar. A propósito, instalei-me numa sala no fim do corredor, O cofre fica aqui.
— Pode entrar e sair quando quiser — disse o embaixador. — O quanto contou ao major? — Apenas o que fui instruído a contar. — McAllister olhou para Lin Wenzu, antes de acrescentar: — Ele se queixou com freqüência de que deveria ter mais informações. Talvez tenha razão. — Não estou em condições de insistir na minha queixa, Edward. Londres foi firme, Sr. Embaixador. E é claro que aceitei as condições. — Não quero que “aceite” nada, Major. Quero que se sinta mais assustado do que nunca em sua vida. Vamos deixar o Sr. McAllister entregue à sua leitura e daremos um passeio. Ao entrar, vi um jardim grande e atraente. Quer me acompanhar? — Seria um privilégio, senhor. — Não sei se é mesmo um privilégio, mas posso garantir que é necessário. Deve compreender tudo, pois precisa encontrar a mulher de qualquer maneira. Marie estava de pé junto à janela do apartamento de Catherine Staples, contemplando a atividade lá embaixo. As ruas estavam apinhadas, como sempre, e ela experimentava um impulso quase irresistível de sair do apartamento e caminhar anônima entre as multidões, dar uma volta pela Casa Asiática, na esperança de encontrar David. Pelo menos estaria em movimento, olhando, escutando, esperando... não pensando em silêncio, quase enlouquecendo. Mas não podia sair; dera sua palavra a Catherine. Prometera ficar no apartamento, não permitir a entrada de ninguém e atender ao telefone apenas se uma segunda chamada imediata fosse precedida por dois toques da campainha. Seria Staples na linha. A querida Catherine, a competente Catherine... a assustada Catherine. Ela tentara esconder seu medo, mas estava patente em suas perguntas, formuladas muito depressa, com bastante intensidade, em suas reações às respostas, sempre aturdida, com freqüência acompanhadas por uma falta de fôlego, enquanto os olhos se desviavam, os pensamentos obviamente em disparada. Marie não compreendera, mas sabia que Staples tinha um profundo conhecimento do mundo clandestino do Extremo Oriente; e quando uma pessoa informada tentava esconder seu medo pelo que ouvia, então havia muito mais na história do que sabia a pessoa que a contava. O telefone tocou. Duas vezes. Silêncio. Depois uma terceira. Marie correu para o telefone na mesinha ao lado do sofá e atendeu ainda no início do terceiro toque da campainha. — Alô? — Marie, quando o mentiroso do McAllister falou com você e seu marido, mencionou um cabaré no Tsim Sha Tsui, se bem me lembro. Estou certa? — Está, sim. Ele disse que uma Uzi... trata-se de uma arma... — Sei o que é, minha cara. A mesma arma que foi supostamente usada para matar a esposa do taipan e seu amante em Macau, não é mesmo?
— É, sim. — Mas ele disse alguma coisa... qualquer coisa... sobre os homens que foram mortos no cabaré em Kowloon? Marie pensou por um momento. — Acho que não. O ponto que ele queria ressaltar era a arma. — Tem certeza? — Tenho, sim. Eu me lembraria. — Também acho, Marie. — Já reconstituí aquela conversa mil vezes. Descobriu alguma coisa? — Descobri. Não ocorreu qualquer assassinato como o que McAllister descreveu no Hotel Lisboa, em Macau. — O caso foi abafado. O banqueiro pagou. — Mas nem de longe o que a minha fonte impecável pagou... em mais do que dinheiro. Com o carimbo muito cobiçado de seu gabinete, que pode levar a lucros maiores e por muito tempo. Em troca de informações, é claro. — O que está querendo dizer, Catherine? — Que esta é a operação mais inepta de que já ouvi falar ou um plano brilhantemente concebido para envolver seu marido por meios que ele nunca teria considerado e com os quais certamente jamais concordaria. Desconfio que é a segunda hipótese. — Por que diz isso? — Um homem chegou esta tarde ao Aeroporto Kai-tak, um estadista que sempre foi muito mais que um diplomata. Todos sabemos disso, mas o mundo ignora. Sua chegada foi registrada por todo mundo. Ele hesitou quando os meios de comunicação tentaram entrevistá-lo, alegando que estava exclusivamente em ferias em sua amada Hong Kong. — E daí? — Ele nunca tirou férias em toda a sua vida. McAllister saiu apressado para o jardim murado, com suas treliças e móveis de ferro batido brancos, as fileiras de roseiras e laguinhos cheios de pedras. Guardara o arquivo de Casa de Pedra no cofre, mas as palavras estavam indelevelmente gravadas em sua mente. Onde eles estavam? Onde ele estava?
Ali! Sentados em dois bancos de concreto, de frente um para o outro, por baixo de uma cerejeira, Lin inclinado para a frente, hipnotizado. McAllister não pôde mais se conter; saiu correndo. Não tinha mais fôlego quando alcançou a árvore, olhando para o major do Setor Especial do MI-Seis. — Lin, quando a esposa de Webb falou com o marido pelo telefone... a ligação que você cortou... o que ela disse exatamente? — Começou a falar sobre uma rua de Paris arborizada, creio que ela disse que eram suas árvores prediletas — respondeu Lin, espantado. — Era evidente que ela estava tentando dizer a ele onde se encontrava, só que errou completamente. — Ao contrário, ela estava totalmente certa! Quando conversamos, você também contou que ela disse a Webb que “as coisas foram terríveis” naquela rua em Paris ou algo parecido... — Foi de fato o que ela disse — confirmou o major. — Mas que eles estariam melhor lá. — Ela também disse isso. — Em Paris um homem foi morto na embaixada, um homem que tentou ajudar os dois! — O que está tentando dizer, McAllister? — interveio Havilland. — A referência às árvores na rua não tem qualquer significado, Sr. Embaixador, o que já não acontece com a alusão à sua árvore predileta. O bordo, a folha de bordo! O símbolo do Canadá! Não há embaixada canadense em Hong Kong, mas existe um consulado. Ë o ponto de encontro dos dois. É o padrão. É Paris de novo! — Não alertou todas as embaixadas amigas... e os consulados? — Mas que diabo! — explodiu o subsecretário de Estado. — O que eu ia dizer? Já esqueceu que estou sob um juramento de silêncio, senhor? — Tem toda razão. A censura é merecida. — Não pode amarrar por completo as nossas mãos, Sr. Embaixador — disse Lin. — E uma pessoa que respeito profundamente, mas alguns de nós também merecem um pouco de respeito, se vamos cumprir nossas funções. O mesmo respeito que acaba de me conceder ao me relatar a história assustadora. Sheng Chou Yang... é incrível! — A discrição deve ser absoluta. — E será — declarou o major. — O consulado canadense —murmurou Havilland. — Providencie-me a lista de todo o seu pessoal.
Capítulo 16 O telefonema veio às cinco horas da tarde, e Bourne estava preparado. Não houve troca de nomes. — Está tudo acertado — disse o interlocutor. — Devemos estar na fronteira pouco antes das nove da noite, quando há a troca da guarda. Seu visto de Shenzen será examinado e os carimbos de borracha serão acionados, mas nenhum vai tocar no papel. Depois de entrar, estará entregue à sua própria sorte. Mas não atravessou a fronteira por Macau. — E como poderá ser a volta? Se o que você me disse é verdade e tudo correr bem, haverá alguém comigo. — Não serei eu. Vou levá-lo pela fronteira e até o local. Depois disso, irei embora. — Isso não responde à minha pergunta. — Não é tão difícil quanto entrar, a menos que seja revistado e encontrem contrabando. — Não haverá nenhum. — Então sugiro embriaguez. Não é tão raro assim. Há um aeroporto nos arredores de Shenzen usado por viajantes especiais... — Sei disso. — Talvez possa alegar que estava no avião errado, o que também não é tão raro assim. Os horários são terríveis na China. — Quanto por esta noite? — Quatro mil, Hong Kong e um relógio novo. — Combinado. Cerca de quinze quilômetros ao norte da aldeia de Gongbei as colinas começam a subir e logo se transformam numa serra, com pequenas montanhas cobertas por florestas densas. Jason e seu exadversário na viela de Macau foram avançando pela estrada de terra. O chinês parou de repente e olhou para as colinas. — Mais cinco ou seis quilômetros e chegaremos a um campo. Vamos atravessá-lo e subir por um segundo nível de bosques. Precisamos tomar muito cuidado. — Tem certeza de que eles estarão lá? — Transmiti a mensagem. Se houver uma fogueira de acampamento, então eles estão lá.
— O que dizia a mensagem? — Exigia uma conferência. — Por que no outro lado da fronteira? — Só podia ser no outro lado da fronteira. Isso também era parte da mensagem. — Mas você não sabe o motivo. — Sou apenas o mensageiro. As coisas não estão em equilíbrio. — Disse isso ontem à noite. Não pode explicar o que significa? — Não posso explicar para mim mesmo. — Poderia ser porque a conferência tinha de ocorrer aqui, na China? — Sem dúvida isso é parte da história. — E tem mais? — Wen ti — disse o guia. — Perguntas que derivam de sentimentos. — Acho que compreendo. E Jason compreendia mesmo. Tinha as mesmas dúvidas, os mesmos sentimentos, depois que vira o assassino que se dizia chamar Bourne viajando num veículo oficial da República Popular. — Foi generoso demais com o guarda. O relógio era muito caro. — Posso precisar dele. — Talvez ele não esteja no mesmo posto. — Posso encontrá-lo. — Ele vai vender o relógio. — Não tem problema. Darei outro. Abaixados, eles correram pelo mato alto do campo, um trecho de cada vez, Bourne seguindo o guia, os olhos esquadrinhando incessantemente os flancos e a frente, encontrando sombras na escuridão... e que ainda não era uma escuridão total. Nuvens rápidas e baixas encobriam a lua, mas de vez em quando jatos de luz projetavam-se por breves momentos, iluminando a paisagem. Alcançaram uma área de árvores altas e começaram a subir. O chinês parou e virou-se, levantando as mãos. — O que foi? — sussurrou Jason.
— Devemos ir agora muito devagar, sem fazer barulho. — Patrulhas? O guia deu de ombros. — Não sei. Não há harmonia. Foram subindo pela floresta densa, parando a cada guincho de um pássaro perturbado e o subseqüente adejar de asas, deixando o momento passar. O murmúrio da mata era constante e envolvente, os grilos empenhados em sua permanente sinfonia, o pio de uma coruja solitária respondido por outra, pequenas criaturas disparando por entre as moitas. Bourne e o guia chegaram ao fim das árvores altas; havia um segundo campo inclinado de mato alto à frente e podiam divisar à distância os contornos escuros e irregulares de outra floresta subindo. Havia também outra coisa. Um clarão no topo da colina seguinte, no cume das matas. Era uma fogueira de acampamento, a fogueira de acampamento! Bourne teve de fazer um esforço para se controlar, para não se levantar e sair correndo pelo campo, subir o mais depressa possível até a fogueira. A paciência era tudo agora, e se encontrava num ambiente escuro, algo que conhecia muito bem; memórias vagas lhe diziam para confiar em si mesmo... diziam que ele era o melhor que existia. Atravessaria o campo e subiria em silêncio até o topo da floresta; encontraria um lugar na mata que lhe proporcionasse uma visão nítida da fogueira, do ponto de encontro. Esperaria e observaria; e saberia quando entrar em ação. Já fizera isso muitas vezes antes... os detalhes específicos lhe escapavam, mas não o padrão. Um homem se afastaria e, como um felino espreitando em silêncio na floresta, ele seguiria esse homem, até chegar o momento propício. Mais uma vez, saberia que momento seria, e o homem seria seu. Marie, não vou falhar desta vez. Posso me movimentar agora com uma espécie de pureza terrível... sei que isso parece um absurdo, mas é verdade... Posso odiar com pureza... creio que foi essa a minha origem. Três corpos sangrando, flutuando à margem de um rio, me ensinaram a odiar. Uma marca de mão feita com sangue numa porta no Maine me ensinou a reforçar esse ódio e nunca mais permitir que torne a acontecer. Não discordo muitas vezes de você, meu amor, mas estava enganada em Genebra, enganada em Paris. Eu sou um matador. — O que está havendo com você? — sussurrou o guia, aproximando a cabeça de Jason. — Não está acompanhando meu sinal! — Desculpe. Eu estava pensando. — Também estou, peng you! Por nossas vidas! — Não precisa se preocupar. Pode ir embora agora. Estou vendo a fogueira lá em cima. — Bourne tirou o dinheiro do bolso. — Prefiro ir sozinho. Há menos possibilidade de se avistar um homem do que dois. — E se houver outros homens... patrulhas? Você me venceu em Macau, mas não sou totalmente desprovido de valor nesse aspecto.
— Se há muitos homens, só estou interessado em um. — Mas por quê? — Quero uma arma. Não pude me arriscar a atravessar a fronteira com uma. — Aiya! Jason entregou o dinheiro ao guia. — Está tudo aí. Nove mil e quinhentos. Quer voltar para o bosque e contar? Tenho uma lanterna pequena. — Não se pode duvidar do homem que o venceu. A dignidade não admitiria tamanha descortesia. — Suas palavras são maravilhosas, mas não servem para comprar um diamante em Amsterdam. Vá embora agora, suma daqui. O território é meu. — E aqui está a minha arma. — O guia tirou-a do cinto e entregou-a a Bourne, enquanto pegava o dinheiro. — Use-a, se precisar. O pente está cheio. Nove balas. Não há registro, não há como descobrir sua origem. O Francês me ensinou. — Passou pela fronteira com esta arma? — Você comprou o relógio, eu não. Poderia largar num saco de lixo, mas depois vi a cara do guarda. Não vou mais precisar dela. — Obrigado. Só quero dizer mais uma coisa: se mentiu para mim, haverei de encontrá-lo. Pode contar com isso. — As mentIras não seriam minhas e receberia o seu dinheiro de volta. — Você é demais. — Porque você me derrotou. Devo ser honrado em todas as coisas. Bourne foi avançando devagar, bem devagar, pela extensão de mato alto, cheio de urtigas, repelindo os espinhos do pescoço e testa, satisfeito pelo casaco de náilon que o protegia. Sabia instintivamente uma coisa que o guia ignorava, o motivo pelo qual não queria que o chinês o acompanhasse. Um campo com mato alto era o lugar mais lógico para se postar patrulhas; o mato se mexia quando intrusos escondidos rastejavam através dele. Por isso, era necessário observar o mato balançando do solo e seguir na direção das brisas predominantes, aproveitar as súbitas lufadas de vento que desciam das montanhas. Ele podia divisar o começo do novo trecho de floresta, as árvores se elevando à beira do mato alto. Começou a se erguer para uma posição agachada e no instante seguinte tornou a baixar o corpo,
permaneceu imóvel. Lá na frente, à sua direita, um homem estava parado na margem do campo, um rifle nas mãos, observando o mato ao luar intermitente, procurando por um padrão nas hastes que se curvavam às brisas. Uma rajada de vento desceu turbilhonando das montanhas. Bourne aproveitou para avançar, chegando a três metros do guarda. Palmo a palmo, rastejou até a beira do campo; estava agora paralelo ao homem, cuja concentração se focalizava à frente, não nos flancos. Jason se adiantou até poder olhar entre as hastes. O guarda olhou para a esquerda. Agora! Bourne levantou-se de um pulo e, correndo, lançou-se para cima do homem. Em pânico, o guarda virou instintivamente a coronha do rifle, a fim de se defender do ataque súbito. Jason agarrou o cano, torcendo-o por cima da cabeça do homem e acertando no crânio exposto, ao mesmo tempo em que batia com o joelho em seu tórax. O guarda arriou. Bourne arrastou rapidamente o corpo para o mato alto, fora de vista. No mínimo de tempo possível, Jason tirou o blusão do guarda e rasgou a camisa nas costas, em tiras. Momentos depois o homem estava amarrado, de tal maneira que qualquer movimento apertava ainda mais as correias improvisadas. A boca estava amordaçada, uma manga rasgada dando a volta pela cabeça para manter a mordaça no lugar. Normalmente,como em ocasiões anteriores — Bourne sabia por instinto que esse fora o curso habitual de eventos similares — ele não perderia tempo em sair correndo do campo, subindo o trecho de floresta, na direção da fogueira. Em vez disso, porém, estudou o vulto inconsciente do oriental estendido no chão; algo o perturbava... algo que não estava em harmonia. Para começar, esperava que o guarda estivesse no uniforme do exército chinês, pois recordava nitidamente a visão do veículo oficial em Shenzen e sabia quem estava lá dentro. Mas não era apenas a ausência de um uniforme; estranhava também as roupas do homem. Eram ordinárias e sujas, malcheirosas das manchas de comida gordurosa. Inclinou-se e virou o rosto do homem, abrindo sua boca; havia poucos dentes, enegrecidos pela deterioração. Que tipo de guarda era aquele? Que tipo de patrulha? Era um rufião, sem dúvida experiente, um criminoso embrutecido, contratado nas ruas miseráveis do Oriente, onde a vida era barata e de um modo geral não tinha a menor importância. Contudo, os homens na “conferência” lidavam com dezenas de milhares de dólares. O preço que pagavam por uma vida era muito alto. Alguma coisa não estava em harmonia. Bourne pegou o rifle e saiu rastejando do mato. Não vendo nada, não ouvindo nada além dos murmúrios da floresta à sua frente, levantou-se e correu para as árvores. Subiu depressa, sem fazer barulho, parando como antes a cada guincho de um pássaro, a cada adejar de asas, a cada interrupção abrupta da sinfonia dos grilos. Não rastejava agora, mas avançava com as pernas meio dobradas, segurando o rifle pelo cano, um porrete, se houvesse necessidade. Não podia haver tiros, a menos que sua vida dependesse disso, não podia alertar a presa. A armadilha estava se fechando, era agora apenas uma questão de paciência... paciência e a espreita final, quando as garras da armadilha se fechariam de maneira implacável. Chegou ao topo da floresta, deslizando em silêncio por trás de um bloco de pedra, à beira do local do acampamento. Sem fazer barulho, largou o rifle no chão, tirou do cinto a pistola que o guia lhe dera e espiou além da rocha. E divisou o que esperava encontrar lá embaixo. Um soldado estava parado ali, de uniforme, um revólver num coldre na cintura, seis ou sete metros à esquerda da fogueira. Era como se quisesse ser visto, mas não identificado. Fora de harmonia. O homem olhou para o relógio; a espera começara. Durou quase uma hora. O soldado fumara cinco cigarros; Jason permanecera imóvel, mal
respirando. E de repente aconteceu, lentamente, sutilmente, sem trombetas a anunciar, uma entrada desprovida de dramaticidade. Um segundo vulto apareceu; emergiu calmamente das sombras, abrindo os últimos galhos ao surgir. E, sem qualquer aviso, relâmpagos caíram do céu noturno, queimando a cabeça de David Webb, atordoando a mente de Jason Bourne. Pois quando o homem entrou no clarão da fogueira, Bourne arquejou, apertando com toda força o cano da arma para não gritar... ou não matar. Estava olhando para um fantasma de si mesmo, uma aparição obsedante do passado que voltava para espreitá-lo. Não importava agora quem era o caçador. O rosto era o seu e ao mesmo tempo não era... talvez o rosto que poderia ter sido antes de os cirurgiões mudarem-no para ser o rosto de Jason Bourne. Como o corpo esguio e firme, o rosto era mais jovem — mais jovem do que o mito que estava imitando —, e naquela juventude estava a força... a força de um Delta de Medusa. Era simplesmente inacreditável. Até mesmo o jeito de andar era igual, cauteloso, como um felino, os braços compridos balançando dos lados, tão obviamente eficientes nas artes de matar. Era Delta, o Delta de que ele fora informado, o Delta que se tornara Caim e finalmente Jason Bourne. Estava olhando para si mesmo e ao mesmo tempo para outra pessoa, mas acima de tudo para um matador. Um assassino. Um estalido a distância intrometeu-se nos sons da floresta nas montanhas. O assassino parou, depois afastou-se da fogueira e mergulhou para a direita, enquanto o soldado se jogava ao chão. Uma rajada ensurdecedora e ressonante irrompeu do meio das árvores; o matador rolou pela relva do acampamento, as balas levantando a terra por perto, e alcançou a escuridão das árvores. O soldado chinês estava apoiado num joelho, disparando freneticamente na direção do assassino. E depois houve uma escalada na batalha estrondosa, não de um nível para o seguinte, mas em três estágios separados. As explosões foram imensas. Uma primeira granada destruiu o acampamento, seguindo-se uma segunda, desenraizando árvores, os galhos secos, soprados pelo vento, pegando fogo, e finalmente uma terceira, lançada para o alto, detonando com enorme força na área da mata de que a metralhadora disparara. E de repente havia chamas por toda parte. Bourne protegeu os olhos, dando a volta pelo bloco de rocha, a arma na mão. Uma armadilha fora preparada para o matador e ele caíra nela! O soldado chinês estava morto, a arma explodida, assim como a maior parte de seu corpo. Um vulto saiu em disparada subitamente da esquerda para o inferno que fora o acampamento, depois virouse e correu por entre as chamas. Deu duas voltas, avistou Jason e disparou em sua direção. O assassino voltara, na esperança de matar aqueles que queriam matá-lo. Girando, Bourne pulou primeiro para a direita, depois para a esquerda, finalmente jogou-se no chão, os olhos fixados no homem a correr. Levantou- se e pulou para a frente. Não podia deixar o homem escapar! Correu pelo fogo furioso; o vulto à sua frente se esgueirava entre as árvores. Era o matador! O impostor que alegava ser o mito letal que enfurecera a Ásia, usando esse mito para seus propósitos pessoais, destruindo o original e a esposa que ele amava. Bourne correu como nunca correra antes, desviando-se das árvores e saltando sobre as moitas, com uma agilidade que negava os anos transcorridos entre Medusa e o presente. Estava de volta a Medusa! Era Medusa! E a cada dez metros encurtava a distância que os separavam em cinco. Conhecia as florestas, e cada floresta era uma selva, cada selva era sua amiga. Sobrevivera na selva; sem pensar — apenas sentindo —, conhecia suas curvaturas, trepadeiras, os buracos inesperados e as ravinas abruptas. Estava ganhando... ganhando! E no instante seguinte lá estava ele, o assassino apenas poucos passos à sua frente! Com o que parecia ser a última reserva de energia em seu corpo, Jason investiu... Bourne contra
Bourne! As mãos eram as garras de um puma ao agarrarem os ombros do vulto a correr à sua frente, os dedos se cravando na carne dura e osso, enquanto puxava o matador para trás, os calcanhares se fincando na terra, o joelho direito atingindo a espinha do homem. Sua fúria era tão intensa que conscientemente teve de lembrar a si mesmo para não matar. Continue vivo! Você é a minha liberdade, a nossa liberdade! O assassino gritou, enquanto o verdadeiro Jason Bourne prendia seu pescoço numa chave de braço e virava a cabeça para a direita, forçando-o para baixo. Os dois caíram, o antebraço de Bourne comprimindo a garganta do impostor, a mão esquerda cerrada a golpear repetidamente o baixo-ventre do assassino, tirando o ar do corpo enfraquecido. O rosto? O rosto? Onde estava o rosto que pertencia ao passado? A uma aparição que queria levá-lo de volta a um inferno que a memória apagara? Onde estava o rosto? Não era aquele! — Delta! —.gritou o homem. — Como foi que me chamou? — balbuciou Bourne. — Delta! — repetiu o homem, a voz estridente, se contorcendo. — Caim é por Carlos, Delta é por Caim! — Mas quem... — D’Anjou! Eu sou d’Anjou! Medusa! Tam Quan! Não temos nomes, apenas símbolos! Pelo amor de Deus! Paris! O Louvre! Você salvou minha vida em Paris... como salvou tantas vidas em Medusa! Eu sou d’Anjou! Disse a você o que precisava saber em Paris! Você é Jason Bourne! O louco que foge de nós não passa de uma criação! Minha criação! David Webb contemplou o rosto contorcido, o bigode grisalho perfeitamente aparado, os cabelos prateados que se derramavam sobre a cabeça envelhecida. O pesadelo voltara... estava na selva sufocante de Tam Quan, sem saída, com a morte ao redor. E de repente se encontrava em Paris, aproximando-se da escadaria do Louvre, ao sol ofuscante da tarde. Tiros. Carros derrapando, pessoas gritando. Tinha de salvar o rosto por baixo dele! Tinha de salvar o rosto de Medusa, que podia fornecer as peças que faltavam do insano quebra-cabeças! — D’Anjou? — murmurou Jason. — Você é d’Anjou? — Se me devolver a garganta — balbuciou o Francês —, eu lhe contarei uma história. E estou certo de que também tem uma história para contar. Philippe d’Anjou contemplou as ruínas do acampamento, agora fumegantes. Fez o sinal-da-cruz, enquanto revistava os bolsos do “soldado” morto, retirando tudo de valioso que encontrou. — Vamos soltar o homem lá embaixo quando partirmos — disse ele. — Não há outro acesso para este lugar. Foi por isso que o coloquei lá. — E mandou que ele procurasse o quê?
— Como você, sou de Medusa. Os campos relvados... apesar do que possam pensar poetas e consumidores... são caminhos e armadilhas. Os guerrilheiros sabem disso. Nós sabíamos. — Não poderia prever a minha chegada. — Claro que não. Mas podia e previ cada movimento que minha criação faria. Ele deveria chegar sozinho. As instruções eram expressas... mas quem poderia confiar nele, muito menos eu? — Não estou entendendo. — É parte da história. Vai saber de tudo. Desceram pela floresta, d’Anjou, mais velho, apoiando-se nas árvores para facilitar a descida. Chegaram ao campo, ouvindo os gritos abafados do guarda manietado ao entrarem pelo mato alto. Bourne cortou as tiras de pano com a faca e o Francês pagou ao homem. — Zou ba! — gritou d’Anjou. O homem fugiu pela escuridão. — Ele não passa de um lixo. Todos não passam de lixo, mas não hesitam em matar por um preço e desaparecem. — Tentou matá-lo esta noite, não é mesmo? Era uma armadilha. — Isso mesmo. Achei que ele ficou ferido nas explosões. Foi por isso que parti em seu encalço. — Pensei que ele tinha dado a volta para pegá-lo pela retaguarda. — Faríamos isso em Medusa... — Foi por isso que pensei que você era ele. — Jason sentia uma fúria repentina. — O que você fez? — É parte da história. — Quero ouvir tudo! Agora! — Há um trecho plano a poucas centenas de metros daqui, naquela direção, à esquerda — disse o Francês, apontando. — Era um pasto, mas ultimamente o lugar tem sido usado por helicópteros que voam ao encontro de um assassino. Podemos sentar na extremidade para descansar... e conversar. Apenas uma precaução para o caso de o fogo atrair alguém da aldeia. — Fica a oito quilômetros de distância. — Não se esqueça de que estamos na China. As nuvens haviam se dispersado, sopradas pelos ventos noturnos; a lua descia para o horizonte, mas ainda se encontrava bastante alta para iluminar as montanhas distantes. Os dois homens de Medusa sentaram-se no chão. Bourne acendeu um cigarro, enquanto d’Anjou dizia: — Lembra de Paris, daquele café apinhado em que conversamos, depois da loucura no Louvre?
— Claro. Carlos quase nos matou naquela tarde. — E você quase capturou o Chacal. — Fiquei no quase. O que tem aquele café em Paris? — Eu lhe disse na ocasião que voltaria à Ásia. Para Cingapura ou Hong Kong, talvez as Seychelles. A França nunca foi um bom lugar para mim. Depois de Dienbienphu... tudo o que eu tinha foi destruído, explodido por nossos próprios soldados... falar em reparações não tinha o menor sentido. Uma conversa vazia, de homens vazios. Foi por isso que ingressei em Medusa. O único meio possível de me recuperar era uma vitória americana. — Lembro de tudo — disse Jason. — O que isso tem a ver com esta noite? — Como é óbvio, voltei à Ásia. Como o Chacal me vira, tive de dar uma volta comprida, o que me proporcionou tempo para pensar. Precisava fazer uma avaliação objetiva das circunstâncias e possibilidades. Ao fugir por minha vida, meus recursos não eram amplos, mas também não eram patéticos. Corri o risco de voltar à loja na St. Honoré naquela tarde e para ser franco roubei até o último sou que lá encontrei. Conhecia a combinação do cofre e felizmente estava bem abastecido. Podia tranqüilamente comprar uma passagem para o outro lado do mundo, fora do alcance de Carlos, viver por muitas semanas sem pânico. Mas o que faria com o resto da minha vida? Os recursos acabariam se esgotando e meus talentos... tão aparentes no mundo civilizado... não me permitiriam viver o outono de minha vida no conforto de que me haviam privado. Mas eu não fora uma cobra na cabeça de Medusa à toa. Deus sabe que descobri e desenvolvi talentos que nunca sonhara possuir... e cheguei à conclusão, para ser franco, de que a moral não era um problema. Fora enganado e poderia enganar outros. E estranhos sem nome e sem rosto haviam tentado me matar várias vezes, o que.me permitia assumir a responsabilidade pela morte de outros estranhos sem nome e sem rosto. Pode perceber a simetria, não é mesmo? Ao serem removidas, as equações tomam-se abstratas. — Tenho ouvido muitas besteiras —comentou Bourne. — Então não está prestando atenção, Delta. — Não sou Delta. — Está bem. Bourne. — Não sou... Ora, continue. Talvez eu seja mesmo. — Comment? — Rien. Continue. — Ocorreu-me que independente do que lhe aconteceu em Paris... quer tenha vencido ou perdido, quer tenha sido morto ou poupado... Jason Bourne estava liquidado. E eu tinha certeza absoluta de que Washington jamais diria qualquer palavra de reconhecimento ou esclarecimento. Você simplesmente desapareceria. “Além de salvação”... creio que é essa a expressão.
— Sei disso. Então eu estava liquidado. — Naturellement. Mas não haveria explicações, não podia haver. Mon Dieu, o assassino inventado por eles enlouquecera... e se matara! Não podia haver mesmo qualquer explicação. Os estrategistas recuam para os recessos mais escuros quando seus planos... “perdem o fio”, creio que é essa a expressão. — Também a conheço. — Bien. Pode então compreender a solução que encontrei para mim, para os últimos dias de um homem mais velho. — Estou começando a perceber. — Bien encore. Havia um vazio aqui na Ásia. Jason Bourne não existia mais, mas sua lenda permanecia viva. E há sempre homens dispostos a pagar pelos serviços de alguém tão extraordinário. Assim, eu sabia o que tinha de fazer. Era apenas uma questão de encontrar o pretendente certo... — Pretendente? — Está bem, o impostor, se prefere assim. E treiná-lo nas técnicas de Medusa, as técnicas do mais louvado membro daquela fraternidade criminosa extra-oficial. Fui para Cingapura e rebusquei as cavernas dos párias, muitas vezes temendo por minha vida, até que encontrei o homem. E posso acrescentar que não demorei muito. Ele estava desesperado, fugia para salvar a vida há quase três anos, mantendo-se sempre apenas poucos passos à frente daqueles que o caçavam. É um inglês, um excomando, que tomou um porre uma noite e matou sete pessoas nas ruas de Londres, num acesso de fúria. Por causa de sua excepcional folha de serviços, foi enviado para um hospital psiquiátrico no Kent, de onde fugiu e de alguma forma... só Deus sabe como... chegou a Cingapura. Dispunha de todos os instrumentos para o ofício, só era preciso refiná-los e orientá-los. — Ele parece comigo. Como eu costumava parecer. — Muito mais agora do que parecia antes. As feições básicas já existiam, assim como a compleição alta e o corpo musculoso; eram trunfos. Foi apenas uma questão de alterar um nariz um pouco proeminente e arredondar um queixo mais pontudo do que eu me lembrava que você tinha... como Delta, é claro. Você estava diferente em Paris, mas não tão radicalmente que eu não pudesse reconhecê-lo. — Um comando:.. —murmurou Jason. —Combina perfeitamente. Quem é ele? — Um homem sem nome, mas não sem uma história macabra — respondeu d’Anjou, olhando para as montanhas distantes. — Sem nome? — Ele jamais me deu nenhum que não negasse no momento seguinte.., nenhum sequer remotamente autêntico. Ele guarda esse nome como se fosse a única extensão de sua vida, a revelação
levando inevitavelmente à sua morte. Claro que ele está certo. As circunstâncias atuais confirmam isso. Se eu tivesse um nome, poderia encaminhá-lo através de um contato cego às autoridades britânicas em Hong Kong. Os computadores seriam acionados e especialistas viriam de Londres, promovendo uma caçada humana como eu jamais poderia realizar. Nunca o pegariam vivo... ele não deixaria, e os britânicos não se importariam... e assim meus objetivos estariam atendidos. — Por que os britânicos querem liquidá-lo? — Basta dizer que Washington teve seus Mi Lais e sua Medusa, enquanto Londres tem uma unidade militar muito mais recente sob o comando de um psicótico homicida que deixou centenas de pessoas massacradas em sua esteira... sem muitas distinções entre inocentes e culpados. Ele está a par de muitos segredos, que se forem revelados podem levara violentas explosões de vingança por todo o Oriente Médio e África. O pragmatismo está em primeiro lugar, e você sabe disso. Ou deveria saber. — Ele era o comandante? —indagou Bourne, aturdido. — Não era um mero soldado, DeIta. Foi capitão aos vinte e dois anos e major aos vinte e quatro, quando era quase impossível se conseguir uma promoção, por causa da política de economia de Whitehall. Não tenho a menor dúvida de que de seria general a esta altura, se a sua sorte persistisse. — Foi o que ele contou a você? — Em momentos periódicos de embriaguez, quando as verdades mais terríveis podem aflorar... mas nunca disse o seu nome. Os acessos de embriaguez geralmente ocorrem uma ou duas vezes por mês, por vários dias a fio, quando ele tenta apagar no álcool o passado de aversão a si próprio. Mas sempre se mostrou bastante coerente antes das explosões, pedindo-me para amarrá-lo, confiná-lo, protegê-lo de si mesmo... E reconstituía acontecimentos horríveis do passado, a voz rouca, gutural, cavernosa. Descrevia cenas de tortura e mutilação, interrogatórios de prisioneiros com facas perfurando seus olhos, cortando os pulsos, os cativos sendo obrigados a olhar enquanto suas vidas se esvaíam das veias. Até onde pude juntar os fragmentos, calculo que ele comandou muitos dos mais perigosos e brutais ataques contra os levantes fanáticos do final dos anos setenta e início dos anos oitenta, do Iêmen aos banhos de sangue na África Oriental. Em um momento de exultação alcoólica, contou que o próprio Idi Amin parava de respirar à menção de seu nome, tão grande era a sua reputação de igualar... e até mesmo superar... a estratégia de brutalidade de Amin. D’Anjou fez uma pausa, balançando a cabeça devagar e alteando as sobrancelhas, na aceitação gaulesa do inexplicável. — Ele era subumano... é subumano... mas apesar disso um oficial e cavalheiro, por assim dizer, de inteligência excepcional. Um completo paradoxo, uma contradição total do homem civilizado... Ria do fato de seus homens desprezarem-no e chamarem-no de animal, mas nenhum deles jamais se atreveu a apresentar um protesto oficial. — Por que não? — perguntou Jason, perturbado e angustiado pelo que estava ouvindo. — Por que nunca o denunciaram? — Porque ele sempre os salvava... ou pelo menos à maioria... quando a batalha parecia perdida.
— Entendo... — murmurou Bourne, deixando o comentário flutuar nas brisas da montanha. — Não, não entendo! — A voz estava agora furiosa, como se ele se sentisse súbita e inesperadamente mortificado. — A estrutura de comando é sempre eficiente. Por que seus superiores o suportavam? Eles não podiam deixar de saber. — Pelo que pude depreender de suas palavras, ele realizava as missões quando outros não podiam... ou não queriam fazer. Aprendeu o segredo que nós em Medusa aprendemos há muito tempo. Jogue de acordo com as condições mais implacáveis do inimigo. Mude as regras de acordo com a cultura. Afinal, a vida humana para os outros não é a mesma coisa que representa no conceito judaicocristão. E como poderia ser? Para muitos, a morte é uma libertação de condições humanas insuportáveis. — Respirar é respirar! — insistiu Jason, a voz áspera. — Existir é existir e pensar é pensar! — acrescentou David Webb. — Ele é um Neanderthal. — Tanto quanto Delta foi, em determinadas ocasiões. E você nos tirou de muitas... — Não diga isso! — protestou o homem de Medusa, interrompendo bruscamente o Francês. — Não era a mesma coisa! — Mas certamente uma variação — insistiu d’Anjou. — Em última análise, os motivos realmente não importam, não é mesmo? Só os resultados. Ou não está interessado em aceitar a verdade? Houve um tempo em que viveu assim. Jason Bourne vive agora com mentiras? — No momento, eu apenas vivo... de um dia para outro, de uma noite para outra... até que esteja tudo acabado. De um jeito ou de outro. — Deve ser mais específico. — Quando eu quiser ou precisar — respondeu Bourne, a voz gelada. — Quer dizer que ele é bom, hem? Seu comando... o major sem nome. Bom no que faz. — Tão bom quanto Delta... talvez melhor. É que ele não tem consciência... absolutamente nenhuma. Já você, no entanto, por mais violento que fosse, apresentava relances de compaixão. Alguma coisa em seu íntimo assim o exigia. “Poupem este homem”, você dizia. “Ele é um marido, um pai, um irmão. Vamos incapacitá-lo,.mas deixá-lo vivo, permitir que volte a funcionar mais tarde.” Minha criação, o seu impostor, jamais faria isso. Ele quer sempre a solução final... a morte diante de seus olhos. — O que aconteceu com ele? Por que matou todas aquelas pessoas cm Londres? Estar de porre não é motivo suficiente, não depois do que ele passou. — É como se fosse um modo de viver a que não se pode renunciar. — Você mantém a arma guardada, a menos que esteja ameaçado. Afora isso, pode convidar as ameaças.
— Ele não usou armas naquela noite em Londres... apenas as mãos. — Como? — Saiu pelas ruas à procura de inimigos imaginários... foi o que calculei de seus delírios. “Estava nos olhos deles!”, gritava o homem. “Está sempre nos olhos! Sabem quem eu sou, o que eu sou!” Era ao mesmo tempo assustador e tedioso, Delta. Nunca ouvi um nome, nenhuma referência específica, a não ser a Idi Amin, que qualquer soldado da fortuna bêbado pode usar para se promover. Envolver os britânicos em Hong Kong implicaria envolver a mim mesmo, e não posso fazer isso. Tudo é tão frustrante que resolvi voltar aos métodos de Medusa. Faça você mesmo. Ensinou-nos isso, Delta. A todo instante nos dizia... ordenava... para usarmos a imaginação. Foi o que fiz esta noite. E fracassei, como se poderia esperar de um velho. — Responda à minha pergunta — insistiu Bourne. — Por que ele matou aquelas pessoas em Londres? — Por um motivo tão banal quanto inútil... e bastante comum. Ele foi rejeitado, e seu ego não podia tolerar a rejeição. Duvido sinceramente que houvesse qualquer outra emoção envolvida. Como acontece com todas as suas indulgências, a atividade sexual não passa de uma descarga animal. Não há qualquer afeição, pois ele não tem capacidade para isso. Mon Dieu, ele estava tão certo! — Mais uma vez. O que aconteceu? — Ele voltou ferido de alguma missão particularmente brutal em Uganda, esperando retomar o relacionamento com uma mulher em Londres... alguém, posso imaginar, de nobre estirpe, como dizem os ingleses, sem dúvida uma volta ao passado. Mas ela se recusou a recebê-lo e contratou guardas armados para proteger sua casa em Chelsea. Dois desses guardas estavam entre as sete pessoas que ele matou naquela noite. A mulher alegou que ele tinha um temperamento incontrolável e que seus acessos de bebedeira o tornavam brutal... o que de fato acontecia. Para mim, no entanto, ele era o homem perfeito. Em Cingapura, segui-o quando saiu de um bar de bandidos e observei quando acuou dois assassinos num beco... contrebandiers que haviam ganhado muito dinheiro com uma venda de tóxicos naquela sórdida caverna no cais... encostando-os na parede e cortando suas gargantas com um único golpe de sua faca, para depois tirar o dinheiro de seus bolsos. Compreendi naquele instante que ele tinha tudo o que eu queria. Encontrara o meu Jason Bourne. Aproximei-me devagar, em silêncio, a mão estendida, com mais dinheiro do que ele tirara de suas vítimas. E conversamos. Foi o começo. — Então Pigmalião criou sua Galatéia e o primeiro contrato que aceitou foi a Afrodite que lhe deu vida. Bernard Shaw adoraria essa história... mas eu tenho vontade de matar você. — De que adiantaria? Você veio encontrá-lo esta noite e eu vim destruí-lo. — O que é parte de sua história — murmurou David Webb, desviando os olhos do Francês e contemplando as montanhas em fogo, pensando no Maine e na vida com Marie, tão violentamente abalada. E, de repente, ele gritou, com a maior fúria: — Seu filho da puta! Eu poderia matá-lo! Tem alguma idéia do que fez? — Essa é a sua história, Delta. Deixe-me primeiro acabar a minha.
— Conte tudo e direitinho... Eco. Não era esse o seu no me... Eco? As lembranças estavam voltando. — Era, sim. Você disse certa vez a Saigon que não podia viajar sem o seu “velho Eco”. Eu tinha de acompanhar o seu grupo, porque podia discernir problemas com as tribos e chefes de aldeias que outros não eram capazes de perceber... o que não tinha muito a ver com meu símbolo alfabético. Claro que não havia nada de místico. Eu passara dez anos nas colônias. Sabia quando os Quan-si estavam mentindo. — Termine a sua história. — Traição — disse d’Anjou, as palmas estendidas. — Assim como você foi criado, também criei meu Jason Bourne. E assim como você enlouqueceu, o mesmo aconteceu com a minha criação. Ele se virou contra mim, tornou-se a realidade que era a minha invenção. Esqueça Galatéia, Delta. Ele virou Frankenstein, sem nenhum dos tormentos do monstro. Rompeu comigo e começou a pensar por conta própria, a trabalhar para si mesmo. Depois que seu desespero passou... com a minha ajuda inestimável e o bisturi de um cirurgião... ele recuperou o senso de autoridade, assim como a arrogância, a feiúra. Considera-me uma insignificância. Foi assim que me chamou, uma “insignificância”! Uma não-pessoa insignificante que o usou! A mim, que o criei! — Está querendo dizer que agora ele firma os seus próprios contratos? — Contratos deturpados, grotescos e extraordinariamente perigosos. — Mas eu o descobri através de você, por intermédio de seu acerto no cassino de Kam Pek. Mesa Cinco. O telefone de um hotel em Macau e um nome. — Um método de contato que ele acha conveniente manter. E por que não? A segurança é quase absoluta... e o que eu posso fazer? Procurar as autoridades e dizer “Tem um sujeito pelo qual sou responsável que insiste em usar o sistema que criei para que ele possa ser contratado para matar alguém”? Ele até usa o meu conduto. — O Zhongguo ren com as mãos rápidas e os pés ainda mais rápidos? D’Anjou fitou Jason nos olhos. — Então foi assim que você conseguiu, como descobriu estes lugar. Delta não perdeu a classe, n’est-ce pas? O homem está vivo? — Está, sim... e dez mil dólares mais rico. — O cochon tem uma fome insaciável por dinheiro. Mas não posso criticá-lo. Eu costumava usá-lo. Pagava quinhentos para ele recolher e entregar uma mensagem. — Foi isso que trouxe sua criação até aqui esta noite, a fim de que pudesse matá-lo? O que lhe
deu tanta certeza de que ele viria? — Um instinto de homem da Medusa e o conhecimento superficial de uma extraordinária ligação que ele fez, um contrato muito lucrativo e tão perigoso que poderia lançar Hong Kong em guerra, paralisar toda a colônia. — Já ouvi essa teoria antes —comentou Jason, recordando as palavras de McAllister numa noite no Maine. — E continuo a não acreditar. Quando os matadores se matam uns aos outros, são eles que saem perdendo. Além de se exterminarem, fazendo com que os informantes saiam das toca pensando que podem ser os próximos. — Se as vítimas são limitadas a um padrão tão conveniente, é claro que você está certo. Mas não quando incluem uma poderosa personalidade política de uma vasta e agressiva nação. Bourne ficou um pouco surpreso e disse suavemente: — China? O Francês acenou com a cabeça. — Cinco homens foram mortos no Tsim Sha Tsui... — Sei disso. — Quatro dos cadáveres não tinham a menor importância. O que já não acontecia com o quinto. Era o Vice-primeiro-Ministro da República Popular. — Santo Deus! Jason franziu o rosto, a imagem de um carro aflorando em sua mente. Um carro com as janelas escuras e um assassino lá dentro. Um veículo oficial do governo chinês. — Minhas fontes dizem que houve um atrito entre o governo da colônia e Pequim, mas o pragmatismo e as aparências acabaram prevalecendo... desta vez. Afinal, para começo de conversa, o que o vice-primeiro-ministro estava fazendo em Kowloon? Um líder tão augusto do Comitê Central podia ser também um corrupto? Mas, como eu disse, foi apenas por esta vez. A verdade, Delta, é que minha criação precisa ser destruída, antes de aceitar outro contrato que poderia mergulhar a todos nós num abismo. — Lamento, Eco, mas ele não pode ser morto. Precisa ser capturado e levado para alguém. — E isso é parte de sua história? — É sim. — Conte-me tudo. — Apenas o que você precisa saber. Minha esposa foi seqüestrada e trazida para Hong Kong.
Para resgatá-la... e vou resgatá-la ou vocês todos vão morrer... tenho de entregar sua criação. E agora estou um passo mais próximo, porque você vai me ajudar... e ajudar para valer. Se não o fizer... — As ameaças são desnecessárias, Delta — interrompeu o homem de Medusa. — Sei muito bem.o que pode fazer. Já o vi em ação. Quer o homem por motivos seus e eu o quero pelos meus. Estamos juntos na batalha.
Capítulo 17 Catherine Staples insistiu para que o seu convidado no jantar tomasse outro martíni de vodca, embora recusasse para si mesma, alegando que seu copo estava cheio pela metade. — E também está vazio pela metade — disse o adido americano de trinta e dois anos, sorrindo débil e nervosamente, afastando os cabelos escuros da testa. — E estupidez da minha parte, Catherine. Lamento, mas não posso esquecer que você viu as fotografias... não importa que salvou minha carreira e provavelmente minha vida... ainda penso naquelas malditas fotografias. — Ninguém mais as viu, com exceção do Inspetor Ballantyne. — Mas você viu. — Tenho idade bastante para ser sua mãe — O que agrava a situação. Olho para você e me sinto terrivelmente envergonhado, sórdido demais. — Meu ex-marido comentou certa ocasião que não havia nada que pudesse ou devesse ser considerado sórdido nas atividades sexuais. Desconfio que havia um motivo para que ele fizesse tal declaração, mas acontece que acho que tinha razão. Esqueça o que houve, John. Eu já esqueci. — Farei o melhor possível. — Um garçom aproximou-se e o martíni foi pedido, com um sinal. — Desde o seu telefonema esta tarde que me sinto desesperado. Pensei que mais coisas haviam aflorado. Aquele foi um período de vinte e quatro horas em que viajei pelo espaço exterior. — Você foi intensa e insidiosamente drogado. Nesse nível, não era responsável. E peço desculpas. Eu deveria ter dito que não tinha nada a ver com o nosso problema anterior. — Se tivesse dito, eu poderia ter feito jus ao meu salário durante as últimas cinco horas. — Foi negligente e cruel de minha parte. Desculpe. — Desculpa aceita. Você é uma garota maravilhosa, Catherine. — Agradeço por suas regressões infantis. — Não aposte muito dinheiro nisso. — Então não tome um quinto martíni. — É apenas o segundo. — Um pouco de lisonja nunca fez mal a ninguém. Os dois riram baixinho, O garçom voltou com o drinque de John Nelson. Ele agradeceu e tornou
a se virar para Staples. — Tenho a impressão de que a perspectiva de lisonja não foi o que me valeu uma refeição grátis no Plume. Este lugar está fora do meu alcance. — E do meu também, mas não do alcance de Ottawa. Você será relacionado como uma pessoa extremamente importante. O que é a pura verdade. — Isso é ótimo. Uma coisa que ninguém jamais me disse. Ocupo um cargo muito bom aqui porque aprendi chinês. Calculei que em comparação com toda a turma das universidades de maior prestígio ingressando no serviço, um rapaz do Upper Iowa College precisaria de alguma vantagem. — E você a tem, Johnny. O consulado gosta de você. Todos o têm em alta conta, como não podia deixar de ser. — Se isso acontece, é graças a você e a Ballantyne... e apenas a vocês dois. — Nelson fez uma pausa, tomou um gole do martíni, olhando para Staples por cima do copo. Largou-o na mesa e acrescentou: — Qual é o problema, Catherine? Por que sou tão importante? — Porque preciso de sua ajuda. — Qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que eu possa fazer. — Não tão depressa, Johnny. Estamos em águas profundas e até eu posso estar me afogando. — Se alguém merece que eu jogue um salva-vidas, é você. Pondo de lado alguns problemas menores, nossos países são vizinhos e basicamente gostam um do outro... estamos do mesmo lado. O que é? Como posso ajudá-la? — Marie St. Jacques... Webb — disse Catherine, observando atentamente o rosto do adido. Nelson piscou, os olhos vagueando a esmo, em pensamento. — Nada. O nome não significa absolutamente nada para mim. — Muito bem. Vamos tentar outro. Raymond Havilland. — Ah, agora a coisa muda. — O adido arregalou os olhos, inclinou a cabeça. — Todos estamos especulando a seu respeito. Ele não apareceu no consulado, nem mesmo procurou o nosso chefe, que está ansioso por ver sua fotografia nos jornais ao lado de Havilland. Afinal, Havilland é a própria classe... como uma entidade metafísica na profissão. Está por aí desde aquela história dos pães e peixes, e provavelmente foi o autor da façanha. — Sabe então que ao longo dos anos o seu aristocrático embaixador tem se envolvido dom algo mais do que meras negociações diplomáticas. — Ninguém jamais comenta, mas somente os ingênuos aceitam que ele se mantém numa posição impecável.
— Você é mesmo bom, Johnny. — Apenas observador. Faço jus a uma parte do meu salário. Qual é a ligação entre um nome que conheço e outro que não conheço? — É o que gostaria de saber. Tem alguma idéia do motivo da presença de Havilland aqui? Ouviu algum rumor? — Não tenho a menor idéia do motivo pelo qual ele está aqui, mas sei que não vai encontrá-lo num hotel. — Presumo que ele tem amigos ricos... — Estou certo que tem; mas também não está com esses amigos. — É mesmo? — O consulado alugou discretamente uma casa em Victoria Peak, e um segundo contingente de fuzileiros voou do Havaí para guardá-lo. Nenhum de nós, nos escalões intermediários, sabia disso, até poucos dias atrás, quando aconteceu uma dessas coisas insignificantes. Dois fuzileiros jantaram no Wanchai e um deles pagou a conta com um cheque provisório, de um banco de Hong Kong. Você sabe como são os soldados e os cheques. O gerente não queria aceitar e pressionou o cabo. O garoto disse que nem ele nem seu companheiro haviam tido tempo para pegar dinheiro no banco e insistiu que o cheque era perfeitamente válido. Porque o gerente não telefonava para o consulado e falava com o adido militar? — Um cabo esperto — comentou Staples. — Um consulado não tão esperto — disse Nelson. — Os militares já haviam encerrado o expediente e a turma da segurança, em sua paranóia ilimitada com o sigilo, não relacionara o contingente em Victoria Peak. O gerente disse depois que o cabo mostrou um documento de identidade e parecia um bom rapaz, por isso resolveu correr o risco. — O que foi sensato de sua parte. Provavelmente não o faria se o cabo tivesse se comportado de outra maneira. Mais uma vez, cabe o comentário: um fuzileiro esperto. — Acontece que ele se comportou de outra maneira. Na manhã seguinte, no consulado. Protestou em voz tão alta que até eu ouvi... e olhe que minha sala fica no final do corredor. Queria saber o que os paisanos pensavam que eles estavam fazendo lá em cima, naquela montanha, como era possível que ainda não estivessem relacionados, apesar de já se encontrarem em Hong Kong há uma semana. Estava furioso, e um fuzileiro furioso não é brincadeira. — E de repente todo o consulado sabia que havia uma casa guardada na colônia. — Você é que disse, Catherine, não eu. Mas posso informar exatamente o que o memorando para todo o pessoal nos instruía a dizer... o mesmo chegou a nossas mesas uma hora depois que o cabo
foi embora, depois de passar vinte minutos com os embaraçados palhaços da segurança. — E o que foi instruído a dizer não é o que se acredita. — Sem comentários — disse Nelson. — A casa em Victoria foi alugada para a conveniência e segurança de altas autoridades em trânsito do governo e representantes das corporações americanas que estão a negócios no território. — Tudo besteira. Especialmente a segunda parte. Desde quando o contribuinte americano paga esses tipos de contas para a General Motors e ITT? — Washington está ativamente encorajando a expansão do comércio, de acordo com a nossa política aberta para a República Popular. É coerente. Queremos tornar as coisas mais fáceis, mais acessíveis... e este lugar está cada vez mais apinhado. Tente arrumar uma reserva decente com dois dias de antecedência. — Você parece que ensaiou isso. — Sem comentários. Eu lhe contei apenas o que fui instruído a dizer caso você levantasse o assunto... o que estou certo que aconteceu. — E é verdade. Tenho amigos em Victoria Peak que acham que a vizinhança está se deteriorando com tantos cabos por lá. — Staples tomou um gole de seu drinque. E depois perguntou, enquanto repunha o copo na mesa: — Havilland está lá em cima? — É quase certo. — Quase? — Nossa agente de informações... sua sala fica ao lado da minha... queria tirar algum proveito de relações públicas da presença do embaixador. Perguntou ao chefe em que hotel estava o embaixador e foi informada de que ele não se encontrava em nenhum. Então na residência de quem? A mesma resposta. “Teremos de esperar até que ele nos procure, se é que isso vai acontecer”, declarou o nosso chefe. Ela chorou em meu ombro, mas a ordem foi inflexível. Nada de tentar descobri-lo. — Ele está lá em cima no Peak — concluiu Staples. — Providenciou uma casa segura e montou uma operação. — O que está relacionado com essa Marie St. Alguma Coisa Webb? — St. Jacques. Exatamente. — Quer me falar a respeito? — Não agora... para o seu bem, tanto quanto para o meu. Se estou certa e alguém pensar que você me forneceu informações, pode ser transferido para Reikjavic sem uma suéter. — Mas você disse que não sabia qual era a ligação, que gostaria de saber.
— No sentido de que não posso compreender os motivos, se é que existem. Sei apenas de um lado a história, e ele está repleto de lacunas. Posso estar enganada. — Catherine tomou outro gole de sua bebida. — Só você pode tomar a decisão, Johnny. Se for negativa, eu compreenderei. Preciso saber se a presença de Havilland aqui tem alguma relação com um homem chamado David Webb e sua esposa, Marie St. Jacques. Antes do casamento, ela era economista em Ottawa. — Ela é canadense? — E, sim. Vou explicar por que preciso saber, sem revelar muita coisa que possa metê-lo numa encrenca. Se a relação existir, terei que seguir um curso; se não houver, posso dar uma volta de 180 graus e ir no sentido contrário. No segundo caso, posso divulgar tudo. Talvez usar os jornais, rádio, televisão, qualquer coisa que espalhe a notícia e atraia o marido. — O que significa que ele está à solta por aí — interveio o adido. — E você sabe onde a mulher está, o que outros ignoram. — Como eu disse antes, você pega as coisas no ar. — Mas se for o primeiro caso... se houver uma ligação com Havilland, uma possibilidade em que você acredita... — Sem comentários. Se eu respondesse, estaria lhe dizendo mais do que você deve saber. — Entendo. O caso é mesmo delicado. Deixe-me pensar um pouco. — Nelson pegou o copo, mas não bebeu o martíni. Tornou a largar o copo na mesa. — Que tal um telefonema anônimo que atendi? — Como assim? — Uma transtornada canadense, querendo informações sobre o marido americano desaparecido. — Por que ela haveria de ligar para você? É uma mulher que conhece os círculos governamentais. Por que não o próprio cônsul? — Ele não estava. Eu estava. — Não gosto de desiludir os seus sonhos de glória, Johnny, mas você não é o segundo na cadeia de comando. — Tem razão. E qualquer pessoa poderia conferir com a telefonista e verificar que não recebi nenhum telefonema. Staples franziu o rosto, depois inclinou-se para a frente. — Há uma maneira, se você estiver disposto a mentir mais um pouco. Baseia-se na realidade. Aconteceu mesmo e ninguém pode contestar.
— O que é? — Uma mulher deteve-o na Garden Road, quando estava saindo do consulado. Ela não disse muita coisa, mas foi o suficiente para alarmá-lo. Não quis entrar porque estava assustada. Era a mulher transtornada à procura do marido americano desaparecido. Poderia até descrevê-la. — Comece pela descrição — sugeriu Nelson. Sentado em frente à mesa de McAllister, Lin Wenzu consultava suas anotações enquanto falava. O subsecretário de Estado escutava atentamente. — A descrição não corresponde plenamente, mas as diferenças são pequenas e podem ser obtidas com facilidade. Cabelos penteados para trás e cobertos por um chapéu, ausência de maquilagem, sapatos sem saltos para reduzir a altura, mas não muito... é mesmo ela. — E alegou que não podia reconhecer o nome de qualquer pessoa na lista que pudesse ser o seu suposto primo? — Um primo em segundo grau, por parte de mãe. Um pouco forçado, mas bastante específico para ser crível. Segundo a recepcionista, ela estava bastante contrafeita, até nervosa. Levava uma bolsa que era uma imitação de Gucci tão óbvia que a recepcionista tomou-a por uma matuta atrasada. Uma mulher simpática, mas ingênua. — Ela reconheceu o nome de alguém — declarou McAllister. — Se isso aconteceu, por que não pediu para falar com ele? Não perderia tempo, nas circunstâncias. — Provavelmente presumiu que transmitiríamos um alerta, que não podia correr o risco de ser reconhecida, não ali dentro. — Não creio que ela se preocuparia com isso, Edward. Com o que ela sabe, tudo por que passou, pode ser extremamente convincente. — O que ela pensa que sabe, Lin. Não pode ter certeza de coisa alguma. Será muito cautelosa, com medo de fazer um movimento errado. É seu marido que está por aí, e aceite a minha palavra... eu os vi juntos... ela faz tudo para protegê-lo. Roubou mais de cinco milhões de dólares só porque achou... corretamente, diga-se de passagem... que ele fora enganado por sua própria gente. Em sua opinião, ele merecia o dinheiro... eles mereciam... e Washington que se danasse. — Ela fez isso? — Havilland autorizou-me a informá-lo de tudo. Ela fez isso e escapou impune. Quem podia protestar? Ela tinha a Washington clandestina na palma da mão. Assustada e embaraçada... apenas uma encenação. — Quanto mais sei, mais a admiro.
— Pode admirá-la quanto quiser, mas trate de encontrá-la. — Por falar no embaixador, onde ele está? — Participando de um almoço discreto com o Alto Comissário canadense. — Vai contar tudo a ele? — Não. Vai pedir sua cooperação cega, com um telefone na mesa para poder entrar em contato com Londres. E Londres vai instruir o comissário a fazer qualquer coisa que Havilland pedir. Está tudo acertado. — Ele não perde tempo, hem? — Não há ninguém como ele. Deve voltar a qualquer momento agora... já está até atrasado. — O telefone tocou e McAllister atendeu. — Alô?... Não, ele não está. Quem?... Claro, claro. Falarei com ele. — O subsecretário cobriu o bocal com a mão e informou ao major: —É o nosso cônsul... o americano. — Aconteceu alguma coisa — disse Lin, bastante nervoso, levantando-se. — Pois não, Sr. Lewis, aqui é McAllister. Quero que saiba o quanto estamos gratos por tudo, senhor. O consulado tem se mostrado muito cooperativo. A porta se abriu de repente e Havilland entrou na sala. — É o cônsul-geral americano, Sr. Embaixador — explicou Lin. — Creio que estava querendo lhe falar. — Não tenho tempo para um de seus malditos jantares! — Um momento por favor, Sr. Lewis. O embaixador acaba de chegar. Tenho certeza de que deseja falar com ele. McAllister estendeu o fone para Havilland, que se aproximou rapidamente da mesa. — O que é, Jonathan? O corpo alto e esguio numa postura rígida, os olhos fixados num ponto invisível no jardim além da janela, o embaixador ficou escutando em silêncio por um longo tempo, antes de finalmente acrescentar: — Obrigado, Jonathan. Fez o que era certo. Não diga absolutamente nada a ninguém e pode deixar que daqui para a frente cuidarei de tudo. Havilland desligou, olhou alternadamente para McAllister e Lin. — Nossa pista, se é que é uma pista, acaba de surgir, da direção errada. Não do consulado
canadense, mas do americano. — Não tem sentido — McAllister. — Não é Paris, não é a rua com sua árvore predileta, o bordo, a folha de bordo. Esse é o consulado canadense, não o americano. — E por essa análise devemos ignorar a pista? — Claro que não. O que aconteceu? — Um adido chamado Nelson foi detido na Garden Road por uma canadense tentando encontrar o marido americano. Esse Nelson ofereceu-se a ajudá-la, a acompanhá-la até a polícia, mas ela se manteve irredutível. Não iria à polícia e também não iria com ele ao seu escritório. — Ela deu alguma explicação? — perguntou Lin. — Pede ajuda e depois a recusa. — Disse apenas que era pessoal. Nelson descreveu-a como uma mulher tensa e cansada. Identificou-se como Marie Webb e disse que o marido talvez tivesse ido ao consulado à sua procura. Nelson poderia perguntar se ele aparecera? Ela ligaria mais tarde. — Não foi o que ela disse antes — protestou McAllister. — Estava evidentemente se referindo ao que aconteceu com os dois em Paris, o que significava entrar em contato com um representante de seu governo, de seu país, o Canadá. — Por que você insiste? — indagou Havilland. — Não é uma crítica, quero apenas saber o motivo. — Não sei direito. Alguma coisa não está certa. Entre outras coisas, o major aqui já confirmou que ela passou pelo consulado canadense. — É mesmo? O embaixador virou-se para o homem do Setor Especial. — A recepcionista confirmou. A descrição era bem próxima, levando-se em consideração que era uma pessoa treinada por um camaleão. A história era de que prometera à família procurar por um primo distante, cujo sobrenome esquecera. A recepcionista emprestou uma relação do pessoal diplomático e ela a examinou. — Encontrou alguém que conhecia — interveio o subsecretário de Estado. — Fez contato. — Pois aí está a sua resposta — declarou Havilland, firmemente. — Ela descobriu que o marido não fora a uma rua com bordos e por isso assumiu o curso seguinte mais óbvio. O consulado americano. — E se identifica, quando é claro que sabe que há pessoas procurando-a por toda Hong Kong? — Dar um nome falso não atenderia a seu propósito — respondeu o embaixador.
— Os dois falam francês. Ela poderia usar uma palavra francesa... toile, por exemplo, que significa web (teia). — Sei o que significa, mas acho que você está exagerando. — O marido compreenderia. Ela teria feito alguma coisa menos óbvia. — Sr. Embaixador — interveio Lin Wenzu, desviando os olhos de McAllister lentamente —, ouvindo suas palavras para o cônsul americano, de que ele não deveria dizer absolutamente nada a ninguém e agora compreendo plenamente a sua preocupação com o sigilo, presumo que o Sr. Lewis não foi informado da situação. — Correto, Major. — Então como ele sabia que devia procurá-lo? É freqüente as pessoas se perderem aqui em Hong Kong. Um marido desaparecido ou uma esposa sumida não é um acontecimento raro. Por um momento, a expressão de Haviiland revelou suas dúvidas. — Jonathan Lewis e eu nos conhecemos há muito tempo — disse ele, a voz sem a autoridade habitual. — Ele pode ser um bon vivant, mas não é um tolo... não estaria aqui, se fosse. E as circunstâncias em que a mulher deteve o seu adido... ora, Lewis me conhece e tirou as conclusões certas. O diplomata virou-se para McAllister. Ao continuar a falar, sua autoridade voltou gradativamente. — Ligue para Lewis, Edward. Diga a ele para determinar a esse Nelson que fique esperando por uma ligação sua. Eu preferia um contato menos direto, mas não há tempo. Quero que você o interrogue, sobre tudo e qualquer coisa que puder pensar. Ficarei escutando na extensão. — Quer dizer que concorda — comentou o subsecretário. — Alguma coisa está errada. — É verdade. — Havilland olhou para Lin. — O major percebeu, e eu não. Eu formularia de maneira um tanto diferente, mas é essencialmente o que o perturba. O problema não é por que Lewis me procurou, mas sim por que um adido foi a ele. Afinal, uma mulher nervosa diz que o marido está desaparecido, mas não quer ir à polícia, não quer entrar no consulado. Normalmente, uma pessoa assim seria ignorada como uma maluca. À primeira vista, não é um problema que se leve à atenção de um superpreocupado cônsul-geral. Ligue para Lewis. — Está certo. Mas antes, eu gostaria de saber: correu tudo bem com o comissário canadense? Ele vai cooperar? — A resposta à primeira pergunta é não, as coisas não foram muito bem. Quanto à segunda, ele não tem alternativa.
— Não estou entendendo. Havilland deixou escapar um suspiro de irritação e cansaço. — Por intermédio de Ottawa, ele vai nos fornecer uma lista de todas as pessoas de sua equipe que já tiveram qualquer contato com Marie St. Jacques... relutantemente. Essa é a cooperação que recebeu ordens para prestar. Mas se mostrou bastante irritado. Para começar, ele próprio participou de um seminário de dois dias com ela, há quatro anos. Calculou que provavelmente o mesmo já aconteceu com um quarto do consulado. Não que ela se lembre de todos, mas as pessoas certamente se lembram dela. Ela era “extraordinária”, foi a palavra que ele usou. E também é uma canadense que foi maltratada por um bando de imbecis americanos... e ele não teve o menor escrúpulo de usar a palavra... em alguma operação sinistra de retardados mentais... é verdade, ele falou mesmo “retardados mentais”... uma operação idiota, armada por esses mesmos imbecis... juro que ele repetiu a palavra... que nunca foi explicada de maneira satisfatória. O embaixador fez uma breve pausa, sorrindo por um instante, tossindo uma risada curta. — Foi uma conversa das mais revigorantes. Ninguém me falava assim desde que a minha querida esposa morreu. Preciso de mais coisas assim. — Mas não disse a ele que era para o próprio bem da mulher? Que precisamos encontrá-la antes que lhe aconteça alguma coisa terrível? — Tenho a nítida impressão de que o nosso amigo canadense tem sérias dúvidas sobre as minhas faculdades mentais. Ligue para Lewis. Só Deus sabe quando receberemos a lista. A folha de bordo provavelmente vai enviá-la de trem de Ottawa para Vancouver e depois no cargueiro mais lento para Hong Kong, onde se perderá na sala de correspondência. Enquanto isso, temos um adido que se comporta de forma muita estranha. Ele pula as cercas quando não há necessidade disso. — Conheço John Nelson, senhor — disse Lin. — É muito inteligente e fala chinês fluentemente. E é bastante popular junto ao pessoal de consulado. — E é ainda mais alguma coisa, Major. Nelson desligou o telefone. Gotas de suor lhe haviam aflorado à testa; removeu-as com o dorso da mão, convencido de que se saíra do melhor modo possível, considerando-se tudo. Estava especialmente satisfeito por ter virado a investida das perguntas de McAllister contra o interrogador, embora diplomaticamente. Por que se sentiu na obrigação de procurar o cônsul-geral? Seu telefonema parece responder a essa pergunta, Sr. McAllister. Senti que ocorrera algo fora do normal. E achei que o cônsul deveria ser informado. Mas a mulher recusou-se a ir à polícia; recusou-se até a entrar no consulado. Como eu disse, senhor, era algo diferente. Ela estava nervosa e tensa, mas não era pirada.
Não era o quê? Estava perfeitamente lúcida, pode-se mesmo dizer que controlada, apesar da ansiedade. Entendo. Não sei se entende mesmo, senhor. Não tenho a menor idéia do que o cônsul lhe disse, mas sugeri a ele que, tendo em vista a casa em Victoria Peak, os fuzileiros na guarda e a chegada do Embaixador Havilland, talvez fosse melhor entrar em contato com alguém aí em cima. Foi você quem sugeriu? Isso mesmo. Por quê? Não creio que servisse a qualquer propósito o fato de eu especular a respeito desses assuntos, Sr. McAllister. Não me dizem respeito. Tem razão, está certo. Afinal... é isso mesmo. Mas precisamos encontrar aquela mulher, Sr. Nelson. Fui instruído a lhe dizer que seria de seu grande proveito se pudesse nos ajudar. Quero ajudar de qualquer maneira, senhor. Se ela entrar em contato comigo outra vez, tentarei marcar um encontro em algum lugar e o avisarei. Eu sabia que estava certo ao fazer o que fiz, ao dizer o que disse. Aguardaremos a sua ligação. Catherine acertara em cheio, pensou John Nelson; havia uma tremenda ligação. E tão grande que ele não se atreveu a usar seu telefone no consulado para falar com ela. E quando isso acontecesse, haveria de pressioná-la com algumas perguntas. Confiava em Catherine, mas não estava à venda, apesar das fotografias e suas conseqüências. Levantou-se e encaminhou-se para a porta da sala. Uma consulta com o dentista lembrada de repente seria uma explicação suficiente. Percorrendo o corredor a caminho da recepção, pensou em Catherine Staples. Era uma das pessoas mais fortes que já conhecera, mas a expressão em seus olhos na noite anterior não transmitia força, mas sim uma espécie de medo desesperado. Era uma Catherine que ele nunca vira antes. — Ele desviou as perguntas para seus próprios fins — comentou Havilland, passando pela porta, com o enorme Lin Wen zu em sua esteira. — Concorda, Major? — Claro que concordo. O que significa que ele previu as perguntas. Estava preparado. — O que significa que alguém o preparou! — Nunca deveríamos tê-lo procurado — murmurou McAllister, sentando por trás da mesa, os dedos nervosos mais uma vez massageando a têmpora direita. — Quase tudo o que ele disse visava a arrancar uma resposta minha.
— Não podíamos deixar de procurá-lo —insistiu Havilland, — quanto menos não fosse para descobrir isso. — Ele permaneceu sob controle. Eu o perdi. — Não poderia se comportar de maneira diferente, Edward — disse Lin. Reagir de outra forma implicaria questionar seus motivos. Em suma, você o teria ameaçado. — E no momento não queremos que ele se sinta ameaçado — concordou Havilland. — Está obtendo informações para alguém e precisamos descobrir quem é. — E isso significa que a mulher de Webb entrou em contato com alguém que conhecia e contou tudo a essa pessoa. McAllister inclinou-se para a frente, os cotovelos na mesa, as mãos tensamente cruzadas. — No final das contas, você estava certo — disse o embaixador, fitando o subsecretário de Estado. — Uma rua com seus bordos prediletos. Paris. A repetição inevitável. Está bem claro. Nelson trabalha para alguém no consulado canadense... e quem quer que seja, está em contato com a mulher de Webb. McAllister levantou os olhos. — Então Nelson é um idiota ou um idiota ainda maior. Por sua própria admissão, ele sabe... ou ao menos presume... que está lidando com informações altamente delicadas, envolvendo um assessor direto de presidentes. Pode ser mandado para a prisão por conspirar contra o governo. — Posso garantir que ele não é um idiota — declarou Lin. — Nesse caso, alguém o está forçando a fazer isso contra a sua vontade... chantagem, provavelmente... ou ele está sendo pago para descobrir se existe alguma ligação entre Marie St. Jacques e esta casa em Victoria Peak. Não pode ser qualquer outra coisa. Franzindo o rosto, Havilland sentou na cadeira diante da mesa. — Dê-me um dia — acrescentou o major do MI-Seis. — Talvez eu consiga descobrir. Se puder, pegaremos quem quer que seja no consulado. — Não — respondeu o diplomata, com grande experiência em operações secretas. — Tem até oito horas desta noite. Nem isso temos condições de assumir, mas se pudermos evitar uma confrontação e as possíveis conseqüências, devemos tentar. A moderação é essencial. Tente, Lin. Pelo amor de Deus, tente. — E o que vai acontecer depois das oito horas, Sr. Embaixador? — Vamos pegar o nosso esperto e evasivo adido e quebrá-lo, Major. Eu preferia usá-lo sem que ele soubesse, sem despertar alarmes, mas a mulher está em primeiro lugar. Oito horas, Major Lin.
— Farei tudo o que for possível. — E se estivermos enganados — continuou Havilland, como se Lin Wenzu não tivesse falado —, se esse Nelson foi acionado como um cego e não sabe de nada, quero que todos os regulamentos sejam esquecidos. Não me importa como vai fazer, quanto custará em subornos ou o lixo que terá de usar para efetuar o serviço. Quero câmaras, telefones grampeados, vigilância eletrônica... qualquer coisa que puder acionar... em todas as pessoas daquele consulado. Alguém por lá sabe onde está a mulher. Alguém por lá a está escondendo. — Catherine, sou eu, John — disse Nelson, pelo telefone público na Albert Road. — Foi ótimo você telefonar — respondeu Staples prontamente. — Foi uma tarde cansativa. Precisamos tomar outro drinque um dia desses. Será.um prazer tomar a vê-lo depois de tantos meses e você poderá me falar sobre Canberra. Mas agora me diga uma coisa: Eu estava certa no que lhe contei? — Precisamos nos encontrar, Catherine. — Não vai dar nenhuma pista? — Precisamos nos encontrar. Está livre agora? — Tenho uma reunião dentro de quarenta e cinco minutos. — Então mais tarde, por volta das cinco horas. Tem um lugar chamado Monkey Tree, em Wanchai, na Gloucester... — Eu conheço. Estarei lá. John Nelson desligou. Não havia mais nada que pudesse fazer agora, a não ser voltar ao consulado. Não podia se ausentar por três horas, não depois de sua conversa com o Subsecretário de Estado Edward McAllister; as aparências proibiam uma ausência assim. Ele já ouvira falar de McAllister; o subsecretário passara sete anos em Hong Kong, partindo apenas meses antes da chegada de Nelson. Por que voltara? Por que havia uma casa segura em Victoria Peak, com o Embaixador Havilland subitamente instalado lá? Acima de tudo, por que Catherine Staples estava tão assustada? Ele devia a própria vida a Catherine, mas precisava obter algumas respostas. Tinha de tomar uma decisão. Lin Wenzu praticamente esgotara todas as suas fontes. Só uma lhe dera o que pensar. O Inspetor Ian Ballantyne, como geralmente acontecia, respondera às perguntas com outras perguntas, em vez de oferecer respostas concisas e objetivas. Era irritante, porque nunca se sabia se o louvado transferido da Scotland sabia ou não alguma coisa sobre um determinado assunto, nesse caso um adido americano chamado John Nelson. — Já me encontrei com o homem várias vezes — dissera Ballantyne. — Parece inteligente. E fala a sua língua. Sabia disso? — Minha “língua”, Inspetor?
— Poucos de nós falavam, mesmo durante a Guerra do Ópio. Não acha que foi um interessante período da história, Major? — Guerra do Ópio? Eu estava falando sobre o adido John Nelson. — Há alguma ligação? — Com o que, Inspetor? — A Guerra do Ópio. — Se há, ele tem cento e cinqüenta anos de idade, embora o seu dossiê diga que está com trinta e dois anos. — É mesmo? Tão jovem assim? Mas Ballantyne usara pausas demais para deixar Lin satisfeito. Independente de qualquer coisa, o veterano policial nada revelaria se soubesse de algo. Todos os demais — da polícia de Hong Kong e Kowloon aos “especialistas” que trabalhavam para o consulado americano, obtendo informações por pagamento — atribuíram a Nelson a ficha mais limpa e respeitável do território. Se Nelson tinha um lado vulnerável, estava em sua ampla e indiscriminada busca de sexo; mas como era heterossexual e solteiro, tal comportamento devia ser aplaudido, e não condenado. Um “especialista” disse a Lin que ouvira Nelson ser advertido a fazer um exame médico periódico. Não era nenhum crime; o adido era um garanhão. O telefone tocou e Lin atendeu. — Alô? — Nosso alvo foi até o Peak Tram e pegou um táxi para Wanchai. Está num café chamado Monkey Tree. Estou com ele. Posso vê-lo. — Fica fora de mão e está sempre apinhado — comentou o major. — Alguém se juntou a ele? — Não. Mas ele pediu uma mesa para duas pessoas. — Estarei aí o mais depressa possível. Se você tiver de partir, faremos contato pelo rádio. Está no Veículo Sete, não é? — Veículo Sete, senhor... Espere! Uma mulher se encaminha para a mesa. Ele está se levantando. — Pode reconhecê-la? — Não. Está muito escuro. — Pague ao garçom. Atrase o serviço. Nada muito óbvio, apenas por alguns minutos. Usarei nossa ambulância, com a sirene ligada, até um quarteirão daí.
— Catherine, eu lhe devo muito e quero ajudá-la por todos os meios que puder, mas preciso saber sobre o que me contou. — Há uma ligação, não é mesmo? Havilland e Marie St. Jacques. — Não vou confirmar... não posso confirmar... porque não falei com Havilland. Mas falei com outro homem, um homem sobre o qual já ouvi muitos comentários e que serviu aqui, uma inteligência de primeira ordem... e ele parecia tão desesperado quanto você ontem à noite. — Eu parecia assim ontem à noite? — disse Staples alisando os cabelos com alguns fios brancos. — Não sabia disso. — Pare com isso, Catherine. Talvez não em suas palavras, mas na maneira como falava. A estridência estava logo abaixo da superfície. Parecia eu quando me entregou as fotografias. Sei identificar a atitude. — Talvez estejamos envolvidos em alguma coisa de que nem deveríamos chegar perto, Johnny, algo tão lá em cima, nas nuvens, que nós... eu... não temos conhecimentos para tomar uma decisão apropriada. — Mas eu tenho de tomar uma decisão, Catherine. —Nelson levantou os olhos para o garçom. — Onde estão os nossos drinques? — Não estou muito ansiosa. — Mas eu estou. Devo tudo a você, gosto de você e sei que não usaria as fotografias contra mim, o que ainda piora tudo... — Eu lhe dei todas as fotografias que existiam e queimamos os negativos juntos. — Portanto, minha dívida é real... será que não percebe isso? A criança tinha... doze anos? — Você não sabia disso. Estava drogado. — Meu passaporte para o esquecimento. Não há nenhuma Secretaria de Estado em meu futuro, apenas a secretaria da pornografia infantil. Uma viagem terrível! — Já acabou e você está sendo melodramático. Quero apenas que me diga se há uma ligação entre Havilland e Marie St. Jacques... e acho que você pode me dar essa informação. Por que é tão difícil? Saberei então o que fazer. — Se eu der a informação, terei de contar a Havilland o que lhe disse. — Então me dê uma hora. — Por quê? — Porque tenho várias fotografias em meu cofre no consulado — mentiu Catherine Staples.
Nelson empertigou-se na cadeira, aturdido. — Oh, Deus, não posso acreditar! — Procure compreender, Johnny. Todos estamos jogando duros agora, no interesse de nossos patrões... nossos respectivos países, se prefere assim. Marie St. Jacques era minha amiga... é minha amiga... e sua vida tornou-se nada aos olhos de homens arrogantes que dirigem uma operação secreta, homens que não dão a menor importância a ela e a seu marido. Usaram os dois e depois tentaram matálos. Vou lhe dizer um coisa, Johnny. Detesto a sua CIA e as chamadas Operações Consulares de seu Departamento de Estado. Não é apenas porque eles são uns filhos da puta, mas também porque são filhos da puta estúpidos. E se eu sentir que está sendo montada uma operação, outra vez usando os dois, pessoas que passaram por muito sofrimento, tenciono descobrir por que e agir de acordo. Mas chega de jogar com as vidas deles. Sou bastante experiente, o que não acontece com eles, e estou bastante zangada... mais do que isso, furiosa... para exigir respostas. — Oh, Deus... O garçom chegou com os drinques. Staples levantou os olhos para indicar seu agradecimento e sua atenção foi atraída para um homem junto a uma cabine telefônica no apinhado corredor externo, observando-os. Ela desviou os olhos. — O que vai ser, Johnny? Vai confirmar ou negar? — Confirmo — sussurrou Nelson, estendendo a mão para o seu copo. — A casa em Victoria Peak? — Isso mesmo. — Quem era o homem com quem você falou... o homem que já serviu aqui? — McAllister... o Subsecretário de Estado McAllister. — Essa não! Havia um movimento excessivo no corredor externo. Catherine protegeu os olhos e virou a cabeça ligeiramente, o que ampliou sua visão periférica. Um homem imenso entrou e encaminhou-se para o telefone na parede. Só havia um homem assim em toda Hong Kong. Era Lin Wenzu, do Setor Especial do MI-Seis! Os americanos haviam recrutado o melhor, mas ele podia ser o pior para Marie e seu marido. — Você não fez nada de errado, Johnny — disse Staples levantando-se. — Vamos conversar mais um pouco, mas agora preciso ir ao banheiro. — Catherine... — O que é?
— Jogo duro? — Muito duro, meu querido. Staples passou por um Lin a se encolher e se virar. Entrou no banheiro, esperou alguns segundos e depois saiu junto com duas outras mulheres, das quais se separou mais adiante, continuando a seguir pelo corredor, até a cozinha do Monkey Tree. Sem dizer nada para os espantados garçons e cozinheiros, encontrou a porta de serviço e saiu. Correu pelo beco até Gloucester Road, virou à esquerda, acelerando o passo, até encontrar uma cabine telefônica. Inseriu uma moeda, discou. — Alô? — Marie, saia do apartamento. Meu carro está numa garagem a um quarteirão daí, à direita de quem sai do prédio. Chama-se Ming’s e tem um cartaz luminoso vermelho. Vá o mais depressa que puder. Eu me encontrarei com você lá. Depressa! Catherine Staples desligou e fez sinal para um táxi. — O nome da mulher é Staples... Catherine Staples — disse Lin Wenzu ao telefone, a voz áspera, no corredor do Monkey Tree, falando alto para ser ouvido acima do burburinho. — Verifique no computador. E depressa! Quero seu endereço e certifique-se de que é atualizado! Os músculos das mandíbulas do major se mexiam furiosamente, enquanto ele esperava. A resposta foi transmitida e ele deu outra ordem: — Se um dos nossos veículos estiver na área, entre em contato pelo rádio e mande que siga para lá. Se não estiver, despache um imediatamente. Lin fez uma pausa, escutando de novo, depois arrematou; — Eles devem ficar atentos à mulher americana. Se ela for localizada fechem o cerco e capturem-na. Estamos a caminho. — Veículo Cinco, responda! — repetiu o operador de rádio, falando por um microfone, a mão num controle no canto inferior direito do painel à sua frente. A sala era branca e sem janelas, o zumbido do ar-condicionado baixo mas constante, o zumbido do sistema de filtragem ainda mais suave. Em três paredes havia bancadas de sofisticados equipamentos de rádio e computação, por cima de impecáveis balcões brancos, feitos com a fórmica mais lisa. Havia uma qualidade anti-séptica na sala. Podia ser um laboratório eletrônico num centro médico bem equipado, mas não era. Ali funcionava outro tipo de centro. Era o centro de comunicações do MI-Seis, Setor Especial, Hong Kong. — Veículo Cinco respondendo! — gritou uma voz esbaforida pelo alto-falante. — Recebi seu sinal, mas estava a uma rua de distância, cobrindo o Thai. Estávamos certos. Drogas.
— Entre no scrambler! — ordenou o operador, acionando a alavanca que ligava o aparelho que impedia que a conversa fosse entendida por quem estivesse na escuta. Houve uma espécie de apito, que cessou tão abruptamente quanto começara. —Pode largar o Thai. Você é o mais próximo. Vá para Arbuthnot Road. A entrada do Jardim Botânico é o caminho mais rápido. Forneceu o endereço de Catherine Staples e encerrou com uma ordem: — Procure a mulher americana. E trate de capturá-la. — Aiya — murmurou o ofegante agente do Setor Especial. Marie tentou não entrar em pânico, impondo a si mesmo um controle que não sentia. A situação era absurda. Também era extremamente grave. Vestia um chambre mal-ajustado de Catherine, depois de tomar um banho demorado e bem quente; pior ainda, lavara suas roupas na pia da cozinha. Estavam penduradas sobre as cadeiras de plástico da pequena varanda do apartamento, ainda úmidas. Parecera lógico e natural lavar de seu corpo o calor e a sujeira de Hong Kong, assim como das roupas estranhas. E as sandálias ordinárias haviam provocado bolhas em seus pés; ela rompera uma grande com uma agulha e andava com dificuldade. Mas não se atrevia a andar, tinha de correr. O que acontecera? Catherine não era o tipo de pessoa que desse ordens peremptórias. Assim como ela também não era, especialmente com David. Pessoas como Catherine evitavam o tratamento imperativo, porque só servia para toldar o pensamento de uma vítima... e sua amiga Marie St. Jacques era uma vítima agora, não no mesmo grau que o pobre David, mas uma vítima mesmo assim. Trate de se mexer! Quantas vezes David dissera isso, em Zurique e Paris? Com tanta freqüência que ela ainda ficava tensa ao pensar. Vestiu-se, as roupas úmidas grudando no corpo, vasculhou o armário de Staples à procura de um par de chinelas. Não eram confortáveis, mas pareciam mais macias do que as sandálias. Podia correr, tinha de correr. Os cabelos! Oh, Deus, os cabelos! Correu para o banheiro, onde Catherine tinha um pote de porcelana com grampos e prendedores. Em poucos segundos, prendeu os cabelos no alto da cabeça, circulou rapidamente pela pequena sala do apartamento, encontrou o chapéu ridículo e ajeitou-o. A espera pelo elevador foi interminável. Segundo os números iluminados por cima da porta, os dois elevadores se movimentavam entre os andares um, três e sete, jamais se aproximando do nono. Os moradores que saíam para a noite haviam programado os monstros verticais, retardando sua descida. Evite os elevadores sempre que puder. São armadilhas. Jason Bourne. Zurique. Marie olhou para um lado e outro do corredor. Divisou a porta da escada de incêndio e correu para lá. Esbaforida, saiu do pequeno saguão lá embaixo, procurando se controlar da melhor forma possível, a fim de evitar olhares curiosos dos cinco ou seis moradores que ali estavam, alguns chegando, outros saindo. Ela não contou, mal podia ver. Tinha de sair dali!
Meu carro está numa garagem a um quarteirão daí, à direita de quem sai do prédio. Chama-se Ming’s. Seria mesmo à direita? Ou à esquerda? Na calçada, hesitou. Direita ou esquerda? Tentou se lembrar com nitidez. O que Catherine dissera? Direita! Tinha de seguir para a direita. Foi a primeira coisa que surgiu em sua mente. Tinha de confiar nisso. Seus primeiros reflexos são os melhores, os mais acurados, porque as impressões estão armazenadas em sua cabeça, como informações num banco de dados. Sua cabeça é isso. Jason Bourne. Paris. Começou a correr. A chinela caiu do pé esquerdo; parou, abaixando-se para pegá-la. E de repente um carro saiu em disparada do portão do Jardim Botânico, no outro lado da rua larga. Como um míssil furioso, impulsionado pelo calor, virou para a esquerda, avançando para cima dela. O carro derrapou num semicírculo, os pneus rangendo. Um homem saltou e correu em sua direção.
Capítulo 18 Não havia mais nada a fazer. Ela estava encurralada, acuada. Marie gritou, e gritou, enquanto o agente chinês se aproximava, sua histeria aumentando, enquanto o homem a segurava pelo braço, polida mas firmemente. Ela o reconheceu... era um deles, um dos burocratas! Seus gritos chegaram a um crescendo. Pessoas paravam e se viravam na rua. Mulheres soltavam exclamações aturdidas, enquanto homens surpresos avançavam hesitantes ou olhavam freneticamente ao redor à procura de guardas, vários gritando pela polícia. — Por favor, madame! — disse o oriental, fazendo um esforço para manter a voz sob controle. — Nenhum mal vai lhe acontecer. Deixe-me escoltá-la até o meu carro. É para a sua própria proteção. — Socorro! — gritou Marie, a. voz estridente, enquanto os aturdidos transeuntes vespertinos se reuniam numa multidão. — Este homem é um ladrão! Roubou minha bolsa, meu dinheiro! Está tentando levar minhas jóias! — Pare com isso, rapaz! — gritou um inglês idoso, avançando a claudicar e brandindo a bengala. — Mandei um rapaz chamar a polícia, mas até os guardas chegarem juro por Deus vou lhe dar uma surra! — Por favor, senhor — murmurou o agente do Setor Especial — Isto é um assunto para as autoridades, de que faço parte. Permita que lhe mostre minha identificação. — Tome cuidado com o que faz cara! — berrou uma voz com sotaque australiano, enquanto um homem se adiantava apressado, empurrando gentilmente para o lado o idoso britânico e baixando sua bengala. — É muito valente, meu velho, mas não precisa se incomodar. Essa gente exige um homem mais moço. O robusto australiano postou-se á frente do agente chinês e acrescentou: — Tire as mãos dessa mulher, seu safado! E eu faria isso bem depressa, se fosse você! — Por favor, senhor, está havendo um mal-entendido. A mulher corre perigo e está sendo procurada pelas autoridades para interrogatório. — Você não está de uniforme! — Permita que eu lhe mostre minhas credenciais. — Foi isso que ele disse há uma hora, quando me atacou na Garden Road! — gritou Marie, histericamente. — As pessoas tentaram me ajudar! Ele mentiu para todo mundo! Depois roubou minha bolsa! E está me seguindo! Marie sabia que nenhuma das coisas que estava gritando fazia sentido. Sua única esperança era
criar alguma confusão, uma das coisas que Jason lhe ensinara a usar. — Pois saiba que ninguém vai me enganar, cara! — berrou o australiano, dando um passo para a frente. — Tire logo as mãos dessa mulher! — Por favor, senhor. Não posso fazer isso. Outras autoridades estão a caminho daqui. — É mesmo? Os bandidos como você andam juntos? Pois você será uma triste visão para eles quando chegarem aqui! O australiano agarrou o oriental pelo ombro, virando-o para a esquerda. Mas enquanto o homem do Setor Especial girava, seu pé direito — a biqueira do sapato de couro estendida com uma ponta de faca — se projetou, atingindo o abdome do australiano, O bom samaritano dobrou-se, caindo de joelhos na calçada. — Por favor, senhor, eu lhe peço mais uma vez para não interferir — É mesmo? Seu filho da puta de olhos puxados! O furioso australiano arremeteu, lançando seu corpo contra o oriental, os punhos martelando o homem do Setor Especial. A multidão rugiu em aprovação, a voz coletiva povoando a rua... e o braço de Marie estava livre! E, depois, outros sons se acrescentaram à confusão. Sirenes, seguindo-se três veículos em disparada, entre os quais uma ambulância. Todos três derraparam em voltas súbitas, os pneus rangendo, e pararam aos solavancos. Marie esgueirou-se por entre a multidão e alcançou o lado interno da calçada. Começou a correr na direção da placa vermelha, a meio quarteirão de distância. As chinelas haviam caído; as bolhas inchadas e furadas ardiam, irradiando pontadas de dor pelas pernas. Mas não podia se permitir pensar na dor. Tinha de correr e correr, escapar de qualquer maneira. E foi nesse instante que soou a voz trovejante, sobrepondo-se aos ruídos da rua. Ela calculou que era um homem enorme que estava gritando... o chinês a quem os outros chamavam de Major. — Sra. Webb! Sra. Webb! Eu lhe suplico! Pare! Não queremos lhe fazer mal algum! Vamos contar tudo! Pelo amor de Deus, pare! Contar tudo!, pensou Marie. Contar mentiras e mais mentiras! Subitamente, pessoas corriam em sua direção. O que estavam fazendo? Por quê? E depois passaram além, quase todos homens, mas nem todos. Marie compreendeu. Havia um pânico na rua... talvez um acidente, mutilação, morte. Vamos dar uma olhada! Vamos assistir tudo! À distância, é claro. Oportunidades vão se apresentar. Trate de reconhecê-las e aja de acordo. Marie virou de repente, meio abaixada, avançando pela multidão ainda a correr, e voltou para perto do lugar em que quase fora capturada. A todo instante virava a cabeça para a esquerda, observando, torcendo. E viu-o através dos corpos em disparada. O enorme major passou correndo na outra direção, acompanhado por um homem também bem-vestido, também um burocrata.
A multidão era cautelosa, como os sedentos de sangue sempre são, adiantando-se mas não o bastante para se envolver. E o que viam não era lisonjeiro para os espectadores chineses ou para os que tinham as artes marciais do Oriente em estima mística. O ágil e robusto australiano, a linguagem espetacularmente obscena, socava três atacantes diferentes, em seu ringue de boxe pessoal. E de repente, para espanto de todos, o australiano pegou um dos seus adversários caídos e deixou escapar um rugido tão alto quanto o do corpulento major. — Pelo amor de Deus! Querem parar com isso, seus malucos? Vocês não são bandidos, até eu posso ver! Todos nós fomos enganados! Marie atravessou correndo a rua larga para a entrada do Jardim Botânico. Parou sob uma árvore junto ao portão, com uma visão direta do Ming’s Parking Palace. O major passara pela garagem, parando em diversas vielas que cruzavam a Arbuthnot Road, enviando o subordinado por algumas, olhando constantemente ao redor, à procura das tropas de apoio. Só que os homens não estavam disponíveis. Marie pôde constatar isso, enquanto a multidão se dispersava. Os três respiravam com dificuldade e se encostavam na ambulância, levados até lá pelo australiano. Um táxi parou na frente da garagem. Ninguém saltou a princípio, depois o motorista surgiu. Entrou na garagem e falou com alguém que estava numa cabine envidraçada. Fez uma mesura em agradecimento, voltou ao táxi, falou com a pessoa que estava lá dentro. Cautelosamente, a pessoa abriu a porta e saiu para a calçada. Era Catherine! Ela também entrou na garagem, muito mais depressa que o motorista, falou com a pessoa na cabine e sacudiu a cabeça, indicando que ouvira o que não queria. E subitamente Lin apareceu. Estava voltando, visivelmente irritado pela ausência dos homens que deveriam estar acompanhando-o. Ia passar pela entrada da garagem e avistaria Catherine! — Carlos! — gritou Marie, presumindo o pior, sabendo que isso lhe revelaria tudo. — Delta! O major virou-se, os olhos arregalados em choque. Marie correu pelo Jardim Botânico. Era a chave! Caim é por Delta e Carlos será morto por Caim... ou quaisquer que fossem os códigos espalhados por Paris! Estavam usando David de novo! Não era mais uma probabilidade, mas a realidade! Eles... o governo dos Estados Unidos... estavam mandando seu marido desempenhar o papel que quase o matara, pela ação de seus próprios companheiros! Que tipo de gente era aquela? Ou melhor, que tipo de fins justificava os meios que homens supostamente sãos usavam para consumá-los? Agora, mais do que nunca, precisava encontrar David, antes que ele assumisse riscos que outros deveriam estar correndo. Ele dera muito e agora lhe pediam mais, exigiam mais, de maneira mais cruel possível. Mas para encontrá-lo ela tinha de alcançar Catherine, que se encontrava a menos de cem metros de distância. Tinha de afastar o inimigo e tornar a atravessar a rua, sem ser vista. Jason, o que posso fazer? Escondeu-se por trás de algumas moitas, enquanto o major passava correndo pelo portão do Jardim Botânico. O enorme oriental parou e olhou ao redor, com um olhar penetrante, depois virou-se e chamou seu subordinado, que aparentemente emergira de uma viela na Arbuthnot Road. O segundo homem teve dificuldade para atravessar a rua; o tráfego estava mais intenso e mais lento, por causa da ambulância e dos dois outros veículos estacionados, bloqueando o fluxo normal, nas proximidades da
entrada do Jardim Botânico. O major ficou subitamente furioso ao perceber o motivo para o tráfego crescente. — Mande aqueles idiotas tirarem os carros! — gritou ele. E mande que depois venham para cá... Não! Mande um para o portão na Albany Road! E o resto venha para cá! Depressa! Os transeuntes do início da noite eram cada vez mais numerosos. Os homens afrouxavam as gravatas que haviam usado durante o dia inteiro em seus escritórios, enquanto as mulheres levavam os sapatos de saltos altos em sacolas, substituindo-os por sandálias. Esposas empurrando carrinhos de bebê se encontravam com os maridos; amantes se abraçavam e andavam de braços dados por entre os canteiros de flores. O riso de crianças correndo ressoava pelo jardim. O major manteve sua posição junto ao portão de entrada. Marie engoliu em seco, o pânico aumentando. A ambulância e os dois automóveis estavam sendo tirados dali; o tráfego começou a fluir normalmente. Uma batida! Perto da ambulância, um motorista impaciente batera no carro à sua frente. O major não pôde se conter; a proximidade do acidente, tão perto de seu veículo oficial, forçou-o a se adiantar, obviamente para verificar se os seus homens estavam ou não envolvidos. As oportunidades vão se apresentar... trate de aproveitá-las. Agora! Marie correu pela extremidade das moitas e atravessou o gramado para juntar-se a quatro pessoas no caminho de cascalho que levava à saída do Jardim Botânico. Olhou para a direita, com medo do que poderia ver, mas sabendo que precisava saber. Seus piores receios foram confirmados; o enorme major sentira — ou vira — o vulto de uma mulher correndo às suas costas. Parou por um momento, indeciso, inseguro, depois se encaminhou em passos apressados para o portão. Uma buzina soou, quatro vezes, rapidamente. Era Catherine, acenando para ela pela janela aberta de um pequeno carro japonês, enquanto Marie corria pela rua. — Entre! — gritou Staples. — Ele me viu! — Depressa! Marie embarcou no banco da frente, enquanto Catherine acelerava o pequeno carro, subindo parcialmente na calçada para entrar no fluxo de tráfego. Ela entrou numa rua transversal e seguiu para um cruzamento, onde havia uma placa com uma seta vermelha apontando para a direita, Centro. Distrito Comercial. Staples virou à direita. — Catherine! — gritou Marie. — Ele me viu! — Pior do que isso — murmurou Stap Ele viu o carro. — Um Mitsubishi verde de duas portas! — gritou Lin Wenzu pelo rádio em sua mão. — A placa é AOR-cinco-três-cinco- zero... o zero pode ser um seis, mas não creio. .De qualquer forma, não importa. As três letras serão suficientes. Quero que seja transmitida para todos os pontos, situação de emergência, usando a rede da polícia. A motorista e a passageira devem ser capturadas e não haverá
conversas com qualquer das duas. É um assunto do governo e não haverá explicações. Providencie tudo! Agora! Staples entrou numa garagem pública na Ice House Street. Dava para se avistar a placa vermelha do Mandarin, que acabara de ser iluminada, a menos de um quarteirão de distância. — Vamos alugar um carro — disse Catherine, enquanto pegava o ticket estendido pelo homem na cabine. — Conheço várias pessoas no hotel. — Nós estacionamos? Você estaciona? O sorridente manobreiro obviamente esperava pela primeira opção. — Você estaciona — respondeu Staples, tirando vários dólares de Hong Kong da bolsa. Virou-se para Marie e acrescentou: — Vamos embora. E fique à minha direita, nas sombras, perto dos prédios. Como estão seus pés? — Prefiro não responder. — Pois então não responda. Não há mesmo tempo para tomar alguma providência agora. Agüente firme, minha velha. — Catherine, pare de se comportar como C. Aubrey Smith de saia. — Quem é ele? — Esqueça. Gosto de filmes antigos. Vamos embora. Marie claudicando, as duas mulheres desceram pela rua até uma entrada lateral do Mandarin. Subiram os degraus e entraram no hotel. — Há um banheiro à direita, depois das lojas — informou Catherine. — Estou vendo a placa. — Espere lá. Irei encontrá-la assim que acabar de tomar as providências necessárias. — Tem alguma farmácia por aqui? — Não quero que você fique circulando. Deve haver descrições suas por toda parte. — Sei disso. Mas você não pode circular? Só um pouco. — Está menstruada? — Não. Meus pés. Preciso de vaselina, loção para a pele, sandálias... não, sandálias não. Talvez sapatos de lona. E água oxigenada.
— Farei o que puder, mas o tempo é precioso. — Tem sido assim há um ano. Uma coisa terrível. Será que vai parar algum dia, Catherine? — Estou fazendo o melhor que posso. Você é minha amiga e uma compatriota ainda por cima, minha querida. E sou uma mulher muito zangada... por falar nisso, quantas mulheres você encontrou nos sagrados salões da CIA ou em seus equivalentes das Operações Consulares do Departamento de Estado? Marie piscou os olhos, fazendo um esforço para se lembrar. — Não foram muitas. — Miseráveis! — Havia uma mulher em Paris... — Sempre há, minha cara. Vá logo para o banheiro. — Um automóvel é um estorvo em Hong Kong — comentou Lin, olhando para o relógio na parede de sua sala, no quartel- general do MI-Seis, Setor Especial. Marcava seis e trinta e quatro. — Portanto, devemos presumir que ela tenciona levar a mulher de Webb por alguma distância e escondêla, sem correr maiores riscos. Nosso prazo fatal de oito horas foi revogado e a caçada agora é para valer. Precisamos interceptá-la. Há mais alguma coisa que não consideramos? — Meter o australiano na cadeia — sugeriu firmemente o subordinado baixo e bem-vestido. — Sofremos baixas na Cidade Murada, mas a agressão dele foi um transtorno público. Sabemos onde está o homem. Podemos pegá-lo. — Sob que acusação? — Obstrução à ação da justiça. — Com que finalidade? O subordinado deu de ombros, irritado. — Satisfação, mais nada. — Acaba de responder à sua pergunta. Seu orgulho é irrelevante. Vamos nos ater à mulher... às mulheres. — Tem toda razão, é claro. — Todas as garagens e agências de aluguel de carro aqui na ilha e em Kowloon, estão cobertas pela polícia, não é mesmo? — É, sim, senhor. Mas devo lembrar que a mulher Staples pode muito bem entrar em contato
com um de seus amigos... seus amigos canadenses... e conseguir um automóvel que não seremos capazes de identificar. — Operamos com base no que podemos controlar, esquecendo o que não podemos. Além do mais, pelo que eu sabia antes e o que descobri depois sobre Catherine Staples, diria que ela está agindo sozinha, certamente sem a sanção oficial. Não envolveria qualquer outra pessoa, pelo menos por enquanto. — Como pode ter certeza? Lin fitou seu subordinado nos olhos; tinha de escolher as palavras com todo cuidado. — Apenas um palpite. — Seus palpites têm uma reputação de acurácia. — Um julgamento exagerado. O bom senso é meu aliado. — O telefone tocou, O major estendeu a mão e atendeu. — Alô? — Polícia Central Quatro — disse uma voz de homem. — Agradecemos a cooperação, Central Quatro. — Um Ming’s Parking Palace respondeu ao nosso pedido de informações. O Mitsubishi AOR tem uma vaga ali, numa base mensal. O nome da dona é Staples. Catherine Staples, uma canadense. O carro foi retirado há cerca de trinta e cinco minutos. — Foi muito prestimoso, Central Quatro — disse Lin. — Obrigado. Ele desligou e olhou para o seu ansioso subordinado, acrescentando: — Temos agora três ou quatro informações. A primeira é de que o nosso pedido de informações enviado através da polícia foi mesmo transmitido. A segunda é de que pelo menos uma garagem anotou as informações. A terceira é de que a Sra. Staples aluga sua vaga por mês. — Já é um começo, senhor. — Há três grandes e pelo menos uma dúzia de pequenas agências de aluguel de carros, sem contar os hotéis, que estamos cobrindo em separado. São estatísticas controláveis, o que já não acontece com as garagens. — Por que não, senhor? Talvez haja no máximo uma centena. Quem se dá o trabalho de construir uma garagem em Hong Kong, quando pode instalar uma dúzia de lojas... negócios que vão dar muito dinheiro? Deve haver vinte a trinta telefonistas na central da polícia. Podem entrar em contato com todas as garagens. — O problema não está nos números, meu velho, mas sim na mentalidade dos empregados, pois
os trabalhos não são nada invejáveis. Os que sabem ler e escrever são preguiçosos ou hostis demais para se darem o trabalho de responder, os que não sabem fogem de qualquer associação com a polícia. — Uma garagem respondeu. — Um autêntico cantonês. Era o proprietário. — O dono deve ser informado! — gritou o manobreiro, num chinês estridente, para o atendente na cabine da garagem na Ice House Street. — Por quê? — Já expliquei! Escrevi para você... — Só porque foi à escola e escreve um pouco melhor do que eu não faz com que seja o chefão por aqui. — Você não escreve porra nenhuma! Está se cagando de medo! Me chamou quando o homem no telefone disse que era uma emergência da polícia. Vocês, analfabetos, sempre fogem da polícia. Aquele era o carro, o Mitsubishi verde que estacionei no segundo andar. Se não quer chamar a polícia, deve pelo menos falar com o dono. — Há coisas que não ensinam na escola, garoto de órgão pequeno. — Ensinam que a gente não deve ficar contra a polícia. É perigoso. — Chamarei a polícia... ou melhor, você pode se tornar o herói. — Está certo. — Mas só depois que as duas mulheres voltarem e eu tiver uma conversinha com a motorista. — Para quê? — Ela pensou que estava me dando... dando a nós... dois dólares, mas foram onze. Uma das notas era de dez dólares. Ela estava muito nervosa, bastante transtornada. E assustada. Não prestou atenção ao seu dinheiro. — Você disse que foram dois dólares! — E agora estou sendo honesto. Seria honesto com você se não me preocupasse com os nossos melhores interesses? — Como assim? — Direi a essa rica e assustada americana.., ela falava americano... que você e eu não chamamos a polícia em seu interesse.
Ela vai nos recompensar na hora... e com a maior generosidade... pois compreenderá que pode não recuperar seu carro sem isso. Fique me observando do interior da garagem, ao lado do outro telefone. Depois que ela pagar, mandarei outro manobreiro buscar o carro. Ele terá a maior dificuldade para encontrar, pois darei a localização errada. Enquanto isso, você chama a polícia. Estaremos cumprindo o nosso dever celestial e teremos uma noite de dinheiro, como raras outras noites neste emprego miserável. O manobreiro estreitou os olhos, balançou a cabeça. — Você tem razão. Não ensinam essas coisas na escola. E acho que não tenho opção. — Claro que tem — respondeu o atendente, tirando uma faca comprida do cinto. — Pode dizer não e eu cortarei sua língua faladeira. Catherine aproximou-se do balcão da portaria no saguão do Mandarin, contrariada por não conhecer qualquer dos dois funcionários no outro lado. Precisava de um favor rápido, e em Hong Kong isso significava lidar com uma pessoa que se conhecia. E nesse instante, para seu alívio, avistou o chefe da portaria do turno da noite. Ele estava no meio do saguão, tentando apaziguar uma hóspede irritada. Catherine foi para a direita e aguardou, esperando atrair a atenção de Lee Teng. Cultivara Teng, encaminhando-lhe numerosos canadenses, quando os problemas pareciam insuperáveis. E ele sempre fora generosamente gratificado. — Posso ajudar em alguma coisa, senhora? — indagou o jovem recepcionista chinês, postandose na frente de Staples. — Ficarei esperando pelo Sr. Teng, se não se incomoda. — O Sr. Teng está muito ocupado, senhora. Um mau momento para o Sr. Teng. É hóspede do Mandarin, senhora? — Sou residente do território e uma velha amiga do Sr. Teng. Sempre que possível, encaminho pessoas para cá, a fim de que a recepção fique com o crédito. — Ahn... — O jovem recepcionista reagiu à situação de não-turista de Catherine. Inclinou-se para a frente e disse, em tom confidencial: — Lee Teng está com um problema terrível esta noite. A mulher vai ao grande baile na Casa do Governo, mas suas roupas seguiram para Bangcoc. Ela deve pensar que o Sr. Teng tem asas por baixo do casaco e motores de jato nas axilas, não é? — Um conceito interessante. A mulher acabou de chegar? — Isso mesmo, madame. Trouxe muitas malas. Não deu pela falta da que procura agora. Culpou primeiro o marido e agora a Lee Teng. — Onde está o marido? — No bar. Ele se ofereceu para pegar o próximo avião para Bangcoc, mas sua gentileza só serviu para deixar a esposa ainda mais furiosa. Ele não saiu mais do bar e vai ao baile de um jeito que
não o deixará satisfeito consigo mesmo pela manhã. As coisas estão ruins... Talvez eu possa ajudá-la, enquanto o Sr. Teng se esforça para acalmar todo mundo. — Quero alugar um carro o mais depressa possível. — Aiya. São sete horas da noite e as agências quase não fazem negócios a esta hora. A maioria está fechada. — Tenho certeza de que há exceções. — Um carro do hotel com motorista não servida? — Só se não houver mais nada disponível. Como já falei, não sou hóspede do hotel, e a verdade é que não nado em dinheiro. — E quem nada? — indagou o chinês, enigmático. Como diz o bom Livro Cristão... em alguma parte, eu acho. — Parece correto— concordou Staples. —Por favor, pegue o telefone e faça o melhor que puder. O jovem enfiou a mão por baixo do balcão e tirou uma lista de agências de aluguel de carros, encadernada em plástico. Foi a um telefone alguns passos à direita, pegou-o e começou a discar. Catherine olhou para Lee Teng; ele levara irada mulher para a parede, junto a uma palmeira em miniatura, numa tentativa evidente de impedi-la de alarmar os outros hóspedes, sentados pelo saguão ornamentado, cumprimentando amigos e pedindo coquetéis. Ele falava depressa, baixinho, concentrando toda a atenção da mulher. Quaisquer que fossem as legítimas reclamações dela, refletiu Catherine, a mulher era uma idiota. Usava uma estola de chinchila no pior clima do mundo para uma pele tão delicada. Não que ela, Catherine Staples, jamais pudesse ter esse problema. Só teria se continuasse casada com Owen Staples. O filho da puta possuía agora pelo menos quatro bancos em Toronto. No fundo, até que ele não era tão mal assim... e para aumentar o seu sentimento de culpa, Owen nunca casara de novo. Não é justo, Owen! Ela o encontrara há três anos, depois de sua temporada de serviço na Europa, quando participava de uma conferência organizada pelos ingleses em Toronto. Tomaram drinques no Mayfair Club, no King Edward Hotel. — Essa não, Owen. Com sua aparência, seu dinheiro... e você tem a aparência antes do dinheiro... por que não? Há mil garotas bonitas num raio de cinco quarteirões que se agarrariam a você com a maior satisfação. — Uma vez foi suficiente, Cathy. Você me ensinou isso. — Não sei, mas você me faz sentir... ora, não sei... um pouco culpada. Eu o deixei, Owen, mas não porque não gostava de você. — Gostava? — Sabe muito bem o que estou querendo dizer.
— Acho que sei mesmo. — Owen soltara uma risada. — Você me deixou por todos os motivos certos e aceitei que fosse embora sem protestos por motivos semelhantes. Se você esperasse mais cinco minutos, acho que eu a teria expulsado. Já pagara o aluguel daquele mês. — Seu filho da puta! — Absolutamente. Nenhum dos dois era. Você tinha suas ambições e eu as minhas. Simplesmente não eram compatíveis. — Mas isso não explica por que você nunca mais tornou a casar. — Acabei de dizer. Você me ensinou, minha cara. — Ensinei o quê? Que todas as ambições são incompatíveis? — Quando existiam em nossos extremos, é verdade. Aprendi que não estava interessado em qualquer base permanente por qualquer pessoa que não tivesse o que suponho que você chamaria de “ímpeto” exaltado ou uma ambição impetuosa, mas não poderia viver com uma pessoa assim dia após dia. E as mulheres sem ambição deixavam um vazio em nosso relacionamento. Também não podia haver permanência. — Mas o que me diz de uma família? Filhos? — Tenho dois filhos, Cathy. Dos quais eu... gosto muito. Amo a ambos, e suas mães ambiciosas foram extremamente generosas. Até mesmo seus maridos posteriores se mostraram bastante compreensivos. Enquanto eles estavam crescendo, eu via meus filhos com constância. Assim, de certa forma, tive três famílias. O que é bastante civilizado, embora às vezes desconcertante. — Você? O paradigma da comunidade, a própria essência dos banqueiros? O homem que diziam que tomava banho de chuveiro num camisolão de Dickens? Um diácono da igreja? — Renunciei a tudo isso depois que você partiu. De qualquer forma, era apenas uma encenação política de minha parte. Algo que você pratica todos os dias. — Você nunca me disse, Owen. — Nunca me perguntou, Cathy. Você tinha as suas ambições e eu tinha as minhas. Mas posso lhe contar um arrependimento meu, se quiser ouvir. — Claro que quero. — Lamento genuinamente o fato de nunca termos tido um filho juntos. A julgar pelos dois filhos que tenho, ele ou ela teria sido absolutamente maravilhoso. — Vai me fazer chorar, seu filho da puta. — Por favor, não chore. Vamos ser francos: nenhum dos dois tem arrependimentos.
O devaneio de Catherine foi subitamente interrompido. O jovem recepcionista afastou-se do telefone, pondo as mãos em cima do balcão, numa atitude triunfante. — Teve sorte, senhora. O despachante da agência Apex, na Bonham Strand East, ainda estava lá. Tem carros disponíveis, mas ninguém para trazer um até aqui. — Pegarei um táxi. Escreva o endereço. — Staples olhou ao redor, procurando pela drugstore do hotel. Havia muitas pessoas no saguão, muita confusão. — Onde posso comprar... loção para a pele ou vaselina, talvez um par de sandálias? — Há uma banca de jornal no fundo do corredor, à direita, senhora. Eles têm muitas coisas assim. Por gentileza, pode me dar o dinheiro, já que deverá apresentar um recibo ao despachante? Custa mil dólares de Hong Kong e o que tiver de ser devolvido ou acrescentado... — Não ando com tanto dinheiro. Terei de usar um cartão de crédito. — Não tem importância. Catherine abriu a bolsa e tirou de um compartimento interno um cartão de crédito. — Voltarei num instante. Ela deixou o cartão em cima do balcão e afastou-se pelo saguão, à direita. Sem qualquer motivo específico, olhou para Lee Teng e a mulher transtornada. Achou graça ao constatar que a mulher exageradamente vestida, com a pele ridícula, acenava com a cabeça em agradecimento, enquanto Teng apontava para as lojas luxuosas, por cima do saguão. Lee Teng era um autêntico diplomata. Não podia haver a menor dúvida de que ele explicara à hóspede agitada que tinha uma opção para satisfazer às suas necessidades e seus nervos, ao mesmo tempo em que desfechava um golpe firme no plexo solar financeiro do marido desgarrado. Ali era Hong Kong, e ela podia comprar o melhor e o mais cintilante e por um preço tudo estaria pronto a tempo para o baile. Staples continuou em frente. — Catherine! — O nome foi pronunciado de maneira tão incisiva que Staples ficou paralisada. — Por favor, Sra. Catherine! Rígida, Staples virou-se. Era Lee Teng, que deixara sua hóspede agora apaziguada. — O que foi? — indagou ela, assustada, enquanto Teng, um homem de meia-idade, se aproximava, o rosto vincado pela preocupação, o suor evidente no crânio calvo. — Eu a vi há poucos momentos. Mas estava com um problema — Sei de tudo a respeito. — E você também, Catherine — Como? Teng olhou para o balcão — e, o que era bastante estranho, não para o jovem que a ajudara, mas
para o outro recepcionista, que se encontrava na extremidade oposta. O homem estava sozinho, sem hóspedes à sua frente, e olhava para o seu colega. — Mas que diabo! — exclamou Teng, baixinho. — O que aconteceu? — perguntou Staples. — Venha comigo. O Número Um do turno da noite levou Catherine para um lado, longe da vista do balcão. Meteu a mão no bolso e tirou meia página de papel perfurado, com uma impressão de computador, informando: — Quatro cópias desta mensagem foram enviadas lá de cima. Consegui recolher três, mas a quarta está por baixo do balcão. Emergência. Controle do governo. Uma canadense chamada Catherine Staples pode tentar alugar um automóvel, para uso pessoal. Ela tem cinqüenta e sete anos, cabelos parcialmente grisalhos, estatura mediana, corpo esguio. Adiem a providência e entrem em contato com a Polícia Central Quatro. Lin Wenzu tirara uma conclusão baseada numa observação, pensou Catherine, assim como no conhecimento de que qualquer pessoa que guiava um carro voluntariamente em Hong Kong era louca ou tinha um motivo especifico para fazê-lo. E estava cobrindo as bases de forma rápida e completa. — O jovem acaba de me arrumar um carro na Bonham Strand East. É evidente que ele não leu este aviso. — Ele encontrou uma agência aberta a esta hora? — Está preparando a conta agora. Acha que ele verá isto? — Não é com ele que me preocupo. Está em treinamento e posso dizer qualquer coisa que ele aceitará, O que já não acontece com o outro, que está querendo o meu cargo a qualquer custo. Espere aqui. E fique fora de vista. Teng encaminhou-se para o balcão, enquanto o recepcionista olhava ansiosamente ao redor, segurando as notas do cartão de crédito. Lee Teng pegou-as e guardou no bolso, explicando: — Isso não será necessário. Nossa cliente mudou de idéia. Encontrou um amigo no saguão que vai levá-la. — É mesmo? Então tenho de avisar a nosso colega para não se incomodar. Como a quantia está acima do limite, ele está cuidando do caso. Ainda me sinto um pouco inseguro e ele se ofereceu... Teng acenou-lhe para que se calasse, enquanto se aproximava do outro recepcionista, que falava ao telefone, na extremidade do balcão.
— Pode me entregar o cartão e esquecer a ligação. Há mulheres aflitas demais para mim esta noite. Esta encontrou outro meio de transporte. — Pois não, Sr. Teng — disse o segundo recepcionista, subserviente. Ele estendeu o cartão de crédito, pediu desculpas à telefonista na linha e desligou. — Uma péssima noite. Teng deu de ombros, virou-se e voltou para o saguão apinhado. Aproximou-se de Catherine, tirando a carteira do bolso. — Se estão com pouco dinheiro, emprestarei o que precisar. Mas não use isto. — Não estou com pouco em casa ou no banco, mas não costumo andar com tanto dinheiro. É ma das regras tácitas. — E uma das melhores —concordou Teng, acenando com a cabeça. Staples pegou as notas estendidas e fitou o chinês nos olhos. — Quer uma explicação? — Não é necessário, Catherine. Não importa o que a Central Quatro diga, sei que você é uma boa pessoa. E se não for e sumir, se eu nunca mais ver meu dinheiro, ainda estarei com vários milhares de dólares de Hong Kong de vantagem. — Não vou sumir, Teng. — E também não vai a pé. Um dos motoristas me deve um grande favor e está na garagem agora. Vai levá-la em seu carro à Bonham Strand. Vou levá-la até lá embaixo. — Estou com outra pessoa. Preciso tirá-la de Hong Kong. Ela está no banheiro. — Ficarei esperando no corredor. E por favor, se apresse. — Às vezes penso que o tempo passa mais depressa quando estamos cheios de problemas — disse o segundo recepcionista, um pouco mais velho, ao colega mais jovem em treinamento, enquanto pegava o impresso de computador por baixo do balcão e o guardava no bolso, discretamente. — Se está certo, o Sr. Teng viveu apenas quinze minutos desde que entrou em serviço, há duas horas. Não acha que ele é muito bom? — A falta de cabelos na cabeça sempre ajuda. As pessoas pensam que ele tem sabedoria, mesmo quando não dispõe de palavras sábias para oferecer.
— De qualquer forma, ele tem jeito com as pessoas. Eu gostaria muito de ser como ele um dia. — Perca alguns cabelos. Enquanto isso, já que não há ninguém nos incomodando, tenho de ir ao banheiro. Antes que eu me esqueça, para o caso de eu precisar saber de uma agência de aluguel de carro que continue aberta a esta hora, foi a Apex na Bonham Strand East, não é? — Isso mesmo. — Você foi muito eficiente. — Apenas segui a lista. Estava quase no fim. — Alguns teriam desistido antes. Você deve ser elogiado. — Está sendo muito generoso para com um estagiário indigno. — Quero somente o melhor para você — disse o recepcionista mais velho. — Jamais se esqueça disso. O homem mais velho deixou o balcão. Cauteloso, passou pelas palmeiras em vasos até avistar Lee Teng. O chefe do turno da noite na recepção estava parado no corredor, à direita; era suficiente. Esperava pela mulher. O recepcionista virou-se e subiu a escada para as lojas com menos dignidade do que era apropriado. Tinha pressa e entrou na primeira butique, no alto da escada. — Negócios do hotel — disse ele à vendedora, indo ao telefone na parede, por trás de um balcão com faiscantes pedras preciosas, e discou um número. — Central de Polícia Quatro. — O aviso sobre a mulher canadense, Sra. Staples. — Tem alguma informação? — Creio que sim, senhor, mas é um pouco embaraçoso para mim transmiti-la. — Por quê? É uma emergência, um problema do governo! — Compreenda, por favor. Sou apenas um funcionário subalterno e é possível que o responsável pelo turno da noite não se lembre do aviso. É um homem muito ocupado. — O que está tentando dizer? — O problema, senhor, é que a mulher que ouvi pedindo para falar com o chefe da portaria tinha uma semelhança extraordinária com a descrição no aviso do governo. Mas seria muito embaraçoso para mim se souberem que fui eu quem telefonei. — Será devidamente protegido. Pode permanecer anônimo. Qual é a informação?
— Bom, senhor, eu ouvi... Com uma cautelosa ambivalência, o homem fez o melhor para si mesmo e, conseqüentemente, o pior para seu superior, Lee Teng. Suas declarações finais, no entanto, foram concisas, não deixando margem para qualquer equívoco. — É a Agência de Aluguel de Carros Apex, na Bonham Strand East. Sugiro que se apresse, pois ela está seguindo para lá neste momento. O tráfego no início da noite não era tão intenso quanto na hora do rush, mas ainda assim era formidável. Era por isso que Catherine e Marie se fitavam apreensivas no banco traseiro da limusine do Mandarin; o motorista, em vez de acelerar para o súbito espaço vazio à sua frente, levou o enorme automóvel para uma vaga na Bonham Strand East. Não havia qualquer sinal de agência de aluguel de carro nas proximidades imediatas, em qualquer lado da rua. — Porque está parando? —indagou Staples, bruscamente. — Instruções do Sr. Teng, senhora — respondeu o motorista, virando-se no banco. — Vou trancar o carro com o alarme ligado. Ninguém vai incomodá-las, enquanto as luzes piscarem por baixo das quatro maçanetas. — Isso é muito tranqüilizador, mas eu gostaria de saber por que não está nos levando até o carro. — Trarei o carro até aqui, senhora. — Como assim? — Instruções do Sr. Teng. Ele foi taxativo e ficou de ligar para a garagem da Apex. Fica na próxima rua, senhora. Voltarei num instante. O motorista tirou o quepe e o paletó, ajeitou o banco ao seu lado, ligou o alarme e saiu. — O que acha disso tudo? — indagou Marie, pondo a perna direita sobre o joelho e mantendo na sola do pé as toalhas de papel que pegara no banheiro. — Confia nesse Teng? — Confio, sim — respondeu Catherine, com uma expressão aturdida. — Mas não consigo entender. É evidente que ele está sendo supercauteloso... há riscos extras para ele... e não sei por quê. Como eu disse no Mandarin, aquele aviso computadorizado a meu respeito falava em “Controle do Governo”. São palavras que todos levam a sério em Hong Kong. O que ele está fazendo? E por quê? — Obviamente, não posso responder — disse Marie. — Mas posso fazer um comentário. — Qual? — Reparei na maneira como ele olhava para você. Não sei se você percebeu.
— O quê? — Eu diria que ele gostava muito de você. — Gosta... de mim? — É uma maneira de expressar. Há outros meios mais fortes, é claro. Staples virou a cabeça e olhou pela janela, murmurando: — Oh, Deus... — Qual é o problema? — Lá no Mandarin, por razões muito irracionais para se analisar... começou com uma mulher idiota numa estola de chinchila... pensei em Owen. — Owen? — Meu ex-marido. — Owen Staples? O banqueiro Owen Staples? — Esse é o meu sobrenome e esse é o marido... era o meu marido. Naquele tempo a gente mantinha o nome de casada. — Nunca me disse que seu marido era Owen Staples. — Você nunca me perguntou, querida. — Não está fazendo sentido, Catherine. — Tem razão — concordou Staples, balançando ã cabeça. — Mas eu estava pensando na ocasião em que Owen e eu nos encontramos, há dois aos, em Toronto. Tomamos uns drinques no Mayfair Club e descobri coisas a seu respeito em que nunca teria acreditado antes. Fiquei sinceramente feliz por ele, apesar de o filho da puta quase me fazer chorar. — Pelo amor de Deus, Catherine, o que tem isso a ver com o que está acontecendo agora? — Tem a ver com Teng. Também tomamos drinques uma noite, não no Mandarin, é claro, mas num café no cais, em Kowloon. Ele disse que não seria bom para mim ser vista em sua companhia na ilha. — Por que não? — Foi o que perguntei. Ele estava me protegendo na ocasião, da mesma forma que está fazendo agora. E eu posso tê-lo interpretado erradamente. Presumi que Teng procurava apenas uma fonte de
renda adicional, mas acho que me enganei redondamente. — Como assim? — Ele disse uma coisa estranha naquela noite. Comentou que desejava que as coisas fossem diferentes, que as diferenças entre as pessoas não fossem tão óbvias e que essas diferenças não perturbassem tanto as outras pessoas. Claro que aceitei suas banalidades como uma tentativa um tanto amadorística de... encenação política, como meu ex-marido dizia. Talvez fosse outra coisa. Marie riu suavemente, enquanto seus olhos se encontravam. — Ah, minha querida Catherine, o homem está apaixonado por você! — Cristo no Calvário, não preciso disso! Lin Wenzu estava sentado no banco da frente do Veículo Dois do MI-Seis, o olhar paciente fixado na entrada da agência Apex, na Bonham Strand. Tudo estava em ordem; as duas mulheres estariam em seu poder dentro de poucos minutos. Um dos seus homens entrara e falara com o despachante. O agente apresentara sua identificação, e o assustado empregado lhe mostrara os registros da noite. Havia uma reserva para a Sra. Catherine Staples, mas fora cancelada, e o carro em questão fora transferido para outro nome, de um motorista do hotel. E como a Sra. Catherine Stap não ia mais alugar o carro, o despachante concluíra que não havia motivo para avisar à polícia. O que havia para dizer? E certamente ninguém mais poderia pegar o carro, já que estava reservado pelo Mandarin. Tudo estava em ordem, pensou Lin. Victoria Peak sentiria um enorme alívio no momento em que ele chegasse à casa segura com a notícia. O major sabia exatamente quais as palavras que diria: “As mulheres foram capturadas... a mulher foi capturada.” No outro lado da rua, um homem em mangas de camisa passou pela porta da agência. Lin achou que ele parecia hesitante e que havia alguma coisa... Um táxi parou subitamente, e o major inclinou-se para a frente, estendendo a mão para a maçaneta da porta... esquecendo o homem hesitante. — Fiquem todos alerta — disse Lin pelo microfone ligado ao rádio do painel. — Devemos agir o mais depressa e discretamente possível. Não posso admitir aqui o que aconteceu na Arbuthnot Road. E nada de armas, é claro. Estejam prontos! Mas não havia nada para se preparar; o táxi afastou-se, sem que ninguém desembarcasse. — Veículo Três! — disse o major, bruscamente. — Verifique a placa do táxi e ligue para a companhia. Faça o contato pelo rádio. Descubra exatamente o que o carro estava fazendo aqui. Melhor ainda, siga o táxi enquanto faz o que mandei. As mulheres podem estar lá dentro. — Creio que só havia um homem no banco traseiro, senhor — disse o motorista. — Elas podiam ter se abaixado. Malditos olhos! Você disse um homem? — Isso mesmo, senhor.
— Estou farejando uma isca malcheirosa. — Por que, Major? — Se eu soubesse, o fedor não seria tão forte. A espera continuou, e o imenso Lin Wenzu começou a suar. O sol poente projetava uma ofuscante claridade laranja pelo pára-brisa e bolsões de sombras escuras pela Bonham Strand. — Está demorando muito — sussurrou o major para si mesmo. Houve uma explosão de estática pelo rádio. — Fizemos contato com a companhia de táxis, senhor. — Fale logo! — O táxi em questão estava tentando encontrar uma casa de importação na Bonham Strand East, mas o motorista disse ao passageiro que devia ser na Bonham Strand West. Ao que parece, o passageiro ficou furioso. Saltou e jogou o dinheiro pela janela há poucos momentos. — Volte para cá imediatamente! Lin observou as portas da garagem se abrirem, no outro lado da rua, na agência Apex. Um carro saiu, virou à esquerda, guiado pelo homem em mangas de camisa. O suor escorria agora pelo rosto do major. Alguma coisa não estava em ordem; outra ordem se sobrepunha. O que o incomodava? O que estava errado? — Ele! — gritou Lin abruptamente para o seu aturdido motorista. — Como, senhor? — Uma camisa branca amarrotada, mas a calça vincada como aço! Um uniforme! Um motorista! Dê a volta! Siga-o! O motorista comprimiu a mão na buzina, rompendo a linha de tráfego e fazendo uma volta em U, enquanto o major dava instruções para os apoios, ordenando que um permanecesse na agência Apex e os outros seguissem o novo alvo. — Aiya! — gritou o motorista, pisando no freio, os pneus rangendo até parar, enquanto uma enorme limusine marrom saía de uma rua transversal, bloqueando a passagem. O contato fora mínimo, o carro do governo mal encostando na porta traseira esquerda do outro veículo. — Feng zi! — berrou o motorista da limusine, chamando o motorista de Lin de cão raivoso e saindo em seguida para verificar as avarias.
— Lai! Lai! — gritou o motorista do major, saltando também, pronto para o combate. — Pare com isso! — ordenou Lin. Trate apenas de tirá-lo da frente! — Ele não quer sair, senhor! — Pois mande-o sair! Mostre a sua identificação! Todo o tráfego parou; buzinas soavam, as pessoas nos carros e na rua gritavam furiosas. O major fechou os olhos e sacudiu a cabeça em frustração. Não havia nada que pudesse fazer, a não ser saltar também. Outro homem também saltou da limusine. Um chinês de meia-idade, calvo. — Acho que temos um problema — disse Lee Teng. — Eu conheço você! — gritou Lin. — O Mandarin! — Muitos que têm o bom gosto de freqüentar nosso excelente hotel me conhecem, senhor. Já foi nosso hóspede? — O que está fazendo aqui? — Estou cumprindo uma missão confidencial para um cavalheiro hospedado no Mandarin e não tenho a intenção de dizer mais nada. — Houve um aviso do governo! Sobre uma canadense chamada Staples. Um dos seus homens nos telefonou! — Não sei do que está falando. Há uma hora que estou tentando resolver um problema para uma hóspede que vai comparecer ao baile na Casa do Governo esta noite. Terei o maior prazer em fornecer o nome dela... se sua posição o justificar. — Minha posição justifica tudo! Por que nos deteve? — Creio que foi seu motorista quem avançou o sinal em alta velocidade. — Não foi assim! — protestou o motorista de Lin. — Então a questão terá de ser resolvida pelos tribunais — declarou Lee Teng. — Podemos ir embora? — Ainda não! — O major aproximou-se do chefe da portaria do Mandarin. — Vou repetir. Um aviso do governo foi recebido por seu hotel. Dizia expressamente que uma mulher chamada Staples podia tentar alugar um carro e que se deveria avisar imediatamente à Central de Polícia Quatro. — Pois eu repito, senhor, que não estou em meu posto há mais de uma hora e não vi o aviso que está descrevendo. Contudo, para cooperar com as suas credenciais não apresentadas, posso informar que
todos os acertos de aluguel de carros são efetuados por intermédio de meu primeiro assistente, um homem que, para ser franco, não tem se mostrado satisfatório sob muitos aspectos. — Mas você está aqui! — Quantos hóspedes do Mandarin têm negócios a tratar na Bonham Strand East ao final do dia, senhor? Aceite a coincidência. — Seus olhos riem de mim, Zhongguo ren. — Sem riso, senhor. Vou seguir adiante. Os danos são insignificantes. — Não importa que você e seu pessoal tenham de passar a noite inteira lá — disse o Embaixador Havilland. — É a única pista que temos. Pelo que você contou, ela vai devolver o carro e depois pegar o dela. Há uma conferência de estratégia canadense-americana às quatro horas da tarde de amanhã. Ela tem de voltar! Permaneça a postos, com todos os seus homens! E traga a mulher até aqui! — Ela vai alegar que foi molestada. Estaremos violando as leis da diplomacia internacional. — Pois então viole! Traga-a para cá de qualquer maneira, amarrada como uma múmia, se for necessário! Não tenho tempo a perder... nem um minuto! Contida firmemente por dois agentes, uma furiosa Catherine Staples foi levada à sala na casa em Victoria Peak. Lin Wenzu abrira a porta; fechou-a agora, enquanto Staples se defrontava com o Embaixador Raymond Havilland e o Subsecretário de Estado Edward McAllister. Eram onze e trinta e cinco da manhã, o sol entrava pela grande janela que dava para o jardim. — Você foi longe demais, Havilland — disse Catherine, a voz gutural gelada e incisiva. — Ainda não fui longe o suficiente em relação a você, Sra. Staples. Comprometeu ativamente um membro da legação americana. Empenhou-se em extorsão, num grave desserviço ao meu governo. — Não pode provar isso, porque não há qualquer prova, nenhuma fotografia... — Não preciso provar coisa alguma. Precisamente às sete horas da noite passada o jovem veio até aqui e nos contou tudo. Uma historinha sórdida, não é mesmo? — Seu idiota! Ele não têm culpa nenhuma, o que já não acontece com você! E já que usou a palavra “sórdida”, não há nada que ele possa ter feito que se compare com a sordidez de suas ações! — Sem perder o ímpeto, Catherine olhou para o subsecretário de Estado e acrescentou: — Presumo que este é o mentiroso chamado McAllister. — É muito atrevida — disse o subsecretário. — E você é um lacaio inescrupuloso que faz o trabalho sujo de outro homem. Soube de tudo e é tudo repulsivo. Mas todos os fios foram entrelaçados... — Staples tornou a virar a cabeça para
Havilland, bruscamente. — ... por um perito. Quem lhes deu o direito de bancar Deus? A qualquer de vocês? Têm alguma idéia do que fez com aqueles dois? Sabe o que pediram deles? — Claro que sabemos — respondeu o embaixador calmamente. — Sei de tudo. — Ela também sabe, embora eu não tivesse coragem de lhe dar a confirmação final. Você é demais, McAllister! Quando soube que era você quem estava aqui em cima, não tive certeza se ela poderia controlar a situação. Não no momento. Mas tenciono contar tudo a ela. Você e suas mentiras! A esposa de um taipan assassinada em Macau... ah, a simetria da situação, que desculpa para seqüestrar a mulher de outro homem! Mentiras, só mentiras! Tenho as minhas fontes e sei que nada aconteceu. E agora tratem de entender uma coisa. Vou levá-la para o consulado, sob a proteção total do meu governo. E se eu fosse você, Havilland, tomaria muito cuidado com as suas supostas ilegalidades. Você e seus homens miseráveis mentiram e manipularam uma cidadã canadense para levá-la a uma operação em que sua vida está ameaçada... o que quer que seja desta vez. Sua arrogância é simplesmente inacreditável! Mas posso lhe garantir que isso vai ter um ponto final. Quer o meu governo goste ou não, eu vou denunciar tudo, todos vocês! Não são melhores do que os bárbaros da KGB. A máquina americana de operações secretas vai sofrer um sangrento revés! Estou cansada de vocês! O mundo está cansado de vocês! — Quero que preste muita atenção, mulher! — gritou o embaixador, perdendo os últimos resquícios de controle na ira súbita. — Pode fazer todas as ameaças que quiser, mas terá de me ouvir! E se depois de ouvir o que tenho a dizer ainda quiser declarar guerra, pode ir em frente! Como diz a canção, meus dias estão chegando ao fim, mas não os dias de milhões de outros! Eu gostaria de fazer o que puder para prolongar essas outras vidas. Mas você pode discordar, declarar a sua guerra! E, por Deus, você vai agüentar as conseqüências!
Capítulo 19 Inclinando-se para a frente na cadeira, Bourne puxou a guarda do gatilho de seu recesso e examinou o interior do cano da arma, à luz da luminária. Era um exercício repetitivo e inútil; o cano estava imaculado. Durante as últimas quatro horas ele limpara três vezes a arma de d’Anjou, desmontando-a três vezes e lubrificando cada mecanismo, até todas as peças de metal escuro reluzirem, O processo ocupava seu tempo. Estudara o arsenal de armas e explosivos de d’Anjou, mas como a maior parte do equipamento se encontrava em caixas lacradas, presumivelmente com um mecanismo contra roubo, preferia se concentrar na pistola. Um homem não podia andar muito no apartamento do Francês, na Rua das Lorchas, que dava para o Porto Interior de Macau; e haviam combinado que ele não sairia à luz do dia. Lá dentro era tão seguro quanto qualquer lugar em Macau. D’Anjou, que mudava de residência à vontade e capricho, alugara o apartamento no porto menos de duas semanas antes, usando um nome falso e um advogado que jamais encontrara pessoalmente, e que por sua vez empregara um intermediário para assinar o contrato, enviando-o depois para o cliente desconhecido através do vestiário do apinhado Cassino Flutuante. Era assim que agia Philippe d’Anjou, o antigo Eco de Medusa. Jason tornou a montar a arma, ajeitou os cartuchos no pente e meteu-o na coronha. Levantou-se e foi até a janela, empunhando a arma. No outro lado da extensão de água ficava a República Popular, tão acessível a qualquer um que conhecesse os procedimentos derivados da simples ganância humana. Em termos de fronteiras, não havia nada de novo sob o sol desde os tempos dos faraós. Eram criadas para serem cruzadas... de um jeito ou de outro. Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas, o sol da tarde descaía pelo céu. D’Anjou ligara de Hong Kong ao meio-dia. O Francês fora ao Peninsula com a chave do quarto de Bourne, pusera suas coisas na mala sem dar baixa no hotel, e pegaria o aerobarco de uma hora para voltar a Macau. Onde estava ele? A viagem demorava apenas uma hora, e do píer de Macau na Rua das Lorchas não se levava mais de dez minutos de táxi. Mas a previsibilidade nunca fora o forte de Eco. Fragmentos de memórias de Medusa voltavam a Jason, desencadeados pela presença de d’Anjou. Embora angustiantes e assustadoras, determinadas impressões proporcionavam algum conforto, também graças ao Francês. Não apenas d’Anjou era um mentiroso rematado quando mais importava e um oportunista de primeira classe, como também era extraordinariamente engenhoso. Acima de tudo, o Francês era um pragmático. Provara isso em Paris, e essas lembranças eram nítidas. Se estava atrasado, havia um bom motivo. Se não aparecesse seria porque estava morto. E essa última hipótese era inaceitável para Bourne. D’Anjou estava em condições de fazer uma coisa que Jason queria fazer pessoalmente acima de tudo, mas não se atrevia, para não pôr em risco a vida de Marie. Já era um risco grande o fato de a trilha do impostor-assassino tê-lo levado a Macau, mas confiava em seus instintos, desde que permanecesse à distância do Hotel Lisboa. Permaneceria escondido daqueles que o procuravam... procuravam por alguém que se parecesse vagamente com ele, na altura, compleição ou cor. Alguém fazendo perguntas no Hotel Lisboa. Um telefonema do Lisboa para o taipan em Hong Kong e Marie morreria. O taipan não se limitara a ameaçar — as ameaças eram muitas vezes um estratagema sem sentido —, usara um expediente muito mais letal. Depois de gritar e bater com a mão enorme no braço da frágil cadeira, ele
empenhara calmamente a sua palavra: Marie morreria. Era uma promessa feita por um homem que cumpria suas promessas, cumpria sua palavra. Apesar de tudo, porém, David Webb sentia algo que não conseguia definir. Havia no taipan alguma coisa um pouco exagerada, um tanto operística, que nada tinha a ver com seu tamanho. Era como se ele tivesse usado o volume imenso em seu benefício, de uma maneira que os homens grandes raramente fazem, preferindo deixar que o tamanho puro e simples cause toda a impressão necessária. Quem era o taipan? A resposta estava no Hotel Lisboa; como ele não se atrevia a ir lá pessoalmente, os talentos de d’Anjou poderiam ajudá-lo. Contara muito pouco ao Francês; diria mais agora. Descreveria um assassinato duplo brutal, com uma Uzi, diria que uma das vítimas era a esposa de um poderoso taipan. D’Anjou. faria as perguntas que ele não podia fazer; se houvesse respostas, ele daria outro passo cm direção a Marie. Aja de acordo com o roteiro. — Alexander Conklin. O roteiro de quem? — David Webb. Está perdendo tempo! — Jason Bourne. Descubra o impostor! Capture-o! Passos suaves no corredor lá fora. Jason deixou a janela e se encaminhou em silêncib para a parede, as costas comprimidas, a arma levantada, de tal forma que a porta aberta o esconderia. Uma chave foi inserida na fechadura, com evidente cautela. E a porta foi aberta devagar. Bourne empurrou a porta em cima do intruso, dando a volta e agarrando o vulto atordoado. Puxou-o para dentro e fechou a porta com o pé, a arma apontada para a cabeça do homem caído, que largara uma valise e um pacote grande. Era d’Anjou. — Essa é uma maneira de ver os seus miolos estourados, Eco. — Sacré-bleu! É também a última vez que serei atencioso com você? Não está se vendo, Delta. Parece até a época de Tam Quan, sem dormir por vários dias. Pensei que estivesse descansando. Outra lembrança, aflorando de repente. — Você não me disse em Tam Quan que eu tinha de dormir? Nós nos escondemos no mato e você formou um círculo ao meu redor, quase me deu uma ordem para descansar um pouco. — Por um motivo puramente egoísta. Não poderíamos sair de lá sem você. — Você me disse alguma coisa na ocasião, O que foi? Eu aceitei. — Expliquei que o descanso era uma arma, tanto quanto qualquer instrumento contundente ou mecanismo de disparo que o homem já inventou. — Usei uma variação depois. Tornou-se um axioma para mim.
— Fico contente que você tivesse a inteligência de escutar os mais velhos. Posso me levantar, por favor? E quer fazer o favor de baixar essa porra dessa arma? — Desculpe. — Não temos tempo — disse d’Anjou, levantando-se e deixando a valise no chão. Rasgou o papel pardo do embrulho grande. Lá dentro havia roupas cáquis, dois cintos com coldres e dois quepes com palas. D’Anjou jogou tudo numa cadeira. — Aí estão os uniformes. E tenho no bolso as identificações necessárias. Meu posto é superior ao seu, Delta, mas também a idade tem seus privilégios. — São uniformes da polícia de Hong Kong. — De Kowloon, para ser mais preciso. Podemos ter nossa chance, Delta. Por isso é que demorei tanto a voltar. A segurança no Aeroporto de Kai-tak é intensa, justamente o que o impostor quer, a fim de mostrar que é melhor do que você jamais foi. Não há nenhuma garantia, é claro, mas eu apostaria a minha vida... é o desafio clássico para um maníaco obcecado. “Podem montar as suas forças e eu vou rompê-las!” Com um golpe assim, ele restabelece o mito de sua invencibilidade absoluta. Tenho certeza de que é ele mesmo. — Comece do início — ordenou Bourne. — Enquanto nos vestimos — disse o Francês, tirando a camisa e desabotoando a calça. — Depressa, Delta. Tenho uma lancha no outro lado da rua. Quatrocentos cavalos de potência. Podemos estar em Kowloon dentro de quarenta e cinco minutos. Tome aqui. Isto é seu. Mon Dieu, o dinheiro que gastei me dá vontade de vomitar! — As patrulhas da República Popular vão nos liquidar — comentou Jason, tirando as roupas e pegando o uniforme. — Está bancando o idiota. Certos barcos podem passar com um código transmitido pelo rádio. Afinal, há honra entre nós. Como acha que transportamos nossas mercadorias? Como acha que sobrevivemos? Nós nos encontramos em enseadas nas ilhas chinesas do Sa Wei, onde os pagamentos são efetuados. Depressa! — O que me diz do aeroporto? Por que tem tanta certeza de que é ele? — O governador da Coroa. Assassinato. — O quê? — murmurou Bourne, aturdido. — Fui a pé do Peninsula ao Star Ferry, com a sua valise. A distância é pequena, e a barca é muito mais rápida do que um táxi através do túnel. Ao passar pela delegacia de polícia de Kowloon, na Salisbury Road, observei sete carros da polícia partirem em velocidade de emergência, um atrás do
outro, todos virando para a esquerda. Não é normal. Dois ou três carros para uma confusão local é compreensível, mas sete? Parecia um caso sério. Liguei para o meu contato na delegacia e ele se mostrou cooperativo... e também não era mais um segredo interno. Disse que se eu ficasse por lá veria mais dez carros e vinte camburões, todos seguindo para o Kai-tak, nas próximas duas horas. Os carros que vi eram das equipes avançadas de busca. Eles receberam a informação, através de fontes no submundo, de que haveria um atentado contra o próprio governador da Coroa. — Seja mais específico! — ordenou Bourne, a voz áspera, ajeitando a calça e pegando a camisa cáqui comprida, que servia como um blusão sob o cinto com o coldre. — O governador chega de avião de Pequim esta noite, acompanhando pela comitiva do Foreign Office e por mais uma delegação de negociadores chineses. O pessoal da imprensa estará presente, equipes de televisão, todo mundo. Os dois governos querem uma cobertura ampla. Haverá uma reunião conjunta amanhã de todos os negociadores e líderes do setor financeiro. — O tratado de 1997? — Mais uma onda de verbosidade interminável sobre os acordos. Mas, para o bem de todos nós, reze para que eles falem amigavelmente. — O roteiro — murmurou Jason, interrompendo qualquer movimento. — Que roteiro? — O que você mesmo levantou, o roteiro que queima as ligações entre Pequim e a Casa do Governo. Matar um governador da Coroa pelo assassinato de um vice-primeiro-ministro? E depois um secretário do Exterior por um importante membro do Comitê Central... um primeiro-ministro por um presidente do conselho? Até que ponto poderia ir? Quantas mortes escolhidas a dedo antes de se chegar ao ponto de ruptura? Quanto tempo antes de o pai se recusar a tolerar o filho desobediente e marchar para Hong Kong? Oh, Deus, pode acontecer... e alguém quer que aconteça! D’Anjou ficou imóvel, segurando o cinto largo com o coldre, a sinistra fieira de balas encapadas em latão. — O que sugeri não foi mais do que especulação, baseada na violência a esmo causada por um assassino obcecado, que aceita seus contratos sem qualquer discriminação. Há bastante ganância e corrupção política nos dois lados para justificar essa especulação. Mas o que você está sugerindo, Delta, é muito diferente. Está dizendo que é um plano, um plano organizado para desintegrar Hong Kong a tal ponto que o Continente vai querer assumir o controle. — O roteiro — repetiu Jason Bourne. — Quanto mais complicado se torna, mais simples parece. Os telhados do Aeroporto de Kai-tak enxameavam de policiais, assim como os portões e os túneis, os balcões do serviço de imigração e as áreas de bagagem. Lá fora, na imensa pista preta, potentes refletores eram acompanhados por lanternas em movimento, focalizando cada veículo, cada palmo visível do terreno. Equipes de televisão desenrolavam cabos sob olhos vigilantes, enquanto entrevistadores ao lado de equipamentos de som praticavam a pronúncia em uma dúzia de línguas.
Repórteres e fotógrafos eram mantidos além dos portões, enquanto o pessoal do aeroporto avisava por megafones que as áreas isoladas por cordas na pista estariam em breve à disposição dos jornalistas com as credenciais emitidas pela administração do Kai-tak. Era uma verdadeira loucura. E foi então que aconteceu o totalmente inesperado, quando uma súbita tempestade se abateu sobre a colônia, procedente da escuridão do horizonte ocidental. Era mais um dilúvio de outono. — O impostor tem muita sorte... não é mesmo? — comentou d’Anjou. Ele e Bourne, ambos de uniforme, junto com uma falange de guardas, marchavam por uma passagem coberta de alumínio corrugado, a caminho de um dos enormes hangares de reparos. O martelar da chuva era ensurdecedor. — A sorte nada tem a ver com isso — respondeu Jason. — Ele estudou as previsões da meteorologia até Sichuan. Todo aeroporto as tem. Ele previu tudo ontem, até mesmo há dois dias. As condições do tempo também são uma arma, Eco. — Mesmo assim, ele não podia determinar a chegada do governador num avião chinês. Com freqüência eles se atrasam por horas... quase sempre. — Mas não dias, não quase sempre. Quando a polícia de Kowloon recebeu o aviso do atentado? — Não esqueci de perguntar isso — disse o Francês. — Por volta das onze e meia desta manhã. — E a chegada prevista do avião de Pequim era no início da noite? — Isso mesmo. Eu já tinha dito. O pessoal de imprensa e televisão foi instruído para estar aqui às nove horas. — Ele estudou as previsões do tempo. As oportunidades surgem. É preciso aproveitá-las. — E é isso o que você deve fazer, Delta. Pense como ele, seja ele! É a nossa chance! — O que acha que estou fazendo?... Quero me afastar quando chegarmos ao hangar. Acha que conseguirei com a sua identidade falsa? — Sou um comandante do Setor Britânico da Polícia Regional de Mongkok. — O que significa isso? — Não sei direito, mas foi o melhor que pude arranjar. — Não parece um britânico. — E quem saberia disso aqui em Kai-tak, meu velho? — Os britânicos. — Tratarei de evitá-los. Meu chinês é melhor do que o seu. Os Zhongguo ren vão respeitá-lo.
Você terá toda liberdade para circular. — Não pode ser de outra forma — murmurou Jason Bourne. — Se é o seu comando, quero encontrá-lo antes de qualquer outro. Aqui. Agora. Postes com cordas foram tirados do hangar alto pelo pessoal de manutenção, vestindo capas de um amarelo lustroso. Um veículo se aproximou com uma carga de capas amarelas para os contingentes da polícia; foram jogadas pelas portas traseiras do furgão, e os homens as pegaram. Depois de vesti-las, os policiais se reuniram em vários grupos, a fim de receber instruções de seus superiores. A ordem rapidamente se impunha da confusão agravada pelos recém-chegados, homens aturdidos e os problemas causados pelo súbito aguaceiro. Era o tipo de ordem de que Bourne desconfiava. Muito suave, muito convencional para o trabalho pela frente. As fileiras de soldados em cores brilhantes marchavam para a frente nos lugares errados e com as táticas erradas quando se procurava guerrilheiros... até mesmo um único homem treinado em guerra de guerrilha. Cada policial em sua capa amarela era ao mesmo tempo um alerta e um alvo... e era também mais uma coisa. Um peão. Cada homem podia ser substituído por outro vestido da mesma maneira, por um matador que sabia como assumir a aparência do inimigo. Contudo, a estratégia de infiltração com o objetivo.de matar alguém era suicida, e Jason sabia que o impostor não tinha essa intenção. A menos... a menos que a arma a ser usada tivesse um nível de som tão baixo que o barulho da chuva o abafaria por completo... mas mesmo assim a reação do alvo não podia ser instantânea. No mesmo instante se formaria um cordão de isolamento em torno do local, assim que o governador tombasse, todas as saídas seriam fechadas, as pessoas receberiam ordens de permanecerem onde estavam. Uma reação retardada? Um pequeno dardo disparado por ar comprimido, cujo impacto não era maior do que uma espetadela, um pequeno incômodo a ser descartado como uma mosca desagradável, a gota letal de veneno entrando na corrente sangüínea para causar a morte, de forma lenta mas inexorável, já que o tempo não era um fator importante. Era uma possibilidade, mas também havia obstáculos demais a superar, a necessidade de uma precisão muito superior aos limites de uma arma de ar comprimido. O governador sem dúvida estaria usando um colete protetor, e visar ao rosto era inadmissível. Os nervos faciais exageravam a dor, e qualquer objeto estranho fazendo contato tão perto dos olhos produziria uma reação imediata e drástica. Restavam as mãos e a garganta: as mãos eram pequenas e presumivelmente estariam em movimento rápido; e a garganta era simplesmente uma área muito limitada. Um rifle de alta potência num telhado? Um rifle de precisão incontestável, com um visor telescópico infravermelho? Outra possibilidade... uma capa amarela, também comum por ali, encobrindo um assassino. Mas também seria uma operação suicida, pois essa arma produziria uma explosão isolada, e acoplar um silenciador reduziria a precisão do rifle, a ponto de não se poder mais confiar nele. Todas as chances eram contra um matador num telhado. A matança seria óbvia demais. E a matança era tudo. Bourne compreendia isso, especialmente nas circunstâncias. D’Anjou estava certo. Todos os fatores eram propícios a um assassinato espetacular. Carlos o Chacal não podia pedir por mais... nem Jason Bourne, refletiu David Webb. Executar o crime, apesar das extraordinárias medidas de segurança, faria com que o novo “Bourne” se tornasse o rei de sua repulsiva profissão. Mas como ele agiria? Que opção podia usar? E depois que a decisão fosse consumada, que caminho de fuga
seria mais eficaz, mais possível? Um dos caminhões de televisão, com seus equipamentos complicados, era um meio óbvio demais para uma fuga. As equipes de manutenção do avião que se aproximava eram conferidas várias vezes; um estranho seria reconhecido num instante. Todos os jornalistas passariam pelos portões eletrônicos, que acusariam um excesso de dez miligramas de metal. E os telhados estavam excluídos. Então como? — Já pode circular — anunciou d’Anjou, aparecendo a seu lado e estendendo um pedaço de papel. — Esta autorização é assinada pelo chefe de polícia do Kai-tak. — O que disse a ele? — Que você é um judeu treinado em atividades antiterroristas pelo Mossad e está trabalhando conosco num programa de intercâmbio. A notícia vai se espalhar. — Mas eu não falo hebraico! — E quem por aqui fala? Dê de ombros e continue a usar o seu francês passável... que é falado por aqui, mas muito mal. Ninguém vai perceber. — Sabia que você é incrível? — Sei que Delta, quando era nosso líder em Medusa, comunicou ao Comando de Saigon que não sairia em ação de campo sem o “velho Eco”. — Eu devia ter perdido o juízo. — Reconheço que na ocasião você não estava muito no comando de suas faculdades mentais. — Muito obrigado, Eco. Deseje-me sorte. — Você não precisa de sorte — respondeu o Francês. — É Delta. Será sempre Delta. Tirando a capa amarela e o quepe com pala, Bourne saiu e mostrou seu passe aos guardas postados à entrada do hangar. À distância, a imprensa estava sendo conduzida pelos portões eletrônicos, na direção das áreas delimitadas por cordas. Microfones haviam sido instalados à beira da pista, e os carros da polícia receberam o acréscimo de patrulhas em motocicletas, formando um semicírculo cerrado em torno da área da entrevista coletiva. Os preparativos estavam praticamente completos, todas as forças de segurança em seus lugares, os equipamentos dos meios de comunicação prontos para funcionar. O avião de Pequim obviamente iniciara a descida através do aguaceiro. Aterrissaria dentro de minutos... minutos que Jason desejava que pudessem ser ampliados. Havia tantas coisas a verificar, e restava muito pouco tempo. Onde procurar? E o quê? Tudo era ao mesmo tempo possível e impossível. Que opção o matador usaria? De que posição vantajosa atacaria para a execução perfeita? E qual a maneira mais lógica de escapar do local do crime?
Bourne analisara cada opção em que pôde pensar e excluíra todas. Pense de novo! E de novo! Só restavam poucos minutos. Dê a volta e comece do início... do início. A premissa: o assassinato do governador. Condições: aparentemente absolutas, com atiradores altamente treinados da polícia de segurança nos telhados, bloqueio de todas as entradas, saídas, escadas comuns, escadas rolantes, tudo em contato pelo rádio. As chances eram esmagadoramente contrárias. Suicídio... Contudo, eram essas mesmas condições extremamente negativas que o impostor-assassino julgava irresistíveis. D’Anjou estava certo mais uma vez: com uma execução espetacular, nessas condições, a supremacia de um assassino seria estabelecida... ou restabelecida. O que dissera o Francês? Com uma execução assim, ele restabelece o mito de sua invencibilidade. Quem? Onde? Como? Pense! Procure! A chuva encharcava o uniforme da polícia de Kowloon. Jason afastava incessantemente a água do rosto, enquanto circulava, observando todos e tudo. Nada! E logo se podia ouvir à distância o troar abafado dos motores de jato. O avião de Pequim iniciava a aproximação final, na extremidade da pista. Estava aterrissando. Jason estudou a multidão parada além das cordas de isolamento. Um obsequioso governo de Hong Kong, em deferência a Pequim e no desejo de uma “cobertura ampla”, fornecera ponchos, quadrados de lona e capas baratas a todos os que quiseram. O pessoal do Kai-tak reagira aos pedidos da imprensa por uma entrevista coletiva num local coberto ao declarar apenas — e sensatamente sem acrescentar maiores explicações — que não seria propício à segurança. A entrevista seria curta, não levaria mais que cinco ou seis minutos. Afinal, os melhores representantes da comunidade jornalística podiam tolerar um pouco de chuva por um evento tão importante. Os fotógrafos? Metal! Câmaras passaram pelos portões, mas nem todas as “câmaras” tiravam fotografias. Um artefato relativamente simples podia ser inserido e preso num equipamento, um potente mecanismo de disparo que lançaria uma bala — ou um dardo — com a ajuda de um visor telescópico. Seria esse o meio? O assassino escolhera essa opção, esperando largar a “câmara” no chão e tirar outra do bolso, enquanto se deslocava rapidamente para a beira da multidão, suas credenciais tão autênticas quanto as de d’Anjou e do “antiterrorista” do Mossad? Era bem possível. O enorme jato pousou na pista e Bourne encaminhou-se apressado para a área isolada por cordas, aproximando-se de cada fotógrafo que podia ver, procurando... procurando por um homem que se parecia com ele. Devia haver duas dúzias de homens com câmaras; foi ficando frenético, enquanto o avião procedente de Pequim taxiava na direção da multidão, os refletores agora concentrados no espaço em torno dos microfones e das equipes de televisão. Jason passava de um fotógrafo para outro, verificando rapidamente que o homem não podia ser o assassino, depois olhando outra vez, a fim de constatar se as posturas eram erectas, se os rostos não estariam alterados. Mais uma vez nada! Ninguém! Mas tinha de encontrá-lo! Tinha de pegá-lo. Antes que qualquer outro o encontrasse! O assassinato não importava, era irrelevante para ele! Só Marie tinha significado! Volte ao início! Alvo — o governador da Coroa. Condições — altamente negativas para uma execução, o alvo sob segurança máxima, indubitavelmente protegido por pessoal blindado, todo o corpo de segurança ordenado, disciplinado, os oficiais num comando firme... O começo? Alguma coisa estava faltando. Repasse tudo de novo. O governador da Coroa — o alvo, uma única execução. Método da
execução: o suicídio excluía todas as possibilidades que não um artefato de reação retardada — um dardo disparado por ar comprimido, um chumbinho — só que a necessidade de precisão tornava uma arma assim ilógica, e o estampido alto de uma arma convencional acionaria no mesmo instante toda a força de segurança. Demora? Ação retardada, não reação! O começo, a primeira pressuposição, estava errado! O alvo não era apenas o governador da Coroa. Não era uma única execução, mas várias mortes, mortes indiscriminadas! Muito mais espetacular! Muito mais eficaz para um maníaco que queria lançar Hong Kong no caos! E o caos começaria instantaneamente com as forças de segurança. Desordem, fuga! A mente de Bourne estava em disparada, enquanto ele circulava pela multidão, sob a chuva, os olhos se desviando por toda parte. Tentou recordar cada arma que já conhecera. Uma arma que pudesse ser disparada ou acionada silenciosa- mente, discretamente, de uma área reservada, com muitas pessoas, o efeito retardado por tempo suficiente para que o assassino pudesse mudar de posição e se preparar para a fuga incólume. Só lhe ocorreu um artefato assim, uma granada, mas prontamente descartou a possibilidade. E depois lhe aflorou o pensa mento de dinamite ou explosivo plástico com um dispositivo de tempo. Era muito mais viável em termos de cálculo de tempo, mais fácil de esconder. Os explosivos plásticos podiam ser armados em prazos de minutos ou frações de minutos, em vez de apenas uns poucos segundos como as granadas; podiam ser escondidos em pequenas caixas, pacotes, até mesmo em pastas estreitas... ou em caixas maiores, supostamente contendo equipamento fotográfico, não necessariamente carregadas por um fotógrafo. Jason começou outra vez, voltando pela multidão de repórteres e fotógrafos, os olhos esquadrinhando a pista preta por baixo das saias e calças, procurando por uma caixa isolada, que estivesse parada no asfalto duro. A lógica levou-o a se concentrar nas fileiras de homens e mulheres mais próximos da corda de isolamento. Em sua mente, o “pacote” não teria mais que trinta centímetros se fosse grosso, cinqüenta centímetros se fosse uma pasta. Uma carga menor não liquidaria os negociadores dos dois governos. As luzes na pista eram fortes, mas criavam sombras incontáveis, bolsões mais escuros dentro da escuridão. Jason desejou ter se lembrado de trazer uma lanterna... sempre andava com uma, nem que fosse pequena, do tipo caneta, pois também era uma arma! Por que esquecera? E foi nesse instante que, para seu espanto, divisou fachos de lanternas cruzando a pista preta, entre as mesmas calças e saias pelas quais estivera observando. A polícia de segurança desenvolvera a mesma teoria... e por que não? Aeroporto La Guardia, Nova York, 1972; Aeroporto Lod, Tel Aviv, 1974; Rue de Bac, Paris, 1975; Harrods, Londres, 1982. E meia dúzia de embaixadas, de Teerã a Beirute. Por que não? Estavam atualizados, o que já não acontecia com ele. Seu pensamento era lento... e ele não podia permitir isso! Quem? Onde? O enorme 747 da República Popular surgiu, como um grande pássaro prateado, os jatos rugindo através do dilúvio, a potência diminuindo, enquanto manobrava para posição em terreno estranho. As portas se abriram, e o desfile começou. Os dois líderes, das delegações britânicas e chinesa, saíram juntos. Acenaram e desceram ao mesmo tempo a escada de metal, um nas roupas de Whitehall, o outro no uniforme insípido e sem indicação de patente do Exército do Povo. Foram seguidos por duas fileiras de assessores e assistentes, ocidentais e orientais se esforçando ao máximo para parecerem cordiais uns com os outros, diante das câmaras. Os líderes aproximaram-se dos microfones e as vozes soaram pelos alto-falantes e
através da chuva. Os minutos seguintes foram confusos para Jason. Uma parte de sua mente estava na cerimônia que ocorria sob a luz dos refletores, a parte maior se concentrava na busca final... pois seria mesmo final. Se o impostor estava ali, ele tinha de encontrá-lo... antes da matança, antes do caos! Mas onde? Bourne deslocou-se além das cordas, na extremidade direita, a fim de ter uma visão melhor dos acontecimentos. Um guarda objetou; Jason mostrou o passe e permaneceu imóvel, observando as equipes de televisão, a aparência de cada um, os olhos, os equipamentos. Se o assassino estava ali, qual deles seria? — Temos a satisfação de anunciar conjuntamente que houve progressos em relação aos Acordos. Nós, do Reino Unido... — Nós, da República Popular da China, a única verdadeira China na face da Terra, expressamos a nossa vontade de encontrar uma comunhão íntima com aqueles que desejam... Os discursos eram interrompidos por um líder dando apoio ao outro, mas deixando o mundo saber que ainda havia muito por negociar. Havia tensão sob a cortesia, panacéias verbais e sorrisos artificiais. E Jason nada encontrava em que pudesse se concentrar, absolutamente nada. Limpou a chuva do rosto e acenou com a cabeça para o guarda, deslocando-se novamente pela multidão, por trás das cordas. Foi se esgueirando para o lado esquerdo da área reservada à imprensa. Subitamente, os olhos de Bourne foram atraídos para uma série de faróis na chuva, descrevendo uma curva na extremidade da pista e acelerando depressa em direção ao avião parado. E no instante seguinte, como se fosse uma deixa, houve uma explosão de aplausos. A breve cerimônia estava encerrada, o que era confirmado pela chegada das limusines oficiais, cada uma com uma escolta de motociclistas, avançando entre as delegações e a multidão de repórteres e fotógrafos. A polícia cercou os caminhões de televisão, ordenando a todos que entrassem nos veículos, à exceção de dois cinegrafistas previamente selecionados. Era o momento. Se alguma coisa ia acontecer, seria agora. Se um instrumento de morte estava prestes a ser acionado, sua carga explodiria dentro de um minuto ou menos, seria acionada agora. Vários passos à sua esquerda ele avistou o oficia! de um contingente da polícia, um homem alto, cujos olhos se moviam tão depressa quanto os seus. Jason foi até o homem e falou em chinês, enquanto exibia o passe, protegendo-o da chuva com a mão. — Sou o homem do Mossad! — gritou ele, tentando ser ouvido acima dos aplausos. — Já sei de você! — berrou o oficial em resposta. — Fui informado. Estamos gratos por sua presença aqui. — Tem uma lanterna? — Claro. Está querendo? — E muito. — Tome aqui.
— Venha comigo! — ordenou Bourne, levantando a corda e gesticulando para que o oficial o seguisse. — Não tenho tempo para ficar mostrando o passe! — Está certo. O chinês foi atrás, estendendo a mão e interceptando um guarda que estava prestes deter Jason... atirando nele, se fosse necessário. — Deixe-o passar! Ele é um dos nossos! É treinado nessas coisas! — O judeu do Mossad? — O próprio! — Fomos avisados. Obrigado, senhor... Mas é claro que ele não pode me compreender. — Por mais estranho que possa parecer, ele compreende. Fala Guangdong hua. — Na Food Street há o que eles chamam de um restaurante Rasher que serve os nossos pratos... Bourne estava agora entre a fileira de limusines e as cordas do setor da imprensa. Enquanto andava, projetava o facho da lanterna para a pista preta e dava ordens em chinês e inglês, gritando e ao mesmo tempo não gritando, as ordens de um homem sensato, talvez procurando por um objeto perdido. Um a um, os homens e mulheres da imprensa foram recuando, dando explicações aos que estavam por trás. Aproximou-se da limusine da frente; as bandeiras da Grã-Bretanha e da República Popular estavam ali, respectivamente à direita e à esquerda, indicando que a Inglaterra era a anfitriã e a China a hóspede. Os líderes das delegações viajavam juntos. Jason concentrava-se no chão; os importantes passageiros estavam prestes a embarcar no veículo alongado, em companhia de seus principais assessores, em meio aos aplausos ininterruptos. E foi então que aconteceu, mas Bourne não sabia direito o que era. Seu ombro esquerdo tocou em outro ombro e o contato foi elétrico. O homem em que ele roçara primeiro inclinou-se para a frente e depois recuou abruptamente, com tanto vigor que Jason se desequilibrou. Virou-se e olhou para o homem da escolta de motociclistas, depois levantou a lanterna para ver através do plástico oval escuro do capacete. Um raio caiu, descargas intensas se abatendo sobre o seu crânio, os olhos fascinados, enquanto tentava se ajustar ao inacreditável. Estava olhando para si mesmo... como fora anos antes! As feições por trás da bolha opaca eram as suas! Era o comando! O impostor! O assassino! Os olhos que o fitavam também demonstravam pânico, mas foram mais rápidos que os de Webb. A mão rígida saltou para a frente, atingindo a garganta de Jason, interrompendo qualquer fala e pensamento. Bourne caiu para trás, incapaz de falar, levando a mão ao pescoço, enquanto o assassino saltava da motocicleta. Correu além de Jason e passou por baixo da corda. Peguem esse homem! Agarrem-no!... Marie! As palavras estavam ausentes, havia apenas pensamentos histéricos, gritados silenciosamente na mente de Bourne. Teve uma ânsia de vômito,
explodindo a cutelada em sua garganta, saltou por cima da corda, avançando pela multidão, seguindo a trilha de corpos caídos que haviam sido derrubados pelo assassino, em sua corrida para a fuga. — Parem esse... homem! — Somente a última palavra saiu da garganta de Jason, um sussurro rouco. — Deixem-me passar! Duas palavras audíveis, mas ninguém estava prestando atenção. Em algum lugar, perto do terminal, uma banda estava tocando no aguaceiro. A trilha estava fechada! Só havia pessoas, pessoas e mais pessoas! Encontre-o! Capture-o! Marie! Ele se foi! Desapareceu! — Deixem-me passar! — gritou Jason outra vez, as palavras agora claras, mas sem que ninguém prestasse atenção. Empurrou e puxou, chegando à beira da multidão e deparando com outra multidão, à sua frente, por trás das portas de vidro do terminal. Nada! Ninguém! O assassino sumira! O assassino? O assassinato! Era a limusine, a limusine da frente, com as bandeiras dos dois países! Era esse o alvo! Em algum lugar no interior ou por baixo daquele carro estava o mecanismo que explodiria em breve, matando os líderes das duas delegações. Resultado — o roteiro... caos. E a tomada de Hong Kong! Bourne virou-se, procurando freneticamente por alguém com autoridade. Vinte metros além da corda, em posição de sentido enquanto a banda tocava o hino britânico, estava um oficial da polícia de Kowloon. E havia um rádio preso em seu cinto. Uma chance! As limusines iniciavam seu desfile imponente para um portão invisível do aeroporto. Jason deu um puxão na corda, levantando-a e derrubando uma estaca, e correu na direção do oficial chinês baixo e empertigado, gritando: — Xun su! — Shemma? — respondeu o aturdido oficial, instintiva- mente levando a mão ao revólver no coldre. — Pare todos! Os carros! As limusines! A que vai na frente! — Mas do que está falando? Quem é você? Na sua frustração, Bourne quase derrubou o homem. — Mossad! — Você é o homem de Israel? Ouvi...
— Escute! Pegue esse rádio e mande eles pararem! Mande todos saírem daquele carro! Vai explodir! Agora! Através da chuva, o oficial fitou Jason nos olhos, depois acenou com a cabeça uma vez e tirou o rádio do cinto. — Emergência! Desocupem o canal e liguem-me com Estrela Vermelha Um! Imediatamente! — Todos os carros! — interrompeu-o Bourne. — Mande que se afastem! — Mudança! — gritou o oficial. — Alerta a todos os veículos! Façam o contato! E com a voz tensa mas controlada, o chinês falou incisivamente, enfatizando cada palavra: — Aqui é Colônica Cinco e temos uma emergência. Está comigo o homem do Mossad e transmito suas instruções. Devem ser cumpridas imediatamente. Estrela Vermelha Um deve parar agora e ordenar que todos saiam do veículo e corram para a cobertura. Todos os outros carros devem virar para a esquerda e seguir para o centro do campo, afastando-se de Estrela Vermelha Um. Executem a ordem imediatamente! Aturdida, a multidão observou à distância os motores acelerarem ao mesmo tempo. Cinco limusines deixaram suas posições, disparando para a escuridão exterior do aeroporto. O primeiro carro parou com um ranger dos freios, as portas se abriram, e homens saíram, correndo em todas as direções. E oito segundos depois aconteceu. A limusine chamada Estrela Vermelha Um explodiu, a quinze metros do portão aberto. Metal flamejante e vidro estilhaçado subiram pela chuva, enquanto a banda parava de tocar no meio de um acorde. Pequim, vinte e três horas e vinte e cinco minutos. Além dos subúrbios ao norte de Pequim existe um vasto conjunto de construções de que raramente se fala e nunca está aberto à visitação pública. O principal motivo é a segurança, mas há também um elemento de embaraço naquela sociedade igualitária. Pois no interior daquele enclave amplo e cheio de árvores nas colinas estão as residências das personalidades mais poderosas da China. O conjunto está envolto por sigilo, como convém a um complexo cercado por um muro alto de pedras cinzentas, as entradas guarnecidas por calejados veteranos do Exército, os bosques no interior permanentemente patrulhados por cães de guarda. E se alguém especular sobre os relacionamentos sociais e políticos cultivados ali, cabe ressaltar que nenhuma residência pode ser vista de outra, pois cada estrutura está cercada por seu próprio muro e todos os guardas pessoais são escolhidos com extremo cuidado, depois de anos de obediência e confiança. O nome, quando se fala, é Montanha da Torre de Jade, que não se refere a nenhuma montanha geológica, mas sim a uma imensa colina, que se eleva acima de todas as outras. Em um momento ou outro, com o fluxo e refluxo das fortunas políticas, ali residiram homens como Mao Tsé-tung, Liu Shaoshi, Lin Piao e Chou-En-lai. Entre os residentes atuais estava um homem que moldava o destino econômico da República Popular. A imprensa internacional referia-se a ele simplesmente como Sheng, e o nome era prontamente reconhecível. Seu nome completo era Sheng Chou Yang.
Um sedã marrom avançou em alta velocidade pela estrada junto ao imponente muro cinzento. Aproximou-se do Portão Número Seis. Como se estivesse distraído, o motorista pisou subitamente no freio e o carro derrapou para a entrada, parando a poucos centímetros da cancela laranja, que refletia os fachos dos faróis. Um guarda adiantou-se. — Quem veio ver e qual é o seu nome? Precisarei de sua identificação oficial. — Ministro Sheng — respondeu o motorista. — E meu nome não é importante, meus documentos não são necessários. Por favor, comunique à residência do ministro que seu emissário de Kowloon está aqui. O soldado deu de ombros. Tais respostas eram comuns na Montanha da Torre de Jade, e pressionar ainda mais poderia resultar numa transferência presumível de seu posto celestial, onde as sobras de comida estavam além da imaginação mais delirante, e até mesmo cerveja estrangeira era oferecida aos soldados obedientes e cooperativos. Ainda assim, o guarda usou o telefone. O visitante tinha de ser admitido da maneira apropriada. Agir de outra forma poderia levar o responsável a se ajoelhar no campo e levar um tiro na nuca. O guarda voltou à guarita e ligou para a casa de Sheng Chou Yang. — Deixe-o passar. Imediatamente. Sem voltar ao sedã, o guarda apertou um botão e a cancela laranja foi levantada. O carro disparou, em alta velocidade sobre o cascalho. O emissário estava com muita pressa; pensou o guarda. — O Ministro Sheng está no jardim — informou o oficial do Exército na porta, olhando além do visitante, esquadrinhando a escuridão. — Vá ao seu encontro. O emissário passou apressado pela sala da frente, repleta de móveis laqueados em vermelho, chegando a uma arcada, além da qual havia um jardim murado, completo, inclusive com quatro laguinhos com lírios, interligados e sutilmente iluminados por luzes amarelas, por baixo da água. Dois caminhos de cascalho se cruzavam para formar um X entre os laguinhos. Cadeiras pretas de vime e mesinhas estavam instaladas na extremidade de cada caminho, num cenário oval. Sentado sozinho na extremidade do caminho de leste, junto ao muro de tijolos, estava um homem esguio, de estatura mediana, os cabelos curtos prematuramente grisalhos, as feições encovadas. Se havia alguma coisa nele que podia surpreender quem o visse pela primeira vez eram os olhos... pois eram os olhos escuros de um homem morto, as pálpebras jamais piscando, nem por um instante se quer. Eram também os olhos de um fanático, cuja dedicação cega a uma causa constituía a essência de sua força; havia um calor nas pupilas, iluminando as órbitas. Eram os olhos de Sheng Chou Yang, e no momento estavam em fogo. — Conte tudo! — rugiu ele, as mãos apertando os braços pretos da cadeira de vime. — Quem foi? — É tudo mentira, Ministro. Verificamos com nosso pessoal em Tel Aviv. Não existe ninguém como o homem que foi descri to. Não há nenhum agente do Mossad em Kowloon! Uma mentira!
— Que ação você tomou? — Está tudo muito confuso... — Que ação? — Estamos investigando um inglês em Mongkok que ninguém parece conhecer. — Tolos e idiotas! Idiotas e tolos! Com quem você falou? — Com nosso homem chave na polícia de Kowloon. Ele está perplexo, e lamento dizer que o achei também apavorado. Fez várias referências a Macau, e não gostei do tom de sua voz. — Ele deve morrer. — Transmitirei suas instruções. — Receio que não poderá fazê-lo. — Sheng gesticulou com a mão esquerda, a direita escondida nas sombras, estendendo-se por baixo da mesa. — Venha prestar sua obediência ao Kuomintang. O emissário aproximou-se do ministro. Inclinou-se para a mão esquerda do grande homem. Sheng levantou a mão direita. Empunhava uma arma. Seguiu-se uma explosão, que estourou a cabeça do emissário. Fragmentos de crânio e tecido caíram sobre os lírios. O oficial do Exército apareceu na arcada, enquanto o cadáver batia no cascalho branco. — Dê um sumiço no corpo —ordenou Sheng. —Ele ouviu demais, soube demais... presumiu demais. — Está certo, Ministro. — E entre em contato com o homem em Macau. Tenho instruções para ele e devem ser cumpridas imediatamente, com o fogo de Kowloon ainda iluminando o céu. Quero-o aqui. Enquanto o oficial se aproximava do mensageiro morto, Sheng levantou-se subitamente e se encaminhou devagar para a beira do laguinho mais próximo, o rosto iluminado pelas luzes por baixo da água. Falou mais uma vez, a voz monótona, mas com grande determinação: — Em breve toda Hong Kong e os territórios. E, depois, toda a China. — O senhor lidera, Ministro — disse o oficial, observando Sheng, os olhos brilhando de devoção. — Nós seguimos. A marcha que prometeu já começou. Voltamos à nossa Mãe e a terra será nossa outra vez. — Será mesmo — concordou Sheng Chou Yang. — Não podemos ser repudiados. Eu não posso ser repudiado.
Capítulo 20 Por volta de meio-dia daquele dia terrível, quando o Kai-tak ainda era apenas um aeroporto e não um cenário de assassinato, o Embaixador Havilland descrevera para uma atordoada Catherine Staples as linhas gerais da conspiração de Sheng, com suas raízes no Kuomintang. Objetivo: um consórcio de taipans com um líder central, de quem Sheng era filho, assumindo o controle da colônia e transformando Hong Kong no império financeiro dos conspiradores. Resultado inevitável: a conspiração fracassaria, e o gigante irado que era a República Popular entraria em ação, marchando sobre Hong Kong, destruindo os Acordos e lançando o Extremo Oriente no caos. Em total incredulidade, Catherine exigira comprovação. Por volta de duas e quinze da tarde ela já lera duas vezes o dossiê enorme e ultra-secreto do Departamento de Estado sobre Sheng Chou Yang. Mas ela continuara a protestar, irredutível, alegando que não se podia confirmar a acurácia da autoria. As três e meia ela fora levada à sala de rádio e, por uma transmissão segura através de satélite, ouvira a apresentação dos “fatos” por um homem chamado Reilly, do Conselho de Segurança Nacional, em Washington. — Não passa de uma voz, Sr. Reilly — dissera Staples. — Como posso saber que não se encontra na base do Peak, em Wanchai? E nesse momento houvera um estalido acentuado na ligação; no instante seguinte, uma voz que Catherine e o mundo conheciam muito bem estava lhe falando: — Aqui é o Presidente dos Estados Unidos, Sra. Staples. Se duvida disso, sugiro que procure o seu consulado. Peça para entrarem em contato com a Casa Branca pelo telefone diplomático e solicitarem uma confirmação de nossa transmissão. Vou desligar agora. Vai receber a confirmação. No momento, não tenho nada melhor a fazer... nada mais vital. Sacudindo a cabeça e fechando os olhos por um instante, Catherine respondera: — Acredito em sua palavra, Sr. Presidente. — Esqueça de mim e acredite no que ouviu. É a verdade. — Mas é tão inacreditável... inconcebível.! — Não sou um perito nesses assuntos, Sra. Staples, nunca tive essa pretensão, mas posso ressaltar que o Cavalo de Tróia também parecia inacreditável. Talvez seja apenas uma lenda, e a mulher de Menelau não passe da invenção de um contador de histórias à beira de uma fogueira de acampamento, mas o conceito é válido... tornou-se um símbolo de um inimigo destruindo de dentro seu adversário. — Menelau? — Não acredite nos meios de comunicação. Já li alguns livros. Mas acredite em nosso pessoal, Sra. Staples. Precisamos de sua ajuda. Ligarei para o seu primeiro-ministro, se isso for indispensável.
Mas, para ser sincero, preferia não fazê-lo. Ele pode achar que é necessário conferenciar com outros. — Não é preciso, Sr. Presidente. A discrição é tudo. Estou começando a compreender o Embaixador Havilland. — Está melhor do que eu. Nem sempre consigo compreendê-lo. — Talvez seja melhor assim, senhor. Às três e cinqüenta e oito houve um telefonema de emergência — a mais alta prioridade — para a casa segura em Victoria Peak, mas não era para o Embaixador Havilland nem para o Subsecretário de Estado McAllister. Era para o Major Lin Wen zu e desencadeou uma vigília assustada, que se prolongou por quatro horas. As informações escassas eram tão terríveis que toda concentração foi fixada na crise. Catherine Staples ligou para o seu consulado, comunicando ao Alto Comissário que não estava passando bem e por isso não compareceria à conferência de estratégia com os americanos naquela tarde. Sua presença na casa segura foi bem acolhida. O Embaixador Havilland queria que a diplomata canadense constatasse pessoalmente e compreendesse como o Extremo Oriente se encontrava próximo da convulsão. Como um erro inevitável da parte de Sheng ou de seu assassino poderia provocar uma explosão tão drástica que as tropas da República Popular entrariam em Hong Kong em poucas horas, não apenas acabando com o comércio internacional da colônia, mas também acarretando um profundo sofrimento humano, com distúrbios sangrentos por toda parte, esquadrões da morte da esquerda e da direita explorando ressenti mentos que datavam de quarenta anos, facções raciais e provinciais se lançando umas contra as outras e contra os militares. O sangue correria pelas ruas e no porto, nações do mundo inteiro seriam afetadas, a guerra global se tornaria uma possibilidade concreta. Ele disse essas coisas a Catherine enquanto operava freneticamente pelo telefone, dando ordens, coordenando seus homens com a polícia da colônia e a segurança do aeroporto. Tudo começara com o major do MI-Seis cobrindo o fone com a mão e dizendo em voz suave, na sala vitoriana da mansão em Victoria Peak: — Kai-tak esta noite. As delegações chinesa e britânica. Assassinato. O alvo é o governador da Coroa. Eles acham que é Jason Bourne. — Não posso entender! — protestou McAllister, levantando-se abruptamente do sofá. — É prematuro. Sheng ainda não está pronto. Teríamos uma indicação se ele estivesse... uma declaração oficial de seu ministério, aludindo a alguma proposta de uma comissão. Está errado! — Um erro de cálculo? — indagou o embaixador, friamente. — É possível. Ou algo mais. Uma estratégia que não consideramos. Depois de transmitir suas últimas instruções, Lin recebeu uma ordem final de Havilland, antes de seguir para o aeroporto: — Fique fora de vista, Major. E falo sério. — Isso é impossível. Com o devido respeito, senhor, devo ficar com os meus homens no local.
Estes são olhos experientes. — Com o mesmo respeito, devo dizer que se trata de uma condição para permitir sua passagem pelo portão externo. — Mas por que, Sr. Embaixador? — Com a sua perspicácia, fico surpreso que sequer faça essa pergunta. — Mas tenho de fazer! Não estou entendendo mais nada! — Então talvez a culpa seja minha, Major. Pensei ter deixado bem claro por que fomos a tantos extremos para trazer o nosso Jason Bourne até aqui. Aceite o fato de que ele é extraordinário, conforme prova a sua folha de serviços. Ele tem ouvidos não apenas para o solo, mas também sintonizados para os quatro ventos. Devemos presumir, se o prognóstico médico é preciso e pedaços de sua memória continuarem a voltar, que ele tem contatos nesta parte do mundo nos recessos mais escondidos, que ignoramos totalmente. Vamos supor... apenas supor, Major... que um desses contatos o informe que foi transmitido um alerta de emergência para o Aeroporto de Kai-tak esta noite, que uma grande força de segurança se concentrou ali para proteger o governador. O que acha que ele faria? — Estaria lá — respondeu Lin Wenzu, a voz baixa, relutante. — Em algum lugar. — E se, suponhamos de novo, o nosso Bourne visse você? Perdoe-me, mas não é um homem que se possa ignorar facilmente. A disciplina da mente lógica dele... lógica, disciplina e imaginação sempre foram os seus meios de sobrevivência... o forçará a descobrir quem você é exatamente. Preciso dizer mais? — Acho que não — murmurou o major. — A ligação está feita — continuou Havilland, ignorando as palavras de Lin. — Não há taipan com uma jovem esposa assassinada em Macau. Em vez disso, há um oficial altamente considerado do serviço secreto britânico apresentando-se como um fictício taipan, fornecendo-lhe mais uma mentira, ecoando uma mentira anterior. Ele compreenderá que mais uma vez foi manipulado por forças do governo, manipulado da maneira mais brutal possível... pelo seqüestro de sua esposa. A mente, Major, é um instrumento delicado, a dele mais delicada que a da maioria. Há um limite para a pressão que pode suportar. Não quero nem pensar no que ele poderia fazer... no que nós poderíamos ser obrigados a fazer. — Sempre foi o ponto mais fraco do roteiro e ao mesmo tempo a sua essência — comentou Lin. — Uma trama engenhosa — interveio McAllister, obviamente citando alguém. — Poucos atos de vingança são tão prontamente compreendidos quanto olho por olho. São suas palavras, Lin. — Se é esse o caso, não deveriam ter me escolhido para bancar o taipan! — insistiu o major. — Há uma crise em Hong Kong e vocês me deixam manietado! — É a mesma crise com que todos nos defrontamos — ressaltou Havilland, gentilmente. — Só que desta vez temos um alerta. E, além do mais, que outra pessoa poderíamos escolher? Que outro
chinês, a não ser o chefe comprovado do Setor Especial, poderia receber autorização de Londres para tomar conhecimento do que lhe foi informado inicialmente, para não falar do que sabe agora? Instale o seu posto de comando dentro da torre do aeroporto. O vidro é escuro. Em silêncio, furioso, o enorme major virou-se e deixou a sala. — É sensato deixá-lo partir? — indagou McAllister, enquanto, junto com o embaixador e Catherine Staples, observava a saída de Lin. — Claro — respondeu o diplomata especializado em operações secretas. — Passei algumas semanas convivendo com o pessoal do MI-Seis aqui — continuou o subsecretário, falando depressa. — Ele é conhecido como já tendo desobedecido no passado. — Só quando as ordens foram dadas por oficiais britânicos arrogantes, com menos experiência do que ele. E Lin nunca foi censurado, pois sempre estava certo. Assim como sabe agora que eu estou certo. — Como pode ter certeza? — Por que acha que ele disse que nós o manietamos? Ele não gosta da situação, mas aceita. — Havilland encaminhou-se para trás da mesa e virou-se para Catherine. — Sente-se, por favor, Sra. Staples. Edward, eu gostaria de lhe pedir um favor. Não tem nada a ver com sigilo. Você sabe tanto quanto eu e provavelmente até mais. Não terei a menor dúvida em chamá-lo, se precisar de mais informações. Mas eu gostaria de conversar a sós com a Sra. Staples. — Está certo. — O subsecretário pôs-se a recolher os papéis sobre a mesa, enquanto Catherine sentava numa cadeira, na frente do embaixador. — Tenho muito em que pensar. Se esse atentado no Kai-tak não é um alarme falso... se é uma ordem direta de Sheng... então ele concebeu uma estratégia que ainda não consideramos, o que é muito perigoso. Por todos os caminhos que já explorei, ele tem de propor a sua câmara de compensação, a sua comissão econômica, em condições estáveis, não instáveis. Pode destruir tudo com isso... só que não é um homem estúpido, mas brilhante, O que ele está querendo fazer? — Talvez seja bom considerar o inverso do nosso enfoque, Edward — sugeriu o embaixador, franzindo o rosto, enquanto sentava. — Em vez de implantar a sua comissão financeira de taipans sortidos durante um período de estabilidade, ele o faz em meio à instabilidade... mas com simpatia... tendo como objetivo restaurar rapidamente a ordem. Nada de gigante irado, mas sim um pai protetor, preocupado com a prole emocionalmente transtornada, querendo acalmá-la. — Qual a vantagem? — Acontece mais depressa. Quem se daria ao trabalho de examinar mais atentamente um grupo de respeitados financistas da, colônia, assumindo durante uma crise? Afinal, eles representam a estabilidade. É algo em que pensar. McAllister levantou os papéis com as duas mãos, olhando para Havilland.
— É uma jogada grande demais para ele. Sheng corre o risco de perder o controle dos expansionistas do Comitê Central, os velhos revolucionários militares, que estão procurando qualquer desculpa para invadir a colónia. Uma crise baseada na violência seria um presente dos céus para eles. Esse é o roteiro que oferecemos a Webb, e é bastante realista. — A menos que a posição de Sheng seja agora suficientemente forte para suprimi-los. Como você mesmo disse, Sheng Chou Yang ganhou muito dinheiro para a China... e se já existiu um povo essencialmente capitalista, é o chinês. Eles têm mais que um saudável respeito pelo dinheiro. É uma obsessão. — Eles também têm respeito pelos velhos da Longa Marcha, e é igualmente obsessivo. Sem esses primeiros maoístas, a maior parte da liderança mais jovem da China ainda seria de camponeses analfabetos, matando-se de tanto trabalhar nos campos. Os chineses reverenciam esses velhos soldados. Sheng não se arriscaria a uma confrontação. — Nesse caso, há uma teoria alternativa, que pode ser uma combinação do que nós dois estamos dizendo. Não contamos a Webb que vários dos líderes mais ativos da velha guarda de Pequim não são ouvidos há meses. E em diversos casos, quando a notícia foi oficialmente divulgada, este ou aquele morrera de causas naturais ou num trágico acidente; houve um caso em que um foi removido em desgraça. Se a nossa pressuposição está certa, de que pelo menos alguns desses homens silenciados são vítimas do assassino contratado por Sheng... — Então ele consolidou sua posição pela eliminação — acrescentou McAllister. — Há ocidentais por toda Pequim, os hotéis estão lotados. Um a mais não chama atenção... especialmente um assassino que pode ser qualquer pessoa... um adido, um executivo ... um camaleão. — E quem melhor do que o ardiloso Sheng para promover encontros secretos entre o seu Jason Bourne e as vítimas selecionadas? Muitos pretextos serviriam, mas basicamente há a espionagem militar de alta tecnologia. Os alvos não perderiam essa oportunidade. — Se tudo isso está próximo da verdade, então Sheng se encontra muito mais adiantado do que pensávamos. — Leve os seus papéis. Peça qualquer coisa que precisar do nosso pessoal de informações e do MI-Seis. Estude tudo e descubra um padrão, Edward. Se perdermos um governador esta noite, podemos estar a caminho de perder Hong Kong dentro de poucos dias. Por todos os motivos errados. — Ele será protegido — murmurou McAllister, encaminhando-se para a porta, com uma expressão transtornada. — Estou contando com isso — disse o embaixador, enquanto o subsecretário se retirava. Virando-se para Catherine Staples, Havilland indagou: — Está realmente começando a me compreender? — As palavras e informações, sim, mas não algumas questões específicas — respondeu
Catherine, olhando com uma expressão estranha para a porta que o subsecretário de Estado acabara de fechar. — Ele não é um homem esquisito? — McAllister? — Isso mesmo. — Ele a perturba? — Ao contrário. Dá uma certa credibilidade a tudo o que me foi dito. Pelo senhor, pelo homem chamado Reilly... e até mesmo pelo seu presidente. — Staples tornou a se virar para o embaixador. — Estou sendo sincera. — Quero que seja. E quero também que saiba que compreendo a sua sintonia. McAllister é uma das mais brilhantes mentes analíticas do Departamento de Estado, um burocrata extraordinário, mas que nunca se elevará ao nível de seu valor. — Por que não? — Acho que você sabe. Mas se não sabe, pode sentir. Ele é um homem escrupulosamente moralista, e sua moral se interpõe no caminho do progresso profissional. Se eu fosse amaldiçoado com o seu senso de indignação moral, nunca teria me tornado o homem que sou... e devo acrescentar, em minha defesa, nunca teria realizado tudo o que consegui. Mas acho que você sabe disso também. Foi praticamente o que falou quando chegou. — Agora está sendo sincero também. Agradeço. — Fico contente. Quero que todas as dúvidas entre nós sejam dissipadas, porque preciso de sua ajuda. — Marie? — E mais alguma coisa. Quais são as questões específicas que a incomodam? O que posso esclarecer? — Essa comissão de banqueiros e taipans que Sheng vai propor para supervisionar as políticas financeiras da colônia... — Deixe-me antecipar — interrompeu-a o diplomata. — Aparentemente, eles serão muito diferentes em caráter e posição, todos eminentemente aceitáveis. Como eu disse a McAllister quando nos encontramos pela primeira vez, se achássemos que o plano absurdo tem alguma chance, trataríamos de olhar para o outro lado e desejar boa sorte. Mas acontece que não tem a menor possibilidade de sucesso. Todos os homens poderosos têm inimigos. Haverá céticos aqui em Hong Kong e em Pequim... facções invejosas que foram excluídas ... e vão escavar mais fundo do que Sheng imagina. Creio que você sabe o que encontrarão. — Que todas as estradas, por cima e por baixo, levam a Roma, neste caso, é esse taipan, o pai de
Sheng, cujo nome seus documentos altamente seletivos jamais mencionam. Ele é a aranha cuja teia se estende a todos os membros da comissão. Controla todos. Mas, pelo amor de Deus, quem é ele? — Quem dera que soubéssemos. — Quer dizer que não sabem? — indagou Catherine Staples, atônita. — Se soubéssemos, a vida seria muito mais simples e eu lhe contaria. E não estou fazendo um jogo com você. A verdade é que nunca descobrimos quem é ele. Quantos taipans existem em Hong Kong? Quantos fanáticos querendo atacar Pequim, de qualquer forma que puderem, pela causa do Kuomintang? Para eles, a China lhes foi roubada. Sua pátria, as sepulturas de seus ancestrais, seus bens... tudo. Muitos eram homens decentes, Sra. Staples, mas muitos outros não eram. Os líderes políticos, os senhores da guerra, os latifundiários, os imensamente ricos... eles formavam uma sociedade privilegiada que engordava com o suor e a privação de milhões de pessoas. E se isso parece uma repetição da propaganda comunista de hoje, pode estar certa de que foi um caso clássico de provocação de ontem que deu origem a toda essa imundície. Estamos lidando com um punhado de expatriados obcecados, que querem recuperar o que lhes pertencia. Eles esquecem a corrupção que acarretou a sua própria queda. — Já pensou em confrontar o próprio Sheng? Em particular? — Claro que sim, mas sua reação é perfeitamente previsível. Ele simularia indignação e nos diria bruscamente que se insistíssemos nessas fantasias desprezíveis, numa tentativa de desacreditá-lo, anularia os Acordos da China, alegando duplicidade, e imediatamente transferiria Hong Kong para a órbita econômica de Pequim. Diria que muitos dos marxistas da velha guarda no Comitê Central aplaudiriam essa iniciativa e estaria certo. E provavelmente arremataria assim: “Senhores, escolham a sua opção. E passem bem.” — E se tomar pública a conspiração de Sheng a mesma coisa aconteceria... e ele sabe disso — comentou Staples, franzindo o rosto. — Pequim cancelaria os Acordos, culpando Formosa e o Ocidente por se intrometerem. A corrupção capitalista interna é enorme, e por isso o território cai sob o domínio marxista... na verdade, eles não teriam alternativa. E o que se segue é o colapso econômico. — É como pensamos — concordou Havilland. — E a solução? — Só há uma: Sheng. Staples acenou com a cabeça, murmurando: — Jogo duro. — O ato mais radical, se é isso o que está querendo dizer. — É obviamente o que estou querendo dizer. E o marido de Marie, esse tal de Webb, é indispensável à solução?
— Jason Bourne é absolutamente indispensável. — Porque esse impostor, esse assassino que se intitula Bourne, pode ser acuado pelo homem extraordinário que ele imita... como diz McAllister, embora não no contexto. Ele toma o lugar do impostor e leva Sheng para um lugar em que pode consumar a solução, a solução radical... Em outras palavras, ele o mata. — Isso mesmo. Em algum lugar da China, é claro. — Na China... “é claro”? — Isso mesmo. Dando a impressão de que foi um fratricídio interno, sem ligações externas. Pequim não pode culpar ninguém, a não ser inimigos desconhecidos de Sheng, dentro de sua própria hierarquia. De qualquer forma, a esta altura, se acontecer, provavelmente será irrelevante. O mundo não tomará conhecimento oficial da morte de Sheng por semanas, e quando vier o comunicado o “falecimento súbito” será certamente atribuído a um infarto fulminante ou hemorragia cerebral, nunca a assassinato. O gigante não exibe suas aberrações, prefere escondê-las. — O que é justamente o que vocês querem. — Não podia ser de outra forma. O mundo continua como antes, os taipan.s ficarão isolados de sua fonte, a comissão financeira de Sheng vai desmoronar como um castelo de cartas, e homens sensatos respeitarão os Acordos, para benefício de todos... Mas ainda estamos muito longe disso, Sra. Staples. Para começar, há o dia de hoje, esta noite. Kai-tak. Pode ser o princípio do fim, pois não temos contramedidas imediatas para adotar. Se pareço calmo, é uma ilusão derivada de anos de treinamento para disfarçar a tensão. Meus dois consolos neste momento são o de que as forças de segurança da colônia estão entre as melhores do mundo e, segundo... apesar da tragédia da morte.... é que Pequim foi alertada para a situação. Hong Kong não está escondendo nada, não se importa com isso. Assim, de certa forma, torna-se um risco e um empreendimento comuns proteger o governador. — Até que ponto isso ajuda, se o pior acontecer? — Pelo valor psicológico. Pode evitar a aparência, até mesmo o fato da instabilidade, pois a emergência foi classificada antecipadamente como um ato isolado de violência premeditada, não sintomática de inquietação na colônia. Acima de tudo, o evento seria partilhado. As duas delegações contam com suas próprias escoltas militares, que seriam acionadas. — Quer dizer que uma crise pode ser contida com base em um protocolo tão sutil? — Pelo que estou informado, você não precisa de quaisquer lições em conter crises ou precipitálas. Além do mais, tudo pode escapar ao controle com um desenvolvimento que joga as sutilezas na lata de lixo. Apesar de tudo o que eu disse, a verdade é que estou apavorado. Há muita margem para erro e equívoco... são nossos inimigos, Sra. Staples. Tudo o que podemos fazer agora é esperar... e esperar é a parte mais difícil, mais angustiante. — Tenho outras perguntas.
— Pode fazer todas as que quiser. Faça-me pensar, faça-me suar, se puder. Pode ajudar a nós dois a desviar os pensamentos da espera. — Acaba de se referir à minha duvidosa capacidade na área de conter crises. Mas acrescentou... creio que em tom mais confiante... que eu poderia também precipitá-las. — Lamento, mas não pude resistir. E um péssimo hábito. — Presumo que estava se referindo ao adido, John Nelson. — Quem? ... Ah, sim, o jovem do consulado. O que lhe falta em julgamento sobra em coragem. — Está enganado. — Sobre o julgamento? — indagou Havilland, franzindo as sobrancelhas espessas, numa expressão de ligeira surpresa. — É mesmo? — Não estou desculpando as fraquezas de Nelson, mas ele é uma das melhores pessoas que já conheci. Seu julgamento profissional é superior ao da maioria do seu pessoal mais experiente. Pergunte a qualquer um no consulado que já participou de alguma conferência com ele. É também um dos poucos que falam cantonês muito bem. — E também comprometeu o que sabia ser uma operação altamente secreta — disse o embaixador, bruscamente. — Se ele não o fizesse, vocês não teriam me descoberto. E não estariam a um passo de Marie St. Jacques, que é onde se encontram agora. A um passo. — A um passo? — Havilland inclinou-se para a frente, os olhos furiosos, inquisitivos. — Tenho certeza de que você não vai continuar a escondê-la. — Provavelmente não. Mas ainda não decidi. — Por Deus, mulher, como pode dizer isso depois de tudo que soube? Ela tem de vir para cá! Sem ela, perdemos tudo! Se Webb descobrisse que ela não está conosco, que desapareceu, ele enlouqueceria! Você tem de entregá-la a nós! — E justamente esse o problema. Posso entregá-la a qualquer momento. Não precisa ser quando o senhor disser. — Não! — berrou o embaixador. — Quando e se nosso Jason Bourne completar sua missão, haverá uma série de telefonemas, para pô-lo em contato direto com a esposa! — Não vou lhe dar o número de um telefone — disse Staples, calmamente. — Seria a mesma coisa que fornecer o endereço. — Não sabe o que está fazendo! O que preciso dizer para convencê-la?
— É muito simples. Censure John Nelson verbalmente. Sugira uma punição leve, se quiser, mas deixe tudo fora de sua ficha e o mantenha aqui, em Hong Kong, onde suas possibilidades de reconhecimento são as melhores. — Mas ele é um viciado em tóxicos! — explodiu Havilland. — Isso é um absurdo, mas típico da reação primitiva de um “moralista” americano que ouviu umas poucas palavras- chave. — Por favor, Sra. Staples. — Ele foi drogado, não é um viciado em tóxicos. Seu limite é três martínis de vodca. E gosta de mulher. Claro que alguns dos seus adidos do sexo masculino preferem os homens, e seu limite vai a seis martínis... mas quem está contando? Para ser franca, pessoalmente não me importo com o que adultos façam entre as quatro paredes de um quarto... e não creio que qualquer coisa afete o que fazem fora do quarto ... mas Washington possui essa estranha preocupação com... — Está bem, está bem, Sra. Staples. Nelson será censurado... por mim... e o cônsul-geral não será informado e nada constará de sua ficha. Está satisfeita? — Estamos chegando lá. Ligue para ele esta tarde e diga tudo isso. Diga também para ter mais cuidado com seus atos extracurriculares, para seu próprio benefício. — Será um prazer. Mais alguma coisa? — Há, sim... e infelizmente não sei como pôr em palavras sem insultá-lo. — Tenho a impressão de que nunca se incomodou com essa possibilidade. — Incomoda agora, porque sei muito mais do que há três horas. — Pois então pode me insultar, mulher. Catherine ficou em silêncio por um momento; quando falou, a voz era um clamor por compreensão. Era baixa, mas ao mesmo tempo vibrante, e povoou a sala. — Por quê? Por que fez isso? Não havia nenhum outro meio? — Presumo que está se referindo à Sra. Webb. — Claro que estou me referindo à Sra. Webb, e também a seu marido! Já perguntei antes: tem alguma idéia do que fez com os dois? É bárbaro, e incluo o pior sentido da palavra. Puseram os dois numa espécie de câmara de tortura medieval, literalmente separaram seus corpos e mentes, levando-os a viver com o conhecimento de que talvez nunca mais tomem a se ver, cada um acreditando que uma decisão errada pode causar a morte do outro. Um advogado americano fez certa ocasião uma pergunta numa audiência no Senado e receio que devo repeti-la agora... Não possui nenhum senso de decência, Sr. Embaixador?
Havilland fitou Staples nos olhos com uma expressão de cansaço. — Tenho um senso de dever. Tinha de desenvolver rapidamente uma situação que provocasse uma reação imediata, um empenho total em agir logo. Foi baseada num incidente no passado de Webb, uma coisa terrível que transformou um jovem erudito e civilizado... a expressão usada para descrevê-lo era “supremo guerrilheiro”. Eu precisava desse homem, desse caçador, por todos os motivos que a senhora ouviu. Ele está aqui, está caçando, e presumo que sua mulher esteja ilesa; obviamente, nunca tivemos a intenção de que fosse de qualquer outra forma. — O incidente no passado de Webb... Foi a sua primeira esposa? No Camboja? — Já sabia? — Marie me contou. A mulher e os dois filhos foram mortos por um caça a jato solitário, que sobrevoava um rio e metralhou o lugar em que eles nadavam. — Ele se tornou outro homem — disse Havilland, balançando a cabeça. — A mente estourou e virou a sua guerra, apesar de ter pouca ou nenhuma consideração por Saigon. Estava descarregando sua indignação da única maneira que conhecia, lutando contra um inimigo que lhe tirara a vida. Geralmente se encarregava apenas das missões mais complexas e perigosas, em que os objetivos eram importantes, os alvos na estrutura de comando. Um médico comentou que Webb, em sua perversão mental, estava matando os assassinos que enviavam assassinos brutais. Acho que faz sentido. — E seqüestrando sua segunda esposa no Maine, vocês levantaram o espectro da primeira perda. O incidente que o transformou no “supremo guerrilheiro” e depois em Jason Bour ne, o caçador de Carlos o Chacal. — Isso mesmo, Sra. Staples, caçador — interveio o embaixador, suavemente. — Eu queria esse caçador no local imediatamente. Não podia desperdiçar momento algum... nenhum minuto sequer... e não conhecia outro meio de obter resultados imediatos. — Mas ele é um profundo conhecedor das coisas orientais! — protestou Catherine. — Compreende a dinâmica do Oriente muito melhor que qualquer um de nós, os supostos especialistas. Não poderia ter apelado para o seu senso de história, ressaltando as conseqüências do que poderia acontecer? — Ele pode ser um profundo conhecedor, mas é primeiro um homem que acredita... com alguma justificativa... que foi traído por seu governo. Pediu socorro e foi preparada uma armadilha para matálo. Nenhum apelo meu poderia romper essa barreira. — Poderia ter tentado! — E me arriscar a uma protelação quando cada hora era importante? De certa forma, lamento que você nunca tenha estado em minha posição. Talvez então pudesse me compreender. — Uma pergunta — disse Catherine, levantando a mão, num gesto de desafio. — O que o faz
pensar que David Webb irá à China atrás de Sheng, se encontrar e capturar o impostor? Pelo que estou compreendendo, o acordo é para ele entregar o homem que se intitula Jason Bourne e Marie lhe será devolvida. — A esta altura, se acontecer, não terá grande importância. Será o momento em que lhe contaremos por que agimos assim. E faremos um apelo ao seu conhecimento do Extremo Oriente, mostrando as conseqüências das maquinações de Sheng e do taipan. Se ele não quiser, temos vários agentes experientes que podem tomar o seu lugar. Não são homens que você gostaria de levar em casa e apresentar à sua mãe, mas estão disponíveis e podem realizar a missão. — Como? — Códigos, Sra. Staples. Os métodos do Jason Bourne original sempre incluíram códigos entre ele e os clientes. Esse foi o mito estruturado, e o impostor estudou cada detalhe do original. Depois que esse novo Bourne estiver em nossas mãos, arrancaremos as informações de que precisamos de um jeito ou de outro... com a confirmação por agentes químicos, é claro. Saberemos como alcançar Sheng, e isso é tudo o que precisamos. Um encontro no campo, nas proximidades da Montanha da Torre de Jade. Uma morte, e o mundo continua em seu curso normal. Não sou capaz de imaginar qualquer outra solução. A senhora é? — Não — respondeu Catherine, baixinho, sacudindo a cabeça. — É jogo duro. — Entregue-nos a Sra. Webb. — Claro... mas não esta noite. Ela não pode ir a lugar nenhum e você já tem bastante com que se preocupar, diante da ameaça no Kai-tak. Levei-a para um apartamento em Tuen Mun, nos Novos Territórios. Pertence a um amigo meu. Levei-a também a um médico, que enfaixou seus pés... ela os feriu bastante ao fugir de seu Lin Wenzu... e lhe deu um sedativo. Está em péssimas condições. Há dias que não dormia, e as pílulas não adiantaram muita coisa na noite passada. Estava muito tensa, ainda muito assustada. Fiquei em sua companhia e ela falou até o amanhecer. Deixe-a descansar. Irei buscá-la pela manhã. — Como vai fazer? O que dirá? — Não sei. Telefonarei para ela mais tarde e tentarei mantê-la calma. Direi a ela que estou fazendo progressos... talvez mais do que esperava. Quero apenas lhe oferecer alguma esperança, aliviar a tensão. Pedirei que permaneça perto do telefone, descanse o máximo que puder e irei até lá pela manhã, provavelmente com boas notícias. — Eu gostaria de mandar um grupo de apoio com a senhora — disse Havilland. — Incluindo McAllister. Ele a conhece e, sinceramente, creio que sua persuasão moral será transmitida. Vai ajudar na sua argumentação. — É possível — concordou Catherine, acenando com a cabeça. — Como você disse, eu senti tudo. Está certo. Mas todos ficarão à distância enquanto converso com ela, o que pode demorar umas duas horas. Marie tem uma desconfiança intensa de Washington e precisarei me empenhar a fundo para
convencê-la. É o seu marido que está por aí, e ela o ama muito. Não posso e não vou dizer a ela que aprovo o que vocês fizeram, mas posso dizer que tendo em vista as circunstâncias extraordinárias... sem excluir o possível colapso econômico de Hong Kong... posso compreender o que fizeram. O que ela tem de compreender... pelo menos... é que está mais perto do marido se ficar com vocês, e não à distância. E claro que ela pode tentar matar o senhor, mas isso é problema seu. É uma mulher extremamente feminina, bonita, mais do que atraente, mas não se esqueça de que foi criada num rancho em Calgary. Eu não o aconselharia a ficar a sós com ela numa sala. Tenho certeza de que ela já derrubou bezerros muito mais fortes do que você. — Convocarei um pelotão de fuzileiros para me defender. — Não faça isso. Ela os faria voltarem-se contra o senhor. É uma das pessoas mais persuasivas que já conheci. — Não podia deixar de ser — murmurou o embaixador, recostando-se na cadeira. — Forçou um homem sem identidade, com terríveis sentimentos de culpa, a olhar para dentro de si mesmo e sair dos túneis da própria confusão. Não deve ter sido fácil... E agora me fale sobre ela... não os fatos objetivos de um dossiê, mas sobre a pessoa. E foi o que Catherine fez, relatando o que sabia por observação e instinto, O tempo passou, os minutos e as meias horas entremeados de repetidos telefonemas, informando Havilland sobre as condições no Aeroporto de Kai-tak. O sol desceu além do muro do jardim lá fora. Foi servido um jantar leve. — Pode pedir ao Sr. McAllister para se juntar a nós? — disse Havilland a um garçom. — Perguntei ao Sr. McAllister se queria comer alguma coisa e ele foi bastante firme. Mandou que eu me retirasse e o deixasse em paz. — Está bem. Obrigado. Os telefonemas continuaram; o assunto de Marie St. Jacques foi esgotado, e a conversa se concentrou agora, exclusivamente, nos acontecimentos no Kai-tak. Staples observava o diplomata com algum espanto; quanto mais intensa se tornava a crise, mais lenta e mais controlada era a sua falta. — Fale-me a seu respeito, Sra. Staples. Somente o que quiser, em termos profissionais, é claro. Catherine estudou Raymond Havilland por um momento e depois começou, suavemente: — Nasci de uma espiga de milho em Ontario... — Claro, claro — murmurou o embaixador, olhando para o telefone. Catherine compreendia agora. Aquele famoso estadista mantinha uma conversa inócua, enquanto sua mente se fixava num assunto inteiramente diferente. Kai-tak. Os olhos se desviavam a todo instante para o telefone; o pulso virava constantemente, a fim de poder olhar para o relógio. Mesmo assim, ele nunca perdia as pausas no diálogo, quando se esperava que expressasse algum
comentário. — Meu ex-marido vende sapatos... Havilland olhava para o relógio nesse instante e levantou a cabeça abruptamente. Não se poderia pensar que fosse capaz de um sorriso embaraçado, mas foi o que exibiu, murmurando: — Você me pegou. — Há muito tempo. — Há um motivo. Conheço Owen Staples muito bem. — Dava para imaginar. Calculo que freqüentam os mesmos círculos. — Encontrei-o no ano passado, na corrida de Queens Plate, em Toronto. Creio que um dos seus cavalos teve uma excelente atuação. Ele parecia magnífico em sua casaca, mas também integrava a comitiva da Rainha-Mãe. — Quando casamos, êle não tinha mais do que um terno. — Quer saber de uma coisa, Sra. Staples? Quando li o seu dossiê e me deparei com a informação sobre Owen, experimentei a tentação fugaz de ligar para ele. Não para dizer alguma coisa, obviamente, mas para perguntar a seu respeito. Mas logo pensei: nesta era de cordialidade pós-conjugal, é possível que eles ainda se falem como amigos. Seria um risco, eu poderia entornar o caldo. — Ainda nos falamos, e você entornou o caldo quando voou para Hong Kong. — Para você, talvez. Mas somente depois que a mulher de Webb a procurou. O que pensou exatamente ao receber a notícia de que eu estava aqui? — Que o Reino Unido o chamara para consultas sobre os Acordos. — Está sendo muito lisonjeira... O telefone tocou e Havilland estendeu a mão rapidamente para atender. Era Lin Wenzu, informando os progressos no Kai-tak... ou, mais objetivamente, como parecia evidente, a ausência de progressos. — Por que simplesmente eles não cancelam todas as cerimônias? — indagou o embaixador, irritado. — Podem meter todo mundo nos carros e sair de lá o mais depressa possível! Qualquer que fosse a resposta do major, só serviu para deixar Havilland ainda mais exasperado. — Isso é um absurdo! Não se trata de uma demonstração de controle, mas sim de uma tentativa de assassinato! Nem a imagem nem a honra de ninguém estão envolvidas, nas circunstâncias! E pode estar certo de que o mundo não aguarda ansioso essa entrevista coletiva! A maior parte está dormindo neste momento!
O diplomata tornou a ficar em silêncio, escutando. Os comentários de Lin não apenas o surpreenderam, como também o enfureceram. — Os chineses disseram isso? Mas é demais! Pequim não tem o direito de fazer tal exigência! É... — Havilland olhou para Staples. — É bárbaro ! Alguém deveria dizer a eles que não são as suas caras asiáticas que estamos tentando salvar, mas sim a cara do governador britânico, que está ligada a uma cabeça, que pode ser explodida! Silêncio outra vez; os olhos do embaixador piscaram, numa resignação irada. — Está bem, está bem. A estrela vermelha celestial deve continuar a brilhar num blecaute celestial. Não há nada que possa fazer, Major. Sendo assim, faça o máximo que puder. Continue a ligar. Como diz um dos meus netos, estou “comendo bananas”, o que quer que isso signifique. Havilland desligou e virou-se para Catherine, explicando: — Ordens de Pequim. As delegações não devem fugir diante do terrorismo ocidental. Protejam todos os envolvidos, mas prossigam na programação. — Londres provavelmente aprovaria. Essa história de prosseguir na programação me parece familiar. — Ordens de Pequim... — repetiu o embaixador, baixinho, sem ouvir Staples. — Ordens de Sheng! — Tem certeza? — É o seu jogo! Ele está dando as cartas! Oh, Deus, Sheng está pronto! A tensão foi aumentando geometricamente a cada quinze minutos, até que o ar se encontrava carregado de eletricidade. A chuva começou a cair, batendo na grande janela com um tamborilar incessante. Um aparelho de televisão foi trazido para a sala e ligado, o embaixador americano e a diplomata canadense ficaram assistindo, em medo e silêncio. O enorme jato taxiou sob o aguaceiro, aproximando-se do ponto de encontro com a multidão de repórteres e câmaras de televisão. As guardas de honra inglesa e chinesa saíram primeiro, fazendo formação nos lados da porta aberta. A atitude foi surpreendente, pois em vez do desfile imponente, como se podia esperar de tais escoltas militares, os homens se deslocaram rapidamente para posições de flanco nos degraus de metal, os cotovelos inclinados para cima, empunhando armas, prontos para entrar em ação. Os líderes saíram em seguida, acenando para os espectadores; começaram a descer a escada, seguidos por duas filas de subordinados, sorrindo constrangidos. A estranha entrevista coletiva começou e foi nesse instante que o Subsecretário de Estado Edward McAllister irrompeu na sala, abrindo bruscamente a porta e jogando-a contra a parede. — Descobri! — gritou ele, com uma folha de papel na mão. — Tenho certeza que descobri! — Acalme-se, Edward. E fale de uma maneira que a gente possa compreender.
— A delegação chinesa! — berrou McAllister, quase sem fôlego, correndo para o embaixador e estendendo-lhe o papel. — É chefiada por um homem chamado Lao Sing! O segundo homem é um general chamado Yunshen! Eles são poderosos e há anos vêm fazendo oposição a Sheng Chou Yang, protestando abertamente contra sua política no Comitê Central! A inclusão dos dois nas equipes de negociação foi uma demonstração da aparente disposição de Sheng para ter um equilíbrio... o que o fez parecer justo aos olhos da velha guarda! — Pelo amor de Deus, o que está tentando dizer? — Não é o governador britânico! Não é apenas ele! São todos! Com uma única ação, ele elimina os seus dois oponentes mais fortes em Pequim e abre o caminho para avançar ainda mais. E depois, como você disse, ele implanta sua comissão financeira... seus taipans... durante um período de instabilidade, agora partilhado pelos dois governos! Havilland arrancou o fone do gancho. — Ligue-me com Lin no Kai-tak — ordenou à telefonista. — E depressa!... Major Lin, por favor. Imediatamente!... Que história é essa que ele não está aí? Onde ele está?... Quem?... Já sei quem você é! Pois agora escute e preste muita atenção! O alvo não é somente o governador britânico. É pior do que isso. Inclui dois membros da delegação chinesa. Separe todo mundo... Já sabia disso?... Um homem do Mossad? Mas o quê?... Não existe nenhum acordo assim, não poderia haver!... Claro, claro. Vou desligar agora. Respirando depressa, o rosto vincado e pálido, o embaixador olhou para a parede e disse, a voz quase inaudível: — Eles descobriram, só Deus sabe como, estão tomando as providências imediatas... Mas quem? Pelo amor de Deus, quem foi o homem? — Nosso Jason Bourne — disse McAllister, calmamente. — Ele está lá. Na tela da televisão, uma limusine distante parou abruptamente, enquanto as outras se afastavam pela escuridão. Vultos correram em pânico para longe do carro parado e segundos depois a tela foi preenchida por uma explosão ofuscante. — Ele está lá — repetiu McAllister, num sussurro. — Ele está lá!
Capítulo 21 A lancha balançava violentamente na escuridão e na chuva torrencial. A tripulação de dois homens tirava a água que entrava continuamente pelas amuradas, enquanto o grisalho comandante chinês-português espiava através das janelas grandes da cabine, avançando lentamente na direção dos contornos escuros da ilha. Bourne e d’Anjou flanqueavam o proprietário do barco; o Francês falou, levantando a voz acima do barulho da tempestade: — Quanto falta ainda para a praia? — Duzentos metros, mais ou menos dez ou vinte. — Chegou o momento para a luz. Onde está? — No armário por baixo de você. A direita. Mais setenta e cinco metros e eu paro. Se seguir mais adiante os rochedos podem ser perigosos, com este tempo. — Temos de chegar à praia! — protestou o Francês. — Eu disse que era imperativo! — Mas esqueceu de me dizer que haveria esta chuva, estas ondas. Nove metros e pode usar o barco pequeno. O motor é forte, chegarão lá. — Merde! —exclamou d’Anjou, abrindo o armário e tirando uma lanterna. — Isso pode nos deixar a mais de cem metros! — De qualquer forma, não seria menos de cinqüenta. Eu lhe disse isso. — E a água é profunda entre os dois pontos! — Quer que eu dê a volta e siga para Macau? — E sermos explodidos pelas patrulhas? Só se efetua o pagamento no momento apropriado ou não se chega ao destino! E você sabe disso! — Cem metros, não mais do que isso. D’Anjou balançou a cabeça, irritado, e levantou a lanterna para o peito. Apertou um botão e soltou-o no instante seguinte; por um breve momento, um clarão insólito, azul-escuro, iluminou a janela do piloto. Segundos depois, através.do vidro manchado, avistou-se um brilho correspondente na praia da ilha. — Se não viéssemos para o encontro, mon capitaine, esta chata miserável seria destruída. — Está gostando muito dela esta tarde! — protestou o comandante, manejando vigorosamente a roda do leme. — Isso foi ontem à tarde. Já é uma e meia do dia seguinte, e desde então passei a conhecer os
seus métodos de ladrão. D’Anjou guardou a lanterna no armário e olhou para Bourne, que também o observou. Repetiam o que haviam feito muitas vezes nos tempos de Medusa: conferir os trajes e equipamentos de um parceiro. Os dois haviam posto as roupas em sacos de lona — calças, suéteres e gorros de borracha fina, tudo preto. Além da automática de Jason e da pequena pistola calibre 22 do Francês, os únicos equipamentos eram facas em bainhas — tudo escondido. — Chegue o mais perto que puder — disse d’Anjou ao comandante. — E não se esqueça de que não receberá o pagamento se não estiver aqui quando voltarmos. — E se eu pegasse o dinheiro e matasse vocês? — gritou o comandante, virando a roda do leme. — Poderia então cair fora! — Estou impressionado — comentou Bourne. — Não tenho medo — disse o Francês, lançando um olhar furioso para o chinês-português. — Já lidei com esse homem muitas vezes, ao longo de muitos meses. Como você, ele é o piloto de um barco veloz e tão ladrão como você. Forro os seus bolsos marxistas, de tal forma que suas amantes vivem como as concubinas do Comitê Central. Além do mais, ele desconfia que mantenho registros de todas as nossas transações. Estamos nas mãos de Deus, talvez melhor. — Pois então pegue a lanterna —murmurou o comandante, relutante. — Podem precisar e não vão me servir de nada perdi dos no mar ou destroçados nos rochedos. — Sua preocupação me comove — disse d’Anjou, tornando a pegar a lanterna e acenando com a cabeça para Jason. — Vamos dar uma olhada no barco e no motor. — O motor está por baixo de uma lona grossa. Não liguem antes de entrarem na água. — Como sabe que vai pegar? — perguntou Bourne. — Porque quero meu dinheiro, Silencioso. A viagem até a praia deixou os dois encharcados, ambos se equilibrando com dificuldade no pequeno barco, Jason segurando nos lados e d’Anjou no timão e na popa, a fim de não caírem no mar. Roçaram por um banco de areia. Metal rangeu contra os rochedos, enquanto o Francês dava uma guinada no leme para boreste, acelerando ao máximo. O estranho clarão azul-escuro tornou a piscar uma vez, na praia. Haviam se afastado na escuridão; d’Anjou virou o bote na direção do sinal e minutos depois a proa bateu na areia. O Francês empurrou a alavanca para baixo, levantando o motor de popa, enquanto Bourne pulava pela amurada, pegava a corda e puxava a pequena embarcação pela praia. Soltou uma pequena exclamação surpreendido pela presença repentina de um homem ao seu lado, pegando também a corda.
— Quatro mãos são melhores do que duas — gritou o estranho, um oriental, um inglês perfeitamente fluente... um inglês com sotaque americano. — Você é o contato? — berrou Jason, aturdido, especulando se a chuva e as ondas não estariam afetando a sua audição. — É uma expressão tola! —respondeu o homem, gritando para ser ouvido. — Sou apenas um amigo! Cinco minutos depois, quando acabaram de puxar o barco pela areia, os três homens passaram pela folhagem densa à beira da praia, subitamente substituída por árvores raquíticas. O “amigo” construíra um abrigo primitivo com uma lona de navio; uma pequena fogueira ardia de frente para o bosque denso, invisível dos lados e por trás, escondida pela lona. O calor era bem-vindo; os ventos e a chuva haviam deixado Bourne e d’Anjou enregelados. Sentaram-se de pernas cruzadas em torno da fogueira, e o Francês disse ao chinês de uniforme: — Isso não era necessário, Gama... — Gama? — interveio Jason. — Estou pondo em prática algumas tradições do nosso passado, DeIta. Na verdade, poderia usar Tango ou Foxtrote... nem tudo era grego. O grego estava reservado aos líderes. — Esta é uma conversa de merda. Quero saber por que ele está aqui. Por que não paga a ele e saímos logo daqui? — Ei, cara! —disse o chinês, estendendo a palavra, enfatizando deliberadamente o sotaque americano. — Esse bicho está muito tenso! Qual é o pó? — Meu pó, cara, é que quero voltar para aquele barco. Não tenho tempo para o chá. — Que tal um scoth? — indagou o oficial da República Popular, estendendo a mão para trás e depois para a frente, mostrando uma garrafa de uísque perfeitamente aceitável. — Teremos de partilhar o gargalo, mas não creio que sejamos homens infectados. Tomamos banho, escovamos os dentes, deitamos com as nossas prostitutas saudáveis... pelo menos meu governo celestial cuida para que sejam saudáveis. — Mas quem é você? — insistiu Jason Bourne. — “Gama” servirá, conforme Eco me convenceu. Quanto ao que eu sou, deixo isso à sua imaginação. Pode experimentar a USC... a Universidade do Sul da Califórnia... com estudos de pósgraduação em Berkeley... todos aqueles protestos nos anos sessenta, como tenho certeza de que deve se lembrar. — Era parte daquela turma? — Claro que não. Era um conservador irredutível, membro da Sociedade John Birch, queria que
todos fossem fuzilados! Eram uns maníacos gritadores que não tinham a menor consideração pelos compromissos morais da nação. — Continuo a achar que é uma conversa de merda. — Meu amigo Gama é o intermediário perfeito — interveio d’Anjou. — É um instruído agente duplo, triplo e até possivelmente quádruplo, trabalhando para todos os lados, em benefício de seus próprios interesses. É o homem totalmente amoral, e o respeito por isso. — Você voltou à China? À República Popular? — Era onde estava o dinheiro — admitiu o oficial. — Qualquer sociedade repressiva oferece enormes oportunidades para os que estão dispostos a assumir pequenos riscos, por conta dos reprimidos. Pode perguntar aos comissários em Moscou e no bloco oriental. Claro que é preciso ter contatos no Ocidente e possuir determinados talentos que possam servir também aos líderes. Felizmente, sou um marujo excepcional, cortesia de amigos na Baía de San Francisco que tinham iates e lanchas. Voltarei um dia. Gosto muito de San Francisco. — Não tente investigar suas contas nos bancos suíços — comentou d’Anjou. — Em vez disso, vamos nos concentrar no motivo pelo qual Gama nos preparou um abrigo tão agradável em plena tempestade. O Francês pegou a garrafa e tomou um gole. — Vai lhe custar, Eco — disse o chinês. — Com você, o que não custa? O que é? D’Anjou estendeu a garrafa para Jason, enquanto o chinês indagava: — Posso falar na frente de seu companheiro? — Qualquer coisa. — Vai querer a informação. Posso garantir. O preço é de mil dólares americanos. — Mais alguma coisa? — Deve ser suficiente — respondeu o oficial chinês, pegando a garrafa de scotch da mão de Bourne. — Você são dois, e minha lancha de patrulha está a um quilômetro daqui, numa enseada ao sul. Minha tripulação pensa que estou tendo uma reunião secreta com nossos agentes na colônia. — Eu vou “querer a informação” e você “garante”. Por essas palavras, devo apresentar mil dólares sem discussão, quando é perfeitamente possível que você tenha uma dúzia de Zhongguo ren nas moitas ao redor. — Algumas coisas devem ser aceitas de boa fé.
— Não quando se trata do meu dinheiro — protestou o Francês. — Não vai receber um sou enquanto eu não tiver idéia do que está vendendo. — Você é gaulês até o fim — comentou Gama, sacudindo a cabeça. — Muito bem. A informação está relacionada com seu discípulo, aquele que não segue mais o mestre, mas em vez disso recolhe as suas trinta moedas de prata e muito mais. — O assassino? — Pague a ele! — ordenou Bourne, rígido, olhando fixa- mente para o oficial chinês. D’Anjou olhou para Jason e depois para o homem chamado Gama, levantou o suéter e desafivelou a calça encharcada. Estendeu a mão abaixo da cintura e puxou um cinturão de dinheiro de lona impermeável; abriu o bolso central e tirou as notas com as pontas dos dedos, uma a uma, estendendo-as para o oficial chinês. — Três mil por esta noite e mais mil pela nova informação. O resto é falsificado. Sempre carrego mil extras para emergências, mas apenas mil... — A informação ! — interveio Jason Bourne. — Ele pagou — respondeu Gama. — Direi tudo a ele. — Diga a quem quiser, mas fale logo! — Nosso amigo mútuo em Guangzhou — começou o oficial, olhando para d’Anjou. —O operador de rádio no Quartel-General Um. — Já fizemos negócios — murmurou d’Anjou, cauteloso. — Sabendo que me encontraria com você aqui, a esta hora, fui reabastecer em Zhuhai Shi, pouco depois das dez e meia. Havia um recado para que eu entrasse em contato com ele... temos uma comunicação segura. Ele me disse que havia um chamado retransmitido por Pequim, com um código de priori dade não-identificado da Torre de Jade. Era para Soo Jiang... D’Anjou inclinando-se para a frente abruptamente, pondo as mãos no chão. — O porco! — Quem é ele? — indagou Bourne. — Supostamente o chefe do serviço secreto para as operações em Macau — respondeu o Francês. — Mas venderia a própria mãe a um bordel se o preço fosse bom. No momento, ele é o canal para o meu ex-discípulo. Meu Judas. — Que foi subitamente chamado a Pequim — informou o homem chamado Gama. — Tem certeza? — perguntou Jason.
— Nosso amigo mútuo tem — respondeu o chinês, ainda olhando para d’Anjou. — Um assessor de Soo esteve no Quartel- General Um e verificou todos os vôos de amanhã do Kai-tak para Pequim. Com a autorização de seu departamento, ele fez uma reserva... Uma única reserva... em cada vôo. Em vários casos, isso implicou a transferência dos passageiros originais para a lista de espera. Quando um oficial do Quartel-General Um pediu a confirmação pessoal de Soo, o assessor informou que ele partira para Macau em negócios urgentes. Quem tem negócios em Macau à meia-noite? Está tudo fechado. — Exceto os cassinos — sugeriu Bourne. — Mesa Cinco. O Kam Pek. Circunstâncias totalmente controladas. — Tendo em vista as reservas em vários vôos — acrescentou d’Anjou — pode-se chegar à conclusão de que Sôo não sabe quando fará contato com o assassino. — Mas ele tem certeza de que vai encontrá-lo. Qualquer que seja a mensagem que ele está levando, é nada menos que uma ordem que não pode deixar de ser cumprida. — Jason olhou para o oficial chinês. — Leve-nos para Pequim. O aeroporto, o primeiro avião. Garanto que ficará rico. — Você está louco, Delta! — protestou d’Anjou. — Pequim é impossível! — Por quê? Ninguém está nos procurando e há franceses, ingleses, italianos, americanos... só Deus sabe quem mais... por toda cidade. E nós dois dispomos de passaportes que nos permitirão a passagem. — Seja razoável! — suplicou Eco. — Estaremos no covil deles. Sabendo o que sabemos, seremos liquidados sumariamente se formos encontrados em circunstâncias duvidosas, mesmo as mais vagas possíveis! Ele vai aparecer de novo por aqui, provavelmente em poucos dias! — Não tenho dias para esperar — declarou Bourne, fria- mente. — Perdi sua criação duas vezes. Não vou perdê-lo uma terceira. — Acha que pode capturá-lo na China? — Em que outro lugar ele menos esperaria por uma armadilha? — Isso é um absurdo! Você está louco! — Tome as providências necessárias — ordenou Jason ao oficial chinês. — O primeiro vôo do Kai-tak. Quando eu tiver a passagem, pagarei cinqüenta mil dólares americanos a quem a entregar. Mande alguém em quem possa confiar. — Cinqüenta mil...? O homem chamado Gama ficou olhando aturdido para Bourne. O céu sobre Pequim estava nublado, a poeira viajando nos ventos das planícies do norte da
China, criando bolsões de amarelos mortiços e marrons opacos, ao sol. O aeroporto, como todos os outros internacionais, era imenso, as pistas uma teia de avenidas pretas se cruzando, várias com mais de três quilômetros de extensão. Se havia uma diferença entre o aeroporto de Pequim e seus equivalentes ocidentais estava no vasto terminal, com seu domo e um hotel adjacente, diversas estradas levando ao complexo. Embora contemporâneo no projeto, havia um senso básico de funcionalismo e uma ausência de acabamentos agradáveis à vista. Era um aeroporto a ser usado e admirado por sua eficiência, não por sua beleza. Bourne e d’Anjou passaram pela alfândega com um mínimo de esforço, com a ajuda do chinês fluente que falavam. Os guardas se mostraram simpáticos, mal examinando a bagagem mínima, mais curiosos com a capacidade lingüística dos dois do que com seus pertences. O chefe aceitou sem duvidar a história de dois estudiosos do Oriente em férias, as viagens agradáveis se convertendo posteriormente em conferências. Cada um trocou mil dólares em renminbi — literalmente, o Dinheiro do Povo — e receberam quase dois mil yuan. E Bourne tirou os óculos que comprara em Washington de seu amigo Cactus. — Uma coisa me surpreende — comentou o Francês, ao pararem diante de um painel eletrônico indicando as partidas e chegadas durante as próximas três horas. — Por que ele voaria num avião comercial? Quem quer que está lhe pagando tem aviões do governo ou militares à sua disposição. — Como os nossos, esses aviões têm de ser requisitados e seus vôos explicados — respondeu Jason. — E quem quer que seja, precisa se manter a distância do seu assassino. Ele tem de entrar como turista ou homem de negócios, só depois se iniciando o processo complexo de fazer contato, Pelo menos é com isso que estou contando. — Mas que loucura! Se conseguir capturá-lo, Delta... e acrescento que é um “se” significativo, pois ele é extraordinariamente competente... tem alguma idéia de como vai tirá-lo do país? — Tendo dinheiro, dinheiro americano, notas grandes, mais do que você pode imaginar, no forro do meu paletó. — Foi por isso que paramos no Península, não é? É por isso que me disse para não cancelar sua reserva ontem. O dinheiro estava lá. — Isso mesmo. No cofre do hotel. Vou tirar o seu assassino daqui. — Nas asas de Pégaso? — Não. Provavelmente num vôo da Pan Am, nós dois ajudando um amigo muito doente. Para dizer a verdade, creio que foi você quem me deu a idéia. — Então sou um caso de doença mental! — Fique junto da janela — determinou Bourne. — Temos mais doze minutos antes que chegue o próximo avião procedente do Kai-tak... o que pode significar dois minutos ou doze horas. Vou comprar um presente para nós dois.
— Uma loucura... — murmurou o Francês, cansado demais para fazer outra coisa que não sacudir a cabeça. Jason voltou, levando d’Anjou para um canto, à vista das portas da imigração, que eram mantidas fechadas, a não ser quando os passageiros passavam pela alfândega. Bourne meteu a mão no bolso interno do paletó e tirou uma caixa comprida e fina, embrulhada com o vistoso papel que se encontra nas lojas de souvenirs do mundo inteiro. Tirou a tampa; lá dentro, numa imitação de feltro, havia uma espátula estreita, de latão, com caracteres chineses no cabo. A ponta era obviamente afiada e cortante. — Fique com isso — disse Jason. — Ponha no cinto. — Como é o equilíbrio? — indagou o Eco de Medusa, enquanto ajeitava a lâmina por baixo da calça. — Nada mal. Fica na metade da base para a ponta, e o latão dá peso. Deve dar um bom arremesso. — Eu me lembro de tudo — comentou d’Anjou. — Uma das primeiras regras era jamais arremessar uma faca. Mas um dia, ao crepúsculo, você observou um gurca derrubar um sentinela a três metros de distância sem disparar um tiro nem se arriscar ao combate corpo a corpo. A baioneta da carabina girou pelo ar como um míssil, cravando-se no peito do sentinela. Na manhã seguinte você ordenou que o gurca nos ensinasse... e alguns aprenderam melhor do que outros. — Como você se saiu? — Relativamente bem. Era mais velho do que todos vocês e me sentia atraído por quaisquer defesas que pudesse aprender e não exigissem grande esforço físico. E não parava de praticar. Você me observava, muitas vezes comentou a respeito. Jason fitou o Francês nos olhos. — é engraçado, mas não me lembro de nada disso. — Eu pensei... Desculpe, Delta. — Esqueça. Estou aprendendo a confiar em coisas que não compreendo. A vigília continuou, lembrando Bourne de sua espera em Lo Wu, enquanto um trem após outro cruzava a fronteira, ninguém se revelando, até que um homem baixo, idoso e manco se tornou outra pessoa à distância. O avião das onze e meia estava com duas horas de atraso. A alfândega exigiria mais cinqüenta minutos. — Aquele — exclamou d’Anjou de repente, apontando para um vulto que passava pelas portas da imigração. — Com uma bengala? — indagou Jason. — Claudicando?
— As roupas maltrapilhas não escondem os ombros! — explicou Eco. — Os cabelos grisalhos são muito novos, ele não os escovou o suficiente, os óculos escuros são largos demais. Como nós, ele está cansado. Você estava certo. O chamado de Pequim tinha de ser atendido de qualquer maneira. E ele está sendo negligente. — Porque “o descanso é uma arma” e ele ignorou isso? — Exatamente. O Kai-tak ontem à noite cobrou o seu tributo, porém, mais importante ainda, ele tinha de obedecer. Merde! Seus honorários devem estar em centenas de milhares! — Ele está indo para o hotel — disse Bourne. — Fique aqui. Vou segui-lo... à distância. Se ele avistasse você, trataria de fugir e poderíamos perdê-lo. — Ele pode reconhecer você. — Não é provável. Lembre-se que inventei o jogo. E além do mais estarei atrás. Fique aqui. Voltarei para buscá-lo. Carregando a sacola de vôo, o andar deixando à mostra o cansaço da viagem, Jason entrou na fila dos passageiros desembarcados a caminho do hotel, os olhos fixos no homem de cabelos grisalhos à sua frente. Por duas vezes, o ex-comando britânico parou e virou-se; por duas vezes, com um rápido movimento nos ombros, Bourne também virou-se e abaixou-se, como se afugentasse um inseto da perna ou ajustasse a alça da sacola, o corpo e o rosto fora de vista. A multidão no balcão de registro aumentou, e Jason era o oitavo por trás do assassino, na segunda fila, procurando se manter o mais discreto possível, a todo instante se inclinando e empurrando a sacola para a frente. O comando alcançou a recepcionista; mostrou seus documentos, assinou o registro e afastou-se claudicando, com a bengala, a caminho dos elevadores marrons, à direita. Seis minutos depois Bourne estava na frente da mesma recepcionista. Falou em mandarim. — Mi neng bang-zhu wo ma? — perguntou ele, pedindo ajuda. — Foi uma viagem súbita e não tenho onde ficar. Apenas por esta noite. — Fala muito bem a nossa língua — disse a recepcionista, os olhos quase amendoados se arregalando de satisfação. — É uma honra para nós. — Espero aproveitar minha estada aqui para falar ainda melhor. Estou numa viagem de estudos. — É a melhor viagem. Há muitos tesouros em Pequim. Também se encontram em outros lugares, é claro, mas é a cidade celestial. Não tem reserva? — Infelizmente, não. Tudo foi arranjado na última hora, se entende o que estou querendo dizer. — Como falo as duas línguas, posso garantir que disse corretamente na nossa. Tudo tem muita pressa-pressa. Verei o que posso fazer. Mas não será nada formidável, é claro. — Também não posso. arcar com nada muito formidável — comentou Jason, timidamente. — Mas tenho um companheiro... podemos partilhar a mesma cama, se necessário.
— Tenho certeza de que não haverá outro jeito, num prazo tão curto. — A recepcionista folheou rapidamente o fichário. — Aqui está. Um quarto de solteiro no segundo andar, de fundos. Acho que está dentro de suas condições econômicas... — Vamos ficar com esse quarto. Outra coisa. Há poucos minutos vi um homem nesta fila que tenho certeza que conheço. Ele está envelhecido, mas acho que foi um antigo professor meu, quando estudei na Inglaterra. Cabelos grisalhos, com uma bengala... Estou convencido de que é ele. Gostaria de procurá-lo. — Ah, sim, estou lembrada. — A recepcionista pegou os cartões de registro que acabara de preencher. — O nome de Wadsworth... Joseph Wadsworth. Está no quarto 325. Mas deve estar enganado. Ele indicou sua ocupação como consultor em exploração de petróleo na plataforma marinha da Grã-Bretanha. — Tem razão, é o homem errado — murmurou Jason, sacudindo a cabeça, com uma expressão embaraçada. Pegou a chave do quarto e afastou-se. — Podemos pegá-lo! Agora! Bourne agarrou o braço de d’Anjou, levando-o do canto deserto do terminal. — Agora? Tão facilmente? Tão depressa? É incrível! — Ao contrário — disse Jason, levando d’Anjou para as portas de vidro que eram a entrada do hotel. — É perfeitamente crível. A mente do homem se concentra em uma dúzia de coisas diferentes neste momento. Tem de se manter fora de vista. Não pode fazer uma ligação através da mesa telefônica e por isso vai ficar no quarto, aguardando instruções. Passaram por uma porta de vidro, olharam ao redor e se encaminharam para a esquerda do balcão comprido. Bourne continuou, falando depressa: — O Kai-tak não funcionou ontem à noite e por isso ele tem de considerar outra possibilidade. A sua própria eliminação, com base no fato de que a pessoa que descobriu os explosivos debaixo do carro viu-o e identificou-o... o que é a verdade. Ele tem de insistir que seu cliente esteja sozinho no ponto de encontro. É a sua maior proteção. Descobriram uma escada e começaram a subir. O Delta da Medusa acrescentou: — Ele vai trocar de roupa. Não pode aparecer como estava antes e não pode aparecer como está agora. Tem de ser outra pessoa. — Chegaram ao terceiro andar. Com a mão na maçaneta, Jason virou-se para d’Anjou. — Aceite a minha palavra, Eco, seu garoto está envolvido. Tem problemas na cabeça que desafiariam um enxadrista russo. — Quem está falando é o acadêmico ou o homem que outrora chamavam de Jason Bourne?
— Bourne — respondeu David Webb, os olhos frios, a voz gelada. — Se já foi alguma vez, é neste momento. A sacola de vôo pendurada no ombro, Jason abriu lenta- mente a porta da escada e passou. Dois homens em ternos listrados escuros avançavam pelo corredor em sua direção, reclamando da aparente falta de serviço de quarto, falando em inglês. Abriram a porta de seu quarto e entraram. D’Anjou também passou pela porta e os dois seguiram pelo corredor. Os números dos quartos estavam em chinês e inglês. 341, 339, 337... estavam no corredor da direita, o quarto ficava na parede esquerda. Três casais de indianos saíram de um elevador, as mulheres de saris, os homens em calças justas; passaram por Jason e d’Anjou conversando, procurando por seus quartos, os maridos obviamente contrariados por terem de carregar suas malas. 335, 333, 331... — Mas é demais! — gritou uma voz feminina. Uma mulher obesa, com os cabelos enrolados, saiu marcialmente por uma porta à direita, usando um roupão. A camisola por baixo se arrastava no chão, por duas vezes enroscando-se em seus pés. Ela levantou-a bruscamente, revelando um par de pernas digno de um rinoceronte. — O banheiro não funciona, e pode-se esquecer o telefone! — Eu já falei, Isabel! — gritou um homem de pijama vermelho, olhando pela porta aberta. — É o cansaço da viagem. Durma um pouco e lembre-se que não está no Short Hills. Não seja implicante. Procure se acalmar. — Como não posso usar o banheiro, não tenho opção. Vou descobrir algum miserável amarelo e lhe dar uma esculhambação. Onde fica a escada? Eu não entraria num desses malditos elevadores! Se eles andam, provavelmente é para os lados e através das paredes, para cima de um 747! A mulher furiosa passou por eles, a caminho da porta da escada. Dois dos três casais indianos tinham dificuldades com suas chaves, conseguindo finalmente abrir as portas com chutes sonoros e bem colocados. O homem de pijama vermelho bateu a porta, depois de gritar para a esposa, na maior irritação: — é como aquela reunião de turma no clube! Você é muito embaraçosa, Isabel! 329, 327... 325. O quarto. O corredor estava deserto. Eles podiam ouvir os acordes de música oriental por trás da porta. O rádio estava ligado, o volume alto, tomando-se ainda mais alto com o primeiro toque da campainha de um telefone. Jason puxou d’Anjou para trás e falou baixinho, junto à parede: — Não me lembro de nenhum gurca ou sentinela...
— Uma parte de você lembrou, Delta. — E possível, mas isso é irrelevante. Este é o começo do fim. Vamos deixar nossas bolsas aqui. Eu entro primeiro e você me segue imediatamente. Mantenha a faca de prontidão. Mas quero que compreenda uma coisa e não pode haver qualquer erro... não a arremesse, a menos que seja absolutamente indispensável. E se o fizer, mire as pernas. Nada acima da cintura. — Você tem mais fé do que eu na mira de um homem mais velho. — Estou contando que não vamos precisar disso. Estas portas são feitas de madeira compensada oca e seu assassino está com uma porção de problemas na mente. Pensa em sua estratégia, não em nós. Como poderíamos saber que ele está aqui... e mesmo que soubéssemos, como poderíamos passar pela fronteira em prazo tão curto? E eu o quero! Vou capturá-lo! Está pronto? — Como sempre estarei — respondeu o Francês, largando a valise no chão e tirando a espátula do cinto. Ajeitou a lâmina na mão, os dedos abertos, procurando o ponto de equilíbrio. Bourne tirou a bolsa do ombro e deixou-a no chão. Em silêncio, assumiu posição diante do Quarto 325. Olhou para d’Anjou. Eco acenou com a cabeça, e Jason avançou para a porta, o pé esquerdo se transformando num aríete, acertando no espaço logo abaixo da fechadura. A porta foi impelida para dentro, como se tivesse explodido; a madeira se estilhaçou, as dobradiças foram arrancadas dos parafusos. Bourne se lançou para dentro do quarto, rolando pelo chão, os olhos se virando em todas as direções. — Arrêtez! — berrou d’Anjou. Um vulto emergiu de uma porta interna... o homem de cabelos grisalhos, o assassino! Jason levantou-se de um pulo, lançando-se contra sua presa, agarrando os cabelos do homem, puxando-o para a esquerda, depois para a direita, jogando-o contra o alizar da porta. E, subitamente, o Francês gritou, enquanto a lâmina de latão da espátula voava pelo ar, indo se cravar na parede, o cabo tremendo. Estava longe do alvo; era uma advertência. — Não, Delta! Bourne suspendeu todo movimento, a presa imobilizada, impotente, sob o seu peso. — Olhe! — gritou d’Anjou. Jason recuou lentamente, os braços rígidos, imobilizando o vulto à sua frente, Estava olhando para o rosto esquelético e encarquilhado de um homem muito velho, com cabelos grisalhos bem ralos.
Capítulo 22 Marie estava deitada na cama estreita, olhando para o teto. Os raios do sol a pino entravam pelas janelas sem persianas, enchendo o quarto pequeno com uma claridade ofuscante e muito calor, O suor escorria por seu rosto, e a blusa rasgada aderia à pele úmida. Os pés doíam da loucura da metade da manhã, que começara como um passeio por uma estrada litorânea inacabada e a descida para uma praia rochosa... uma coisa estúpida para fazer, a única que podia fazer na ocasião; precisava de qualquer maneira espairecer, esquecer seus pensamentos. Os sons da rua subiam até o quarto, uma estranha cacofonia de vozes estridentes, gritos súbitos e campainhas de bicicletas, as buzinas estrondosas de caminhões e ônibus. Era como se um trecho apinhado, movimentado e barulhento de Hong Kong tivesse sido arrancado da ilha e fixado em algum lugar distante, onde um rio largo, campos intermináveis e montanhas distantes substituíam Victoria Harbor e as incontáveis fileiras de prédios altos, feitos de vidro e pedra. De certa forma, a transplantação ocorrera mesmo, refletiu Marie. A cidade em miniatura de Tuen Mun era um daqueles fenômenos determinados pelo espaço que haviam aflorado ao norte de Kowloon, nos Novos Territórios. Num ano era uma planície árida à beira do rio, no ano seguinte era uma metrópole em rápido desenvolvimento, com ruas pavimentadas e fábricas, distritos comerciais e amplos prédios de apartamentos, atraindo os do sul com a promessa de habitações e empregos aos milhares; os que atendiam ao chamado levavam consigo a inconfundível histeria do comércio de Hong Kong. Sem isso, seriam dominados por ansiedades inócuas, plácidas demais para suportar; eram os descendentes de Guangzhou — a província de Cantão — e não da experiente e entediada Xangai. Marie despertara com a primeira claridade, o pouco que conseguira dormir, assolada por pesadelos... e sabia que tinha de enfrentar outra suspensão do tempo, até que Catherine entrasse em contato. Staples telefonara tarde, na noite anterior, arrancando-a de um sono induzido pela exaustão total, apenas para lhe dizer enigmaticamente que haviam ocorrido várias coisas insólitas, que poderiam levar a notícias favoráveis. Ela ia se encontrar com um homem que se interessara pelo caso, um homem extraordinário, que poderia ajudar. Marie deveria permanecer no apartamento, junto ao telefone, para o caso de haver novos acontecimentos. Como Catherine a instruíra para não usar nomes nem falar de questões específicas pelo telefone, Marie não questionara a brevidade da ligação. — Telefonarei para você de manhã, bem cedo, minha cara — concluíra Staples, desligando em seguida. Ela ainda não ligara às oito e meia, nem às nove horas; às nove e trinta e seis, Marie não pudera agüentar por mais tempo. Raciocinara que os nomes eram desnecessários, pois uma conhecia a voz da outra; e Catherine precisava compreender que a mulher de David Webb tinha direito a alguma coisa de manhã, bem cedo. Discara para o apartamento de Staples em Hong Kong; ninguém atendera, e ela discara de novo, a fim de se certificar de que não errara o número. Nada. Frustrada e sem se importar com mais nada, telefonara para o consulado. — Quero falar com Catherine Staples, por favor. Sou uma amiga da Secretaria de Tesouro, em Ottawa. Gostaria de lhe fazer uma surpresa.
— A ligação está ótima, meu bem. — Não estou em Ottawa, mas aqui —dissera Marie, imaginando muito bem o rosto da loquaz recepcionista. — Lamento, meu bem, mas a Sra. Staples não está e não deixou instruções. Para dizer a verdade, o alto comissário também está à sua procura. Por que não me dá seu telefone... Marie desligara, sentindo o pânico invadi-la. Eram quase dez horas, e Catherine sempre levantava cedo. “De manhã bem cedo” poderia ser qualquer momento entre sete e meia e nove e meia, mais provavelmente no meio desse período, mas não às dez horas, e não naquelas circunstâncias. E doze minutos depois o telefone tocara. Era o começo de um pânico muito menos sutil. — Marie? — Você está bem, Catherine? — Claro que estou. — Falou “de manhã bem cedo”! Por que não ligou antes? Eu já estava ficando maluca! Pode falar? — Posso, sim. Estou num telefone público... — O que aconteceu? O que está acontecendo? Quem é o homem com quem você se encontrou? Houvera uma breve pausa na ligação de Hong Kong. Por um instante, parecera haver um constrangimento, e Marie não soubera explicar por quê. — Quero que fique calma, minha cara — dissera Staples. — Não liguei porque você precisa de todo o descanso que puder obter. Posso ter as respostas que você quer, que você necessita. As coisas não são tão terríveis quanto você imagina, e deve permanecer calma. — Mas já estou calma! Ou pelo menos bastante controlada! Que diabo está querendo me dizer? — Posso garantir que seu marido está vivo. — E eu posso garantir que ele é muito bom no que faz... no que fazia. Não está me dizendo nada! — Vou pegar o carro dentro de poucos minutos e irei ao seu encontro. O tráfego está horrível, como sempre, piorado pelas medidas de segurança em torno da delegação sino-britânica, engarrafando as ruas e o túnel. Mas não devo levar mais de uma hora e meia, talvez duas. — Catherine, eu quero respostas! — Vou levá-las para você, pelo menos algumas. Descanse, Marie, tente relaxar. Tudo vai dar certo. Estarei aí dentro em breve.
— O tal homem virá com você? — indagara a mulher de David Webb, suplicante. — Não. Estarei sozinha, não haverá ninguém comigo. Você só o verá mais tarde. — Está bem. Fora o tom de voz de Catherine?, especulara Marie, depois de desligar. Ou o fato de Catherine não ter lhe dito literalmente nada, depois de admitir que podia falar livremente por um telefone público? A Catherine que ela conhecia tentaria dissipar os medos de uma amiga apavorada se tivesse fatos concretos para oferecer como conforto, mesmo que fosse uma única informação vital, se a trama fosse muito complexa. Alguma coisa. A mulher de David Webb merecia alguma coisa! Em vez disso, houvera uma conversa de diplomata, a alusão, mas não a substância da realidade. Algo estava errado, só que fugia à sua compreensão. Catherine a protegera, assumira enormes riscos por sua causa, tanto em termos profissionais, ao não solicitar orientação de seu consulado, como pessoais, ao se confrontar com o perigo físico intenso. Marie sabia que devia sentir gratidão, uma profunda gratidão, mas em vez disso experimentava um crescente sentimento de dúvida. Diga de novo, Catherine, ela gritara em seu íntimo, diga que tudo vai acabar bem! Não posso mais pensar! Não posso pensar aqui! Tenho de sair... tenho de respirar um pouco de ar fresco! Ela cambaleara meio trôpega para pegar as roupas que haviam comprado na noite anterior, ao chegarem a Tuen Mun, depois que Catherine a levara a um médico que cuidara de seus pés, enfaixandoos com gaze, dando-lhe chinelas hospitalares e prescrevendo sandálias de solas grossas se tivesse que fazer caminhadas longas durante os dias seguintes. Na verdade, Catherine escolhera as roupas, enquanto Marie esperava no carro. Levando-se em consideração a tensão em que Staples se encontrava, a escolha das roupas fora ao mesmo tempo funcional e atraente. Uma saia de algodão verde-claro, complementada por uma blusa branca de algodão e uma pequena bolsa de conchas brancas. Também uma calça verde-escura — shorts seriam impróprios —e uma outra blusa informal. Todas as peças eram imitações bem-feitas de designers conhecidos, as etiquetas escritas corretamente. — É tudo muito bonito, Catherine. Obrigada. — Combinam com seus cabelos — comentara Staples — Não que alguém em Tuen Mun vá notar... quero que fique no apartamento... mas teremos de sair daqui em algum momento. Além disso, para o caso de eu ficar retida no escritório e você precisar de alguma coisa, deixei um pouco de dinheiro na bolsa. — Pensei que não deveria deixar o apartamento, que iríamos juntas comprar algumas coisas no mercado. — Assim como você, não tenho a menor idéia do que está acontecendo em Hong Kong. Lin pode estar tão furioso que talvez desenterre uma antiga lei colonial e me ponha sob prisão domiciliar... Há uma sapataria na Blossom Soon Street. Você terá de entrar e experimentar as sandálias pessoalmente. Eu a acompanharei, é claro. Vários momentos de silêncio se passaram antes que Marie perguntasse:
— Catherine, Como conhece este lugar? Não vi nenhum outro ocidental nas ruas. De quem é o apartamento? — De um amigo — respondera Staples. — Ninguém o usa durante a maior parte do tempo e por isso é um bom refúgio. Catherine não acrescentara mais nada, sinal de que o assunto não devia ser explorado. Mesmo quando passaram a maior parte da noite conversando, não houvera estímulo que arrancasse mais informações de Staples. Era um tópico que ela se recusava terminantemente a discutir. Marie pusera a calça comprida e a blusa, tivera a maior dificuldade para ajeitar as chinelas grandes. Cautelosamente, descera a escada e saíra para a rua movimentada, sentindo no mesmo instante os olhares que atraía, especulando se não deveria dar a volta e tornar a entrar. Mas não podia; estava desfrutando de uns poucos minutos de liberdade daquele confinamento sufocante do pequeno apartamento, e eram como um tônico. Fora andando devagar, sentindo alguma dor, fascinada pelas cores e o movimento frenéticos as conversas rápidas e incessantes ao seu redor. Como em Hong Kong, cartazes berrantes erguiam-se por toda parte, acima dos prédios; por toda parte, pessoas barganhavam, junto a estandes nas ruas e diante das portas das lojas. Era como se uma fatia da colônia fora desenraizada é fincada numa vasta fronteira. Encontrara uma estrada inacabada ao final de uma rua secundária, os trabalhos aparentemente abandonados, mas apenas em caráter temporário, já que as máquinas niveladoras — sem uso e enferrujando — se encontravam à margem. Havia duas placas em chinês, em cada lado da estrada, no topo de uma encosta. Dando cada passo com extremo cuidado, ela descera para a praia deserta e sentara-se numa pedra; os minutos de liberdade estavam lhe proporcionando preciosos momentos de paz. Contemplara os barcos que saíam das docas de Tuen Mun e os que partiam da República Popular. Pelo que podia ver, os primeiros eram barcos de pesca, as redes penduradas na proa e amuradas, enquanto os da República Popular eram principalmente pequenas embarcações cargueiras, transportando engradados. Havia também as lanchas de patrulhas cinzentas, com a bandeira chinesa hasteada. Canhões pretos ameaçadores estavam instalados em todos os lados das várias embarcações, com homens de uniforme parados imóveis ao lado, espiando através de binóculos. De vez em quando, uma lancha de patrulha parava ao lado de um barco de pesca, provocando gestos frenéticos dos pescadores. Reações firmes eram as respostas, enquanto as poderosas lanchas se afastavam. Era tudo um jogo, pensara Marie. O Norte afirmava calmamente o seu controle total, enquanto ao Sul só restava protestar pela intromissão nas áreas de pesca. O Norte tinha a força implacável do aço e uma disciplinada cadeia de comando, enquanto o Sul contava apenas com redes e perseverança. Ninguém saía vitorioso, a não ser os irmãos em oposição, Tédio e Ansiedade. — Jing-cha! — gritara uma voz de homem por trás dela, à distância. — Shei! — berrara uma segunda voz. — Ni zai zher gan shemma? Marie se virara. Dois homens lá em cima, na estrada, desataram a correr pelo acesso inacabado em sua direção, seus gritos atraindo-a, dominando-a. Ela se levantara, meio desajeitada, apoiando-se nas pedras, enquanto os dois se aproximavam. Ambos vestiam uma espécie de traje paramilitar. Observando-os, verificara que eram jovens, no final da adolescência, com vinte anos no máximo.
— Bu xing! — gritara o rapaz mais alto, olhando para o alto da encosta e gesticulando para que o seu companheiro agarrasse Marie. O que quer que fosse, tinha de ser feito depressa. O segundo rapaz imobilizara seus braços, por trás. — Parem com isso! — gritara Marie, debatendo-se. — Quem são vocês? — A mulher fala inglês — comentara o primeiro jovem. Uma pausa e ele acrescentou, orgulhoso, insinuante: — Eu falo inglês. Trabalho para um joalheiro em Kowloon. — Pois então diga a seu amigo para tirar as mãos de mim! — A mulher não me diz o que fazer. Eu digo à mulher. — Ele chegara mais perto, os olhos fixados nos contornos dos seios de Marie, por baixo da blusa. — Esta estrada é proibida, uma parte proibida da praia. A mulher não viu os cartazes? — Não sei ler chinês. Sinto muito. Vou embora agora. Apenas diga a ele para me largar. Subitamente, Marie sentira o corpo do rapaz por trás a se comprimir contra o seu. — Pare com isso! — gritara ela, ouvindo uma risada suave em seu ouvido, sentindo um bafo quente na nuca. — A mulher veio encontrar um barco com criminosos da República Popular? Fez sinal para os homens na água? — O chinês mais alto levantara as mãos para a blusa de Marie, os dedos nos botões de cima. — Ela não está escondendo um rádio, algum aparelho de sinalização? É nosso dever descobrir essas coisas. É o que a polícia espera de nós. — Tire as mãos de mim! Marie se contorcera violentamente, chutando à frente. O rapaz por trás a levantara, enquanto o outro lhe segurara as pernas, prendendo-as entre as suas. Ela não podia se mexer; o corpo estava esticado em diagonal, na praia rochosa, firmemente imobilizado. O primeiro chinês lhe arrancara a blusa e depois o sutiã, pondo as mãos em seus seios. Ela gritara e se debatera, continuara a gritar até que fora esbofeteada, e dois dedos lhe apertarem a garganta, cortando todo som, a não ser as tosses guturais. O pesadelo de Zurique lhe voltara... estupro e morte no Guisan Quai. Eles a levaram para um trecho de mato alto, o rapaz por trás pondo a mão em sua boca, depois substituindo-a rapidamente pelo braço direito, cortando o ar e quaisquer gritos que ela pudesse soltar, enquanto a empurrava para a frente. Fora jogada ao chão, um dos atacantes agora lhe cobrindo o rosto com sua barriga nua, enquanto o outro começava a puxar a calça comprida, enfiando as mãos entre suas pernas. Era Zurique outra vez; em vez de se debater na fria escuridão suíça, havia o calor úmido do Oriente; em vez do Limmat, outro rio, muito mais largo, muito mais deserto; em vez de um animal, dois. Ela sentira o corpo do chinês alto por cima do seu,
arremetendo em seu pânico, furioso por não conseguir penetrá-la, os movimentos de Marie repelindo a investida. Por um instante, o rapaz sobre o seu rosto estendera a mão pela calça, até a virilha... depois de um breve momento, o mundo enlouquecera para Marie! Ela cravara os dentes na carne por cima, arrancando sangue, sentindo a carne repulsiva em sua boca. Seguiram-se gritos; seus braços foram soltos. Ela chutara enquanto o jovem oriental rolava para o lado, as mãos comprimindo a virilha. Marie levantara o joelho para o órgão exposto por cima de sua cintura, depois metera as unhas no rosto suado e de olhos desvairados do rapaz mais alto. Agora, ela estava gritando também, berrando, suplicando, como nunca gritara antes em toda a sua vida. Segurando os testículos por baixo da cueca, o enfurecido rapaz se jogara em cima dela. Mas o estupro não estava mais em consideração, ele queria apenas mantê-la quieta. A escuridão sufocante começara a envolver Marie... e depois ela ouvira outras vozes, à distância, excitadas, se aproximando. Compreendera que precisava emitir um derradeiro grito de socorro. Num ímpeto desesperado, cravara as unhas no rosto contorcido por cima, por um instante livrando a boca da pressão — Aqui! Na praia! Aqui embaixo! No instante seguinte corpos enxameavam ao seu redor; podia ouvir socos, chutes, gritos furiosos, mas nenhuma parte da loucura se dirigia contra ela. E depois a escuridão viera, os últimos pensamentos apenas parcialmente sobre si mesma: David! Pelo amor de Deus, David, onde está você? Continue vivo, meu querido! Não deixe que eles destruam sua mente outra vez! Acima de tudo, não permita isso! Eles querem a minha, mas não vou lhes dar! Por que estão fazendo isso conosco? Oh, Deus, por quê? Ela despertara numa cama estreita, num quarto pequeno, sem janelas, uma jovem chinesa limpando sua testa com um pano úmido e perfumado. — Onde...? — balbuciara Marie. — Onde estou? A moça sorrira suavemente e dera de ombros, acenando com a cabeça para o outro lado da cama, onde estava um chinês que Marie calculou ter trinta e poucos anos, vestindo roupas tropicais, um blusão branco em vez de uma camisa. — Permita que eu me apresente — dissera o homem, num inglês de forte sotaque, mas preciso. — Meu nome é Jitai e trabalho na sucursal de Tuen Mun do Banco Hang Chow. Está no quarto dos fundos de uma loja de tecidos que pertence a um amigo e cliente, o Sr. Chang. Trouxeram você para cá e me chamaram. Foi atacada por dois bandidos da Di-di Jing Cha, que se pode traduzir como Polícia Auxiliar dos Jovens. É um desses programas sociais bem-intencionados que trazem muitos benefícios, mas de vez em quando também têm as suas maçãs podres, como dizem vocês, americanos. — Por que acha que sou americana? — Suas palavras. Enquanto estava inconsciente, falou sobre um homem chamado David. Um amigo querido, sem dúvida. Deseja encontrá-lo. — O que mais eu disse?
— Praticamente nada. Não foi muito coerente. — Não conheço ninguém chamado David — declarara Marie, firmemente. — De jeito nenhum. Deve ter sido um desses delírios em que a gente volta aos tempos de criança. — É irrelevante. A única coisa que importa é o seu bem- estar. Estamos com muito vergonha e pesarosos pelo que aconteceu. — Onde estão aqueles dois miseráveis? — Foram presos e serão punidos. — Espero que passem dez anos na cadeia. O chinês franzira o rosto. — Isso implicaria envolver a polícia... uma queixa formal, audiência perante um magistrado, muitos detalhes técnicos. Marie olhara aturdida para o banqueiro, que depois de um momento acrescentara: — Se quiser, eu a acompanharei à polícia e servirei como seu intérprete. Mas achamos que deveríamos primeiro ouvir seus desejos a respeito. Passou por momentos terríveis... e está sozinha aqui, em Tuen Mun, por razões que é a única a conhecer. — Não vou apresentar acusações, Sr. Jitai — murmurara Marie. — Estou bem, e a vingança não é uma alta prioridade para mim. — É para nós, madame. — Como assim? — Seus agressores levarão nossa vergonha para seus leitos nupciais, onde seus desempenhos serão inferiores ao que se poderia esperar. — Entendo. Eles são jovens... — Esta manhã, pelo que descobrimos, não foi a primeira agressão que cometeram. Eles são repulsivos, e é preciso lhes dar uma lição. — Esta manhã? Oh, Deus, que horas são? Há quanto tempo estou aqui? O banqueiro olhara para o relógio. — Quase uma hora. — Tenho de voltar ao apartamento... imediatamente. É muito importante.
— As mulheres desejam remendar suas roupas. São excelentes costureiras e não vai demorar muito. Mas acharam que você não deveria acordar sem as roupas. — Não tenho tempo. Preciso voltar agora. Oh, Deus! Não sei onde fica e não tenho o endereço! — Sabemos qual é o prédio, madame. Uma mulher branca, alta e atraente, sozinha em Tuen Mun não passa desapercebida. Vamos levá-la para lá imediatamente. O banqueiro se virara e falara num chinês rápido, na direção de uma porta entreaberta por trás dele, enquanto Marie sentava. Percebera as muitas pessoas que a espiavam. Levantara-se, sentindo muita dor nos pés, cambaleando um pouco, mas logo encontrando o ponto de equilíbrio, juntando as dobras da blusa rasgada. A porta fora puxada e duas mulheres mais velhas entraram, cada uma carregando uma peça de seda colorida. A primeira parecia um quimono e foi gentilmente descida pela cabeça de Marie, cobrindo a blusa rasgada e boa parte da calça verde toda suja. A segunda era uma faixa comprida e larga, que envolveu sua cintura e foi amarrada, também com delicadeza. Apesar de muito tensa, Marie constatara que as peças eram bastante refinadas. — Vamos, senhora — dissera o banqueiro, pondo a mão em seu cotovelo. — Eu a acompanharei. Eles deixaram a loja, Marie acenando com a cabeça e tentando sorrir, enquanto os homens e mulheres lhe faziam uma reverência, com evidente tristeza nos olhos escuros. Ela voltara ao pequeno apartamento, tirara o lindo quimono e a faixa e deitara na cama, procurando encontrar sentido onde não havia qualquer razão. Agora, comprimiu o rosto contra o travesseiro, tentando afastar da mente as imagens horríveis daquela manhã. Mas não havia como expurgar o horror. Em vez disso, só conseguiu aumentar o suor que porejava de seu corpo; quanto mais firmemente fechava os olhos, mais violentas as imagens se tornavam, misturando-se com as lembranças terríveis de Zurique, no Guisan Quai, quando um homem chamado Jason Bourne salvara sua vida. Sufocou um grito e levantou-se da cama de um pulo, ficando imóvel, tremendo. Depois, foi para a pequena cozinha e abriu a torneira, estendendo a mão para um copo. O jato de água era fraco e fino, e ela ficou olhando distraidamente enquanto o copo enchia, a mente longe dali. Há momentos em que as pessoas devem pôr suas cabeças na água fria... Deus sabe que faço isso com mais freqüência do que deveria, sendo um psiquiatra relativamente respeitado... As coisas nos engolfam... precisamos dar uma ordem a nossos atos. Morris Panov, amigo de Jason Bourne. Fechou a torneira, bebeu a água morna e voltou ao cômodo sufocante, que servia ao mesmo tempo para deitar, sentar, e andar de um lado para outro. Parou na porta e olhou ao redor, sabendo o que achava tão grotesco em seu santuário. Era uma cela, tão certamente como se fosse em prisão remota. Pior ainda, era uma autêntica forma de confinamento solitário. Estava outra vez isolada com seus pensamentos, com seus terrores. Foi até a janela, como uma prisioneira poderia fazer, e olhou para o mundo lá fora. E viu uma extensão da cela; também não seria livre na rua fervilhante lá embaixo. Era
um mundo que não conhecia e que não a acolhia bem. Mesmo eliminando a loucura obscena da manhã na praia, era uma intrusa, que não compreendia nem podia ser compreendida. Estava sozinha, e a solidão a enlouquecia. Atordoada, Marie continuou a olhar para a rua. A rua? Lá estava ela! Catherine! Parada junto com um homem, ao lado de um carro cinza, as cabeças viradas, observando três outros homens, dez metros atrás, junto a um segundo carro. Todos os cinco eram gritantemente óbvios, por serem diferentes de todas as outras pessoas na rua. Eram ocidentais num mar de chineses, estranhos num lugar estranho. Estavam obviamente excitados, preocupados com alguma coisa, acenando com as cabeças a todo instante, olhando em todas as direções, especialmente para o outro lado da rua. Para o prédio de apartamentos. Três dos homens tinham os cabelos rentes... cortes militares... fuzileiros. Fuzileiros americanos! O companheiro de Catherine, um civil, a julgar pelos cabelos, falava depressa, o dedo indicador espetando o ar... Marie o conhecia! Era o homem do Departamento de Estado, o homem que fora procurá-los no Maine! O subsecretário de olhos mortos, que não parava de esfregar as têmporas e mal protestara quando David dissera que não confiava nele. Era McAllister! Era esse o homem que Catherine dissera que ela deveria encontrar! Subitamente, pedaços abstratos e terríveis do quebra-cabeça se ajustaram nos lugares, enquanto Marie observava a cena lá embaixo. Dois fuzileiros junto ao segundo carro atravessaram a rua e se separaram. O terceiro falou por um instante com McAllister e depois se afastou apressadamente para a direita, tirando do bolso um pequeno rádio. Catherine disse alguma coisa ao subsecretário de Estado e olhou para o prédio. Marie saiu da janela. Estarei sozinha, não haverá ninguém comigo. Muito bem. Era uma armadilha. Catherine Staples fora alcançada. Não era uma amiga, mas uma inimiga. Marie sabia que tinha de escapar. Pelo amor de Deus, fuja daqui! Pegou a bolsa branca com o dinheiro e, por uma fração de segundo, olhou para as peças de seda que ganhara na loja. Pegou-as também e deixou o apartamento. Havia dois corredores, um se estendendo por toda a largura do prédio, na frente, com uma escada à direita descendo para a rua, o outro cortando o primeiro e formando um T invertido, conduzindo a uma porta nos fundos. Era uma segunda escada, usada para se levar o lixo aos latões no beco nos fundos. Catherine comentara a respeito ao chegarem, explicando que havia uma lei que proibia o lixo na rua, que era a principal artéria de Tuen Mun. Marie correu para a porta dos fundos e abriu-a. Soltou uma exclamação de espanto ao deparar com um velho encurvado, segurando uma vassoura de palha. Ele estreitou os olhos por um instante, sacudindo a cabeça, a expressão de intensa curiosidade. Marie saiu para o patamar escuro, enquanto o chinês entrava; ela manteve a porta entreaberta, esperando pela aparição de Catherine emergindo da escada da frente. Se Catherine, encontrando o apartamento vazio, voltasse rapidamente à escada e descesse para a rua, ao encontro de McAllister e do de fuzileiros, Marie poderia voltar ao apartamento e pegar as roupas que haviam comprado. Em seu pânico, pensara nelas apenas de passagem, limitando-se a pegar as sedas, sem se atrever a perder momentos preciosos
em vasculhar o armário, onde Catherine as pendurara, junto com diversas outras roupas. Não podia andar e muito menos correr pelas ruas numa blusa rasgada e calça comprida enlameada. Havia alguma coisa errada. Era o velho! Ele estava parado ali, olhando pela fresta da porta. — Vá embora!— sussurrou Marie. Passos. O barulho de saltos altos subindo depressa pela escada de metal na frente do prédio. Se era Staples, passaria pelo cruzamento dos corredores, a caminho do apartamento. — Deng yi deng! — gritou o velho chinês, ainda parado imóvel com a vassoura, fitando-a fixamente. Marie fechou ainda mais a porta, mal conseguindo ver através de um centímetro de espaço. Catherine apareceu, olhando por um instante para o velho, curiosa, aparentemente tendo ouvido sua voz estridente e irritada. Sem hesitar, ela continuou pelo corredor, concentrada apenas em chegar ao apartamento. Marie esperou; as batidas em seu peito pareciam ressoar pelo escuro poço da escada. E depois as palavras soaram, gritadas em histeria: — Não! Marie! Onde você está? O barulho dos passos foi mais alto agora, de gente correndo pelo cimento. Catherine apareceu no cruzamento dos corredores, avançando para o velho chinês e a porta... avançando em sua direção! — Marie, não é o que você pensa! Pelo amor de Deus, pare! Marie Webb virou-se e desceu correndo os degraus escuros. Subitamente, um facho amarelo de raios do sol subiu pela escada, para desaparecer no instante seguinte. A porta do andar térreo, três andares abaixo, fora aberta; um vulto de terno escuro entrara apressado, um fuzileiro ocupando seu posto. O homem subiu correndo; Marie agachou-se no patamar do segundo andar. O fuzileiro chegou ao último degrau, preparou-se para dar a volta, a mão no corrimão. Marie arremeteu para a frente, a mão com as peças de seda atingindo o rosto do atônito fuzileiro, desequilibrando-o; bateu com o ombro no peito do homem, empur rando-o para trás, e ele rolou a escada. Marie passou pelo corpo nos degraus, enquanto ouvia os gritos lá de cima: — Marie! Marie! Sei que é você!’ Pelo amor de Deus, escute-me! Ela saiu para o beco, e outro pesadelo iniciou seu curso pavoroso, à luz do sol ofuscante de Tuen Mun. Correndo pela viela por trás dos prédios, os pés agora sangrando nas chinelas, Marie enfiou pela cabeça o traje que parecia um quimono e parou junto a uma fileira de latas de lixo, tirando a calça comprida verde e jogando-a na mais próxima. Passou a faixa pela cabeça, cobrindo os cabelos, e correu para a passagem seguinte, que levava à rua principal. Segundos depois emergiu na massa de humanidade que era uma fatia de Hong Kong na nova fronteira da colônia. Atravessou a rua. — Ali! — gritou uma voz de homem. — A alta! A perseguição recomeçou, mas abruptamente, sem qualquer indicação, era diferente. Um
homem correu pela calçada em seu encalço, subitamente detido por uma carrocinha bloqueando o caminho; ele tentou empurrá-la para o lado, apenas para pôr as mãos em panelas escondidas com gordura fervendo. Soltou um grito, virando a carrocinha, enfrentando agora os gritos estridentes do proprietário, obviamente exigindo pagamento, enquanto acuava o fuzileiro junto com outros, forçando-o para o meio-fio. — Lá está a puta! Marie ouviu as palavras; tinha pela frente uma falange de mulheres fazendo compras. Virou à direita e correu por outra viela, só para descobrir que era um beco sem saída, que terminava no muro de um templo chinês. E aconteceu de novo! Cinco jovens — adolescentes em trajes paramilitares — apareceram subitamente de uma porta e gesticularam para que ela passasse. — Criminoso ianque! Ladrão ianque! Os gritos soavam na cadência de uma língua estrangeira ensaiada. Os jovens se deram os braços e interceptaram sem violência o homem de cabelos aparados, empurrando-o contra uma parede. — Saiam da minha frente, seus miseráveis! — gritou o fuzileiro. — Saiam da minha frente ou vou acabar com todos vocês, seus pirralhos! — Levante os braços... ou largue a arma — gritou uma voz por trás. — Eu nunca disse que estava armado! — protestou o guarda de Victoria Peak. — Mas se sacar uma arma — insistiu a voz —, eles vão entrar em ação, e cinco Di-di Jing Cha... treinados por nossos amigos americanos... certamente serão capazes de dominar um homem. — Mas que diabo, senhor! Estou apenas tentando cumprir o meu dever! E não é da conta de vocês! — Lamento, senhor, mas é, sim. Por razões que você não conhece. — Merda! O fuzileiro encostou-se na parede, esbaforido, olhando para os jovens rostos risonhos à sua frente. — Lai! — disse uma mulher a Marie, apontando para uma porta larga, de formato estranho, sem qualquer maçaneta visível, no que parecia ser um exterior espesso e impenetrável. Xiaoxin. Ca-dado. — Cuidado? Eu entendi. Um vulto de avental abriu a porta, e Marie entrou correndo, sentindo no mesmo instante as lufadas de ar frio. Estava num pequeno frigorífico, com carcaças de carne penduradas em ganchos, à luz de lâmpadas envoltas por grades, uma cena fantasmagórica, O homem de avental esperou um minuto inteiro, o ouvido encostado na porta. Marie passou a larga faixa de seda pelo pescoço e cruzou os braços
para se proteger do frio intenso, agravado pelo contraste com o calor sufocante lá fora. Finalmente, o homem gesticulou para que ela o seguisse. Marie obedeceu, esgueirando-se por entre as carcaças até a entrada do frigorífico. O chinês acionou uma alavanca de metal e abriu a pesada porta, acenando com a cabeça para Marie, que estava tremendo. Ela passou e descobriu-se num açougue comprido e estreito, as persianas de bambu nas janelas da frente filtrando o sol de meio-dia. Um homem de cabelos brancos estava parado por trás do balcão, junto à janela da direita, espiando pelas persianas para a rua lá fora. Fez sinal para que Marie se aproximasse dele. Novamente ela obedeceu, notando uma coroa floral de formato estranho por trás do vidro da porta da frente, que parecia trancada. O homem mais velho gesticulou para que Marie olhasse pela janela. Ela entreabriu as persianas e soltou uma exclamação abafada de espanto, aturdida com a cena lá fora. A busca se encontrava em seu auge frenético. O fuzileiro com as mãos escaldadas não parava de sacudi-las no ar, enquanto seguia de uma loja para outra. Avistou Catherine Staples e McAllister empenhados numa discussão acalorada com uma multidão de chineses, que obviamente protestavam contra os estrangeiros que se atreviam a perturbar a vida pacífica embora febril de Tuen Mun. McAllister, em seu pânico, aparentemente gritara alguma coisa ofensiva e estava sendo enfrentado por um homem que tinha o dobro de sua idade, vestindo um traje oriental e contido pelos mais jovens e mais controlados. O subsecretário de Estado recuou, os braços levantados, alegando inocência, enquanto Staples gritava em vão, nos seus esforços para desvencilhar os dois da multidão irada. Subitamente, o fuzileiro com as mãos feridas saiu voando por uma porta no outro lado da rua, o vidro estilhaçado se espalhando em todas as direções, enquanto ele rolava pela calçada, gritando de dor quando as mãos escaldadas tocaram no cimento. Em sua perseguição surgiu um jovem chinês, de túnica branca, faixa e calça até os joelhos de instrutor de artes marciais. O fuzileiro levantou-se de um pulo, e quando o adversário oriental chegou perto, atingiu-o com um gancho na altura dos rins, seguido por uma direita bem encaixada no rosto, jogando o instrutor de artes marciais de volta à loja, enquanto gritava em agonia pela dor que os golpes causaram em suas mãos escaldadas. Um último fuzileiro de Victoria Peak desceu correndo pela rua, claudicando, os ombros vergados, como se machucado de uma queda... uma queda por um lance de escada, pensou Marie, observando espantada. Ele foi em socorro de seu aflito companheiro e se mostrou bastante eficaz. As tentativas amadorísticas de combate pelos discípulos uniformizados do inconsciente instrutor de artes marciais foram recebidas por uma saraivada de chutes, cuteladas e rodopios de um perito em judô. Outra vez abruptamente, sem qualquer aviso, os acordes cacofônicõs de música oriental espalharam-se pela rua, os pratos e instrumentos de madeira primitivos alcançando crescendos a cada passada da banda maltrapilha que avançava pela rua, os seguidores carregando cartazes enfeitados com flores. A luta cessou, braços retidos por toda parte. O silêncio espalhou-se pela principal artéria comercial de Tuen Mun. Os americanos estavam confusos; Catherine Staples reprimiu sua frustração, e Edward McAllister levantou as mãos em exasperação. Marie ficou observando, literalmente hipnotizada pela mudança lá fora. Tudo parou, como se um basta tivesse sido ordenado pelo anúncio de alguma presença sepulcral que não podia ser contestada. Mudou o ângulo de visão por trás da persiana de bambu e observou o grupo maltrapilho que se aproximava. Era liderado pelo banqueiro Jitai! E se encaminhava para o açougue!
Marie observou Catherine Staples e McAllister passarem correndo pela estranha concentração diante do açougue. E um momento depois, no outro lado da rua, os dois fuzileiros retomaram a caçada. E todos desapareceram à luz do sol ofuscante. Houve uma batida na porta da frente do açougue. O velho de cabelos brancos removeu a coroa e abriu-a. O banqueiro, Jitai, entrou e fez uma reverência para Marie, indagando: — Gostou do desfile, senhora? — Eu não sabia direito o que era. — Uma marcha fúnebre pelos mortos. Neste caso, sem dúvida, pelos animais abatidos no frigorífico do Sr. Woo. — Mas... foi tudo planejado? — Pode-se dizer que nos encontrávamos em estado de prontidão — explicou Jitai. — Freqüentemente nossos primos do Norte conseguem atravessar a fronteira... não os ladrões, mas membros da famíiia que desejam se juntar aos seus... e os soldados querem detê-los e mandá-los de volta. Devemos estar preparados para proteger os nossos. — Mas eu?... Como sabia? — Observamos... e esperamos. Estava se escondendo, fugindo de alguém, até aí sabíamos. Foi o que disse quando falou que não queria procurar o magistrado para “apresentar acusações”, como a senhora mesma falou. E foi orientada para a viela lá fora. — A barreira de mulheres com sacolas de compras... — Isso mesmo. Atravessaram a rua ao mesmo tempo que a senhora. Devemos ajudá-la. Marie olhou para os rostos ansiosos da multidão na rua e depois tornou a fitar o banqueiro. — Como sabe que não sou uma criminosa? — Isso não importa. O atentado de que foi vítima, de dois de nossa gente, é tudo o que importa. Além disso, senhora, não parece nem fala como fugitiva da justiça. — E não sou. Mas preciso de ajuda. Tenho de voltar a Hong Kong, a um hotel onde não possam me encontrar, onde haja um telefone que eu possa usar. Não sei quem, mas preciso entrar em contato com pessoas que possam me ajudar... ajudar a nós. — Marie fez uma pausa, os olhos fixados nos de Jitai. — O homem chamado David é meu marido. — Posso compreender. Mas, primeiro, tem de ir a um médico. — O quê?
— Seus pés estão sangrando. Marie baixou os olhos. O sangue vazara pelas ataduras, penetrando na lona das chinelas. As manchas vermelhas eram enormes. — Acho que tem razão. — E depois providenciaremos roupas, transporte... eu mesmo arrumarei um hotel, sob qualquer nome que desejar. E há a questão do dinheiro. Dispõe de recursos? — Não sei — respondeu Marie, pondo as sedas no balcão e abrindo a pequena bolsa branca. — Isto é, ainda não verifiquei. Uma amiga... alguém que eu pensava ser amiga... deixou-me dinheiro. Ela tirou as notas que Staples pusera na bolsa. — Não somos ricos aqui em Tuen Mun, mas talvez possamos ajudar. Falou-se em uma coleta. — Não sou uma mulher pobre, Sr. Jitai. Se for necessário e, para falar francamente, se eu estiver viva, tudo será reembolsado, com juros muito superiores aos do mercado. — Como achar melhor. Sou um banqueiro. Mas o que uma dama tão adorável sabe de juros de mercado? Jitai fez a pergunta sorrindo, e Marie respondeu prontamente: — O senhor é banqueiro e eu sou economista. O que os banqueiros sabem sobre os impactos das flutuações de câmbio causados por juros inflacionados, especialmente nas prime rates? Marie também sorriu, pela primeira vez em muito tempo. Teve mais de uma hora para pensar, na tranqüilidade dos campos, sentada no táxi que a levava de volta a Kowloon. Levaria mais quarenta e cinco minutos depois que alcançassem os subúrbios não tão tranqüilos, particularmente um congestionado distrito chamado Mongkok. Os contritos habitantes de Tuen Mun haviam sido não apenas generosos e protetores, mas também inventivos. O banqueiro Jitai aparentemente confirmara que a vítima dos arruaceiros era de fato uma mulher branca se escondendo e fugindo para salvar a vida, estava prestes a se encontrar com pessoas que poderiam ajudá-la e talvez fosse possível alterar sua aparência. Roupas ocidentais foram trazidas de várias lojas, roupas que pareceram muito estranhas a Marie; davam a impressão de serem insípidas e utilitárias, impecáveis mas lúgubres. Não eram ordinárias, mas o tipo de roupas que seriam escolhidas por uma mulher que não tinha o menor senso de elegância ou se sentia acima dessas coisas. Depois de uma hora na sala dos fundos de um salão de beleza, no entanto, ela compreendera por que tais roupas haviam sido escolhidas. As mulheres se movimentavam ao seu redor, lavando e secando seus cabelos; quando o processo terminou, ela se contemplou no espelho, mal se atrevendo a respirar. O rosto — contraído, pálido e cansado — não estava mais emoldurado pelos deslumbrantes cabelos castanho-avermelhados, mas sim por um castanho opaco, com leves traços brancos. Envelhecera mais de dez anos; era uma extensão do que tentara depois de escapar do hospital; só que muito mais arrojada, muito mais completa. Era a
imagem chinesa da turista de classe média superior, séria, sisuda —provavelmente uma viúva —, que dava instruções taxativamente, contava seu dinheiro e nunca ia a parte alguma sem o guia turístico na mão, consultando-o constantemente, em cada lugar visitado, no itinerário bem organizado. Os habitantes de Tuen Mun conheciam muito bem as turistas assim, e o retrato ficou acurado. Jason Bourne aprovaria. Contudo, havia outros pensamentos que a absorviam na viagem para Kowloon, pensamentos desesperados, que ela tentava controlar e manter em perspectiva, repelindo o pânico que poderia tão facilmente engolfá-la, levando-a a agir errado, a tomar uma iniciativa errada que poderia prejudicar David... matar David. Oh, Deus, onde você está? Como posso encontrá-lo? Como? Vasculhou a memória à procura de alguém que pudesse ajudá-la, rejeitando cada rosto e cada nome que aflorava, porque de um jeito ou de outro fora parte daquela horrível estratégia tão sinistramente chamada de além da salvação — a morte de um indivíduo como a única solução aceitável. Exceto, é claro, Morris Panov. Mas Mo era um pária aos olhos do governo, chamara os carrascos oficiais por seus legítimos nomes: incompetentes e assassinos. Ele não conseguiria chegar a parte alguma e possivelmente acarretaria uma segunda ordem para além da salvação. Além da salvação... Um rosto surgiu, um rosto com lágrimas escorrendo pelas faces, abafados gritos de misericórdia, em sua voz trêmula, um amigo outrora íntimo de um jovem diplomata, sua esposa e filhos, num remoto posto avançado chamado Phnom Penh. Conklin! Seu nome era Alexander Conklin! Durante a longa convalescença de David, ele tentara insistentemente visitar seu marido. Mas David recusara, garantindo que mataria o homem da CIA no instante em que ele passasse pela porta. O aleijado Conklin levantara, errada e estupidamente, acusações contra David, sem dar ouvidos às súplicas de um homem com amnésia; em vez disso, presumira traição... e tentara matar David pessoalmente, nos arredores de Paris. E, finalmente, efetuara uma última tentativa, na Rua 71, em Nova York, numa casa segura conhecida como Casa de Pedra 71, e quase conseguiu. Quando a verdade sobre David se tornara conhecida, Conklin ficara consumido pelo sentimento de culpa, abalado pelo que fizera. Marie sentira pena dele, pois sua angústia era genuína, o sentimento de culpa, devastador. Ela conversara com Alex, tomando um café na varanda, mas David nunca o recebera. Era o único em quem Marie podia pensar que fazia algum sentido. O hotel se chamava Empress, na Chatham Road, em Kowloon. Era um hotel pequeno, no apinhado Tsim Sha Tsui, freqüentado por uma mistura de culturas, nem ricos nem pobres, de um modo geral vendedores do Oriente e Ocidente, que tinham negócios a tratar, sem a generosidade das verbas de representação dos executivos maiores. O banqueiro Jitai cumprira a promessa; um quarto de solteiro fora reservado para uma Sra. Austin, Penelope Austin. O “Penelope” fora idéia de Jitai, que lera muitos romances ingleses; Penelope parecia “perfeitamente apropriado”. Que assim seja, como Jason Bourne teria dito, pensara Marie. Ela sentou-se na beira da cama e estendeu a mão para o telefone, sem saber o que dizer, mas convencida de que precisava falar de qualquer maneira. — Preciso do telefone de uma pessoa em Washington, D. C., nos Estados Unidos.— disse ela à telefonista. — É uma emergência.
— Há uma taxa para informações do exterior. — Pode cobrar. É urgente. Ficarei na linha. Algum tempo depois, uma voz sonolenta balbuciou: — Alô? — Alex, aqui é Marie Webb. — Mas onde você está? Onde estão vocês dois? Ele encontrou você! — Não sei do que está falando. Não o encontrei e ele não me encontrou. Sabe o que está acontecendo? — Quem você pensa que quase me quebrou o pescoço quando voou para Washington na semana passada? David! Mantenho um alerta em todos os telefones porque ele pode entrar em contato comigo. O mesmo acontece com Mo Panov. Onde você está? — Hong Kong... acho que Kowloon. Empress Hotel, sob o nome de Austin. David procurou você? — E a Mo. Ele e eu recorremos a todos os truques para descobrir o que está acontecendo e deparamos com uma muralha de pedra. Não, retiro o que disse... a verdade é que ninguém mais sabe o que está acontecendo. Eu saberia se alguém soubesse. Santo Deus, Marie, não tomo um drinque desde a última quinta-feira! — Eu não sabia que está sentindo falta. — E sinto muita. O que está acontecendo? Marie relatou tudo, inclusive a marca inconfundível da burocracia do governo em seus captores, a fuga e a ajuda prestada por Catherine Staples, que se transformara numa armadilha, preparada por um homem chamado McAllister, a quem ela vira na rua com Staples. — McAllister? Você o viu? — Ele está aqui, Alex. Quer me recapturar. Comigo, ele controla David e vai matá-lo! Já tentaram antes! Houve uma pausa na linha, uma pausa repleta de angústia. Depois, Conklin disse, suavemente: — Nós tentamos antes... mas isso foi antes, não agora. — O que eu posso fazer? — Fique onde está. Pegarei o primeiro avião para Hong Kong. Não saia do quarto. Não dê mais nenhum telefonema. Estão procurando por você. Só podem estar.
— David está por aí, Alex! O que quer que o obrigaram a fazer por minha causa, estou apavorada. — Delta foi o melhor homem que prepararam em Medusa. Ninguém melhor jamais esteve em ação. Eu sei disso. Eu vi. — É um dos aspectos, e me condicionei a viver com isso. Mas está esquecendo o outro aspecto, Alex. A mente! O que vai acontecer com sua mente? Conklin fez outra pausa; quando tornou a falar, o tom era pensativo: — Levarei um amigo... um amigo de todos nós. Mo não vai recusar. Tome cuidado, Marie. Chegou o momento para uma confrontação... e, por Deus, é o que eles vão ter!
Capítulo 23 — Quem é você? —gritou Bourne, num frenesi, agarrando o velho pela garganta e comprimindo-o contra a parede. — Delta, pare com isso! — ordenou d’Anjou. — Sua voz! As pessoas vão ouvir! E vão pensar que você o está matando! Podem chamar a recepção! — Posso matá-lo, e os telefones não funcionam! Jason largou o impostor do impostor, soltou sua garganta, mas agarrou a frente de sua camisa, rasgando-a ao empurrá-lo para uma cadeira. — A porta! — acrescentou d’Anjou, a voz firme, irritada. — Ponha no lugar da melhor forma que puder, pelo amor de Deus. Quero sair vivo de Pequim e cada segundo com você diminui minhas perspectivas. A porta! Meio enlouquecido, Bourne virou-se bruscamente, pegou a porta arrombada e empurrou-a para a moldura, ajustando nos lados e empurrando para o lugar com um chute. O velho massageava a garganta e de repente tentou se levantar de um pulo. — Non, mon ami! — disse o Francês, bloqueando-o. — Fique onde está. Não se preocupe comigo, apenas com ele. Pode estar certo de que ele é realmente capaz de matá-lo. Em sua raiva, ele não tem o menor respeito pelos anos áureos. Mas como estou quase chegando lá, eu tenho. — Raiva? Isto é uma afronta! — balbuciou o velho, tossindo as palavras. — Lutei em El Alamein e juro que lutarei de novo agora! O velho tentou de novo sair da cadeira, e d’Anjou tornou a empurrá-lo de volta, enquanto Jason se aproximava. — Ah, o britânico estoicamente heróico — comentou o Francês. — Pelo menos teve a cortesia de não dizer Agincourt. — Pare com essas besteiras! — berrou Bourne, empurrando d’Anjou para o lado e inclinando-se sobre a cadeira, pondo as mãos nos braços e comprimindo o velho contra o assento. — Diga-me onde ele está e depressa, ou pode desejar nunca ter saído de El Alamein! — Onde está quem, seu maluco? — Você não é o homem lá de baixo! Não é Joseph Wadsworth subindo para o quarto 325! — Este é o quarto 325 e eu sou Joseph Wadsworth! Brigadeiro, reformado, Corpo Real de Engenharia! — Quando se registrou?
— Na verdade, fui poupado desses detalhes — respondeu Wadsworth, altivamente. — Como hóspede oficial do governo, gozo de certas cortesias. Fui acompanhado pela alfândega e trazido diretamente para o quarto. E devo dizer que o serviço de quarto é péssimo... afinal, não estamos no Connaught... e o telefone não funciona. — Perguntei quando! — Ontem à noite. Mas como o avião atrasou seis horas, acho que deveria dizer esta madrugada. — Quais eram as suas instruções? — Creio que isso não é de sua conta. Bourne tirou a espátula de latão do cinto e encostou a ponta afiada na garganta do velho. — É, sim, se quer sair vivo desta cadeira. — Oh, Deus, você é mesmo um louco! — Está absolutamente certo, e não tenho muito tempo para sanidade. Na verdade, não tenho tempo nenhum. As instruções! — São bastante inofensivas. Deveriam vir me buscar por volta de meio-dia e já passa das três. Pode-se presumir que o governo da República Popular não dá muita atenção ao relógio, da mesma forma que sua empresa aérea. D’Anjou tocou no braço de Bourne, murmurando: — O avião das onze e meia. Ele é a isca e não sabe de nada. — Então o seu Judas está em outro quarto — respondeu Jason. — Tem de estar! — Não diga mais nada. Ele será interrogado. — Com súbita e inesperada autoridade, D’Anjou empurrou Bourne para o lado e falou no tom impaciente de um oficial superior: — Pedimos desculpa pela inconveniência, Brigadeiro. Este é o terceiro quarto que arrombamos... e descobrimos o nome de cada ocupante para um interrogatório de choque. — Como assim? Não estou entendendo. — Alguém entre quatro hóspedes neste andar contrabandeou narcóticos no valor de mais de cinco milhões de dólares. Como não foram os três primeiros, já sabemos quem é o nosso homem. Sugiro que faça a mesma coisa que os outros. Diga que o seu quarto foi arrombado por um bêbado furioso, revoltado com as acomodações... é o que eles estão dizendo. Há muita coisa acontecendo por aqui e é melhor não ficar sob suspeita, nem mesmo por associação indevida. O governo daqui muitas vezes reage com exagero. — Eu não gostaria que isso acontecesse — balbuciou Wadsworth. — A pensão já é bastante pequena e mal dá para sobre viver. Isso me prejudicaria muito.
— A porta, Major — ordenou d’Anjou, dirigindo-se a Bourne. — Cuidado. Tente mantê-la de pé. Virando-se de novo para o inglês, ele acrescentou: — Levante-se e segure a porta, Brigadeiro. Basta deixá-la encostada e nos dar vinte minutos para pegar nosso homem. Depois, pode fazer o que bem quiser. Não se esqueça, um bêbado num acesso de raiva. Para o seu próprio bem. — Está bem, está bem. Um bêbado. Num acesso de raiva. — Vamos embora, Major. Lá fora, no corredor, eles pegaram as bolsas e se encaminharam rapidamente para a escada. — Depressa! — disse Bourne. — Ainda há tempo. Ele tem de mudar... eu teria de fazê-lo! Vamos vigiar as entradas, os pontos de táxi, escolher os dois lugares mais lógicos... ou os mais ilógicos. Ficaremos neles, comunicando-nos por sinais. — Primeiro, ainda há duas portas — interrompeu-o d’Anjou, ofegante. — Neste corredor. Aja depressa. Arrombe-as, gritando palavras insultuosa a voz engrolada. — Está falando sério? — Claro que estou, Delta. Como já constatamos, a explicação é perfeitamente plausível, e o embaraço vai limitar qualquer investigação formal. A gerência certamente persuadirá nosso brigadeiro a ficar de boca fechada. Eles poderiam perder seus bons empregos. Vamos, depressa! Escolha a porta e faça o trabalho! Jason parou na porta seguinte, à direita. Preparou-se, depois arremeteu em sua direção, batendo com o ombro no frágil painel superior. A porta foi arrombada. — Madad demaa! — gritou uma mulher em hindi, o sári baixado nos pés. — Kyaa baat ha — berrou um homem nu, saindo do banheiro e cobrindo apressadamente os órgãos genitais. Os dois ficaram olhando aturdidos para o intruso desvairado, que cambaleou com os olhos desfocados, derrubando as coisas na cômoda e gritando com voz áspera: — Hotel nojento! Os banheiros não funcionam, os telefones não funcionam! Nada funciona... Ei, este não é o meu quarto! Dexxculpem! Bourne saiu, batendo a porta. — Foi ótimo. Eles tinham problemas com a fechadura. Mais uma, depressa. Esta! — D’Anjou apontou para uma porta à esquerda. — Ouvi risos lá dentro. Duas vozes.
Jason tornou a arrombar uma porta, rugindo sua queixas de bêbado. Em vez, de deparar com dois hóspedes aturdidos, no entanto, ele encontrou um jovem casal, nus da cintura para cima, cada um com seu cigarro feito à mão, tragando fundo, os olhos vidrados. — Seja bem-vindo, vizinho — disse o jovem americano, a dicção precisa, embora a voz estivesse acelerada. — Não deixe que os problemas o perturbem assim. Os telefones não funcionam, mas o nosso está ligando. Pode usá-lo, partilhá-lo. Só não deve é se manter tão tenso. — O que vocês estão fazendo em meu quarto? — berrou Jason, parecendo ainda mais embriagado, engrolando a voz de tal maneira que as palavras eram quase ininteligíveis. — Se este é o seu quarto, machão — interveio a moça, mexendo-se na cadeira — estava se divertindo com coisas muito íntimas, ao contrário de nós. Ela soltou uma risadinha. — Oh, Deus, vocês estão drogados! — E não use o nome do Senhor em vão — protestou o rapaz. Você está no maior porre. — Não acreditamos no álcool — acrescentou a moça. — Produz hostilidade. Aflora à superfície, como os demônios de Lúcifer. — Trate de se desintoxicar, vizinho — continuou o rapaz, em tom jovial. — E depois passe a consumir o saudável fumo. Vai levá-lo a campos em que tomará a encontrar sua alma... Bourne saiu apressado do quarto, bateu a porta e pegou o braço de d’Anjou. — Vamos embora! — Perto da escada, acrescentou: — Se a história que você contou ao brigadeiro circular, aqueles dois vão passar os próximos vinte anos cuidando de ovelhas na Mongólia Exterior. A tendência chinesa para a vigilância atenta e a segurança intensa exigia que o hotel do aeroporto tivesse uma única entrada grande para os hóspedes, na frente, e uma segunda para os empregados, no lado. Esta era vigiada por guardas uniformizados, que verificavam os documentos de todos, revistavam bolsas, sacolas e bolsos estufados dos empregados que deixavam o trabalho. A ausência de familiaridade entre os guardas e os empregados sugeria que os primeiros eram trocados com freqüência, aumentando a distância entre subornados e subornadores em potencial. — Ele não vai correr qualquer risco com os guardas — comentou Jason, depois de passarem pela saída dos empregados, as bagagens revistadas apressadamente, sob a alegação de que estavam atrasados para pegar um avião. — Parece que estão atentos para pegar qualquer um que roube uma asa de galinha ou um sabonete. — E parece também que detestam intensamente os que trabalham aqui — acrescentou d’Anjou. — Mas por que tem tanta certeza de que o homem
ainda se encontra no hotel? Ele conhece Pequim. Poderia pegar um táxi para outro hotel, outro quarto. — Sem ver a maneira como ele fez no avião, eu lhe disse isso. Ele não admitiria. Eu não admitiria. Ele quer liberdade para circular sem ser reconhecido ou seguido. Precisa disso, para sua proteção. — Se é esse o caso, poderiam estar vigiando seu quarto neste momento. Com os mesmos resultados. Saberiam como ele é. — Se fosse eu... e isso é tudo o que tenho para me basear... ele não estaria lá. Tomou providências para se instalar em outro quarto. — Está se contradizendo — protestou o Francês, enquanto se aproximavam da entrada apinhada do hotel. — Disse que ele receberia instruções pelo telefone. Quem quer que ligue para o quarto que combinaram, certamente não vai falar com o chamariz, não vai falar com Wadsworth. — Se os telefones estiverem funcionando... uma situação que é favorável a nossos Judas, diga-se de passagem... é muito simples transferir as ligações de um quarto para outro. Basta inserir um plugue, se é uma mesa telefônica primitiva, ou alterar a programação, se é computadorizada. Não é tão difícil. Basta alegar uma reunião de negócios, velhos amigos que se encontram no avião... pense o que achar melhor... ou simplesmente não dar explicação alguma, o que provavelmente é o melhor. — Não é possível — declarou d’Anjou. — O cliente aqui em Pequim alertaria as telefonistas. Ele seria localizado através da mesa. — É uma coisa que ele jamais faria. Bourne empurrou o Francês pela porta giratória, saindo para a calçada, atravancada por turistas confusos, tentando arrumar transporte. Passando por uma fila de ônibus pequenos e enferrujados e táxis antigos encostados ao meio-fio, Jason continuou: — É um risco que ele não pode correr. O cliente de seu comando precisa manter o máximo de distância entre os dois. Não pode haver a menor possibilidade de se descobrir uma ligação. Isso significa que tudo está limitado a um círculo mínimo, uma elite, sem contatos com telefonistas, sem chamar atenção para ninguém, muito menos para seu comando. Também não vão se arriscar a vaguear pelo hotel. Ficarão à distância de seu comando, deixarão que ele tome a iniciativa. Há muitos agentes secretos por aqui. Alguém desse círculo de elite poderia ser reconhecido. — Os telefones, Delta. Por tudo o que ouvimos, não estão funcionando. O que ele pode fazer nesse caso? Jason franziu o rosto enquanto andava, como se tentasse recordar o irrecordável. — O tempo está do seu lado, outro ponto favorável. Deve ter instruções secundárias, caso não seja procurado dentro de um prazo determinado depois da chegada... por quaisquer motivos... e podem ser muitas, levando-se em consideração as precauções que eles precisam adotar.
— Nesse caso, ainda estariam vigiando-o, não é? Estariam esperando em algum lugar lá fora para pegá-lo, não é mesmo? — Exatamente. E ele sabe disso. Tem de passar por eles e chegar a seu destino sem ser visto. É a única maneira de manter o controle. A sua primeira providência. D’Anjou segurou o cotovelo de Boume. — Então acho que acabei de localizar um dos vigias. — Como? Jason virou a cabeça, olhando para o Francês e passando a andar mais devagar. — Continue andando — ordenou d’Anjou. — Siga na direção daquele caminhão, o que está quase no meio da rua, com o homem na escada. — Já vi — murmurou Bourne. — É o serviço de conserto telefônico. Permanecendo anônimos na multidão, eles se aproximaram do caminhão. — Levante os olhos. Pareça interessado. Depois olhe para a esquerda. O furgão bem à frente do primeiro ônibus. Está vendo? Jason via e compreendeu no mesmo instante que o Francês estava certo. O furgão era novo e pintado de branco, com vidros escuros nas janelas. Se não fosse pela cor, poderia ser o furgão que pegara o assassino em Shenzen, na fronteira de Lo Wu. Bourne começou a ler os caracteres chineses na porta. — Niao Jing Shan... Por Deus, é o mesmo! O nome não importa... pertence a um santuário de pássaros, o Jing Shan! Em Shenzen era o Chutang, aqui tem outro nome. Como percebeu? — O homem na janela aberta, a última deste lado. Não pode vê-lo muito claramente daqui, mas ele está observando a entrada do hotel. E de certa forma é uma contradição... para um empregado de uma reserva de pássaros. — Por quê? — É um oficial do Exército e de alta patente, a julgar pelo corte da túnica e a óbvia qualidade superior do tecido. O glorioso Exército do Povo está agora recrutando garças para as suas tropas de choque? Ou se trata de um homem ansioso esperando por alguém, que recebeu a ordem de localizar e seguir, usando uma cobertura relativamente aceitável, prejudicada por um ângulo de visão que exige uma janela aberta? — Não posso ir a parte algum sem Eco — disse Jason Bourne, o antigo Delta, o flagelo da Medusa. — Santuários de pássaros... puxa, é bonito! Uma tremenda cortina de fumaça. Remota, pacífica. Um disfarce sensacional.
— Essencialmente chinês, Deita. A máscara justa encobre o rosto injusto. As parábolas confucianas já avisavam. — Não é disso que estou falando. Lá em Shenzen, em Lo Wu, quando perdi o seu pupilo pela primeira vez, ele foi apanhado por um furgão... as janelas com vidros escuros... que também pertencia a um santuário de pássaros do governo. — Como, você disse, um excelente disfarce. — É mais do que isso, Eco. é alguma espécie de marca ou identificação. — Os pássaros são reverenciados na China há séculos — comentou d’Anjou, olhando para Jason com expressão perplexa. — Sempre foram apresentados em suas grandes obras de arte, nas peças de seda. São considerados iguanas para os olhos e o paladar. — Nesse caso, poderiam ser um meio para algo muito mais simples, muito mais prático. — Como assim? — Os santuários de pássaros são enormes reservas. Ficam abertos ao público, mas sujeitos aos controles do governo, como acontece em toda parte. — Onde está querendo chegar, Delta? — Num país em que quaisquer dez pessoas que se opõem à linha oficial têm medo de serem vistas juntas, qual o melhor lugar para encontros do que uma reserva natural, que geralmente se estende por quilômetros e quilômetros? Não há escritórios, casas ou apartamentos sendo vigiados, não há telefones grampeados ou vigilância eletrônica. Apenas inocentes observadores de pássaros, numa nação de amantes dos pássaros, cada um com um passe oficial que lhe permite a entrada mesmo quando o santuário está oficialmente fechado... de dia ou de noite. — De Shenzen a Pequim? Está insinuando uma situação maior do que havíamos julgado — Não importa, pois não nos diz respeito — murmurou Jason, olhando ao redor. — Só ele nos interessa... Temos de nos separar mas permanecer à vista um do outro. Eu vou para... — Não precisa! — interrompeu-o o Francês. — Lá está ele! — Onde? — Volte atrás. Mais perto do caminhão. Em sua sombra. — Qual deles? — O padre afagando a menina — respondeu d’Anjou, de costas para o caminhão, olhando para a multidão na entrada do hotel, o tom amargo. — Um sacerdote... Foi um dos disfarces que o ensinei a usar. Ele mandou fazer em Hong Kong um traje sacerdotal preto, inclusive com uma bênção anglicana costurada na frente, com o nome de um alfaiate de Saville Row. Foi o traje que reconheci. Afinal, fui eu
que o paguei. — Você veio de uma diocese rica. Bourne ficou estudando o homem. Queria acima de qualquer outra coisa sair correndo e alcançálo, subjugá-lo e arrastá-lo para um quarto de hotel, iniciando o caminho de volta para Marie. A cobertura do assassino era boa — mais do que boa — e Jason tentou analisar esse julgamento. Costeletas grisalhas, projetando-se por baixo do chapéu escuro do executor; óculos finos de aros de aço, equilibrados bem baixo no nariz, sobre o rosto lívido. Os olhos eram largos, as sobrancelhas arqueadas, ele demonstrava alegria e espanto pelo que via naquela terra estranha. Tudo era obra de Deus, todos eram filhos de Deus, o que estava indicado em sua atração por uma garotinha chinesa, afagando-lhe a cabeça afetuosamente, sorrindo e acenando com a cabeça graciosamente para a mãe. Era mesmo bom, refletiu Jason, com um respeito relutante. O filho da puta irradiava amor. Era evidente em cada gesto, em cada movimento hesitante, em cada olhar dos olhos gentis. Era um clérigo compadecido, um pastor de seu rebanho. E, como tal, no meio de uma multidão, podia ser observado, mas seria instantaneamente descartado por olhos à procura de um assassino. Bourne lembrou-se de repente. Carlos! O Chacal vestira um traje sacerdotal, as feições morenas latinas por cima do colarinho branco engomado, saindo da igreja em Neuilly-sur-Seine, em Paris. Jason o vira! Haviam se fitado, os olhos se encontraram, cada um sabendo quem era o outro, sem que se dissesse qualquer palavra. Pegue Carlos. Acue Carlos. Caim é por Charlie e Carlos é por Caim! Os códigos explodiam em sua cabeça, enquanto ele corria no encalço do Chacal pelas ruas de Paris... apenas para perdê-lo no tráfego, enquanto um velho mendigo, agachado na calçada, sorria insultuosamente. Mas ali não era Paris, pensou Bourne. Não havia um exército de velhos agonizantes protegendo aquele assassino. Ele pegaria aquele chacal em Pequim. — Fique pronto para entrar em ação! — disse d’Anjou, interrompendo os devaneios de Jason. — Ele está se aproximando do ônibus. — Está lotado — É justamente essa a vantagem. Ele será o último a embarcar. Quem pode ignorar a súplica de um sacerdote apressado? Uma das minhas lições, é claro. Novamente o Francês estava certo. A porta do ônibus pequeno e atulhado começou a fechar, interrompida pelo braço inserido do sacerdote, que também espremeu o ombro e obviamente suplicou ao motorista que tornasse a abrir a porta, já que estava preso ali. A porta foi aberta; o assassino embarcou, e a porta foi fechada outra vez. — É o expresso para a Praça Tian An Men — disse d’Anjou. — Tenho a placa — Vamos pegar um táxi. — Não será fácil, Delta.
— Desenvolvi uma técnica. Bourne afastou-se da sombra do caminhão de conserto telefônico, enquanto o ônibus passava, seguido pelo Francês. Esgueiraram-se pela multidão na frente do hotel do aeroporto e foram andando pela fila de táxi, até o fim. Um último táxi fez a volta e já ia se juntar à fila quando Jason correu para a rua, levantando as mãos, discretamente, O táxi parou e o motorista meteu a cabeça para fora. — Shemma? — Wei! — gritou Bourne, correndo para o motorista e estendendo yuans no valor de cinqüenta dólares americanos. Acrescentou que precisava desesperadamente de ajuda e pagaria bem. — Bi yao bangzhu. — Hao! — exclamou o motorista, pegando o dinheiro. E acrescentou, justificando sua atitude por conta de um turista que subitamente passava mal: — Bingle ba! Jason e d’Anjou embarcaram. O motorista protestou por haver outro passageiro. Bourne largou mais vinte yuans no banco e o homem se acalmou. Fez a manobra para deixar a fila de táxis e pegou o caminho para sair do complexo do aeroporto. — Lá na frente tem um ônibus — disse d’Anjou, inclinando-se para a frente e falando ao motorista numa tentativa desajeitada de se expressar em mandarim. — Pode me compreender? — Sua língua é guanzhou, mas eu entendo. — Está a caminho da Praça Tian An Men. — Que portão? — perguntou o motorista. — Que ponte? — Não sei. Só conheço o número na frente do ônibus. É sete-quatro-dois-um. — Termina com o número um — disse o motorista. — Portão Tian, segunda ponte, entrada da Cidade Imperial. — Há algum estacionamento para os ônibus? — Haverá uma fila de muitos ônibus. Todos lotados. Muita gente. Tian An Men fica apinhada neste ângulo do sol. — Na estrada, temos que ultrapassar o ônibus de que estou falando, o que nos seria muito favorável, pois gostaríamos de estar em Tian An Men antes de sua chegada. Pode dar um jeito? — Sem a menor dificuldade — respondeu o motorista, sorrindo. — Os ônibus são velhos e estão sempre enguiçando. Podemos estar lá vários dias antes de eles chegarem ao portão celestial norte. — Espero que não esteja falando sério — interveio Bourne. — Claro que não, generoso turista. Todos os motoristas são excelentes mecânicos... quando têm
a sorte de localizar seus motores. O motorista riu desdenhosamente e pisou o acelerador. Três minutos depois eles passaram pelo ônibus que transportava o assassino. E quarenta e seis minutos depois chegaram à ponte de mármore branco esculpido sobre a água corrente de um fosso artificial na frente do enorme Portão da Paz Celestial, onde os líderes da China se exibiam na plataforma ampla por cima, aprovando os desfiles de instrumentos de guerra e morte. Além do portão com denominação tão imprópria fica uma das.mais extraordinárias realizações humana de todos os tempos. A Praça Tian An Men. O vórtice eletrizante de Pequim. O que primeiro impressiona o visitante é a imponência de sua vastidão, depois a imensidão arquitetônica do Grande Palácio do Povo, à direita, onde as áreas de recepção podem acomodar até três mil pessoas. O salão de banquetes tem capacidade para mais de cinco mil pessoas sentadas, na enorme “sala de conferências” cabem dez mil pessoas e sobra espaço. No lado oposto do Portão, estendendo-se para as nuvens, há uma torre de pedra de quatro lados, um obelisco montado sobre um terraço de dois andares, com balaustrada de mármore, tudo rebrilhando ao sol, enquanto nas sombras lá embaixo, na gigantesca base da estrutura, estão esculpidas as lutas e triunfos da revolução de Mao. É o Monumento aos Heróis do Povo, Mao ocupando o primeiro lugar no panteão. Há outros prédios, outras estruturas — memoriais, museus, portões e bibliotecas — até onde a vista pode alcançar. Mas, acima de tudo, o olho se impressiona com a vastidão compulsiva do espaço aberto. Espaço e pessoas... e para os ouvidos há algo mais, totalmente inesperado. Uma dúzia dos maiores estádios do mundo, todos ofuscando o Coliseu de Roma, podem ser colocados dentro da Praça Tian An Men, sem completar o espaço; centenas de milhares de pessoas podem vaguear pelas áreas abertas e ainda deixar espaço para outras centenas de milhares. Mas há a ausência de um elemento que não faltaria na arena sangrenta de Roma, muito menos tolerada nos grandes estádios contemporâneos do mundo. O som; mal existe, apenas uns poucos decibéis acima do silêncio, entremeado pelas notas suaves de campainhas de bicicletas. O silêncio é a princípio pacífico e depois assustador. É como se um enorme e transparente domo geodésico fosse baixado sobre uma centena de acres, enquanto uma ordem silenciosa, mas compreendida, de um outro reino informa repetidamente aos que estão lá embaixo que se encontram numa catedral. E antinatural, irreal, mas não há hostilidade contra a voz inaudível, apenas aceitação... e isso é ainda mais assustador. Especialmente quando se observa as crianças quietas. Jason observou essas coisas rapidamente, imparcialmente. Pagou ao motorista a quantia marcada no taxímetro e transferiu sua concentração para o objetivo e os problemas que ele e d’Anjou tinham pela frente. Por algum motivo, talvez por ter recebido um telefonema ou porque optara pelas instruções secundárias, o comando estava a caminho da Praça Tien An Men. A pavana começaria com a sua chegada, os passos lentos da dança cautelosa aproximando mais e mais o assassino do representante de seu cliente, com a pressuposição de que o cliente permaneceria fora de vista. Mas não haveria qualquer contato até o impostor estar convencido de que o ponto de encontro se achava limpo. Portanto, o “sacerdote” efetuaria a sua própria vigilância, circulando o ponto de encontro, à procura de possíveis sentinelas armados. Pegaria um guarda, talvez dois, pressionando-os com a ponta de uma faca ou comprimindo um revólver em suas costelas, a fim de arrancar a informação de que precisava; uma falsa expressão nos olhos lhe revelaria que a conferência era um prelúdio para a execução. Finalmente, se tudo parecesse em ordem, ele obrigaria um guarda, sob a ameaça de um revólver, a se aproximar do representante do cliente e lhe apresentar seu ultimato: o cliente em pessoa deveria aparecer e avançar
para a rede do assassino. Qualquer outra coisa era inaceitável; a figura central, o cliente, tinha de ser o ponto de equilíbrio fatal. Um segundo ponto de encontro seria acertado. O cliente chegaria primeiro e, ao menor sinal de uma armadilha, seria liquidado. Era assim que Jason Bourne agiria. E o comando também faria a mesma coisa, se tivesse a metade de um cérebro na cabeça. O ônibus de número 7421 rolou letargicamente para o final da fila de veículos que desembarcava passageiros. O assassino vestido de sacerdote saltou, ajudando uma mulher idosa a descer para a calçada, afagando-lhe a mão e acenando com a cabeça, numa gentil despedida. Então virou-se, encaminhou-se apressado para a traseira do ônibus e desapareceu no outro lado. — Fique dez metros atrás e observe-me — disse Jason. — Faça tudo o que eu fizer. Quando eu parar, você pára; quando eu virar, você vira. Fique no meio da multidão. Vá de um grupo para outro, mas cuide para que sempre haja pessoas ao seu redor. — Tome cuidado, Delta. Ele não é um amador. — Eu também não sou. Bourne correu para a traseira do ônibus, parou e o contornou lentamente, sentindo o calor e os vapores do motor. O padre se encontrava a cerca de cinqüenta metros de distância, e o traje preto era como um farol escuro ao sol nevoento. Com ou sem multidão, era fácil segui-lo. A cobertura do comando era aceitável, sua encenação ainda mais; o problema é que em quase todas as coberturas havia sempre um risco gritante, mas irreconhecível. Era na limitação desses riscos que os melhores se distinguiam dos que eram apenas ótimos. Profissionalmente, Jason aprovava a posição clerical, mas não a cor clerical. Um sacerdote católico não podia dispensar o preto, ao contrário de um vigário anglicano; um cinza firme sob o colarinho branco era perfeitamente aceitável. O cinza se desvanecia ao sol, o que já não acontecia com o preto. Subitamente, o assassino afastou-se da multidão e foi para trás de um soldado chinês que tirava fotografias, a câmara à altura dos olhos, virando a cabeça incessantemente. Bourne compreendeu. Não se tratava de um recruta insignificante, de licença em Pequim; ele era muito maduro, o uniforme muito bem cortado... como d’Anjou comentara a respeito do oficial do Exército no furgão. A câmara era um artifício evidente para esquadrinhar as multidões; o ponto de encontro inicial não estava muito distante. O comando, agora desempenhando o seu papel a todo vapor, pôs a mão direita paternalmente no ombro esquerdo do soldado. A mão esquerda estava invisível, mas o casaco preto preenchia o espaço entre os dois... uma arma fora comprimida contra as costelas do militar. O chinês ficou imóvel, a expressão estóica, mesmo em seu pânico. Moveu-se com o assassino, o comando agora segurando seu braço e dando ordens. Abruptamente, o soldado inclinou-se, as mãos no lado esquerdo, logo se recuperou e sacudiu a cabeça; a arma golpeara com força suas costelas. Ele obedeceria às ordens ou morreria na Praça Tian An Men. Não havia meio-termo. Bourne virou-se e abaixou-se para amarrar um cordão de sapato perfeitamente firme, pedindo desculpas aos que vinham por trás. O assassino verificara seu flanco traseiro; a ação evasiva era indispensável. Jason levantou-se. Onde estava ele? Onde estava o impostor? Ali! Jason ficou aturdido; o
comando largara o soldado. Por quê? O chinês corria agora pela multidão, gritando, os gestos frenéticos, e de repente desabou ao chão; um instante depois, pessoas excitadas e falando sem parar se concentravam em torno do corpo inconsciente. Um desvio! Trate de vigiá-lo! Jason avançou rapidamente, sentindo que era o momento oportuno: Não fora um revólver, mas uma agulha... não comprimindo, mas perfurando o tórax do soldado. O assassino se livrara de um protetor; procuraria por outro e talvez por um terceiro. O roteiro que Bourne previra estava sendo posto em prática. E como a concentração do assassino em busca da próxima vítima era total, aquele era o momento apropriado! Agora! Jason sabia que podia dominar qualquer pessoa no mundo com um golpe paralisante nos rins, especialmente um homem cuja menor preocupação era um ataque contra a sua pessoa... pois a presa era que estava atacando, com um empenho absoluto. Bourne encurtou a distância que o separava do impostor. Quinze metros, doze, dez, nove... ele passou de um grupo para outro... o “sacerdote” de traje preto estava ao seu alcance. Poderia capturá-lo. Marie! Um soldado. Outro soldado! Mas agora, em vez de agressão, houve comunicação. O militar acenou com a cabeça e gesticulou para a esquerda. Jason olhou, atordoado. Um chinês baixo, à paisana, segurando uma pasta oficial, estava parado na base de uma larga escadaria de pedra, que levava à entrada de um enorme prédio, com colunas de granito por toda parte, sustentando dois telhados gêmeos de pagodes. Ficava logo atrás do Monumento aos Heróis, os caracteres esculpidos nas portas enormes proclamando que era o Memorial do Presidente Mao. Duas filas subiam pelos degraus, e guardas separavam os grupos individuais. O civil estava entre as duas filas, e a pasta era um símbolo de autoridade; deixavam-no em paz. Subitamente, sem qualquer indicação de que tomaria tal iniciativa, o assassino alto agarrou o braço do soldado, impelindo-o à sua frente. O militar empertigou as costas, empinou os ombros; um revólver fora comprimido contra sua espinha, o gesto acompanhado por uma ordem expressa. Enquanto a confusão aumentava, as pessoas e os guardas correndo na direção do primeiro soldado, inconsciente, o assassino e seu cativo se encaminharam para o civil na escadaria do Memorial de Mao. O homem estava com medo de tomar uma iniciativa, e novamente Bourne compreendeu. Aqueles homens eram conhecidos do assassino; estavam no núcleo do círculo de elite que levava ao cliente do assassino... e esse cliente estava perto. Não eram meros asseclas; depois que apareciam, as figuras menores passavam a ter importância ainda menor, pois eram homens que raramente se expunham. O desvio de atenção, reduzido agora a um distúrbio quase insignificante, pois a polícia controlara rapidamente a multidão e removera o corpo, proporcionara ao impostor os segundos de que precisava para controlar a corrente que levava ao cliente. O soldado sob seu domínio morreria se desobedecesse, e com um único disparo, qualquer atirador relativamente competente poderia matar o homem junto aos degraus. O encontro seria efetuado em duas etapas; enquanto controlasse a segunda, o assassino estaria perfeitamente disposto a seguir em frente. O cliente se encontrava obviamente em algum lugar no interior do vasto mausoléu e não sabia o que acontecia lá fora, da mesma forma que um mero assecla não se atreveria a acompanhar os superiores para a área da conferência. Não havia mais tempo para analisar, e Jason sabia disso. Tinha de agir. E depressa. Precisava entrar no monumento a Mao Tsé-tung e observar, esperar que a reunião fosse concluída de uma forma ou de outra... e a possibilidade repulsiva de ser forçado a proteger o assassino aflorou-lhe à mente. Contudo, estava no reino das probabilidades, e seu único trunfo era o fato de o impostor ter seguido um
roteiro que ele próprio poderia criar. E se a conferência fosse pacífica, seria apenas uma questão de seguir o assassino, inevitavelmente exultante pelo sucesso de sua tática e pelo que o cliente lhe entregasse... e capturar um supremo egocêntrico, que de nada desconfiava, na Praça Tian An Men. Bourne virou-se, procurando por d’Anjou. O Francês estava à beira de um grupo controlado de turistas; acenou com a cabeça, como se lesse os pensamentos de Delta. Apontou para o chão e depois fez um círculo com o dedo indicador. Era um sinal silencioso dos tempos da Medusa. Significava que ele permaneceria onde estava, mas se tivesse que se deslocar, continuaria à vista daquele local específico. Era o suficiente. Jason passou por trás do assassino e seu prisioneiro e atravessou diagonalmente a multidão, cruzando o espaço aberto para a fila no lado direito da escadaria e subindo até o guarda. Falou em tom suplicante, num mandarim polido: — Alto Oficial, estou muito embaraçado. Fiquei tão absorvido nos caracteres no Monumento do Povo que perdi o meu grupo, que passou por aqui há poucos minutos. — Fala muito bem a nossa língua — comentou o atônito guarda, aparentemente acostumado aos sons estranhos de línguas que não conhecia e não estava interessado em conhecer. — E é muito cortês. — Sou apenas um professor mal pago do Ocidente que sente um amor profundo por sua grande nação, Alto Oficial. O guarda soltou uma risada. — Não sou tão alto assim, mas nossa nação é mesmo grande. Minha filha usa blue jeans na rua. — Como? — Não é nada. Onde está a identificação de seu grupo? — Onde está o quê? — A etiqueta com o nome que deve ficar por fora das roupas. — Estava sempre caindo — respondeu Bourne, sacudindo a cabeça, com expressão desamparada. — Não ficava pregada de jeito nenhum. Devo ter perdido. — Quando alcançar seu grupo, procure o guia e peça outra. Siga em frente. Entre atrás da fila no alto dos degraus. Alguma coisa está acontecendo. O próximo grupo talvez tenha de esperar. E poderia perder a sua excursão. — Há algum problema? — Não sei. O homem com a valise oficial nos dá ordens. Acho que ele conta os yuans que se pode ganhar aqui, pensando que este lugar sagrado deve ser como o trem subterrâneo de Pequim. — É muito gentil.
— Depressa, senhor. Bourne subiu os degraus apressadamente, abaixando-se por trás da multidão, mais uma vez amarrando um cordão de sapato já bem firme, inclinando a cabeça para observar o progresso do assassino, O impostor falou baixinho ao civil, com o soldado ainda sob o seu domínio... mas alguma coisa era estranha. O chinês baixo de roupa escura acenou com a cabeça, mas seus olhos não se fixavam no impostor; em vez disso, focalizavam algum ponto além do comando. Onde? O ângulo de visão de Jason não era dos melhores. Mas não importava, o roteiro estava sendo seguido, o cliente alcançado nas condições do assassino. Jason passou pelas portas para a semi-escuridão, impressionado com todos à sua frente pelo súbito aparecimento da enorme escultura de mármore branco de um Mao sentado, tão alto e tão imponente que quase se soltava um grito de espanto em sua presença. Os efeitos teatrais eram evidentes. Os jatos de luz se incidiam sobre o mármore delicado e aparentemente translúcido criavam um efeito etéreo, isolando o gigantesco vulto sentado na tapeçaria de veludo por trás e da escuridão ao redor. A estátua enorme, com olhos penetrantes, parecia viva e cons ciente. Jason desviou os olhos, procurando por corredores e portas. Não havia nenhum. Era um mausoléu, um palácio dedicado ao santo de uma nação. Mas havia colunas, blocos largos e altos de mármore, proporcionando pontos de isolamento. O ponto de encontro poderia ser nas sombras por trás de qualquer coluna. Ele esperaria. Estaria em outras sombras, atento. Seu grupo entrou no segundo grande salão, que era ainda mais espetacular do que o primeiro. Bem na frente havia um caixão de cristal contendo o corpo do Presidente Mao Tsé-tung envolto pela bandeira vermelha, o cadáver pálido em sereno repouso.. os olhos fechados, no entanto, davam a impressão de que a qualquer momento poderiam se abrir, contemplando as pessoas com uma expressão furiosa de desaprovação. Havia flores cercando o sarcófago levantado e duas fileiras de pinheiros de um verde-escuro, em enormes vasos de cerâmica, nas paredes opostas. Outra vez os jatos de luz executavam uma dramática sinfonia de cor, bolsos de escuridão penetrados por raios cruzados, derramando-se sobre os brilhantes amarelos, vermelhos e azuis das flores. Um tumulto em algum lugar, no primeiro salão, perturbou por um instante o silêncio intimidado da multidão, mas acabou tão depressa quanto começou. Como o último turista na fila, Bourne afastou-se sem ser notado pelos outros. Esgueirou-se por trás de uma coluna, oculto nas sombras, e espiou pelo outro lado do reluzente mármore branco. E o que viu deixou-o paralisado, enquanto uma dúzia de pensamentos se chocavam em sua cabeça... acima de tudo a palavra armadilha! Não havia nenhum grupo seguindo o seu. Fora o último a ser admitido — e ele a última pessoa a entrar no mausoléu — antes de as portas maciças serem fechadas. Fora esse o barulho que ouvira... o som das portas fechadas e os lamentos desapontados dos que esperavam lá fora. Alguma coisa está acontecendo... O próximo grupo talvez tenha de esperar... Um guarda gentil na escada lá fora. Oh, Deus, desde o início fora uma armadilha! Todos os movimentos foram calculados! Desde o
início! A informação paga numa ilha sob chuva forte, as passagens de avião quase impossíveis, a primeira visão do assassino no aeroporto... um matador profissional capaz de um disfarce muito melhor, os cabelos óbvios demais, um brigadeiro reformado do Corpo Real de Engenharia... tão ilogicamente lógico! Tudo certo, o cheiro do embuste tão acurado, tão irresistível! Um militar na janela do furgão, não olhando para ele, mas para os dois! O traje preto de sacerdote... um farol escuro ao sol, pago pelo criador do impostor... tão facilmente avistado, tão facilmente seguido. Oh, Deus, desde o início! E, finalmente, o roteiro cumprido na imensa praça, um roteiro que poderia ter sido escrito pelo próprio Bourne... novamente irresistível para o perseguidor. Uma armadilha invertida: Agarre o caçador enquanto ele espreita sua presa! Frenético, Jason olhou ao redor. Lá na frente, a distância, havia um poço de raios do sol. As portas de saída ficavam na outra extremidade do mausoléu; eles seriam vigiados, cada turista estudado atentamente ao se retirar. Passos. Por trás de seu ombro direito. Bourne virou-se para a esquerda, tirando a espátula de latão do cinto. Um vulto de traje cinza de Mao, corte militar, passava cautelosamente pela coluna larga, na semi-escuridão à beira da iluminação dos pinheiros. Estava a menos de dois metros de distância. Empunhava um revólver, o cilindro grosso no cano uma garantia de que a detonação seria reduzida a não mais do que um estalo. Jason efetuou seus cálculos letais de uma maneira que David Webb jamais compreenderia. A lâmina tinha de ser inserida de forma a causar morte instantânea. Nenhum ruído podia escapar da boca do inimigo, enquanto o corpo era puxado para a escuridão. Ele avançou, os dedos rígidos da mão esquerda comprimindo-se como um torno sobre o rosto do homem, enquanto cravava a espátula em seu pescoço, a lâmina penetrando pelos tendões e a frágil cartilagem para cortar a traquéia. Em um só movimento, Bourne baixou a mão esquerda para pegar o revólver ainda empunhado pelo inimigo e virou o corpo, abaixando-se sob os galhos dos pinheiros ao longo da parede da direita. Escondeu o cadáver nas sombras escuras entre dos enormes vasos que continham as raízes de duas árvores. Rastejou por cima do corpo, empunhando a arma à frente de seu rosto, e esgueirou-se pela parede, na direção do primeiro salão, até um ponto em que podia ver sem ser visto. Um segundo homem uniformizado passou pelo jato de luz que iluminava a escuridão da entrada para o segundo salão. Parou diante do caixão de cristal de Mao, sob os refletores teatrais, e olhou ao redor. Levou um pequeno rádio para junto do rosto e falou; depois escutou. Cinco segundos mais e sua expressão se tornou de intensa preocupação. Começou a andar depressa para a direita, seguindo o mesmo caminho do primeiro homem. Jason voltou na direção do cadáver, as mãos e joelhos deslizando silenciosamente sobre o mármore. Foi para a beira dos galhos baixos. O soldado aproximou-se, andando mais depressa, estudando as últimas pessoas na fila da frente. Agora! Bourne levantou-se de um pulo, agarrando-o com uma chave de braço no pescoço, sufocando qualquer som, enquanto o puxava para baixo, sob os galhos, o revólver comprimido contra a carne da barriga do soldado. Puxou o gatilho; o estampido abafado foi como um pequeno estalido, não mais do que isso. O homem deixou escapar um último e violento estertor, e depois ficou inerte. Ele tinha de sair dali! Se fosse acuado e morto no terrível silêncio do mausoléu, o assassino vaguearia impune e a morte de Marie seria inevitável. Seus inimigos estavam fechando a armadilha
invertida. Tinha de inverter a inversão e encontrar algum meio de sobreviver. A fuga mais perfeita é efetuada em etapas, aproveitando qualquer confusão que exista ou possa ser criada. As Etapas Um e Dois estavam cumpridas. Uma certa confusão já existia, se outros homens estavam sussurrando por rádios. O que se tornava necessário criar era um ponto focal de tumulto, tão violento e inesperado que os homens que o caçavam nas sombras se tomariam os alvos de uma busca súbita e histérica. Só havia um meio, e Jason não experimentou obscuros sentimentos heróicos na base de possomorrer-tentando. Tinha de conseguir de qualquer maneira! Tinha de fazer com que desse certo! A sobrevivência era tudo, por razões além de sua pessoa. O profissional estava em seu auge, calmo e determinado. Bourne levantou-se e avançou por entre os galhos, atravessando o espaço aberto para a coluna à sua frente. Depois correu para trás da coluna seguinte e da outra, a primeira coluna do segundo salão, a dez metros do caixão de cristal dramaticamente iluminado. Esgueirou o corpo em torno do mármore e esperou, os olhos fixos nas portas de entrada. E aconteceu. Eles aconteceram. O oficial que era o “prisioneiro” do assassino surgiu em companhia do civil baixo, que carregava a pasta oficial. O militar segurava um rádio ao lado do corpo; levantou-o para falar e escutar, depois sacudiu a cabeça, guardou o rádio no bolso direito e tirou o revólver do coldre. O civil acenou com a cabeça uma vez, enfiou a mão por baixo do paletó e tirou um revólver de cano curto. Avançaram na direção do caixão de cristal que continha o cadáver de Mao Tsétung, depois olharam um para o outro e começaram a se separar, o primeiro seguindo para a direita, o outro para a esquerda. Agora! Jason levantou sua arma, mirou rapidamente e disparou. Uma vez! Virou a arma para a direita. Duas vezes! Os estalidos foram como pequenas fagulhas na escuridão, enquanto os dois homens caíam para o sarcófago. Protegendo-se com a beira do seu casaco, Bourne pegou o cilindro quente no cano de seu revólver e girou-o, até desprendê-lo. Restavam cinco balas. Apertou o gatilho, em rápida sucessão. As explosões povoaram o mausoléu, ressoando pelas paredes de mármore, espatifando o cristal do caixão, as balas se cravando no corpo que se contraía espasmodicamente de Mao Tsé-tung, uma penetrando numa testa exangue, outra arrancando um olho. Sirenes começaram a tocar estridentemente, campainhas pareciam ter enlouquecido, ensurdecendo os ouvidos, enquanto soldados, aparecendo de todos os lados ao mesmo tempo, corriam em pânico para a cena do horrível sacrilégio. Os turistas nas duas filas, sentindo-se acuados à luz assustadora da casa da morte, irromperam em histeria. Em massa, a multidão correu para as portas e a luz do sol, derrubando os que se encontravam no caminho e pisoteando-os. Jason Bourne juntou-se à multidão, espremendo-se para ficar no meio dos outros. Chegando à claridade ofuscante da Praça Tian An Men, ele desceu correndo os degraus. D’Anjou! Jason correu para a direita, contornando o lado direito da construção de pedra, avançou pelo lado da estrutura em colunas, até chegar à frente. Guardas se esforçavam ao máximo para acalmar as multidões agitadas, ao mesmo tempo em que tentavam descobrir o que acontecera. Um tumulto em grande escala se formava.
Bourne estudou o lugar em que vira d’Anjou pela última vez, depois deslocou os olhos para uma área cercada por grade, onde o Francês poderia logicamente estar. Nada. Ninguém que se parecesse com ele sequer remotamente. E, de repente, ele ouviu o rangido de pneus a distância, numa rua à esquerda. Virou-se e olhou. Um furgão com as janelas escuras contornara a calçada isolada por cordas e avançava em alta velocidade para o portão sul da Praça Tian Na Men. Haviam capturado d’Anjou. Eco se fora.
Capítulo 24 — Qu’est-ce qu’il y a? — Der coups de feu! Les gardes sont paniqués! Bourne ouviu os tiros e, correndo, juntou-se ao grupo de turistas franceses, levados por um guia cuja concentração se fixava no caos acontecendo na escadaria do mausoléu. Abotoou o paletó, cobrindo a arma no cinto, e guardou o silenciador perfurado no bolso. Olhando ao redor, voltou rapidamente pela multidão, indo se postar ao lado de um homem mais alto, bem vestido, com uma expressão desdenhosa. Jason sentiu-se grato por haver vários outros homens de altura quase igual à frente dos dois; com alguma sorte e no meio da confusão, poderia passar despercebido. Lá em cima, no alto dos degraus do mausoléu, as portas haviam sido parcialmente abertas. Homens de uniforme corriam de um lado para outro, ao longo da escada. Era evidente que a liderança mergulhara no caos e Jason sabia por quê. Fugira, simplesmente desaparecera, não querendo ter qualquer envolvimento nos terríveis acontecimentos. Mas Jason só estava interessado agora no assassino. Iria ele aparecer? Ou teria encontrado Eco, capturado pessoalmente o seu criador e partido em sua companhia no furgão, convencido de que o Jason Bourne original se encontrava acuado, um segundo cadáver improvável no mausoléu profanado? — Qu’est-ce que c’est? — perguntou Jason, dirigindo-se ao francês alto e bem vestido ao seu lado. — Outro atraso lamentável, sem dúvida — respondeu o homem, num sotaque parisiense um tanto efeminado. — Este lugar é um hospício, e minha tolerância está se esgotando. Vou voltar para o hotel. — E pode fazer isso? — Bourne elevou seu francês de classe média para um decente université. Significava muito para um parisiense. — Afinal, temos permissão para deixar a excursão? Estão sempre nos dizendo que devemos permanecer juntos. — Sou um executivo, não um turista. Esta “excursão”, como você a chama, não constava da minha agenda. Tive a tarde de folga... as pessoas por aqui demoram interminavelmente para tomar decisões... e pensei em aproveitar para visitar alguns lugares. Mas não havia nenhum motorista que falasse francês disponível. O recepcionista incluiu-me neste grupo. A guia é uma estudante de literatura francesa e fala como se tivesse nascido no século XVII. E não tenho a menor idéia do que é esta excursão. — É a excursão de cinco horas —explicou Jason, acuradamente, lendo os caracteres chineses impressos na etiqueta de identificação pregada na lapela do homem. — Depois da Praça Tian An Men, vamos visitar os túmulos da Dinastia Ming e em seguida contemplaremos o pôr-do-sol da Grande Muralha. — Mas já vi a Grande Muralha! Foi o primeiro lugar a que me levaram todos aqueles doze burocratas da Comissão de Comércio, falando sem parar, por intermédio do intérprete, que era uma
prova de sua permanência. Merda! Se a mão-de-obra não fosse tão incrivelmente barata e os lucros tão extraordinários... — Também sou um executivo, mas estou por alguns dias como turista. Minha linha é a importação de vime. Qual é a sua, se me permite perguntar? — Tecidos... o que mais poderia ser? A menos que se considere petróleo, eletrônica, carvão ou perfume... até mesmo vime. — o executivo permitiu-se um sorriso de superioridade e desdém. — Esta gente está sentada sobre a riqueza do mundo e não tem a mais vaga idéia do que fazer com ela. Bourne estudou atentamente o francês alto. Pensou no Eco da Medusa e num aforismo gaulês que proclamava que quanto mais as coisas mudavam, mais continuavam as mesmas. As oportunidades vão surgir. Trate de reconhecê-las e aproveitá-las. — Como eu disse —continuou Jason, enquanto observava o caos na escadaria —, também sou um executivo e estou desfrutando de um pequeno descanso... cortesia do programa de incentivos fiscais do nosso governo para aqueles que aram os campos externos... mas viajei muito pela China e aprendi alguma coisa da língua. — O vime está indo bem no mercado mundial — comentou o parisiense, sardônico. — Nossos produtos de qualidade se encontram por toda Côte d’Azur, mas também vendem no norte e no sul. A família Grimaldi é nossa cliente há anos. Jason não desviava os olhos da escadaria. — Aceito a correção, meu amigo executivo... nos campos externos. Pela primeira vez, o francês olhou realmente para Jason. — E posso lhe dizer outra coisa — acrescentou Bourne. — Não haverá mais visitantes hoje ao túmulo de Mao. E todos os turistas nos grupos próximos serão isolados, talvez detidos. — Mas por quê? — Ao que parece, aconteceu alguma coisa terrível lá dentro, e os guardas estão gritando sobre gângsteres estrangeiros... Você disse que foi encaixado no grupo, mas não o integrava realmente? — Em suma, foi isso mesmo. — Não acha que é motivo para um mínimo de especulação? Será a detenção, quase que certamente. — Mas isso é um absurdo! — Não se esqueça que estamos na China...
— Não é possível! Milhões e milhões de francos estão em jogo! Só estou aqui, nesta horrível excursão, porque... — Sugiro que vá embora, meu amigo. Diga que saiu para dar uma volta. Dê-me a sua etiqueta de identificação e me livrarei dela para você... — É isto aqui? — Seu país de origem e o número do passaporte estão inscritos aí. Ë assim que controlam seus movimentos quando participa de uma excursão guiada. — Ficarei lhe devendo eternamente! — exclamou o executivo, arrancando a etiqueta de plástico da lapela. — Se algum dia for a Paris... — Passo a maior parte do tempo com o príncipe e sua família em... — Mas é claro! Mais uma vez, meus agradecimentos! O francês, tão diferente e ao mesmo tempo tão parecido com Eco, afastou-se às pressas, a figura bem vestida se destacando contra o sol nebuloso e amarelado, e encaminhou-se para o Portão Celestial... tão óbvio quanto a falsa presa que levara um caçador a uma armadilha. Bourne pregou a etiqueta de plástico na lapela e tornou-se um participante da excursão oficial; era o seu passaporte para sair da Praça Tien An Men. Depois que o grupo foi apressadamente desviado do mausoléu para o Grande Palácio, o ônibus passou pelo portão norte e Jason avistou o apoplético executivo francês suplicando à polícia de Pequim que o deixasse passar. Os fragmentos de informações sobre o sacrilégio se ajustavam. A notícia estava se espalhando. Um branco ocidental profanara de maneira terrível o caixão e o corpo sagrado do Presidente Mao. Um terrorista branco de uma excursão, sem a devida identificação nas roupas. Um guarda na escadaria do mausoléu denunciara um homem assim. — Eu me lembro — disse a guia da excursão, num francês obsoleto. Ela estava parada junto à estátua de um leão irado, na extraordinária Avenida dos Animais, margeada por enormes réplicas de pedra de felinos, cavalos, elefantes e ferozes bestas míticas, guardando o acesso final aos túmulos da Dinastia Ming. — Mas minha memória falha quando o seu uso de nossa língua se relaciona com minhas reflexões imediatas. E sinto sem dúvida refletida que acabou de conceder essa indulgência. Uma estudante de literatura francesa e fala como se estivesse no século XVII... Um executivo indignado, agora certamente muito mais indignado. — Não falei antes porque você estava com os outros e eu não queria sobressair — respondeu Bourne, em mandarim. — Mas vamos falar a sua língua agora.
— Fala muito bem. — Agradeço. Lembra então que fui encaixado na excursão no último momento? — O gerente do Hotel Pequim falou com meu superior, mas é claro que me lembro. — A mulher sorriu e deu de ombros. — A verdade é que é um grupo muito grande e só me recordo de entregar o emblema da excursão a um homem alto, que se encontra neste momento diante do meu rosto. Terá de pagar um yuan adicional em sua conta de hotel. Lamento muito, mas o senhor faz parte do programa turístico. — Tem razão. Sou um executivo que veio aqui para negociar com seu governo. — Espero que se saia bem — disse ela, com um sorriso malicioso. — Alguns conseguem, outros não. — O problema é que talvez eu não seja capaz de conseguir coisa alguma — comentou Jason, retribuindo o sorriso. — Falo chinês muito melhor do que leio. Há poucos minutos várias palavras se encaixaram e compreendi que deverei estar no Hotel Pequim para uma reunião dentro de meia hora. Como é possível? — É questão apenas de encontrar transporte. Escreverei o que precisa e poderá apresentar aos guardas no Dahongmen... — O Grande Portão Vermelho? — interrompeu Jason. — O que tem as arcadas? — Isso mesmo. Há ônibus que o levarão de volta a Pequim. Pode se atrasar, mas também isso é costumeiro, pelo que sei, pois os homens do governo também se atrasam. Ela tirou um bloco do bolso da túnica Mao e depois uma caneta esferográfica muito fina. — Não serei detido? — Se for, peça a quem o detiver para chamar o pessoal do governo — disse a guia, escrevendo as instruções em chinês e arrancando a página do bloco. — Este não é o seu grupo de excursão! — berrou o motorista do ônibus, num mandarim da classe baixa, sacudindo a cabeça e espetando o dedo na lapela de Bourne. O homem obviamente esperava que suas palavras não causassem qualquer efeito no turista, por isso compensou-as com gestos exagerados e uma voz estridente. Era também evidente que ele esperava que um dos seus superiores sob as arcadas do Grande Portão Vermelho percebesse como se encontrava alerta. E foi o que aconteceu. — Qual é o problema? — indagou um soldado bem falante, aproximando-se depressa da porta do ônibus, abrindo caminho através dos turistas por trás de Bourne. As oportunidades vão surgir...
— Não há problema nenhum — disse Jason bruscamente, com alguma arrogância, em chinês, tirando do bolso o bilhete da guia e pondo na mão do jovem soldado. — A menos que você queira ser o responsável por minha ausência numa reunião urgente com uma delegação da Comissão de Comércio, cujo chefe de equipamentos militares é um tal de General Liang. — Você fala chinês! Surpreso, o soldado desviou os olhos do bilhete. — Eu diria que isso é óbvio. E o General Liang também. — Não compreendo a sua raiva. — Talvez compreenda a raiva do General Liang. — Não conheço nenhum General Liang, senhor, mas também há muitos generais. Não está gostando da excursão? — Não estou gostando dos idiotas que me disseram que era uma excursão de três horas, quando na verdade é de cinco horas! Se eu perder a reunião por causa da incompetência de alguns, haverá muitos comissários com raiva, inclusive um poderoso general do Exército do Povo, que está ansioso em firmar determinados contratos de compras com a França. Jason fez uma pausa, levantando a mão, depois apressou-se em acrescentar, a voz mais suave: — Se, no entanto, eu chegar lá a tempo, certamente elogiarei... pelo nome... quem quer que possa me ajudar. — Eu o ajudarei, senhor! — exclamou o jovem militar, os olhos brilhando de dedicação. — Esta baleia doente de ônibus pode demorar mais de uma hora e mesmo assim apenas se o miserável motorista conseguir se manter na estrada. Tenho à minha disposição um veículo muito mais rápido e um excelente motorista, que o acompanhará. Eu gostaria de escoltá-lo pessoalmente, mas não seria conveniente deixar o meu posto. — Também mencionarei o seu empenho pelo dever ao general. — É meu instinto natural, senhor. Meu nome é... — Isso mesmo, dê-me seu nome! Escreva neste pedaço de papel! Bourne sentou no movimentado saguão do Hotel Pequim, ala leste, um jornal parcialmente dobrado cobrindo seu rosto, o lado esquerdo um pouco deslocado, a fim de poder observar as portas que constituíam a entrada. Estava esperando por Jean Louis Ardisson, de Paris. Jason não tivera qualquer dificuldade para descobrir o nome. Vinte minutos antes aproximara-se do balcão de excursões com guias e dissera à recepcionista, em seu melhor mandarim: — Lamento incomodá-la, mas sou o primeiro intérprete da delegação comercial francesa que
está negociando com o governo. Infelizmente, perdi uma de minhas confusas ovelhas. — Deve ser um ótimo intérprete, pois fala um excelente chinês. O que aconteceu com a sua... ovelha desgarrada? A mulher se permitira uma risadinha pela frase. — Não sei direito. Estávamos tomando um café, prestes a repassar sua programação, quando ele olhou para o relógio e disse que falaria comigo mais tarde. Ia sair numa das excursões de cinco horas e aparentemente estava atrasado. Era uma inconveniência para mim, mas sei o que acontece quando os visitantes chegam a Pequim pela primeira vez. Ficam impressionados. — Acho que tem razão — concordara a recepcionista. — Mas em que podemos ajudá-lo? — Preciso saber como se escreve corretamente o seu nome, se ele tem um nome no meio ou o nome de batismo... os detalhes específicos que devem constar dos papéis do governo que tenho de preencher para ele. — Mas como podemos ajudar? — Ele deixou isto no café. — Jason estendera a etiqueta de identificação do executivo francês. —Não sei se ele conseguiu pegar a excursão. A mulher rira, enquanto pegava embaixo do balcão a relação das excursões do dia. — Ele foi informado do local da partida, e a guia tinha uma lista dos integrantes. Essas coisas estão sempre caindo, e certamente ela lhe deu um passe temporário. —A recepcionista pegara o crachá e começara a folhear as páginas, enquanto acrescentava: — Os idiotas que fazem essas etiquetas não valem os poucos yuans que recebem. Temos todos esses regulamentos meticulosos, as regras rigorosas, mas acabamos parecendo tolos por causa de coisas mínimas. Ela parara de falar de repente, o dedo num registro. Levantara os olhos para Bourne e dissera, suavemente: — Ah, os espíritos do azar... Não sei se sua ovelha está perdida, mas posso garantir que os seus balidos são muito altos. Ele se julga muito importante e se mostrou bastante antipático. Quando soube que não havia nenhum motorista que falasse francês, achou que era um insulto à honra de sua nação e também à sua pessoal... que era muito mais importante para ele. Aqui está, leia o nome. Não sei pronunciá-lo. — Muito obrigado — dissera Jason, lendo o nome. Ele fora para um telefone interno que tinha a indicação de “Inglês” e pedira uma ligação para o quarto do Sr. Ardisson.
— Pode ligar direto, senhor — respondera o telefonista, com um tom de triunfo pela alta tecnologia. — É o quarto um-sete-quatro-três. Acomodações muito boas. Uma ótima vista da Cidade Proibida. — Obrigado. Bourne discara. Ninguém atendera. Monsieur Ardisson ainda não voltara e, nas circunstâncias, poderia demorar um longo tempo. De qualquer forma, uma ovelha que se destacava por seus balidos não ficaria em silêncio se a sua dignidade fosse afrontada ou seus negócios corressem algum risco. Jason decidira esperar. Os contornos de um plano começavam a se definir. Era uma estratégia desesperada, baseada em possibilidades, mas tudo o que lhe restava. Ele comprara um jornal francês de semanas antes e sentara, sentindo-se de repente esgotado e desamparado. O rosto de Marie aflorava a todo instante na imaginação de David Webb, o som de sua voz povoava o ar ao redor, ressoando em seus ouvidos, suspendendo o pensamento e criando uma terrível angústia no centro da testa. A tela de sua mente acabou se apagando, o último lampejo de luz rejeitado pelas ordens bruscas emitidas por uma autoridade fria como gelo: Pare com isso! Não há tempo! Concentre-se no que devemos pensar e em mais nada! Os olhos de Jason se desgarravam intermitentemente, mas logo voltavam à entrada. A clientela do saguão da ala leste era internacional, uma mistura de línguas, de roupas das avenidas Quinta e Madison, Savile Row, St. Honoré e Via Condotti, além de trajes mais sóbrios das duas Alemanhas e dos países escandinavos. Os hóspedes entravam e saíam das lojas intensamente iluminadas, divertidos e atraídos pela farmácia que vendia apenas medicamentos chineses, acorriam para a loja de artesanato ao lado de um enorme mapa-múndi em relevo na parede. De vez em quando alguém com uma comitiva passava pelas portas, intérpretes subservientes faziam mesuras e traduziam entre autoridades uniformizadas do governo, tentando parecer descontraídas, executivos do outro lado do mundo, cansados, exibiam olhos injetados da viagem e da necessidade de sono, que talvez fosse precedido por algumas doses de uísque. Aquela podia ser a China Vermelha, mas as negociações eram mais antigas do que o capitalismo, e os capitalistas, conscientes de sua fadiga, não tratariam de negócios enquanto não estivessem em condições de pensar direito. Bravo Adam Smith e David Hume! Lá estava ele! Jean-Louis Ardisson estava sendo escoltado pelas portas por nada menos que quatro burocratas chineses, todos se esforçando ao máximo em apaziguá-lo. Um correu à frente para a loja de bebidas no saguão, enquanto os outros o detinham diante do elevador, falando sem parar, através do intérprete. O comprador voltou com uma sacola de plástico, o fundo esticado e vergando sob o peso de várias garrafas. Houve sorrisos e mesuras, enquanto as portas do elevador se abriam. Jean-Louis Ardisson aceitou a oferenda e entrou, acenando com a cabeça uma vez, enquanto as portas se fechavam. Bourne permaneceu sentado, observando as luzes, enquanto o elevador subia. Quinze, dezesseis, dezessete. Chegara ao último andar, onde ficava o quarto de Ardisson. Jason levantou e encaminhou-se para os telefones. Olhou para o relógio; podia apenas calcular o tempo, mas um homem nervoso não seguiria devagar para o seu quarto, depois de saltar do elevador. O quarto representava alguma paz, até mesmo o alívio da solidão, depois de várias horas de tensão e pânico. Ser detido para interrogatório pela polícia num país estranho era assustador para qualquer um, mas tornava-se apavorante quando uma língua incompreensível e rostos radicalmente diferentes se acrescentavam ao conhecimento de que o
prisioneiro se encontrava num país em que as pessoas quase sempre desapareciam sem explicações. Depois de tal provação, um homem entraria em seu quarto e, sem qualquer ordem específica, desabaria tremendo de medo e exaustão; acenderia um cigarro depois do outro, esquecendo onde deixara o último; tomaria vários tragos de uma bebida forte, engolindo depressa para acelerar o efeito; e pegaria o telefone para partilhar a sua terrível experiência, esperando insconscientemente minimizar os efeitos posteriores de seu terror com essa partilha. Bourne podia permitir que Ardisson desabasse e tomasse tanto vinho ou uísque quanto fosse capaz, mas não podia deixar que usasse o telefone. Não devia haver partilha, nenhuma atenuação do terror. Em vez disso, era preciso aumentar o seu terror, a um ponto em que ele ficaria paralisado, temendo por sua vida se saísse do quarto. Haviam transcorrido quarenta e sete segundos; era o momento de fazer a ligação. — Alô? A voz era tensa, esbaforida. — Vou falar depressa — disse Jason suavemente, em francês. — Fique onde está e não use o telefone. Dentro de exatamente oito minutos baterei em sua porta, duas vezes rapidamente, depois mais uma. Deixe-me entrar, mas não receba nenhuma outra pessoa antes de mim. Especialmente uma criada ou servente. — Quem é você? — Um compatriota que precisa falar com você. Para a sua própria segurança. Oito minutos. Bourne desligou e voltou à poltrona, contando os minutos e calculando o tempo que um elevador levava, com o número usual de passageiros, para ir de um andar para o outro. Num andar específico, trinta segundos eram suficientes para se alcançar qualquer quarto. Seis minutos passaram, e Bourne encaminhou-se para um elevador, onde os números iluminados indicavam que seria o próximo a chegar ao saguão. Oito minutos era o tempo ideal para se preparar um alvo. Seis era melhor, mas passava muito depressa. Oito, no entanto, embora ainda se situando num prazo urgente, proporcionava os momentos adicionais de ansiedade que desgastavam a resistência de um alvo. O plano ainda não estava definido na mente de Bourne. O objetivo, porém, estava cristalizado, absoluto. Era tudo o que lhe restava, e cada instinto em seu corpo de homem de Medusa lhe dizia para persegui-lo. Delta Um conhecia a mente oriental. Sob um aspecto, não variava há séculos. O sigilo valia dez mil tigres, se não mesmo um reino. Postou-se diante da porta com o número 1743, olhando para o relógio. Oito minutos exatamente. Bateu duas vezes, esperou um instante, bateu de novo. A porta foi aberta, e um chocado Ardisson fitouo aturdido. — C’est vous! — exclamou o executivo, levando a mão aos lábios. — Soyez tranquilie — disse Jason, entrando e fechando a porta. E foi em francês que ele continuou: — Precisamos conversar. Devo saber o que aconteceu. — Você! Estava ao meu lado naquele lugar horrível! Conversamos! E levou a minha identificação! Foi a causa de tudo!
— Não fez menção a mim? — Não me atrevi. Teria parecido que fiz alguma coisa ilegal... dando o meu crachá a outra pessoa. Quem é você? Por que está aqui? Já me causou problemas suficientes por um dia! Acho que deve ir embora, monsieur! — Não antes de me contar o que aconteceu exatamente. — Bourne atravessou o quarto e sentouse numa cadeira ao lado de uma mesa vermelha laqueada. — É urgente que eu saiba. — Mas não é urgente que eu lhe conte. Não tem o direito de entrar aqui, pôr-se à vontade e me dar ordens. — Acho que tenho. A nossa era uma excursão particular, e você se intrometeu. — Fui incluído naquela maldita excursão! — Por ordem de quem? — Do recepcionista, ou como quer que chamem aquele idiota lá embaixo! — Não ele. Acima dele. Quem foi? — Como vou saber? Não tenho a menor idéia do que você está falando! — Você foi embora. — Foi você quem me disse para ir embora! — Estava testando você. — Testando? Mas isso é inacreditável! — Acredite — disse Jason. — Se está dizendo a verdade, nenhum mal vai lhe acontecer. — Mal? — Não matamos inocentes, apenas o inimigo. — Matam... o inimigo? Bourne enfiou a mão por baixo do paletó, tirou a arma do cinto e colocou-a em cima da mesa. — Agora, convença-me de que não é o inimigo. O que aconteceu depois que nos deixou? Atordoado, Ardisson cambaleou e foi se encostar na parede, os olhos arregalados e assustados, fixos na arma. E balbuciou: — Juro por todos os santos que está falando com o homem errado.
— Convença-me. — De quê? — De sua inocência. O que aconteceu? — Eu... lá na praça, pensei nas coisas que você disse, que alguma coisa terrível acontecera dentro do túmulo de Mao, que os guardas chineses estavam gritando sobre gangsteres estrangeiros, como as pessoas seriam isoladas e detidas... especialmente alguém como eu, que não era realmente um integrante da excursão... E por isso comecei a correr... oh, Deus, eu não podia ficar numa situação assim! Milhões de francos estão envolvidos, a metade do custo de Cingapura, lucros numa escala sem precedentes na indústria da alta moda! Não sou um mero negociador, represento um consórcio! — Então começou a correr e eles o detiveram — interrompeu Jason, ansioso em passar por cima dos elementos não-essenciais. — Isso mesmo! Eles falavam tão depressa que eu não conseguia compreender uma só palavra do que diziam. Uma hora se passou antes que encontrassem alguém que falasse francês. — Por que não lhes contou simplesmente a verdade, que estava com o nosso grupo de excursão? — Porque eu estava fugindo daquela maldita excursão e dera a você o meu crachá! Como isso pareceria a estes bárbaros, que vêem um criminoso fascista em cada rosto branco? — Os chineses não são bárbaros, monsieur — disse Bourne gentilmente. Uma pausa e, subitamente, ele gritou: — Só a filosofia política de seu governo é que é bárbara! Sem a graça de Deus Todo-Poderoso, apenas com a bênção de Satã! — Como? — Talvez mais tarde eu explique — disse Jason, a voz abruptamente calma outra vez. — Então apareceu alguém que falava francês. O que aconteceu em seguida? — Eu disse a ele que saíra para dar um passeio... a sua sugestão, monsieur. E que de repente me lembrei que estava esperando uma ligação de Paris e precisava voltar ao hotel, o que explicava a minha pressa. — Bastante plausível. — Não para a tal autoridade, monsieur. Ele começou a me insultar, fazendo os comentários mais ofensivos e insinuando as coisas mais terríveis. O que teria acontecido naquele túmulo? — Posso garantir que foi um bom trabalho, monsieur — respondeu Bourne, os olhos arregalados. — Como assim?
— Talvez mais tarde eu explique. Quer dizer que o homem foi ofensivo? — Terrivelmente! Mas foi longe demais quando atacou a alta moda de Paris, dizendo que era uma indústria burguesa decadente! Afinal, estamos pagando por seus tecidos... e é claro que eles não precisam saber das margens de lucro. — O que você fez? — Sempre levo uma lista dos nomes das pessoas com quem estou negociando... alguns são muito importantes, pelo que calculo, como não poderia deixar de ser, levando-se em consideração o dinheiro envolvido. Exigi que o tal guarda entrasse em contato com eles e, me recusei... isso mesmo, me recusei... a responder a qualquer outra pergunta até que pelo menos alguns chegassem. Mais duas horas e eles chegaram. O que mudou tudo. Trouxeram-me para cá numa versão chinesa de limusine... muito apertada para um homem do meu tamanho e quatro acompanhantes. E, pior ainda, disseram-me que nossa reunião decisiva foi mais uma vez adiada. Não ocorrerá amanhã de manhã, mas sim ao final da tarde. Que tipo de hora é essa para se tratar de negócios? Ardisson afastou-se da parede, respirando fundo, os olhos agora suplicantes. — Isso é tudo o que tenho para contar, monsieur. Está falando com o homem errado. Não estou envolvido em qualquer coisa por aqui que não os negócios do meu consórcio. — Deve estar! — exclamou Jason, acusador, alteando a voz novamente. — Fazer negócios com o Ímpio é aviltar a obra do Senhor! — Como? — Estou convencido — disse o camaleão. — Você é simplesmente um erro. — Um o quê? — Vou contar o que aconteceu no túmulo de Mao Tsé-tung. Nós fizemos. Atiramos no caixão de cristal e também no corpo do infame infiel! — Vocês o quê? — E continuaremos a destruir os inimigos de Cristo, sempre que os encontrarmos! Levaremos sua mensagem de amor de volta ao mundo, mesmo que tenhamos de matar todos os animais doentes que pensam de outra forma! O mundo inteiro será cristão, ou não haverá mundo algum! — Mas deve haver espaço para negociação. Pense no dinheiro... nas contribuições. — Não de Satã! — Bourne levantou-se, pegou a arma, meteu-a no cintos depois abotoou o paletó e puxou-o, como se fosse uma túnica militar. Aproximou-se do transtornado executivo. — Não é o inimigo, monsieur, mas está próximo. Sua carteira, por favor, e seus documentos comerciais, inclusive os nomes de todos aqueles com quem está negociando.
— Dinheiro...? — Não aceitamos contribuições. Não precisamos. — Então por quê? — Para sua proteção, assim como para a nossa. Nossas células devem investigar os indivíduos, a fim de verificar se você está ou não sendo usado como chamariz. Há indícios de que estamos sendo infiltrados. Tudo lhe será devolvido amanhã. — Devo protestar... — Não faça isso — interrompeu-o o camaleão, tornando a meter a mão por baixo do paletó e mantendo-a ali. — Perguntou quem eu era, não é mesmo? Basta dizer que organizamos as nossas próprias brigadas, já que nossos inimigos empregam os serviços de grupos como a OLP, os Exércitos Vermelhos, os fanáticos do aiatolá e o Baader-Meinhof. Não pedimos nem oferecemos quartel. É uma luta até a morte. — Meu Deus! — Lutamos em Seu nome. Não saia deste quarto. Mande trazer suas refeições para cá. Não telefone para os seus colegas nem para os seus contatos aqui em Pequim. Em outras palavras, fique fora de vista e reze pelo melhor. Para ser franco, devo acrescentar que se fui seguido e descobrirem que vim ao seu quarto, você vai simplesmente desaparecer. — Mas é incrível! Os olhos subitamente desfocados, todo o corpo de Ardisson começou a tremer. — Sua carteira e seus documentos, por favor. Mostrando todos os documentos de Ardisson, inclusive a relação dos negociadores do governo com quem o francês estava lidando, Jason alugou um carro sob o nome do consórcio de moda. Deixou claro para um aliviado despachante no Serviço Internacional de Viagens da China, na Rua Chaoyangmen, que sabia ler e falar mandarim; como o carro alugado seria guiado por um dos negociadores, não havia necessidade de motorista. O despachante garantiu que o carro estaria no hotel às sete horas da noite. Se tudo se ajustasse devidamente, ele teria vinte e quatro horas para circular tão livremente quanto um ocidental poderia fazê-lo em Pequim. As primeiras dez horas lhe diriam se uma estratégica concebida em desespero poderia levá-lo para fora da escuridão ou mergulhar Marie e David Webb num abismo. Mas Delta Um conhecia a mente oriental. Por uma vintena de séculos, não variara sob um aspecto. O sigilo valia dez mil tigres, se não mesmo um reino. Bourne voltou a pé para o hotel, passando pelo apinhado distrito comercial de Wang Eu Jing, logo depois da esquina da ala leste do hotel. No número 255 ficava a Loja de Departamentos Principal, onde efetuou as compras necessárias de roupas e ferramentas.. No número 261 encontrou uma loja chamada Tuzhang Menshibu, que se podia traduzir
como Loja de Gravação de Sinete, onde escolheu o papel timbrado de aparência mais oficial que encontrou. (Para seu espanto e satisfação, a lista de Ardisson incluía não apenas um mas dois generais... e por que não? Os franceses fabricavam o Exocet, um produto que dificilmente poderia ser incluído na esfera da alta moda, mas era uma prioridade da alta tecnologia militar.) Finalmente, na Loja de Artes, número 265 na Wang Fu Jing, comprou uma caneta e um mapa de Pequim e seus arredores, além de um segundo mapa em que estavam indicadas as estradas que partiam de Pequim para as cidades do sul. Levando as compras para o hotel, Bourne foi para uma mesa no saguão e iniciou seus preparativos. Primeiro, escreveu um bilhete em chinês, isentando o motorista do carro alugado de toda e qualquer responsabilidade por entregar o automóvel ao estrangeiro. Estava assinado por um general e equivalia a uma ordem. Segundo, abriu o mapa e fez um círculo numa pequena área verde nos arredores de Pequim, a noroeste. O Santuário de Pássaros Jing Shan. O sigilo valia dez mil tigres, se não mesmo um reino.
Capítulo 25 Marie saltou da cadeira ao ouvir a campainha estridente do telefone. Correu através do quarto, claudicando e estremecendo, e foi atender. — Alô? — Sra. Austin, eu presumo. — Mo?... Mo Panov! Graças a Deus! — Marie fechou os olhos, em gratidão e alívio. Quase trinta horas haviam transcorrido desde que falara com Alexander Conklin, a espera e a tensão — acima de tudo a impotência — haviam-na levado à beira do pânico. — Alex disse que ia pedir a você para acompanhá-lo. Achava que você concordaria. — Achava? Houve alguma dúvida? Como está se sentindo, Marie? E não espero uma resposta de Poliana. — Estou enlouquecendo, Mo. Bem que tento resistir, mas estou ficando maluca. — Como não completou a jornada, eu diria que tem sido extraordinária... e o fato de estar lutando em cada passo do caminho a torna ainda mais extraordinária. Mas também você não precisa de qualquer psicologia de algibeira da minha parte. Eu queria apenas um pretexto para ouvir sua voz de novo. — Para descobrir se eu era uma ruína balbuciante — disse Marie gentilmente. — Passamos por muita coisa juntos para esse subterfúgio de terceira classe... e eu jamais escaparia impune com você. O que, diga-se de passagem, não aconteceu. — Onde está Alex? — Falando ao telefone público aqui perto. Pediu-me que ligasse para você. Acho que ele quer falar com você enquanto a pessoa no outro aparelho, quem quer que seja, ainda está na linha... Espere um instante. Ele está acenando com a cabeça. A próxima voz que vai ouvir et cetera et cetera. — Marie? — Alex? Obrigada... obrigada por ter vindo... — Como diria seu marido, “Não há tempo para isso”. O que estava usando quando eles a viram pela última vez? — Usando? — Quando escapou deles. — Escapei duas vezes. A segunda foi em Tuen Mun.
— Não nessa ocasião — interrompeu Conklin. — O contingente era pequeno e havia muita confusão... se bem me lembro o que você me contou. Aqui. Aqui em Hong Kong. Seria a descrição com que eles começariam, a descrição que ficaria em suas mentes. O que estava vestindo na ocasião? — Deixe-me pensar... No hospital... — Depois disso — interrompeu-a Alex de novo. — Falou em trocar de roupas, comprar algumas coisas. O consulado canadense, o apartamento de Staples. Pode lembrar? — Como você pode lembrar? — Não há mistério nenhum. Tomo notas. É um dos subprodutos do álcool. Depressa, Marie. Em termos gerais, o que estava usando? — Uma saia pregueada... isso mesmo, uma saia pregueada cinza. E uma blusa meio azulada, de gola alta... — Provavelmente mudaria isso. — Como? — Não importa. O que mais? — Um chapéu, com a aba bem larga para cobrir o meu rosto. — Ótimo! — E uma falsa bolsa Gucci que comprei na rua. Sandálias, para parecer mais baixa. — Quero a altura. Vamos continuar com os saltos. Está ótimo, é tudo de que preciso. Para que, Alex? O que está fazendo? — Brincando de seu-mestre-mandou. Sei perfeitamente que os computadores de passaportes do Departamento de Estado me pegaram. Com o meu andar suave e atlético, até mesmo os seus cães de caça poderiam me reconhecer na alfândega. Eles não sabem de nada, mas alguém está dando as ordens, e quero saber quem mais aparece. — Acho que não entendi direito. — Explicarei depois. Fique onde está. Vamos para aí o mais depressa que pudermos nos livrar dos vigias. Mas é indispensável que tudo esteja limpo.., até esterilizado... e por isso pode demorar uma hora ou mais. — E Mo? — Ele tem de ficar comigo. Se nos separarmos agora, na melhor das hipóteses eles vão segui-lo; na pior, vão detê-lo.
— Por que não você também? — Não vão tocar em mim; vão se limitar a uma vigilância cerrada. — Está muito confiante. — Estou furioso. Eles não podem saber o que deixei para trás, com quem e com que instruções, se houver alguma interrupção em telefonemas previamente combinados. Para eles, sou neste momento uma bomba atômica ambulante... claudicante... que pode explodir toda a operação, qualquer que seja. — Sei que disse que não há tempo, Alex, mas preciso lhe dizer uma coisa. Não tenho certeza por que, mas preciso dizer. Creio que uma das coisas em relação a você que mais magoou e enfureceu David foi o fato de que ele o considerava o melhor no que fazia. Às vezes, quando tomava alguns drinques ou sua mente vagueava... abrindo-lhe uma ou duas portas... ele sacudia a cabeça tristemente ou batia com os punhos furiosamente e se perguntava: “Por quê? Por quê?” E dizia também: “Ele era melhor do que isso... era o melhor.” — Eu não era páreo para Delta. Ninguém era. Nunca foi. — Pois você me parece muito bom. — Porque não estou saindo do frio, mas indo. Com um motivo melhor do que jamais tive antes, em toda a minha vida. — Tome cuidado, Alex. — Diga a eles para tomarem cuidado. Conklin desligou, e Marie sentiu as lágrimas escorrendo pelas faces Morris Panov e Alex deixaram a loja de souvenirs na estação ferroviária de Kowloon e se encaminharam para a escada rolante que descia para o andar inferior, plataformas 5 e 6. Mo, o amigo, estava perfeitamente disposto a seguir as instruções de seu ex-paciente. Mas Panov, o psiquiatra, não pôde resistir a manifestar sua opinião profissional. — Não é de admirar que vocês sejam tão confusos — comentou ele, carregando um urso panda de pelúcia debaixo do braço e uma revista de cores brilhantes na mão. — Deixe-me ver se entendi direito. Quando descermos, eu sigo para a direita, que é a plataforma 6, depois viro para a esquerda, na direção do fim do trem, que presumimos chegará dentro de poucos minutos. Correto até aqui? — Correto — respondeu Conklin, gotas de suor aflorando na testa, enquanto claudicava ao lado do médico. — Fico esperando junto da última coluna, segurando este bicho fétido debaixo do braço, ao mesmo tempo em que folheio esta revista extremamente pornográfica, até que uma mulher se aproxima. — Correto de novo — disse Alex, enquanto desciam pela escada rolante. — O panda é um
presente perfeitamente normal, muito apreciado pelos ocidentais. Pense como um presente para o seu filho. A revista pornográfica simplesmente completa o reconhecimento. Pandas e fotografias obscenas de mulheres nuas em geral não combinam. — Ao contrário, a combinação pode ser positivamente freudiana. — Marque um ponto pela piada. E trate de fazer o que estou dizendo. — Ainda não me falou o que devo dizer à mulher. — Experimente “Prazer em conhecê-la” ou “Como está a criança?” Não tem importância. Entregue o panda a ela e volte para esta escada rolante o mais depressa que puder, sem correr. Chegaram lá embaixo, e Conklin tocou no cotovelo de Panov, virando-o para a direita. — Vai se sair muito bem, Treinador. Basta fazer o que mandei e depois voltar para cá. Tudo vai dar certo. — É mais fácil dizer isso do lugar em que geralmente me sento. Panov encaminhou-se para a extremidade da plataforma, enquanto o trem de Lo Wu entrava ruidosamente na plataforma. Parou junto à última coluna. Passageiros às centenas passaram pelas portas, enquanto o médico desajeitadamente mantinha o panda preto e branco debaixo do braço e levantava a revista diante do rosto. E quando aconteceu, ele quase teve um colapso. — Você deve ser Harold! — exclamou a voz alta de falsete, um vulto alto, intensamente maquilado, sob um chapéu de aba larga e uma saia cinza pregueada, batendo em seu ombro. — Eu o reconheceria em qualquer lugar, querido! — Prazer em conhecê-la. Como está a criança? Morris mal conseguia falar. — Como está Alex? — disse a voz de homem, baixinho. — Devo a ele e pago minhas dívidas, mas isso é um absurdo. Ele ainda conserva a sanidade? — Não tenho certeza se isso acontece com qualquer um de vocês — balbuciou o atônito psiquiatra. — Depressa! — sussurrou a estranha figura. — Eles estão se aproximando. Entregue-me o panda, e quando eu começar a correr, misture-se à multidão e saia daqui. Dê-me logo! Panov obedeceu, percebendo que vários homens rompiam pelos grupos irregulares de passageiros e convergiam para os dois. Subitamente, o homem de ruge no rosto e roupas de mulher correu para trás da grossa coluna e emergiu no outro lado. Tirou os sapatos de saltos altos, tornou a contornar a coluna e, como um jogador de futebol americano, disparou para a multidão mais perto do trem, passando por um chinês que tentou agarrá-lo e esquivando-se através de corpos agredidos e rostos
aturdidos. Por trás, outros homens se lançaram na perseguição frustrados pelos passageiros cada vez mais hostis, que começaram a usar malas e mochilas para evitar as desconcertantes investidas. De alguma forma, no quase tumulto, o panda foi parar nas mãos de uma mulher ocidental alta, que também segurava um horário dos trens desdobrado. A mulher foi agarrada por dois chineses bem vestidos; ela gritou; eles fitaram-na, gritaram um para o outro e seguiram em frente. Morris Panov seguiu novamente as instruções: misturou-se apressado com a multidão que se retirava no outro lado da plataforma, avançou rapidamente para a escada rolante, onde uma fila se formara. Havia uma fila, mas Alex Conklin não estava à vista! Reprimindo o pânico, Mo diminuiu a velocidade, mas continuou a andar, olhando ao redor, esquadrinhando a multidão, assim como as pessoas que subiam pela escada rolante. O que acontecera? Onde estava o homem da CIA? — Mo! Panov virou-se para a esquerda, o grito breve ao mesmo tempo um alívio e uma advertência. Conklin contornara parcialmente uma coluna, dez metros além da escada rolante. Com gestos rápidos, indicou que tinha de continuar onde estava e Mo devia ir ao seu encontro, mas devagar, cautelosamente. Panov assumiu o ar de um homem irritado com a fila, um homem que esperaria a multidão diminuir antes de tentar alcançar a escada rolante. Desejou ser um fumante ou pelo menos não ter jogado a revista pornográfica nos trilhos; qualquer uma das coisas seria algo para fazer. Em vez disso, cruzou as mãos nas costas e caminhou casualmente pela área deserta da plataforma, olhando ao redor duas vezes e franzindo o rosto para a fila. Alcançou a coluna, esgueirou-se para trás e reprimiu uma exclamação de espanto. Aos pés de Conklin estava estendido um atordoado homem de meia-idade, vestindo uma capa, com o pé deformado de Conklin no meio de suas costas. — Gostaria que conhecesse Matthew Richards, doutor. Matt é um veterano do Extremo Oriente, desde os primeiros tempos de Saigon, quando nos conhecemos. É claro que ele era mais jovem naquela ocasião, muito mais ágil. Mas também isso acontecia com todos nós. — Pelo amor de Deus, Alex, deixe-me levantar! — suplicou o homem chamado Richards, sacudindo a cabeça da melhor forma que podia na posição em que se encontrava. — Minha cabeça dói um bocado! Com que você me atingiu? Um pé-de-cabra? — Não, Matt. Com o sapato do meu pé inexistente. Pesado, bem? Mas precisa ser assim, para agüentar tanta coisa. Quanto a deixá-lo levantar, você sabe que não posso fazer isso enquanto não responder às minhas perguntas. — Mas já respondi! Não passo de um controlador, não sou o chefe do posto! Pegamos você por uma diretriz de Washington que mandava pô-lo sob vigilância. E depois o Departamento de Estado enviou outra ordem, de que não cheguei a tomar conhecimento! — Já lhe disse que acho isso difícil de acreditar. Vocês têm uma unidade coesa aqui. Todo mundo sabe de tudo. Seja sensato, Matt. Afinal, nos conhecemos há muito tempo. O que dizia a nova diretriz do Departamento de Estado?
— Não sei! Era apenas para o conhecimento do chefe do posto! — É o comandante da unidade, doutor — explicou Conklin, olhando para Panov. — E o nosso recurso mais antigo. Estamos sempre usando-o quando nos metemos em complicações com outras agências do governo. “O que sei eu? Pergunte ao CP.” Assim, livramos a nossa cara, porque ninguém está disposto a pressionar um chefe de posto. O CP tem uma linha direta com Langley e, dependendo do Ioiô Oval, Langley tem uma linha direta com a Casa Branca. É tudo muito politizado, cabe ressaltar, não tem muito a ver com a coleta de informações. — Muito esclarecedor — comentou Panov, olhando para o homem no chão, sem saber o que dizer, agradecido pelo fato de a plataforma estar agora praticamente vazia e a coluna se encontrar nas sombras. — Não é recurso nenhum! — berrou Richards, debatendo-se sob o peso opressivo da pesada botina de Conklin. — Estou dizendo a verdade! Vou cair fora em fevereiro próximo! Por que eu haveria de querer logo agora alguma encrenca com você ou qualquer outro no quartel-general? — Ah, Matt, pobre Matt, você nunca foi o melhor ou o mais inteligente. Acaba de responder à sua própria pergunta. Pode sentir o gosto daquela aposentadoria, exatamente como eu, e não quer nenhum problema. Estou relacionado como um homem que deve ficar sob vigilância intensa e não quer estragar uma diretriz em que está envolvido. Muito bem, companheiro, vou fazer um relatório de avaliação que ocasionará sua transferência para o serviço de demolições na América Central até seu tempo se esgotar... se você durar tanto assim. — Corta essa! — Imagine só, ser subjugado por um mero aleijado atrás de uma coluna numa estação ferroviária apinhada. Provavelmente vão mandar você minar alguns portos sozinho. — Não sei de nada! — Quem são os chineses? — Eu não... — Não são da polícia. Então quem são? — Do governo. — Que setor? Tinham de dizer pelo menos isso a você... o CP não podia deixar de lhe contar. Ele não ia deixar você trabalhar como cego. — Mas, é justamente o que está acontecendo! Ele só disse que os homens haviam sido autorizados a trabalhar no caso por ordens superiores. E jurou que não sabia de mais nada. O que deveríamos fazer? Pedir para ver suas carteiras de motorista? — Portanto, ninguém é responsável, porque ninguém sabe de nada. Não seria sensacional se
fossem chinas comunas à procura de um desertor? — O CP é responsável. Tudo depende dele. — Ah, a suprema moral... “Apenas cumprimos ordens, Herr General.” — Conklin exagerou no sotaque alemão. — “E é claro que Herr General também não sabe de nada, porque está cumprindo as suas ordens.” Alex fez uma pausa, estreitando os olhos. — Havia um homem, um sujeito grandalhão que parecia um Paul Bunyan chinês... — Conklin parou de falar. A cabeça de Richards se mexera abruptamente, o corpo se contraíra. — Quem é ele, Matt? — Não sei... juro. — Quem? — Eu o vi, e pronto. E difícil deixar de reparar num homem assim. — Isso não é tudo. Porque é difícil deixar de reparar nele e, considerando os lugares em que o viu, você fez perguntas. O que descobriu? — Sabe muito bem como são essas coisas, Alex! Apenas rumores, não há nada de concreto! — Adoro rumores. Fale logo, Matt, ou esta coisa feia e pesada na minha perna pode ter de amassar o seu rosto. Não posso controlá-la. Tem vontade própria e não gosta de você. Pode ser muito hostil, até mesmo comigo. Com algum esforço; Conklin levantou subitamente o pé aleijado e bateu com ele entre as omoplatas de Richards. — Ei, você vai me quebrar as costas! — Não, Matt. Acho que está querendo quebrar seu rosto. Quem é ele, Matt? Fazendo outra careta, Alex tornou a levantar o pé postiço e baixou-o sobre a base do crânio do agente da CIA. — Está bem! Como eu disse, não é o evangelho, pois ouvi o rumor de que ele está nos altos escalões da CI da Coroa. — CI da Coroa é a Contra-Inteligência britânica aqui em Hong Kong — explicou Conklin a Morris Panov. — É um ramo de MI-Seis, o que significa que recebe suas ordens de Londres. — Muito esclarecedor — repetiu o psiquiatra, não só aturdido, mas também assustado.
— Muito mesmo — concordou Alex. — Pode me emprestar sua gravata, doutor? Começando a tirar a própria gravata, acrescentou: — Vou substituí-la com o dinheiro do fundo de emergência, pois temos agora um novo desenvolvimento. Estou oficialmente em ação. Langley aparentemente está financiando... através do salário e tempo de Matthew... alguma coisa envolvendo uma operação de um serviço aliado. Como servidor civil, tenho a obrigação de colaborar. Preciso de sua gravata também, Matt. Dois minutos depois, Richards estava com as mãos e os pés amarrados, a boca tapada, por trás da coluna, graças a três gravatas. — Tudo limpo — disse Alex, observando o que restara da multidão além da coluna. — Todos se foram atrás de nossa isca, que provavelmente já se encontra a esta altura na metade do caminho para a Malásia. — Quem era ela... ele? Tenho certeza que não era mulher. — Sem a intenção de machismo, eu diria que uma mulher provavelmente não conseguiria escapar daqui. Ele conseguiu, levando os outros junto... em seu encalço. Pulou sobre a grade da escada rolante e fugiu. Vamos embora. Estamos limpos. — Mas quem é ele? — insistiu Panov, enquanto contornavam a coluna, na direção da escada rolante e dos poucos passageiros que formavam uma fila curta. — Nós o usávamos por aqui de vez em quando, principalmente como um par de olhos para instalações remotas ao longo da fronteira, sobre as quais ele conhece alguma coisa, já que tem de passar por elas com sua mercadoria. — Narcóticos? — Ele não se envolve com essas coisas. Tem muita classe. Contrabandeia ouro e jóias roubadas, e opera entre Hong Kong, Macau e Cingapura. Acho que tem alguma relação com o que lhe aconteceu há vários anos. Tiraram todas as suas medalhas por conduta indecorosa. Ele posou para algumas fotografias obscenas quando estava na universidade e precisava do dinheiro. Mais tarde, graças aos bons ofícios de um editor insinuante, com a ética de um gato vadio, as fotografias foram divulgadas e ele foi crucificado, arruinado. — Aquela revista que eu levava! — exclamou Mo, quando os dois entraram na escada rolante. — Acho que era algo assim. — Que medalhas? — Jogos Olímpicos de 1976. Atletismo. Sua especialidade era a corrida com barreiras. Atônito, Panov ficou olhando para Alexander Conklin, enquanto subiam na escada rolante,
aproximando-se da saída da estação. Um pelotão de garis, carregando vassouras largas nos ombros, apareceu na escada rolante oposta, descendo para a plataforma. Alex sacudiu a cabeça na direção deles, estalou os dedos da mão direita e, com o polegar estendido, espetou o ar na direção da saída da estação por cima. A mensagem era evidente. Dentro de alguns momentos, um agente da CIA manietado seria encontrado por trás de uma coluna. — Deve ser o homem que eles chamam de major — comentou Marie, sentada numa cadeira em frente a Conklin, com Morris Panov ajoelhado ao seu lado, examinando seu pé esquerdo. — Ui! — gritou ela, puxando a perna cruzada. — Desculpe, Mo. — Não precisa se desculpar — respondeu o médico. — É uma contusão grave, que atingiu o segundo e terceiro metatarsos. Deve ter levado uma queda e tanto. — Várias. Sabe cuidar de pés? — Neste momento eu me sinto mais seguro com a ortopedia do que com a psiquiatria. Vocês vivem num mundo que empurraria minha profissão de volta à Idade Média... não que a maioria de nós já tenha saído de lá. Acontece apenas que as palavras são mais difíceis. — Panov levantou os olhos para Marie, contemplando os cabelos grisalhos. — Recebeu um excelente trata mento médico, ex-ruiva. Exceto pelos cabelos. Estão horríveis. — Estão ótimos — protestou Conklin — O que você sabe dessas coisas? Não se esqueça de que também foi meu paciente. — Mo tornou a se concentrar no pé. — Está tudo sarando muito bem... os talhos e as bolhas... mais um pouco e estará completamente restabelecida. Mais tarde pegarei algumas coisas e mudarei os curativos. Panov levantou-se e foi buscar a cadeira de espaldar reto da pequena escrivaninha. — Quer dizer que vai ficar aqui? — perguntou Marie. — No final do corredor — respondeu Alex. — Não foi possível conseguir nenhum dos dois quartos ao lado do seu. — Como arrumou esse quarto? — Com dinheiro. Estamos em Hong Kong, e as reservas são perdidas a todo momento por alguém que não se encontra de serviço... Mas voltemos ao major. — Seu nome é Lin Wenzu. Catherine Staples me disse que ele é do Serviço Secreto inglês. Fala inglês com sotaque britânico. — Ela tinha certeza? — Absoluta. Disse que ele era considerado o melhor oficial do Serviço Secreto em Hong Kong e que isso incluía todos da KGB à CIA.
— Não é difícil de compreender. Seu nome é Lin, e não Ivanovitch ou Joe Smith. Um nativo talentoso é enviado para a Inglaterra, instruído e treinado, depois volta para assumir uma posição de responsabilidade no governo. A política colonial normal, especialmente nas áreas policial e de segurança do território. — O ideal de um ponto de vista psicológico — acrescentou Panov, sentando. — Há menos ressentimentos assim e se lança outra ponte para a comunidade estrangeira governada. — Sei disso — murmurou Alex, balançando a cabeça. — Mas alguma coisa está faltando. As peças não se ajustam. Uma coisa é Londres dar o sinal verde para uma operação secreta nossa... justamente o que está acontecendo, por tudo o que já descobrimos, talvez com a diferença de esta ser mais insólita do que a maioria... mas outra muito diferente é o MI-Seis emprestar seu pessoal local, numa colônia que o Reino Unido ainda controla. — Por quê? — indagou Panov. — Por vários motivos. Primeiro, eles não confiam em nós... não que desconfiem de nossas intenções, mas apenas de nossa inteligência. Sob alguns aspectos, estão certos, em outros, redondamente enganados. Mas é o julgamento deles. Segundo, por que arriscar seu pessoal à exposição em decorrência de decisões tomadas por um burocrata americano, sem qualquer experiência de administração de operações secretas no campo? Esse é o ponto principal, o motivo pelo qual Londres rejeitaria sumariamente. — Presumo que está se referindo a McAllister — disse Marie. — Até uma galinha criar dentes. — Conklin sacudiu a cabeça, expirando enquanto o fazia. — Andei pesquisando e posso dizer que ele é o fator mais forte ou o mais fraco desse roteiro. Desconfio da segunda hipótese. Ele é cérebro puro e frio, como McNamara antes de sua conversão à dúvida. — Pare com os rodeios e explique objetivamente — protestou Mo Panov. — Nada de fantasia. Deixe isso comigo. — O que estou querendo dizer, doutor, é que Edward Newington McAllister não passa de um coelho. Levanta as orelhas ao primeiro sinal de conflito ou lapso e trata de fugir. É um analista e dos melhores, mas não tem condições para ser um controlador de uma operação, muito menos um chefe de posto. E não pense sequer que ele pode ser o estrategista por trás de uma grande operação secreta. Pode estar certo de que ririam dele nos bastidores. — Ele foi muito convincente quando falou comigo e com David — interveio Marie. — Deram tudo por escrito. “Prepare o alvo”, foi a sua instrução. Atendo-se à narrativa tumultuada, que se tornaria mais clara para o alvo por estágios, à medida que efetuasse os seus primeiros movimentos. O que ele não podia deixar de fazer, porque você desapareceu. — Quem escreveu o roteiro? — indagou Panov. — Eu bem que gostaria de saber. Nenhuma das pessoas com quem entrei em contato em
Washington sabe... e isso inclui muita gente que deveria saber. Não estavam mentindo. Depois de tantos anos, posso perceber um instante de hesitação numa voz. A coisa é tão profunda e com tantas contradições que faz Casa de Pedra 71 parecer um esforço de amador... o que não foi, diga-se de passagem. — Catherine me disse outra coisa — interveio Marie. — Não sei se vai ajudar ou não, mas isso me ficou na cabeça. Ela disse que um homem chegou a Hong Kong, um “estadista”, como o chamou, alguém que era “muito mais que um diplomata” ou algo parecido. Achava que poderia haver uma ligação com tudo o que tinha acontecido. — Qual era o nome dele? — Ela nunca me disse. Mais tarde, quando avistei McAllister na rua em sua companhia, presumi que fosse ele. Mas talvez não seja. O analista que você acabou de descrever e o homem nervoso que conversou comigo e com David dificilmente poderiam ser um grande diplomata, muito menos um estadista. Só pode ser outra pessoa. — Quando ela disse isso a você? — perguntou Conklin. — Há três dias, quando estava me escondendo em seu apartamento em Hong Kong. — Antes de levar você para Tuen Mun? — indagou Alex, inclinando-se para a frente. — Isso mesmo. — E ela não tornou a mencioná-lo? — Não. Quando perguntei, ela disse que não havia sentido em qualquer das duas acalentar esperanças. Alegou que precisava escavar mais um pouco, para repetir suas palavras. — E você se contentou com isso? — Claro. Na ocasião, eu estava convencida de que compreendia tudo. Não havia motivo para duvidar de Catherine. Ela estava assumindo um risco pessoal e profissional ao me ajudar... aceitando minha palavra por sua própria iniciativa, sem pedir a orientação consular, algo que outros poderiam fazer simplesmente como uma proteção. Falou em “insólito”, Alex. Pois vamos ser francos: o que eu contei a ela era tão insólito que se tornava chocante... uma teia de mentiras fabricadas pelo Departamento de Estado americano, o sumiço de guardas da CIA, suspeitas que levavam aos escalões mais altos de seu governo. Uma pessoa inferior poderia recuar para se proteger. — Pondo de lado a gratidão — comentou Alex gentilmente — ela estava retendo informações que você tinha o direito de conhecer. Afinal, depois de tudo por que você e David passaram... — Está enganado, Alex — interrompeu-o Marie, também gentilmente. — Eu disse que achava que a compreendia, mas não acabei. A coisa mais cruel que se pode fazer com uma pessoa que está
vivendo cada hora em pânico é lhe oferecer uma esperança que prova ser infundada. Quando ocorre o estouro, é insuportável. Acredita em mim. Passei mais de um ano com um homem que procurava desesperadamente por respostas. Descobriu várias, mas aquelas que seguiu apenas para descobrir que estavam erradas quase o destruíram. Esperanças frustradas são terríveis para a pessoa que só tem esperança. — Ela tem razão — disse Panov, acenando com a cabeça e olhando para Conklin. — E tenho a impressão de que você sabe disso, não é? — Aconteceu — respondeu Alex, dando de ombros e olhando para o relógio. — Seja como for, chegou a hora para Catherine Staples. — Ela deve estar sendo vigiada, guardada! — Foi Marie quem se inclinou para a frente agora, a expressão preocupada, os olhos inquisitivos. — Vão presumir que os dois vieram até aqui por minha causa, entraram em contato comigo e eu falei sobre ela. Calcularão que vão procurá-la. Estarão à espera. E se podem fazer tudo o que fizeram até agora, podem perfeitamente matar você, Alex! — Não, não podem —disse Conklin, levantando-se e claudicando para o telefone na mesinhade-cabeceira. Uma pausa e ele acrescentou, simplesmente: — Eles não são bons o suficiente para isso. — Você é um caso terrível! — sussurrou Matthew Richards, sentado ao volante do cano pequeno, estacionado em frente ao prédio de Catherine Staples, no outro lado da rua. — Não está sendo agradecido como deveria, Matt — disse Alex, sentado nas sombras, ao lado do homem da CIA. — Não apenas deixei de enviar aquele relatório de avaliação, como também permiti que você voltasse a me vigiar. Deve agradecer, e não me insultar. — Merda! — O que disse no escritório? — E o que eu podia dizer? Fui assaltado! — Por quantos? — Pelo menos cinco delinqüentes juvenis. Zhongguo ren. — E se reagisse, criando o maior tumulto, eu poderia localizá-lo. — Foi essa a história em linhas gerais — confirmou Richards. — E quando eu telefonei para você, é claro que disse que era um dos contatos das ruas que sempre cultivou, informando ter visto um homem branco que mancava. — Bingo. — Pode até ganhar uma promoção.
— Só quero escapar dessa. E cair fora do serviço. — Vai conseguir. — Não deste jeito. — Quer dizer que foi o velho Havilland em pessoa quem armou o circo. — Não foi por meu intermédio que obteve essa informação. Saiu nos jornais. — A casa segura em Victoria Peak não foi mencionada pelos jornais, Matt. — Não me venha com essa, Alex. Houve uma troca. Você me trata bem e eu reajo da mesma forma. Nenhum relatório desfavorável a meu respeito, dizendo que fui posto fora de com bate por um sapato sem pé, e você recebe um endereço. De qualquer maneira, eu negaria tudo. Obteve a informação em Garden Road. Todo o consulado já sabe, graças a um fuzileiro furioso. — Havilland... — murmurou Alex. — A coisa se ajusta. Ele é unha e carne com os britânicos, até fala como eles... Oh, Deus, eu deveria ter reconhecido a voz! — A voz? — repetiu Ríchards, perplexo. — A voz ao telefone. Outra página do roteiro. Era Havilland! Ele não deixaria que qualquer outro se encarregasse! “Nós a perdemos.” E eu caí na armadilha como um otário! — Como assim? — Esqueça. — Com o maior prazer. Um automóvel diminuiu a velocidade e parou do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos de Catherine Staples. Uma mulher saiu pela porta traseira junto ao meio-fio. Ao vê-la, à luz dos lampiões, Conklin teve certeza de quem era. Catherine Staples. Ela acenou com a cabeça para o motorista, virou-se e atravessou a calçada para as portas de vidro grosso da entrada do prédio. Subitamente, um motor rugindo ao ser acelerado ao máximo rompeu o silêncio da rua ao lado do parque. Um sedã comprido e preto saiu de uma vaga por trás deles e foi parar com um ranger de pneus junto ao carro que trouxera Staples. Explosões sucessivas partiram do segundo carro. Cacos de vidro espalharam-se pela rua e calçada, enquanto as janelas do automóvel estacionado eram espatifadas, juntamente com a cabeça do motorista. As portas de vidro do prédio se fragmentaram, ruindo em fragmentos ensangüentados, enquanto o corpo de Catherine Staples era pregado na moldura das portas, sob a saraivada de balas. Pneus rangendo outra vez, o sedã preto disparou pela rua escura, deixando em sua esteira uma carnificina, sangue e carne dilacerada por toda a parte.
— Santo Deus! — gritou o homem da CIA. — Saia daqui — ordenou Conklin. — Para onde? Pelo amor de Deus, para onde? — Victoria Peak. — Você ficou louco? — Não... mas alguém ficou. Um filho da puta sangue azul perdeu a cabeça. Não sabe mais o que faz. E eu serei a primeira pessoa que vai lhe dizer isso. Vamos embora!
Capítulo 26 Bourne parou o sedã preto Xangai no trecho escuro, arborizado e deserto da estrada. Segundo o mapa, passara pelo Portão Oriental do Palácio de Verão... na verdade, apenas uma série de antigas residências reais, espalhadas por acres de campos ajardinados, dominados por um lago conhecido como Kunming. Ele seguira o litoral norte, até que a luzes coloridas do vasto parque dos imperadores ficassem para trás, dando lugar à escuridão da estrada pelo campo. Apagou os faróis agora, saltou e carregou suas compras, agora numa mochila impermeável, até o paredão de árvores à beira da estrada. Cravou o calcanhar no solo. A terra era macia, facilitando o seu trabalho, pois sempre havia a possibilidade de que o carro alugado fosse revistado. Abriu a mochila, tirou um par de luvas de operário e uma faca de caça de lâmina comprida. Ajoelhou-se e abriu um buraco fundo, o suficiente para esconder a mochila; deixou-a aberta, pegou a faca e deu um talho no tronco da árvore mais próxima, expondo a madeira branca por baixo da casca. Guardou a faca e as luvas na mochila, fechou-a, empurrou-a pelo buraco, cobriu com terra. Voltou ao carro, verificou o velocímetro, ligou o motor. Se o mapa era preciso nas distâncias, como era ao detalhar as áreas em Pequim e nos arredores em que era proibido trafegar, a entrada para o Santuário Jing Shan não estava a mais de um quilômetro de distância, logo depois de uma curva comprida à frente. O mapa era acurado. Dois refletores convergiam sobre o portão de metal, alto e verde, por baixo de enormes painéis, mostrando pássaros de cores brilhantes. O portão estava fechado. Numa pequena estrutura de vidro, à direita, sentava um guarda solitário. A vista dos faróis do carro de Jason se aproximando, ele se levantou de um pulo e saiu apressado. Era difícil determinar se o casaco e a calça do homem constituíam ou não um uniforme; não havia indício de arma. Jason levou o sedã até poucos metros do portão, saltou e encaminhou-se para o chinês no outro lado, surpreso ao descobrir que o homem beirava os sessenta anos. — Bei tong, bei tong — disse Jason, antes que o guarda pudesse falar, pedindo deculpas por incomodá-lo. Tirando do bolso interno a lista dos negociadores designados para o executivo francês, ele continuou rapidamente: — Tive um dia terrível. Deveria ter chegado aqui há três horas e meia, mas o carro não apareceu e não pude entrar em contato com o Ministro... — Ele escolheu o nome do ministro da indústria têxtil na lista. — ... Wang Xu. Tenho certeza de que ele está tão aborrecido quanto eu! — Fala a nossa língua — murmurou o guarda, aturdido. — E tem um carro sem motorista. — O ministro autorizou. Já estive em Pequim muitas e muitas vezes. Vamos jantar juntos. — Estamos fechados, e não há restaurante aqui. — Ele não deixou um bilhete para mim? — Ninguém deixa coisa alguma aqui, a não ser coisas perdidas. Tenho um ótimo binóculo japonês que poderia vender muito barato. Aconteceu. Além do portão, a cerca de trinta metros pela estrada de terra, Bourne divisou um
homem nas sombras de uma árvore alta, um homem usando uma túnica comprida — quatro botões — um oficial. Tinha na cintura um cinto largo de coldre. Uma arma. — Lamento, mas não tenho qualquer serventia para um binóculo. — Talvez um presente? — Tenho poucos amigos e meus filhos são ladrões. — É um homem triste. Não existe nada além dos filhos e amigos... e os espíritos, é claro. — Quero apenas encontrar o ministro. Estamos discutindo renminbi aos milhões! — O binóculo custa apenas uns poucos yuans. — Está bem. Quanto? — Cinqüenta. — Pode ir buscar — disse o camaleão, impaciente, enfiando a mão no bolso, o olhar se desviando casualmente além da cerca verde, enquanto o guarda voltava à guarita. O oficial chinês recuara mais ainda pelas sombras, mas continuava a vigiar o portão. O ressoar no peito de Jason parecia mais uma vez com timbales, como acontecera tantas vezes nos tempos da Medusa. Revelara um truque, expusera uma estratégia. Delta conhecia a mente oriental. Sigilo. Claro que o vulto solitário não confirmava, mas também não negava. — Veja como é maravilhoso! — gritou o guarda, correndo de volta ao portão e estendendo o binóculo. — Cem yuans! — Você disse cinqüenta! — Não tinha notado as lentes. Vale muito mais. Dê-me o dinheiro e jogarei por cima do portão. — Está bem — disse Bourne, prestes a passar o dinheiro pela grade da cerca. — Mas com uma condição, ladrão. Se por acaso você for interrogado a meu respeito, não quero ficar numa situação embaraçosa. — Interrogado? Isso é bobagem. Não há mais ninguém por aqui. Delta estava certo. — Mas caso seja, exijo que diga a verdade. Sou um executivo francês procurando com urgência esse ministro da indústria têxtil, porque meu carro foi imperdoavelmente atrasado. Não quero ficar numa posição embaraçosa! — Como quiser. O dinheiro, por favor.
Jason empurrou as notas pela cerca; o guarda pegou-as e jogou o binóculo por cima do portão. Bourne recolheu-o e fitou o chinês com expressão suplicante. — Tem alguma idéia do lugar para onde o ministro possa ter ido? — Tenho, sim... e já ia lhe contar, sem dinheiro adicional. Homens tão importantes como você e ele sem dúvida iriam para o restaurante chamado Ting Li Guan. É muito apreciado pelos estrangeiros ricos e pelos homens poderosos do nosso governo celestial. — Onde fica? — No Palácio deVerão. Passou por lá nesta estrada. Volte uns quinze ou vinte quilômetros e verá o grande portão Dong An Men. Entre, e os guias vão indicar o resto do caminho. Mas terá de mostrar os papéis, senhor. Viaja de uma maneira muito estranha. — Obrigado! — gritou Jason, correndo para o carro. — Vive la France! — Muito bonito — disse o guarda, dando de ombros, enquanto voltava para seu posto, contando o dinheiro. O oficial aproximou-se em silêncio da guarita e bateu no vidro. Atônito, o vigia noturno pulou da cadeira e abriu a porta. — Oh, senhor, deu-me um susto! Vejo que ficou trancado aqui dentro. Talvez tenha pegado no sono em um dos nossos lindos locais de repouso. É lamentável. Vou abrir o portão agora mesmo. — Quem era aquele homem? — perguntou o oficial, calmamente. — Um estrangeiro, senhor. Um negociante francês que teve um grande infortúnio. Pelo que entendi, ele devia encontrar aqui o ministro da indústria têxtil há horas e depois os dois iriam jantar, mas seu automóvel atrasou. Ele está muito aborrecido. Não quer ficar numa situação embaraçosa. — Que ministro da indústria têxtil? — Se não me engano, ele disse que era o Ministro Wang Xu. — Espere lá fora, por favor. — Pois não, senhor. Abro o portão? — Dentro de alguns minutos. O oficial entrou na guarita, pegou o telefone no pequeno balcão e discou. Segundos depois disse pelo aparelho: — Pode me dar o número de um ministro da indústria têxtil chamado Wang Xu?... Obrigado — Ele abaixou o gancho, soltou-o, tornou a discar. —
Ministro Wang Xu, por favor. — Sou eu mesmo — disse uma voz um tanto irritada no outro lado da linha. — Quem está falando? — Um funcionário do Conselho do Comércio, senhor. Estamos fazendo uma verificação de rotina sobre um executivo francês que o indicou como referência... — Ah, Grande Jesus Cristão, não aquele idiota do Ardisson! O que ele fez agora? — Conhece o homem, senhor? — Gostaria de não conhecer... especialmente esse homem! Ele pensa que, ao defecar, o odor de lilás se espalha pela latrina. — Deveria jantar com ele esta noite, senhor? — Jantar? Posso ter dito qualquer coisa para mantê-lo quieto esta tarde! Mas é claro que ele só ouve o que quer, e seu chinês é horrível. Por outro lado, é perfeitamente possível que ele tenha usado meu nome para obter uma reserva, quando não tinha nenhuma. Já disse que esse homem é muito especial! Dê a ele tudo o que quiser. É um lunático, mas bastante inofensivo. Nós o mandaríamos de volta a Paris no próximo avião se os idiotas que ele representa não estivessem pagando tanto por um material de terceira classe. Ele está autorizado a desfrutar as melhores prostitutas ilegais de Pequim. Só peço que não me incomode mais, pois estou com visitas em casa. O ministro desligou abruptamente. Tranqüilizado, o oficial repôs o fone do gancho e saiu, ao encontro do vigia noturno. — Era tudo verdade — disse ele. — O estrangeiro estava bastante agitado, senhor. E muito confuso. — Fui informado de que as duas coisas são normais nele. — O oficial fez uma pausa e depois acrescentou: — Pode abrir o portão agora. — Pois não, senhor. — O vigia meteu a mão no bolso e tirou um molho de chaves. Parou, olhando para o oficial. — Não estou vendo nenhum automóvel, senhor. Estamos a muitos quilômetros de qualquer transporte. O Palácio de Verão seria o primeiro... — Telefonei pedindo um carro. Deve chegar dentro de dez ou quinze minutos. — Nesse caso eu não estarei mais aqui, senhor. Posso ver a luz da lanterna do meu substituto se aproximando pela estrada. Deixo o serviço dentro de cinco minutos. — Talvez eu fique esperando. Há nuvens vindo do norte. Se trouxerem chuva, posso me abrigar na guarita até meu carro chegar. — Não estou vendo nuvens, senhor.
— Seus olhos já não são mais o que eram. — É verdade. A campainha insistente da bicicleta rompia o silêncio lá fora. O novo guarda se aproximava do portão e o vigia começou a destrancá-lo, comentando: — Esses jovens se anunciam como se fosse espíritos descendo dos céus. — Eu gostaria de lhe dizer uma coisa — declarou o oficial, bruscamente, fazendo o guarda ficar imóvel. — Como o estrangeiro eu também não quero ficar numa situação embaraçosa por aproveitar uma hora de sono muito necessário num lindo lugar de repouso. Gosta do seu trabalho? — Muito, senhor. — E da oportunidade de vender coisas como um binóculo japonês, deixado sob a sua guarda? — Como, senhor? — Minha audição é aguçada e sua estridente voz é alta. — Senhor? — Não diga nada a meu respeito e não direi nada a respeito de suas atividades antiéticas, que certamente o levariam a um campo com uma pistola encostada na cabeça. Seu comportamento é repreensível. — Eu nunca o vi, senhor! Juro pelos espíritos em minha alma! — Nós do partido rejeitamos tais pensamentos. — Então por qualquer coisa que quiser! — Abra o portão e saia daqui. — Primeiro a minha bicicleta, senhor! O vigia foi buscar a bicicleta na extremidade da cerca e depois abriu o portão. Empurrou-o, acenando a cabeça de alívio, enquanto literalmente jogava o molho de chaves para seu substituto. Montando no selim da bicicleta, saiu em disparada pela estrada de terra. O segundo guarda passou pelo portão, empurrando a bicicleta, e disse para o oficial: — Pode imaginar uma coisa dessas? O filho de um senhor da guerra do Kuomintang substituindo um camponês débil mental que teria servido em nossas cozinhas!
Bourne localizou o entalhe branco no tronco da árvore e guiou o sedã para fora da estrada, entre dois pinheiros. Apagou as luzes e saiu. Rapidamente, quebrou vários galhos para camuflar o carro na escuridão. Instintivamente, trabalhou depressa — teria agido assim de qualquer maneira — mas, para seu alarme, poucos segundos depois de acabar de esconder o sedã, apareceram faróis à distância, na estrada para Pequim. Abaixou-se, ajoelhando-se nas moitas, e observou o automóvel passar, fascinado pela vista de uma bicicleta amarrada no teto, depois preocupado, quando momentos depois o motor foi desligado abruptamente. O carro parara depois da curva mais à frente. Cauteloso, admitindo a possibilidade de que seu carro tivesse sido visto por um agente experiente, que estacionaria fora de vista e voltaria a pé, Jason correu ao longo da estrada, pelas moitas emaranhadas, além das árvores. Correu aos arrancos, de um pinheiro para outro, até o meio da curva, onde tornou a se ajoelhar, nas sombras verdes, esquadrinhando cada palmo à beira da estrada, atento a qualquer som que não pertencesse ao murmúrio da estrada rural deserta. Nada. E depois, finalmente, alguma coisa; quando ele viu o que era, não fazia o menor sentido. Ou será que fazia? O homem na bicicleta com uma luz no pára-lama dianteiro pedalava pela estrada como se a vida dependesse de uma velocidade que não poderia alcançar. Quando ele chegou mais perto, Bourne constatou que era o vigia... de bicicleta... e uma bicicleta estava presa no teto do carro que parara depois da curva. Teria sido para o vigia? Claro que não; o carro continuaria até o portão... Uma segunda bicicleta? Um segundo vigia... chegando de bicicleta? Mas é claro! Se o que ele pensava era verdade, o guarda no portão seria trocado, um conspirador assumindo o seu lugar. Jason esperou até que a luz na bicicleta fosse apenas um ponto mínimo à distância na escuridão, depois correu pela estrada de volta a seu carro e à árvore com o entalhe no tronco. Desenterrou a mochila e começou a tirar os instrumentos de seu ofício. Removeu o casaco e a camisa branca, vestiu uma suéter preta de gola olímpica; prendeu a bainha da faca de caça no cinto da calça escura, enfiou a automática com uma única bala no outro lado. Pegou os dois carretéis ligados por um fio fino de três metros, julgando que o instrumento letal era muito melhor do que o outro que improvisara em Hong Kong. Por que não? Estava muito mais perto de seu objetivo, se tinha algum valor qualquer coisa que aprendera na distante Medusa. Enrolou o fio nos dois carretéis, igualmente, com todo cuidado meteu tudo no bolso direito traseiro da calça, depois pegou uma pequena lanterna e prendeu-a na. beira inferior do bolso direito da frente. Pôs uma fileira comprida e dupla de bombinhas chinesas, dobrada e presa por um elástico, no bolso esquerdo da frente, junto com três caixas de fósforos e uma pequena vela de cera. O item mais incômodo era um alicate de cortar arame de tamanho médio. Meteu-o com a ponta para baixo no bolso esquerdo traseiro, depois soltou a mola para que os dois cabos curtos se comprimissem contra o pano, prendendo o instrumento no lugar. Finalmente, pegou uma pilha de roupas, tão enrolada e comprimida que as dimensões não eram maiores que a de um rolo de pastel. Ajeitou-a sobre a espinha, puxou o elástico pela cintura, prendeu os clipes na frente. Talvez nunca precisasse usar aquelas roupas, mas também não podia deixar nada ao acaso... estava perto demais! Vou pegá-lo, Marie! Juro que vou pegá-lo e teremos nossa vida outra vez. Sou, eu David, quem promete. Eu a amo muito! E preciso tanto de você! Pare com isso! Não há pessoas, apenas objetivos. Não há emoções, apenas objetivos, e eliminações de homens que se inter ponham no caminho. Não tenho qualquer serventia para você, Webb. É um mole, e eu o desprezo. Dê toda atenção a Delta... toda atenção a Jason Bourne!
O matador que era um matador por necessidade enterrou a mochila com a camisa branca e o paletó de tweed, depois levantou-se entre os pinheiros. Os pulmões se encheram ao pensamento do que tinha pela frente, uma parte dele assustada e insegura, a outra furiosa, fria como gelo. Jason começou a seguir para o norte, na direção da curva, passando de uma árvore para outra, como fizera antes. Chegou ao carro que passara por ele com a bicicleta presa no teto; estacionado à beira da estrada, tinha um cartaz grande preso com fita adesiva sob a janela da frente. Jason chegou mais perto e leu os caracteres chineses, sorrindo para si mesmo enquanto o fazia: Este é um veículo oficial do governo enguiçado. Mexer em qualquer parte do mecanismo é um crime grave. O roubo deste veículo acarretará em execução sumária para o culpado. No canto inferior esquerdo havia uma coluna em caracteres bem pequenos: Gráfica do Povo Número 72. Xangai. Bourne especulou quantas centenas de milhares de cartazes assim teriam sido feitos pela Gráfica 72. Talvez substituíssem o seguro, dois em cada veículo. Recuou para as sombras e continuou pela curva, até alcançar o espaço aberto, à frente do portão iluminado. Os olhos acompanharam a cerca verde. À esquerda, desaparecia na escuridão a floresta. À direita, estendia-se por cerca de sessenta metros além da guarita, ao longo de um estacionamento com vagas numeradas para ônibus de excursão e táxis, depois virava abruptamente para o sul. Como ele já imaginava, um santuário de pássaros na China seria fechado, um impedimento para os caçadores ilegais. Como d’Anjou dissera: “Os pássaros são reverenciados na China há séculos. São considerados iguarias para os olhos e o paladar.” Eco. Eco se fora. Especulou se d’Anjou sofrera... Não há tempo. Vozes! Bourne virou a cabeça para trás, na direção do portão. O oficial do exército chinês e um vigia novo e muito mais jovem... não, decididamente não era um guarda... saíram de trás da guarita. O guarda empurrava uma bicicleta; enquanto o oficial mantinha um pequeno rádio junto ao ouvido. — Eles começarão a chegar pouco depois das nove horas — disse o oficial, baixando o rádio e embutindo a antena. — Sete veículos, a intervalos de três minutos. — E o caminhão? — Será o último. O guarda olhou para o relógio. — Talvez fosse melhor você ir buscar o carro. Se houver uma verificação pelo telefone, conheço a rotina. — Boa idéia — disse o oficial, prendendo o rádio no cinto e pegando o guidom da bicicleta. — Não tenho paciência com essas mulheres burocratas que ladram como cadelas chows. — Mas deve ter — advertiu o guarda, rindo. — E deve se aproximar das solitárias, das feias,
oferecendo o melhor desempenho possível entre suas pernas. Já imaginou se fosse contemplado com um relatório negativo? Poderia perder este emprego celestial. — Está se referindo àquele camponês débil mental que você substituiu... — Claro que não —respondeu o guarda, largando a bicicleta. — Sempre procuram os mais jovens, os bonitos, como eu. Através de nossas fotografias, é claro. Ele é diferente. Paga yuans de suas vendas de objetos perdidos. Às vezes tenho dúvidas se ele consegue algum lucro. — Tenho dificuldades para compreender vocês, civis. — Correção, se me permite Coronel. Na verdadeira China, sou um capitão no Kuomintang. Jason ficou aturdido com o comentário do homem mais jovem. Na verdadeira China, sou um capitão no Kuomintang. A verdadeira China? Formosa? Santo Deus, já teria começado? A guerra entre as duas Chinas? Era sobre isso que aqueles homens estavam falando? Mas que loucura! Um massacre em larga escala! O Extremo Oriente seria explodido da face da Terra! Em sua caçada por um assassino, ele teria se deparado com o inconcebível? Era demais para absorver, assustador, cataclísmico. Tinha de agir depressa, reprimir todo e qualquer pensamento, concentrar-se apenas no movimento. Olhou para o mostrador luminoso do relógio. Eram oito e quarenta e cinco e lhe restava muito pouco tempo para fazer o que precisava. Esperou até que o oficial passasse de bicicleta, depois avançou cautelosamente, sem fazer barulho, através da folhagem, até divisar a cerca. Aproximou-se, tirando a lanterna do bolso, acendeu-a duas vezes para calcular as dimensões da cerca. Eram extraordinárias. A altura não era inferior a três metros e meio, a parte de cima era inclinada para fora, como a barricada interior de uma cerca de prisão, com arame farpado estendido entre as barras paralelas. Jason estendeu a mão para o bolso traseiro, apertou os cabos do alicate e removeu-o. Tateou com a mão esquerda pela escuridão, encontrou os arames cruzados mais próximos do solo, encostou a cabeça do alicate no mais baixo. Se David Webb não estivesse desesperado e Jason Bourne não estivesse furioso, o trabalho nunca seria realizado. Não era uma cerca comum. O arame era mais grosso e mais forte que o de qualquer outra cerca que contivesse os mais violentos criminosos do mundo. Cada um exigiu toda a força de Jason, manipulando o alicate para a frente e para trás, até parti-lo. Mas preciosos minutos foram consumidos no esforço. Bourne tornou a olhar para o mostrador luminoso do relógio. Nove e seis. Usando o ombro, os pés fincados na terra, empurrou o retângulo vertical de pouco mais de meio metro para dentro, através da cerca. Rastejou para o outro lado, o suor encharcando seu corpo por toda parte. Ficou estendido no chão, respirando fundo. Não há tempo. Nove e oito. Levantou-se, os joelhos trôpegos, sacudiu a cabeça para desanuviá-la, seguiu para a direita, apoiando-se na cerca, até chegar à virada da área de estacionamento, O portão iluminado estava sessenta metros à esquerda. E, de repente, o primeiro veículo chegou. Era uma limusine russa, uma Zia, do final dos anos sessenta. Deu a volta no estacionamento e foi parar na primeira vaga à direita, ao lado do portão. Seis
homens desembarcaram e se encaminharam em ritmo marcial para o que parecia ser a principal trilha do santuário dos pássaros. Desapareceram na escuridão, os fachos das lanternas iluminando o caminho. Jason observou atentamente; seguiria por aquela trilha. Três minutos depois, pontualmente no intervalo previsto, um segundo carro passou pelo portão e foi estacionar ao lado da Zia. Três homens saíram do banco traseiro, enquanto o motorista e o passageiro ao seu lado ficavam falando. Segundos depois, os dois também saltaram. Bourne teve de fazer um grande esforço para se controlar quando seus olhos se fixaram no passageiro, um homem alto e esguio, que andava como um felino, deslocando-se para a traseira do automóvel, juntando-se ao motorista. Era o assassino! O caos no Aeroporto de Kai-tak exigira a armadilha elaborada em Pequim. Quem quer que estivesse atrás do assassino, tinha de ser apanhado depressa e silenciado. Vazara informações, chegando ao criador do assassino... pois quem mais conhecia as táticas do executor melhor do que o homem que as ensinara? Quem mais queria vingança tanto quanto o Francês? Quem mais era capaz de desenterrar o outro Jason Bourne? D’Anjou era a chave, e o cliente do impostor sabia disso. E os instintos de Jason Bourne — nascidos de Medusa, lembrada de maneira gradativa e dolorosa — eram acurados. Quando a armadilha fracassara tão desastrosamente dentro do túmulo de Mao, uma profanação que abalaria a república, o círculo de elite de conspiradores tivera de se reagrupar rapidamente, secretamente, além do conhecimento de seus iguais. Defrontavam-se com uma crise sem precedentes; não havia tempo a perder na determinação dos próximos movimentos. O mais importante, no entanto, era o sigilo. Onde quer que se encontrassem, o sigilo era a arma mais crucial. Na verdadeira China, sou um capitão do Kuomintang. Seria possível? Sigilo. Por um reino perdido? Onde poderia ser melhor do que nos acres de idílicos santuários de pássaros do governo, parques oficiais controlados por poderosas toupeiras do Kuomintang? Uma estratégia nascida do desespero levara Bourne ao centro de uma incrível revelação. Não há tempo? Não é da sua conta! Somente ele interessa! Dezoito minutos depois os seis veículos se encontravam no estacionamento, os passageiros dispersos, juntando-se a seus colegas em algum lugar da floresta escura do santuário. Finalmente, vinte e um minutos depois da chegada da limusine russa, um caminhão coberto de lona passou pelo portão, dando uma volta larga e indo parar na última vaga, a apenas dez metros de Jason. Chocado, observou homens e mulheres, amarrados e amordaçados, sendo empurrados para fora do caminhão; sem exceção, todos caíram, rolando pelo chão, gemendo em protesto e dor. E depois, logo além da abertura na lona, um homem começou a lutar, contorcendo o corpo baixo e esguio, chutando os dois guardas, que acabaram segurando-o e jogando-o no chão de cascalho do estacionamento. Era um homem branco... Bourne ficou paralisado. Era d’Anjou! Ao clarão dos refletores distantes, ele pôde constatar que o rosto de Eco estava todo machucado, os olhos inchados. O Francês levantou-se, a perna esquerda tremendo, quase arriando; mesmo assim, resistiu às provocações dos captores, assumindo uma atitude de desafio. Mexa-se! Faça alguma coisa! O quê? Medusa... tínhamos sinais. Quais eram? Oh, Deus, quais eram? Pedras, gravetos... cascalho! Jogue alguma coisa para fazer um barulho, um pequeno som para desviar a atenção, o mais longe possível de uma área. E depois siga esse som rapidamente. O mais depressa possível!
Jason caiu de joelhos nas sombras junto à cerca. Abaixou a mão e pegou um punhado de cascalho, jogando para o ar, por cima das cabeças dos prisioneiros, que se esforçavam para ficar de pé. O breve estrépito sobre os telhados de vários carros perdeu-se entre os gritos abafados dos prisioneiros manietados. Bourne repetiu a ação, agora com mais algumas pedrinhas. O guarda ao lado de d’Anjou olhou na direção da chuva de cascalho, depois descartou o som quando sua atenção foi subitamente atraída para uma mulher que se levantara e começara a correr para o portão. Ele foi atrás, agarrou-a pelos cabelos e empurrou-a de volta para o grupo. Jason tornou a estender a mão para pegar mais pedras. interrompeu o movimento no meio. D’Anjou caíra no chão, o peso apoiado no joelho direito, as mãos amarradas no cascalho. Observou o guarda distraído, depois lentamente virou a cabeça na direção de Bourne. Medusa nunca estava longe de Eco... ele se lembrara. Jason estendeu para a frente a palma da mão, uma vez, duas vezes. O tênue reflexo de luz em sua carne foi suficiente; o olhar do Francês foi atraído. Bourne deslocou a cabeça para a frente, nas sombras. Eco o via! Os olhos fizeram contato. D’Anjou acenou com a cabeça, depois virou-se e levantou-se, meio desajeitado, dolorosamente, enquanto o guarda voltava. Jason contou os prisioneiros. Havia duas mulheres e cinco homens, incluindo Eco. Foram tangidos pelos guardas, que tiraram dos cintos compridos porretes para cutucá-los, avançando pela trilha que saía do estacionamento. D’Anjou caiu. A perna esquerda cedeu, o corpo virando enquanto arriava. Bourne observava atentamente; havia algo de estranho na queda. E, depois, compreendeu. Os dedos das mãos do Francês, amarradas juntas na frente, estavam bem abertos. Encobrindo o movimento com o corpo, Eco recolheu dois punhados de cascalho. Enquanto o guarda se aproximava e o levantava, d’Anjou lançou um rápido olhar na direção de Bourne. Era um sinal. Ele largaria as pedrinhas no chão, enquanto durassem, a fim de que seu companheiro da Medusa tivesse uma trilha para seguir. Os prisioneiros foram conduzidos para a direita, deixando a área coberta de cascalho, enquanto o jovem guarda, o “capitão do Kuomintang”, fechava o portão. Jason correu das sombras da cerca para as sombras do caminhão, tirando a faca de caça da bainha e se agachando junto ao capô, olhando para a guarita. O guarda estava ao lado da porta, falando pelo rádio portátil que o ligava com o local da reunião. O rádio teria de ser silenciado. E o homem também. Amarre-o. Use suas roupas para amordaçá-lo. Mate-o! Não pode haver riscos adicionais. Faça o que estou mandando! Bourne baixou para o chão, cravando a faca de caça no pneu esquerdo dianteiro do caminhão; enquanto esvaziava, ele deslocou-se para o pneu traseiro e fez a mesma coisa. Dando a volta pela traseira do caminhão, correu pelo espaço que o separava do automóvel ao lado. Virando de um lado para outro, enquanto avançava, ele cortou os pneus restantes do caminhão e os pneus do lado esquerdo do carro. Repetiu a tática por todos os veículos, cortando todos os pneus, a não ser os da Zia russa, a apenas dez metros e pouco da guarita. Chegara o momento de cuidar do guarda. Amarre-o...
Mate-o! Cada passo tem de ser encoberto e cada passo o leva de volta à sua mulher! Sem fazer qualquer barulho, Jason abriu a porta do automóvel russo, estendeu a mão pelo interior e soltou o freio de mão. Fechando a porta tão silenciosamente quanto a abrira, calculou a distância do capõ para a cerca; era de aproximadamente dois metros e meio. Segurando a janela, Bourne comprimiu toda a sua força para a frente, fazendo uma careta, enquanto o carro enorme começava a rolar. Dando um último empurrão ao veículo, ele correu para a frente do carro ao lado, enquanto a limusine arremetia contra a cerca. Abaixou-se, fora de vista, estendendo a mão para o bolso direito traseiro. Ouvindo o estrondo, o atônito guarda deu a volta, correndo para a guarita, e avançou pelo estacionamento, os olhos se deslocando em todas as direções, depois se fixando na Zia agora parada. Sacudiu a cabeça, como se aceitasse o defeito inexplicável da máquina, e encaminhou-se para a porta. Bourne emergiu da escuridão, os carretéis nas mãos, o fio descrevendo um arco por cima da cabeça do guarda. Acabou em menos de três segundos, não houve qualquer som, além de uma nauseante expulsão de ar. O garrote foi letal; o capitão do Kuomintang estava morto. Tirando o rádio do cinto do homem, Jason revistou as roupas. Havia sempre a possibilidade de se encontrar alguma coisa de valor. E havia mesmo! A primeira era uma arma... uma automática, o que não era de surpreender. O mesmo calibre da arma que ele tirara de outro conspirador, no túmulo de Mao. Armas especiais para pessoas especiais, outro elemento de reconhecimento, os armamentos coerentes. Em vez de uma bala, ele dispunha agora de uma carga completa de nove, além de um silenciador, que evitava perturbar o reverenciado morto num mausoléu reverenciado. A segunda era uma carteira, que continha dinheiro e um documento oficial, proclamando que o portador era um membro as Forças de Segurança do Povo. O conspirador tinha colegas nos mais altos escalões. Bourne empurrou o cadáver para baixo da limusine, cortou os pneus da esquerda e contornou o veículo, cravando a faca de caça nos pneus da direita. O capitão do Kuomintang dispunha de um lugar seguro e oculto para o repouso final. Jason correu para a guarita, ponderando se deveria ou não apagar os refletores. Decidiu que não. Se sobrevivesse, precisaria da iluminação como ponto de referência. Se... se? Tinha de sobreviver! Marie! Ele entrou na guarita, abaixou-se sob a janela, tirou as balas da automática do guarda, inseriu-as em sua arma. Olhou ao redor, procurando por tabelas ou instruções; havia uma lista pegada na parede, ao lado da argola com chaves, pendurada num prego. Pegou as chaves. Um telefone tocou! A campainha ensurdecedora ressoou pelas paredes de vidro da guarita. Se houver uma verificação pelo telefone, conheço a rotina. Um capitão do Kuomintang. Bourne levantouse, pegou o fone no balcão e tornou a se abaixar, estendendo os dedos sobre o bocal. — Jing Shan — disse ele, a voz rouca. — O que é? — Olá, minha borboleta esvoaçante — disse uma voz de mulher, no que Jason constatou ser um mandarim inculto. — Como estão os seus pássaros esta noite? — Eles estão bem, mas eu não.
— Parece diferente. É Wo quem está falando não é? — Com um terrível resfriado, vomitando e correndo para o banheiro a cada dois minutos. Nada fica no lugar, está tudo saindo por baixo ou por cima. — Estará bom pela manhã? Não quero ficar contaminada. Deve se aproximar das solitárias, das feias. — Eu não gostaria de perder o nosso encontro... — Estará muito fraco. Ligarei para você amanhã de noite. — Meu coração definha como a flor agonizante. — Bosta de vaca! A mulher desligou. Enquanto falava ao telefone, Jason observara uma grossa corrente enroscada no canto da guarita. Compreendeu a sua função. Na China, onde tantas coisas mecânicas falhavam, a corrente era um recurso secundário, caso a fechadura no meio do portão enguiçasse. Por cima da corrente havia um cadeado de aço comum. Uma das chaves na argola deveria ser a do cadeado, pensou ele. Experimentou várias, até abrir o cadeado. Pegou a corrente e começou a sair, mas parou de repente, virou-se e arrancou o telefone da parede. Mais um equipamento com defeito. No portão, ele desenrolou a corrente e passou-a em torno do ponto intermediário dos dois postes centrais, até que havia uma massa protuberante de aço enroscado. Juntou quatro elos da corrente, deixando os espaços livres, passou a lingüeta do cadeado e fechou-o. Tudo estava bem esticado. Ao contrário da crença geral, disparar uma bala contra uma massa de metal duro não pode separá-la; em vez disso, aumenta a possibilidade de que uma bala ricocheteada possa matar o autor dos disparos, assim como pôr em risco de vida todos os que se encontrarem na área. Jason virou-se e seguiu pela trilha central, mais uma vez permanecendo nas sombras à margem. A trilha era escura. A claridade do portão iluminado era bloqueada pela folhagem densa do santuário dos pássaros, mas a luz ainda era visível no céu. Cobrindo a lanterna com a palma da mão esquerda, o braço estendido para baixo, ele podia ver, a intervalos de mais ou menos dois metros, uma pedrinha no solo. Depois de localizar duas ou três, soube o que tinha de procurar: pequenas descolorações na terra escura, com uma distância relativamente igual a separá-las. D’Anjou esfregara cada pedrinha, provavelmente entre o polegar e o indicador, com toda a força que podia, a fim de remover a fuligem do estacionamento e impregnar com os óleos de sua carne, para que cada uma pudesse sobressair. Apesar de bastante machucado, Eco não perdera a presença de espírito. Subitamente, havia duas pedras, e não apenas uma, separadas por poucos centímetros. Jason levantou os olhos, esquadrinhando à claridade mínima da lanterna escondida. As duas pedras não eram casuais, mas outro sinal. A trilha principal continuava diretamente, em frente, mas a seguida pelos prisioneiros se desviava abruptamente para a direita. Duas pedras significavam uma volta.
E depois houve uma mudança nas distâncias relativas entre os seixos. Estavam cada vez mais apartadas; quando Bourne já começava a pensar que não haveria mais nenhuma, deparava com outra. Subitamente havias duas pedras na terra, assinalando outra trilha transversal. D’Anjou sabia que estava ficando sem pedras e iniciara uma segunda estratégia, uma tática que logo se tornou evidente para Jason. Enquanto os prisioneiros permanecessem na mesma trilha, não haveria pedras; mas quando entrassem em outras, dois seixos indicariam a direção. Jason contornou a beira de charcos, atravessou campos, ouvindo por toda parte o repentino adejar de asas e os guinchos de pássaros perturbados, alçando vôo ao luar. E, finalmente, havia apenas uma trilha estreita, conduzindo a uma espécie de ravina... Parou, apagando no mesmo instante a lanterna coberta. Lá embaixo, cerca de trinta metros pela trilha, podia avistar o brilho de um cigarro. Deslocava-se devagar, para cima e para baixo, um homem despreocupado fumando; apesar disso, o homem estava postado ali por um motivo. Jason estudou a escuridão além... porque era uma escuridão diferente, com pontos de luz piscando de vez em quando através da folhagem densa da ravina. Talvez fosse tochas, pois não havia nada de constante nas luzes quase indiscerníveis. Claro, eram realmente tochas. Ele chegara ao lugar. Lá embaixo, na ravina distante, além do guarda com seu cigarro, ficava o ponto de encontro. Bourne avançou pelas moitas emaranhadas no lado direito da trilha. Sentiu oposição e olhou para baixo, descobrindo que os juncos estavam como redes, os talos entrelaçados por anos de ventos irregulares. Desemaranhá-los ou quebrá-los faria um ruído incoerente com os sons normais do santuário. Estalidos e rangidos não eram o súbito adejar de asas e os guinchos de habitantes incomodados. Eram produzidos pelo homem, e significavam uma intromissão diferente. Jason pegou a faca, desejando que a lâmina fosse mais comprida, e iniciou uma jornada que não levaria mais de trinta segundos se permanecesse na trilha. Demorou agora quase vinte minutos para abrir caminho até uma posição em que podia ver o guarda. Santo Deus! Jason prendeu a respiração, reprimindo o grito em sua garganta. Escorregara; a criatura escorregadia e sibilante sob seu pé esquerdo tinha pelo menos um metro e meio de comprimento. Enroscou-se em torno de sua perna; em pânico, ele segurou uma parte do corpo e puxou-a de sua carne, cortando-a em pleno ar com a faca. A cobra estrebuchou violentamente por vários segundos, e depois os espasmos cessaram; estava morta, desenroscada, ao lado de seu pé. Jason fechou os olhos e estremeceu, deixando o momento passar. Tornou a se agachar ainda mais perto do guarda, que estava agora acendendo, ou tentando acender outro cigarro, com um fósforo depois de outro a falhar. O guarda parecia furioso com a caixa de fósforos subsidiada pelo governo. — Ma de shizi, .shizi! — murmurou ele, o cigarro na boca. Bourne avançou mais um pouco, cortando os últimos talos, até ficar a dois metros do homem. Guardou a faca de caça na bainha e tornou a estender a mão para o bolso direito traseiro, a fim de pegar o garrote. Não podia haver uma lâmina se deslocando um pouco e permitindo um grito; o silêncio tinha de ser absoluto, rompido apenas por uma expulsão de ar
que ninguém ouviria. Ele é um ser humano! Um filho, um irmão, um pai! Ele é o inimigo. Ele é o nosso alvo. Isso é tudo o que precisamos saber. Marie é sua, não deles. Jason Bourne ergueu-se abruptamente, no instante em que o guarda dava a primeira tragada. A fumaça explodiu de sua boca escancarada, O garrote foi posto no lugar, a traquéia cortada, o homem caiu nas moitas, o corpo inerte, a vida encerrada. Tirando o fio ensangüentado, Jason sacudiu-o na folhagem, depois tornou a enrolá-lo nos carretéis e guardou no bolso. Puxou o cadáver pelos arbustos, para longe da trilha, e começou a revistar os bolsos. Encontrou primeiro o que parecia ser um maço grosso de papel higiênico dobrado, o que nada tinha de incomum na China, em que havia uma permanente escassez desse artigo. Jason pegou a caneta, acendeu com a mão por cima e olhou para sua descoberta, atônito. O papel estava dobrado e era macio, mas não era papel higiênico. Era renminbi, milhares de yuans, mais do que a renda de vários anos da maioria dos chineses, O guarda no portão, o “capitão do Kuomintang”, tinha dinheiro — mais do que Jason julgara normal — mas nem de longe uma quantia daquelas. Uma carteira foi a descoberta seguinte. Havia fotografias de crianças, que Bourne tornou a guardar apressadamente, uma licença de motorista, uma certidão de moradia e um documento oficial proclamando que o portador era um... membro das Forças de Segurança do Povo! Jason pegou o documento que tirara da carteira do primeiro guarda e colocou os dois no chão, lado a lado. Eram idênticos. Dobrou-os e meteu no bolso. Um último item era tão desconcertante quanto interessante. Era um passe, permitindo o acesso do portador às Lojas da Amizade, os estabelecimentos que serviam aos viajantes estrangeiros, proibidos aos chineses, a não ser os que ocupavam os mais altos escalões do governo. Quem quer que fossem os homens lá embaixo, refletiu Bourne, constituíam um grupo estranho e restrito. Guardas subordinados andavam com quantias vultosas, desfrutavam de privilégios oficiais anos-luz além de suas posições e tinham documentos que os identificavam como membros da polícia secreta do governo. Se eram mesmo conspiradores — e tudo o que vira e ouvira de Shenzen na Praça Tian An Men e naquela reserva de vida selvagem parecia confirmar—, então, a conspiração estava infiltrada na alta hierarquia de Pequim. Não há tempo! Não é da sua conta! A arma na cintura do homem, como Jason já esperava, era igual à que ele tinha no cinto e à que jogara entre os arbustos no portão de Jing Shan. Era uma arma de qualidade superior, e as armas eram símbolos. Uma arma sofisticada era uma marca de posição, tanto quanto um relógio dispendioso; podia haver muitas imitações, mas os que tinham um olho experiente para a mercadoria saberiam reconhecer o produto genuíno. Bastava mostrá-la para confirmar ou negar uma posição, em um exército que comprava suas armas em todas as fontes disponíveis do mundo. Era um ponto sutil de reconhecimento — só um tipo superior era distribuído a um círculo de elite. Não há tempo! Não é da sua conta! Mexase! Jason tirou as balas, guardou-as no bolso, jogou a automática na floresta. Saiu da trilha e começou a descer, devagar, sem fazer barulho, em direção às luzes bruxuleantes lá embaixo, além do paredão de árvores altas. Era mais do que uma ravina, era um enorme poço escavado na terra pré-histórica, uma ruptura
que datava da era glacial e que nunca se fechara. Pássaros sobrevoavam o local, em medo e curiosidade; corujas piavam numa dissonância irada. Bourne postou-se à beira do precipício, olhando através das árvores para a reunião lá embaixo. Um círculo pulsante de tochas iluminava o ponto de encontro. David Webb ficou chocado, com vontade de vomitar, mas uma ordem fria determinou que se controlasse: Pare com isso. Observe. Saiba o que está enfrentando. Suspenso do galho de uma árvore por uma corda presa nos pulsos amarrados, os braços estendidos por cima da cabeça, os pés a poucos centímetros do solo, um prisioneiro se contorcia em pânico, gritos abafados saindo de sua garganta, os olhos desvairados e suplicantes por cima da boca amordaçada. Um homem esguio, de meia-idade vestindo túnica e calça Mao, estava parado na frente do corpo que se contorcia violenta mente. A mão direita estava estendida, segurando o cabo cravejado de pedras preciosas de uma espada, a lâmina comprida e fina, a ponta encostada na terra. David Webb reconheceu a arma... pois era uma arma e ao mesmo tempo não era. Tratava-se de uma espada cerimonial de um senhor da guerra do século X uma classe impiedosa de militaristas que destruíram aldeias e pequenas cidades, devastavam campos intermináveis, quando sequer se suspeitava de alguma oposição à vontade dos imperadores Yuan, mongóis que deixavam em sua esteira apenas fogo e morte, e os gritos das crianças. A espada era também usada para cerimônias muito menos simbólicas e muito mais brutais do que os rituais desenvolvidos nas cortes da dinastia. David sentiu uma onda de náusea e apreensão envolvê-lo, enquanto observava a cena lá embaixo. — Escutem-me! — gritou o homem esguio na frente do prisioneiro, virando-se para a audiência. A voz era estridente, mas incisiva, imperativa. Bourne não o conhecia, mas era um rosto que seria difícil esquecer. Os cabelos grisalhos curtos, as feições pálidas e encovadas — acima de tudo, o olhar. Jason não podia ver os olhos nitidamente, mas dava para perceber que as chamas das tochas bruxuleavam nelas. Aqueles olhos também estavam em fogo. — As noites da grande lâmina começaram! — gritou o homem. — E vão continuar, noite após noite, até que todos aqueles que nos traíram sejam mandados para o inferno! Cada um desses insetos venenosos cometeu crimes contra a nossa sagrada causa, crimes de que temos conhecimento, todos podendo levar ao grande crime que exige a grande lâmina. Ele fez uma pausa, virando-se bruscamente para o prisioneiro suspenso — Você! Diga a verdade e somente a verdade! Conhece o ocidental? O prisioneiro sacudiu a cabeça, gemidos guturais acompanhando o movimento frenético — Mentiroso! — berrou uma voz, do meio da multidão. — Ele estava na Tian An Men esta tarde! O prisioneiro tornou a sacudir a cabeça, em pânico. — Ele falou contra a verdadeira China! — gritou outro. — Ouvi-o no Parque Hua Gong, entre
os jo — E no café na Xidan Bei! O prisioneiro se contorceu, os olhos arregalados, aturdidos, fixados em choque na multidão. Bourne começou a compreender. O homem estava ouvindo mentiras e não sabia por quê. Mas Jason sabia. O tribunal da inquisição estava em sessão; um criador de problemas ou um homem em dúvida era eliminado, em nome de um crime maior. E sob a possibilidade secundária de que pudesse tê-lo cometido. As noites da grande lamina começaram... noite após noite. Era um reinado de terror num reino pequeno e sanguinário, numa terra vasta, em que os senhores da guerra brutais haviam prevalecido por séculos. — Ele fez essas coisas? — gritou o orador de rosto encovado. — Ele disse essas coisas? Um coro frenético de respostas afirmativas preencheu a depressão. — Na Tian An Men!... — Ele falou com o ocidental!... — Ele nos traiu!... — Ele causou o tumulto no túmulo do odiado Mao!... — Ele queria nos ver mortos, nossa causa perdida!... — Ele fala contra os nossos líderes e quer que eles morram!... — Opor-se aos nossos líderes é vilipendiá-los — declarou o orador, a voz calma, mas se alteando. — Ao fazer isso, uma pessoa abandona o zelo que se deve conceder à preciosa dádiva chamada vida. Quando essas coisas ocorrem, a dádiva deve ser tomada. O homem suspenso contorceu-se ainda mais furiosamente, os gritos se tornando mais e mais altos, em meio aos gemidos dos outros prisioneiros, obrigados a se ajoelharem diante do orador, em plena vista da execução iminente. Apenas um se recusava, tentando incessantemente se levantar, em desobediência e desrespeito, sendo sempre espancado pelo guarda mais próximo. Era Philippe d’Anjou. Eco estava enviando outra mensagem para Deita, mas Jason Bourne não conseguia entendê-la. — . . .este hipócrita doentio e ingrato, este mestre dos jovens, que foi recebido como um irmão em nossas dedicadas fileiras porque acreditávamos nas palavras que dizia... tão bravamente, pensávamos... em oposição aos algozes de nossa pátria, não passa de um traidor. Suas palavras são ocas. É um companheiro consumado dos ventos traiçoeiros, que o levariam a nos sos inimigos, os algozes da Mãe China! Que em sua morte ele possa encontrar a purificação! O orador com a voz agora estridente tirou a espada do chão e levantou-a acima da cabeça. E que assim sua semente não se espalhe, recitou o erudito David Webb, recordando as palavras
do encantamento antigo e querendo fechar os olhos, mas incapaz de fazê-lo, impedido por sua outra personalidade. Destruamos o poço de que a semente emerge, suplicando aos espíritos para destruírem tudo o que penetrou aqui na terra. A espada desceu, cortando a virilha e os órgãos genitais do corpo a se debater e a gritar. E para que os seus pensamentos não se espalhem, contaminando os inocentes e os fracos, oramos aos espíritos para destruí-los, onde quer que estejam, assim como aqui destruímos a fonte de onde emergem. A espada foi agora manejada na horizontal, cortando o pescoço do prisioneiro. O corpo a estrebuchar caiu no chão, sob uma chuva de sangue da cabeça decepada, que o homem esguio, de olhos de fogo, continuou a golpear com a lâmina, até que não havia a menor possibilidade de se reconhecer um rosto humano. Os outros prisioneiros aterrorizados povoaram a depressão com gemidos de horror, enquanto rastejavam, implorando misericórdia. Exceto um. D’Anjou levantou-se e fitou em silêncio o homem messiânico com a espada. O guarda aproximou-se. Ouvindo-o, o francês virou-se e cuspiu em sua cara. O guarda, hipnotizado, talvez repugnado pelo que testemunhara, recuou. O que Eco estava fazendo? Qual era a sua mensagem? Bourne olhou para o carrasco de rosto encovado e cabelos grisalhos rentes. Ele estava limpando a lâmina comprida da espada com um lenço branco de seda, enquanto seus ajudantes removiam o corpo e o que restara da cabeça do prisioneiro. Apontou para uma mulher atraente, que estava sendo arrastada para a corda por dois guardas. Sua postura era ereta, de desafio. Delta estudou o rosto do carrasco. Por baixo dos olhos de maníaco, a boca fina do homem se contraía. Ele estava sorrindo. Era um homem morto. Em algum momento. Em algum lugar. Talvez naquela noite. Um carniceiro, um fanático cego e sedento de sangue, que podia mergulhar o Extremo Oriente numa guerra inconcebível — China contra China, seguindo-se o resto do mundo. Esta noite!
Capítulo 27 — Esta mulher é uma mensageira, uma daquelas a quem concedemos nossa confiança — continuou o orador, alteando a voz gradativamente, como um ministro fundamentalista, pregando o evangelho do amor enquanto seus olhos estão fixados na obra do demônio. — A confiança não foi ganhada, mas dada de boa fé, pois ela é a esposa de um dos nossos, um bravo soldado, um primogênito de uma ilustre família da verdadeira China. Um homem que enquanto falo aqui arrisca sua vida para se infiltrar entre nossos inimigos no sul. Ele também concedeu sua confiança a esta mulher... e ela traiu essa confiança, traiu seu bravo marido, traiu a todos nós! Não passa de uma prostituta que vai para a cama com o inimigo! E enquanto sua luxúria é saciada, quantos segredos ela revelou, quão mais profunda é sua traição? Ela é o contato do ocidental aqui em Pequim? É ela quem transmite informações a nosso respeito, quem revela a nossos inimigos o que procurar, o que esperar? Nossos homens mais experientes e dedicados prepararam uma armadilha para os nossos inimigos que haveria de exterminálos, livrando-nos dos criminosos ocidentais, que só percebem as riquezas se rastejarem diante dos algozes da China. Foi relatado que ela estava no aeroporto esta manhã. Na aeroporto! Onde a armadilha estava sendo montada! Ela entregou seu corpo devasso a um homem dedicado, talvez drogando-o. Seu amante contou-lhe o que fazer, o que dizer a nossos inimigos? O que esta rameira fez? A cena estava armada, pensou Bourne. Um capo flagrante de ausência de provas e baseado em rumores, a tal ponto que até um tribunal de Moscou mandaria um promotor-marionete de volta aos bancos escolares. O reinado de terror na tribo do senhor da guerra continuou. Eliminem os desajustados entre os desajustados. Descubram o traidor. Matem qualquer homem ou mulher que possa ser a pessoa que está nos traindo. Um coro suave mas irado de “Prostituta!” e “Traidora!” elevou-se da audiência, enquanto á mulher manietada se debatia entre os dois guardas. O orador levantou as mãos, pedindo silêncio. Foi atendido no mesmo instante. — Seu amante era um desprezível jornalista da Agência Noticiosa Xinhua, esse órgão mentiroso e desacreditado do regime desprezível. Eu disse “era”, pois há mais de uma hora que a repulsiva criatura está morta, com um tiro na cabeça, a garganta cortada, pois ele também era um traidor, por tudo o que sabemos! Falei pessoalmente com o marido desta prostituta, pois lhe concedo esta honra. Ele me instruiu a fazer o que exigem nossos espíritos ancestrais. Não quer ter mais nada com esta mulher... — Aiyaaa! — Com uma fúria e força extraordinárias, a mulher conseguiu arrebentar o pano que lhe tapava a boca. — Mentiroso! Assassino dos assassinos! Você matou um homem decente e eu não traí ninguém! Eu é que fui traída! Não estava no aeroporto, e você sabe disso! Nunca vi esse ocidental, e você sabe disso também! Não sei de nada sobre essa armadilha para criminosos ocidentais, e você pode ver a verdade em meu rosto! Como eu poderia saber? — Ao se prostituir para um dedicado servidor da causa, corrompendo-o, drogando-o! Oferecendo seus seios e o malfadado túnel da corrupção, recuando, retirando, até que as ervas o levaram à loucura! — Você está completamente louco! Diz essas coisas, essas mentiras, porque mandou meu
marido para o sul e depois foi me procurar, por muitos dias, primeiro com promessas e depois com ameaças. Eu deveria me submeter a você. Disse que era meu dever! Você deita comigo e eu descubro coisas... — Mulher, você é desprezível! Fui à sua procura para suplicar que honrasse seu marido, que honrasse a causa! Que abandonasse seu amante e procurasse o perdão! — Mentira! Homens vão à sua procura, taipans do sul, enviados por meu marido, homens que não podem ser vistos em sua companhia. Eles vão secretamente às lojas por baixo de meu apartamento, o apartamento de uma suposta viúva honrada... outra mentira que você impôs a mim e a minha filha! — Prostituta! — berrou o homem de olhos desvairados com a espada. — Mentiroso até as profundezas dos lagos do norte! — gritou a mulher em resposta. — Como você, meu marido tem muitas mulheres e não se importa comigo! Ele me espanca e diz que é um direito seu, pois é um grande filho da verdadeira China! Levo mensagens de uma cidade para outra, que se fossem encontradas em meu poder levariam à tortura e à morte! Em troca, recebo apenas o desdém! Nunca recebi o dinheiro das passagens ou o dinheiro que perco em meu trabalho, pois me dizem que é meu dever! Mas como minha filha vai comer? A criança que seu grande filho da China mal reconhece, pois queria apenas filhos homens! — Os espíritos não concederiam filhos a você, pois eles seriam mulheres, desgraçando uma grande casa da China! Você é a traidora! Foi ao aeroporto e entrou em contato com nossos inimigos, permitindo que um grande criminoso escapasse! Você nos escravizaria por mil anos... — Você nos transformaria em gado por dez mil! — Não sabe o que é liberdade, mulher. — Liberdade? De sua boca? Pois então me diga... diga a todos nós... vai devolver as liberdades que nossos antepassados tinham na verdadeira China... mas que liberdades, mentiroso? A liberdade que exige a obediência cega, que tira o arroz de minha filha, uma criança abandonada pelo pai, que acredita apenas em senhores... senhores da guerra, senhores da terra, senhores do mundo! Aiya! A mulher virou-se para a multidão, adiantando-se, afastando-se do orador. — Vocês! — gritou ela. — Todos vocês! Eu não traí vocês, não traí a nossa causa, mas aprendi muitas coisas. Nem tudo era como diz este mentiroso! Há muito sofrimento e restrições, como todos sabemos, mas já havia sofrimento antes, havia proibições antes!... Meu amante não era um homem mau, não era um adepto cego do regime, mas um homem culto, um homem gentil, um homem que acreditava na China eterna! Ele queria as coisas que nós queremos! Pedia apenas tempo para corrigir os males que haviam infectado os velhos nos comitês que nos dirigem. Haverá mudanças, ele me dizia. Algumas já estão começando a ocorrer. Agora! ... Não permitam que o mentiroso faça isso comigo! Não permitam que ele faça isso com vocês! — Prostituta! Traidora!
A lâmina zuniu pelo ar, decapitando a mulher. O corpo sem cabeça tombou para a esquerda, a cabeça caiu para a direita, ambos esguichando gêiseres de sangue. O orador messiânico brandiu a espada para baixo, retalhando o cadáver. Mas o silêncio que se abatera sobre a multidão era opressivo, assustador. Ele parou; perdera o controle. Recuperou-o prontamente. — Que os sagrados espíritos ancestrais concedam paz e purificação a esta mulher! — gritou ele, os olhos vagueando, parando, fixando-se em cada membro de sua. congregação. — Pois não é em ódio que encerro sua vida, mas em compaixão por sua fraqueza. Ela encontrará paz e perdão. Os espíritos compreenderão... mas nós devemos compreendê-la pela pátria! Não podemos nos desviar de nossa causa... devemos ser fortes! Devemos... Bourne já não agüentava mais o maníaco. Era o ódio encarnado. E um homem morto. Em algum momento. Em algum lugar. Talvez esta noite... se possível, esta noite! Delta desembainhou a faca e deslocou-se para a direita, rastejando pelo denso bosque de Medusa, o pulso estranhamente controlado, uma base furiosa de certeza se avolumando em seu íntimo — David Webb desaparecera. Havia tantas coisas que não podia lembrar daqueles dias distantes e enevoados, mas também havia muita coisa que lhe voltava. Os detalhes específicos eram indistintos, mas não os seus instintos. Impulsos o conduziam, e estava integrado na escuridão da floresta. A selva não era uma adversária; em vez disso, era sua aliada, pois já o protegera antes, o salvara antes, naquelas memórias distantes e desordenadas. As árvores, trepadeiras e arbustos eram seus amigos; movia-se através deles, em torno deles, como um felino, passos firmes, silencioso. Virou para a esquerda, por cima da depressão antiga, iniciou a descida, focalizando a árvore em que o assassino se encostava, tranqüilo. O orador alterara outra vez sua estratégia para lidar com a audiência. Estava cortando suas perdas, em vez de cortar uma outra mulher, um ato que todos os filhos julgavam à beira da loucura, independente de qualquer causa terrena. Era preciso apagar as súplicas de uma mulher morta e mutilada. Um mestre de seu ofício — sua arte —, o orador sabia quando reverter ao evangelho de amor, omitindo Lúcifer momentaneamente. Ajudantes haviam removido rapidamente as evidências de morte violenta, e a outra mulher foi chamada, com um gesto da espada cerimonial. Ela não tinha mais que dezoito anos, se tanto, uma garota bonita, chorando e vomitando, enquanto era arrastada para a frente. — Suas lágrimas e seus males não são necessários, criança — disse o orador, em sua voz mais paternal. — Sempre foi nossa intenção poupá-la, pois lhe foi pedido que cumprisse deveres além de sua competência e idade, teve acesso a segredos além de sua compreensão. A juventude freqüentemente fala quando devia se manter em silêncio... Você foi vista na companhia de dois irmãos de Hong Kong... mas não nossos irmãos. Homens que trabalham para a ignominiosa Coroa Inglesa, esse governo débil e decadente que vendeu a pátria a nossos algozes. Eles lhe deram jóias bonitas, batom e perfume francês de Kowloon. E agora, criança, me diga: o que deu a eles? A garota, vomitando histericamente através da mordaça, sacudiu a cabeça, frenética, as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Sua mão estava por baixo de uma mesa, entre as pernas de um homem, num café no Guangquem! — gritou um acusador.
— Era um dos porcos que trabalham para os britânicos! — acrescentou outro. — A juventude está sujeita à excitação — disse o orador, olhando com expressão irada para os que haviam falado, como se ordenasse silêncio. — Há perdão em nossos corações para essa exuberância jovem.., desde que a traição não seja parte dessa excitação, dessa exuberância... — Ela estava no Portão Qian Men!... — Ela não estava na Tian An Men! — gritou o homem com a espada. — Eu mesmo verifiquei isso! Sua informação é errada. A única dúvida que resta é bastante simples. Criança! Você falou de nós? Suas palavras poderiam ter sido transmitidas a nossos inimigos aqui ou no sul? A garota contorceu-se, o corpo todo balançando freneticamente para a frente e para trás, negando a acusação implícita. — Aceito a sua inocência, como um pai faria, mas não a sua insensatez, criança. É livre demais em seus relacionamentos, em seu amor por coisas bonitas. Quando essas atitudes não nos servem, podem se tornar perigosas. A moça foi entregue à custódia de um membro do coro, um homem de meia-idade presunçoso e obeso, para “instrução e meditação”. Pela expressão do homem, era evidente que seu mandato seria muito mais amplo do que o prescrito pelo orador. E quando acabasse com ela, uma sereia que arrancara segredos da alta hierarquia de Pequim, que gostava de garotas — acreditando que tais ligações, como Mao determinara, estendiam suas expectativas de vida — iria desaparecer. Dois dos três chineses restantes foram literalmente submetidos a julgamento. A acusação inicial foi tráfico de drogas, tendo como rede Xangai-Pequim. O verdadeiro crime, no entanto, não era o de distribuir narcóticos, mas o de constantemente desviar os lucros, depositando enormes quantias em contas pessoais, em diversos bancos de Hong Kong. Várias pessoas na audiência se adiantaram para confirmar as acusações, declarando que, como distribuidores subordinados, haviam entregado aos dois “chefes” grandes quantias em dinheiro, jamais registradas nos livros secretos da organização. Essa foi a acusação inicial, mas não a maior, que foi formulada pela voz estridente e monótona do orador: — Viajam para o sul, até Kowloon. Uma, duas e até três vezes por mês. O aeroporto de Kaitak... Você! — O fanático com a espada apontou para o prisioneiro à esquerda. — Voou de volta esta tarde. Estava em Kowloon ontem à noite. Ontem à noite! O Kai-tak! Fomos traídos ontem à noite no Kai-tak! O orador afastou-se sinistramente do círculo de luz das tochas, avançando para os dois homens paralisados, ajoelhados à sua frente. — Sua devoção ao dinheiro é maior do que a devoção à nossa causa — entoou ele, como um patriarca pesaroso, mas irado. — Irmãos no sangue e irmãos no roubo. Há muitas semanas que já sabemos, porque havia muita ansiedade da ganância de vocês. O dinheiro tinha de se multiplicar como ratos em esgotos pútridos, e por isso iniciaram atividades criminosas em Hong Kong. Uma grande capacidade de iniciativa, muita diligência... e uma estupidez inadmissível! Pensam que certas quadrilhas são desconhecidas para nós ou nós para elas? Pensam que não há áreas em que nossos interesses podem
convergir? Pensam que eles têm menos aversão do que nós aos traidores? Os dois irmãos manietados rastejavam na terra. Conseguiram ficar de joelhos, em súplica, sacudindo suas cabeças em negativa. Os gritos abafados eram súplicas para que fossem ouvidos, para que lhes fosse permitido falar. O orador aproximou-se do prisioneiro à esquerda e puxou a mordaça para baixo, a corda fazendo sangrar a pele do homem. — Não traímos ninguém, grande senhor! —gritou ele, estridentemente. — Eu não traí ninguém! É verdade que eu estava no Kai-tak, mas apenas na multidão! Para assistir, senhor! Para me regozijar! — Com quem você falou? — Não falei com ninguém, grande senhor! Ah, sim, falei com o recepcionista. Para confirmar meu vôo na manhã seguinte, senhor. Isso foi tudo. Juro pelos espíritos de nossos ancestrais. Meus e de meu irmão, senhor. — O dinheiro... o que me diz do dinheiro que roubou? — Não houve roubo, grande senhor. Juro! Acreditávamos em nossos corações orgulhosos... corações que se tornaram orgulhosos por nossa causa... que poderíamos usar o dinheiro em prol da verdadeira China! Cada yuan de lucro seria devolvido à causa! A multidão trovejou em resposta. Assovios desdenhosos foram lançados contra os prisioneiros; acordes de músicas de traição e roubo espalharam-se pela depressão no terreno. O orador levantou os braços, pedindo silêncio. As vozes se calaram. — Que a palavra seja divulgada — disse ele, devagar, mas com uma força crescente. — Aqueles em nosso grupo sempre maior que possam acalentar pensamentos de traição fiquem advertidos. Não há misericórdia em nós, pois nenhuma nos foi concedida. Nossa causa é justa e pura, os meros pensamentos de traição já constituem uma abominação. Que se espalhe a notícia. Vocês não sabem quem somos ou onde estamos... se um burocrata num ministério ou um membro da polícia de segurança. Não estamos em parte alguma e estamos em toda parte. Aqueles que hesitam e duvidam estão mortos... O julgamento destes cães raivosos está encerrado. Agora depende de vocês, minhas crianças. O veredicto foi rápido e unânime: culpados da primeira acusação, provavelmente da segunda também. A sentença: um irmão morreria, o outro viveria, sendo escoltado para o sul, até Hong Kong, onde o dinheiro seria recuperado. A escolha seria feita no ritual antigo do yi zang li, literalmente “funeral de um”. Cada homem recebeu uma faca idêntica, com lâminas serrilhadas e afiadas como navalha. A área de combate era um círculo, com um diâmetro de dez passos. Os dois homens se confrontaram, e o selvagem ritual começou. Um dos irmãos fez uma investida desesperada, e o outro desviou-se do ataque, sua lâmina cortando o rosto do atacante. O duelo dentro do círculo fatal, assim como as reações primitivas da audiência, encobriram qualquer ruído feito por Bourne, em sua decisão de agir rapidamente. Ele desceu correndo pela vegetação baixa, quebrando galhos e cortando os ramos entrelaçados, até chegar a seis metros por trás da árvore em que o assassino se encostava. Ele voltaria e chegaria mais perto, mas primeiro havia
d’Anjou. Eco precisava saber que ele estava ali. O Francês e o último prisioneiro chinês estavam apartados, à direita do círculo, flanqueados pelos guardas. Jason avançou, enquanto a multidão bradava insultos e estímulos aos gladiadores. Os dois estavam agora cobertos de sangue; um dos combatentes desfechara um golpe quase fatal com sua faca, mas a vida que ele queria encerrar não se rendeu. Bourne não estava a mais que dois ou três metros de D’Anjou; tateou pelo terreno e pegou um galho caído. Em outro rugido da multidão desvairada, ele partiu-o duas vezes. Tirou as folhas dos três pedaços. Mirou e arremessou o primeiro pedaço, numa trajetória baixa. Caiu a pouca distância das pernas do Francês. Jogou o segundo pedaço; bateu nos joelhos de Eco! D’Anjou balançou a cabeça duas vezes, reconhecendo a presença de Delta. Depois, o Francês fez uma coisa estranha. Começou a mexer a cabeça devagar, para a frente e para trás. Eco estava tentando lhe dizer alguma coisa. Subitamente, a perna esquerda de D’Anjou cedeu e ele caiu no chão. Foi levantado bruscamente pelo guarda à direita; mas a concentração do homem estava na batalha sangrenta que se desenrolava no círculo de um funeral. Eco tornou a sacudir a cabeça, lentamente, deliberadamente, depois olhou para a esquerda, na direção do assassino, que se afastara da árvore para observar o combate mortal. O Francês virou a cabeça mais uma vez, fixando-se agora no maníaco com a espada. D’Anjou tornou a cair, desta vez conseguindo se levantar antes que o guarda pudesse tocá-lo. Enquanto se erguia, moveu os ombros finos para trás e para a frente. Respirando fundo, Bourne fechou os olhos, no único momento de pesar que podia se permitir. A mensagem era clara. Eco estava saindo do circuito, dizendo a Delta para pegar o assassino... e, no processo, aproveitar para matar o carniceiro evangélico. D’Anjou sabia que estava muito contundido e fraco para qualquer tentativa de fuga. Seria apenas um estorvo, e o impostor estava em primeiro lugar ...Marie estava em primeiro lugar. A vida de Eco chegara ao fim. Mas ele teria sua gratificação na morte do carniceiro maníaco, o fanático que certamente o mataria. Um grito ensurdecedor encheu a depressão; a multidão ficou abruptamente silenciosa. Bourne virou a cabeça para a esquerda, espiando além dos espectadores. A cena era a mais repulsiva dentre todas as que testemunhara nos últimos e violentos minutos. O orador messiânico cravara sua espada cerimonial no pescoço de um combatente; puxou-a, enquanto o cadáver ensangüentado se sacudia nos estertores da morte e caía no chão. O ministro da morte levantou a cabeça e gritou: — Médico! — Pois não, senhor? — disse uma voz, do meio da multidão. — Cuide do sobrevivente. Trate-o da melhor forma possível para a sua iminente viagem ao sul. Se eu deixasse o combate continuar, os dois acabariam mortos e perderíamos nosso dinheiro. Essas famílias unidas levam anos de hostilidade para o yi zang li. Peguem o irmão e joguem-no nos pântanos junto com os outros. Todos serão carniça para os pássaros mais agressivos. — Está bem, senhor. Um homem com uma maleta preta de médico adiantou-se para o círculo da morte, enquanto o
cadáver era removido e uma maca surgia da escuridão, do outro lado da multidão. Tudo fora planejado, todos os fatores levados em consideração. O médico aplicou uma injeção no braço do irmão que gemia, coberto de sangue; ele foi posto na maca e levado do círculo da morte fraternal. Limpando a espada com outro lenço de seda limpo, o orador acenou com a cabeça na direção dos dois prisioneiros restantes. Aturdido, Bourne observou o chinês ao lado de d’Anjou desfazer as cordas que lhe amarravam os pulsos, depois levar uma das mãos à nuca e remover o pedaço de pano e a corda que supostamente impediam sua boca de emitir qualquer som, a não ser gemidos guturais. O homem encaminhou-se para o orador e falou, a voz alteada, dirigindo-se a seu líder e à multidão de partidários: — Ele nada diz, nada revela, mas seu chinês é fluente e teve todas as oportunidades de me falar, antes de embarcarmos no caminhão e sermos amordaçados. Mesmo depois, comuniquei-me com ele, soltando a minha mordaça e propondo afrouxar a sua. Ele recusou. É obstinado e corruptamente corajoso, mas tenho certeza de que sabe o que não nos dirá. — Tong ku, tong ku! Gritos frenéticos da multidão exigiam a tortura. Acrescentaram-se instruções, limitando a área da dor infligida aos testículos do ocidental. — Ele é velho e frágil, vai resvalar para a inconsciência, como aconteceu antes — insistiu o falso prisioneiro. — Portanto, sugiro o seguinte, com permissão do nosso líder. — Se há alguma possibilidade de sucesso, tem permissão para fazer o que deseja — declarou o orador. — Oferecemos a liberdade em troca da informação, mas ele não confia em nós. Vem lidando com marxistas há muito tempo. Proponho levar nosso relutante aliado ao aeroporto de Pequim e usar a minha posição para garantir-lhe uma passagem no próximo avião para Kai-tak. Eu o acompanharei pela imigração. Tudo o que ele precisa fazer, antes de embarcar com sua passagem, é me fornecer a informação. Como pode haver uma demonstração maior de confiança? Estaremos no meio de nossos inimigos; se a sua consciência estiver muito ofendida, só precisará levantar a voz. Ele viu e ouviu mais do que qualquer outra pessoa que já deixou o nosso círculo com vida. Com o tempo, podemos nos tornar aliados de verdade. Mas, primeiro, deve haver confiança. O orador estudou o rosto do agente provocador, depois fitou d’Anjou, que estava empertigado, espiando com os olhos inchados, escutando sem qualquer expressão definida. O homem com a espada ensangüentada virou-se para o assassino encostado na árvore e disse, falando subitamente em inglês: — Oferecemos poupar a vida deste manipulador insignificante se ele nos disser onde pode ser encontrado seu camarada. Você concorda? — O Francês vai mentir! — declarou o assassino, com um sotaque britânico incisivo, adiantando-se. — Com que objetivo? — perguntou o orador. — Ele tem sua vida, sua liberdade. Tem pouca ou nenhuma consideração pelos outros, como confirma o seu dossiê.
— Não sei direito — respondeu o inglês. — Trabalharam juntos numa unidade chamada Medusa. Ele estava sempre falando a respeito. Havia regras... códigos, pode chamá-los assim. Ele vai mentir. — A infame Medusa era formada por refugos humanos, homens que matariam seus irmãos no campo, se isso pudesse salvar suas vidas. O assassino deu de ombros. — Você pediu minha opinião. É essa. — Vamos perguntar à pessoa a quem estamos dispostos a oferecer misericórdia. O orador voltou a falar em mandarim, dando ordens, enquanto o assassino voltava para junto da árvore e acendia um cigarro. D’Anjou foi arrastado para a frente. — Desamarrem suas mãos. Ele não vai a parte alguma. E tirem a corda de sua boca. Vamos ouvi-lo. Mostrar a ele que podemos conceder... confiança, assim como aspectos menos atraentes de nossa natureza. D’Anjou sacudiu as mãos aos lados do corpo, depois levantou a direita e massageou a boca, comentando em inglês: — Sua confiança é tão compadecida e convincente quanto seu tratamento dos prisioneiros. — Eu tinha esquecido. — O orador franziu as sobrancelhas. — Você nos compreende, não é? — Um pouco mais do que você imagina. — Ótimo. Prefiro falar inglês. De certa forma, fica entre nós, não é? — Não há nada entre nós. Nunca tento negociar com loucos, pois são totalmente imprevisíveis. — D’Anjou lançou um olhar para o assassino junto à árvore. — Tenho cometido erros, é claro. Mas creio que, de alguma forma, um deles será corrigido. — Você pode viver. — Por quanto tempo? — Por mais tempo que esta noite. O restante depende de você, de sua saúde e suas faculdades. — Não vai, não. Tudo acabou quando cheguei perto daquele avião em Kai-tak. Não vão errar, como aconteceu ontem à noite. Não haverá forças de segurança, não haverá limusines à prova de balas, apenas um homem entrando ou saindo do terminal, outro armado com uma pistola de silenciador ou uma faca. Como disse o meu colega “prisioneiro” tão inconvincente, eu estive aqui esta noite. Vi e ouvi, e o que vi e ouvi me deixa marcado para a morte... De passagem, se ele especular por que não confiei, diga-lhe que foi muito óbvio, muito ansioso. E aquela mordaça se afrouxando de repente... Foi demais. Ele nunca poderia se tornar um pupilo meu. Como você, tem palavras insinuantes, mas é essencialmente
estúpido. — Como eu? — Isso mesmo. E no seu caso, não há desculpa. É um homem instruído, já viajou pelo mundo... dá para perceber pela maneira como fala. Onde estudou? Oxford? Cambridge? — Escola de Economia de Londres — respondeu Sheng Chou Yang, incapaz de se conter. — Muito bom... a escola tradicional. Apesar disso, no entanto, você é oco. Um palhaço. Não é um erudito, nem mesmo um estudioso, apenas um fanático, sem o menor senso da realidade. Não passa de um idiota. — Como se atreve a falar assim comigo? — Fengzi! — gritou Eco, virando-se para a multidão. — Shenjing bing! — acrescentou ele, rindo, explicando que estava falando com um maluco enrolado. — Pare com isso! — Wei shemme? — continuou o enfraquecido Francês, indagando Por quê? e incluindo a multidão na conversa, ao falar em chinês. — Está levando essa gente à destruição por causa de suas teorias lunáticas de transformar chumbo em ouro! E mijo em vinho! Mas como disse aquela infeliz mulher... ouro de quem, vinho de quem? Seu ou deles? D’Anjou sacudiu a mão na direção da multidão. — Estou avisando! — gritou Sheng, em inglês. — Estão vendo? — gritou Eco, a voz rouca e fraca, em mandarim. — Ele não quer falar comigo na língua de vocês! Esconde-se de vocês! O homenzinho de pernas finas com a espada grande... é para compensar o que lhe falta em outras partes? Ele retalha mulheres com sua lâmina porque não tem outro equipamento e não pode fazer mais nada? E olhem só para essa cabeça que parece um balão, com o topo achatado... — Já chega! — ... e os olhos de uma criança horrível, de voz esganiçada, desobediente! Como eu disse, ele não passa de um maluco enrolado. Por que dar a ele o tempo de vocês? Ele só vai lhes dar mijo em troca, nenhum vinho! — Eu pararia se fosse você — disse Sheng, adiantando-se, com a espada. — Eles vão matá-lo antes que eu possa fazê-lo. — Duvide que isso aconteça — respondeu d’Anjou, em inglês. —A ira está prejudicando a sua audição, Monsieur Falador. Não ouviu algumas risadinhas? Eu ouvi. — Gou le! — berrou Shen Chou Yang, ordenando a Eco que ficasse em silêncio. E continuou,
no chinês estridente de um homem acostumado a ser obedecido: — Vai nos dar a informação de que precisamos. O jogo acabou e não vamos tolerá-lo por mais tempo! Onde está o matador que você trouxe de Macau? — Ali — respondeu d’Anjou, sacudindo a cabeça calmamente na direção do assassino. — Não ele! O que surgiu antes! Aquele louco que você chamou de volta da sepultura para vingá-lo! Onde é o ponto de encontro? Onde vocês se reúnem? Onde fica a base de vocês aqui em Pequim? — Não há nenhum ponto de encontro — respondeu Eco, voltando ao inglês. — Não há base de operações, não há planos de reunião. — Havia planos! Vocês sempre se preocupam com as emergências! É assim que sobrevivem! — Sobrevivíamos. Ponha o verbo no passado. Sheng levantou a espada. — Vai nos contar ou morre... e de maneira bastante desagradável, monsieur. — Vou lhe contar uma coisa. Se ele pudesse ouvir minha voz, eu lhe explicaria que você é o homem que ele deve matar. Pois você é o homem que vai subjugar toda a Ásia, com milhões se afogando em oceanos do sangue de seus irmãos. Compreendo que ele precisa cuidar dos seus próprios problemas, mas eu lhe diria com meu último alento que você deve ser parte desse problema. Diria a ele para entrar em ação. E depressa! Hipnotizado pelo desempenho de d’Anjou, Bourne estremeceu como se tivesse sido golpeado. Eco estava lhe transmitindo uma mensagem final. Mexa-se! Agora! Jason enfiou a mão no bolso esquerdo da frente, retirando o conteúdo, enquanto rastejava rapidamente pelas moitas, além da área de encenação dos selvagens rituais. Encontrou uma pedra grande, erguendo-se vários palmos pelo ar. O ar estava parado por trás, o tamanho era mais do que suficiente para esconder seu trabalho. Enquanto começava, podia ouvir a voz de Eco; estava fraca e trêmula, mas ainda assim desafiadora. Eco estava encontrando dentro de si mesmo recursos não apenas para enfrentar seus instantes finais, mas também para ganhar os poucos momentos preciosos de que Delta precisava. — ... Não tenha pressa, mon général Gêngis Khan ou quem quer que você seja. Sou um velho, e seus asseclas fizeram um bom trabalho. Como disse, não vou a parte alguma. Por outro lado, não tenho certeza se me importo com o lugar para onde tenciona me mandar... Não fomos bastante espertos para perceber a armadilha que preparou para nós. Se fôssemos, nunca teríamos caído nela. Assim, por que acha que fomos bastante espertos para combinar um ponto de encontro? — Porque vocês caíram na armadilha — disse Sheng Chou Yang, calmamente. — Seguiram... ele seguiu... o homem de Macau para o mausoléu. O louco esperava sair. Suas emergências incluíram tanto o caos quanto um ponto de encontro. — À primeira vista, sua lógica pode parecer incontestável...
— Onde? — Meu incentivo? — Sua vida! — Ah, sim, já mencionou isso... — Seu tempo está se esgotando. — Eu saberei qual é o meu tempo, monsieur! Uma última mensagem. Delta compreendeu. Bourne riscou um fósforo, protegendo a chama, acendeu a vela de cera fina, o pavio cravado logo abaixo do topo. Rastejou rapidamente pelas moitas, desenrolando a fieira com as bombinhas chinesas. Chegou ao fim e começou a voltar para a árvore. — ... Que garantia tenho eu para a minha vida? — insistiu Eco, divertindo-se estranhamente, um mestre do xadrez tramando a sua própria morte inevitável. — A verdade — respondeu Sheng. — Isso é tudo de que precisa. — Mas meu ex-pupilo garante a você que eu vou mentir... como você também mentiu sistematicamente esta noite. — D’Anjou fez uma pausa e depois repetiu sua declaração em mandarim. E perguntou aos espectadores se haviam compreendido: — Liao jie? — Pare com isso! — Você se repete incessantemente. Precisa aprender a se controlar. É um hábito desagradável. — E minha paciência acabou! Onde está o louco? — Em sua linha de trabalho, mon général, paciência é não apenas uma virtude, mas também uma necessidade. — Espere! — gritou o assassino, afastando-se da árvore e surpreendendo a todos. — Ele está ganhando tempo! Está jogando com você! Eu o conheço e tenho certeza! — Por que motivo? — indagou Sheng, a espada suspensa. — Não sei — respondeu o comando britânico. — Apenas não gosto da situação, e isso é motivo suficiente para mim. Três metros por trás da árvore, Delta olhou para o mostrador luminoso do relógio, concentrandose no ponteiro dos segundos. Calculara o tempo em que a vela ardia no carro e a hora era agora. Fechando os olhos, suplicando a alguma coisa que não podia compreender, Jason pegou um punhado de terra e jogou bem alto, para a direita da árvore, ainda mais para a direita de D’Anjou. Quando ouviu o sussurro, Eco alteou a voz ao máximo que podia:
— Fazer um trato com você? Prefiro fazer com o arcanjo das trevas! Talvez ainda tenha de encontrá-lo, mas é possível também que não, pois um Deus misericordioso saberá que você cometeu pecados além de qualquer coisa que eu já fiz. Deixo este mundo querendo apenas levar você comigo. Mesmo pondo de lado a sua brutalidade indesculpável, mon générai, não passa de um chato presunçoso e vazio, uma piada cruel para o seu povo! Venha morrer comigo, General Bosta! Com essas palavras finais, d’Anjou arremeteu contra Sheng Chou. Yang, metendo as unhas em seu rosto, cuspindo nos olhos arregalados e atônitos. Sheng saltou para trás, golpeando com a espada cerimonial, a lâmina cortando a cabeça do Francês. Com uma rapidez misericordiosa, tudo acabou para Eco. E foi nesse instante que começou. Uma rajada de fogos de artifício povoou a depressão, a intensidade aumentando, enquanto a multidão aturdida reagia em choque. Homens se jogavam ao chão, outros corriam para trás de árvores e pelas moitas, berrando em pânico, apavorados. O assassino foi se abrigar por trás de uma árvore, agachado, a arma na mão. Bourne, com o silenciador fixado em sua pistola, aproximou-se do matador. Mirou e atirou, arrancando a arma da mão do assassino, a carne entre o polegar e o indicador do comando explodindo em sangue! O virou-se, os olhos arregalados, a boca escancarada em choque. Jason disparou de novo, a bala agora raspando a face do assassino. — Vire-se! — ordenou Bourne, comprimindo o cano da arma no olho esquerdo do comando. — Agarre a árvore! Agarre! Os dois braços! Aperte com força! Jason comprimiu a arma na nuca do matador e deu uma olhada em torno do tronco. Várias tochas fincadas na terra haviam sido derrubadas, as chamas se apagando. Outra série de explosões veio do fundo da mata. Homens em pânico começaram a disparar suas armas na direção dos sons. A perna do assassino se mexeu! E depois a mão direita! Bourne disparou dois tiros diretamente na árvore; as balas afundaram na madeira, estilhaçando a casca a um ou dois centímetros do crânio do comando. Ele se comprimiu contra o tronco, o corpo imóvel, rígido. — Mantenha a cabeça para a esquerda! — ordenou Bourne, asperamente. — Mexa-se mais uma vez e estouro seus miolos! Onde estava ele? Onde estava o maníaco homicida com a espada? Delta devia isso a Eco. Onde... ali! O homem com olhos fanáticos estava se levantando do chão, espiando para toda parte ao mesmo tempo, gritando ordens para os que estavam mais perto, exigindo que lhes entregassem uma arma. Jason deu um passo para o lado da árvore e levantou a pistola. A cabeça do fanático parou de se mexer. Os olhos se encontraram. Bourne disparou no momento em que Sheng puxava um guarda para a sua frente. O soldado foi jogado para trás, o pescoço se partindo sob o impacto das balas. Sheng segurou o corpo, usando-o como um escudo, enquanto Jason disparava mais duas vezes, sacudindo o cadáver. Não podia fazer o que queria! Quem quer que fosse o maníaco, estava protegido pelo corpo de um soldado morto! Delta não podia cumprir o que Eco lhe pedira! O General Bosta sobreviveria! Sinto muito, Eco! Não há tempo! Mexa-se! Eco acabou... Marie!
O assassino virara a cabeça, tentando ver alguma coisa. Bourne puxou o gatilho. A casca explodiu no rosto do comando, que levou as mãos aos olhos, depois sacudiu a cabeça, piscando para recuperar a visão. — Levante-se! — ordenou Jason, agarrando o assassino pela garganta e virando-o na direção da trilha que abrira pela vegetação rasteira ao descer. — Você vai comigo! Uma terceira série de bombinhas, ainda mais no fundo do bosque, começou a explodir, em rajadas rápidas. Sheng Chou Yang gritava histericamente, ordenando que seus homens seguissem em duas direções — para as proximidades da árvore e para as explosões. E um momento depois as explosões cessaram, enquanto Bourne empurrava seu prisioneiro pela mata. Ordenou que o assassino se deitasse de bruços e se agachou, pondo um pé em sua nuca. Tateou pelo terreno, pegou três pedras e jogou- as pelo ar, uma depois da outra, além dos homens que vasculhavam a área ao redor da árvore, O desvio produziu o efeito desejado. — Nali! — Shu ner! — Bu! Caodi ner! Eles começaram a se adiantar, as armas prontas para entrar em ação. Vários correram para a frente, avançando pela vegetação alta. Outros seguiram-nos, enquanto a quarta e última série de fogos de artifício começava a explodir. Apesar da distância, os estampidos eram tão ou mais altos do que as explosões anteriores. Era o estágio final, o clímax da demonstração, mais longo e mais retumbante. Delta sabia que o tempo agora era medido em minutos; se alguma floresta já fora sua amiga, aquela tinha de ser ainda mais. Dentro de alguns momentos, talvez segundos, os homens encontrariam os restos queimados das bombinhas espalhados pelo chão, e a tática diversionária estaria revelada. Haveria então uma corrida maciça e histérica para o portão. — Ande! — ordenou Bourne, agarrando os cabelos do assassino, levantando-o e empurrando-o para frente. — E não se esqueça, seu filho da puta, que não há um só truque que você tenha aprendido que eu não aperfeiçoei, o que compensa uma certa diferença em nossas idades. Olhe para o lado errado e terá dois buracos de balas no lugar dos olhos. Vamos logo! Enquanto subiam correndo pela trilha improvisada, Bourne meteu a mão no bolso e tirou um punhado de balas. Enquanto o assassino corria à sua frente, ofegante, esfregando os olhos e removendo o sangue do rosto, Jason tirou o pente da automática, substituiu todas as balas e tornou a pô-lo no lugar. Ao ouvir o som, o comando virou a cabeça bruscamente, mas percebeu que estava atrasado; a arma já fora recarregada. Bourne disparou, a bala roçando a orelha do assassino. — Eu avisei! — disse ele, á respiração ruidosa, mas firme. — Onde você quer a próxima bala? No meio da testa? Jason estendeu a automática à frente.
— Deus do céu, aquele carniceiro estava certo! — gritou o comando britânico, segurando a orelha. — Você é louco! — E você vai morrer se não se mexer. Mais depressa! Alcançaram o cadáver do guarda que fora postado na trilha estreita que descia para a ravina. — Vá para a direita! — ordenou Jason. — Para onde, pelo amor de Deus? Não posso ver! — Há uma trilha. Vai sentir o espaço. Ande! Depois que entraram nos caminhos de terra do santuário, Bourne comprimiu a automática contra a espinha do assassino, forçando-o a correr cada vez mais depressa. Por um momento, David Webb voltou, e um Delta agradecido reconheceu a sua presença. Webb era um corredor, um corredor irredutível, por motivos que voltavam no tempo e nas lembranças torturadas, passando por Jason Bourne para chegar à infame Medusa. Os pés correndo, o suor e o vento contra o rosto faziam com que viver cada dia se tornasse mais fácil para David. Naquele momento, Jason Bourne estava respirando com alguma dificuldade, mas não estava tão ofegante quanto o assassino, mais jovem e mais forte. Delta avistou o clarão no céu... o portão ficava ao final de um prado e além de três caminhos escuros e sinuosos. Não chegava a um quilômetro! Disparou um tiro entre as pernas em movimento do assassino. — Quero que corra mais depressa! — ordenou, impondo controle à voz, procurando dar a impressão de que o movimento vigoroso quase não o afetava. — Não posso! Não tenho mais fôlego! —Pois arranje! Subitamente, a distância, por trás deles, ouviram os gritos histéricos de homens, ordenados por seu líder maníaco a voltarem ao portão, descobrirem e matarem um intruso, tão perigoso que suas próprias vidas e destinos estavam em jogo. Os remanescentes das bombinhas haviam sido encontrados; um rádio fora ativado, mas não houvera qualquer resposta da guarita. Encontrem-no! Detenham-no! Matem-no! — Se está com idéias, Major, é melhor esquecê-las! — gritou Bourne. — Major? — repetiu o comando, mal conseguindo falar, enquanto continuava a correr. — Você é um livro aberto para mim, e o que li me deixa enojado! Assistiu d’Anjou morrer como um porco abatido! E sorriu, seu filho da puta! — Ele queria morrer! Queria me matar!
— Eu vou matar você, se parar de correr. Mas antes vou cortá-lo dos colchões à cabeça, tão devagar que vai desejar ter morrido junto com o homem que criou. — Onde está a minha alternativa? Vai me matar de qualquer maneira! — Talvez não. Pense nisso. Talvez eu poupe sua vida. É uma esperança. O assassino correu mais depressa. Percorreram a última trilha escura, avançaram pelo espaço aberto do portão iluminado. — O estacionamento! — gritou Jason. — A extremidade da direita! Jason parou de repente. — Espere! O atordoado assassino estacou abruptamente. Jason pegou a lanterna e apontou a automática. Enquanto se aproximava das costas do assassino, disparou cinco tiros, errando apenas um. Os refletores explodiram; o portão mergulhou na escuridão. Bourne comprimiu a arma contra a base do crânio do comando. Acendeu a lanterna, iluminando o lado do rosto do assassino. — A situação está sob controle, Major. A operação continua. Ande, seu filho da puta! Correndo pelo estacionamento escuro, o assassino tropeçou, estatelando-se sobre o cascalho. Jason disparou duas vezes, à luz da lanterna; as balas ricochetearam perto da cabeça do comando. O homem se levantou e continuou a correr, passando pelos carros e caminhão, até a extremidade do estacionamento. — A cerca! — disse Bourne num sussurro alto. — Siga para lá. À beira do cascalho, deu outra ordem: — Fique de quatro... e só olhe para a frente! Se virar a cabeça para trás, eu serei a última coisa que vai ver! E agora comece a rastejar! O assassino chegou à abertura na cerca. — Comece a passar — disse Jason, enquanto tornava a enfiar a mão no bolso e tirava as balas, depois removia silenciosamente o pente da automática. E quando o ex-comando psicótico estava no meio da abertura, ele sussurrou: — Pare! Jason substituiu as balas usadas e empurrou o pente para o lugar, acrescentando: — Apenas para o caso de você estar contando. E agora acabe de passar para o outro lado da cerca e rasteje por mais dois metros. Depressa! Enquanto o assassino passava sob o arame entortado, Bourne agachou-se; passou pela abertura poucos centímetros atrás dele. Não esperando por isso, o comando virou-se bruscamente assim que
acabou de passar, ficando de joelhos. Deparou com o facho da lanterna, o brilho iluminando a automática apontada para sua cabeça. — Eu teria feito a mesma coisa — disse Jason, levantando-se. — Pensaria da mesma forma. Agora volte à cerca, abaixe-se e ajeite o pedaço de cerca no lugar. Depressa! O assassino obedeceu, fazendo força para baixar a tela grossa. Quando faltava pouco, Bourne disse: — Já chega. Levante-se e passe na minha frente, com as mãos nas costas. Siga em frente, abrindo caminho entre os galhos com os ombros. Estou iluminando suas mãos. Se as descruzar, vou matá-lo. Entendido? — Acha que eu empurraria um galho de árvore para a sua cara? — Eu faria isso. — Entendido. Chegaram à estrada na frente do portão às escuras. Os gritos distantes soavam mais nítidos agora, o grupo da vanguarda mais próximo. — Desça pela estrada — disse Jason. — Corra! Três minutos depois ele tornou a acender a lanterna. — Pare! Aquela pilha verde ali... está vendo? — Onde? — balbuciou o ofegante assassino. — Estou iluminando. — São galhos, parte dos pinheiros. — Pois tire-os. Depressa! O comando começou a remover os galhos, revelando em poucos momentos o sedã preto Xangai. Era a hora para a mochila. Bourne disse: — Acompanhe a luz, para a esquerda do capô. — Para onde? — A árvore com o entalhe branco no tronco. Está vendo? — Estou. — Há terra solta cerca de dois palmos à frente. E por baixo tem uma mochila. Escave e tire-a
para mim. — Você é uma porra de um técnico, hem? — E você também não é? Sem responder, o soturno assassino começou a escavar e tirou a mochila. Com as alças na mão direita, adiantou-se, como se fosse entregá-la a seu captor. E subitamente balançou a mochila, arremessando-a diagonalmente para cima, na direção da automática e da lanterna de Jason, ao mesmo tempo em que arremetia, os dedos das mãos estendidos como as garras de um felino furioso. Bourne estava preparado. Era o momento preciso que ele teria escolhido para obter alguma vantagem, por mais transitória, pois daria os segundos necessários para sair correndo pela escuridão. Recuou, acertando com a automática na cabeça do assassino, quando o corpo impulsionado passou por sua frente. Comprimiu o joelho contra as costas do comando estatelado no chão e pegou seu braço direito, prendendo a pequena lanterna entre os dentes. — Eu avisei! — Jason puxou para cima o braço direito do assassino. — Mas também preciso de você. Por isso, em vez de sua vida, vamos fazer apenas uma pequena cirurgia de bala. Bourne encostou o cano da automática lateralmente na carne do músculo do braço do assassino e puxou o gatilho. — Santo Deus! — gritou o assassino, enquanto o estalido ressoava e o sangue esguichava. — Não há osso quebrado —disse DeIta. — Apenas tecido muscular. E agora pode esquecer a idéia de usar o braço. Tem sorte que eu seja um homem misericordioso. Há gaze, esparadrapo e desinfetante na mochila. Pode fazer um curativo, Major. E depois vai guiar. Será meu motorista na República Popular. Ficarei no banco de trás, com a arma apontada para a sua cabeça. Tenho um mapa. Se eu fosse você, não faria qualquer volta errada. Doze dos homens de Sheng Chou Yang correram para o portão, levando apenas quatro lanternas. — Wei shemme? Cuo wu! — Mafan! Feng Kuang! — You mao bing! — Wei fan! Uma dúzia de vozes esganiçadas se alteavam contra os refletores apagados, culpando a tudo e a todos, de ineficiência à traição. A guarita foi revistada; os controles elétricos e o telefone não funcionavam, o guarda desaparecera. Vários homens examinaram a corrente enrolada em torno da
tranca do portão e deram ordens aos outros. Como nenhum podia sair, concluíram que os atacantes ainda se encontravam no interior do santuário. — Biao! — gritou o infiltrador que fora o prisioneiro falso de d’Anjou. — Quan bu zai zheli! Ordenou aos outros que dividissem as lanternas e revistassem o estacionamento, a floresta ao redor e os charcos além. Os caçadores se espalharam, as armas estendidas, correndo pelo estacionamento em diferentes direções. Mais sete homens chegaram, apenas um trazendo uma lanterna. O falso prisioneiro requisitou-a e começou a explicar a situação, a fim de formar outro grupo de busca. Houve protestos de que uma só lanterna para eles era insuficiente na escuridão. Em frustração, o organizador da caçada bradou uma série de impropérios, atribuindo uma estupidez extrema a todos, sendo ele a única exceção. As chamas dançantes das tochas se tornaram mais brilhantes, enquanto os últimos conspiradores chegavam da ravina, tendo à frente o vulto de Sheng Chou Yang, a espada cerimonial balançando ao lado do corpo, na bainha presa à cintura. Mostraram-lhe a corrente enrolada e o infiltrador informou-o das circunstâncias. — Não está pensando corretamente —disse Sheng, exasperado. — Sua opinião está completamente errada. A corrente não foi colocada aqui por um dos nossos homens, a fim de manter o criminoso dos criminosos no lado de dentro. Em vez disso, foi posta pelo violador dos violadores, a fim de nos retardar, de nos manter aqui dentro! — Mas há muitos obstáculos... — Estudados e considerados! — berrou Sheng Chou Yang. — Devo repetir? Essas pessoas são sobreviventes. Permaneceram vivos naquele batalhão criminoso chamado Medusa por que levavam tudo em consideração. E escalaram a cerca para o outro lado! — É impossível — protestou o homem mais jovem. — O cano de cima e o arame farpado são eletrificados, senhor. E a carga é ativada por qualquer peso acima de quinze quilos. Assim, os pássaros e outros animais não são eletrocutados. — Pois então eles descobriram a fonte da corrente e a desligaram! — Os interruptores ficam do lado de dentro, a pelo menos setenta e cinco metros do portão e escondidos no chão. Nem eu mesmo sei direito onde estão. — Mande alguém subir — ordenou Sheng. O subordinado olhou ao redor. A seis ou sete metros dois homens falavam, um para o outro, baixinho, depressa. Era duvidoso que qualquer dos dois tivesse prestado atenção à conversa acalorada entre Sheng e seu subordinado. — Você! — exclamou o jovem líder, apontando para o homem à esquerda. — Pois não, senhor?
— Escale a cerca! — Está certo, senhor. O homem correu para a cerca e deu um salto, as mãos segurando os arames entrelaçados, os pés se apoiando na tela da melhor forma possível. Chegou ao cano lá em cima e começou a passar pela barreira inclinada de arame farpado. — Aiyaaa! Um matraquear de estática foi acompanhado pelas descargas azuis-brancas ofuscantes da eletricidade acionada. O corpo rígido, os cabelos e sobrancelhas chamuscados até as raízes, o homem caiu para trás, batendo na terra com o impacto de uma pesada pedra. Fachos de lanternas convergiram. O homem estava morto. — O caminhão! —gritou Sheng. — Isso é idiotice! Peguem o caminhão e vamos arrombar o portão! Façam o que estou mandando! Depressa! Dois homens correram para o estacionamento, e segundos depois o troar do motor do caminhão rompeu a quietude a noite. O pesado caminhão deu um solavanco para trás, todo o chassi tremendo violentamente, e depois parou por completo. Os pneus vazios giravam no lugar, a fumaça se elevando da borracha queimada. Sheng Chou Yang olhava, em crescente apreensão e fúria. — Os outros! — berrou ele. — Liguem os outros veículos! Todos! Um a um, os veículos foram ligados; um a um, todos deram um solavanco e depois as rodas afundaram no cascalho, rodando no mesmo lugar. Em frenesi, Sheng correu para o portão, sacou uma arma e disparou duas vezes contra a corrente enrolada. Um homem à sua direita gritou, levando a mão à testa sangrando, enquanto caía ao chão. Sheng levantou o rosto para o céu escuro e soltou um rugido primitivo de protesto. Desembainhou a espada cerimonial e pôs-se a golpear repetidamente a tranca acorrentada do portão. Era um exercício de inutilidade. A lâmina quebrou.
Capítulo 28 — Lá está a casa, aquela de muro de pedra alto — informou o agente da CIA Matthew Richards, enquanto guiava o carro, subindo a ladeira em Victoria Peak. — Segundo nossas informações, há fuzileiros por toda parte... e não vai me fazer nenhum bem ser visto em sua companhia. — Aposto que você quer me dever mais alguns dólares — disse Alex Conkiin, inclinando-se para a frente e espiando pelo pára-brisa. — é negociável. — Apenas não quero ser envolvido, pelo amor de Deus! E não tenho dólares! — Pobre Matt, triste Matt. Toma as coisas muito ao pé da letra. — Não sei do que você está falando. — Também não sei direito, mas passe pela casa como se estivesse indo para outro lugar. Eu lhe direi quando parar e me deixar saltar. — É mesmo? — Sob condições. São os dólares. — Não são difíceis de aceitar e talvez eu nem cobre. Pelo que estou pensando agora, vou querer que você fique na geladeira, fora de vista. Em outras palavras, quero um homem lá dentro. Ligarei para você várias vezes por dia, perguntando se nossos compromissos para almoço ou jantar ainda estão de pé, se vamos nos encontrar no prado... — Lá não! — protestou Richards. — Está bem. No Museu de Cera.., ou qualquer outro lugar que me passar pela cabeça, menos o jóquei. Se você disser “Não, estou muito ocupado”, eu saberei que não estão me fechando o cerco. Se disser “Sim”, tratarei de escapar. — Nem mesmo sei onde você está baseado. Mandou que eu o pegasse na esquina da Granvil e Carnarvon. — Meu palpite é de que sua unidade será chamada para manter as coisas em ordem e assumir a responsabilidade. Os britânicos vão exigir. Não vão querer sofrer a queda sozinhos se a operação explodir. São momentos difíceis para os britânicos por aqui, e por isso eles vão encobrir seus rabos coloniais. O carro passou pelo portão. Conklin estudou a enorme entrada vitoriana. — Juro que não tenho a menor idéia sobre o que você está falando, Alex. — Assim é ainda melhor. Não concorda? Meu guru está lá dentro?
— Está, sim. Dispenso a ajuda dos fuzileiros. — Muito bem. Pode parar aqui. Vou saltar e voltar a pé. Se alguém perguntar, subi ao Peak de bonde, peguei um táxi para a casa errada e tive de voltar a pé para o endereço certo, descendo a ladeira por sessenta ou setenta metros. Satisfeito, Matt? — Extasiado — respondeu o agente da CIA, de cara amarrada, enquanto parava o carro. — Durma bem, Matt. Muito tempo passou desde Saigon, e todos precisamos de mais descanso à medida que envelhecemos. — Ouvi dizer que você tinha casado com a garrafa. Não é verdade, não é mesmo? — Ouviu o que queríamos que ouvisse — respondeu Conklin, calmamente. Desta vez, no entanto, ele pôde cruzar os dedos das duas mãos, antes de sair do carro, meio desajeitado. Uma breve batida e a porta foi aberta bruscamente. Surpreso, Havilland levantou os olhos para deparar com Edward McAllister, muito pálido, avançando depressa pela sala. — Conklin está no portão — anunciou o subsecretário. — Exige falar com você e diz que está disposto a passar a noite inteira lá, se for necessário. Também diz que se fizer muito frio vai acender uma fogueira na rua para se aquecer. — Aleijado ou não, ele não perdeu a arrogância —comentou o embaixador. — Isso é totalmente inesperado — continuou McAllister, massageando a têmpora direita. — Não estamos preparados para uma confrontação. — Parece que não temos alternativa. É um logradouro público, e o problema é da competência do corpo de bombeiros da colônia, caso os vizinhos fiquem alarmados. — Mas certamente ele não faria... — Certamente ele faria — interrompeu Havilland. — Deixe-o entrar. Não é apenas inesperado, mas extraordinário. Ele ainda não teve tempo para reunir os seus fatos ou organizar um ataque que lhe proporcionasse alguma vantagem. Está expondo abertamente o seu envolvimento. Tendo em vista os seus antecedentes em operações secretas, ele não faria isso de graça. É perigoso demais. Ele próprio já deu uma ordem de além-da-salvação. — Podemos presumir que ele está em contato com a mulher — protestou o subsecretário, encaminhando-se para o telefone na mesa do embaixador. — Isso lhe dá todos os fatos de que precisa. — Não, não dá. A mulher não tem todos os fatos. — Mas como ele sabe que você está aqui? — indagou McAllister, com a mão no telefone.
Havilland sorriu sombriamente. — Ele só precisaria saber que estou em Hong Kong. Além do mais, nós nos falamos e tenho certeza de que ele somou os fatos. — E esta casa? — Ele nunca nos contará. Conklin é um veterano do Extremo Oriente, Sr. Subsecretário, tem contatos que ignoramos. E não saberemos o que o traz aqui, a não ser que o deixemos entrar, não é mesmo? — Tem razão. — McAllister levantou o fone do gancho e discou três dígitos. — Comandante da Guarda?... Deixe o Sr. Conklin passar pelo portão, reviste-o à procura de alguma arma e depois o acompanhe pessoalmente até o gabinete da Ala Leste... Ele o quê?... Pois deixe-o entrar imediatamente e apague essa coisa! — O que aconteceu? — indagou Havilland, enquanto o subsecretário desligava. — Ele acendeu uma fogueira no outro lado da rua. Alexander Conklin entrou mancando na ornamentada sala vitoriana, enquanto o oficial dos fuzileiros fechava a porta. Havilland levantou-se e contornou a mesa, a mão estendida. — Sr. Conklin? — Pode recolher a mão, Sr. Embaixador. Não quero pegar uma infecção. — Entendo. A ira impede a cortesia? — Não. Apenas não quero pegar em coisa alguma. Como dizem por aqui, você é um ídolo podre. Portador de alguma coisa. Acho que uma doença. — E o que poderia ser? — Morte. — Não está sendo um pouco melodramático? Pode se sair melhor, Sr. Conklin. — Falo sério. Há menos de vinte minutos vi uma pessoa ser morta, massacrada em plena rua, quarenta ou cinqüenta balas se cravando em seu corpo. Ela foi estraçalhada contra portas de vidro do prédio em que mora, seu motorista fuzilado dentro do carro. A cena é terrível, cacos de vidro e sangue espalhados pela calçada.. Os olhos de Havilland estavam arregalados em choque, mas foi a voz histérica de McAllister que interrompeu o homem da CIA — Ela? Foi a mulher?
— Uma mulher — disse Conklin, virando-se para o subsecretário, cuja presença ainda não reconhecera. —Você é McAllister? — Isso mesmo. — Também não quero apertar sua mão. Ela estava envolvida com vocês dois. — A mulher de Webb está morta?— berrou o subsecretário, o corpo todo paralisado. — Não, mas obrigado pela confirmação. — Santo Deus! — gritou o veterano embaixador das atividades clandestinas do Departamento de Estado. — Era Staples! Catherine Staples! — Dê ao homem um charuto explosivo. E obrigado de novo pela segunda confirmação. Está planejando jantar em breve com o Alto Comissário do consulado canadense? Eu adoraria estar presente... só para observar o renomado Embaixador Havilland em ação. Puxa vida, acho que a gente de baixo nível podia aprender uma porção de coisa — Cale a boca, seu idiota! — gritou Havilland, voltando para trás da mesa, arriando na cadeira e recostando-se, os olhos fechados. — Eis uma coisa que eu não vou fazer — disse Conklin, adiantando-se, o pé entrevado martelando o chão. — Você é responsável, senhor! — Ele inclinou-se para a frente, segurando a borda da mesa. — Assim como é responsável pelo que aconteceu com David e Marie Webb! Que porra você pensa que é? E se minha linguagem o ofende, senhor, pense na origem da palavra. Vem de um termo da Idade Média que significava plantar uma semente na terra, o que de certa forma é a sua especialidade! Só que no seu caso são sementes de podridão... escava a terra limpa e a transforma em sujeira. Suas sementes são mentiras e embustes. Crescem dentro das pessoa transformando-as em fantoches irados e assustados, dançando nos cordões de seus miseráveis roteiros! Repito, seu filho da puta aristocrata: que porra você pensa que é? Havilland entreabriu os olhos e inclinou-se para a frente. A expressão era a de um velho desejando morrer, ainda que fosse apenas para remover a angústia. Mas aqueles mesmos olhos estavam vivos como uma fúria fria, que viam coisas que outros não podiam perceber — Serviria ao seu argumento se eu lhe contasse que Catherine Staples me disse essencialmente a mesma coisa? — Serve e o completa! — Contudo, ela foi morta porque se juntou a nós. Não gostava disso, mas em seu julgamento não havia alternativa. — Mais um fantoche? — Não. Um ser humano com uma inteligência extraordinária e uma riqueza de experiência que
entendeu o que temos pela frente. Lamento a sua perda... e a maneira como morreu... mais do que você pode imaginar. — É a perda dela, senhor, ou o fato de que sua sacrossanta operação foi penetrada? — Como se atreve a falar assim? — Havilland, a voz baixa e fria, levantou-se, fitando nos olhos o homem da CIA. — É um pouco tarde para querer dar lições de moral, Sr. Conklin. Seus lapsos foram por demais evidentes nas áreas de embuste e ética. Se fizesse o que queria, não haveria David Webb, não haveria Jason Bourne. Foi você quem o enquadrou na categoria de além-de-salvação, e mais ninguém. Planejou sua execução e quase conseguiu consumá-la. — E eu paguei por esses lapsos... e paguei caro! — E desconfio de que ainda está pagando, ou não estaria em Hong Kong neste momento — disse o embaixador, balançando a cabeça lentamente, a frieza deixando sua voz. — Baixe os seus canhões, Sr. Conklin, e farei a mesma coisa. Catherine Staples realmente compreendeu, e se há algum sentido em sua morte, vamos tentar encontrá-lo. — Não tenho a menor idéia por onde se pode começar a procurar. — Vai saber de tudo... como aconteceu com Staples. — Talvez seja melhor eu não ouvir. — Não tenho opção e devo insistir que escute. — Acho que você não estava prestando atenção. Houve uma infiltração na sua operação. A mulher Staples foi morta porque presumiram que dispunha de informações que impunham a sua eliminação. Em suma, a toupeira que se enterrou aqui viu-a numa reunião ou reuniões com vocês dois. A conexão canadense foi estabelecida, a ordem dada... e vocês deixaram que ela circulasse sem proteção! — Teme por sua vida? — indagou o embaixador. — Constantemente — respondeu o homem da CIA. — E neste momento estou também preocupado com a vida de outra pessoa. — A de Webb? Conklin fez uma pausa, estudando o rosto do velho diplomata. E depois disse, suavemente: — Se é verdade o que estou pensando. Não há nada que eu possa fazer por Delta que ele não possá fazer melhor pessoalmente. Mas se ele não conseguir, sei o que me pediria para fazer. Proteger Marie. E posso fazer isso melhor lutando contra você, e não o escutando. — E como tenciona lutar contra mim?
— Da única maneira que eu conheço. Numa luta muito suja. Espalharei por todos os cantos escuros de Washington que desta vez você foi longe demais, perdeu o controle, talvez até tenha ficado esclerosado por causa da idade. Tenho a história de Marie, a de Mo Panov... — Morris Panov? — interrompeu Havilland, cauteloso. — O psiquiatra de Webb? — Vai ganhar outro charuto. E, por último, a minha própria contribuição. De passagem, só para avivar sua memória, sou o único que conversou com David, antes de sua vinda para cá. Tudo junto, inclusive o massacre de uma diplomata canadense, daria uma leitura das mais interessantes... como depoimentos assinados, distribuídos num círculo seleto. — Fazendo isso, você arriscaria tudo. — O problema é seu, não meu. — Sendo assim, mais uma vez, eu não teria alternativa — disse o embaixador, o gelo de novo nos olhos e na voz. — Da mesma forma que você deu uma ordem de além-da-salvação, eu seria obrigado a fazê-lo também. Você não sairia vivo daqui. — Santo Deus! — murmurou McAllister, no outro lado da sala. — Seria a coisa mais estúpida que poderia fazer — disse Conklin, os olhos fixados nos de Havilland. — Não sabe o que deixei para trás ou com quem. Ou o que será revelado se eu não fizer contato num determinado prazo, com determinadas pessoas e assim por diante. Não me subestime. — Pensamos que poderia recorrer a esse tipo de tática — comentou o embaixador, afastando-se do homem da CIA, como se o descartasse, e voltando à sua cadeira. — Também deixou outra coisa para trás, Sr. Conklin. Em termos gentis, talvez acurados, era conhecido como portador de uma doença crônica chamada alcoolismo. Na expectativa de sua iminente aposentadoria e em reconhecimento por seus relevantes serviços num passado distante, não foram adotadas medidas disciplinares, mas também não recebeu qualquer responsabilidade. Era apenas tolerado, uma relíquia inútil prestes a ir para o pasto, um bêbado cujas explosões paranóicas eram a conversa e a preocupação de seus colegas. O que quer que possa aflorar, de qualquer fonte, seria classificado e comprovado como as divagações incoerentes de um alcoólatra aleijado e psicopata. O embaixador recostou-se na cadeira, os cotovelos apoiados nos braços, os dedos compridos da mão direita tocando no queixo. — É um homem que deve ser lastimado, Sr. Conklin, não censurado. O desenrolar dos acontecimentos pode ser dramatizado por seu suicídio... — Havilland! — gritou McAllister, aturdido. — Fique tranqüilo, Sr. Subsecretário — disse o embaixador. — O Sr. Conklin e eu sabemos de onde viemos. Ambos já estivemos lá antes.
— Há uma diferença — objetou Conklin, jamais desviando a atenção dos olhos de Havilland. — Nunca senti qualquer prazer no jogo. — E acha que eu sinto? — O telefone tocou. Havilland estendeu a mão rapidamente, atendendo. — Alô? O embaixador.escutou por um momento, o rosto franzido, olhando para a janela escura, depois acrescentou: — Se eu não pareço chocado, Major, é porque recebi a notícia há poucos minutos... Não, não foi a polícia, mas um homem que quero que conheça esta noite. Dentro de duas horas está bom para você?... Claro. Ele é um dos nossos agora. — Havilland olhou para Conklin. — Há quem diga que ele é melhor do que a maioria de nós, e eu diria que sua folha de serviços pode confirmar isso... É ele mesmo... Está certo, direi a ele... O quê? O que foi que disse? — O embaixador tornou a olhar para a janela escura, o rosto novamente franzido. — Eles se cobriram bem depressa, hem? Duas horas, Major. Havilland desligou, pondo os cotovelos na mesa e cruzando as mãos. Respirou fundo, um velho esgotado, ordenando os pensamentos, prestes a falar. — O nome dele é Lin Wenzu — disse Conklin, surpreendendo Havilland e McAllister. —É o CI da Coroa, o que significa orientado pelo MI-Seis, provavelmente do Setor Especial. É chinês e educado na Inglaterra, considerado o melhor oficial de informações do território. O único ponto desfavorável é o tamanho. Torna-o facilmente localizado. — Onde?... McAllister deu um passo na direção do homem da CIA. — Um passarinho me contou — disse Conklin. — Presumo que tenha sido um cardeal ruivo — disse o embaixador. — Esse não existe mais. — Ahn... Havilland descruzou as mãos, baixando os braços para a mesa. — Ele também sabe quem é você. — Não podia deixar de saber. Participou da expedição na estação de Kowloon. — Ele me pediu para lhe dar os parabéns e avisar que o seu corredor olímpico deixou todo mundo para trás. Conseguiu escapar. — Ele é esperto. — Sabe onde encontrar o homem, mas não vai desperdiçar seu tempo.
— Mais esperto ainda. Desperdício é desperdício. Ele disse também mais alguma coisa. Como ouvi sua lisonjeira avaliação do meu passado, importa-se de me dizer o que foi? — Quer dizer que vai me escutar? — Ou ser levado daqui num caixão? Ou caixões? Onde está a opção? — Tem toda razão. Eu seria obrigado a ir até o fim, e você sabe disso. — Sei apenas que o conheço, Herr General. — Está sendo ofensivo. — E você também. O que lhe disse o major? — Um terrorista tong de Macau telefonou para a Agência Noticiosa da China Meridional, assumindo a responsabilidade pelas mortes. Só que disse que a da mulher foi acidental, o alvo era o motorista. Como membro nativo da odiada segurança secreta britânica, ele matara com um tiro um dos seus líderes, no cais de Wanchai, há duas semanas. A informação era correta. Ele era a proteção que destacamos para Catherine Staples. — É uma mentira! — gritou Conklin. — Ela era o alvo! — Lin diz que é um desperdício de tempo investigar uma fonte falsa. — Então ele sabe? — Que fomos penetrados? — O que mais poderia ser? — indagou o exasperado homem da CIA. — Ele é um Zhongguo ren orgulhoso e possui uma mente brilhante. Não gosta do fracasso sob qualquer forma, especialmente agora. Desconfio de que ele iniciou sua caçada... Sente-se, Sr. Conklin. Temos muitas coisas para conversar. — Não dá para acreditar!— interveio McAllister, num sussurro profundamente emocional. — Vocês falam de mortes, de alvos, de além-de-salvação... de um suicídio forjado... a vítima aqui, falando de sua própria morte... como se estivesse discutindo as cotações da Bolsa ou o cardápio de um restaurante! Que tipo de homens são vocês? — Já lhe disse, Sr. Subsecretário — respondeu Havilland gentilmente. — Homens que fazem o que outros não fazem, não podem, ou não devem. Não há mística, não há universidades diabólicas em que fomos treinados, não há compulsão intensa para destruir. Vagueamos para essas áreas porque havia vazios a preencher e os candidatos eram poucos. Imagino que é tudo um tanto acidental. E com a repetição, descobre-se que se faz ou não se tem coragem para fazer... mas alguém sempre tem. Concorda, Sr. Conklin?
— Isso é um desperdício de tempo. — Não é, não. Explique ao Sr. McAllister. Pode estar certo de que ele é valioso e precisamos de sua colaboração. Ele precisa nos compreender. Conklin olhou para o subsecretário de Estado com uma expressão sem qualquer caridade. — Ele não precisa de qualquer explicação minha. É um analista. Percebe tudo tão claramente quanto nós, se não ainda mais. Sabe muito bem o que está acontecendo nos túneis, apenas não quer admiti-lo, e a maneira mais fácil de se desculpar é fingir que está chocado. É preciso tomar cuidado com o intelecto hipócrita em qualquer estágio deste negócio. O que ele dá em inteligência, tira em falsas recriminações. É o vigário num bordel recolhendo material para um sermão que escreverá quando voltar para casa e se divertir consigo mesmo. — Você estava certo antes — disse McAllister, virando-se para a porta. — Isso é um desperdício de tempo. — Edward... —Havilland, visivelmente irritado com o homem aleijado da CIA, chamou gentilmente o subsecretário. — Nem sempre podemos escolher as pessoas com quem tratamos, o que obviamente está acontecendo neste momento. — Eu compreendo — disse McAllister, friamente. — Estude todo mundo na equipe de Lin — acrescentou o embaixador. — Não pode haver mais que dez ou doze pessoas que sabem qualquer coisa a nosso respeito. Ajude-o. Ele é seu amigo. — E é mesmo — murmurou o subsecretário, deixando a sala. — Aquilo era necessário? — indagou Havilland, bruscamente, quando ficou a sós com Conklin. — Era, sim. Se puder me convencer de que tudo o que fez era o único curso que podia seguir... o que duvido... ou se eu não puder encontrar uma opção que tire Marie e David dessa confusão com suas vidas, se não com sua sanidade, então terei de trabalhar com você. A alternativa de além-da-salvação é inaceitável por vários motivos, basicamente pessoais, mas também porque devo isso aos Webb. Concorda até aqui? — Trabalhamos juntos, de um jeito ou de outro. Xeque- mate. — Tendo em vista a realidade, quero que o filho da puta do McAllister saiba de onde eu estou vindo. Ele está tão envolvido quanto qualquer um de nós, e é melhor que o seu brilhante intelecto mergulhe na sarjeta e aflore com todas as plausibilidades e possibilidades. Quero saber a quem devemos matar... mesmo aqueles que têm importância secundária... para reduzir nossas perdas e salvar os Webb. Quero que ele saiba que a única maneira de salvar sua alma é sepultá-la sob a realização. Se nós fracassamos, ele também fracassa, e não poderá mais ensinar na escola dominical. — Está sendo muito duro com ele. McAllister é um analista, e não um executor.
— De onde pensa que os executores recebem os seus dados? De quem você pensa que nós recebemos nossos dados? De quem? Dos paladinos do bem? — Xeque-mate outra vez. Você é tão bom quanto dizem. Ele entrou com os primeiros furos e percepções. É por isso que está aqui. — Pode me falar, senhor — disse Conklin, sentando, as costas empertigadas, o pé aleijado se virando num ângulo estranho. — Quero ouvir sua história. — Primeiro, a mulher. A esposa de Webb. Ela está bem? Está segura? — A resposta à primeira pergunta é tão óbvia que não sei como pode formulá-la. Não, ela não está bem. O marido desapareceu, e ela não sabe se ele está vivo ou morto. Quanto à segunda, a resposta é sim, ela está segura. Comigo, não com você. Posso levá-la de um lado para outro, e sei como fazer isso. Você tem de ficar aqui. — Estamos desesperados — suplicou o embaixador. — Precisamos dela de qualquer maneira. — E também foram infiltrados, o que você parece não estar compreendendo. Não vou expô-la a isso. — Mas esta casa é uma fortaleza! — Só precisa de um cozinheiro traiçoeiro na cozinha. Ou um lunático numa escada. — Você tem.de me escutar, Conklin! Houve uma verificação de passaportes... tudo se ajusta. É ele, temos certeza. Webb está em Pequim. Agora. Não teria ido se não estivesse atrás do alvo... o único alvo. Se de alguma forma, só Deus sabe como, seu Delta voltar com a mercadoria e a esposa não estiver no lugar, ele vai matar a única conexão que temos. Sem isso, estamos perdidos. Todos estamos perdidos. — Então foi esse o roteiro desde o início. Reductio ad absurdum. Jason Bourne caça Jason Bourne. — Isso mesmo. Extremamente simples, mas sem as complicações progressivas ele nunca teria concordado. Ainda estaria naquela velha casa no Maine, debruçado sobre os seus livros. Não teríamos o nosso caçador. — Você é mesmo um filho da puta — murmurou Conklin, devagar, com alguma admiração na voz. — E estava convencido de que ele ainda seria capaz? Ainda poderia manipular esse tipo da Ásia como fazia há anos, como Delta? — Ele faz checkups físicos a cada três meses, é parte do programa de proteção do governo. Está em condições excepcionais... uma decorrência de sua obsessão de correr, pelo que sei. — Comece do início. — O homem da CIA acomodou-se da melhor forma possível na cadeira. — Quero ouvir passo a passo, porque acho que os rumores são verdadeiros. Estou na presença de um
mestre dos filhos da puta. — Não é tanto assim, Sr. Conklin. Todos estamos tateando. E vou querer seus comentários, é claro. — E vai tê-los. Pode começar. — Está certo. Começarei com um nome que tenho certeza de que vai reconhecer. Sheng Chou Yang. Algum comentário? — É um negociador duro, e desconfio de que por baixo do exterior benevolente existe o aço. Ainda assim, é um dos homens mais sensatos de Pequim. Deveria haver mil como ele. — Se houvesse, as possibilidades de um holocausto no Ex tremo Oriente seriam mil vezes maiores. Lin Wenzu bateu com o punho na mesa, sacudindo as nove fotografias à sua frente e fazendo com que os resumos anexos de seus dossiês deslizassem da superfície. Qual? Qual deles? Cada um fora confirmado por intermédio de Londres, os antecedentes checados três vezes; não havia margem para erro. Não eram simplesmente Zhongguo ren bem instruídos, selecionados por eliminação burocrática, mas produtos de uma busca intensiva pelas mentes mais brilhantes no governo — e em vários casos fora do governo — que podiam ser recrutadas para aquele que era o mais sensível dos serviços. Fora a alegação de Lin de que a escrita estava na parede — talvez na Grande Muralha — e que uma força superior especial de informações, formada pela própria colônia, poderia ser a primeira linha de defesa antes de 1997 e, no caso de uma tomada do poder, a primeira linha de resistência coesa depois. Os britânicos tinham de renunciar à liderança na área das operações secretas de informações, por razões que eram tão evidentes quanto desagradáveis para Londres: o ocidental jamais poderia compreender plenamente as sutilezas peculiares da mente oriental, e aquele não era um período para se transmitir informações enganosas ou mal avaliadas. Londres tinha de saber — o Ocidente tinha de saber — qual era exatamente a situação... para o bem de Hong Kong, para o bem de todo o Extremo Oriente. Não que Lin acreditasse que sua crescente força de colhe- dores de informações desempenhasse um papel fundamental nas decisões políticas; sabia que não era assim. Mas estava absolutamente convencido de que, se a colônia precisava ter um Setor Especial, ela devia ser guarnecida e dirigida pelos que podiam realizar melhor o serviço, o que não incluía os veteranos, por mais brilhantes que fossem, dos serviços secretos britânicos orientados pelos europeus. Para começar, todos pareciam iguais e não eram compatíveis com o ambiente ou a língua. E depois de anos de trabalho e valor comprovado, Lin Wenzu fora chamado a Londres e submetido durante três dias a um interrogatório cerrado por sisudos especialistas em serviço secreto no Extremo Oriente. Na manhã do quarto dia, porém, os sorrisos apareceram, juntamente com a recomendação de que o major recebesse o comando do setor em Hong Kong, com amplos poderes de autoridade. E por alguns anos depois ele correspondera à confiança da comissão; sabia disso. Também sabia que agora, na mais vital operação individual de sua vida profissional e particular, fracassara. Havia trinta e oito agentes do Setor Especial sob o seu comando, e ele selecionara nove — nove meticulosamente escolhidos — para participarem daquela missão extraordinária e insana. Insana até que ele ouvira a explicação extraordinária do embaixador. Os nove eram os mais excepcionais de sua força de trinta e oito agentes, cada um capaz de assumir o comando se
seu líder fosse removido; fora o que ele escrevera em seus relatórios de avaliação. E fracassara. Um dos nove escolhidos era um traidor. Era inútil reexaminar os dossiês. Quaisquer incoerências que pudesse encontrar levariam muito tempo para serem desenterradas, pois haviam escapado aos seus próprios olhos experientes e aos de Londres. Não havia tempo para análises intrincadas, a exploração lenta e meticulosa de nove vidas individuais. Só tinha uma opção. Um ataque frontal a cada homem, e a palavra “frontal” era essencial a seu plano. Se pudera desempenhar o papel de um taipan, poderia desempenhar o papel de um traidor. Sabia que seu plano não era desprovido de riscos... e riscos que nem Londres nem o americano Havilland tolerariam, mas que tinham de ser corridos. Se fracassasse, Sheng Chou Yang seria alertado para a guerra secreta contra ele, e seus contramovimentos poderiam ser desastrosos; mas Lin Wen zu não tencionava fracassar. Se o fracasso estava escrito nos ventos do norte, nada mais importaria, muito menos a sua vida. O major estendeu a mão para o telefone. Apertou o botão no painel para o operador de rádio no centro computadorizado de comunicações do MI-Seis, Setor Especial. — Pois não, senhor? — disse a voz da sala branca e segura. — Quem em Libélula ainda está de serviço? — perguntou Lin, indicando a unidade de elite de nove a que se reportava, mas a que nunca dava explicações. — Dois, senhor. Nos veículos três e sete. Mas posso fazer contato com os demais em poucos minutos. Cinco já se comunicaram... estão em casa... e os outros dois deixaram indicações. Um está no Cinema Pagoda até onze e meia, quando voltará para o seu apartamento. Mas podemos fazer contato pelo bip. O outro está no Iate Clube em Aberdeen, com a esposa e a família dela. A mulher é inglesa. Lin riu suavemente. — Sem dúvida vai incluir a conta da família britânica em nosso orçamento de Londres lamentavelmente insuficiente. — Isso é possível, Major? Se é, poderia me considerar para Libélula, o que quer que seja? — Não seja impertinente. — Desculpe, senhor... — Estou brincando, meu jovem. Na próxima semana vou levá-lo pessoalmente a um bom jantar. Vem realizando um excelente trabalho, e conto com você. — Obrigado, senhor! — Eu é que devo agradecer. — Devo fazer contato com Libélula e pôr todos em estado de alerta?
— Faça o contato com todos, mas será justamente o inverso de alerta. Todos estão extenuados, sem um único dia de folga em várias semanas. Diga-lhes que quero que qualquer mudança de locação seja informada, mas que estamos seguros pelas próximas vinte e quatro horas, a menos que seja informado o contrário. Os homens nos veículos três e sete podem ir para casa, mas não devem ir beber nos Territórios. Avise que eu disse que todos devem ter uma boa noite de sono, ou como melhor desejarem passar o tempo. — Está certo, senhor. Tenho certeza de que eles ficarão agradecidos. — Eu ficarei circulando no veículo quatro. Você pode receber notícias minhas. Permaneça acordado. — Claro, Major. — E não se esqueça do nosso jantar, meu jovem. O entusiasmado operador de rádio declarou: — Se me permite dizer, senhor... e tenho certeza de que falo por todos... não gostaríamos de trabalhar para qualquer outra pessoa. — Talvez dois jantares. Estacionado na frente do prédio de apartamentos na Estrada Yun Ping, Lin tirou o microfone do apoio por baixo do painel. — Rádio, aqui é Libélula Zero. — Pois não, senhor? — Ligue-me para uma linha telefônica direta com um scrambler. Saberei que estamos no scrambler quando ouvir o eco da chamada, não é? — Claro, senhor. O tênue eco pulsou na linha. O major apertou os números. A campainha do telefone começou a tocar, e uma voz de mulher atendeu: — Alô? — O Sr. Zhou. Kuai! — disse Lin, falando rapidamente, mandando que a mulher se apressasse. — Está bem — respondeu ela, em cantonês. — Zhou falando — disse o homem. — Xun su! Xiao Xi! — Lin falou num sussurro gutural; era o som de um homem desesperado, suplicando para ser ouvido. — Sheng! Faça um contato imediato! Safira desapareceu!
— Como? Quem está falando? O major baixou a barra e apertou um botão à direita do microfone. O operador de rádio respondeu no mesmo instante: — Sim, Libélula? — Deixe aberta minha linha particular e também o scrambler, e transfira todas as chamadas para cá. Imediatamente. Esse será o procedimento até instruções em contrário. Entendido? — Entendido, senhor — murmurou o submisso operador. O telefone tocou no instante seguinte e Lin atendeu, falando distraidamente e simulando um bocejo: — Alô? — Major, aqui é Zhou. Acabo de receber um telefonema muito estranho. Um homem ligou... parecia gravemente ferido... e me disse para entrar em contato com alguém chamado Sheng. Eu deveria dizer que Safira desapareceu. — Safira? — repetiu o Major, subitamente alerta. — Não diga nada a ninguém, Zhou! Malditos computadores... não sei como aconteceu, mas essa ligação era para mim. Trata-se de algo além de Libélula. Repito: não diga nada a ninguém! — Entendido, senhor. Lin ligou o carro e percorreu vários quarteirões, a oeste da Rua Tanlung. Repetiu a manobra e outra vez recebeu um chamado em sua linha particular. — Major? — O que é? — Acabo de receber um telefonema de alguém que parecia estar morrendo. Queria que eu... A explicação foi a mesma: um erro perigoso fora cometido, além da esfera de Libélula. Nada deveria ser repetido. A ordem foi entendida. Lin fez mais três ligações, cada uma na frente do apartamento ou pensão do interlocutor. Todas foram negativas; cada homem procurou-o momentos depois do contato, com a notícia desconcertante Nenhum saiu correndo para um telefone público seguro. o major só tinha certeza de uma coisa: quem quer que fosse o infiltrador, não usaria o telefone de sua casa para fazer contato. As contas telefônicas registravam todos os números ligados, e todas as contas eram submetidas a uma auditoria. Era um procedimento rotineiro bem recebido pelos agentes. Os custos em excesso eram cobertos pelo Setor Especial, como se fossem relacionados com as atividades profissionais. Os dois homens nos veículos três e sete, retirados do plantão, haviam feito contato com o
quartel-general à altura do quinto telefonema. Um deles estava na casa de uma namorada e deixou bem claro que não tinha a menor intenção de sair de lá nas próximas vinte e quatro horas. Pediu ao operador que atendesse todas as “chamadas de emergência de clientes”, comunicando a todos que tentassem localizá-lo que seus superiores o haviam despachado para a Antártida. Negativo. Não era o jeito de um agente duplo, inclusive o humor. Ele não se isolou nem revelou o paradeiro ou o identidade de um contato. O segundo homem, se possível, parecia ainda mais negativo. Informou ao centro de comunicações que estava disponível para todos e quaisquer problemas, maiores ou menores, relacionados ou não com Libélula, até mesmo para atender a telefonemas. A esposa dera à luz recentemente a trigêmeos, e ele confidenciou com uma voz que beirava o pânico — segundo o operador — que tinha mais descanso no trabalho do que em casa. Negativo. Sete verificados e sete negativos. Restavam o homem no Cinema Pagoda por mais quarenta minutos e o outro no Iate Clube em Aberdeen. O telefone tocou... enfaticamente, ao que parecia, ou seria sua própria ansiedade? — Alô? — Acabo de receber uma mensagem, senhor — disse o operador. — Águia para Libélula Zero. Urgente. Responda. — Obrigado. Lin olhou para o relógio no centro do painel. Estava trinta e cinco minutos atrasado para o encontro com Havilland e o legendário agente aleijado do passado, Alexander Conklin. Tornando a levantar o microfone aos lábios, o major disse: — Meu jovem... — Pois não, senhor? — Não tenho tempo para o ansioso embora um tanto irrelevante “Águia”, mas não desejo ofendê-lo. Ele ligará de novo quando eu não responder e quero que explique que não conseguiu entrar em contato comigo. Quando fizer isso, quero que me informe imediatamente. — Será um prazer, Major. — Como assim? — O “Águia” que ligou foi muito antipático. Gritou sobre encontros que deveriam ocorrer depois de confirmados e disse... Lin escutou a diatribe em segunda-mão e fez uma anotação mental de que, se sobrevivesse àquela noite, conversaria com Edward McAllister sobre etiqueta ao telefone, especialmente durante as emergências. O açúcar acarretava expressões gentis, o sal, apenas caretas.
— Está bem, está bem, meu jovem. Eu compreendo. Como nossos ancestrais poderiam dizer, “Que o bico da águia possa se enfiar por seu canal de eliminação”. Apenas faça o que estou mandando. Até lá, dentro de quinze minutos, chame o nosso homem no Cinema Pagoda. Quando ele chamar, dê-lhe meu número de quarto nível não-relacionado e ligue nesta freqüência, com o scrambler continuando. — Está certo, senhor. Lin seguiu para leste pela Hennessy Road, passando pelo Southern Park e entrando na Fleming, onde virou para o sul, pegando a Johnston, depois novamente para leste, pela Burrows Street, até o Cinema Pagoda. Entrou no estacionamento e foi ocupar a vaga reservada ao gerente-assistente. Pôs um cartão da polícia no pára-brisa, saltou e se encaminhou apressadamente para a entrada. Havia apenas algumas pessoas à espera da sessão de meia-noite de Desejo ardente no Oriente, uma estranha escolha para o agente lá dentro. Mesmo assim, para não chamar a atenção e como ainda faltavam seis minutos, Lin postou-se atrás dos três homens que estavam na fila da bilheteria. Noventa segundos depois, pagou e recebeu seu ingresso. Entregou o ingresso ao porteiro e entrou no cinema, acostumando os olhos à escuridão e ao filme pornográfico na tela distante. Era mesmo uma estranha escolha de diversão para o homem que ele estava testando, mas Lin prometera a si mesmo que não se permitiria pré-julgamentos, não compararia um suspeito com outro. Mas reconhecia que tal atitude era muito difícil naquele caso. Não que gostasse particularmente do homem que se encontrava em algum lugar do cinema às escuras, assistindo junto com uma audiência febrilmente atenta à ginástica sexual de “atores” inexpressivos. Na verdade, ele não gostava do homem; simplesmente reconhecia o fato de que era um dos melhores sob o seu comando. O agente era arrogante e antipático, mas era também um bravo, cuja deserção de Pequim demorara dezoito meses, cada hora na capital comunista sendo uma ameaça à sua vida. Fora um oficial de alta patente das Forças de Segurança, com acesso às mais valiosas informações secretas. E num gesto comovente de sacrifício, deixara para trás uma esposa amada e uma filha pequena ao escapar para o sul, protegendo-as com um cadáver carbonizado e crivado de balas, que cuidara para que fosse identificado como ele próprio... um herói da China fuzilado e depois queimado por um bando errante de criminosos, na recente onda de crimes que varrera o país. Mãe e filha estavam seguras, recebendo uma pensão do governo. Como todos os desertores de alto nível, ele fora submetido à mais rigorosa investigação, destinada a revelar infiltradores em potencial. Nesse ponto, sua arrogância o ajudara. Não fizera qualquer tentativa de se insinuar; era o que era e fizera o que fizera pelo bem da China. As autoridades podiam aceitá-lo com tudo o que tinha a oferecer, ou ele podia procurar em outra parte. Tudo conferia, exceto o bem-estar da esposa e filha. Não estavam sendo tratadas da maneira como o desertor esperava. Portanto, o dinheiro fora encaminhado ao seu local de trabalho, sem explicações. Nada se podia lhe dizer; se houvesse a menor suspeita de que seu marido continuava vivo, ela poderia ser torturada por informações que não possuía. O perfil profundo de um homem assim não era o de um agente duplo, independente do seu gosto em matéria de filmes. Assim, só sobrava o homem em Aberdeen, que de certa forma era um enigma para Lin. O agente era mais velho do que os outros, um homem pequeno, que sempre se vestia de maneira impecável, um lógico e ex-contador que professava tanta lealdade que numa ocasião Lin quase o transformara em confi dente, mas se contivera a tempo, quando estava prestes a revelar coisas que nunca deveria revelar. Talvez porque o homem estivesse mais próximo de sua idade, ele sentia uma forte afinidade... Por outro
lado, que cobertura extraordinária para um toupeira de Pequim! Casado com uma inglesa e sócio do rico Iate Clube, através do casamento. Tudo estava no lugar para ele; era a essência da respeitabilidade. Lin achava inacreditável que seu colega mais íntimo, o homem que impusera tanta ordem à sua vida pessoal, mas ainda queria prender um brigão australiano por fazer com que Libélula passasse por uma grande vergonha pudesse ter sido abordado por Sheng Chou Yang e corrompido... Não, era impossível! Talvez, pensou o major, ele devesse voltar e investigar mais a fundo um cômodo agente de folga que queria que todos os clientes fossem informados de que se encontrava na Antártida ou o pai esgotado de trigêmeos, que estava disposto a atender a todos os telefonemas para escapar das tarefas domésticas. Essas especulações não eram coerentes! Lin Wenzu sacudiu a cabeça como se afugentasse da mente tais pensamentos. Agora. Aqui. Concentre-se! A súbita decisão de se mover veio da vista de uma escada. Foi até lá e subiu os degraus para o balcão; a cabine de projeção ficava diretamente à sua frente. Bateu uma vez e entrou, o peso de seu corpo quebrando a fechadura frágil e ordinária da porta. — Ting zhi! — gritou o operador. Ele tinha uma mulher no colo e enfiava-lhe a mão por baixo da saia. A mulher levantou-se de um pulo do seu poleiro e virou-se para a parede. — A Polícia da Coroa — disse o major, mostrando sua identificação. — E por favor, acreditem que não tenciono fazer mal algum a qualquer dos dois. — E não poderia! — protestou o operador. — Aqui não é exatamente uma casa de culto. — Um fato discutível, mas certamente não é uma igreja. — Pagamos todos os impostos... — Não precisa argumentar comigo, senhor — interrompeu-o Lin. — A Coroa simplesmente precisa de um favor, e prestá-lo não iria contra os seus interesses. — Qual é? — perguntou o homem, levantando-se e observando furioso a mulher passar pela porta. — Pare o filme, digamos por uns trinta segundos e acenda as luzes. Anuncie à audiência que houve um problema técnico mas que será reparado rapidamente. O operador estremeceu. — Já está quase acabando! Vai haver gritos e protestos! — O importante é que as luzes estejam acesas. Faça logo o que estou mandando! O projetor parou com um zumbido; as luzes se acenderam e o anúncio foi feito pelo sistema de alto-falantes. O operador estava certo. Vaias e gritos ressoaram por todo o cinema, acompanhados por
braços acenando e inúmeros dedos do meio em riste. Os olhos de Lin esquadrinharam a audiência... de um lado para outro, fila por fila. Lá estava o seu homem... Dois homens, pois o agente estava inclinado para a frente, falando com alguém que Lin Wenzu nunca vira antes. O major consultou o relógio e depois virou-se para o operador. — Há algum telefone público lá embaixo? — Há, sim... mas só funciona de vez em quando. — Está funcionando agora? — Não sei. — Onde fica? — Embaixo da escada. — Obrigado. Recomece a projeção dentro de sessenta segundos. — Você disse trinta! — Mudei de idéia. E você desfruta dos privilégios de um bom emprego por causa de uma licença, não é mesmo? — São animais lá embaixo! — Ponha uma cadeira na porta — disse Lin, enquanto saía. — A fechadura está quebrada. No saguão, por baixo da escada, o major passou pelo telefone exposto. Praticamente sem parar, arrancou o fio enrolado e encaminhou-se para o seu carro. Parou de repente, ao divisar uma cabine telefônica no outro lado da rua. Correu até lá e leu o número, memorizando-o instantaneamente, e depois voltou ao carro. Sentou ao volante e olhou para o relógio. Deu marcha à ré, saiu para a rua e foi estacionar em fila dupla a algumas dezenas de metros da marquise do cinema. Apagou os faróis e ficou observando a entrada. Um minuto e quinze segundos depois o desertor de Pequim saiu, olhando primeiro para a direita, depois para a esquerda, obviamente agitado. Depois, olhou reto para a frente, descobrindo o que queria ver, o que Lin esperava que ele visse, já que o telefone no cinema não estava funcionando. Era a cabine telefônica no outro lado da rua. Lin discou enquanto seu subordinado corria para a cabine, entrando na casca de plástico,virada para a rua. O telefone tocou antes que o homem pudesse inserir suas moedas. — Xun su! Xiao Xi! — Lin tossiu, enquanto sussurrava. — Eu sabia que você encontraria o telefone! Sheng! Entre em contato imediatamente! Safira desapareceu! Repôs o microfone no descanso, mas manteve a mão esquerda por cima do instrumento, esperando para tornar a pegá-lo com a iminente ligação do agente para sua linha particular.
Que não veio. Lin virou-se no banco e olhou para trás, para a cabine telefônica no outro lado da rua. O agente discara outro número, mas o desertor não estava falando com ele. Não havia necessidade de ir a Aberdeen. O major saltou do carro silenciosamente, atravessou a rua nas sombras dos prédios, e encaminhou-se para a cabine do telefone. Permaneceu na meia escuridão, avançando devagar, procurando atrair o mínimo possível de atenção para a sua corpulência, censurando, como muitas vezes fazia, os genes que lhe haviam proporcionado aquele corpo enorme. Chegou bem perto do telefone. O desertor estava agora a dois ou três metros de distância, de costas para Lin, falando muito excitado, a exasperação evidente em cada palavra. — Quem é Safira? Por que este telefone? Por que ele entraria em contato comigo?... Não, eu já disse, ele usou o nome do líder!... Isso mesmo, seu nome! Nada de código, nada de símbolo! Foi uma loucura! Lin Wenzu já ouvira tudo o que precisava ouvir. Sacou a automática e emergiu rapidamente da escuridão. — O filme foi interrompido e acenderam as luzes! Meu contato e eu estávamos... — Desligue o telefone! — ordenou o major. O desertor virou-se. — Você! Lin correu para o homem, o corpo enorme esmagando-o contra a parede de plástico, enquanto pegava o fone e batia com ele no aparelho de metal. — Já chega! — berrou Lin. Subitamente, sentiu a lâmina cortar seu abdome com um calor gelado. O desertor abaixou-se, a faca na mão esquerda. Lin puxou o gatilho. O som da explosão encheu a rua tranqüila, enquanto o traidor caía na calçada, a garganta aberta pela bala, o sangue escorrendo pelas roupas, espalhando-se pelo concreto. — Ni made! — gritou uma voz, à esquerda do major, amaldiçoando-o. Era o segundo homem, o contato que estava dentro do cinema falando com o desertor. Levantou uma arma e atirou, enquanto o major arremetia contra ele. O enorme tronco sangrando de Lin caiu em cima do homem como um muro. A carne foi estourada na parte superior do peito de Lin, mas o homem perdeu completamente o equilíbrio. O major disparou sua automática; o homem caiu, com a mão no olho direito. Estava morto. No outro lado da rua, o filme pornográfico acabara e a multidão começava a sair para a rua, malhumorada, irritada, insatisfeita. E com o que restava de sua enorme força, Lin, gravemente ferido,
recolheu os corpos dos dois conspiradores mortos e meio arrastou-os, meio carregou-os para o seu carro. Diversas pessoas da audiência do Pagoda observavam-no com olhares vidrados ou desinteressados. O que viam era uma realidade que não podiam enfrentar ou compreender. Estava além dos limites estreitos de suas fantasias. Alex Conklin levantou-se e claudicou meio desajeitado, ruidosamente, até a janela escura. — Afinal, o que você quer que eu diga? — indagou ele, virando-se e olhando para o embaixador. — Que tendo em vista as circunstâncias, eu assumi o único caminho que me restava, o único que poderia recrutar Jason Bourne. — Havilland levantou a mão. — Antes de responder, devo dizer, por uma questão de justiça, que Catherine Staples não concordou comigo. Ela achava que eu deveria ter apelado diretamente para David Webb. Afinal, ele era um estudioso do Extremo Oriente, um especialista que compreenderia o que estava em jogo, a tragédia que poderia se desencadear. — Ela estava redondamente enganada — comentou Alex. — David lhe diria para enfiar tudo no rabo. — Obrigado por essa informação — murmurou Havilland, balançando a cabeça. — Mas espere um instante — interrompeu Conklin. — Ele diria isso não por achar que você estava errado, mas porque pensava que não seria capaz de fazê-lo. O que você fez... ao seqüestrar Marie... foi obrigá-lo a voltar é ser alguém que ele queria esquecer. — É mesmo? — Você é realmente um grande filho da puta, seu filho da puta. Sirenes soaram abruptamente, ressoando por toda a enorme mansão e o terreno ao redor, enquanto refletores começavam a passar pelas janelas. Houve disparos, acompanhados pelo som de metal esmagado, enquanto pneus rangiam lá fora, O embaixador e o homem da CIA jogaram-se no chão; poucos segundos depois, estava tudo acabado, Os dois homens se levantaram, enquanto a porta era aberta bruscamente. O peito e a barriga encharcados de sangue, Lin Wenzu entrou cambaleando, carregando dois cadáveres debaixo dos braços. — Aqui está seu traidor, senhor — disse o major, largando os cadáveres. — E um colega. Com estes dois, creio que isolamos Libélula de Sheng... Os olhos de Wenzu reviraram para cima, as órbitas ficaram brancas. Ele arquejou e caiu. — Chamem uma ambulância! — gritou Havilland para as pessoas que se amontoavam na porta. — Tragam gaze, esparadrapo, toalhas, anti-séptico... pelo amor de Deus, qualquer coisa que puderem encontrar! — berrou Conklin, aproximando.se do chinês no chão. — Precisamos estancar a hemorragia!
Capítulo 29 Bourne estava sentado nas sombras em movimento do banco traseiro, o intermitente brilho do luar criando breves explosões de luz e escuridão no interior do automóvel. A intervalos súbitos, irregulares e inesperados, ele se inclinava para a frente e comprimia o cano da pistola na nuca do prisioneiro. — Tente sair da estrada, bater, e vai levar uma bala na cabeça. Está me entendendo? E sempre havia a mesma resposta ou uma variação, formulada num sotaque britânico preciso: — Não sou idiota. Você está por trás de mim, tem uma arma, e eu não posso vê-lo. Jason arrancara o espelho retrovisor, o parafuso arrebentando facilmente ao puxão. — Pois então sou seus olhos aqui atrás. E não se esqueça de que sou também o fim de sua vida. — Entendido — murmurava o ex-oficial dos Comandos Reais, sem qualquer expressão. O mapa do governo aberto no colo, a pequena lanterna na mão esquerda, a automática na direita, Bourne estudou a estrada que seguia para o sul. A cada meia hora que passava e os pontos de referência eram localizados, Jason compreendia que o tempo era seu inimigo. Embora o braço direito do assassino estivesse efetivamente imobilizado, Bourne sabia que não era páreo para o homem mais jovem e mais forte, puro vigor. A violência concentrada dos últimos três dias cobrara o seu tributo, fisicamente, mentalmente e — quer ele quisesse ou não reconhecê-lo — emocionalmente. Embora Jason Bourne não tivesse de admiti-lo, David Webb o proclamava com cada fibra de seu ser emocional. O estudioso fora mantido à distância, reprimido lá no fundo, a voz sufocada. Deixe-me em paz! Você não vale nada para mim! De vez em quando Jason sentia o peso morto de suas pálpebras fechando sobre os olhos. Abriaos bruscamente e maltratava alguma parte do corpo, beliscando com força a carne macia e sensível da parte interior da coxa ou cravando as unhas nos lábios, a fim de criar a dor instantânea e dissipar a exaustão. Reconhecia o seu estado — somente um idiota suicida não o faria —, mas não havia tempo ou lugar para remediá-lo com um axioma que roubara de Eco da Medusa. O descanso é uma arma, nunca se esqueça disso. Esqueça, Eco... bravo Eco... não há tempo para descansar, não há lugar para encontrálo. Enquanto aceitava a própria avaliação de si mesmo, também tinha de aceitar a sua avaliação do prisioneiro. O assassino estava totalmente alerta; isso era evidente em sua perícia ao volante, pois Jason exigia velocidade nas estradas estranhas e desconhecidas. Era evidente na cabeça em constante movimento, nos olhos sempre que Bourne os via... e ele os via com freqüência, sempre que orientava o assassino a reduzir a velocidade e ficar atento a um desvio na estrada, à esquerda ou à direita. O impostor se virava no banco — a visão de suas feições familiares sempre um choque e tanto para Jason — e indagava se a estrada à frente era a que seus “olhos” queriam. As perguntas eram supérfluas; o excomando estava incessantemente fazendo a sua avaliação do estado físico e mental de seu captor. Era
um executor bem treinado, uma máquina letal que sabia que a sobrevivência dependia de obter alguma vantagem sobre o inimigo. Estava esperando, observando, antecipando o momento em que as pálpebras do adversário poderiam fechar por um breve instante ou a arma cair subitamente no chão, talvez a cabeça do inimigo se recostar por um segundo no conforto do banco traseiro. Eram esses os sinais que ele aguardava, os lapsos que poderia aproveitar violentamente, depois das circunstâncias. A defesa de Bourne, portanto, dependia de sua mente, em fazer o inesperado, a fim de que o equilíbrio psicológico permanecesse em seu favor. Por quanto tempo poderia durar... poderia agüentar? O tempo era seu inimigo, o assassino à sua frente se tornava um problema secundário. Em seu passado — aquele passado apenas vagamente lembrado — manipulara matadores assim, porque eram seres humanos sujeitos aos artifícios de sua imaginação. Oh, Deus, tudo se resumia a isso! Tão simples, tão lógico... e ele estava tão cansado... Sua mente. Não restava mais nada. Tinha de continuar a pensar, tinha de espicaçar a imaginação e fazê-la funcionar. Equilíbrio, equilíbrio!Tinha de manter os pratos da balança inclinados para o seu lado! Pense! Aja! Faça o inesperado! Retirou o silenciador da arma, apontou-a para a janela fechada do lado direito e puxou o gatilho. A explosão foi ensurdecedora, ressoando pelo carro fechado, enquanto o vidro se estilhaçava e o ar noturno entrava zunindo. — Por que fez isso? — gritou o impostor-assassino, apertando o volante e controlando uma derrapagem involuntária. — Para ensinar a você sobre equilíbrio — respondeu Jason. — Deve compreender que estou em posição desfavorável neste momento. O próximo tiro pode estourar seus miolos. — Você é uma porra de um lunático! — Fico satisfeito de que compreenda. O mapa. Uma das coisas mais civilizadas num mapa rodoviária da República Popular da China — e coerente com a qualidade de seus veículos — era a indicação estrelada de oficinas que permaneciam abertas vinte e quatro horas por dia, ao longo das principais rotas. Bastava pensar na confusão que poderia resultar do enguiço de transportes militares e oficiais para se compreender a necessidade; era um presente dos céus para Bourne. — Há um posto de gasolina cerca de seis quilômetros adiante — disse ele ao assassino... a .Jason Bourne, refletiu. — Pare e encha o tanque. Não diga nada... seria tolice se tentasse, porque obviamente não sabe falar a língua. Deve memorizar as poucas palavras patéticas de que precisa. — Você fala? — É por isso que sou o original e você a falsificação. — Vá à merda, Sr. Original! Jason disparou a pistola novamente, estilhaçando o resto da janela.
— A falsificação! — berrou ele, alteando a voz acima do vento. — Não se esqueça disso! O tempo era o inimigo. Fez um inventário mental do que tinha, e não era muita coisa. Dinheiro era a munição primária; tinha mais do que o que uma centena de chineses poderia ganhar em uma centena de vidas, mas o dinheiro por si mesmo não era a resposta. Somente o tempo era a resposta. Se havia uma possibilidade de sair da vasta terra da China era pelo ar, não por terra. Ele não resistiria por tanto tempo. Tornou a estudar o mapa. Levariam treze a quinze horas para chegar a Xangai... se o carro agüentasse e se ele agüentasse, se eles conseguissem passar pelas barreiras provinciais, que sabia estarem alertadas para um ocidental ou dois ocidentais tentando passar. Ele seria capturado... eles seriam capturados. E mesmo que conseguissem chegar a Xangai, com seu aeroporto relativamente relaxado, quantas complicações poderiam surgir? Havia uma opção... sempre havia opções. Era uma loucura e uma afronta, mas também a única alternativa que restava. O tempo era o inimigo. Faça isso. Não há outra opção. Fez um círculo em torno de um pequeno símbolo na cidade de Jinan. Um aeroporto. Amanhecer. Umidade por toda parte. O solo, a relva alta e a cerca de metal brilhavam com o orvalho da manhã. A pista única além era uma faixa preta lustrosa, que cortava o campo de vegetação aparada, um pouco verde com a umidade da manhã, um pouco marrom opaco do efeito do sol escaldante do dia anterior, O sedã Xangai estava afastado da estrada do aeroporto, tão distante quanto o assassino pudera levá-lo, novamente escondido pela folhagem. O impostor estava mais uma vez imobilizado, agora pelos polegares. Pressionando a arma contra a sua têmpora direita, Jason ordenara que o assassino ajustasse os carretéis em nós corrediços duplos nos polegares, depois cortara os fios e enrolara firmemente o restante nos pulsos do homem. Como o comando logo descobrira, à menor pressão, como torcer ou separar as mãos, o fio se cravava mais fundo em sua carne. — Se eu fosse você, tomaria cuidado — disse Bourne. — Pode imaginar como seria não ter os polegares? Ou se seus pulsos fossem cortados? — Seu técnico filho da puta! — Acredite no que estou dizendo. No outro lado da pista havia uma luz acesa num prédio de um só andar, com uma fileira de janelas no lado. Era uma espécie de alojamento, com desenho simples e funcional. E depois outras luzes se acenderam, lâmpadas expostas, o brilho ofuscante. Era mesmo um alojamento. Jason pegou o rolo de roupas que removera das costas; desfez as tiras, desenrolou os trajes sobre a relva e separou-os. Havia uma túnica Mao grande, uma enorme calça toda amarrotada e um quepe de pano com pala, que normalmente acompanhava aquele traje. Pôs o quepe e a túnica, abotoando-a sobre o suéter escuro, depois levantou-se e vestiu a calça por cima da sua. Um cinto de pano trançado prendeu-a no lugar. Alisou a túnica por cima da calça e virou-se para o assassino, que estava observando-o, com espanto e curiosidade.
— Vá até a cerca — disse Jason, abaixando-se e enfiando a mão na mochila, de onde tirou uma corda de náilon de um metro e meio. — Fique de joelhos e se encoste nela. Comprima o rosto contra os elos. Os olhos na frente. Depressa! O assassino obedeceu, as mãos atadas de maneira dolorosa, na frente, entre o corpo e a cerca, a cabeça comprimida contra a malha de metal. Bourne adiantou-se e rapidamente passou a corda de náilon pela cerca, no lado direito do pescoço do assassino, estendeu os dedos pelas aberturas e puxou a corda pela frente do seu rosto. Puxou para trás com força e deu um nó na base do crânio do comando. Trabalhara tão depressa e de forma tão inesperada que o ex-oficial britânico mal pôde falar antes de compreender o que estava acontecendo. — Mas o que você... oh, Deus! — Como aquele maníaco comentou a respeito de d’Anjou antes de decapitar sua cabeça, você não vai a parte alguma, Major. — Vai me deixar aqui? — perguntou o assassino, atordoado. — Não seja tolo. Viramos companheiros. Onde eu for, você também vai. Para ser mais exato, você vai na frente. — Onde? — Através da cerca. Jason tirou o alicate da mochila. Começou a cortar em torno do tronco do assassino, aliviado ao constatar que os elos não eram tão grossos quanto os que encontrara no santuário dos pássaros. O contorno completo, Bourne deu um passo para trás e levantou o pé direito, colocando-o entre as omoplatas do impostor. Empurrou a perna para a frente. Assassino e cerca caíram na relva no outro lado. — Ai! —gritou o comando, de dor. —Você é muito engraçado, hem? — Não estou achando a menor graça — respondeu Jason. — Cada movimento que eu faço é muito sério, não tem nada de engraçado. Levante-se e fale baixo. — Estou amarrado à cerca! — Está livre. Levante-se e vire-se. Meio sem jeito, o assassino ficou de pé, cambaleando. Bourne contemplou sua obra; a visão da grade de metal presa à parte superior do corpo do assassino, como se mantida ali por um nariz saliente, era de fato engraçada. Mas o motivo para isso não tinha nada de engraçado. Somente com o comando seguro na frente de seus olhos é que eliminava qualquer risco. Jason não podia controlar o que não podia ver, e o que não era capaz de ver podia custar sua vida... E muito mais importante, a vida da mulher de David Webb... até mesmo a de David Webb. Fique longe de mim! Não interfira! Estamos
muito perto! Bourne inclinou-se e desfez o nó, continuando a segurar a ponta da corda. A cerca caiu. Antes que o assassino pudesse se ajustar, Jason passou a corda em torno de sua cabeça, levantando até encaixar na boca. Puxou com força, com bastante força, escancarando as mandíbulas do assassino, até ficar um enorme buraco escuro, cercado por uma fronteira de dentes brancos, a carne contraída. Sons ininteligíveis saíram da garganta do comando. — Não posso assumir o crédito por isso, Major — disse Bourne, dando um nó na corda de náilon e deixando o restante cair frouxo. — Observei d’Anjou e os outros. Não podiam falar, apenas engasgar com o próprio vômito. Você também os viu e sorriu. Qual é a sensação, Major?... Ora, esqueci que você não pode responder. Empurrou o assassino para a frente e depois agarrou-o pelo ombro, virando-o para a esquerda. — Vamos contornar a extremidade da pista. Ande logo! Enquanto davam a volta pela relva da pista, permanecendo na escuridão das margens, Jason estudou o aeroporto relativamente primitivo. Além do alojamento, havia um pequeno prédio circular, com uma profusão de vidro, mas sem luzes acesas, a não ser um brilho solitário numa pequena estrutura de metal, no centro do telhado. O prédio era o terminal de Jinan, pensou ele, o quadrado mal iluminando lá em cima a torre de controle. À esquerda do alojamento, pelo menos sessenta metros a oeste, havia um hangar de manutenção, escuro, aberto, teto alto, com enormes escadas sobre rodas, perto das portas largas, refletindo a primeira claridade.do amanhecer. Estava aparentemente deserto, com o pessoal ainda no alojamento. No perímetro sul do campo, nos dois lados da pista e quase indiscerníveis, havia cinco aviões, todos à hélice, nenhum imponente. O aeroporto de Jinan era um campo de pouso secundário, talvez mesmo terciário, indubitavelmente apregoado como algo superior, como acontecia com tantos aeroportos na China, a fim de atrair os investimentos estrangeiros, mas muito longe da categoria internacional. Mas também os corredores aéreos eram canais no céu, não estavam sujeitos aos caprichos cosméticos ou tecnológicos de aeroportos. Bastava entrar num desses canais e permanecer no curso. O céu não admitia fronteiras, o que só acontecia com os homens e máquinas presos à terra. Combinados, eram outro problema. — Vamos para o hangar — sussurrou Jason, cutucando as costas do comando. — Não se esqueça: se fizer qualquer barulho, eu não terei de matá-lo... eles cuidarão disso. E eu terei uma oportunidade de escapar, oferecida por você. Não duvide disso. Abaixe-se! A trinta metros de distância um guarda saiu da estrutura enorme, um rifle pendurado no ombro, os braços estendidos, o peito estufando num bocejo. Bourne sabia que era o momento de agir; talvez não aparecesse outro melhor. O assassino estava estendido de bruços, as mãos atadas por baixo, a boca escancarada comprimida contra a terra. Pegando a ponta solta da corda de náilon, Jason agarrou os cabelos do assassino, levantou sua cabeça e passou-a duas vezes em torno do seu pescoço. — Se você se mexer, vai sufocar — sussurou Bourne, levantando-se. Correu silenciosamente para a parede do hangar, avançou depressa até a beira e deu uma olhada.
O guarda mal se mexia. Jason percebeu por que... o homem estava urinando. Perfeitamente natural e perfeitamente perfeito. Bourne afastou-se do prédio, fincou o pé direito na relva e depois arremeteu, golpeando com a arma na mão direita, enquanto o pé esquerdo atingia a base da espinha do guarda. O homem desabou, inconsciente. Jason arrastou-o de volta ao canto do hangar e depois atravessou a relva até o lugar em que deixara o assassino, imóvel, com medo de se mexer. — Está aprendendo, Major — disse Bourne, tornando a suspender a cabeça do comando pelos cabelos e tirando a corda de náilon de seu pescoço: O fato de que a corda de náilon não teria sufocado o impostor, assim como uma corda de varal em torno do pescoço de uma pessoa não a mataria, revelava a Delta uma coisa importante. Seu prisioneiro não podia pensar geometricamente; as tensões não eram um ponto forte em sua imaginação, apenas a ameaça falada de morte. Era um dado que não podia ser esquecido. — Levante-se — ordenou Jason. O assassino obedeceu, a boca escancarada, sorvendo ar, os olhos transbordando de ódio. — Pense em Eco — acrescentou Bourne, seus olhos retribuindo a aversão do assassino. — Desculpe... estou falando de d’Anjou. O homem que lhe devolveu a vida... uma vida, de qualquer forma, e aparentemente você está aproveitando. Seu Pigmalião, meu velho!... E agora quero que me escute, preste toda atenção. Gostaria que eu tirasse a corda? — Arrr! — grunhiu o assassino, acenando com a cabeça, os olhos passando do ódio à súplica. — E soltasse os polegares? — Arrr! Arrr! — Você não é um guerrilheiro, mas um gorila — disse Jason, tirando a automática do cinto. — Mas como costumávamos dizer nos velhos tempos... antes do seu tempo, meu velho... há “condições”. Ou nós dois escapamos daqui vivos ou desaparecemos, nossos restos mortais se consumindo numa fogueira chinesa, sem passado, sem presente... certamente sem qualquer consideração retrospectiva sobre nossas contribuições abaixo de zero à sociedade... Vejo que o estou chateando. Desculpe. É melhor esquecer tudo. — Arrr! — Está bem, já que você insiste. Claro que não vou lhe dar uma arma, e vai morrer se eu o vir tentando se apoderar de alguma. Mas se você se comportar, podemos... apenas podemos... escapar. O que estou tentando lhe dizer, Sr. Bourne, é que o seu cliente por aqui, quem quer que seja, não pode permitir que você continue a viver, assim como não pode me admitir. Entende? Percebe? Capisce? — Arrrr! — Só mais uma coisa — acrescentou Jason, dando um puxão na corda, que caiu sobre o ombro do comando. — Isto é náilon, poliuretano ou o que chamem por aqui. Quando queima, incha como
marshmallow, e não há a menor possibilidade de desamarrar. Ficará preso nos seus tornozelos, os nós duros como cimento. Terá uma distância entre os pés de aproximadamente um metro e meio... apenas porque sou um técnico. Estou sendo bem claro? O assassino acenou com a cabeça. Nesse momento, Bourne pulou para a direita e chutou a parte posterior dos joelhos do impostor, derrubando-o, os polegares atados sangrando. Jason ajoelhou-se, a arma na mão esquerda comprimida contra a boca do comando, os dedos da mão direita desfazendo o nó atrás de sua cabeça. — Deus Todo-Poderoso! — exclamou o assassino, quando a corda caiu. — Fico contente de que você tenha uma fé religiosa — murmurou Bourne, largando a arma e rapidamente passando a corda pelos tornozelos do comando, dando um nó em cada extremidade, depois acendendo o isqueiro e encostando na cor da. — Pode precisar. Pegou a arma, encostou-a na testa do assassino e depois desenrolou o fio que lhe prendia os pulsos, acrescentando: — Tire o resto. E tome cuidado com os polegares, que estão feridos. — Meu braço direito também não serve para nada! — resmungou o inglês, enquanto fazia um esforço para remover os nós corrediços. As mãos livres, ele as sacudiu, depois chupou o sangue dos ferimentos. — Está com sua caixa mágica, Sr. Bourne? — Está sempre comigo. Do que precisa? — Esparadrapo. Os dedos sangram. É o que se chama de gravidade. — Estou vendo que é um homem instruído. — Bourne estendeu a mão para trás e puxou a mochila, largando-a na frente do comando, a arma apontada para a sua cabeça. — Procure aí. É um rolo que está em cima. — Certo. — O assassino pegou o esparadrapo e enrolou-o rapidamente nos polegares. E acrescentou, ao terminar: — Isso não é coisa que se faça com ninguém. — Pense em d’Anjou. — Ele queria morrer, pelo amor de Deus!. O que acha que eu deveria fazer? — Nada. Porque você é nada. — Pois isso me deixa no mesmo nível que você, não é mesmo, companheiro? Afinal, ele me transformou em você! — Não possui o talento — respondeu Jason Bourne. — É carente. Não pode pensar geometricamente.
— O que isso significa? — Pense a respeito. — Delta ficou de pé e ordenou: — Levante-se — Gostaria que me dissesse uma coisa — murmurou o assassino, levantando-se e olhando fixamente para a arma apontada para sua cabeça. — Por que eu? Por que você saiu do negócio? — Porque nunca estive nele. Subitamente, refletores, um depois do outro, começaram a se acender por todo o campo, criando uma iluminação intensa. Marcadores amarelos apareceram por toda a extensão da pista. Homens saíram correndo do alojamento, alguns se encaminhando para o hangar, outros seguindo na direção inversa, para trás da estrutura, onde soaram abruptamente os motores de veículos invisíveis. As luzes do terminal foram acesas; havia atividade por toda parte. — Tire o casaco e o chapéu dele —ordenou Bourne, apontando a arma para o guarda inconsciente. — E ponha-os. — Não vão caber! — Pode mandar ajustar em.Savile Row. Ande logo! O impostor obedeceu, o braço direito tão inútil que Jason teve de segurar a manga para ele. Com Bourne a cutucar o comando com a pistola, os dois homens correram para a parede do hangar e depois avançaram cautelosamente para a extremidade do prédio. — Concordamos? — indagou Bourne, num sussurro, olhando para o rosto que fora o seu anos antes. — Saímos daqui ou morremos? — Entendido. Aquele filho da puta berrador, com sua espada sangrenta, é um lunático. Quero sair. — Essa reação não estava na sua cara. — Se estivesse, o maníaco poderia se virar contra mim. — Quem é ele? — Nunca teve um nome, apenas uma série de conexões para alcançá-lo. A primeira foi um homem na guarnição de Guangdon chamado Soo Jiang... — Já ouvi falar. Ele é conhecido como O Porco. — Provavelmente é isso, não sei. — E que mais?
— Um número de telefone é deixado na Mesa Cinco, no cassino em... — O Kam Pek, em Macau — interrompeu Jason. — E depois? — Ligo para o número e falo francês. Esse Soo Jiang é um dos poucos chineses que falam a língua. Ele marca a hora do encontro; é sempre no mesmo local. Atravesso a fronteira para um campo nas colinas, onde um helicóptero pousa. Alguém me dá o nome do alvo. E metade do dinheiro pela execução... Olhe ali! Está chegando. Dando a volta para o pouso. — Minha arma está em sua cabeça. — Sei disso. — Seu treinamento incluiu pilotar uma dessas coisas? — Não. Apenas saltar delas. — Isso não vai nos servir. Com luzes vermelhas piscando nas asas, o jato desceu do céu para a pista. Pousou suavemente, taxiou até a extremidade do asfalto, virou para a direita e começou a voltar para o terminal. — Kai guan qi you! — gritou um homem na frente do hangar, apontando para os três caminhões de combustível ao lado, explicando qual deles seria usado. — Estão abastecendo — murmurou Jason. — O avião vai decolar de novo. Vamos capturá-lo. O assassino virou-se, o rosto — aquele rosto — suplicante. — Pelo amor de Deus, dê-me uma faca! Qualquer coisa! — Nada. — Posso ajudar! — O espetáculo é meu, Major, não seu. Com uma faca, você me abriria a barriga. Não tem a menor possibilidade, companheiro. — Da long xia! — gritou a mesma voz na frente do hangar, descrevendo as autoridades do governo como camarões. — Fang song — acrescentou ele, dizendo a todos para relaxarem que o avião taxiaria para longe do terminal e o primeiro dos três caminhões de combustível seguiria ao seu encontro. As autoridades desembarcaram; o jato deu a volta no lugar e começou a se afastar pela pista, enquanto a torre determinava ao piloto onde deveria reabastecer, O caminhão partiu; quando parou, homens saltaram lá de cima e começaram a puxar as mangueiras de seus recessos. — Vai levar cerca de dez minutos — disse o assassino. — É uma versão chinesa de um DC-3 melhorado.
O avião parou, os motores desligados, enquanto escadas eram empurradas para as asas e homens as galgavam. Os tanques de combustível foram abertos, os bocais inseridos, o pessoal de manutenção falando o tempo todo. Subitamente, a porta do centro da fuselagem foi novamente aberta, os degraus de metal caindo para o chão. Dois homens de uniforme saíram. — O piloto e seu oficial de vôo — disse Bourne. — Não estão apenas esticando as pernas. Vão verificar cada coisa que aqueles homens estão fazendo. Vamos calcular tudo com muito cuidado, Major. Quando eu disser “Vamos”, você vai. — Direto até a porta — concordou o assassino. —Quando o segundo cara chegar ao primeiro degrau. — Mais ou menos isso. — Algum desvio de atenção? — De que forma? — Providenciou um sensacional ontem à noite. Promoveu o seu próprio Quatro de Julho Ianque. — O caminho errado aqui. De qualquer forma, gastei tudo... Ei, espere um instante! O caminhão de combustível! — Se explodi-lo, lá se vai o avião. Além disso, não daria para calcular com a volta dos homens a bordo. — Não aquele caminhão — disse Jason, sacudindo a cabeça e olhando além do comando. — Mas aquele ali. Bourne gesticulou para o mais próximo dos dois caminhões vermelhos diretamente à frente deles, cerca de trinta metros de distância. E acrescentou: — Se explodir, a primeira ordem será para tirar o avião de lá. — E estaríamos muito mais perto do que agora. Vamos tentar. — Nós, não — corrigiu Jason. — Você vai fazer. Exatamente do jeito que eu lhe mandar, com minha arma a poucos centímetros de sua cabeça. Ande! O assassino na frente, eles correram para o caminhão, cobertos pela pouca claridade e a movimentação intensa em torno do avião. O piloto e seu oficial de vôo estavam com lanternas acesas, iluminando os motores e gritando ordens impacientes para a equipe de manutenção. Bourne mandou que o comando se agachasse à sua frente, ajoelhou-se sobre a mochila aberta e tirou um rolo de gaze. Pegou a faca de caça do cinto, puxou uma mangueira enrolada de seu apoio e estendeu a mão para a base que penetrava no tanque. — Verifique como eles estão, Major. Quanto tempo mais? E mexa-se devagar. Estou
observando-o. — Eu disse que queria sair, não que quero me estrepar! — Sei que você quer cair for e tenho o pressentimento de que preferia fazê-lo sozinho. — O pensamento nunca me ocorreu. — Então você não é meu homem. — Muito obrigado. — Estou falando sério, O pensamento teria me ocorrido... Quanto tempo mais? — Calculo que dois a três minutos. — E seu julgamento é bom? — Vinte e tantas missões em Oman, Iêmen e pontos ao sul. O avião é similar em estrutura e mecanismo. Conheço tudo, companheiro. É coisa antiga. Dois a três minutos, não mais do que isso. — Ótimo. Volte para cá. Jason espetou a mangueira com a faca, fazendo uma incisão pequena, o suficiente para permitir que escorresse um fluxo firme de gasolina, mas deixando a bomba funcionar. Levantou-se, cobrindo o assassino com a pistola, enquanto lhe entregava o rolo de gaze. — Desenrole cerca de dois metros e encharque com o combustível que está vazando. O comando ajoelhou-se e cumpriu as instruções. Depois, Jason ordenou: — Agora, meta a ponta no corte que fiz na mangueira. Mais fundo... mais fundo! Use o polegar! — Meu braço não está como antes! — A mão esquerda está! Aperte com mais força! Bourne lançou um olhar rápido para o avião reabastecendo... reabastecido. O julgamento do comando fora preciso. Os homens estavam descendo das asas e enrolando as mangueiras, levando-as de volta ao caminhão. O piloto e o oficial de vôo iniciaram a verificação final. Voltariam à porta em menos de um minuto! Jason enfiou a mão no bolso, tirou a caixa de fósforos e jogou-a na frente do assassino, a arma apontada para a sua cabeça. — Acenda. Agora! — Vai pegar como um bastão de nitroglicerina! E vamos ser explodidos para o céu, especialmente eu!
— Não se fizer tudo direito. Ponha a gaze na relva, está úmida... — Retardando o fogo?... — Faça o que estou mandando! Depressa! — Está feito! A chama se elevou na extremidade da tira, baixou no instante seguinte e iniciou o seu avanço gradativo. — Técnico filho da puta... — murmurou o comando, enquanto se levantava. — Fique na minha frente — ordenou Bourne, prendendo a mochila no cinto. — Comece a andar para a frente, em linha reta. Abaixe a cabeça e encolha os ombros, como fez em Lo Wu. — Meu Deus! Vocé estava?.. — Ande! O caminhão de combustível começou a se afastar do avião, deu uma volta para a frente, contornando as escadas virando para a esquerda, além do lugar onde estava estacionado o primeiro caminhão vermelho... e deu a volta outra vez, agora para a direita, por trás dos dois caminhões parados, a fim de ocupar sua posição ao lado do que estava com a gaze pegando fogo. Jason virou a cabeça bruscamente,olhando para a tira em chamas. Tinha de chegar logo ao fim! Uma centelha entrando na torneira a vazar e o tanque explodiria, arremessando fragmentos de metal em brasa para as cascas vulneráveis dos outros caminhões. A qualquer segundo agora! O piloto gesticulou para o oficial de vôo. Os dois se encaminharam juntos para a porta. — Mais depressa! — gritou Bourne. — Esteja, preparado para correr! — Quando? — Vai saber. Mantenha os ombros encurvados! E curve a espinha! Viraram à direita, na direção do avião, passando pela multidão da manutenção que vinha em sentido contrário, voltando para o hangar. — Gongju ne? — gritou Jason, advertindo um colega por ter esquecido um valioso jogo de ferramentas junto ao avião. — Gong ju? — gritou um homem na extremidade da multidão, segurando o braço de Bourne e levantando uma caixa de ferramentas. Os olhos dos dois se encontraram e o mecânico ficou aturdido, o rosto se contorcendo em choque. E ele gritou: — Tian a! E aconteceu. O caminhão-tanque explodiu, enviando colunas de fogo pulsantes para o céu, enquanto fragmentos de metal retorcido perfuravam o espaço por cima e para os lados do veículo em
chamas. Os homens desataram a gritar e correram em todas as direções, a maioria para a proteção do hangar. — Corra! — gritou Jason. Nem era preciso dar a ordem ao assassino. Os dois correram para o avião e a porta, onde o piloto, que acabara de entrar, olhava a cena espantado, enquanto o oficial de vôo permanecia na escada, imóvel. — Kuai! — berrou Bourne, mantendo seu rosto nas sombras e forçando a cabeça do comando para baixo, nos degraus de metal. — Jiu feiji!... — acrescentou ele, mandando que o piloto saísse da zona de fogo para a segurança do avião, que ele era da manutenção e trancaria a porta. Um segundo caminhão explodiu, as muralhas opostas de explosivos formando uma erupção vulcânica de fogo e metal. — Está certo! — berrou o piloto, em chinês, agarrando seu oficial de vôo pela camisa e puxando-o para dentro, os dois seguindo para a cabine de comando. Era o momento, pensou Jason. — Entre! — ordenou ele ao comando, enquanto o terceiro caminhão-tanque explodia no campo, aumentando a primeira claridade do amanhecer. — Claro! — gritou o comando, levantando a cabeça e empertigando o corpo para subir os degraus. E depois, subitamente, no instante em que soava outra explosão ensurdecedora e os motores do avião rugiam, o assassino virou-se na escada, lançando o pé direito para a virilha de Bourne, a mão disparando para desviar a arma. Jason estava preparado. Acertou com o cano da arma no tornozelo do comando e depois levantou-a, atingindo-lhe a têmpora; o sangue correu, enquanto o assassino caía para trás, sob a fuselagem. Bourne subiu os degraus num pulo, chutando o corpo inconsciente do impostor pelo chão de metal. Puxou a porta e baixou as trancas, prendendo-a no lugar. O avião começou a taxiar, virando no mesmo instante para a esquerda, afastando-se do centro flamejante de perigo. Jason tirou a mochila do cinto, pegou uma segunda corda de náilon e amarrou os pulsos do assassino a duas braçadeiras bem separadas na fuselagem. Não havia jeito de o assassino poder se libertar — ou nenhum que Bourne pudesse pensar —, mas apenas para ter certeza, pois sempre podia estar enganado, cortou a corda que prendia os tornozelos e amarrou cada pé a braçadeiras opostas no corredor. Bourne levantou-se e começou a se encaminhar para a cabine de comando, O avião estava agora na pista, correndo pelo pavimento, mas, de repente, os motores pararam. O avião estava parando na frente do terminal, onde o grupo de autoridades do governo se reunia, observando o incêndio cada vez maior, que ocorria a menos de um quilômetro de distância, ao norte. — Kai ba! — disse Bourne, encostando o cano da automática na nuca do piloto. O co-piloto
virou-se abruptamente, e Jason acrescentou, em mandarim preciso, deslocando a arma: — Observem os seus mostradores e preparem tudo para a decolagem. E quero que me entreguem os mapas. — Não vão nos dar autorização para decolar! — gritou o piloto. — Temos de pegar cinco comissários em viagem! — Para onde? — Baoding. — Fica ao norte — disse Boume. — Noroeste — corrigiu o co-piloto. — Está certo. Sigam para o sul. — Não vão nos dar permissão! — insistiu o piloto. — Seu primeiro dever é salvar o avião. Não sabe o que está acontecendo por lá. Pode ser sabotagem, uma revolta, um levante. Faça o que estou mandando ou os dois vão morrer. Juro que não me importo. O piloto virou a cabeça bruscamente e olhou para Jason. — Você é um ocidental! Fala chinês, mas é um ocidental! O que está fazendo? — Requisitando este avião. Ainda dispõe de bastante pista. Decole logo. Para o sul. E me entregue os mapas. As memórias voltavam. Sons distantes, cenas distantes, um troar distante. — Dama Serpente, Dama Serpente! Responda! Quais são as suas coordenadas de setor? Estavam seguindo para Tam Quan e Delta não queria romper o silêncio. Ele sabia onde estavam e isso era tudo o que importava. O Comando Saigon que se danasse, pois ele não daria aos postos de escuta do Vietnam do Norte qualquer indicação do lugar para onde seguiam. — Se não quer ou não pode responder, Dama Serpente, permaneça abaixo de seiscentos metros! É um amigo quem está falando, seus idiotas! Vocês não têm muitos aí por baixo! O radar deles vai pegar vocês acima de seiscentos. Sei disso, Saigon, meu piloto também sabe; e mesmo que ele não soubesse, nem assim eu romperia o silêncio. — Dama Serpente, nós perdemos você completamente! Algum retardado nessa missão é capaz de ler um mapa aéreo? Eu sei ler e muito bem, Saigon. Acha que eu subiria com meu grupo confiando em qualquer um
de vocês? É meu irmão quem está lá embaixo! Eu não sou importante para você, mas ele é! — Está louco, Ocidental! — berrou o piloto. — Em nome dos espíritos, este é um avião pesado e estamos quase em cima das árvores! — Levante um pouco o nariz — disse Bourne, enquanto estudava um mapa. — Depois mergulhe e tome a levantar. — Mas isso também é uma loucura! — gritou o co-piloto. — Uma corrente descendente a esta altura e caímos na floresta! Estamos perdidos! — Os relatórios do tempo em seu rádio dizem que não há qualquer previsão de turbulência... — Isso é lá em cima! — protestou o piloto. — Você não compreende os riscos! Não aqui embaixo! — Qual foi o último relatório transmitido por Jinan? — indagou Jason, sabendo muito bem qual era. — Eles estão tentando pilotar este vôo para Baoding. Não conseguiram localizar o avião durante as últimas três horas. Estão agora procurando nas montanhas de Hengshui... Grandes espíritos, por que estou lhe dizendo tudo isso? Ouviu tudo e fala melhor do que meus pais, que eram instruídos! — Dois pontos para a Força Aérea da República... Muito bem, faça uma volta de cento e sessenta graus dentro de dois minutos e meio e suba para uma altitude de trezentos metros. Estaremos sobre a água. — Estaremos no espaço aéreo dos japoneses! Eles vão nos derrubar! — Hasteie uma bandeira branca... ou, melhor ainda, usarei o rádio. Pensarei em alguma coisa. Eles podem até nos escoltar para Kowloon. — Kowloon! — berrou o aflito oficial de vôo. — Seremos fuzilados! — É bem possível — concordou Bourne. — Mas não por mim. Em última análise, tenho de chegar lá sem vocês. Para dizer a verdade, não podem sequer fazer parte da minha história. Não posso permitir isso. — O que você fala não faz o menor sentido! — protestou o exasperado piloto. — Só quero que você faça a volta de cento e sessenta graus quando eu mandar. Jason estudou a velocidade relativa e calculou a distância estimada que desejava. Lá embaixo, através da janela, podia divisar a costa da China ficando para trás. Olhou para o relógio; havia transcorrido noventa segundos. — Faça a volta, Comandante.
— Eu teria feito de qualquer maneira! — gritou o piloto. — Não sou do vento divino do Kamikaze. Não vôo para a minha própria morte. — Nem mesmo pelo seu celestial governo? — Muito menos. — Os tempos mudam — murmurou Bourne, concentrando-se mais uma vez no mapa aéreo. — As coisas mudam.
— Dama Serpente! Dama Serpente! Cancele! Se pode me ouvir, saia daí e volte para a base! É uma situação sem possibilidade de vitória! Está me entendendo? Cancele a missão! — O que você quer fazer, Delta? — Continue a voar, mister. Mais três minutos e poderá sair daqui. — Eu poderei. Mas o que vai acontecer com você e seu pessoal. — Nós vamos saltar. — Isso é suicídio, Delta. — Não me diga... Muito bem, todos verifiquem seus pára-quedas e preparem-se para saltar. Alguém ajude Eco a pôr a mão na corda. — Déraisonnable! A velocidade se mantinha firme em quase seiscentos quilômetros horários. A rota que Jason escolhera, voando em baixa altitude pelo Estreito de Formosa — passando por Longhai e Shantou na costa chinesa e Hsinchu e Fengshan em Formosa —, tinha cerca de dois mil e quatrocentos quilômetros. Portanto, a estimativa de duração de vôo em quatro horas, mais ou menos alguns minutos, era razoável. As ilhas exteriores, ao norte de Hong Kong, estariam visíveis em menos de meia hora. Por duas vezes, durante o vôo, haviam sido interpelados pelo rádio, uma pela guarnição nacionalista em Quemói, outra por um avião de patrulha ao largo de Raoping. Nas duas vezes, Bourne assumira as comunicações, explicando no primeiro caso que estavam numa missão de busca a um navio avariado que transportava mercadorias de Formosa para o Continente, enquanto na segunda fazia a declaração um tanto ameaçadora de que, como parte das Forças de Segurança do Povo, estavam vasculhando a costa à procura de embarcações de contrabando que indubitavelmente se esquivavam ás patrulhas de Raoping. Para a segunda comunicação, ele não apenas se mostrou desagradavelmente arrogante como também usou o nome e o número de identificação oficial —altamente secreta — de um conspirador morto, o cadáver deixado por baixo de uma limusine russa, no Santuário de Pássaros Jing Shan. Quer o interrogador acreditasse ou não, era irrelevante, como ele esperava. Também não se incomodava em perturbar o status quo ante. A vida já era bastante complicada. Deixe as coisas como estão, deixe que continuem. Onde estava a ameaça? — Onde está o seu equipamento? — perguntou Jason ao piloto. — Estou voando nele! — respondeu o homem, estudando seus instrumentos, visivelmente abalado a cada erupção de estática do rádio, sempre uma comunicação da aviação comercial. —Você pode ou não saber, mas não tenho plano de vôo. Podemos estar num curso de colisão com uma dúzia de aviões diferentes! — Estamos muito baixo e a visibilidade é ótima — disse Bourne. — Confiarei em seus olhos para não esbarrarmos em ninguém.
— Você é louco! — gritou o co-piloto. — Ao contrário. Estou prestes a recuperar a sanidade. Onde está o equipamento de emergência? Pela maneira como vocês constroem as coisas, não posso imaginar que não tenham nenhum. — Do que está falando? — indagou o piloto. — Balsas, instrumentos de sinalização... pára-quedas. — Grandes espíritos! — Onde? — No compartimento no fundo do avião, a porta à direita da cozinha. — É tudo para as autoridades que viajam com a gente — acrescentou o co-piloto, amargurado. — Se surgirem problemas, eles é que são protegidos. — É perfeitamente razoável — comentou Bourne. — De que outra forma vocês poderiam cuidar para que não surja qualquer problema? — É um absurdo! — Vou dar um pulo lá atrás, senhores, mas manterei a pistola apontada para cá. Mantenha o curso, Comandante. Sou muito experiente e muito sensível. Posso sentir a menor variação no ar... e se isso acontecer, os dois vão morrer. Entendido? — Maluco! — Tem toda razão. Jason levantou-se e voltou pelo avião, passando por cima de seu prisioneiro, estendido no chão e amarrado. O assassino desistira de se debater para se libertar; camadas de sangue seco cobriam-lhe o ferimento na têmpora esquerda. — Como estão as coisas, Major? — Cometi um erro. O que mais você quer? — Seu corpo quente em Kowloon... isso é tudo o que quero. — Para que algum filho da puta possa me pôr na frente de um pelotão de fuzilamento? — Isso depende de você. Como estou começando a ajeitar as coisas, algum filho da puta pode até lhe dar uma medalha, se agir como deve. — Você tem a mania de enigmas, Bourne. O que isso significa?
— Com um pouco de sorte, você vai descobrir. — Muito obrigado! — Não precisa me agradecer. Foi você mesmo quem me deu a idéia, companheiro. Perguntei se em seu treinamento tinha aprendido a voar uma dessas coisas. Lembra o que me respondeu? — O que foi? — Disse que sabia apenas como saltar delas. — Merda! O comando, com o pára-quedas preso nas costas, estava amarrado de pé entre dois bancos, pernas e mãos atadas juntas, a mão direita segurando o cordão do pára-quedas. — Parece crucificado, Major. A única diferença é que seus braços não estão estendidos. — Pelo amor de Deus, quer dizer alguma coisa que faça sentido? — Desculpe. Meu outro eu insiste em se manifestar. Não faça nenhuma estupidez, seu filho da puta, porque vai saltar por esta porta. Ouviu bem? Entendido? — Entendido. Jason voltou à cabine de comando, sentou-se, pegou o mapa e disse ao oficial de vôo: — Qual é o cálculo? — Estaremos em Hong Kong dentro de seis minutos, se não esbarrarmos em ninguém. — Tenho absoluta confiança em vocês, mas não podemos aterrissar em Kai-tak, mesmo que haja alguma idéia de deserção. Sigam para o norte, pelos Novos Territórios. — Aiya! — gritou o piloto. — Vamos passar pelo radar! E os loucos gurcas vão disparar em qualquer coisa que pareça sequer remotamente com o Continente! — Não se o avião não for captado na tela de radar, Comandante. Permaneça abaixo de seiscentos metros até a fronteira, depois suba sobre as montanhas de Lo Wu. Pode fazer contato pelo rádio com Shenzen. — E o que vou dizer, em nome dos espíritos? — Diga que foi seqüestrado. Não precisa falar mais nada. Não posso permitir que você entre na minha história. É por isso que não podemos pousar na colônia. Atrairia atenção para um homem muito tímido... e seu companheiro. Os pára-quedas abriram-se por cima deles, a corda de vinte metros que os ligava pelas cinturas
esticada ao vento, enquanto o avião se afastava em alta velocidade para o norte, na direção de Shenzen. Caíram nas águas de uma incubadeira de peixes, ao sul de Lok Ma Chau. Bourne puxou a corda, trazendo o assassino para o seu lado, enquanto os proprietários da incubadeira gritavam furiosos das margens. Jason levantou dinheiro... mais dinheiro do que marido e mulher poderiam ganhar em um ano. — Somos desertores! — gritou ele. — Desertores ricos! Quem se importa? Ninguém se importava, muito menos os proprietários da incubadeira. — Mgoi! Mgoissaai! — eles ficaram repetindo, agradecendo às estranhas criaturas rosadas que caíram do céu, enquanto Bourne tirava o assassino da água. Os trajes chineses descartados e os pulsos do comando amarrados nas costas, Bourne e seu prisioneiro alcançaram a estrada que seguia para o sul, na direção de Kowloon. As roupas encharcadas secavam rapidamente ao calor do sol, mas a aparência de ambos não atrairia os poucos veículos que passavam pela estrada e menos ainda os que poderiam se mostrar dispostos a recolher caronas. Era um problema que precisava ser resolvido. E o mais depressa possível, da forma cena. Jason estava exausto; mal conseguia andar, e sua concentração estava se desvanecendo. Um passo em falso e poderia perder... mas ele não podia perder! Não agora! Camponeses, principalmente mulheres já velhas, passavam pelas beiras do asfalto, os chapéus pretos, enormes, de aba larga, protegendo os rostos murchos do sol, cangas estendidas pelos ombros encurvados, sustentando cestos de produtos. Uns poucos olharam curiosos para os desgrenhados ocidentais por um instante; mas o mundo deles não convidava a surpresas. Já era suficiente sobreviver; suas memórias eram fortes. Recordações. Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá aproveitar. — Deite-se — ordenou Bourne ao assassino. — À beira da estrada. — Por quê? — Por que se não o fizer não verá mais três segundos de luz do dia. — Pensei que queria meu corpo quente em Kowloon! — Levarei seu corpo frio, se for necessário. Deite logo! De costas! E pode gritar tão alto quanto quiser que ninguém vai compreendê-lo. Pode até me ajudar. — Mas como? — Você está em trauma. — O quê? — Deite! Agora!
O comando arriou para o chão, virou de costas, ficou olhando para o sol forte, o peito arfando na respiração sôfrega. — Ouvi o que o piloto disse — murmurou ele. — Você é mesmo louco! — Cada um com a sua interpretação, Major. — Subitamente, Jason virou-se na estrada e começou a gritar para as camponesas. — Jiu ming! Qing bangmang! Ele suplicava às sobreviventes ancestrais que o ajudassem com seu companheiro, que estava com as costas quebradas ou as costelas partidas. Enfiou a mão na mochila e tirou dinheiro, explicando que cada minuto era importante, que havia necessidade de ajuda médica o mais depressa possível. Se elas pudessem fazer alguma coisa, ele pagaria bem pela ajuda. As camponesas correram em sua direção ao mesmo tempo, os olhos não apenas no paciente, mas também no dinheiro, os chapéus voando ao vento, as cargas esquecidas. — Na gunzi lai! — gritou Bourne, pedindo pedaços de madeira que mantivessem rígidas as costas do pobre coitado. As mulheres correram para o campo e voltaram com pedaços compridos de bambu, que proporcionariam algum alívio ao pobre homem, quando fossem ajustados no lugar. E depois de assim fazerem, com manifestações ruidosas de compaixão e apesar dos protestos em inglês do paciente, elas aceitaram o dinheiro de Bourne e foram embora. Exceto uma. Ela avistara um caminhão que se aproximava, vindo do norte. — Duo shao qian? — disse ela, inclinando-se para o ouvido de Jason, querendo saber quanto ele pagaria. — Ni shuo ne — respondeu Jason, dizendo a ela que fixasse o preço. Ela o fez e Delta concordou. Com os braços estendidos, a mulher foi postar-se no meio da estrada, e o caminhão parou. Houve uma segunda negociação com o motorista e o assassino foi posto no compartimento de carga, deitado de costas, preso aos bambus. Jason subiu também. — Como está se sentindo, Major? — Esta porcaria está cheia de patos nojentos! — berrou o comando, correndo os olhos pelas gaiolas de madeira por todos os lados, o cheiro intenso, insuportável. Um pato em particular, em sua sabedoria infinita, escolheu o momento para lançar um jato de excremento no rosto do assassino. — Próxima parada, Kowloon — disse Jason, fechando os olhos.
Capítulo 30 O telefone tocou. Marie virou-se rapidamente na cadeira... e foi detida pela mão levantada de Mo Panov. O médico atravessou o quarto de hotel e atendeu o telefone na mesinha-de-cabeceira: — Alô? Franziu o rosto enquanto escutava; depois, como se compreendesse que sua expressão poderia alarmar a paciente, olhou para Marie e sacudiu a cabeça, um movimento da mão descartando agora qualquer urgência que pudesse haver na ligação. — Vamos continuar quietos até recebermos outra notícia sua. Mas tenho de lhe fazer uma pergunta, Alex, e peço que me perdoe pela franqueza. Alguém por acaso lhe ofereceu drinques? — Panov estremeceu, enquanto afastava o fone do ouvido por um instante. —Minha única resposta é a de que sou bastante gentil e experiente para especular sobre os seus antecedentes. Conversaremos mais tarde. Ele desligou, e Marie perguntou no instante, soerguendo-se na cadeira: — O que aconteceu? — Muito mais do que ele poderia relatar em detalhes, mas o que disse foi suficiente. — O psiquiatra fez uma pausa, fitando Marie nos olhos. — Catherine Stales está morta. Foi liquidada a tiros na frente do prédio em que morava, há algumas horas... — Oh, meu Deus! — balbuciou Marie. — Aquele enorme oficial do serviço secreto — continuou Panov —, o que vimos na estação de Kowloon, a quem você chamou de major e Staples identificou como um homem chamado Lin Wenzu... — O que há com ele? — Está gravemente ferido e se encontra em estado crítico no hospital. Conklin telefonou do próprio hospital. Marie estudou atentamente o rosto de Panov. — Há uma ligação entre a morte de Catherine e Lin Wenzu, não há? — Sim. Quando Staples foi morta, ficou evidente que a operação fora penetrada... — Que operação? Por quem? — Alex disse que contará tudo isso mais tarde. De qualquer forma, as coisas estão chegando ao ponto de ebulição, e esse Lin pode ter sacrificado sua vida para acabar com a infiltração... “neutralizála”, como disse Conklin.
— Oh, Deus! — exclamou Marie, os olhos arregalados, a voz à beira da histeria. — Operações! Penetrações... neutralizar, Lin, até mesmo Catherine... uma amiga que se virou contra mim... não estou interessada nessas coisas! O que está acontecendo com David? — Disseram que ele foi à China. — Eles o mataram! — berrou Marie, pulando da cadeira. Panov adiantou-se rapidamente e segurou-a pelos ombros. Apertou com força, obrigando sua cabeça a se sacudir espasmodicamente e parar o movimento, insistindo em silêncio que ela o fitasse. — Deixe-me contar o que Alex disse... Preste atenção! Lentamente, ofegante, como se tentasse encontrar um mo mento de lucidez em sua confusão e exaustão, Marie ficou imóvel, olhando fixamente para o amigo. — O que foi? — balbuciou ela. — Ele disse que de certa forma estava contente por David se encontrar lá em cima... ou lá por fora... porque em sua opinião ele tinha assim uma chance maior de sobreviver. — Acredita nisso? — gritou a mulher de David Webb, os olhos marejados de lágrimas. — É possível — respondeu Panov, falando suavemente, balançando a cabeça. — Conklin ressaltou que aqui em Hong Kong, David poderia ser baleado ou esfaqueado numa rua apinhada... as multidões, disse ele, eram ao mesmo tempo inimigas e amigas. E não me pergunte onde essas pessoas arrumam suas metáforas, porque eu não sei. — O que está tentando me dizer? — O que Alex me contou. Ele disse que obrigaram David a voltar, a ser alguém que ele queria esquecer. E depois disse que nunca houve ninguém como “Delta”. Para ele, “Delta” foi o melhor que já existiu... David Webb era “Delta”, Marie. Não importa o que ele queira apagar de sua mente, o fato é que foi “Delta”. Jason Bourne foi uma projeção posterior, uma extensão do sofrimento que ele tinha de infligir a si mesmo. Mas a sua eficiência foi desenvolvida como “Delta”... Sob alguns aspectos, conheço seu marido tão bem quanto você. — Sob esses aspectos, tenho certeza de que até muito melhor — respondeu Marie, encostando a cabeça no peito confortador de Morris Panov. — Havia tantas coisas sobre as quais ele não queria falar... Sentia-se muito assustado ou muito envergonhado... Oh, Mo! Ele voltará algum dia para mim? — Alex acha que “Delta” voltará. Marie afastou-se do psiquiatra e fitou-o nos olhos; através das lágrimas, seu olhar era firme. — Mas o que me diz de David? —indagou ela, num sussurro angustiado. — Ele voltará? — Não posso responder a essa pergunta. Gostada de responder, mas não posso.
— Entendo... Marie desvencilhou-se das mãos de Panov e foi até uma janela, olhando para a multidão lá embaixo, nas ruas congestionadas, brilhantemente iluminadas. — Perguntou a Alex se ele estivera bebendo. Por que, Mo? — Eu me arrependi das palavras no mesmo instante em que as pronunciei. — Porque o ofendeu? — perguntou Marie, virando-se para o psiquiatra. — Não. Porque sabia que você ouviria e pediria uma explicação... e eu não poderia recusar. — E então? — Foi a última coisa que ele me disse... duas coisas, para ser mais preciso. Ele disse que você estava enganada em relação a Staples. — Enganada? Eu estava lá! Vi tudo! Ouvi suas mentiras! — Ela estava tentando protegê-la, sem que você fugisse em pânico. — Mais mentiras! Qual foi a outra coisa? Panov falou de maneira incisiva, os olhos fixados nos de Marie: — Alex disse que por mais absurdas que as coisas pudessem parecer, no final das contas não eram tão absurdas assim, — Oh, Deus, eles o viraram! — Não completamente. Alex não disse a eles onde você está... onde nós estamos. Falou que deveríamos estar preparados para sair daqui poucos minutos depois de sua próxima ligação. Ele não pode correr o risco de voltar para cá. Tem medo de ser seguido. — O que significa que estamos fugindo outra vez... sem nenhum lugar para ir, obrigados a procurar outro esconderijo. E de repente há um ponto de ferrugem aumentando rapidamente em nossa armadura coletiva. Nosso São Jorge aleijado que abate os dragões quer agora deitar com eles. — Isso não é justo, Marie. Não foi o que ele disse, não foi o que eu disse, — Não me venha com essa, doutor! É meu marido quem está lá fora... ou lá em cima! Eles estão usando-o, matando-o, sem nos explicar por quê! Ora, ele pode... apenas pode... sobreviver porque é excepcionalmente bom no que faz... fazia... que era tudo o que ele desprezava... mas o que vai sobrar do homem e sua mente? Você é o especialista, doutor! O que vai ficar depois que todas as memórias
voltarem? E é bom que volte tudo, caso contrário ele não vai sobreviver! — Já lhe disse que não posso responder a isso. — Ah, Mo, você é maravilhoso! Tudo o que tem são posições cuidadosamente definidas, mas nenhuma resposta, nem mesmo projeções com alguma base. Está se perdendo! Deveria ter sido um economista! Perdeu sua vocação! — Perdi uma porção de coisas... inclusive quase perdi o avião para Hong Kong. Marie ficou imóvel, como se tivesse sido atingida por um raio. E depois correu para Panov, em meio a uma nova onda de lágrimas, abraçando-o. — Desculpe, Mo! Perdoe-me! Perdoe-me! — Eu é que devo pedir desculpas — disse o psiquiatra. — Foi um recurso ordinário. Ele inclinou a cabeça para trás, afagando gentilmente os cabelos grisalhos de Marie, e depois acrescentou: — Não suporto essa peruca. — Não é uma peruca, doutor. — Meus diplomas, em termos de Sears Roebuck, nunca incluíram a cosmetologia. — Apenas cuidar de pés. — Pode estar certa de que são muito mais fáceis do que as cabeças. O telefone tocou nesse instante. Marie soltou uma exclamação abafada e Panov parou de respirar. Ele virou a cabeça lentamente para a odiada campainha. — Tente isso de novo ou qualquer outra coisa parecida e vai morrer! — gritou Bourne, segurando o dorso da mão, onde a carne escurecia da força do golpe. O assassino, os pulsos amarrados na frente, por cima das mangas do casaco, arremetera contra a porta do hotel ordinário, espremendo a mão esquerda de Jason no alizar. — O que você espera que eu faça? — berrou o ex-comando britânico. — Que ande tranqüilamente para o paredão, sorrindo para o pelotão de fuzilamento, a desejar um doce boa noite? — Pelo jeito como fala, parece que é também um leitor Secreto — comentou Bourne, observando o assassino comprimir o tórax, no ponto em que seu pé direito o atingira, num golpe violento. — Talvez esteja na hora de eu lhe perguntar por que está neste negócio, de que nunca participei realmente. Por que, Major? — Está mesmo interessado, Sr. Original? — resmungou o assassino, arriando numa poltrona
velha, encostada na parede. — Então é a minha vez de perguntar por quê. — Talvez porque eu nunca tenha compreendido a mim mesmo — respondeu David Webb. — Sou bastante racional em relação a isso. — Sei de tudo a seu respeito. Foi parte do treinamento do Francês. O grande Delta era maluco. Sua mulher e seus filhos foram mortos na água, num lugar chamado Phnom Penh, metralhados por um jato desgarrado. Esse tão civilizado estudioso do Oriente simplesmente enlouqueceu. É um fato que ninguém podia controlá-lo e também ninguém se importava muito com isso, porque ele e suas equipes causavam mais destruição do que todos os grupos especiais juntos. Saigon dizia que você era suicida; de seu ponto de vista, quanto mais, melhor. Queriam que você e a escória que comandava se estrepassem. Jamais quiseram que você voltasse. Era um embaraço grande demais. Dama Serpente, Dama Serpente... aqui é um amigo falando, seus idiotas. Vocês não têm muitos aqui por baixo... Cancele a missão! É uma situação sem qualquer possibilidade de vitória! — Conheço ou acho que conheço essa parte — disse Webb. — Perguntei por você. Os olhos do assassino se arregalaram, enquanto ele olhava fixamente para os pulsos amarrados. Quando falou, a voz era pouco mais que um sussurro, uma voz que parecia um eco de si mesma, completamente irreal: — Porque sou um psicótico, seu filho da puta! Sei disso desde que era garoto. Os pensamentos sinistros e terríveis, as facas enfiadas nos animais só para observar seus olhos e bocas. Estuprando a filha de um vizinho, a filha de um vigário, porque sabia que ela não podia dizer coisa alguma, e depois alcançando-a na rua, acompanhando-a até a escola. Eu tinha onze anos. E mais tarde, em Oxford, durante o trote aos calouros, segurando um rapaz debaixo d’água, logo além da superfície, até ele se afogar... para observar seus olhos, sua boca. Voltei às aulas e superei em loucura o que qualquer idiota com coragem para sair numa tempestade podia fazer. Eu era esse tipo de cara, como convinha ao filho de meu pai. — Nunca procurou ajuda? — Ajuda? Com um nome como Allcott-Price? — Alcott...? — Aturdido, Bourne ficou olhando fixamente para o prisioneiro. — O General Allcott-Price? O gênio de Montgomery na Segunda Guerra Mundial? “Massacre Allcott”, o homem que comandou o ataque de flanco em Tobruk e mais tarde disparou pela Itália e Alemanha? O Patton da Inglaterra? — Eu não era vivo nessa ocasião. Pui um produto de sua terceira esposa... talvez a quarta, pelo que sei. Ele sempre foi sensacional nesse departamento... com as mulheres. — D’Anjou disse que você nunca lhe revelou seu verdadeiro nome. — Nem podia. O general, tomando seu conhaque em seu clube tão superior em St. James’s, deu a ordem. “Matem-no! Matem a semente podre e não deixem o nome vazar. Ele não é parte de mim. A
mãe era uma prostituta.” Mas eu sou mesmo parte dele, e o general sabe disso. O filho da puta sádico sabe muito bem de onde vêm minhas tendências, e ambos temos uma porção de medalhas por fazer o que mais gostamos. — Quer dizer que ele sabia de sua doença? — Sabia... sabe. Impediu minha entrada em Sandhurst... a nossa West Point, caso você não saiba... porque não me queria perto de seu precioso exército. Calculou que descobririam como eu era e isso prejudicaria a sua preciosa imagem. Quase teve um ataque apoplético quando entrei no exército. Não vai ter uma noite de sono tranqüilo enquanto não for discretamente informado de que fui liquidado... morto, todos os vestígios encobertos. — Por que está me dizendo quem você é? — Muito simples — respondeu o ex-comando, os olhos cravados nos de Jason. — Pela maneira como vejo a situação, só um de nós vai escapar, o que quer que aconteça. Farei o melhor possível para que seja eu, como lá lhe disse. Mas pode não ser... afinal, você não é um incompetente... e se não for, você terá um nome com que poderá chocar a porra do mundo e provavelmente ganhar uma fortuna ainda por cima, com os direitos literários e para um filme, esse tipo de coisas. — Então o general vai passar o resto de sua vida dormindo tranqüilamente. — Dormindo? Ele vai provavelmente estourar os miolos! Você não estava prestando atenção. Eu disse que ele teria de ser informado discretamente, que todos os vestígios estavam encobertos, nenhum nome poderia aflorar. Mas, assim, nada será encoberto. Ficará tudo exposto, toda a sórdida confusão, sem qualquer desculpa da minha parte. Sei o que sou e me aceito. Algumas pessoas simplesmente são diferentes. Digamos que somos anti-sociais, para pôr o problema de uma maneira; o violento pela violência é uma coisa, o sórdido é outra. A única diferença na minha diferença é o fato de que sou bastante inteligente para reconhecê-lo. — E para se aceitar. — Com a maior satisfação! Sentindo-me positivamente inebriado! E vamos analisar a situação por outro ângulo. Se eu perder e a história for divulgada, quantos anti-sociais praticantes poderão se sentir animados pelos fatos? Quantos outros homens diferentes existem por aí e ficariam felizes em tomar o meu lugar, como tomei o seu? Este mundo nojento está fervilhando de Jason Bournes. Dê a eles uma orientação, uma idéia, e todos vão se apresentar, entrar em ação. Não percebe que foi esse o gênio essencial do Francês? — Só vejo lixo, e mais nada. — Sua visão não é tão ruim assim. É isso que o general vai ver... um reflexo de si mesmo... e terá de viver com a revelação, sufocar com a denúncia. — Se ele não o ajudou, você deveria ter ajudado a si mesmo, procurado um caminho. É bastante inteligente para saber disso.
— E perder toda a diversão? De jeito nenhum, companheiro! Você segue o seu caminho e encontra a mais dispensável unidade do exército, esperando que ocorra o acidente que acabará com tudo, antes que o sacrifiquem pelo que é. Encontrei a unidade, mas o acidente nunca aconteceu. Infelizmente, a competição desperta o que há de melhor em nós, não é mesmo? Sobrevivemos porque outras pessoas não querem que a gente sobreviva... E depois, como não podia deixar de ser, há a bebida. É o que nos dá a confiança, até mesmo a coragem para fazer as coisas que não temos certeza se somos capazes. — Mas não quando se está trabalhando. — Claro que não. Mas fica a lembrança. A coragem do uísque, garantindo que você é capaz. — Isso é falso. — Não de todo, companheiro. Você extrai forças do que é capaz. — Há duas pessoas — disse Jason. — Uma você conhece, a outra não... ou não quer conhecer. — Isso é falso! — repetiu o comando. — Não se engane. Ele não estaria lá, se eu não quisesse minhas emoções. E também não se iluda, Sr. Original. É melhor meter logo uma bala na minha cabeça, pois eu vou pegá-lo de jeito, se puder. Vou matá-lo, se puder. — Está me pedindo para destruir aquilo com que não pode viver — Pare com essa merda, Bourne! Não sei de você, mas eu tenho as minhas emoções! E as quero! Não posso viver sem elas! — Acaba de me pedir outra vez. — Vá tomar no cu, seu viado! — E mais uma vez. — Pare com isso! O assassino arremeteu da cadeira. Jason deu dois passos para a frente, o pé direito tornando a golpear, acertando as costelas do comando, mandando-o de volta para a cadeira. Alcott-Price soltou um grito de dor. — Não vou matá-lo, Major — disse Bourne, calmamente. — Mas vou fazer com que deseje estar morto. — Quero que me conceda um último desejo. — O assassino tossiu, comprimindo o peito com as mãos atadas. — Até eu fiz isso para os alvos... Não posso suportar a bala inesperada, mas também não posso suportar a guarnição de Hong Kong. Eles me enforcariam de madrugada, quando não houvesse ninguém por perto, apenas para tornar oficial, de acordo com os regulamentos. Meteriam uma corda grossa em meu pescoço e me obrigariam a subir numa plataforma. E não posso suportar isso!
Delta sabia quando mudar de marcha. — Já lhe disse antes: talvez não seja isso o que está reservado a você. Não estou trabalhando com os britânicos de Hong Kong. — Não está o quê? — Você presumiu isso, mas eu nunca disse. — Está mentindo! — Então você é menos talentoso do que eu pensava... e que não era muita coisa, para começar. — Sei disso. Não posso pensar geometricamente! — E não pode mesmo. — Então você é o que os americanos chamam de caçador de prêmios... mas está trabalhando particularmente. — De certa forma, é isso mesmo. E tenho a impressão de que o homem que me mandou atrás de você pode querer contratá-lo, não matá-lo. — Essa não... — E meu preço foi alto. Muito alto. — O que significa que está no negócio. — Apenas por esta vez. Não podia recusar a oferta. Deite na cama. — Como? — Você me ouviu. — Preciso ir ao banheiro. — À vontade. —Jason foi até a porta do banheiro e abriu-a. — Não é um dos meus esportes prediletos, mas ficarei observando. O assassino urinou, sob a mira da pistola de Bourne. Ao terminar, voltou ao quarto pequeno e miserável, no hotel ordinário, ao sul do Mongkok. — A cama — disse Bourne outra vez, gesticulando com a arma. — Deite de bruços e abra as pernas. — A bicha no balcão lá embaixo adoraria ouvir esta conversa.
— Pode telefonar para ele mais tarde, quando tiver todo o tempo para si mesmo. Vamos logo! Depressa! — Você está sempre com pressa... — Mais do que você jamais poderá compreender. Jason pegou a mochila no chão e colocou-a em cima da cama, tirando as cordas de náilon, enquanto o transtornado assassino se acomodava sobre a colcha imunda. Noventa segundos depois os tornozelos do comando estavam presos às molas de metal traseiras da cama, o pescoço envolto pelo fio branco e fino, esticado e amarrado nas molas dianteiras. Finalmente, Bourne tirou a fronha do travesseiro e prendeu-a na cabeça do major, cobrindo-lhe os olhos e ouvidos, deixando a boca livre para respirar. Os pulsos amarrados por baixo do corpo, o prisioneiro estava outra vez imobilizado. Mas agora sua cabeça começou a se sacudir em súbitos arrancos, a boca se esticando a cada espasmo. A ansiedade dominava o ex-Major Allcott Price. Jason reconheceu os sinais com indiferença. O sórdido hotel que ele conseguira arrumar não tinha comodidades tais como um telefone no quarto. A única comunicação com o mundo exterior era uma batida na porta, que podia significar a polícia ou o porteiro cauteloso informando ao hóspede que precisava pagar mais um dia de aluguel caso quisesse ocupar o quarto por outra hora. Bourne saiu do quarto, atravessou em silêncio o corredor imundo, a caminho do telefone público que fora informado estar instalado no final do corredor. Gravara o número na memória, esperando — rezando, se era possível — pelo momento em que o discaria. Inseriu uma moeda e discou agora, a respiração quase parando, o sangue fazendo a cabeça latejar. — Dama Serpente! — disse ele ao telefone, pronunciando as duas palavras incisivamente. — Dama Serpente! Dama... — Qing, qing — disse uma voz impessoal, em chinês. — Está ocorrendo uma interrupção temporária do serviço em diversos aparelhos desta estação. Os serviços serão reiniciados em breve. Isto é uma gravação... Qing, qing... Jason repôs o fone no gancho; mil pensamentos fragmentados, como espelhos quebrados, colidiram em sua mente. Voltou rapidamente pelo corredor escuro, passando por uma prostituta que contava dinheiro numa porta. Ela sorriu-lhe, levantando as mãos para a blusa; ele sacudiu a cabeça e correu para o quarto. Esperou quinze minutos, parado em silêncio ao lado da janela, ouvindo os sons guturais que emergiam da garganta do prisioneiro. Retornou à porta e outra vez saiu silenciosamente. Foi ao telefone, inseriu de novo uma moeda e discou. — Qing... Ele bateu com o fone no gancho, as mãos tremendo, os músculos das mandíbulas se contraindo violentamente, enquanto pensava na “mercadoria” prostrada que comprara, a fim de trocar por sua esposa. Pegou o telefone pela terceira vez e, usando sua última moeda, discou zero.
— Telefonista, é uma emergência! — disse em chinês. — Urgência total! Preciso falar com o seguinte número. Ele deu o telefone, a voz se alteando num pânico que mal conseguia controlar, e depois acrescentou: — Uma gravação explicou que havia problemas com os troncos, mas é uma emergência... — Um momento, por favor. Tentarei ajudá-lo. Seguiu-se o silêncio, cada segundo preenchido por um crescente eco em seu peito, reverberando como um tambor acelerado. As têmporas latejavam, a boca estava ressequida, a garganta ardia, como se uma nova febre se espalhasse pelo seu corpo. — A linha está temporariamente fora de uso, senhor — disse uma segunda voz feminina. — A linha? Essa linha? — Isso mesmo, senhor. — Não são “diversos aparelhos” na estação? — Perguntou à telefonista por um número específico, senhor. Não sei informar sobre outros números. Se tem mais algum, posso verificar. — A gravação dizia expressamente que diversos telefones estão fora de uso, mas você fala em uma linha! Está querendo dizer que não pode confirmar uma... dísfunção múltipla? — Uma o quê? — Se uma porção de telefones não estão funcionando! Vocês têm computadores. Eles localizam os problemas. E eu disse à outra telefonista que é uma emergência! — Se é um problema médico, terei o maior prazer em providenciar uma ambulância. Se quiser me fornecer o endereço... — Quero saber se há uma porção de telefones sem funcionar ou se é apenas um! Preciso saber disso de qualquer maneira! — Vai demorar um pouco para obter essa informação, senhor. Já passa de nove horas da noite e os postos de reparos estão apenas com as equipes de emergência... — Mas podem informar se está havendo problema com alguma estação, merda! — Por favor, senhor, não sou paga para ouvir desaforos. — Desculpe!... Endereço? Ah, sim, o endereço! Qual é o endereço do número que lhe dei? — Não consta da lista, senhor.
— Mas você tem! — Não tenho, não, senhor. As leis de segurança são muito rigorosas em Hong Kong. Minha tela indica apenas que não consta da lista. — Repito: é realmente uma questão de vida e morte! — Pois então deixe-me entrar em contato com um hospital... Ah, por favor, espere um momento, senhor. Estava certo. Minha tela mostra agora que os três últimos dígitos do número que me deu estão cruzando eletronicamente sobre outros. Isso significa que o posto de conserto está tentando corrigir o problema. — Qual a localização geográfica? — O prefixo é “cinco”; portanto, fica na ilha de Hong Kong. — Um ponto mais preciso! Em que lugar da ilha? — Os dígitos nos números dos telefones não têm qualquer relação com ruas ou locações específicas. Receio não poder ajudá-lo em mais nada, senhor. A menos que me dar seu endereço, a fim de que eu possa manda uma ambulância. — Meu endereço...? — murmurou Jason, aturdido, exausto, à beira do pânico. — Não, acho que não darei meu endereço. Edward Newington McAllister inclinou-se sobre a mesa, enquanto a mulher repunha o fone no gancho. Ela estava visivelmente abalada, o rosto oriental pálido pela tensão da ligação. O subsecretário de Estado desligou um telefone separado, no outro lado da mesa, um lápis em sua mão direita, um endereço num bloco anotado à sua frente. — Você foi absolutamente maravilhosa — disse ele, afagando o braço da mulher. — Conseguimos descobri-lo. Manteve-o falando por um longo tempo... muito mais do que ele permitiria nos velhos tempos... o suficiente para se confirmar a origem da ligação. Pelo menos o prédio, e não precisamos mais do que isso. É um hotel. — Ele fala chinês muito bem. O dialeto é mais para o nortista, mas se ajusta a Guangdong hua. E não confiou em mim. — Não tem importância. Vamos dispor nosso pessoal em torno do hotel. Em cada entrada e saída. Fica numa rua chamada Shek Lung. — Além do Mongkok, em Yau Ma Ti — informou a intérprete. —Provavelmente só tem uma entrada, usada pelos hóspedes e por onde sai o lixo todas as manhãs. — Tenho de entrar em contato com Havilland no hospital. Ele não deveria ter ido para lá. — Ele parecia bastante ansioso.
— As últimas declarações — murmurou McAllister, discando. — Informações vitais de um homem agonizante. É permitido. — Não consigo entender nenhum de vocês. — A mulher levantou-se de trás da mesa, enquanto o subsecretário dava a volta e ocupava o lugar. — Posso seguir as instruções, mas não sou capaz de entendê-los. — Oh, Deus, eu tinha esquecido! Você precisa sair agora. O que vou falar é altamente secreto... Estamos muito satisfeitos e posso lhe assegurar que tem nossa gratidão... tenho certeza também de que vai receber uma gratificação por seus serviços... mas agora devo pedir que se retire. — Com o maior prazer, senhor. E pode esquecer a gratidão, mas lembre-se por favor da gratificação. Aprendi que isso é muito importante em minhas aulas de economia na Universidade do Arizona. A mulher saiu, enquanto McAllister completava a ligação e dizia ao telefone: — Emergência policial! O embaixador, por favor! É urgente! Não, não há necessidade de nomes! E providencie um telefone em que ele possa falar em particular! O subsecretário massageou a têmpora esquerda, comprimindo os dedos cada vez mais fundo no crânio, até que Havilland entrou na linha. — O que foi, Edward? — Ele telefonou! Deu certo! Sabemos onde ele está! Um hotel em Yau Ma Ti! — Mande cercá-lo, mas não faça qualquer outro movimento. Conklin precisa compreender a situação. Se ele farejar o que julga ser uma isca podre, vai cair fora. E se não tivermos a mulher, não teremos nosso assassino. Pelo amor de Deus, Edward, não estrague tudo agora! A situação é extremamente delicada. Além-de-salvação pode ser a próxima ordem. — Não estou acostumado a essas palavras, Sr. Embaixador. Houve uma pausa prolongada; quando Havilland voltou a falar, sua voz era fria: — Está sim, Edward. Você protesta demais. Conklin estava certo quanto a isso. Você poderia ter dito não no início, em Sangre de Cristo, no Colorado. Poderia ter ido embora, mas não o fez. Não podia fazer. De certa forma, você é como eu... sem as minhas vantagens acidentais, é claro. Pensamos e tramamos, encontramos sustento em nossas manipulações. Inflamos de orgulho a cada movimento progressivo no jogo de xadrez humano... em que cada movimento pode ter conseqüências terríveis para alguém... porque acreditamos em alguma coisa. Tudo se torna como um narcótico, e o canto da sereia é realmente um apelo para os nossos egos. Temos os nossos poderes subalternos, por causa de nossas inteligências superiores. Reconheça tudo isso, Edward... eu já reconheci. E se isso o faz sentir-se melhor, repetirei o que já disse antes: alguém tem de fazer. — Não estou interessado em preleções fora do contexto — protestou McAllister.
— E não receberá mais nenhuma de mim. Apenas faça o que estou mandando. Cubra todas as saídas do hotel, mas informe a cada homem que não deve fazer movimentos evidentes. Se Bourne sair para algum lugar, deve ser seguido discretamente, mas não deve ser abordado, sob quaisquer circunstâncias. Precisamos ter a mulher antes de fazer o contato. • • • Morris Panov atendeu o telefone. — Alô? — Aconteceu alguma coisa. — Conklin falava depressa, baixinho. — Havilland deixou a sala de espera para atender a uma ligação de emergência. Está havendo algo por aí? — Nada. Absolutamente nada. Estamos apenas conversando. — Estou preocupado. Os homens de Havilland podem ter descoberto vocês. — Mas como? — Investigando todos os hotéis da colônia à procura de um branco manco. — Você pagou ao recepcionista para não dizer nada a ninguém. Disse que era uma conferência de negócios confidencial... o que é perfeitamente natural. — Eles também podem pagar e alegar que se trata de um problema confidencial do governo, o que acarreta recompensas generosas ou uma pressão igualmente generosa. Adivinhe quem tem precedência? — Acho que você está exagerando a situação — protestou o psiquiatra. — Não estou interessado na sua opinião, doutor. Quero apenas que saiam daí. Agora. Esqueça a bagagem de Marie... se é que ela tem alguma. Saiam o mais depressa possível. — Para onde devemos ir? — Algum lugar com muita gente, mas onde eu possa encontrá-los. — Um restaurante? — Já se passaram muitos anos e eles trocam de nomes por aqui a cada vinte minutos. Os hotéis estão excluídos. É muito fácil cobri-los. — Se você está certo, Alex, acho que está demorando tempo demais... — Estou pensando!... Já sei. Peguem um táxi para a base da Nathan Road, em Salisbury...
entendeu direito? Nathan e Salisbury. Vai encontrar o Peninsula Hotel. Não entrem lá. A rua seguindo para o norte é conhecida como Milha Dourada. Fiquem andando de um lado para outro na calçada da direita, no lado leste, mas permaneçam nos quatro primeiros quarteirões. Vou encontrá-los lá, o mais depressa que puder. — Está certo — disse Panov. — Nathan e Salisbury, os quatro primeiros quarteirões, para o norte, lado direito... Alex, você tem convicção absoluta de que está certo? — Por dois motivos — respondeu Conklin. — Para começar, Havilland não me pediu para acompanhá-lo quando foi descobrir o que era a “emergência”... o que foge ao nosso acordo. E se a emergência não é você e Marie, significa que Webb fez contato. Se foi isso, não estou disposto a trocar meu único instrumento de barganha, que é Marie. Não sem garantias absolutas. E não com o Embaixador Raymond Havilland. E agora tratem de sair daí! Alguma coisa estava errada! O que era? Bourne voltara ao fétido quarto do hotel e estava parado ao pé da cama, observando o prisioneiro, cujas contrações eram mais pronunciadas agora, o corpo tenso a reagir espasmodicamente a cada movimento nervoso. O que era? Por que a conversa com a telefonista de Hong Kong o deixara tão perturbado? Ela fora cortês e prestativa, até mesmo suportara seus impropérios. Então o que era?... Subitamente, as palavras de um passado há muito esquecido afloraram na mente de Jason. Palavras pronunciadas há muitos anos para uma telefonista desconhecida, sem um rosto, apenas com uma voz irritada. Eu perguntei o número do consulado iraniano. Está na lista telefônica. Nossas mesas estão muito ocupadas e não temos tempo para esse tipo de informações. Clique. Ligação cortada. Era isso! As telefonistas de Hong Kong — com toda razão — figuravam entre as mais peremptórias do mundo. Não perdiam tempo, não importava quão persistente fosse o interlocutor. A carga de trabalho naquela megalópole financeira congestionada e frenética não permitiria. Contudo, a segunda telefonista fora a própria essência da tolerância... Não sei informar sobre outros números. Se tem mais algum, posso verificar... Se quiser me fornecer o endereço... A menos que queira me dar seu endereço... O endereço! E sem realmente considerar a pergunta, ele respondera instintivamente: Não, acho que não darei meu endereço. Lá do fundo, um alarme soara. Uma varredura! Haviam ganhado tempo, mantendo-o na linha por tempo suficiente para fazerem uma varredura eletrônica e localizar a origem da ligação! Os telefones públicos eram os mais difíceis de descobrir. Primeiro se determinava a área, depois a rua ou a casa em que estava o aparelho, finalmente o telefone específico; mas era apenas uma questão de minutos ou frações de minutos entre o primeiro passo e o último. Ele ficara no telefone por tempo suficiente? E se ficara, até que grau de progresso? A área? O hotel? O próprio aparelho? Jason tentou reconstituir a conversa com a telefonista — a segunda telefonista — quando a varredura poderia ter começado. Freneticamente, mas com toda a precisão de que era capaz, tentou reconstituir o ritmo das palavras, as vozes; chegou à conclusão de que quando ele acelerava, a telefonista atrasava. Vai demorar um pouco... Não tenho, não, senhor. As leis de
segurança são muito rigorosas em Hong Kong... uma preleção! Ah, por favor, espere um momento, senhor. Estava certo... Minha tela mostra... uma explicação apaziguadora, ganhando tempo. Tempo! Como ele pudera permitir? Por quanto tempo? Noventa segundos... dois minutos no máximo. O cálculo do tempo era um instinto para ele, ritmos lembrados. Digamos dois minutos. O suficiente para determinar uma área, possivelmente para constatar uma locação, mas, tendo em vista os milhares de quilômetros de troncos, provavelmente não o bastante para se chegar a um aparelho específico. Por alguma razão indefinida, imagens de Paris afloraram, depois os contornos indistintos de cabines telefônicas, ele e Marie correndo de uma para outra, através das ruas de Paris, fazendo ligações às cegas, impossíveis de se localizar, na esperança de decifrar o enigma que era Jason Bourne. Quatro minutos. Leva esse tempo, mas temos de sair da área. Eles já a determinaram a esta altura. Os homens do taipan — se é que havia, para começo de conversa, um taipan enorme e obeso — poderiam ter descoberto o hotel, mas era improvável que houvessem determinado o aparelho ou o andar. E havia outro ponto a considerar, um prazo que poderia operar em seu favor, se também agisse depressa. Se a varredura fora efetuada e o hotel identificado, os caçadores levariam algum tempo para chegar ao sul de Mongkok, presumindo que estivessem mesmo em Hong Kong, como indicava o prefixo do telefone. A chave no momento era velocidade. Rapidez. — A venda fica, Major, mas você vai sair daqui — disse ele ao assassino, desfazendo a mordaça e os nós nas molas do colchão, enrolando as três cordas de náilon e metendo-as no blusão do comando. — O que foi que disse? Bourne alteou a voz: — Levante-se. Vamos dar um passeio. Jason pegou a mochila, abriu a porta e inspecionou o corredor. Um bêbado entrou cambaleando num quarto à esquerda e bateu a porta. O lado direito do corredor estava vazio, por todo o caminho até o telefone público e a porta de incêndio além. — Ande! — ordenou Bourne, empurrando o prisioneiro. A saída de incêndio teria sido rejeitada pelos inspetores do corpo de bombeiros à primeira vista. O metal estava corroído pela ferrugem e as grades se entortavam sob pressão. Se alguém estivesse escapando a um incêndio, uma escada cheia de fumaça poderia ser preferível. Apesar disso, se permitisse a descida pela escuridão sem cair, nada mais importava. Jason segurou a lapela do comando, levando-o pelos degraus de metal que rangiam até alcançarem o primeiro patamar. Por baixo, havia uma escada quebrada, estendida no trilho até o meio do caminho para o beco. A distância para a calçada era de mais ou menos dois metros, facilmente transposta na descida e — o que era ainda mais importante — também na subida. — Durma bem — murmurou Jason, fazendo mira na semi-escuridão e batendo com os nós dos dedos na base do crânio do comando.
O assassino arriou na escada. Bourne pegou as cordas e amarrou-o nos degraus e na grade, depois empurrou a fronha mais para baixo, cobrindo a boca do impostor e prendendo o pano mais firme. Os sons noturnos de Yau Ma Ti e do Longkok próximo encobririam quaisquer gritos que Allcott-Price pudesse emitir... se acordasse antes de Jason despertá-lo, o que era de se duvidar. Bourne desceu o resto da escada, caindo na viela estreita, apenas segundos antes de três jovens aparecerem, virando a esquina correndo, procedentes da rua movimentada. Sem fôlego, eles se amontoaram nas sombras de um vão de porta, enquanto Jason permanecia de joelhos, esperando não ser visto. Além da entrada da viela, outro grupo de jovens passou correndo, em perseguição, soltando gritos furiosos. Os três jovens saíram do portal escuro e correram em direção oposta, para longe de seus perseguidores. Bourne ergueu-se e seguiu rapidamente até a entrada da viela. Virou-se e olhou para a escada de incêndio. Não dava para ver o assassino. Colidiu simultaneamente com dois corpos correndo. Batendo na parede do impacto, ele só podia presumir que os jovens eram parte do bando que perseguia os três que haviam se escondido no beco. Um deles, no entanto, empunhava uma faca, numa atitude ameaçadora. Jason não precisava daquela confrontação, não podia permiti-la. Antes de o rapaz compreender o que estava acontecendo, Jason adiantou-se e segurou seu pulso, torcendo-o no sentido horário até que a faca caiu. O rapaz soltou um grito de dor e Jason disse, em cantonês: — Suma daqui! Sua turma não é páreo para os mais velhos e melhores. Se encontrarmos mais alguns de vocês por aqui, suas mães vão ter cadáveres para lamentar. Sumam! — Aiya! — Procuramos por ladrões! Pelos homens do norte! Eles roubam! Eles... — Sumam! Os rapazes fugiram, desaparecendo na multidão de Yau Ma Ti. Bourne sacudiu a mão, a mesma mão que o assassino tentara esmagar na porta do hotel. Em sua ansiedade, esquecera a dor; era a melhor maneira de suportá-la. Levantou os olhos à procura do som... sons. Dois sedãs escuros desceram correndo pela Shek Lung Street, indo parar na frente do hotel. Eram visivelmente oficiais. Jason ficou observando, angustiado, enquanto homens saltavam dos carros, dois do primeiro, três do segundo. Oh, Marie! Vamos perder! Eu matei a nós dois... oh, Deus, eu matei a nós dois! Ele esperava que os cinco homens entrassem no hotel, interrogassem o porteiro, tomassem posições e entrassem em ação. Seriam informados que os ocupantes do Quarto 301 não tinham sido vistos a deixar o hotel; portanto, presumivelmente, ainda se encontravam lá em cima. O quarto seria arrombado em menos de um minuto, a saída de incêndio descoberta poucos segundos depois! Será que ele conseguiria? Poderia voltar, soltar o assassino, fazê-lo descer para o beco e escapar? Tinha de conseguir! Deu uma última olhada, antes de começar a correr de volta à escada. E parou abruptamente. Alguma coisa estava errada... alguma coisa inesperada, totalmente
inesperada. O primeiro homem do carro da frente tirara o paletó — que lhe conferia a aparência oficial — e afrouxara a gravata. Passou a mão pelos cabelos, despenteando-os e depois se encaminhou — em passas trôpegos? — para a entrada do hotel ordinário. Os quatro companheiros estavam se afastando dos carros, olhando para as janelas, dois para a direita, dois para a esquerda, aproximando-se do beco... aproximando-se dele! O que estava acontecendo? Aqueles homens não estavam agindo oficialmente. Comportavam-se como criminosos, como mafiosos preparando-se para uma execução a que não podiam estar associados... uma armadilha feita por outros. Santo Deus, Alex Conklin estava enganado no Aeroporto Dulles, em Washington? Jogue de acordo com o roteiro. Está lá no fundo. Acompanhe. Você pode conseguir, Delta! Só que não havia tempo. Não havia mais tempo para continuar a pensar. Não havia instantes preciosos a perder com especulações sobre existência ou inexistência de um enorme e obeso taipan, operístico demais para ser real. Os dois homens se aproximando haviam localizado a viela. Começaram a correr... na direção da viela, na direção da “mercadoria”, na direção da destruição e morte de tudo o que Jason amava naquele mundo podre, que deixaria como maior prazer, se não fosse por Marie. Os segundos escorriam em milissegundos de violência premeditada, ao mesmo tempo aceita e repudiada. David Webb foi silenciado, enquanto Jason Bourne assumia novamente o comando absoluto. Afaste-se de mim! Isso é tudo que nos resta! O primeiro homem caiu, o tórax arrebentado, voz sufocada pela força de um golpe na garganta. O segundo homem recebeu tratamento preferencial. Era essencial que ele estivesse consciente, até mesmo alerta, para o que se seguiria. Jason arrastou os dois homens para as sombras mais profundas do beco, rasgando suas roupas com a faca e prendendo seus pés, braços e bocas com as tiras de pano. Imobilizando os braços do segundo homem sob os seus joelhos, a lâmina da faca rompendo a carne em torno do olho esquerdo, Jason apresentou seu ultimato: — Minha esposa! Onde ela está? Diga agora! Ou vai perder este olho, depois o outro! Pode estar certo de que vou retalhá-lo todo, Zhongguo ren! Ele arrancou a mordaça da boca do homem. — Não somos seu inimigo, Zhangfu! — gritou o oriental em inglês, usando a palavra cantonesa para marido. — Estamos tentando encontrá-la! Procuramos por toda parte! Jason olhava fixamente para o homem, a faca tremendo em sua mão, as têmporas latejando, a galáxia pessoal prestes a explodir, os céus prestes a despejarem uma chuva de fogo e sofrimento além de sua imaginação. — Marie! gritou ele, em agonia. — O que vocês fizeram com ela? Recebi uma garantia! Traga a mercadoria e sua esposa será devolvida! Estava ansioso em ouvir a voz dela pelo telefone, mas o telefone não funciona! Em vez disso, vocês descobrem a origem da chamada e de repente estão aqui, mas minha mulher não está! Onde está ela? — Se soubéssemos, ela estaria aqui conosco.
— Mentiroso! — gritou Bourne, prolongando a palavra. — Não estou mentindo, senhor. Nem devo ser morto por não lhe mentir. Ela fugiu do hospital... — Hospital? — Ela estava doente. O doutor insistiu. Eu estava lá, fora do quarto, velando por ela. Sua mulher estava fraca, mas mesmo assim conseguiu escapar... — Oh, Deus! Doente? Fraca? Sozinha em Hong Kong? Vocês a mataram! — Não, senhor. Nossas ordens eram para proporcionar a ela todos os confortos... — As ordens de vocês — disse Jason Bourne, a voz incisiva e fria. — Mas não as ordens de seu taipan. Ele seguiu outras ordens, ordens dadas antes, em Zurique, Paris e na Rua 71, em Nova York. Eu estava lá... nós estávamos lá. E agora vocês a mataram. Usaram-me, como já tinham feito antes... e quando pensaram que estava acabado, levaram-na de mim. O que é “a morte de mais uma filha”? O silêncio é tudo. Jason agarrou bruscamente o rosto do homem com a mão esquerda, a faca suspensa na mão direita. — Quem éo homem gordo? Diga-me ou será furado! Quem é o taipan? — Ele não é um taipan! É um oficial que estudou na Inglaterra e foi treinado pelos britânicos, muito respeitado no território. Trabalha com os seus compatriotas, os americanos. Está com o serviço secreto. — Tenho certeza de que está mesmo... Desde o início foi a mesma coisa. Só que desta vez não foi o Chacal, mas sim eu. Fui empurrado pelo tabuleiro do xadrez até que não tinha outra alternativa senão caçar a mim mesmo... a uma extensão minha, um homem chamado Bourne. Assim que ele o trouxer, podem matá-lo. E matem a mulher também. Eles sabem demais. — Não! — gritou o oriental, suando profusamente, os olhos arregalados, fixos na lâmina que lhe comprimia a carne. — Disseram-nos muito pouco, mas não ouvi nada semelhante! — O que então vieram fazer aqui? — Perguntou Jason, rispidamente. — Juro que viemos apenas vigiar! Mais nada! — Até os pistoleiros chegarem? — insistiu Bourne, a voz gelada. — Para que seus ternos de três peças possam permanecer limpos, não respingue sangue em suas camisas, seja impossível chegar às pessoas anônimas para as quais vocês trabalham. — Está enganado!Nós não somos assim! Nossos superiores não são assim! — Eu disse que já passei por tudo isso. E pode estar certo que vocês são mesmo assim... E agora vai me dizer mais alguma coisa. O que quer que esteja acontecendo, é algo baixo, sujo e absolutamente
seguro. Ninguém dirige uma operação como essa sem uma base camuflada. Onde fica? — Não estou entendendo... — O quartel-general ou Base Campo Um... ou uma casa segura, ou um Centro de Comando codificado... como quer que vocês queiram chamar. Onde fica? — Por favor, eu não posso... — Pode, sim. E vai. Se não o fizer, ficará cego, os olhos arrancados da cabeça. Agora! — Tenho mulher e filhos! — Eu também tinha. As duas coisas. Estou começando a perder a paciência. — Jason inclinouse, reduzindo apenas ligeiramente a pressão da lâmina. — Além disso, se você tem tanta certeza de que está certo... que seus superiores não são o que eu digo que são, qual é o problema? Poderemos chegar a um acordo. — Isso mesmo! — berrou o homem apavorado. — Um acordo! Eles são homens de bem! Não vão lhe fazer mal algum! — Eles não terão a menor chance — murmurou Bourne. — O que disse, senhor? — Nada. Onde fica? Onde é esse quartel-general tão discreto? Diga logo! — Victoria Peak! — respondeu o aterrado subordinado do serviço de informações. — A décima segunda casa no lado direito, com um muro alto... Bourne escutou a descrição de uma casa segura, uma propriedade tranqüila, mas constantemente patrulhada, em meio a outras vastas propriedades, num bairro rico. Ouvira o que tinha de ouvir; não precisava de mais nada. Bateu com o pesado cabo de osso da faca no crânio do homem, repôs a mordaça e levantou-se. Olhou para a escada de incêndio, para os contornos quase indiscerníveis do corpo do assassino. Queriam Jason Bourne e estavam dispostos a matar por ele. Pois teriam dois Jason Bournes e morreriam por suas mentiras.
Capítulo 31 O Embaixador Havilland confrontou Conklin no corredor do hospital, junto da sala de emergência da polícia. A decisão do diplomata de falar com o homem da CIA no corredor movimentado, de paredes brancas, baseava-se justamente no fato de ser movimentado, com enfermeiras e atendentes, médicos e estudantes circulando constantemente, consultando, atendendo a telefones que pareciam tocar continuamente. Nas circunstâncias, seria improvável que Conklin se permitisse uma discussão acalorada, em voz alta. A conversa poderia ser carregada, mas seria discreta; o embaixador poderia apresentar seus argumentos de forma muito melhor em tais condições. — Bourne fez contato — anunciou Havilland. — Vamos sair — disse Conklin. — Não podemos. Lin pode morrer a qualquer momento ou poderemos falar com ele a qualquer momento. Não podemos perder essa oportunidade, e o médico sabe que estamos aqui. — Pois então vamos voltar lá para dentro. — Há mais cinco pessoas na, sala de emergência. Você não vai querer que escutem a nossa conversa, assim como eu também não quero . — Você sabe se proteger, hem? — Tenho de pensar em todos nós. Não em um, dois ou três, mas em todos. — O que você quer de mim? — A mulher, é claro. Sabe disso. — Sei disso... é claro, O que está disposto a oferecer? — Jason Bourne. — Quero David Webb. Quero o marido de Marie. Quero saber que ele está vivo e passando bem em Hong Kong. Quero vê-lo com meus próprios olhos. — Isso é impossível. — Então é melhor me explicar por quê. — Antes de se apresentar, ele espera falar com a esposa, trinta segundos depois de fazer o contato. Esse é o acordo. — Mas acaba de dizer que ele fez contato! — Ele fez, nós não. Não poderíamos fazer sem ter Marie Webb ao lado do telefone.
— Não estou entendendo mais nada! — protestou Conklin, furioso. — Ele impôs suas próprias condições, não muito diferentes das suas, o que é certamente compreensível. Afinal, vocês dois eram... — Quais foram as condições? — interrompeu o homem da CIA. — Se ele fizesse a ligação, significava que tinha o impostor em seu poder... foi o acordo bilateral. — Bilateral? — Os dois lados concordaram. — Sei muito bem o que isso significa! Vocês me mandam para o espaço e ponto final! — Fale baixo... A condição dele foi a de que se não apresentássemos a mulher em trinta segundos, quem estivesse ao telefone ouviria o estampido de um tiro, significando que o assassino estava morto, que Bourne o executara. — O velho Delta. — Os lábios de Conklin se contraíram num meio sorriso. — Ele nunca perdeu um truque. E desconfio de que ele tinha uma seqüência, não é mesmo? — Exatamente — respondeu Havilland, sombrio. — Um ponto de troca seria mutuamente combinado... — Não bilateralmente? — Cale-se!... Ele terá de ver a mulher andando sozinha, por si mesma. Quando estiver satisfeito, vai se apresentar com o prisioneiro... sob a mira de uma arma, presumimos... e a troca será efetuada. Do contato inicial à troca, tudo deve transcorrer numa questão de minutos, certamente não mais do que meia hora. — Tempo duplo, sem ninguém orquestrando qualquer movimento estranho. — Conklin balançou a cabeça. — Mas se não responderam, como sabem que ele fez contato? — Lin grampeou o telefone, com uma ligação direta para Victoria Peak. Bourne foi informado que a linha estava temporariamente fora de uso. Quando ele tentou uma verificação... o que não podia deixar de fazer, nas circunstâncias... a ligação foi transferida para Victoria Peak. Nós o mantivemos na linha por tempo suficiente para descobrir a localização do telefone público que ele estava usando. Sabemos onde ele está. Nossos homens já se encontram a caminho, com ordens para permanecerem fora de vista. Se ele farejar qualquer coisa, vai matar nosso homem. — Localizaram o telefone? — Alex estudou o rosto do diplomata, com uma expressão implacável. — Ele permitiu que vocês o fizessem falar por tempo suficiente para isso? — Ele se encontra num estado de extrema ansiedade. Contávamos com isso.
— Talvez Webb, mas não Delta — disse Conklin. — Não quando pensar a respeito. — Ele vai continuar a ligar — insistiu Havilland. — Não tem escolha. — Talvez sim, talvez não. Quanto tempo passou desde o seu último telefonema? — Doze minutos — respondeu o embaixador, consultando o relógio. — E o primeiro? — Cerca de meia hora. — E cada vez que ele telefona você é avisado? — Isso mesmo. A informação é transmitida para McAllister. — Telefone para ele e pergunte se Bourne tentou de novo. — Por quê? — Porque, como você disse, ele se encontra em estado de ansiedade extrema e vai continuar a ligar. Não pode se conter. — O que está tentando dizer? — Que você pode ter cometido um erro. — Onde? Como? — Não sei... mas conheço Delta. — O que ele poderia fazer sem entrar em contato conosco? — Matar — respondeu Alex, simplesmente. Havilland virou-se, olhou pelo corredor movimentado e começou a se encaminhar para o balcão da recepção do andar. Falou rapidamente com uma enfermeira; ela acenou com a cabeça e pegou um telefone. Ele falou por um momento e desligou. De rosto franzido, voltou para junto de Conklin, comentando: — É estranho... McAllister pensa da mesma forma que você. Edward esperava que Bourne ligasse a cada cinco minutos, se esperasse tanto tempo. — E daí? — Ele foi levado a crer que a linha poderia ser consertada a qualquer momento. — O embaixador sacudiu a cabeça, como se descartasse o improvável. — Estamos todos muito tensos. Pode haver diversas explicações, começando por moedas para o telefone público e terminando com um
desarranjo intestinal. A porta da sala de emergência foi aberta e o médico britânico apareceu. — Sr. Embaixador... — Lin? — Um homem extraordinário. O que ele sofreu mataria um cavalo, mas também são do mesmo tamanho, e um cavalo não pode manifestar a vontade de viver. — Podemos vê-lo? — Não haveria sentido. Ele ainda está inconsciente... agitando-se de vez em quando, mas sem dizer nada coerente. Cada minuto que ele descansa sem uma reversão é animador. — Compreende como é urgente que falemos com ele, não é? — Claro que compreendo, Sr. Havilland. Talvez mais do que pode imaginar. Sabe que fui o responsável pela fuga da mulher... — É verdade — disse o diplomata. — Fui também informado de que se ela conseguiu enganálo, também poderia enganar o melhor internista da Clínica Mayo. — Isso é duvidoso, mas me agrada pensar que sou competente. Em vez disso, porém, sinto-me m idiota. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo e ao meu bom amigo Major Lin. O julgamento foi médico e meu, o erro foi meu, não dele. Se o Major Lin conseguir resistir durante a próxima hora, creio que tem uma chance de sobreviver. Se isso acontecer, eu o avisarei e poderá interrogá-lo pelo tempo que quiser, desde que as perguntas sejam breves e simples. Se eu achar que está ocorrendo uma reversão grave e ele começar a agonizar, também o avisarei. — Combinado, doutor. Obrigado. — Eu não poderia fazer menos do que isso. É o que Lin gostaria. E agora vou voltar para junto dele. A espera começou. Havilland e Alex Conklin chegaram a seu acordo bilateral. Quando Bourne tentasse outra vez o número de Dama Serpente, seria informado de que a linha voltaria a funcionar dentro de vinte minutos. Durante esse tempo, Conklin seria levado de carro à casa segura em Victoria Peak, pronto para atender ao telefonema. Acertaria a troca, dizendo a David que Marie estava sã e salva, em companhia de Morris Panov. Os dois homens voltaram à sala de emergência da polícia e sentaramse em cadeiras opostas, cada minuto de silêncio aumentando a tensão. Os minutos, no entanto, prolongaram-se em quartos de hora, que se transformaram numa hora inteira. Por três vezes o embaixador ligou par Victoria Peak, a fim de indagar se havia alguma notícia de Jason Bourne. Não havia nenhuma. Por duas vezes o médico inglês veio informar sobre o estado de Lin. Permanecia inalterado, um fato que aumentava a esperança, em vez de diminuí-la. O telefone da sala de
emergência tocou uma vez, e Havilland e Conklin viraram a cabeça bruscamente em sua direção, os olhos fixos na enfermeira, que atendeu com absoluta calma. O telefonema não era para o embaixador. A tensão aumentava entre os dois homens, que de vez em quando olhavam um para o outro, com a mesma mensagem nos olhos. Alguma coisa estava errada. Alguma coisa perdera o fio. Um médico chinês apareceu e aproximou-se de duas pessoas no fundo da sala, uma moça e um padre; falou baixinho. A mulher soltou um grito, depois desatou a chorar e caiu nos braços do padre. Uma nova viúva da polícia surgira. Foi levada para dar o último adeus ao marido. Silêncio. O telefone tocou outra vez, e novamente o diplomata e o homem da CIA olharam para o balcão. — É para o senhor, Embaixador — disse a enfermeira. — O cavalheiro diz que é urgente. Havilland levantou-se e avançou apressado, acenando com a cabeça em agradecimento, enquanto pegava o fone. O que quer que fosse, acontecera. Conklin ficou observando, jamais imaginando que poderia ver o que estava testemunhando agora. O rosto do consumado diplomata tornou-se subitamente pálido; os lábios finos, geralmente contraídos, estavam agora entreabertos, as sobrancelhas escuras arqueadas, os olhos arregalados e vazios. Ele virou-se e falou com Alex, a voz quase inaudível; era o sussurro do medo. — Bourne desapareceu. O impostor desapareceu. Dois dos homens foram encontrados manietados e gravemente feridos. Ele voltou a se concentrar no telefone, os olhos se estreitando enquanto escutava. — Oh, meu Deus! — gritou ele, virando-se outra vez para Conklin. Mas o homem da CIA não estava mais ali. David Webb sumira, apenas Jason Bourne permanecia. Contu do, era ao mesmo tempo mais e menos do que o caçador de Carlos o Chacal. Era Delta, o predador, o animal querendo apenas vingança por uma parte inestimável de sua vida que lhe fora outra vez tirada. E como um predador vingativo, efetuou os movimentos — a logística instintiva — como se estivesse em estado de transe, cada decisão precisa, cada movimento letal. Os olhos buscavam a morte, o cérebro humano se tornara animal. Vagueou pelas ruas miseráveis de Yau Ma Ti, o prisioneiro a reboque, os pulsos ainda amarrados, descobrindo o que queria encontrar, pagando milhares de dólares por coisas que valiam apenas uma fração das quantias dispendidas. Espalhou-se pelo Mongkok a notícia sobre o estranho e seu silencioso companheiro ainda mais estranho, que estava manietado e temia por sua vida. Outras portas se abriram para ele, portas reservadas aos contrabandistas — de tóxicos, prostitutas exportadas, jóias, ouro e materiais de destruição, embuste e morte — e advertências exageradas acompanharam a notícia sobre aquele homem obcecado, carregando milhares de dólares. Ele é um maníaco, é branco e mata depressa. Dizem que duas gargantas já foram cortadas, de
homens que foram desonestos com ele. Sabe-se que um Zhongguo ren foi mortalmente baleado porque trapaceou numa entrega. Ele é louco. Dêem tudo o que quiser. Ele paga em dinheiro. Quem se importa? Não é problema nosso. Deixem-no passar. Deixem-no ir. Apenas tomem seu dinheiro. Por volta de meia-noite, Delta já tinha os instrumentos de seu ofício letal. E o sucesso era a preocupação principal na mente do homem da Medusa. Ele tinha de conseguir. A destruição era tudo. Onde estava Eco? Ele precisava de Eco. O velho Eco era o seu talismã da sorte! Eco estava morto, abatido por um lunático com uma espada cerimonial, num tranqüilo santuário de pássaros. Memórias. Eco. Marie. Vou matar todos eles pelo que fizeram com vocês! Parou um táxi desconjuntado no Mongkok. Mostrando dinheiro, pediu ao motorista que saísse. — O que é, senhor? — perguntou o motorista, num inglês mal falado. — Quanto vale o seu carro? — perguntou Delta. — Não compreendo. — Quanto? Dinheiro? Pelo seu carro! — Você feng kuang! — Bu! — gritou DeIta, dizendo ao motorista que não era desequilibrado. E continuou, em chinês: — Quanto quer pelo seu carro? Amanhã de manhã pode dizer que foi roubado. A polícia vai encontrá-lo. — É minha única fonte de renda e tenho uma família grande! Está louco! — Que tal quatro mil dólares americanos? — Aiya. Leve o carro. — Kuai! — disse Jason, informando ao homem que estava com pressa. — Ajude-me com este doente. Ele tem a doença da tremedeira e precisa ficar amarrado para não se machucar. O dono do táxi, os olhos fixos nas notas altas na mão de Jason, ajudou a ajeitar o assassino no banco de trás. Manteve-o deitado, enquanto Jason passava as cordas de náilon em torno dos tornozelos, joelhos e cotovelos do comando, outra vez amordaçando-o e vendando-o, com as tiras de pano rasgadas da fronha do hotel ordinário. Incapaz de compreender o que estava sendo dito — gritado — em chinês, o prisioneiro só podia resistir passivamente. Não era apenas pela punição infligida a seus pulsos a cada
movimento de protesto, mas também algo que reparava, ao observar seu captor. Havia uma mudança no Jason Bourne original; ele passara para outro mundo, um mundo muito mais sinistro. A morte pairava nos prolongados períodos de silêncio do homem da Medusa. Estava em seus olhos. Enquanto guiava o táxi pelo congestionado túnel de Kowloon para a ilha de Hong Kong, Delta preparou-se para o ataque, imaginando os obstáculos com que se depararia, definindo as contramedidas que empregaria. Tudo era exagerado e excessivo, preparando-o assim para o pior. Ele fizera a mesma coisa na selva de Tam Quan. Não havia nada que não levasse em consideração, e os tirara de lá... a todos, menos um. A própria escória, um homem que não tinha alma, apenas a ganância por ouro, um traidor que venderia as vidas de seus companheiros por uma ninharia. Fora onde tudo começara. Na selva de Tam Quan. Deita executara o traidor, estourara sua têmpora com uma bala, no momento em que o miserável estava no rádio, transmitindo a posição deles para os vietcongues. Era um homem da Medusa chamado Jason Bourne, deixado para apodrecer na seiva de Tam Quan. Ele fora o início da loucura. Mas Delta tirara de lá todos os outros, inclusive um irmão de que não podia se lembrar. Levara-os através de trezentos quilômetros de território inimigo, porque estudara as probabilidades e imaginara as improbabilidades... as últimas muito mais importantes para a fuga, pois haviam ocorrido, e sua mente estava preparada para o inesperado. Era a mesma coisa agora. Não havia nenhum obstáculo que uma casa segura em Victoria Peak pudesse erguer que ele não fosse capaz de superar. A morte seria respondida com a morte. Viu o muro alto da propriedade e seguiu adiante... devagar, como um convidado ou um turista poderia fazer, sem conhecer direito o caminho. Localizou os vidros dos refletores ocultos, registrou o arame farpado por cima do muro. Constatou a presença de dois guardas no outro lado do enorme portão. Estavam nas sombras, mas o pano das túnicas de campanha dos fuzileiros refletia a pouca claridade que havia... um erro, o tecido deveria ser obscurecido ou substituído por um traje menos militar. O muro alto estendia-se pela direita até onde a vista podia alcançar. A casa segura era óbvia a olhos treinados. Para os inocentes, parecia a residência de um diplomata importante, talvez um embaixador, que exigia proteção, por causa dos tempos perigosos. O terrorismo estava à solta por toda parte; reféns eram valiosos, a repressão estava na ordem do dia. Coquetéis eram servidos ao pôr-do-sol, em meio aos risos descontraídos da elite que controlava os governos, mas lá fora as armas estavam de prontidão, engatilhadas na escuridão, prestes a disparar. Delta compreendia. Era por isso que estava carregando a mochila estufada. Levou o carro amassado para o lado da estrada. Não havia necessidade de escondê-lo; não voltaria para buscá-lo. Não se preocupava em voltar. Marie se fora e estava tudo acabado. Quaisquer que fossem as vidas que ele levara, estavam todas acabadas. David Webb. Delta. Jason Bourne.Eram o passado. Ele queria apenas paz. O sofrimento ultrapassara os limites de sua resistência. Paz. Mas, primeiro, precisava matar. Seus inimigos, os inimigos de Marie, todos os inimigos dos homens e mulheres por toda parte que eram tangidos pelos manipuladores anônimos, que precisavam aprender uma lição. Uma pequena lição, é claro, pois explicações impecáveis seriam apresentadas pelos peritos, tornadas plausíveis por palavras complicadas e meias-verdades distorcidas. Mentiras. Remova as dúvidas, elimine as perguntas, mostre-se tão indignado quanto as próprias pessoas, marche ao som dos tambores do consenso. O objetivo é tudo, os jogadores insignificantes não têm a menor importância, a não ser como dígitos necessários nas equações fatais. Usem-nos, tirem tudo o que eles podem dar, matem-nos se for preciso, mas cuidem para que o trabalho seja realizado, porque nós assim decidimos.
Vemos coisas que os outros não podem perceber. Não nos questionem. Vocês não têm acesso a nossas informações. Jason saltou do carro, abriu a porta traseira e cortou com a faca as cordas que prendiam os tornozelos e joelhos do assas sino. Depois removeu a venda, mas deixou a mordaça no lugar. Pegou o prisioneiro pelo ombro e... O golpe foi paralisante! O assassino virou-se, o joelho direito acertando o rim esquerdo de Bourne. As mãos atadas subiram para atingir a garganta de Deita no instante em que ele se dobrava. Uma segunda joelhada acertou o tórax de Jason; ele caiu no chão, enquanto o comando saía correndo pela estrada. Não! Isso não pode acontecer! Preciso de sua arma, de seu poder de fogo! É parte da estratégia! Delta levantou-se, o peito e o flanco estourando de dor, e partiu no encalço do vulto que corria pela estrada. Mais alguns segundos e o assassino seria envolto pela escuridão! O homem da Medusa correu mais depressa, a dor esquecida, concentrando-se apenas no assassino, na parte de sua mente que ainda funcionava. Mais depressa! Mais depressa! Subitamente, surgiram faróis do fundo da ladeira, fixando o assassino em seus fachos. O comando correu para o lado da estrada, a fim de evitar os faróis. Bourne permaneceu no lado direito até o último instante, sabendo que estava ganhando segundos preciosos, enquanto o carro passava, em alta velocidade. Os braços inúteis, o assassino tropeçou e caiu na terra macia do acostamento; rastejou depressa, meio desajeitado, de volta ao asfalto, levantou-se e recomeçou a correr. Mas já era tarde demais. Delta arremeteu, acertando com o ombro na base da espinha do prisioneiro; os dois homens caíram. Os rugidos guturais do comando eram os sons de um animal em fúria. Jason virou o assassino e comprimiu brutalmente o joelho contra sua barriga. — Preste toda atenção, miserável! — disse ele, ofegante, o suor escorrendo pelo rosto. — Não me faz a menor diferença se você morre ou não. Dentro de alguns minutos você não vai mais me interessar. Mas até lá é parte do plano... meu plano! E se vai ou não morrer depois, isso dependerá de você mesmo, não de mim. Vou lhe dar uma chance, o que é mais do que você jamais fez por qualquer alvo. E agora trate de se levantar. Faça tudo o que eu mandar ou sua chance será estourada junto com sua cabeça... que é exatamente o que prometi a eles. Pararam quando chegaram de volta ao carro. Delta pegou a mochila, tirou uma arma que recolhera em Pequim e mostrou-a ao comando. — Lembra que me suplicou por uma arma no aeroporto em Jinan? O assassino balançou a cabeça, os olhos arregalados, a boca esticada pela tensão da mordaça. — É sua — acrescentou Jason Bourne, a voz monótona, sem qualquer emoção. — Depois de passarmos por aquele muro ali... você na minha frente... eu a entregarei. O assassino franziu o rosto e Delta explicou: — Eu tinha esquecido. Você não podia ver. Há uma casa segura a cerca de quinhentos metros daqui, estrada acima. Vamos entrar. Eu ficarei lá, liquidando todos que eu puder. Você? Tem nove balas e lhe darei um bônus adicional. Uma “bolha”.
O homem da Medusa tirou um pacote de plastique do Mongkok da mochila e mostrou a seu prisioneiro. — Pelo que posso imaginar, você nunca conseguiria passar por cima do muro. Eles o retalhariam a tiros. Portanto, seu único caminho é através do portão. Está em algum ponto à direita, em diagonal. Para chegar lá, terá de abrir caminho a fogo. O mecanismo de tempo do explosivo plástico pode ser armado até um mínimo de dez segundos. Use da maneira que achar melhor, não me importo. Capisce? O assassino levantou as mãos atadas, depois gesticulou para a mordaça. Os sons de sua garganta indicavam que Jason deveria libertar seus braços e remover a mordaça. — No muro — disse DeIta. — Cortarei as cordas quando estiver pronto. Mas depois disso, se você tentar tirar a mordaça antes de eu autorizar, lá se vai a sua chance. O impostor fitou-o nos olhos e acenou com a cabeça uma vez. Jason Bourne e o ex-comando britânico começaram a subir pela estrada, na direção da casa segura em Victoria Peak. Conklin desceu claudicando os degraus do hospital o mais depressa quanto podia, segurando na grade central, procurando freneticamente por um táxi no caminho lá embaixo. Não havia nenhum; em vez disso, uma enfermeira uniformizada estava parada sozinha, lendo o South China Times, à luz dos lampiões. De vez em quando ela olhava para a entrada do estacionamento. — Com licença, moça — disse Alex, esbaforido. — Você fala inglês? — Um pouco — respondeu a mulher, obviamente notando a sua manqueira e a voz ansiosa. — Está com algum problema? — E dos grandes. Preciso encontrar um táxi. Tenho de entrar em contato com uma pessoa imediatamente e não posso fazê-lo pelo telefone. — Podem chamar um táxi na recepção. Sempre chamam para mim todas as noites, quando deixo o serviço. — Está esperando...? — Lá vem o meu táxi — disse a mulher, quando faróis se aproximando surgiram na entrada do estacionamento. — Meu problema é urgente! — gritou Conklin. — Um homem está morrendo e outro pode morrer se eu não alcançá-lo! Por favor, posso... — Bie zhaoji! — exclamou a enfermeira, pedindo-lhe que se acalmasse. — Você está com pressa, eu não tenho nenhuma. Pegue o meu táxi. Pedirei outro. — Obrigado — disse Alex, enquanto o táxi encostava no meio-fio. — Muito obrigado! Abriu a porta e embarcou. A mulher acenou com a cabeça jovial e deu de ombros, depois virou-
se e começou a subir os degraus. As portas de vidro lá em cima abriram-se bruscamente e Conklin viu, através da janela traseira do táxi, a enfermeira quase colidindo com dois homens de Lin. Um deles deteve-a e falou algo, o outro desceu até o meio-fio e ficou espiando as luzes do táxi desaparecendo na escuridão. — Depressa! — disse Alex ao motorista, enquanto passavam pelo portão. — Kuai diar, se é que isso está certo! — Está sim — respondeu o motorista, a voz cansada, e falando um inglês fluente. A base da Nathan Road era o início exuberante do mundo efervescente da Milha Dourada. As luzes coloridas intensas, faiscantes, dançantes, tremeluzentes, eram os paredões daquele congestionado vale urbano de humanidade, em que pessoas procuravam e vendedores clamavam por atenção. Era o mercado dos mercados, uma dúzia de línguas e dialetos disputando os ouvidos e olhos de multidões em permanente movimento. Foi ali, naquele corredor polonês de caos comercial, que Alex Conklin saltou do táxi. Andando com dificuldade, a manqueira acentuada, as veias da perna esquerda sem-pé inchando, ele subiu apressado pelo lado leste da rua, os olhos esquadrinhando, como os de um lince furioso à procura das crias no território das hienas. Chegou ao final do quarto quarteirão, o último quarteirão. Onde estavam eles? Onde estavam o esguio e compacto Panov e a alta e atraente Marie, com seus cabelos castanho-avermelhados? Suas instruções haviam sido claras, absolutas. Os primeiros quatro quarteirões para o norte, no lado direito, o lado leste. Mo Panov repetira... Oh, Deus! Ele procurara por duas pessoas, mas a aparência de uma podia pertencer a centenas de homens naqueles quatro quarteirões apinhados. Mas seus olhos estavam atento à mulher alta, de cabelos castanho-avermelhados... o que ela não era mais! Os cabelos de Marie haviam sido pintados, estavam agora grisalhos! Alex começou a descer na direção da Salisbury Road, os olhos agora sintonizados para o que deveria procurar, e não para o que suas memórias angustiadas lhe diziam que encontraria. E lá estavam eles! À beira de uma multidão que cercava um vendedor, em cuja carrocinha se empilhavam sedas de todos os tipos e etiquetas... as sedas relativamente genuínas, as etiquetas tão falsificadas quanto as assinaturas deturpadas. — Venham comigo — disse Conklin, pondo as mãos nos cotovelos de ambos. — Alex! — exclamou Marie. — Você está bem? — perguntou Panov. — Não — respondeu o homem da CIA. — Nenhum de nós está bem. — É David, não é? Marie pegou o braço de Conklin, apertando-o. — Agora não. Vamos depressa. Temos de sair daqui.
— Eles estão aqui? Mas deu um arquejo assustado, a cabeça grisalha virando para a direita e a esquerda, com medo nos olhos. — Quem? — Não sei! — gritou ela, por cima do burburinho da multidão. — Não, eles não estão aqui — respondeu Conklin. — Vamos logo. Tenho um táxi esperando no Pen. — O que é isso? — indagou Panov. — Já lhe disse. O Peninsula Hotel. — Eu tinha esquecido. Os três começaram a descer pela Nathan Road, Alex — como era evidente para Marie e Morris Panov — com a maior dificuldade. — Não podemos ir mais devagar? — perguntou o psiquiatra. — Não, não podemos! — Você está sentindo dor — comentou Marie. — Parem com isso! Vocês dois! Não preciso dessas merdas! — Pois então nos conte o que aconteceu! — gritou Marie, enquanto passavam por um trecho cheio de carrocinhas pelas quais tinham de se esquivar, compradores, vendedores e turistas voyeurs que formavam o exótico congestionamento da Milha Dourada. — Lá está o táxi — disse Conklin, ao se aproximarem da Salisbury Road. — Mais depressa! O motorista já sabe para onde vamos. Dentro do táxi, Panov entre Marie e Alex, ela estendeu a mão outra vez, segurando o braço de Conklin. — É David, não é? — É, sim. Ele voltou. Está aqui, em Hong Kong. — Graças a Deus! — Reze por isso. Rezemos todos. — O que está querendo dizer com isso? — perguntou o psiquiatra, bruscamente.
— Alguma coisa saiu errada. O roteiro perdeu o fio. — Pelo amor de Deus, fale claro! — explodiu Panov. — Ele está querendo dizer que David fez alguma coisa que não deveria ou não fez alguma coisa que se esperava que ele fizesse — explicou Marie, olhando fixamente para o homem da CIA. — É mais ou menos isso. — Os olhos de Conklin desviaram-se para as luzes de Victoria Harbor e a ilha de Hong Kong além. — Eu era capaz de calcular os movimentos de Delta, geralmente antes mesmo que ele os fizesse. Mais tarde, quando ele era Bourne, eu podia acompanhá-lo, quando outros não conseguiam porque compreendia suas opções e sabia quais seriam adotadas. Isto é até que coisas lhe aconteceram e ninguém podia mais prever nada, porque ele perdera o contato com o Delta em seu íntimo. Mas Delta está de volta agora e, como aconteceu tantas vezes, há tanto tempo, seus inimigos o subestimaram. Espero estar enganado... por Deus, como torço para estar enganado! A arma encostada na nuca do assassino, Delta avançou silenciosamente através das moitas, na frente da casa segura. O comando parou de repente; estavam a três metros da entrada escura. Delta comprimiu a pistola contra sua carne e sussurrou: — Não há luzes de alerta na parede ou no chão. Seriam acionadas pelos bichos a cada trinta segundos. Continue em frente. Eu lhe direi quando parar. A ordem foi dada quando estavam a pouco mais de um metro do portão. Delta agarrou seu prisioneiro pela gola e virou-o, o cano da arma ainda encostado no pescoço. O homem da Medusa meteu a mão no bolso e tirou um bloco de plastique; estendeu o braço o mais que podia, na direção do portão. Comprimiu o lado adesivo do bloco no muro; fixara antes o pequeno timer digital no centro mole do explosivo para sete minutos, o número escolhido tanto para dar sorte como para proporcionar o prazo de que ele e o comando precisavam para ocuparem sua posição, a algumas dezenas de metros de distância. — Ande! — sussurrou ele. Contornaram o canto do muro e prosseguiram pelo lado, até um ponto intermediário, de onde era visível o final da pedra, ao luar. — Espere aqui — disse Deita. Abriu a mochila, que estava atravessada em seu peito, como uma bandoleira, a bolsa no lado direito. Tirou uma caixa preta, com doze centímetros de largura, sete de altura e cinco de profundidade. Ao seu lado estava enrolado um tubo fino de plástico preto, com doze metros de comprimento. Era um alto-falante de pilha. Delta ajeitou-o em cima do muro e acionou um comando atrás; uma luz vermelha acendeu. Desenrolou então o tubo fino, enquanto empurrava o comando para a frente, murmurando: — Mais sete ou oito metros.
Alcançaram um ponto aceitável para o homem da Medusa. Os galhos pendentes de um salgueiro estendiam-se por cima do muro e descaíam no outro lado. Um esconderijo. — Aqui! — sussurrou ele, asperamente. Parou o comando, segurando-o pelo braço. Tirou o alicate da mochila e empurrou o assassino contra o muro; os dois se fitaram. — Vou soltar você agora, mas não libertá-lo. Está me entendendo? O comando acenou com a cabeça. Delta cortou as cordas entre os pulsos e tornozelos do prisioneiro, enquanto continuava a apontar a arma para sua cabeça. Depois, deu um passo para trás e dobrou para a frente a perna direita, entregando o alicate ao assassino. — Suba na minha perna e corte o arame farpado. Pode alcançar se der um pequeno pulo e enfiar a mão por baixo para se segurar. Não tente coisa alguma. Ainda não tem uma arma, mas a minha continua na mão. E como tenho certeza que já percebeu, eu não me importo com mais nada. O prisioneiro obedeceu. O pulo da perna de Delta foi mínimo; o braço esquerdo do assassino enfiou-se habilmente entre os rolos de arame farpado, a mão segurando o lado oposto do topo do muro. Cortou o arame sem fazer barulho, comprimindo de lado o alicate contra o metal a fim de reduzir o estalo. O espaço aberto lá em cima tinha um metro e meio de largura. — Suba aí — ordenou Delta. O assassino obedeceu. No momento em que sua perna esquerda passava por cima do muro, Delta pulou para segurar a sua calça, passando a sua própria perna esquerda pelo topo. Montou no muro ao mesmo tempo que o comando. — Bom trabalho, Major Allcott-Price — murmurou ele, um pequeno microfone redondo na mão, a arma outra vez apontada para a cabeça do assassino. — Não vamos ter de esperar muito tempo agora. Se eu fosse você, estudaria o terreno. Sob as súplicas prementes de Conklin ao motorista, o táxi subiu em alta velocidade a estrada de Victoria Peak. Passaram por um carro velho à beira da estrada; parecia deslocado no ambiente elegante. Alex engoliu em seco ao vê-lo, especulando assustado se estaria mesmo enguiçado. — Lá está a casa! — exclamou o homem da CIA. — Pelo amor de Deus, mais depressa! Vá até... Mas não concluiu a frase... não podia concluir. Lá em cima, uma explosão terrível sacudiu a estrada e a noite. Fogo e pedra voaram em todas as direções, enquanto uma grande parte do muro ruía e depois os enormes portões de ferro caíram para a frente, em câmara lenta, além das chamas. — Eu estava certo — murmurou Alexander Conklin para si mesmo. — Delta voltou. Ele quer morrer. E vai morrer.
Capítulo 32 — Ainda não! — berrou Jason Bourne, no momento em que o muro explodiu, além do imponente jardim, cheio de canteiros de lilases e rosas. Uma pausa e acrescentou, a voz mais baixa, o pequeno microfone redondo na mão livre: — Eu direi quando chegar o instante certo. O assassino soltou um grunhido, os instintos levados a seus limites primitivos, o desejo de matar se igualando ao desejo de sobreviver, um dependente do outro. Estava à beira da loucura; somente o cano da arma de Delta o impedia de se lançar a um ataque insano. Ainda era humano, e era melhor tentar viver do que aceitar a morte à revelia. Mas quando... quando? O tique nervoso ressurgiu no rosto de Allcott-Price, o lábio inferior se contraindo espasmodicamente, enquanto gritos e o barulho de homens correndo em pânico se espalhavam pelo jardim. As mãos do comando tremiam, enquanto ele olhava fixamente para Delta, à luz fraca e pulsante das chamas distantes. — Nem pense nisso — disse o homem da Medusa. — Está morto se fizer qualquer movimento. Você me estudou, sabe que não há misericórdia. A decisão é sua. E agora passe a perna por cima do muro e esteja pronto para pular quando eu mandar. Não antes. Inesperadamente, Bourne levou o microfone aos lábios e acionou uma alavanca. Quando falou, as palavras amplificadas ressoaram estranhamente pelo terreno, um som obsedante, reverberante, de acordo com o troar da explosão, que se tornava ainda mais sinistro por sua calma simplicidade, pela frieza. — Fuzileiros, tratem de se abrigar e fiquem fora disso. Não é a luta de vocês. Não morram pelos homens que os trouxeram para cá. Para eles, vocês não passam de lixo. São dispensáveis... como eu era dispensável. Não há legitimidade aqui, não há território a ser defendido, não está em jogo a honra de seu país. Estão aqui com o propósito exclusivo de proteger assassinos. A única diferença entre vocês e eu é o fato de que eles também me usaram, mas agora querem me matar porque sei o que eles fizeram. Não morram por esses homens, eles não valem isso. Dou minha palavra de que não vou atirar em vocês, a menos que atirem em mim primeiro, caso em que não terei alternativa. Mas há outro homem aqui que não vai fazer nenhum acordo... Uma rajada irrompeu, destruindo a fonte de som, estourando o alto-falante colocado ao acaso em cima do muro. Delta estava pronto; linha de acontecer. Um dos manipuladores anônimos dera uma ordem e ela estava sendo cumprida. Enfiou a mão na mochila, tirou um lançador de bombas de gás lacrimogêneo de quarenta centímetros, já armado. O projétil podia quebrar vidro grosso a cinqüenta metros de distância; mirou e puxou o gatilho. A trinta metros uma janela grande foi espatifada, e um nevoeiro de gás turbilhonou pela sala. Delta pôde divisar vultos correndo, além do vidro fragmentado. Luzes foram apagadas, suplantadas por uma quantidade espantosa de refletores, instalados nos beirais da mansão e nos troncos de árvores ao redor. Subitamente, o terreno ficou banhado por uma claridade branca ofuscante. Os galhos pendentes do salgueiro seriam um ímã para olhos procurando e armas levantadas. DeIta compreendeu que nenhum apelo seu poderia cancelar as ordens. Formulara o apelo como uma advertência honesta e como um lenitivo para a consciência que ainda restava a um robô vingativo, que mal pensava, mal sentia. Nas sombras da mente que lhe restava, não queria tirar as vidas de jovens chamados a servir os egos paranóicos dos manipuladores... vira muito disso em Saigon, anos
antes. Queria apenas as vidas dos que estavam no interior da casa segura e tencionava exterminá-las. Jason Bourne não seria detido. Haviam lhe tirado tudo, e ele ia agora acertar as suas contas pessoais. Para o homem da Medusa, a decisão estava tomada... era um fantoche nas cordas de sua própria raiva; tirando essa raiva, sua vida estava acabada. — Pule! — sussurrou Delta, passando a perna direita por cima do muro e empurrando o assassino para o chão. Ele seguiu atrás, enquanto o comando ainda se encontrava em pleno ar. Segurou-o pelo ombro, enquanto o surpreso assassino, os braços estendidos sobre os joelhos, endireitava-se na relva. Bourne arrastou-o para fora de vista, até um caramanchão de treliça, com uma profusão de buganvílias, alcançando quase dois metros de altura. — Aqui está a sua arma, Major — disse o Jason Bourne original. — A minha está apontada para você, e não se esqueça disso. O assassino pegou a arma e ao mesmo tempo arrancou a mordaça, tossindo e cuspindo saliva, enquanto uma fuzilaria implacável derrubava folhas e galhos, ao longo do muro. — Seu pequeno sermão não adiantou nada, hem? — Nem eu esperava que adiantasse. A verdade pura e simples é que eles querem você, não a mim. Sou realmente dispensável agora. Era o plano deles desde o início. Trago você e morro. Minha mulher está morta. Sabíamos demais. Ela morreu porque descobriu quem eles eram... tinha de saber, porque era a isca... eu vou morrer porque eles sabiam que eu tiraria algumas conclusões em Pequim. Envolveu-se com um banho de sangue, Major. Uma bomba atômica que pode explodir todo o Extremo Oriente e vai fazê-lo, se algumas cabeças mais sãs em Formosa não isolarem e liquidarem os seus clientes lunáticos. Só que eu não me importo mais. Podem continuar com seus jogos miseráveis e explodirem. A única coisa que me interessa é entrar naquela casa. Um pelotão de fuzileiros investiu para o muro, correndo ao longo da pedra, os rifles levantados, prontos para dispararem, Delta tirou um segundo plastique da mochila, armou o timer digital para dez segundos e arremessou o explosivo o mais longe que pôde, a direção do muro dos fundos, a uma grande distância dos guardas. — Vamos embora! — ordenou ao comando, batendo com a arma em sua espinha:— Você segue na frente! Por esta trilha! Na direção da casa! — Dê-me um explosivo! — Não. — Você me deu a sua palavra! — Então eu menti ou mudei de idéia.
— Por quê? Não disse que não se importava com mais nada? — Ainda me importo. Não sabia que havia tantos garotos por aqui. E são crianças demais. Você podia acabar com dez deles usando um desses explosivos, mutilar muitos outros. — É um pouco tarde para ter caridade cristã! — A caridade não é exclusividade dos cristãos. Nunca foi. Sei quem eu quero e quem eu não quero... e não quero garotos metidos em pijamas de veteranos mutilados. Quero os homens lá dentro que... A explosão ocorreu a quarenta metros de distância, no fundo do jardim. Arvores e terra, arbustos e canteiros inteiros de flores, tudo subiu em chamas pelo ar... um espetáculo de verde e marrom, salpicados de cores, em meio à fumaça cinzenta turbilhonante, iluminado pelos refletores. — Ande! — sussurrou Delta. — Até o final da trilha. Fica a cerca de vinte metros da casa e há uma porta dupla... Bourne fechou os olhos, sentindo uma fúria inútil, enquanto uma série de rajadas aparentemente intermináveis ressoava no fundo do jardim. Eram crianças. Disparavam às cegas, por medo, matando demônios imaginários, mas sem visar a qualquer alvo. E não escutariam. Outro grupo de fuzileiros, estes obviamente comandados por um oficial experiente, assumiu posições eqüidistantes na frente da mansão, contornando-a, as pernas dobradas, pés fincados na terra, as armas viradas para frente. Os manipuladores haviam convocado sua guarda pretoriana. Que assim fosse. Delta tornou a enfiar a mão na mochila, tateou por seu arsenal e tirou uma das bombas incendiária manuais que comprara no Mongkok. Era parecida com uma granada no topo... redonda, mas coberta por uma capa de plástico grosso. A base, no entanto, era uma alça, com doze centímetros de comprimento, a fim de que o lançador pudesse arremessá-la mais longe e com maior precisão. O segredo estava no arremesso, acurácia e cálculo do tempo. Pois depois que o plástico fosse removido, a casca da bomba propriamente dita iria aderir a qualquer superfície, por um adesivo instantâneo, ativado pelo ar; com a explosão de um composto químico, seria disparada em todas as direções, prolongando as chamas, grudando em todas as superfícies porosas, penetrando e ardendo. Havia um intervalo de quinze segundos entre a remoção da cobertura de plástico e a explosão. Os lados da mansão, a casa segura, eram feitos com a madeira vitoriana clássica, por cima de uma imponente base de pedra. Delta empurrou o assassino para um agrupamento de roseiras, removeu o plástico e lançou a bomba incendiária no alto da parede de madeira, à esquerda das portas francesas, a cerca de dez metros de distância. A bomba grudou na madeira, e só restava agora esperar pela passagem dos segundos, enquanto o fogo de rifle — hesitante agora, diminuindo — cessava por completo. A parede da casa desabou. Um enorme buraco deixou à mostra um quarto vitoriano formal, completo, com uma cama de dossel e requintados móveis ingleses. As chamas se espalharam no mesmo instante, raios de fogo se projetando de um núcleo central, avançando pela madeira, penetrando na casa. Uma ordem foi dada, e novamente houve uma erupção de fogo de rifle, balas chovendo sobre os canteiros de flores, longe do muro dos fundos e do contingente de fuzileiros que correra para lá, por
ocasião da explosão anterior. Ordens e contra-ordens foram gritadas, em ira e frustração, enquanto dois oficiais apareciam, empunhando pistolas. Um deles contornou o circulo de guardas defensivos, verificando suas posições e armas, espiando à frente de cada um. O outro encaminhou-se para o muro lateral e começou a seguir o percurso do primeiro pelotão, os olhos se deslocando constantemente para os flancos, pelos canteiros de flores. Parou sob o salgueiro e inspecionou o muro, depois a relva. Levantou a cabeça e olhou para o cara manchão com buganvílias. Empunhando uma arma, agora com as duas mãos, avançou para o caramanchão. Delta observara o oficial através dos arbustos, a sua própria pistola ainda comprimida nas costas do comando. Pegou outro plastique, acionou o mecanismo de tempo e jogou o explosivo por cima das moitas, na direção do muro lateral. — Siga para lá! — ordenou Bourne, virando o assassino pelo ombro e empurrando-o pela fileira de arbustos à esquerda. Ele foi atrás, batendo com o cano da pistola na cabeça do assassino, detendo-o enquanto pegava a mochila. — Só mais alguns minutos, Major, e depois ficará por sua própria conta. A quarta explosão derrubou dois metros do muro lateral; como se esperassem a invasão de tropas inimigas, os fuzileiros abriram fogo para a abertura. À distância, nas ruas de Victoria Peak, sirenes gemiam, em contraponto com os sons do massacre no jardim da casa segura. Delta pegou o último explosivo plástico, acionou o mecanismo de tempo para noventa segundos e arremessou-o para o canto do muro dos fundos, uma área deserta. Era o começo de sua manobra diversionária final, o resto seria matemática fria. Pegou o lançador de bombas de gás lacrimogêneo, colocou uma e ordenou ao comando: — Vire-se. O assassino obedeceu, o cano da pistola de Bourne diante de seus olhos. — Pegue isto. Pode segurar com uma das mãos. Quando eu mandar, dispare na pedra à direita das portas francesas. O gás vai se espalhar, cegando a maioria daqueles garotos. Eles não vão conseguir atirar. Por isso, não desperdice balas. Não tem muitas. O assassino não respondeu, a princípio. Em vez disso, levantou sua arma e apontou para a cara de Jason. — Agora estamos em posições iguais, Sr. Original. Eu lhe disse que poderia aceitar uma bala na cabeça, há anos que venho esperando por isso. Mas tenho a impressão de que você não pode suportar a idéia de não entrar naquela casa. Houve um súbito troar de vozes e mais outra fuzilaria, enquanto um pelotão de fuzileiros corria para a abertura no muro lateral. Delta observava, espetando pelo instante em que a concentração do assassino seria interrompida por uma fração de segundo. O instante não veio.Em vez disso, o comando continuou a falar, suavemente, a voz tensa mas controlada, os olhos fixos em Jason Bourne:
— Os idiotas devem estar esperando uma invasão em grande escala. Quando em dúvida, ataque, desde que seus flancos estejam cobertos... não é isso mesmo, Sr. Original? Esvazie sua bolsa de mágicas, Delta. Era “Delta”, não era? — Não resta mais nada. Bourne engatilhou sua automática. O comando fez a mesma coisa. — É o que vamos ver... O comando estendeu a mão esquerda lentamente, tateando pela mochila, presa no quadril direito de Delta. O assassino apertou o pano grosso em vários pontos. E retirou a mão, também lentamente. — Com todos os nãos no Grande Livro, nenhum menciona a mentira, não é? Exceto o falso testemunho, que não é a mesma coisa. Acho que você está se viciando no esporte, companheiro. Há uma submetralhadora aí dentro, com dois ou três pentes... cada um com pelo menos cinqüenta balas, a julgar pelas curvas. — Quarenta, para ser exato. — É muito poder de fogo. Essa coisa pode me tirar daqui. Entregue-me! Ou um de nós vai acabar aqui. Agora. A quinta explosão de plastique sacudiu o solo; o surpreso assassino piscou; foi o suficiente. Bourne levantou a mão bruscamente, desviando a arma do assassino e batendo com sua automática na têmpora esquerda do adversário, com a força de um martelo. — Filho da puta! — berrou o assassino, a voz rouca, enquanto caía para a esquerda, o joelho de Bourne em seu pulso. A arma se soltou da mão do comando e Bourne murmurou: — Continua suplicando por uma morte rápida, Major. O pandemônio alcançava o auge nos terrenos da segura mansão vitoriana. O pelotão de fuzileiros que investira para o muro lateral desmoronado recebeu a ordem de desfechar uma carga para os fundos do jardim. — Não gosta realmente de si mesmo, não é, Major? Mas teve uma boa idéia. Esvaziarei minha bolsa de mágicas. Está quase chegando o momento. Bourne removeu as tiras e virou a mochila aberta, O conteúdo caiu sobre a relva, iluminado pelas chamas do incêndio em expansão no segundo andar da casa segura. Restavam uma bomba incendiária e um plastique, além de uma submetralhadora, como o assassino adivinhara, que precisava apenas da armação e de um pente de balas inserido para atirar. Delta montou a arma mortífera, inseriu um dos pentes e meteu os outros três no cinto. Depois, soltou a mola do lançador, ajeitou no lugar uma bomba de gás lacrimogêneo, rearmou o mecanismo. Estava pronto para ser disparado... a fim de salvar
as vidas de crianças, crianças que haviam sido convocadas para morrer pelos egos envelhecidos dos manipuladores. Havia ainda a bomba incendiária. Ele sabia para onde lançá-la. Pegou-a, removeu a cobertura de plástico e arremessou-a com toda a sua força em direção ao ápice em formato de A, por cima das portas francesas. Ela grudou na madeira. Era o momento. Delta puxou o gatilho do lançador, disparando a bomba de gás lacrimogêneo para a pedra à direita das portas francesas. Explodiu, batendo na parede e caindo no chão; o gás espalhou-se no mesmo instante, uma nuvem turbilhonante, homens sufocando em sua periferia. As armas não foram largadas, mas mãos livres esfregaram olhos inchados e lacrimejantes e cobriram narinas congestionadas. A segunda bomba incendiária explodiu, derrubando a elegante fachada vitoriana que encimava as portas francesas, estilhaçando os painéis de vidro, fragmentos inteiros da parte superior da parede caindo no vestíbulo além. As chamas subiram para os beirais e o interior da casa, pegando em cortinas e estofamentos. Os fuzileiros correram da tremenda explosão e das chamas para as nuvens de gás lacrimogêneo. Vários largaram agora os rifles, correndo em todas as direções, esbarrando uns nos outros, na tentativa de escapar dos vapores, engasgando, tossindo, procurando alívio. Delta ficou agachado, a submetralhadora na mão, e levantou o comando para o seu lado. Estava na hora; o caos era completo. O gás turbilhonante na frente das portas francesas destroçadas estava sendo sugado pelo calor das chamas; ia se dissipar o bastante para que ele pudesse avançar. Uma vez lá dentro, a busca seria rápida, encerrada em poucos momentos. Os dirigentes de uma operação se que exigia uma casa segura em território estrangeiro permaneceriam nos limites protetores da própria casa por dois motivos. O primeiro era que o tamanho e a disposição da força atacante não podiam ser estimados com precisão e o risco de morte ou captura lá fora era muito grande. O segundo era mais pragmático: documentos tinham de ser destruídos, queimados, e não picados, como haviam aprendido em Teerã. Diretivas, dossiês, relatórios de progresso operacional, materiais de apoio, tudo tinha que desaparecer. As sirenes em Victoria Peak estavam se tornando mais altas, mais próximas; a subida frenética pelas ruas íngremes estava quase terminando. — É a contagem regressiva — disse Bourne, acionando o mecanismo de tempo no último explosivo plastique. — Não vou lhe dar isto, mas usarei com o maior proveito... tanto seu quanto meu. Trinta segundos, Major Allcott-Price. Jason arremessou o explosivo o mais longe que podia, na direção do lado direito do muro da frente. — Minha arma! Pelo amor de Deus, dê-me a arma! — Está no chão. Debaixo de meu pé. O assassino estendeu a mão. — Largue-a! — Quando eu quiser... e vou querer. Mas se tentar pegá-la antes, a próxima coisa que vai ver é uma cela na guarnição de Hong Kong e... de acordo com as suas previsões... um patíbulo, uma corda grossa e um carrasco, em seu futuro imediato.
O assassino fitou-o em pânico. — Seu mentiroso filho da puta! Você mentiu! — Faço isso com freqüência. Também não acontece com você? — Disse... — Sei o que eu disse. E também sei por que você está aqui, por que tem três balas em vez de nove. — O quê? — Você vai ser o meu desvio, Major. Quando eu libertá-lo com a arma, vai se encaminhar para o portão ou um trecho derrubado do muro... o que preferir. Vão tentar detê-lo. Você responderá ao fogo, naturalmente... e enquanto se concentram em você, aproveitarei para entrar. — Seu filho da puta! — Meus sentimentos estão magoados... mas também não tenho mais sentimentos. Portanto, não tem importância. Preciso apenas entrar na casa... A última explosão derrubou uma árvore, cujas raízes derrubaram um trecho enfraquecido do muro, pedras se deslocando, o próprio muro ruindo, as pedras fendidas formando um V no centro de impacto secundário. Fuzileiros do contingente do portão correram para lá. — Agora! — berrou Delta, ficando de pé. — Dê-me a arma! Largue-a! Jason Bourne ficou subitamente paralisado. Não podia se mexer... a não ser para levantar o joelho, levado por um instinto qualquer, e atingir a garganta do assassino, jogando-o para o lado. Um homem aparecera além das portas arrebentadas do vestíbulo em chamas. Um lenço cobria seu rosto, mas não podia cobrir a manqueira. A manqueira! Com o pé entravado, o vulto delineado chutou a estrutura esquerda das portas francesas e desceu desajeitado os três degraus para o pequeno pátio de lajes de pedra, em frente ao imponente jardim. Arrastou-se para a frente e gritou o mais alto que podia, ordenando aos guardas que podiam ouvi-lo para suspenderem o fogo. O vulto não precisava baixar o lenço para que DeIta reconhecesse o rosto. Era o rosto de seu inimigo. Era Paris, um cemitério nos arredores de Paris. Alexander Conklin viera matá-lo. Além-da-salvação era a ordem que partira lá de cima. — David! Sou eu, Alex! Não continue com o que está fazendo! Pare tudo! Sou eu, David! Estou aqui para ajudá-lo! — Está aqui para me matar! Apareceu para me matar em Paris, tentou de novo em Nova York! Casa de Pedra Setenta- e-Um! Você tem uma memória curta, seu filho da puta!
— E você não tem memória nenhuma! Tornou-se Delta, que era o que eles queriam! Conheço toda a história, David! Voei para cá porque descobrimos tudo! Marie, Mo Panov e eu! Estamos todos aqui! Marie está sã e salva! — Mentiras! Manobras! Vocês a mataram! Queria matá-la em Paris, mas eu a mantive longe de você! — Ela não está morta, David! Está viva! Posso trazê-la para você! Agora! — Mais mentiras! Delta agachou-se e puxou o gatilho, metralhando o pátio, as balas ricocheteando nas pedras para o vestíbulo em chamas; mas, por motivos que ele desconhecia, não abateram o homem. — Você quer me atrair, a fim de poder dar a ordem para acabar comigo! Além-da-salvação cumprida! De jeito nenhum, carrasco! Eu vou entrar! Quero os homens silenciosos e secretos por trás de você! Eles estão aí! Sei que estão aí! Bourne levantou o assassino caído, entregando-lhe a arma. — Vocês queriam um Jason Bourne... pois ele é todo seu! Vou largá-lo entre as roseiras! Matemno, enquanto eu mato vocês! Meio louco, meio sobrevivente, o comando arremeteu por entre as roseiras, afastando-se de Bourne. Correu primeiro pela trilha e depois voltou, percebendo que os fuzileiros se encontravam nas áreas ao norte e ao sul do muro. Se aparecesse na extremidade leste do jardim, ficaria entre os dois contigentes. Seria um homem morto se se mexesse. — Não tenho mais tempo, Conklin! — berrou Bourne. Por que ele não conseguia matar o homem que o traíra? Puxe o gatilho! Mate o último de Casa de Pedra Setenta-e- Um! Mate! Mate! O que o impedia? O assassino lançou-se por cima dos canteiros de flores, agarrando o cano quente da submetralhadora de Bourne, empurrando-o para baixo, levantando e disparando sua própria arma. A bala raspou a testa de Jason, que em fúria puxou o gatilho da submetralhadora. As balas penetraram no chão, e as vibrações na arena pequena e mortal se tornaram ensurdecedoras. Ele agarrou a pistola do inglês, torcendo-a no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. O braço direito entrevado do assassino não era páreo para o homem da Medusa. A arma explodiu no momento em que Bourne a arrancava. O impostor caiu para trás, sobre a relva, os olhos vidrados, conscientes de que perdera. — David! Pelo amor de Deus, escute-me! Você tem... — Não há nenhum David aqui! — gritou Jason, o joelho comprimido contra o peito do assassino. — Meu verdadeiro nome é Bourne, nascido de Delta, gerado por Medusa! A dama serpente! Está lembrado?
— Temos de conversar! — Temos de morrer! Você tem de morrer! Os homens lá dentro são um contrato que fiz comigo mesmo, com Marie! Eles têm de morrer! — Bourne agarrou a lapela do casaco do assassino, levantando-o. — Eu repito! Aqui está o seu Jason Bourne! Ele é todo seu! — Não atirem! Suspendam o fogo! — berrou Conklin, enquanto segmentos aturdidos dos três contingentes de fuzileiros começavam a fechar o cerco e as sirenes ensurdecedoras da polícia de Hong Kong parava diante do portão demolido. O homem da Medusa bateu com o ombro nas costas do comando, empurrando-o para o clarão das chamas e dos refletores. — Aí está ele! O prêmio que vocês queriam! Houve uma rajada de fogo de rifle, enquanto o assassino cambaleava e depois se jogava ao chão, rolando para escapar às balas. — Parem! — berrou Conklin. — Não atirem nele! Pelo amor de Deus, suspendam o fogo! Não o matem! — Não atirem nele? — gritou Jason Bourne. — Nele não? Apenas em mim! Não é isso mesmo, seu filho da puta? E agora você vai morrer! Por Marie, por Eco, por todos nós! Ele apertou o gatilho da submetralhadora, mas ainda dessa vez as balas não atingiram o alvo! Bourne virou-se e, balançando para a frente e para trás, apontou a arma letal para os fuzileiros que se aproximavam. Tornou a disparar, várias rajadas prolongadas, agachando-se, esquivando-se, deslocandose de um lado para outro, por trás das roseiras. Mas estava apontando o cano por cima de suas cabeças. Por quê? Os garotos não podiam detê-lo. Mas também os garotos em seus uniformes engomados não morreriam pelos manipuladores. Tinha de entrar na casa segura. Agora! Não restava muito tempo. Tinha de ser agora! — David! — Uma voz de mulher. Oh, Deus, uma voz de mulher. — David! David! David! Um vulto numa saia esvoaçante saiu correndo da casa segura. Ela pegou o braço de Alexander Conklin e puxou-o para o lado. Ficou sozinha no pátio. — Sou eu, David! Estou aqui! Estou sã e salva! Está tudo bem, meu querido! Outro truque, outra mentira. Era uma velha de cabelos grisalhos! — Saia da frente, mulher, ou vou matá-la! Não passa de Outra mentira, outro truque! — David, sou eu! Não pode me ouvir... — Posso vê-la! Um truque! — Não, David!
— Meu nome não é David! Eu já disse a seu amigo miserável que não há nenhum David aqui! — Não! — berrou Marie. Sacudindo a cabeça, desesperada, ela correu para a frente de vários fuzileiros, que haviam rastejado da relva, emergindo das nuvens turbilhonantes e desvanecentes de gás. Estavam agora de joelhos, com uma visão nítida de Bourne, apontando seus rifles, hesitantes. Marie postou-se entre os guardas que se recuperavam e o alvo. — Já não fizeram o bastante com ele? Pelo amor de Deus, alguém detenha esses guardas! — E deixamos que um terrorista filho da puta nos liquide? — gritou uma voz juvenil das fileiras mais próximas do muro da frente. — Ele não é o que vocês pensam! O que quer que ele seja, foram as pessoas lá dentro que o fizeram assim! Ouviram o que ele disse! Não vai atirar em vocês se não atirarem nele! — Ele já atirou! — berrou um oficial. — Vocês ainda estão de pé! — respondeu Alex Conklin, da beira do pátio. — E ele é um atirador melhor e com mais armas do que qualquer outro homem aqui! Não se esqueçam disso! — Não preciso de você! — proclamou Jason Bourne, mais uma vez disparando uma rajada de metralhadora para a parede em chamas da casa segura. Subitamente, o assassino estava de pé, agachando-se, depois avançando para o fuzileiro mais próximo, um garoto sem capacete, ainda tossindo do gás. O assassino arrancou o rifle do guarda, chutando-o na cabeça, depois disparou contra o fuzileiro seguinte, que cambaleou para trás, as mãos comprimindo a barriga. O comando virou-se; divisou um oficial com uma submetralhadora não muito diferente da arma de Bourne; alvejou-o no pescoço e tirou a arma do corpo que caía. Fez uma pausa, apenas por uma fração de segundo, avaliando suas chances, e depois ajeitou a submetralhadora sob o braço esquerdo. Delta observava, sabendo instintivamente o que o comando faria, sabendo também que seu objetivo de desvio de atenção estava prestes a ocorrer. Foi o que o assassino fez. Disparou uma rajada após outra, nas fileiras cerradas de jovens e inexperientes fuzileiros, perto do muro da frente, sempre correndo, esgueirando-se pelo curto trecho gramado até os canteiros de flores que subia pela altura dos ombros, à esquerda de Bourne. Era o único caminho de fuga, o menos iluminado.., o muro demolido nos fundos, no lado direito. — Detenham-no! — gritou Conklin, claudicando frenético pelo pátio. — Mas não atirem! Não o matem! Pelo amor de Deus, não o matem! — Vá à merda! — gritou alguém do pelotão de fuzileiros junto ao muro dos fundos, no lado esquerdo. O assassino, ziguezagueando, virando-se, agachando-se, a disparar com o rifle, avançou
rapidamente para o muro demolido imobilizando os guardas com seus tiros incessantes. A câmara do rifle ficou sem balas; ele largou a arma e suspendeu a submetralhadora, iniciando a corrida final para o muro demolido, disparando rajadas para os fuzileiros no chão. Estava chegando! A escuridão além garantia a sua fuga! — Seu filho da puta! — Era um grito de adolescente, a voz imatura, em tormento, mas mesmo assim letal. — Você matou meu amigo! Estourou sua cara! Vai pagar por isso, seu filho da puta! Um jovem fuzileiro preto levantou-se de um pulo do lado do companheiro branco morto e correu para o muro, enquanto o assassino se virava, subindo na pedra. Outra rajada atingiu o fuzileiro no ombro; ele caiu, rolou duas vezes para a esquerda e disparou quatro tiros. Foram seguidos por um grito agonizante e histérico de desafio. Era o grito da morte; o assassino, os olhos arregalados em ódio, tombou sobre as pedras fragmentadas. O Major Allcott-Price, ex-oficial dos Comandos Reais, estava morto. Bourne avançou, a arma levantada. Marie correu para a beira do pátio, a distância entre os dois não mais que uns poucos passos. — Não faça isso, David! — Eu não sou David, mulher! Pergunte a seu amigo escroto. Nós nos conhecemos há muito tempo. E agora saia da minha frente! Por que não conseguia matá-la? Uma rajada e estaria livre para fazer o que precisava! Por quê? — Está bem! — gritou Marie, mantendo sua posição. — Não há nenhum David, está bem? Você é Jason Bourne! Você é Delta! Você é qualquer coisa que quiser ser, mas também é meu! Você é meu marido! A revelação teve o impacto de um raio súbito sobre os guardas que a ouviram. Os oficiais, os cotovelos dobrados, levantaram as mãos — a ordem universal para suspender o fogo — enquanto eles e os soldados olhavam a cena aturdidos. — Não conheço você! — A voz é a minha. E você a conhece, Jason. — Um truque! Uma atriz imitando! Uma mentira! Já foi feito antes! — E se eu pareço diferente, é por sua causa, Jason Bourne! — Saia da minha frente ou vai morrer! — Você me ensinou em Paris! Na Rue de Rivoli, o Hotel Meurice, a banca de jornais na esquina. Não pode se lembrar? Os jornais com a história de Zurique, minha fotografia em todas as
primeiras páginas! E o pequeno hotel em Montparnasse, quando estávamos saindo, o porteiro lendo o jornal, minha fotografia na frente de sua cara! Você estava tão assustado que me disse para sair correndo... O táxi! Lembra do táxi? A caminho de Issy-les-Moulineaux... Nunca esquecerei aquele nome incrível. “Mude os cabelos”, você disse. “Levante ou puxe-os para trás”. Disse que não se importava com que eu fizesse, desde que mudasse o penteado. Perguntou-me se eu tinha um lápis de sobrancelha... e me disse para engrossar as sobrancelhas, torná-las mais compridas. Suas palavras, Jason! Estávamos fugindo para salvar nossas vidas e você queria que eu parecesse diferente, que eliminasse qualquer semelhança com a fotografia espalhada por toda a Europa! Eu tinha de me tornar um camaleão, porque Jason Bourne era um camaleão. Ele tinha de ensinar sua amada, sua esposa! E foi justamente isso o que eu fiz, Jason! — Não! — gritou Deita. A palavra se transformou num grito, as névoas da confusão envolvendo-o, enviando sua mente para as regiões exteriores do pânico. As imagens estavam ali! Rue de Rivoli, Montparnasse, o táxi. Preste atenção. Sou um camaleão chamado Caim e posso ensinar muitas coisas a você. Não estou interessado em ensinar, mas devo fazê-lo. Posso mudar minha cor para me integrar com a floresta, posso me transformar com o vento, ao farejá-lo. Posso encontrar o caminho através das selvas naturais e artificiais. Alfa, Bravo, Charlie, Delta... Delta é por Charlie e Charlie é por Caim. Eu sou Caim. Eu sou a morte. E devo dizer a você quem eu sou e perdê-la. — Você lembra! — gritou a esposa de David Webb. — Um truque! Os agentes químicos... eu disse as palavras. Eles revelaram as palavras a você! Querem me deter de qualquer maneira! — Eles não me contaram nada! Não quero nada deles! Quero apenas meu marido! Eu sou Marie! — Você é uma mentira! Eles mataram Marie! Delta puxou o gatilho e a saraivada de balas explodiu na terra, aos pés de Marie. Os rifles foram rapidamente levantados para posições de disparo. — Não façam isso! — gritou Marie, virando a cabeça para os fuzileiros, uma expressão furiosa, a voz de comando. — muito bem, Jason. Se você não me reconhece, então não quero viver. Não posso ser mais clara do que isso, meu querido. É por isso que compreendo o que você está fazendo. Está jogando a sua vida fora por que uma parte de você que assumiu o controle pensa que eu morri e não quer viver sem mim. É algo que compreendo perfeitamente, porque também não quero viver sem você. Marie deu alguns passos pelo gramado e depois ficou completamente imóvel. Delta levantou a submetralhadora, o visor no cano focalizando os cabelos grisalhos. O dedo indicador se fechou em torno do gatilho. E de repente, involuntariamente, a mão direita começou a tremer, e depois a mão esquerda. A arma mortífera começou a balançar, a princípio lentamente, depois mais depressa, em círculos, enquanto a cabeça de Bourne sacudia-se aos arrancos; o tremor foi se espalhando; o pescoço começou a perder o controle.
Houve um tumulto na multidão concentrada nas ruínas fumegantes do portão e da casa de guarda, a várias dezenas de metros. Um homem se debatia, seguro por dois fuzileiros. — Deixem-me passar, seus imbecis! Sou um médico! O médico dele! Com um ímpeto de força, Morris Panov desvencilhou-se e correu pelo gramado, ao clarão dos refletores. Parou a seis ou sete metros de Bourne. Delta começou a gemer; o som e o ritmo eram primitivos. Jason Bourne largou a arma... e David Webb caiu de joelhos, chorando. Marie avançou em sua direção. — Não! — ordenou Panov, a voz suave, enfática, detendo a esposa de Webb. — Ele tem de ir a você. Ele deve ir a você. — Ele precisa de mim! — Não assim, Ele tem de reconhecê-la. David tem de reconhecer você e dizer ao seu outro eu para libertá-lo. Você não pode fazer isso por ele. É uma coisa que ele tem de fazer sozinho. Silêncio. Refletores. Fogo. E como uma criança assustada, abatida, David Webb levantou a cabeça, as lágrimas escorrendo pelas faces. Lentamente, angustiado, ficou de pé e correu para os braços da esposa.
Capítulo 33 Estavam na casa segura, no centro de comunicações de paredes brancas... uma cela anti-séptica, pertencente a algum laboratório futurista. Computadores de faces brancas erguiam-se por cima dos balcões brancos à esquerda, dezenas de bocas finas, escuras e retangulares se abriam esporadicamente, os dentes, os mostradores digitais, formando números verdes luminosos, que mudavam a todo instante, com invioláveis alterações de freqüência e meios menos sofisticados e menos seguros de enviar e receber informações. À direita havia uma mesa de reuniões grande e branca, sobre o chão de ladrilhos brancos; o único desvio da conformidade de cor e assepsia eram vários cinzeiros pretos. Os jogadores se encontravam em suas posições, ao redor da mesa. Os técnicos haviam sido dispensados, todos os sistemas suspensos, apenas o sinistro Alerta Vermelho, um painel de oito por vinte centímetros no computador central, permanecia ativo; um operador estava de plantão no outro lado da porta fechada, para o caso de as luzes vermelhas de alarme se acenderem. Além daquela sala isolada e sacrossanta, os bombeiros de Hong Kong apagavam os rescaldos do incêndio, enquanto a polícia de Hong Kong procurava acalmar os moradores em pânico das propriedades próximas em Victoria Peak — muitos convencidos de que o Armagedon chegara, sob a forma de um ataque do Continente — dizendo a todos que os terríveis acontecimentos eram obra de um criminoso enlouquecido, morto por unidades de emergência do governo. Os céticos moradores não ficaram satisfeitos. Os tempos não lhes eram favoráveis; seu mundo não era mais como deveria, e queriam provas. Assim, o cadáver do assassino desfilou numa maca, passando pelos espectadores curiosos, o corpo, todo perfurado e encharcado de sangue, parcialmente descoberto para que todos pudessem ver. Os pomposos moradores retornaram a suas casas pomposas, já tendo considerado a esta altura todas as possibilidades de reivindicação de pagamento de seguros. Os jogadores sentavam-se em cadeiras brancas de plástico, robôs vivos, respirando à espera de um sinal para começar, nenhum possuindo realmente a coragem ou energia para iniciar os trabalhos. A exaustão, misturada com o medo de morte violenta, marcava seus rostos... marcava todos os rostos, à exceção de um. Ele tinha rugas profundas e olheiras de extrema fadiga, mas não havia medo em seus olhos, apenas a aceitação passiva e aturdida de coisas ainda além de sua compreensão. Minutos antes, a morte não lhe metia medo; era preferível a viver. Agora, em sua confusão, com a esposa segurando sua mão, ele podia sentir a distensão da ira distante... distante no sentido de afastada para os recessos de sua mente, pressionando para a frente inexoravelmente, como a trovoada distante sobre um lado, numa tempestade de verão se aproximando. — Quem fez isso conosco? — perguntou David Webb, num quase sussurro. — Fui eu — respondeu Havilland, na extremidade da mesa branca retangular. O embaixador inclinou-se para a frente lentamente, sustentando o olhar letal de Webb. — Se eu estivesse num tribunal, suplicando misericórdia por um ato ignominioso, alegaria que havia circunstâncias atenuantes. — Quais foram? — indagou David, a voz sem qualquer inflexão. — Primeiro, há uma crise — disse o embaixador. — Segundo, havia você. — Explique — interveio Alex Conklin, na outra extremidade da mesa, de frente para Havilland.
Webb e Marie estavam à sua esquerda, de frente para a parede branca; Morris Panov e Edward McAllister sentavam-se no lado oposto. — E não omita nada — acrescentou o turbulento homem da CIA. — Não tinha a menor intenção disso — respondeu o embaixador, os olhos sempre fixos em David. — A crise é real, a catástrofe iminente. Uma cabala foi formada em Pequim por um grupo de fanáticos, liderados por um homem tão bem situado na hierarquia de seu governo, tão reverenciado como um príncipe dos filósofos que não pode ser denunciado. Ninguém acreditaria. Quem quer que tentasse denunciá-lo haveria de se tornar um pária. Pior ainda, qualquer tentativa de denúncia acarretaria o risco de um retrocesso tão grande que Pequim bradaria insultada e indignada, revertendo à suspeita e à intransigência. Mas se a conspiração não for abortada, vai destruir os Acordos de Hong Kong e acabar com a colônia. O resultado será a ocupação imediata pela República Popular. Não preciso lhe dizer o que isso significaria... caos econômico, violência, banho de sangue e a guerra inevitável no Extremo Oriente. Por quanto tempo tais hostilidades poderiam ser contidas antes que outras nações se vissem forçadas a tomar partido? O risco é inadmissível. Silêncio. Olhos se encontrando com olhos. — Fanáticos do Kuomintang — disse David, a voz incisiva e fria. — China contra China. Tem sido o grito de guerra de maníacos há quarenta anos. — Mas apenas um grito, Sr. Webb. Palavras, conversas, mas nenhum movimento, nenhum ataque, nenhuma estratégia final — Havilland pôs as mãos sobre a mesa, respirando fundo. — Mas é o que existe agora. A estratégia está definida, uma estratégia tão indireta e tortuosa, desenvolvida por tanto tempo, que eles estão convencidos de que não pode falhar. Mas é claro que vai fracassar... e quando isso acontecer, o mundo vai se defrontar com uma crise de proporções intoleráveis. Pode muito bem levar à crise final, à crise a que não poderemos sobreviver. E, com toda certeza, o Extremo Oriente não vai sobreviver. — Não está me dizendo nada que eu não tenha testemunhado pessoalmente Eles estão infiltrados nos altos escalões e provavelmente se espalhando, mais ainda são fanáticos, um bando de lunáticos. E se o maníaco que encontrei e estava comandando o espetáculo é como os outros, todos serão enforcados na Tian An Men. Com transmissão pela televisão e aprovação de todos os grupos que se opõem à pena capital. Ele era... é... um sádico messiânico, um carniceiro. Os carniceiros não são estadistas. Não podem ser levados a sério. — Herr Hitler foi, em 1933 — comentou Havilland. — E o Aiatolá Khomeini há poucos anos. Mas é óbvio que você não sabe quem é o verdadeiro líder desses fanáticos. Ele nunca se mostraria, sob quaisquer circunstâncias, em algum lugar onde você pudesse vê-lo, sequer remotamente. Contudo, posso lhe assegurar que é um estadista e levado muito a sério. E seu objetivo não é Pequim. É Hong Kong. — Vi o que vi e ouvi o que ouvi, e tudo estará comigo por um longo tempo... Vocês não precisam de mim, nunca precisaram. Podem isolá-los, espalhar a notícia pelo Comitê Central, pedir a
Formosa para repudiá-los... e eles atenderão. Os tempos mudaram. Não querem mais a guerra com Pequim. O embaixador estudou o homem da Medusa, obviamente avaliando as informações de David, compreendendo que ele observara o suficiente em Pequim para tirar suas próprias conclusões, mas não o bastante para perceber a essência da conspiração de Hong Kong. — É tarde demais — disse Havilland. — As forças já foram acionadas. Traição nos mais altos níveis do governo da China, traição dos desprezados nacionalistas, presumindo-se que estão em conluio com interesses financeiros ocidentais. Nem mesmo os partidários mais devotados de Teng Siao-ping poderiam aceitar esse golpe no orgulho de Pequim, essa perda de prestígio internacional... o papel de corno enganado. Também não aceitaríamos, se descobríssemos que a General Motors, a IBM e a Bolsa de Valores de Nova York estavam sendo dirigidas por traidores americanos, treinados pelos soviéticos, desviando bilhões para projetos que não são do interesse da nação. — A analogia é acurada — interveio McAllister, os dedos na têmpora direita. — Cumulativamente, Hong Kong será isso mesmo para a República Popular... isso e cem mil vezes mais. Mas há outro elemento e é tão alarmante quanto qualquer outra coisa que já descobrimos. Eu gostaria de abordá-lo agora... em minha posição como um analista, como alguém que supostamente calcula as reações dos adversários e dos adversários em potencial... — Seja sucinto — interrompeu-o Webb. — Fala demais e não pára de esfregar a cabeça. Além disso, não gosto de seus olhos. Parecem de peixe morto. Falou demais no Maine. Não passa de um mentiroso. — Está certo. Entendo o que está dizendo e por quê. Mas sou um homem decente, Sr. Webb. Acredito na decência. — Pois eu não acredito. Deixei de acreditar. Continue. É tudo muito esclarecedor e não compreendo nada, porque ninguém disse nada que faça sentido. Qual é a sua contribuição, mentiroso? — O fator do crime organizado. McAllister engoliu em seco ao insulto repetido de David, mas ainda assim apresentou a declaração como se esperasse que todos compreendessem. Quando se defrontou com expressões impassíveis, tratou de acrescentar: — As tríades! — Grupos estruturados como a Máfia, em estilo oriental — disse Marie, os olhos fixos no subsecretário de Estado. — Fraternidades criminosas. McAllister acenou com a cabeça. — Narcóticos, imigração ilegal, jogo, prostituição, agiotagem... todas as atividades usuais. — E algumas que não são tão usuais — acrescentou Marie. — Eles estão profundamente
arraigados em sua própria forma de economia Possuem bancos... indiretamente, é claro... na Califórnia, Oregon, Washington e até em meu país, na Colúmbia Britânica. Levam seu dinheiro, aos milhões, todos o dias, através de transferências internacionais. — O que só contribui para agravar a crise — disse McAllister, enfaticamente — Por quê? — indagou David. — Onde está querendo chegar? — Crime, Sr. Web. Os líderes da República Popular estão obcecados pelo crime, Os informes indicam que mais de cem mil execuções ocorreram durante os últimos três anos, com pouca distinção entre pequenos delitos e crimes mais graves. É coerente com o regime... as origens do regime. Todas as revoluções acreditam que são concebidas em pureza; a pureza da causa é tudo. Pequim efetuará os ajustes ideológicos para se beneficiar com o mercado do Ocidente, mas não haverá concessões sequer para a insinuação de crime organizado. — Faz com que eles pareçam um bando de paranóicos — comentou Panov. — E são mesmo. Não podem se permitir ser qualquer outra coisa. — Ideologicamente? — indagou o psiquiatra, cético. — Simplesmente números, doutor. A pureza da revolução é a cobertura, mas são os números que os assustam. Um país enorme, imensamente povoado, com vastos recursos... se o crime organizado se infiltrasse, com um bilhão de pessoas dentro de suas fronteiras, poderia se transformar numa nação de tríades. Aldeias, cidades pequenas e grandes, tudo poderia ser dividido em territórios de “famílias”, lucrando com o fluxo de capital e a tecnologia ocidentais. Haveria uma explosão de exportações ilegais, inundando os mercados de contrabando do mundo inteiro. Narcóticos de plantações incontáveis, que seria impossível patrulhar, armas de fábricas subsidiárias que seriam montadas através do suborno, tecidos de centenas de teares clandestinos, usando equipamentos roubados e mão-de-obra camponesa, abalando as indústrias do Ocidente. Crime. — É o “grande salto para a frente”, que ninguém por aqui foi capaz de realizar nos últimos quarenta anos — comentou Conklin. — Quem se atreveria a tentar? — indagou McAllister. — Se uma pessoa pode ser executada por roubar cinqüenta yuans, quem vai se arriscar por cem mil? E preciso proteção, organização, pessoas nos altos escalões. É isso o que Pequim teme, por isso é paranóica. Os líderes estão apavorados com a corrupção nos altos postos. A infra-estrutura política pode ser erodida. Os líderes perderiam o controle, risco que não podem permitir. Claro que seus medos são paranóicos, mas para eles são terrivelmente reais. Qualquer insinuação de que facções criminosas poderosas estão em conluio com conspiradores internos, infiltrando-se na economia, seria suficiente para que repudiassem os Acordos e mandassem suas tropas para Hong Kong. — Suas conclusões são óbvias — disse Marie. — Mas onde está a lógica? Como poderia acontecer? — Está acontecendo, Sra. Webb — respondeu o Embaixador Havilland. —É por isso que
precisamos de Jason Bourne. — É melhor que alguém comece do início — interveio David. Foi o que Havilland fez. — Começou há mais de trinta anos, quando um jovem brilhante foi enviado de Formosa para a terra onde seu pai nascera, recebendo um novo nome, uma nova família. Era um plano a longo prazo. Suas raízes estavam no fanatismo e na vingança... Webb ficou escutando o relato da incrível história de Sheng Chou Yang, cada peça no lugar, cada fato convincentemente verdadeiro, pois não havia mais motivos para mentiras. Exatamente vinte e sete minutos depois, ao terminar, Havilland pegou uma pasta de arquivo com as margens pretas. Abriua, revelando um feixe de setenta e tantas páginas, tornou a fechá-la, inclinou-se e colocou-a na frente de David. — Isto é tudo que sabemos, tudo o que descobrimos... os detalhes de tudo o que lhe contei. Não pode.sair desta casa, exceto como cinzas, mas você está autorizado a ler. Se tiver alguma dúvida ou pergunta, juro que acionarei todas as fontes no governo dos Estados Unidos... do Gabinete Oval ao Conselho de Segurança Nacional... para satisfazê-lo. Não poderia fazer menos. — O embaixador fez uma pausa, os olhos fixos nos de Webb. — Talvez não tenhamos o direito de pedir isso, mas precisamos de sua ajuda. Precisamos de todas as informações que puder nos oferecer. — A fim de que vocês possam mandar alguém liquidar esse Sheng Chou Yang. — Essencialmente, é isso mesmo.. Mas a situação é muito mais complexa. Nossa intervenção deve invisível. Não pode ser vista ou sequer remotamente suspeitada. Sheng se protegeu de maneira brilhante. Pequim o considera um visionário, um grande patriota que trabalha como empenho pela Mãe China... pode-se mesmo dizer que é um santo. Sua segurança é absoluta. As pessoas que o cercam, assessores, guardas, formam suas tropas de choque protetoras, e devem fidelidade exclusivamente a ele. — Era por isso que queriam o impostor —comentou Marie. — Ele era o vínculo com Sheng. — Sabíamos que ele aceitara contratos de Sheng, que precisava... precisa... eliminar sua oposição, tanto os adversários ideológicos quanto os que tenciona excluir de suas operações. — Nesse segundo grupo estão os chefes das tríades rivais em que Sheng não confia, em que os fanáticos do Kuomintang não confiam — acrescentou McAllister. — Sheng sabe que se eles perceberem que estão sendo relegados a um segundo plano, poderia irromper uma guerra de quadrilhas desestabilizadora. Sheng não pode tolerar isso, assim como os ingleses também não, com Pequim no outro lado da rua. Nos últimos dois meses, sete chefes de tríades foram mortos e suas organizações destruídas. — O novo Jason Bourne era a solução perfeita para Sheng — continuou o embaixador. — O assassino por contrato sem vínculos políticos ou nacionais, pois acima de tudo não seria possível estabelecer ligações entre as mortes e a China.
— Mas ele foi a Pequim — objetou Webb. — Foi lá que o encontrei. Embora tenha começado como uma armadilha para mim, que foi... — Uma armadilha para você? — interrompeu Havilland. — Eles sabiam de vocé? — Deparei com meu sucessor no aeroporto há duas noites. Cada um sabia quem era o outro... era impossível não saber. Ele não ia manter em segredo e arcar com a culpa por um contrato malogrado. — Então foi você! — exclamou McAllister. — Eu sabia! — Sheng e sua gente também sabiam. Eu era o novo pistoleiro no cenário e tinha de ser detido, morto em base de prioridade. Não podiam se arriscar ao que descobri. A armadilha foi concebida naquela noite, acionada naquela noite. — Essa não! — explodiu Conklin. — Em Washington, li sobre o incidente em Kai-tak. Os jornais disseram que se presumia ser obra de lunáticos de extrema direita. Para manter os comunistas longe do capitalismo. E no entanto, foi você? — Os dois governos tinham de oferecer alguma coisa à imprensa internacional — explicou o subsecretário. — Assim como vamos ter que dizer alguma coisa sobre o que aconteceu aqui esta noite... — O que eu ia dizer é que esse Sheng recrutou o comando, usou-o para montar uma armadilha para mim e com isso integrou-o em seu círculo interior — declarou David, ignorando McAllister. — Não é assim que um cliente oculto se mantém a distância de um assassino contratado. — É como se ele esperasse que o assassino não saísse vivo desse círculo — respondeu Havilland, olhando para o subsecretário de Estado. — É a teoria de Edward, e que eu endosso: depois que fosse executado o contrato final ou quando se achasse que o homem sabia demais e assim se tornava um risco, o impostor seria morto ao receber um pagamento... acreditando, é claro, que estava recebendo outra missão. Tudo insondável, tudo limpo. Os acontecimentos no Kai-tak certamente selaram a sua sentença de morte. — Ele não foi bastante esperto para perceber isso — comentou Jason Bourne. — Não era capaz de pensar geometricamente. — Como? — indagou o embaixador. — Não tem importância — respondeu Webb, tornando a fitar o embaixador. — Então tudo o que me contou era parte verdade, parte mentira. Hong Kong poderia explodir, mas não pelos motivos que me apresentou. — A verdade era nossa credibilidade. Você tinha de aceitar isso, aceitar nossas preocupações profundas e assustadoras. As mentiras eram para recrutá-lo. — Havilland recostou-se na cadeira. — E não posso ser mais sincero do que isso.
— Filhos da puta! — disse David, a voz baixa, fria como gelo. — Aceito isso — murmurou Havilland. — Mas, como mencionei antes, havia circunstâncias atenuantes, especificamente duas. A crise e você. — Como assim? — perguntou Marie. — Quero perguntar uma coisa, Sr. Webb... Sra. Webb. Se nós os procurássemos e apresentássemos toda a situação de forma objetiva e clara, teriam nos ajudado? Voltaria a ser Jason Bourne de bom grado, Sr. Webb? Silêncio. Todos os olhos fixavam-se em David, enquanto os dele se desviavam vazios pela superfície da mesa, iam parar na pasta de arquivo. — Não — respondeu ele suavemente. — Não confio em vocês. — Sabíamos disso —concordou Havilland, tornando a acenar com a cabeça. — Mas do nosso ponto de vista precisávamos recrutá-lo de qualquer maneira. Era capaz de fazer o que ninguém mais conseguiria... e como fez, presumo que esse julgamento era correto. O custo foi terrível, ninguém o subestima, mas estávamos convencidos... eu estava... de que não havia alternativa. O tempo e as conseqüências estavam contra nós... estão contra nós. — Tanto quanto antes — disse Webb. — O comando está morto. — O comando? — repetiu Havilland, inclinando-se para a frente. — Seu assassino. O impostor. O que fez com todos nós foi a troco de nada. — Não necessariamente — objetou Havilland. — Dependerá do que pode nos contar. As notícias sobre uma morte aqui sairão nos jornais de amanhã, não podemos impedir. Mas Sheng não precisa saber a morte de quem. Não foram tiradas fotografias, a imprensa não estava presente na ocasião, a polícia manteve os repórteres que chegaram depois à distância de várias centenas de metros. Podemos controlar as informações pelo simples expediente de fornecê-las. — E o que fariam com o corpo? — perguntou Panov. — Há rotinas médicas... — O MI-Seis cuida disso — respondeu o embaixador. — Isto ainda é território britânico, e as comunicações entre Londres, Washington e a Casa do Governo são rápidas. O rosto do impostor estava desfigurado demais para que quem quer que o tenha visto possa dar uma descrição acurada. O corpo está sob custódia, além dos olhares curiosos. Foi idéia de Edward, e ele agiu depressa. — Ainda há David e Marie — insistiu o psiquiatra. — Muitas pessoas os viram e ouviram. — Apenas os pelotões de fuzileiros estiveram suficientemente perto para ver e ouvir — disse McAllister. — Todo o contingente voará de volta ao Havaí dentro de uma hora, inclusive dois mortos e sete feridos. Deixaram o local e estão isolados no aeroporto. Houve muita confusão e pânico. A polícia
e os bombeiros estavam ocupados em outros lugares. Não havia ninguém no jardim. Podemos dizer o que quisermos. — O que parece estar se tomando um hábito entre vocês — comentou Webb. — Ouviu o embaixador — murmurou o subsecretário, evitando o olhar de David. — Não tínhamos alternativa. — Seja justo consigo mesmo, Edward. — Havilland outra vez olhava para David, enquanto falava com o subsecretário. — Eu achava que não havia alternativa. Você protestou vigorosamente. — Eu estava enganado — respondeu McAllister firmemente, fazendo com que os olhos do embaixador se virassem bruscamente para o seu rosto. — Mas isso é irrelevante. Precisamos decidir agora o que vamos dizer. O consulado está sendo assediado pela imprensa... — O consulado? — interveio Conklin. — Mas que casa segura vocês arrumaram! — Não havia tempo para alugar um lugar indiretamente — explicou o embaixador. — Tudo foi mantido na maior discrição possível e preparamos uma história plausível. Até agora, pelo que sabemos, não houve perguntas, mas o relatório da polícia teve de indicar o proprietário e o locatário. Como Garden Road vai cuidar do problema, Edward? — A situação não foi esclarecida. Esperam por nós, mas não podem protelar por muito mais tempo. É melhor prepararmos alguma explicação do que deixarmos as circunstâncias apenas sob especulações. — Infinitamente melhor — concordou Havilland, — Desconfio que isso significa que você tem alguma idéia. — É improvisada, mas pode servir, se ouvi corretamente o Sr. Web — Sobre o quê? — Usou a palavra “comando” e presumo que não foi apenas um artifício de retórica, O assassino era um comando? — Um ex-comando Um oficial e problema mental. Um homicida, para ser mais preciso. — Descobriu sua identidade? David fitou firmemente o analista, recordando as palavras de Allcott-Price, com um senso extremado de triunfo doentio... Se eu perder e a história for divulgada, quantos anti-sociais praticantes poderão se sentir animados pelos fatos? Quantos outros homens “diferentes” existem por aí e ficariam felizes em tomar o meu lugar, como eu tomei o seu? Este mundo nojento está fervilhando de Jason Bournes. Dê a eles uma orientação, uma idéia, e todos vão se apresentar, entrar em ação... — Jamais descobri quem ele era — respondeu Webb.
— Mas, apesar disso, sabia que ele era um comando. — Sim. — Não um Ranger, um Boina Verde ou um homem das Forças Especiais... — Não. — Sendo assim, presumo que está querendo dizer que ele era britânico. — Exatamente. — Nesse caso, vamos apresentar uma história que nega implicitamente esses detalhes específicos. Não é um inglês, não tem antecedentes militares... tudo na direção oposta. — Americano e branco — murmurou Conklin, com evidente respeito, olhando para o subsecretário de Estado. — Basta lhe dar um nome e uma história de um arquivo morto. De preferência alguém da pior escória, um psicopata numa crise tão violenta que queria pegar alguém aqui em cima. — Mais ou menos isso, mas talvez não inteiramente. — McAllister mudou de posição na cadeira, contrafeito, como se não gostasse de discordar do experiente homem da CIA. Ou por algum outro motivo. — Americano e branco, sim. Também um homem com uma compulsão tão obsessiva que foi levado a uma carnificina, sua fúria dirigida contra um alvo... como vocês dizem... aqui. — Quem? — perguntou David. — Eu — respondeu McAllister, os olhos fixados nos de Webb. — O que significa eu — disse David. — Sou esse homem, esse obcecado. — Seu nome não seria usado —continuou o subsecretário, calmamente, com frieza. — Podemos inventar um expatriado americano que há vários anos foi caçado pelas autoridades em todo o Extremo Oriente por crimes que variavam de assassinatos múltiplos a contrabando de narcóticos. Diremos que cooperei com a polícia em Hong Kong, Macau, Cingapura, Japão, Malásia, Sumatra e Filipinas. Graças a meus esforços, suas operações foram efetivamente obstruídas e ele perdeu milhões. Descobriu que eu voltara e estava aqui, em Victoria Peak. E veio à minha procura, o homem que o arruinara. McAllister fez uma pausa, virando-se para David. — Como passei alguns anos em Hong Kong, não posso imaginar que Pequim me ignore. Tenho certeza de que existe um dossiê extenso sobre um analista que adquiriu diversos inimigos durante sua permanência aqui. E fiz mesmo inimigos, Sr. Webb. Era meu trabalho. Estávamos tentando aumentar nossa influência nesta parte do mundo. Sempre que havia americanos envolvidos em atividades criminosas, eu fazia o melhor possível para ajudar as autoridades a capturá-los ou pelo menos forçá-los a deixar a Ásia. Era a melhor maneira de demonstrar nossas boas intenções, caçando os nossos próprios
cidadãos. E foi também o motivo pelo qual o Departamento de Estado me chamou para Washington. Usando o meu nome, oferecemos alguma autenticidade a Sheng Chou Yang. É que nos conhecemos. Ele vai especular sobre uma dúzia de possibilidades... só espero que nenhuma sequer remotamente relacionada com um comando britânico. Apenas a especulação certa. Conklin interveio, suavemente: — A especulação certa sendo a de que ninguém por aqui ouviu falar do primeiro Jason Bourne há mais de dois anos. — Exatamente. — Então eu sou o cadáver que está sob custódia, além dos olhares curiosos — murmurou Webb. — Pode ser — confirmou McAllister, — Afinal, não temos a menor idéia do que Sheng sabe até que ponto foi sua infiltração. A única coisa que queremos estabelecer é que o homem morto não era o seu assassino. — Deixando o caminho aberto para outro impostor se apresentar e liquidar Sheng — acrescentou Conklin, respeitosamente. — É um analista e tanto. Um filho da puta, mas um tremendo analista. — Está se expondo muito, Edward — disse Havilland, olhando para o subsecretário. — Nunca lhe pedi isso. Você tem mesmo inimigos. — Quero que seja assim, Sr. Embaixador. Sou empregado para oferecer os melhores julgamentos de que sou capaz, e na minha opinião esse é o curso mais produtivo. Tem de haver uma cortina de fumaça convincente. Meu nome pode proporcioná-la... para Sheng. O resto pode ser vazado numa linguagem ambígua, que será compreendida por todos os que queremos atingir. — Que assim seja — disse Webb, fechando os olhos subitamente, ouvindo as palavras que Jason Bourne pronunciara com tanta freqüência. — David... Marie pôs a mão em seu rosto. — Desculpe. Webb pegou a pasta de arquivo à sua frente e abriu-a. Na primeira página havia uma fotografia, com um nome impresso por baixo. Estava identificada como o rosto de Sheng Chou Yang, mas era muito mais do que isso. Era o rosto! Era o rosto do carniceiro! O homem que retalhava homens e mulheres com sua espada cerimonial cravejada de pedras preciosas, que forçava homens a lutarem com facas afiadas como navalhas, até que um matava o outro, que acabava com a vida de um bravo e torturado Eco com um golpe na cabeça. Bourne parou de respirar, enfurecido pela crueldade inconcebível, enquanto imagens sangrentas afloravam-lhe à mente. Olhando para a fotografia, a visão de Eco sacrificando a própria vida para salvar Delta levou-o de volta à clareira na floresta. Delta sabia
que fora a morte de Eco que tornara possível a captura do assassino. Eco morrera em desafio, aceitando a execução insuportavelmente dolorosa para que um companheiro da Medusa não apenas pudesse escapar, mas também para que obedecesse ao gesto final de que o louco com a espada devia ser morto. — Este é o filho de seu taipan desconhecido? — murmurou Jason Bourne. — É, sim — respondeu Havilland. — O reverenciado príncipe dos filósofos? O santo chinês que ninguém pode denunciar? — Exatamente. — Pois você estava enganado. Ele se mostrou. Oh, Deus, e como se mostrou! Aturdido, o embaixador inclinou-se para a frente. — Tem certeza? — Absoluta. — As circunstâncias devem ter sido extraordinárias — comentou McAllister, também atônito. — E certamente confirma que o impostor nunca teria escapado vivo de lá. Ainda assim, as circunstâncias deviam ser excepcionais para ele. — Levando-se em consideração que ninguém fora da China jamais teve conhecimento, foram, sim, O túmulo de Mao transformou-se numa galeria de tiro ao alvo. Era parte de uma armadilha e eles perderam. Eco perdeu. — Quem? — perguntou Marie, ainda segurando a mão de David. — Um amigo. — O túmulo de Mao? — repetiu Havilland. — Isso é extraordinário — Não é, não — disse Bourne. — Uma idéia brilhante. O último lugar na China em que um alvo esperaria um ataque. Ele entra pensando que é o caçador, atrás de sua presa, esperando pegá-la lá fora, no outro lado. A claridade é mínima, ele está com a guarda relaxada. E de repente descobre que ele é a presa, caçado, isolado, pronto para ser liquidado. Muito inteligente — E muito perigoso para os caçadores — comentou o embaixador. — Para os homens de Sheng. Um passo em falso e eles poderiam ser capturados. Um absurdo! — Não havia possibilidade de qualquer passo em falso. Eles teriam matado os seus, se eu não o fizesse antes. Compreendo isso agora. Quando tudo perdeu o fio, eles simplesmente desapareceram. Levando Eco. — Vamos voltar a Sheng, por favor, Sr. Webb. — Era evidente que Havilland estava obcecado, com uma expressão suplicante. — Conte-nos o que viu, tudo o que sabe.
— Ele é um monstro — respondeu Jason, suavemente, os olhos vidrados, olhando fixamente para a fotografia. — Vem do inferno, um Savonarola que tortura e mata... homens, mulheres, crianças... com um sorriso. Faz sermões como um profeta falando a crianças, mas por baixo é um maníaco que domina a sua quadrilha de desajustados pelo terror. As tropas de choque que mencionou não são formadas por soldados, mas carniceiros sádicos que aprenderam seu ofício com um mestre. Ele é Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen, tudo junto. Deus nos guarde se ele controlar alguma coisa por aqui. — O que pode acontecer, Sr. Webb — disse Havilland, os olhos assustados em Jason Bourne. — E vai acontecer. Acaba de descrever um Sheng Chou Yang que o mundo nunca viu... e neste momento ele é o homem mais poderoso da China. Assim como Adolf Hitler marchou vitorioso para o Reichstag, Sheng vai marchar para o Comitê Central, transformando-o num fantoche. O que nos disse é mais catastrófico do que qualquer coisa que imaginávamos... China contra China... e o que vai se seguir será o Armagedon. Oh, meu Deus! — Ele é um animal — sussurrou Jason, a voz rouca. — Tem de matar como um predador, mas sua única fome é por matar... não pelo alimento, mas pelo puro e simples prazer de matar. — Está falando em generalidades. — A interrupção de McAllister foi fria, mas veemente. — Precisamos saber mais... eu preciso saber mais! — Ele convocou uma reunião. — Bourne falava como se estivesse num sonho, a cabeça flutuando, os olhos outra vez fixados na fotografia. — Era o começo... das noites da grande lâmina, como ele disse. E declarou que havia um traidor. A reunião foi algo que somente um louco poderia criar, tochas por toda parte, no meio de uma floresta, a cerca de uma hora de Pequim, um santuário de pássaros... podem acreditar numa coisa assim? Um santuário de pássaros! E ele fez realmente o que eu disse. Matou um homem suspenso por cordas, retalhando com a espada seu corpo a gritar e estrebuchar. Depois, quando uma mulher tentava alegar sua inocência, ele cortou-lhe a cabeça... a cabeça! Na frente de todo mundo! E depois dois irmãos... — Um traidor? — murmurou McAllister, sempre o analista. — Ele descobriu? Alguém confessou? Há alguma espécie de contra-rebelião? — Pare com isso! — gritou Marie. — Não, Sra. Webb! Ele está voltando. Está revivendo. Olhe para ele. Não percebe? Ele está lá! — Acho que nosso irritante colega tem razão, Marie — interveio Panov, a voz suave, observando Webb. — Ele está entrando e saindo, tentando encontrar a sua realidade. Não tem problema. Deixe-o ir. Pode nos poupar muito tempo. — Merda! — Como sempre um comentário acurado, minha cara, e como sempre discutível. E agora fique calada.
— ... Não havia nenhum traidor, ninguém que tivesse falado, apenas a mulher com dúvidas. Ele a matou e houve silêncio, um silêncio terrível. Ele estava advertindo a todos, dizendo a todos que eles, a verdadeira China, estavam por toda parte e ao mesmo tempo eram invisíveis. Nos ministérios, na polícia de segurança, em toda parte... E depois ele matou Eco... mas Eco sabia que tinha de morrer. Queria morrer depressa, porque de qualquer forma não poderia viver por muito mais tempo. Depois que o torturaram, ele se encontrava num estado lamentável. Ainda assim, se podia me proporcionar algum tempo... — Quem é Eco, David? — perguntou Morris Panov. — Diga-nos, por favor. — Alfa, Bravo, Charlie, Delta, Eco... Foxtrote... — Medusa — murmurou o psiquiatra. — Medusa, não é mesmo? Eco estava em Medusa. — Ele estava em Paris, O Louvre. Tentou salvar minha vida, mas eu é que salvei a sua. Não tinha problema, estava certo. Ele salvara a minha antes, há muitos anos. “O descanso é uma arma”, ele disse. Pôs os outros ao meu redor e me obrigou a dormir. E depois saímos da selva. — “O descanso é uma arma”... — repetiu Marie, num sussurro, os olhos fechados, apertando a mão do marido, as lágrimas escorrendo pelas faces. — Oh, Deus! — ... Eco me viu na floresta. Usamos os sinais que costumávamos usar há anos. Ele não tinha esquecido. Nenhum de nós jamais esquecera. — Estamos no campo, no santuário dos pássaros, David? — indagou Panov, segurando o ombro de McAllister para impedi-lo de se intrometer. — Isso mesmo — respondeu Jason Bourne, os olhos agora flutuando, desfocados. — Ambos sabemos. Ele vai morrer. Muito simples, muito claro. Morrer. Morte. Nada mais. Apenas ganhar tempo, minutos preciosos. Talvez então eu consiga. — Consiga o que... Delta? Panov pronunciou o nome com uma ênfase suave. — Acabar com o filho da puta. Liquidar o carniceiro. Ele não merece viver, não tem o direito de viver! Mata com muita facilidade... com um sorriso. Eco viu. Eu vi. Agora está acontecendo... tudo está acontecendo ao mesmo tempo. As explosões na floresta, todo mundo correndo, gritando. Posso fazer agora! E um extermínio simples... Ele me vê! Está olhando para mim! Sabe que sou seu inimigo! Eu sou seu inimigo, carniceiro! Sou a última cara que você vai ver!... O que está errado? Alguma coisa está errada! Ele está se protegendo! Está puxando alguém para a sua frente! Tenho de escapar! Não posso fazer! — Não pode ou não vai fazer? — indagou Panov, inclinando-se para a frente. — Você é Jason Bourne ou David Webb? Quem é você?
— Delta! — gritou a vítima, surpreendendo a todos em torno da mesa por sua explosão. — Eu sou Delta! Eu sou Bourne! Caim é por Delta e Carlos é por Caim! A vítima, quem quer que fosse, arriou na cadeira, a cabeça caída para o peito. E ficou em silêncio. Ninguém disse nada. Vários minutos transcorreram — ninguém sabia quantos, ninguém contou — até que o homem que era incapaz de definir uma identidade para si mesmo levantou a cabeça. Os olhos estavam agora meio livres, meio prisioneiros da agonia que experimentava. — Desculpem — murmurou David Webb. — Não sei o aconteceu. Desculpem. — Não precisa se desculpar, David —disse Panov — Você voltou. É compreensível. Está tudo bem. — Isso mesmo, eu voltei. Uma coisa de maluco, não é? — Absolutamente — protestou o psiquiatra. — É perfeitamente natural. — Tenho de voltar... o que também é compreensível, não é mesmo, Mo? — David! — gritou Marie, inclinando-se para ele. — Tenho de voltar — repetiu Jason Bourne, gentilmente, segurando seus pulsos. — Ninguém mais pode fazê-lo, é simples assim. Conheço os códigos. Conheço o caminho... Eco deu sua vida pela minha, acreditando que eu o faria, que mataria o carniceiro. Fracassei na ocasião. Não falharei agora. — E nós? — Marie agarrou-o, sua voz reverberando pelas paredes brancas. — Nós não temos importância? — Prometo que voltarei — murmurou David, afastando seus braços e fitando-a nos olhos. — Mas tenho de ir até lá. Será que não pode compreender? — Por estas pessoas? Estes mentirosos? — Não, não por eles. Por alguém que queria viver... acima de tudo. Você não o conheceu; ele era um sobrevivente. Mas soube quando sua vida não valia o preço da minha morte. Eu tinha de viver e fazer o que era necessário. Eu tinha de viver e voltar para você, ele sabia disso também. Enfrentou a equação e tomou sua decisão. Em algum momento, ao longo do caminho, todos nós temos de tomar essa decisão. — Bourne virou-se para McAllister e indagou: — Há alguém por aqui que possa tirar a fotografia de um cadáver? — Cadáver de quem? — perguntou o subsecretário de Estado — Meu — respondeu Jason Bourne.
Capítulo 34 A fotografia macabra foi batida na mesa de reunião branca por um técnico da casa segura, sob a relutante supervisão de Morris Panov. Um lençol branco ensangüentado cobria o corpo de Webb; estava dobrado na garganta, deixando à mostra um rosto manchado de sangue, os olhos arregalados, as feições nítidas. — Revele o filme o mais depressa que puder e traga-me os contatos — ordenou Conklin. — Vinte minutos — respondeu o técnico, encaminhando-se para a porta, no momento em que McAllister entrava na sala. — O que está acontecendo? — perguntou David, sentando na mesa. Marie, estremecendo, limpou o rosto do marido com uma toalha quente úmida. — O pessoal de imprensa do consulado entrou em contato com os meios de comunicação — respondeu o subsecretário. — Disseram que haveria uma declaração oficial dentro de uma hora, assim que todos os fatos estiverem definidos. Estão preparando tudo agora. Dei o roteiro, com a autorização para usar meu nome. Vão conferenciar com a embaixada e depois ler o texto para nós, antes de o distribuírem à imprensa. — Alguma notícia de Lin? —perguntou o homem da CIA. — Um recado do médico. Ele ainda se encontra em estado crítico, mas está resistindo. — O que vamos fazer com o pessoal da imprensa lá fora? — indagou Havilland. — Teremos de deixá-los entrar, mais cedo ou mais tarde. Quanto mais esperamos, mais eles pensarão que estamos encobrindo os fatos. Também não podemos permitir que isso aconteça. — Ainda temos alguma margem nessa área — informou McAllister. — Mandei avisar que a polícia... com grande risco pessoal... estava efetuando uma varredura no terreno à procura de explosivos não-detonados. Os repórteres podem se mostrar muito pacientes nessas circunstâncias. De passagem, no roteiro que dei ao nosso pessoal de imprensa, pedi que ressaltassem o fato de que o homem que atacou a casa era obviamente um perito em demolições. Jason Bourne, um dos mais eficientes peritos em demolições da Medusa, olhou para McAllister. O subsecretário desviou os olhos. — Tenho de sair daqui — disse Jason. — Tenho de ir para Macau o mais depressa possível. — David, pelo amor de Deus! Marie postou-se na frente do marido, fitando-o nos olhos, a voz baixa, mas veemente. — Eu gostaria que não fosse assim — disse Webb, saindo da mesa. — Eu gostaria que não
fosse, mas não há outro jeito. Preciso estar no lugar. Preciso iniciar a seqüência para fazer contato com Sheng antes de a história sair nos jornais da manhã, antes de aparecer a fotografia, confirmando a mensagem que vou enviar através de canais que ele está convencido de que ninguém mais conhece. Ele tem de acreditar que sou seu assassino, o homem que ele vai matar, e não o Jason Bourne da Medusa, que tentou matá-lo na floresta. Ele tem de receber uma notícia minha.., de quem ele pensa que eu sou... antes de receber qualquer outra informação. Porque a informação que vou lhe mandar é a última coisa que ele quer ouvir. Tudo o mais vai parecer insignificante. — A isca — disse Alex Conklin. — Despache a informação crítica primeiro e a cobertura se ajusta no lugar, porque ele está aturdido, preocupado, aceita a versão oficial impressa, em particular a fotografia nos jornais. — O que vai dizer a ele? — perguntou o embaixador, a voz deixando transparecer o fato de que detestava perder o controle da mais secreta de suas operações. — O que você me disse. Parte verdade, parte mentira. — Explique, Sr. Webb — pediu Havilland, firmemente. — Nós lhe devemos muito, mas... — Vocês me devem o que não podem pagar! — interrompeu-o Jason Bourne, bruscamente. — A menos que estoure seus miolos bem aqui, na minha frente! — Compreendo a sua ira, mas ainda assim devo insistir. Não fará coisa alguma que ponha em risco as vidas de cinco milhões de pessoas ou os interesses vitais do governo dos Estados Unidos. — Fico contente que tenha apresentado a seqüência certa... pelo menos por uma vez. Muito bem, Sr. Embaixador, eu lhe direi. É o que teria falado antes, se tivesse a decência... a decência... de me procurar e apresentar seus argumentos com honestidade. Estou surpreso de que isso nunca tenha lhe ocorrido.., não, não surpreso, chocado... mas acho que não deveria ficar. Acredita em suas manipulações refinadas, nos ornamentos de seu poder discreto... provavelmente pensa que merece tudo, por causa de sua grande inteligência ou algo parecido. Vocês todos são iguais. Saboreiam a complexidade... e suas explicações para ela... e por isso não conseguem perceber quando o caminho simples é muito mais eficaz. — Estou esperando para ser devidamente informado — disse Havilland, friamente. — Que assim seja — respondeu Bourne. — Escutei com toda atenção a sua laboriosa explicação. Esmerou-se em explicar por que ninguém podia abordar Sheng oficialmente e dizer o que sabe. Estava certo. Ele riria em sua cara, cuspiria em seu olho ou o mandaria à merda... o que preferir. Pode estar certo de que Sheng faria isso. Tem força suficiente para tanto. Se insistisse nas acusações “insultuosas”, ele tiraria Pequim dos Acordos de Hong Kong. Você perde. Tente passar por cima de sua cabeça e boa sorte. Perde também. Não tem provas, a não ser as palavras de mortos, homens que tiveram suas gargantas cortadas, membros do Kuomintang que diriam qualquer coisa para desacreditar as autoridades do partido na República Popular. Ele sorri e, sem dizê-lo expressamente, dá a entender que é melhor aceitá-lo. Você calcula que não pode concordar, porque os riscos são grandes demais... se a bomba explodir em cima de Sheng, o Extremo Oriente pega fogo. Estava certo nisso também... mais
pelos motivos que “Edward” nos apresentou. Pequim pode ignorar uma comissão corrupta, como uma dessas concessões temporárias à ganância, mas não permitiria que uma Máfia chinesa se infiltrasse em sua indústria, força de trabalho ou governo. Como “Edward” disse, eles podem perder seus cargos... — Ainda estou esperando, Sr. Webb. — Muito bem. Você me recrutou, mas esqueceu a lição de Casa de Pedra Setenta-e-Um. Mande um assassino para pegar um assassino. — Eis uma coisa que não esquecemos — interveio o embaixador, agora aturdido. — Baseamos tudo nisso. — Pelos motivos errados — disse Bourne, asperamente. — Havia uma maneira melhor de alcançar Sheng e atraí-lo para a morte. Eu não era necessário. Minha esposa não era necessária. Mas você não podia perceber isso. Seu cérebro superior tinha de complicar tudo. — O que eu não pude perceber, Sr. Webb? — Que podia mandar um conspirador para pegar um conspirador. Extra-oficialmente... E tarde demais para isso agora, mas era o que eu teria lhe dito. — Não tenho certeza se me diria alguma coisa. — Parte verdade, parte mentira... a sua estratégia. Um mensageiro é enviado a Sheng, de preferência um velho meio senil, que foi pago por um intermediário cego e recebeu as instruções pelo telefone. Sem qualquer possibilidade de se descobrir a fonte. Leva uma mensagem verbal, somente para os ouvidos, somente para Sheng, nada no papel. A mensagem contém o suficiente de verdade para paralisar Sheng. Digamos que o remetente é alguém de Hong Kong que poderia perder milhões se o plano de Sheng fracassar, um homem bastante esperto e assustado para não usar seu nome. A mensagem pode aludir a vazamentos, traidores nas salas de reuniões ou tríades excluídas se reunindo porque foram cortadas do esquema... todas as coisas que têm certeza que aconteceriam. A verdade. Sheng tem de aceitar, não pode deixar de fazê-lo. Os contatos são feitos e um encontro marcado. O conspirador de Hong Kong está tão ansioso em se proteger quanto Sheng, igualmente desconfiado, exigindo um ponto de encontro neutro. Acerta-se tudo. É a armadilha. Bourne fez uma pausa, olhando para McAllister, antes de acrescentar: — Até mesmo um perito em demolições de terceira classe poderia mostrar como se faz. — Muito rápido e muito profissional — comentou o embaixador. — E com uma falha gritante. Onde encontramos um conspirador assim em Hong Kong? Jason Bourne contemplou o estadista mais velho, sua expressão beirando o desprezo. — Vocês o inventam —respondeu ele. — Esta é a mentira. Havilland e Alex Conklin estavam a sós na sala de paredes brancas, nas extremidades da mesa
de reuniões, fitando-se. McAllister e Morris Panov haviam ido ao gabinete do subsecretário, a fim de escutarem em telefones separados o perfil inventado de um assassino americano, criado pelo consulado para oferecer à imprensa. Panov concordara em fornecer a terminologia psiquiátrica apropriada, com os tons corretos de Washington. David Webb pedira para ficar a sós com a esposa até chegar o momento da partida. Estavam lá em cima, e o fato de se encontrarem num quarto não ocorrera a ninguém. Era apenas uma porta para um cômodo vazio, no lado sul da velha mansão vitoriana, longe dos homens encharcados e das ruínas no lado norte. McAllister calculara que a partida de Webb ocorreria dentro de quinze minutos, aproximadamente. Um carro levaria Jason Bourne e o subsecretário de Estado ao Aeroporto de Kai-tak. Para maior rapidez e porque os aerobarcos paravam de funcionar à nove horas da noite, um helicóptero médico os levaria a Macau, onde todas as rotinas burocráticas de entrada seriam suspensas para possibilitar a entrega de suprimentos de emergência ao Hospital Kiang Wu, na Rua Coelho do Amaral. — Não teria dado certo, e você sabe disso — comentou Havilland, olhando para Conklin. — O que não daria certo? —indagou o homem de Langley, seus pensamentos interrompidos pela declaração do embaixador. — O que David lhe disse? — Sheng jamais concordaria em se encontrar com alguém que não conhecia, com alguém que não se identificou. — Dependeria da maneira como a situação fosse apresentada. Esse tipo de coisa está sempre acontecendo. Se a informação crítica é espetacular e o fatos autênticos, o alvo não tem muita opção. Não pode interrogar o mensageiro... que não sabe de nada... e por isso tem de sair à procura da fonte. Como Webb ressaltou, ele não pode deixar de fazê-lo. — Webb? — repetiu o embaixador, a voz incisiva, arqueando as sobrancelhas. — Bourne, Delta. Quem pode saber? A estratégia é boa. — Há muitas possibilidades de erros de cálculos, muitas chances para um passo em falso, quando se inventa um personagem mítico. — Diga isso a Jason Bourne. — Circunstâncias diferentes. Casa de Pedra tinha um agente provocador disposto a sair à procura do Chacal. Um homem obcecado, que escolhia riscos extremos porque estava treinado para isso e vivera com a violência por tempo demais para mudar. E não queria mudar. Não havia qualquer outro lugar para ele. — A questão é acadêmica, mas não creio que você esteja em condições de argumentar com ele — disse Conklin. — Despachou-o com todas as chances contrárias e ele volta com o assassino a reboque... e encontra você. Se ele dissesse que poderia ser feito de outra maneira, provavelmente estaria certo e você não poderia contestar. — Mas posso dizer que deu certo o que fizemos — respondeu Havilland, repousando os antebraços na mesa e fitando nos olhos o homem da CIA. — Perdemos o assassino, mas ganhamos um
provocateur disposto, até mesmo obcecado. Desde o início ele era a escolha ideal, mas nunca pensamos, por um minuto sequer, que pudesse ser recrutado para realizar voluntariamente o trabalho final. Agora, não permitirá que qualquer outro o faça. Vai voltar, reivindicando o seu direito de cumprir a missão. Portanto, no final das contas, nós estávamos certos... eu estava certo. A partir do momento em que se põe as forças em movimento, num curso de colisão, sempre vigilante, pronto para abortar, para matar, se necessário, mas sabendo que à medida que as complicações aumentam e eles se encontram mais próximos de cortar a garganta um do outro, mais iminente é a solução. Em última análise... com seus ódios, suspeitas e paixões, eles criam sua própria violência e o trabalho é realizado. Você pode perder sua própria gente, mas tem de avaliar essa perda em relação ao que vale romper o inimigo, desmascarálo. — Também se arrisca a desmascarar sua própria mão... a mão que insistia em manter escondida. — Como assim? — Porque ainda não é o fim. Vamos supor que Webb não consiga fazer. Vamos supor que ele seja apanhado... e pode apostar seu rabo elegante que a ordem será para capturá-lo vivo. Quando um homem como Sheng descobre uma armadilha para matá-lo, vai querer saber quem está por trás. Se arrancar uma unha ou dez não resolve o problema... e provavelmente não vai... eles vão enchê-lo de agentes químicos e descobrir de onde ele vem. E Webb ouviu tudo o que você disse... — Até mesmo a advertência de que o governo dos Estados Unidos não pode ser envolvido — interrompeu o embaixador. — Isso mesmo. Ele não poderá se controlar. Os agentes químicos vão lhe arrancar todas as informações. Sua mão será revelada. E Washington estará envolvida. — Por quem? — Por Webb, pelo amor de Deus! Por Jason Bourne, se preferir assim! — Por um homem com uma história de doença mental, com uma ficha de agressão indiscriminada e auto-ilusão? Um esquizofrênico paranóico, cujos telefonemas registrados mostram um homem se desintegrando na demência, formulando acusações absurdas, ameaças desvairadas aos que tentavam ajudá-lo? — Havilland fez uma pausa e depois acrescentou, a voz mais suave: — Ora, Sr. Conklin, um homem assim não fala pelo governo dos Estados Unidos. Como poderia? Nós o temos procurado por toda parte. É uma bomba-relógio irracional e fantasiosa, que descobre conspirações sempre que é envolvido por sua mente doentia e torturada. Nós o queremos de volta na terapia. Também desconfiamos que ele, por causa de suas atividades passadas, deixou o país com um passaporte ilegal... — Terapia...? — interrompeu Alex, atordoado com as palavras do velho. — Atividades passadas? — Isso mesmo, Sr. Conklin. Se for necessário, especialmente por uma linha quente... e Sheng é uma linha quente... estamos dispostos a admitir que ele trabalhou outrora para o governo e foi gravemente afetado por esse trabalho. Mas não há a menor possibilidade de que pudesse ter uma posição oficial. Repetindo, como ele poderia? Esse homem trágico e violento pode ter sido responsável
pela morte de uma esposa, que ele alega ter desaparecido. — Marie? Vocês usariam Marie? — Teríamos de usar. Ela está nos registros, nos depoimentos oficiais de homens que conheceram Webb como um paciente mental, que tentaram ajudá-lo. — Essa não! — murmurou Alex, hipnotizado pelo frio e preciso estadista das operações secretas. — Disse tudo a ele porque tinha os seus pontos de apoio. Mesmo que ele fosse capturado, poderia se defender com os registros oficiais, avaliação psiquiátrica... poderia se dissociar por completo! Mas que filho da puta! — Eu disse a verdade porque ele saberia se tentasse mentir de novo. McAllister, é claro, foi mais longe, enfatizando o fator do crime organizado, que é verdadeiro, mas também uma questão delicada, que eu preferia não abordar. Ninguém está interessado nisso. Mas também, diga-se de passagem, não contei tudo a Edward. Ele ainda não colocou uma distância suficiente entre sua ética e as exigências do trabalho. Quando isso acontecer, ele pode se juntar a mim nas alturas... mas não creio que seja capaz. — Contou tudo a David para o caso de ele ser capturado — continuou Conklin, sem escutar as palavras de Havilland. — Se a execução não ocorrer, você quer que ele seja capturado. Está contando com as anfetaminas e a escopolamina. As drogas! Sheng receberá então a mensagem de que estamos a par de sua conspiração, extra-oficialmente... não de nós, mas de um caso mental não-sancionado! Oh, Deus! É uma variação do que Webb lhe disse! — Extra-oficialmente — concordou o embaixador. — Muita coisa se realiza assim. Sem confrontações, tudo suavemente. E muito barato. Um custo mínimo. — Que é a vida de um homem! — gritou Alex. — Ele será morto! Tem de ser morto, do ponto de vista de todos! — O preço, Sr. Conklin, se for preciso pagá-lo. Alex esperou, como se aguardasse que Havilland concluísse a declaração. Mas nada mais viria, a não ser os olhos fortes e tristes fixos nos seus. — Isso é tudo o que tem a dizer? É o preço... se for preciso pagá-lo? — As apostas são mais altas do que imaginávamos... muito mais altas. Sabe disso tão bem quanto eu; portanto, não faça essa cara de espanto. — O embaixador recostou-se na cadeira, um tanto rígido. — Você já tomou decisões assim antes, já fez esses cálculos. — Não assim. Nunca assim. Manda um dos seus e conhece os riscos, mas não manda um agente e fecha todos os seus caminhos para escapar. Ele estava melhor quando acreditava que trazia o assassino para ter a esposa de volta. — O objetivo é diferente. Infinitamente mais vital.
— Sei disso. Nesse caso, não o mande! Tem os códigos e pode mandar outro! Alguém que não esteja meio morto de exaustão! — Exausto ou não, ele é o melhor homem para a missão e insiste em realizá-la. — Porque não sabe o que você fez! Como o acuou, convertendo-o no mensageiro que tem de ser morto! — Eu não tinha opção. Como você disse, ele me descobriu. E eu tinha de contar a verdade. — Pois então, repito, mande outro! Uma equipe de execução, recrutada lá fora por um intermediário cego, sem qualquer ligação conosco, apenas o pagamento por um trabalho profissional, tendo Sheng como alvo. Webb sabe como fazer contato com Sheng e lhe disse isso. Eu o convencerei a fornecer os códigos, a seqüência ou o que quer que seja. Depois, você contrata uma equipe profissional. — Quer nos pôr no mesmo nível dos Kadhafis deste mundo? — É um comentário tão pueril que não posso encontrar palavras para... — Esqueça — interrompeu Havilland. — Se algum dia fosse descoberto... e é bem possível que isso aconteça... teríamos de atacar a China, antes que largassem alguma coisa em cima da gente. É inadmissível. — O que você está fazendo aqui é que é inadmissível! — Há prioridades mais importantes do que a sobrevivência de um único indivíduo, Sr. Conklin... e sabe disso tão bem quanto eu. Tem sido o trabalho de sua vida... se me perdoa dizer isso... mas o caso atual se situa num nível mais alto do que qualquer coisa que já fez antes. Digamos que é um nível geopolítico. — Filho da putal — Seu sentimento de culpa está aparecendo agora, Alex... se me permite chamá-lo de Alex... ao invocar minha ancestral imediata. Eu nunca dei a ordem de além-da-salvação para Jason Bourne. Minha esperança mais fervorosa é a de que ele consiga, que a execução ocorra. Se isso acontecer, ele está livre. O Extremo Oriente se livra de um monstro e o mundo será poupado de um Sarajevo oriental. Esse é o meu trabalho, Alex. — Pelo menos diga a ele! Avise-o! — Não posso. Assim como você também não poderia, se estivesse na minha posição. Não se diz a um tueur à gages... — Vai começar de novo? — Um homem enviado para matar deve ter a confiança de suas convicções. Não pode refletir, por um segundo sequer, sobre os seus motivos ou razões. Não deve ter absolutamente qualquer dúvida.
A obsessão deve ficar intacta. É a única possibilidade de alcançar o sucesso. — E se ele não conseguir? E se ele for morto? — Então começamos de novo, o mais depressa possível, arrumando alguém para substituí-lo. McAllister estará com ele em Macau e descobrirá os códigos para fazer contato com Sheng. Bourne concordou com isso. Se o pior acontecer, podemos até experimentar a sua teoria de conspirador-paraconspirador. Ele diz que é tarde demais para isso, mas pode estar enganado. Como vê, Alex, não sou um homem que se recusa a aprender. — Você não se recusa a nada — murmurou Conklin, furioso, levantando-se. — Mas esqueceu uma coisa... esqueceu o que disse a David. Há uma falha gritante. — E qual é? — Não vou deixar que você escape impune. — Alex claudicou até a porta. — Pode pedir muita coisa a um homem, mas chega num ponto em que não dá mais. Está perdido, seu filho da puta. Webb será informado da verdade. De toda a verdade. Conklin abriu a porta. Deparou com as costas de um fuzileiro alto, que ao ouvir o barulho da porta efetuou uma meia- volta impecável, empunhando o rifle. — Saia da minha frente, soldado — disse Alex. — Lamento, senhor, mas não posso — respondeu o fuzilei ro, olhando fixamente para a frente. Conklin tornou a se virar para o embaixador, que continuava sentado atrás da mesa. Havilland deu de ombros e murmurou: — São as ordens. — Pensei que esses homens tinham saído daqui. Pensei que estivessem isolados no aeroporto. — E é o que acontece com os que você viu. Temos agora um pelotão do contingente do consulado. Downing Street forçou alguns regulamentos e agora esta casa é oficialmente território dos Estados Unidos. Temos direito a uma presença militar. — Quero falar com Webb! — Não pode. Ele está de partida. — Quem você pensa que é? — Meu nome é Raymond Oliver Havilland. Sou embaixador-itinerante do governo dos Estados Unidos da América. Minhas decisões devem ser cumpridas sem discussão em períodos de crise. E este é um período de crise, Vá se foder, Alex.
Conklin fechou a porta e voltou claudicando para sua cadeira. — O que vai acontecer em seguida, Sr. Embaixador? Nós três recebemos balas na cabeça ou somos submetidos a lobotomias? — Temos certeza de que todos poderemos chegar a um acordo. Os dois se abraçaram, Marie sabendo que ele estava ali apenas parcialmente que era ele próprio apenas parcialmente. Era Paris novamente, quando ela conhecia um homem desesperado chamado Jason Bourne, que estava tentando permanecer vivo, mas não tinha certeza se conseguiria ou mesmo se deveria, suas dúvidas sob alguns aspectos tão letais para ele quanto os que queriam matá-lo. Mas não era Paris. Não havia dúvidas agora, não havia táticas febrilmente improvisadas para escapar aos perseguidores, não havia corrida para acuar os caçadores. O que a lembrava de Paris era a distância que sentia entre os dois. David tentava alcançá-la — o generoso David, o compadecido David — mas Jason Bourne não permitia. Jason era agora caçador, não o caçado, o que fortalecia sua vontade. O que se resumia numa palavra que ele usava com regularidade: Ande! — Por que, David? Por quê? — Já lhe disse. Porque eu posso. E porque preciso. Porque deve ser feito. — Isso não é resposta, querido. — Está bem. — Gentilmente, Webb desvencilhou-se da esposa e segurou-a pelos ombros, fitando-a nos olhos. — Por nós, então. — Por nós? — Isso mesmo. Eu veria aquelas imagens pelo resto de minha vida. Não deixariam de voltar e me destruiriam, porque saberia o que deixei para trás e não poderia me controlar. Entraria em parafuso e levaria você comigo, porque não tem o bom senso de cair fora, apesar de toda a sua inteligência. — Prefiro entrar em parafuso com você do que em você. O que significa que prefiro você vivo. — Isso não é um argumento. — Acho que é considerável. — Vou provocar os atos, e não fazê-los. — E o que significa isso? — Significa que quero que Sheng seja eliminado. Ele não merece viver, mas não serei eu quem vai... — O papel de Deus não se ajusta a você! — interrompeu Marie, bruscamente. — Deixe que outros tomem essa decisão. Largue tudo. Permaneça são e
salvo. — Você não está me escutando. Estive lá e o vi... e ouvi. Ele não merece mesmo viver. Em uma de suas diatribes, ele disse que a vida era uma dádiva preciosa. É algo discutível, dependendo da vida... só que a vida nada significa para ele. Sheng quer matar... talvez tenha de matar, não sei, pergunte a Panov... está em seu olhos. Ele é Hitler, Mengele e Gêngis Khan... é o estripador... qualquer coisa... mas tem de ser liquidado. E eu preciso providenciar para que isso aconteça. — Mas por quê? —suplicou Marie. —Ainda não me respondeu! — Respondi sim, mas você não me ouviu. De um jeito ou de outro, eu o veria todos os dias, ouviria sua voz. Estaria contemplando Sheng a brincar com aquelas pessoas apavoradas, antes de matálas... antes de retalhá-las. Tente compreender. Eu tentei e não sou um perito, mas aprendi algumas coisas a respeito de mim mesmo. Só um idiota não o faria. São as imagens, Marie, as cenas terríveis que insistem em voltar, abrindo portas... lembranças que não quero conhecer, mas não posso ignorar. O meio mais objetivo e simples de poder agüentar é não assumir mais nada. Não posso aumentar a coleção de surpresas horríveis. Quero melhorar... não ficar inteiramente curado, posso aceitar isso, conviver com isso... mas não posso também ter uma recaída. E não terei uma recaída. Para o bem de nós dois. — E acha que vai se livrar dessas imagens ao arquitetar a morte de um homem? — Tenho certeza de que ajudará. Tudo é relativo, e eu não estaria aqui se Eco não sacrificasse sua vida por mim. Nem sempre é de bom-tom dizer isso, mas tenho uma consciência, como a maioria das pessoas. Ou talvez seja um sentimento de culpa por ter sobrevivido. Mas tenho de fazê-lo, porque eu posso. — Já se convenceu? — Já, sim. Sou o que tem melhores condições. — E diz que vai provocar os atos, e não fazê-los? — Eu não poderia colocar a situação de outra maneira. Estou voltando porque quero ter uma vida longa com você. — Qual é a minha garantia? E quem vai executar os atos? — O prostituto que nos meteu nisso. — Havilland? — Não. Ele é o cafetão. McAllister é o prostituto, sempre foi. O homem que acredita na decência, que a exibe até que os poderosos lhe pedem para esquecê-la. Provavelmente ele vai chamar o cafetão. Não tem problema. Entre os dois, podem resolver o problema. — Mas como?
— Há homens... e mulheres... que matam se o preço é bastante alto. Podem não ter os egos do mítico Jason Bourne ou do muito real Carlos, o Chacal, mas se encontram por toda parte deste sórdido mundo das sombras. Edward, o prostituto, disse-nos que fez inimigos por todo o Extremo Oriente, de Hong Kong às Filipinas, de Cingapura a Tóquio, sempre em nome de Washington, que queria influência aqui. Se você faz inimigos, sabe quem são eles, conhece os sinais que deve transmitir para alcançá-los. Prepararei a execução, mas outra pessoa terá de consumá-la, e não me importa quantos milhões isso vai lhes custar. Ficarei assistindo a distância, para ter certeza de que o carniceiro será liquidado, de que Eco será vingado, de que o Extremo Oriente se livrará de um monstro que pode mergulhá-lo numa guerra terrível... mas isso é tudo o que farei. Assistir. McAllister não sabe disso, mas vai comigo. — Quem está falando agora? — indagou Marie. — David ou Jason? O marido fez uma pausa, os pensamentos silenciosos bem profundos, antes de afinal dizer: — Bourne... tem de ser Bourne até eu voltar. — Tem certeza? — Estou conformado. Não tenho alternativa. Houve uma batida suave e rápida na porta do quarto. — Sr. Webb, sou eu, McAllister. Está na hora de partir.
Capítulo 35 O helicóptero do Serviço Médico de Emergência atravessou ruidosamente Victoria Harbor e passou pelas ilhas exteriores, na direção de Macau. As lanchas de patrulha da República Popular haviam sido informadas pela base naval em Gongbei; não haveria disparos contra um helicóptero voando em baixa altitude, numa missão de misericórdia. Como a sorte de McAllister persistia, uma autoridade visitante de Pequim fora internada no Hospital Kiang Wu, com uma úlcera duodenal perfurada. Precisava de sangue RH negativo, de que sempre havia escassez. Deixem-nos vir, deixem-nos passar. Se em vez de uma autoridade fosse um camponês das colinas de Zhuhai, ele rece beria o sangue de um bode e teria de torcer pelo melhor. Bourne e o subsecretário de Estado usavam os macacões brancos e os quepes do Corpo Médico Real, sem uma patente de importância indicada em suas mangas; eram apenas subordinados contrariados que tinham recebido a ordem de levar sangue para um Zhongguo ren, de um regime que se encontrava no processo de desmantelar ainda mais o Império. Tudo estava sendo feito de maneira apropriada, com toda eficiência, no novo espírito de cooperação entre a colônia e seus iminentes novos donos. Deixem-nos vir, deixem-nos passar. Tudo está a uma enorme distância e não tem a menor importância para nós. Não vamos nos beneficiar. Nunca nos beneficiamos. Não deles, não dos que estão por cima. O estacionamento nos fundos do hospital fora esvaziado. Quatro refletores iluminavam o limiar, O piloto posicionou o aparelho na vertical e depois começou a descer para a área de pouso de concreto. A visão dos refletores e o rugido do helicóptero atraíram a atenção da multidão que se encontrava além dos portões do hospital, na Rua Coelho do Amaral. Isso era ótimo, refletiu Bourne, olhando pela porta aberta do apare lho. Esperava que mais espectadores fossem atraídos para a partida do helicóptero, dentro de cinco minutos, pois as pás continuariam a girar em baixa velocidade, os refletores ficariam acesos e o cordão de isolamento da polícia permaneceria no lugar, tudo sinais de uma atividade excepcional. A multidão era a melhor coisa que ele e McAllister podiam esperar; na confusão, não seria difícil se misturarem com os espectadores curiosos, enquanto dois outros homens em macacões brancos dos paramédicos reais tomavam seus lugares, correndo para o aparelho, os corpos inclinados, a fim de realizar a viagem de volta a Hong Kong. Apesar de relutante, Jason não podia deixar de admirar a capacidade de McAllister de mexer em suas peças de xadrez. O analista tinha as convicções de sua conivência. Sabia que botões apertar para deslocar seus peões. Na atual crise, o peão era um médico no Hospital Kiang Wu, que vários anos antes desviara recursos médicos do FMI para sua clínica particular, na Almirante Sérgio. Como Washington era uma das patrocinadoras do Fundo Monetário Internacional e como McAllister surpreendera o médico com a mão na massa, ele tinha condições de denunciá-lo e ameaçara fazê-lo. Mas o médico conseguira prevalecer. Perguntara a McAllister como esperava substituí-lo, já que havia escassez de médicos competentes em Macau. Não seria melhor para o americano esquecer sua falta, se a clínica atendia aos indigentes? E tinha registros de seus serviços relevantes? O espírito caridoso em McAllister prevaleceu, mas não sem recordar a falta do médico... e sua dívida. Que estava sendo paga naquela noite. — Vamos embora! — gritou Bourne, levantando-se e pegando uma das duas embalagens de
sangue. — Ande! McAllister agarrou uma barra na parede, no lado oposto, enquanto o helicóptero batia no cimento. Estava pálido, o rosto congelado numa máscara de si mesmo. — Essas coisas são uma abominação — murmurou ele. — Por favor, espere até sentarmos. — Já sentamos. E a programação é sua, analista. Ande! Orientados pela polícia, eles correram através do pátio para uma porta dupla, que duas enfermeiras seguravam. Lá dentro, um médico oriental de jaleco branco, o inevitável estetoscópio pendurado de um bolso, segurou McAllister pelo braço. — E um prazer tornar a vê-lo, senhor — disse ele, num inglês fluente, mas com forte sotaque. — Embora seja em circunstâncias curiosas... — As suas eram, há três anos — interrompeu o analista, bruscamente, ofegante. — Para onde vamos? — Sigam-me até o laboratório de sangue. Fica na extremidade do corredor. A enfermeira-chefe vai verificar os lacres e assinar os recibos. Depois, vão me seguir para outra sala, onde estão esperando os dois homens que vão tomar seus lugares. Entreguem-lhes os recibos, troquem de roupas, e os dois partirão. — Quem são eles? — perguntou Bourne. — Onde foi que os arrumou? — Internos portugueses — respondeu o médico. — Jovens médicos sem dinheiro enviados de Pedroso para completar suas residências aqui. — Explicações? — persistiu Jason, enquanto avançavam pelo corredor. — Nenhuma, para dizer a verdade. Apenas o que se poderia chamar de uma “troca”. Tudo perfeitamente legítimo. Dois médicos britânicos que desejam passar uma noite aqui e dois internos sobrecarregados que merecem uma noite em Hong Kong. Eles voltarão num aerobarco pela manhã. Nada saberão, de nada desconfiarão. Apenas ficarão satisfeitos porque um médico mais velho reconheceu suas necessidades. — Encontrou o homem certo, analista. — Ele é um ladrão. — E você é um prostituto. — Como? — Nada. Vamos embora.
Depois que as embalagens de sangue foram entregues, os lacres verificados e os recibos assinados, Bourne e McAllister seguiram o médico para uma sala adjacente trancada, que continha suprimentos médicos e tinha outra porta, que dava diretamente para o corredor, também trancada. Os dois internos portugueses esperavam na frente dos armários de vidro; um era mais alto do que o outro, e ambos sorriam. Não houve apresentações, apenas acenos de cabeça e uma declaração curta do médico, dirigida ao subsecretário de Estado: — Com base nas descrições... não que eu precisasse da sua... não acha que os tamanhos são mais ou menos certos? — Ele servem — respondeu McAllister, enquanto começava a tirar o macacão branco, ao mesmo tempo que Jason — São um pouco grandes, mas não haverá problema se correrem depressa, mantendo as cabeças abaixadas. Diga-lhes para deixarem os macacões e os recibos com o piloto. Ele cuidará de todo o resto, assim que chegar a Hong Kong. Bourne e o analista vestiram calças escuras e amarrotadas e blusões folgados. Entregaram aos internos os macacões e os quepes. McAllister ordenou: — Mande-os se apressarem. A partida está marcada para menos de dois minutos. O médico falou num português trôpego, depois virou-se para o subsecretário de Estado e acrescentou: — O piloto não pode ir a parte alguma sem eles, senhor. — Está tudo calculado e oficialmente previsto — disse o analista, o tom áspero, o medo agora se insinuando em sua voz. — Não há margem para alguém se tornar mais curioso do que o necessário. Tudo está previsto. Depressa! Os internos vestiram-se; os quepes eram baixos e encobriam parcialmente os rostos, os recibos do sangue estavam nos bolsos. O médico deu as instruções aos dois americanos, enquanto lhes entregava passes cor de laranja do hospital. — Vamos sair juntos. A porta fecha automaticamente. Acompanharei os nossos jovens médicos, agradecendo em voz alta e profusamente, além do cordão de isolamento da polícia, onde eles correrão para o helicóptero. Vocês seguem para a direita, depois viram à esquerda no saguão da frente. Espero... estou torcendo... para que nossa associação, por mais agradável que tenha sido, esteja agora encerrada. — Para que serve isto? — indagou McAllister, levantando o passe do hospital. — Provavelmente... assim espero... para nada. Mas caso sejam detidos, os passes explicam sua presença no hospital e não serão interrogados. — Por quê? O que eles significam? Não havia nenhum fato, nenhum fragmento de dado que o analista pudesse deixar inexplicado.
— É muito simples — respondeu o médico, olhando calmamente para McAllister. — Descrevem vocês como expatriados indigentes, totalmente desprovidos de recursos, a quem trato generosamente em minha clínica particular, sem cobrar nada. De gonorréia, para ser mais preciso. Como não podia deixar de ser, há as características de identificação usuais... altura, peso aproximado, cor dos cabelos e dos olhos, nacionalidade. A sua descrição é mais completa, já que eu não conhecia seu amigo. E também como não podia deixar de ser, há duplicatas em meus arquivos e ninguém poderia julgá-lo outra pessoa, senhor. — Por quê? — Depois que sair para a rua, creio que minha dívida antiga estará cancelada. Não concorda? — Mas gonorréia? — Por favor, senhor, devemos nos apressar, como disse. Está tudo previsto e calculado. O médico abriu a porta, deixou os quatro homens passarem e seguiu para a esquerda, com os dois internos, na direção da entrada lateral e do helicóptero do serviço médico. — Vamos embora — sussurrou Bourne, tocando no braço de McAllister e encaminhando-se para a direita. — Ouviu aquele homem? — Você disse que ele era um ladrão. — Era mesmo. E é! — Há ocasiões em que uma pessoa não deve aceitar muito literalmente aquele velho clichê de ladrão que rouba ladrão. — O que está querendo dizer com isso? — Muito simples — respondeu Jason Bourne, fitando o analista a seu lado. — Ele tem você nas mãos por várias acusações. Fraude, prática de corrupção e gonorréia. — Oh, meu Deus! Ficaram parados na retaguarda da multidão, junto à cerca alta, observando o helicóptero levantar vôo e depois de se afastar pelo céu noturno. Um a um, os refletores foram desligados e o estacionamento voltou a ficar iluminado apenas pelos lampiões fracos. Vários guardas entraram num ônibus, enquanto os outros voltavam calmamente a seus postos anteriores, alguns acendendo cigarros, como a anunciarem que a excitação estava encerrada. A multidão começou a se dispersar, em meio a perguntas lançadas para qualquer um e para todos. Quem era? Alguém muito importante, não é? O que acham que aconteceu? Será que seremos informados? Quem se importa? Tivemos nosso espetáculo e agora vamos tomar um trago, está bem? Deu uma olhada naquela mulher? Não acha que é uma prostituta de classe? Ela é minha prima, seu filho da puta!
A excitação terminara. — Vamos embora — disse Jason. — Temos de andar. — Quer saber de uma coisa, Sr. Webb? Tem duas ordens que usa com uma freqüência irritante. “Vamos embora” e “ande”. — Funcionam. Os dois homens começaram a atravessar a Coelho do Amaral. — Sei tão bem quanto você que precisamos agir depressa, mas ainda não explicou para onde estamos indo. — Sei que não expliquei — respondeu Bourne. — Pois acho que está na hora de fazê-lo. Continuaram andando, o ritmo determinado por Bourne. O subsecretário acrescentou: — Chamou-me de prostituto. — E você é. — Porque concordei em fazer o que julgava certo, o que tinha de ser feito? — Porque eles o usaram. Os homens no poder o usaram e vão se descartar de você sem pensar duas vezes. Imaginava limusines e conferências de alto nível em seu futuro, e não pôde resistir. Estava disposto a sacrificar minha vida sem procurar uma alternativa... e é pago para fazer justamente isso. Estava disposto a arriscar a vida de minha esposa porque a atração era grande demais. Jantares com o Comitê dos Quarenta, talvez até se tornar um deles, reuniões discretas e confidenciais no Gabinete Oval, em companhia do famoso Embaixador Havilland. Para mim, isso é se prostituir. Acontece apenas, repito, que eles vão se descartar de você sem pensar duas vezes. Silêncio. Por quase um comprido quarteirão de Macau. — Acha que eu não sei disso, Sr. Bourne? — Não sabe o quê? — Que eles vão se descartar de mim. Jason tornou a olhar para o meticuloso burocrata que caminhava ao seu lado. — Sabe disso?
— Claro que sei. Não estou na liga e eles não querem me deixar entrar. Tenho as credenciais e a inteligência, mas não possuo o extraordinário senso de desempenho que eles têm. Não sou simpático. Ficaria paralisado diante de uma câmara de televisão.., embora veja idiotas que se apresentam sistematicamente cometendo os erros mais absurdos. Como pode ver, reconheço minhas limitações. E como não sou capaz de fazer o que eles podem, sou obrigado a fazer o que é melhor para eles e para o país. Tenho de pensar por eles. — Estava pensando por Havilland? Foi ao Maine e seqüestrou minha esposa! Não havia outras opções nesse seu cérebro inchado? — Nenhuma que eu pudesse impor. Nenhuma que cobrisse tudo tão meticulosamente quanto a estratégia de Havilland. O assassino era o elo impenetrável com Sheng. Se você pudesse caçá-lo e trazêlo, seria o atalho de que precisaríamos para atrair Sheng. — Tinha muito mais confiança em mim do que eu próprio. — Tínhamos confiança em Jason Bourne. Em Caim... no homem da Medusa chamado Delta. Você tinha o motivo mais forte possível: recuperar sua esposa, a mulher que ama muito. E não haveria nenhuma ligação com o nosso governo... — Farejamos um roteiro secreto desde o início! —explodiu Bourne. — Eu farejei, e Conklin também! — Farejar não é sentir o gosto — protestou o analista, enquanto desciam apressados por uma viela escura, o calçamento de blocos de pedra. —Você nada sabia de concreto que pudesse ser divulgado, não havia nenhum intermediário que apontasse para Washington. Estava obcecado em encontrar um assassino que se apresentava como você, a fim de que um enfurecido taipan devolvesse sua esposa... um homem cuja própria esposa fora supostamente assassinada pelo assassino que dizia ser Jason Bourne. A princípio, achei que era uma loucura, mas depois percebi a lógica tortuosa de toda a situação. Havilland estava certo. Se havia um homem vivo que podia trazer o assassino e assim neutralizar Sheng, era justamente você. Mas você não poderia ter qualquer ligação com Washington. Portanto, tinha de ser manobrado dentro da estrutura de uma mentira extraordinária. Qualquer coisa menos e você poderia reagir de maneira mais normal. Poderia procurar a polícia ou autoridades do governo, pessoas que conhecera no passado... no que podia lembrar do passado, o que também era uma vantagem nossa. — E procurei mesmo pessoas que conheci antes. — Mas não descobriu nada, exceto que, quanto mais ameaçava romper o silêncio, mais parecia provável que o governo tornasse a interná-lo para uma terapia. Afinal, você saíra da Medusa, tinha uma história de amnésia, até mesmo de esquizofrenia. — Conklin procurou outros... — E inicialmente nós lhe informamos apenas o suficiente para descobrir o que ele sabia, o que calculara. Acho que ele foi um dos melhores que já tivemos.
— Foi mesmo. E ainda é. — Ele pôs você na categoria de além-da-salvação. — História. Nas circunstâncias, eu poderia fazer a mesma coisa. Ele descobriu muito mais do que eu em Washington. — Conklin foi levado a acreditar exatamente no que queríamos que acreditasse. Foi de fato uma das manobras mais brilhantes de Havilland e realizada de improviso. Lembre-se de que Alexander Conklin é um homem queimado, amargurado. Não Sente qualquer amor pelo mundo em que passou sua vida adulta nem pelas pessoas com quem partilhou essa vida. Foi informado de que uma possível operação secreta poderia ter perdido o fio, que o roteiro poderia ter sido assumido por elementos hostis. McAllister fez uma pausa, enquanto saíam da viela e viravam a esquina, no meio da multidão da madrugada em Macau; luzes coloridas piscavam por toda parte. — Era o retorno à primeira mentira, entende? — continuou o analista. — Conklin foi convencido de que alguém mais interferira, que sua situação era desesperadora e o mesmo acontecia com sua esposa, a menos que seguisse o novo roteiro, controlado pelos elementos hostis. — Foi o que ele me disse — murmurou Jason, franzindo o rosto ao lembrar o salão no Aeroporto Dulles, as lágrimas que afloraram a seus olhos. — E me sugeriu que jogasse de acordo com o roteiro. — Ele não tinha alternativa. — McAllister agarrou subitamente o braço de Bourne, acenando com a cabeça na direção de uma loja às escuras, mais à frente, à direita. — Precisamos conversar. — Estamos conversando — disse o homem da Medusa, ríspido. — Sei para onde estamos indo e não há tempo a perder. — Tem de esperar um pouco! — O desespero na voz do analista forçou Bourne a parar e fitá-lo, depois segui-lo para a entrada recuada da loja às escuras. — Antes de fazer qualquer coisa, você precisa compreender. — O que eu tenho de compreender? As mentiras? — Não. A verdade. — Você não sabe qual é a verdade. — Sei sim, talvez melhor do que você. Como disse, é meu trabalho. A estratégia de Havilland teria dado certo, se não fosse por sua esposa. Ela conseguiu escapar, fazendo com que a estratégia desmoronasse. — Sei disso. — Então também sabe que Sheng, quer a tenha ou não identificado, está a par de sua existência
e compreende sua importância. — Nunca pensei nisso, nem de um jeito nem de outro. — Pois pense agora. A unidade de Lin Wenzu foi penetrada quando toda Hong Kong estava procurando por ela. Catherine Staples foi morta porque estava ligada à sua esposa e foi deduzido corretamente que por intermédio da mulher misteriosa ela soubera demais ou estava se aproximando de algumas verdades perigosas. As ordens de Sheng são obviamente para eliminar qualquer oposição, até mesmo uma oposição em potencial. Como viu em Pequim, ele um fanático e vê substância onde existem apenas sombras inimigos em cada canto escuro. — Onde está querendo chegar? — indagou Bourne, impaciente. — Ele também é brilhante, e seu pessoal está espalhado por toda a colônia. — E daí? — Quando a notícia sair nos jornais da manhã e na televisão, ele vai fazer certas suposições e mandar vigiar a casa em Victoria Peak e o MI-Seis em cada minuto de cada hora, mesmo que tenha de invadir a casa ao lado e mais uma vez se infiltrar no serviço britânico. — Deus meu, o que está querendo dizer? — Ele encontrará Havilland e depois sua esposa. — E daí? — E se você falhar? E se você for morto? Sheng não vai descansar enquanto não souber de tudo. A chave é indubitavelmente a mulher que está com Havilland, a mulher alta que todos procuravam. Só pode ser ela, porque é o enigma no centro do mistério e está ligada ao embaixador. Se alguma coisa acontecer a você, Havilland será forçado a soltá-la, e Sheng a pegará... no Kai-tak, em Honolulu, Los Angeles ou Nova York. Pode estar certo de que ele não vai desistir enquanto não a capturar. Sheng precisa saber o que está armado contra ele, e sua esposa é a chave. Não há ninguém mais. — De novo, onde está querendo chegar? — Tudo pode acontecer novamente, com resultados ainda mais terríveis. — O roteiro? — indagou Jason, imagens sangrentas da ravina no santuário de pássaros a invadirem-no. — Isso mesmo — disse o analista, a voz firme. — Só que desta vez sua esposa será seqüestrada de verdade, não apenas como parte da estratégia para recrutá-lo. Sheng cuidaria disso. — Não se estiver morto. — Provavelmente não. Contudo, existe o risco concreto de fracasso... de que ele permaneça vivo.
— Está tentando me dizer alguma coisa, mas não o está fazendo! — Está certo, direi agora. Como o assassino, você é o vínculo com Sheng, mas sou eu quem pode atraí-lo. — Você? — Foi o motivo pelo qual eu disse à embaixada para usar o meu nome no comunicado à imprensa. Sheng me conhece e escutei com toda atenção quando descreveu para Havilland a sua teoria do conspirador-para-um-conspirador. Ele não a aceitou e, para ser franco, também concordo. Sheng não aceitaria um encontro com uma pessoa desconhecida, mas pode concordar se for alguém que conhece. — Por que você? — Parte verdade, parte mentira — respondeu o analista, repetindo as palavras de Bourne. — Obrigado por me escutar com toda atenção. E agora explique. — A verdade primeiro, Sr. Webb... ou Bourne ou como quer que queira ser chamado. Sheng está a par das minhas contribuições ao meu governo e também da minha óbvia ausência de progresso. Sou brilhante mas invisível, um burocrata ignorado que tem sido preterido porque. careço das qualidades que poderiam me promover, levar-me a um grau de proeminência e a empregos lucrativos na iniciativa privada. De certa forma, sou como Alexander Conklin sem o problema da bebida, mas não sem alguma amargura. Eu era tão bom quanto Sheng e ele sabia disso... mas Sheng conseguiu o sucesso, e eu não. — Uma confissão comovente — disse Jason, outra vez impaciente. — Mas por que ele se encontraria com você? Como poderia atraí-lo... para a solução final, Sr. Analista? E espero que saiba o que isso significa. — Porque quero uma fatia do bolo de Hong Kong que pertence a ele. Quase fui morto ontem à noite. Foi a indignidade final. Agora, depois de tantos anos, quero alguma coisa para mim, para minha família. Essa é a mentira. — Você está no outro lado do campo. Não consigo encontrá-lo. — Porque não está lendo nas entrelinhas. É para isso que sou pago, lembra-se?... Estou no final da minha carreira profissional. Fui enviado para cá com a missão de descobrir e analisar um rumor procedente de Formosa. Esse rumor, sobre uma conspiração econômica em Pequim, parecia-me ter procedência. Se fosse verdadeiro, só podia ter uma fonte em Pequim, meu velho colega das conferências comerciais sino-americanas, o poder por trás das novas políticas comerciais da China. Nada assim poderia ser feito sem ele, nem mesmo cogitado. Portanto, presumi que na melhor das hipóteses havia motivos suficientes para entrar em contato com ele, não pensando em denunciá-lo, mas sim para cancelar oficialmente o rumor... por um preço. Eu poderia ir até mais longe, alegando que não vejo nada contra os interesses de meu país e muito menos contra os meus. O ponto principal é que ele se encontraria comigo.
— E depois? — Depois, você me dirá o que fazer exatamente. Disse que qualquer perito em demolições poderia fazê-lo... então por que eu não seria capaz? Só que não com explosivos, pois eu não seria capaz de manipulá-los. Em vez disso, uma arma de fogo — Seria morto. — Aceito o risco. — Por quê? — Porque tem de ser feito. Havilland está certo nesse ponto. E no momento em que Sheng descobrir que você não é o impostor, que é o executor original, o homem que tentou matá-lo no santuário dos pássaros, seus guardas o retalhariam. — Nunca tive a intenção de permitir que ele me visse — disse Bourne, suavemente. — Você iria cuidar disso, mas não assim. Nas sombras da entrada da loja, McAllister olhava fixa- mente para o homem da Medusa. — Vai me levar com você, não é mesmo? — indagou o analista, depois de uma pausa prolongada. — Obrigar-me, se fosse necessário. — É verdade. — Foi o que pensei. Se não fosse por isso, não concordaria tão prontamente que eu o acompanhasse a Macau. Poderia ter me contado como fazer contato com Sheng no aeroporto e exigido que lhe déssemos algum tempo, antes de entrarmos em ação. E não violaríamos o prazo, pois estamos apavorados. Independente de qualquer coisa, pode compreender agora que não precisa me obrigar. Eu trouxe até o meu passaporte diplomático. — McAllister fez uma pausa mínima e depois acrescentou: — E também um segundo passaporte, que retirei do arquivo dos técnicos... pertence ao sujeito alto que tirou sua fotografia na mesa. — Você fez o quê? — Todo o pessoal técnico do Departamento de Estado que lida com questões confidenciais deve entregar os passa- portes. É uma medida de segurança e para sua própria proteção... — Tenho três passaportes — interrompeu Bourne. — Como acha que circulo de um lado para outro? — Sabíamos que você tinha pelo menos dois, com base nos arquivos de Bourne. Usou um dos nomes anteriores ao voar para Pequim, o passaporte que dizia que tinha olhos castanhos. Como conseguiu isso? — Usei lente de contato... sem grau. Tudo arrumado por um amigo que usa um nome estranho e
é melhor do que qualquer pessoa de vocês. — Ah, sim. Um fotógrafo preto e especialista em documentos de identidade que diz se chamar Cactus. Trabalhava secretamente para Casa de Pedra, mas é evidente que você se lembrou disso e também que ele sempre o visitava na Virginia. Segundo os registros, era preciso deixá-lo ir, porque opera com elementos criminosos. — Se fizer alguma coisa com ele, pode estar certo de que vou acabar com você. — Não há a menor intenção de fazer isso. Neste momento, vamos simplesmente transferir uma das três fotografias para o passaporte do técnico, a que estiver mais de acordo com a descrição — É perda de tempo — Não é, não. Os passaportes diplomáticos oferecem vantagens consideráveis, especialmente por aqui. Eliminam o processo demorado do visto temporário. Tenho certeza de que dispõe de fontes para comprar um visto, mas assim é muito mais fácil. A China quer nosso dinheiro, Sr. Bourne... e também nossa tecnologia. Passaremos rapidamente, e Sheng poderá verificar com a imigração que eu sou mesmo quem digo que sou. Também teremos prioridade no transporte, se quisermos, o que pode ser muito importante, dependendo das conversas telefônicas com Sheng e seus assessores. — Como assim? — Você falará com os subordinados de Sheng, na seqüência combinada, qualquer que seja. Dirá o que tem de dizer. Mas depois que tudo estiver acertado, eu falarei com Sheng Chou Yang. — Você não sabe de nada! — gritou Jason. — É um amador nessas coisas! — No que você faz, sou mesmo. Mas não no que eu faço. — Por que não disse nada a Havilland sobre esse seu plano espetacular? — Porque ele não permitiria. Teria me posto sob prisão domiciliar, porque acha que sou inadequado. Sempre pensa assim. Não sou um artista. Não tenho as respostas eloqüentes que ressoam com sinceridade, mas também são lamentavelmente desinformadas. Mas este caso é diferente, o que os artistas podem perceber claramente, porque é tudo parte de sua encenação global e machista. Pondo de lado o aspecto econômico, trata-se de uma conspiração para minar a liderança de um regime desconfiado e autoritário. E quem está no centro dessa conspiração que tem de fracassar de qualquer maneira? Quem são esses infiltradores em quem Pequim confia como se fossem os seus? Os mais empedernidos inimigos da China... seus próprios irmãos do Kuomintang, em Formosa. Novamente, para usar o vernáculo, quando a merda bater no ventilador... o que certamente vai acontecer... os artistas em todos os lados vão subir aos pódios e soltar seus brados de traição e “revolta interna”, porque não haverá mais nada que possam fazer. O embaraço é total, completo, em escala mundial... e o embaraço maciço leva à violência maciça. Foi a vez de Bourne olhar fixamente para o analista. Enquanto o fazia, as palavras de Marie lhe ocorreram, de um contexto diferente, mas não irrelevante no caso em pauta.
— Isso não é uma resposta — disse ele, — É um ponto de vista, mas não uma resposta. Por que você? Espero que não seja para provar sua decência. Isso seria uma tolice. E muito perigoso. — Por mais estranho que possa parecer — disse McAllister, franzindo o rosto e olhando para o chão por um instante — no que se refere a você e sua esposa, creio que é isso em parte... uma parte menor. O subsecretário de Estado levantou os olhos e acrescentou calmamente: — Mas o motivo básico, Sr. Bourne, é que estou um pouco cansado de ser Edward Newington McAllister, talvez um analista brilhante, mas certamente irrelevante. Sou a inteligência na sala dos fundos a quem se busca quando as coisas ficam muito complicadas, mas que é despachada de volta para o anonimato depois de oferecer seu julgamento. Pode dizer que eu gostaria da oportunidade de um momento ao sol... de sair da sala dos fundos. Jason estudou o subsecretário nas sombras. — Há pouco disse que havia o risco de meu fracasso, e sou um homem experiente. O que não é o seu caso. Já considerou as conseqüências se você fracassar? — Creio que não vou fracassar. — Pensa que não vai fracassar — repetiu Bourne, em tom incisivo. — Posso perguntar por quê? — Pensei em tudo. — Isso é ótimo. — Falo sério — protestou McAllister. — A estratégia é essencialmente simples: dar um jeito de ficar a sós com Sheng. Eu posso fazer isso, mas você não pode fazer por mim. E muito menos pode levá-lo a ficar a sós com você. Tudo o que preciso é de uns poucos segundos... e uma arma. — Se eu concordar, não sei o que me assustaria mais, o seu sucesso ou o fracasso. Posso lembrálo que é um subsecretário de Estado do governo dos Estados Unidos? E se for capturado? Será o fim para todo mundo. — Tenho considerado a possibilidade desde o dia em que voltei a Hong Kong. — Você o quê? — Há semanas que venho pensando que essa pode ser a solução. . que eu posso ser a solução. O governo está coberto. Escrevi tudo, num relatório que deixei em Victoria Peak, uma cópia para Havilland e outra a ser entregue ao consulado chinês em Hong Kong, dentro de setenta e duas horas. É possível que a está altura o embaixador já tenha encontrado sua cópia. Portanto, não há como voltar atrás. — Mas o que você fez?
— Descrevi o equivalente a uma hostilidade mortal entre Sheng e eu. Tendo em vista os meus antecedentes e o tempo que passei aqui, assim como a conhecida tendência de Sheng pelo sigilo, é perfeitamente plausível. Não tenho a menor dúvida de que seus inimigos no Comitê Central vão aproveitar a oportunidade. Se eu for morto ou capturado, tanta atenção vai se focalizar em Sheng, haverá tantas perguntas, apesar de suas negativas, que ele não se atreverá a tomar qualquer iniciativa... se sobreviver. — Essa não! — exclamou Bourne, atordoado. — Não é necessário que você saiba dos detalhes, mas pode reconhecer a essência de sua teoria de conspirador-para-um-conspirador. Em suma, acuso Sheng de quebrar sua palavra, de me afastar de suas manipulações em Hong Kong, depois que passei anos ajudando-o secretamente a desenvolver a estrutura. Ele está me cortando porque não precisa mais de mim e sabe que não posso dizer coisa alguma, pois ficaria arruinado. Escrevi até que estava com medo de ser liquidado. — Esqueça! — berrou Jason — Esqueça toda essa história! É um absurdo! — Está presumindo que eu vou fracassar. Ou ser capturado. Pois eu presumo que nenhuma das duas coisas acontecerá... com a sua ajuda, é claro. Bourne respirou fundo e baixou a voz: — Admiro a sua coragem, até mesmo o seu latente senso de decência, mas há um meio melhor e você pode proporcioná-lo. Terá o seu momento ao sol, Sr. Analista, mas não assim. — Com que meio então? — indagou o subsecretário de Estado, agora aturdido. — Já o vi operar, e Conklin estava certo. Você pode ser um filho da puta, mas é muito bom. Entra em contato com o Foreign Office em Londres e sabe quem pode mudar as regras. Passou seis anos aqui investigando os negócios sujos, procurando os assassinos, ladrões e cafetões do Extremo Oriente, em nome da política de boa vizinhança. Sabe que botão apertar e onde estão escondidos os segredos. Até se lembrou de um médico desonesto aqui de Macau que lhe devia um favor e obrigou-o a pagar. — Tudo isso é como se fosse uma segunda natureza. Não se pode esquecer facilmente essa gente. — Descubra-me outros. Providencie-me assassinos de aluguel. Você e Havilland podem conseguir isso. Fale com ele pelo telefone e transmita minhas exigências. Deve transferir um milhão... cinco milhões, se for necessário... para Macau pela manhã e no meio da tarde quero uma unidade de assassinos profissionais aqui, todos prontos para ir à China. Tomarei as providências indispensáveis. Conheço um ponto de encontro que já foi usado antes, nas colinas de Guangdong. Há campos que podem ser facilmente alcançados de helicóptero. Era o lugar em que Sheng ou seus ajudantes costumavam se reunir com o comando. Ao receber minha mensagem, ele fará a viagem... pode ter certeza. Basta você fazer seu papel. Vasculhe essa sua cabeça e descubra três ou quatro assassinos experientes. Diga-lhes que o risco é mínimo e o preço é alto. Esse é o seu momento ao sol, Sr. Analista. Deve ser irresistível. Terá uma vantagem sobre Havilland pelo resto de sua vida. Ele o promoverá a seu
assessor-chefe, talvez até a secretário de Estado, se quiser. Não pode negar. — Impossível — murmurou McAllister, os olhos fixos nos de Jason. — Talvez secretário de Estado seja demais... — O que está sugerindo é impossível. — Está querendo me dizer que não existem homens assim? Se está, devo dizer que mente novamente. — Tenho certeza de que existem. Posso até conhecer vários e estou certo de que há outros na lista que Lin lhe deu quando representava o papel do taipan de terno branco na Cidade Murada. Mas eu não me envolveria com eles. Mesmo que Havilland ordenasse, eu recusaria. — Então não quer Sheng! Tudo o que disse não passava de mais uma mentira! — Está enganado. Quero Sheng e muito, mas não assim. — Por que não? — Porque não vou pôr meu governo, meu país, nessa situação comprometedora. E tenho a impressão de que Havilland concordaria comigo. Contratar assassinos é uma coisa que se pode descobrir, transferir dinheiro também. Alguém se zanga, começa a se gabar, toma um porre, fala demais, e um assassinato é atribuído a Washington. Eu não poderia ter qualquer participação nisso. Lembro as tentativas de matar Castro usando a Máfia. Uma loucura... Não, Sr. Bourne, não é possível. Terá de se contentar comigo. Está preso a mim. — Não estou preso a ninguém! Posso fazer contato com Sheng e você não! — As questões complicadas podem ser geralmente reduzidas a equações simples, se determinados fatos são lembrados. — O que isso significa? — Que devo insistir que façamos tudo à minha maneira. — Por quê? — Porque Havilland está com sua esposa. — Ela está com Conklin. Com Mo Panov! Ele não se atreveria... — Não o conhece — interrompeu McAllister. — Pode insultá-lo, mas não o conhece. Ele é como Sheng Chou Yang. Não se deterá diante de nada. Se estou certo... e estou absolutamente convencido... a Sra. Webb, o Sr. Conklin e o Dr. Panov são hóspedes da casa em Victoria Peak até o final da missão.
— Hóspedes? — A prisão domiciliar que mencionei há poucos minutos. — Filho da puta! — murmurou Jason, os músculos do rosto se contraindo. — Agora, como fazemos contato com Pequim? De olhos fechados, Bourne respondeu: — Por intermédio de um homem na guarnição de Guangdong chamado Soo Jiang. Falo com ele em francês e ele deixa uma mensagem para nós aqui em Macau. Numa mesa de um Cassino — Ande! — disse McAllister.
Capítulo 36 O telefone tocou, provocando um sobressalto na mulher nua, que no mesmo instante se sentou na cama. O homem estendido ao seu lado estava completamente desperto; sempre se mostrava cauteloso com qualquer intromissão, ainda mais durante a madrugada. A expressão em seu rosto oriental, redon do e suave, no entanto, indicava que tais intromissões não eram raras, apenas irritantes. Estendeu a mão para o telefone na mesinha-de-cabeceira e atendeu. — Wei? — Macao lai dianhua — respondeu o operador do centro de comunicações do quartel-general da guarnição de Guangdong. — Ligue o scrambler e desligue todos os mecanismos de gravação. — Já fiz isso, Coronel Soo. — É o que vou verificar. Soo Jiang sentou-se na cama e pegou um pequeno objeto retangular, com um círculo em relevo numa extremidade. — Não é necessário, senhor. — Espero que não, para o seu próprio bem. Soo ajeitou o círculo no bocal e apertou um botão. Se a linha estivesse grampeada, o apito estridente que subitamente irrompeu por um segundo continuaria a pulsar, até que o mecanismo de escuta fosse removido ou estourasse o tímpano do ouvinte. Houve apenas silêncio, ampliado pelo luar que atravessava a janela. — Pode falar, Macau — disse o coronel. — Bon soir, mon ami — disse a voz de Macau, o francês no mesmo instante aceito como sendo falado pelo impostor. Comment ça va? — Vous? — Aturdido, Soo Jiang tirou as pernas curtas e grossas de baixo do lençol e pôs os pés no chão. — Attendez! — O coronel virou-se para a mulher e ordenou, em cantonês: — Saia daqui. Pegue suas roupas e vá-se vestir na sala. Deixe a porta aberta, a fim de que eu possa vê-la partir. — Está me devendo dinheiro! — sussurrou a mulher, a voz estridente. — Por duas vezes, e o dobro pelo que fiz para você lá embaixo! — Seu pagamento é o fato de eu poder impedir que seu marido seja despedido. E agora saia
daqui. Tem trinta segundos ou ficará com um marido sem dinheiro. — É por isso que chamam você de Porco — disse a mulher, pegando as roupas e correndo para a sala, onde se virou e lançou um olhar furioso para Soo. — Porco! — Saia! Segundos depois, Soo voltou a falar ao telefone, e continuando em francês: — O que aconteceu? As notícias de Pequim são incríveis! Não menos que as notícias do aeroporto em Shenzen! Ele capturou você! — Ele está morto — disse a voz de Macau. — Morto? — Fuzilado por sua própria gente, pelo menos cinqüenta balas no corpo. — E você? — Aceitaram minha história. Eu era um refém inocente, apanhado na rua e usado como escudo e isca. Trataram-me bem e até me omitiram nas informações à imprensa, por insistência minha. E claro que estão tentando atenuar o incidente, mas não terão muito sucesso. Havia repórteres por toda parte. Vai ler a notícia nos jornais de amanhã. — Mas o que aconteceu exatamente? — Uma propriedade em Victoria Peak. Faz parte do consulado e é mantida em segredo. E por isso que tenho de entrar em contato com seu líder-um. Descobri coisas que ele precisa saber. — Pode contar para mim. O “assassino” riu desdenhosamente. — Vendo informações assim, não dou a ninguém... muito menos a porcos. — Saberemos cuidar bem de você — insistiu Soo. — Bem demais para a minha saúde. — O que está querendo dizer com “líder-um”? — indagou o coronel, ignorando o comentário. — O chefão, seu superior, o dono do terreiro... como quer que você o chame. Não era o homem na floresta que falou durante todo o tempo? O que usou a espada com tanta eficiência, o maluco de olhos desvairados e cabelos curtos, o que tentei alertar para a tática de ganhar tempo do Francês...
— Como ousa...? Você fez isso? — Pergunte a ele. Falei que alguma coisa estava errada, que o Francês procurava ganhar tempo. E fui eu quem acabou pagando por ele não me dar atenção. Deveria ter retalhado aquele filho da puta do Francês quando eu mandei. E agora trate de avisar que quero falar com ele! — Nem mesmo eu falo com ele — disse o coronel. — Só faço contato com os subordinados, através de seus codinomes. Não conheço os verdadeiros... — Está falando dos homens que voam para as colinas de Guangdong para se encontrarem comigo e darem as missões? — interrompeu Bourne. — Isso mesmo. — Não vou falar com nenhum deles! — explodiu Jason, posando como seu próprio impostor. — Só quero falar com o homem! E é melhor que ele queira falar comigo! — Vai falar com os outros primeiro... e mesmo com eles, têm de haver motivos muito fortes. Eles é que convocam, os outros não. Já devia saber disso a esta altura. — Muito bem, você pode ser o mensageiro. Passei quase três horas com os americanos, montando a melhor cobertura que já tive na vida. Eles me interrogaram e respondi francamente... e não preciso lhe dizer que tenho aliados em todo o território, homens e mulheres que podem jurar que sou um associado nos negócios ou estava em sua companhia numa hora determinada, não importa quem pergunte... — Não precisa me contar tudo isso — interrompeu Soo. — Por favor, basta me dar a mensagem que devo transmitir. Falou com os americanos. E que mais? — Escutei também. Os coloniais têm o hábito estúpido de falar livremente na presença de estranhos. — Estou ouvindo agora uma voz britânica. A voz da superioridade. Já ouvimos isso antes. — Tem toda razão. Os ingleses não fazem isso, e Deus sabe que vocês orientais também não fazem. — Continue, por favor, senhor. — O homem que me fez prisioneiro, o que foi morto pelos americanos, também era americano. — E daí? — Deixo uma assinatura nas minhas execuções. Um nome com uma história comprida. Jason Bourne. — Sabemos disso. E daí?
— Ele era o original! Era um americano e estava sendo caçado há quase dois anos. — E que mais? — Pensam que Pequim descobriu-o e contratou-o. Alguém em Pequim que precisava efetuar a mais importante execução de sua vida, que tinha de matar um homem naquela casa. Bourne está à venda para qualquer um, um empregado de oportunidades iguais, como os americanos poderiam dizer. — Sua linguagem é evasiva. Por favor, seja mais objetivo. — Havia vários outros na sala com os americanos. Chineses de Formosa, que disseram expressamente que se opõem à maioria dos líderes das sociedades secretas do Kuomintang. Estavam furiosos. E acho que também assustados. Bourne parou de falar. Silêncio. Depois de uma pausa prolongada, o coronel estimulou-o, apreensivo: — E que mais? — Disseram muitas outras coisas. E a todo instante mencionavam alguém chamado Sheng. — Aiya! — Essa é a mensagem que você vai transmitir e espero uma resposta no cassino dentro de três horas. Mandarei alguém buscá-la, e aviso para não tentar qualquer besteira. Tenho gente ali que pode iniciar um tumulto tão facilmente quanto fazer o sete nos dados. Qualquer interferência e seus homens morrerão — Não esquecemos o Tsim Sha Tsui, há poucas semanas — comentou Soo Jiang. — Cinco de nossos inimigos foram mortos numa sala nos fundos, enquanto havia uma explosão de violência no cabaré. Não haverá interferência; não somos tolos quando você está envolvido. Muitas vezes especulamos se o Jason Bourne original era tão eficiente quanto seu sucessor. — Não era. Levante a possibilidade de um tumulto no cassino, caso os homens de Sheng tentem lhe preparar uma armadilha. Diga que os homens serão mortos. Não precisa falar mais nada. Eles compreenderão... O analista conhecia mesmo o seu ofício. Genuinamente interessado, Jason acrescentou: — Uma pergunta... Quando você e os outros concluíram que eu não era o original? — À primeira vista — respondeu o coronel. — Os anos deixam suas marcas, não é? O corpo pode permanecer ágil, até melhorar com os devidos cuidados, mas o rosto reflete o tempo; é inevitável. Seu rosto não poderia ser o de um homem da Medusa. Foi há mais de quinze anos, e você é um homem no auge, não tem mais que trinta e poucos anos. A Medusa não recrutava crianças. Você era a reencarnação do Francês.
— A palavra de código é “crise”, e você tem três horas — arrematou Bourne, desligando em seguida. — Isso é uma loucura! Jason saiu da cabine envidraçada no posto telefônico que permanecia aberto durante a noite inteira, lançando um olhar furioso para McAllister. — Você se saiu muito bem — disse o analista, fazendo uma anotação num bloco pequeno. — Pode deixar que eu pago a conta. O subsecretário encaminhou-se para a plataforma em que as telefonistas recebiam o pagamento das ligações internacionais. Acompanhando-o, Bourne acrescentou, a voz baixa, mas ríspida — Não está entendendo. É impossível dar certo. É muito heterodoxo, muito óbvio para alguém engolir. — Se estivesse pedindo uma reunião, eu concordaria. Mas não está. Só quer uma conversa pelo telefone. — Estou pedindo a ele que reconheça o núcleo de toda a trama! Que é ele próprio! — Para citar você outra vez — disse o analista, pegando a conta no balcão e estendendo o dinheiro —, ele não pode deixar de responder. Não tem alternativa. — Com condições prévias que vão deixar você exposto. — Vou querer suas instruções nesse ponto, é claro. McAllister pegou o troco, acenou com a cabeça em agradecimento para a cansada telefonista e encaminhou-se para a porta, com Jason ao seu lado. — Talvez eu não tenha nenhuma para dar. — Nas circunstâncias, é possível —disse o analista, enquanto saíam para a calçada apinhada. — Como assim? — Não é a estratégia que o está incomodando, Sr. Bourne, porque é basicamente sua. O que o deixa furioso é o fato de que sou eu quem vai executá-la, e não você. Como Havilland, acha que não sou capaz. — Não creio que seja este o momento ou a ocasião para você provar que é o grande pistoleiro. Se fracassar, sua vida é a última coisa que me preocupa. De certa forma, o Extremo Oriente vem primeiro, o mundo vem primeiro.
— Não há a menor possibilidade de eu fracassar: Já lhe disse: mesmo que eu fracasse no atentado, saio vitorioso no resultado final. Sheng perde, não importa se continua a viver ou não. Dentro de setenta e duas horas o consulado em Hong Kong cuidará de tudo. — Auto-sacrifício premeditado não é algo que eu aprove — comentou Jason, enquanto subiam a rua. — O heroísmo auto-ilusório sempre se interpõe no caminho e estraga tudo. Alem do mais, a sua suposta estratégia cheira a uma armadilha... e eles vão perceber. — Eles perceberiam se você negociasse com Sheng e não eu. Diz que é heterodoxo, muito óbvio, os movimentos de um amador. Isso é ótimo. Quando Sheng me ouvir ao telefone, tudo se encaixará nos lugares para ele. Sou o amador amargurado, o homem que nunca esteve no campo, o burocrata de primeira classe que tem sido preterido pelo sistema a que serviu tão bem. Sei o que estou fazendo, Sr. Bourne. Só quero que me arranje uma arma. Não era um pedido difícil de atender. No Porto Interior de Macau, na Rua das Lorchas, ficava o apartamento de d’Anjou, com um pequeno arsenal, as ferramentas do ofício do Francês. Era apenas uma questão de entrar e selecionar as armas que fossem mais facilmente desmontadas, a fim de atravessar a fronteira relativamente relaxada em Guangdong, com os passaportes diplomáticos. No entanto, levou mais de duas horas, o processo de seleção meticuloso, com Jason pondo uma arma após outra na mão do analista, observando como ele a empunhava e a expressão em seu rosto. A arma finalmente escolhida foi a de menor calibre no arsenal de d’Anjou, uma Charter Arms 22, com silenciador. — Mire a cabeça, acerte pelo menos três balas no crânio. Qualquer outra coisa pode ser inócua. McAllister engoliu em seco, olhando fixamente para a pistola, enquanto Bourne estudava outras armas, procurando determinar a que tinha maior poder de fogo numa embalagem menor. Acabou escolhendo para si mesmo uma pistola-metralhadora só com a armação de metal, que usava um pente grande, com trinta balas. Com as armas escondidas por baixo dos paletós, eles entraram no cassino de Kam Pek, não muito cheio, às três e trinta e cinco da madrugada, encaminhando-se para a extremidade do comprido bar de mogno. Bourne foi para o lugar que ocupara na ocasião anterior. O subsecretário sentou a quatro bancos de distância. O bartender reconheceu o generoso freguês que lhe dera quase uma semana de salário, menos de uma semana antes. Cumprimentou-o como a um freguês com uma longa história de generosidade. — Nei hou a! — Mchoh La. Mgoi — respondeu Bourne, dizendo que estava bem, a saúde ótima. — O uísque inglês, não é? — indagou o bartender, certo de sua memória, esperando que isso produzisse uma boa recompensa. — Eu disse a amigos no cassino do Lisboa que deveriam conhecer você. Acho que é o melhor homem por trás de um bar em Macau. — O Lisboa? É onde está o dinheiro de verdade! Muito obrigado, senhor!
O bartender apressou-se a servir a Jason uma dose que deixaria de porre as legiões de César. Jason acenou com a cabeça, sem fazer qualquer comentário, e o homem aproximou-se relutante de McAllister, a quatro bancos de distância. Jason notou que o analista pediu vinho, pagou a quantia exata e registrou-a em seu caderninho. O bartender deu de ombros, cumpriu o serviço desagradável e foi para o centro do bar escassamente ocupado, sempre atento a seu cliente predileto. Primeiro passo. Ele estava ali! O chinês bem vestido, num terno escuro sob medida, o veterano em artes marciais que não conhecia muitos golpes sujos, o homem com quem ele lutara num beco e que o levara às colinas de Guangdong. O Coronel Soo Jiang não estava querendo correr nenhum risco, nas circunstâncias. Só queria os condutos de maior confiança operando naquela noite. Nada de velhos mendigos, nada de prostitutas. O homem passou devagar por várias mesas, como se estudasse o jogo, avaliando os crupiês e os jogadores, tentando determinar onde deveria experimentar sua sorte. Chegou à Mesa Cinco, depois de observar o jogo de cartas por quase três minutos, sentou-se casualmente e tirou do bolso um rolo de notas. Entre as notas, pensou Jason, havia uma mensagem com a indicação de Crise. Vinte minutos depois o chinês impecavelmente vestido sacudiu a cabeça, tornou a guardar o dinheiro no bolso e levantou-se. Ele era o atalho para Sheng! Conhecia tudo em Macau e na fronteira em Guangdong. Bourne compreendeu que precisava pegar o homem o mais depressa possível. Olhou primeiro para o bartender, que se encontrava na outra extremidade do bar, preparando drinques para um garçom que servia às mesas, depois para McAllister. — Analista! — sussurrou ele, em tom incisivo. — Fique aqui! — O que vai fazer? — Dar um alô a mamãe! Jason levantou-se e encaminhou-se para a porta, atrás do conduto. Passando pelo bartender, ele disse em cantonês: — Voltarei num instante. — Não há problema, senhor. Saindo para a rua, Bourne seguiu o chinês bem vestido por vários quarteirões, até que ele entrou numa rua transversal estreita e mal iluminada, aproximando-se de um carro vazio estacionado. Não ia se encontrar com ninguém; entregara a mensagem e estava deixando a área. Jason correu e tocou no ombro do homem no instante em que ele abria a porta. O conduto virou-se bruscamente, meio agachado, o pé esquerdo experiente desferindo um golpe violento. Bourne pulou para trás, levantando as mãos, num gesto de paz. — Não vamos começar tudo de novo — disse ele em inglês, lembrando que o homem falava inglês, aprendido com as freiras portuguesas. — Ainda estou dolorido da surra que você me deu há uma
semana. — Aiya! Você! — O chinês levantou as mãos, num gesto similar de não-combate. — Presta-me uma honra que não mereço. Foi melhor do que eu naquela noite e por isso tenho praticado seis horas por dia, a fim de melhorar... Venceu-me antes, mas não conseguiria agora. — Levando em consideração a sua idade e depois a minha, posso garantir que você não foi superado. Meu corpo todo doeu muito mais do que o seu, e não estou disposto a conferir seu novo programa de treinamento. Pagarei muito dinheiro, mas não lutarei com você. A palavra para isso é covardia. — Não no seu caso, senhor — disse o oriental, baixando as mãos e sorrindo. — O senhor é muito bom. — E você me deixou apavorado — respondeu Jason. — Além disso, prestou-me um grande favor — Pagou-me bem. Muito bem. — Pagarei melhor agora. — A mensagem era para você? — Era. — Então tomou o lugar do Francês? — Ele está morto. Liquidado pelas pessoas que mandaram a mensagem. O chinês pareceu ficar aturdido, talvez mesmo um pouco triste. — Por quê? Ele o serviu muito bem e era um velho... mais velho do que você. — Muito obrigado. — Ele traiu aqueles quem servia? — Não. Foi traído. — Pelos comunistas? — Pelo Kuomintang —declarou Jason, sacudindo a cabeça. — Dong wu! Eles não são melhores do que os comunistas. O que quer de mim? — Se tudo correr bem, mais ou menos a mesma coisa que fez antes. Só que desta vez quero que continue por lá. Preciso contratar um par de olhos.
— Vai subir as colinas em Guangdong? — Isso mesmo. — Precisa de ajuda para atravessar a fronteira? — Não se puder encontrar alguém que possa passar uma fotografia de um passaporte para outro. — É coisa que se faz todos os dias. Até as crianças podem cuidar disso. — Ótimo. Então só nos resta tratar da contratação do par de olhos. Há algum risco, mas não é grande. Há também vinte mil dólares... americanos. Na última vez eu lhe paguei dez, mas agora subo para vinte. — Aiya, uma fortuna. — O chinês fez uma pausa, estudando o rosto de Bourne. — O risco deve ser muito grande. — Se houver problemas, espero que você trate de escapar. Deixaremos o dinheiro aqui em Macau, acessível apenas para você. Quer o trabalho ou devo procurar outro? — Estes são os olhos de um gavião. Não precisa procurar mais. — Vamos voltar ao cassino. Espere lá fora, no fim da rua, enquanto eu pego a mensagem. O bartender mostrou-se bastante satisfeito pela oportunidade de prestar um serviço a Jason. Mas ficou confuso pela estranha palavra que deveria ser usada, “crise”, até que Bourne explicou que era o nome de um cavalo de corrida. Ele levou um drinque “especial” para um surpreso jogador na Mesa Cinco e voltou com o envelope lacrado sob a bandeja. Jason esquadrinhara as mesas próximas, procurando por cabeças a se virarem e olhos atentos, em meio às nuvens de fumaça subindo em espiral; não percebeu ninguém interessado. A visão de um bartender de casaco marrom entre garçons de casaco marrom era muito comum para atrair atenção. De acordo com as instruções, a bandeja foi colocada entre Bourne e McAllister. Jason tirou um cigarro do maço e empurrou uma caixa de fósforos por baixo do bar na direção do analista, que não fumava. Antes que o perplexo analista pudesse compreender, Bourne levantou-se e adiantou-se. — Tem fósforo, mister? McAllister olhou para a caixa, pegou-a rapidamente, tirou um fósforo e riscou-o, levantando a chama para o cigarro. Quando voltou a seu banco, Jason tinha o envelope na mão. Abriu-o, retirou o papel que havia lá dentro e leu a mensagem, datilografada em inglês: Telefone para Macau — 32-61443. Ele olhou ao redor, à procura de um telefone público, só depois se lembrando que nunca usara um em Macau; e mesmo que houvesse instruções, não estava familiarizado com as moedas da colônia portuguesa. Eram sempre as coisas pequenas que arruinavam as grandes. Fez sinal para o bartender, que o alcançou-o antes que a mão levantada tornasse a pousar no balcão.
— Pois não, senhor? Outro uísque? — Não por uma semana — disse Bourne, pondo dinheiro de Hong Kong na sua frente. — Tenho de dar um telefonema para alguém aqui em Macau. Pode me dizer onde há um telefone e me arrumar as moedas necessárias, por favor? — Eu não poderia permitir que um cavalheiro tão distinto usasse um telefone comum, senhor. Aqui entre nós, creio que muitos dos fregueses aqui podem estar doentes. — O bartender sorriu. — Com sua licença, senhor. Tenho um telefone aqui no bar... para pessoas muito especiais. Antes que Jason pudesse protestar ou agradecer, um telefone foi posto à sua frente. Ele discou, enquanto McAllister o observava fixamente. — Wei? — disse uma voz de mulher. — Fui instruído a ligar para esse número — respondeu Bourne, em inglês, pois o impostor não falava chinês. — Vamos nos encontrar. — Não, não vamos no encontrar. — Nós insistimos. — Então desistam. Vocês me conhecem melhor, ou pelo menos deveriam. Quero falar com o homem, e somente com o homem. — Está sendo presunçoso. — Fala como uma idiota. E o pregador esquelético com a espada grande também será um idiota se não falar comigo. — Como ousa... — Já ouvi isso antes esta noite — interrompeu Bourne bruscamente. — A resposta é sim, eu ouso qualquer coisa. Ele tem muito mais a perder do que eu. É apenas um cliente, e minha lista está crescendo. Não preciso dele, mas acho que neste momento ele precisa de mim. — Dê-me uma razão que possa ser confirmada. — Não dou explicações a cabos. Já fui um major... ou será que não sabia disso? — Não há necessidade de insultos. — Não há necessidade desta conversa. Tornarei a ligar dentro de trinta minutos. Ofereça-me então algo melhor... ofereça-me o homem. E saberei se é ele mesmo, porque farei algumas perguntas que só o homem pode responder. Ciao, madame.
Bourne desligou. — O que está fazendo? —sussurrou um agitado McAllister, a quatro bancos de distância. — Providenciando o seu dia ao sol, e espero que você tenha alguma loção protetora. Vamos sair daqui. Dê-me cinco minutos e depois me siga. Vire à direita quando sair e continue andando. Nós o pegaremos no caminho. — Nós? — Há uma pessoa que quero que você conheça. Um velho amigo... um jovem amigo... acho que vai aprová-lo. Ele se veste como você. — Outra pessoa? Você ficou doido? — Não se descontrole, analista. Não deveríamos nos conhecer. Não, não fiquei louco. Apenas contratei um homem de apoio, para o caso de pensarem melhor do que eu. Não se esqueça que você queria minhas instruções nesse ponto. As apresentações foram breves e não foram usados nomes, mas era evidente que McAllister ficou impressionado com o chinês baixo, bem vestido, de ombros largos. — É executivo de alguma firma por aqui? — perguntou o analista, enquanto seguiram para a rua transversal em que estava estacionado o carro do conduto. — De certa forma, sou sim, senhor. Só que de minha própria firma. Tenho um serviço de mensageiro para pessoas muito importantes. — Mas como ele descobriu você? — Lamento, senhor, mas tenho certeza de que pode compreender. Tais informações são confidenciais. — Santo Deus! — murmurou McAllister, olhando para o homem da Medusa. Sentado no banco da frente, com o aturdido subsecretário atrás, Jason disse ao chinês: — Quero que me arrume um telefone dentro de vinte minutos. — Quer dizer que eles estão usando um retransmissor? — indagou o conduto. — Fizeram isso muitas vezes com o Francês. — E como ele os tratava? —perguntou Bourne. — Com muita demora. Dizia: “Que eles esperem.” Posso sugerir uma hora? — Está certo. Há algum restaurante aberto por aqui?
— Na Rua dos Mercadores. — Precisamos de comida, e o Francês estava certo... sempre estava certo. Que eles esperem. — Ele foi um homem decente comigo — comentou o conduto — No final das contas, ele era uma espécie de santo eloqüente embora pervertido. — Não compreendo, senhor. — Não é necessário que compreenda. Mas eu estou vivo e ele não está porque tomou uma decisão. — Que decisão, senhor? — Que ele deveria morrer, a fim de que eu pudesse viver. — Como as Escrituras cristãs. As freiras nos ensinaram. — Não é bem assim — respondeu Jason, achando graça da idéia. — Se houvesse alguma outra saída, nós a teríamos tentado. Mas não havia. Ele simplesmente aceitou o fato de que sua morte era a única maneira de eu escapar. — Eu gostava dele — murmurou o chinês. — Leve-nos ao restaurante. Edward McAllister precisava fazer o maior esforço para se controlar, O que ele não sabia e o que Bourne não discutiria à mesa estavam sufocando-o de frustração. Por duas vezes tentara levantar o problema dos retransmissores e da situação atual e por duas vezes Jason o cortara, advertindo-o com um olhar, enquanto o conduto, em gratidão, desviava os olhos. Havia certos fatos que o chinês sabia e outros que não queria saber, para sua própria segurança. — Descanso e alimento — murmurou Bourne, terminando de comer o tian-suan rou. — O Francês dizia que eram armas. E estava certo, é claro. — Sugiro que ele precisava da primeira coisa mais do que o senhor— comentou o conduto. — É possível. De qualquer forma, ele era um estudioso da história militar. Alegava que mais batalhas foram perdidas por fadiga do que pela inferioridade no poder de fogo. — Tudo isso é muito interessante — interrompeu McAllister, bruscamente — mas já estamos aqui há algum tempo e tenho certeza de que há coisas que deveríamos estar fazendo. — E vamos fazer, Edward. Se está tenso, pense no que eles estão passando. O Francês também costumava dizer que nervos a flor da pele do inimigo eram os nossos melhores aliados.
— Estou começando a ficar cansado do seu Francês — murmurou McAllister, irritado. Jason olhou para o analista e disse suavemente: — Nunca mais fale isso. Você não estava lá. — Consultou o relógio. — Já passou uma hora. Vamos procurar um telefone. — Virou-se para o conduto e acrescentou: — Precisarei de sua ajuda. Ponha as moedas certas. Eu discarei. — Disse que ligaria de novo em trinta minutos! — protestou a mulher, no outro lado da linha. — Precisava resolver alguns problemas. Tenho outros clientes e não fiquei muito satisfeito com a sua atitude. Se isso vai ser uma perda de tempo, tenho outras coisas a fazer e você poderá explicar tudo ao homem quando o tufão chegar. — Como poderia acontecer? — Essa não, mulher! Dê-me uma mala com mais dinheiro do que jamais pensou que poderia existir e lhe contarei. Mas, por outro lado, talvez não dissesse nada. Gosto que homens em altos postos me devam favores. Tem dez segundos e depois eu desligo. — Por favor! Vai se encontrar com um homem que o levará a uma casa na Colina Guia, onde existe um sofisticado equipa mento de comunicação... — E onde meia dúzia de capangas vão me rachar o crânio e jogar numa sala onde um médico vai me encher de drogas e tudo isso por nada! — A ira de Bourne era simulada apenas em parte; eram os homens de Sheng que estavam se comportando como amadores. — Vou lhe falar sobre outro equipamento sofisticado. Chama-se telefone, e não creio que haveria comunicações entre Macau e a guarnição de Guangdong se não tivessem scramblers. Claro que os compraram em Tóquio, porque se os fabricassem provavelmente não funcionariam. Usem um. Só vou ligar mais uma vez, mulher. Tenha um número para mim. O número do homem. Jason desligou, — É interessante — comentou McAllister, a alguns passos do telefone, lançando um olhar rápido para o conduto, que retomara à mesa. — Você usou a vara, quando eu teria usado a cenoura. — Usado o quê? — Teria enfatizado a extraordinária informação que pode ria revelar. Em vez disso, você ameaçou, como se estivesse menosprezando quem quer que fosse. — Poupe-me a preleção — respondeu Bourne, acendendo um cigarro, satisfeito ao constatar que a mão não tremia. — Para sua informação, fiz as duas coisas. A ameaça enfatiza a revelação e o menosprezo reforça as duas. — Suas instruções já começam —comentou o subsecretário de Estado, com uma insinuação de sorriso. — Obrigado.
O homem da Medusa fitou nos olhos o homem de Washington. — Se a coisa der certo, você será capaz, analista? Poderá sacar a arma e puxar o gatilho? Porque se não puder, ambos vamos morrer. — Sou perfeitamente capaz — declarou McAllister, muito calmo. — Pelo Extremo Oriente. Pelo mundo. — E por seu dia ao sol. — Jason encaminhou-se para a mesa. — Vamos sair daqui. Não quero usar de novo este telefone. A serenidade da Montanha da Torre de Jade era quebrada pela frenética atividade na residência de Sheng Chou Yang. A agitação não era causada pela quantidade de pessoas, pois havia apenas cinco, mas sim pela intensidade dos participantes. O ministro escutava, enquanto seus assessores entravam e saíam, trazendo notícias dos últimos acontecimentos e oferecendo tímidos conselhos, que eram retirados ao primeiro sinal de desagrado. — Nosso pessoal confirmou a história, senhor! —anunciou um homem de meia-idade, uniformizado, que viera correndo da casa. — Falaram com os jornalistas. Foi tudo como o assassino descreveu, e uma fotografia do morto foi distribuída aos jornais. — Tratem de providenciá-la — ordenou Sheng. — E que seja despachada imediatamente. Toda essa história é inacreditável. — Já estamos providenciando — respondeu o militar. — O consulado enviou um adido ao South China News. Deverá chegar em poucos minutos. — inacreditável — repetiu Sheng baixinho, os olhos se desviando para os lírios no laguinho mais perto. — A simetria é perfeita demais, a oportunidade perfeita demais, o que significa que algo é imperfeito. Alguém impôs a ordem. — O assassino? — indagou outro assessor. — Com que objetivo? Ele não tem a menor idéia de que se transformaria num cadáver antes da noite terminar no santuário. Pensava que era privilegiado, mas estávamos usando-o apenas para atrair seu antecessor, descoberto por nosso homem no Setor Especial. — Então quem? — perguntou outro assessor. — É esse o dilema. Quem? Tudo é ao mesmo tempo tentador e inepto. É tudo evidente demais, repleto de ego antiprofissional. O assassino, se está dizendo a verdade, deve acreditar que nada tem a temer de mim, mas ainda assim ameaça, presumivelmente descartando um cliente lucrativo. Profissionais não se comportam assim, e é isso que me incomoda. — Está sugerindo uma terceira parte, Ministro?
— Se é esse o caso — disse Sheng, os olhos agora fixados num único lírio —, trata-se de alguém sem experiência ou com a inteligência de um boi. É um dilema. — Está aqui, senhor! — gritou um jovem, correndo pelo jardim, segurando uma fotografia transmitida pelo teletipo. — Dê-me logo! — Sheng pegou a fotografia e virou-a para o clarão de um refletor. — É ele mesmo! Jamais esquecerei este rosto enquanto viver! Abram o caminho! Digam à mulher em Macau para dar o número a nosso assassino e efetuem uma varredura eletrônica de todos os grampos possíveis. O fracasso é a morte. — Imediatamente, Ministro! O operador voltou correndo para a casa. — Minha esposa e meus filhos... — murmurou Sheng Chou Yang, pensativo. — Devem estar incomodados com todo este tumulto. Um de vocês pode fazer o favor de entrar e explicar que problemas de estado me afastam de sua amada presença? — A honra é minha, senhor — disse um assessor. — Eles sofrem muito com as exigências de meu trabalho. São todos anjos. Mas um dia serão recompensados. Bourne tocou no ombro do conduto e depois apontou para a marquise iluminada de um hotel, no lado direito da rua. — Vamos nos registrar ali e procurar uma cabine telefônica no outro lado da cidade. Certo? — É sensato — respondeu o chinês. — Eles estão por toda a companhia telefônica. — E precisamos dormir um pouco. O Francês sempre me dizia que o descanso também era uma arma. Ora, por que estou me repetindo a todo instante? — Porque está obcecado — comentou McAllister do banco traseiro. — Fale-me a respeito... Não, não fale. Jason discou o número em Macau que acionava um retransmissor na China, ligado a um telefone seguro na Montanha da Torre de Jade. Enquanto o fazia, olhou para o analista e perguntou rapidamente: — Sheng fala francês? — Claro. Ele negocia com o Quai d’Orsay e fala a língua de todos com que negocia. É uma de suas forças. Mas por que não usar o mandarim? Você o conhece. — O comando não conhecia, e se eu falasse inglês ele poderia especular sobre o que aconteceu com o sotaque britânico. O francês vai encobrir todas as diferenças, como aconteceu com Soo Jiang, e
também me permitirá determinar se é Sheng ou não. Bourne estendeu um lenço pelo bocal, enquanto ouvia uma segunda campainha ecoando, a dois mil e quinhentos quilômetros de distância. Os scramblers estavam em ação. — Wei? — Comme le colonel, je préfire le français. — Shemma? — gritou a voz, aturdida. — Fawen —disse Jason, a palavra mandarim para francês. — Fawen? Wo buhui! — respondeu o homem, excitado, declarando que não falava francês. A ligação era inesperada. Outra voz se intrometeu; estava em segundo plano, muito baixa para ser ouvida. E um momento depois estava na linha. — Porquoi vous parlez français? Era Sheng! Não importava a língua, Bourne jamais esqueceria a fala monótona do orador. Era o fanático sacerdote de um Deus brutal, seduzindo uma audiência, antes de atacá-la com fogo e enxofre. — Digamos que me sinto mais à vontade. — Está certo. Qual é essa história incrível que você alega? Essa loucura .durante a qual um nome foi mencionado? — Fui também informado de que fala francês. Houve uma pausa em que se podia ouvir apenas a respiração firme de Sheng. — Você sabe quem eu sou? — Conheço um nome que nada significa para mim. Mas significa para outra pessoa. Alguém que você conheceu há muitos anos. Ele quer falar com você. — O quê? — berrou Sheng. — Traição! — Não há nada disso, e se eu fosse você escutaria o que ele tem a dizer. Ele percebeu tudo na história que contei aos americanos. Os outros não perceberam nada, mas ele compreendeu tudo. Bourne olhou para McAllister a seu lado; o analista acenou com a cabeça, como a dizer que Jason estava usando de forma convincente as palavras que lhe sugerira. — Só com uma olhada em mim ele somou dois mais dois — acrescentou Bourne. — Mas também o garoto original do Francês estava numa pior, a cabeça parecia uma couve-flor sangrenta.
— O que você fez? — Provavelmente o maior favor que já lhe prestei, e espero ser bem pago por isso. Vou passar o telefone para o seu amigo. Ele falará em inglês. Bourne estendeu o fone para o analista, que disse no mesmo instante: — Aqui é Edward McAllister, Sheng. — Edward...? O aturdido Sheng Chou Yang não pôde completar o nome. — Esta conversa é particular, não tem sanção oficial. Meu paradeiro é desconhecido, não está registrado. Falo exclusiva- mente em meu benefício... e no seu. — Você... me deixa surpreso, meu velho amigo — disse o ministro devagar, apreensivo, recuperando o controle. — Vai ler toda a história nos jornais da manhã e tenho certeza de que já está saindo nos noticiários no Havaí, O consulado queria que eu desaparecesse por alguns dias... quanto menos perguntas, melhor... e eu sabia com quem queria me encontrar. — O aconteceu, e como você... — A semelhança na aparência era óbvia demais para ser pura coincidência — interrompeu o subsecretário de Estado. — Imagino que d’Anjou queria tirar o máximo de proveito da legenda, e isso incluía as características físicas para os que se haviam encontrado com Jason Bourne no passado. Um estímulo desnecessário, em minha opinião, mas foi eficaz. No pânico em Victoria Peak... e pelo rosto quase irreconhecível... ninguém mais percebeu a semelhança extraordinária. Mas também nenhum dos outros conheceu Bótirne. Eu conheci. — Você? — Expulsei-o da Ásia. Eu era o homem que ele foi matar, e com o seu senso pervertido de ironia e vingança, decidiu, no processo, deixar o cadáver de seu assassino em Victoria Peak. Felizmente para mim, seu ego não lhe permitiu avaliar de maneira correta a competência do seu homem. Quando começou o tiroteio, nosso agora associado comum conseguiu dominá-lo e empurrá-lo para a frente do fogo cerrado. — Edward, as informações estão chegando tão depressa que não tenho tempo de assimilar. Quem trouxe Jason Bourne de volta? — Obviamente foi o Francês. Seu pupilo e lucrativa fonte de renda o abandonara. Queria vingança e sabia onde encontrar o único homem que poderia lhe proporcionar isso. Seu colega da
Medusa, o original Jason Bourne. — Medusa! — murmurou Sheng, com intensa aversão. — Apesar da reputação deles, havia em certas unidades uma profunda lealdade. Você salva a vida de um homem, ele nunca mais esquece. — O que o levou à conclusão absurda de que tenho alguma coisa a ver com o homem que chama de assassino... — Por favor, Sheng — interrompeu o analista. — E muito tarde para negativas. Estamos conversando. Mas responderei à sua pergunta. Percebi a situação no padrão de várias mortes. Começou com um vice-primeiro-ministro da China no Tsim Sha Tsui, junto com quatro outros homens. Todos eram seus inimigos. E no Kai-tak, na outra noite, dois de seus críticos mais veementes na delegação chinesa... alvos de uma bomba. Houve também rumores; sempre há, no submundo. Falavam de mensagens entre Macau e Guangdong, de homens poderosos em Pequim... de um homem de imenso poder. E, finalmente, havia os arquivos... Tudo somava. Apontando para você. — Arquivos? Mas do que está falando, Edward? — indagou Sheng, simulando veemência. — Por que esta é uma comunicação não-registrada e não-oficial entre nós? — Acho que você sabe. — Você é um homem inteligente. E sabe que eu não perguntaria se soubesse. Estamos acima dessas coisas. — Não diria também que um brilhante burocrata sempre mantido em segundo plano? — Para ser franco, eu esperava coisas melhores para você. Forneceu a maior parte das palavras e dos movimentos a seus supostos negociadores, durante as conferências comerciais. E todos sabem que realizou um trabalho exemplar em Hong Kong. Quando você foi embora, Washington tinha grande influência no território em sua órbita. — Decidi me aposentar, Sheng. Dei vinte anos de minha vida ao meu governo, mas não darei minha morte. Não serei emboscado e fuzilado ou liquidado por um caminhão carregado com dinamite. Não vou virar alvo para terroristas, aqui, no Irã ou em Beirute. Está na hora de eu conseguir alguma coisa para mim mesmo, para a minha família. Os tempos mudam. as pessoas mudam, viver se torna cada vez mais caro. Minha pensão e minhas perspectivas são muito inferiores ao que eu merecia. — Concordo plenamente. Edward, mas o que isso tem a ver comigo? Somos homens que fazem concessões... adversários, é certo, como num tribunal, mas também não inimigos na arena da violência. E que absurdo é esse, em nome dos céus, de meu nome ser mencionado pelos chacais do Kuomintang? — Não me venha com essa. — O analista lançou um olhar rápido para Bourne. — O que quer que nosso associado comum tenha dito, as palavras foram fornecidas por mim; não eram dele. Seu nome nunca foi mencionado em Victoria Peak e não havia ninguém de Formosa presente quando interrogamos o seu homem. Eu lhe dei essas palavras porque há alguma validade nelas para você.
Quanto ao seu nome, é para uns poucos apenas, somente para os olhos. Está nos arquivos que mencionei, uma pasta trancada em minha sala em Hong Kong. Com o registro de “Segurança Ultramáxima”. Há apenas uma cópia e se encontra num cofre em Washington, a ser liberada ou destruída apenas por mim. Contudo, se o inesperado acontecer... como um acidente de avião, meu desaparecimento, minha morte... a cópia será entregue ao Conselho de Segurança Nacional. As informações que ali estão, nas mãos erradas, podem ser catastróficas para todo o Extremo Oriente. — Estou intrigado, Edward, por suas informações francas, embora incompletas. — Encontre-se comigo, Sheng. E leve dinheiro, muito dinheiro... dinheiro americano. Nosso associado mútuo me diz que há colinas em Guangdong para onde seu pessoal voou, a fim de encontrálo. Vamos nos encontrar amanhã, entre dez e meia-noite. — Devo protestar, meu amigo adversário. Ainda não me ofereceu um incentivo suficiente. — Posso destruir as duas cópias. Fui enviado a Hong Kong para investigar uma história procedente de Formosa, uma história tão prejudicial a todos os nossos interesses que uma insinuação de seu conteúdo poderia desencadear uma sucessão de acontecimentos apavorantes. Creio que há considerável substância na história e, se estou certo, pode levar diretamente a meu antigo colega nas conferências sino-americanas. Não poderia estar ocorrendo sem ele... É a minha última missão, Sheng, e umas poucas palavras minhas podem remover o arquivo da face da terra. Basta eu declarar que as informações são totalmente falsas e perigosamente inflamatórias compiladas por seus inimigos em Formosa. Os poucos que têm conhecimento querem acreditar nisso, aceitar minha palavra. Minha cópia seria destruída, e o mesmo aconteceria com a que.está em Washington. — Ainda não explicou por que devo me encontrar com você. — O filho de um taipan do Kuomintang saberia. O líder de uma conspiração em Pequim saberia. Um homem que pode cair em desgraça e ser decapitado amanhã de manhã certamente saberia. A pausa foi prolongada, a respiração no outro lado da linha tornou-se irregular. Finalmente, Sheng disse: — As colinas em Guangdong. Ele sabe onde. — Só um helicóptero — disse McAllister. — Você e o piloto, mais ninguém.
Capítulo 37 Escuridão. O vulto vestido no uniforme de um fuzileiro dos Estados Unidos pulou do alto do muro, nos fundos do terreno da casa em Victoria Peak. Esgueirou-se para a esquerda, passando por uma barreira de rolos de arame farpado, que preenchia o espaço em que um trecho do muro fora demolido. Foi avançando. Sempre nas sombras, correu pelo gramado, até o canto da casa. Esticou o pescoço e deu uma olhada nas janelas derrubadas do que fora antes um estúdio vitoriano. Na frente do vidro estilhaçado e das armações arrebentadas se postava um fuzileiro, um rifle M-16 apoiado relaxadamente na relva, a extremidade do cano na mão, uma automática 45 presa no cinto. O acréscimo de um rifle à arma menor era um sinal de alerta máximo... o intruso compreendeu isso e sorriu ao constatar que o guarda não julgava necessário empunhar o M-16 com as duas mãos. Fuzileiros e armas em prontidão não eram uma combinação das mais favoráveis. A coronha de um rifle acertaria a cabeça de um homem antes que ele percebesse o que estava acontecendo, O intruso esperou pelo momento oportuno; ocorreu quando o guarda estufou o peito num bocejo prolongado, os olhos se fechando por um instante, enquanto aspirava fundo. O intruso correu, o fio de um garrote se elevou por cima da cabeça do guarda. Tudo acabou em poucos segundos. Não houve praticamente qualquer barulho. O assassino deixou o corpo onde caiu, pois ali estava mais escuro do que em outras áreas do terreno. Muitos dos refletores nos fundos haviam sido destruídos pelas explosões. Ele se levantou e esgueirou-se até o canto seguinte, onde tirou um cigarro do bolso, acendendo-o com um isqueiro de gás, a chama protegida pela mão em concha. Depois saiu para o clarão dos refletores e encaminhou-se calmamente para as enormes portas francesas queimadas, onde estava um segundo fuzileiro, nos degraus de alvenaria. O intruso deu uma tragada, segurando o cigarro com a mão esquerda, o que lhe encobria parcialmente o rosto. — Saiu para fumar? — perguntou o guarda. — Isso mesmo. Não conseguia dormir. O intruso falou com uru sotaque americano que era um produto do sudoeste. — Aqueles catres miseráveis não foram feitos para se dormir. Basta sentar num deles e se descobre... Ei, espere aí! Quem é você? O fuzileiro não teve chance de apontar o rifle. O intruso avançou, enfiando a faca na garganta do guarda com uma precisão implacável, cortando todo som, toda vida. O assassino arrastou rapidamente o cadáver pelo canto do prédio e deixou-o nas sombras. Limpou a lâmina da faca no uniforme do morto, tornou a guardá-la por baixo da túnica, sob o cinto, no quadril direito. E voltou às portas francesas. Entrou na casa. Percorreu o corredor comprido e mal iluminado, ao final do qual se encontrava um terceiro fuzileiro, na frente de uma porta larga, toda entalhada. O guarda virou o rifle para baixo e consultou o relógio. — Chegou cedo — disse ele. — Ainda tenho mais uma hora e vinte minutos.
— Não estou com esta unidade, companheiro. — E do grupo de Oahu? — Isso mesmo. — Pensei que tinham despachado vocês de volta ao Havaí. É o que dizem. — Alguns receberam a ordem de ficar. Estamos agora lá no consulado. Aquele cara... como é mesmo o seu nome?... acho que é McAllister... passou a noite inteira tomando nossos depoimentos. — Quer saber de uma coisa? Acho que essa história toda está muito esquisita. — E põe esquisito nisso. Por falar nisso, onde fica a sala daquele bicha? Ele me mandou até aqui para buscar o seu fumo de cachimbo especial. — Dá para imaginar. Misture um pouco de maconha no fumo. — Onde é a sala? — Primeiro, eu vi o médico e ele entrarem naquela primeira porta à direita. E depois, antes de ir embora, ele entrou aqui. O guarda inclinou a cabeça para indicar a porta em suas — De quem é esta casa? — Não sei o nome, mas dizem que o cara é um figurão. Chamam ele de embaixador. Os olhos do assassino se estreitaram. — Embaixador? — Isso mesmo. A sala está toda arrebentada. Metade foi destruída por aquele maníaco filho da puta. Mas o cofre está intacto. É por isso que estou aqui e tem outro cara lá fora, no meio das tulipas. Deve haver uns dois milhões lá dentro para as atividades extracurriculares. — Ou mais alguma coisa — disse o intruso, suavemente. — A primeira porta à direita, hem? O assassino virou-se, enfiando a mão por baixo da túnica. — Ei, espere um pouco! — exclamou o fuzileiro. — Por que o portão não avisou de sua vinda? — Ele pegou o rádio preso no cinto. — Desculpe, companheiro, más tenho de verificar. Não posso deixar de... O assassino arremessou a faca. Enquanto ela se cravava no peito do guarda, ele se jogou em cima do fuzileiro, os polegares comprimindo-lhe a garganta. Trinta segundos depois, abriu a porta da sala de Havilland e arrastou o cadáver para o interior.
Atravessaram a fronteira em plena escuridão, ternos e gravatas substituindo as roupas amarrotadas e indefinidas que haviam usado antes. Completando a indumentária, levavam duas pastas de executivo, em que estavam colados adesivos com a palavra diplomatique, indicando que o conteúdo eram documentos oficiais que não podiam passar pela inspeção dos agentes de imigração. Na verdade, as pastas continham as armas, assim como vários itens adicionais que Bourne recolhera no apartamento de d’Anjou, depois que McAllister apresentara o adesivo sacrossanto, que era respeitado até mesmo na República Popular... respeitado enquanto a China desejasse que a mesma cortesia fosse oferecida a seu pessoal no serviço diplomático. O conduto de Macau, cujo nome era Wong — ou pelo menos foi esse o nome que ele apresentou —, ficou impressionado com os passaportes diplomáticos, mas, como medida de segurança, assim como pelos vinte mil dólares americanos, que disse lhe imporem uma obrigação moral, resolveu preparar a travessia da fronteira à sua maneira. — Não foi tão difícil quanto talvez eu o tenha levado a acreditar antes, senhor — explicou Wong. — Dois dos guardas são primos por parte de minha abençoada mãe... que ela descanse em paz com o sagrado Jesus... e sempre nos ajudamos uns aos outros. Faço mais por eles do que eles por mim, mas também me encontro em situação melhor. Suas barrigas estão mais cheias do que a maioria dos habitantes da cidade de Zhuhai Shi e ambos possuem aparelhos de televisão. — Se são primos, por que naquela vez protestou contra o relógio que dei a um deles? — indagou Bourne. — Disse que era caro demais. — Porque ele venderia, senhor. Além disso, não quero que ele fique mimado. Passaria a exigir muito de mim. As fronteiras mais fechadas do mundo eram patrulhadas com base em tais considerações, pensou Bourne. Eles foram orientados por Wong a passar pelo último portão da direita, exatamente às oito e cinqüenta e cinco; o chinês passaria separado, alguns minutos depois. Os passaportes com as tarjas vermelhas foram examinados, enviados a um oficial que estava na casa da guarda e depois os dois diplomatas honrados passaram, entre muitos sorrisos de um dos primos. No outro lado, foram bem recebidos na China pela chefe do Controle da Província de Guangdon, em Zhuhai Shi, que lhes devolveu os passaportes. Era uma mulher baixa, de ombros largos, musculosa. Jason pensou que não gostaria de enfrentá-la num combate corpo a corpo. O inglês da mulher era prejudicado por um forte sotaque, mas ainda assim compreensível. — Vocês têm negócios do governo a tratar em Zhuhai Shi? — perguntou ela, o sorriso em contradição com os olhos preocupados, vagamente hostis. —Talvez na guarnição de Guangdong? Não querem que eu arrume transporte de automóvel? — Bu xiexie — disse o subsecretário de Estado. Depois, por cortesia, continuou a falar em inglês, em respeito à diligência da mulher em aprendê-lo. — É uma reunião sem grande importância, que vai durar apenas algumas horas. Voltaremos a Macau assim que acabar. Vão entrar em contato conosco aqui, e por isso vamos tomar um café e esperar.
— Na minha sala, por favor? — Obrigado, mas acho que não. As pessoas vão nos procurar no... kafie dian, no café. — Fica à esquerda-direita, senhor. Na rua. Mais uma vez, bem-vindos à República Popular. — Sua cortesia não será esquecida — disse McAllister, fazendo uma mesura. — Tem meus agradecimentos — respondeu a corpulenta mulher, acenando com a cabeça e afastando-se. — Para usar suas palavras, analista — disse Bourne —, saiu-se muito bem. Mas eu diria que ela não está do nosso lado. — Claro que não — concordou o subsecretário. — Ela recebeu instruções para falar com alguém na guarnição aqui ou em Pequim e confirmar que cruzamos a fronteira. Esse alguém entrará em contato com Sheng e ele saberá que eu passei... e você também. E ninguém mais. — Ele vem pelo ar —comentou Jason, enquanto se encaminhavam lentamente para o café mal iluminado, na extremidade de um sujo caminho de concreto que saía da rua. — Já está a caminho daqui. De passagem, informo que seremos seguidos. Sabe disso, não é mesmo? — Não, não sei — respondeu McAllister, lançando um olhar rápido para Bourne. — Sheng será cauteloso. Dei informações suficientes para alarmá-lo. Se ele pensasse que havia apenas um dossiê... o que por acaso acontece... poderia correr o risco, tentando comprá-lo e depois me matar. Mas ele pensa ou tem de presumir que existe uma cópia em Washington. É a que ele precisa destruir. Não fará coisa alguma para me perturbar ou me levar a entrar em pânico e fugir. Lembre-se de que sou um amador e me assusto facilmente. Eu o conheço. Ele já somou tudo a esta altura e provavelmente está me trazendo mais dinheiro do que jamais sonhei. Claro que ele espera recuperá-lo imediatamente, assim que se apossar do dossiê e me matar. Portanto, como vê, tenho um motivo muito forte para não fracassar... ou para não alcançar o sucesso pelo fracasso O homem da Medusa tornou a fitar nos olhos o homem de Washington. — Pensou mesmo em tudo, hem? — Meticulosamente — respondeu McAllister, olhando para a frente. — Durante semanas. Todos os detalhes. Para ser franco, não pensei que você teria alguma participação, pois achava que já estaria morto. Mas tinha certeza de que eu poderia fazer contato com Sheng. De alguma forma... extraoficialmente, é claro. Qualquer outra forma, inclusive uma conferência confidencial, implicaria protocolo; mesmo que eu conseguisse vê-lo a sós, sem a presença de seus assessores, eu não poderia tocá-lo. Pareceria um assassinato sancionado pelo governo. Pensei em procurá-lo diretamente, em nome dos velhos tempos, usando palavras que provocariam uma resposta... mais ou menos o que fiz ontem à noite. Como você disse a Havilland, os meios mais simples são geralmente os melhores. Sempre tendemos a complicar as coisas. — Falando em sua defesa, muitas vezes isso é indispensável. Não se pode ser apanhado com
uma arma fumegante. — É uma expressão muito batida — comentou o analista, com um sorriso desdenhoso. — O que significa? Que você foi encaminhado ou desencaminhado a um erro de conseqüências inconseqüentes? A política não gira em torno do embaraço de um único homem, ou pelo menos não deveria. Sempre fico consternado com os clamores das pessoas por integridade, quando não têm a menor idéia, nenhum conceito, da maneira como devemos operar — Talvez as pessoas queiram de vez em quando uma resposta direta. — Não podem ter — disse McAllister, ao se aproximarem da entrada do café — porque não compreenderiam. Bourne parou na frente da porta, sem abri-la. — Você está cego — disse ele, fitando o subsecretário nos olhos. —Também não recebi uma resposta direta, muito menos uma explicação. Passou tempo demais em Washington. Deveria experimentar algumas semanas em Cleveland ou Bangor, Maine. poderia ampliar as suas perspectivas. — Não me faça um sermão, Sr. Bourne. Menos de quarenta e seis por cento de nossa população se importam o suficiente para votar... o que determina os rumos que tomamos. Tudo fica a nosso critério... os artistas e os burocratas profissionais. Somos tudo o que vocês têm... Podemos entrar, por favor? Seu amigo Sr. Wong disse que deveríamos passar apenas alguns minutos sendo vistos a tomar café e depois sairmos para a rua. Disse que nos encontraria dentro de vinte e cinco minutos exatamente e já se passaram doze. — Doze? Não dez ou quinze, mas doze? — Isso mesmo. — O que vamos fazer se ele se atrasar dois minutos? Fuzilá-lo? — Muito engraçado — murmurou o analista, abrindo a porta. Deixaram o café para a calçada escura da praça mal cuidada em frente ao posto de fronteira de Guangdong. Como era uma hora de pouco movimento nos portões, não havia mais que uma dúzia de pessoas atravessando a praça e desaparecendo na escuridão. Dos três lampiões nas proximidades, apenas um estava aceso, projetando uma claridade fraca. A visibilidade era mínima, O prazo de vinte e cinco minutos se esgotara e passou para hora, depois se aproximou dos trinta e oito minutos, Bourne disse: — Alguma coisa está errada. Ele já deveria ter feito contato, a esta altura. — Dois minutos e o fuzilamos? — disse McAllister, no mesmo instante, detestando sua tentativa de humor. — Pensei que manter a calma era tudo. — Por dois minutos, não quase quinze — respondeu Jason. E baixinho, como se falasse para si
mesmo, acrescentou: — Não é normal. Por outro lado, poderia ser normalmente anormal. Quer que a gente faça contato com ele. — Não estou entendendo... — Nem precisa. Basta andar ao meu lado, como se estivéssemos passeando, passando o tempo até alguém nos procurar. Se ela nos vir, a mulher que deve ser campeã de luta-livre, não ficará surpresa. As autoridades chinesas sempre se atrasam para as reuniões; acham que isso lhes proporciona uma vantagem. — Que eles esperem? — Exatamente. Só que não é com gente assim que vamos nos encontrar agora. Vamos para a esquerda, onde está mais escuro, longe do lampião. Procure parecer descontraído, fale sobre o tempo, qualquer coisa. Balance a cabeça, dê de ombros... e continue andando, os movimentos suaves. Haviam percorrido cerca de quinze metros quando aconteceu. Kam Pek! O nome do cassino em Macau foi sussurrado das sombras além de uma banca de jornal vazia. — Wong? — Fiquem onde estão e finjam que conversam, mas escutem as minhas palavras. — O que aconteceu? — Vocês estão sendo seguidos. — Dois pontos para um brilhante burocrata — disse Jason. — Algum comentário, Sr. subsecretário? — É inesperado, mas não ilógico — respondeu McAllister. — Talvez uma salvaguarda. Passaportes falsos abundam por aqui, como por acaso sabemos. — Observaram a nossa partida. — Talvez estejam querendo se certificar de que não vamos nos encontrar com o tipo de pessoas que você sugeriu ontem à noite — sussurrou o analista, a voz muito baixa para se ouvida pelo conduto chinês. — É bem possível. — Bourne alteou ligeiramente a voz, a fim de que o conduto pudesse ouvilos, os olhos fixos no portão da fronteira. Não havia ninguém ali. — Quem está nos seguindo? — O Porco. — Soo Jiang?
— Isso mesmo, senhor. E o motivo pelo qual devo permanecer fora de vista. — Mais alguém? — Ninguém que eu pudesse ver, mas não sei quem pode estar na estrada para as colinas. — Vou liquidá-lo — disse o homem da Medusa chamado Delta. — Não! — objetou McAllister. — As ordens que ele recebeu de Sheng podem incluir a confirmação de que permanecemos sozinhos, que não nos encontramos com mais ninguém. Concordou que era possível. — Ele só poderia fazer isso se entrasse em contato com outros. Não poderá fazê-lo... se for isolado agora. E seu velho amigo não permitiria uma transmissão de rádio enquanto está num avião ou helicóptero. Poderia ser interceptada. — Vamos supor que haja sinais específicos... um foguete ou uma lanterna potente, informando ao piloto que o campo está livre? Jason olhou para o analista. — Você pensa mesmo em tudo. — Há uma maneira — disse Wong, das sombras. — E é um privilégio que eu gostaria de reservar para mim mesmo, sem custo adicional. — Que privilégio? — Eu matarei o Porco. Será feito de tal forma que a missão não ficará comprometida. — O quê? Atônito, Bourne fez menção de virar a cabeça. — Por favor, senhor! Olhe só para a frente! — Desculpe. Mas por quê? — Ele fornica indiscriminadamente, ameaçando as mulheres que conquista com a perda do emprego para elas e seus maridos, até mesmo para irmãos e primos. Durante os últimos quatro anos ele levou a vergonha a muitas famílias, inclusive a mmha, por parte de minha abençoada mãe. — Por que ele ainda não foi morto? — Sempre anda com guardas armados, mesmo em Macau. Apesar disso, porém, já houve vários atentados de homens enfurecidos. E resultaram em represálias. — Represálias?
— Foram escolhidas pessoas, também de forma indiscriminada, acusadas de roubar suprimentos e equipamentos da guarnição. A punição para esse crime é a morte nos campos. — Não vou mais fazer perguntas — murmurou Bourne. — Você tem motivos suficientes. Mas como, esta noite? — Os guardas não estão com ele agora. Talvez estejam à sua espera na estrada para as colinas, mas não se encontram em sua companhia neste momento. Comecem a se encaminhar para lá; se ele seguir, eu irei atrás. Se ele não seguir, saberei que a viagem não será interrompida e os alcançarei mais adiante. — Vai nos alcançar? — disse Bourne, franzindo o rosto. — Depois de matar o Porco e deixar seu corpo no lugar apropriado e, para ele, desonroso. O banheiro das mulheres. — E se ele nos seguir? — indagou Jason. — Minha oportunidade vai chegar, mesmo enquanto sirvo como seus olhos. Verei os guardas, mas eles não me verão. Não importa o que o Porco faça, há de chegar o momento em que vai se separar, mesmo que seja apenas alguns passos, na escuridão. Será o suficiente, e todos vão presumir que ele impôs vergonha a um de seus próprios homens. — Vamos embora. — Conhece o caminho, senhor? — Como se estivesse com um mapa nas mãos. — Eu o encontrarei na base da primeira colina, além do mato alto. Está lembrado? — Seria difícil esquecer. Quase comprei uma sepultura na China ali. — Depois de sete quilômetros, siga pela floresta, na direção dos campos. — é o que tenciono fazer. Você me ensinou. Tenha uma boa caçada, Wong. — Terei mesmo, senhor. Tenho motivos suficientes. Os dois americanos atravessaram a praça mal cuidada, deixando a claridade precária para a total escuridão. Um vulto obeso, à paisana, observava-os das sombras da calçada de concreto. Olhou para o relógio e balançou a cabeça, sorrindo para si mesmo de satisfação. O Coronel Soo Jiang virou-se e voltou pelo túnel para o complexo de imigração, com portões de ferro, cabine de madeira e rolos de arame farpado a distância, tudo iluminado por uma claridade cinzenta. A chefe do Controle da Província de Guangdong em Zhuhai Shi avançou em sua direção, determinada, marcial, entusiástica.
— Eles devem ser muito importantes, Coronel —comentou ela, os olhos não mais hostis, mas com uma expressão que beirava a adoração cega... e o medo. — São sim, são sim... — Não poderiam deixar de ser para merecer a atenção de um oficial tão ilustre. Dei o telefonema para o homem em Guangzhou, como pediu. Ele me agradeceu, mas não anotou meu nome... — Pode deixar que cuidarei disso — interrompeu Soo, cansado. — E manterei os melhores homens nos portões para recebê-los quando voltarem a Macau. Soo fitou a mulher nos olhos. — Não será necessário. Eles serão levados a Pequim para conferências confidenciais, do mais alto nível. Minhas ordens são para eliminar todos os registros da passagem dos dois pela fronteira de Guangdong. — É tão confidencial assim? — É sim, Camarada Madame. São negócios de estado secretos e devem continuar assim. Nem mesmo os associados mais íntimos devem tomar conhecimento. Vamos para o seu gabinete, por favor — Imediatamente —A mulher de ombros largos virou-se, com uma precisão militar. — Tenho chá ou café, até mesmo o uísque britânico de Hong Kong. — Ah, sim, o uísque britânico... Posso acompanhá-la, camarada? Meu trabalho acabou. Os dois vultos wagnerianos, um tanto grotescos, marcharam para a porta de vidro do gabinete. — Cigarros! — sussurrou Bourne, segurando o ombro de McAllister. — Onde? — Lá na frente, perto da estrada, à esquerda. No bosque. — Não vi nada. — Não estava procurando. Estão sendo cobertos pelas mãos, mas dá para perceber. Os troncos das árvores recebem um reflexo de claridade num momento e no seguinte ficam escuros. Sem qualquer ritmo, completamente irregular. Homens fumando. Penso às vezes que o Extremo Oriente gosta mais de cigarro do que de sexo. — O que vamos fazer? — Exatamente o que já estamos fazendo, só que mais alto.
— Como assim? — Continue andando e diga qualquer coisa que lhe passar pela cabeça. Eles não vão mesmo compreender. Tenho certeza de que conhece “Hiawatha” ou “Horatio na Ponte”... talvez até se lembre de Aura Lee dos tempos do colégio. Não cante, só diga as palavras. Vai manter sua cabeça distante de outras coisas. — Mas por quê? — Porque está acontecendo justamente o que você previu. Sheng se certifica de que não fazemos contato com alguém que possa representar uma ameaça para ele. Vamos lhe oferecer essa garantia, está bem? — E se um deles falar inglês? — É altamente improvável; mas, se preferir, improvise uma conversa. — Não sou muito bom nessas coisas. Detesto festas e jantares porque nunca sei o que dizer. — Foi por isso que sugeri os versos recitados. Direi alguma coisa sempre que fizer uma pausa. Vamos começar. Fale de maneira descontraída, mas depressa. Este não é um lugar para estudiosos chineses que falam inglês rapidamente... Os cigarros se apagaram. Eles já nos avistaram. Vamos logo! — Oh, Deus... está bem... “Sentado na varanda de O’Reilly, contando histórias de sangue e tragédia...” — Muito apropriado! — disse Jason, lançando um olhar irritado a seu pupilo. — “De repente me ocorreu, por que não comer a filha de O’Reilly..” — Devo dizer, Edward, que você não pára de me surpreender. — É uma velha canção da minha fraternidade na universidade — sussurrou o analista. — Como? Não consigo ouvi-lo, Edward. Fale mais alto. — “Ô, o, ô, i, i, i, como é gostosa a filha de Reilly...” — Sensacional! — interrompeu Bourne, enquanto passavam pelo trecho do bosque em que apenas poucos segundos antes homens escondidos estavam fumando. — Creio que seu amigo vai compreender esse ponto de vista. Mais algum pensamento? — Esqueci a letra. — Perguntei por seus pensamentos. Tenho certeza de que vai se lembrar
— Alguma coisa sobre “o velho Reilly”... Ah, sim, estou lembrando agora. Primeiro, havia “trepe e trepe”, trepe mais um pouco, trepe até não poder mais”, só depois é que vinha o velho Reilly... “Duas pistolas no cinto, à procura do sacana que comeu a sua filha.” Lembrei de tudo — Você pertence a um museu, se Ripley criou algum... Mas pense da seguinte forma: pode pesquisar todo o projeto quando voltar a Macau — Que projeto?... Havia outra que sempre era muito engraçada. “Cem garrafas de cerveja na parede, cem garrafas de cerveja; uma caiu...” Ora, era comprida demais. Uma redução repetitiva... “noventa e nove garrafas de cerveja na parede...” — Pode esquecer. Eles já estão fora do alcance de nossas vozes. — Já estão? Graças a Deus! — Saiu-se muito bem. Se algum daqueles palhaços sabia alguma palavra de inglês, então está ainda mais confuso do que eu. Gostei, analista. Vamos andar mais depressa. McAllister fitou Jason. — Fez de propósito, não é? Estimulou-me a lembrar alguma coisa... qualquer coisa... sabendo que eu me concentraria e não entraria em pânico. Bourne não respondeu; limitou-se a fazer uma declaração: — Mais trinta metros e você pode continuar sozinho. — O quê? Vai me deixar? — Por uns dez minutos, talvez quinze. Continue a andar e levante o braço, a fim de que eu possa pôr a pasta em cima e abri-la. — Onde você vai? — perguntou o subsecretário, enquanto a pasta era ajeitada meio sem jeito em seu braço esquerdo. Jason abriu-a, tirou uma faca de lâmina comprida e tornou a fechá-la. — Não pode me deixar sozinho! — Não há problema. Ninguém vai querer deter você... a nós. Se quisessem, já o teria feito. — Está querendo dizer que poderia ter sido uma emboscada? — Eu contava com a conclusão de sua mente analítica de que não era. Pegue a pasta. — Mas o que você vai... — Preciso saber o que está acontecendo lá atrás. Continue andando. O homem da Medusa afastou-se para a esquerda e entrou no bosque, numa curva da estrada.
Avançando rapidamente, sem fazer barulho, evitando instintivamente as moitas emaranhadas ao primeiro sinal de resistência, seguiu para a direita, descrevendo um amplo semicírculo. Minutos depois avistou o clarão de cigarros; deslocando-se como um felino, foi se aproximando, até ficar a três metros dos homens. O luar intermitente, filtrado pelas árvores frondosas, proporcionava claridade suficiente para que pudesse fazer uma contagem. Havia seis homens, cada um armado com uma submetralhadora pendurada no ombro... E havia algo mais, algo extremamente incongruente. Cada um dos homens usava o uniforme de quatro botões de oficiais superiores do exército da República Popular. E pelos pedaços de conversa que pôde captar, Bourne constatou que eles falavam mandarim e não cantonês, que era o dialeto normal para soldados, até mesmo oficiais, na guarnição de Guangdong. Não eram homens de Guangdong. Sheng trouxera sua guarda de elite. Subitamente, um dos oficiais acendeu o isqueiro e olhou para o relógio. Bourne estudou o rosto por cima da chama. Conhecia o homem e seu julgamento foi confirmado. Era o mesmo que tentara enganar Eco, apresentando-se como prisioneiro no caminho, naquela noite terrível, o oficial que Sheng tratara com alguma deferência. Um assassino pensante, de fala mansa. — Xian zai —disse o homem, anunciando que o momento chegara. Pegou um rádio portátil e gritou, chamando o interlocutor pelo codinome de Mármore: — Da li shi, da li shi! Eles estão sozinhos, não há mais ninguém. Vamos continuar de acordo com as instruções. Prepare-se para o sinal. Os seis oficiais levantaram-se ao mesmo tempo, ajustando as armas e apagando os cigarros, esmagando-os sob as botas. E começaram a se encaminhar depressa para a estrada. Bourne deu uma volta, engatinhando, ficou de pé e correu pelo bosque. Tinha de alcançar McAllister antes que o contingente de Sheng chegasse perto e descobrisse pelo luar esporádico que o analista se encontrava sozinho. Se os guardas ficassem alarmados, poderiam enviar um “sinal” diferente: Conferência malograda. Alcançou a curva na estrada e correu mais depressa, pulando sobre galhos caídos que outros homens não perceberiam, esgueirando-se entre cipós e folhagens entrelaçadas que outros não preveriam. Menos de dois minutos depois emergiu silenciosamente do bosque para o lado de McAllister. — Santo Deus! — balbuciou o subsecretário. — Fale baixo! — Você é.um louco! — Fale-me a respeito. — Levaria horas. — Com as mãos trêmulas, McAllister devolveu a pasta a Jason. — Pelo menos esta coisa não explodiu.
— Eu deveria ter avisado para não deixar cair nem sacudir demais. — Oh, não!... Não está na hora de sairmos da estrada? Wong disse... — Esqueça. Vamos permanecer em plena vista até chegarmos ao campo na segunda colina, quando você ficará mais à vista do que eu. Vamos depressa. Alguma espécie de sinal será transmitida, o que significa que você estava certo mais uma vez. O piloto vai receber o aviso de que pode pousar... nada de comunicação pelo rádio, apenas uma luz. — Devemos nos encontrar com Wong em algum lugar. Creio que ele falou na base da primeira colina. — Vamos lhe dar alguns minutos, mas acho que podemos esquecê-lo também. Wong verá o que eu vi; se eu estivesse no seu lugar, voltaria para Macau e os vinte mil dólares americanos, depois diria que perdi o caminho. — O que você viu? — Seis homens armados com bastante poder de fogo para desfolhar por completo uma dessas colinas. — Oh, Deus! Nunca vamos conseguir escapar! — Não perca a esperança por enquanto. É uma das coisas em que eu venho pensando. — Bourne virou a cabeça para McAllister, acelerando os passos. — Por outro lado, o risco sempre existiu... fazendo as coisas à sua maneira. — Sei disso. Não vou entrar em pânico. — O bosque ficara para trás; a estrada de terra atravessava agora campos de vegetação alta. — Para que acha que esses homens estão aqui? — São pontos de apoio para o caso de uma armadilha, coisa que qualquer um neste ofício estaria esperando. Eu lhe disse isso, mas você não quis acreditar em mim. Mas se uma coisa que comentei é certa... e acho que é... eles ficarão fora de vista, a fim de evitar que você entre em pânico e fuja. Se isso acontecer, será a nossa saída. — Como? — Siga para a direita e atravesse o campo — disse Jason, sem responder à pergunta. — Darei cinco minutos a Wong, a menos que avistemos um sinal em algum lugar ou escutemos o barulho de um avião ou helicóptero. Mas não mais do que isso. E darei todo esse tempo porque quero realmente aquele par de olhos por que paguei. — Ele não poderia dar a volta por aqueles homens sem ser visto? — Poderia perfeitamente, se não estiver voltando para Macau. Chegaram ao final do campo de mato alto e à base da
primeira colina, onde roseiras se erguiam do terreno ehi aclive. Bourne olhou para o relógio e depois para McAllister. — Vamos subir até lá e sumir — disse ele, apontando para as árvores mais acima, — Ficarei para trás, mas você continua a subir. Só que não deve sair para o campo seguinte, não deve se expor. Fique à margem. Se avistar alguma luz ou ouvir um helicóptero. assovie. Sabe assoviar, não sabe? — Para dizer a verdade, não muito bem. Quando as crianças eram pequenas e tínhamos um cachorro, um retriever dourado... — Pare com isso, pelo amor de Deus! Jogue pedrinhas pelas árvores que ouvirei. E agora continue em frente! — Já entendi. Ande! Delta — pois ele era DeIta agora — iniciou a vigília. O luar era a todo instante interceptado pelas nuvens baixas, que corriam pelo céu; ele esquadrinhava o campo de mato alto, procurando por uma mudança no padrão monótono, por hastes se inclinando para a base da colina, em sua direção. Três minutos se passaram, e ele quase concluíra que era perda de tempo quando um homem subitamente emergiu da relva à sua direita e mergulhou pela folhagem. Bourne largou a pasta no chão e tirou do cinto a faca de lâmina comprida. — Kam Pek! — sussurrou o homem — Wong? — Isso mesmo, senhor — respondeu o chinês, contornando os troncos das árvores para se aproximar de Jason. — Sou cumprimentado com uma faca? — Há algumas outras pessoas lá atrás e, para dizer a verdade, eu não esperava que você aparecesse. Eu lhe disse que poderia ir embora se os riscos parecessem grandes demais. Não pensei que pudesse ocorrer tão cedo, mas teria aceitado. Aqueles homens estão empunhando armas muito possantes. — Eu poderia me aproveitar da situação, mas, além do dinheiro, proporcionou-me um ato de enorme gratificação. E também para muitas outras pessoas. Mais pessoas do que pode imaginar ficarão agradecidas. — Soo, o Porco? — Isso mesmo, senhor — Espere um pouco — disse Bourne, alarmado. — Como pode ter tanta certeza de que vão pensar que foi um daqueles homens? — Que homens?
— A patrulha com submetralhadoras lá atrás. Não são de Guangdong, não são da guarnição. Vieram de Pequim. — O ato ocorreu em Zhuhai Shi. No portão. — Porra! Você estragou tudo! Eles estavam esperando por Soo! — Se estavam, senhor, ele nunca teria chegado. — Como? — O Porco estava se embriagando com a mulher que comanda o portão. Foi mijar e me encontrou à sua espera. Está agora no banheiro ao lado, num bidê de mulher sujo, com a garganta cortada e os órgãos genitais removidos. — Quer dizer que ele não nos seguia? — E não deu qualquer indicação de que tencionava fazê-lo. — Entendo... não, não entendo. Ele foi cortado desta noite. É uma operação exclusiva de Pequim. Contudo, ele foi o contato primário aqui... — Não sei de nada sobre essas coisas, senhor — murmurou Wong, na defensiva. — Desculpe. Não poderia mesmo saber. — Aqui estão os olhos que contratou, senhor. Onde deseja que eu olhe e o que quer que eu faça? — Teve algum problema para passar por aquela patrulha na estrada? — Nenhum. Eu os vi, eles não me viram. Estão agora sentados no bosque, à beira do campo. Se isso lhe serve de alguma ajuda, o homem com o rádio instruiu a pessoa com quem falou a partir imediatamente, assim que desse o “sinal”. Não sei o que isso significa, mas presumo que se relaciona com um helicóptero. — Presume? — O Francês e eu seguimos o major inglês até aqui uma noite. Era por isso que eu sabia para onde levá-lo na ocasião anterior. Um helicóptero pousou e homens saltaram para se encontrarem com o inglês. — Foi o que ele me disse. — Ele disse, senhor? — Não importa. Fique aqui. Se a patrulha começar a atravessar o campo, quero ser informado. Estarei lá em cima, no campo antes da segunda colina, no lado direito. O mesmo campo onde você e Eco viram o helicóptero.
— Eco? — O Francês. — Delta fez uma pausa, pensando depressa. — Não pode riscar um fósforo, não pode atrair atenção para sua presença... E de repente houve sons abafados de objetos batendo em outros objetos. Pedras! Arvores! McAllister estava mandando um aviso! — Pegue pedras ou pedaços de pau e comece a jogar no bosque, no lado direito. Eu ouvirei. — Encherei os bolsos agora mesmo. — Não tenho o direito de lhe perguntar isso — disse Delta, pegando a pasta — mas você tem uma arma? — Uma Magnum calibre três-cinco-sete, com bastante munição, cortesia de meu primo por parte de mãe, que ela descanse com o sagrado Jesus. — Espero não tornar a vê-lo; se isso acontecer, adeus, Wong. Uma parte de mim não aprova você, mas é um homem e tanto. E acredite que você realmente me venceu na última vez. — O senhor levou a melhor. Mas eu gostaria de tentar de novo. — Esqueça! — exclamou o homem da Medusa, antes de começar a subir a encosta. Como um pássaro gigantesco, monstruoso, a parte inferior do corpo pulsando com uma luz ofuscante, o helicóptero desceu para o campo. Como combinado, McAllister estava parado em plena vista; e como era de se esperar, o farol do helicóptero fixou-se nele. E também como estava combinado, Jason Bourne se encontrava a quarenta e tantos metros de distância, nas sombras do bosque... visível, mas não claramente. Os rotores pararam, com um rangido prolongado, O silêncio era opressivo. A porta foi aberta, uma escada baixada, e Sheng Chou Yang, esguio, cabelos grisalhos, desceu os degraus, carregando uma pasta. — É um prazer tornar a vê-lo depois de tantos anos, Edward — disse o primogênito de um taipan. — Gostaria de inspecionar o helicóptero? Como você pediu, não há mais ninguém, além de mim e um piloto de confiança. — Não, Sheng, você pode fazer isso por mim! — gritou McAllister, a algumas dezenas de metros de distância, tirando uma lata de dentro do casaco e jogando na direção do aparelho. — Diga ao piloto para sair por alguns minutos e acionar o spray para o interior da cabine. Se houver alguém lá dentro, vai sair correndo. — Não parece você, Edward. Homens como nós sabem quando confiar um no outro. Não somos tolos. — Faça o que estou mandando, Sheng!
— Está bem. Obedecendo à ordem, o piloto saltou do aparelho. Sheng Chou Yang pegou a lata e acionou o spray no interior do helicóptero. Vários minutos transcorreram; ninguém saiu. — Está satisfeito... ou devo explodir o aparelho, o que não serviria a nenhum dos dois? Sempre estivemos além desses jogos, meu amigo. — Mas você se tornou o que é, enquanto eu permanecia o que era. — Podemos corrigir isso, Edward. Posso exigir sua presença em todas as nossas conferências. Posso elevá-lo a uma posição de proeminência. Será um grande astro no firmamento do serviço diplomático. — Quer dizer que é verdade? Tudo o que consta do dossiê. Vocês estão de volta. O Kuomintang retorna à China... — Vamos conversar em particular, Edward. — Sheng lançou um olhar para o suposto assassino nas sombras e depois gesticulou para a direita. — É um assunto exclusivamente entre nós. Bourne moveu-se rapidamente; correu para o aparelho, enquanto os dois negociadores estavam de costas para ele. Quando o piloto subiu no helicóptero e chegou a seu assento, o homem da Medusa estava logo atrás. — An jing! — sussurrou Jason, ordenando que o homem se mantivesse em silêncio, sua pistolametralhadora reforçando a ordem. Antes que o aturdido piloto pudesse reagir, Bourne passou uma tira de pano grosso por sua cabeça, prendendo-a na boca aberta e puxando com força. Depois, tirando do bolso uma corda de náilon fina e comprida, amarrou o piloto no assento, imobilizando-lhe os braços. Não haveria uma decolagem repentina Tornando a pôr a arma no cinto, por baixo do casaco, Bourne saiu rastejando do helicóptero. O enorme aparelho bloqueava sua visão de McAllister e Sheng Chou Yang, o que significava que o inverso também acontecia. Voltou apressado à sua posição anterior, virando a cabeça a todo instante, preparado para mudar de direção se os dois homens aparecessem em qualquer lado do helicóptero, que era o seu escudo visual. Parou; estava bastante perto; estava na hora de parecer descontraído. Pegou um cigarro e riscou um fósforo, acendendo-o. Depois, caminhou a esmo, para a esquerda, até um ponto em que podia divisar com alguma dificuldade os dois vultos no outro lado do helicóptero. Imaginou o que estariam dizendo os dois inimigos. E se perguntou o que McAllister estava esperando. Faça logo, analista! Faça agora! É a sua maior oportunidade. Vai perder um tempo precioso em cada momento de espera, e isso pode acarretar complicações. Mas que diabo, faça logo de uma vez! Bourne ficou completamente imóvel. Ouviu o som de uma pedra atingindo uma árvore perto do lugar em que saíra do campo. E depois outra mais próxima e uma terceira, em rápida sucessão. Era o aviso de Wong! A patrulha de Sheng estava atravessando o campo lá embaixo!
O homem da Medusa olhou para Sheng e McAllister, seu ódio aumentando, prestes a explodir. Nunca deveria ter permitido que acontecesse assim. A morte pelas mãos de um amador, um burocrata amargurado que queria seu momento ao sol. — Kam Pek! Era Wong! Ele atravessara o bosque no segundo nível e estava atrás de Jason, escondido nas árvores. — O que é? Ouvi as pedras. — Não vai gostar do que ouvirá agora, senhor. — O que é? — A patrulha está subindo a colina. — É uma ação protetora — disse Jason, os olhos fixos nos dois vultos no campo. — Talvez não haja problemas. Eles não podem ver muita coisa. — Tenho a impressão de que isso não é tão importante, senhor. Eles estão se preparando. Eu ouvi... engatilharam suas armas para a posição de disparo. Bourne engoliu em seco, invadido por uma sensação de inutilidade. Por motivos que não podia imaginar, era uma armadilha invertida. — É melhor você sair daqui, Wong. — Posso fazer uma pergunta? Essas são as pessoas que mataram o Francês? — São. — E para as quais Soo Jiang, o Porco, trabalhou de maneira tão indecorosa durante os últimos quatro anos? — Isso mesmo. — Então acho que vou ficar, senhor. Sem dizer nada, o homem da Medusa voltou para sua pasta. Pegou-a e jogou para o bosque. — Abra-a, Wong. Se escaparmos desta, você pode passar os seus dias no cassino sem recolher mensagens. — Eu não jogo. — Mas vai jogar agora, Wong.
— Pensou mesmo que nós, os grandes senhores da guerra do mais antigo e refinado império que o mundo já conheceu, haveríamos de deixá-lo sob o domínio de camponeses imundos e sua prole mal nascida, condicionados pelas desacreditadas teorias do igualitarismo? — Sheng estava parado na frente de McAllister, segurando a pasta sobre o peito, com as duas mãos. — Eles deveriam ser nossos escravos, não nossos soberanos. — Foi esse o tipo de pensamento que fez com que vocês perdessem o país... vocês os líderes, não o povo. O povo não foi consultado. Se fosse, poderia haver acordos, concessões... e vocês ainda o teriam. — Não se faz concessões aos animais marxistas... ou a mentirosos. Assim como não farei qualquer concessão a você, Edward. — Como? Com a mão esquerda, Sheng abriu a pasta e tirou o dossiê roubado de Victoria Peak. — Reconhece isto? — perguntou ele, calmamente. — Não acredito! — Mas deve acreditar, meu velho adversário. Um pouco de engenhosidade pode produzir qualquer coisa. — E impossível! — Está aqui. Em minha mão. E a página inicial declara expressamente que só existe uma cópia, que deve ser enviada sob escolta militar, em Segurança Ultramáxima, para onde quer que vá. O que é absolutamente correto, em minha opinião, pois a sua avaliação foi acurada quando conversamos pelo telefone. O conteúdo incendiaria o Extremo Oriente... tornaria a guerra inevitável. Os direitistas de Pequim marchariam sobre Hong Kong... e os direitistas de lá seriam chamados de esquerdistas em seu lado do mundo. Um absurdo, não é mesmo? — Eu tinha uma cópia e mandei para Washington — declarou o subsecretário, a voz rápida, suave, firme. — Não acredito. Todas as transmissões diplomáticas, por telefone computadorizado ou pela mala, devem ser autorizadas pela mais alta autoridade presente. O notório Embaixador Havilland não permitiria, e o consulado não faria coisa alguma sem a sua autorização. — Mandei uma cópia para o consulado chinês! — gritou McAllister. — Você está liquidado, Sheng! — É mesmo? Quem você pensa que recebe todas as comunicações de todas as fontes externas em nosso consulado em Hong Kong? Não precisa se dar o trabalho de responder, eu farei isso por você. Um dos nossos homens. — Sheng fez uma pausa, os olhos messiânicos subitamente em fogo. — Estamos por toda parte, Edward! Não seremos rechaçados! Vamos recuperar nossa nação, nosso
império! — Você está louco. Não pode dar certo. Vai desencadear uma guerra. — Então será uma guerra justa! Os governos do mundo inteiro terão de optar! O poder do indivíduo ou o poder do estado! Liberdade ou tirania! — Bem poucos de vocês ofereciam liberdade, e muitos eram tiranos. — Vamos prevalecer... de um jeito ou de outro. — Santo Deus, é justamente o que está querendo! Levar o mundo à beira do abismo, forçá-lo a optar entre aniquilação e sobrevivência! É assim que pensa que vai conseguir o que quer, que a escolha da sobrevivência vai prevalecer! Essa comissão econômica, toda a estratégia para Hong Kong, não passa de um começo! Quer espalhar seu veneno por todo o Extremo Oriente! E um fanático, está completamente cego! Será que não pode perceber as trágicas conseqüências... — Nossa nação nos foi roubada e vamos recuperá-la! Não podemos ser detidos! Vamos marchar! — Você pode ser detido — disse McAllister calmamente, a mão direita aproximando-se da dobra do casaco. — Eu vou detê-lo. Subitamente, Sheng largou a pasta, revelando uma pistola. Ele atirou, enquanto McAllister instintivamente recuava, dominado pelo terror, segurando o ombro. — Jogue-se no chão! —berrou Bourne, correndo na frente do helicóptero, iluminado pelos faróis, disparando uma rajada com a pistola-metralhadora. — Role! Role! Se puder se mexer, role para longe! — Você! — gritou Sheng, disparando dois tiros na direção do subsecretário caído e depois levantando a arma e puxando o gatilho repetidamente, mirando o homem da Medusa que corria em ziguezague na sua direção. — Por Eco! — berrou Bourne, a plenos pulmões. — Pelas pessoas que você retalhou! Pelo professor numa corda que você matou! Pela mulher que não conseguiu conter... por aqueles dois irmãos, mas principalmente por Eco, seu filho da puta! Uma rajada curta saiu da pistola-metralhadora... e depois mais nada! Por mais que Bourne apertasse o gatilho, nada acontecia. A arma estava emperrada! Emperrada! Sheng percebeu; apontou com todo cuidado, enquanto Jason arremessava sua arma para cima dele. Sheng atirou; instintivamente, Delta virou para a direita, girando no ar, enquanto tirava a faca do cinto. Ao cair no chão, invertendo a direção, atirou a faca contra Sheng. A faca encontrou o alvo, abrindo o peito do fanático. O assassino de centenas de pessoas e assassino em potencial de milhões estava morto. A audição de Delta estivera suspensa; não estava mais. A patrulha saíra correndo do bosque, rajadas de metralhadoras povoando a noite e o campo... Outras rajadas soaram além do helicóptero;
Wong abrira a pasta e encontrara o que precisava. Dois soldados da patrulha tombaram, os outros quatro se jogaram ao chão; um deles rastejou de volta ao bosque... estava gritando. O rádio! Ele estava entrando em contato com outros homens, outras patrulhas! Quão longe estariam? Quão perto? Prioridades! Bourne correu por trás do helicóptero e foi até Wong, que estava agachado junto a uma árvore, na beira do bosque. — Tem outra dessas lá dentro! — sussurrou ele. — Passe para mim! — Poupe a munição — disse Wong. — Não tem muita. — Sei disso. Fique aqui e procure imobilizá-los da melhor forma que puder, mas mantenha o fogo baixo. — Para onde vai, senhor? — Dar a volta pelas árvores. — É o que o Francês teria ordenado que eu fizesse. — Ele estava certo. Sempre estava certo. Jason embrenhou-se pelo bosque, com a faca ensangüentada no cinto; os pulmões estavam estourando, as pernas doíam, os olhos esquadrinhavam a escuridão do bosque. Avançou pela folhagem densa tão depressa quanto podia, fazendo o mínimo de barulho possível. Dois estalidos! Gravetos grossos no chão, quebrados por terem sido pisados! Divisou um vulto avançando em sua direção e contornou o tronco de uma árvore. Sabia quem era... o oficial com o rádio, o assassino ponderado e de fala macia do santuário de Pequim, um soldado experiente. Ataque pelos flancos. Mas ele carecia de treinamento de guerrilheiro e isso lhe custaria a vida. Não se podia pisar em objetos grossos na floresta. O oficial passou, meio agachado. Jason saltou, o braço esquerdo envolvendo o pescoço do homem, a arma em sua mão batendo na cabeça do oficial, a faca outra vez entrando em ação. Bourne ajoelhou-se ao lado do cadáver, pôs a arma no cinto e pegou a potente metralhadora do oficial. Encontrou dois pentes de balas adicionais; as chances eram melhores agora. Era até possível que escapassem vivos. Estaria McAllister vivo? Ou o momento ao sol de um burocrata frustrado terminara na perpétua escuridão? Prioridades! Contornou a margem curva do campo até o ponto por onde entrara. Os disparos esporádicos de Wong estavam mantendo os três homens restantes da patrulha de elite de Sheng no lugar em que se encontravam, com medo de se mexerem. E, de repente, algo fez Jason virar-se... um zumbido à distância, um brilho repentino em seu campo de visão. Eram as duas coisas! O som era de um motor acelerado, o brilho de um refletor esquadrinhando o céu escuro. Por cima das árvores em declive, ele podia divisar um veículo — um caminhão — com um refletor no teto, operado por alguém experiente. O caminhão avançava pela estrada a toda velocidade, oculto agora pelo mato alto; somente o refletor era visível, avançando cada vez mais depressa para a base da colina, apenas duzentos metros lá embaixo.
Prioridades. Ande! — Suspendam o fogo! — gritou Bourne, pulando no mesmo instante para outra posição. Os três oficiais se viraram no chão, acionando suas metralhadoras, as balas cortando o ar, no lugar onde a voz soara. O homem da Medusa avançou. Tudo acabou em poucos segundos, a potente metralhadora levantando terra e os cadáveres dos homens que o teriam matado. — Wong! — gritou Bourne, correndo pelo campo. — Venha! Comigo! Segundos depois, alcançou os corpos de McAllister e Sheng... um ainda vivo, o outro um cadáver. Jason inclinou-se sobre o analista, que estava mexendo os braços, a mão direita estendida, tentando desesperadamente alcançar alguma coisa. — O dossiê! — sussurrou o subsecretário de Estado. — Pegue o dossiê! — Mas o quê.. Bourne olhou para o corpo de Sheng e à fraca claridade do luar avistou a última coisa do encontrar ali. Era o dossiê sobre Sheng, um dos documentos mais secretos e explosivos do mundo. — Santo Deus! — murmurou Jason, pegando-o. Depois, enquanto Wong se juntava aos dois, ele alteou a voz para acrescentar: — Preste atenção, analista! temos de movê-lo e pode doer, mas não há alternativa! Levantou os olhos para Wong e continuou: — Há outra patrulha vindo para cá e está bem perto. Um apoio de emergência, e pelos meus cálculos vão nos alcançar em menos de dois minutos. Cerre os dentes, Sr. Subsecretário! Vamos suspendê-lo! Juntos, Jason e Wong carregaram McAllister na direção do helicóptero. Subitamente, Jason gritou: — Essa não! Espere um pouco... não, continue. Você o carrega sozinho. Tenho de voltar. — Por quê? — balbuciou o subsecretário, em agonia. — O que vai fazer, senhor? — gritou Wong. — Vou fornecer um alimento ao pensamento revisionista — respondeu Bourne enigmaticamente, enquanto corria de volta para o corpo de Sheng Chou Yang. Quando o alcançou, inclinou-se e enfiou um objeto achatado sob a túnica do morto. Levantou-se e voltou correndo para o helicóptero, enquanto Wong, com todo cuidado, gentilmente, ajeitava McAllister sobre os dois bancos de trás. Bourne subiu na frente, pegou a faca e cortou a corda de náilon
que prendia o piloto, depois tirou a mordaça. O piloto teve um acesso de tosse, engasgado; antes mesmo que acabasse, Jason deu suas ordens. — Kai feiji ba! — gritou ele. — Pode falar inglês — balbuciou o piloto. — Sou fluente. Era uma das exigências. — Levante vôo, seu filho da puta! Agora! O piloto manipulou os controles, ligando os rotores, enquanto um enxame de soldados, claramente visíveis aos faróis do helicóptero, irrompiam no campo. A nova patrulha divisou no mesmo instante os cadáveres da guarda de elite de Sheng. E todos começaram a disparar contra o helicóptero, que subia lentamente — Saia logo daqui! — berrou Jason. — O helicóptero de Sheng é blindado — disse o piloto, calmamente. — Até o vidro agüentará um fogo intenso. Para onde vamos? — Hong Kong! — gritou Jason, surpreso ao ver o piloto se virar para ele com um sorriso. — Os generosos americanos ou os benevolentes britânicos vão me conceder asilo, não é, senhor? É um sonho dos espíritos! — Essa não! — exclamou o homem da Medusa, enquanto o helicóptero alcançava a primeira camada de nuvens baixas e em rápido movimento. — Foi uma idéia das mais eficientes, senhor — disse Wong, dos sombras, na traseira do aparelho. — Como lhe ocorreu? — Deu certo uma vez antes — respondeu Jason, acendendo um cigarro. — A história... até mesmo a história recente... geralmente se repete. — Sr. Webb... — sussurrou McAllister. — O que é, analista? Como está se sentindo? — Isso não importa. Por que voltou... voltou até Sheng? — Para lhe dar um presente de despedida. Um talão de cheques. De uma conta confidencial nas Ilhas Caimãs. — Como? — Não vai servir para ninguém. Os nomes e os números da conta foram cortados. Mas não acha que será interessante observar como Pequim vai reagir à sua existência?
Capítulo 38 Edward Newington McAllister, apoiado em muletas, entrou claudicando no outrora imponente gabinete da mansão em Victoria Peak, as janelas enormes agora cobertas por um plástico grosso, a destruição evidente. O Embaixador Raymond Havilland ficou observando, enquanto o subsecretário de Estado jogava o dossiê de Sheng em cima da mesa. — Creio que você perdeu isso — disse o analista, ajeitando as muletas e sentando na cadeira com alguma dificuldade. — Os médicos me disseram que seus ferimentos não são graves — comentou o embaixador. — Fico satisfeito. — Fica mesmo? E quem é você para dizer isso? — é apenas uma maneira de falar... parece arrogante, se quiser... mas é sincero. O que você fez foi extraordinário, além de qualquer coisa que eu poderia imaginar. — Tenho certeza disso. — O subsecretário mudou de posição, apoiando o ombro ferido no encosto. — Mas, para ser franco, não fui eu. Foi ele. — Foi você quem tornou possível, Edward. — Eu estava fora do meu elemento... fora do meu território. Essa gente faz coisas que o resto de nós apenas sonha, fantasia ou assiste numa tela, contestando cada momento, por que parece afrontosamente implausível. — Não teríamos tais sonhos, não fantasiaríamos nem ficaríamos fascinados pela invenção se os elementos fundamentais não estivessem encerrados na experiência humana. Eles fazem o que sabem fazer melhor, assim como nós fazemos o que sabemos fazer melhor. Cada um em seu território, Sr. Subsecretário. McAllister fitou nos olhos o embaixador, com uma expressão neutra. — Como aconteceu? Como eles se apossaram do dossiê? — Outra espécie de território. Um profissional. Três jovens foram mortos, de maneira horrível. Um cofre inviolável foi aberto. — Indesculpável! — Concordo —disse Havilland, inclinando-se para a frente e alteando subitamente a voz. — Assim como suas ações também foram indesculpáveis! Quem você pensa que é para fazer o que fez? Que direito tinha de assumir o caso com suas próprias mãos... mãos inexperientes? Violou todos os juramentos que já prestou no serviço de seu governo! A dispensa é inadequada! Trinta anos na prisão
seriam mais apropriados para os seus crimes! Tem alguma idéia do que poderia ter acontecido? Uma guerra que poderia mergulhar o Extremo Oriente... e o mundo... num inferno! — Fiz o que fiz porque podia. É uma lição que aprendi com Jason Bourne, o nosso Jason Bourne. Independente de qualquer outra coisa, Sr. Embaixador, tem o meu pedido de demissão. A entrar em vigor imediatamente... a menos que prefira apresentar acusações oficialmente. — E deixá-lo à solta? — Havilland arriou na cadeira. — Não diga bobagem. Conversei com o Presidente e ele concorda. Você vai presidir o Conselho de Segurança Nacional. — Presidir...? Eu não seria capaz! — Com sua limusine e todos os aparatos do gênero. — Não saberei o que dizer! — Sabe como pensar, e eu estarei ao seu lado. — Oh, Deus! — Relaxe. Basta avaliar as situações. E instrua a todos nós que falamos o que devemos dizer. Sabe que é onde se encontra o verdadeiro poder. Não nos que falam, mas sim nos que pensam. — É tudo tão súbito, tão... — Tão merecido, Sr. Subsecretário — interrompeu o embaixador. — A mente é uma coisa maravilhosa. Nunca devemos subestimá-la. Outra coisa: o médico me disse que Lin Wenzu vai se recuperar. Perdeu o uso do braço esquerdo, mas vai viver. Tenho certeza de que você poderá fazer uma recomendação em seu favor ao MI-Seis em Londres. Eles vão aceitá-la. — E onde estão o Sr. e a Sra. Webb? — No Havaí, a esta altura. Com o Dr. Panov e o Sr. Conklin, é claro. Infelizmente, eles não pensam muito bem de mim. — Não lhes deu motivo para pensarem bem, Sr. Embaixador. — Talvez não, mas também minha função não era essa. — Creio que compreendo. Agora. — Espero que Deus tenha compaixão de homens como você e eu, Edward. Eu não gostaria de encontrá-Lo se Ele não tiver. — Há sempre o perdão. — É mesmo? Então eu não gostaria de conhecê-Lo. Ele mostraria uma fraude.
— Por quê? — Porque Ele desencadeou no mundo uma corrida de lobos irracionais e sedentos de sangue, que não estão interessados na sobrevivência da tribo, apenas em sua própria. Não se pode dizer que é um Deus perfeito, não é mesmo? — Ele é perfeito. Nós é que somos imperfeitos. — Então é apenas um jogo para Ele. Põe suas criações no lugar e para sua diversão fica assistindo elas se destruírem. Fica observando nós nos destruirmos. — Os explosivos são nossos, Sr. Embaixador. Temos o livre-arbítrio. — Mas não é tudo a vontade d’Ele, segundo as Escrituras? Que a Sua vontade seja feita. — E uma área indefinida. — Excelente! Um dia você pode até se tornar o Secretário de Estado. — Acho que não, Sr. Embaixador. — Tem razão. Mas, enquanto isso, fazemos o nosso trabalho... mantemos os pedaços no lugar, impedimos o mundo de se destruir. Graças aos espíritos, como dizem aqui do Oriente, existem pessoas como você e eu, como Jason Bourne e David Webb. Sempre adiamos a hora do Armagedon para o dia seguinte. O que vai acontecer quando não estivermos mais aqui? Os compridos cabelos castanho-avermelhados caíam sobre o rosto, o corpo se comprimia contra o dele, os lábios estavam próximos de seus lábios. David abriu os olhos e sorriu. Era como se não tivesse existido nenhum pesadelo que interrompera tão violentamente suas vidas, como se nenhum ultraje lhes tivesse sido infligido, levando-os à beira de um abismo em que espreitavam o horror e a morte. Estavam juntos, e o esplêndido conforto dessa realidade o enchia com uma profunda gratidão. Estavam juntos e isso era suficiente... mais do que ele jamais julgara possível. Começou a reconstituir os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, e seu sorriso se alargou, uma breve risada escapou da garganta. As coisas nunca eram como deveriam, nunca como se esperava. Ele e Mo Panov haviam bebido bastante no vôo de Hong Kong para o Havaí, enquanto Alex Conklin ficava com chá gelado, clube soda ou qualquer outra coisa que os bêbados reformados querem que os outros saibam que só bebem agora... sem sermões, apenas um discreto martírio. Marie segurara a cabeça do Dr. Panov, enquanto o famoso psiquiatra vomitava no banheiro sufocantemente pequeno do avião militar britânico, depois cobrira-o com um cobertor, quando ele mergulhara num sono de morto. Depois, gentilmente, mas com firmeza, Marie repelira os avanços amorosos do marido; mas compensara essas rejeições quando ela e um sóbrio companheiro chegaram ao hotel em Kahala. Uma noite esplêndida e delirante de amor, do tipo com que os adolescentes sonham, afastando os terrores do pesadelo. Alex? Ah, sim, ele se lembrava. Conklin pegara o primeiro vôo comercial de Oahu para Los Angeles e Washington.
— Há cabeças a quebrar — como ele dissera. — E tenciono quebrar todas. Alexander Conklin tinha uma nova missão em sua vida fragmentada. Era o que se podia chamar de responsabilidade. Mo? Morris Panov? O flagelo dos psicólogos enganadores e dos charlatães de sua profissão? Estava no quarto ao lado, sem dúvida se recuperando da maior ressaca de sua vida. — Você riu —sussurrou Marie, os olhos fechados, o rosto aninhado em seu pescoço. — O que é tão engraçado? — Você, eu, nós... tudo. — Seu senso de humor positivamente me escapa. Por outro lado, acho que estou ouvindo um homem chamado David. — E isso é tudo o que ouvirá daqui por diante. Houve uma batida na porta, não na porta que dava para o corredor, mas na de ligação com o quarto ao lado. Panov. David saltou da cama, foi ao banheiro e pegou uma toalha, enrolando-a na cintura. — Só um segundo! —gritou, encaminhando-se para a porta. Morris Panov, o rosto pálido mas controlado, estava parado ali, com uma valise na mão. — Posso entrar no Templo de Eros? — Está aí, amigo. — Acho que sim... Boa tarde, minha querida — disse o psiquiatra, dirigindo-se a Marie na cama, enquanto ia para uma cadeira ao lado das portas de vidro da varanda, que dava para a praia havaiana. — Não se preocupe, não precisa providenciar comida e se quiser sair da cama não se incomode, pois sou um médico... acho. — Como está se sentindo Mo — indagou Marie, sentando na cama e puxando o lençol. — Muito melhor do que há três horas, mas tenho a impressão de que você não sabe dessas coisas. É terrivelmente sã. — Você estava tenso, tinha de desligar. — Se cobrar cem dólares por hora, minha adorável dama, hipotecarei minha casa e contratarei cinco anos de terapia. — Eu gostaria que isso ficasse bem definido — comentou David, sorrindo e sentando em frente
a Panov. — Por que a valise? — Estou de partida. Tenho pacientes em Washington e gosto de pensar que eles podem precisar de mim. O silêncio era comovente, com David e Marie olhando fixamente para Morris Panov. — O que podemos dizer? — indagou David. — Como podemos dizer? — Não digam nada. Podem deixar que eu falo tudo. Marie foi ferida, ficou angustiada além da capacidade normal de resistência. Mas também sua resistência é acima do normal, e ela pode controlar a situação. Talvez seja um absurdo, mas esperamos demais de determinadas pessoas. E injusto, mas é assim. — Eu tinha de sobreviver, Mo — disse Marie, olhando para o marido. — Tinha de recuperá-lo. Era assim. — E você, David, passou por uma experiência traumatizante, uma experiência que só você poderia suportar e não precisa de bobagens da minha parte para enfrentar a situação. Você é você agora, não qualquer outro. Jason Bourne desapareceu. Ele não pode voltar. Desenvolva a sua vida como David Webb... concentre-se em Marie e David... isso é tudo o que existe e tudo o que deve existir. E se a qualquer momento as ansiedades voltarem... provavelmente não voltarão, mas eu agradeceria se inventasse umas poucas... trate de me procurar e pegarei o primeiro avião para o Maine. Amo vocês dois, e o ensopado de carne de Marie é espetacular. Pôr-do-sol, o brilhante disco laranja assentando sobre o horizonte a oeste, desaparecendo lentamente no Pacífico. Eles andavam pela praia, de mãos dadas, se apertando, os corpos roçando... tão natural, tão certo. — O que se faz quando há uma parte de você que detesta? — perguntou David. — Aceite-a — respondeu Marie. — Todos temos um lado tenebroso, David. Gostaríamos de poder negá-lo, mas é impossível. Está presente. Talvez não pudéssemos existir sem isso. O seu é um mito chamado Jason Bourne, mas isso é tudo. — Eu o detesto. — Ele trouxe você de volta para mim, e isso é tudo o que importa. FIM
1) Barreira móvel usada em corridas de cavalo, com baias separadas, todas as portas se abrindo simultaneamente na partida. (N. do T.) ↵
2) Beanburg, Beantown — cidade do feijão, nome por que é conhecida a cidade de Boston. (N. do T.) ↵
A Bobbi e Leonard Raichert, duas pessoas adoráveis que enriqueceram nossas vidas, nosso muito obrigado.
Prólogo A NOITE ENVOLVIA Manassas, Virgínia, o campo com sua misteriosa vida noturna, quando Bourne atravessou silenciosamente o bosque próximo da propriedade do general Norman Swayne. Pássaros assustados fugiam dos seus esconderijos, corvos acordavam nas árvores, crocitavam e depois, verificando que se tratava de um companheiro conspirador à procura de alimento, calavam-se. Manassas! Ali estava a chave de tudo! A chave da porta subterrânea que levava a Carlos, o Chacal, o assassino que desejava unicamente eliminar David Webb e sua família... Webb! Afaste-se de mim, David! exclamou Jason Bourne no silêncio de sua mente. Deixe que eu seja o assassino que você não pode ser! Cada movimento do cortador de metal na cerca alta era uma evidência do inevitável, confirmado ainda pela respiração ofegante e pelo suor que descia da sua testa. Por melhor que fosse seu preparo físico, tinha cinqüenta anos e não podia fazer com facilidade, o que fazia em Paris há 13 anos, quando, obedecendo ordens, tocaiava o Chacal. Era algo para pensar, não para ruminar. Agora havia Marie e as crianças — a mulher de David, os filhos de David — e não havia nada que não pudesse fazer desde que se resolvesse! David Webb começava a desaparecer de sua mente, dando lugar ao predador Jason Bourne. Estava passando! Rastejou sob a abertura e ficou de pé no outro lado, verificando instintivamente o equipamento que carregava. Armas: uma automática, uma pistola com dardos de CO2. Um binóculo Zeiss Ikon, uma faca de caça na bainha. Era tudo que o predador precisava, pois estava agora atrás das linhas do inimigo que o levaria a Carlos. Medusa. O batalhão desgarrado do Vietnã, o bando errante, desautorizado, desconhecido, de matadores e desajustados, que assolava as selvas do Sudeste da Ásia sob as ordens do Comando Saigon, o primeiro esquadrão da morte que fornecia mais informações a Saigon do que todas as equipes de busca e destruição juntas. Quando Jason Bourne saiu de Medusa, David Webb era apenas uma lembrança — um professor com outra mulher, outros filhos, todos eliminados. O general Norman Swayne era um membro da elite do Comando Saigon, o único provedor da antiga Medusa. E agora havia uma nova Medusa: diferente, maciça, a própria encarnação do mal sob b manto de uma respeitabilidade temporária, que procurava e destruía segmentos das economias globais em benefício de uns poucos, financiada pelo lucro adquirido por meio de um batalhão antigo e desgarrado, errante e desconhecido — completamente fora da história. Essa Medusa moderna era a ponte para Carlos, o Chacal. Sem dúvida seria um cliente irresistível para o assassino e os dois lados exigiriam a morte de Jason Bourne. Isso tinha de acontecer! Para tanto, precisava descobrir os segredos guardados na propriedade do general Swayne, chefe de manutenção do Pentágono, um homem assustado, com uma tatuagem na parte interna do braço. Um membro da Medusa. Silenciosamente e de surpresa, um dobermann negro saltou de dentro dos arbustos com fúria e força totais. Jason retirou a pistola de CO2 do coldre no momento em que o cão, salivando e com os dentes arreganhados, saltou para ele. Atirou na cabeça do animal e o dardo produziu efeito em poucos segundos. Jason Bourne ajeitou o cão inconsciente no chão.
Corte o pescoço dele! gritou Jason Bourne em silêncio. Não, respondeu seu outro eu, David Webb. A culpa é do treinador, não do animal. Afaste-se de mim, David!
Capítulo 1 A MULTIDÃO INVADIU o parque de diversões próximo do centro de Baltimore, num barulho descontrolado. Era uma noite quente de verão e o suor brotava dos pescoços e rostos, exceto dos que desciam e subiam gritando na montanha-russa ou mergulhavam com seus trenós como peixes nas águas rápidas das corredeiras. As luzes de cores vivas piscavam loucamente no centro do parque, ao som metálico e áspero da música dos inúmeros alto-falantes — calliopes presto, marchas prestissimo. Os homens nas portas das barracas gritavam, mais do que o vozerio, anunciando sua mercadoria em cantilenas monótonas, enquanto explosões momentâneas iluminavam o céu escuro, lançando cascatas de fagulhas brilhantes sobre o pequeno lago negro. Os fogos de artifício desenhavam arcos de brilho ofuscante. Na frente da fileira de máquinas “acerte no gongo”, homens com rostos contorcidos e veias saltadas nos pescoços tentavam com insistência e frustração provar a própria masculinidade, batendo os martelos com força nas tábuas viciadas que se recusavam a mandar as bolinhas vermelhas até o sino. No outro lado, os motoristas dos “carros trombada” gritavam com entusiasmo ameaçador, atirando seus veículos sobre os outros, cada colisão um triunfo de agressiva superioridade, cada combatente um herói de cinema que supera todas as dificuldades. Tiroteio no Curral O.K. Às 9:27h da noite, num conflito sem nenhum significado. Mais adiante havia um pequeno monumento à morte súbita, uma galeria de tiro que em nada se parecia com as galerias inocentes de calibre mínimo comum aos parques de diversões. Era um microcosmo do mais letal equipamento de armamentos modernos. Havia imitações das metralhadoras de mão MAC-10 e UZI, lançadores de mísseis com molduras de aço, bazucas antitanque, e, finalmente, uma réplica assustadora de um lança-chamas cuspindo seus raios mortais em linha reta entre enormes nuvens de fumaça. Ali, também, o suor pingava nos olhos frenéticos, descendo pelos pescoços esticados dos homens, mulheres e crianças que, com expressões grotescas nos rostos crispados, destruíam inimigos odiados — mulheres, maridos, pais e filhos. Todos presos com os grilhões de uma guerra sem fim, sem significado — às 9:29h da noite, num parque de diversões cujo tema era a violência. O homem, incansável e sem motivo, contra ele mesmo e contra todas as suas hostilidades, contra seus temores. Um homem magro com uma bengala na mão direita passou mancando pelo stand onde dardos com pontas agudas eram atirados raivosamente nos balões com desenhos dos rostos de figuras públicas. Quando um balão estourava começavam as discussões acaloradas sobre os méritos e os defeitos dos ídolos políticos reduzidos a frangalhos. O homem seguiu pela passagem central, com olhar atento, como quem procura um endereço num bairro barulhento e desconhecido. Estava vestido com simplicidade, com paletó e camisa esporte, como se não sentisse o calor e o paletó fosse, de certo modo, uma necessidade. Parecia um agradável homem de meia-idade, com rugas prematuras e olheiras profundas, resultado mais da vida que levava do que da idade. Chamava-se Alexander Conklin, oficial aposentado de operações de espionagem da CIA. Nesse momento era também um homem apreensivo e dominado pela ansiedade. Não queria estar ali, àquela hora, e não podia imaginar qual a catástrofe que o obrigara a ir ao parque de diversões.
Aproximou-se do pandemônio da galeria de tiro e de repente parou com uma exclamação abafada e os olhos fixos num homem alto e semicalvo, da sua idade, com um paletó esporte de algodão no ombro. Morris Panov vinha da direção oposta à sua e dirigia-se ao balcão barulhento da galeria! Por quê? O que estava acontecendo? Conklin olhou em volta rapidamente, examinando rostos e corpos, sabendo instintivamente que ele e o psiquiatra estavam sendo observados. Era tarde demais para impedir que Panov entrasse no centro da arena, mas talvez não fosse tarde para a fuga dos dois! O agente aposentado da Inteligência apanhou a Beretta sob o paletó, sua companheira inseparável, e investiu rapidamente, mancando, afastando o povo com a bengala, amassando rótulas, espetando barrigas, peitos e costas, até quase provocar uma desordem, entre gritos indignados. Atirou-se então sobre o corpo frágil do médico atônito, gritando, mais alto que os berros da multidão. — Que diabo você está fazendo aqui? — Suponho que o mesmo que você, David, ou devo dizer Jason? Era o que dizia o telegrama. — É uma cilada! Um grito estridente soou no meio do vozerio desordenado. Conklin e Panov olharam imediatamente para a galeria de tiro. Uma mulher obesa acabava de levar um tiro no pescoço. A multidão enlouqueceu. Conklin voltou-se, procurando descobrir a direção do tiro, mas no meio daquele pânico viu apenas vultos que fugiam. Agarrou Panov e conduziu-o para longe, mais uma vez enfrentando a multidão estridente e apavorada da passagem central até a outra multidão que corria em sentido contrário, do lado da montanha-russa, no fim do parque, em direção ao stand de tiro. — Meu Deus! — gritou Panov. — Aquilo era para um de nós? — Talvez sim... talvez não — respondeu Conklin ofegante, ouvindo as sirenes e os apitos da polícia ao longe. — Você disse que era uma cilada! — Porque nós dois recebemos um telegrama maluco de David usando o nome que não usa há cinco anos — Jason Bourne! E se não estou enganado, sua mensagem dizia também que de modo algum devia telefonar para a casa dele. — Isso mesmo. — É uma cilada... Você é mais rápido do que eu, Mo, portanto use suas pernas. Saia daqui — corra como um filho da mãe até o primeiro telefone. Um telefone público, nada que possa ser localizado! — Para quê? — Telefone para a casa dele! Diga a David que deve mandar Marie e as crianças para bem longe. — O quê?
— Alguém nos descobriu, doutor! Alguém que está procurando Jason Bourne — que o procura há anos e só vai parar quando o tiver na mira da sua arma... Você se encarregou da mente abalada de David e eu usei toda a minha influência em Washington para tirar David e Marie vivos de Hong Kong... As regras foram violadas e eles nos descobriram, Mo. Você e eu! Somos a única ligação oficial com Jason Bourne, endereço e ocupação desconhecidos. — Você sabe o que está dizendo, Alex? — Pode estar certo que sim... É Carlos. Carlos, o Chacal. Saia daqui, doutor. Fale com seu expaciente e diga para ele desaparecer! — Depois, o que ele deve fazer? — Não tenho muitos amigos, nenhum em quem possa confiar, mas você tem. Dê a ele o nome de alguém — por exemplo, de um dos seus colegas que recebe chamados urgentes como os meus para você, naquele tempo. Mande David telefonar para ele — ou para ela — quando estiver em lugar seguro. Invente um código. — Um código? — Jesus Cristo, Mo, use a cabeça! Um pseudônimo, Jones ou Smith... — São nomes muito comuns... — Tom Schicklgruber ou Moskowitz, o que você preferir. Diga a ele para nos dizer onde está. — Tudo bem. — Agora, suma daqui e não vá para casa... Fique no Hotel Brookshire, em Baltimore, sob o nome de... Morris, Phillip Morris. Encontro-me com você lá, mais tarde. — O que vai fazer? — Uma coisa que detesto... Sem a minha bengala, vou comprar um bilhete para aquela maldita montanha-russa. Ninguém vai procurar um aleijado numa coisa daquelas. Eu morro de medo, mas é meu caminho lógico de fuga, nem que tenha de ficar naquele carro a noite toda... Agora, suma daqui! Depressa! A caminhonete seguia velozmente para o sul pela estrada secundária que atravessa as montanhas de New Hampshire, na direção da divisa de Massachusetts, dirigida por um homem alto, de traços marcantes e expressão intensa, com os músculos do rosto pulsando e os olhos azul-claros furiosos. A luz do painel acentuava os tons avermelhados dos cabelos castanhos da mulher extremamente atraente que estava ao seu lado, levando no colo uma menina de oito meses. No primeiro banco traseiro estava um menino louro de uns cinco anos adormecido sob o cobertor, protegido por uma grade portátil. O pai era David Webb, professor de estudos orientais, mas no passado membro da infame e nunca mencionada Medusa, duas vezes o lendário Jason Bourne — assassino.
— Sabíamos que ia acontecer — disse Marie St. Jacques Webb, de nacionalidade canadense, economista, que havia salvo a vida de David Webb por acidente. — Era só uma questão de tempo. — É loucura! — disse David em voz baixa, para não acordar as crianças, sem que a tonalidade da voz diminuísse sua intensidade. — Tudo foi enterrado, arquivos de segurança máxima e toda aquela bobagem! Como foi que puderam encontrar Alex e Mo? — Não sabemos, mas Alex vai procurar descobrir. Você mesmo disse que não existe ninguém melhor do que ele... — Alex está marcado agora — é um homem morto — interrompeu Webb com voz sombria. — É muito cedo para dizer isso, David. Ele é o “melhor que já existiu”, como você sempre disse. — Só uma vez ele não foi o melhor. Em Paris, há 13 anos. — Porque você era melhor do que ele... — Não! Porque eu não sabia quem eu era, e ele estava operando baseado em informações anteriores que eu não conhecia. Ele pensou que era eu, mas eu não me conhecia, por isso não agi como ele esperava... Alex ainda é o melhor. Salvou nossas vidas em Hong Kong. — Então você está dizendo o que eu estou dizendo, certo? Estamos em boas mãos. — Alex talvez. Mo, não. Aquele pobre e belo homem está morto. Eles vão apanhá-lo e fazê-lo falar. — Mo prefere morrer a dar qualquer informação a nosso respeito. — Não terá escolha. Vão enchê-lo de amital e toda sua vida será um livro aberto. Então, eles o matam e vêm atrás de mim... atrás de nós. Por isso estou levando você e as crianças para o sul, bem para o sul. Para o Caribe. — Vou mandar as crianças, querido. Eu não vou — Quer parar com isso? Concordamos quando Jamie nasceu. Por isso compramos aquela casa, por isso quase compramos a alma do seu irmão caçula para tomar conta dela... O que ele está fazendo muito bem. Hoje somos proprietários de metade de uma estalagem muito próspera numa estrada de terra, numa ilha, desconhecida até o dia em que um negociante canadense aportou em suas praias com um hidravião. — Johnny sempre foi do tipo agressivo. Papai dizia que ele era capaz de vender uma vaca velha como vitela de primeira qualidade, que ninguém ia notar a diferença. — O importante é que ele te ama... e ama as crianças. Estou contando também com aquele homem selvagem... Deixe para lá, confio em Johnny.
— Enquanto vai confiando em Johnny, não confie também no seu senso de direção. Acabou de passar a entrada para a casa na floresta. — Droga! — exclamou Webb, freando e fazendo uma volta completa. — Amanhã! Você, Jamie e Alison embarcam no Aeroporto Logan. Para a ilha! — Vamos conversar sobre isso, David. — Não temos nada para conversar. — Webb respirou fundo, procurando se controlar. — Eu já passei por isto antes — disse em voz baixa. Marie olhou passivamente para o rosto do marido, delineado pela luz fraca do painel. O que viu a assustou mais do que o espectro do Chacal. Não estava olhando para David Webb, o professor de fala macia. Olhava para um homem que os dois julgavam ter desaparecido para sempre de suas vidas.
Capítulo 2 ALEXANDER CONKLIN entrou na sala de conferências da Agência Central de Inteligência, Virgínia, apoiado na bengala. Parou na frente dos três homens sentados à mesa longa e maciça com lugar para 30 pessoas. Na cabeceira estava o grisalho diretor da CIA. Nem ele nem os dois assistentes mais graduados da Agência pareciam satisfeitos em vê-lo. Depois dos cumprimentos formais, Conklin, em vez de ocupar o lugar designado para ele, ao lado de um dos diretores, à direita do diretor geral, sentou-se na outra extremidade e bateu com a bengala na ponta da mesa. — Agora que nos cumprimentamos, podemos excluir as amenidades, senhores? — Não está sendo muito amistoso, Sr. Conklin — observou o diretor. — Não estou pensando em amabilidade ou em cortesia neste momento, senhor. Só quero saber por que os regulamentos secretos Quatro Zero foram ignorados, permitindo o vazamento de informações ultra-sigilosas que colocam em perigo algumas vidas, incluindo a minha! — Isso é uma ofensa, Alex — interrompeu um dos assistentes. — Completamente incorreto! — acrescentou o outro. — Não pode acontecer e você sabe disso! — Não, eu não sei se aconteceu e vou lhes dizer o que é ultrajantemente correto — disse Conklin furioso. — Um homem está lá fora com mulher e dois filhos, um homem a quem este país e grande parte do mundo devem mais do que podem pagar, fugindo, escondendo-se, apavorado com a idéia de que ele e sua família são agora alvos. Demos a ele nossa palavra, nós todos, de que nenhuma parte dos arquivos oficiais jamais seria revelada, até ser confirmada, sem sombra de dúvida, a morte de Ilich Ramirez Sanchez, conhecido também como Carlos, o Chacal... Tudo bem, ouvi os mesmos boatos que vocês ouviram, provavelmente das mesmas fontes ou de outras melhores, de que o Chacal fora morto aqui ou executado ali, mas ninguém — repito, ninguém — apresentou uma prova definitiva... Contudo, uma parte daquele arquivo foi vazada, uma parte de importância vital que me diz respeito muito de perto porque nela consta meu nome... O meu e o do Dr. Morris Panov, o psiquiatra. Somos as únicas pessoas — repito, as únicas — intimamente associadas com o homem que adotou o nome de Jason Bourne, considerado em todos os setores oficiais como o rival de Carlos no jogo da morte... Mas essa informação está enterrada nos cofres aqui em Langley. Como foi que vazou? Segundo as regras, quem desejar parte desses arquivos — seja a Casa Branca, o Departamento de Estado ou os sagrados Chefes das Forças Armadas — tem de passar pelos escritórios do diretor e dos seus principais analistas — aqui em Langley. Devem ser informados sobre todos os detalhes da requisição, e depois disso tudo há um passo final. Eu. Qualquer requisição antes de ser aprovada tem de ter meu aval, ou, se eu não for encontrado, devem procurar o Dr. Panov, as únicas duas pessoas com poder legal para negar a requisição... É assim que funciona, senhores, e ninguém conhece as regras melhor do que eu porque ajudei a redigi-las — aqui mesmo em Langley, porque era o lugar que eu conhecia melhor. Depois de 28 anos nesta profissão difícil, foi minha última contribuição — com autoridade máxima do presidente dos Estados Unidos e o consentimento do Congresso, através dos comitês especiais de Inteligência do
Senado e Câmara. — Isso é artilharia pesada, Sr. Conklin — comentou o diretor grisalho sem fazer um movimento, com voz neutra. — Havia razões pesadas para usar os canhões. — Estou vendo. Um dos 16 polegadas me atingiu. — Certo. Agora, temos a questão de responsabilidade. Quero saber como a informação veio à tona e a quem foi dada. Os dois diretores assistentes começaram a falar ao mesmo tempo, tão furiosos quanto Alex, mas foram interrompidos pelo DCI que tocou de leve os braços deles com o cachimbo numa das mãos e o isqueiro na outra. — Mais devagar e voltemos um pouco atrás, Sr. Conklin — disse ele com calma, acendendo o cachimbo. — Evidentemente conhece meus companheiros, mas nós dois nunca nos vimos antes, certo? — Não. Deixei a Agência há quatro anos e meio e o senhor foi nomeado um ano depois. — Como muitos outros — com toda razão, estou certo — acha que fui nomeado por nepotismo? — Sem dúvida foi, mas isso não me perturbou. O senhor parecia qualificado para o posto. Ao que sei, sempre foi apolítico, almirante formado em Anápolis, chefe da Inteligência Naval que, por acaso, trabalhou com um coronel da marinha na guerra do Vietnã, que mais tarde chegou à presidência. Passou por cima de muitos outros, é verdade, mas isso acontece. Nada de bronca. — Muito obrigado. Mas, por acaso tem alguma bronca com meus dois diretores assistentes? — Isso já é história, mas não posso dizer que tenham sido os melhores amigos que um agente de campo já teve. Eram analistas, não homens de trabalho de campo. — Não está falando de uma aversão natural, uma hostilidade convencional? — É claro que estou. Eles analisavam situações a milhares de quilômetros de distância com computadores programados por homens que nós não conhecíamos e dados não fornecidos por nós. É claro que se trata de uma aversão natural. Tratávamos com quocientes humanos, eles não. Trabalhavam com letrinhas verdes na tela do computador e tomavam decisões que nós jamais tomaríamos. — Isso porque pessoas como você tinham de ser controladas — observou o diretor assistente à direita do chefe. — Quantas vezes, mesmo hoje, homens e mulheres como você desconhecem o quadro total de uma missão? A estratégia total e não apenas a sua parte nela? — Então deviam nos dar um quadro geral, ou pelo menos uma idéia geral, para podermos dizer o que fazia sentido e o que não estava certo.
— Onde termina uma visão geral, Alex? — perguntou o assistente à esquerda do diretor. — Quando é que devemos dizer, “podemos revelar isto... para o bem de todos”? — Não sei, os analistas são vocês, não eu. De acordo com cada caso, eu suponho, mas de qualquer modo com uma comunicação mais completa do que eu recebia em campo... Esperem um pouco. Eu não estou em discussão, vocês estão. — Alex olhou para o diretor. — Muito hábil, senhor, mas não vou deixar que mudem de assunto. Estou aqui para descobrir quem conseguiu a informação e como. Se preferem, levo minhas credenciais à Casa Branca ou ao Congresso e algumas cabeças vão rolar. Quero respostas. Quero saber o que vou fazer! — Eu não estava tentando mudar de assunto, Sr. Conklin, apenas desviá-lo um pouco para reforçar minha opinião. O senhor, obviamente, era contra os métodos e acordos usados por meus companheiros, mas algum destes homens alguma vez o enganou, mentiu para o senhor? Alex olhou rapidamente para os dois diretores assistentes. — Só quando precisaram mentir para mim, o que nada teve a ver com a operação de campo. — Uma estranha observação. — Se eles não lhe contaram, deviam ter contado... Cinco anos atrás eu era alcoólatra — ainda sou, mas não bebo mais. Eu estava encurtando o tempo da minha aposentadoria e ninguém me informou disso, o que foi a coisa certa. — Para sua informação, o que todos disseram foi que o senhor ficou doente, não estava funcionando ao nível da sua capacidade real, até o fim do seu serviço. Conklin olhou outra vez para os dois assistentes, balançando a cabeça afirmativamente para ambos enquanto dizia: — Obrigado, Casset, e a você também, Valentino, mas não precisavam fazer isso. Eu era um bêbado e isso não deve ser segredo, tratando-se de mim ou de qualquer outro. É a maior bobagem que podem fazer por aqui. — Ao que sabemos, você fez um belo trabalho em Hong Kong, Alex — disse Casset, em voz baixa. — Não queríamos privá-lo do que merecia. — Você foi uma pedra no sapato desde o começo — acrescentou Valentino. — Mas não podíamos deixá-lo dependurado como um acidente da bebida. — Esqueça. Voltemos a Jason Bourne. Por isso estou aqui, por isso vocês concordaram em falar comigo. — Esse foi um dos motivos que me fizeram mudar de assunto por um momento, Sr. Conklin. O senhor tem certas diferenças profissionais com meus assistentes, mas estou certo de que não questiona sua integridade.
— De outros sim, mas não de Casset e Val. No que me diz respeito, eles fizeram seu trabalho e eu fiz o meu. O sistema era falho — mergulhado na neblina. Mas agora não está, hoje não está mais. As regras são claras e absolutas, assim, uma vez que não fui procurado, elas foram quebradas e eu enganado, para dizer a verdade, mentiram para mim. Repito. Como aconteceu e quem obteve as informações? — Era tudo que eu queria ouvir — disse o diretor, apanhando o telefone. — Por favor, chame o Sr. DeSole no outro lado do corredor e peça para vir à sala de conferências. — Desligou e voltou-se para Conklin. — Suponho que sabe quem é Steven DeSole. — DeSole, a toupeira muda. — Como disse? — Uma velha piada na agência — explicou Casset. — Steve sabe onde estão enterrados os corpos, mas quando chega a hora ele não conta nem para Deus, se não tiver a ordem de liberação Quatro Zero. — Posso dizer então que os três, especialmente o Sr. Conklin, consideram o Sr. DeSole um profissional perfeito. — Deixem que eu respondo — disse Alex. — Ele diz tudo o que a pessoa precisa saber e nada mais. Além disso, ele não mente. Fica de boca fechada ou diz que não pode revelar, mas não mente. — Essa é outra coisa que eu queria ouvir. Bateram na porta e o diretor mandou entrar. Um homem gorducho, de estatura média, com os olhos aumentados pelas lentes dos óculos de aro de metal entrou na sala e fechou a porta. Olhou casualmente para os três homens sentados na cabeceira da mesa e só depois, com espanto evidente, viu Alexander Conklin. Num instante sua expressão passou para uma de surpresa agradável e aproximou-se do antigo agente com a mão estendida. — É bom ver você, velho amigo. Faz uns dois ou três anos, certo? — Quase quatro, Steve — disse Alex, apertando a do recém-chegado. — Como vai o analista dos analistas, o guardião das chaves? — Sem muita coisa para analisar ou para guardar hoje em dia. A Casa Branca é uma peneira e o Congresso não fica atrás. Eu devia estar recebendo metade do que recebo, mas não conte a ninguém. — Ainda guardamos alguns segredos, certo? — interrompeu o diretor com um sorriso. — Pelo menos de operações antigas. Talvez naquele tempo você merecesse o dobro do ordenado. — Sim, acho que merecia. — DeSole fez um gesto afirmativo e bem-humorado, soltando a mão de Conklin. — Porém, acabaram os dias de guardiões dos arquivos e transferências com guardas armados para os armazéns subterrâneos. Hoje tudo é feito com análises de computadores alimentados pelas máquinas mais especializadas. Não faço mais aquelas longas viagens com escolta militar, fingindo
que podia ser deliciosamente atacado por alguma Mata Hari. Não sei há quanto tempo não prendo uma valise ao pulso com a corrente e cadeado. — Muito mais seguro — disse Alex. — Mas pouco para contar aos meus netos, companheiro... “O que você fez como um Grande Espião, vovô?”... “Na verdade, nos últimos anos, muitas palavras cruzadas”. — Tenha cuidado, Sr. DeSole — advertiu o diretor, sorrindo. — Posso recomendar o corte do seu ordenado pela metade... Pensando bem, não posso fazer isso porque não acredito nem um pouco no que está dizendo. — Eu também não — disse Conklin, zangado e sem erguer a voz. — Isto é uma farsa — continuou, olhando fixamente para o gordo analista. — Uma observação contundente, Conklin. Não quer explicar? — disse DeSole. — Você sabe por que estou aqui, não sabe? — Eu não sabia que você estava aqui. — Compreendo. Só aconteceu de estar convenientemente “no outro lado do corredor” à espera de ser chamado. — Meu escritório fica no outro lado do corredor. Bem mais adiante, devo acrescentar. Conklin olhou para o diretor. — Foi outra vez muito hábil, senhor. Três homens com os quais nunca tive contatos importantes fora do sistema, três homens nos quais sabia que eu confio piamente, garantindo assim que vou acreditar no que quer que disserem. — Basicamente está certo, Sr. Conklin, porque o que vai ouvir é a pura verdade. Sente-se, Sr. DeSole... Talvez nesta ponta da mesa, onde seu ex-colega pode nos estudar enquanto explicamos. Ouvi dizer que é uma técnica usada pelos agentes de campo. — Eu não tenho de dar nenhuma explicação — disse o analista, dirigindo-se para a cadeira ao lado de Casset. — Mas, considerando as observações um tanto grosseiras do meu ex-colega, gostaria de poder estudá-lo... Você está bem, Alex? — Ele está bem — respondeu o assistente Valentino. — Está rosnando para as sombras erradas, mas está bem. — Aquela informação não podia ter sido liberada sem o consentimento e a cooperação das pessoas que estão nesta sala! — Que informação? — perguntou DeSole, arregalando os olhos para o diretor. — Ah, sei, aquela coisa ultra-secreta sobre a qual me falou esta manhã?
O diretor fez um gesto afirmativo e depois olhou para Conklin. — Voltemos a esta manhã... Sete horas atrás, um pouco depois das nove, recebi um telefonema de Edward McAllister, ex-funcionário do Departamento de Estado, hoje presidente da Agência de Segurança Nacional. Disseram-me que McAllister esteve com o senhor em Hong Kong, Sr. Conklin, isso é correto? — O Sr. McAllister estava conosco — concordou Conklin secamente. — Voou sob disfarce com Jason Bourne para Macau, onde foi gravemente ferido a bala e quase morreu. É um intelectual excêntrico e um dos homens mais bravos que já conheci. — Ele não mencionou as circunstâncias, disse apenas que esteve lá e que nem que fosse preciso rasgar minha agenda, esta conversa com o senhor devia ter prioridade máxima... Artilharia pesada, Sr. Conklin. — Repito. Temos razões pesadas para os canhões. — É o que parece... O Sr. McAllister deu-me os códigos ultra-secretos exatos para identificar o arquivo do qual o senhor está falando — o registro da operação em Hong Kong. Passei a informação ao Sr. DeSole, portanto vou deixar que ele lhe conte o que descobriu. — Não foi tocado, Alex — disse DeSole com calma, olhando para Conklin. — Até as 9:30h desta manhã, o arquivo permaneceu num buraco negro há quatro anos, cinco meses, vinte e um dias, onze horas e quarenta e três minutos, sem ter nenhuma penetração. E há uma boa razão para que esse status seja puro, mas não sei se você tem ou não conhecimento dele. — No que diz respeito a esse relatório, eu sei tudo! — Talvez sim, talvez não — disse DeSole suavemente. — Todos sabiam que você tinha um problema e o Dr. Panov não tem tanta experiência em assuntos de segurança. — Aonde, diabo, quer chegar? — Foi acrescentado um terceiro nome aos procedimentos de liberação daquele relatório oficial sobre Hong Kong... Edward Newington McAllister, por insistência dele próprio e com autorização do presidente e do Congresso. Ele providenciou tudo — Oh, meu Deus — disse Conklin em voz baixa e hesitante. — Ontem à noite telefonei para ele, de Baltimore, e McAllister disse que era impossível. Depois disse que eu teria de compreender por mim mesmo, por isso marcou este encontro... Jesus, o que aconteceu? — Eu diria que temos de procurar em outro lugar — disse o diretor. — Mas antes disso, o senhor precisa tomar uma decisão. O senhor compreende, nenhum de nós sabe o que havia naquele arquivo ultra-secreto... É claro que conversamos e como o Sr. Casset disse, sabemos que fez um trabalho magnífico em Hong Kong, mas não sabemos o quê. Ouvimos alguma coisa dos nossos postos no Extremo Oriente que, para ser franco, achamos que devia ser exagero e em todos os relatos seu nome
e o de Jason Bourne apareciam com destaque. O que diziam era que os dois eram responsáveis pela captura e execução do assassino que conhecemos como Bourne, porém, há pouco o senhor disse “o homem desconhecido que adotou o nome de Jason Bourne”, declarando que ele está vivo e escondido. Para ser específico, estamos perdidos — pelo menos eu estou. — Vocês não retiraram os arquivos? — Não — respondeu DeSole. — A decisão foi minha. Como você deve ou não saber, qualquer invasão de um arquivo de sigilo máximo é automaticamente marcada com a hora e a data da penetração... Desde que o diretor me informou da reclamação da Agência de Segurança sobre uma entrada ilegal, resolvi deixar tudo exatamente como estava. Sem nenhuma penetração durante quase cinco anos, portanto sem que ninguém tivesse lido ou mesmo soubesse da sua existência, conseqüentemente, não entregue a pessoas mal-intencionadas, sejam elas quais forem. — Você estava protegendo seu traseiro até o último milímetro. — Pode estar certo disso, Alex. Aqueles dados têm uma bandeira da Casa Branca. No momento as coisas estão relativamente estáveis por aqui e não convém a ninguém passar a mão no sentido contrário dos do Escritório Oval. Temos um homem novo na chefia, mas o ex-presidente está ainda muito vivo e atuante. Ele seria consultado, portanto, por que arriscar? Conklin examinou os quatro rostos à sua frente e disse em voz baixa: — Então vocês na verdade não conhecem a história, certo? — Essa é a verdade, Alex — disse o diretor assistente Casset. — Nada mais do que a verdade, seu chato — disse Valentino, permitindo-se um leve sorriso. — Dou minha palavra — acrescentou Steven DeSole com os olhos claros fixos em Conklin. — E se você quiser nossa ajuda, precisamos saber algo mais do que rumores vagos — continuou o diretor, recostando-se na cadeira. — Não sei se podemos ajudar, mas sei que assim, no escuro, nada podemos fazer. Alex olhou novamente para cada um deles, as linhas no rosto cansado mais profundas do que nunca, como se a decisão fosse uma agonia para ele. — Não vou dizer o nome dele porque dei minha palavra — mais tarde talvez, agora não. E ele não consta do relatório, é um nome secreto — dei minha palavra sobre isso também. O resto eu vou contar porque preciso da sua ajuda e quero que o arquivo continue no seu buraco negro... Por onde devo começar? — Por esta reunião, talvez? — sugeriu o diretor. — O que a motivou? — Muito bem, vai ser rápido. — Conklin olhou pensativamente para a mesa, apertando o cabo da bengala e então ergueu os olhos. — Ontem à noite uma mulher foi assassinada num parque de
diversões perto de Baltimore... — Li o caso no Post esta manhã — interrompeu DeSole com um gesto afirmativo, sorrindo de leve. — Meu Deus, você estava... — Eu também li — disse Casset, com os olhos castanhos fixos em Alex. — Aconteceu na frente de uma galeria de tiro, que foi fechada. — Eu vi a notícia e pensei que se tratava de um acidente terrível. — Valentino balançou a cabeça. — Não li os detalhes. — Eu recebi os recortes costumeiros dos jornais, o que é jornalismo suficiente para qualquer um, logo de manhã — disse o diretor. — Não me lembro de ter visto esse caso. — Você estava envolvido, meu velho? — Se não estava, foi um horrível desperdício de vida humana... eu diria, se nós não estávamos envolvidos. — Nós? — Casset franziu a testa, alarmado. — Morris Panov e eu recebemos telegramas idênticos de Jason Bourne pedindo que estivéssemos no parque de diversões às 9:30h da noite de ontem. Era urgente e devíamos nos encontrar com ele na frente da galeria de tiro, mas não devíamos, sob qualquer circunstância, telefonar para a casa dele ou para qualquer outra pessoa... Tivemos a mesma intuição. Ele não queria assustar a mulher, não queria que ela soubesse o que ia nos dizer pessoalmente... Chegamos na mesma hora, mas eu vi Panov primeiro e deduzi que alguma coisa estava errada. O certo seria nos encontrarmos antes para conversar, mas fomos advertidos para não fazer isso. A coisa cheirava mal, por isso fiz tudo para que pudéssemos sair dali o mais depressa possível. O único modo era usando uma tática de diversão. — Então você atacou — disse Casset em tom afirmativo. — Foi a única coisa que me veio à mente, e uma das poucas que esta bengala sabe fazer bem, além de me ajudar a ficar de pé. Parti todas as canelas e joelhos que estavam na minha frente e espetei algumas barrigas e seios. Saímos do círculo, mas a pobre mulher foi assassinada. — O que você acha que aconteceu, chegou a alguma conclusão? — perguntou Valentino. — Simplesmente não sei, Val. Era uma cilada, disso estou certo, mas que tipo de cilada? Se o que pensei então e penso agora estiver certo, como um atirador experiente podia ter errado daquela distância? O tiro partiu da minha esquerda, do alto — não que eu tenha necessariamente ouvido — mas a posição da mulher e o sangue no seu pescoço indicavam que quando ela se virou foi atingida. Não podia ter vindo da galeria, as armas são presas com correntes e a hemorragia maciça no pescoço foi provocada por uma arma de calibre muito maior do que todas elas. Se o assassino queria acertar Mo Panov ou a mim, sua mira telescópica não podia estar tão afastada do alvo. Não se o que estou pensando estiver certo.
— Tem razão, Sr. Conklin — disse o diretor —, está pensando no assassino Carlos, o Chacal. — Carlos? — exclamou DeSole. — Que diabo o Chacal tem a ver com aquela morte em Baltimore? — Jason Bourne — respondeu Casset. — Sim, sei disso, mas é extremamente confuso! Bourne era um reles assassino profissional, que foi da Ásia para a Europa para desafiar Carlos e perdeu. Como o diretor acaba de dizer, ele voltou para o Extremo Oriente e foi morto quatro ou cinco anos atrás, porém Alex fala como se ele estivesse vivo, dizendo que ele e um homem chamado Panov receberam telegramas de Bourne... Que diabo um degenerado e o mais misterioso assassino têm a ver com o que aconteceu a noite passada? — Você não estava aqui há alguns minutos, Steven — respondeu outra vez Casset com voz calma. — Aparentemente eles têm muita coisa em comum com o que aconteceu a noite passada. — Desculpe, mas não entendi. — Acho que deve começar do começo, Sr. Conklin — disse o diretor. — Quem é Jason Bourne? — Como o mundo o conhece, um homem que jamais existiu — respondeu o ex-agente da Inteligência.
Capítulo 3 — O VERDADEIRO JASON BOURNE era lixo, um paranóico errante da Tasmânia que conseguiu tomar parte numa operação da guerra do Vietnã, sobre a qual ninguém gosta de falar até hoje. Era um grupo de assassinos, desajustados, contrabandistas e ladrões, a maior parte deles criminosos fugidos, vários sentenciados à morte, mas conheciam cada milímetro de terreno do Sudeste da Ásia e operavam atrás das linhas inimigas — patrocinados por nós. — Medusa — murmurou Steven DeSole. — Está tudo enterrado. Eram animais que matavam por matar, sem razão nem autorização e que roubaram milhões. Selvagens. — A maioria, não todos — disse Conklin. — Mas o Bourne verdadeiro correspondia a todos os adjetivos pejorativos que se pode imaginar, incluindo o fato de ter traído seus próprios homens. O chefe de uma missão especialmente perigosa — mais do que isso, suicida — surpreendeu Bourne transmitindo sua posição para os norte-vietnamitas e o executou sumariamente, lançando o corpo num pântano, para apodrecer na selva de Tam Quan. Jason Bourne desapareceu da face da terra. — Evidentemente ele reapareceu, Sr. Conklin — observou o diretor, inclinando-se para a frente. — Em outro corpo — concordou Alex, com um gesto afirmativo. — Para outro fim. O homem que executou Bourne em Tam Quan adotou seu nome e concordou em ser treinado para uma operação chamada Pedra Rolante Setenta e Um, porque foi num prédio da Rua Setenta e Um, em Nova York, que ele foi submetido ao mais brutal programa de doutrinação. No papel era uma estratégia brilhante, mas na prática acabou falhando por causa de algo que ninguém podia prever, nem mesmo imaginar. Depois de viver o papel do segundo assassino mais letal do mundo durante três anos e de se mudar para a Europa — como Steven notou, corretamente — para desafiar o Chacal no seu próprio território, nosso homem foi ferido e perdeu a memória. Foi encontrado semimorto no Mediterrâneo e levado por um pescador para a ilha de Port Noir. Ele não sabia quem, nem o que era — apenas que era um mestre em várias artes marciais, que falava algumas línguas orientais e que era, evidentemente, um homem muito instruído. Com a ajuda de um médico britânico, um alcoólatra, exilado em Point Noir, nosso homem começou a reconstituir sua vida — sua identidade — por meio de fragmentos da memória física e mental. Foi uma jornada infernal... e nós, que havíamos montado a operação, que inventamos o mito, não podíamos ajudá-lo. Sem saber o que havia acontecido, pensamos que ele havia se transformado no assassino mítico criado por nós para apanhar Carlos. Tentei matá-lo em Paris, mas quando ele teve oportunidade de estourar meus miolos não conseguiu. Finalmente voltou para nós, graças apenas ao talento de uma mulher canadense que conheceu em Zurique e que é hoje sua mulher. Essa mulher tem mais coragem e mais inteligência do que qualquer outra que já conheci. Agora ela, o marido e os dois filhos mergulharam novamente no pesadelo, fugindo para salvar suas vidas. Com expressão de espanto no rosto aristocrático, o cachimbo seguro na altura do peito, o diretor disse: — Está dizendo que o assassino que conhecemos como Jason Bourne era uma invenção? Que
ele não era o matador que nós todos julgávamos? — Ele matou quando foi preciso, para não ser morto, mas não era assassino. Criamos um mito como um desafio extremo para Carlos, a fim de atraí-lo para o campo aberto. — Jesus Cristo! — exclamou Casset. — Como? — Desinformação maciça em todo o Extremo Oriente. Sempre que havia um crime importante, fosse em Tóquio, Hong Kong, Macau ou Coréia — em qualquer lugar — Bourne era levado de avião ao local e reivindicava o crédito, falsificando provas, provocando as autoridades, até se tornar uma lenda. Durante três anos nosso homem viveu num mundo imundo — drogas, chefes de quadrilhas, crime, fazendo seu caminho subterrâneo para o objetivo único. Chegar à Europa e servir de isca para Carlos, ameaçar seus contratos, obrigar o Chacal a sair para campo aberto nem que fosse por um momento, o tempo suficiente para pôr uma bala na sua cabeça. Um silêncio elétrico envolvia a sala. DeSole o quebrou com um murmúrio. — Que tipo de homem aceita uma missão desse tipo? Conklin voltou-se para o analista e respondeu com voz inexpressiva: — Um homem que tinha pouca razão para viver, um homem dominado pelo desejo da morte, talvez... um ser humano decente levado ao grupo Medusa por sentimentos de ódio e frustração. — Conklin calou-se, visivelmente angustiado. — Ora, vamos, Alex — disse Valentino suavemente. — Não pode nos deixar só com isso. — Não, é claro que não — Conklin piscou os olhos várias vezes, voltando ao presente. — Eu estava pensando como deve ser horrível para ele agora — as lembranças, tudo que ele pode recordar ainda. Eu não havia pensado num terrível paralelo. A mulher, os filhos. — Que paralelo? — perguntou Casset, inclinando-se para a frente com os olhos pregados em Conklin. — Anos atrás, durante a guerra do Vietnã, nosso homem era um jovem membro do Ministério das Relações Exteriores em Phnom Penh, um erudito casado com uma mulher tahi, que conheceu no curso de graduação. Tinham dois filhos e moravam na margem alta de um rio... Certa manhã, quando a mulher e os filhos estavam nadando, um avião a jato de Hanói, fora da sua rota, metralhou a área, matando os três. Nosso homem enlouqueceu. Largou tudo, foi para Saigon e entrou para a Medusa — onde era considerado o líder guerrilheiro mais eficiente de toda a guerra, lutando tanto contra as ordens do Comando Saigon quanto contra p inimigo com esquadrões mortais. — Ainda assim, evidentemente ele suportou a guerra — observou Valentino. — A não ser o fato de não gostar de Saigon e do ARVN, acho que ele não ligava para nada. Tinha sua guerra particular muito atrás das linhas inimigas, quanto mais perto de Hanói, melhor. Acho que no subconsciente ele estava procurando o piloto que havia eliminado sua família... Esse é o paralelo. Anos atrás tinha mulher e dois filhos que foram eliminados na sua frente. Agora tem outra
mulher e dois outros filhos e o Chacal está apertando o cerco, caçando-os. Isso pode levá-lo a algo muito próximo da loucura. Que droga! Os quatro homens na outra extremidade da mesa entreolharam-se brevemente, esperando passar aquele momento de emoção. Então, o diretor falou, com voz tranqüila e baixa. — Considerando o intervalo de tempo — disse ele —, a operação montada para atrair Carlos deve ter acontecido há mais de dez anos, porém, o que houve em Hong Kong foi muito mais recente. Há alguma relação entre os dois fatos? Sem dizer nomes, o que acha que pode contar sobre Hong Kong? Com as juntas dos dedos esbranquiçadas pela força com que apertava a bengala, Alex respondeu: — A operação de Hong Kong foi a mais imunda e negra jamais realizada naquela cidade e sem dúvida a mais extraordinária que já vi. E para meu alívio profundo, nós, aqui de Langley, nada tivemos a ver com a estratégia inicial, para o diabo com os aplausos. Eu cheguei mais tarde e o que encontrei revirou meu estômago. McAllister também ficou chocado, pois ele viu o começo. Por isso estava disposto a arriscar a própria vida, por isso quase acabou morto no outro lado da fronteira chinesa, em Macau. Sua moralidade intelectualizada não lhe permitia deixar que um homem fosse morto pela estratégia. — É uma acusação danada — observou Casset. — O que aconteceu? — Nossa gente providenciou o rapto da mulher de Bourne, a mulher que nos devolvera a memória daquele homem. Deixaram pistas que o obrigaram a procurá-la em Hong Kong. — Jesus, por quê? — exclamou Valentino. — A estratégia. Era perfeita e também abominável... Eu disse que o assassino chamado Jason Bourne tornara-se uma lenda na Ásia. Ele desapareceu na Europa, mas nem por isso deixou de ser uma lenda no Oriente Médio. Então, surge de lugar nenhum um assassino sediado em Macau que faz reviver a lenda. Adotou o nome de “Jason Bourne” e as mortes contratadas recomeçaram. Raramente passava uma semana, geralmente alguns dias, sem que outro crime fosse cometido, as mesmas provas falsificadas, a mesma provocação contra a polícia. Um falso Bourne estava de volta ao trabalho e conhecia cada truque do verdadeiro Bourne. — Portanto, quem melhor do que o homem que inventou os truques — o original, o seu original, para descobrir o falso? — observou o diretor. — E o melhor modo para obrigar o Bourne original a se lançar na caçada era raptar sua mulher. Mas por quê? Por que Washington estava tão empenhado? Não havia mais nada que o ligasse a nós. — Havia algo muito pior. Entre os clientes do novo Jason Bourne estava um louco de Beijing, um traidor do Kuomintang no governo que estava para transformar o Extremo Oriente numa tempestade de fogo. Ele queria destruir os Acordos Sino-Britânicos de Hong Kong, fechar a colônia e lançar o território no caos. — Guerra — disse Casset em voz baixa. — Beijing marcharia sobre Hong Kong e a
conquistaria. Teríamos de optar por um dos lados... Guerra. — Na era nuclear — acrescentou o diretor. — Até onde esse plano já havia chegado, Sr. Conklin? — Um vice-premiê da República Popular foi morto num massacre privado em Kowloon. O impostor deixou seu cartão de visitas. “Jason Bourne”. — Meu Deus, esse homem precisava ser detido! — explodiu o diretor, crispando os dedos no cachimbo. — Ele foi — disse Alex, relaxando a mão no cabo da bengala. — Pelo único homem capaz de seguir sua pista e encontrá-lo. Nosso Jason Bourne... Isso é tudo que vou lhes contar por enquanto, mas quero repetir que aquele homem está lá fora com a mulher e os filhos e Carlos está fechando o cerco. O Chacal não descansará enquanto não tiver certeza de que a única pessoa no mundo capaz de identificálo está morta. Portanto, comecem a cobrar tudo que nos devem em Paris, Londres, Roma, Madri. — especialmente em Paris. Alguém tem de saber alguma coisa. Onde está Carlos agora? Quem são seus contatos aqui? Ele tem espiões aqui em Washington e esses espiões encontraram Panov e a mim! — O ex-agente de campo apertou outra vez os dedos na bengala e olhou para a janela. — Vocês não percebem? — acrescentou em voz baixa, como se estivesse falando sozinho. — Não podemos deixar que isso aconteça. Oh, meu Deus, não podemos deixar que aconteça! Mais uma vez o momento de emoção passou em silêncio enquanto os homens da Agência Central de Inteligência trocavam olhares. Como se tivessem chegado a um consenso tácito, três pares de olhos voltaram-se para Casset. Balançando a cabeça afirmativamente, ele aceitou a escolha, como o homem mais chegado a Conklin e disse: — Alex, concordo que tudo parece apontar para Carlos, mas antes de ligarmos nossas engrenagens na Europa, precisamos ter certeza. Não podemos nos dar o luxo de um alarme falso porque estaremos entregando ao Chacal uma presa que ele terá de perseguir, se demonstrarmos nossa vulnerabilidade no que diz respeito a Bourne. Pelo que você diz, Carlos vai partir de uma antiga operação chamada Pedra Rolante Setenta e Um, porque nenhum dos nossos agentes esteve perto dele nos últimos dez anos. Conklin olhou por um momento o rosto sério de traços fortes de Charles Casset. — Você está dizendo que se eu estiver enganado e não se tratar do Chacal, estaremos reabrindo um ferimento de 13 anos e dando a ele, de presente, uma presa irresistível. — Sim, acho que é isso que estou dizendo. — Pois eu acho que é um raciocínio perfeito, Charlie... Estou operando com pontos externos, certo? Estão ativando meus instintos, mas continuam sendo externos. — Eu confiaria nos seus instintos muito mais do que em qualquer polígrafo... — Eu também — interrompeu Valentino. — Você salvou nossa equipe em cinco ou seis crises
setoriais, quando tudo indicava que estava errado. Entretanto, a dúvida de Charles é válida. Suponhamos que não seja Carlos? Não só estaremos enviando a mensagem errada para a Europa, como também, o que é mais importante, vamos perder tempo. — Então, deixem a Europa — disse Alex pensativamente e em voz baixa. — Pelo menos por enquanto... Procurem os miseráveis aqui. Tirem todos da toca. Apanhem todos e descubram tudo que eles sabem. Eu sou o alvo, deixem que venham atrás de mim. — Isso exigiria uma proteção muito mais intensa do que havíamos programado para o senhor e para o Dr. Panov — disse o diretor com firmeza. — Então faça outra programação, senhor. — Alex olhou para Casset, para Valentino e de repente ergueu a voz. — Podemos fazer se vocês dois ouvirem o que eu digo e deixarem que eu organize o plano! — Estamos numa área delicada — afirmou Casset. — A coisa pode ser passada no estrangeiro, mas pertence ao nosso campo interno. O FBI deve tomar parte... — De jeito nenhum — exclamou Conklin. — Ninguém mais. Apenas nós cinco! — Ora, vamos, Alex — disse Valentino suavemente, balançando a cabeça. — Você está aposentado. Não pode dar ordens aqui. — Muito bem! Ótimo! — gritou Conklin, erguendo-se da cadeira com dificuldade, apoiado na bengala. — Próxima parada, a Casa Branca, para falar com um certo presidente da Agência de Segurança Nacional, chamado McAllister. — Sente-se! — disse o diretor com firmeza. — Estou aposentado! Não pode me dar ordens. — Eu nem pensaria nisso, estou simplesmente preocupado com sua vida. Do modo que vejo as coisas, sua sugestão baseia-se na suposição questionável de que a pessoa que atirou em você a noite passada errou de propósito, sem se importar com quem podia atingir, com o objetivo de apanhá-lo vivo no meio da confusão. — Está se adiantando muito em suas conclusões... — Baseadas numa dúzia de operações em que tomei parte aqui e no Departamento da Marinha e em lugares cujos nomes você nem saberia pronunciar e dos quais jamais ouviu falar. — O diretor apoiou os cotovelos nos braços da cadeira e continuou com voz áspera e autoritária. — Para sua informação, Conklin, eu não desabrochei de repente como um almirante de galões dourados para o comando da Inteligência Naval. Fiz parte dos SEALs durante algum tempo e tomei parte em incursões em Kaesong, onde chegávamos de submarino e, mais tarde, no porto de Haiphong. Conheci alguns daqueles miseráveis da Medusa e não me lembro de nenhum que não merecesse uma bala na cabeça! Agora está me dizendo que havia um, que se tornou o seu Jason Bourne e que está disposto a dar tudo
que tem e mais ainda, para mantê-lo vivo e fora do alcance do Chacal... Portanto, vamos deixar de conversa fiada, Alex. Quer trabalhar comigo ou não? Conklin voltou a sentar lentamente, com um sorriso. — Eu disse que não tinha nenhuma bronca contra sua indicação, senhor. Era apenas intuição, mas agora eu sei por quê. O senhor foi um agente de campo... Vou trabalhar com o senhor. — Muito bom. Ótimo — disse o diretor. — Vamos trabalhar com uma vigilância controlada e espero que a teoria de que eles o querem pegar vivo esteja certa, porque não temos nenhum meio de cobrir todas as janelas e todos os telhados. Acho melhor que compreenda o risco que está correndo. — Eu compreendo. E uma vez que duas iscas funcionam melhor do que uma só, num tanque de piranhas, quero falar com Mo Panov. — Não pode pedir a ele que tome parte nisto — observou Casset. — Ele não é dos nossos, Alex. Por que acha que aceitaria? — Porque é dos nossos e é melhor falar com ele. Do contrário Panov pode me dar uma injeção contra a gripe cheia de estricnina. Vocês compreendem, ele esteve em Hong Kong também — por motivos muito diferentes dos meus. Anos atrás tentei matar meu melhor amigo em Paris por pensar que ele havia se tornado um assassino, quando na verdade ele havia perdido a memória. Alguns dias depois, apresentaram a Morris Panov, um dos maiores psiquiatras do país, um médico que não suporta as bobagens da psicanálise tão populares atualmente, um perfil psiquiátrico “hipotético” ao qual ele reagiu imediatamente. Panov descreveu um perigoso agente da Inteligência, uma bomba ambulante com milhares de segredos na cabeça, que havia sofrido um colapso nervoso... Com base na avaliação imediata de Mo daquele perfil “hipotético” — o qual, algumas horas depois ele estava certo de que nada tinha de hipotético — um homem inocente sofrendo de amnésia quase foi eliminado numa cilada armada pelo governo na Rua Setenta e Um, em Nova York. Quando o que restou do homem conseguiu sobreviver, Panov pediu para ser designado como seu único psiquiatra. Ele jamais se perdoou. Se vocês estivessem no lugar dele, o que fariam se eu não tivesse contado o que contei agora? — Diria que era uma injeção contra a gripe e o enchia de estricnina, meu velho — concluiu DeSole, balançando afirmativamente a cabeça. — Onde está Panov agora? — perguntou Casset. — No Hotel Brookshire, em Baltimore, registrado como Morris, Phillip Morris. Avisou que não ia trabalhar hoje — está com gripe. — Então vamos ao trabalho — disse o diretor, apanhando um bloco de notas. — A propósito, Alex, um agente de campo competente não dá nenhuma importância a patentes, e não confia num homem incapaz de chamá-lo naturalmente pelo primeiro nome. Como deve saber, meu sobrenome é Holland e meu nome é Peter. Daqui por diante somos Alex e Peter, certo? — Certo, Peter. Você deve ter sido um filho da mãe no SEAL. — Uma vez que estou aqui — geograficamente, não nesta cadeira — pode-se supor que eu fui
competente. — Um agente de campo — resmungou aprovadoramente Conklin. — Além disso, já que abandonamos as inutilidades diplomáticas inerentes ao meu cargo, deve compreender que eu fui um filho da mãe muito teimoso. Quero cooperação profissional, Alex, não emotiva. Está claro? — Não opero de outro modo, Peter. A missão pode ser baseada em emoção, não há nada errado nisso, mas a execução da estratégia é fria como gelo... Nunca estive no SEAL, seu teimoso filho da mãe, mas também estou aqui geograficamente, mancando e tudo o mais, o que indica que fui competente. A juventude do sorriso de Holland, contrastando com os cabelos grisalhos, revelava um profissional momentaneamente liberado dos problemas executivos, para voltar ao que ele conhecia melhor. — Podemos até nos dar bem — disse o diretor. Depois, Como para eliminar os últimos vestígios da imagem de diretor, pôs o cachimbo sobre a mesa, tirou do bolso um maço de cigarros e acendeu um, começando a escrever no bloco de notas. — Para o diabo com o FBI — continuou. — Vamos usar apenas nossos homens, depois de examinar cada um no mais potente microscópio. Charles Casset, o esbelto e inteligente herdeiro aparente do posto de diretor da CIA, recostou-se na cadeira com um suspiro. — Por que tenho a impressão de que vou ter de tomar conta dos dois cavalheiros? — Porque você é essencialmente um analista, Charlie — respondeu Holland. O objetivo da vigilância controlada é expor aqueles que estão seguindo alguém, a fim de estabelecer suas identidades ou detê-los, dependendo da estratégia. Neste caso, a finalidade era apanhar os agentes do Chacal que haviam atraído Conklin e Panov ao parque de diversões em Baltimore. Trabalhando a noite toda e grande parte do dia seguinte, os homens da CIA formaram uma equipe de oito agentes de campo experientes, definiram e redefiniram os caminhos que Conklin e Panov deviam seguir, separados ou juntos, nas 12 horas seguintes — caminhos cobertos por profissionais armados, em revezamentos progressivos — e finalmente determinaram um ponto de encontro irresistível, único em termos de hora e local. As primeiras horas da manhã no Instituto Smithsonian. Era a Dionaea muscipula, a teia de Vênus. Conklin parou no saguão estreito e mal iluminado do seu prédio de apartamentos e consultou o relógio de pulso. Eram exatamente 2:30h da manhã. Abriu a porta pesada e, mancando, saiu para a rua aparentemente deserta. De acordo com o plano, foi para a esquerda, mantendo o passo combinado. Devia chegar na esquina o mais próximo possível das2:38h. De repente, um susto. Na sombra de uma porta estava parado um homem. Alex disfarçadamente segurou sua Beretta automática sob o paletó. Nada no plano determinava a presença de alguém naquela parte da rua! Mas então, com a mesma presteza, relaxou, com um misto de culpa e alívio. O homem encostado na porta era um mendigo, um velho mal-ajambrado, um dos destituídos daquela terra de fartura. Alex continuou seu caminho. Chegou
à esquina e ouviu um estalido de dedos. Atravessou a avenida e caminhou pela calçada, passando por um beco. No beco, outro vulto... outro velho andrajoso chegando vagarosamente até a rua e voltando para o beco. Outro mendigo, protegendo sua caverna de concreto. Em qualquer outra ocasião, Conklin teria se aproximado do homem para lhe dar alguns dólares, mas não naquele momento. Tinha um longo caminho a percorrer e um plano para executar. Morris Panov aproximou-se do cruzamento, intrigado ainda com a estranha conversa que acabava de ter no telefone, tentando lembrar cada detalhe do plano, com medo de consultar o relógio para ver se tinha chegado ao lugar determinado na hora certa — fora aconselhado a não consultar o relógio quando estivesse na rua... e por que não podiam ter dito “aproximadamente às tantas horas” em vez de usar a expressão enervante “intervalo de tempo”, como se se tratasse de uma iminente invasão a Washington. Continuou a andar, atravessou a rua que tinham mandado atravessar, esperando que algum relógio invisível o mantivesse relativamente sintonizado com os malditos “intervalos de tempo”, calculados por várias idas e vindas entre dois marcos no jardim de um prédio de apartamentos em Vienna, Virgínia... Panov faria qualquer coisa por David Webb — qualquer coisa! — mas isto era loucura... Não, é claro que não era. Se fosse, não pediriam a ele para fazer o que estava fazendo. O que era aquilo? Um rosto no escuro, olhando atentamente para ele, como os outros dois! Este, inclinado para a sarjeta, com os olhos injetados erguidos para ele. Velhos — castigados pelo tempo, homens velhos, velhos que mal podiam se mover — olhando fixamente para ele! Agora estava se deixando dominar pela imaginação — as cidades estavam repletas desses mendigos, pessoas completamente inofensivas cujas psicoses de pobreza as levavam para as ruas. Por mais que desejasse ajudá-los, a única coisa que podia fazer era culpar a indiferença de Washington... Lá estava outro! No espaço entre duas lojas, ladeado por portões de ferro — ele também o observava! Pare com isso! Está sendo irracional... Ou não? É claro que sim. Continue, mantenha-se dentro do horário, é isso que tem de fazer... Meu Deus! Mais um! No outro lado da rua... Continue andando! Os dois vultos convergindo de caminhos que se cruzaram pareciam insignificantes na vasta área do Instituto Smithsonian, iluminada pela lua. Encontraram-se e dirigiram-se para um banco. Conklin sentou-se com a ajuda da bengala enquanto Mo Panov olhava nervosamente em volta, atento como quem espera o inesperado. Eram 3: 28h da madrugada e só se ouviam o trilar dos grilos e a brisa de verão entre as árvores. Sempre de sobreaviso, Panov sentou-se. — Aconteceu alguma coisa no seu caminho? — perguntou Conklin. — Não estou bem certo — respondeu o psiquiatra. — Estou tão perdido quanto em Hong Kong, só que lá sabíamos para onde estávamos indo e quem esperávamos encontrar. Seu pessoal é louco. — Está se contradizendo, Mo — disse Alex. — Disse que eu estava curado. — Oh, aquilo? Era apenas um caso maníaco-depressivo muito perto de demência precoce. Mas isto é loucura! São quase 4:00h da manhã. Só gente louca faz brincadeiras às 4:00h da manhã. Alex observou Panov à luz fraca de um holofote distante que iluminava a estrutura maciça do Instituto.
— Você disse que não estava bem certo. O que significa isso? — Quase tenho vergonha de dizer — sabe que muitos pacientes inventam imagens estranhas para justificar seu pânico, seus temores. — Que diabo quer dizer com isso? — É uma forma de transferência... — Ora, vamos, Mo! — interrompeu Conklin. — Qual foi o caso? O que você viu? — Vultos... alguns inclinados para a frente, andando devagar, com dificuldade — não como você, Alex, por causa de um antigo ferimento, mas incapacitados pela idade. Abatidos, velhos, escondendo-se nas sombras das fachadas e dos becos. Eu vi uns quatro ou cinco do meu apartamento até aqui. Por duas vezes quase parei e chamei um dos nossos homens, mas depois pensei, meu Deus, doutor, está reagindo exageradamente, confundindo alguns patéticos mendigos com o que eles não são, vendo coisas que não existem. — Exatamente! — murmurou enfaticamente Conklin. — Você viu exatamente aquilo que estava lá, Mo. Porque eu vi a mesma coisa, o mesmo tipo de pessoas que você viu, todas elas patéticas, andrajosas, com movimentos mais lentos do que os meus... O que significa isso? O que eles significam? Quem são? Passos lentos. Hesitantes, e das sombras do caminho deserto, surgiram dois homens baixos — velhos. À primeira vista pareciam sem dúvida membros do crescente exército de indigentes desabrigados, mas com uma diferença, uma aparência de quem tem um objetivo, talvez. Pararam a uns seis metros do banco, seus rostos invisíveis no escuro. O velho da esquerda falou com voz fina e sotaque estranho. — É uma hora estranha e um lugar pouco comum para o encontro de dois cavalheiros tão bem vestidos. Acham justo ocupar o espaço que devia ser reservado aos menos afortunados? — Há muitos bancos vazios — disse Alex delicadamente. — Este está reservado? — Não há lugares reservados aqui — respondeu o outro homem, em bom inglês, que evidentemente não era sua língua nativa. — Mas por que vocês estão aqui? — Para que quer saber? — perguntou Conklin. — É um encontro particular e não é da sua conta. — Tratando de negócios a esta hora, neste lugar? — perguntou o primeiro velho, olhando em volta. — Eu já disse — respondeu Alex. — Não é da sua conta e acho que devem nos deixar em paz. — Negócios são negócios — disse o segundo homem.
— De que diabo estão falando? — murmurou Panov surpreso. — Campo zero — disse Alex em voz baixa. — Fique quieto. — Voltou-se para os dois homens. — Muito bem, companheiros, por que não vão embora? — Negócio é negócio — repetiu o velho andrajoso, olhando de soslaio para o companheiro, ambos sempre com os rostos na sombra. — Vocês não têm negócio nenhum conosco... — Não esteja tão certo disso — interrompeu o primeiro homem, balançando a cabeça. — Suponha que lhe dissesse que trazemos uma mensagem de Macau? — O quê! — exclamou Panov. — Cale a boca! — murmurou Conklin, sem tirar os olhos do mensageiro. — O que Macau significa para nós? — perguntou com voz inexpressiva. — Um grande taipan quer conversar com vocês. O grande taipan em Hong Kong. — Por quê? — Ele vai lhe dar muito dinheiro. Por seus serviços. — Pergunto outra vez, por quê? — Devemos dizer que um assassino voltou. Ele quer que você o encontre. — Já ouvi essa história antes, não pega mais. Além disso, c muito repetitiva. — Isso é entre o grande taipan e vocês, senhor. Não conosco. Ele está à sua espera. — Onde? — Num grande hotel, senhor. — Qual? — Devemos dizer que tem um grande saguão sempre cheio de gente, e seu nome refere-se ao passado deste país. — Só existe um assim, o Mayflower — Conklin falou com a boca perto do microfone costurado na lapela do seu paletó. — Como quiser. — Ele está registrado com qual nome?
— Registrado? — Como nos bancos reservados, só que estou falando de quartos. Quem devemos procurar? — Ninguém, senhor. O secretário do taipan falará com os senhores no saguão. — Esse mesmo secretário falou com vocês? — Como disse? — Quem os contratou para nos seguir? — Não temos permissão para falar nesse assunto, portanto não falaremos. — É isso! — gritou Alexander Conklin olhando por sobre o ombro quando os holofotes acenderam-se, iluminando a área em volta do caminho deserto, revelando que os dois homens espantados eram orientais.. Nove homens da CIA surgiram rapidamente no círculo de luz, vindos de todas as direções, com as mãos dentro dos paletós. Como aparentemente não precisavam delas, não tiraram as armas dos coldres. De repente tornaram-se necessárias, mas só perceberam tarde demais. Dois tiros de rifle de longo alcance, vindos do escuro, esfacelaram os pescoços dos dois mensageiros orientais. Os homens da CIA atiraram-se no chão, rolando à procura de proteção, enquanto Conklin agarrava Panov puxando-o para baixo, na frente do banco. A unidade de Langley, formada por antigos combatentes, entre eles o excomando diretor Peter Holland, levantou-se imediatamente e todos correram, ziguezagueando, um depois do outro, na direção de onde tinham vindo os tiros, empunhando suas armas, procurando se proteger. Depois de alguns momentos um grito furioso cortou o silêncio. — Droga! — berrou Holland, dirigindo a luz de sua lanterna para as árvores. — Conseguiram fugir! — Como sabe? — A grama, filho, as marcas dos pés. Aqueles filhos da mãe eram superqualificados. Chegaram, cada um deu um tiro e foram embora — veja as marcas no gramado. Esses pés estavam correndo. Esqueçam! Não adianta mais nada agora. Se tivessem parado para uma segunda posição nos teriam pregado nas paredes do Instituto. — Um agente de campo — disse Alex, levantando-se com a ajuda da bengala, com o assustado Panov ao seu lado. Então o médico voltou-se rapidamente e, com olhos arregalados, correu para os dois orientais. — Oh, meu Deus, estão mortos! — exclamou, ajoelhando ao lado dos corpos, olhando para os pescoços destroçados. Jesus! O parque de diversões! A mesma coisa!
— Uma mensagem — concordou Conklin, balançando a cabeça afirmativamente e fazendo uma careta. — Pedras de SAL na trilha — acrescentou enigmaticamente. — O que quer dizer? — perguntou o psiquiatra, voltando-se rapidamente para o ex-agente da Inteligência. — Não tomamos as precauções necessárias. — Alex! — rugiu Holland, correndo para o banco. — Eu ouvi seu recado, mas isto elimina o hotel — disse, ofegante. — Não pode ir lá agora, não posso permitir. — Elimina — neutraliza — mais do que o hotel. Isto não é o Chacal. Isto é Hong Kong! Os sinais externos estavam certos, mas meus instintos estavam errados. Errados! — Que caminho quer seguir agora? — perguntou o diretor em voz baixa. — Não sei — respondeu Conklin, com voz lamentosa. — Eu me enganei... Entrar em contato com nosso homem, é claro, o mais depressa possível. — Eu falei com David — falei com ele mais ou menos há uma hora — disse Panov, corrigindose imediatamente. — Você falou com ele? — exclamou Alex. — É tarde e você estava em casa. Como? — Você já viu minha secretária eletrônica — disse o médico. — Se eu atender todos os chamados malucos depois da meia-noite, jamais chegarei ao consultório de manhã. Por isso, deixei tocar e enquanto me preparava para este encontro com você, ouvi o chamado. Tudo que ele disse foi “Entre em contato comigo”, e quando peguei o fone já tinha desligado. Então, telefonei para ele. — Telefonou para ele? Do seu telefone? — Bem... sim — respondeu Panov, hesitando. — Ele falou muito depressa, com muito cuidado. Só queria saber o que estava acontecendo, que “M” — ele a chamou de “M” — ia viajar com as crianças esta manhã. Só isso, e desligou. — A esta hora eles têm o nome e o endereço do seu homem — disse Holland. — Provavelmente a mensagem também. — Um local, sim. A mensagem, talvez — disse Conklin, falando depressa e em voz baixa. — Nenhum endereço, nenhum nome. — De manhã eles terão... — De manhã ele estará a caminho da Terra do Fogo, se for preciso.
— Cristo, o que eu fiz? — exclamou o psiquiatra. — Nada que qualquer outra pessoa, no seu lugar, não teria feito — respondeu Alex. — Recebe o recado de um amigo com problemas às 2:00h da madrugada. Naturalmente telefona para ele o mais depressa possível. Agora temos de alcançá-lo imediatamente. Não é Carlos, mas alguém com muito poder de fogo está fechando o cerco, fazendo coisas que julgávamos impossíveis. — Use o telefone do meu carro — disse Holland. — Vou passá-lo para chamada direta, assim nada será gravado nem registrado. — Vamos! — Com toda a rapidez possível Conklin atravessou o gramado, mancando, na direção do carro da Agência. — David, é Alex. — Escolheu uma hora estranha, amigo, estamos de saída. Se Jamie não precisasse ir ao banheiro estaríamos no carro agora. — A esta hora? — Mo não lhe disse? Ninguém atendeu na sua casa, por isso telefonei para ele. — Mo está um pouco chocado. Diga você mesmo. O que está acontecendo? — Este telefone é seguro? Eu não tinha certeza quanto ao do Mo. — Perfeitamente seguro. — Estou mandando Marie e as crianças para o sul — bem para o sul. Ela está reclamando à beça, mas aluguei um jato Rockwell que sai do Aeroporto de Logan, perfeitamente seguro, graças às providências tomadas por você há quatro anos. Os computadores funcionaram e todo mundo cooperou. Devem partir às 6:00h, antes de o sol nascer — quero que fiquem fora disto. — E você, David? O que vai fazer? — Para falar a verdade, pensei em ir para Washington e ficar com você. Se o Chacal está à minha procura, depois de tantos anos, quero saber o que vocês vão fazer. Talvez até possa ajudar... chego ao meio-dia. — Não, David. Não hoje e não aqui. Vá com Marie e as crianças. Saia do país. Fique com sua família e Johnny St. Jacques na ilha. — Não posso fazer isso, Alex, e no meu lugar você também não faria. Minha família jamais estará livre — realmente livre — enquanto Carlos não sair das nossas vidas... — Não é Carlos — interrompeu Conklin. — O quê? Ontem você disse...
— Esqueça o que eu disse, eu estava errado. Isto vem de Hong Kong, de Macau. — Não faz sentido, Alex! Hong Kong está acabado, Macau está acabado. Mortos e esquecidos e não há ninguém vivo com motivo para vir atrás de mim. — Existe em algum lugar. Um grande taipan, “o maior taipan de Hong Kong”, segundo a fonte mais recente e exterminada. — Eles desapareceram. Todo aquele castelo de cartas do Kuomintang ruiu. Não sobrou ninguém! — Repito, existe alguém, em algum lugar. David Webb ficou em silêncio por um momento e então Jason Bourne disse com voz fria. — Conte-me tudo que sabe, com todos os detalhes. Aconteceu alguma coisa esta noite. O que foi? — Tudo bem, com detalhes — disse Conklin. Descreveu então a vigilância controlada da CIA. Explicou como ele e Morris Panov perceberam que estavam sendo seguidos por velhos andrajosos que se revezavam na perseguição, até chegarem ao Instituto onde o mensageiro falou de Macau e Hong Kong e de um grande taipan. Finalmente, descreveu os tiros que silenciaram os dois velhos orientais. — É de Hong Kong, David. A referência a Macau confirma isso. Era a base do homem que se fazia passar por você. David ficou outra vez em silêncio e só se ouvia a respiração calma de Jason Bourne. — Está enganado, Alex — disse afinal com voz distante que parecia flutuar. — É o Chacal — via Hong Kong e Macau, mas é o Chacal. — David, agora é você que não faz sentido. Carlos não tinha nada a ver com taipans, Hong Kong ou mensagens de Macau. Os velhos eram chineses, não franceses, alemães ou qualquer outra coisa. Isto vem da Ásia, não da Europa. — Ele só confia nos velhos — continuou David Webb com voz baixa e fria, a voz de Jason Bourne. — “Os velhos de Paris”, como são chamados. Eles eram a sua rede de in formações, seus mensageiros por toda a Europa. Quem vai suspeitar de homens velhos, mendigos que mal podem se mover? Ninguém vai pensar em interrogá-los, muito menos torturá-los. Mas mesmo que fizessem, eles nada diriam. Seus negócios estavam feitos — estão feitos — e movimentam-se com impunidade. Para Carlos. Ouvindo a voz estranha e distante do amigo, Conklin por um momento olhou para o painel do carro, sem saber o que dizer.
— David, eu não compreendo. Sei que está perturbado, mas nós todos estamos. Não pode ser mais claro? — O quê?... Desculpe, Alex, eu estava voltando ao passado. Carlos procurava por toda Paris homens velhos que estavam morrendo ou que sabia que tinham pouco tempo de vida, todos fichados na polícia e com pouco ou nada para mostrar como resultado de suas vidas, dos seus crimes. Em geral esquecemos que esses homens têm pessoas queridas e filhos, legítimos ou não, a quem amam. O Chacal prometia tomar conta dessas pessoas que seus mensageiros condenados à morte deixavam para trás, desde que eles jurassem dedicar o resto da vida a ele. No lugar deles, sem nada para legar aos nossos sobreviventes a não ser suspeita e pobreza, não faríamos o mesmo? — Acreditavam nele? — Tinham boas razões para acreditar — têm ainda. Todos os meses, bancos da Suíça enviam cheques de diferentes contas secretas aos herdeiros, do Mediterrâneo ao Báltico. É impossível descobrir a origem desses pagamentos, mas as pessoas que os recebem sabem por ordem de quem são enviados e por quê. Esqueça seu arquivo enterrado, Alex. Carlos procurou em Hong Kong. Foi de lá que partiu essa penetração, foi lá que ele encontrou seu nome e o de Mo. — Então vamos fazer também um trabalho de penetração. Podemos infiltrar todos os bairros orientais, todos os banqueiros de jogo chineses, todos os restaurantes, em todas as cidades, num raio de 80 quilômetros de Washington, D. C. — Não faça nada até eu chegar aí. Vocês não sabem o que devem procurar, eu sei... Na verdade, é notável. O Chacal não sabe que ainda não consigo me lembrar de muita coisa, mas presumiu que eu me esqueci dos velhos de Paris. — Talvez não, David. Talvez esteja contando com o fato de você se lembrar. Talvez tudo isto seja um prelúdio da verdadeira armadilha que montou para você. — Então ele cometeu outro erro. — Qual? — Sou melhor do que isso. Jason Bourne é melhor do que isso.
Capítulo 4 DAVID WEBB saiu do Aeroporto Nacional para a plataforma cheia de gente. Depois de verificar as setas indicadoras, seguiu para o estacionamento rotativo. De acordo com o plano, devia ir até a última passagem da direita, virar para a esquerda e continuar, seguindo a fila de carros estacionados até encontrar o Pontiac cinza-metálico 1986, com um crucifixo dependurado no retrovisor interno. O motorista estaria com um boné branco e com o vidro abaixado. Webb devia aproximar-se dele e dizer, “O vôo foi muito tranqüilo”. Se o homem tirasse o boné e ligasse o motor, David entraria no banco de trás. Nada mais devia ser dito. Nada mais foi dito, nada entre David e o motorista. Porém, este apanhou um microfone sob o painel e falou em voz baixa e clara, “Nossa carga está a bordo. Por favor comecem a movimentar a cobertura do veículo”. Para David, tudo era quase ridículo, mas uma vez que Alex Conklin se dera o trabalho de localizá-lo no Aeroporto Logan, na área de decolagem do jato Rockwell, e o que era mais, usando o telefone particular e direto do diretor Peter Holland, preferia achar que os dois sabiam o que estavam fazendo. Sem dúvida, pensou, tinha algo a ver com o telefonema de Mo Panov, nove horas atrás. Tudo foi confirmado quando o próprio Holland, no telefone, insistiu para que ele fosse de carro até Hartford e embarcasse no vôo comercial de Bradley para Washington, acrescentando enigmaticamente que não queria mais nenhuma comunicação telefônica de avião particular ou do governo. O carro particular-do-governo apressou-se em sair do aeroporto nacional. David teve a impressão de que em apenas poucos minutos estavam atravessando os campos e, em tempo um pouco menor, os subúrbios da Virgínia. Chegaram aos portões de um elegante complexo de prédios de apartamentos chamado Vienna Villas, no distrito do mesmo nome. O guarda evidentemente reconheceu o motorista e ergueu a barra, dando passagem. Só então o homem falou diretamente com David Webb. — Este complexo tem cinco alas separadas, construídas num grande terreno, senhor. Quatro são condomínios normais, com proprietários normais, mas a quinta, a mais distante dos portões, pertence à Agência e tem entrada e segurança próprias. Não podia ser mais saudável, senhor. — Não estou me sentindo nada doente. — Não podia estar. O senhor é responsabilidade direta do diretor da CIA e sua saúde é muito importante para ele. — É bom saber disso, mas como é que você sabe? — Faço parte da equipe, senhor. — Nesse caso, como se chama? O homem ficou calado por um momento e quando respondeu, David teve a estranha sensação de
estar voltando ao passado, um passado que, ele sabia, tinha de reviver. — Não temos nomes, senhor. O senhor não tem e eu não tenho. Medusa. — Compreendo — disse Webb. — Chegamos. O carro fez a volta na entrada circular de veículos e parou na frente de uma construção colonial de dois andares com colunas que pareciam de mármore de Carrara. — Desculpe, senhor, só notei agora. O senhor não tem bagagem. — Não, não tenho — disse David, abrindo a porta do carro. — Que tal meu refúgio provisório? — perguntou Alex, estendendo as duas mãos para a sala elegantemente decorada. — Muito arrumado e muito limpo para um velho solteirão rabugento — respondeu David. — Desde quando você gosta de cortinas com motivos florais de margaridas cor-de-rosa e amarelas? — Espere até ver o papel de parede do meu quarto com rosas miúdas. — Acho que não quero ver. — Seu quarto tem jacintos.. E claro que eu não reconheceria um jacinto nem que ele pulasse na minha garganta, mas foi o que a empregada disse. — A empregada? — Quase cinqüenta anos e parece um lutador de sumô. Tem também duas armas de ar comprimido sob a roupa e, segundo os boatos, várias navalhas. — Uma empregada e tanto. — Uma patrulha poderosa. Não permite a entrada de um sabonete ou de um rolo de papel que não venham de Langley. Você sabe, o ordenado dela é grau dez e alguns palhaços deixam gorjetas. — Será que estão precisando de garçons? — Essa é muito boa. Nosso erudito, Webb, o garçom. — Jason Bourne foi garçom. Depois de uma pausa, Conklin disse, sério:
— Vamos falar sobre isso. — Foi mancando até uma cadeira. — A propósito, você teve um dia atribulado e não é ainda meio-dia, portanto, se quiser um drinque, há um bar completo atrás daquelas portas arroxeadas ao lado da janela... Não olhe para mim, nossa Brunhilde negra me disse que são arroxeadas. Com uma risada franca e descontraída, Webb olhou para o amigo. — Não faz nenhuma diferença para você, faz, Alex? — Não, que diabo, você sabe muito bem. Alguma vez escondeu bebida de mim quando os visitei em sua casa? — Não estávamos sob tensão... — Tensão não tem nada a ver com isso — interrompeu Conklin. — Tomei a decisão porque não tinha escolha. Tome seu drinque, David. Precisamos conversar e quero que você esteja calmo. Seus olhos me dizem que está pegando fogo. — Uma vez você disse que tudo está nos olhos — observou Webb, abrindo as portas de madeira arroxeada e apanhando uma garrafa. — Ainda pode ver, certo? — Eu disse que estava atrás dos olhos. Não aceite nunca o primeiro plano... Como estão Marie e as crianças? Espero que tenham partido sem problemas. — Estudei ad nauseam o plano de vôo, até o piloto dizer para deixá-lo em paz ou tomar o lugar dele. — Webb serviu-se de bebida e sentou na poltrona de frente para Conklin. — Onde estamos, Alex? — perguntou. — Exatamente onde estávamos a noite passada. Nada se moveu e nada mudou, exceto o fato de Mo recusar-se a abandonar seus pacientes. Esta manhã eles o apanharam no seu apartamento, que é agora em Fort Knox, e uma escolta o levou até o consultório. Mais tarde vão trazê-lo para cá com quatro mudanças de veículos, todas realizadas em estacionamentos subterrâneos. — Então é proteção ostensiva, ninguém está mais se escondendo? — Seria inútil. Armamos uma cilada no Instituto e nossos homens foram óbvios demais. — Por isso talvez funcione, certo? O inesperado? Reservas de uma unidade de proteção instruídos para cometer enganos. — O inesperado funciona, David, não os “autômatos”. — Conklin balançou a cabeça rapidamente. — Retiro o que disse. Bourne pode transformar autômatos em homens eficientes, mas não uma equipe de vigilância oficialmente montada. As complicações são muitas. — Não compreendo.
— Por melhores que sejam, esses homens só se preocupam em proteger vidas, talvez salvá-las, mas têm também de trabalhar, em conjunto e fazer relatórios. São homens de carreira, não atiradores com pagamento adiantado, não ralé com uma faca assassina no pescoço, se cometerem um erro. — Isso parece muito melodramático — disse Webb em voz baixa, recostando-se na cadeira e tomando um gole da bebida. — Acho que eu operava assim, não é mesmo? — Era mais imagem do que realidade, mas era real para as pessoas que você usava. — Pois então vou procurar essas pessoas e usá-las outra vez. — David inclinou-se para a frente, segurando o copo com as duas mãos. — Ele está me obrigando a sair, Alex. O Chacal pagou para ver meu jogo e tenho de mostrar. — Ora, cale a boca — disse Conklin, irritado. — Agora é você quem está sendo melodramático. Fala como se estivesse num filme de faroeste grau Z. Você se mostra e Marie fica sem marido e seus filhos, sem pai. Essa é a realidade, David. — Está errado — Webb balançou a cabeça, olhando para o copo. — Ele está atrás de mim, portanto tenho de sair atrás dele. Ele está tentando me fazer “sair”, portanto tenho de tirá-lo da toca primeiro. É a única coisa que pode acontecer, o único modo de tirá-lo das nossas vidas. Em última análise é Carlos contra Bourne. Estamos no ponto em que paramos há 13 anos. “Alfa, Bravo, Cain, Delta... Cain é de Carlos e Delta é de Cain. “ — Um código maluco de Paris, há 13 anos! — disse Alex secamente. — Delta de Medusa e seu poderoso desafio ao Chacal. Mas isso não é Paris e são 13 anos mais tarde. — E daqui a cinco anos serão 18, cinco anos depois, 23. Que diabo quer que eu faça? Quer que viva com o fantasma daquele filho da mãe pairando sobre minha família, apavorando-me cada vez que minha mulher ou meus filhos saírem de casa, tremendo de medo pelo resto da vida?... Não, cale a boca você, agente de campo! Está cansado de saber. Os analistas podem apresentar dezenas de estratégias, usamos pedacinhos de seis delas, mais ou menos, e agradecemos, mas quando se trata do negócio sujo é entre mim e o Chacal... E eu estou com vantagem. Tenho você do meu lado. Conklin engoliu em seco e piscou rapidamente os olhos. — Isso é muito lisonjeiro, David, talvez até demais. Funciono melhor no meu elemento, algumas milhas longe de Washington. Sempre me senti um tanto abafado aqui. — Não quando me viu desembarcar daquele avião de Hong Kong, há cinco anos. Naquele tempo você já havia armado quase metade da equação. — Foi fácil. Era uma operação suja típica de D. C. que fedia a bacalhau podre, tão podre que ofendeu meu olfato. Isto é diferente, isto é Carlos. — Exatamente, Alex. É Carlos, não uma voz desconhecida no telefone. Estamos tratando com uma quantidade conhecida, com uma pessoa previsível.
— Previsível? — exclamou Conklin, franzindo a testa. — Isso também é loucura. De que modo? — Ele é o caçador. Vai se guiar pelo faro. — Mas antes vai examinar com um nariz muito experiente, depois verificar os rastros com um microscópio. — Nesse caso, precisamos ser autênticos, certo? — Prefiro a coisa segura. O que você tem em mente? — No evangelho segundo Santo Alex está escrito que para atrair a presa precisamos usar uma grande parte da verdade, mesmo que seja uma quantidade perigosa. — Esse Capítulo e versículo referem-se a um alvo microscópico. Acho que eu apenas os mencionei. Qual é a ligação com o caso? — Medusa — disse Webb em voz baixa. — Quero usar a Medusa. — Agora você está louco — disse Conklin, sem erguer a voz. — Esse nome é assunto tão proibido quanto você — vamos ser francos, muito mais. — Houve boatos, Alex, histórias em todo o sudeste da Ásia que atravessavam o Mar da China até Kowloon e Hong Kong, segundo os quais a maioria daqueles filhos da mãe fugiu com o dinheiro. Medusa não era exatamente a organização maléfica que você pensa. — Boatos, certo, histórias, é claro — interrompeu o ex-agente. — Qual daqueles animais não encostou uma faca ou uma arma na cabeça de dezenas ou centenas de vítimas, naquilo que eles chamavam de “excursões”? Noventa por cento de assassinos, ladrões, os esquadrões da morte originais. Peter Holland disse que quando era um SEAL, nas operações do norte, jamais conheceu um membro daquele grupo que não merecesse um tiro na cabeça. — E sem eles, as 58 mil baixas poderiam ter sido mais de sessenta mil. Reconheça o mérito dos animais, Alex. Eles conheciam cada milímetro do território, cada centímetro quadrado da selva do triângulo. Eles — nós — enviaram mais informações importantes do que todas as unidades de Saigon juntas. — David, estou procurando acentuar o fato de que jamais poderá haver ligação entre a Medusa e o governo dos Estados Unidos. Nosso envolvimento jamais foi registrado oficialmente, muito menos reconhecido. O próprio nome foi mantido em segredo na medida do possível. Não existe um estatuto de limitações para crimes de guerra, e Medusa era essencialmente uma organização privada, um grupo de desajustados violentos com o objetivo de fazer com que o sudeste da Ásia voltasse ao estado de corrupção que eles conheciam e usavam. Se fosse descoberta a ligação de Washington com Medusa, a reputação de muita gente da Casa Branca e do Departamento de Estado seria arruinada. Hoje eles são representantes do poder global, mas vinte anos atrás eram homens impulsivos subordinados ao Comando Saigon... Podemos aceitar táticas questionáveis em tempo de guerra, mas nunca a cumplicidade no extermínio de não-combatentes e a diversidade de fundos que representavam milhões,
tudo isso pago pelo povo, sem saber o que estava pagando. É como aqueles arquivos selados, que descrevem com detalhes o financiamento dos nazistas por nossos banqueiros. Existem coisas que não queremos jamais retirar dos seus buracos negros e a Medusa é uma delas. Webb recostou-se outra vez na cadeira — agora, porém, tenso, olhando fixamente para o amigo que, no passado e por um momento, fora seu inimigo mortal. — Se não me engano, Bourne foi identificado como ex-membro da Medusa. — Foi uma explicação perfeitamente aceitável e um disfarce perfeito — concordou Conklin, retribuindo o olhar intenso de Webb. — Voltamos a Tam Quan e “descobrimos” que Bourne era um aventureiro paranóico da Tasmânia que desapareceu nas selvas do Vietnã do Norte. Em nenhuma parte daquele dossiê criado por nós existe qualquer insinuação de uma conexão com Washington. — Mas é tudo mentira, não é, Alex? Havia uma conexão e o Chacal sabe disso agora. Ele sabia quando descobriu você e Mo em Hong Kong — quando encontrou seus nomes nas ruínas daquela casa segura em Victoria Peak onde Jason Bourne supostamente foi liquidado. O fato de enviar mensageiros a você e a Mo confirma isso, mais o que você disse há pouco, que “nossos homens foram óbvios demais”. O Chacal teve finalmente a certeza do que desconfiava há 13 anos. O membro da Medusa chamado Delta era Jason Bourne, e Jason Bourne era uma criação da Inteligência americana — e ainda está vivo. Vivo, escondido e protegido por seu governo. Conklin bateu no braço da cadeira com a mão fechada. — Como foi que ele nos encontrou, como me encontrou? Tudo, tudo estava perfeitamente e secretamente escondido. McAllister e eu nos certificamos disso! — Posso imaginar vários meios, mas podemos adiar a solução desse problema, não temos tempo agora. Precisamos agir baseados naquilo que sabemos que Carlos sabe... Medusa, Alex. — O quê? Agir como? — Se Bourne era membro da Medusa, segue-se logicamente que nossas operações secretas estavam trabalhando com ela — com eles. Caso contrário, como poderiam ter feito a substituição de Bourne? O que o Chacal não sabe, ou não deduziu ainda, é até que ponto este governo — especialmente certas pessoas deste governo — está disposto a chegar para manter o segredo da sua conexão com Medusa. Como você disse, muita gente na Casa Branca e no Departamento de Estado podia ser queimada, e colocariam etiquetas muito pejorativas nas testas dos representantes do poder global, acho que foi essa a expressão que você usou. — Então, de repente temos nossos Waldenheim — Conklin balançou afirmativamente a cabeça com a testa franzida, absorto em pensamentos. — Nuy Dap Rahn — disse Webb em voz muito baixa. Alex ergueu os olhos rapidamente para ele e David continuou. — Essa é a chave, não é? Nuy Dap Rahn — A Mulher Serpente. — Você lembrou.
— Só esta manhã — respondeu Jason Bourne com olhar frio. — Quando o avião com Marie e as crianças desapareceu na neblina sobre o porto de Boston, de repente eu estava lá. Em outro avião, em outro tempo, as palavras soando no rádio, no meio da estática. “Mulher Serpente, Mulher Serpente, abortar... Mulher Serpente, está me ouvindo? Abortar!” Respondi desligando a maldita coisa e depois olhei para os homens na cabine do avião que parecia prestes a se partir ao meio com a turbulência. Observei cada homem imaginando, eu acho, qual deles sairia vivo, imaginando se eu sairia vivo e se não conseguíssemos, como íamos morrer... Então, vi dois deles erguendo as mangas das camisas, comparando aquelas feias tatuagens, aqueles símbolos horríveis que os obcecava... — Nuy Dap Rahn — disse Conklin com voz inexpressiva. — Um rosto de mulher com cabelo feito de cobras. Mulher Serpente. Você se recusou a fazer a tatuagem... — Nunca achei que era uma marca de distinção — interrompeu David Webb, piscando rapidamente os olhos. — Na verdade, para mim, era o contrário. — No começo, era uma identificação, não um estandarte ou uma bandeira que pudessem conferir qualquer distinção. Uma tatuagem complexa na parte interna do antebraço, desenho e cores exclusivos de um único artista de Saigon. Ninguém era capaz de imitá-lo. — Aquele velho ganhou muito dinheiro naqueles anos. Ele era especial. — Todos os oficiais do Centro de Comando ligados à operação Medusa tinham uma. Eram como garotos maníacos que tivessem encontrado um código secreto numa caixa de flocos de milho. — Não eram garotos, Alex. Maníacos, pode apostar que eram, mas não garotos. Estavam contaminados por um vírus nojento chamado irresponsabilidade e aquele onipresente Comando Saigon fez muitos milionários. Os verdadeiros garotos estavam sendo inutilizados e mortos nas selvas, enquanto uma porção de oficiais elegantes, impecavelmente fardados, no sul, tinham mensageiros pessoais na Suíça para tratar de seus negócios nos bancos da Bahnhofstrasse, em Zurique. — Cuidado, David. Pode estar falando de gente muito importante no nosso governo. — Quem? — perguntou Webb em voz baixa. — Depois da queda de Saigon providenciei para que desaparecessem discretamente todos os que estavam enterrados no lixo até o pescoço. Mas estive fora, trabalhando por uns dois anos antes disso, e ninguém fala muito sobre esse tempo e nada sobre a Mulher Serpente. — Assim mesmo, deve ter uma idéia. — Tenho, mas nada concreto, nada que possa ser provado. Apenas possibilidades baseadas em modos de vida, em propriedades que eles não podiam ter, viagens que não poderiam fazer normalmente ou cargos que ocupavam ou ocupam em companhias, que justificam altos salários e direitos de acionistas, quando nada em sua carreira justificava ou justifica esses empregos. — Você está descrevendo uma rede de operação — disse David, com voz tensa, a voz de Jason Bourne.
— Se é uma rede, é muito fechada — concordou Conklin. — Muito exclusiva. — Faça uma lista, Alex. — Vai ser uma lista cheia de furos. — Então, para começar, limite-se às pessoas importantes do nosso governo que tinham alguma ligação com o Comando Saigon. Talvez possa relacionar depois todos os que possuem propriedades que não deviam possuir ou que têm empregos civis muito bem pagos, que não deviam ter. — Repito, seria uma lista inútil. — Não com seus instintos. — David, que diabo isso tem a ver com Carlos? — Uma parte da verdade, Alex. Uma parte perigosa, pode estar certo, mas genuína e irresistível para o Chacal. Alex olhou atônito para o amigo. — Como? — É aí que entra sua criatividade. Digamos que, entre 15 ou vinte nomes, você acerta em três ou quatro alvos contra os quais podemos conseguir provas de um modo ou de outro. Quando tivermos certeza de quem são, começamos a aplicar diversas formas de pressão com a mensagem básica: um exmembro da Medusa enlouqueceu, um homem que está detido há anos está disposto a estourar a cabeça da Mulher Serpente e ele tem a munição necessária — nomes, crimes, localização exata das contas nos bancos suíços, a salada mista completa. Então — e isto será um teste para os talentos do velho Santo Alex que nós todos conhecemos e respeitamos — fazemos correr o rumor de que alguém está muito mais interessado do que eles em pôr as mãos nesse traidor perigoso e rebelde. — Ilich Ramirez Sanchez — completou Conklin em voz baixa. — Carlos, o Chacal. E o que se segue é igualmente impossível. De algum modo — só Deus sabe como — espalha-se a informação de que as duas partes interessadas vão se encontrar. Isso quer dizer, interessadas num assassinato conjunto no qual uma das partes não pode participar ativamente, devido à natureza sensível de sua posição oficial, é isso? — Quase. Faltou dizer que esses homens poderosos de Washington podem ter acesso à identidade e paradeiro dessa tão desejada futura vítima. — Mas é claro — concordou Alex, balançando a cabeça com incredulidade. — Para eles, basta erguer a varinha de condão para anular todas as restrições aplicáveis aos arquivos de sigilo máximo e obter a informação. — Exatamente — disse David com firmeza. — Porque a pessoa — ou pessoas — designada para falar com Carlos tem de ocupar uma posição tão alta, tem de ser tão autêntica que o Chacal não
terá escolha senão aceitá-la. É preciso que ele não tenha nenhuma dúvida, que não possa sequer desconfiar de uma cilada. — Gostaria também que eu fizesse desabrochar rosas durante uma tempestade de neve em Montana? — Quase isso. Tudo deve acontecer dentro de um ou dois dias, enquanto Carlos ainda está se recuperando do que aconteceu no Instituto. — Impossível!... Tudo bem, vou tentar. Vou instalar aqui meu centro de trabalho e pedir a Langley tudo que preciso. Segurança Quatro Zero, é claro... Detesto a idéia de perder quem quer que esteja hospedado no Mayflower. — Talvez não seja preciso. Seja quem for, não vai desistir tão depressa. O Chacal não costuma deixar nenhum furo tão óbvio, — O Chacal? Você acha que é Carlos? — Não ele, é claro, mas alguém pago por ele, alguém tão improvável que pode dependurar um cartaz no pescoço com o nome do Chacal que ninguém vai acreditar. — Chinês? — Pode ser. Ele pode usar isso, e pode não usar. O Chacal é geométrico, tudo que faz é lógico e até sua lógica parece ilógica. — Ouço a voz de um homem do passado, um homem que jamais existiu. — Ah, mas ele existiu, Alex. Existiu realmente. E agora está de volta. Conklin olhou para a porta do apartamento, com uma nova idéia provocada pelas palavras de Webb. — Onde está sua mala? — perguntou. — Trouxe algumas roupas, não trouxe? — Nenhuma e estas vão ser jogadas num esgoto de Washington logo que me derem outras. Mas antes disso, preciso ver outro velho amigo, outro gênio, que mora no lado errado da cidade. — Deixe-me adivinhar — disse o ex-agente. — Um homem negro e idoso com o nome incrível de Cactus, um gênio no ramo de papéis falsos, como passaportes e cartões de crédito. — Isso mesmo. Ele. — A Agência pode tratar disso. — Não tão bem e com muita burocracia. Não quero nada cuja origem possa ser descoberta, mesmo com segurança Quatro Zero. Este é um trabalho pessoal.
— Tudo bem. E depois? — Comece a trabalhar, agente de campo. Amanhã cedo quero que uma porção de gente desta cidade esteja apavorada. — Amanhã cedo...? Isto é impossível! — Não para você. Não para Santo Alex, o príncipe da operação secreta. — Pode dizer o que quiser, eu estou destreinado. — Isso volta depressa, como sexo e andar de bicicleta. — E você? O que você vai lazer? — Depois da minha consulta com Cactus, vou reservar um quarto no Mayflower Hotel — respondeu Jason Bourne. Culver Parnell, magnata de hotéis de Atlanta, nomeado para o cargo de chefe do protocolo da Casa Branca em virtude dos vinte anos de reinado no ramo hoteleiro, desligou furioso o telefone, enquanto escrevia o sexagésimo palavrão no seu bloco de notas. Com á eleição e a mudança do pessoal da Casa Branca, Parnell tinha agora uma administradora de boa família, que não sabia coisa alguma das implicações políticas dos 1. 600 nomes da lista de convidados. Depois, para sua profunda irritação, viuse em estado de guerra com sua primeira assistente, uma mulher de meia-idade, também formada por uma das elegantes universidades do leste e, para piorar as coisas, uma dama muito popular na sociedade de Washington, que contribuía com parte do seu salário para uma companhia de dança muito exclusiva cujos membros andavam por toda a parte com suas roupas de baixo, quando as usavam. — Droga! Porcaria! — esbravejou Parnell, passando a mão no cabelo grisalho. Apanhou o telefone, digitou quatro números no seu console e disse, exagerando o sotaque já bastante acentuado da Geórgia: — Ligue para o Ruivo, coisinha doce. — Sim, senhor — respondeu a secretária, lisonjeada. — Ele está em outra linha, mas vou interromper. Por favor, espere um segundo, Sr. Parnell. — Você é a coisinha mais linda do mundo, criança. — Nossa! Muito obrigada! Agora, só um segundo. Nunca falhava, pensou Culver. Um pouco do óleo suave de magnólia funcionava muito melhor do que a casca de um velho carvalho. Aquela cadela da sua primeira assistente devia aprender com seus superiores do sul. Ela falava como se um dentista ianque acabasse de soldar seus dentes com cimento permanente. — É você, Cull? — disse o Ruivo no telefone, interrompendo o pensamento de Parnell, que escrevia o septuagésimo palavrão no bloco de notas.
— Está mais do que certo, garoto, e temos um problema! A cadela fricassê está fazendo outra das suas. Marquei os nomes dos nossos amigos de Wall Street para uma mesa na recepção que ofereceremos ao embaixador francês, no dia 25, e ela disse que temos de substituí-los por uns frescos core-dee-balé — dizendo que ela e a primeira dama são loucas por eles. Meeer-da! Os homens do dinheiro têm muitos investimentos na França e essa recepção na Casa Branca pode ser muito importante. Todas as “rãs” da Bolsa de Valores vão pensar que eles têm influência junto ao governo! — Esqueça, Cull — disse o ansioso Ruivo. — Acho que temos um problema maior e não sei ainda o que significa. — Que problema? — Quando voltamos a Saigon, por acaso ouviu falar de alguma coisa ou de alguém chamada Mulher Serpente? — Ouvi falar muito em “olhos de cobra1” — disse Parnell com uma risada — mas nada de Mulher Serpente. Por quê? — O cara com quem acabo de falar — vai telefonar novamente dentro de cinco minutos — parece que estava me ameaçando. Quero dizer, ameaçando de verdade, Cull! Mencionou Saigon, insinuou que aconteceu algo terrível naquela época e repetiu várias vezes Mulher Serpente, como se esperasse que eu saísse correndo de medo... — Deixe esse filho da mãe comigo! — rugiu Parnell, interrompendo. — Sei exatamente sobre o que o miserável está falando! É aquela empertigada cadela da minha primeira assistente — ela é a droga da Mulher Serpente! Dê meu telefone para o verme e diga que sei tudo sobre sua merda! — Quer fazer o favor de me contar, Cull? — Que diabo, você estava lá, Ruivo... Muito bem, tínhamos alguns jogos em funcionamento, até mesmo alguns minicassinos e alguns palhaços perderam as camisas no jogo, mas nada que os soldados não tenham feito desde que atiraram estrume nas roupas de Cristo!... Só que fizemos a coisa num nível mais alto e contratamos algumas donas que de qualquer modo estariam se oferecendo na rua... Não, Ruivo, aquela bunda elegante, chamada de primeira assistente, pensa que tem alguma coisa contra mim — por isso foi primeiro a você, porque todos sabem que somos amigos... Mande essa porcaria me telefonar que eu acerto a cara dele e a daquela cadela idiota! Ora, ora, ela fez o jogo errado! Meus homens de Wall Street estão dentro e seus bichas estão fora! — Tudo bem, Cull, então eu simplesmente mando falar com você — disse o Ruivo, conhecido também como Vice-presidente dos Estados Unidos, desligando o telefone. Quatro minutos depois o telefone tocou e o que Parnell ouviu foi: — Mulher Serpente, Culver, estamos todos fritos! — Não, escute aqui, seu cabeça-de-bagre, vou dizer quem está frito! Ela não é uma mulher, é uma puta. Um dos seus trinta ou quarenta maridos eunucos deve ter tirado um “olho de cobra” nos
dados, era Saigon, e perdeu algum daquele dinheiro fácil que ela anuncia tão bem, mas ninguém deu a mínima e ninguém está dando a mínima agora. Especialmente um coronel da marinha que gostava de um jogo de pôquer alto uma vez ou outra, e neste momento ele está sentado no Escritório Oval. Além disso, seu escroto sem saco, quando ele souber que ela está tentando difamar mais ainda os bravos rapazes que só queriam um pequeno descanso no meio de uma guerra ingrata... Em Vienna, Virgínia, Alexander Conklin desligou o telefone. Tiro fora do alvo um, fora do alvo dois... e ele jamais ouvira falar em Culver Parnell. O presidente em exercício da Comissão Federal do Comércio, Albert Armbruster, desligou o chuveiro e praguejou em voz alta quando ouviu a voz estridente da mulher no banheiro cheio de vapor. — Que diabo está acontecendo, Mamie? Não posso nem tomar um banho de chuveiro sem ouvir seus berros? — Pode ser da Casa Branca, Al! Você sabe como é que eles falam, tão baixo e devagar e sempre dizendo que é urgente. — Meerda! — gritou o presidente, abrindo a porta de vidro e caminhando nu para o telefone na parede. — Armbruster falando. O que é? — Uma crise que exige sua atenção imediata. — É o 1600? — Não, e espero nunca chegar a tanto, — Então, quem diabo é você? — Alguém tão preocupado quanto o senhor vai ficar. Depois de tantos anos — oh, Cristo! — Preocupado com o quê? Do que você está falando? — Da Mulher Serpente, senhor presidente. — Oh, meu Deus! — A voz baixa de Armbruster era um grito instintivo de pânico. Logo se controlou, mas era tarde demais. Primeiro tiro na mosca. — Não tenho idéia do que está falando... O que é essa serpente não sei o quê? Nunca ouvi falar nisso. — Pois então, ouça agora, Sr. Medusa. Alguém conseguiu todas as informações. Datas, desvios de material, bancos em Genebra e em Zurique — até os nomes de uma meia dúzia de mensageiros em Saigon — e coisa pior... Jesus, o pior! Outros nomes — desaparecidos em ação que nunca entraram em combate... oito investigadores do escritório do inspetor geral. Tudo. — Nada disso faz sentido! Está dizendo asneiras! — E seu nome está na lista, Sr. presidente. O homem deve ter passado 15 anos colhendo material e agora quer o pagamento de todos esses anos de trabalho, do contrário vai expor tudo — tudo
e todos. — Quem? Pelo amor de Deus, quem é ele? — Estamos investigando. Tudo que sabemos é que esteve no programa de proteção durante dez anos e ninguém fica rico desse modo. Com certeza foi excluído da ação em Saigon e agora quer recuperar o tempo perdido. Fique alerta. Logo entraremos em contato outra vez. Com um clique, o homem desligou, Com todo o calor e vapor que o envolviam, Albert Armbruster, presidente em exercício da Comissão Federal de Comércio, nu ainda, estremeceu de frio com o suor escorrendo pelo rosto. Desligou o telefone e examinou a tatuagem pequena e feia na parte interna do seu braço. Em Vienna, Virgínia, Alex Conklin ficou olhando para o telefone. Tiro na mosca número um. O general Norman Swayne, chefe de manutenção do Pentágono, recuou um pouco, satisfeito com sua longa tacada no extenso gramado. A bola ia rolar para uma ótima posição, permitindo um bom lançamento com o taco número cinco para o sétimo campo. — Acho que isso resolve — disse, voltando-se para seu parceiro de golfe. — Sem dúvida, Norman — respondeu o jovem vice-presidente da Calco Technologies. — Esta tarde você está tirando minha camisa. Vou acabar devendo uns trezentos mangos. A vinte dólares o buraco, só tenho mais quatro. — É a sua bola curva, amigo, precisa melhorar. — Certo, Norman — concordou o executivo da Calco, encarregado do marketing, aproximandose do suporte da bola. De repente ouviram o som áspero da buzina de um carro de golfe e o veículo de três rodas apareceu na rampa da passagem número 16 em velocidade máxima. — É o seu chofer, general — disse o vendedor de armamentos, imediatamente arrependido de ter usado o título formal do companheiro de jogo. — Tem razão. É estranho. Ele nunca interrompe meu jogo. — Swayne caminhou para o carro que se aproximava rapidamente, encontrando-se com ele a uns nove metros de onde estava o executivo. — O que é? — perguntou ao sargento de meia-idade com divisas na túnica, que há 15 anos era seu chofer. — Acho que é alguma coisa muito podre — respondeu o sargento carrancudo, segurando com força a direção do pequeno carro. — Isso é um tanto espetacular...
— Tanto quanto o filho da mãe que telefonou. Tive de atender dentro do clube, num telefone público. Eu disse que não ia interromper seu jogo e ele respondeu que era muito melhor para mim tratar de interromper. É claro, perguntei quem estava falando, sua patente e toda essa bobagem, mas o que ele disse me assustou mais do que qualquer coisa. “Diga ao general que estou telefonando para falar sobre Saigon e sobre alguns répteis que se arrastavam pela cidade há quase vinte anos”. Foi isso exatamente o que ele disse... — Jesus Cristo! — interrompeu Swayne. Serpente...? — Disse que vai telefonar outra vez dentro de meia hora — 18 minutos, agora. Entre aí, Norman, estou também nesse negócio, lembra-se? Atônito e assustado, o general balbuciou. — Eu... preciso arranjar uma desculpa. Não posso sair assim, sem mais nem menos. — Pois seja rápido. E, Norman, você está de mangas curtas, seu maldito idiota! Dobre o braço. Swayne olhou arregalado para a pequena tatuagem e imediatamente dobrou o braço contra o peito como um brigadeiro britânico, voltando com passos hesitantes para o parceiro, fingindo uma calma que não sentia. — Que droga, meu jovem, o exército me chama. — Ora, que droga, Norman, mas tenho de pagar o que lhe devo. Eu insisto! Atordoado, o general aceitou o pagamento sem contar o dinheiro, sem perceber que era muito mais do que o homem devia. Agradeceu confusamente e caminhou depressa para o carro de golfe, sentando-se ao lado do sargento. — Lá se vai meu anzol, soldadinho — disse o executivo da firma de armamentos para o suporte da bola, e com uma tacada precisa mandou a pequena bola num vôo direto muito adiante da bola do general e para uma posição muito melhor. — Um negócio de 400 milhões, seu chefão filho da mãe. Segundo tiro na mosca. — Mas afinal de que diabo você está falando? — perguntou o senador com uma risada. — Ou devo dizer o que Armbruster está armando? Ele não precisa do meu apoio para o novo projeto de lei e não teria se precisasse. Foi um asno em Saigon e é um asno agora, mas tem a maioria dos votos. — Não estamos falando de votos, senador. Estamos falando sobre Mulher Serpente. — As únicas serpentes que conheci em Saigon eram idiotas como Alby, que rastejava pela cidade fingindo saber todas as respostas quando não existia nenhuma... Quem diabo é você, afinal?
Em Vienna, Virgínia, Alex Conklin desligou o telefone. Terceiro tiro fora do alvo. Phillip Atkinson, embaixador junto à Corte de St. James, atendeu o telefone, em Londres, supondo que o homem anônimo, código “mensageiro D. C. “ trazia alguma instrução extremamente confidencial do Departamento de Estado e automaticamente, obedecendo às ordens, ligou seu “misturador” raramente usado. O aparelho provocava estática nas linhas da Inteligência e mais tarde ele ia sorrir complacentemente para os amigos no bar Connaught quando perguntassem se havia alguma novidade de Washington, sabendo que um ou outro tinha “parentes” no MI-Cinco. — Sim, mensageiro do distrito? — Sr. embaixador, suponho que esta conversa não pode ser ouvida por mais ninguém — disse a voz baixa e tensa em Washington. — Está certo, a não ser que eles tenham inventado um novo tipo de Enigma, o que é pouco provável; — Ótimo... quero que o senhor volte mentalmente a Saigon, a uma operação que nunca é citada ou comentada... — Quem está falando? — interrompeu Atkinson, inclinando-se para a frente com um gesto brusco. — Os homens naquele grupo nunca usavam nomes, senhor embaixador, e não costumávamos revelar nossos compromissos, certo? — Que diabo, quem é você? Eu o conheço? — Nada disso, Phil, mas estou surpreso por não reconhecer minha voz. Os olhos arregalados de Atkinson percorreram rapidamente a sala, sem ver nada, só tentando lembrar, procurando desesperadamente pôr um rosto naquela voz. — É você, Jack — acredite, estamos no misturador! — Está quente, Phil... — A Sexta Frota, Jack. Um simples código Morse invertido. Depois, coisas maiores, muito maiores. É você, não é? — Digamos que é possível, mas isso não vem ao caso. A questão é que estamos no meio de um temporal, um temporal muito pesado... — É você!. — Cale a boca e ouça. Uma fragata filha da mãe soltou-se das amarras e está batendo por todo lado, atingindo muitos bancos de areia.
— Jack, eu funcionava em terra, não no mar. Não estou entendendo. — Algum miserável deve ter sido afastado da ação em Saigon e, ao que me disseram, esteve sob proteção não sei por que, e agora juntou todos os pedaços. Ele tem tudo, Phil. Tudo. — Santo Deus! — Ele está pronto para o lançamento... — Pare o homem! — Esse é o problema. Não sabemos ao certo quem ele é. O segredo foi muito bem protegido em Langley. — Meu Deus, homem, na sua posição você pode mandar parar tudo! Diga que é um arquivo morto do Departamento da Defesa, que nunca foi completado — isto é, foi feito para espalhar desinformação! É um documento falso! — Isso podia ser o mesmo que enfrentar uma artilharia... — Já falou com Jimmy T. em Bruxelas? — interrompeu o embaixador. — Ele é muito amigo do chefe de Langley. — No momento não quero que a coisa passe adiante. Não antes de fazer um pouco de trabalho missionário. — Você é quem sabe, Jack. Você está dirigindo o espetáculo. — Mantenha suas adriças esticadas, Phil. — Se quer dizer que devo ficar de boca fechada, não se preocupe! — disse Atkinson, dobrando o cotovelo, imaginando se existia alguém em Londres capaz de tirar a feia tatuagem do seu braço. No outro lado do Atlântico, em Vienna, Virgínia, Alex Conklin desligou e recostou-se na cadeira muito assustado. Estava seguindo seus instintos como havia feito durante vinte anos de trabalho de campo, palavras que levavam a outras palavras, frases a outras frases, insinuações agarradas no ar para confirmar suposições, até mesmo conclusões. Conklin sabia que era um profissional competente nesse jogo de xadrez de invenção instantânea — às vezes, competente demais. Certas coisas deviam permanecer nos seus buracos negros, como um câncer não diagnosticado enterrado na história, e o que ele acabava de descobrir talvez estivesse nessa categoria. Tiros certeiros Três, Quatro e Cinco. Phillip Atkinson, embaixador na Grã-Bretanha. James Teagarten, comandante supremo da OTAN. Jonathan “Jack” Burton, ex-almirante da Sexta Frota atualmente presidente do Estado-Maior das Forças Armadas. Mulher Serpente. Medusa.
Uma rede de operações.
Capítulo 5 ERA COMO se nada tivesse mudado, pensou Jason Bourne, consciente de que seu outro eu, David Webb, estava retrocedendo. O táxi o levou ao bairro outrora elegante, agora empobrecido, no nordeste de Washington e, como há cinco anos, o motorista recusou-se a esperar. Passou pelo caminho de lajes coberto de mato que levava à velha casa que, como da primeira vez, lhe pareceu muito velha, muito frágil e precisando de reparos. Tocou a campainha, imaginando se Cactus estaria vivo ainda. Sim, estava. O homem negro e magro de rosto amigo e olhos bondosos apareceu na porta exatamente como há cinco anos, semicerrando os olhos protegidos pela pala do boné. Até suas primeiras palavras foram uma pequena variação das que havia usado naquele tempo. — Tem calotas no seu carro, Jason? — Sem carro, sem táxi, ele não quis esperar. — Deve ter ouvido as mentiras da imprensa fascista. Eu tenho lança-torpedos nas janelas só para impressionar esta vizinhança amistosa e gentil. Entre, penso muito em você. Por que não telefonou para este velho? — Seu telefone não consta da lista, Cactus. — Certamente por descuido. — Bourne entrou e o velho fechou a porta. — Você tem alguns fios de cabelos brancos, Br’er Rabbit — acrescentou, examinando o amigo. — Fora isso, não mudou muito. Talvez uma ou duas linhas a mais no rosto, mas isso dá mais personalidade. — Tenho também mulher e dois filhos, Tio Remus. Um menino e uma menina. — Sei disso. Mo Panov me mantém informado, embora não soubesse dizer onde você está morando — o que eu não quero saber, Jason. Bourne piscou os olhos, balançando lentamente a cabeça. — Eu ainda me esqueço das coisas, Cactus. Desculpe. Esqueci que você e Mo são amigos. — Oh, o bom doutor me telefona pelo menos uma vez por mês e diz, “Cactus, seu patife, vista um dos seus ternos Pierre Cardin, calce seus sapatos Gucci e vamos almoçar”. Então eu digo, “Onde este velho negro vai arranjar essas coisas?” E ele diz, “Provavelmente você é dono de um shopping center no melhor ponto da cidade...” Ora, isso é exagero, Deus sabe. Tenho um ou dois pedacinhos de imóveis, mas nunca chego perto deles. Os dois riram e Jason examinou o rosto escuro e os olhos negros e afetuosos. — Acabo de me lembrar de outra coisa. Há 13 anos, naquele hospital, na Virgínia... você foi me visitar. Além de Marie e daqueles filhos da mãe do governo, foi a única visita que recebi.
— Panov compreendeu, Br’er Rabbit. Quando trabalhei em você na Europa, na minha qualidade não oficial, eu disse a Morris que não se estuda o rosto de um homem com lentes sem aprender alguma coisa sobre aquele rosto, sobre aquele homem. Eu queria que você falasse de coisas que eu não encontrava nas lentes e Morris gostou da idéia... Agora que passou a hora da confissão, tenho de dizer que é muito bom vê-lo outra vez, Jason, mas para dizer a verdade, não estou muito feliz por vê-lo, se é que me entende. — Preciso da sua ajuda, Cactus. — Esse é o motivo da minha infelicidade. Você já passou por muita coisa e não estaria aqui se não estivesse à procura de mais encrencas, e se quer minha opinião profissional de perscrutador com lentes, não se trata de coisa muito saudável. — Você precisa me ajudar. — Então, é melhor que tenha um bom motivo, aprovado pelo bom doutor, porque não vou me meter em nada que possa trazer mais prejuízo para você... Encontrei sua encantadora mulher de cabelos ruivos algumas vezes no hospital — ela é especial, Br’er, e seus filhos devem ser também, portanto, compreende que não posso tomar parte em alguma coisa que possa fazer mal a eles. Perdoe-me, mas vocês são como parentes de um outro tempo, de um tempo sobre o qual não falamos, mas que está no meu pensamento. — Por causa deles preciso de sua ajuda. — Seja mais claro, Jason. — O Chacal está fechando o cerco. Ele nos descobriu em Hong Kong e eu e minha família estamos na sua mira de fogo. Por favor, ajude-me. Os olhos do velho arregalaram-se sob a pala do boné com uma fúria tremenda nas pupilas dilatadas. — O bom doutor sabe disso? — Ele está nisso também. Talvez não aprove o que estou fazendo, mas se for franco com ele mesmo, sabe que o final disto tudo será o Chacal e eu. Ajude-me, Cactus. O velho observou por um momento seu cliente nas sombras do fim de tarde. — Você está em boa forma, Br’er Rabbit? — perguntou. — Ainda tem boa disposição física? — Eu corro dez quilômetros todas as manhãs e levanto peso pelo menos duas vezes por semana no ginásio da universidade... — Não ouvi nada disso. Não quero saber nada sobre colégios ou universidades... — Então você não ouviu.
— É claro que não. Mas posso dizer que você parece em boas condições. — Procuro me manter assim, Cactus — disse Jason em voz baixa. — Às vezes é apenas a campainha do telefone, ou Marie está atrasada ou saiu com as crianças e não sei onde encontrá-la... ou um desconhecido me faz parar para perguntar onde fica uma rua, e tudo volta — ele volta. O Chacal. Enquanto houver uma possibilidade de ele estar vivo preciso estar preparado porque não vai desistir de me procurar. A ironia disso tudo é que a caçada baseia-se numa suposição que pode ou não ser verdadeira. O Chacal pensa que eu posso identificá-lo, mas eu não tenho certeza disso Na verdade, nada está perfeitamente em foco ainda. — Já pensou em enviar um recado para ele? — Com todo o dinheiro que ele tem, posso pôr um anúncio no Wall Street Journal. “Querido Velho Amigo Carlos: Garoto, tenho novidades para você...” — Não brinque, Jason, não é impossível. Seu amigo Alex talvez encontre um jeito. A perna não afeta em nada a mente dele. Acho que a palavra elegante é serpentina. — Exatamente por isso, se ele não tentou ainda, deve ter um bom motivo. — Acho que não posso negar isso... Então, vamos ao trabalho, Br’er Rabbit. O que você quer? Passando por uma arcada e por uma porta, Cactus o conduziu à sala de estar cheia de móveis velhos e colchas amareladas. — Meu estúdio não é tão elegante quanto era antes, mas todo o equipamento está aqui. Você compreende, estou meio aposentado. Os meus planejadores financeiros criaram um diabo de programa de aposentadoria com grandes vantagens de isenção de impostos; assim, a pressão não é muito intensa. — Você é simplesmente incrível — disse Bourne. — É, acho que alguns podem pensar isso, todos que não estão cumprindo pena na cadeia. O que você tem em mente? — Na verdade, eu mesmo. Não Europa nem Hong Kong, é claro. Só papéis. — Então o Camaleão recua para outro disfarce. Ele mesmo. Jason parou perto da porta. — Outra coisa que eu tinha esquecido. Era assim que eles me chamavam, não era? — Camaleão?... Sim, chamavam, e não sem motivo, como eles dizem. Seis pessoas podiam ver o rosto do nosso homem Bourne e teríamos seis descrições diferentes. E sem um vidro de maquilagem. — Tudo começa a voltar, Cactus. — Sinceramente, eu preferia que não fosse preciso, mas se tem de ser, certifique-se de que tudo
voltou... Venha para a sala mágica. Três horas e vinte minutos depois a mágica estava feita. David Webb, mestre de assuntos orientais e durante três anos Jason Bourne, assassino, tinha mais dois nomes no seu passaporte, nas carteiras de motorista e nos títulos eleitorais, para confirmar a identificação. E uma vez que nenhum táxi se aventurava no “campo de operações” de Cactus, um vizinho desempregado, com vários cordões de ouro no pescoço e nos pulsos, levou o cliente de Cactus para o centro de Washington no seu novo Cadillac Allanté. Do telefone público da loja de departamentos Garfinkel, Jason ligou para Alex, na Virgínia, informando-o sobre seus dois novos nomes e escolheu um para o Hotel Mayflower. Conklin ia reservar oficialmente um quarto para o caso de haver poucas vagas na temporada de verão. Langley ia ativar um imperativo Quatro Zero para fornecer a Bourne todo material necessário, entregando-o no seu quarto, no hotel, o mais depressa possível. A estimativa era de no mínimo mais três horas, sem garantia de tempo nem de autenticidade. Mesmo assim, pensou Jason, enquanto Alex reconfirmava a informação com a CIA, numa segunda linha direta, só poderia estar no hotel dentro de três horas. Precisava comprar roupas. O Camaleão voltava à atividade. — Steven DeSole disse que vai começar a trabalhar no computador, fazendo uma coleta remissiva de informações entre os bancos de dados do exército e da Inteligência naval — disse Conklin, voltando a falar com ele. — Peter Holland pode fazer isso, ele é chapa do presidente. — Chapa? Nunca ouvi você usar essa palavra antiga. — Como em acordo de chapa. — Oh?... Obrigado, Alex. E você? Algum progresso? Conklin ficou calado por um momento e quando respondeu havia medo em sua voz, controlado, mas era medo. — Digamos que... não estou equipado para o que descobri. Acho que estive afastado durante muito tempo, Jason — desculpe... David. — Disse o nome certo na primeira vez. Já conversou sobre... — Não diga nenhum nome — interrompeu o ex-agente de campo rapidamente, com voz firme. — Compreendo. — Não pode compreender — contrariou Alex. — Eu não compreendi. Entrarei em contato. — Com essas palavras enigmáticas, Conklin desligou bruscamente.Bourne desligou o telefone devagar, franzindo a testa. Era Alex quem estava sendo melodramático agora, e isso não combinava com ele. Sua palavra-chave era controle, discrição era sua persona. Fosse o que fosse, estava profundamente abalado com o que havia descoberto... a ponto de dar a impressão de que não confiava mais nos procedimentos que ele próprio havia determinado e nem nas pessoas com quem estava trabalhando. Se não fosse assim, teria sido mais claro, mais explícito. Por razões que Jason não conhecia, Alexander Conklin não queria
falar sobre Medusa e nem sobre o que havia descoberto quando começou a erguer o manto de vinte anos de trapaças... Seria possível? Não temos tempo! Não adianta agora, pensou Bourne, passando os olhos pelo saguão da loja de departamentos. Alex não era apenas cumpridor da sua palavra, ele vivia para ela, desde que não se tratasse de um inimigo. Com uma risada discreta, Jason lembrou-se de Paris, 13 anos antes. Conhecia aquele lado de Alex também. Se não fosse a proteção das lajes dos túmulos no cemitério em Rambouillet, seu melhor amigo o teria assassinado. Mas isso foi naquele tempo, não agora. Conklin disse que ia “manter contato”. Certamente faria isso. E a essa altura o Camaleão já teria criado vários disfarces protetores. De dentro para fora, da roupa de baixo ao terno e tudo que ficava no meio. Sem o perigo de uma marca de lavanderia, de nenhuma prova química microscópica de um detergente de uso local — nada. Tinha dado muito. Se precisava matar para proteger a família de David... Oh, meu Deus! a minha família!... recusava-se a viver com as conseqüências dessa morte ou dessas mortes. No lugar para onde ia agora não havia regras. O inocente podia morrer vítima do fogo cruzado. Tinha de ser. David Webb se oporia a isso ardentemente, mas Jason Bourne não dava a menor importância. Estivera lá antes, conhecia as estatísticas. Webb não sabia de nada. Marie, eu vou acabar com ele. Prometo que vou tirá-lo das nossas vidas para sempre. Apanharei o Chacal e deixarei um homem morto. Ele jamais poderá tocá-la outra vez — você ficará livre. Oh, Cristo, quem sou eu? Mo, ajude-me!... Não, Mo, não faça isso! Eu sou o que tenho de ser. Estou frio e ficando mais frio. Logo serei gelo... gelo claro e transparente, tão puro que poderei me movimentar em qualquer parte sem ser visto. Não compreende, Mo — e você também, Marie — tenho de fazer isso! David tem de desaparecer. Não pode mais ficar ao meu lado. Perdoe-me, Marie, e você, doutor, perdoe-me, mas estou pensando na verdade. Uma verdade que precisa ser encarada neste momento. Não sou tolo nem estou me enganando. Vocês dois querem que eu elimine Jason Bourne da minha vida, que o liberte para o infinito, mas o que tenho de fazer agora é o contrário. David tem de partir, pelo menos por um tempo. Não me aborreça com essas considerações! Tenho muito que fazer. Onde diabo fica o departamento de roupas masculinas? Quando terminasse as compras, tudo pago em dinheiro a tantos vendedores diferentes quanto fosse possível, trocaria toda a roupa no banheiro dos homens. Depois, ia procurar nas ruas de Washington uma grade discreta de entrada de esgoto. O Camaleão também estava de volta. Às 7:35h da noite Bourne terminou o trabalho com a navalha. Tinha retirado todas as etiquetas das novas roupas. Dependurou tudo no closet, exceto as camisas que umedeceu com vapor, no banheiro, para tirar o cheiro de tecido não usado. Foi até a mesa onde estavam a garrafa de scotch, soda e o balde de gelo que havia pedido. Quando passou pelo telefone, parou. Desejava intensamente falar com Marie, na ilha, mas não era prudente, não do quarto do hotel. O mais importante era saber que tinham chegado bem, como garantiu John St. Jacques, quando David ligou de outro telefone público na Garfinkel. — Oi, Davey, eles estão exaustos. Tiveram de esperar quase quatro horas na ilha grande até o tempo abrir. Posso acordar a mana, se você quiser, mas depois de amamentar Alison ela simplesmente
apagou. — Tudo bem, telefono mais tarde. Diga que estou bem e tome conta deles, Johnny. — Certo, amigão. Agora, eu quero saber. Você está bem? — Já disse que estou. — Eu sei, você pode dizer isso e ela pode dizer também, mas além de ser a única, Marie é minha irmã favorita, e sei muito bem quando está abalada. — Por isso você vai tomar conta dela. — Vou também conversar com ela. — Vá com calma, Johnny. Por alguns momentos fora David Webb outra vez, pensou Jason, preparando um drinque. Não gostava disso, parecia errado. Porém uma hora depois, Jason Bourne estava de volta. Quando chegou ao hotel, naquela noite, o recepcionista do Mayflower apressou-se a chamar o gerente. — Ah, sim, Sr. Simon — cumprimentou o homem com entusiasmo. — Sabemos que está aqui para fazer oposição às terríveis restrições dos impostos sobre viagens de negócios e diversão. Boa sorte. Esses políticos querem nos arruinar!... Não tínhamos quartos com duas camas, portanto tomamos a liberdade de reservar uma suíte, sem nenhum preço adicional, é claro. Tudo isso fora há duas horas e desde então ele havia removido as etiquetas, umedecido as camisas e esfregado as solas de borracha dos sapatos no peitoril da janela. Com o copo na mão, Bourne sentou-se olhando para a parede. Agora era só esperar e pensar. A espera terminou em poucos minutos com uma discreta batida na porta. Jason atravessou o quarto rapidamente e fez entrar o homem que o havia encontrado no aeroporto. O agente da CIA entregou a Bourne a pasta que trazia. — Está tudo aí, incluindo uma arma e uma caixa de balas. — Obrigado. — Quer verificar? — Tenho a noite toda para fazer isso. — São quase 8:00h — disse o agente. — Seu controle deve chegar por volta das 11:00h. Isso lhe dará tempo para se preparar. — Meu controle...? — É isso que ele é, certo?
— Sim, tem razão — respondeu Jason em voz baixa. — Tinha me esquecido. Obrigado. Quando o homem saiu, Bourne abriu a maleta. Tirou primeiro a automática e a caixa de munição, depois centenas de folhas de impressos de computador dentro de uma pasta de arquivo. Em algum lugar, naquelas páginas, estava o nome que ligava um homem ou uma mulher a Carlos, o Chacal. Eram informações sobre todos os hóspedes do hotel, incluindo os que haviam partido nas últimas 24 horas. Continham tudo que constava no banco de dados da CIA, do G2 do Exército e na Inteligência naval. Havia probabilidade de que fosse inútil, mas era um lugar para começar. Começava a caçada. A oitocentos quilômetros de distância, em outra suíte de hotel, no terceiro andar do Ritz-Carlton, alguém bateu discretamente na porta. O homem enorme, com um terno elegante listra-de-giz, que o fazia parecer maior do que seu metro e noventa, saiu apressadamente do banheiro. A cabeça calva, com uma franja de cabelos grisalhos perfeitamente penteados sobre as orelhas, parecia o crânio sagrado de uma eminência parda cuja palavra, sem dúvida proferida com olhar de águia e a voz retumbante de um profeta, era aceita e seguida por reis, príncipes e pretendentes ao trono. A ansiedade dos seus movimentos em nada diminuía a impressão de domínio e superioridade. Ele era importante e poderoso e sabia disso. Tudo isso contrastava com o homem mais velho que estava na porta. Não havia nada de impressionante naquele homem idoso, pequeno e emaciado, a verdadeira imagem do vencido. — Entre. Depressa! Trouxe a informação? — Oh, sim, é claro — respondeu o homem pálido. Seu terno amarrotado e o colarinho largo tinham visto dias melhores há muito tempo. — Você está ótimo, Randolph — continuou com voz fraca, observando o outro homem e a suíte opulenta. — E que lugar magnífico este aqui, tão apropriado para um famoso professor. — Por favor, a informação — insistiu o Dr. Randolph Gates, de Harvard, especialista em lei antitruste e consultor muito bem pago de inúmeras indústrias. — Dê-me um momento, meu velho amigo. Há muito tempo não entro numa suíte de hotel, e nem me hospedo em uma... Como as coisas mudaram. Leio sempre a seu respeito c o vejo na televisão. Você é tão — erudito, Randolph, essa é a palavra, mas não diz tudo. É o que eu disse antes, “grande”, é o que você é. Grande e erudito. Tão alto e imperioso. — Você podia estar na mesma posição, sabe disso — disse Gates com impaciência. — Infelizmente procurou atalhos que não existiam. — Oh, existem muitos. Só que não escolhi os certos. — Suponho que as coisas não foram muito bem para você... — Não “supõe”, Randy, você sabe. Se seus espiões não o informaram, sem dúvida você pode ver. — Eu estava apenas tentando encontrá-lo. — Sim, foi o que você disse no telefone, o que muita gente me disse, na rua — pessoas que
fizeram uma porção de perguntas que nada tinham a ver com minha residência, por assim dizer. — Eu tinha de saber se você era capaz. Não pode me culpar por isso. — Deus me livre, é claro que não. Especialmente considerando o que me pediu para fazer, o que eu penso que me obrigou a fazer. — Apenas ser um mensageiro confidencial, nada mais. Sem dúvida não tem objeção ao dinheiro. — Objeção? — disse o visitante com uma risada trêmula e estridente. — Vou dizer uma coisa, Randy. Você pode ser expulso da advocacia aos trinta ou 32 anos e ainda conseguir alguma coisa, mas quando é expulso aos cinqüenta anos num julgamento de âmbito internacional, com uma sentença de prisão, é chocante verificar como as opções desaparecem — mesmo para um homem instruído. Você passa a ser intocável, e eu nunca fui muito bom para vender qualquer coisa que não fossem meus conhecimentos. A propósito, dei uma prova disso nestes últimos vinte e tantos anos. Alger Hiss saiu-se melhor com cartões-postais. — Não tenho tido tempo para reminiscências. A informação, por favor. — Oh, sim, é claro... Muito bem, recebi a primeira quantia na esquina da Commonwealth com Dartmouth e é claro, anotei os nomes e as especificações que você me deu por telefone... — Você escreveu? — perguntou Gates asperamente. — Queimei logo que consegui decorar — aprendi algumas coisas entre minhas dificuldades. Entrei em contato com o engenheiro de uma companhia telefônica que ficou encantado com a sua — perdoe — a minha generosidade e transmitiu a informação a aquele detetive particular repulsivo, o mais vulgar que já vi, Randy, e considerando seus métodos, alguém que na verdade pode fazer uso dos meus talentos. — Por favor — interrompeu o famoso especialista legal. — Os fatos, não sua opinião. — Opiniões geralmente contêm fatos importantes, professor. Certamente compreende isso. — Se eu quiser elaborar um caso, peço sua opinião. Mas não agora. O que o homem descobriu? — Baseado no que você me contou, uma mulher sozinha com filhos — não sabemos quantos — e com dados fornecidos por um mecânico mal pago da companhia telefônica, a saber, uma área limitada pelo código e os três primeiros números de telefone, o detetive vulgar e sem nenhuma ética começou a trabalhar a um preço absurdo por hora. Para meu espanto, foi um trabalho produtivo. Na verdade, com o que sobrou dos meus conhecimentos de direito, podemos formar uma sociedade discreta e sem nada no papel. — Vamos com isso, o que foi que ele descobriu? — Bem, como eu disse, seu preço por hora era incrível, quero dizer, praticamente invadiu o
corpus da minha reserva de fundos muito merecida; portanto, acho que devemos conversar sobre uma compensação, você não concorda? — Quem diabo você pensa que é? Eu mandei lhe entregar 3 mil dólares! Quinhentos para o homem da companhia telefônica e 1.500 para aquele miserável espião de buracos de fechadura que se diz detetive particular... — Só porque ele não está mais na folha de pagamento do departamento de polícia, Randolph. Como eu, ele caiu em desgraça, mas sem dúvida faz um ótimo trabalho. Negociamos ou eu vou embora? O quase calvo professor de direito olhou furioso para o velho advogado expulso da profissão. — Como se atrevei — Ora, ora, Randy, você acredita mesmo na imprensa, não é? Muito bem, vou lhe dizer como eu me atrevo, meu velho e arrogante amigo. Tenho lido o que você escreve, tenho visto sua imagem expondo suas interpretações esotéricas de assuntos legais complexos, atacando todas as coisas decentes que os tribunais deste país decretaram nos últimos trinta anos, quando não tem a menor idéia do que é ser pobre, sentir fome ou ter no estômago uma massa indesejável e não esperada, para a qual não pode conseguir uma vida. Você é o queridinho dos realistas, meu superficial amigo, e vai acabar obrigando o cidadão comum a viver num país onde a privacidade tornou-se obsoleta, o livre pensamento foi eliminado pela censura, onde os ricos ficam mais ricos e onde os mais pobres têm de abandonar todo início de potencial de vida para sobreviver. E você expõe esses conceitos medievais e sem originalidade só para se promover, para criar a imagem de um defensor brilhante — do desastre. Quer que eu continue Dr. Gates? Francamente, acho que escolheu o perdedor errado para fazer seu trabalho sujo. — Como... se atreve? — repetiu o professor atônito e furioso, dirigindo-se para a janela. — Não tenho de ouvir isso! — Não, é claro que não, Randy. Mas quando eu lecionava na faculdade de direito e você era um dos meus alunos — um dos melhores, mas não o mais brilhante — você tinha de ouvir. Portanto, eu sugiro que ouça agora. — Que diabo você quer? — rugiu Gates, voltando-se para o outro homem. — O que você quer, certo? A informação pela qual pagou muito pouco. É importante para você, não é? — Preciso dela. — Você sempre ficava excessivamente ansioso antes de uma prova... — Pare com isso! Eu paguei. Exijo a informação. — Nesse caso, tenho de exigir mais dinheiro. Seja quem for que está pagando, pode gastar mais.
— Nem mais um dólar! — Então já vou. — Espere!... Mais quinhentos, é tudo. — Cinco mil ou vou agora. — Ridículo! — Eu o vejo daqui a outros vinte anos... — Tudo bem... Tudo bem! Cinco mil. — Oh, Randy, você é tão transparente! Por isso nunca foi dos mais brilhantes, apenas alguém que sabe fazer uso da linguagem para parecer brilhante, e acho que nestes últimos dias tenho visto e ouvido mais do que o suficiente dessa linguagem... Dez mil, Dr. Gates, ou vou para o tribunal mais sensacionalista que encontrar. — Não pode fazer isso! — É claro que posso. Agora sou consultor legal confidencial. Dez mil dólares. Como prefere fazer o pagamento? Imagino que não tem tanto dinheiro com você, portanto, como vai honrar sua dívida — pela informação? — Minha palavra... — Esqueça, Randy. — Muito bem. Mando enviar para o Boston Five, de manhã. No seu nome. Um cheque. — Muita delicadeza sua. Mas se seus superiores tiverem a idéia de sustar o pagamento do cheque, por favor diga a eles que uma pessoa desconhecida, um velho amigo meu das ruas, tem uma carta onde descrevo tudo que se passou entre nós, que será enviada ao Promotor Público de Massachusetts, com pedido de recibo, se eu sofrer algum acidente. — Isso é absurdo. A informação, por favor. — Certo. Muito bem, acho que, em resumo, precisa saber que está envolvido no que parece ser uma operação muito sensível do governo... Baseado na suposição de que qualquer pessoa que deseja ir de um lugar a outro com grande urgência faz uso do meio de transporte mais rápido, nosso estranho detetive foi ao Aeroporto Logan, não sei sob que disfarce. Seja como for, conseguiu uma relação de todas as partidas de Boston, na manhã de ontem, desde o primeiro vôo, às 6:30h, até o das dez. Como deve estar lembrado, isso corresponde aos parâmetros das suas instruções — “partida às primeiras horas da manhã”. — E então?
— Paciência, Randolph. Você me disse para não escrever nada, por isso preciso ir aos poucos. Onde eu estava? — A relação. — Ah, sim. Bem, de acordo com o Detetive Vulgar, 11 crianças desacompanhadas seguiram em vários vôos, e oito mulheres, duas delas freiras, que tinham reservas para menores. Dessas oito, incluindo as freiras, que levavam nove órfãos para a Califórnia, as outras seis foram identificadas do seguinte modo. — O homem tirou do bolso, com mão trêmula, uma folha de papel datilografado. — Obviamente, eu não escrevi isto. Não sei escrever a máquina. É obra do Führer Vulgar. — Dê-me a lista! — ordenou Gates, adiantando-se para o homem com a mão estendida. — Certo — disse o advogado de setenta anos, expulso da profissão, entregando o papel ao seu antigo aluno. — Não vai adiantar muito — acrescentou. — Nosso Vulgar verificou todos os nomes, mais para poder cobrar mais horas de trabalho do que por qualquer outra coisa. Não só estão todas “limpas” como também ele fez o trabalho depois de termos conseguido a informação real. — O quê? — exclamou Gates, desviando os olhos da lista. — Que informação? — Uma informação que nem o Vulgar, nem eu escreveríamos em lugar algum. A primeira pista foi dada pelo recepcionista da manhã da Pan American Air Lines. Ele disse ao nosso detetive ignorante que entre os seus problemas, no dia anterior, estava um político poderoso, ou um homem de igual prepotência, que precisou de fraldas alguns minutos antes do nosso recepcionista entrar de serviço, às 5:45h. Você sabia que fraldas têm tamanhos diferentes e ficam trancadas no estoque de material de emergência das companhias aéreas9 — O que está tentando dizer? — Todas as lojas do aeroporto estavam fechadas. Só abrem às 7:00h — E daí? — Daí que alguém, na pressa, tinha esquecido alguma coisa. Uma mulher com um menino de cinco anos e um bebê iam sair de Boston num jato particular na pista próxima ao balcão de aluguel da Pan Am. O recepcionista atendeu o pedido e a mãe agradeceu pessoalmente. Sabe, ele é um pai jovem e compreende a importância das fraldas. Conseguiu três pacotes de tamanhos diferentes. — Pelo amor de Deus, quer ir direto ao assunto, juiz? — Juiz? — Os olhos do velho arregalaram-se no rosto emaciado. — Muito obrigado, Randy. Com exceção dos meus amigos em vários bares de segunda categoria, há muitos anos ninguém me chama de juiz. Deve ser a aura que me envolve. — Foi a lembrança do seu circunlóquio tedioso que usava tanto no tribunal quanto na sala de aula.
— A impaciência sempre foi seu ponto fraco. Eu a atribuía ao aborrecimento que lhe causavam as opiniões que interferiam em suas conclusões... Bem, seja como for, nosso Major Vulgar é capaz de reconhecer uma fruta podre quando um verme cospe no seu nariz; assim, correu para a torre de controle do Aeroporto Logan, onde encontrou um controlador de tráfego venal que verificou os horários da manhã de ontem. O jato em questão tinha leitura de computador de Quatro Zero, o que, foi dito ao nosso assombrado Capitão Vulgar, significa autorização do governo e sigilo máximo. Nada de manifesto, nada de nomes dos passageiros ou da tripulação, apenas a rota indicada para evitar aviões comerciais e o lugar de destino. — Que era? — Blackburne, Montserrat. — Que diabo é isso? — O Aeroporto Blackburne, na ilha de Montserrat, no Caribe. — O avião foi para lá? É isso? — Não necessariamente. De acordo com o Cabo Vulgar, que, devo dizer, faz seus raciocínios, há uma pequena conexão aérea para uma dúzia ou mais de ilhas ao largo da costa. — Isso é tudo? — Isso é tudo, professor. Considerando o fato de que o jato em questão tinha uma classificação Quatro Zero do governo, o que, diga-se de passagem, eu acentuei na minha carta ao Promotor Público, acho que ganhei meus 10 mil dólares. — Seu lixo bêbado... — Errado outra vez, Randy — interrompeu o juiz. — Alcoólatra, sem dúvida, bêbado, quase nunca. Permaneço na fronteira da sobriedade. É a minha única razão de viver. Sabe, com todo meu conhecimento, sempre me divirto — com homens como você. — Saia daqui — disse o professor ameaçadoramente. — Não vai nem me oferecer um drinque para ajudar este meu hábito horrível?... Meu Deus, deve haver meia dúzia de garrafas fechadas naquela mesa. — Apanhe uma e vá embora. — Muito obrigado. Vou fazer isso. — O velho juiz foi até a mesa de cerejeira encostada na parede com duas bandejas de prata cheias de garrafas de uísque e brandy. — Vejamos — disse ele, enrolando duas garrafas em vários guardanapos brancos e depois uma terceira. — Se eu levar debaixo do braço podem pensar que estou carregando roupa para lavar. — Quer se apressar?
— Quer, por favor, abrir a porta para mim? Eu detestaria derrubar uma destas garrafas. Se uma delas se quebrar não vai ser muito bom para sua imagem, também. Se bem me lembro, ninguém jamais o viu beber. — Saia daqui! — insistiu Gates, abrindo a porta para o velho juiz. — Muito obrigado, Randy — disse ele, saindo para o corredor e voltando-se para a porta. — Não se esqueça do cheque no Boston Five amanhã cedo. Quinze mil. — Quinze...? — Já imaginou o que o Promotor Público vai dizer quando souber que você teve negócios comigo? Adeus, Conselheiro. Randolph Gates bateu a porta com força e correu para o telefone ao lado da cama. O quarto menor era mais tranqüilizador, evitando que ficasse exposto ao escrutínio próprio das grandes áreas — o quarto era mais privativo, mais pessoal, menos aberto à invasão. Estava tão nervoso com a ligação que ia fazer que mal compreendeu as instruções para a ligação internacional. Na sua ansiedade, discou chamando a telefonista. — Quero fazer uma ligação para Paris — disse ele.
Capítulo 6 COM OS OLHOS doloridos pelo esforço, Bourne estudava os papéis espalhados na mesa ao lado do sofá. Inclinado para a frente, analisou os dados durante quase quatro horas, esquecendo o tempo, esquecendo que o seu “controle” já devia ter chegado, absorto na procura de alguma coisa que ligasse o Hotel Mayflower ao Chacal. O primeiro grupo que a princípio ele deixou de lado era de estrangeiros, britânicos, italianos, suecos, da Alemanha Oriental, japoneses e taiwaneses. As credenciais de todos haviam sido examinadas, bem como os motivos pessoais ou profissionais da sua entrada no país. O Departamento de Estado e a CIA tinham feito um bom trabalho. Cada pessoa tinha o aval pessoal e profissional de no mínimo cinco indivíduos ou companhias acima de qualquer suspeita. Todas elas há muito tempo mantinham comunicação com essas pessoas e com firmas de Washington. Não havia registro de nenhuma declaração falsa da parte delas. Se o homem do Chacal estava entre esses estrangeiros — e podia estar — precisariam de muito mais informação do que aquelas fornecidas pelos computadores, antes de Jason examinar a lista. Talvez fosse preciso voltar ao seu grupo, mas no momento precisava continuar a leitura. Tinha tão pouco tempo! Dos cerca de quinhentos hóspedes restantes, 212 estavam registrados nos bancos de dados da Inteligência, quase todos por terem negócios com o governo. Entretanto, 78 tinham folhas corridas nos arquivos. Trinta e um eram casos do Serviço de Renda Interna, o que significava que eram suspeitos da destruição ou falsificação de documentos financeiros e/ou tinham seus paraísos sem impostos nas contas bancárias na Suíça ou nas Ilhas Caimã. Eram zero, nada, apenas ladrões ricos e não muito inteligentes, e além disso, o tipo de “mensageiro” que Carlos evitaria como se fossem leprosos. Desse modo, restavam 47 possibilidades. Homens e mulheres — em 11 casos, ostensivamente maridos e mulheres — com extensas conexões na Europa, em sua maioria trabalhando com firmas tecnológicas e relacionadas com a indústria nuclear e do espaço, todos sob o microscópio do Serviço de Inteligência como possíveis vendedores de informações sigilosas aos agentes do bloco oriental e, portanto, para Moscou. Dessas 47 possibilidades, incluindo dois dos 11 casais, 12 haviam estado recentemente na União Soviética — estão todos fora. O Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti, também conhecido como KGB, tinha menos interesse no Chacal do que o Papa. Ilich Ramirez Sanchez, mais tarde Carlos o assassino, fora treinado num complexo americano em Novgorod, com inúmeras bombas de gasolina americanas, armazéns, butiques e lanchonetes e onde todos falavam inglês americano com diversos dialetos — não era permitido falar russo — e só os que eram aprovados no curso podiam passar para o nível seguinte de infiltradores. O Chacal fora sem dúvida aprovado, mas quando o Komitet descobriu que o jovem revolucionário venezuelano resolvia tudo e todos que o desagradavam, eliminando-os violentamente, foi demais até mesmo para os herdeiros da brutal OGPU. Sanchez foi expulso e nasceu Carlos, o Chacal. Esqueça as quarenta pessoas que estiveram na União Soviética. O assassino não os tocaria nem com uma vara de quilômetros, pois havia uma ordem geral em todos os ramos da Inteligência russa para eliminá-lo se ele aparecesse. Novgorod devia ser protegido a qualquer custo.
Assim, as possibilidades ficaram reduzidas às 35 registradas no hotel como nove casais, quatro mulheres solteiras e 13 homens solteiros. Os impressos do banco de dados descreviam com detalhes os fatos e as sugestões que levavam à avaliação negativa de cada indivíduo. Na verdade, as suposições eram em número muito maior do que os fatos e geralmente baseadas em comentários hostis de inimigos ou competidores, mas cada uma precisava ser estudada, pois entre as informações podia haver uma palavra ou uma frase, um lugar ou um ato que era o elo de ligação com Carlos. O telefone tocou, interrompendo sua concentração. Jason piscou os olhos como que procurando localizar a fonte do barulho áspero e estridente, depois levantou-se indo até a mesa, atendeu no terceiro toque. — Sim? — Alex. Estou telefonando aqui da rua. — Vai subir? — Não pelo saguão. Fiz uns arranjos com a entrada de serviço com um guarda temporário designado esta tarde. — Está cobrindo todas as bases, certo? — Não tanto quanto eu queria — respondeu Conklin. — Este não é seu jogo normal. Nós vemos em alguns minutos. Bato uma vez na porta. Bourne desligou o telefone e voltou aos documentos, separando três que haviam chamado sua atenção, não que tivessem qualquer coisa que pudesse envolver o Chacal. Havia algumas informações aparentemente sem importância que talvez significassem uma ligação entre três pessoas que à primeira vista nada tinham a ver entre si. De acordo com seus passaportes, esses três americanos haviam desembarcado no Aeroporto Internacional de Filadélfia com um espaço de tempo de seis dias entre eles, há oito meses. Duas mulheres e um homem, as mulheres de Marrakesh e Lisboa, o homem da Alemanha Oriental. A primeira mulher era uma decoradora de interiores em viagem de pesquisa profissional na velha cidade do Marrocos, a segunda era executiva do Chase Bank, Departamento do Exterior, o homem era um engenheiro espacial emprestado à Força Aérea pela McDonnell-Douglas. Por que três pessoas com profissões tão diferentes convergiam para a mesma cidade com o espaço de seis dias entre elas? Coincidência? Perfeitamente possível, mas considerando o número de aeroportos internacionais do país, incluindo os de maior movimento — Nova York, Chicago, Los Angeles, Miami — a coincidência de Filadélfia parecia pouco plausível. Mais estranho ainda era o fato de estarem os três hospedados no mesmo hotel em Washington, na mesma época, oito meses mais tarde. Jason imaginou o que Alex Conklin diria a isso. — Estou investigando os três — disse Alex, sentando-se na poltrona na frente do sofá e dos documentos do computador. — Você sabia? — Não foi difícil. É claro que foi muito mais fácil com o computador fazendo a triagem.
— Devia ter incluído uma nota! Estou trabalhando nestas coisas desde as 8:00h. — Eu só descobri depois das nove e não queria telefonar da Virgínia. — É uma história diferente não é? — perguntou Bourne, sentando no sofá, inclinando-se para a frente, ansioso. — Sim, é. Uma história medonha. — Medusa? — É pior do que eu pensei e nada pode ser pior do que isso. — Um tanto dramático. — Mais do que isso. Por onde começo... Fornecimentos ao Pentágono? A Comissão de Comércio Federal? Nosso embaixador em Londres, ou prefere o comandante supremo da OTAN? — Meu Deus...! — Posso subir mais ainda. O que acha do presidente da Junta dos Chefes Supremos? — Cristo, o que é isso? Uma espécie de cabala? — Está sendo muito acadêmico, Sr. professor. Agora, que tal uma conspiração, profundamente enterrada mas viva ainda, respirando ainda hoje? Eles mantêm contato nos postos mais altos. Por quê? — Qual é o objetivo? Qual o propósito? — Exatamente o que acabo de dizer, ou melhor, de perguntar. — Tem de haver uma razão! — Falemos em motivo. Eu já disse isso também e pode ser tão simples como esconder pecados do passado. Não é exatamente o que estamos procurando? Uma coleção de exmedusianos que fugiram e se esconderam ante a possibilidade de ver exposto seu passado? — Então é isso. — Não, não é. Isto são os instintos de Santo Alex procurando a palavra certa. As reações foram imediatas demais, ativas demais, carregadas demais com o presente, não com vinte anos passados. — Agora eu me perdi. — Eu também estou perdido. É algo diferente do que eu esperava e estou mais do que farto de cometer enganos... Mas isto não é um engano. Quando você disse, esta manhã, que parecia uma rede de operação, achei que estava muito distante da realidade. Pensei que talvez pudéssemos achar algumas pessoas importantes que não queriam ser prejudicadas por coisas que haviam feito há vinte anos, ou que
não queriam causar embaraços ao governo, pessoas cujo medo coletivo podia ser usado para revelar coisas que queríamos saber. Mas isto é diferente. Isto é hoje, e eu não compreendo. É mais do que medo, é pânico, estão loucos de pavor... Sem querer tropeçamos em alguma coisa, Sr. Bourne, e para usar a linguagem de menestrel do seu rico amigo Cactus, “No centro, pode ser maior do que nós dois”. — Para mim, não existe nada maior do que o Chacal! O resto pode ir para o inferno! — Estou do seu lado e morro afirmando isso. Só queria que soubesse o que penso... A não ser por um intervalo de tempo muito breve e muito sujo, nunca tivemos segredos um para o outro, David. — Atualmente prefiro Jason. — Sim, eu sei — disse Conklin. — Detesto isso, mas compreendo. — Compreende mesmo? — Sim — disse Alex em voz baixa, fechando os olhos. — Eu faria qualquer coisa para que não fosse assim, mas não posso fazer nada. — Então escute. Com sua mente serpentinada — a definição é de Carlos — procure imaginar o pior cenário possível, encoste esses miseráveis na parede, diga para ficarem de boca fechada à espera de suas instruções, quem devem procurar e como. Conklin olhou preocupado para o amigo, sentindo-se culpado. — Pode haver um cenário já armado que está fora do meu alcance — disse Alex, em voz baixa. — Não vou cometer outro erro, não nessa área. Preciso mais do que tenho agora. Bourne cruzou as mãos com força, num gesto de frustração. Com a testa franzida e os músculos do rosto tensos olhou para os papéis espalhados na mesa à sua frente. Porém, logo em seguida, relaxado, recostou-se na poltrona e disse com voz calma: — Tudo bem. Vai ter o que precisa. Rapidamente. — Como? — Eu vou conseguir isso para você. Preciso de nomes, endereços, horários e sistemas de segurança, restaurantes favoritos, hábitos. Ponha seus homens para trabalhar. Esta noite. A noite toda se for preciso. — Que diabo você pensa que vai fazer? — exclamou Conklin, lançando o corpo frágil para a frente, na poltrona. — Invadir suas casas? Enfiar agulhas nos seus traseiros entre o aperitivo e o prato principal? — Não tinha pensado nessa última possibilidade — disse Jason, sorrindo sombriamente. — Você tem mesmo uma imaginação fantástica.
— E você é um louco!... Desculpe, não quis dizer isso... — Por que não? — interrompeu Jason calmamente. — Não estou dando uma aula sobre a ascensão das dinastias Manchu e Ching. Considerando o estado real da minha mente e da minha memória, cabe muito bem uma alusão à saúde mental. — Depois de uma pausa, continuou, inclinando-se um pouco para a frente. — Mas vou dizer uma coisa, Alex. Talvez não me lembre de tudo, mas a parte de minha mente criada por você e por Treadstone está completa. Provei isso em Hong Kong, em Beijing e em Macau, e vou provar outra vez. Preciso. Não restará nada mais para mim se não fizer isso agora... Muito bem, consiga a informação. Você mencionou algumas pessoas que devem estar aqui em Washington. Fornecimento ou provisões do Pentágono... — Intendência — corrigiu Conklin. — É muito mais extensa e mais dispendiosa e está a cargo de um general chamado Swayne. Temos depois Armbruster, chefe da Comissão Federal de Comércio, e Burton, no... — Presidente interino da Junta de Comando — completou Bourne. — Almirante “Joltin” Jack Burton, comandante da Sexta Frota. — O próprio. No passado, o flagelo do Mar do Sul da China, hoje o mais poderoso entre os militares. — Repito — disse Jason. — Ponha seus homens para trabalhar. Peter Holland providenciará toda a ajuda necessária. Descubra tudo sobre cada um deles. — Não posso. — O quê? — Posso conseguir informação sobre nossos três de Filadélfia porque fazem parte do projeto Mayflower — isto é, o Chacal. Não posso tocar nos cinco — cinco por enquanto — herdeiros da Medusa. — Pelo amor de Deus, por que não? Tem de fazer isso. Não podemos perder tempo. — O tempo não vai significar coisa alguma se estivermos mortos. Não vai ajudar Marie nem as crianças. — De que diabo você está falando? — Estou falando do motivo do meu atraso. Por que não quis telefonar da Virgínia. Por que me comuniquei com Charles Casset para me apanhar na propriedade em Vienna e por que, até o momento em que ele chegou, eu não tinha certeza de que sairia vivo dali. — Troque isso em miúdos, agente de campo. — Muito bem... Eu não contei a ninguém que estava investigando os antigos membros da
Medusa — só nós dois sabíamos, ninguém mais. — Eu estranhei. Quando falamos esta tarde você estava muito misterioso. Muito cuidadoso, considerando o lugar em que estava e o equipamento que estava usando. — O lugar e o equipamento eram seguros. Casset disse-me depois que a Agência não quer nenhum registro do que se passa ali e essa é a melhor garantia que podemos ter. Nada de microfones, nem interceptadores nas linhas telefônicas, nada. Acredite, respirei melhor quando me disseram isso. — Então, qual é o problema? Por que você está parando? — Porque tenho de verificar outro almirante antes de penetrar mais no território da Medusa... Atkinson, nosso impecável embaixador WASP junto à Corte de St. James em Londres foi muito claro. No seu pânico, ele desmascarou Burton e Teagarten em Bruxelas. — E daí? — Ele disse que Teagarten podia controlar a Agência se alguma coisa sobre Saigon viesse à tona — porque ele é amigo íntimo do chefão em Langley. — E então? — Chefão é como chamam, em Washington, segurança confidencial máxima, e em Langley o encarregado é o diretor da Central de Inteligência... Que é também Peter Holland. — Esta manhã você disse que ele não teria nenhum problema para destruir um membro da Medusa. — Qualquer um pode dizer qualquer coisa. Mas fará o que diz? Do outro lado do Atlântico, no antigo subúrbio de Neuilly-sur-Seine, em Paris, um homem velho, com um terno surrado, caminhava pelo caminho de concreto que levava à catedral do século XVI, chamada Igreja do Santíssimo Sacramento. Na torre, os sinos badalaram o Angelus, o homem parou sob o sol da manhã e fez o sinal-da-cruz com os olhos erguidos para o céu. “Angelus domini nuntiavit Mariae”, murmurou ele. Com a ponta dos dedos atirou um beijo para o crucifixo em baixo-relevo, no arco de entrada, e seguiu para as imensas portas da catedral, percebendo os olhares desaprovadores de dois padres. “Peço perdão por profanar sua rica paróquia, seus esnobes cretinos”, pensou ele, acendendo uma vela que colocou entre as outras, “mas Cristo deixou bem claro que prefere a mim e não a vocês. ‘Os mansos herdarão a terra’ — ou o que vocês não roubarem dela”. O velho caminhou lentamente pela passagem central, apoiando a mão direita nos encostos dos bancos, enquanto com a esquerda verificava o colarinho grande demais e o nó da gravata. Sua mulher estava tão fraca que mal podia dobrar sua roupa mas, como nos velhos tempos, insistia em dar os últimos toques na sua aparência, quando ele saía para o trabalho. Era ainda uma boa mulher e os dois riam lembrando aquele dia, há vinte anos, quando ela ficou furiosa por ter posto goma demais na camisa do marido. Naquela noite, há tanto tempo, ela queria que ele parecesse um perfeito burocrata quando
saiu para o quartel-general do Oberführer na rue Ste. Lazare, com sua pasta de executivo — a pasta que, deixada no quartel, havia explodido meio quarteirão. E vinte anos depois, uma tarde de inverno, foi com dificuldade que ela ajeitou o sobretudo caro e roubado nos ombros dele, quando se preparava para assaltar o Grande Banque Louis XI, na Madeleine, dirigido por um antigo membro da Resistência, educado mas ingrato, que lhe havia recusado um empréstimo. Bons tempos aqueles, seguidos de tempos maus e saúde péssima, que conduziam a tempos piores — na verdade, tempos de extrema pobreza. Até aparecer um homem estranho com uma missão estranha e um contrato escrito mais estranho ainda. Depois disso, o respeito voltou sob a forma de dinheiro para uma alimentação decente e um vinho aceitável, para roupas do tamanho certo, que faziam sua mulher parecer bela outra vez e, o mais importante, para os médicos que a faziam sentir-se melhor. O terno e a camisa que ele estava usando tinham saído de um closet especial. De certa forma, ele e a mulher eram atores numa companhia provinciana ambulante. Tinham trajes diferentes para vários papéis. Era a sua profissão... O que estava fazendo hoje era trabalho. Nessa manhã, com os sinos do Angelus, ele estava trabalhando. Com gestos parcialmente hesitantes e desajeitados, o velho fez a genuflexão na frente da cruz e ajoelhou no primeiro banco da sexta fila a partir do altar, com os olhos no relógio. Dois minutos e meio mais tarde, ergueu a cabeça e olhou em volta com a maior discrição possível. Sua vista fraca já havia se ajustado à pouca luz da catedral e ele podia ver, não perfeitamente, mas o bastante. Não havia mais de vinte fiéis espalhados pela igreja, alguns rezando, outros meditando com os olhos no enorme crucifixo de ouro do altar. Mas não eram o que ele procurava. Então viu o que esperava ver e teve certeza de que estava tudo de acordo com os planos. Um padre com terno negro sacerdotal passou pela passagem lateral esquerda e desapareceu atrás das cortinas vermelhas depois do altar-mor. O velho consultou outra vez o relógio, pois agora tudo dependia do cálculo exato do tempo. Era assim que o monsenhor trabalhava — era esse o método do Chacal. Mais dois minutos passaram e o velho mensageiro levantou-se com dificuldade do banco, saiu para a passagem central, fez a genuflexão na medida em que permitia seu velho corpo e caminhou com passos trôpegos para o segundo confessionário da esquerda. Abriu a cortina e entrou na cabine. — Angelus Dominum — murmurou, ajoelhando e repetindo as palavras que havia dito centenas de vezes nos últimos 15 anos. — Angelus Dominum, filho de Deus — respondeu o vulto invisível atrás da grade. As palavras foram acompanhadas por uma tosse áspera e baixa. — Seus dias têm sido bons? — Muito melhorados por um amigo desconhecido... meu amigo. — O que o médico disse sobre sua mulher? — Para mim ele diz o que não conta a ela, graças à misericórdia de Cristo. Ao que parece, contra todas as expectativas, vou sobreviver a ela. A doença está progredindo. — Meus sentimentos. Quanto tempo ela tem de vida? — Um mês, não mais de dois. Logo não poderá mais sair da cama... Logo o nosso contrato será anulado.
— Por quê? — Não terá mais nenhuma obrigação para comigo e eu compreendo isso. O senhor tem sido bom para nós, economizei um pouco e não sou exigente. Para ser franco, sabendo o que me espera, sinto-me extremamente fraco... — Que grande ingrato! — murmurou a voz do outro lado do confessionário. — Depois de tudo que eu fiz de tudo que prometi! — Do que está falando? — Você morreria por mim? — É claro, está no contrato. — Então, ao contrário, você vai viver por mim! — Se é o que deseja, é claro que vou. Só queria que soubesse que logo não serei mais um peso para o senhor. Posso ser substituído facilmente. — Nunca faça suposições, nunca a meu respeito! — A fúria explodiu numa tosse cavernosa que parecia confirmar os rumores ouvidos nas ruas escuras de Paris. O Chacal estava doente, talvez mortalmente doente. — O senhor é a nossa vida, nosso respeito. Por que eu faria uma coisa dessas? — Pois acaba de fazer... Mesmo assim tenho uma missão para você que facilitará a separação iminente de vocês dois. Vão passar alguns dias num belo lugar do mundo, os dois juntos. Apanhe os documentos e o dinheiro no lugar de costume. — Posso perguntar para onde vamos? — Para a Ilha de Montserrat, no Caribe. Receberá instruções no Aeroporto de Blackburne. Devem ser seguidas à risca. — É claro... Posso perguntar mais uma vez, qual é meu objetivo? — Encontrar e fazer amizade com uma mulher e seus dois filhos. — E depois? — Matar os três. Brendan Prefontaine, ex-juiz federal da corte do primeiro circuito de Massachusetts, saiu do banco Boston Five, na rua School, com 15 mil dólares no bolso. Era uma experiência embriagadora para um homem que vivera frugalmente nos últimos trinta anos. Desde que havia saído da prisão, raramente tinha mais de cinqüenta dólares. Era um dia muito especial.
Porém, era mais do que muito especial. Era também muito perturbador, porque jamais havia pensado que Randolph Gates ia pagar o que ele havia pedido. Atendendo à sua exigência, Gates cometera um grande erro, pois revelava assim a importância da missão. Tinha passado da ganância rude, mas não fatal, para algo potencialmente letal. Prefontaine não tinha idéia da identidade da mulher e das crianças, nem qual o seu relacionamento com Randolph Gates, mas fossem quem fossem e onde quer que estivessem, as intenções de Randolph, o Almofadinha, não eram nada boas.Uma imagem de Zeus no mundo legal, como era Gates, não pagava uma quantia absurda a um “lixo” expulso da profissão, desacreditado e alcoólatra como Brendan Patrick Pierre Prefontaine porque sua alma estava com os arcanjos do céu. Ao contrário, aquela alma estava com os discípulos de Lúcifer. E uma vez que esse era o caso, sem dúvida seria proveitoso para o pobre ex-juiz procurar obter alguma informação, pois como diz o velho ditado, saber um pouco é perigoso — quase sempre mais aos olhos do observador do que para quem possui escassos itens de informação, tão imprecisos que parecem valer muito mais. Quinze mil hoje podiam se transformar em 50 mil amanhã se — se um “lixo humano” voasse para a Ilha de Montserrat e começasse a fazer perguntas. Além disso, pensou o juiz, com sua ironia irlandesa, com todo o apoio da sua parte francesa, há anos não tirava umas férias. Cristo, mal conseguia se manter vivo, quem poderia imaginar uma suspensão não forçada daquela luta? Assim, Brendan Patrick Pierre Prefontaine chamou um táxi, o que não fazia há pelo menos dez anos, e mandou que o levasse à loja de roupas masculinas Louis’s, em Faneuil Hall. — Você tem grana, velho? — perguntou o motorista, desconfiado. — Mais do que o suficiente para te pagar um corte de cabelo e um tratamento para a acne do teu rosto imberbe, meu jovem. Vá em frente, Ben Hur. Estou com pressa. Eram confecções, mas confecções caras e depois de ver um maço de notas de cem dólares, o vendedor de lábios arroxeados demonstrou extrema boa vontade. Com as compras na mala de couro de tamanho médio, Prefontaine trocou a roupa que usava por outra completamente nova. Dentro de uma hora parecia outra vez o homem que fora há anos: o Meritíssimo Brendan P. Prefontaine. (Por razões óbvias, havia eliminado o segundo P, de Pierre). Outro táxi levou-o à pensão em Jamaica Plains, onde apanhou alguns objetos essenciais, incluindo o passaporte que mantinha sempre atualizado para saídas rápidas — para evitar os muros da prisão — e depois o deixou no Aeroporto Logan, dessa vez sem que o motorista se preocupasse com o pagamento da corrida. É claro que a roupa não faz o homem, pensou Brendan, mas sem dúvida ajuda a convencer certas pessoas inferiores. No aeroporto foi informado de que três linhas aéreas faziam a rota Boston-Montserrat. Perguntou onde ficava o balcão mais próximo e comprou uma passagem para o primeiro vôo. Brendan Patrick Pierre Prefontaine, naturalmente, viajou de primeira classe. O comissário da Air France empurrou lenta e cuidadosamente a cadeira de rodas pela rampa, até a porta do jato 747 no Aeroporto Orly, em Paris. A mulher na cadeira era frágil e velha, com excesso de ruge no rosto e um enorme chapéu com penas de arara australiana. Seria uma caricatura se não fosse pelos olhos grandes sob a franja de cabelo grisalho mal tingido de vermelho — olhos muito vivos e atentos, repletos de humor. Era como se dissessem a todos que a observavam, “Esqueçam, mes amis, ele
gosta de mim assim e isso é tudo que importa. Não dou nem um punhado de merde por suas opiniões”. Ele era o velho que caminhava cautelosamente ao lado da cadeira, tocando o ombro da mulher uma vez ou outra, tanto por carinho quanto para manter o próprio equilíbrio, mas naquele toque havia um volume inteiro de poesia que pertencia somente aos dois. Um exame mais apurado revelava lágrimas esporádicas nos olhos do homem, que ele enxugava rapidamente. Il est ici, mon capitaine, anunciou o comissário. O primeiro piloto, que esperava os dois passageiros na porta do avião, levou a mão da mulher aos lábios e depois, empertigando-se, saudou o velho quase calvo que ostentava a medalha da Legião de Honra na lapela. — É uma honra, monsieur — disse o capitão. — Este avião é meu comando, mas o senhor é meu comandante. — Trocaram um aperto de mãos e o capitão continuou. — Se eu e minha tripulação pudermos fazer qualquer coisa para tornar mais confortável sua viagem, é só dizer, monsieur. — É muita bondade sua. — Nós todos lhe devemos muito — nós todos, toda a França. — Não foi nada na verdade... — Não pode dizer que não é nada ser escolhido pelo próprio Charles como um verdadeiro herói da Resistência, senhor. A idade não pode tirar o brilho dessa glória. — O capitão estalou os dedos para as três comissárias que estavam na cabine ainda vazia da primeira classe. — Rápido, mademoiselles! Providenciem para que tudo seja perfeito para um bravo guerreiro da França e sua dama. Assim, o assassino com vários nomes falsos foi conduzido para o lado esquerdo do avião, onde a mulher foi delicadamente passada da cadeira de rodas para a poltrona ao lado da passagem. O homem sentou-se perto da janela. As bandejas foram instaladas e foi aberta uma garrafa de champanhe em honra do casal. O capitão brindou os dois e voltou para a cabine de vôo. A mulher piscou um olho para seu homem, com uma expressão divertida e maliciosa. Logo começaram a chegar os passageiros e alguns olhavam apreciadoramente para “o casal” na primeira fila, pois o rumor havia se espalhado na sala de espera da Air France. Um grande herói... O próprio grande Charles... Nos Alpes, ele repeliu o ataque de seiscentos boches — ou foram mil? Quando o jato enorme correu na pista e com um baque surdo ergueu-se do solo, o velho “herói da França” — cujos únicos atos heróicos na Resistência haviam sido roubo, sobrevivência, revidar insultos à sua mulher, e a arte de evitar toda e qualquer força de trabalho que pudesse requerer seus serviços — tirou do bolso os documentos que havia recebido. O passaporte tinha sua fotografia, mas era a única coisa real. O resto — nome, data e local do nascimento, profissão — tudo era novo para ele, mais a lista das honrarias recebidas que era simplesmente formidable, absurda mesmo, mas convinha estudá-la com cuidado, para poder responder com a devida modéstia se alguém se referisse a elas. Haviam garantido que o indivíduo em questão não tinha nenhum parente vivo e poucos amigos, e que havia desaparecido do seu apartamento em Marselha supostamente numa viagem sem volta. O mensageiro do Chacal leu o nome — precisava lembrar e responder quando chamassem por ele. Não seria difícil, pois era um nome extremamente comum. Mesmo assim, repetiu várias vezes em
silêncio. Jean Pierre Fontaine, Jean Pierre Fontaine, Jean Pierre... Um som! Agudo, áspero. Estranho, não um som normal, não comum aos sons noturnos de um hotel. Bourne apanhou a arma ao lado do seu travesseiro e rolou para fora da cama, encostando-se na parede. Outra vez! Uma batida sonora e única na porta da suíte. Sacudiu a cabeça, tentando lembrar... Alex? Vou bater só uma vez. Não de todo acordado, Jason encostou o ouvido na porta. — Sim? — Abra esta maldita porta antes que me vejam! — disse a voz abafada de Conklin no corredor. Bourne obedeceu e o ex-agente de campo entrou rapidamente no quarto, apoiado na bengala como se ela fosse um objeto odioso. — Cara, você está mesmo destreinado! — exclamou, sentando na beirada da cama. — Estou batendo há quase dois minutos. — Eu não ouvi. — Delta teria ouvido. Jason Bourne também. David Webb não ouviu. — Dê-me mais um dia e não vai encontrar mais David Webb. — Você só fala! Quero mais do que isso! — Então pare de falar e diga por que está aqui — seja qual for a hora da noite. — Da última vez que olhei estava me encontrando com Casset, na rua, às 3: 20h. Tive de claudicar por um bom pedaço de bosque e saltar uma maldita cerca... — O quê? — Isso mesmo. Uma cerca. Tente fazer isso com seu pé preso a um bloco de cimento... Você sabe, no ginásio eu ganhei a prova de cinqüenta metros. — Esqueça a história. O que aconteceu? — Oh, acho que estou ouvindo Webb outra vez. — O que aconteceu? E por falar nisso, quem é esse tal de Casset? — O único homem em quem posso confiar na Virgínia. Ele e Valentino. — Quem? — São analistas, mas são legais.
— O quê? — Deixe pra lá. Jesus! Às vezes eu gostaria de poder explodir... — Alex, por que você está aqui? Conklin ergueu os olhos e segurou com força a bengala. — Consegui as informações sobre nossos homens de Filadélfia. — Então é por isso? Quem são eles? — Não, não é por isso. Quero dizer, é interessante, mas não é por isso que estou aqui. — Então, por quê? — perguntou Jason, sentando na cadeira ao lado da janela, com a testa franzida. — Meu amigo erudito do Camboja e outros lugares mais distantes não pula cerca com um pé no cimento às 3:00h da manhã se não achar que é absolutamente necessário. — Foi necessário. — O que não me diz nada. Por favor, conte. — É DeSole. — O que tem a sola? — Não a sola. DeSole. — Ligação cortada. — Ele é o guardião das chaves em Langley. Não acontece nada que ele não saiba e nada se faz na área de pesquisa sem ordem dele. — Continuo perdido. — Estamos na merda até o pescoço. — Isso não me ajuda em nada. — Webb outra vez. — Prefere que eu extraia um nervo do seu pescoço? — Tudo bem, tudo bem. Deixe-me respirar primeiro. — Conklin deixou cair a bengala no tapete. — Não confiei nem no elevador de carga. Desci dois andares antes e subi pela escada. — Porque estamos afundados na merda? — Isso mesmo.
— Por quê? Por causa desse DeSole? — Correio, Sr. Bourne. Steven DeSole. O homem que tem o dedo em cada computador de Langley. A única pessoa que pode fazer girar os discos e jogar sua virginal tia Grace na cadeia como prostituta, se lhe der na cabeça. — Qual é o caso? — Ele é a conexão com Bruxelas, com Teagarten, na OTAN. Casset soube nos porões que ele é a única conexão — eles têm até um código de acesso que ultrapassa todos os outros. — O que significa isso? — Casset não sabe, mas está furioso. — Quanto você contou a ele? — O mínimo. Que eu estava trabalhando em algumas possibilidades e o nome Teagarten apareceu de um modo estranho — mais como uma manobra diversionista usada por alguém para impressionar alguém —, mas eu queria saber com quem ele falou na Agência, quase certo de que teria sido com Peter Holland. Pedi a Charlie para jogar no escuro. — O que, suponho, significa confidencialmente. — Dez vezes isso. Casset é a lâmina mais afiada de Langley. Não precisei dizer nada mais. Ele recebeu a mensagem. Agora ele também tem um problema que não tinha ontem. — O que ele vai fazer? — Pedi para não fazer nada por uns dois dias e foi exatamente o tempo que ele me deu. Quarenta e oito horas, para ser exato, e depois ele vai enfrentar DeSole. — Não pode fazer isso — disse Bourne com firmeza. — Seja o que for que essa gente está escondendo, podemos usar para tirar o Chacal da toca. Use esses homens para atraí-lo como outros iguais a eles fizeram comigo há 13 anos. Conklin olhou para o chão, depois para Jason Bourne. — Tudo se resume no ego todo-poderoso, certo? — disse ele. — Quanto maior o ego, maior o medo... — Quanto maior a isca, maior o peixe — interrompeu Jason. — Há muito tempo você disse que a “espinha” do Chacal era tão grande quanto sua cabeça, que tinha de estar extrema e desproporcionalmente inchada para que ele fizesse o que fazia. Isso era verdade então e é verdade agora. Se pudermos fazer com que um desses homens importantes do governo envie uma mensagem — isto é, para vir atrás de mim, para me matar —, ele vai agarrar a oportunidade. Sabe por quê?
— Acabei de dizer. Ego. — Certo, isso também, mas tem mais uma coisa. É o respeito que ele tenta conquistar há trinta anos, desde que Moscou o expulsou, com ordem de desaparecer. Ele ganhou milhões, mas seus clientes sempre foram o esterco da terra. Com todo o medo que ele inspira, continua sendo um psicopata sujo. Nenhuma lenda foi criada com seu nome, só o desprezo e, a esta altura, isso deve estar levando-o à loucura. O fato de vir em minha perseguição depois de 13 anos confirma isso... Sou vital para ele — tirar a minha vida é vital para ele — porque eu sou o produto de nossas operações secretas. Ele quer mostrar que é melhor do que nós todos juntos. — Pode ser também porque ele ainda pensa que você pode identificá-lo. — Também pensei isso, no começo, mas depois de 13 anos sem que eu tenha feito nada — bem, tive de pensar em outra coisa. — Então, você passou para o campo de Mo Panov e descobriu um perfil psiquiátrico. — É um país livre. — Sim, comparado com a maioria dos países, mas aonde isso nos leva? — Porque eu sei que estou certo. — Isso não é resposta. — Nada pode ser falso ou fabricado — insistiu Bourne, inclinando-se para a frente na poltrona, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos cruzadas. — Carlos descobriria o logro. Seria a primeira coisa que ele iria procurar. Nossos medusianos têm de ser genuínos e seu pânico tem de ser genuíno. — Eu já disse, esse é o caso. — A ponto de realmente considerarem a conveniência de fazer contato com alguém como o Chacal. — Isso eu não sei... — Nunca saberemos — interrompeu Jason — enquanto não descobrirmos o que estão escondendo. — Mas se pusermos para girar os discos em Langley, DeSole vai descobrir. E se ele faz parte do que quer que seja em que estão envolvidos, vai alertar os outros. — Então, não vai haver pesquisa em Langley. Já tenho o bastante para agir. Quero só os endereços e os números dos telefones não listados. Pode fazer isso, não pode? — É claro, isso é nível inferior. O que você vai fazer? Com um sorriso, Bourne disse em voz baixa e calma:
— Que tal invadir as casas deles ou enfiar agulhas nos seus traseiros entre os aperitivos e o prato principal? — Agora estou ouvindo Jason Bourne. — Pois que seja assim.
Capítulo 7 MARIE ST. JACQUES WEBB recebeu a manhã no Caribe espreguiçando-se na cama e olhando para o berço, na outra extremidade do quarto. Alison dormia profundamente, ao contrário de quatro ou cinco horas atrás. A garotinha havia feito um barulho dos diabos, a ponto de o irmão de Marie, Johnny, encher-se de coragem, bater na porta e entrar, perguntando se podia fazer alguma coisa, desejando ardentemente que ela dissesse que não. — Que tal sua prática para trocar uma fralda suja? — Não quero nem pensar nisso — disse St. Jacques, saindo apressadamente. Agora, Marie ouvia a voz do irmão lá fora e sabia que a intenção dele era que ela ouvisse. Johnny desafiava o filho dela, Jamie, para uma corrida na piscina, em altos brados, como se estivesse desafiando toda a Ilha de Montserrat. Marie saiu da cama, foi para o banheiro, e quatro minutos depois, completadas suas abluções matinais, com o cabelo ruivo escovado e envolta num robe, saiu para o pátio que dava para a piscina. — Oi, Marie! — gritou seu jovem irmão, bronzeado de sol, belo, de cabelos negros, ao lado de Jamie. — Espero não ter acordado você. Só queríamos dar uma nadada. — Então resolveu informar do fato as patrulhas costeiras britânicas, em Plymouth. — Ora, deixe disso, são quase 9: 00h. Já é muito tarde aqui nas ilhas. — Oi, mamãe. O tio John estava me ensinando a espantar tubarões com uma vara! — Seu tio tem um enorme cabedal de informações importantes que, eu espero, você nunca precise pôr em prática. — Tem um bule de café na mesa, Mare. E a Sra. Cooper faz o que você quiser agora. — Café é o bastante, Johnny. Ouvi o telefone a noite passada. — Foi David? — O próprio — disse Johnny. — E nós vamos ter uma conversa... Vamos, Jamie, vamos subir. Segure a escada. — E os tubarões? — Você apanhou todos, meu chapa. Sirva-se de um drinque. — Johnny! — Suco de laranja. Tem uma jarra na cozinha.
John St. Jacques deu a volta na piscina e subiu até a varanda do quarto de Marie, enquanto Jamie entrava na casa. Marie o observou, notando as semelhanças entre ele e seu marido. Eram ambos altos e musculosos, os dois tinham um modo de andar descontraído, mas onde David geralmente vencia, Johnny, na maior parte das vezes, perdia, e ela não sabia por quê. Também não sabia por que David confiava tanto no seu irmão mais moço, quando os dois mais velhos pareciam muito mais responsáveis. David — ou seria Jason Bourne? — jamais havia falado seriamente no assunto. Apenas ria dizendo que Johnny tinha alguma coisa que lhe agradava — que agradava a Bourne? — Vamos falar claro — disse o St. Jacques mais moço, sentando ao lado dela, com a água escorrendo do corpo molhado. — Em que encrenca David está agora? Ele não podia falar no telefone e você estava muito cansada ontem à noite. O que aconteceu? — O Chacal... O Chacal, foi isso que aconteceu. — Cristo! — explodiu Johnny. — Depois de todos esses anos? — Depois de todos esses anos — repetiu Marie. — Até onde aquele filho da mãe chegou? — David está em Washington tentando descobrir. Só sabemos que ele descobriu os nomes de Alex Conklin e de Mo Panov entre os horrores de Hong Kong e Kowloon. — Marie contou dos telegramas e da cilada no parque de diversões, em Baltimore. — Suponho que Alex os tenha colocado sob proteção ou seja lá como eles chamam. — Vinte e quatro horas por dia, tenho certeza. Além de nós e McAllister, Alex e Mo são as únicas pessoas vivas que sabem que David era — oh, Jesus, não posso nem dizer esse nome! — Marie bateu com o fundo da xícara na mesa. — Calma, mana — St. Jacques pôs a mão sobre a dela. — Conklin sabe o que está fazendo. David me disse que Alex era o melhor — “agente de campo”, como o chamou — que já trabalhou para os americanos. — Você não compreende, Johnny! — exclamou Marie, tentando controlar a voz e as emoções reveladas pelos grandes olhos. — David nunca disse isso, David Webb jamais soube disso! Jason Bourne disse, e ele está de volta!... Aquele monstro frio e calculista que eles criaram na cabeça de David. Você não imagina o que é isso! Basta olhar para aqueles olhos distantes que vêem coisas que eu não posso ver — ou ouvir a voz calma e gelada que eu não conheço — para me sentir na presença de um estranho. St. Jacques ergueu a mão. — Vamos, pare com isso — disse ele suavemente.
— As crianças? Jamie...? — Olhou em volta, apavorada. — Não, você. O que espera que David faça? Que se esconda dentro de um vaso da dinastia Ming ou Wing e finja que sua mulher e seus filhos não correm perigo — que ele é o único visado? Queiram vocês ou não, nós, os homens, ainda achamos que é nossa obrigação manter os animais predadores longe da caverna. Acreditamos piamente que somos melhor equipados para isso. Retrocedemos àquele tipo de força, a mais feia que existe, é claro, porque é preciso. É isso que David está fazendo. — Desde quando o irmãozinho começou a filosofar assim? — perguntou Marie, olhando atentamente para o rosto de Johnny. — Nada de filosofia, garota, apenas sei das coisas. Quase todos os homens sabem — pedindo desculpas às feministas. — Não se desculpe. A maioria das mulheres prefere assim. Você acredita que sua irmã estudiosa, com diversos trabalhos sobre economia em Ottawa, ainda grita histericamente quando vê um camundongo na cozinha da casa de campo, e entra em pânico quando vê um rato? — Algumas mulheres brilhantes são mais francas do que outras. — Eu aceito o que você diz, Johnny, mas a questão não é essa. David estava indo tão bem nos últimos cinco anos, melhorando a cada mês. Sabemos que ele jamais ficará completamente curado — o dano foi muito extenso — mas as fúrias, suas fúrias particulares tinham quase desaparecido. As caminhadas solitárias no bosque, das quais voltava com as mãos feridas de tanto atacar as árvores, as lágrimas disfarçadas e silenciosas na sala de trabalho, altas horas da noite, quando não conseguia lembrar quem era nem o que tinha feito, pensando o pior de si mesmo — tudo isso tinha desaparecido, Johnny! Já estava aparecendo a verdadeira luz do sol, sabe o que quero dizer? — Sim, eu sei — afirmou Johnny, solene. — O que está acontecendo agora pode trazer tudo de volta, por isso estou tão assustada! — Então, espero que acabe logo! Mais uma vez Marie observou o irmão atentamente. — Espere um pouco, irmãozinho, eu o conheço muito bem. Você está escondendo alguma coisa. — Não estou escondendo nada. — Sim, está... Você e David — eu nunca compreendi. Nossos dois irmãos mais velhos, tão sólidos, tão bem-sucedidos, talvez não intelectualmente, mas sem dúvida pragmaticamente. No entanto, ele se voltou para você. Por que, Johnny? — Não vamos falar disso agora — disse St. Jacques secamente, soltando a mão da irmã.
— Mas eu tenho de falar. Isto é a minha vida. Ele é a minha vida! Não pode haver mais segredos para mim a respeito dele — eu não agüento mais!... Por que você? St. Jacques recostou-se na cadeira com a mão na testa. Ergueu os olhos com uma súplica muda. — Tudo bem, eu sei de onde você está vindo. Lembra-se de seis ou sete anos atrás, quando deixei nossa fazenda, dizendo que queria fazer alguma coisa sozinho? — É claro. Acho que partiu os corações de mamãe e de papai. Vamos ser francos, você sempre foi o favorito... — Eu sempre fui o caçula! — interrompeu o mais jovem St. Jacques. — Fazendo o papel de um Bonanza retardado onde meus irmãos com mais de trinta anos obedeciam cegamente às ordens de um franco-canadense preconceituoso e autoritário, cujo único mérito era seu dinheiro e sua terra. — Havia mais do que isso nele, mas não vou discutir agora — do ponto de vista de um “garoto”. — Não pode discutir, Mare. Você fez a mesma coisa, e às vezes ficava mais de um ano sem aparecer em casa. — Eu estava ocupada. — Eu também. — O que você fez? — Matei dois homens. Dois animais que mataram minha amiga — eles a estupraram e a mataram. — O quê? — Fale baixo... — Meu Deus, o que aconteceu? — Eu não quis pedir ajuda em casa, por isso procurei seu marido... meu amigo David, que não me tratava como um garoto retardado. Na ocasião parecia a coisa mais lógica e foi a melhor decisão que já tomei na minha vida. O governo devia favores a David. Uma equipe discreta de homens brilhantes de Washington e Ottawa voou para St. James Bay e eu fui absolvido. Autodefesa, e foi exatamente o que aconteceu. — Ele nunca me disse nada. — Eu pedi para não dizer. — Então é por isso... Mas ainda não compreendo! — Não é difícil, Mare. Uma parte dele sabe que sou capaz de matar, que posso matar se for
preciso. O telefone tocou no interior da casa e antes que Marie, atônita, tivesse tempo de dizer alguma coisa, uma mulher negra idosa apareceu na porta da cozinha. — É para o senhor, Sr. John. É aquele piloto da ilha grande. Ele disse que é importante, mon. — Obrigado, Sra. Cooper — disse St. Jacques, levantando rapidamente e caminhando até a extensão ao lado da piscina. Falou por alguns momentos, ergueu os olhos para Marie, desligou o telefone e voltou para a irmã. — Faça as malas. Vocês vão sair daqui. — Por quê? Era o piloto que nos trouxe...? — Acaba de voltar da Martinica e ficou sabendo que alguém andou fazendo perguntas no aeroporto, ontem à noite. Sobre uma mulher e duas crianças. Ninguém da tripulação disse nada, mas isso pode não durar. Depressa. — Meu Deus, para onde vamos? — Para o hotel, até eu pensar em outra coisa. Tem só uma estrada e meus Tontons Maçoutes particulares a vigiam. Ninguém entra nem sai. A Sra. Cooper a ajudará com Alison. Depressa! Marie correu para o quarto e o telefone começou a tocar outra vez. St. Jacques voltou para a extensão ao lado da piscina alcançando-a quando a Sra. Cooper mais uma vez saía da cozinha. — É da casa do governo em Serrat, Sr. John. — Que diabo eles querem...? — Quer que eu pergunte? — Pode deixar, eu atendo. Ajude minha irmã com as crianças e leve toda a bagagem dela para o Rover. Estão saindo agora mesmo! — Oh, um mau tempo é uma pena, mon. Eu estava começando a conhecer as crianças. — Mau tempo é uma pena, tem razão — murmurou St. Jacques, apanhando o telefone. — Sim? — Como vai, John? — disse o ajudante-de-ordens do governador da Coroa, um homem que havia ajudado o canadense a se instalar na ilha, facilitando os processos exigidos pelos Regulamentos Territoriais. — Posso telefonar depois, Henry? Estou um pouco apressado no momento. — Acho que não vai dar, meu caro. Isto vem direto do Ministério do Exterior. Querem nossa cooperação imediata e não vai ser nada mau para você também.
— Do que se trata? — Parece que um velho e a mulher chegam no vôo da Air France das 10: 30h, vindo de Antigua, e Whitehall quer tratamento vip para os dois. Aparentemente o velho tem uma esplêndida ficha de guerra, com uma coleção de condecorações, e trabalhou com vários dos nossos amigos do outro lado do canal. — Henry, estou realmente com muita pressa. O que tudo isso tem a ver comigo? — Bem, eu pensei que você talvez entendesse mais disso do que nós. Provavelmente um dos seus ricos hóspedes canadenses, talvez um francês de Montreal que esteve na Resistência e que pensou em você... — Com insultos só vai ganhar uma garrafa de vinho franco-canadense superior. O que você quer? — Hospede o herói e sua dama nas melhores acomodações do seu hotel, com um quarto para a enfermeira que fala francês, que destacamos para eles. — Com uma hora de aviso prévio? — Ora, meu caro, nossos homens podem entrar numa greve coletiva, se sabe o que quero dizer — e seu serviço de telefone tão vital e errático depende de um certo grau de intervenção da Coroa, se sabe também o que quero dizer. — Henry, você é um negociador fantástico. Sabe acertar delicadamente o pontapé no lugar que dói mais. Como se chama seu herói? Depressa, por favor! — Somos Jean Pierre e Regine Fontaine, Monsieur le Directeur, e aqui estão nossos passaportes — disse o homem de fala macia, na cabine de vidro da imigração, com o ajudante-de-ordens do governador da Coroa ao seu, lado. — Podem ver minha mulher daqui — acrescentou, apontando para a janela de vidro. — Está conversando com a mademoiselle de uniforme branco. — Por favor, Monsieur Fontaine — protestou o funcionário da imigração, um homem negro e atarracado, com um forte sotaque britânico. — É apenas uma formalidade informal, um processo de registro, se quiser. Também para evitar o assédio dos seus admiradores. Correu a notícia de que ia chegar um grande homem. — É mesmo? — Fontaine sorriu agradavelmente. — Oh, mas não se preocupe, senhor. A imprensa já foi barrada. Sabemos que deseja completa privacidade e vai ter. — É mesmo? — O sorriso desapareceu dos lábios do homem. — Eu devia me encontrar com alguém aqui, um sócio, digamos assim, com quem preciso conversar confidencialmente. Espero que suas providências bem-intencionadas não me impeçam de encontrá-lo.
— Um grupo pequeno e selecionado com credenciais genuínas o receberá na sala dos hóspedes de honra, Monsieur Fontaine — disse o ajudante do governador da Coroa. — Podemos ir? Posso garantir que a fila de recepção não será muito longa. — É mesmo? Muito curta? Na verdade não demorou mais de cinco minutos, mas cinco segundos teriam sido suficientes. A primeira pessoa que o mensageiro-assassino do Chacal encontrou foi o próprio governador da Coroa. Quando o representante da rainha abraçou o herói à moda francesa, murmurou no ouvido de Jean Pierre Fontaine: — Sabemos para onde foram levadas a mulher e as crianças. Nós estamos mandando vocês para lá. A enfermeira tem suas instruções. O resto foi de certa forma um anticlímax para o velho, especialmente a ausência da imprensa. Jamais tivera sua fotografia nos jornais, a não ser na seção de crimes. Morris Panov, médico, estava muito zangado. Sempre procurava controlar seus acessos de fúria porque nunca ajudavam a ele nem a seus clientes. Porém, naquele momento, sentado à sua mesa no consultório, estava tendo dificuldade para dominar suas emoções. Não tinha notícias de David Webb. Precisava saber dele, precisava falar com ele. O que estava acontecendo podia invalidar 13 anos de terapia, será que não compreendiam isso?... Não, é claro que não podiam compreender. Não estavam interessados, tinham outras prioridades e não queriam se preocupar com problemas que não eram da sua esfera. Mas ele tinha de se preocupar. A mente danificada era tão frágil, tão sujeita a recaídas, os horrores do passado podiam dominar o presente. Isso não devia acontecer com David! Ele estava tão perto da normalidade quanto era possível (e quem pode dizer o que é “normal” neste mundo maluco?). David podia funcionar maravilhosamente como professor, tinha recobrado quase totalmente a lembrança dos seus conhecimentos acadêmicos, e a cada ano lembrava mais. Porém tudo isso poderia ser destruído com um único ato de violência, pois a violência era o meio de vida de Jason Bourne. Droga! Já era prejudicial o fato de permitirem que David tomasse parte na ação. Panov tentou explicar a Alex as possibilidades de dano, mas Conklin deu uma resposta irrefutável, Não podemos detê-lo. Pelo menos assim podemos vigiá-lo, protegê-lo. Talvez. “Eles” não faziam nenhuma economia quando se tratava de proteção — os guardas no corredor do seu consultório e no telhado do prédio, para não falar na recepcionista armada e com um computador estranho. Porém, seria muito melhor para David tomar alguns sedativos e ser levado de avião para seu refúgio na ilha, deixando a caçada ao Chacal para os profissionais... Panov parou de repente seu raciocínio, assaltado pela idéia de que não existia nenhum profissional melhor do que Jason Bourne. O telefone interrompeu seus pensamentos. Esperou que os processos de segurança fossem ativados para atender. Um rastreador era ligado para localizar a chamada, um analisador verificava se havia interferências na linha, e finalmente a identidade da pessoa que chamava era aprovada pelo próprio Panov. O intercom no seu console zumbiu e ele apertou o botão. — Sim?
— Todos os sistemas estão verificados, senhor — anunciou a recepcionista provisória, a única pessoa no consultório que podia saber disso. — O homem disse que se chama Treadstone, Sr. D. Treadstone. — Eu atendo — disse Mo Panov com voz firme. — E pode remover qualquer outro sistema dessa sua máquina. Esta é uma conversa confidencial entre médico e paciente. — Sim, senhor. Monitor terminado. — Monitor o quê? Ora... deixa pra lá. — O psiquiatra apanhou o telefone e a custo se controlou para não gritar. — Por que não me telefonou antes, seu filho da mãe! — Não queria provocar uma parada cardíaca, isso é suficiente? — Onde você está e o que está fazendo? — No momento? — Sim, pode ser. — Vejamos, aluguei um carro e agora estou a meio quarteirão de uma casa na cidade de Georgetown, de propriedade do presidente da Comissão Federal de Comércio, falando com você de um telefone público. — Pelo amor de Deus, por quê? — Alex lhe dará os detalhes, mas eu quero que você telefone para Marie na ilha. Tentei algumas vezes depois que saí do hotel, mas não consigo. Diga que estou bem, que estou perfeitamente bem e para ela não se preocupar. Entendeu? — Entendi, mas não me convenci. Você nem parece você mesmo. — Não pode dizer isso a ela, doutor. Se é meu amigo, não pode dizer nada parecido. — Pare com isso, David. Essa bobagem de médico-e-monstro não funciona mais. — Se é meu amigo, não diga isso a ela. — Você está entrando em parafuso, David. Não deixe que isso aconteça. Venha até aqui, fale comigo. — Não há tempo, Mo. A limusine do gato gordo está parada na frente da casa dele. Preciso trabalhar. — Jason! Bourne desligou. Brendan Patrick Pierre Prefontaine desceu a escada de metal do jato para o sol escaldante do Caribe, no Aeroporto Blackburne, em Montserrat. Passava um pouco das três da tarde, e se não fosse
pelos dólares que levava, teria se sentido perdido. Era notável como um estoque de notas de cem, espalhadas por vários bolsos, dava tanta segurança. Na verdade, precisava estar sempre lembrando que o dinheiro menor — cinqüenta, vinte e dez — estava no bolso da frente da calça, para não se enganar e parecer ostensivo ou chamar a atenção de algum oportunista. Acima de tudo, devia manter uma atitude discreta, procurando se anular ao máximo. Havia feito, de modo insignificante, perguntas significativas, no aeroporto, sobre uma mulher e duas crianças pequenas que haviam chegado naquela tarde, no vôo anterior.Por isso foi com espanto e alarme que ouviu a adorável funcionária negra da imigração dizer, depois de desligar um telefone: — Quer ter a bondade de me acompanhar, senhor, por favor? O rosto bonito, a voz melodiosa e o sorriso perfeito em nada contribuíram para aliviar o medo do ex-juiz. Muitos criminosos extremamente culpados possuíam essas qualidades. — Alguma coisa errada com meu passaporte, senhorita? — Não que eu saiba, senhor. — Então, por que a demora? Por que não carimbar simplesmente e me deixar sair? — Oh, está carimbado e com permissão de entrada, senhor. Nenhum problema. — Então, por quê? — Por favor, venha comigo, senhor. Chegaram a um grande cubículo envidraçado com letras douradas na janela da esquerda indicando tratar-se do escritório do DIRETOR ASSISTENTE DO SERVIÇO DE IMIGRAÇÃO. A bela funcionária abriu a porta e, sorrindo outra vez, com um gesto convidou o visitante a entrar. Prefontaine entrou, de repente apavorado com a idéia de que ia ser revistado, iam encontrar o dinheiro e acusá-lo de todo tipo de contravenção. Ele não sabia quais as ilhas que estavam envolvidas com narcóticos, mas se esta era uma delas, os milhares de dólares nos seus bolsos faziam dele um suspeito ideal. Mil explicações passaram por sua mente enquanto a funcionária entregava seu passaporte ao atarracado diretor de imigração. Com um sorriso cintilante ela saiu da sala e fechou a porta. — Sr. Brendan Patrick Pierre Prefontaine — leu o diretor com voz cantada, olhando para o passaporte. — Não que seja importante — disse Brendan com delicadeza, mas com autoridade evidente. — Entretanto, o “senhor” geralmente é substituído por “juiz” — como já disse, não creio que seja importante, dadas as circunstâncias, ou talvez seja, na verdade, eu não sei. Um dos meus funcionários cometeu algum erro? Nesse caso, mando vir de avião toda a minha equipe de conselheiros legais para pedir desculpas. — Oh, de modo algum, senhor juiz — respondeu o negro de uniforme e cinto largo e apertado, com um acentuado sotaque britânico, levantando-se e estendendo a mão por sobre a mesa. — Na verdade, o engano foi meu.
— Ora, vamos, coronel, nós todos erramos uma vez ou outra. — Brendan apertou a mão do diretor assistente. — Então, talvez eu possa ir embora? Tem alguém à minha espera. — Foi exatamente o que ele disse! Brendan soltou a mão do homem. — Perdão? — Acho que eu devo pedir perdão... O sigilo, é claro. — O quê? O senhor quer ir direto ao assunto, por favor? — Compreendo que a privacidade — continuou o funcionário, pronunciando a palavra como privissy — é da maior importância — isso nos foi explicado — mas sempre que podemos, tentamos agradar a Coroa. — Extremamente louvável, brigadeiro, mas acho que não entendo. O homem baixou o tom de voz, desnecessariamente. — Esta tarde chegou aqui um grande homem, p senhor sabia disso? — Estou certo de que muita gente importante vem à sua bela ilha. Na verdade, ela me foi altamente recomendada. — Ah, sim, a privissy! — Sim, é claro, a privissy — concordou o ex-juiz convicto, imaginando se o funcionário tinha todos os parafusos bem apertados. — Podia ser mais claro? — Bem, ele disse que ia se encontrar com alguém, um sócio com quem precisava conversar, mas depois de uma pequena fila de recepção — sem a imprensa, é claro — foi levado diretamente para o charter que o levou para a outra ilha, e ao que parece não encontrou a pessoa que devia encontrar confidencialmente. Agora estou sendo claro? — Como o porto de Boston sob uma tempestade, general. — Muito bem. Eu compreendo. Privissy... Assim, todo o nosso pessoal está alertado para o fato de que o amigo do grande homem devia procurar por ele aqui, no aeroporto — confidencialmente, é claro. — É claro. — Nem um parafuso apertado, pensou Brendan. — Então, eu considerei outra possibilidade — disse o funcionário com um leve ar de triunfo. — E se o amigo do grande homem estivesse também voando para a nossa ilha, para o encontro secreto com o grande homem? — Brilhante. — Não de todo desprovido de lógica. Então, tive a idéia de obter a relação dos passageiros que
desembarcaram na ilha, concentrando-me, é claro, na primeira classe, o que seria mais apropriado para um amigo do grande homem. — Clarividência — resmungou o ex-juiz. — E o senhor me escolheu? — O nome, meu bom homem! Pierre Prefontaine! — Minha piedosa e falecida mãe sem dúvida ficaria ofendida com a omissão do “Brendan Patrick”. Como os franceses, os irlandeses são muito sensíveis nesses assuntos. — Mas estava tudo em família. Compreendi isso imediatamente! — Compreendeu mesmo? — Pierre Prefontaine!... Jean Pierre Fontaine. Sou especialista em procedimentos de imigração, estudei o método em vários países. Seu nome é um exemplo fascinante, meritíssimo juiz. Ondas após ondas de imigrantes entraram nos Estados Unidos, o cadinho das nações, das raças e das línguas. No processo, nomes foram mudados, combinados ou simplesmente mal compreendidos por um verdadeiro exército de funcionários confusos e assoberbados de trabalho. Mas as raízes geralmente sobreviveram, como no seu caso. A família Fontaine tornou-se Prefontaine na América e o sócio do grande homem é na realidade um membro muito honrado do ramo americano! — Positivamente espantoso — murmurou Brendan, olhando para o homem como se esperasse ver surgir uma horda de enfermeiros musculosos, com camisas-de-força. — Mas não é possível que seja mera coincidência? Fontaine é um nome muito comum em toda a França, mas ao que sei, os Prefontaine vêm essencialmente da região da Alsácia-Lorena. — Sim, é claro — disse o diretor, abaixando outra vez a voz em vez de dar uma piscadela. — Contudo, sem nenhum aviso prévio, recebemos um telefonema do Quay d’Orsay, em Paris, depois o Ministério do Exterior da Grã-Bretanha também telefona com instruções — um grande homem está para cair do céu, Receba-o condignamente, com todas as honras, conduza-o a um hotel retirado conhecido por sua privacidade — pois isso também é da maior importância. O grande homem deve ter privissy total... Contudo o próprio grande guerreiro está preocupado. Devia se encontrar confidencialmente com um amigo e não o encontra. Talvez o grande homem tenha segredos — todos os grandes homens têm, o senhor sabe. De repente, os milhares de dólares nos bolsos de Prefontaine ficaram muito pesados. Segurança Quatro Zero de Washington, em Boston, o Quay d’Orsay, em Paris, o Ministério do Exterior, em Londres — Randolph Gates pagando desnecessariamente uma enorme quantia por puro pânico. Havia um padrão de estranha convergência, sendo a mais estranha a inclusão de um advogado inescrupuloso e muito assustado chamado Gates. Ele seria uma inclusão ou uma aberração? O que significava tudo isso? — O senhor é um homem extraordinário — disse Brendan, rapidamente para disfarçar seus pensamentos. — Sua percepção é simplesmente brilhante, mas compreende que a privacidade é da maior importância. — Não precisa dizer mais nada, meritíssimo juiz! — exclamou o diretor. — Exceto para me
garantir que sua apreciação às minhas habilidades chegará ao conhecimento dos meus superiores. — Isso vai ficar bem claro, pode estar certo... Exatamente para onde foi meu primo não muito distante e muito distinto? — Para uma pequena ilha onde os hidraviões descem na água. Chama-se Ilha Tranqüilidade e o hotel chama-se Hotel Tranqüilidade. — Seus superiores transmitirão pessoalmente seus agradecimentos, pode estar certo. — E eu providenciarei pessoalmente sua passagem pela alfândega. Quando saiu do Aeroporto de Blackburne, com sua valise de couro brilhante, Brendan Patrick Pierre Prefontaine estava vagamente confuso. Vagamente confuso era pouco, Brendan estava atônito! Não sabia se tomava o primeiro vôo de volta para Boston ou se ia para... seus pés aparentemente estavam decidindo por ele. De repente estava na frente do balcão sob as letras brancas que diziam PONTE AÉREA ENTRE-ILHAS. Não faria nenhum mal perguntar, pensou, depois compraria a passagem para Boston. Na parede atrás do balcão havia uma lista das ilhas ao largo da costa, ao lado dos nomes mais conhecidos das ilhas de sotavento e ilhas de barlavento, desde St. Kitts e Nevis, ao sul das Granadinas. Tranqüilidade estava entre Canada Cay e Turtle Rock. Dois funcionários, ambos jovens, uma mulher negra e um homem louro conversavam ao lado do balcão. A mulher perguntou: — Posso ajudá-lo, senhor? — Não estou bem certo — disse Brendan, hesitando. — Meus planos estão um tanto desorganizados, mas parece que tenho um amigo na Ilha Tranqüilidade. — No hotel, senhor? — Sim, acho que sim. É uma viagem muito demorada? — Com tempo claro, não mais de 15 minutos de vôo num avião anfíbio. Acho que não temos nenhum vôo até amanhã de manhã. — É claro que temos, meu bem — interrompeu o jovem louro com as asas douradas presas na camisa branca. — Devo fazer uma entrega para Johnny St. Jay dentro de alguns momentos. — Ele não está marcado para hoje. — Está, desde uma hora atrás. Entrega imediata. Nesse momento Prefontaine viu com espanto duas pilhas de caixas de papelão movendo-se no carrossel das bagagens Entre-Ilhas, na direção da área externa de carga. Mesmo que tivesse tempo para pesar os prós e os contras, sabia que a decisão estava tomada. — Se for possível, quero uma passagem nesse vôo — disse ele, olhando para as caixas de
comida infantil e de fraldas tamanho médio que desapareciam no fim do carrossel. Acabava de encontrar a mulher desconhecida e as duas crianças.
Capítulo 8 UMA INVESTIGAÇÃO de rotina na Comissão Federal de Comércio confirmou o fato de que seu presidente, Albert Armbruster, sofria de úlcera e de pressão alta e, por ordens médicas, deixava o escritório e ia para casa quando não se sentia bem. Por isso Alex Conklin telefonou para ele depois de um almoço bastante demorado — o que a investigação confirmava também como um hábito — com uma “atualização” das notícias sobre a crise da Mulher Serpente. Como havia dito no primeiro telefonema, quando Armbruster estava no chuveiro, Alex, sem se identificar, disse que alguém entraria em contato com ele mais tarde, naquele mesmo dia — no escritório ou em sua casa. O contato se identificaria simplesmente como Cobra (“Use as palavras de código mais banais que puder lembrar”, era parte do evangelho segundo São Conklin). Até lá, Armbruster não devia falar com ninguém. “São ordens da Sexta Frota”. — Oh, Cristo! Assim, Albert Armbruster mandou chamar seu carro e foi levado para casa, sentindo-se mal. Esperava-o um desconforto maior. Jason Bourne estava à sua espera. — Boa tarde, Sr. Armbruster — disse o estranho amavelmente, quando o presidente da comissão desceu da limusine. — Sim, o quê? — a reação de Armbruster foi imediata e hesitante. — Eu disse apenas “boa tarde”. Meu nome é Simon. Fomos apresentados na recepção oferecida na Casa Branca aos Chefes das Forças Armadas há alguns anos... — Eu não estava lá — interrompeu Armbruster enfaticamente. — Não mesmo? — O estranho ergueu as sobrancelhas com ar de dúvida. — Sr. Armbruster? — O chofer fechou a porta do carro e voltou-se cortesmente para o patrão. — O senhor vai precisar... — Não, não — disse Armbruster, interrompendo-o. — Não vou precisar mais de você hoje... esta noite. — A mesma hora amanhã, senhor? — Sim, amanhã — será avisado se eu mudar de idéia. Não estou me sentindo muito bem. Telefone antes para meu escritório. — Sim, senhor. — Levando dois dedos à pala do boné, o homem entrou no carro. — Sinto muito que não esteja se sentindo bem — disse o estranho, quando a limusine se afastou. — O quê?... Oh, você. Eu não estive naquela maldita recepção na Casa Branca!
— Talvez eu tenha me enganado... — Sim, tudo bem, foi um prazer revê-lo — disse Armbruster ansioso e impaciente, dirigindo-se para os degraus na frente da sua casa em Georgetown. — Porém, tenho certeza de que fomos apresentados pelo almirante Burton... — O quê? — Armbruster voltou-se rapidamente. — O que foi que disse? — Estamos perdendo tempo — continuou Jason Bourne, toda a amabilidade desaparecendo da sua voz e dos seus olhos. — Eu sou Cobra. — Oh, Jesus!... Não estou me sentindo muito bem — disse Armbruster num murmúrio rouco, olhando rapidamente para as janelas e a porta da sua casa. — Vai se sentir muito pior se não conversarmos — disse Jason, acompanhando o olhar do homem. — Pode ser lá dentro, na sua casa? — Não! — exclamou Armbruster. — Ela está sempre querendo saber de tudo sobre todo mundo, depois tagarela pela cidade inteira, exagerando tudo que ouve. — Suponho que está falando de sua mulher. — De todos eles! Não sabem quando devem ficar de boca fechada! — Parece que estão famintos por uma boa conversa. — O quê...? — Esqueça. Tenho um carro logo adiante. Quer dar um passeio? — Acho melhor mesmo. Podemos parar na farmácia da esquina. Eles têm a minha receita... Quem diabo é você? — Eu já disse — respondeu Bourne. — Cobra. É uma serpente. — Oh, Jesus! — gemeu Albert Armbruster. O farmacêutico aviou a receita rapidamente e Jason seguiu para um bar próximo que havia escolhido uma hora atrás. Era um lugar escuro, cheio de sombras, com reservados discretos. O ambiente era importante, pois Jason queria olhar com frieza e autoridade nos olhos do presidente da comissão, quando fizesse suas perguntas. Delta estava de volta, Cain também. Jason Bourne estava no comando, David Webb, esquecido. — Precisamos nos proteger — disse o Cobra em voz baixa, quando chegaram os drinques pedidos. — Em termos de controle de danos, precisamos saber qual o prejuízo que cada um de nós pode causar sob o amital.
— Que diabo significa isso? — perguntou Armbruster, tomando um gole generoso de gimtônica e depois, levando a mão à altura do estômago, com uma careta de dor. — Drogas, soro da verdade, — O quê? — Não se trata do seu jogo normal — disse Bourne, lembrando-se das palavras de Conklin. — Temos de descobrir todas as bases porque não há nenhum direito constitucional nesta série. — Então, quem é você? — O presidente da Comissão Federal de Comércio arrotou e levou o copo aos lábios com mão trêmula. — Uma espécie de equipe de execução formada por um só homem? Fulano sabe alguma coisa, por isso é assassinado num beco? — Não seja ridículo. Qualquer coisa desse tipo seria contraprodutiva. Só serviria para dar mais força aos que estão à nossa procura, deixaríamos um rastro para ser seguido... — Então, do que você está falando? — Estou falando em salvar nossas vidas, o que inclui nossa reputação e nosso estilo de vida. — Você é um cara frio. Como vamos fazer isso? — Vejamos seu caso, certo?... Não está bem de saúde, como acaba de afirmar. Pode pedir demissão por ordem médica e nós cuidamos de você — Medusa toma conta de você. — A imaginação de Jason flutuava, com rápidas incursões alternadas na realidade e na fantasia, procurando as palavras do evangelho segundo Santo Alex. — Todos sabem que você é um homem rico, portanto, podemos comprar uma vila no seu nome, ou talvez uma ilha no Caribe, onde estará completamente seguro. Ninguém poderá alcançá-lo, ninguém poderá falar com você sem seu consentimento, o que significaria entrevistas predeterminadas e a garantia de resultados inofensivos, até mesmo favoráveis. Essas coisas não são impossíveis. — Uma existência completamente estéril, na minha opinião — disse Armbruster. — Eu e aquela mulher, só nós dois? Eu a mataria. — Nada disso — continuou o Cobra. — Haveria distrações constantes. Convidados escolhidos por você seriam levados de avião de qualquer parte do mundo. Outras mulheres também — escolhidas por você ou por pessoas que respeitam seus gostos. A vida continua como antes, algumas inconveniências, algumas surpresas agradáveis. O caso é que estará protegido, inacessível, portanto nós também estaremos protegidos, todos nós... Mas, como eu disse, é uma opção apenas hipotética nestas circunstâncias. No meu caso, francamente, é uma necessidade porque sei quase tudo. Devo partir dentro de alguns dias. Até então terei determinado quem vai e quem fica... Quanto o senhor sabe, Sr. Armbruster? — Não estou envolvido com as operações do dia-a-dia, é claro. Lido com o quadro geral. Como os outros, recebo um telex mensal, em código, dos bancos de Zurique com a relação dos depósitos e das companhias que passamos a controlar — isso é tudo.
— Por enquanto não merece uma vila. — Que diabo, eu não quero vila nenhuma, e quando quiser, eu mesmo compro. Tenho cerca de cem milhões, americanos, em Zurique. Controlando seu espanto, Bourne simplesmente olhou fixamente para o homem. — Eu não repetiria isso — disse ele. — Para quem vou contar? Para a tagarela? — Quantos dos outros conhece pessoalmente? — perguntou o Cobra. — Praticamente ninguém da equipe de trabalho, mas eles também não me conhecem. Diabo, eles não conhecem ninguém... E já que estamos falando nisso, veja você, por exemplo, nunca ouvi falar de você. Imagino que trabalha para a diretoria porque disseram-me para esperar sua visita, mas eu não o conheço. — Fui contratado numa base muito especial. Minha especialidade é segurança confidencial. — Como eu disse, achei que... — E a Sexta Frota? — interrompeu Bourne, desviando a conversa da própria pessoa. — Eu o vejo uma vez ou outra, mas acho que, ao todo, não trocamos mais de uma dúzia de palavras. Ele é militar, eu sou civil — muito civil. — Mas não foi sempre assim. Não quando tudo começou. — Uma ova que não. Nenhum uniforme jamais fez um soldado e foi exatamente assim comigo. — O que me diz dos dois generais, um em Bruxelas, o outro no Pentágono? — Eram militares de carreira, ficaram em suas armas. Eu não era e não fiquei. — Temos de prever vazamentos de informação, rumores — disse Bourne, um tanto vagamente, olhando inquieto em volta. — Mas não podemos permitir a menor insinuação de orientação militar. — Quer dizer como no estilo da junta? — Nunca — disse Bourne, olhando outra vez para Armbruster. — Esse tipo de coisa provoca redemoinhos... — Esqueça! — murmurou o presidente da Comissão Federal de Comércio, interrompendo, furioso. — A Sexta Frota, como você o chama, dá as ordens só aqui e por uma questão de conveniência. Ele é um almirante de corpo e alma com uma folha de serviços magnífica e muita influência nos lugares que nos interessam, mas isso é em Washington, em nenhum outro lugar.
— Eu sei disso e você sabe — disse Jason enfaticamente, procurando disfarçar seu espanto —, mas alguém que esteve no programa de proteção nos últimos 15 anos está criando seu próprio cenário e isso vem diretamente de Saigon — Comando Saigon. — Pode ter saído de Saigon, mas certamente não ficou lá. Os soldados não vão fazê-lo funcionar, nós todos sabemos disso... Mas sei o que você quer dizer. Você liga os grandes do Pentágono com uma coisa como nós, e logo os monstros estão na rua e aquelas bichas sensíveis do Congresso fazem uma verdadeira festa. De repente forma-se uma dúzia de subcomitês. — O que não podemos permitir — disse Bourne. — Concordo — observou Armbruster. — Temos alguma pista para o nome do filho da mãe que está armando o cenário por conta própria? — Estamos mais perto, mas não perto. Ele entrou em contato com Langley mas não sabemos em que comprimento de onda. — Langley? Pelo amor de Deus, temos alguém lá dentro. Ele pode descobrir quem é o filho da mãe. — DeSole? — arriscou o Cobra simplesmente. — Isso mesmo — Armbruster inclinou-se para a frente. — Você sabe quase tudo. É uma conexão muito discreta. O que DeSole disse? — Nada. Não podemos tocá-lo — respondeu Jason, procurando uma resposta lógica. Há muito tempo estava vivendo como David Webb! Conklin estava certo, tinha dificuldade para pensar depressa. Então encontrou as palavras... parte da verdade, uma parte perigosa, mas que podia ser aceita e ele não podia perder a credibilidade. — Ele acha que está sendo vigiado e devemos ficar longe dele, não procurar nenhum contato até que ele nos dê permissão. — O que aconteceu? — Armbruster segurou o copo com força e arregalou os olhos. — Alguém nos porões descobriu que Teagarten, em Bruxelas, tem um código em fax direto com DeSole, ultrapassando o tráfego confidencial de rotina. — Malditos estúpidos soldadinhos! — vociferou Armbruster. — Assim que recebem as divisas douradas, começam a se pavonear como debutantes e querem todos os brinquedos novos que aparecem na cidade!... Faxes, códigos de acesso! Jesus, provavelmente ele apertou os números errados e ligou para a ANDPC, a Associação Nacional para Desenvolvimento das Pessoas de Cor. — DeSole diz que está criando um bom disfarce de cobertura e pode dar conta do recado, mas não está na hora de começar a fazer perguntas, especialmente nesta área. Vai verificar discretamente tudo que for possível, se descobrir alguma coisa nos informa, mas nós não devemos procurá-lo. — Imagine só, tinha de ser um soldadinho cretino para estragar tudo. Se não fosse por aquele asno com seu código de acesso, não teríamos nenhum problema. Tudo seria controlado.
— Mas ele existe e o problema — a crise — não vai se resolver sozinho — disse Bourne secamente. — Repito, precisamos nos proteger. Alguns devem partir — desaparecer por algum tempo, pelo menos. Para o bem de todos. O presidente da Comissão Federal de Comércio recostou-se no banco com expressão desagradável e pensativa. — É isso, muito bem, vou lhe dizer uma coisa, Simon, ou seja lá como se chama. Você está investigando as pessoas erradas. Somos homens de negócios, alguns suficientemente ricos ou suficientemente egoístas, ou por outros motivos dispostos a trabalhar para o governo, mas acima de tudo somos homens de negócios com investimentos por toda parte. Somos também nomeados, não eleitos, o que significa que ninguém exige declaração completa de bens de nossa parte. Percebe onde quero chegar? — Não estou bem certo — disse Jason, temendo estar perdendo controle, perdendo a força da sua ameaça. Estive afastado muito tempo... e Albert Armbruster não era nada tolo. Deixou-se vencer pelo pânico, a princípio, mas agora está mais controlado, muito mais analítico. — Onde quer chegar? — Livre-se dos soldadinhos. Compre vilas para eles ou umas duas ilhas no Caribe e coloque todos fora de alcance. Dê a eles suas pequenas cortes e deixe que brinquem de reis. Afinal, é exatamente o que eles fazem. — Operar sem eles? — perguntou Bourne, tentando disfarçar seu espanto. — Você disse e eu concordo. Qualquer vestígio de alta patente e temos problemas. O título é “complexo industrial militar”, o que, traduzido livremente, quer dizer conluio comercial-militar. — Armbruster inclinou-se para a frente, sobre a mesa. — Não precisamos mais deles. Livre-se dos soldadinhos. — Pode haver objeções muito estridentes. — Impossível. Nós os temos pelos testículos de suas patentes! — Tenho de pensar nisso. — Não tem nada para pensar. Em seis meses teremos os controles de que precisamos, na Europa. Jason Bourne olhou para o presidente da Comissão Federal de Comércio. Que controles? pensou. Por que motivo? Por quê? — Eu o levo para casa — disse Jason. — Falei com Marie — disse Conklin no apartamento da Agência na Virgínia. — Ela está no hotel, não na sua casa. — Por quê? — perguntou Jason no telefone de um posto de gasolina perto de Manassas.
— Ela não explicou muito bem... Acho que era hora do almoço, ou hora da sesta — um desses momentos em que as mães ficam um tanto vagas. Eu ouvi as vozes dos seus filhos. Cara, eles são barulhentos! — O que foi que ela disse, Alex? — Parece que foi decisão do seu cunhado. Ela não entrou em detalhes e a não ser pelo fato de parecer exatamente uma mamãe muito ocupada, era a Marie normal que eu conheço e que amo — o que significa que tudo que ela queria saber era se você estava bem. — O que significa que você disse que estou perfeitamente bem, certo? — Que diabo, claro que sim! Eu disse que você está escondido e muito bem guardado, examinando uma porção de impressos de computador, uma espécie de variação da verdade. — Johnny deve ter conversado com ela. Marie contou o que aconteceu e ele os levou para seu bunker exclusivo. — Seu o quê? — Você nunca viu o Hotel Tranqüilidade, viu? Francamente, não me lembro se você esteve lá ou não. — Panov e eu vimos só as plantas e o local, há quatro anos. Não voltamos depois disso, pelo menos eu não voltei. Ninguém me convidou. — Vou deixar passar essa observação porque você tem convite permanente desde que construímos o hotel... Seja como for, você sabe que fica na praia e o único acesso, a não ser por água, é uma estrada de terra tão cheia de rochas que nenhum carro normal consegue passar. Tudo é transportado por avião ou por barco. Quase nada da cidade. — E a praia é patrulhada — interrompeu Conklin. — Johnny não quer arriscar nada. — Por isso eu os mandei para lá. Telefono para ela mais tarde. — E o que me diz de agora? — perguntou Alex. — O que me diz de Armbruster? — Bem, digamos o seguinte — respondeu Bourne, erguendo os olhos para o teto de plástico da cabine telefônica. — O que significa um homem que tem centenas de milhões de dólares me dizer que a Medusa — ponto de origem do Comando Saigon, com ênfase em “comando”, que nada tem de civil — deve se livrar dos militares porque a Mulher Serpente não precisa mais deles? — Eu não acredito — disse o ex-agente em voz baixa — Ele não disse isso. — Ah, disse sim. Até os chamou de soldadinhos, e não com a intenção de eternizá-los em uma canção. Qualificou os almirantes e os generais de debutantes com divisas douradas que querem todos os brinquedos novos que aparecem na cidade.
— Alguns senadores do Comitê das Forças Armadas concordarão com essa avaliação — observou Alex. — Tem mais. Quando eu lembrei que a Mulher Serpente veio de Saigon — Comando Saigon — ele foi muito claro. Disse que talvez tenha vindo mas certamente não ficou por lá porque — e estou citando literalmente — “os soldadinhos não sabiam como dirigi-la”. — Uma declaração provocadora. Ele disse por que eles não sabiam como dirigi-la? — Não e eu não perguntei. Supostamente eu devia saber a resposta. — Gostaria que tivesse perguntado. Cada vez gosto menos do que estou ouvindo. É grande e é muito feio... Como foi que ele falou nos 100 milhões? — Eu disse que Medusa podia comprar uma vila para ele, fora do país, onde não pudesse ser encontrado, se fosse necessário. Ele não pareceu muito interessado e disse que se quisesse uma vila podia comprar. Tem 100 milhões em dinheiro americano em Zurique — um fato que eu acho que ele esperava que eu soubesse também. — Isso é tudo? Apenas 100 milhões? — Não. Ele disse que como todos os outros recebe um telex mensal — em código — dos bancos de Zurique com a relação dos depósitos. Obviamente eles estão crescendo. — Grande, feio e crescendo — acrescentou Conklin. — Mais alguma coisa? Não que eu queira ouvir realmente, já estou bastante assustado. — Mais duas coisas e acho melhor você ter algum medo em reserva... Armbruster disse que com os telexes dos depósitos recebe também uma lista das companhias sobre as quais estão ganhando controle. — Que companhias? Do que ele estava falando?... Meu Deus! — Se eu tivesse perguntado, minha mulher e meus filhos teriam de comparecer a um enterro sem caixão, porque eu não estaria presente. — Conte-me o resto. — Nosso ilustre presidente da Comissão Federal de Comércio disse que o “nós” onipresente pode se livrar dos militares porque em seis meses “nós” teremos todos os controles de que precisamos, na Europa... Alex, que controles? Com o que estamos lidando? Jason Bourne não interrompeu o silêncio na linha. David Webb queria gritar, frustrado e confuso, mas não adiantava. Ele não existia como pessoa. Finalmente, Conklin falou. — Acho que estamos tratando com alguma coisa que não podemos resolver — disse em voz muito baixa. — Isso tem de ir a um nível mais alto, David. Não podemos guardar só para nós.
— Que droga, Alex. Você não está falando com David! — Bourne não ergueu a voz. Não precisava. — Isto não vai a lugar nenhum enquanto eu não der ordem e talvez isso nunca aconteça. Trate de compreender, agente de campo, não devo nada a ninguém, especialmente não aos mandachuvas desta cidade. Eles sacudiram bastante minha mulher e a mim para que eu possa fazer qualquer concessão a respeito das nossas vidas e as dos nossos filhos. Pretendo descobrir tudo que for possível para um único fim. Tirar o Chacal da toca e matá-lo, para que possamos sair deste inferno particular e viver nossas vidas... Sei agora que este é o modo de fazer isso. Armbruster falou duro, e provavelmente ele é durão, mas na verdade está assustado. Todos eles estão assustados — em pânico, como você disse e estava certo. Dê a eles a idéia do Chacal, que não vão recusar a solução. Dê a Carlos um cliente tão rico e poderoso quanto a nossa Medusa atual, que ele não poderá resistir — vai conseguir o respeito dos grandes, não apenas do esterco do mundo, dos fanáticos da direita ou da esquerda... Não fique no meu caminho, não faça isso, pelo amor de Deus! — É uma ameaça, não é? — Pare com isso Alex. Não quero falar desse modo. — Mas falou. É o inverso de Paris há 13 anos, não é? Só que agora você me matará porque eu sou o que não tem memória, a lembrança do que fizemos a você e a Marie. — Estou falando da minha família — exclamou David Webb com voz tensa, a testa molhada de suor, os olhos cheios de lágrimas. — Está a milhares de quilômetros daqui e escondida. Não pode ser de outro modo porque não quero que corra nenhum risco!... Não quero que minha mulher e meus filhos sejam assassinados, Alex, porque é isso que o Chacal fará se os descobrir. Esta semana é uma ilha, o que será na próxima? Quantos quilômetros a mais de distância? Depois disso, para onde irão — para onde iremos? Sabendo o que sabemos, não podemos parar — ele está atrás de mim, aquele maldito psicopata imundo está atrás de mim e tudo que sabemos sobre ele indica que vai exigir o sacrifício máximo. Seu ego exige e isso inclui minha família!... Não, agente de campo, não me sobrecarregue com problemas que não me interessam — não quando interferem com Marie e as crianças —, eu mereço isso. — Estou ouvindo — disse Conklin. — Não sei se estou ouvindo David ou Jason Bourne, mas estou ouvindo. Tudo bem, nada do inverso de Paris, mas temos de agir depressa e estou falando com Bourne agora. O que faremos? Onde você está? — Calculo que a uns nove ou dez quilômetros da casa do general Swayne — disse Jason, respirando fundo, a angústia controlada, a frieza voltando. — Você deu o telefonema? — Há duas horas. — Ainda sou o Cobra? — Por que não? É uma serpente. — Foi o que eu disse para Armbruster. Ele não gostou muito. — Swayne vai gostar menos ainda, mas tenho uma intuição que não sei explicar.
— O que quer dizer? — Não estou certo, mas tenho a impressão de que ele presta contas a alguém. — No Pentágono? Burton? — Acho que sim, mas não sei. Na sua paralisia parcial, ele reagiu como se fosse um mero observador, alguém que está envolvido, mas não no meio do jogo. Ele se traiu algumas vezes dizendo coisas como, “Temos de pensar no assunto”, e “Precisamos consultar”. Consultar quem? Era uma conversa particular, com minha advertência habitual de que ele não devia falar com ninguém. Sua resposta foi um indecisivo “nós” editorial, significando que o ilustre general precisava consultar a si mesmo. Eu não engoli essa. — Eu também não — concordou Jason. — Vou trocar de roupa. Tenho tudo no carro. — O quê?Bourne voltou-se para a parede de plástico da cabine e olhou para o posto de gasolina. Viu o que procurava, o banheiro de homens. — Você disse que Swayne mora numa fazenda grande a oeste de Manassas... — Correção — interrompeu Alex. — Ele chama de fazenda. Os vizinhos e as tabelas de impostos chamam de uma propriedade de 28 acres. Nada mau para um soldado de carreira, de uma família humilde de Nebraska que se casou com uma cabeleireira no Havaí há trinta anos, e que supostamente comprou a mansão há dez anos com a herança de um benfeitor misterioso, um tio rico e obscuro que eu não consegui localizar. Foi isso que despertou minha curiosidade. Swayne comandou o Corpo Quartermaster em Saigon e deu apoio à Medusa... O que tem a ver a casa dele com sua troca de roupa? — Quero dar uma olhada. Vou chegar antes da noite para ver como é, vista da estrada, depois, quando estiver escuro, vou fazer uma visita de surpresa. — Muito eficiente. Mas por que dar uma olhada primeiro? — Gosto de fazendas. São tão extensas, tanta terra. Não posso imaginar como um oficial de carreira, que pode ser mandado para qualquer lugar de um momento para outro, arrisca um investimento tão grande e definitivo. — Exatamente o que pensei, só que eu estava preocupado com o “como”, não com o “por que”. Sua abordagem talvez seja mais interessante. — Veremos. — Tenha cuidado. Pode haver alarmes e cães, coisas assim. — Estou preparado — disse Jason Bourne. — Fiz algumas compras quando saí de Georgetown. O sol de verão estava baixo a oeste, quando ele diminuiu a marcha do carro alugado e abaixou o
visor para não ser ofuscado pela luz do globo de fogo. Logo ele ia desaparecer atrás das montanhas Shenandoah e viria a transição de luz incerta, prenuncio da noite. Jason Bourne esperava a noite, sua amiga e aliada, a escuridão dentro da qual ele se movia rapidamente, com passos seguros e mãos que eram sensores contra os impedimentos da natureza. No passado, a selva o havia recebido, sabendo que, embora fosse um intruso, ele a respeitava e a usava como uma parte dele mesmo. Jason não tinha medo da selva e a abraçava, pois ela o protegia e permitia sua passagem na execução do seu objetivo. Ele e a selva eram um só — como teria de ser com os bosques fechados que flanqueavam a propriedade do general Norman Swayne. A casa principal ficava a uma distância de dois campos de futebol da estrada. Uma paliçada separava a entrada, à direita, da saída, à esquerda, ambas com portões de ferro, dando para a longa entrada para veículos em forma de U, ladeada por uma profusão de árvores e arbustos que era uma extensão natural da paliçada, tanto à esquerda quanto à direita. Só faltavam as casas da guarda na entrada e na saída. Jason lembrou-se da China, de Beijing, e do santuário de pássaros silvestres onde ele havia encurralado o assassino que se fazia passar por Jason Bourne. Havia uma casa da guarda e uma série de patrulhas armadas na floresta densa... e um louco, um açougueiro que controlava um exército de assassinos, sendo o mais importante deles Jason Bourne. Ele havia penetrado naquele santuário mortal, inutilizado uma pequena frota de caminhões e automóveis enfiando a lâmina da sua faca nos pneus, depois foi tomando de assalto cada patrulha na floresta de Jing Shan, até encontrar a clareira iluminada por tochas, onde estava o maníaco e sua brigada de fanáticos. Poderia fazer a mesma coisa hoje? pensou Bourne, passando pela terceira vez, bem devagar, pela frente da casa de Swayne, observando os menores detalhes. Cinco anos mais tarde, 13 anos depois de Paris? Tentou avaliar a realidade. Não era mais o jovem de Paris, nem o homem maduro de Hong Kong, Macau e Beijing. Agora sentia seus cinqüenta anos, cada um deles. Não queria mais pensar nisso. Tinha outras coisas para resolver e os 28 acres do general Norman Swayne não eram a floresta primitiva do santuário de Jing Shan. Contudo, como havia feito nos arredores primitivos de Beijing, levou o carro para um abrigo de relva alta e folhagem. Desceu e cobriu o veículo com galhos partidos. A noite que chegava rapidamente ia completar a camuflagem e então ele começaria a agir. No banheiro do posto de gasolina Jason havia trocado de roupa e vestia agora calça preta, um pulôver justo de mangas compridas, tênis preto de sola grossa. Era sua roupa de trabalho. Espalhou no chão o equipamento comprado depois que saiu de Georgetown. Uma faca com lâmina longa, cuja bainha ele prendeu no cinto. Uma pistola de CO2, tambor duplo, num coldre de náilon, cujos dardos imobilizavam qualquer animal, como cães de guarda. Dois sinalizadores para motoristas perdidos na estrada com carros enguiçados, um binóculo Zeiss Ikon 8 x 10, preso à calça por uma tira de velcro. Uma lanterna tipo caneta, tiras de couro cru e, finalmente, cortadores de arame tamanho de bolso, para o caso de haver alguma cerca de metal. Com a automática fornecida pela CIA, todo o equipamento foi preso ao seu cinto ou escondido sob a roupa. A noite chegou e Jason Bourne entrou no bosque. O lençol branco de espuma explodiu contra o recife de coral e ficou suspenso no ar, sobre o fundo da água azul-escura do mar do Caribe. Era a hora do começo da noite, com o longo pôr-do-sol se anunciando, quando a Ilha Tranqüilidade era banhada ora por cores tropicais, ora por sombras que variavam de formato constantemente com o movimento do sol que descia no céu cor de laranja. O complexo do Hotel Tranqüilidade parecia cortado na pedra da montanha acima da praia longa,
emoldurada por enormes pontões naturais de coral. Duas fileiras de vilas cor-de-rosa com terraços e telhados vermelhos de terracota estendiam-se nos dois lados do prédio principal, grande e circular, feito de pedra pesada e vidro espesso. Todas as estruturas davam para o mar e as vilas eram ligadas a ele por uma passagem de cimento branco ladeada de arbustos e iluminada por várias lâmpadas. Garçons com paletós amarelos empurravam mesinhas sobre rodas, servindo bebidas com gelo e canapés aos hóspedes do Tranqüilidade, quase todos sentados nos terraços de suas vilas, saboreando o fim do dia no Caribe. Com a descida da noite, outros vultos apareceram discretamente na praia e no longo embarcadouro que entrava mar adentro. Não eram hóspedes, nem empregados do hotel, mas guardas armados, com uniformes tropicais marrons e — também discretamente — com suas metralhadoras portáteis MAC-10 presas nos cintos de couro. No outro lado da túnica, preso ao tecido, tinham um binóculo Zeiss Ikon 8 x 10 que usavam constantemente para vigiar a escuridão. O dono do Tranqüilidade estava disposto a fazer jus ao nome do hotel. No grande terraço circular da vila mais próxima do prédio principal e do restaurante envidraçado, a mulher idosa e doente, na cadeira de rodas, tomava lentamente seu Château Carbonnieux ‘78, enquanto desfrutava o esplendor do pôr-do-sol. Distraidamente tocou na franja do cabelo mal tingido de vermelho, enquanto escutava. Ouviu a voz do seu homem falando com a enfermeira dentro da vila, depois o som dos passos hesitantes dele caminhando para o terraço. — Meu Deus! — disse ela. — Acho que vou ficar biruta. — Por que não? — disse o mensageiro do Chacal. — Este é o lugar ideal para isso. Eu mesmo estou vendo tudo através de uma névoa de descrença. — Ainda não me disse por que o monsenhor o mandou — nos mandou para cá. — Já disse. Sou apenas um mensageiro. — Não acredito. — Pode acreditar. É importante para ele, mas não significa nada para nós. Aproveite, minha bela. — Você sempre me chama assim quando não quer explicar as coisas. — Então, já devia saber por experiência que não deve insistir, certo? — Não, não é certo, meu querido. Eu estou morrendo... — Não quero ouvir nada disso! — Mas é verdade, não pode mais esconder de mim. Não me preocupo por mim, é o fim da dor, mas me preocupo com você. Você, sempre melhor do que as circunstâncias, Michel — Não, não, você é Jean Pierre, não devo esquecer... Mas, tenho de me preocupar. Este lugar,
este hotel extraordinário, toda esta atenção. Acho que vai pagar um preço terrível, meu querido. — Por que diz isso? — Alguma coisa está errada. — Você se preocupa demais. — Não, você se engana facilmente. Meu irmão, Claude, sempre disse que você aceita muita coisa do monsenhor. Algum dia vai receber a conta. — Seu irmão Claude é um doce velhinho com teias de aranha na cabeça. Por isso o monsenhor só dá a ele as missões mais insignificantes. Você o manda comprar jornal em Montparnasse e ele acaba em Marselha, sem saber o que está fazendo lá. — O telefone tocou dentro da vila, interrompendo o homem do Chacal. — Nossa nova amiga vai atender. — É uma mulher estranha. Não confio nela. — Trabalha para o monsenhor. — É mesmo? — Não tive tempo de lhe dizer. Ela vai nos transmitir as instruções dele. A enfermeira uniformizada, com o cabelo castanho-escuro preso sob a touca, apareceu na porta do terraço. — Monsieur, é de Paris. — Os olhos grandes expressavam a urgência que não se ouvia em sua voz. — Obrigado. — O mensageiro do Chacal entrou e acompanhou a enfermeira até o telefone que ela apanhou da mesa e entregou a ele. — Fala Jean Pierre Fontaine. — Abençoado seja, filho de Deus — disse a voz, a milhares de quilômetros de distância. — Tudo está bem? — Além de qualquer descrição — respondeu o velho. — É tão... maravilhoso, muito mais do que merecemos. — Vai merecer. — Como posso servi-lo? — Seguindo as ordens dadas pela mulher. Siga ao pé da letra, sem nenhuma modificação, compreende? — Certamente.
— Minha bênção. — Um clique e a ligação foi cortada. Fontaine voltou-se para falar com a enfermeira, mas a mulher não estava mais ao seu lado e sim na outra extremidade da sala, abrindo com uma chave a gaveta da mesa. Ele aproximou-se e olhou para dentro da gaveta. Viu um par de luvas cirúrgicas, uma pistola com silenciador e uma navalha reta com a lâmina retrátil. — Esses são seus instrumentos — disse a mulher, estendendo a chave, com os olhos penetrantes fixos no homem — e os alvos estão na última vila desta ala. Você deve se familiarizar com a área dando longos passeios, como fazem os velhos para ativar a circulação, e depois deve matá-los. Vai fazer isso usando as luvas e dando um tiro na cabeça de cada um. Tem de ser na cabeça. Depois, deve cortar os pescoços... — Mãe de Deus, das crianças? — Essas são as ordens. — É uma coisa bárbara! — Quer que eu transmita essa opinião? Fontaine olhou para a porta do terraço, para a mulher na cadeira de rodas. — Não, não, é claro que não. — Foi o que pensei... Há uma instrução final. Com o sangue deve escrever o seguinte, na parede: “Jason Bourne, irmão do Chacal”. — Oh, meu Deus! Vou ser apanhado, é claro. — Isso depende de você. Coordene a execução comigo e vou jurar que um grande guerreiro da França estava nesta vila na hora do crime. — Na hora?... Que hora? Quando devo fazer isso? — Dentro de 36 horas. — E depois? — Pode ficar aqui até sua mulher morrer.
Capítulo 9 BRENDAN PATRICK PIERRE PREFONTAINE ficou atônito outra vez. Não tinha reserva nenhuma, mas a recepção do Hotel Tranqüilidade o tratou como se fosse uma celebridade. Momentos depois de ele pedir uma vila, foi informado de que já tinha uma vila e perguntaram se fizera uma boa viagem de Paris. Houve um momento de confusão porque não encontravam o dono do Tranqüilidade para esclarecer as coisas. Ele não estava na residência e, ao que parecia, nem no hotel. Finalmente, mãos se ergueram em frustração e o ex-juiz de Boston foi conduzido à casa em miniatura com vista para o mar do Caribe. Por acaso, não por determinação prévia, Brendan enfiou a mão no bolso errado e deu ao gerente da recepção uma nota de cinqüenta dólares americanos. Imediatamente Prefontaine tornou-se um homem digno de atenção. Dedos estalaram e mãos desceram sobre as campainhas. Nada era esplêndido demais para o magnífico estranho que acabava de desembarcar do hidravião, vindo de Montserrat... Foi o nome que criou a confusão na recepção do Tranqüilidade. Seria possível tamanha coincidência?... Porém, o governador da Coroa achou melhor errar do lado mais seguro. Arranje uma vila para o homem. Uma vez instalado, suas roupas guardadas no closet e na cômoda, a loucura continuou. Chegou uma garrafa de Château Carbonnieux ‘78 gelada com flores recém-colhidas e uma caixa de bombons belgas. Logo o criado voltou confuso, para retirar as dádivas, pedindo desculpas, dizendo que o champanhe, as flores e os chocolates eram para outra vila naquela ala — ou na outra — ele não tinha certeza, mon. O juiz vestiu uma bermuda, com uma careta para as pernas finas, e uma camisa discretamente estampada. Tênis e boné branco de pano completavam o conjunto. Logo ia escurecer e ele queria caminhar um pouco. Por diversos motivos. — Eu sei quem é Jean Pierre Fontaine — disse John St. Jacques, lendo o registro na recepção. — É o homem recomendado pelo governador da Coroa, mas quem diabo é B. P. Prefontaine? — Um juiz ilustre dos Estados Unidos — informou o subgerente negro com seu forte sotaque britânico. — Meu tio, o assistente do diretor da imigração, telefonou do aeroporto há umas duas horas. Infelizmente eu estava lá em cima quando houve a confusão, mas nosso pessoal fez a coisa certa. — Um juiz? — perguntou o dono do Tranqüilidade, quando o subgerente tocou no seu braço, afastando-o do balcão e dos empregados. — O que disse seu tio? — Total privissy deve ser garantida a esses dois hóspedes. — E por que não teriam? O que significa isso? — Meu tio foi muito discreto, mas contou que viu o juiz comprar a passagem no balcão dos vôos entre-ilhas. Disse também que sabia que estava certo. O juiz e o francês herói de guerra são parentes e devem se encontrar para tratar de assuntos altamente confidenciais.
— Nesse caso, por que o honrado juiz não tinha reserva? — Aparentemente há duas explicações possíveis, senhor. Segundo meu tio, eles deviam se encontrar no aeroporto, mas o comitê de recepção do governador impediu que o encontro se realizasse. — Qual é a segunda possibilidade? — Cometeram um engano no escritório do juiz, em Boston, Massachusetts. Segundo meu tio, houve uma breve conversa sobre o pessoal que trabalha para o juiz, e ele disse que se tivessem cometido algum erro com seu passaporte traria todos de avião para se desculpar. — Então os juízes ganham muito mais nos Estados Unidos do que no Canadá. Ele teve sorte de termos uma vila vaga. — É a temporada de verão, senhor. Geralmente temos vagas nesses meses. — Não precisa me dizer... Tudo bem, então temos dois parentes ilustres que desejam se encontrar confidencialmente, mas fazem as coisas de modo muito estranho. Talvez seja melhor telefonar para o juiz e informar em que vila está Fontaine. Ou Prefontaine — seja lá o que for. — Senhor, sugeri essa cortesia ao meu tio e ele foi decisivo. Não devemos fazer absolutamente nada. De acordo com meu tio, todos os grandes homens têm segredos e ele não gostaria que sua brilhante dedução fosse revelada, especialmente às partes interessadas. — Como disse? — Se déssemos o telefonema, o juiz ficaria sabendo que a informação só podia ter partido do meu tio, o assistente do diretor da imigração, em Montserrat. — Cristo, faça o que quiser, tenho outras coisas para resolver... A propósito, mandei dobrar as patrulhas na estrada e na praia. — Vamos ficar com pouca segurança no hotel, senhor. — Retirei alguns dos caminhos internos. Eu sei quem está aqui, mas não sei quem vai querer entrar. — Esperamos problemas, senhor? John St. Jacques olhou para o assistente da gerência. — Não agora — disse ele. — Estive verificando cada centímetro da praia e do terreno. Por falar nisso, vou ficar com minha irmã e meus sobrinhos na Vila Vinte. O herói da Resistência da Segunda Guerra, conhecido como Jean Pierre Fontaine, caminhou lentamente pela passagem de concreto na direção da última vila com frente para o mar. Era igual às outras, com paredes pintadas de rosa e telhado vermelho, mas o gramado era maior, a cerca viva mais alta e mais espessa. Um lugar para primeiros-ministros e presidentes, secretários estrangeiros e
secretários de Estado, homens e mulheres de estatura internacional à procura de paz e isolamento requintados. Fontaine chegou ao fim do caminho onde erguia-se um muro branco com um metro e vinte de altura e atrás dele a floresta impenetrável, na encosta da montanha que descia até a praia. O muro estendia-se nas duas direções, fazendo uma curva em volta da colina, abaixo dos terraços das vilas, servindo de demarcação e de proteção. O portão de ferro da Vila Vinte era pintado de rosa. Lá dentro, o homem viu uma criança de calção de banho, correndo no gramado. Então apareceu uma mulher na porta da frente. — Venha, Jamie — chamou ela. — Está na hora do jantar. — Alison já comeu, mamãe? — Já comeu e já dormiu, querido. Ela não vai gritar com você. — Gosto mais da nossa casa. Por que não podemos voltar para casa, mamãe? — Porque o tio John quer que fiquemos aqui... Os barcos estão aqui, Jamie. Você pode ir pescar e velejar com ele como nas últimas férias de abril. — Mas nas férias estávamos em casa. — Sim, bem, papai estava conosco... — E nos divertimos tanto passeando de caminhão! — Jantar, Jamie. Venha agora. Mãe e filho entraram na casa e Fontaine estremeceu pensando nas ordens do Chacal, na execução sangrenta que ele havia jurado perpetrar. Então, lembrou-se das palavras do garoto, Por que não podemos voltar para casa, mamãe?... Nas férias estávamos em casa. E as respostas da mãe, Porque tio John quer que fiquemos aqui... Sim, bem, papai estava conosco. Podia haver várias explicações para essas palavras, mas Fontaine tinha o dom de pressentir o perigo com mais certeza do que a maioria dos homens, pois sua vida fora sempre repleta de situações perigosas. Sentiu o perigo agora e por esse motivo um velho faria várias caminhadas noturnas para “ativar a circulação”. Dando as costas para o muro branco voltou pela passagem de concreto tão absorto nos seus pensamentos que quase colidiu com um hóspede mais ou menos da sua idade, com um boné branco idiota e tênis brancos. — Desculpe-me — disse o estranho, afastando-se para o lado. — Pardon, monsieur — exclamou o embaraçado herói da França, usando sua língua natal sem sentir. — Je regrette — quero dizer, sou eu quem deve pedir desculpas.
— Oh! — O estranho olhou para ele rapidamente, como se estivesse procurando disfarçar o fato de tê-lo reconhecido. — De modo nenhum. — Pardon, já nos conhecemos, monsieur? — Não creio — respondeu o homem com o boné idiota. — Mas nós todos ouvimos a novidade. Um grande herói francês está entre os hóspedes. — Bobagem. Acidentes da guerra, quando nós todos éramos muito mais moços. Meu nome é Fontaine. Jean Pierre Fontaine. — O meu é... Patrick. Brendan Patrick... — É um prazer conhecê-lo, monsieur. — Trocaram um aperto de mãos. — É um lindo lugar, não acha? — Simplesmente maravilhoso. — O estranho parecia estudá-lo outra vez, pensou Fontaine, porém evitando o contato direto dos olhos. — Bem, vou indo — disse o hóspede de tênis branco novo. — Ordens do médico. — Moi aussi — disse Jean Pierre em francês, o que, evidentemente causou alguma impressão. — Toujours le médecin a notre âge, n’est-ce-pas? — Verdade, verdade — respondeu o homem de pernas finas, e acenando uma despedida, caminhou rapidamente pela passagem. Fontaine ficou imóvel observando o homem que se afastava, esperando, sabendo o que ia acontecer. E então aconteceu. O estranho parou e lentamente se voltou. De longe seus olhos se encontraram. Foi o bastante. Jean Pierre sorriu, depois voltou para sua vila. Outro aviso, pensou ele, e muito mais letal. Pois três coisas eram evidentes. Primeira, o homem com o boné idiota falava francês. Segunda, ele sabia que “Jean Pierre Fontaine” era na verdade outra pessoa — enviada por alguém a Montserrat. Terceira... ele tinha a marca do Chacal nos olhos. Mon Dieu! Típico do monsenhor. Planejar o crime, garantir sua execução, depois remover tudo que pudesse trair seu método de operação, especialmente seu exército particular de homens velhos. Não era de admirar o que a enfermeira havia dito. Que podiam ficar naquele paraíso até a morte da mulher, uma data extremamente imprecisa. A generosidade do Chacal não era tão grande quanto parecia. A morte da mulher, bem como a sua, estavam com data marcada. John St. Jacques atendeu o telefone no seu escritório. — Sim? — Eles se encontraram, senhor! — disse o assistente eufórico, falando da recepção.
— Quem se encontrou? — O grande homem e seu parente ilustre de Boston, Massachusetts. Eu teria telefonado imediatamente, mas houve uma confusão com uma caixa de chocolates belgas... — Do que você está falando? — Eu os vi pela janela há alguns minutos, senhor. Estavam conversando no caminho. Meu estimado tio, o diretor assistente, estava certo em tudo! — Isso é ótimo. — O escritório do governador da Coroa vai ficar satisfeito e eu certamente vou ser elogiado, bem como meu tio brilhante, é claro. — Ótimo para todos nós — disse St. Jacques, cansado. — Agora não precisamos mais nos preocupar com eles, certo? — De um modo geral, eu diria que não, senhor... Só que, enquanto estamos falando, o juiz caminha para o hotel com passos apressados. Acho que vai entrar. — Acho que ele não morde, provavelmente quer agradecer. Faça o que ele pedir. Uma tempestade aproxima-se de Basse-Terre e vamos precisar do serviço de comunicação da guarda costeira se nossos telefones enguiçarem. — Atenderei pessoalmente qualquer pedido dele, senhor! — Bem, dentro de certos limites. Não escove os dentes dele. Brendan Prefontaine entrou rapidamente no saguão envidraçado do hotel. Só depois que o velho francês entrou na primeira vila daquela ala, deu meia-volta e dirigiu-se apressadamente para o prédio central. Como havia feito tantas vezes nos últimos trinta anos, precisava pensar rapidamente enquanto andava — geralmente, enquanto corria — inventando explicações plausíveis para certas possibilidades óbvias e outras não tão óbvias. Acabava de cometer um erro inevitável, mas assim mesmo estúpido. Inevitável porque não estava preparado para dar um nome falso ao registro do hotel, se fosse necessária identificação, e estúpido porque dera um nome falso ao herói da França... Bem, não tão estúpido, a similaridade dos seus sobrenomes podia provocar complicações indesejáveis para o objetivo da sua viagem a Montserrat, que era simplesmente extorsão — descobrir o que havia assustado Randolph Gates a ponto de ele pagar uma quantia absurda, e depois de descobrir, talvez conseguir muito mais. Não, a burrice não estava na precaução que ia tomar agora. Aproximou-se do balcão de recepção e do homem magro atrás dele. — Boa noite, senhor — quase gritou o recepcionista, fazendo com que o juiz olhasse em volta, agradecendo o fato de haver poucos hóspedes por perto. — Seja o que for, pode estar certo da perfeição do meu atendimento! — Preferia que falasse mais baixo, meu jovem.
— Vou murmurar — disse o homem, com voz inaudível. — O que foi que disse? — No que posso ajudá-lo? — disse o recepcionista, agora sotto voce. — Vamos apenas conversar com calma, certo? — É claro. Sinto-me lisonjeado. — É mesmo? — É claro! — Muito bem — disse Prefontaine. — Quero pedir um favor... — Qualquer coisa! — Shhh! — Naturalmente. — Como a maioria dos homens da minha idade, geralmente eu me esqueço das coisas, você compreende isso, não compreende? — Duvido que um homem com sua sabedoria esqueça alguma coisa. — O quê?... Deixe pra lá. Estou viajando incógnito, você sabe o que quero dizer. — Certamente, senhor. — Eu me registrei com meu nome, Prefontaine... — Sem dúvida registrou-se, senhor — interrompeu o homem. — Eu sei. — Foi um engano. Meu escritório e as pessoas que devem me procurar vão perguntar pelo “Sr. Patrick”, meu segundo nome. É um subterfúgio inocente para garantir meu descanso muito necessário. — Eu compreendo — disse o homem confidencialmente, inclinando-se sobre o balcão. — Compreende? — É claro. Se souberem que uma pessoa eminente como o senhor está hospedada aqui, não vão deixá-lo descansar. Como outra pessoa, pode ter privissy completa! Pode ter certeza de que eu compreendo. — Privissy? Oh, Deus todo-poderoso!... — Eu pessoalmente vou corrigir o livro de registros, juiz.
— Juiz?... Eu não disse que era juiz. O homem ficou completamente transtornado. —. Um descuido devido ao entusiasmo de bem servi-lo, senhor. — E servir outra coisa — outra pessoa. — Dou minha palavra, ninguém aqui, além do dono do hotel, sabe do caráter confidencial da sua visita, senhor — murmurou o homem, inclinando-se outra vez sobre o balcão. — Tudo é privissy total! — Santa Maria, aquele cretino no aeroporto... — Meu astuto tio — continuou o recepcionista, sem ouvir as palavras de Prefontaine ditas em voz baixa — deixou bem claro que é um grande privilégio para nós receber homens ilustres que exigem discrição total. O senhor compreende, ele me telefonou para isso. — Tudo bem, tudo bem, meu jovem, eu compreendo agora e agradeço tudo que estão fazendo. Não se esqueça de mudar o nome para Patrick no registro e se alguém perguntar por mim, deve dar esse nome. Estamos entendidos? — Com clarividência, meritíssimo juiz! — Espero que não. Quatro minutos mais tarde o recepcionista nervoso atendeu o telefone. — Recepção — disse com voz cantada como se estivesse dando uma bênção. — Aqui é Monsieur Fontaine na Vila Onze. — Sim, senhor. A honra é minha... nossa... de todo mundo! — Merci. Será que pode me ajudar? Conheci um americano encantador há uns 15 minutos, um homem mais ou menos da minha idade, com um boné branco. Pensei em convidá-lo para um aperitivo num destes dias, mas acho que não ouvi seu nome corretamente. Estão me testando, pensou o recepcionista. Os grandes homens não só têm segredos, mas se preocupam com aqueles que os compartilham. — Pela descrição, senhor, eu diria que se trata do encantador Sr. Patrick. — Ah, sim, acho que foi esse o nome que ele deu. Um nome irlandês, mas ele é americano, não é? — Um americano muito erudito, senhor, de Boston, Massachusetts. Está na Vila Quatorze. Basta ligar para sete-um-quatro.
— Sim, muito bem, obrigado. Se vir o Sr. Patrick, não diga nada. Como sabe, minha mulher não está muito bem e devo esperar que se sinta melhor para fazer o convite. — Nunca direi nada, grande senhor, a não ser que receba ordens. No que diz respeito ao senhor e ao erudito Sr. Patrick, seguimos ao pé da letra as instruções confidenciais do governador da Coroa. — É mesmo? Isso é muito louvável... Adieu. Eu consegui!, pensou o recepcionista, desligando o telefone. Os grandes homens entendem as sutilezas e ele fora sutil de um modo que seu brilhante tio ia gostar. Não só dando imediatamente o nome Patrick, como também usando a palavra erudito, que indicava um homem culto — ou um juiz. E finalmente, dizendo que não diria nada sem instruções prévias do governador da Coroa. Sutilmente ele havia se insinuado na intimidade dos dois grandes homens. Era uma experiência de tirar o fôlego e ele precisava telefonar para o tio e compartilhar esse triunfo. Sentado na cama com o telefone no colo, imóvel, Fontaine olhava para a mulher no terraço. Ela estava na cadeira de rodas, de perfil para ele, o copo de vinho na mesinha, a cabeça inclinada num acesso de dor... Dor! Todo este mundo horrível estava cheio de dor! E ele era responsável por uma parte dela. Compreendia isso. Não esperava misericórdia, mas sua mulher nada tinha a ver com isso. Não fazia parte do contrato. Sua vida, é claro, mas não a dela, não enquanto ela tivesse uma centelha de vida no corpo frágil, Non, monseigneur. Je refus! Ce n’est pas le contrat! Então o exército de homens velhos do Chacal estendia-se agora à América — era de se esperar. E um velho irlandês com um boné idiota, um homem culto que, por algum motivo, havia abraçado o terrorismo, seria seu executor. Um homem que o havia observado com cuidado, fingindo não compreender francês, que tinha a marca do Chacal nos olhos. No que diz respeito ao senhor e ao culto Sr. Patrick, seguimos as instruções do governador da Coroa. O governador da Coroa que recebia instruções do seu mestre da morte, em Paris. Há dez anos, depois de cinco anos muito produtivos com monsenhor, haviam lhe dado um número de telefone em Argenteuil, oito quilômetros ao norte de Paris, que só devia ser usado em caso de extrema urgência. Ele o usara apenas uma vez antes, e ia usá-lo agora. Examinou os códigos internacionais, apanhou o telefone e discou. Depois de quase dois minutos, atenderam. — Le Coeur du Soldat — disse uma voz masculina inexpressiva, com música marcial no fundo. — Preciso falar com um melro — disse Fontaine, em francês. — Minha identidade é Paris Cinco. — Se for possível atender seu pedido, onde o pássaro pode encontrá-lo? — No Caribe. — Fontaine deu o código da área, o número do telefone e da extensão da Vila Onze. Desligou e esperou imóvel e cabisbaixo. Sabia, no íntimo, que aquelas podiam ser as últimas horas de vida dele e de sua mulher. Nesse caso, poderiam enfrentar seu Deus e dizer a verdade. Sim, tinha matado, mas jamais fizera mal a pessoas que não tivessem praticado um ou outro crime — com exceção de uns poucos inocentes apanhados entre dois fogos ou mortos numa explosão. Toda a vida é dor, não é o que dizem as escrituras?... Por outro lado, que espécie de Deus podia permitir tanta
brutalidade? Merde! Não pense nessas coisas! Estão além da sua compreensão. O telefone tocou e Fontaine o levou ao ouvido. — Aqui é Paris Cinco — disse ele. — Filho de Deus, o que pode ser tão urgente para você usar o número que só usou uma vez antes? — Sua generosidade tem sido absoluta, monsenhor, mas acho que precisamos redefinir nosso contrato. — De que modo? — Minha vida é sua para fazer o que bem quiser, com misericórdia, se desejar, mas isso não inclui minha mulher. — O quê? — Há um homem aqui, um homem culto da cidade de Boston que me observa com olhar estranho, com olhos que me dizem que ele tem más intenções. — O idiota arrogante foi a Montserrat por conta própria. Ele não sabe nada. — Obviamente ele sabe, e eu peço, vou obedecer às suas ordens, mas deixe-nos voltar para Paris... Eu imploro. Deixe que ela morra em paz. Não peço nada mais. — Você me implora? Eu lhe dei minha palavra! — Então, por que esse homem culto da América está aqui me seguindo com seu rosto inexpressivo e olhos curiosos, monsenhor? A tosse cavernosa e áspera encheu o silêncio e então o Chacal falou. — O grande professor de direito transgrediu minha lei, intrometeu-se onde não devia se intrometer. Ele é um homem morto. Edith Gates, mulher do famoso professor e advogado, abriu silenciosamente a porta da sala de trabalho da sua elegante casa na cidade, em Louisburg Square. Seu marido estava sentado, imóvel, na pesada poltrona de couro, na frente da lareira, olhando para o fogo crepitante, um fogo que ele insistia em manter, apesar da noite quente de Boston lá fora e do ar condicionado central dentro de casa, Olhando para ele, a Sra. Gates mais uma vez pensou com tristeza que havia... certas coisas... a respeito do marido que ela jamais entenderia. Vazios em sua vida que jamais seriam preenchidos, vazios no pensamento dele que ela não podia compreender. Sabia apenas que em certos momentos ele sentia uma dor terrível que não compartilhava com ninguém. Há 33 anos, uma mulher relativamente atraente, com algum dinheiro, casara-se com um homem muito alto, desajeitado, brilhante mas pobre, que acabava de se formar em direito e cuja ansiedade e desejo de agradar haviam fechado para ele as portas
das maiores e mais conceituadas firmas, na época fria e contida dos anos 50. O verniz da sofisticação e a procura da segurança tinham mais valor do que uma mente brilhante, mas desorganizada, especialmente quando pertencia a um homem despenteado, com roupas que eram imitações baratas de J. Press e Brooks Brothers, que pareciam piores porque sua conta no banco não lhe permitia pagar qualquer reforma necessária e seu tamanho era difícil de encontrar nas lojas. Entretanto, a nova Sra. Gates tinha muitas idéias para melhorar a vida dos dois. Entre elas estava o marido abandonar imediatamente a carreira de advogado — era melhor não trabalhar em nenhuma firma do que pertencer a uma firma inferior, ou, o que era pior, ter um escritório particular com os clientes que ele na certa atrairia, ou seja, aqueles que não podiam pagar bons advogados. Era melhor usar seus dons naturais, sua altura e uma inteligência ágil, seu grande poder de compreensão que, combinados com um espírito ativo, facilitavam qualquer trabalho acadêmico. Usando suas modestas economias, Edith construiu a moldura externa do seu homem. Comprou as roupas certas e contratou um professor de dicção que ensinava a falar e a se apresentar em público. O desajeitado novo advogado logo adquiriu uma aura lincolniana com lampejos de John Brown. Além disso, estava a caminho de se tornar um especialista em leis. Continuou a freqüentar a universidade, colecionando diplomas e certificados, enquanto lecionava no curso de graduação, até adquirir um conhecimento profundo e incontestável de áreas específicas do direito. E então, começou a ser procurado pelas firmas que o haviam rejeitado antes. A estratégia levou quase dez anos para apresentar resultados concretos, que, embora não fossem notáveis a princípio, em nível de dinheiro, representavam progresso. As revistas especializadas começaram a publicar seus artigos que provocavam certa controvérsia, tanto pelo estilo quanto pelo conteúdo, pois o jovem professor substituto sabia como usar a palavra escrita, sendo ao mesmo tempo interessante e esotérico, delicado e incisivo. Mas o que chamou a atenção da comunidade foram suas opiniões inovadoras. O espírito da nação estava mudando, a crosta da Sociedade Benevolente começava a se partir, seguindo a primeira rachadura provocada pelo código criado pelos “garotos” de Nixon, tais como Maioria Silenciosa e Mendigos Sustentados pelo Governo e o pejorativo eles. Uma maldade mesquinha erguia-se do solo e se espalhava, sem que o perceptivo e decente Ford pudesse detê-la, enfraquecido como estava pelos ferimentos de Watergate. Forte demais também para o brilhante Carter, muito preocupado com minúcias para exercer uma liderança compreensiva. A frase “... o que você pode fazer por seu país”, saiu de moda e foi substituída por “o que posso fazer por mim”. O Dr. Randolph Gates descobriu uma onda implacável para navegar, uma voz melíflua, e um vocabulário cada vez mais acerbo que combinava com a nova era que surgia. Em sua opinião agora eruditamente refinada — legal, econômica e socialmente — maior era melhor, e mais sempre preferível a menos. Atacava as leis que apoiavam a competição no mercado, definindo-as como empecilhos para a agenda mais extensa do crescimento industrial, do qual fluíam todos os tipos de benefícios para todos — bem, praticamente para todos. Afinal, era um mundo darwiniano e, gostassem ou não, o mais apto sempre sobreviveria. Os tambores rufaram e os címbalos badalaram e os manipuladores financeiros encontraram um campeão, um estudioso do direito, que dava respeitabilidade aos seus sonhos honestos de fusão e consolidação. Comprar, levar para fora, e vender, tudo pelo bem da maioria, é claro. Randolph Gates foi convocado e correu para os braços deles com alacridade, assombrando um tribunal depois do outro com sua ginástica elocutória. Ele havia conseguido, mas Edith Gates não estava bem certa do que isso significava. Havia sonhado com uma vida confortável, é claro, mas não com
milhões, nem com jatos particulares voando pelo mundo todo, de Palm Springs ao sul da França. Nem sentia-se muito bem quando os artigos e palestras do marido eram usados para apoiar causas que ela considerava contraditórias ou claramente injustas. Randolph dava pouca atenção aos argumentos da mulher, afirmando que os casos em questão eram legítimos paralelos intelectuais. Acima de tudo, há mais de seis anos que não compartilhavam a mesma cama, nem o mesmo quarto. Edith entrou na sala e parou de repente ouvindo a exclamação abafada e o olhar de espanto e surpresa do marido. — Desculpe, não quis assustá-lo. — Você sempre bate na porta. Por que não bateu? Sabe como sou quando estou me concentrando. — Já pedi desculpas. Eu estava pensando em alguma coisa e não pensei. — Isso é uma contradição. — Não pensei em bater na porta, quero dizer. — O que estava pensando? — perguntou o famoso advogado, como se duvidasse de que ela fosse capaz de pensar. — Por favor, não banque o esperto comigo. — O que há, Edith? — Onde você esteve a noite passada? Gates ergueu as sobrancelhas com surpresa irônica. — Meu Deus, suspeita de mim? Já disse onde estive. No Ritz. Em conferência com alguém que conheci há alguns anos, alguém que eu não quis trazer aqui para casa. Se, na sua idade, quer confirmação, telefone para o Ritz. Edith Gates ficou em silêncio por alguns momentos, olhando para o marido. — Meu caro — disse ela. — Não importa a mínima se você foi se encontrar com a prostituta mais voluptuosa da Zona de Combate. Provavelmente alguém teve de dar uma bebida forte a ela para restaurar sua confiança. — Nada mau, sua cadela. — Nesse departamento, você não é exatamente um garanhão, seu filho da mãe. — Há algum objetivo neste colóquio? — Acho que sim. Mais ou menos há uma hora, um pouco antes de você chegar do escritório, um
homem bateu na porta. Denise estava limpando a prataria, por isso fui atender. Devo confessar que era uma figura impressionante, com roupas muito caras e seu carro era um Porsche negro... — E então? — interrompeu Gates, inclinando-se para a frente na poltrona com os olhos arregalados, o corpo rígido. — Mandou dizer a você que le grand professeur deve a ele 20 mil dólares e que “ele” não esteve onde disse que ia estar na noite passada, que eu suponho, devia ser o Ritz. — Não estava. Aconteceu uma coisa inesperada... Oh, Cristo, ele não compreende. O que foi que você disse? — Não gostei da linguagem nem da atitude dele. Disse que não tinha idéia de onde você podia estar. Ele sabia que eu estava mentindo, mas não podia fazer nada. — Ótimo. Mentir é uma coisa que ele conhece bem. — Não posso imaginar que 20 mil sejam um grande problema para você... — Não é o dinheiro, é a forma de pagamento. — De quê? — Nada. — Acho que isso é o que você chama de contradição, Randy. — Ora, cale a boca! O telefone tocou. Gates levantou de um salto, mas ficou parado, olhando para o aparelho. Disse para a mulher, com voz rouca. — Seja quem for, diga que não estou... Estou viajando, fora da cidade... não sabe quando vou voltar. Edith foi até o telefone. — É sua linha particular — disse ela, apanhando o fone no terceiro toque. — Residência Gates — disse ela, um truque que usava há anos. Os amigos sabiam que era ela, os outros não importavam mais. — Sim... Sim? Sinto muito, ele está viajando e não sabemos quando vai voltar. — Edith olhou para o fone e depois desligou. — Era a telefonista em Paris... É estranho. Alguém queria falar com você, mas quando eu disse que você não estava nem perguntou onde podia encontrá-lo. Ela simplesmente desligou — muito bruscamente. — Oh, meu Deus! — exclamou Gates, visivelmente abalado. — Aconteceu alguma coisa... Alguma coisa saiu errada, alguém mentiu1. — Com essas palavras enigmáticas, o advogado voltou-se de repente e começou a andar pela sala, procurando alguma coisa no bolso da calça. Chegou a uma
parte da estante de livros que ia até o teto, transformada num pequeno armário com a porta de madeira trabalhada encaixada na armação de aço marrom. Em pânico, como se só então se lembrasse, voltou-se para a mulher e gritou: — Saia daqui! Saia, saia, fora daqui! Edith Gates caminhou lentamente para a porta e então voltou-se e disse, com voz calma: — Tudo volta a Paris, não é, Randy? Há sete anos, em Paris. Foi lá que alguma coisa aconteceu, certo? Você voltou apavorado, um homem com um sofrimento que não pode compartilhar. — Saia daqui! — gritou estridentemente o famoso professor de direito, transtornado. Edith saiu e fechou a porta, mas ficou segurando a maçaneta. Momentos mais tarde, ela a abriu um pouco e observou o marido. O choque foi muito além de tudo que ela podia imaginar. O homem com quem vivia há 33 anos, o gigante legal que não fumava nem bebia uma gota de álcool, estava enfiando uma agulha hipodérmica no braço.
Capítulo10 A NOITE ENVOLVIA Manassas, Virgínia, o campo com sua misteriosa vida noturna, quando Bourne atravessou silenciosamente o bosque próximo da propriedade do general Norman Swayne. Pássaros assustados fugiam dos seus esconderijos, corvos acordavam nas árvores, crocitavam e depois, verificando que se tratava de um companheiro conspirador à procura de alimento, calavam-se. Bourne alcançou-a imaginando se na verdade ela estaria ali. Uma cerca — alta, com elos entrecruzados embebidos em plástico verde, mais os rolos de arame farpado inclinando-se para a frente. Entrada proibida. Beijing. O Santuário Jing Shan. Havia coisas escondidas dentro daquela reserva oriental da vida selvagem, por isso era protegida por uma barreira oficial impenetrável. Mas por que um general de escritório, que vivia do soldo militar, precisava de uma paliçada como aquela em volta da sua “fazenda” em Manassas, Virgínia, uma obstrução que devia ter custado milhares de dólares? Não era para cercar o gado, mas para impedir a entrada de vida humana. Como no santuário da China, não devia haver alarmes elétricos entre os elos da cerca pois os animais e os pássaros os fariam soar incessantemente. Nem haveria os raios de luz invisível pela mesma razão. Eles deviam estar rente ao solo perto da casa e na altura da cintura, se houvesse algum. Bourne tirou os pequenos cortadores de arame do bolso da calça e começou a cortar os elos mais baixos. Cortando os elos de metal, Jason mais uma vez compreendia a mensagem da sua respiração pesada e do suor que brotava na sua testa. Por mais que se esforçasse — não fanaticamente, mas com uma certa constância — para se manter em forma, tinha cinqüenta anos e seu corpo sabia disso. Era algo que devia ser reconhecido mas não considerado como um problema. O importante eram Marie e as crianças, sua família. Por eles, seria capaz de fazer qualquer coisa que fosse necessária. David Webb não estava mais com ele, somente o predador Jason Bourne. Estava passando! Os elos paralelos verticais estavam cortados, bem como os fios estendidos no solo. Jason segurou a cerca com as duas mãos e puxou-a para fora, cada centímetro de espaço aberto uma verdadeira luta. Arrastou-se para dentro daquele estranho terreno fortificado e ficou de pé com os ouvidos atentos, os olhos perscrutando a escuridão quase completa. Viu — filtrados através do emaranhado de galhos dos pinheiros altos que cercavam o terreno — um lampejo de luz vindo da casa principal. Vagarosamente caminhou para a entrada circular de veículos, na frente da casa. Chegou na borda do asfalto e deitou de bruços sob a proteção de um pinheiro, retomando o fôlego e reorganizando os pensamentos, enquanto estudava o terreno à sua frente. De repente uma luz cintilou a distância, à sua direita, no fim de um caminho de cascalho que saía da entrada circular de veículos. Uma porta se abriu no que parecia ser uma grande cabana ou uma casa pequena e ficou aberta. Dois homens e uma mulher saíram da casa conversando... não, não estavam conversando, estavam discutindo acaloradamente. Bourne levou o binóculo aos olhos. Focalizou o trio, cujas vozes tornavamse cada vez mais altas. Não distinguia as palavras, mas a fúria era evidente. Jason observou as três pessoas, percebendo imediatamente que o homem de altura média e porte empertigado era o general Swayne do Pentágono e a mulher de seios volumosos, cabelo escuro com reflexos era sua esposa, mas o
que chamou sua atenção — o que o fascinou — foi o homem enorme que ficou perto da porta aberta. Jason o conhecia! Não podia lembrar de onde ou quando, o que era natural, mas sua reação visceral à vista do homem não era natural. Era um sentimento de ódio profundo e ele não sabia por quê. Nenhuma lembrança o ajudava, apenas a sensação de nojo e repulsa. Onde estavam as imagens, os breves lampejos de tempo ou de circunstância que freqüentemente iluminavam a tela da sua mente? Nada. Jason sabia apenas que o homem focalizado pelo binóculo era seu inimigo. Então, o homem enorme fez uma coisa extraordinária. Com um gesto protetor, passou o braço esquerdo musculoso pelos ombros da mulher de Swayne e com o dedo da mão direita em riste falou asperamente com o general. Swayne reagiu com um misto de decisão estóica e fingida indiferença. Deu meia-volta e com passo militar dirigiu-se para a porta dos fundos da casa, desaparecendo no escuro da noite. Bourne voltou o binóculo para os dois vultos iluminados. O homem grande e obeso tirou a mão do ombro da mulher de Swayne e disse alguma coisa. Com um gesto afirmativo, ela beijou de leve os lábios dele e correu atrás do marido. O homem entrou na pequena casa, bateu a porta com força e apagou a luz. Jason prendeu o binóculo novamente na perna da calça e parou para pensar no que acabava de ver. Era como um filme silencioso sem legendas, com gestos genuínos e não exageradamente teatrais. Era evidente que dentro daquela fortaleza funcionava um ménage à trois, mas isso não explicava a medida de segurança. Havia outra razão, uma razão que ele precisava descobrir. Seu instinto dizia que, fosse o que fosse, estava relacionado com o homenzarrão que acabava de entrar, furioso, na casa pequena. Jason tinha de chegar àquela casa, chegar ao homem que fora uma parte do seu passado esquecido. Levantou-se devagar e, protegendo-se atrás dos troncos dos pinheiros, alcançou o fim da entrada circular para veículos e continuou seguindo a estreita passagem de cascalho. Parou, atirando-se rapidamente no chão ao ouvir um som que não pertencia ao murmúrio do bosque. Era o som de rodas amassando e deslocando o cascalho. Jason rolou para o abrigo dos galhos baixos e espalhados de um pinheiro, girando o corpo para localizar a origem do ruído. Logo, saindo das sombras, apareceu na estrada de cascalho um estranho veículo. Era um misto de moto com três rodas e um carro de golfe em miniatura, com pneus largos, um veículo capaz de rodar com grande velocidade e com equilíbrio perfeito. Era também, de certo modo, ameaçador, pois, além da antena comprida e flexível, um escudo de vidro à prova de balas protegia o motorista que ao mesmo tempo podia alertar quem estivesse dentro da casa, no caso de invasão ou assalto. A “fazenda” do general Norman Swayne era sem dúvida estranha... Então, de repente, tornou-se macabra. Outro triciclo igual ao primeiro apareceu das sombras, atrás da casa de madeira — pois era uma casa feita de troncos de árvores — e parou ao lado do primeiro, no caminho de cascalho. Os dois motoristas giraram as cabeças para a pequena casa como robôs numa galeria pública e então soaram as palavras num alto-falante invisível. — Tranquem os portões — disse a voz ampliada e autoritária. — Soltem os cães e continuem sua ronda. Numa coreografia perfeita, os dois veículos fizeram meia-volta, cada um para um lado, os
motores roncaram em uníssono e os carros estranhos mergulharam rapidamente na noite. Ao ouvir falar em cães, Jason instintivamente apanhou a pistola de CO2 do bolso da calça e rastejou com movimentos rápidos, entre os arbustos, até a distância de um ou dois metros da continuação da cerca. Se os cães estivessem todos juntos, seria obrigado a saltar para o outro lado da cerca de arame farpado. A pistola de dardos podia paralisar dois animais de uma vez, e isso era tudo, não teria tempo para recarregá-la. Esperou agachado, pronto para saltar a cerca, com uma visão relativamente clara entre os galhos entrelaçados. De repente, um dobermann negro apareceu no caminho de cascalho, avançando sem nenhuma hesitação, sem parecer estar seguindo o faro, mas apenas dirigindo-se a um lugar determinado. Então apareceu outro, um pastor-alemão de pêlo longo. Ele diminuiu o passo, num gesto instintivo e, como se estivesse programado para isso, parou no meio do caminho de cascalho. De pé, imóvel, Bourne compreendeu. Eram cães treinados para o ataque, cada um com seu território determinado, marcado pela urina do animal, sempre agindo no seu próprio campo. Tratava-se de uma disciplina comportamental, adotada pelos camponeses orientais e pequenos proprietários de terras que sabiam muito bem quanto custava alimentar os animais que guardavam seus pequenos feudos de sobrevivência. Treinavam uns poucos, o menor número possível para proteger suas propriedades dos ladrões e, quando o alarme era ativado, todos convergiam para o mesmo ponto. Oriente. Vietnã... Medusa. Começava a lembrar! Traços vagos, obscuros — imagens! Um jovem forte de uniforme na direção de um jipe. Desce do jipe e — através da névoa da lembrança de Jason — começa a gritar para o que restou de um grupo de assalto que voltava depois de interditar uma via de acesso de material bélico paralela à Trilha Ho Chi Minh. O mesmo homem, mais velho, mais gordo, ele havia visto com seu binóculo há poucos instantes. E anos atrás, esse mesmo homem havia prometido suprimentos. Munição, morteiros, granadas, rádios. Mas não voltou com coisa alguma. Apenas reclamações do Comando Saigon de que “vocês, seus ilegais de merda, nos deram informações erradas!” Mas não era verdade. Saigon agira tarde demais, reagira tarde demais e 26 homens foram mortos ou capturados, para nada! Como se tudo tivesse acontecido há uma hora, há um minuto, Bourne lembrou. Tirou seu 45 do coldre e, sem nenhum aviso, golpeou a testa do sargento com o cano da arma. — Mais uma palavra e é um homem morto, sargento! — O homem era sargento. — Traga nossas requisições amanhã, às 5:00h da manhã ou eu vou a Saigon e pessoalmente espalho seus pedaços pela parede do bordel que você freqüenta. Estou falando claro ou prefere evitar minha viagem à cidade da publicidade? Francamente, considerando nossas perdas, eu preferia acabar com você aqui mesmo. — Vai ter o que precisa. — Très bien! — gritou o francês mais velho do grupo Medusa, o mesmo que anos mais tarde salvou sua vida num santuário de vida selvagem, em Beijing. — Tu es formidable, mon fils! Ele estava absolutamente certo. E agora absolutamente morto. D’Anjou, um homem lendário. As recordações de Jason foram interrompidas violentamente. O cão de ataque, de pêlo comprido, começou a dar voltas na estrada, rosnando cada vez mais alto, as narinas farejando a presença de um ser humano. Em poucos segundos, assim que identificou a direção exata, o animal entrou em ação. Correu para a folhagem com os dentes arreganhados, rosnando agora o aviso rouco do ataque
mortal. Bourne encostou na cerca, tirando a pistola de CO2 do coldre de náilon com a mão direita, o braço esquerdo dobrado na frente do corpo, preparado para o contra-ataque que, se não fosse executado com perfeição, lhe custaria a vida. O animal saltou furioso, uma massa vibrante de raiva. Jason atirou, primeiro um dardo, depois o outro e ao mesmo tempo, com um golpe do braço esquerdo girou a cabeça do cão para o lado, atacando o meio do corpo dele violentamente com o joelho, para evitar as unhas afiadas. Em poucos instantes estava tudo acabado — instantes de fúria, de pânico, finalmente de desintegração — sem os ganidos que seriam ouvidos na casa do general. O corpo do animal narcotizado, com os olhos abertos, amoleceu nos braços de Bourne. Jason o colocou no chão e esperou, imóvel, até certificar-se de que nenhum aviso de alarme fora enviado aos outros animais. Nada, a não ser o murmúrio constante da floresta no outro lado da cerca. Jason guardou a pistola de CO2 no coldre e voltou de rastro para o caminho de cascalho com o rosto coberto de suor. Estava afastado há muito tempo. Anos atrás, silenciar um cão teria sido apenas un exercise ordinaire, como diria o lendário D’Anjou — mas não era mais tão simples. O que sentia era medo. Medo puro e real. Onde estava o homem que existia antes? Porém, Marie e as crianças estavam em perigo e aquele homem tinha de ser convocado. Chame-o agora! Bourne levou outra vez o binóculo aos olhos. Nuvens baixas e rápidas cobriam e descobriam a luz da lua, mas a claridade amarelada era suficiente. Observou a cerca viva que ladeava a estrada externa. Andando de um lado para o outro na trilha de terra, como uma pantera furiosa e impaciente, o dobermann negro parava uma vez ou outra para urinar e farejar os arbustos com o focinho comprido. Como fora programado para fazer, ele caminhava de um lado para o outro, entre os portões da entrada circular de veículos. Em cada ponto determinado parava, rosnava e girava o corpo várias vezes, como que esperando o detestado choque elétrico que receberia através da coleira se transgredisse as ordens. Era também o método de treinamento adotado no Vietnã. Os soldados disciplinavam os cães que guardavam os depósitos de munições por meio de aparelhos de controle remoto. Jason focalizou o binóculo na outra extremidade do imenso gramado na frente da casa. Lá estava o terceiro animal, um imenso weimaraner, de aparência dócil, mas letal no ataque. O cão hiperativo corria de um lado para o outro, excitado talvez com o movimento de esquilos ou coelhos nas moitas, mas não com a presença de um ser humano, pois não estava rosnando baixinho, o sinal do ataque mortal. Jason procurou analisar o que estava vendo, pois disso dependia o sucesso da sua missão. Devia supor a presença de mais um ou dois cães, talvez um terceiro, patrulhando a propriedade de Swayne. Mas por que separados? Por que não uma matilha, o que seria muito mais assustador? O custo da manutenção, que limitava o número de cães de guarda dos orientais, não era o caso... Então, Jason compreendeu. Uma explicação básica e óbvia. Movimentou o binóculo focalizando ora o dobermann, ora o weimaraner, com a imagem do pastor de pêlo longo muito viva ainda em sua mente. Além de cães treinados para o ataque, aqueles animais eram alguma coisa mais. Eram campeões das suas raças, tratados, escovados e penteados com perfeição — animais assassinos, fazendo o papel de cães premiados durante o dia e de predadores violentos, à noite. É claro. A “fazenda” do general Norman Swayne não era uma propriedade ilegal, não registrada ou escondida, mas completamente aberta e sem dúvida visitada por amigos, vizinhos e colegas. Durante o dia, os convidados podiam admirar os campeões dóceis nos seus canis sem desconfiar do que eles eram realmente. Norman Swayne, chefe da intendência do Pentágono e ex-aluno de Medusa, era apenas um amante de cães, o que provava com a pureza da raça dos seus animais. Talvez cobrasse uma taxa para ceder seus animais para reprodução mas
nada no código de ética militar proibia isso. Um disfarce. Se esse aspecto da “fazenda” do general era uma impostura, certamente toda a propriedade encobria alguma coisa, era toda tão falsa quanto a suposta “herança” com a qual fora comprada. Medusa. Um dos triciclos estranhos apareceu na outra extremidade do gramado, saindo da sombra da casa e seguindo a pista de saída do caminho circular. Bourne, com o binóculo, viu o weimaraner correr alegremente ao lado do veículo, latindo, procurando chamar a atenção do motorista. O motorista. Os motoristas eram os controladores! O cheiro conhecido dos seus corpos acalmava os cães, transmitindo segurança. Essa observação completou a análise e a análise determinou sua tática. Precisava se movimentar com maior liberdade do que estava se movendo agora. Para isso precisava estar na companhia de um dos controladores. Precisava apossar-se de um dos carros. Voltou para o lugar em que havia cortado a cerca. O veículo mecanizado à prova de bala parou na trilha estreita entre os dois portões quase escondidos pelos arbustos. Jason ajustou o binóculo. Aparentemente o dobermann negro era um favorito. O homem no veículo abriu o escudo da direita e o animal saltou para a frente, apoiando as patas enormes no assento do carro. O homem estendeu biscoitos ou pedaços de carne para a boca aberta do cão, depois afagou o pescoço do animal. Bourne compreendeu que tinha poucos instantes para executar sua estratégia incerta. Tinha de deter o carro e obrigar o homem a sair dele, sem alarmá-lo, sem dar qualquer motivo para usar o rádio e pedir ajuda. O cão? Colocá-lo no meio do caminho? Não. O homem podia pensar que alguém havia atirado nele do outro lado da cerca e daria o alarme. O que podia fazer? Olhou para a escuridão, sentindo o pânico da incerteza, sua ansiedade crescendo a cada segundo. Então, mais uma vez descobriu o óbvio. A vasta extensão de gramado, a cerca viva aparada com perfeição, a entrada circular para veículos — ordem era a palavra-chave dos domínios do general. Jason podia ouvir Swayne mandando os guardas “policiar a área”. Olhou para o carro e para o dobermann. O homem empurrava o cão, como quem brinca, pronto para fechar o escudo protetor. Apenas alguns segundos agora. O quê. Como? Viu o contorno de um galho de árvore no chão, um galho apodrecido caído do pinheiro. Jason apanhou o galho e o levou para o caminho asfaltado. Deixá-lo no meio do caminho ia indicar claramente uma armadilha, mas se colocasse só uma parte do galho na estrada — seria uma quebra da ordem que imperava na propriedade — sem dúvida o guarda pensaria em tirá-lo do caminho agora, antes que o general passasse por ali e visse aquela desordem. Os homens da fortaleza de Swayne deviam ser soldados ou ex-soldados, ainda sob autoridade militar. Na certa evitavam repreensões, especialmente por coisas sem importância. A vantagem estava do lado de Jason. Segurou a ponta do galho e o arrastou para um lado da entrada de veículos. Ouviu a porta do carro sendo fechada e o barulho do motor em movimento. Bourne voltou para seu esconderijo entre as árvores. O veículo entrou na estrada circular. Com a mesma rapidez com que havia acelerado, diminuiu a
marcha quando o seu único farol iluminou a obstrução de parte do caminho. Aproximou-se cautelosamente, como se não estivesse certo do que se tratava. Depois, vendo o que era, chegou mais perto. Sem hesitar, abriu a porta lateral do veículo, erguendo-a para fora, e caminhou para o galho na beira do caminho. — Big Rex, você é um cachorro muito malcomportado — disse o homem em voz alta, com forte sotaque sulino. — O que você arrastou para a estrada, seu filho da mãe? O cretino do chefão pode esfolar você vivo por fazer desordem na sua propriedade... Rex? Rex, venha cá, seu animal miserável! — Segurou a ponta do galho e o arrastou para perto de uma árvore, no escuro. — Rex, venha cá! Seu idiota, seu garanhão assanhado! — Não se mova e ponha as mãos na frente do corpo — disse Jason Bourne, surgindo do escuro. — Droga de merda! Quem é você? — Alguém que não se importa se você vive ou morre — respondeu o intruso com voz calma. — Está armado! — Você também. Mas sua arma está no coldre. A minha está apontada para sua cabeça. — O cachorro! Onde diabo está o cachorro? — Está adoentado. — O quê? — Parece um bom cachorro. Pode ser o que o treinador quiser que ele seja. Não culpe o animal, culpe o homem que o treinou. — Do que está falando? — Para resumir, acho que estou dizendo que prefiro matar o homem do que o animal, está claro para você? — Nada está claro! Só sei que este homem não quer ser morto. — Então vamos conversar, certo? — Tenho muitas palavras, mas só uma vida, cara. — Abaixe o braço direito e tire a arma do coldre — com a ponta dos dedos, cara. O guarda obedeceu, segurando a arma com o polegar e o indicador. — Jogue para mim, por favor. O homem fez o que ele mandou e Bourne apanhou a arma. — Que diabo está acontecendo? — exclamou o guarda em tom de súplica.
— Quero informação. Para isso me mandaram aqui. — Digo tudo que sei se me deixar sair daqui! Não quero nada mais com este lugar! Sempre achei que isso ia acontecer, pode perguntar para Barbie Jo. Eu disse, algum dia vai aparecer alguém fazendo perguntas. Mas não deste jeito, não do seu jeito! Não com uma arma apontada para a minha cabeça. — Suponho que Barbie Jo seja sua mulher. — Mais ou menos. — Então vamos começar com “por que” as pessoas iam aparecer fazendo perguntas. Meus superiores querem saber. Não se preocupe, não vai se meter em nenhuma encrenca, ninguém está interessado em você. Você é apenas um guarda de segurança. — É tudo que eu sou, cara! — confirmou o homem, apavorado. — Então por que disse aquilo para Barbie Jo? Que algum dia ia aparecer alguém fazendo perguntas? — Diabo, não tenho certeza... É só que vejo tanta coisa louca, sabe como é? — Não, não sei. Como é? — Bem, como aquele milico que só vive gritando, o general. Ele é importante, certo? Usa carros do Pentágono com motorista e helicópteros sempre que precisa, certo? É dono deste lugar, certo? — E daí? — Daí que aquele grande cretino do sargento — uma porcaria de sargento — manda nele como numa criança que não sabe ainda ir ao banheiro, sabe o que quero dizer? E aquela mulher peituda dele — tem um caso com o monstro e não esconde de ninguém. É tudo loucura, entende o que quero dizer? — Vejo uma confusão doméstica, mas acho que não é da conta de ninguém. Por que pessoas viriam fazer perguntas? — Por que você está aqui, cara? Sabia que ia haver uma reunião esta noite, certo? — Uma reunião? — Aquelas limusines de luxo com choferes e os caras importantes, certo? Pois bem, escolheu a noite errada. Os cachorros estão soltos e sempre ficam presos quando há uma reunião. Depois de um momento, Bourne disse, aproximando-se do guarda. — Vamos continuar a conversa no carro — disse com autoridade. — Eu fico abaixado e você faz exatamente o que eu mandar.
— Prometeu que vai me deixar sair daqui! — Pode sair e vai sair. Você e o outro cara que faz a ronda. Aqueles portões têm alarme? — Não quando os cachorros estão soltos. Se eles virem alguma coisa estranha na estrada, saltam sobre os portões e ligam o alarme. — Onde fica o painel de alarme? — São dois. Um na casa do sargento, o outro no hall de entrada da casa. Com os portões fechados podem ser ligados. — Vamos então. — Para onde? — Quero ver todos os cães que estão por aí. Vinte minutos mais tarde, com os cinco cães restantes anestesiados e presos nos canis, Bourne abriu o portão e fez sair os dois guardas. Deu trezentos dólares para cada um. — Isto é pelo ordenado que não vão receber. — Ei, e o meu carro? — perguntou o segundo guarda. — Não é grande coisa, mas me serve muito bem. Eu e Willie costumamos vir juntos para o trabalho no meu carro. — Está com as chaves? — Sim, no bolso. O carro está atrás dos canis. — Apanhe amanhã. — Por que não agora? — Ia fazer muito barulho e meus superiores devem chegar a qualquer momento. É melhor que eles não os vejam. Acredite em mim. — Que droga! O que foi que eu disse, Jim-Bob? Exatamente o que eu disse para Barbie Jo. Este lugar é de arrepiar, cara. — Trezentos mangos não são de arrepiar, Willie. Vamos, a gente pede carona. Não é tarde e ainda tem gente na estrada... Ei, cara, quem vai tomar conta dos cachorros quando eles acordarem? Precisam fazer exercício e comer antes da chegada da turma da manhã e estraçalham qualquer estranho que chegue perto deles. — Que tal o sargento do Swayne? Ele pode tratar deles, não pode? — Não gostam muito dele — disse Willie —, mas obedecem às suas ordens. Gostam mais da
mulher do general, os garanhões sem-vergonha. — E do general? — perguntou Bourne. — Ele se mija todo quando chega perto deles — disse Jim-Bob. — Obrigado pela informação. Vão agora, andem um bom pedaço antes de começar a pedir carona. Meus superiores devem vir da outra direção. — Quer saber de uma coisa? — disse Jim-Bob, entrecerrando os olhos e observando Jason à luz da lua. — Esta é a noite mais maluca que eu podia imaginar. Você entra aqui vestido como um maldito terrorista, mas fala e age como um oficial do exército. Fica falando nos seus superiores, põe os cachorros para dormir e nos paga trezentos mangos para ir embora. Não estou entendendo nada. — Não é para entender. Por outro lado, se eu fosse mesmo um terrorista vocês provavelmente estariam mortos, certo? — Ele tem razão, Jim-Bob. Vamos dar o fora daqui! — Que diabo vamos dizer? — Se alguém perguntar, digam a verdade. Descrevam o que aconteceu esta noite. Podem também acrescentar que meu nome de código é Cobra. — Meu Deus! — gritou Willie. Os dois homens correram para a estrada. Bourne trancou o portão e voltou para o Carro certo de que qualquer coisa que acontecesse ainda naquela noite contribuiria para criar um estado de extrema ansiedade num ramo da Medusa. Perguntas histéricas seriam feitas — para as quais não havia respostas. Nada. Enigma. De pé ao lado da janela, com o rosto encostado no vidro, ele olhou para dentro. O sargento obeso assistia televisão sentado na poltrona, com os pés numa banqueta. Pelo som que se ouvia de fora, especialmente o ritmo acelerado da voz do apresentador, o ajudante do general estava vendo um jogo de beisebol. Jason examinou com cuidado tudo que podia ver da sala, o estilo rústico, com uma profusão de tons de marrom e vermelho, móveis escuros, cortinas xadrez, confortável e masculina, uma casa de campo agradável. Não viu nenhuma arma, nem o típico rifle antigo sobre a lareira, nenhuma automática 45 comum com o sargento ou perto da poltrona. O ajudante não estava preocupado com sua segurança imediata, o que era fácil de entender. A propriedade do general Norman Swayne era totalmente segura — cerca, portões, patrulhas e os cães treinados para ataque em todos os pontos de entrada. Bourne examinou o rosto gordo do sargento. Que segredos escondia aquela cabeça enorme? Ia descobrir. Delta Um da Medusa ia descobrir, nem que tivesse dei abrir aquele crânio. Jason afastou-se da janela e foi até a porta da casa. Bateu duas vezes com a mão esquerda, segurando na direita a automática não registrada, fornecida por Alex Conklin, o príncipe coroado das operações secretas. — Está aberta, Rachel! — gritou a voz áspera..Bourne girou a maçaneta e empurrou com força a porta que bateu na parede. Entrou na sala.
— Jesus Cristo! — rugiu o sargento, tirando as pernas pesadas da banqueta e erguendo o corpo maciço da poltrona. — Você!... Você é um maldito fantasma! Você está morto! — Tente outra vez — disse Delta Um da Medusa. — O nome é Flannagan, certo? É o nome que me vem à mente. — Você está morto! — repetiu o ajudante do general, aos berros, com os olhos arregalados de pânico. — Você foi morto em Hong Kong!... há quatro, cinco anos! — Vejo que tem seus registros... — Nós sabemos... eu sei. — Então tem contatos nos lugares certos. — Você é Bourne! — Evidentemente ressuscitado, pode dizer assim. — Eu não acredito! — Acredite, Flannagan. Vamos falar sobre o “nós”. Sobre a Mulher Serpente, para ser mais exato. — É você! O homem que Swayne chama de Cobra! — Uma serpente. — Eu não entendo... — É confuso. — Você é um dos nossos! — Eu era. Também fui expulso. Podemos dizer que voltei como uma cobra. O sargento olhou apavorado para a porta, depois para as janelas. — Como entrou aqui? Onde estão os guardas? Os cães? Jesus! Onde eles estão? — Os cães estão dormindo nos canis, por isso dei a noite de folga para os guardas. — Você deu...? Os cães estão soltos? — Não estão mais. Foram convencidos a repousar um pouco. — Os guardas — os malditos guardas! — Foram convencidos a ir embora. O que eles pensam que está acontecendo aqui esta noite é
mais confuso ainda. — O que você fez — o que está fazendo? — Acabei de dizer. Vamos conversar, sargento Flannagan. Quero notícias recentes sobre antigos companheiros.O homem apavorado afastou-se da poltrona. — Você é o maníaco que eles chamavam de Delta antes de começar a agir por conta própria! — exclamou ele, num murmúrio rouco. — Havia uma fotografia — você estava deitado numa laje, coberto por um lençol todo manchado de sangue dos ferimentos de bala. O rosto estava descoberto, os olhos abertos, os orifícios de bala sangrando ainda na sua testa e no pescoço... Eles me perguntaram quem era e eu disse, “É Delta. Delta Um dos ilegais”, e eles disseram, “Não, não é. É Jason Bourne, o matador, o assassino”, então eu disse, “Então os dois são a mesma pessoa porque esse homem é Delta — eu o conheci”. Eles me agradeceram e me mandaram voltar para os outros. — “Eles” quem? — Um pessoal de Langley. O que falou era manco, e anda com uma bengala. — E “os outros” — para os quais o mandaram voltar? — Uns 25 ou trinta do antigo grupo de Saigon. — Comando Saigon? — Isso mesmo. — Homens que trabalhavam com nosso grupo, os “ilegais”? — A maioria, sim, isso mesmo. — Quando foi isso? — Pelo amor de Deus, eu já disse! — rugiu o ajudante em pânico. — Há quatro ou cinco anos! Eu vi a fotografia — você estava morto. — Apenas uma fotografia — disse Bourne em voz baixa, olhando fixamente para o sargento. — Você tem boa memória. — Você encostou uma arma na minha cabeça. Trinta e três anos, duas guerras e 12 missões de combate e ninguém jamais fez isso comigo — ninguém a não ser você... E, pode crer, eu tenho boa memória. — Acho que compreendo. — Pois eu não entendo droga nenhuma! Você estava morto! — Já disse isso. Mas não estou, o que acha? Ou talvez esteja. Talvez isto seja um pesadelo que o
atormenta depois de vinte anos de mentiras. — Que conversa idiota é essa? Que diabo... — Não se mexa! — Não estou me mexendo! De repente ouviram um estampido ao longe. Um tiro! Jason girou o corpo... e o instinto o fez continuar girando! Uma volta completa! O enorme ajudante do general lançou-se sobre ele, e suas mãos imensas atingiram o ombro de Delta Um como aríetes. Jason acertou um pontapé na altura dos rins do brutamontes, a ponta do seu sapato penetrando na carne, e ao mesmo tempo acertou o pescoço do homem com o cano da automática. Flannagan caiu para a frente e esparramou-se no chão. Jason deu um pontapé na cabeça do homem caído, silenciando-o. O silêncio foi quebrado pelos gritos histéricos e contínuos da mulher que corria para a casa do sargento. A mulher do general Norman Swayne entrou na sala e parou atordoada, agarrando o espaldar da poltrona, sem poder controlar o pânico. — Ele está morto! — exclamou ela com voz estridente, caindo para a frente e derrubando a cadeira, com os braços estendidos para o amante. — Ele se matou, Eddie. Oh, meu Deus, ele se matou! Jason Bourne, que estava agachado, levantou-se e caminhou para a porta daquela casa estranha que guardava tantos segredos. Calmamente, olhando para seus dois prisioneiros, ele a fechou. A mulher chorava e tremia, mas não de dor, de medo. O sargento piscou os olhos e ergueu a cabeça enorme. Se havia alguma expressão no seu rosto era um misto de fúria e confusão.
Capítulo11 — NÃO TOQUEM em nada — ordenou Bourne a Flannagan e Rachel Swayne, quando entraram na sala do general, com as paredes cobertas de fotografias. Vendo o corpo do velho soldado caído para trás, na cadeira, arma ainda na mão estendida, e o horror da parte de trás da cabeça arrancada pela bala, a mulher caiu de joelhos, com convulsões, como se fosse vomitar. O sargento a segurou por um braço, com os olhos esgazeados fixos nos restos do general Norman Swayne. — Cretino maluco — murmurou Flannagan com voz tensa e quase inaudível. Depois, imóvel, com os músculos do rosto pulsando, rugiu. — Seu louco filho de uma cadela! Para que fez isso, por quê? O que fazemos agora? — Você chama a polícia, sargento — respondeu Jason. — O quê? — berrou o homem, voltando-se para Bourne. — Não! — gritou a Sra. Swayne, levantando-se. — Não podemos fazer isso! — Acho que não têm escolha. Vocês não o mataram. Podem tê-lo levado ao suicídio, mas não o mataram. — De que diabo está falando? — perguntou Flannagan zangado. — É melhor uma suja tragédia doméstica do que uma investigação mais ampla, não acha? Não é segredo que vocês têm um caso que — bem, que não é segredo para ninguém. — Ele não ligava a mínima para o “nosso caso” e isso também não era segredo para ninguém. — Ele nos encorajava sempre que podia — disse Rachel Swayne, com um gesto hesitante ajeitando a saia do vestido e aos poucos recuperando a calma. Disse para Bourne com os olhos fixos no amante. — Ele estava sempre nos incentivando, deixando-nos a sós às vezes durante dias... Temos de ficar aqui? Meu Deus, estive casada com esse homem durante 26 anos. Na certa deve compreender... isto é horrível para mim! — Precisamos acertar umas coisas — disse Bourne. — Não aqui, por favor. Na sala de estar. É no outro lado do corredor. Podemos falar na sala. A Sra. Swayne, de repente controlada, saiu da sala de trabalho. O ajudante do general olhou para o corpo ensangüentado, fez uma careta e saiu também. Jason os observava. — Fiquem no corredor, onde eu possa vê-los e não se movam! — gritou ele, aproximando-se da
mesa, examinando um objeto depois do outro, anotando mentalmente as últimas coisas que Swayne havia visto antes de levar a automática à boca. Alguma coisa estava errada. À direita da folha verde de mata-borrão havia um bloco de notas do Pentágono, com o nome e a patente de Swayne impressos sob as armas do Exército dos Estados Unidos, À esquerda da borda de couro do mata-borrão estava uma caneta de ouro, que parecia usada recentemente, mas sem recolher a ponta de prata. Bourne inclinou-se sobre a mesa, sentindo o cheiro acre da pólvora e da carne queimada, e examinou o bloco de notas. Não havia nada escrito, mas Jason retirou as três primeiras folhas e as guardou no bolso da calça. Recuou, achando ainda que havia algo estranho... O que era? Olhou em volta e nesse momento o sargento Flannagan apareceu na porta. — O que está fazendo? — perguntou ele, desconfiado. — Estamos à sua espera. — Sua amiga pode achar difícil ficar aqui, mas eu não acho. Não posso achar, tenho de examinar muita coisa. — Pensei que disse para não tocarmos em nada. — Olhar não é tocar, sargento. A não ser que tire alguma coisa, e nesse caso ninguém vai saber, porque ela não estará aqui. — Bourne aproximou-se de uma mesa de centro com tampo de cobre, do tipo que se compra nos bazares da Índia e do Oriente Médio. A mesa estava entre duas poltronas na frente da pequena lareira e sobre ela havia um cinzeiro de cristal cheio de pontas de cigarro. Jason apanhou o cinzeiro e voltou-se para Flannagan. — Por exemplo, sargento, este cinzeiro. Eu toquei nele, minhas impressões digitais estão no vidro, mas ninguém vai saber porque vou levá-lo comigo. — Para quê? — Porque senti o cheiro de alguma coisa... quero dizer, realmente senti o cheiro, nada a ver com instintos. — De que diabo está falando? — Fumaça de cigarro, é disso que estou falando. Fica no ar muito mais tempo do que se pensa. Pergunte a alguém que tentou deixar de fumar várias vezes. — E daí? — Daí que vamos ter uma conversa com a mulher do general. Vamos todos conversar. Venha, Flannagan, vamos brincar de mostrar e dizer. — Sente-se muito corajoso com essa arma no bolso, certo? — Andando, sargento! Rachel Swayne empertigou-se na cadeira e com um movimento da cabeça lançou para trás o cabelo escuro com reflexos. — Isto é uma ofensa — disse ela, fixando os olhos acusadores em Bourne.
— Sem dúvida — concordou Jason, balançando a cabeça afirmativamente. — Acontece que é também verdade. Há cinco pontas de cigarro no cinzeiro, todas com batom. — Sentado de frente para ela, pôs o cinzeiro na mesa ao lado da cadeira. — Você estava lá quando ele se matou, quando ele levou a arma à boca e puxou o gatilho. Talvez tenha pensado que ele não iria até o fim, que era mais uma das suas ameaças histéricas — seja como for, não fez nada para impedi-lo. Por que faria? Para você e Eddie era a solução lógica e sensata. — Absurdo! — Quer saber, Sra. Swayne, para ser franco, essa não é a palavra certa. Não convence, como não convence quando diz “é uma ofensa”... Nenhuma dessas frases combina com você, Rachel. Está imitando outras pessoas — provavelmente pessoas ricas, freguesas fúteis do cabeleireiro onde trabalhava há muitos anos, em Honolulu. — Como se atreve...? — Ora, vamos, isso é ridículo, Rachel. Nem tente essa de “como se atreve”, não funciona. Com sua fala arrastada e nasal vai mandar cortar minha cabeça por um decreto real? — Deixe-a em paz! — gritou Flannagan, de pé ao lado da Sra. Swayne. — Você tem a arma, mas não precisa fazer isso!... Ela é uma boa mulher, uma mulher danada de boa e era tratada como lixo por todos os artistas de merda desta cidade. — Como é possível? Ela era a mulher do general, a dona da mansão, não era? Não é? — Ela foi usada... — Sempre me ridicularizaram, sempre riram de mim, Sr. Delta — exclamou Rachel Swayne, segurando com força o braço da poltrona. — Quando não estavam procurando me conquistar. O que acha de ser um pedaço especial de carne oferecida como sobremesa muito especial no fim do jantar? — Acho que não gostaria nem um pouco. Acho que me recusaria. — Pois eu não podia recusar! Ele me obrigava. — Ninguém pode obrigar alguém a fazer uma coisa, dessas. — É claro que pode, Sr. Delta — disse a mulher do general, inclinando-se para a frente, com a fazenda da blusa esticada pelos seios fartos, o cabelo escondendo em parte o rosto não mais jovem, mas ainda sensual e suave. — Imagine uma jovem que não terminou o curso primário, no oeste da Virgínia, quando as companhias fecharam as minas de carvão e ninguém não tinha comida — perdão, ninguém tinha comida. A gente pega o que pode e foge e foi o que eu fiz. Dormi com dezenas de homens, de Aliquippa até o Havaí, mas cheguei lá e aprendi uma profissão. Foi onde conheci o Grande Homem e me casei com ele, mas nunca tive nenhuma ilusão, nunca. Especialmente depois que ele voltou do Vietnã, compreende? — Não estou muito certo, Rachel.
— Você não precisa explicar nada, garota! — rugiu Flannagan. — Não, mas eu quero, Eddie! Estou cheia de toda essa merda, certo? — Veja como fala! — O caso é que não sei de nada, Sr. Delta. Mas posso perceber as coisas, se é que me compreende. — Pare com isso, Rachel! — exclamou o ajudante do general. — Ora, Eddie, foda-se! Você também não é muito inteligente. Este Sr. Delta pode achar uma saída para nós... Voltar para as ilhas, certo? — Absolutamente certo, Sra. Swayne. — Você sabe o que é este lugar...? — Cale a boca! — berrou Flannagan, interrompendo o movimento desajeitado para a frente quando uma bala raspou o assoalho entre seus pés. A mulher gritou. Quando se calou, Bourne disse: — O que é este lugar, Sra. Swayne? — Pare com isso — interrompeu outra vez o sargento, mas sem gritar. Era uma súplica, a súplica de um homem forte. Olhou para a mulher e depois para Jason. — Escute, Bourne ou Delta, ou seja lá quem for, Rachel está certa. Você pode ser a nossa salvação — não há nada mais para nós aqui — portanto, o que tem para oferecer? — Em troca do quê? — Digamos que podemos lhe contar tudo que sabemos sobre este lugar... e eu digo onde pode saber muito mais. Como pode nos ajudar? Como podemos sair daqui e voltar para as ilhas do Pacífico sem que nossos nomes e nossos retratos apareçam em todos os jornais? — Está pedindo muito, sargento. — Que diabo, ela não o matou — nós não o matamos, você mesmo disse! — Certo; e pouco me importa se o mataram ou não, se foram responsáveis ou não. Tenho outras prioridades. — Assim como “rever velhos companheiros” ou seja lá o que for? — Isso mesmo. Tenho de cobrar umas dívidas. — Eu não compreendo...
— Não precisa compreender. — Você estava morto! — disse Flannagan, confuso, falando rapidamente. — Delta Um dos ilegais era Bourne e Bourne estava morto. Langley nos provou isso! Mas você não está morto! — Fui apanhado, sargento! É tudo que precisa saber — isso e o fato de que estou trabalhando sozinho. Tenho de cobrar algumas dívidas, mas estou completamente sozinho. Preciso de informação e rapidamente! Flannagan balançou a cabeça, atônito. — Bem... talvez eu possa ajudar nisso — disse em voz baixa e hesitante — melhor do que ninguém. Fui designado para uma missão especial, tive de tomar conhecimento de muita coisa, coisas que normalmente jamais revelariam a alguém como eu. — Isso parece as primeiras notas da canção de um condenado, sargento. Qual é sua missão especial? — De ama-seca. Há dois anos, Norman começou a se desintegrar. Eu o controlei e me deram um número de telefone em Nova York para o caso de ter algum problema. — Sendo que esse número faz parte da informação que pode me dar. — Isso e algumas placas de carros que anotei, para o caso de precisar. — Para o caso de alguém resolver que seus serviços de ama-seca não eram mais necessários — completou Bourne. — Mais ou menos isso. Esses emproados jamais gostaram de nós — Norman não percebia, mas eu sim. — Nós? Você e Rachel Swayne? — O uniforme. Eles nos olham do alto da sua condição de civis como se fôssemos um lixo necessário, e não há dúvida de que somos necessários. Eles precisavam de Norman. Todos o desprezavam, mas precisavam dele. Os soldadinhos não poderiam dirigir a coisa. Albert Armbruster, presidente da Comissão Federal de Comércio. Medusa — os herdeiros civis. — Quando diz que anotou os números das placas, significa que não tomava parte nas reuniões que se realizavam — se realizam — aqui regularmente. Quero dizer, você não era um dos convidados. — Está louco? — exclamou Rachel Swayne com voz estridente, respondendo à pergunta de Jason. — Sempre que havia uma reunião de verdade, e não uma droga de jantar de bêbados, Norman me mandava ficar lá em cima, ou, se quisesse, ir assistir televisão na casa de Eddie. Eddie não podia sair de casa. Não éramos bastante bons para seus amigos emproados e cretinos! Sempre foi assim, há muitos
anos... Como eu disse, ele nos atirava um para o outro. — Começo a compreender — pelo menos acho que compreendo. Mas você tem os números das placas, sargento. Como conseguiu? Se ficava confinado em sua casa? — Não consegui, meus guardas anotaram para mim. Eu dizia que era um procedimento confidencial de segurança. Nenhum deles se opôs. — Compreendo. Você disse que Swayne começou a se desintegrar há alguns anos. Como? De que modo? — Como esta noite. Sempre que acontecia alguma coisa fora do comum, ele ficava imobilizado. Não queria tomar decisões. Qualquer referência, por mais distante que fosse, à Mulher Serpente e ele enfiava a cabeça na areia até passar o perigo. — E esta noite? Eu vi vocês dois discutindo... pareceu-me que o sargento estava dando ordens ao general. — Está certo. Eu estava. Norman entrou em pânico — por sua causa, por causa do homem que ele chamava de Cobra, que estava revivendo o que tinha acontecido em Saigon, há vinte anos. Ele queria que eu estivesse com ele quando você chegasse, e eu me neguei. Disse que eu não era louco e só faria isso se fosse. — Por quê? Por que um ajudante precisa estar louco para ficar ao lado do seu general? — Pela mesma razão que os sargentos não são convidados para as salas de situação, onde as altas patentes elaboram suas estratégias. Estamos em níveis diferentes, é isso. — O que significa que há limites ao que você sabe. — Isso mesmo. — Mas você fez parte de Saigon há vinte anos, parte da Mulher Serpente — que diabo, sargento, você era Medusa, você é Medusa. — Isso não vale nada, Delta. Eu limpo o chão e eles tomam conta de mim. Sou apenas um faxineiro de uniforme. Quando chegar a hora de tirar este uniforme, vou silenciosamente para a aposentadoria com a boca fechada, ou saio daqui num saco de plástico. Tudo é muito claro. Sou descartável. Bourne observava o sargento atentamente, notando os olhares rápidos que ele lançava para a mulher de Swayne, como se esperasse ser aplaudido ou receber a ordem silenciosa de calar a boca. O ajudante do general estava dizendo a verdade ou era um ótimo ator. — Então parece-me — disse Jason, finalmente — que esta é a hora de você se aposentar. Posso fazer isso, sargento. Você pode desaparecer rapidamente com a boca fechada e com tudo que ganhou por seu trabalho de faxineiro. Um devotado ajudante de general, com mais de trinta anos de serviço,
resolve se aposentar quando seu superior e amigo tragicamente comete suicídio. Ninguém vai lhe fazer perguntas... Essa é a minha oferta. Flannagan olhou outra vez para Rachel Swayne. Ela balançou a cabeça afirmativamente e voltou-se para Bourne. — Que garantia temos de que podemos fazer nossas malas e ir embora? — perguntou. — Não precisam tratar da baixa do sargento e a fixação da sua pensão? — Fiz Norman assinar os papéis há 18 meses — disse o sargento. — Fui designado para o posto permanente no escritório dele no Pentágono e cedido para trabalhar em sua residência. Só falta datar, assinar e indicar um endereço de caixa postal que Rachel e eu já decidimos onde será. — Isso é tudo? — Talvez mais três ou quatro telefonemas. Para o advogado de Norman que vai tratar de tudo aqui, telefonar para o canil para que venham apanhar os cães, para a seção de veículos do Pentágono — e um último para Nova York. Depois disso, o Aeroporto Dulles. — Deve estar pensando nisso há muito tempo, há muitos anos... — Não temos pensado em outra coisa, Sr. Delta — confirmou a mulher do general. — Como ele disse, estamos quites. — Porém, antes de assinar os papéis e dar os telefonemas — acrescentou Flannagan — tenho de saber que estaremos livres para sair agora. — Quer dizer sem polícia, nem jornais, nenhum envolvimento com o que aconteceu esta noite — simplesmente vocês não estavam aqui. — Você disse que eu estava pedindo muito. Qual a força das cobranças que vai fazer? — Vocês simplesmente não estavam aqui — repetiu Bourne em voz lenta e baixa, olhando para o cinzeiro de cristal com as pontas de cigarro manchadas de batom. Voltou-se para o ajudante do general. — Vocês não tocaram em nada. Nada os liga fisicamente a este suicídio... Estão realmente preparados para partir — digamos, dentro de duas horas? — Trinta minutos, Sr. Delta — respondeu Rachel. — Meu Deus, vocês viviam aqui, os dois... — Não queremos nada desta vida além do que temos — disse Flannagan com voz firme. — Esta propriedade é sua, Sra. Swayne. — Nada disso. Vai passar para uma fundação. Pergunte ao advogado. O que eu receber, se receber alguma coisa, ele manda para mim. Só quero sair — sair daqui.
Jason olhou para aquele casal tão estranhamente combinado. — Então, nada os impede de sair. — Como vamos saber disso? — insistiu Flannagan, dando um passo para a frente. — Vão ter de confiar em mim, mas, acreditem, posso fazer isso. Por outro lado, vejam a alternativa. Digamos que fiquem aqui. Não podem fazer com que ele compareça em Arlington amanhã nem nunca. Mais cedo ou mais tarde alguém virá procurá-lo. Vai haver perguntas, investigações e podem estar certos, a mídia vai cair em cima de vocês com suas suposições perigosas. Seu “caso” vai ser descoberto — que diabo, até os guardas comentavam — e os jornais, as revistas e a televisão vão se fartar... Vocês querem isso? Ou tudo vai acabar dentro do saco de plástico que você mencionou? O sargento e sua amada entreolharam-se. — Ele tem razão, Eddie. Com ele temos uma chance, sem ele, não temos nenhuma. — Parece tão fácil — disse Flannagan ofegante, olhando para a porta. — Como vai arranjar tudo? — Isso é assunto meu — respondeu Bourne. — Dê-me todos os telefones, assim só terá de telefonar para Nova York e no seu lugar eu telefonaria da tal da ilha do Pacífico para onde pretendem ir. — Você está louco! Assim que souberem de tudo, eu estou no tapete de Medusa — Rachel também! Vão querer saber o que aconteceu. — Conte a verdade, pelo menos uma variação da verdade, e é capaz de ganhar um prêmio. — Você é doido! — Não estava doido no Vietnã, sargento. Nem em Hong Kong e também não estou agora... Você e Rachel chegaram em casa; viram o que tinha acontecido, fizeram as malas e partiram — porque não queriam ser interrogados e porque os mortos não podem falar. Assine seus papéis com a data de ontem, ponha no correio e deixe o resto comigo. — Eu não... — Não tem escolha, sargento — disse Jason irritado, levantando-se. — E não quero perder mais tempo! Se quer que eu vá embora, eu vou — vocês que se arranjem. — Bourne caminhou para a porta. — Não, Eddie, não o deixe ir! Temos de fazer as coisas do modo dele, temos de arriscar! Do contrário estamos mortos, você sabe disso. — Está bem! Está bem... Fique calmo, Delta. Vamos fazer o que você quer. Jason parou e voltou-se para ele. — Tudo que eu mandar, sargento, ao pé da letra.
— Está certo. — Primeiro, eu e você vamos até sua casa, enquanto Rachel vai fazer as malas. Você me dá toda a informação que possui — números de telefones e placas, todos os nomes que puder lembrar, tudo que eu pedir. Está certo? — Está. — Vamos então. Sra. Swayne, sei que vai querer levar muita coisa, mas... — Esqueça, Sr. Delta. Não tenho nada que queira lembrar. Tudo que eu realmente queria já foi tirado deste buraco e está guardado a milhares de quilômetros daqui. — Vocês estavam mesmo preparados! — É claro que estávamos. Você compreende, a hora tinha de chegar, de um modo ou de outro, sabe o que quero dizer? — Rachel passou rapidamente pelos dois homens e saiu para o corredor. Parou e voltou para o sargento Flannagan com um sorriso, os olhos brilhantes, e encostou a mão no rosto dele. — Ei, Eddie — disse ela em voz baixa. — Vai mesmo acontecer. Vamos viver, Eddie. Sabe o que quero dizer? — Sei, meu bem, eu sei. Quando caminhavam no escuro para a casa de Flannagan, Bourne disse: — Falei sério quando disse que não posso perder tempo, sargento. Comece a falar. O que vai me dizer sobre esta fortaleza de Swayne? — Está pronto? — O que quer dizer? É claro que estou pronto. — Mas não estava. Parou de repente no gramado, quando Flannagan começou a falar. — Para começar, é um cemitério. Alex Conklin recostou-se na cadeira atrás da sua mesa, com o telefone na mão, atônito, com a testa franzida, sem achar uma resposta racional para a espantosa informação de Jason. Tudo que pôde dizer foi: — Eu não acredito! — Em que parte você não acredita? — Não sei. Em tudo, eu acho... o cemitério. Mas tenho de acreditar, certo? — Você não queria acreditar em Londres ou Bruxelas também, nem no comandante da Sexta Frota ou no guardião dos códigos secretos em Langley. Estou só acrescentando à lista... A questão é, quando você descobrir quem são eles. podemos agir.
— Você tem de voltar ao começo, minha cabeça está uma confusão. O número do telefone em Nova York, as placas... — O corpo, Alex! Flannagan e a mulher do general! Eles estão a caminho, esse foi o trato e você tem de providenciar sua segurança. — Assim, sem mais nem menos? Swayne comete suicídio e dizemos tchau para as únicas duas pessoas capazes de responder algumas perguntas. É mais lunático do que tudo que me contou! — Não temos tempo para negociações — além disso, ele não pode mais responder a nenhuma pergunta. Agiam em níveis diferentes. — Puxa, cara, isso é realmente muito esclarecedor. — Faça o que eu disse. Deixe que vão embora. Podemos precisar dos dois mais tarde. Conklin suspirou, com evidente indecisão. — Tem certeza? É muito complicado. — Faça isso! Alex, não dou a mínima para complicações ou violações, nem para todas as manipulações que você pode imaginar! Eu quero Carlos! Estamos estendendo uma rede e podemos pescá-lo — eu posso pescá-lo! — Tudo bem, tudo bem. Há um médico em Falls Church que já trabalhou para nós em operações especiais. Vou procurá-lo. Ele sabe o que deve fazer. — Ótimo — disse Bourne com a mente funcionando a mil. — Agora ligue o gravador. Vou dizer tudo que Flannagan me contou. Depressa, tenho muito que fazer. — Está ligado, Delta Um. Lendo a lista que havia feito na casa de Flannagan, Jason falou rapidamente, enunciando com cuidado para que não houvesse nenhuma confusão na gravação. Havia sete nomes de convidados freqüentes aos jantares do general, sem nenhuma garantia quanto à veracidade ou à grafia, mas com amplas e detalhadas descrições. Vinham depois os números das placas dos carros, todos anotados durante as reuniões quinzenais mais sérias na casa de Swayne. Em seguida, os números dos telefones do advogado de Swayne, de todos os guardas da propriedade, dos abrigos dos cães e da extensão do Pentágono encarregada de ceder os veículos. Finalmente, o número não catalogado do telefone em Nova York, sem nome, apenas uma secretária eletrônica, — Isso tem de ser prioridade número um, Alex. — Vamos descobrir — disse Conklin, entrando na gravação. — Vou telefonar para os canis e falar pentagonês — o general vai partir para um posto secreto e pagaremos o dobro para tirar os animais da propriedade amanhã bem cedo. A propósito, abra os portões... As placas não são problema e vou pedir a Casset para examinar os nomes no computador, sem que DeSole saiba.
— E Swayne? Temos de manter segredo sobre o suicídio por algum tempo. — Quanto tempo? — Como diabo vou saber? — disse Jason irritado. — Até descobrirmos quem são eles e eu puder alcançá-los — ou você os alcance — e juntos podermos fazer rolar a onda de pânico. Nesse ponto imaginamos a solução para Carlos. — Palavras — disse Conklin sem entusiasmo. — Você pode estar falando de dias, uma semana talvez, talvez mais. — Então é sobre isso que estou falando. — Então é melhor falarmos com Peter Holland... — Não, ainda não. Não sabemos o que ele pode fazer e não vou lhe dar a chance de ficar no meu caminho. — Tem de confiar em alguém além de mim, Jason. Posso enganar o doutor durante 24 ou 48 horas — talvez — mas não mais do que isso. Ele vai exigir autorização do alto. Não esqueça, vou ter Casset reclamando por causa de DeSole. — Dê-me dois dias, consiga dois dias! — Enquanto procuro esclarecer toda esta informação e seguro Charlie, e invento uma porção de mentiras para Peter, dizendo que estamos fazendo progresso, localizando os possíveis mensageiros do Chacal no Mayflower Hotel — nós achamos... É claro que não estamos fazendo nada disso porque estamos arriscando nossas credenciais tratando de uma conspiração completamente maluca engendrada há vinte anos em Saigon, que envolve só Deus sabe o quê, embora o quem seja impressionante. Sem tocar em “statuses” — ou será statae — ficamos sabendo agora que eles têm um cemitério particular no terreno da casa do general chefe da intendência do Pentágono, que acaba de dar um tiro nos miolos, um incidente de menor importância que estamos escondendo... Jesus, Delta, vá devagar! Os mísseis estão colidindo! Embora estivesse ao lado do corpo do general Swayne. Jason sorriu. — É com isso que eles estão contando, não é? Um cenário que podia ter sido criado pelo próprio nosso amado Santo Alex. — Só estou nisso pelo passeio, não estou dirigindo o carro... — E o que me diz do médico? — interrompeu Bourne. — Você está fora das operações há quase cinco anos. Como sabe que ele está ainda na ativa? — Eu o vejo uma vez ou outra. Somos fanáticos por museus. Há uns dois meses, na Galeria Corcoran, ele queixou-se de não ter muito que fazer ultimamente.
— Corrija isso esta noite. — Vou tentar. O que você vai fazer? — Vou examinar delicada e exaustivamente esta sala. — Luvas? — Cirúrgicas, é claro. — Não toque no corpo. — Só nos bolsos — com muito cuidado... A mulher de Swayne está descendo a escada. Telefono outra vez quando eles partirem. Entre em contato com aquele médico! Ivan Jax, formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, com residência e prática cirúrgica no Massachusetts General, Colégio de Cirurgiões, nascido na Jamaica e “consultor” da CIA por indicação de um amigo negro com o estranho nome de Cactus, passou com o carro pelos portões da propriedade do general Swayne em Manassas, Virgínia. Havia certos momentos, pensou Jax, em que desejava jamais ter conhecido Cactus, e este era um deles, mas fora isso, jamais lamentava o fato de Cactus ter entrado em sua vida. Graças aos “papéis mágicos” do velho homem, Jax conseguira tirar o irmão e a irmã da Jamaica durante os anos de opressão do governo de Manley, quando os profissionais liberais eram proibidos de deixar o país, e ainda mais levando algum dinheiro.Cactus, por meio de permissões artisticamente falsificadas, havia tirado os dois adultos do país, ao mesmo tempo transferindo seu dinheiro para um banco em Lisboa. O velho falsário só precisou de vários formulários em branco roubados, incluindo conhecimentos de embarque de importação-exportação, os passaportes das duas pessoas, fotografias separadas e cópias de várias assinaturas de homens que ocupavam cargos importantes — facilmente conseguidas por meio dos milhares de editos burocráticos publicados pela imprensa controlada pelo governo. O irmão de Ivan era agora um rico advogado em Londres e a irmã trabalhava em pesquisas, em Cambridge. Sim, ele devia a Cactus, pensou o Dr. Jax parando sua caminhonete na frente da casa, e quando o velho amigo lhe pediu para “ser consultor” de Langley, há sete anos, ele aceitou. Um ótimo trabalho de consultoria! Porém, havia outros pontos altos resultantes da associação silenciosa de Ivan com a Agência. Quando sua ilha derrubou Manley e Seaga tomou o poder, umas das primeiras propriedades “confiscadas” devolvidas aos donos foram as da família Jax, em Mondego Bay e em Port Antonio. Foi obra de Conklin, mas sem Cactus, Conklin jamais faria parte do círculo de amigos de Ivan... Mas por que Alex tinha de chamá-lo nesta noite? Era seu 12° aniversário de casamento e as crianças estavam na casa de amigos para que o casal pudesse ficar sozinho, comemorando com as costeletas grelhadas, à moda da Jamaica — preparadas pelo único que sabia, ou seja, o Chefe Ivan — muito rum escuro Overton e um banho erótico, sem roupa, na piscina. Droga de Alex! O maldito solteirão que só podia reagir a um aniversário de casamento dizendo, “Que diabo! Vocês completaram mais um ano, que importância tem um dia ou dois a mais ou a menos? Comemore amanhã, preciso de você esta noite”. Assim, Ivan mentiu para a mulher, ex-enfermeira chefe do Massachusetts General. Disse que a vida de um paciente estava na balança — estava, mas já pendia para o lado errado. Ela respondeu que
talvez seu próximo marido tivesse mais consideração pela vida dela, mas o sorriso e o olhar compreensivo negavam as palavras. Ela conhecia a morte. Vá depressa, meu querido! Jax desligou o motor, apanhou a maleta de médico e saiu do carro. A porta se abriu e apareceu a silhueta de um homem alto com roupa escura sem brilho. — Sou seu médico — disse Ivan, subindo os degraus da entrada. — Nosso amigo comum não me disse seu nome, mas acho que não devo saber. — Acho que não — concordou Bourne, estendendo a mão coberta pela luva cirúrgica. — E acho que nós dois estamos certos — disse Jax, apertando a mão do estranho. — A luva que está usando não me é estranha. — Nosso amigo comum não me disse que você era negro. — Isso é problema para você? — Cristo, não! Gosto mais do nosso amigo por isso. Provavelmente nem lhe ocorreu falar no assunto. — Acho que vamos nos dar bem. Vamos então, sem-nome. Bourne ficou a três metros da mesa enquanto Jax hábil e rapidamente fazia o que tinha de fazer no corpo, depois de enfaixar a cabeça de Swayne com gaze. Sem explicar, cortou pedaços da roupa do general para examinar certas partes do corpo. Finalmente rolou o corpo da cadeira para o chão. — Você já terminou o que tinha de fazer aqui? — perguntou, olhando para Jason. — Fiz uma limpeza, doutor, se é isso que quer saber. — Geralmente é o que se faz... Quero esta sala selada. Ninguém entra depois que sairmos daqui, até nosso amigo dar ordem em contrário. — Eu não posso garantir isso — disse Bourne. — Então ele terá de garantir. — Por quê? — Seu general não cometeu suicídio, sem-nome. Ele foi assassinado.
Capítulo12 — A MULHER — disse Alex Conklin, no telefone. — De tudo que me contou, tem de ser a mulher de Swayne. Jesus! — Isso não muda nada, mas parece que é verdade — concordou Bourne, sem entusiasmo. — A mulher tinha motivos para matá-lo. Mas se o matou, não contou para Flannagan. e isso não faz sentido. — Não, não faz... — Depois de uma pausa, Conklin disse, rapidamente: — Quero falar com Ivan. — Ivan? O seu médico? O nome dele é Ivan? — E daí? — Nada. Ele está lá fora empacotando a “mercadoria” como ele disse. — Na caminhonete? — Isso mesmo. Carregamos o corpo... — Por que ele está tão certo de que não foi suicídio? — interrompeu Alex. — Swayne estava drogado. Ele disse que telefona depois para você e explica tudo. Quer sair daqui e deu ordens para que ninguém entre nesta sala depois que sairmos — depois que eu sair — até você contar para a polícia. Vai lhe dizer isso também. — Cristo, deve ser um espetáculo horrível. — Não é bonito. O que você quer que eu faça? — Feche as cortinas, se existe alguma, verifique as janelas e, se for possível, tranque a porta. Se não puder trancar, procure... — Encontrei um chaveiro no bolso de Swayne — interrompeu Jason. — Uma das chaves serve na porta. — Ótimo. Quando sair limpe todas as impressões digitais da porta. Procure algum polidor de móveis ou um spray para poeira. — Isso não vai impedir que entrem aqui. — Não, mas se alguém entrar, podemos conseguir algumas digitais. — Você caprichando nas minúcias...
— É claro que estou — concordou o ex-agente. — Tenho também de arranjar um jeito de selar toda a propriedade sem usar os homens de Langley, e, além disso, driblar o Pentágono, no caso de um daqueles 20 mil e tantos tentar falar com Swayne e isso inclui o pessoal do escritório dele e provavelmente uma centena de compradores e vendedores que tratavam de negócios com ele todo dia... Cristo, é impossível! — É perfeito — observou Bourne e viu o Dr. Ivan Jax aparecer na porta. — Nosso pequeno jogo de “desestabilização” vai começar aqui mesmo na “fazenda”. Você tem o telefone de Cactus? — Não aqui. Acho que está guardado numa caixa de sapatos, em casa. — Telefone para Mo Panov. Ele tem. Depois diga a Cactus para ligar para cá de um telefone público. — Em que diabo está pensando? Cada vez que ouço o nome daquele velho fico nervoso. — Você disse que eu precisava confiar em alguém mais, além de você. Estou fazendo isso. Fale com ele, Alex. — Jason desligou o telefone. — Desculpe, doutor... ou talvez, dadas as circunstâncias eu possa usar seu nome. Como vai, Ivan? — Como vai, sem-nome. Prefiro continuar assim. Especialmente agora que o ouvi dizer um outro nome. — Alex?... Não, é claro que não foi Alex, não nosso amigo comum. — Bourne riu baixinho, afastando-se da mesa. — Cactus, certo? — Eu só entrei para perguntar se quer que eu feche os portões — disse Jax, ignorando a pergunta. — Ficaria ofendido se eu dissesse que só me lembrei dele quando você apareceu na porta? — Certas associações são bastante óbvias. Os portões, por favor? — Deve a Cactus tanto quanto eu devo, doutor? — Jason não se moveu, olhando fixamente para o jamaicano. — Devo tanto a ele que jamais poderei pensar em envolvê-lo numa situação como esta. Pelo amor de Deus, ele é um velho, e por mais que Langley queira forjar uma conclusão para o que aconteceu, trata-se de assassinato, um crime com requintes de brutalidade. Não, eu não o envolveria nisto. — Mas eu não sou você. Compreenda, tenho de fazer isso. Cactus jamais me perdoaria se eu não fizesse. — Não dá muito valor a você mesmo, certo? — Por favor, feche os portões, doutor. Quando estiverem fechados posso ativar o alarme no
painel de controle. Jax hesitou, como se não tivesse certeza do que ia dizer. — Escute — começou, falando devagar —, a maioria das pessoas normais tem razões para dizer coisas — para fazer coisas. Minha opinião é que você é mentalmente são. Telefone para Alex se precisar de mim — se o velho Cactus precisar de mim. — Jax afastou-se apressadamente. Bourne voltou-se e examinou a sala. Depois da partida de Rachel e Flannagan, há três horas, ele havia revistado cada centímetro da sala de trabalho do general, bem como o quarto de dormir do velho soldado, no andar superior. Examinou atentamente tudo que pretendia levar e que estava agora sobre a mesa de centro. Três cadernos de espiral com capas de couro marrom, um conjunto de mesa de trabalho. O primeiro era um calendário e agenda, o segundo um livro particular de telefone com nomes e números escritos a tinta. O último era um diário de despesas, quase sem uso. Havia também 11 recados do escritório, anotados em papel comum de bloco de avisos, que Jason encontrara no bolso de Swayne, um marcador de golfe e vários memorandos redigidos no Pentágono. Finalmente havia a carteira do general com uma profusão incrível de credenciais e pouco dinheiro. Bourne pretendia entregar tudo para Alex, na esperança de encontrarem novas pistas, mas pelo que podia ver, não havia nada muito importante, nada dramaticamente ligado à moderna Medusa. Isso o preocupava. Tinha de haver alguma coisa. Aquela era a casa do velho soldado, seu sanctum sanctorum tinha de estar ali dentro! Jason sabia, sentia, mas não encontrava! Recomeçou a revista, não centímetro por centímetro agora, mas milímetro por milímetro. Quatorze minutos mais tarde, quando estava retirando e virando as fotografias na parede atrás da mesa, à direita da janela curva que dava para o gramado, lembrou-se do que Conklin havia dito sobre verificar as janelas e fechar as cortinas para que ninguém de fora pudesse ver o interior da sala. Cristo, deve ser horrível! Não é muito bonito. Não era. Os vidros da janela central estavam manchados de sangue e matéria craniana. E o... pequeno fecho de metal? Estava aberto e a janela também — só um pouco, mas estava aberta. Ajoelhado no sofá na frente da janela, Bourne examinou atentamente a moldura brilhante de cobre e os vidros. Parecia que alguém passara a mão entre os filetes de sangue e tecido secos, alargando e afinando as manchas para formar desenhos irregulares. Então viu, logo abaixo do parapeito, o que impedia que a janela se fechasse. A ponta da cortina da esquerda estava puxada para fora. Jason recuou, intrigado, mas não surpreso. Era exatamente o que estava procurando, a peça que faltava ao complexo quebra-cabeças que era a morte de Norman Swayne. Alguém tinha saído por aquela janela, depois do tiro que estourou a cabeça do general. Alguém que não podia se arriscar a ser visto saindo pela porta da frente. Alguém que conhecia a casa e o terreno... e os cães. Um assassino brutal da Medusa. Malditos! Quem? Quem estava ali? Flannagan... a mulher de Swayne! Eles deviam saber, tinham de saber! Bourne estendeu a mão para o telefone, que começou a tocar antes que ele o alcançasse.
— Alex? — Não, Br’er Rabbit, só um velho amigo, e eu não sabia que estamos dizendo nomes com tanta liberdade. — Não estamos, não devemos estar — disse Jason rapidamente, controlando-se com dificuldade. — Aconteceu uma coisa há poucos momentos — encontrei uma coisa. — Calma, garoto. O que posso fazer por você? — Preciso de você — aqui, onde estou. Pode vir? — Bem, vejamos — Cactus falou com uma risada zombeteira. — Eu devia comparecer a várias reuniões de diretoria, além da Casa Branca que me convidou para o café da manhã dos poderosos... Quando e onde, Br’er Rabbit? — Não sozinho, amigo. Quero mais três ou quatro com você. É possível? — Não sei. No que está pensando? — Aquele cara que me levou para a cidade. Não há outros cidadãos iguais a ele nas vizinhanças? — Para ser franco, a maioria está cumprindo pena, mas acho que posso dar uma espiada no lixo e descobrir alguns. Para quê? — Serviço de guarda. Na verdade, muito simples. Você se encarrega do telefone e eles ficam atrás dos portões trancados, dizendo que se trata de uma propriedade privada, que visitantes não são bem-vindos. Especialmente certos figurões em suas limusines. — Ora, isso acho que vai agradar os irmãos. — Telefone depois, que eu digo como chegar até aqui. Bourne desligou e imediatamente tirou o fone do gancho outra vez. Digitou o número do telefone de Conklin, em Vienna. — Sim? — atendeu Alex. — O doutor estava certo e eu deixei escapar nosso assassino contratado pela Mulher Serpente. — Quer dizer a mulher de Swayne? — Não, mas ela e seu sargento esperto sabem quem foi — tinham de saber quem estava aqui! Apanhe os dois e os detenha. Mentiram para mim, portanto o acordo está cancelado. Quem armou o cenário para este “suicídio” sangrento estava obedecendo ordens do alto escalão de Medusa. Quero esse homem. Ele é o nosso atalho para onde queremos chegar. — Está também fora do nosso alcance.
— Do que está falando? — O sargento e sua amada estão fora do nosso alcance. Eles desapareceram. — Isso é loucura! Se conheço Santo Alex — e eu conheço —, você os manteve sob vigilância desde que saíram daqui. — Eletrônica, não física. Lembre-se, você insistiu para mantermos Langley e Peter Holland longe da Medusa. — O que foi que você fez? — Enviei um alerta geral para os computadores centrais de todos os transportes aéreos internacionais. Às 8:20h desta noite os dois tinham reservas no vôo da Pan Am, das 10:00h, para Londres... — Londres! — interrompeu Bourne. — Eles iam para o outro lado, para o Pacífico. Para o Havaí! — Pois provavelmente é para onde estão indo, porque não apareceram na Pam Am. Quem sabe? — Droga, você devia saber. — Como? Dois cidadãos americanos que voam para o Havaí não precisam de passaporte para entrar no nosso qüinquagésimo estado. Uma carteira de motorista ou o título de eleitor é suficiente. Você disse que eles estavam preparando essa fuga há muito tempo. Um sargento com mais de 30 anos de serviço não teria dificuldade nenhuma para conseguir algumas carteiras de motorista com nomes diferentes. — Mas por quê? — Para despistar quem estivesse atrás deles — como nós, ou talvez alguns medusianos muito poderosos. — Merda! — Quer fazer o favor de não apelar para a vulgata, professor? É vulgata, certo? — Cale a boca, preciso pensar. — Então pense que estamos com os traseiros mergulhados no Ártico sem nenhum aquecedor. Está na hora de procurar Peter Holland, precisamos dele. Precisamos de Langley. — Não, ainda não! Você está esquecendo uma coisa. Holland fez um juramento, e tudo que sabemos dele nos diz que o leva muito a sério. Ele pode se desviar de uma regra, aqui ou ali, mas se tiver de enfrentar a Medusa, com centenas de pessoas em Genebra comprando seja lá o que eles compram na Europa, ele é capaz de dizer, “Parem, agora chega!”
— É um risco que temos de correr. Precisamos dele, David. — David não, que diabo! Eu sou Bourne, Jason Bourne, sua criação, e sou seu credor! Minha família também! Não vou aceitar nada diferente! — E me matará se eu fizer qualquer coisa contra você. Silêncio. Afinal, Delta Um da Medusa de Saigon disse: — Sim, Alex, eu o matarei. Não porque você tentou me matar em Paris, mas por causa das mesmas suposições cegas que você fez naquela época, que o levaram à decisão de me liquidar. Você compreende? — Compreendo — disse Conklin em voz quase inaudível. — A arrogância da ignorância, seu tema favorito sobre Washington. Você sempre o faz parecer tão oriental. Mas vai chegar o tempo em que você terá também de ser menos arrogante. Há um limite para o que podemos fazer sozinhos. — Por outro lado, muita coisa pode ser destruída se não estivermos sozinhos. Veja o progresso que fizemos. De zero a números de dois algarismos, em quanto tempo — 48, 72 horas? Dê-me dois dias, Alex, por favor. Estamos muito perto do que queremos descobrir, do que queremos saber sobre Medusa. Um golpe de sorte e podemos apresentar a eles a solução perfeita para me eliminar. O Chacal. — Vou fazer o melhor possível. Cactus telefonou? — Telefonou. Vai ligar outra vez e vir até aqui. Explico depois. — Eu devia ter dito. Ele e o nosso doutor são amigos. — Eu sei. Ivan me contou... Alex, quero mandar umas coisas para você — o livro de telefones de Swayne, a agenda, coisas assim. Vou fazer um embrulho e pedir a um dos homens de Cactus para entregar aí, para o segurança do portão. Ponha tudo no seu computador e veja o que pode descobrir. — Homens de Cactus? O que você está fazendo? — Obedecendo um item da sua agenda. Estou selando este lugar. Ninguém pode entrar e veremos quem vai tentar. — Pode ser interessante. O pessoal do canil vai apanhar os cães mais ou menos às 7:00h da manhã, portanto não cole demais os selos. — Isso me lembra que você tem de agir oficialmente outra vez. Telefone para os guardas dos outros turnos. Diga que seu trabalho não é mais necessário, mas que cada um receberá um mês de salário pelo correio, em vez de ser despedido. — Quem diabo vai pagar? Não temos Langley, lembra-se? Nem Peter Holland, e eu não sou rico. — Eu sou. Vou telefonar para meu banco, no Maine, e mandar expedir uma ordem de
pagamento no seu nome. Peça ao seu amigo Casset para apanhá-la no seu apartamento amanhã cedo. — É engraçado — disse Conklin pensativamente —, tinha me esquecido do seu dinheiro. Na verdade, nunca penso nele. Acho que a idéia foi bloqueada em minha mente. — É possível — disse Bourne, com uma sugestão de ironia. — O que há de oficial em você pode imaginar um burocrata dizendo para Marie: “A propósito, Sra. Webb ou Bourne, ou seja lá o que for, quando trabalhava para o governo do Canadá, a senhora desapareceu com cinco milhões de dólares que me pertencem”. — Ela foi simplesmente brilhante, David — Jason. Eles deviam a você mais do que isso. — Não insista nesse ponto, Alex. Ela garantiu que era pelo menos o dobro. — E estava certa. Por isso todos ficaram de boca fechada... O que vai fazer agora? — Esperar o telefonema de Cactus e depois fazer uma ligação particular. — Particular? — Para minha mulher. Sentada no terraço da vila no Hotel Tranqüilidade olhando para o mar do Caribe iluminado pela lua, Marie procurava controlar ao máximo seus instintos para não enlouquecer de medo. Estranhamente, talvez idiota ou perigosamente, o que sentia não era medo de um ataque físico. Vivera na Europa e no Extremo Oriente com a máquina de matar que era Jason Bourne. Sabia do que aquele estranho era capaz e conhecia sua eficiência brutal. Não, não era Bourne, era David — o que Jason Bourne estava fazendo para David Webb. Tinha de pôr um ponto-final nisso!... Podiam ir para algum lugar distante, para um refúgio seguro e começar nova vida, com outros nomes, criar um mundo que Carlos jamais pudesse invadir. Tinham todo o dinheiro de que precisavam, podiam fazer isso! Tanta gente fazia — centenas de homens, mulheres e crianças eram protegidas por seus governos. E se havia alguém que merecia a proteção do governo, esse alguém era David Webb... Pensamentos criados pelo desespero, pensou Marie, levantando-se e caminhando até a grade da varanda. Nada disso ia acontecer porque David jamais aceitaria tal solução. Quando se tratava do Chacal, David Webb era dirigido por Jason Bourne e Bourne era capaz de destruir o corpo que o hospedava. Oh, Deus, o que está acontecendo conosco? O telefone tocou. Marie ficou rígida, depois correu para o quarto e atendeu. — Sim? — Oi mana, é Johnny. — Oh... — O que significa que não tem notícias de David. — Não, e acho que estou ficando louca, Johnny.
— Ele vai telefonar logo que puder, você sabe. — Mas você não telefonou para me dizer isso. — Não, estou apenas verificando se tudo está em ordem. Estou preso aqui na ilha grande e acho que vou demorar um pouco. Estou no palácio do governo com Henry, esperando o agradecimento pessoal, do governador da Coroa por atender ao pedido do Ministério do Exterior. — Não estou entendendo nada... — Oh, desculpe. Henry Skyes é o ajudante-de-ordens do governador da Coroa. Ele pediu-me para tomar conta daquele herói de guerra francês que está na vila perto da sua. Quando o governador quer agradecer a alguém, a gente espera até que ele agradeça — quando os telefones enguiçam, caubóis como eu precisam da ajuda do governo. — Continuo sem entender nada, Johnny. — Uma tempestade, vinda de Basse-Terre, chegará aqui dentro de algumas horas. — Vinda de quem? — De onde, não de quem, mas devo estar de volta antes disso. Mande a criada preparar o sofá para mim. — John, você não precisa ficar aqui. Está cheio de homens armados do outro lado da cerca, na praia e não sei mais onde. — E é exatamente onde eles devem ficar. Vejo você mais tarde, e dê um abraço nas crianças por mim. — Estão dormindo — disse Marie, quando o irmão desligou. Ela olhou para o telefone e, desligando-o lentamente, disse em voz alta: — Sei tão pouco sobre você, irmãozinho... nosso favorito e incorrigível Johnny. E meu marido sabe muito mais. Vocês dois me deixam furiosa! O telefone tocou outra vez, sobressaltando-a. — Alô? — Sou eu. — Graças a Deus! — Ele está fora da cidade, mas tudo está ótimo. Eu estou ótimo e estamos fazendo progressos. — Você não precisa fazer isso! Nós não precisamos! — Sim, precisamos — disse Jason Bourne, sem nenhum sinal de David Webb. — Quero que saiba que eu a amo, que ele a ama...
— Pare com isso! Está acontecendo!... — Desculpe. Peço desculpas — perdoe-me. — Você é David! — É claro que sou David. Estava brincando... — Não, não estava. — É que estive falando com Alex, só isso. Nós discutimos, nada mais. — Não, não é! Quero que você volte. Quero você aqui! — Então não posso falar mais. Eu a amo. Jason desligou e Marie atirou-se na cama, abafando no cobertor os soluços inúteis. Com os olhos congestionados de cansaço, Alexander Conklin trabalhava no computador, digitando os dados contidos nos livros enviados por Bourne da casa do general Norman Swayne. Dois apitos agudos cortaram o silêncio da sala. A máquina anunciava que acabava de calcular outra referência dupla. Conklin verificou a resposta apresentada. R.G. O que significava? Voltou a digitar e nada. Continuou a bater nas teclas bege, cada vez mais depressa. Quatro bips... cinco... seis. Voltar atrás — parar — ir para a frente. R.G. R.G. R.G. R.G. Que diabo era R.G.? Comparou os dados com os três livros enviados por Bourne. Um número comum apareceu em verde, na tela:617-202-0011. Um telefone. Conklin apanhou o telefone de Langley, ligou para o vigia da noite e mandou o telefonista da CIA localizar o número. — Não está no catálogo, senhor. É um dos números da mesma residência em Boston, Massachusetts. — O nome, por favor. — Gates, Randolph. A residência é... — Tudo bem, telefonista — interrompeu Alex, certo de ter conseguido a informação essencial. Randolph Gates, professor, advogado dos privilegiados, defensor do quanto maior melhor, o maior é o melhor. Não era de admirar que estivesse envolvido com centenas de milhões de dólares, na Europa, controlados por interesses americanos... Não, espere um pouco. Não estava certo, estava errado! Era completamente ilógica qualquer ligação do grande advogado com uma operação extremamente duvidosa, na verdade ilegal, como a Medusa. Não fazia sentido! Não era preciso admirar o famoso consultor jurídico para saber que tinha uma ficha completamente limpa e honesta na profissão. Era conhecido seu rigor em tudo que se relacionava com a lei. Muitas vezes usava os ardis da profissão para obter decisões favoráveis, mas ninguém jamais ousou duvidar da sua integridade. Sua filosofia era tão contrária aos princípios dos mais brilhantes advogados liberais, que teria sido desacreditado há muito tempo se conseguissem descobrir o menor deslize na sua vida.
Contudo, seu nome aparecia seis vezes na agenda de um medusiano responsável por milhões de dólares gastos para a defesa da nação. Um membro instável da Medusa cujo suicídio aparente fora, na verdade, assassinato. Conklin verificou na tela que a data da última anotação de Swayne referente a R. G. era dois de agosto, há menos de uma semana. Apanhou o diário com capa de couro e abriu nesse dia. Até ali estava concentrando-se em nomes, não em compromissos, a não ser que a informação fosse relevante — para quê, não tinha certeza, mas confiava nos próprios instintos. Se tivesse descoberto antes quem era R.G., teria notado a anotação abreviada e escrita a mão ao lado do nome. R.G. não aceita desig. do Maj. Crft. Precisa Crft na sua equipe. Abrir. Paris — sete anos atrás. Dois tirar arquivo e enterrar. A referência a Paris devia ter chamado sua atenção antes, pensou Alex. Mas as anotações de Swayne continham diversos nomes de lugares exóticos ou estranhos, como se o general quisesse impressionar quem por acaso se interessasse por suas observações particulares. Além disso, reconheceu Conklin, estava extremamente cansado. Se não fosse pelo computador, provavelmente não teria descoberto o Dr. Randolph Gates, o deus do Olimpo jurídico. Paris — sete anos atrás. Dois tirar arquivo e enterrar. A primeira parte era clara, a segunda, obscura, mas não indecifrável. “Dois” referia-se a uma seção da Inteligência. G-2 e “arquivo” significavam um fato ou uma revelação descoberta pelo pessoal da Inteligência em Paris — sete anos atrás e retirada dos bancos de dados. Era a tentativa de um amador de usar a linguagem da Inteligência de modo errado. “Abrir” significava chave — Jesus, Swayne era um idiota! Alex escreveu a anotação por extenso. “Randolph Gates não quer levar em consideração a designação do major Craft, ou Croft, ou até mesmo Christopher, pois o f podia ser um s. Mas nós precisamos Crft na sua equipe. A chave é usar a informação contida no nosso arquivo G-2 sobre Gates em Paris há sete anos, arquivo que foi removido e está em nosso poder”. Se não era a tradução exata, era bastante aproximada para entrar em ação, pensou Conklin, consultando o relógio. Eram 3:20h da manhã, uma hora em que o toque do telefone sobressalta a pessoa mais controlada. Por que não? David — Jason — tinha razão. Cada hora contava agora. Alex apanhou o telefone e digitou o número da casa em Boston, Massachusetts. O telefone não parava de tocar e a cadela não atenderia no seu quarto! Então Gates olhou para a luz no aparelho e o sangue gelou em suas veias. Era seu número que não constava da lista, um número que poucos conheciam. Agitou-se na cama, com os olhos arregalados. Quanto mais pensava no estranho telefonema de Paris, mais nervoso ficava. Era sobre Montserrat, ele sabia! A informação que ele havia passado estava errada... Prefontaine mentira para ele e agora Paris queria acertar as coisas. Meu Deus! Eles viriam atrás dele, eles o denunciariam! Não, havia uma saída, uma explicação perfeita, a verdade. Ele entregaria os mentirosos a Paris, ao homem de Paris ali em Boston. Obrigaria o bêbado Prefontaine e o sujo detetive a confessarem suas mentiras ao único homem que podia absolvê-los... O telefone! Precisava atender. Não devia deixar que pensassem que estava escondendo alguma coisa! Levou ao
ouvido o fone do instrumento insistente. — Sim? — Sete anos atrás, conselheiro — começou a dizer a voz tranqüila. — Preciso lembrá-lo de que temos todos os dados. O Deuxième Bureau foi muito cooperativo, muito mais do que o senhor. — Pelo amor de Deus, mentiram para mim! — exclamou Gates, com voz rouca, sentando na beirada da cama. — Não pode acreditar que eu tivesse passado a informação errada! Nem que eu fosse louco! — Sabemos que pode ser muito teimoso. Fizemos um simples pedido... — Eu atendi, juro que atendi. Cristo, paguei 15 mil dólares para garantir que tudo fosse feito em silêncio, sem deixar nenhuma pista — não que o dinheiro seja importante, é claro... — Você pagou...? — interrompeu a voz calma. — Posso mostrar o comprovante de retirada! — Pagou o quê? — A informação, é claro. Contratei um ex-juiz que tem contatos... — A informação sobre Craft? — O quê? — Croft... Christopher. — Quem? — Nosso major, conselheiro. O major. — Se é esse seu nome de código, então sim, eu paguei! — Nome de código? — A mulher. As duas crianças. Elas voaram para a Ilha de Montserrat. Juro que foi o que me disseram! Gates ouviu um estalido e o telefone foi desligado no outro lado da linha.
Capítulo13 COM A MÃO ainda no telefone, Conklin começou a suar. Levantou-se da cadeira, afastou-se mancando, olhando para o computador como se ele fosse uma coisa monstruosa que o havia conduzido a uma terra proibida onde nada era o que parecia ser, nem o que devia ser. O que aconteceu? Como era que Randolph Gates sabia sobre Montserrat, sobre Marie e as crianças? Por quê? Alex sentou-se na poltrona com o coração disparado, seus pensamentos uma confusão sem respostas, apenas o caos. Segurou o pulso direito com a mão esquerda, enfiando as unhas na carne. Precisava se controlar, pensar — precisava agir! Pela mulher de David e pelas crianças! Associações de idéias. Quais eram as associações possíveis? Já era difícil considerar Gates como um membro da Medusa — mesmo que fosse contra sua vontade — mas era impossível pensar que estivesse ligado a Carlos, o Chacal. Impossível! Porém, essa parecia ser a verdade. A ligação existia! Carlos faria também parte da Medusa de Swayne? Tudo que sabiam sobre o Chacal negava essa hipótese. A força do assassino estava no fato de jamais associar-se a nenhuma entidade estruturada. Jason Bourne havia provado isso há 13 anos, em Paris. Nenhum grupo podia chegar até ele. Só podiam enviar mensagens e ele os procurava. A única organização que o assassino internacional aceitava era seu exército de homens velhos, do Mediterrâneo ao Báltico, desajustados, perdidos, criminosos cuja pobreza era aliviada pela generosidade do assassino, que exigia lealdade até a morte. Onde um homem como Randolph Gates se encaixava nesse esquema? Não se encaixava, concluiu Alex Conklin, enquanto os limites mais distantes da sua imaginação exploraram velhos territórios... Desconfie das aparências. O famoso advogado não tinha nada a ver com Carlos, nem com Medusa. Ele era a aberração, o defeito nas lentes, um homem honrado com uma única fraqueza que fora descoberta por duas partes separadas, ambas com imensos recursos. Todos sabiam que o Chacal tinha meios de penetrar na Sûreté e na Interpol e não precisava ser clarividente para saber que Medusa podia penetrar no G-2 do Exército. Era a única explicação possível, pois Gates era por demais combativo, muito poderoso para funcionar espetacularmente como funcionava, se fosse fácil descobrir sua vulnerabilidade. Não, seria preciso um predador como o Chacal e como a Medusa para penetrar as profundezas de um segredo tão devastador a ponto de transformar Randolph Gates numa valiosa peça de xadrez. Evidentemente, Carlos o havia apanhado primeiro. Conklin pensou na verdade que sempre era confirmada. O mundo dos corruptos era na realidade um pequeno bairro com muitas camadas, de desenho geométrico, com as avenidas irregulares da corrupção se entrecruzando. Como podia ser de outro modo? Os residentes daquelas ruas letais tinham serviços para oferecer, seus clientes eram especiais — o lixo desesperado da humanidade. Extorsão, compromisso, assassinato. O Chacal e os homens da Medusa pertenciam à mesma ordem fraternal. A Irmandade do Tenho de Ter o Meu. Uma descoberta. Uma descoberta que Jason Bourne podia usar — mas não David Webb — e Webb era ainda uma parte muito importante de Bourne. Além disso, ambas as partes do mesmo homem estavam a mais de mil quilômetros de Montserrat, as coordenadas da morte determinadas por Carlos.
Montserrat?... Johnny St. Jacques! O “irmãozinho” que havia provado do que era capaz numa cidadezinha do norte do Canadá, sem o conhecimento e a compreensão da própria família, especialmente da irmã querida. Um homem capaz de matar quando provocado — que havia matado num momento de fúria — e que mataria outra vez se visse a irmã e os sobrinhos ameaçados pelo Chacal. David acreditava nele — Jason Bourne também, o que era muito mais importante agora. Alex olhou para o console do telefone, depois levantou-se rapidamente. Sentou atrás da mesa e apertou o botão do gravador até chegar ao ponto que queria. Andando de um lado para o outro, ouviu a voz apavorada de Gates. “... Cristo, paguei 15 mil...” Não era aí, pensou Conklin. Mais adiante. “... posso mostrar o comprovante da retirada...” Mais adiante! “... contratei um ex-juiz que tem contatos...” Era isso. Um juiz. “Elas voaram para a Ilha de Montserrat...” Alex tirou da gaveta a folha de papel onde havia anotado todos os números de telefones que tinha usado nos dois últimos dias. Viu o número do Hotel Tranqüilidade, no Caribe, apanhou o telefone e discou. Depois de tocar muitas vezes, uma voz cheia de sono atendeu. — Tranqüilidade... — Isto é uma emergência — interrompeu Conklin. — Preciso falar urgentemente com John St. Jacques. Depressa, por favor. — Sinto muito, senhor, mas o Sr. St. Jacques não está aqui. — Preciso encontrá-lo. Repito, é urgente. Onde ele está? — Na ilha grande... — Montserrat? — Sim... — Onde? Meu nome é Conklin. Ele quer falar comigo — ele precisa falar comigo. Por favor! — Um vento muito forte está soprando de Basse-Terre e todos os vôos foram cancelados até amanhã de manhã. — Um o quê?
— Uma depressão tropical... — Ah, uma tempestade. — Preferimos uma DT, senhor. O Sr. Jacques deixou um número de telefone em Plymouth. — Qual é o seu nome? — interrompeu Alex. O homem disse Pritchard e Conklin continuou. — Vou fazer uma pergunta muito delicada, Sr. Pritchard. É importante que me dê a resposta certa, mas se não der, deve fazer o que eu mandar. O Sr. St. Jacques confirmará tudo que eu disser quando eu puder falar com ele. Porém, não posso perder tempo. Está entendendo? — Qual é a sua pergunta? — perguntou o homem com dignidade. — Não sou criança, mon. — Desculpe. Não tive intenção de... — A pergunta, Sr. Conklin. O senhor tem pressa. — Sim, é claro... A irmã do Sr. St. Jacques e os filhos estão em lugar seguro? O Sr. St. Jacques tomou algumas precauções? — Assim como guardas armados na vila e nossos guardas de sempre na praia? — disse o homem. — A resposta é sim. — É a resposta certa. — Alex respirou fundo, ainda nervoso. — Agora, qual é o número do telefone do Sr. St. Jacques? O homem disse e acrescentou: — Muitos telefones estão enguiçados, senhor. Seria conveniente deixar um telefone onde possa ser encontrado. O vento ainda está forte, mas Q Sr. St. Jay estará aqui com a primeira luz do dia, se puder. — Certo. — Alex disse o número do telefone “estéril” no apartamento em Vienna e fez o homem repetir. — É isso — disse ele. — Vou tentar ligar para Plymouth agora. — Como se escreve seu nome, por favor. É C-o-n-c-h... — C-o-n-k — interrompeu Alex, desligando e ligando imediatamente para o número em Plymouth, capital de Montserrat. Mais uma vez uma voz sobressaltada, sonolenta e quase incoerente atendeu. — Quem está falando? — perguntou Conklin, impaciente. — Quem diabo é isto — você? — respondeu um inglês furioso. — Quero falar com John St. Jacques. É uma emergência e o recepcionista do Hotel Tranqüilidade me deu este número.
— Ainda bem que os telefones deles estão bons... — É o que parece. Por favor, John está aí? — Está, está, é claro. No outro lado do corredor. Vou chamá-lo. Quem quer... — “Alex”, não precisa mais. — Só “Alex”? — Depressa, por favor! Vinte segundos depois ouviu a voz de St. Jacques. — Conklin, é você? — Escute. Eles sabem que Marie e as crianças foram de avião para Montserrat. — Soubemos que alguém andou fazendo perguntas no aeroporto sobre uma mulher com duas crianças... — Por isso você os levou para o hotel. — Exatamente. — Quem andou fazendo perguntas? — Não sabemos. Foram feitas por telefone... Eu não queria deixá-los, mas recebi ordem para me apresentar ao governador e quando o filho da mãe do governador apareceu, a tempestade estava aqui. — Eu sei. Falei com seu recepcionista que me deu este número. — Já é um consolo saber que os telefones ainda estão funcionando. Geralmente, com uma tempestade, eles não funcionam, por isso temos de tratar bem a Coroa. — Seu homem disse que você colocou guardas... — Pode apostar que sim! — exclamou St. Jacques. — O problema é que não sei do que devo me defender, a não ser de estranhos, em algum barco na praia. Se não atenderem à ordem de parar e se identificar, meus homens atiram. — Talvez eu possa ajudar... — Então fale! — Conseguimos uma informação — não me pergunte como. Parece inacreditável, mas pode estar certo que é real. O homem que descobriu que Marie foi para Montserrat contratou um juiz que tem contatos, supostamente na ilha.
— Um juiz! — explodiu o dono do Hotel Tranqüilidade. — Meu Deus, ele está lá! Eu vou matar aquele filho da mãe, aquele lixo... — Pare, Johnny! Controle-se. Quem está lá? — Um juiz que insiste em usar um nome diferente! Não achei que era importante — dois velhos idiotas com nomes parecidos... — Velhos...? Devagar, Johnny, isto é importante. Que dois velhos? — Esse de quem você falou, de Boston... — Isso mesmo! — confirmou Alex. — O outro veio de Paris... — Paris? Jesus Cristo. Os velhos de Paris! — O quê...? — O Chacal! Carlos tem seus velhos na ilha! — Agora, vá você mais devagar, Alex — disse St. Jacques ofegante. — Agora você tem de falar mais claro. — Não temos tempo, Johnny. Carlos tem um exército — seu exército — de velhos que morrerão por ele, que matam por ele. Não haverá nenhum estranho na praia, eles já estão lá! Você pode voltar para a ilha? — De um certo modo, sim! Vou telefonar para meu pessoal. Aqueles dois montes de lixo serão atirados na cisterna! — Depressa, Johnny! St. Jacques apertou o gancho do velho telefone, soltou-o e ouviu o ruído de linha. Discou o número do Hotel Tranqüilidade. “Desculpe”, disse a voz gravada. “Devido ao mau tempo, as linhas estão com defeito na área que está chamando. O governo está trabalhando arduamente para restaurar as comunicações. Por favor, tente ligar mais tarde. Um bom dia”. John St. Jacques desligou com tanta força que quebrou o fone em dois pedaços. — Um barco! — gritou ele. — Arranjem-me um barco veloz! — Você está louco — disse o ajudante do governador da Coroa, no outro lado da sala. — Com essas ondas?
— Um barco para mar alto, Henry! — disse o irmão devotado, tirando uma automática do cinto. — Ou serei obrigado a fazer algo em que nem quero pensar. Quero um barco. — Não posso acreditar, meu chapa. — Eu também não, Henry... Mas estou falando sério. A enfermeira de Jean Pierre Fontaine ajeitou o cabelo louro na frente do espelho da penteadeira, prendendo-o sob o chapéu preto impermeável. Consultou o relógio, lembrando cada palavra do estranho telefonema que havia recebido há algumas noras de Argenteuil, França, do grande homem que tornava tudo possível. — Um advogado americano que se diz juiz está hospedado perto de vocês. — Não sei nada sobre essa pessoa, monsenhor. — Mas ele está aí. Nosso herói queixou-se da presença dele, com muita razão, e um telefonema para sua casa, em Boston, confirmou sua presença na ilha. — Quer dizer que essa presença não é desejável? — Essa presença é abominável para mim. Ele diz que deve muito a mim — uma dívida enorme, um fato que pode destruí-lo — mas suas ações me dizem que é um ingrato, que pretende cancelar essa dívida com uma traição e me traindo ele está traindo vocês também. — Ele é um homem morto. — Exatamente. No passado ele foi útil para mim, mas o passado não existe mais. Encontre e mate esse homem. Faça com que pareça um acidente trágico... Finalmente, como não vamos mais nos comunicar até você voltar para a Martinica, está tudo preparado para o último ato que ordenei? — Está, monsenhor. As duas injeções foram preparadas pelo cirurgião do hospital em Fort-deFrance. Ele pediu-me para lhe transmitir sua devoção. — E está certo. Ele está vivo, ao contrário de dezenas de seus pacientes. — Não sabem nada sobre sua outra vida na Martinica. — Estou ciente disso... Administre as doses dentro de 48 horas, quando o caos começar a diminuir. Sabendo que o herói foi invenção minha — o que vou providenciar que saibam — faria inveja a um camaleão. — Tudo será feito. Estará aqui em breve? — A tempo para as ondas de choque. Vou partir dentro de uma hora e logo estarei em Antigua e antes do meio-dia em Montserrat, amanhã. Se tudo se processar como calculei, devo chegar a tempo de observar a extrema agonia de Jason Bourne antes de deixar minha assinatura, uma bala na sua garganta. Os americanos saberão então quem venceu. Adieu.
A enfermeira, como uma suplicante em êxtase, abaixou a cabeça na frente do espelho lembrando as palavras místicas do senhor onisciente. Estava quase na hora, pensou ela, apanhando entre seus colares na gaveta da cômoda, o garrote de metal com diamantes incrustados, presente do seu mentor. Ia ser tão simples. Já sabia quem era o juiz e onde estava hospedado — o velho extremamente magro, na terceira vila depois da sua. Tudo dependia agora da precisão, o “acidente trágico” seria o prelúdio para o horror que ocorreria na Vila Vinte em menos de uma hora. Todas as vilas do Tranqüilidade tinham lampiões de querosene para quando faltava luz e o gerador enguiçava. Um velho assustado com o intestino solto, ou em pânico, numa tempestade como a dessa noite, podia tentar acender o lampião para se sentir mais seguro. Tragicamente podia cair sobre o querosene derramado e queimar completamente o pescoço, eliminando as marcas do garrote. Faça isso, diziam as vozes em sua mente. Deve obedecer. Sem Carlos você seria um corpo sem cabeça, na Argélia. Ia fazer — ia fazer agora. A batida constante e forte da chuva no telhado e nas janelas e o rugido do vento foram interrompidos por um relâmpago cegante e pelo trovão ensurdecedor. “Jean Pierre Fontaine” chorava silenciosamente, ajoelhado ao lado da cama, com o rosto quase encostado no da mulher, as lágrimas caindo na carne fria do braço dela. Ela estava morta e o bilhete na mão direita, rígida, dizia: Maintenant nous deux sommes libres, mon amour. Estavam ambos livres. Ela da dor terrível, ele do preço exigido pelo monsenhor, um preço que ele não havia contado, mas que a mulher tinha certeza de que seria terrível. Há meses sabia que sua mulher tinha acesso a comprimidos que podiam acabar com sua vida rapidamente se a dor se tornasse insuportável. Muitas vezes ele os havia procurado exaustivamente, mas nunca conseguiu encontrar. Agora compreendia por que, vendo a latinha das pastilhas favoritas da mulher, as balas que há anos ela levava à boca com um sorriso satisfeito. — Você deve agradecer, mon cher. Podia ser caviar ou uma dessas drogas caras que os ricos usam! Não era caviar, mas eram drogas, drogas letais. Ouviu passos. A enfermeira! Ela não devia ver sua mulher! Fontaine levantou-se, enxugou os olhos e correu para a porta. Quando a abriu, a mulher estava com o braço erguido e o punho fechado, pronta para bater. — Monsieur!... O senhor me assustou! — Acho que nós dois nos assustamos. — Jean Pierre saiu do quarto, fechando a porta rapidamente. — Regine dormiu afinal — murmurou, levando o indicador aos lábios. — Esta tempestade horrível a impediu de dormir grande parte da noite. — Mas é uma dádiva do céu para nós — para o senhor — não é? Às vezes eu penso que o monsenhor manda na natureza. — Então, duvido que seja uma dádiva do céu. O céu não é a fonte da influência dele.
— Vamos ao trabalho — disse a enfermeira, sem achar graça, afastando-se da porta. — Está preparado? — Estarei dentro de alguns minutos — respondeu Fontaine, dirigindo-se para a mesa onde estavam seus instrumentos de morte. Tirou a chave do bolso. — Quer repassar o que devo fazer? — perguntou, voltando-se para a mulher. — Por mim, é claro. Na minha idade, às vezes os detalhes ficam um tanto confusos. — Sim, eu quero, porque houve uma pequena mudança. — É mesmo? — O velho ergueu as sobrancelhas. — Mudanças de última hora também não são boas na minha idade. — É só uma questão de tempo, não mais do que um quarto de hora, talvez menos. — Uma eternidade neste tipo de trabalho — disse Fontaine quando outro relâmpago cortou o céu, acompanhado quase imediatamente pelo trovão, interrompendo a batida da chuva no telhado e nas janelas. — É perigoso sair esta noite. Esse relâmpago foi bem perto. — Se pensa assim, imagine como devem se sentir os guardas. — Por favor, a “pequena mudança”. E também uma explicação. — Não vou dar nenhuma explicação. Direi apenas que é uma ordem de Argenteuil e que você é o responsável. — O juiz? — Tire suas próprias conclusões. — Então ele não foi mandado para... — Não vou dizer mais nada. A mudança é a seguinte. Em vez de correr até os guardas da Vila Vinte e pedir assistência urgente para sua mulher, vou dizer que estava voltando da recepção, onde fui reclamar o telefone, e vi fogo na Vila Quatorze, a quarta depois da nossa. Sem dúvida vai haver grande confusão, com a tempestade e todo mundo pedindo socorro. Esse será seu sinal. Aproveite a confusão, entre na vila e faça sair quem quer que ainda esteja lá. Não esqueça do silenciador. Então, volte para dentro e faça o que jurou fazer. — Então, espero o fogo, e espero que você e os guardas voltem para o número 11. — Exatamente. Fique na varanda, com a porta fechada, é claro. — É claro. — Posso demorar cinco minutos ou talvez vinte, mas você fica aqui. — Naturalmente... Posso perguntar, madame — ou talvez seja mademoiselle, embora eu não
veja nenhuma prova... — O que é? — Vai levar cinco ou vinte minutos para fazer o quê? — Você é um velho idiota. Fazer o que tem de ser feito. — É claro. A mulher abriu a porta, que bateu na parede com a força do vento, saiu para a chuva torrencial, fechando-a. Atônito e confuso, o velho francês ficou imóvel, tentando entender o inexplicável. Tudo estava acontecendo muito depressa para ele, no meio da agonia da morte da sua mulher. Não tinha tempo para chorar, nem tempo para sentir... Só pensar e pensar rapidamente. Uma coisa sobrepunha-se a outra, deixando perguntas sem respostas, perguntas que tinham de ser respondidas para que o todo fosse compreendido — para que Montserrat fizesse sentido! A enfermeira era mais do que mensageira das instruções de Argenteuil. O anjo de misericórdia era na verdade o anjo da morte, uma assassina. Então, por que o haviam feito viajar toda aquela distância para fazer o que a outra podia fazer, sem as complicações do seu disfarce de herói e tudo o mais? Um velho herói da França... tudo tão desnecessário. E quanto à sua idade, havia outro — outro homem velho que não era assassino. Talvez tivesse cometido um erro terrível, pensou o falso Jean Pierre Fontaine. Talvez o outro homem, em vez de ter vindo para matá-lo, estivesse ali para avisá-lo do perigo que corria! “Mon Dieu”, murmurou o francês. “Os velhos de Paris! O exército do Chacal! Muitas perguntas sem resposta!” Fontaine caminhou rapidamente para o quarto da enfermeira e entrou. Com a rapidez eficiente adquirida em anos de prática, prejudicada apenas um pouco por sua idade, começou a revistar metodicamente o quarto — mala, armário, roupas, travesseiros, colchão, penteadeira, cômoda, escrivaninha... a escrivaninha. Uma gaveta trancada na escrivaninha — uma gaveta trancada na sala. O “equipamento”. Nada importava agora! Sua mulher estava morta e ele precisava de muitas respostas! Apanhou o abajur de bronze pesado, que estava sobre a mesa, puxou o fio, desligando-o da tomada, e bateu com ele na gaveta até quebrar a madeira e a fechadura. Abriu a gaveta e olhou para dentro dela com um misto de horror e compreensão. Numa caixa de plástico forrada estavam duas seringas de injeção com um líquido amarelo. Fontaine não precisava saber que composto químico era aquele. Existiam muitos, bastante eficientes. Morte líquida nas veias. Não precisava também que lhe dissessem a quem se destinavam. Côte a côte dans le lit. Dois corpos lado a lado na cama. Ele e sua mulher, num pacto de morte. O monsenhor havia planejado tudo muito bem! Ele seria morto! Um velho do exército do Chacal, depois de superar todas as medidas de segurança, matava e mutilava as pessoas mais queridas do inimigo de Carlos, Jason Bourne. E naturalmente, atrás de todo esse plano diabólico estava o próprio Chacal! Ce n’est pas le contrat! Eu, sim, mas minha mulher, não! O senhor prometeu!A enfermeira. O
anjo, não de misericórdia, mas da morte! O homem conhecido no Hotel Tranqüilidade como Jean Pierre Fontaine voltou rapidamente para a sala. Para apanhar seu equipamento. A enorme lancha de corrida com os dois grandes motores navegava no mar revolto, a maior parte das vezes na crista das ondas e não dentro delas. No pequeno convés inferior, John St. Jacques manobrava o barco entre os recifes perigosos de coral, cuja localização ele sabia de cor, ajudado pelo holofote que iluminava as águas turbulentas, ora a cinco, ora a quinhentos metros da proa. Johnny gritava no microfone que balançava na frente do seu rosto molhado, tentando desesperadamente, contra toda a lógica, comunicar-se com alguém na Ilha Tranqüilidade. Estava agora a uns quatro quilômetros da ilha, cuja proximidade era anunciada por uma elevação vulcânica coberta de arbustos no meio do mar. A Ilha Tranqüilidade ficava mais próxima de Plymouth do que do Aeroporto de Blackburne e para quem conhecia os recifes e bancos de areia, era alcançada mais rapidamente de barco do que de hidravião, que tinha de sair da parte leste de Blackburne para aproveitar os ventos de oeste que lhe permitiam amerissar perto da ilha. Johnny não sabia por que esses cálculos interferiam agora com sua concentração, a não ser pelo fato de lhe darem a certeza de estar fazendo o melhor possível. Droga! Por que tinha de ser sempre o melhor possível e não simplesmente o melhor? Não podia falhar mais, não agora, não nessa noite! Cristo, ele devia tudo a Mare e David! Talvez mais ao maluco filho da mãe que era seu cunhado, do que à sua irmã. David, David o incrível, um homem cuja existência Johnny às vezes pensava que Marie nem conhecia! “Você fica quieto, irmãozinho. Eu trato disto”. “Não pode, David. Eu fiz isso. Eu os matei!” “Faça o que eu disse. Não interfira”. “Pedi sua ajuda, não para me tomar o meu lugar”. “Mas, não está vendo, eu sou você. Eu teria feito a mesma coisa, portanto, para mim, eu sou você”. “Isso é loucura!” “Uma parte é. Algum dia eu talvez o ensine a matar limpamente, no escuro. Enquanto isso, ouça os advogados”. “Suponha que eles percam a causa?” “Eu o tiro dessa. Eu o levo para longe”. “Como?” “Eu mato outra vez”. “Eu não acredito! Um professor, um homem culto — não acredito, não quero acreditar — você é o marido da minha irmã”.
“Pois então não acredite, Johnny. Esqueça tudo que eu disse, e nunca conte nada à sua irmã”. “É aquela outra pessoa que existe em você, certo?” “Marie o ama muito”. “Isso não é resposta! Aqui, agora, você é Bourne, certo? Jason Bourne!” “Jamais, em tempo algum, falaremos sobre esta conversa, Johnny. Você compreende?” Não, ele nunca compreendeu, pensou St. Jacques, enquanto o vento sibilante e os estalidos dos relâmpagos pareciam envolver o barco. Nem quando Marie e David apelaram para seu ego que se desintegrava rapidamente, sugerindo uma nova vida nas ilhas. Capital inicial, haviam dito. Construa uma casa para nós e depois resolva o que quer fazer mais. Dentro de certos limites, nós o financiaremos. Por que eles fizeram isso? Por quê? Mas não era “eles”, era ele. Jason Bourne. John St. Jacques havia compreendido na manhã em que o piloto da ilha telefonou avisando que alguém estava fazendo perguntas no aeroporto sobre uma mulher com duas crianças. Algum dia talvez eu o ensine a matar limpamente, no escuro. Jason Bourne. Luzes! Estava vendo as luzes de Tranqüilidade. Estava a menos de um quilômetro da praia O velho francês cambaleando com as rajadas de vento gelado caminhou sob a chuva intensa para a Vila Quatorze. Com a cabeça abaixada, os olhos entrecerrados, enxugava o rosto com a mão esquerda, segurando a arma com silenciador na direita. Mantinha a arma atrás do corpo como fazia há muitos anos quando corria pelos trilhos do trem, com as bananas de dinamite numa das mãos, uma Luger alemã na outra, preparado para soltar tudo se aparecesse uma patrulha nazista. Fosse quem fosse que o esperava agora, eram os boches, para ele. Todos eram boches! Servira aos outros durante muito tempo! Sua mulher estava morta. De agora em diante seria seu próprio patrão, pois nada mais restava além das suas decisões, seus sentimentos, seu critério particular do que era certo e errado... E o Chacal estava errado! O apóstolo de Carlos podia aceitar o assassinato da mulher. Podia justificar aquela dívida, mas não as crianças, e certamente não a mutilação dos corpos. Eram atos contra Deus, e ele e sua mulher logo iriam enfrentá-Lo. Precisava criar algumas circunstâncias atenuantes. Deter o anjo da morte! O que ela estaria fazendo? O que significava o fogo que ela havia mencionado?... Então, ele viu — uma enorme labareda na Vila Quatorze. Numa das janelas! A janela do quarto da vila cor-de-rosa. Fontaine chegou ao caminho de lajotas que levava à porta quando uma descarga elétrica do relâmpago fez tremer o solo sob seus pés. Ele caiu, ergueu-se sobre os joelhos e se arrastou para a varanda cor-de-rosa com a porta iluminada pelo clarão das chamas do andar superior. Por mais que puxasse e virasse a maçaneta, não conseguiu abrir a porta. Com dois tiros destruiu a fechadura. Ficou de pé e entrou.
Lá dentro. Os gritos vinham do quarto de dormir. O velho francês lançou-se escada acima, com as pernas trêmulas, a arma na mão direita. Com as forças que lhe restavam, abriu a porta com um pontapé e observou a cena planejada no inferno. A enfermeira, com o garrote de metal em volta do pescoço do velho, procurava lançar sua vítima sobre o querosene que queimava no chão. — Arretez! — gritou o homem chamado Jean Pierre Fontaine. — Assez! Maintenant! No meio das labaredas que se erguiam e se alastravam, soaram tiros e corpos caíram. As luzes da praia de Tranqüilidade aproximavam-se e St. Jacques continuava a gritar no microfone. — Sou eu. É St. Jay, atracando! Não atirem! Mas o elegante barco de corrida foi recebido com uma rajada de metralhadoras automáticas. St. Jacques deitou-se no convés e continuou a gritar. — Vou atracar — vou subir na praia! Suspendam esse maldito fogo! — É o senhor, mon? — disse uma voz apavorada no rádio. — Quer receber seu ordenado na próxima semana? — Quero sim, Sr. St. Jay. — Os alto-falantes na praia interrompiam erraticamente o sibilar do vento e o troar dos trovões que vinham de Basse-Terre. — Todos aí na praia, parem de atirar! O barco é dos nossos, mon! É do nosso patrão, mon, o Sr. St. Jay. O barco saltou da água para a praia escura, os motores rugindo, as hélices atolando na areia molhada, o casco em ponta partindo-se com o impacto. St. Jacques ergueu-se da posição fetal protetora e saltou para a praia. — Vila Vinte! — bradou ele, correndo sob a chuva para os degraus de pedra que levavam ao caminho das vilas. — Todos os homens, para a Vila Vinte! Quando subia correndo a escada castigada pela chuva e pelo vento, parou de repente com uma exclamação abafada, uma galáxia de estrelas explodindo ante seus olhos com milhares de estrelas de fogo. Tiros! Um depois do outro! Na ala oeste! St. Jacques continuou a subir saltando de dois em dois degraus e como um homem possesso correu para a Vila Vinte, virando a cabeça para a direita, confuso, completamente em pânico. Viu várias pessoas — homens e mulheres do hotel — na frente da Vila Quatorze!... Quem estava hospedado lá?... Meu Deus, o juiz!Com os pulmões a ponto de explodir, cada músculo, cada tendão das suas pernas no limite máximo da tensão, St. Jacques chegou à casa da irmã. Passou pelo portão e lançou o corpo contra a porta abrindo-a. Com os olhos arregalados, primeiro de horror, depois com uma dor incalculável, St. Jacques caiu de joelhos, gritando. Na parede branca estava escrito em vermelho vivo, com terrível clareza:
Jason Bourne, irmão do Chacal.
Capítulo14 — JOHNNY! JOHNNY, pare com isso! — A voz da irmã vibrou em seus ouvidos. Marie embalava a cabeça dele em um dos braços e com a outra mão segurava seus cabelos, quase arrancandoos. — Você está me ouvindo? Nós estamos bem, Johnny. As crianças estão em outra vila — estamos bem! Aos poucos conseguiu focalizar os rostos que o rodeavam. Entre eles estavam os dois velhos, um de Boston, o outro de Paris. — Aí estão eles! — gritou St. Jacques, lançando-se para a frente, mas detido por Marie. — Eu mato esses miseráveis! — Não! — exclamou Marie, segurando-o, ajudada pelo guarda negro que o segurava pelo ombro. — Neste momento, são os melhores amigos que nós temos. — Você não sabe quem eles são! — exclamou St. Jacques, tentando se livrar das mãos que o detinham. — Sim, nós sabemos — disse Marie, em voz mais baixa, com a boca encostada no ouvido dele. — O bastante para que nos levem ao Chacal... — Eles trabalham para o Chacal! — Um deles trabalhava — disse Marie. — O outro nunca ouviu falar em Carlos. — Você não compreende — murmurou St. Jacques. — São os velhos — os velhos de Paris, o exército do Chacal! Conklin telefonou para Plymouth e explicou tudo... eles são assassinos! — Eu já disse, um deles era, mas não é mais. Não tem nenhum motivo para matar, agora. O outro... bem, o outro é um engano, um erro estúpido e ridículo, isso á tudo, e graças a Deus — para ele. — Tudo isso é loucura...! — Sim, é loucura — concordou Marie, com um gesto mandando o guarda ajudar o irmão a se levantar. — Venha, Johnny, precisamos conversar. A tempestade afastou-se como um intruso violento, fugindo na noite, deixando para trás a carnificina da sua fúria. A luz da manhã surgiu no horizonte, revelando através da neblina as ilhas verde-azuladas ao largo de Montserrat. Os primeiros barcos rumaram cautelosamente para as áreas de pesca, pois o que pudessem apanhar significava mais um dia de sobrevivência. Marie, o irmão e os dois velhos estavam sentados à mesa na varanda de uma das vilas. Há quase uma hora estavam ali, tomando
café e conversando, dissecando friamente os fatos, falando de coisas horríveis. Haviam prometido ao velho falso herói da França cuidar da sua mulher logo que os telefones voltassem a funcionar. Ele queria enterrá-la na ilha, se fosse possível. Sua mulher na certa compreenderia. Nada mais lhes restava na França a não ser a ignomínia da vala comum. Se fosse possível... — É possível — disse St. Jacques. — Graças a você minha irmã está viva. — Graças a mim, meu jovem, ela devia estar morta. — Seria capaz de me matar? — perguntou Marie, olhando atentamente para o velho francês. — Não depois que vi o que Carlos tinha planejado para mim e para minha mulher. Ele violou o contrato, não eu — Antes, então. — Antes de ver as agulhas, de compreender o que era tão óbvio? — Sim. — É difícil dizer. Um contrato é um contrato. Porém, minha mulher estava morta e em parte porque pressentiu o preço terrível que eu teria de pagar. Obedecer às ordens seria negar esse aspecto de sua morte, compreende? Contudo, mesmo ela estando morta, eu não podia deixar de cumprir uma ordem do monsenhor — graças a ele tivemos alguns anos de felicidade relativa... Eu simplesmente não sei. Talvez pensasse que devia a ele a sua vida — sua morte — mas certamente não as duas crianças... e sem dúvida nenhuma a maior parte do resto. — Que resto? — perguntou St. Jacques. — É melhor não perguntar. — Eu acho que você teria me matado — disse Marie. — Estou dizendo que simplesmente não sei. Não era nada pessoal. Para mim, você não era uma pessoa, mas um item de um contrato comercial... Porém, como já disse, minha mulher estava morta e eu sou um homem velho com pouco tempo para viver. Talvez um olhar seu, uma súplica pela vida dos seus filhos — quem sabe, eu podia virar a arma contra meu peito. Mas, não sei, talvez não. — Jesus, você é um assassino — disse Johnny em voz baixa. — Sou muitas coisas, monsieur. Não espero perdão neste mundo, mas no outro a coisa é diferente. Sempre houve circunstâncias... — Lógica dos franceses — observou Brendan Patrick Pierre Prefontaine, ex-juiz do tribunal de primeiro circuito de Boston, num gesto instintivo levando a mão ao ferimento no pescoço, logo abaixo do cabelo branco chamuscado. — Graças a Deus eu nunca tive de argumentar perante les tribunals. Nenhum lado jamais está errado. — O advogado riu baixinho. — Estão vendo aqui um violador da lei,
julgado com justiça e com justiça condenado. O único aspecto atenuante dos meus crimes foi o fato de que eu fui apanhado e muitos outros jamais foram e jamais serão. — Talvez sejamos parentes mesmo, monsieur le juge. — Comparada com a sua, senhor, minha vida se parece muito mais com a de Santo Tomás de Aquino... — Chantagem — interrompeu Marie. — Não, na verdade a acusação foi de conduta ilegal. Aceitar propina para dar decisões favoráveis, esse tipo de coisa... Meu Deus, somos muito rigorosos em Boston! Em Nova York isso é mais do que comum. Deixa-se o dinheiro com o meirinho, para a distribuição. — Não estou me referindo a Boston. Estou falando do motivo de sua presença aqui. Chantagem, certo? — Supersimplificada, mas a verdade. Como eu já disse, o homem que me pagou para saber onde a senhora estava me pagou muito mais para guardar a informação em segredo. Nessas circunstâncias, como não tenho uma agenda muito apertada, achei que seria lógico fazer umas investigações. Afinal, se o pouco que eu sabia valia tanto, quanto podia pedir se descobrisse muito mais? — Está falando com lógica francesa, monsieur — observou o francês. — Uma simples progressão de interrogatório — respondeu o ex-juiz, olhando rapidamente para Jean Pierre antes de se voltar outra vez para Marie. — Entretanto, cara senhora, eu podia ter descoberto uma coisa de grande valor para as, negociações com meu cliente. Para falar claro, sua identidade estava sendo guardada em segredo e protegida pelo governo. Um fato de grande força que assustou um homem muito forte e influente. — Quero o nome dele — disse Marie. — Nesse caso preciso também de proteção — respondeu Prefontaine. — O senhor terá... — E talvez alguma coisa mais — continuou o velho ex-advogado. — Meu cliente não sabe que estou aqui, não tem idéia do que aconteceu. Tudo isso vai reforçar a chama da sua generosidade quando eu lhe contar. Vai morrer de medo só de pensar que pode estar ligado a esses fatos. Além disso, considerando que quase fui morto por aquela amazona teutônica, na verdade, mereço mais. — Então eu devo ser recompensado por salvar sua vida, monsieur? — Se eu tivesse algo de valor — além do meu conhecimento das leis, que é todo seu —, teria o maior prazer em dividir com o senhor. Se eu receber alguma coisa, isso continua valendo, primo. — Merci bien, primo.
— D’accord, mon ami, mas não deixe que as freiras irlandesas nos ouçam. — O senhor não me parece um homem pobre, juiz — disse John St. Jacques. — As aparências enganam tanto quanto o título há muito esquecido, que o senhor usou tão generosamente... Devo acrescentar que sou um homem de gostos simples, pois vivo sozinho e meu conforto não exige luxo. — Então, também perdeu sua mulher? — Não que seja da sua maldita conta, mas minha mulher me deixou há nove anos, e meu filho de 38 anos, hoje um advogado bem-sucedido de Wall Street, usa o sobrenome dela e quando lhe perguntam, diz que jamais me conheceu. Não o vejo desde que ele tinha dez anos. Compreendem, não convinha a ele. — Quelle tristesse. — Quel bobagem, primo. Aquele garoto herdou minha inteligência, não a cabeça oca da mãe... Porém, estamos divagando. Meu puro sangue francês aqui tem suas razões — obviamente baseadas em traição — para cooperar com vocês. Tenho também fortes motivos para ajudá-los, mas preciso pensar em mim primeiro. Meu idoso novo amigo pode voltar e acabar sua vida em Paris, ao passo que eu só posso voltar para Boston e para as poucas oportunidades que consegui nestes anos para sobreviver. Assim, meus motivos muito válidos para ajudá-los devem ficar em segundo lugar. Com o que sei agora eu não viveria cinco minutos nas ruas de Boston. — Temos uma pista importante — disse John St. Jacques, olhando fixamente para Prefontaine. — Eu sinto muito, juiz, mas não precisamos do senhor. — O quê? — Marie inclinou-se para a frente na cadeira. — Por favor, mano, precisamos de toda ajuda que nos queiram dar. — Não neste caso. Sabemos quem o contratou. — Sabemos? — Conklin sabe, e ele disse que é uma brecha, uma abertura. Disse que o homem que a localizou usou um juiz para isso. — St. Jacques balançou a cabeça afirmativamente na direção do exjuiz de Boston. — Ele. Por isso inutilizei um barco de centenas de milhares de dólares para chegar aqui. Conklin sabe quem é o homem: Prefontaine olhou para o francês. — Agora é a hora de dizer quelle tristesse, senhor herói. Fiquei sem nada. Minha persistência rendeu-me apenas um pescoço machucado e o couro cabeludo chamuscado. — Não necessariamente — disse Marie. — O senhor é advogado, portanto não preciso lhe dizer. Corroboração é cooperação. Podemos precisar do senhor para dizer tudo que sabe para certas pessoas
em Washington. — Corroboração pode ser obtida com uma intimação judicial, minha cara. Sob juramento, num tribunal, aceite minha palavra pessoal e profissional. — Não iremos aos tribunais. Nunca. — Oh!... Compreendo. — Não, não compreende, juiz, não neste caso. Entretanto, se concordar em nos ajudar será bem pago... Há pouco disse que tinha fortes motivos para nos ajudar, motivos que deviam ser secundários ao seu bem-estar... — Por acaso é advogada, minha cara? — Não, economista. — Santa Maria, isso é pior... Sobre minhas razões? — Referem-se ao seu cliente, o homem que o contratou para nos encontrar? — Exatamente. Sua augusta pessoa — como em César Augusto — devia ser chicoteada. Pondo de lado seu intelecto escorregadio, ele é uma prostituta. Ele foi um jovem promissor, muito mais do que eu jamais lhe disse, mas jogou tudo fora com a procura espalhafatosa do seu próprio Graal. — De que diabo ele está falando, Mare? — De um homem com muita influência e poder que não merece, eu acho. Nosso criminoso condenado aqui está falando de moralidade pessoal. — Palavras de uma economista — observou Prefontaine, mais uma vez tocando a pele esfolada do pescoço. — Uma economista pensando na sua última projeção mal calculada que levou a uma compra ou a uma venda desastrosa na Bolsa de Valores, tendo como resultado perdas que poucos podem enfrentar. — Minha voz jamais foi tão importante, mas garanto que é um reflexo de muitas outras cujas projeções deram errado, porque jamais arriscaram, ficaram apenas na teoria. É uma posição segura... A sua não é, juiz. Pode precisar da proteção que podemos lhe dar. O que diz? — Jesus, Maria e José, é uma mulher decidida... — Tenho de ser — disse Marie, olhando com firmeza para o homem de Boston. — Quero o senhor do nosso lado, mas não vou implorar. Simplesmente deixo-o livre e pode voltar para as ruas de Boston. — A senhora é ou não advogada — ou talvez o juiz supremo de um grande senhor? — A escolha é sua. Quero apenas uma resposta.
— Será que alguém pode me dizer que diabo está acontecendo aqui? — exclamou John St. Jacques. — Sua irmã — disse Prefontaine, olhando ternamente para Marie — conseguiu um recruta. Deixou bem claras as opções, uma coisa que qualquer advogado entende, e a inevitabilidade da sua lógica, além do seu rostinho bonito, coroado por esse cabelo escuro, torna a minha decisão também inevitável. — O quê...? — Ele escolheu o nosso lado, Johnny. Esqueça. — Para que precisamos dele? — Sem um tribunal, para várias coisas, meu jovem — respondeu o juiz. — Em certas situações, oferecer-se como voluntário não é a melhor coisa, a não ser que se esteja completamente protegido, além do poder dos tribunais. — Isso está certo, Marie? — Não está errado, mas depende de Jason — droga —, de David. — Não, Mare — disse John St. Jacques, olhando fixamente para a irmã. — Depende de Jason. — Esses são os nomes que devo conhecer? — perguntou Prefontaine. — O nome “Jason Bourne” estava escrito na parede da sua vila. — Minhas instruções, primo — disse o falso — mas não tão falso — herói da França. — Foi necessário. — Não compreendo... assim como não conheço o outro nome, “Chacal” ou “Carlos”, sobre o qual vocês me interrogaram com tanta brutalidade quando eu nem sabia ainda se estava vivo ou morto. Pensei que o “Chacal” fosse um personagem de ficção. O velho chamado Jean Pierre Fontaine olhou para Marie e ela balançou a cabeça afirmativamente. — Carlos, o Chacal, é uma lenda, mas não é ficção. É um assassino profissional agora com uns sessenta anos, doente, segundo dizem, mas dominado ainda por um ódio terrível. É um homem de muitas caras, muitos lados, alguns deles amados por aqueles que têm razão para isso, outros, detestados por aqueles que o consideram a própria essência do mal — e dependendo do ponto de vista todos têm suas razões para estar certos. Eu sou um exemplo do homem que conheceu todos esses lados, mas meu mundo é muito diferente do seu, como você sugeriu. Santo Tomás de Aquino. — Merci bien. — Mas o ódio que domina Carlos cresce como um câncer no seu cérebro envelhecido. Um
homem o obrigou a se expor, um homem o enganou, usurpou seus crimes, roubou o crédito do trabalho do Chacal, uma morte depois da outra, enlouquecendo Carlos quando ele estava tentando corrigir esse engano, tentando manter sua supremacia como o mais perfeito assassino. Esse mesmo homem é responsável pela morte da sua amante — muito mais do que isso, a mulher que era seu ponto de apoio, a amada da sua infância na Venezuela, sua companheira em tudo. Esse homem foi o único, entre as centenas, talvez milhares de outros, enviados por vários governos do mundo, que viu o rosto de Carlos — como o Chacal. O homem que fez tudo isso era um produto do Serviço de Inteligência americano, um homem estranho que viveu uma mentira mortal durante três anos. E Carlos não descansará enquanto ele não for punido... e morto. Esse homem é Jason Bourne. Entrecerrando os olhos, abalado com a história do francês, Prefontaine inclinou-se para a mesa. — Quem é Jason Bourne? — perguntou. — Meu marido, David Webb — disse Marie. — Oh, meu Deus — murmurou o juiz. — Quer por favor me dar um drinque? John St. Jacques chamou: — Ronald! — Sim, patrão-mon! — disse de dentro da vila o guarda cujas mãos fortes haviam segurado seus ombros há uma hora na Vila Vinte. — Por favor, traga uísque e brandy. Deve haver bastante no bar. — É pra já, senhor. O sol cor de laranja, a leste, incendiou-se de repente, penetrando com seus raios o que restava da neblina da madrugada. O silêncio foi quebrado pelas palavras do francês, ditas em voz baixa com forte sotaque. — Não estou acostumado a esse tipo de tratamento — disse, olhando para as águas claras do Caribe. — Quando pedem alguma coisa, sempre penso que eu devo servir. — Isso acabou — disse Marie. E depois de uma pequena hesitação, acrescentou: — Jean Pierre. — Acho que é possível viver com esse nome... — Por que não aqui? — Qu’est-ce que vous dites, madame? — Pense no assunto. Paris não deve ser menos perigoso para o senhor do que as ruas de Boston para nosso juiz. O citado juiz estava perdido nos seus devaneios. As garrafas e o gelo foram postos sobre a mesa.
Sem hesitação, Prefontaine serviu-se de uma dose alentada. — Tenho de fazer uma ou duas perguntas — disse ele. — É possível? — Vá em frente — respondeu Marie. — Não posso garantir a resposta, mas pergunte. — Os tiros, as palavras escritas com tinta na parede — meu primo aqui diz que foram escritas por sua ordem... — Foram, mon ami. Os tiros também. — Por quê? — Tudo devia ser como eles esperavam. Os tiros foram um elemento adicional para chamar atenção para o que ia acontecer. — Por quê? — Uma coisa que aprendemos na Resistência — não que eu tenha sido jamais um “Jean Pierre Fontaine”, mas desempenhei um pequeno papel. Era o que chamavam de accentuation —, uma declaração positiva de que o movimento subterrâneo era responsável pela ação. Todos conheciam esse sinal. — Por que aqui? — A enfermeira do Chacal está morta. Não sobrou ninguém para dizer que suas ordens foram cumpridas. — Lógica francesa. Incompreensível. — Bom-senso francês. Incontestável. — Por quê? — Carlos estará aqui amanhã ao meio-dia, — Oh, meu Deus! O telefone tocou dentro da vila. John St. Jacques ergueu-se de um salto, mas Marie estendendo o braço na frente do rosto dele, correu para atender. — David? — É Alex — disse a voz ofegante. — Cristo, estou com este maldito telefone em chamada permanente há três horas! Vocês estão bem? — Estamos vivos, mas não devíamos estar.
— Os velhos! Os velhos de Paris! Johnny... — Sim, Johnny conseguiu, mas eles estão do nosso lado. — Quem? — Os velhos... — É absurdo o que está dizendo. — Não, não é. Tudo está sob controle aqui. E David? — Eu não sei! As linhas telefônicas foram cortadas. Tudo está numa confusão! Mandei a polícia para lá... — Esqueça a polícia, Alex! — exclamou Marie. — Chame o exército, os fuzileiros, a droga da CIA! Eles nos devem isso! — Jason não permitiria. Não posso ir contra ele agora. — Muito bem, então veja o que acha disto. O Chacal estará aqui amanhã. — Oh, Jesus! Preciso arranjar um jato para ele, em algum lugar. — Você tem de fazer alguma coisa! — Você não compreende, Marie. A antiga Medusa reapareceu... — Pois diga ao meu marido que a Medusa é história. O Chacal não é, e ele vai chegar aqui amanhã! — David estará aí. Você sabe disso. — Sim, eu sei... Porque ele agora é Jason Bourne. — Br’er Rabbit, isto não está acontecendo trinta anos atrás e você tem trinta anos a mais. Não só vai ser inútil, como um risco se não descansar, se não dormir um pouco. Apague as luzes e tire uma soneca naquele sofá enorme na sala de estar. Eu me encarrego dos telefones, que não vão tocar porque ninguém vai telefonar às 4:00h da manhã. Jason deixou de ouvir a voz de Cactus quando entrou na sala com as pernas pesadas, as pálpebras fechando-se como portas de chumbo. Deixou-se cair no sofá, erguendo as pernas lentamente, com esforço, uma de cada vez para as almofadas macias. Olhou para o teto. O descanso é uma arma, batalhas ganhas e perdidas... Philippe D’Anjou. Medusa. Sua tela interior de imagens se apagou e ele adormeceu. O som estridente e repetido, ensurdecedor e incessante ecoou pela casa como um furacão de som. Bourne levantou-se de um salto, a princípio desorientado, sem saber onde estava, e por um terrível
momento... quem era. — Cactus! — gritou ele, correndo para o corredor. — Cactus! — chamou outra vez, ouvindo a própria voz se perder no ritmo crescente da sirena de alarme. — Onde você está? Nada. Correu para a porta da sala de trabalho, e segurou a maçaneta. Estava trancada! Recuando, investiu com o ombro contra a porta, uma, duas vezes, na terceira com toda a velocidade e força possíveis. A porta rachou, depois cedeu e Jason a derrubou aos pontapés; entrou e o que viu fez com que a máquina assassina, produto de Medusa e de outros fatores, parasse imóvel com uma fúria gelada. À luz da única lâmpada, Cactus estava com metade do corpo sobre a mesa, na mesma cadeira onde havia morrido o general, e seu sangue formava uma poça vermelha no mata-borrão verde — um cadáver... Não, não um cadáver! A mão direita se moveu. Cactus estava vivo! Bourne correu para a mesa e ergueu com cuidado a cabeça do velho homem. O alarme estridente e extremamente forte impedia qualquer comunicação — se é que alguma comunicação era possível. Cactus abriu os olhos escuros e sua mão direita ensangüentada moveu-se sobre o mata-borrão com o dedo indicador curvado batendo sobre a mesa. — O que é? — gritou Jason. A mão continuou a bater na borda do mata-borrão, mais rapidamente agora. — Embaixo? Debaixo? Com movimentos quase imperceptíveis da cabeça, Cactus fez um gesto afirmativo. — Debaixo da mesa! — gritou Bourne, começando a compreender. Ajoelhou no lado direito de Cactus e passou a mão sob a primeira gaveta, depois dos lados. Encontrou! Um botão. Cuidadosamente empurrou a cadeira pesada um pouco para a direita e examinou o botão. Abaixo dele havia uma tira de plástico negro com pequenas letras brancas. A resposta. Alarme Aux. Jason apertou o botão e o pandemônio cessou. O silêncio era quase ensurdecedor, a adaptação do ouvido a ele, quase apavorante. — Como o atacaram? — perguntou Bourne. — Há quanto tempo?... Se não pode falar, apenas murmure, não gaste energia, entendeu? — Oh, Br’er, você é demais — murmurou Cactus dolorosamente. — Fui um chofer de praça negro em Washington, cara. Já passei por isto antes. Não é fatal, garoto. Tenho uma bala na parte superior do peito. — Vou chamar um médico imediatamente — nosso amigo Ivan —, mas se você puder, diga-me o que aconteceu, enquanto eu o deito no chão e verifico o ferimento. — Lenta e cuidadosamente Jason
tirou Cactus da cadeira e o deitou sobre o tapete ao lado da janela. Rasgou a camisa e viu o ferimento no ombro esquerdo. Com movimentos rápidos Bourne fez a camisa em tiras e passou ataduras firmes sob o braço e sobre o ombro do homem ferido. — Não é grande coisa — disse Jason — mas vai servir por algum tempo. Conte agora. — Ele está lá fora, Br’er. — Com uma tosse fraca, ele continuou. — Tem uma. maldita Magnum 57 com silenciador. Ele atirou através da janela, depois quebrou o vidro e entrou... Ele... ele... — Calma! Não fale, está tudo bem... — Preciso. Os irmãos lá fora não estão armados. Ele vai pegar um por um!... Fingi que estava morto e ele estava com pressa — oh, com uma pressa daquelas! Olhe ali — Jason virou a cabeça na direção indicada por Cactus. Uns dez ou mais livros tinham sido tirados da estante e jogados no chão. O velho continuou com voz cada vez mais fraca. — Ele revistou a estante de livros em pânico, até encontrar o que procurava... depois foi para a porta, com aquela 57 pronta para o que desse ou viesse, se entende o que quero dizer... Pensei que estava atrás de você, que tinha visto pela janela quando você foi para a sala, e pode crer, eu comecei a empurrar meu joelho direito como um animal assustado porque tinha visto aquele botão e sabia que tinha de deter o homem... — Calma! — Tenho de contar... Se eu movesse as mãos ele veria, mas meu joelho bateu naquele botão e o alarme quase me fez pular da cadeira... O filho da mãe se descontrolou. Bateu a porta, trancou, e saiu correndo pela janela. — Cactus inclinou a cabeça para trás, dominado pela dor e pelo cansaço. — Ele está lá fora, Br’er Rabbit... — Isso é o bastante! — ordenou Bourne. Com gestos lentos, apagou a lâmpada da mesa, deixando a sala iluminada apenas pela luz fraca que vinha do corredor. — Vou chamar Alex para que ele mande o médico... De repente, em algum lugar lá fora soou um grito estridente, um rugido de espanto e de angústia que Jason conhecia muito bem. Cactus também sabia o que era e murmurou, de olhos fechados. — Ele pegou um. Aquele filho da mãe pegou um dos meus irmãos! — Vou falar com Conklin — disse Jason, apanhando o telefone. — Depois vou lá fora pegá-lo... Oh, Cristo! O telefone está mudo! A linha foi cortada! — Aquele bandido conhece bem a casa. — Eu também conheço, Cactus. Fique o mais quieto possível. Volto para tirá-lo daqui... Outro grito, mais baixo, mais brusco, mais uma explosão de ar do que um rugido.
— Que o doce Jesus me perdoe — murmurou o velho negro penosamente. — Só falta um irmão. — Se alguém deve ser perdoado sou eu — exclamou Bourne com voz rouca, embargada. — Malditos! Eu juro, Cactus, jamais pensei que pudesse acontecer uma coisa destas. — É claro que não. Eu o conheço dos velhos tempos, Br’er, e nunca o vi pedir a ninguém para se arriscar por você... Sempre foi o contrário... — Vou levar você para perto da mesa — interrompeu Jason, começando a puxar o tapete e colocando Cactus de modo a alcançar com a mão esquerda o botão de alarme. — Se ouvir ou vir qualquer coisa, ou se sentir algo, aperte o botão. — Onde você vai? Quero dizer, como? — Para outra sala. Vou sair por outra janela. Bourne passou pela porta em pedaços e correu para a sala de estar. Na outra extremidade havia uma porta de vidro que abria para um pátio externo. Lembrou-se de ter visto móveis de jardim brancos, de ferro, no lado sul da casa quando estava com os guardas. Abriu a porta e saiu, tirando a automática do cinto. Fechou uma folha da porta de vidro e agachado dirigiu-se para a cerca viva na borda do gramado. Tinha de se movimentar rapidamente. Não só uma vida estava em perigo, a vida de um desconhecido, que nada tinha a ver com o que estava acontecendo, como também lá fora estava um assassino que podia servir de atalho para Jason chegar à nova Medusa, e esses crimes eram sua isca para o Chacal! Uma diversão, um ímã, uma armadilha — foguetes sinalizadores —, parte do seu equipamento. As duas velas de emergência estavam no bolso esquerdo traseiro da sua calça. Tinham 12 centímetros de comprimento e sua luz podia ser vista a quilômetros de distância. As duas juntas, acesas uma depois da outra, dariam para iluminar toda a propriedade de Swayne como poderosos holofotes. Uma no lado sul, outra ao lado dos canis, talvez acordando os cães drogados, assustando-os, enfurecendo-os. — Faça isso! Depressa! Jason atravessou o gramado olhando atento para todos os lados, imaginando onde estaria o assassino e como a presa inocente trazida por Cactus estava fugindo dele. Um tinha experiência, o outro não, e Bourne não podia permitir que a vida dele fosse desperdiçada sem nenhum motivo. Aconteceu! Foi descoberto! Duas balas da arma com silenciador zumbiram no ar, uma de cada lado dele. Jason chegou à parte sul da entrada circular de veículos e mergulhou na folhagem. Tirou um sinalizador do bolso, pôs a arma no chão, acendeu o pavio com o isqueiro e atirou o bastão crepitante para a direita. O sinalizador caiu no caminho aberto. Dentro de segundos começaria a soltar sua chama cegante. Jason correu para a esquerda sob os pinheiros, na direção dos fundos da propriedade com o isqueiro e o segundo sinalizador numa das mãos e a automática na outra. Estava paralelo aos canis. O sinalizador no caminho explodiu com chamas branco-azuladas. Jason acendeu o segundo e o atirou para a frente. O foguete caiu a quarenta metros dos canis. Bourne esperou. O segundo sinalizador explodiu e duas bolas de luz clara iluminaram a casa e o terreno no lado sul. Três cães começaram a gemer baixinho, depois tentaram uivar. Logo sua fúria e sua confusão seriam ouvidas. Uma sombra. Contra o muro do lado oeste da casa branca — estava se movendo,
iluminada pela luz do sinalizador, entre os canis e a casa. O vulto correu para a proteção da cerca viva. Agachou e ficou imóvel, sua silhueta nitidamente delineada entre a folhagem. Seria o assassino ou o seu alvo, o último “irmão” recrutado por Cactus?... Só tinha um meio de saber e no caso de ser o assassino e se ele fosse bom atirador, não era a melhor tática, mas era a mais rápida. Bourne saltou do meio dos arbustos, gritando e expondo-se completamente, atirando-se para a direita. No último instante, firmou o pé na terra macia e girou o corpo, abaixando-se e mergulhando para a esquerda. Teve a sua resposta. Mais dois tiros, dois estalidos no ar e as balas enterraram-se na terra à sua direita. O assassino era bom, talvez não um especialista, mas era bom. Um 357 tem seis balas. Cinco já haviam sido usadas, mas ele tivera tempo suficiente para recarregar. Outra estratégia... Depressa! De repente apareceu outro vulto. Um homem corria pelo caminho na direção dos fundos da casa de Flannagan. Estava em campo aberto — podia ser morto! — Aqui, seu filho da mãe! — gritou Jason, saltando e atirando às cegas na cerca viva ao lado da casa. Então teve outra resposta, esta mais satisfatória. Um único tiro com silenciador, um único estalido no ar e nada mais. O assassino não havia recarregado a arma! Talvez não tivesse mais munição — fosse o que fosse, o alvo principal estava agora a salvo. Bourne saiu apressadamente dos arbustos e atravessou o gramado na direção da luz dos sinalizadores. Agora os cães estavam acordados e os ganidos e rosnados de ataque ficavam cada vez mais altos. O assassino saiu da cerca viva para o caminho, correndo de uma sombra para outra na direção dos portões. O miserável estava em suas mãos, Jason sabia. Os portões estavam fechados, o medusiano encurralado. Bourne rugiu. — Não tem saída, Mulher Serpente! Facilite as coisas para você... Um zumbido, um estalo. O homem tinha recarregado enquanto corria! Jason atirou e o homem caiu no caminho. Nesse momento o silêncio intermitente da noite foi rasgado pelo som de um motor de alta potência e o veículo apareceu na estrada no outro lado dos portões com as luzes vermelhas e azuis girando na noite. A policial O alarme devia ter chegado ao quartel da polícia em Manassas, uma possibilidade que não havia ocorrido a Bourne. Pela lógica, tal medida não combinava com as atividades de Medusa. A segurança era interna, a Mulher Serpente não admitiria intrusão de qualquer força externa. Havia muita coisa escondida naquela propriedade, muita coisa que devia ser mantida em segredo — era um cemitério! O assassino retorcia-se no caminho, rolando para a fila de pinheiros, segurando alguma coisa. Jason aproximou-se dele quando dois policiais desceram da radiopatrulha no outro lado do portão. Com um pontapé Bourne fez o homem soltar o que segurava e abaixou-se para apanhar. Era um livro encadernado com couro, parte de uma coleção, como um volume de Dickens ou Thackeray, com as letras em ouro, mais para adorno do que para ser lido. Era loucura! Então virou uma página e viu que não se tratava de loucura nenhuma. Não havia nada impresso no livro, apenas notas escritas a mão. Era um diário, um livro razão! A polícia não devia entrar nisso. Especialmente agora. Não podia saber que ele e Conklin haviam invadido a Medusa. O livro que tinha na mão não devia ser visto por ninguém. O Chacal era tudo! Tinha de se livrar dos policiais.
— Recebemos um chamado — disse o patrulheiro de meia-idade, caminhando para o portão, acompanhado do outro policial mais jovem. — O homem estava nervoso à beca. Estamos atendendo, mas como eu disse ao homem da seção de chamados, sempre há festas barulhentas por aqui, sem querer criticar, senhor. Nós todos gostamos de nos divertir um pouco uma vez ou outra, certo? — Absolutamente certo — respondeu Jason, tentando controlar a respiração ofegante e dolorosa. Olhou de soslaio para o assassino ferido — o homem tinha desaparecido! — Tivemos falta de luz por alguns instantes, o que de algum modo interferiu nas linhas telefônicas. — Acontece sempre — confirmou o policial mais moço. — Chuvas repentinas e relâmpagos de verão. Algum dia vão resolver colocar os cabos sob a terra. Minha família tinha uma casa... — O caso — interrompeu Bourne — é que tudo já voltou ao normal. Como podem ver, algumas luzes da casa já estão acesas. — Não vejo nada com a luz daqueles sinalizadores — disse o jovem. — O general sempre toma as maiores precauções — explicou Jason. — Acho que considera seu dever — acrescentou. — Seja como for, tudo já está — como eu disse — voltando ao normal. Certo? — Tudo bem para mim — respondeu o mais velho —, mas tenho um recado para alguém chamado Webb. Ele está aí? — Eu sou Webb — disse Jason, alarmado. — Isso facilita as coisas. Deve telefonar imediatamente para um “Senhor Conk”. É urgente. — Urgente? — Uma emergência, foi o que nos disseram. Recebemos a mensagem pelo rádio do carro. Jason ouviu o barulho da cerca de metal no limite da propriedade de Swayne. O assassino estava fugindo! — Bem, os telefones estão ainda enguiçados... Tem um no seu carro? — Não para uso pessoal, senhor, sinto muito. — Mas acabou de dizer que é uma emergência. — Bem, acho que, como o senhor é hóspede do general, posso permitir. Porém, se for interurbano, acho bom ter o número do seu cartão de crédito. — Oh, meu Deus — Bourne abriu o portão e correu para a radiopatrulha quando o alarme foi ativado novamente dentro da casa — ativado e imediatamente desligado. Aparentemente o irmão sobrevivente havia encontrado Cactus. — Que diabo foi aquilo? — gritou o policial mais jovem.
— Esqueça! — gritou Jason, saltando para dentro do carro e tirando o tão conhecido telefone de patrulha do gancho. Deu o número de Alex na Virgínia para o telefonista da polícia e ficou repetindo. É uma emergência, é uma emergência. — Sim? — atendeu Conklin, falando com o telefonista da polícia. — Sou eu! — O que aconteceu? — Muito complicado para contar agora. Qual é a emergência? — Seu jato particular está no Aeroporto de Reston. — Reston? Isso fica ao norte daqui... — O campo em Manassas não tem equipamento necessário. Estou mandando um carro para você. — Por quê? — Tranqüilidade. Marie e as crianças estão bem, estão bem! Ela está controlando tudo. — Que diabo significa isso? — Vá para Reston que eu explico. — Quero saber mais! — O Chacal chega hoje em Montserrat, de avião. — Jesus Cristo! — Arrume as coisas aí e espere o carro. — Vou usar este mesmo! — Não! A não ser que queira estragar tudo. Temos tempo. Termine as coisas aí, primeiro. — Cactus... está ferido — levou um tiro. — Vou telefonar para Ivan. Ele vai voltar correndo. — Só sobrou um irmão — só um, Alex. Eu matei os outros dois — fui responsável por suas mortes. — Pare com isso. Pare! Faça o que tem de fazer. — Para o diabo com você! Eu não posso! Alguém tem de estar aqui e eu não estarei!
— Tem razão. Há muita coisa nessa casa que não queremos que ninguém saiba e você tem de estar em Montserrat. Eu vou com o carro e fico no seu lugar. — Alex, diga-me o que aconteceu em Tranqüilidade. — Os velhos... seus velhos de Paris, foi isso que aconteceu. — Eles estão mortos — disse Jason Bourne em voz baixa e inexpressiva. — Não se apresse. Eles mudaram de lado — pelo menos foi o que entendi. O verdadeiro mudou de lado e o outro foi um engano mandado por Deus. Estão do nosso lado agora. — Eles estão sempre de um só lado, o lado do Chacal! Você não os conhece. — Você também não. Escute o que sua mulher tem para contar. Mas agora volte para casa e escreva tudo que eu preciso saber... E, Jason, preciso dizer uma coisa. Espero em Deus que você encontre a solução do seu problema — do nosso problema — em Tranqüilidade. Porque, considerando tudo, incluindo a minha vida, não posso manter este caso da Medusa somente ao nosso nível por muito tempo. Acho que você sabe disso. — Você prometeu. — Trinta e seis horas, Delta. No bosque, do outro lado da cerca, um homem ferido estava agachado com o rosto encostado no metal azul. À luz dos faróis ele viu o homem alto entrar no carro da polícia, depois sair e agradecer nervosamente aos policiais. Mas não permitiu que eles entrassem na propriedade. Webb. O assassino ouvira o nome. Webb. Era tudo que eles precisavam saber. Tudo que a Mulher Serpente precisava saber.
Capítulo15 — MEU DEUS, como eu te amo! — disse David Webb, no telefone público do Aeroporto de Reston, na Virgínia. — O pior foi a espera. Esperar para falar com você, para ouvir de você que estava bem. — O que acha que eu senti, querido? Alex disse que as linhas telefônicas tinham sido cortadas e que ele ia mandar a polícia. Eu disse que ele devia mandar o exército inteiro. — Não podemos permitir nem a intervenção da polícia, nada oficial no momento. Conklin me prometeu pelo menos mais 36 horas... Talvez nem precisemos de tanto agora. Não com o Chacal em Montserrat. — David, o que aconteceu? Alex falou em Medusa... — É uma confusão, e ele está certo, temos de procurar ajuda de cima. Ele, não nós. Nós ficamos de fora. Bem longe. — O que aconteceu? — repetiu Marie. — O que a velha Medusa tem a ver com tudo isto? — Há uma nova Medusa — na verdade, uma extensão da antiga — e é grande, feia e assassina, eles matam. Eu vi esta noite. Um dos seus assassinos tentou me matar, depois de pensar que tinha liquidado Cactus e de assassinar dois homens inocentes. — Meu Deus! Alex me falou de Cactus, mas sem detalhes. Como está seu tio Remus? — Vai viver. O médico da Agência levou Cactus e o irmão sobrevivente com ele. — Irmão? — Conto quando chegar aí... Conklin está lá agora. Vai tomar conta de tudo e mandar consertar o telefone. Ligo para ele de Tranqüilidade. — Você está exausto. — Estou cansado, mas não sei por quê. Cactus insistiu para que eu dormisse um pouco e acho que apaguei por uns 12 minutos. — Deve estar muito cansado, meu pobre querido. — Gosto do tom da sua voz, das palavras mais ainda. Só que não sou pobre. Você se encarregou disso em Paris, há 13 anos. — O silêncio de Marie o alarmou. — O que foi? Você está bem? — Não sei — respondeu Marie com uma suavidade que desmentia seus sentimentos. — Você diz que esta nova Medusa é grande e feia e que tentou matá-lo — eles tentaram matá-lo.
— Mas não mataram. — Mas eles, ou a Medusa, querem a sua morte. Por quê? — Porque eu estava lá. — Você não mata um homem só por ele estar na casa de alguém... — Muita coisa aconteceu naquela casa esta noite. Alex e eu penetramos no círculo de segredos deles e eu fui visto. A idéia era atrair o Chacal, fazendo com que alguns bandidos ricos e muito famosos da velha Saigon o contratassem para me matar. Era uma estratégia perfeita, mas ultrapassou nosso controle. — Meu Deus, David, você não compreende? Você é um homem marcado! Eles próprios vão procurar eliminá-lo. — Como? O assassino de Medusa que estava na casa não viu meu rosto, e eles não têm idéia de quem eu sou. Sou uma pessoa inexistente que desaparece de um momento para o outro... Não, Marie, se Carlos aparecer e eu puder fazer o que sei que posso, em Montserrat, estaremos livres. Para usar uma frase feita, “finalmente livres”. — Sua voz também muda. — O quê? — Muda sim, estou percebendo. — Não sei do que está falando — disse Jason Bourne. — Estão me chamando. O avião chegou. Diga ao Johnny para manter os dois velhos sob vigilância! A notícia rolou por Montserrat como neblina levada pelo vento. Acontecera alguma coisa horrível na Ilha da Tranqüilidade. “Maus tempos, mon...” “O malvado obeah veio da Jamaica, passando pelas Antilhas, trazendo morte e loucura...” “E sangue nos muros da morte, mon, uma maldição sobre a família de um animal...” “Shh! Havia uma gata e dois gatinhos...!” E outras vozes diziam... “Senhor, faça com que a notícia não se espalhe. Pode arruinar o turismo que criamos!...” “Nunca aconteceu nada parecido antes — um acidente isolado, sem dúvida relacionado com drogas, trazidas de outras ilhas!...” “Verdade, mon! Ouvi dizer que era um homem louco, com o corpo cheio de drogas...” “Disseram que um barco veloz como o vento o levou para o mar. Ele se foi!...” “Fiquem calados, estou dizendo! Lembram-se das Virgens? O massacre de Fountainhead? Levaram anos para se refazer dos prejuízos. Quietos!” E uma voz isolada. “É uma armadilha, senhor, e se der certo, como acreditamos que dará, seremos as grandes figuras das Antilhas, os heróis do Caribe. Será positivamente maravilhoso para a nossa imagem. Lei e ordem e tudo o mais”.
— Graças a Deus! Alguém morreu? — Uma pessoa, e ela estava no ato de tirar a vida de um homem. — Ela? Meu Deus, não quero ouvir mais qualquer palavra até que tudo esteja terminado. — É melhor o senhor evitar qualquer comentário. — Ótima idéia. Vou sair de barco, está dando muito peixe depois da tempestade. — Excelente, senhor. E eu o informo dos acontecimentos pelo rádio. — Talvez seja melhor não fazer isso. Podem interceptar a transmissão. — Minha intenção era poder aconselhá-lo quando voltar — para que possa aparecer no momento mais vantajoso. Eu o informarei, é claro. — Sim, é claro. Você é um bom homem, Henry. — Muito obrigado, governador da Coroa. Às 10:00h da manhã estavam todos reunidos, mas com pouco tempo para conversar. Bastava o consolo de estarem juntos, a salvo e juntos, certos de que sabiam coisas que o Chacal ignorava e que isso representava uma vantagem enorme. Porém, era apenas uma vantagem, não uma garantia, não quando se tratava de Carlos. Jason e St. Jacques decidiram que Marie e as crianças deviam ir de avião para a Ilha de Guadalupe em Basse-Terre. Ficariam com a governanta, a Sra. Cooper, sob guarda rigorosa, até serem chamadas de volta a Montserrat. Marie foi contra a idéia, mas suas objeções encontraram apenas o silêncio. As ordens do marido foram dadas de forma brusca e fria. — Vocês vão partir porque tenho um trabalho para fazer. Não discutiremos mais o assunto. — É a Suíça outra vez... Zurique de novo, não é, Jason? — Pode ser o que você quiser — respondeu Bourne, preocupado com a demora dos três na ponte de embarque, com os dois hidraviões esperando na água. Jason viajara num deles diretamente de Antigua para Tranqüilidade. O outro estava abastecido para a viagem a Guadalupe e a Sra. Cooper e as crianças já haviam embarcado. — Apresse-se, Marie — acrescentou Bourne. — Quero organizar as coisas com Johnny e depois interrogar aqueles dois montes de lixo. — Não são montes de lixo, David. Graças a eles estamos vivos. — Por quê? Porque falharam e tiveram de mudar de lado para salvar a pele? — Isso não é justo. — É justo até eu resolver o contrário e eles são lixo até me convencerem de que não são. Você
não conhece os velhos do Chacal. Eu conheço. São capazes de dizer qualquer coisa, mentir e se humilhar, e se você olha para o outro lado, enfiam uma faca nas suas costas. Ele os possui — corpo, mente e o que resta das suas almas... Agora, entre naquele avião, estão à sua espera. — Você não quer ver as crianças, dizer ao Jamie que... — Não. Não há tempo! Leve-a daqui, Johnny. Quero verificar a praia. — Eu já verifiquei tudo, David — disse St. Jacques quase como um desafio. — Eu vou dizer se você verificou ou não — respondeu Bourne asperamente, caminhando furioso para a extensão de areia e acrescentando em voz alta, sem olhar para trás: — Vou lhe fazer uma porção de perguntas e espero que tenha a resposta! St. Jacques ficou tenso, deu um passo à frente, mas a irmã o deteve. — Esqueça, Johnny — disse ela com a mão no braço do irmão. — Ele está assustado. — Está o quê? Ele é um maldito filho da mãe, isso é o que ele é! — Sim, eu sei. John olhou para Marie. — O estranho de quem você falou ontem à noite? — Isso mesmo, mas muito pior agora. Por isso ele está assustado. — Não compreendo. — Ele está mais velho, Johnny. Tem cinqüenta anos agora e não está certo de poder fazer as coisas que fazia antes, anos atrás — durante a guerra, em Paris, em Hong Kong. Tudo isso o está atormentando porque ele sabe que tem de ser melhor do que nunca. — Acho que pode. — Sei que será, pois tem um motivo muito forte. A mulher e dois filhos foram tirados dele uma vez. Jason mal se lembra deles, mas são o ponto central do seu tormento. Mo Panov acredita nisso e eu também... Agora, anos mais tarde, outra mulher e outros filhos são ameaçados. Cada nervo do seu corpo deve estar em chamas. De repente a voz de Bourne soou a dez metros de distância, através das brisas do mar. — Droga, eu mandei andar depressa!... E você, Sr. Entendido, estou vendo um recife de coral lá adiante com a sombra de um banco de areia atrás dele. Já pensou nisso? — Não responda, Johnny. Vamos para o avião.
— Um banco de areia? De que diabo ele está falando?... Oh, meu Deus, eu sei! — Pois eu não — disse Marie, enquanto caminhavam rapidamente pelo pontão de embarque. — Oitenta por cento da ilha são circundados por recifes de coral. No que se refere a esta praia, são 95%. Eles servem como quebra-ondas, por isso chama-se Tranqüilidade. Não temos ondas na praia. — E daí? — Daí que se alguém estiver usando um tanque de ar debaixo d’água não vai se arriscar a bater num recife de coral, mas pode subir num banco de areia que esteja na frente do recife. Pode observar a praia e os guardas e aproximar-se quando o campo estiver livre, esperando dentro d’água, a poucos metros da praia, até poder dominar um guarda. Nunca pensei nisso. — Ele pensou, Johnny. Bourne estava sentado numa ponta da mesa, com os dois homens no sofá à sua frente, John de pé ao lado da janela que dava para a praia. — Por que eu, por que nós íamos mentir para o senhor? — perguntou o herói da França. — Porque tudo isso parece uma farsa clássica francesa. Nomes semelhantes, mas diferentes, uma porta abrindo-se enquanto a outra se fecha, pessoas parecidas que desaparecem e reaparecem no momento certo. Isso fede, cavalheiros. — O senhor é por acaso estudioso de Molière ou Racine...? — Sou estudioso de coincidências estranhas, especialmente quando se trata do Chacal. — Não acho que haja qualquer semelhança entre nós dois — disse o juiz de Boston. — A não ser, talvez, nossas idades. O telefone tocou e Jason o atendeu imediatamente. — Sim? — Tudo confere em Boston — disse Conklin. — O nome dele é Prefontaine, Brendan Prefontaine. Era juiz federal do primeiro circuito e foi apanhado durante uma devassa do governo e condenado por conduta ilegal na profissão — o que significa o recebimento de subornos muito altos. Foi condenado a 21 anos e cumpriu dez, o suficiente para arrasar com sua vida sob todos os aspectos. É o que chamam de alcoólatra funcional, uma figura conhecida nas áreas mais desprivilegiadas de Bean’s Town, mas inofensivo — na verdade, muita gente gosta dele, de um modo um tanto deturpado. É considerado um homem brilhante quando está sóbrio e muitos acusados não teriam sido absolvidos e outros estariam cumprindo penas mais longas se não fosse por seus conselhos profissionais. Pode-se dizer que é advogado não oficial dos salões de bilhar, bares e provavelmente de armazéns... Uma vez que estive no mesmo barco, no que se refere à bebida, posso dizer que me parece um homem correto. Está enfrentando a situação muito melhor do que eu enfrentei.
— Você desistiu. — Se eu tivesse sucesso naquela zona intermediária, não teria desistido. Em muitas ocasiões o álcool ajuda muito. — E o cliente dele? — Impressionante, e nosso ex-juiz era assistente da cadeira de direito em Harvard, e foi professor de Gates em duas matérias. Não há dúvida alguma. Prefontaine conhece o homem... Confie nele, Jason. Não tem motivo para mentir. Estava simplesmente atrás de mais dinheiro. — Você está vigiando o cliente? — Com toda a munição silenciosa do meu arsenal particular. Ele é nosso elo com Carlos... A conexão Medusa era uma pista falsa, uma tentativa idiota de um general idiota do Pentágono de colocar alguém dentro do círculo legal de Gates. — Tem certeza disso? — Agora tenho. Gates é um consultor muito bem pago de uma firma de advocacia encarregada da megadefesa de um construtor que está sendo investigado pela comissão antitruste. Ele nunca retribuía os telefonemas de Swayne. Se o fizesse seria mais burro do que o general e isso ele não é. — Amigo, esse problema é seu, não meu. Se tudo sair como eu espero por aqui, não quero nem ouvir falar na Mulher Serpente. Na verdade, não me lembro de ter ouvido nada a esse respeito. — Obrigado por jogar para cima de mim — e de certo modo, acho que agradeço mesmo. A propósito, o caderno de escola primária que você tirou do atirador em Manassas tem algumas coisas interessantes. — Sim? — Lembra-se daquelas três pessoas que há oito meses chegaram a Filadélfia de avião no mesmo dia e por coincidência hospedaram-se no Mayflower na mesma ocasião? — Sim, eu me lembro. — Os nomes estão no caderninho espiral de Swayne. Não tinham nada a ver com Carlos. São da Medusa. O caderno é uma verdadeira mina de informações esparsas. — Não estou interessado. Use todas com bastante saúde. — Vamos usar e muito discretamente. Aquele caderninho logo vai estar na lista da literatura mais procurada. — Fico feliz por você, mas tenho muito que fazer. — E recusa qualquer ajuda?
— Definitivamente. Estou esperando por isso há dez anos. É como eu disse no começo, um contra um. — High Noon, seu grande idiota. — Não, a extensão lógica de um jogo de xadrez muito intelectual. O jogador com a melhor armadilha ganha, e eu tenho essa armadilha porque estou usando a dele. Carlos perceberia qualquer coisa diferente. — Nós o treinamos bem demais, professor. — E eu agradeço por isso. — Boa caçada, Delta. — Adeus. Bourne desligou o telefone e olhou para os dois velhos patéticos no sofá. — Você passou num teste superficial, juiz — disse ele para Prefontaine. — Quanto a você, “Jean Pierre”, o que posso dizer? Minha mulher, admitindo que você a teria matado sem a menor hesitação, diz que devo confiar em você. Nada disso faz muito sentido, certo? — Eu sou o que sou e fiz o que fiz — disse o ex-advogado com dignidade. — Mas meu cliente foi longe demais. Sua pessoa magisterial deve acabar em cinzas. — Minhas palavras não são tão bonitas como as do meu culto e novo amigo — disse o velho herói da França. — Mas sei que os assassinatos devem parar. Foi o que minha mulher tentou me dizer. É claro que pareço hipócrita, pois o assassinato não me é estranho, portanto só posso dizer que este tipo de assassinato deve parar. Não há qualquer contrato de negócio nele, qualquer ganho com o crime, existe apenas a vingança de um homem doente e louco que exige a morte desnecessária de uma mulher e dos seus filhos. Qual o lucro nisso tudo?... Não, o Chacal foi longe demais. Ele também deve ser exterminado. — É o raciocínio mais frio que já ouvi! — exclamou John St. Jacques, ao lado da janela. — Acho que escolheu muito bem as palavras — disse o ex-juiz para o bandido de Paris. — Très bien. — D’accord. — Pois eu acho que estou completamente doido ao me unir a vocês — disse Jason Bourne. — Mas no momento não tenho escolha... São 11:35h, cavalheiros. Nosso tempo está passando. — Nosso tempo? — perguntou Prefontaine. — O que vai acontecer, seja lá o que for, acontecerá nas duas, cinco, dez ou 24 horas seguintes. Vou voltar para o Aeroporto de Blackburne, onde pretendo representar o papel do marido e pai
ensandecido pela perda da mulher e dos filhos. Não vai ser difícil, eu garanto, vai ser um espetáculo e tanto... Vou exigir um vôo imediato para Tranqüilidade e quando chegar aqui haverá caixões de pinho no cais, supostamente contendo minha mulher e meus filhos. — Tudo como devia ser — disse o francês. — Bien. — Muito bien — concordou Bourne. — Então eu insisto para que abram um dos caixões, dou um grito, desmaio ou faço as duas coisas, dependendo do momento. Quem estiver observando não vai se esquecer. St. Jacques vai procurar me controlar — seja duro, Johnny, convincente —, e finalmente me levam para outra vila, a mais próxima da escada que leva à praia no lado leste... Então começa a espera. — Pelo tal de Chacal? — perguntou o homem de Boston. — Ele vai saber onde você está? — É claro. Muita gente, incluindo o pessoal do hotel, vai ver para onde Johnny me leva. O Chacal vai descobrir, é brincadeira de criança para ele. — Então vai esperar por ele, monsieur? Acha que o monsenhor vai cair nessa armadilha? Ridicule! — De modo nenhum, monsieur — respondeu Jason com calma. — Para começar, não estarei lá, e quando ele descobrir isso, eu o terei encontrado. — Pelo amor de Deus, como? — St. Jacques quase gritou. — Porque sou melhor do que ele — respondeu Jason Bourne. — Sempre fui. O cenário foi armado de acordo com os planos. O pessoal no Aeroporto de Montserrat fervia ainda de raiva por causa das ofensas gritadas pelo americano histérico que os acusou de assassinato, de permitir que sua mulher e seus filhos fossem mortos por terroristas — de serem negros cúmplices de assassinos sujos! Além de silenciosamente furioso, o povo da ilha estava também ofendido. Silenciosos porque compreendiam sua angústia, ofendidos porque não entendiam como ele podia culpá-los com palavras tão agressivas, palavras que ele jamais usara antes. Seria aquele o bom mon que conheciam, o rico irmão do sociável St. Jay, o amigo muito rico que havia investido tanto dinheiro na Ilha de Tranqüilidade, ou um lixo branco que os acusava de coisas terríveis só porque eram negros? Era um cruel enigma, mon. Era parte da loucura, do obeah das montanhas da Jamaica que havia atravessado as águas para enfeitiçar suas ilhas. Fiquem atentos, irmãos. Vigiem cada movimento dele. Talvez outra tempestade, nem do sul nem do leste, mas com ventos muito mais destruidores. Vigiem, mon. Sua fúria é perigosa.Assim, ele foi vigiado. Por muitos — homens de uniforme, civis e autoridades —, enquanto o nervoso Henry Sykes, no palácio do governo, cumpria sua palavra. Era o único encarregado da investigação oficial. Uma investigação discreta, completa — e inexistente. Bourne fez muito pior no cais de Tranqüilidade, atacando fisicamente o próprio cunhado, o amável St. Jay, até o jovem conseguir acalmá-lo, levando-o para a vila mais próxima. Os criados iam e vinham servindo comida e bebida na varanda. Um ou outro visitante escolhido tinha permissão para dar os pêsames, incluindo o ajudante do governador da Coroa que apareceu com seu uniforme de gala, um símbolo do interesse da Coroa. E um velho que conhecera a morte durante a guerra, que insistiu em ver
o marido e pai — estava acompanhado por uma mulher com uniforme de enfermeira com chapéu e véu encobrindo seu rosto. E dois hóspedes canadenses, amigos íntimos do dono, que haviam conhecido o homem desconsolado por ocasião da inauguração festiva do Hotel Tranqüilidade, há vários anos — pediram para prestar seus respeitos e oferecer todo o consolo que podiam dar. John St. Jacques concordou, sugerindo que a visita fosse breve e avisando que seu cunhado estava num canto não iluminado da sala, com as cortinas fechadas. — É tudo tão horrível, tão sem sentido! — disse o visitante de Toronto, em voz baixa para o homem sentado no escuro na outra extremidade da sala. — Espero que seja religioso, David. Eu sou. A fé ajuda em momentos como este. Seus entes queridos estão nos braços de Cristo, agora. — Obrigado. Uma brisa leve vinda do mar agitou as cortinas, permitindo a entrada de uma estreita faixa de luz. Foi o suficiente. — Espere um pouco — disse o outro canadense. — Você não é — meu Deus, você não é Dave Webb? Dave tem... — Quieto — ordenou St. Jacques, de pé na porta, entre os dois visitantes. — Johnny, passei sete horas num barco de pesca com Dave e sei muito bem como ele é. — Cale a boca — disse o dono do Tranqüilidade. — Oh, meu Deus! — exclamou o ajudante do governador da Coroa com seu forte sotaque britânico. — Escutem, vocês dois — disse St. Jacques, adiantando-se entre os dois canadenses e ficando na frente da poltrona. — Não devia ter permitido que vocês entrassem, mas agora está feito... Pensei que seria um ponto a nosso favor, mais dois observadores, para o caso de alguém fazer perguntas, o que na certa farão, e isto é o que vão dizer, exatamente. Vocês conversaram com David Webb. Consolaram David Webb. Compreenderam? — Não estou entendendo nada — disse o visitante atônito que havia falado sobre o consolo da fé. — Quem diabo é ele? — Ele é o primeiro ajudante do governador da Coroa — respondeu St. Jacques. — Estou dizendo isso para que vocês compreendam... — Quer dizer a alta patente do exército que apareceu uniformizado e com uma escolta de soldados negros? — perguntou o canadense que havia pescado com David Webb. — Ocupa o cargo também de primeiro ajudante militar de campo. É brigadeiro...
— Nós vimos o filho da mãe ir embora — protestou o pescador. — Do restaurante nós vimos o homem ir embora! Ele estava com o velho francês e com a enfermeira... — Vocês viram outra pessoa deixando a ilha. Com óculos escuros. — Webb...? — Cavalheiros! — O ajudante do governador levantou-se da cadeira com o paletó que Jason Bourne tinha usado no vôo do Aeroporto de Blackburne para Tranqüilidade. — Os senhores são hóspedes bem-vindos na nossa ilha, mas devem aceitar as decisões da Coroa numa emergência. Do contrário, como se trata de caso extremamente sério, seremos obrigados a mantê-los sob custódia. — Ora vamos, Henry. Eles são amigos... — Amigos não chamam brigadeiros de filhos da mãe... — O senhor chamaria se tivesse sido alguma vez um cabo, general — disse o homem religioso. — Meu amigo aqui não teve qualquer intenção de ofender. Muito antes de o exército canadense precisar dos engenheiros da sua companhia, ele foi um soldado raso da infantaria. Por coincidência, na sua própria companhia. Não foi muito feliz na Coréia. — Vamos deixar de conversa — disse o companheiro de pesca de Webb. — Então, estivemos conversando com Dave, certo? — Certo. E isso é tudo que eu posso dizer. — Isso basta. Dave está com problemas, Johnny. O que podemos fazer para ajudar? — Nada — absolutamente nada a não ser o que consta da agenda do hotel. Todos receberam uma cópia em suas vilas há uma hora. — Acho melhor você explicar — disse o homem religioso. — Nunca leio esses programas alegres do hotel. — O hotel vai oferecer um bufê especial, por conta da casa, e um meteorologista do Controle Meteorológico das Ilhas Leeward vai falar durante alguns minutos sobre o que aconteceu ontem à noite. — A tempestade? — perguntou o pescador, o ex-cabo sofredor e atual dono da maior companhia de engenharia do Canadá. — Nestas ilhas, uma tempestade é uma tempestade. O que há para explicar? — Bem, coisas assim: como elas acontecem e por que terminam tão depressa. Como se deve agir — dominar o medo. — Quer todos os hóspedes na palestra, é isso? — Exatamente. — Isso vai ajudar Dave?
— Sim, vai. — Então, todo mundo estará lá. Conte comigo. — Eu agradeço, mas como vai conseguir? — Vou circular o aviso de que Angus MacPherson McLeod, presidente da firma de engenharia Canadá, dará um prêmio de 10 mil dólares a quem fizer a pergunta mais inteligente. O que acha disso, Johnny? Os ricos sempre querem ganhar mais por nada, essa é a nossa fraqueza profunda. — Acredito na sua palavra — murmurou St. Jacques. — Vamos — disse McLeod ao amigo religioso de Toronto. — Vamos circular com lágrimas nos olhos e espalhar as novas. Então seu coronel idiota — é isso que você é, seu filho da mãe — dentro de uma hora mais ou menos mudamos de conversa e começamos a falar dos 10 mil dólares e do jantar por conta da casa. Com a praia e o sol, as pessoas concentram a atenção em alguma coisa durante uns dois minutos e meio. No inverno, não mais do que quatro. Acredite, mandei fazer os cálculos no computador... Você vai ter uma festa completa esta noite, Johnny — McLeod voltou-se e caminhou para a porta. — Scotty — exclamou o homem religioso, acompanhando o pescador. — Você está fantasiando coisas outra vez! Tempo de atenção, dois minutos, quatro minutos, pesquisa de computador — não acredito em qualquer palavra! — Não mesmo? — disse Angus com a mão na maçaneta da porta. — Você acredita em 10 mil dólares, não acredita? — É claro que sim. — Pois fique observando, essa é a minha pesquisa de mercado... Por isso também sou o dono da companhia. E agora pretendo ficar com os olhos cheios de lágrimas. É outra das razões pelas quais sou dono da companhia. Num quarto escuro de depósito, no terceiro andar do prédio principal do Tranqüilidade, Bourne, que já havia tirado a túnica militar, estava sentado com o velho francês, cada um numa banqueta na frente da janela de onde se avistavam os caminhos de leste e de oeste. As vilas estendiam-se nos dois lados dos degraus de pedra que levavam à praia e ao cais. Cada um deles, com um binóculo de longo alcance, controlava as pessoas que andavam pelo caminho e subiam as escadas de pedra. Um rádio portátil com a freqüência privada do hotel estava no parapeito na frente de Jason. — Ele está perto de nós — disse Fontaine em voz baixa. — O quê? — exclamou Bourne, tirando o binóculo dos olhos e voltando-se para o homem. — Onde? Diga-me, onde? — Não podemos vê-lo, monsieur, mas ele está perto de nós.
— O que quer dizer com isso? — Eu sinto. Como um animal que sente a aproximação do trovão distante. Está dentro de mim, é o medo. — Não está sendo muito claro. — Para mim é bastante claro. Talvez você não entenda. O desafiador do Chacal, o homem de muitas aparências, o Camaleão — o assassino conhecido como Jason Bourne — não sabe sentir medo, é o que dizem, só uma grande coragem louca que vem da sua força. Jason sorriu sombriamente. — Pois então, ouviu uma mentira — disse em voz baixa. — Uma parte desse homem vive com uma espécie de medo profundo que poucas pessoas já sentiram. — Acho difícil acreditar nisso, monsieur... — Acredite. Eu sou esse homem. — É mesmo, Sr. Webb? Não é difícil deduzir as coisas. Obriga-se a assumir essa outra identidade por causa do medo? David Webb olhou fixamente para o francês. — Que outra escolha acha que eu tenho? — Podia desaparecer por algum tempo, com sua família. Podia viver tranqüilamente, em segurança completa. Seu governo se encarregaria disso. — Ele viria atrás de mim — de nós — onde quer que estivéssemos. — Por quanto tempo? Um ano? Dezoito meses? Certamente menos de dois anos. Ele está muito doente. Toda Paris — minha Paris — sabe disso. Considerando a enorme despesa e complexidade desta situação — esses planos destinados a apanhá-lo numa armadilha —, minha idéia é de que será a última tentativa de Carlos. Deixe tudo isso, monsieur. Junte-se à sua mulher em Basse-Terre e voem para milhares de quilômetros de distância. Deixe que ele volte para Paris para morrer de frustração. Isso não basta? — Não. Ele virá atrás de mim, atrás de nós! Tudo tem de ser resolvido aqui, agora. — Logo estarei com minha mulher, se é assim que deve ser, portanto posso discordar de certas pessoas, homens como você, por exemplo, Monsieur le Caméléon, com quem, no passado, eu teria concordado imediatamente. Pois discordo agora. Acho que pode ir para longe. Acho que sabe que pode meter o Chacal no seu bolso e continuar com sua vida, apenas com uma pequena alteração passageira, mas não quer fazer isso. Alguma força interior o impede. Não pode se permitir a estratégia da retirada, não menos honrosa quando significa evitar violência. Sua família está a salvo, mas outros podem morrer, porém nem isso o detém. Você tem de vencer...
— Acho que chega dessa psicologia barata — interrompeu Bourne, levando o binóculo aos olhos e concentrando-se no que via lá embaixo. — É isso, não é? — disse o francês, observando Le Caméléon, com os binóculos ainda na mão. — Eles o treinaram muito bem, criando exatamente a pessoa que devia ser. Jason Bourne contra Carlos, o Chacal, e Bourne deve vencer, é imperativo que ele vença... Dois leões de meia-idade, lançados um contra o outro há muitos anos, ambos com um ódio candente criado por estrategistas que não tinham idéia das conseqüências desse ato. Quantas pessoas perderam a vida por cruzar seus caminhos convergentes? Quantos homens e mulheres, que nada tinham a ver com vocês, foram mortos... — Cale a boca! — exclamou Jason, enquanto imagens de Paris, outras, periféricas de Hong Kong, Macau e Beijing — e a noite anterior, em Manassas — tomavam de assalto sua tela interior. Tantas mortes! A porta do quarto escuro abriu-se de repente e o juiz Brendan Prefontaine entrou apressado e ofegante. — Ele está aqui — disse o homem de Boston. — Uma das patrulhas de três homens de St. Jacques que estava a três quilômetros na costa não respondeu à chamada do rádio. St. Jacques mandou um guarda à procura deles. O homem voltou — tendo conseguido fugir. Os três homens foram mortos, cada um com uma bala na garganta. — O Chacal! — exclamou o francês. — É sua carte de visite — seu cartão de visita. Ele anuncia assim sua chegada.
Capítulo16 O SOL DA TARDE, suspenso e imóvel, queimava o céu e a terra, um globo de fogo interessado apenas em chamuscar tudo que tocava. E a suposta “pesquisa de computador” do industrial Angus McLeod parecia confirmada. Embora vários aviões tivessem pousado na água para levar hóspedes assustados, a atenção coletiva da média das pessoas que ficaram, depois dos acontecimentos terríveis, foi sem dúvida superior a dois minutos e meio, mas não duraria certamente mais do que algumas horas. Uma coisa terrível tinha acontecido durante a tempestade daquela noite, um horrível ato de vingança. Envolvia um único homem com uma vendetta contra antigos inimigos, um assassino que há muito tempo fugira da ilha. Com a remoção dos feios caixões de pinho, bem como da lancha de corrida encalhada e avariada, na praia, e as palavras tranqüilas do governo no rádio, ao lado da presença intermitente e discreta dos guardas armados, tudo voltou à normalidade — não completa, é claro, pois havia entre eles um homem de luto, mas não o viam agora e, segundo haviam dito, logo partiria também. Além disso, os horrores — exagerados desproporcionalmente pela superstição dos nativos — não eram seus horrores. Era um ato de violência que nada tinha a ver com eles, e afinal, a vida tinha de continuar. Sete casais ficaram no hotel. “Cristo, estamos pagando seiscentos dólares por dia...” “Ninguém está nos ameaçando...” “Que droga, cara, na semana que vem voltamos à rotina, portanto vamos aproveitar...” “Sem problema, Shirley, não estão revelando nomes, eles me prometeram...” Com b sol da tarde imóvel e escaldante, aquele pequeno pedaço do Caribe recuperou sua característica de playground, a morte e o horror distanciando-se a cada aplicação de Bain de Soleil e outra dose de rum. Nada era como antes, mas a água verde-azulada acariciava a praia, atraindo alguns banhistas que mergulhavam no ritmo frio e líquido do movimento constante. Uma paz cada vez menos hesitante voltou à Ilha de Tranqüilidade. — Lá está! — disse o herói de França. — Onde? — gritou Bourne. — Os quatro padres. Caminhando em fila no caminho das vilas. — São negros. — A cor não significa nada. — Ele era padre na última vez que o vi em Paris, em. Neuilly-sur-Seine. Fontaine tirou o binóculo dos olhos e voltou-se para Jason.
— A Igreja do Santíssimo Sacramento? — perguntou em voz baixa. — Não me lembro... Qual deles é o Chacal? — Você o viu com o hábito? — E o filho da mãe me viu. Sabe que eu o reconheci. Qual deles? — Ele não está lá, monsieur — disse Jean Pierre, levando o binóculo lentamente aos olhos. — É outra carte de visite. Carlos antecipa. É um mestre na geometria. Não existem linhas retas para ele, somente muitos lados, muitos níveis. — Isso me parece extremamente oriental. — Então você compreende. Ele desconfiou que você pode não estar na vila, e se não estiver, quer que você saiba que ele sabe. — Neuilly-sur-Seine... — Não, não realmente. Ele não pode ter certeza neste momento. Ele estava certo na Igreja do Santíssimo Sacramento. — Como devo reagir? — Como o Camaleão acha que deve agir? — O óbvio é não fazer nada — respondeu Bourne, sem tirar os olhos da cena lá embaixo. — E ele não aceitaria isso porque está muito incerto. Ia pensar, “ele é melhor do que isso. Posso explodi-lo com um foguete, portanto deve estar em outro lugar”. — Acho que está certo. Jason apanhou o rádio no peitoril da janela, apertou um botão e falou. — Johnny? — Sim? — Está vendo aqueles quatro padres negros no caminho? — Estou. — Mande um guarda levá-los para o saguão do hotel, dizendo que o proprietário quer falar com eles. — Veja, eles não estão indo para a vila, apenas passando e orando pelo homem que está lá dentro. O vigário da cidade me telefonou e eu dei permissão. Eles estão limpos, David. — Uma ova que estão — respondeu Jason Bourne. — Faça o que mandei.
O Camaleão voltou-se na banqueta, examinando os objetos do quarto de depósito. Caminhou até uma cômoda com tampo de vidro. Tirou a automática do cinto, quebrou o vidro, apanhou um pedaço e levou para Fontaine. — Cinco minutos depois que eu sair, comece a sinalizar uma vez ou outra com este vidro contra o sol. — Vou fazer isso encostado na parede ao lado da janela, monsieur. — Boa idéia. — Jason permitiu-se um breve sorriso. — Gostei porque não precisei sugerir isso. — E o que vai fazer? — O que ele está fazendo agora. Serei um turista em Montserrat, um “hóspede” do Tranqüilidade. Bourne apanhou o rádio outra vez e deu suas ordens. — Vá até a loja de artigos masculinos no hotel e compre três paletós guayaberas diferentes, um par de sandálias, dois ou três chapéus de palha de abas largas e shorts cinzentos ou bege. Depois mande alguém à loja de artigos de pesca para comprar um carretel de linha, resistência cinqüenta quilos, uma faca de pesca — e dois sinalizadores. Encontro-me com você na escada aqui na frente. Depressa! — Então não vai me ouvir — disse Fontaine, tirando o binóculo dos olhos e voltando-se para Jason. — Monsieur le Caméléon entra em ação. — Ele entra em ação — respondeu Bourne, pondo o rádio outra vez no parapeito da janela. — Se você ou o Chacal for morto, ou os dois, outros podem morrer, gente inocente sacrificada... — Não por minha causa. — Isso importa? Isso importa para as vítimas ou para suas famílias? — Não escolhi as circunstâncias, meu velho, foram escolhidas para mim. — Mas pode mudá-las, alterá-las. — Ele também pode. — Ele não tem consciência... — Você é uma grande autoridade no assunto, não é? — Aceito a crítica, mas eu perdi uma coisa que valia muito para mim. Talvez por isso perceba a consciência em você — numa parte de você. — Tome cuidado com o reformado santarrão. — Bourne caminhou para o cabide onde estavam
a túnica militar e o quepe. — Entre outras coisas, ele é um chato. — Você não devia estar vigiando o caminho enquanto o guarda detém os padres? St. Jacques vai levar algum tempo para comprar tudo que pediu. Bourne parou e voltou-se olhando friamente para o velho francês tagarela. Queria sair, afastar-se daquele homem velho, muito velho, que falava demais — que dizia demais! Mas Fontaine tinha razão. Seria estupidez não ver o que ia acontecer lá embaixo. Uma reação diferente da parte de alguém, um olhar brusco e assustado para algum ponto da praia — pequenas coisas involuntárias, movimentos imprecisos que geralmente revelam o fio escondido, o pavio que leva à armadilha explosiva. Jason voltou para a janela em silêncio, apanhou o binóculo e observou. Um policial de Montserrat, com o uniforme bege e escarlate, aproximou-se dos padres que caminhavam em fila. Com atitude respeitosa, balançou a cabeça afirmativamente, com cortesia, quando os quatro pararam para ouvir, e apontou para a porta do hotel. Bourne observou atentamente cada rosto, um depois do outro, em rápida sucessão. Disse em voz baixa para o francês. — Está vendo o que eu vejo? — O quarto homem, o padre que caminhava atrás dos outros — respondeu Fontaine. — Ele está assustado, mas os outros não. Ele está com medo. — Foi comprado. — Trinta moedas de prata — concordou o francês. — Você vai descer e falar com ele, é claro. — É claro que não — corrigiu Jason. — Ele está exatamente onde eu quero. — Apanhou o rádio. — Johnny. — Sim?... Estou na loja. Acabo em poucos minutos. — Você conhece aqueles padres? — Só o que diz ser “vigário”. Aparece por aqui pedindo contribuições para a igreja. E não são padres de verdade, David, apenas “pastores” de uma ordem religiosa. Muito religiosa e muito local. — O vigário está lá? — Sim. É sempre o primeiro da fila. — Ótimo... Umas pequenas mudanças nos planos. Leve as roupas para seu escritório, depois vá falar com os padres. Diga que um funcionário do governo quer conversar com eles e fazer uma contribuição em troca de suas orações. — O quê? — Explico depois. Agora, apresse-se. Nos encontramos no saguão.
— Quer dizer, no meu escritório, certo. As roupas estão comigo, lembra-se? — Isso fica para depois — um minuto mais tarde, logo que eu me livrar deste uniforme. Você tem uma máquina fotográfica no escritório? — Umas três ou quatro. Os hóspedes sempre esquecem algumas no hotel... — Deixe todas com as roupas — interrompeu Jason. — Vá em frente. Bourne pôs o rádio no cinto, depois mudou de idéia e o entregou a Fontaine. — Tome, fique com isto. Arranjo outro e manteremos contato... O que está acontecendo lá embaixo? — Nosso padre assustado olha para todos os lados enquanto caminham para a porta do hotel. Está apavorado agora. — Para onde está olhando? — perguntou Bourne, apanhando o binóculo. — Isso não ajuda. Olha para todas as direções. — Droga! — Estão na porta agora. — Vou me preparar... — Eu ajudo. — O velho francês levantou da banqueta e foi até o cabide. Apanhou a túnica e o quepe. — Se vai fazer o que estou pensando, procure ficar perto de uma parede e não se volte. O ajudante do governador é um pouco mais gordo do que você e precisamos apertar esse paletó nas costas. — Você é bom nessas coisas, não é? — disse Jason, estendendo os braços para vestir a túnica. — Os soldados alemães eram sempre muito mais gordos do que nós, especialmente os cabos e sargentos — você sabe, toda aquela salsicha. Tínhamos nossos truques. — De repente, como se tivesse levado um tiro ou estivesse tendo uma convulsão, Fontaine, com uma exclamação abafada, parou na frente de Bourne. — Mon Dieu!... C’est terrible! O governador... — O quê? — O governador da Coroai — O que tem ele? — No aeroporto, foi tudo tão rápido! — exclamou o velho francês. — E tudo que aconteceu, a minha mulher, os crimes. — Mesmo assim, é imperdoável eu não ter dito antes! — Do que está falando?
— Que o homem na vila, o oficial militar cujo uniforme você está usando. Ele é seu ajudante! — Sabemos disso. — O que não sabe, monsieur, é que minhas primeiras instruções foram dadas pelo próprio governador. — Instruções? — Do Chacal! Ele é um homem do Chacal. — Oh, meu Deus — murmurou Bourne, correndo para a banqueta onde estava o rádio. Respirou fundo e com a mente a mil, chamou com voz imperiosa. — Johnny! — Que diabo, estou com os braços cheios, a caminho do meu escritório e aqueles malditos monges estão me esperando no saguão! Que diabo você quer agora? — Vá com calma e escute com atenção. Você conhece bem Henry? — Sykes? O ajudante do governador? — Esse mesmo. Estive com ele algumas vezes, mas não o conheço, Johnny. — Eu o conheço muito bem. Você não teria uma casa e eu não teria Tranqüilidade se não. fosse por ele. — Ele está em contato com o governador? Quero dizer, neste momento, está informando o governador de tudo que está acontecendo? Pense, Johnny. É importante. Há um telefone naquela vila, ele pode estar em contato com o palácio do governo. Ele está? — Quer dizer com o governador, pessoalmente? — Com qualquer pessoa do palácio. — Acredite, ele não está. Tudo está tão quieto que nem a polícia sabe o que está acontecendo. E no que se refere ao governador, ele foi informado muito vagamente, sem nomes, nada, apenas sabe que é uma armadilha. Além disso está no seu barco e só vai saber o que aconteceu quando tudo acabar... Essas foram suas ordens. — Aposto que foram. — Por que está perguntando? — Explico depois. Ande depressa! — Quer parar de dizer isso? Jason voltou-se para Fontaine.
— Estamos livres. O governador não é um dos velhos do exército do Chacal. É um tipo diferente de recruta, como o advogado Gates, em Boston — comprado ou ameaçado, nada mais. — Tem certeza? Seu cunhado tem certeza? — O homem está no mar, no seu barco. Sabe de pouca coisa, e deu ordens para não ser informado de nada até tudo acabar. Q francês suspirou. — É uma pena que minha mente seja tão velha e tão cheia de sal. Se eu tivesse lembrado antes, podíamos ter usado o governador. Venha, vista a túnica. — Usado como? — perguntou Bourne, estendendo outra vez os braços. — Ele retirou-se para os gradins — como se chama? — Para as arquibancadas. Está fora do jogo, só observando. — Conheci muitos como ele. Querem que Carlos perca. Ele quer que Carlos perca. É sua única saída, mas está apavorado demais para erguer um dedo contra o Chacal. — Então como podemos usá-lo? — Jason abotoou a túnica, enquanto Fontaine colocava o cinto, franzindo o tecido nas costas. — Como Le Caméléon faz uma pergunta dessas? — Estou meio sem prática. — Ah, sim — disse o velho francês, afivelando o cinto com firmeza. — O homem a quem estou confiando minha vida. — Ora, cale a boca... Como? — Três simples, monsieur. Dizemos a ele que o Chacal já sabe que ele mudou de lado — eu direi a ele. Quem melhor do que o mensageiro do monsenhor? — Você é bom. — Bourne encolheu a barriga, enquanto Fontaine o fazia dar meia-volta, passando as mãos nas lapelas e nas divisas da túnica. — Sou um sobrevivente, nem melhor, nem pior do que tantos outros — exceto com minha mulher. Com ela eu era melhor que a maioria. — Você a amava muito, não amava? — Amar? Oh, imagino que sim, embora nem sempre fosse expresso em palavras. Talvez seja o conforto de uma pessoa muito conhecida, porém sem grande paixão. Não precisamos completar uma frase para sermos compreendidos e um olhar nos faz rir sem trocar uma palavra. Acho que se consegue
isso com o passar do tempo. Jason ficou imóvel por um momento, olhando intrigado para o francês. — Eu quero os anos que você teve, meu velho, eu os desejo muito. Os anos que tive com minha... mulher... estão cheios de cicatrizes que não se fecham nunca completamente, que não podem desaparecer enquanto alguma coisa dentro de nós não for mudada, purificada ou eliminada. Assim é que são as coisas para nós. — Então vocês são muito fortes, ou muito teimosos, ou talvez muito tolos... Não olhe desse jeito para mim. Eu já disse, não tenho medo de você, não tenho medo de ninguém agora. Mas se o que disse é verdade, se as coisas são realmente assim com vocês, então sugiro que abandone todo pensamento de amor e se concentre no ódio. Uma vez que não posso convencê-lo, David Webb, devo tentar Jason Bourne. Um Chacal cheio de ódio deve morrer, e só Bourne pode matá-lo... Aqui está o quepe e os óculos escuros. Fique perto de uma parede que vai parecer um pavão militar, com a cauda cáqui erguida para passar a merde. Sem uma palavra, Bourne ajeitou a pala do quepe, os óculos escuros e saiu. Desceu rapidamente a escada de madeira, quase colidindo com um empregado negro de paletó branco que saía do segundo andar, carregando uma bandeja. Quando o homem recuou para lhe dar passagem, Bourne percebeu um movimento e ouviu um ruído deslizante. Voltou-se rapidamente. O garçom estava tirando um bip eletrônico do bolso! Jason atirou-se sobre o homem, derrubou-o e arrancou o aparelho de suas mãos, derrubando a bandeja. Montou sobre o homem caído, apertando sua garganta com uma das mãos e com o bip na outra. — Quem o mandou fazer isto? Diga! — ordenou Jason, ofegante, em voz baixa. — Ei, mon, eu luto com o senhor — gritou o jovem, contorcendo-se, livrando uma das mãos e acertando um murro no rosto de Jason. — Não queremos nenhum mon malvado aqui! Nosso patrãomon é o melhor! Você não me assusta. — O homem acertou a virilha de Jason com o joelho. — Seu filho da mãe! — gritou Le Caméléon, esbofeteando o rosto do homem e ao mesmo tempo agarrando seus testículos com a outra mão. — Sou amigo dele, irmão dele! Quer parar com isso?... Johnny St. Jay é meu irmão! Meu cunhado, se isso faz diferença! — Oh? — disse o jovem grande e musculoso, com uma expressão de ressentimento e embaraço nos grandes olhos escuros. — Você é o mon com a irmã do patrão St. Jay? — Sou marido dela. Quem diabo é você? — Sou chefe dos garçons do segundo andar, senhor! Logo estarei no primeiro andar, porque sou muito bom. Sou também um bom lutador — meu pai me ensinou, só que ele está velho agora, como o senhor. Quer lutar mais? Acho que posso ganhar! O senhor já tem alguns cabelos brancos... — Ora, cale a boca!... Que negócio é esse de bip? — perguntou Jason, erguendo o pequeno aparelho de plástico e saindo de cima do garçom.
— Não sei, mon — senhor! Coisas ruins aconteceram. Disseram que se virmos homens correndo nas escadas devemos apertar os botões. — Por quê? — Os elevadores, senhor. — Nossos elevadores são muito rápidos. Por que um hóspede ia querer usar a escada? — Como se chama? — perguntou Bourne, ajeitando os óculos e o quepe. — Ishmael, senhor. — Como em Moby Dick? — Não conheço essa pessoa, senhor. — Talvez vá conhecer. — Por quê? — Não estou bem certo. Você é um bom lutador. — Não vejo nenhuma ligação, mon — senhor. — Eu também não — Jason levantou-se. — Quero que me ajude, Ishmael. — Vai ajudar? — Só se seu irmão deixar. — Ele deixa. Ele é meu irmão. — Quero ouvir isso dele, senhor. — Ótimo. Então duvida de mim. — Sim, duvido, senhor — disse Ishmael, ajoelhando e apanhando o que tinha caído da bandeja, separando os pratos quebrados dos outros inteiros. — O senhor acreditaria na palavra de um homem forte com fios brancos nos cabelos que desce correndo a escada e me ataca e diz coisas que qualquer um pode dizer?... Se quer lutar, o perdedor terá de dizer a verdade. Quer lutar? — Não. Não quero lutar e não insista. Não sou tão velho e você não é tão bom. Deixe a bandeja e venha comigo. Eu explico ao Sr. St. Jacques que, não se esqueça, é meu irmão — o irmão da minha mulher. — O que quer que eu faça, senhor? — perguntou o garçom levantando-se e acompanhando Jason. — Escute — disse Bourne, parando nos degraus e voltando-se para o homem. — Entre no saguão na minha frente e caminhe para a porta. Esvazie cinzeiros, ou coisa assim, procure parecer
ocupado, mas fique atento. Eu entro depois de alguns momentos e vou falar com o Sr. Jay e com os quatro padres, que estão com ele... — Padres? — repetiu Ishmael atônito. — Homens da igreja, senhor? Quatro? O que estão fazendo aqui, mon? Mais coisas ruins aconteceram? O obeah! — Vieram rezar para que não aconteçam mais coisas ruins — nada mais de obeah. Mas o importante é que eu possa falar com um deles, a sós. Quando eles saírem do saguão, esse padre deve separar-se dos outros para ficar sozinho, ou talvez para se encontrar com alguém. Acha que pode seguilo sem que ele o veja? — O Sr. St. Jay vai me mandar fazer isso? — Suponhamos que eu o mande olhar para você e fazer um gesto afirmativo com a cabeça. — Então eu posso fazer. Sou mais rápido do que o mangusto, e como o mangusto conheço todas as trilhas de Tranqüilidade. Se ele for para um lado, eu sei para onde está indo e chego lá primeiro... Mas como vou saber qual padre devo seguir? Mais de um pode querer ficar sozinho. — Vou falar com os quatro separadamente. Ele será o último. — Então vou saber. — Você pensa depressa — disse Bourne. — Tem razão, mais de um pode querer ficar sozinho. — Eu penso muito bem, mon. Sou o quinto da minha classe na Academia Técnica de Serrat. As quatro primeiras são mulheres, por isso não precisam trabalhar. — Uma observação interessante... — Em cinco ou seis anos, terei dinheiro para a Universidade de Barbados! — Talvez antes disso. Agora, vá. Entre no saguão e vá para a porta. Mais tarde, depois que os padres saírem, vou procurá-lo, mas não estarei usando este uniforme. De longe você não vai me reconhecer. Se eu não o encontrar, esteja dentro de uma hora... Onde? Onde há um lugar sem movimento? — A capela de Tranqüilidade, senhor. A trilha acima da praia de leste. Ninguém vai lá, nem nos domingos. — Sim, eu me lembro. É uma boa idéia. — Ainda falta uma coisa, senhor... — Cinqüenta dólares americanos. — Muito obrigado, senhor!
Jason esperou noventa segundos ao lado da porta, depois abriu-a apenas alguns centímetros. Ishmael estava perto da entrada e ele via St. Jacques conversando com os quatro padres a um ou dois metros à sua direita, na recepção. Bourne ajeitou a túnica, empertigou-se militarmente e entrou no saguão, dirigindo-se para os padres e o dono de Tranqüilidade. — É uma honra e um privilégio, padres — disse para os quatro homens negros, sob o olhar surpreso e curioso de John St. Jacques. — Sou novo aqui nas ilhas e devo dizer que estou impressionado. O governo está muito satisfeito com sua oferta de acalmar nossas águas revoltas — continuou Jason com as mãos cruzadas nas costas. — Como recompensa por sua boa vontade, o governo autorizou o Sr. St. Jacques a lhes entregar um cheque no valor de cem libras para sua igreja — que será reembolsado pelo tesouro, é claro. — É um gesto tão magnífico que nem sei o que dizer — o vigário exclamou, com voz cantante e sincera. — Pode me dizer de quem foi a idéia? — perguntou o Camaleão. — Muito tocante, realmente tocante. — Não posso ter o crédito, senhor — respondeu o vigário. Ele e os outros dois olharam para o quarto padre. — Foi idéia de Samuel. Um bom e honesto líder do nosso rebanho. — Ótimo, Samuel. — O olhar penetrante de Bourne fixou-se por um momento no quarto homem. — Mas eu gostaria de agradecer a cada um pessoalmente. E saber seus nomes. — Jason apertou as mãos dos três primeiros com palavras de cortesia. Chegou ao último padre que insistia em não olhar diretamente para ele. — Seu nome eu já sei, Samuel — observou em voz baixa, quase inaudível. — E gostaria de saber de quem foi a idéia antes de lhe atribuir o crédito. — Eu não compreendo — murmurou Samuel. — É claro que compreende — um homem tão bom e honesto —, deve ter recebido outra contribuição generosa. — Está me confundindo com outra pessoa, senhor —, murmurou o quarto padre, seus olhos, por um momento, cheios de medo. — Eu não cometo erros, seu amigo sabe disso. Eu vou encontrá-lo, Samuel. Talvez não hoje, mas certamente amanhã ou depois. — Bourne soltou a mão do padre e ergueu a voz. — Mais uma vez, sinceros agradecimentos do governo, padres. A Coroa fica muito grata. Agora preciso ir. Tenho de dar uma dezena de telefonemas... Seu escritório, Sr. St. Jacques? — Sim, certamente, general. No escritório, Jason tirou a automática do bolso e despiu o uniforme, escolhendo entre as peças de roupa compradas por St. Jacques. Vestiu uma bermuda cinzenta, uma jaqueta guayabera listrada de branco e vermelho e pôs na cabeça o chapéu de palha com abas largas. Tirou as meias e os sapatos, calçou a sandália, e reclamou, Drogai Tirou a sandália e tornou a calçar os sapatos de sola grossa de borracha. Examinou as várias máquinas fotográficas e acessórios e escolheu a mais leve e menos
complicada, dependurando-a no pescoço com as tiras cruzadas na frente do peito. John St. Jacques entrou no escritório com um pequeno rádio portátil. — De onde diabo você veio? Miami Beach? — Na verdade, um pouco mais ao norte — digamos, Pompano. Não estou tão espalhafatoso. Não vou chamar atenção de ninguém. — Sim, tem razão. Muita gente vai jurar que você é um velho conservador de Key West. Aqui está o rádio. — Obrigado. — Jason guardou o aparelho no bolso da camisa. — Agora para onde? — Atrás de Ishmael, o garoto para quem pedi que você fizesse um gesto afirmativo. — Ishmael? Eu não fiz nenhum gesto afirmativo para Ishmael, você disse apenas que eu devia balançar a cabeça afirmativamente na direção da porta. — É a mesma coisa. — Bourne pôs a automática no cinto, sob a guayabera e olhou para o equipamento de pesca.Apanhou o carretel de linha com resistência para cinqüenta quilos e a faca, guardando tudo no bolso. Depois abriu a máquina fotográfica vazia e guardou os sinalizadores dentro dela. Não era tudo que precisava, mas bastava. Não era o mesmo homem de 13 anos atrás e mesmo nesse tempo já não era tão jovem. Sua mente tinha de funcionar melhor e com maior rapidez do que seu corpo, um fato que Jason aceitava com relutância. Droga! — Ishmael é um bom garoto — disse o irmão de Marie. — É inteligente e forte como um touro Saskatchewan premiado. Estou pensando em treiná-lo para guarda, daqui a um ano mais ou menos. O ordenado é melhor. — Tente Harvard ou Princeton, se ele fizer um bom trabalho esta tarde. — Opa! Isso é grande! Sabia que o pai dele foi campeão de luta livre da ilha? É claro que agora está... — Saia do meu caminho — interrompeu Jason, dirigindo-se para a porta. — Você também não tem exatamente 18 anos — acrescentou, voltando-se por um momento, antes de sair. — Eu nunca disse que tinha. Qual é o seu problema? — Talvez seja o banco de areia que você não viu, Sr. Segurança. — Bourne bateu a porta e saiu para o corredor. — Muito sensível, muito mesmo. — St. Jacques balançou a cabeça e abriu seu punho cerrado de 34 anos. Duas horas tinham passado e Ishmael não estava em parte alguma! Andando com uma perna
dura, como se fosse aleijado, Jason ia de uma extremidade à outra do terreno do hotel, olhando através das lentes da máquina fotográfica, vendo tudo, mas nenhum sinal do jovem Ishmael. Duas vezes foi pela trilha do bosque até a construção quadrada de troncos de árvore, teto de palha e vitrais coloridos que era a capela ecumênica do hotel, um santuário construído para meditação mais por, sua aparência delicada do que para ser usado. Como havia dito o garçom negro, era raramente visitado, mas aparecia nos folhetos de propaganda do hotel. O sol do Caribe tinha agora uma cor alaranjada mais intensa e descia lentamente para a água, no horizonte. Logo as sombras se espalhariam por Montserrat e pelas outras ilhas. Logo a noite chegaria e o Chacal gostava do escuro da noite. Mas o Camaleão também gostava. — Quarto de depósito, alguma novidade? — Bourne perguntou no rádio. — Rien, monsieur. — Johnny? — Estou no telhado com seis atiradores. Nada. — E o jantar, a festa desta noite? — Nosso meteorologista chegou de barco, há dez minutos, de Plymouth. Ele tem medo de avião... E Angus pregou um cheque de 10 mil dólares no quadro de aviso, sem assinatura e sem destinatário. Scotty estava certo, os sete casais estarão presentes. Somos uma sociedade de quem-seimporta, depois de alguns minutos de silêncio. — Conte-me alguma coisa que eu não saiba, irmão... Câmbio. Agora estou indo para a capela. — Fico satisfeito em saber que alguém vai lá. Um filho da mãe da agência de turismo em Nova York disse que era uma boa idéia mas nunca mais ouvi falar dele. Mantenha contato, David. — Certo, Johnny. A trilha para a capela começava a escurecer, o ritmo da natureza acelerado pelas altas palmeiras e a folhagem que bloqueavam os raios do sol poente. Jason ia dar meia-volta e dirigir-se para a loja de artigos de pesca quando de repente, como se tivessem acionado uma célula fotoelétrica, clarões vermelhos e azuis dançaram no ar, lançando seus largos círculos de luz do chão para as copas das palmeiras. Por um momento, Bourne teve a impressão de estar penetrando um túnel em tecnicolor, aberto na floresta tropical. Uma sensação desorientadora a princípio, depois ameaçadora. Ele era um alvo móvel e iluminado numa galeria de cores fortes. Rapidamente procurou abrigo entre os arbustos, fora do círculo de luz, arranhando as pernas no meio da folhagem. Na semi-escuridão, continuou seu caminho para a capela, lentamente, com dificuldade, com os galhos úmidos e as trepadeiras enrolando-se nas suas mãos e nos seus pés. Instinto. Fique longe da luz, das luzes de cores vivas que eram mais próprias para um carnivale nas ilhas.Um som surdo! Um som que não pertencia à floresta. Depois, um gemido que se transformou em convulsão — interrompido, cortado... suprimido? Agachado, Jason passou pelas sucessivas barreiras de arbustos
até ver a porta estilo catedral da pequena igreja. Estava entreaberta e a luz trêmula e suave das “velas” elétricas penetrava o mar de azul e vermelho da trilha lá fora. Pense. Use a memória. Lembre-se! Jason estivera na capela apenas uma vez antes, quando em tom de brincadeira disse ao cunhado que havia gasto dinheiro numa coisa sem utilidade para o hotel. “Pelo menos é bonitinha”, dissera St. Jacques. “Não é, irmão”, respondeu Marie. “Não combina. Isto não é um lugar de retiro”. “Suponha que alguém tenha uma má notícia. Você sabe, muito má...” “Então você lhe oferece um drinque”, disse David Webb. “Vamos entrar. Tenho símbolos de cinco religiões diferentes nos vitrais, incluindo Shinto”. “Não mostre para sua irmã as faturas que pagou por isto”, murmurou David para o cunhado. Havia outra porta? Outra saída?... Não, não havia. Só cinco ou seis fileiras de bancos, depois uma espécie de grade na frente de um palanque, sob os vitrais das janelas feitos por artesãos nativos. Lá dentro. Havia alguém lá dentro. Ishmael? Um hóspede de Tranqüilidade? Uma recém-casada com arrependimento tardio? Jason tirou o rádio do bolso e falou em voz baixa. — Johnny? — Aqui, no telhado. — Estou na capela. Vou entrar. — Ishmael está aí? — Não sei. Mas alguém está. — Qual o problema, Dave? Você parece... — Nenhum problema — interrompeu Bourne —, estou só verificando... O que há atrás da capela? No lado leste? — Mais floresta. — Alguma trilha? — Havia uma, há muitos anos, está cheia de mato agora. Os operários que construíram a capela costumavam ir por ela até o mar... Vou mandar dois guardas... — Não! Se eu precisar de você, eu chamo. Câmbio — Jason guardou o rádio no bolso e, sempre agachado, olhou para a porta da capela.
Silêncio. Nenhum som vinha de dentro, nenhum movimento, nada a não ser a luz trêmula das velas elétricas. Bourne foi até a margem da trilha, tirou o equipamento fotográfico e o chapéu e abriu a caixa que continha os sinalizadores. Guardou um no cinto e apanhou a automática. Tirou o isqueiro do bolso esquerdo da guayabera, levantou-se e caminhou silenciosa e rapidamente para um dos cantos da pequena capela — daquele santuário deslocado na floresta tropical, acima da praia tropical. O uso dos sinalizadores era anterior ao episódio de Manassas, Virgínia, pensou Jason, enquanto se dirigia para a entrada da capela. Remontava a Paris — trinta anos atrás, em Paris, e no cemitério de Rambouillet. E Carlos... Chegou perto da porta entreaberta e cautelosamente olhou para dentro. Jason abafou uma exclamação de horror, invadido por uma fúria terrível e incrédula. Na plataforma, na frente dos bancos de madeira brilhante estava o jovem Ishmael, seu corpo dobrado, os braços pendentes, o rosto escuro marcado e lacerado, o sangue pingando da boca. O sentimento de culpa, brusco, completo e devastador apossou-se de Jason. As palavras do velho francês soavam em seus ouvidos: Outros podem morrer, pessoas inocentes massacradas. Massacradas! Uma criança fora massacrada! Promessas feitas e substituídas pela morte. Oh, Cristo, o que eu fiz?... O que posso fazer? Com o suor escorrendo pelo rosto, os olhos cheios de lágrimas, Bourne tirou o sinalizador do bolso, acendeu o isqueiro e com mão trêmula levou-o ao pavio vermelho. Imediatamente a chama branca subiu no calor branco, sibilando como uma centena de serpentes furiosas. Jason atirou o sinalizador para a outra extremidade da capela, saltou sobre as chamas, girou o corpo e fechou a porta pesada. Atirou-se no chão, atrás da última fila de bancos, tirou o rádio do bolso e apertou o botão transmissor. — Johnny, a capela! Mande cercar a capela! Não esperou a resposta de St. Jacques. Ouvira uma voz, e isso era o bastante. A chama sibilante e contínua erguia-se em lâminas de cor, devolvidas pelos vitrais coloridos. Bourne, com a automática na mão, correu para a passagem, olhando para os lados, procurando tudo que não lembrava do interior da capela do Tranqüilidade. Só não olhava para a plataforma com o corpo da criança que ele havia mandado para a morte... Nos dois lados da plataforma havia portas em arco com cortinas, como passagens de um palco para diminutos bastidores, entradas à direita e à esquerda. Apesar da angústia, cresceu dentro dele uma estranha satisfação, uma alegria quase mórbida. O jogo letal era todo seu agora. Carlos havia montado uma armadilha complicada e o Camaleão fez com que virasse em proveito próprio, Delta de Medusa havia invertido o jogo! Atrás de uma daquelas portas em arco estava o assassino de Paris. Bourne levantou-se e, encostando na parede, ergueu a arma. Atirou duas vezes na porta da direita, fazendo estremecer as cortinas com cada tiro, caminhou sempre atrás da última fileira de bancos para o outro lado e atirou duas vezes na porta da esquerda. Um vulto saiu em pânico da pequena porta, cambaleando, arrancando a cortina que se enrolara nos seus ombros, e caiu. Bourne correu para a frente gritando o nome de Carlos, atirando sem parar até esvaziar o tambor da automática. De repente, uma explosão destruiu uma parte dos vitrais na parede da esquerda. Enquanto os fragmentos de vidro caíam como chuva colorida, um homem apareceu numa
saliência externa no centro do espaço aberto sobre o sinalizador ofuscante. — Você não tem mais balas — disse Carlos para o atônito Jason Bourne. — Treze anos, Delta, 13 anos odiosos. Mas agora vão saber quem venceu. O Chacal ergueu a arma e atirou.
Capítulo17 O CALOR SIBILANTE e gelado raspou seu pescoço e Bourne atirou-se para a frente, caindo entre a segunda e a terceira fila de bancos, batendo com força a cabeça e o quadril na madeira marrom brilhante, antes de chegar ao chão. Uma nuvem escura o envolveu. Ao longe, muito, muito longe, ouvia vozes histéricas. Depois, a completa escuridão. “David”. Não havia gritos agora, só a voz baixa e urgente, usando o nome que ele não queria reconhecer. — David, pode me ouvir? Bourne abriu os olhos, consciente no mesmo instante de dois fatos. Seu pescoço estava envolto em ataduras e ele estava numa cama, completamente vestido. À direita viu o rosto ansioso de John St. Jacques. À esquerda estava um homem que ele não conhecia, de meia-idade, com um olhar penetrante. — Carlos — Jason conseguiu dizer. — Era o Chacal! — Então ele ainda está na ilha — nesta ilha — disse St. Jacques. — Há menos de uma hora que tudo aconteceu e Henry mandou cercar Tranqüilidade. As patrulhas estão na praia, todas com contato visual e por rádio. Henry disse que era um exercício “contra drogas”, muito discreto e muito oficial. Alguns barcos entraram, mas nenhum saiu e nenhum vai sair. — Quem é ele? — perguntou Bourne, olhando para o homem à sua esquerda. — Um médico — respondeu John. — Está hospedado no hotel e é meu amigo. Ele me tratou em... — Acho que devemos ser discretos aqui — interrompeu o médico canadense com voz firme. — John, você me pediu ajuda e segredo, e eu concordei, porém considerando a natureza dos acontecimentos e o fato de que seu cunhado não vai ser tratado por mim, vamos dispensar nossos nomes. — Concordo, doutor — disse Jason com uma careta de dor. Então, ergueu a cabeça de repente com uma expressão de pânico e súplica nos olhos. — Ishmael! Ele está morto! Eu o matei. — Ele não está morto e você não o matou — disse St. Jacques com calma. — Está péssimo, mas não está morto. É um garoto duro, como o pai, e vai ficar bom. Vamos mandá-lo de avião para o hospital na Martinica. — Cristo! Ele estava morto! — Foi espancado selvagemente — explicou o médico. — Os dois braços quebrados, lacerações e contusões múltiplas, provavelmente lesões internas e concussão grave. Entretanto, como John disse
muito bem, é um garoto durão. — Quero o melhor para ele. — Essas foram minhas ordens. — Ótimo. — Bourne olhou para o médico. — Como é que estou? — Sem uma radiografia e observando seus movimentos — isto é, sintomaticamente — só posso dar um diagnóstico muito vago. — Pois faça isso. — Além do ferimento, eu diria, especialmente choque traumático. — Esqueça. Isso não está no programa. — Quem disse? — perguntou o médico com um sorriso. — Eu digo e não estou fazendo piada. O corpo, não a mente. Eu faço o diagnóstico da mente. — Ele é um nativo? — perguntou o médico, olhando para St. Jacques. — Um Ishmael branco e mais velho? Estou certo que não é médico. — Responda à pergunta dele, por favor. — Tudo bem. A bala atravessou o lado esquerdo do seu pescoço, a milímetros de vários pontos vitais que se fossem atingidos certamente o deixariam sem voz e provavelmente morto. Limpei e suturei o ferimento. Vai ter dificuldade para mover a cabeça por algum tempo, mas essa é só uma opinião superficial. — Resumindo, estou com o pescoço duro, mas se posso andar... bem, eu posso andar. — Em poucas palavras, é mais ou menos isso. — Afinal, foi o sinalizador que me salvou — disse Jason em voz baixa, movendo o pescoço cuidadosamente no travesseiro. — A luz o ofuscou o suficiente. — O quê? — St. Jacques inclinou-se sobre a cama. — Nada, nada... Vamos ver se posso andar bem — sintomaticamente, quero dizer. Com movimentos lentos Bourne sentou na beirada da cama, com os pés no chão, balançando a cabeça para o cunhado, que estendeu o braço para ajudá-lo. — Não, obrigado, irmão. Tenho de fazer isso sozinho. Ficou de pé, sentindo cada vez mais intenso o desconforto da atadura no pescoço. Deu alguns
passos, sentindo a dor das contusões nos quadris, mas eram apenas contusões, nada importante. Um banho quente diminuiria a dor e medicamentos, aspirina extraforte e linimentos permitiriam uma mobilidade melhor. Mas aquela maldita atadura no pescoço, além de quase sufocá-lo, o obrigava a mover os ombros quando queria olhar para os lados... Porém, pensou ele, estava muito melhor do que podia estar — para um homem da sua idade. Droga. — Não podemos desapertar um pouco o colar, doutor? Está me estrangulando. — Um pouco, não muito. Não quer abrir os pontos, quer? — Que tal uma atadura tipo elástica? Ela cede com o movimento. — É demais para um ferimento no pescoço. Você logo vai se acostumar. — Prometo não me acostumar. — O senhor é muito engraçado. — Não me sinto nada engraçado. — É o seu pescoço. — Exatamente. Pode me arranjar uma Johnny? — Doutor? — St. Jacques olhou para o médico. — Acho que não podemos pará-lo. — Vou mandar alguém à loja especializada. — Desculpe, doutor — disse Bourne, quando John foi até o telefone. — Quero fazer algumas perguntas ao Johnny e tenho certeza de que o senhor não quer ouvir. — Já ouvi mais do que queria. Espero na sala. O médico atravessou o quarto e saiu. Enquanto St. Jacques estava no telefone, Jason caminhou pelo quarto, levantando e abaixando os braços, balançando as mãos para verificar seu controle motor. Abaixou e se levantou quatro vezes seguidas, com rapidez crescente. Ele precisava estar preparado — tinha de estar! — Vai demorar alguns minutos — disse St. Jacques, desligando o telefone. — Pritchard tem de abrir a loja. Vai trazer tamanhos diferentes da atadura. — Obrigado. — Bourne ficou imóvel. — Quem era o homem em quem eu atirei, Johnny? Ele caiu enrolado na cortina e não vi seu rosto. — Ninguém que eu conheça, e pensei que conhecesse todos os homens brancos destas ilhas que
podem usar ternos caros. Devia ser um turista — um turista com uma missão... para o Chacal. É claro que não tinha nada que o identificasse. Henry o mandou para “Serrat”. — Quantas pessoas sabem agora o que está acontecendo? — Além do pessoal do hotel, só temos 14 hóspedes e ninguém ficou sabendo. Mandei fechar a capela — disse que foi danificada pela tempestade. Mesmo aqueles que tiveram de saber alguma coisa — como o médico e os dois caras de Toronto — não sabem a história toda, apenas pedaços, e são amigos. Eu confio neles. Os outros estão cheios de rum da ilha. — E os tiros na capela? — O que me diz da pior e mais barulhenta banda das ilhas? Além disso, você estava no meio do bosque a uns trezentos metros do hotel... Escute, David, quase todos foram embora, mas alguns teimosos não teriam ficado se não fossem velhos amigos do Canadá que desejavam provar sua amizade e alguns outros que provavelmente passarão as férias em Teerã. O que mais posso dizer, além de garantir que o bar está faturando como nunca? — É como um jogo estranho — murmurou Bourne, virando cautelosamente o rosto para o teto. — Silhuetas movendo-se separadamente, atos de violência atrás de telas brancas, nada fazendo sentido, tudo pode ser qualquer coisa. — É um pouco demais para mim, professor. O que está querendo dizer? — Terroristas não nascem, Johnny, eles são feitos, treinados num currículo que você não encontra em nenhuma escola. Deixando de lado as razões que os levam a ser o que são — que podem ir de uma causa justificável à megalomania psicopata do Chacal — mantemos viva a charada porque ela tem vida própria. — E daí? — St. Jacques franziu a testa, intrigado. — Daí você pode controlar os atores, dizendo o que devem fazer, mas não por quê. — É o que estamos fazendo aqui e o que Henry está fazendo no mar que circunda Tranqüilidade. — Está mesmo? Estamos mesmo fazendo isso? — Que diabo, é claro que sim. — Eu pensei que também estava, mas me enganei. Superestimei um garoto forte e inteligente para uma tarefa simples e inofensiva e subestimei um padre humilde e assustado que recebeu trinta moedas de prata. — Do que está falando? — De Ishmael e do irmão Samuel. Samuel deve ter assistido à tortura de uma criança com os olhos de Torquemada.
— Torque quem? — O caso é que na verdade não conhecemos os atores. Os guardas, por exemplo, os que você levou à capela. — Não sou tolo, David — interrompeu St. Jacques. — Quando você mandou cercar a capela, tomei uma pequena liberdade e escolhi dois homens, os únicos que eu escolheria, achando que um par de Uzis podia substituir um homem e os quatro pontos da bússola. São os melhores que eu tenho e exmembros do Comando Real. Estão encarregados de toda segurança da ilha e confio neles como confio em Henry. — Henry? É um bom homem, certo? — Às vezes é um chato, mas é o melhor das ilhas. — E o governador da Coroa? — É um cretino. — Henry sabe disso? — É claro que sabe. Ele não chegou a brigadeiro por sua beleza, com aquela barriga e tudo o mais. Além de bom soldado, é um bom administrador. Cuida de muita coisa por aqui! — E você tem certeza de que ele não se comunicou com o governador. — Ele disse que me avisaria antes de entrar em contato com o idiota pomposo e eu acredito nele. — Espero que você esteja certo — porque aquele idiota pomposo é o contato do Chacal em Montserrat. — O quê? Eu não acredito! — Pode acreditar. Eu confirmei. — Mas é incrível! — Não, não é. É típico do Chacal. Ele descobre uma vulnerabilidade e a recruta a peso de ouro. Poucos homens que vivem à margem da lei não podem ser comprados por ele. Atônito, St. Jacques caminhou até as portas da varanda, procurando aceitar o inacreditável. — Acho que isso responde à pergunta que muitos de nós estamos fazendo. O governador é de uma família de fidalgos proprietários de terras, tem um irmão num alto posto do Ministério do Exterior, que é muito amigo da primeira-ministra. Por que foi mandado para cá, na sua idade ou, melhor, por que aceitou este posto? Na sua posição era de esperar que recusasse qualquer coisa que não fossem as Bermudas ou as Ilhas Virgens britânicas. Plymoufh pode ser um degrau, mas não um posto para fim de carreira.
— Ele foi exilado, Johnny. Carlos provavelmente descobriu por que há muito tempo e o colocou na lista. Há anos ele faz isso. Muita gente lê jornais, revistas e livros por diversão. O Chacal estuda volumes de relatórios e informações secretas de todas as origens possíveis, e tem descoberto mais coisas do que a CIA, a KGB, os MI-Cinco e Seis, Interpol e todos os outros serviços gostariam de saber... Os hidraviões chegaram à ilha cinco ou seis vezes depois que voltei de Blackburne. Quem veio neles? — Pilotos — respondeu St. Jacques, voltando-se para Jason. — Estavam levando os hóspedes do hotel, não trazendo ninguém, eu já disse isso. — Sim, você me disse. E vigiou o tempo todo? — Vigiei quem? — Cada avião que chegava. — Ora, vamos! Você me mandou fazer mil coisas. — O que me diz dos dois comandos negros? Aqueles nos quais confia tanto? — Estavam controlando e posicionando os outros guardas, pelo amor de Deus. — Então não sabemos quem pode ter vindo naqueles aviões, certo? Talvez descendo na água enquanto o avião passava entre os recifes — talvez antes do banco de areia. — Pelo amor de Deus, David. Conheço esses pilotos há anos. Não iam permitir nada disso. De jeito nenhum! — Quer dizer que é uma coisa incrível. — Pode acreditar. — Como o contato do Chacal em Montserrat. O governador da Coroa. O dono do Hotel Tranqüilidade olhou para Jason. — Em que mundo você vive? — Um mundo no qual eu sinto muito que você tenha entrado. Mas agora é parte dele e tem de jogar de acordo com as regras, com as minhas regras. Um lampejo rápido, uma faixa infinitesimal de luz vermelha na noite lá fora! Infravermelho! Bourne estendeu os braços e saltou sobre St. Jacques, empurrando-o para longe da janela da varanda. — Saia daí! — rugiu Jason, quando os dois caíram no chão e três estalidos sucessivos cortaram o espaço e as balas penetraram as paredes da vila. — Que diabo...
— Ele está lá fora e quer que eu saiba — disse Bourne, empurrando o cunhado para a parte mais baixa, arrastando-se ao lado dele e enfiando a mão no bolso da guayabera. — Ele sabe quem você é, por isso deve ser o primeiro a morrer, para me torturar, porque sabe que você é irmão de Marie — é parte da minha família e é essa sua arma principal. Minha família! — Jesus Cristo. O que vamos fazer? — Eu vou fazer — respondeu Jason, tirando o segundo sinalizador do bolso. — Vou mandar uma mensagem dizendo que estou vivo e por que estarei vivo quando ele estiver morto. Fique onde está! — Bourne arrastou-se para a varanda e atirou para a noite o míssil aceso e sibilante. Dois tiros vieram imediatamente. As balas ricochetearam no teto e esfacelaram o espelho de uma penteadeira. — Ele tem uma MAC-dez com silenciador — disse Delta da Medusa, rolando ao lado da parede, segurando o pescoço. — Preciso sair daqui! — David, você está ferido! — Isso é ótimo. — Jason Bourne levantou-se, saiu do quarto batendo a porta e correu para a sala de estar da vila, onde encontrou o médico canadense com a testa franzida. — Ouvi um barulho lá dentro — disse o médico. — Está tudo bem? — Tenho de sair. Deite no chão! — Ora, escute aqui! Estou vendo sangue nas suas ataduras, os pontos... — Deite no chão! — O senhor não tem mais 21 anos, Sr. Webb... — Saia da minha vida! — gritou Bourne, saindo da vila e correndo para o prédio principal, só então ouvindo o barulho ensurdecedor da banda, amplificado por uns vinte alto-falantes colocados nas árvores. A cacofonia era insuportável, mas não deixava de ser uma ajuda, pensou Jason. Angus McLeod estava cumprindo sua palavra. Os poucos hóspedes restantes e um número menor de empregados do hotel estavam no enorme restaurante circular envidraçado, o que significava que o Camaleão devia mudar de cor. Conhecia o pensamento do Chacal como o seu e isso significava que o assassino ia fazer exatamente o que Jason Bourne faria nessas circunstâncias. O lobo faminto entrou babando de fome na caverna da sua presa confusa e apavorada e tirou o melhor pedaço de carne. Ele faria a mesma coisa, trocando a pele do mítico camaleão, mostrando uma presa muito maior — digamos, um tigre de Bengala — capaz de fazer um chacal aos pedaços com seus dentes... Por que as imagens eram tão importantes? Por quê? Jason sabia a resposta e ela significava uma sensação de vazio, o desejo de alguma coisa que ficara no passado — ele não era mais Delta, o temido guerrilheiro de Medusa, não era Jason Bourne de Paris e do Extremo Oriente. David Webb, mais velho do que ambos, muito mais velho, invadia seus pensamentos, tentando encontrar razão dentro da insanidade e da violência. Não! Afaste-se de mim! Você é nada, eu sou tudo!... Afaste-se, David, pelo amor de Deus, vá
embora. Bourne deu meia-volta e correu pelo gramado na direção da entrada do hotel. Ofegante, diminuiu o passo ao ver alguém na porta. Depois, tendo reconhecido o homem, continuou a correr. Era um dos poucos membros do Tranqüilidade da qual se lembrava e um dos poucos que queria esquecer.. O assistente do gerente, o insuportavelmente esnobe Pritchard, um tagarela tedioso que não deixava ninguém esquecer a importância da sua família em Montserrat — especialmente um tio que era assistente do diretor da imigração, na opinião de David, sem dúvida uma vantagem não para o Tranqüilidade. — Pritchard! — gritou Bourne, aproximando-se do homem. — Você arranjou as ataduras? — Ora, senhor — exclamou o subgerente surpreso. — O senhor está aqui. Disseram que havia partido esta tarde... — Oh, merda! — Senhor?... Meus lábios sofrem ao transmitir minhas condolências... — Mantenha-os fechados, Pritchard. Está entendendo? — É claro, eu não estava aqui esta manhã para recebê-lo, nem esta tarde para vê-lo partir e expressar meus profundos sentimentos, porque o Sr. St. Jay me pediu para trabalhar esta noite, na verdade, toda a noite... — Pritchard, estou com pressa. Dê-me as ataduras e não conte a ninguém — ninguém — que me viu. Quero que isso fique bem claro. — Oh, está claro, senhor — disse Pritchard, entregando a Jason os três rolos de tamanhos diferentes de atadura elástica. — Essa informação privilegiada está segura comigo, bem como o fato de saber que sua mulher e seus filhos estavam hospedados aqui — oh, Deus me perdoei Perdoe-me, senhor. — Eu e Ele o perdoamos se ficar de boca fechada. — Selada. Está selada! É um enorme privilégio. — Vai ser fuzilado se abusar do privilégio. Está claro? — Senhor? — Não desmaie, Pritchard. Vá até a vila e diga ao Sr. St. Jay que logo me comunico com ele e para ele ficar aqui. Entendeu? Ele deve ficar aqui... E você também. — Talvez eu possa... — Esqueça. Saia daqui agora. O subgerente atravessou correndo o gramado na direção das vilas da ala leste e Bourne entrou
no hotel. Subiu a escada de dois em dois degraus — poucos anos atrás, teria sido de três em três — e outra vez ofegante chegou ao escritório de St. Jacques. Entrou, fechou a porta e foi até o closet onde sabia que o cunhado guardava algumas roupas. Os dois tinham aproximadamente o mesmo tamanho — tamanho grande, como dizia Marie — e muitas vezes Johnny havia usado paletós de David quando os visitava. Jason escolheu a combinação de cores mais discreta. Calça esporte cinza-clara e um blazer azul-escuro de algodão, a única camisa que encontrou, também de algodão, marrom, de mangas curtas. Nada que pudesse refletir a luz. Começou a se despir e sentiu uma pontada aguda no lado esquerdo do pescoço. Olhou no espelho, primeiro alarmado, depois furioso com o que viu. Uma mancha vermelho-viva alastrava-se na atadura muito apertada. Abriu a caixa da maior atadura elástica. Era tarde demais para trocar o curativo. Só podia reforçá-lo, na esperança de estancar a hemorragia. Enrolou a nova atadura no pescoço, cortou as sobras e prendeu as pontas com os ganchos. Seus movimentos estavam agora mais inibidos do que nunca. Precisava não pensar nessa desvantagem. Trocou de roupa, disfarçou a atadura, erguendo a gola da camisa marrom, pôs a automática no cinto e o rolo de linha de pesca no bolso do blazer... Passos que se aproximavam! Encostou na parede, com a mão na arma, e a porta se abriu. O velho Fontaine entrou, olhou para Bourne por um momento, depois fechou a porta. — Estava à sua procura, sem saber se ainda estava vivo — disse o francês. — Só estamos usando os rádios em caso de extrema necessidade. — Jason afastou-se da parede. — Pensei que tivesse recebido a mensagem. — Recebi e estava certa. A esta altura, Carlos deve ter um rádio também. Você sabe, ele não está sozinho. Por isso andei por aí à sua procura. Depois me ocorreu que você e seu cunhado deviam estar aqui, no quartel-general, por assim dizer. — Não é muito prudente andar por aí sem se proteger. — Não sou idiota, monsieur. Se fosse, estaria morto há muito tempo. Faço tudo com muita cautela... Na verdade, foi por isso que resolvi encontrá-lo, desde que não estivesse morto. — Não estou e você me encontrou. O que há? Você e o juiz deviam estar numa vila vazia, não andando por aí. — Nós estamos, nós estávamos. O caso é que eu tenho um plano, um estratagema que talvez o interesse. Conversei a respeito com Brendan... — Brendan? — É o nome dele, monsieur. Ele acha que meu plano tem algum mérito e ele é um homem brilhante, muito sagace... — Esperto? Sim, tenho certeza disso, mas não está no nosso ramo de negócio.
— Ele é um sobrevivente. Sob esse ponto de vista, estamos todos no mesmo negócio. Ele acha que há um certo risco, mas dadas as circunstâncias, qualquer plano representa risco. — Qual é o plano? — O objetivo é apanhar o Chacal com o mínimo de perigo para as outras pessoas que estão aqui. — Isso o preocupa de verdade, não é? — Eu já disse, portanto não preciso repetir. Lá fora estão homens e mulheres... — Continue — interrompeu Bourne, irritado. — Qual é a sua estratégia? Quero que entenda que pretendo tirar o Chacal do seu esconderijo nem que tenha de manter a ilha toda como refém. Não estou disposto a ceder nada. Já cedi demais. — Então você e Carlos tocaiam um ao outro no escuro da noite? Dois caçadores de meia-idade, enlouquecidos, obcecados pela idéia de matar, sem se importar com quem é morto, ferido ou inutilizado para o resto da vida por causa dessa luta particular. — Se quer compaixão, vá à igreja e implore ao seu Deus que urine neste planeta. Ou ele tem um senso de humor muito estranho, ou é sádico. Agora comece a dizer coisas com sentido ou vou-me embora daqui. — O que eu imaginei foi... — Fale! — Conheço o monsenhor, sei como ele pensa. Ele planejou a morte da minha mulher e a minha, mas não ao mesmo tempo que a sua, para não tirar o suspense do drama de sua vitória total. Ficaria para depois. A revelação de que eu, o chamado herói de França era na realidade instrumento do Chacal, sua criação, seria a prova final do seu triunfo. Não compreende? Jason observou o velho em silêncio e depois disse: — Sim, compreendo. Não que eu jamais pudesse imaginar alguém como você, mas esse modo de agir é a base de tudo em que acredito. Ele é megalomaníaco. Na sua fantasia, ele é o rei dos infernos e quer que sua pessoa e seu trono sejam reconhecidos pelo mundo todo. Para ele, seu gênio foi ignorado até agora, relegado ao nível dos assassinos comuns e dos atiradores da Máfia. Ele quer clarins e tambores, e só ouve sereias cansadas e perguntas de rotina dos policiais. — C’est vrai. Certa vez ele se queixou para mim de que ninguém o conhece na América. — É verdade. Quem já ouviu seu nome pensa que é um personagem fictício de romances ou filmes. Ele tentou compensar seu fracasso quando há 13 anos voou de Paris para Nova York para me matar. — Correção, monsieur. Você o atraiu a Nova York.
— Isso é história. Porém, o que tem a ver com nossa situação... com seu plano? — É o meio de obrigar o Chacal a vir atrás de mim, de se encontrar comigo. Agora. Esta noite. — Como? — Basta eu começar a andar por aí abertamente, de modo que ele ou um dos seus homens me veja e me ouça. — Por que isso o faria procurar falar com você? — Porque não estarei com a enfermeira que ele me arranjou. Estarei com outra pessoa, que ele não conhece, uma pessoa que não tem nenhum motivo para me matar. Novamente Bourne olhou pensativo e em silêncio para o velho francês. — Isca — observou ele, finalmente. — Uma isca tão provocadora que ele não vai descansar enquanto não conseguir apanhá-la — ter-me nas mãos para um interrogatório... Você compreende, eu sou vital para ele — ou melhor, minha morte é vital — e para o Chacal tudo se resume em fazer as coisas no momento certo. A precisão é sua... sua diction, como se diz? — Seu lema, seu método de operação, eu acho. — A isso ele deve sua sobrevivência, desse modo tirava a maior vantagem de cada assassinato, reforçando sua fama de assassin suprême. Até um homem chamado Jason Bourne aparecer no Extremo Oriente... O Chacal jamais foi o mesmo. Mas você sabe de tudo isso... — E não me interessa — disse Jason. — O “momento certo”. Continue. — Depois da minha morte ele pode revelar quem era na verdade Jean Pierre Fontaine, o herói de França. Um impostor, seu impostor, sua criação, o instrumento de morte que serviu de isca para Jason Bourne. Que triunfo para ele!... Mas só pode fazer isso depois que eu estiver morto, porque seria muito inconveniente. Eu sei demais, tenho muitos amigos nas sarjetas de Paris. Não, preciso estar morto para que ele tenha seu triunfo. — Nesse caso ele o matará assim que o vir. — Não antes de ter as respostas, monsieur. Onde está a enfermeira assassina? O que aconteceu com ela? O Caméléon a encontrou, a recrutou, acabou com ela? A mulher está em poder das autoridades britânicas? Está a caminho de Londres e do MI-Seis com todos seus produtos químicos, para ser finalmente entregue à Interpol? Tantas perguntas... Não, ele não me matará antes de saber o que precisa saber. Talvez não seja preciso mais de alguns minutos para satisfazer todas as dúvidas do Chacal, mas muito antes disso espero que esteja ao meu lado para garantir minha sobrevivência, embora não a dele. — A enfermeira? Onde quer que esteja, será morta.
— De modo nenhum. Eu a mandarei embora, fora da minha vista ao primeiro sinal de contato. Caminhando com ela, vou lamentar a ausência da minha querida e nova amiga, o anjo de misericórdia que cuida tão bem da minha mulher, perguntando em voz alta: O que aconteceu com ela? Para onde terá ido? Por que não a vi durante todo o dia? É claro que estarei com o rádio ligado escondido sob a roupa. Para onde quer que me levem — pois certamente um dos homens de Carlos fará contato primeiro — farei as perguntas próprias de um homem velho e fraco. Por que estão me trazendo para este lugar? Por que estamos aqui?... Você me acompanhará, com força total, eu espero sinceramente. Se fizer isso, apanhará o Chacal. Com a cabeça erguida, o pescoço rígido, Bourne sentou-se na ponta da mesa de St. Jacques. — Seu amigo, o juiz Brendan não sei do quê, tem razão... — Prefontaine. Embora Fontaine não seja meu nome verdadeiro, resolvemos que somos da mesma família. Quando os primeiros membros da família saíram da Alsácia-Lorena para a América, no século XVIII, com Lafayette, acrescentaram o Pre para diferenciá-los dos vários Fontaine da França. — Ele disse isso? — É um homem brilhante. Um ex-meritíssimo juiz. — Lafayette era da Alsácia-Lorena? — Não sei, monsieur, nunca estive lá. — Ele é um homem brilhante... E o melhor, está com a razão. Seu plano tem muito mérito, mas também um risco considerável. Vou ser franco com você, Fontaine. Não me importo a mínima com o risco que você pode correr, ou a suposta enfermeira. Eu quero o Chacal e se isso custar sua vida ou a vida de uma mulher que eu não conheço, pouco me importa. Quero que compreenda isso. O velho francês olhou para Jason com expressão irônica e riu baixinho. — Você é uma contradição tão aparente. Jason Bourne jamais teria dito o que acaba de dizer. Ele teria ficado em silêncio, aceitando minha proposta sem comentários, reconhecendo as vantagens. O marido da Sra. Webb, entretanto, precisa dizer alguma coisa. Ele é contra e deve ser ouvido. —A voz de Fontaine ficou ríspida de repente. — Livre-se dele, monsieur Bourne. Ele não é a minha proteção, nem instrumento da morte do Chacal. Livre-se dele. — Ele se foi, posso garantir, ele se foi. — O Camaleão levantou-se do canto da mesa com o pescoço rígido e dolorido. — Vamos começar. O barulho ensurdecedor da banda limitava-se agora ao saguão envidraçado e ao restaurante adjacente. Por ordem de St. Jacques, os alto-falantes nas árvores foram desligados. O dono do Tranqüilidade saiu da vila escoltado pelos dois ex-comandos armados com Uzis, acompanhado pelo médico canadense e pela tagarelice incessante do Sr. Pritchard. O subgerente recebeu ordens para voltar à recepção e não dizer nada sobre o que tinha visto durante aquela última hora.
— Absolutamente nada, senhor. Se me perguntarem, eu estava falando no telefone com as autoridades de “Serrat”. — Sobre o quê? — objetou St. Jacques. — Bem, eu pensei que... — Não pense. Você estava verificando o serviço das camareiras na ala oeste, isso é tudo. — Sim, senhor. — Desapontado, Pritchard dirigiu-se para a porta do escritório, aberta há poucos momentos pelo anônimo médico canadense. — Duvido que o que ele pode dizer faça muita diferença — disse o médico, quando Pritchard saiu. — Lá dentro temos um perfeito zoológico. A combinação dos acontecimentos da noite passada, com muito sol e muito álcool, nos faz prever um sentimento coletivo de culpa amanhã. Minha mulher acha que seu meteorologista não vai ter muito para dizer, John... — Por quê? — Ele está enchendo a cara também e mesmo que esteja semilúcido, não há ninguém suficientemente sóbrio para ouvi-lo. — Acho melhor eu ir até lá. Vamos transformar isto num pequeno carnivale. Scotty economizará 10 mil dólares e quanto mais distração, melhor. Vou falar com os homens da banda e com os do bar e volto já. — Talvez não nos encontre aqui — disse Bourne, quando o cunhado saiu e uma mulher com uniforme completo de enfermeira apareceu na porta do banheiro particular de St. Jacques. O velho Fontaine aproximou-se dela. — Muito bem, minha filha, está ótima — disse o francês. — Agora, lembre-se, vou segurai seu braço enquanto caminhamos e conversamos, e quando eu o apertar e erguer a voz, mandando que me deixe sozinho, você obedece imediatamente, certo? — Certo, senhor. Devo me afastar do senhor rapidamente, muito zangada com sua indelicadeza. — É isso. Não precisa ter medo, é só uma brincadeira. Queremos falar com uma pessoa muito tímida. — Como está o pescoço? — perguntou o médico, olhando para Jason sem ver a nova atadura sob a gola da camisa marrom. — Tudo bem — respondeu Bourne. — Vamos dar uma olhada — disse o canadense, adiantando-se na direção de Bourne. — Obrigado, mas agora não, doutor. Sugiro que desça e faça companhia à sua mulher.
— Sim, achei que ia dizer isso, mas posso dizer uma coisa, rapidamente? — Muito rapidamente. — Sou médico e já tive de fazer muitas coisas contra a minha vontade e estou certo de que esta é uma delas. Mas quando penso naquele jovem e no que fizeram com ele... — Por favor — interrompeu Jason. — Sim, eu compreendo. Mesmo assim, estarei aqui, se precisar de mim. Só queria que soubesse disso... Não me orgulho muito do que disse antes. Vi o que vi e tenho um nome e estou perfeitamente disposto a prestar depoimento nos tribunais. Em outras palavras, retiro minha relutância em me envolver. — Não haverá tribunais, doutor, nem depoimentos. — Não? Mas trata-se de crimes graves! — Sabemos do que se trata — interrompeu Bourne. — Agradeço muito a sua ajuda, mas nada mais tem a fazer. — Compreendo — disse o médico olhando intrigado para Jason. — Então eu já vou — o médico canadense foi até a porta e voltou-se. — Acho melhor deixar que eu veja esse pescoço, mais tarde. Se ainda tiver pescoço para mostrar. O médico saiu e Bourne disse para Fontaine: — Estamos prontos? — Estamos. — O francês sorriu para a jovem negra, grande e imponente, que parecia intrigada. — O que vai fazer com todo o dinheiro que ganhar esta noite, minha cara? A jovem sorriu encabulada, mostrando os dentes muito brancos. — Tenho um bom namorado. Vou comprar um belo presente para ele. — Isso é formidável. Como se chama seu namorado? — Ishmael, senhor. — Vamos — disse Jason, com voz firme. A idéia do plano era simples e, como a maioria das boas estratégias, por mais complexas que sejam, de simples execução. O passeio do velho Fontaine fora mapeado com precisão. Começava com Fontaine e a jovem voltando para sua vila, supostamente para ver como estava sua mulher, antes da caminhada diária receitada pelos médicos. Andaram na parte iluminada do caminho principal, atravessando uma vez ou outra o gramado, mas sempre bem à vista. Um homem velho e rabugento, andando ao acaso, para aborrecimento da sua acompanhante. Era uma cena comum, um septuagenário irascível, provocando a pessoa que tomava conta dele.
Os dois ex-comandos, um baixo, ou outro bem alto, guardavam todo o trajeto entre o início da caminhada e onde o francês e sua “enfermeira” se separavam. À medida que Fontaine e a mulher se adiantavam, um comando passava pelo outro, colocando-se no ponto seguinte, usando passagens que só eles conheciam, como a trilha além do muro que seguia a costa acima dos arbustos tropicais cerrados, que levava à praia abaixo das vilas. Os guardas negros eram como duas aranhas enormes no meio da selva, passando com facilidade de galho em galho, de pedra em pedra, acompanhando o casal que vigiavam. Bourne acompanhava o segundo homem com seu rádio ligado, e as palavras indignadas de Fontaine chegavam até ele no meio da estática.Onde está aquela outra enfermeira? Aquela moça adorável que toma conta da minha mulher? Onde está ela? Não a vi o dia todo! O velho repetia as frases com ênfase e hostilidade crescente. Jason escorregou atrás do muro e seus pés se prenderam em fortes cipós. Não podia se soltar — não tinha força! Moveu a cabeça — os ombros — e a dor queimou seu pescoço como agulhas em brasa. Não é nada. Puxe, com força, rasgue esses cipós! Com os pulmões a ponto de estourar e o sangue empapando agora a camisa, conseguiu se livrar e arrastou-se para a frente. De repente, luzes. Luzes coloridas envolveram o muro. Estavam na trilha que levava à capela, com os holofotes vermelhos e azuis que iluminavam a entrada do santuário de Tranqüilidade, fechado à visitação. Era o último ponto da caminhada antes da volta para a vila de Fontaine, escolhido mais para dar ao velho francês oportunidade de descansar do que por outro motivo qualquer. St. Jacques havia colocado um guarda ali para evitar a entrada na capela em ruínas. Não havia nenhum contato previsto para aquele ponto. Então Bourne ouviu as palavras no rádio — as palavras que mandavam a jovem enfermeira afastar-se correndo do seu companheiro. — Afaste-se de mim! — gritou Fontaine. — Não gosto de você. Onde está a nossa enfermeira? O que você fez com ela? Acima dele e um pouco na frente, os dois comandos estavam agachados, lado a lado perto do muro. Voltaram-se e olharam para Jason, e seus olhos na luz fantasmagórica e colorida diziam o que ele já sabia. A partir daquele momento, todas as decisões eram dele. Os homens haviam-no escoltado até o inimigo. O resto dependia dele. Uma coisa rara aconteceu. O inesperado abalou Bourne. Fontaine ter-se-ia enganado? Teria esquecido a presença do guarda, tomando-o por um dos contatos do Chacal? Seus olhos idosos teriam interpretado uma reação de surpresa dos guardas como a abordagem do inimigo? Qualquer coisa era possível, porém, considerando o passado do francês — a vida de um sobrevivente — e sua mente sempre alerta, um engano desse tipo não era provável. Jason pensou então em outra possibilidade assustadora. Teriam assassinado o guarda e posto outra pessoa no lugar dele? Carlos era mestre nessas táticas. Diziam que ele havia cumprido o contrato para assassinar Anwar Sadat sem dar. um tiro, apenas substituindo os guardas pessoais do presidente por recrutas inexperientes — o dinheiro distribuído no Cairo foi reembolsado em cem vezes mais pelas irmandades anti-Israel do Oriente Médio. Se era verdade, a Ilha Tranqüilidade era brinquedo de criança para ele. Jason levantou-se, segurou na parte superior do muro, lenta e dolorosamente, saltou a cerca viva,
e apoiando-se com um braço depois do outro, avançou. Ficou assombrado com o que viu. Fontaine estava imóvel, com a boca aberta, os olhos arregalados e incrédulos fixos no homem com terno de gabardine bege que se aproximou e o abraçou. O velho herói de França empurrou o homem, com pânico e espanto. As palavras soaram rápidas no rádio de Jason. — Claude! Quelle secousse! Vous êtes ici! O velho amigo respondeu em francês, com voz trêmula. — Um privilégio concedido por monsenhor. Para ver minha irmã pela última vez e para consolar meu amigo, seu marido. Estou aqui e estou com você! — Comigo? Ele o trouxe para cá? Mas é claro! — Devo levá-lo a ele. O grande homem quer falar com você. — Sabe o que está fazendo? O que acaba de fazer? — Estou com você, com ela. Nada mais importa. — Ela está morta! Suicidou-se a noite passada! Ele pretendia nos matar. Desligue seu rádio! gritou Bourne no silêncio de sua mente. Desligue o rádio! Tarde demais. A porta da esquerda da capela abriu-se e a silhueta de um homem saiu para o corredor iluminado por luzes coloridas. Era um homem jovem, forte e louro, com traços marcados e gestos rígidos. O Chacal estaria treinando alguém para tomar seu lugar? — Venha comigo, por favor — disse o homem louro em francês, em tom delicado mas autoritário. — Você — disse, dirigindo-se ao homem com terno de gabardine — fique onde está. Ao menor ruído, atire para o ar... Tire a arma do bolso, fique com ela na mão. — Oui monsieur. Jason, sem poder fazer nada, viu Fontaine ser conduzido para a porta da capela. O rádio no seu bolso emitiu uma tempestade de estática seguida por um estalido. O rádio de Fontaine fora encontrado e destruído. Sim, alguma coisa estava errada, fora de centro, desequilibrada — ou talvez simétrica demais. Não era lógico Carlos usar pela segunda vez o local de uma armadilha fracassada. Não fazia sentido! O aparecimento do irmão da mulher de Fontaine era um movimento excepcional, digno do Chacal, um movimento realmente inesperado dentro da confusão, mas não isto, não outra vez a capela supérflua de Tranqüilidade. Era muito previsível, muito repetitivo, óbvio demais. Errado. E por isso mesmo certo?, pensou Bourne. Seria a lógica ilógica do assassino que já havia enganado centenas de departamentos especiais da comunidade internacional de Inteligência durante quase trinta anos? “Ele não faria isso... é loucura!” “...Oh sim, podia fazer porque sabe que achamos que é loucura”. O Chacal estaria ou não na capela? Se não estava, onde estaria? Onde havia preparado sua armadilha?
O jogo letal de xadrez não era só extremamente complexo, como também de uma intimidade sublime. Outros podiam morrer, mas só um dos dois viveria. Era o único fim possível. Morte ao vendedor de morte ou morte ao seu desafiante, um procurando a preservação de uma lenda, o outro procurando preservar sua família e a própria vida. A vantagem era de Carlos. Ele arriscaria tudo, pois, como Fontaine havia informado, estava morrendo e nada mais importava. Bourne tinha tudo para querer viver, Bourne, o caçador de meia-idade com a vida indelevelmente marcada, dividida com a morte de outra mulher e dois filhos vagamente lembrados, há muito tempo no distante Camboja. Não ia acontecer, não podia acontecer outra vez! Jason desceu do muro para o precipício íngreme a seus pés. Arrastou-se até os dois ex-comandos e murmurou: — Eles levaram Fontaine para dentro. — Onde está o guarda? — perguntou o homem mais próximo dele, em voz baixa. — Eu mesmo o deixei ali, com instruções específicas. Ninguém deveria entrar. Ele devia comunicar pelo rádio assim que visse alguém! — Então, acho que ele não o viu. — Quem? — Um homem louro que fala francês. Os comandos entreolharam-se rapidamente, depois um deles voltou-se para Jason. — Descreva o homem, por favor. — Altura média, peito e ombros largos... — Não precisa dizer mais — interrompeu o primeiro guarda. — Nosso homem o viu, senhor. Ele é terceiro preposto da polícia do governo, um oficial que fala diversas línguas e é chefe da investigação de narcóticos. — Mas, onde está ele, mon? — perguntou o outro guarda. — O Sr. St. Jay disse que a polícia da Coroa não foi informada de tudo, não faz parte desta ação. — Sir Henry, mon. Ele tem barcos da Coroa, uns seis ou sete, entrando e saindo, com ordens para deter qualquer pessoa que saia de Tranqüilidade. São barcos de drogas, mon. Sir Henry diz que é um exercício de patrulha, portanto, naturalmente o chefe de investigações deve ser... — O antilhano parou de falar e olhou para o companheiro —... Então por que ele não está lá fora, na água, mon? — Vocês gostam dele? — perguntou Bourne, surpreso com a própria pergunta instintiva. — Quero dizer, vocês o respeitam? Talvez eu esteja enganado, mas tive a impressão de ouvir uma certa... — Não está enganado, senhor — interrompeu o primeiro guarda. — O preposto é um homem cruel e não gosta dos punjabis, que é como ele nos chama. Está sempre nos acusando disto e daquilo, e
muitos já foram despedidos por causa disso. — Por que não se queixam, não se livram dele? Os britânicos vão ouvir o que vocês têm a dizer. — Não o governador da Coroa, senhor — explicou o segundo guarda. — Ele é muito parcial no que se refere ao seu severo chefe de narcóticos. São grandes amigos e sempre saem juntos para pesca de oceano. — Compreendo. — Jason compreendia e de repente ficou assustado, muito assustado. — St. Jay disse que havia uma trilha atrás da capela. Disse que talvez esteja cheia de mato, mas que ainda deve estar lá. — Sim, está — confirmou o primeiro comando. — Os empregados do hotel ainda a usam para descer até a praia nos dias de folga. — É muito extensa? — Trinta e cinco, quarenta metros de comprimento. Vai até uma descida, com degraus feitos na pedra, que levam à praia. — Qual de vocês dois é o mais rápido? — perguntou Bourne, tirando do bolso o carretel de linha de pescar. — Sou eu. — Sou eu. — Escolho você — disse Jason para o mais baixo, entregando a ele o carrete — Desça ao lado da trilha e sempre que for possível atravesse esta linha no caminho, amarrando-a a galhos e troncos fortes. Você não deve ser visto, portanto fique alerta, veja no escuro. — Não é problema, mon. — Tem uma faca? — Está perguntando se tenho olhos? — Ótimo. Dê-me a sua Uzi. Depressa! O guarda afastou-se apressadamente e desapareceu entre a folhagem espessa. O segundo Comando Real disse: — Na verdade, senhor, sou muito mais rápido porque tenho pernas mais compridas. — Por isso eu o escolhi e acho que você sabe. Pernas compridas não são uma vantagem aqui, e até atrapalham, o que eu sei. Além disso, ele é muito menor e mais difícil de ser visto. — Os menores sempre ficam com as melhores coisas. Eles nos colocam na frente nas paradas e
nos põem nos ringues de boxe com regras que não entendemos, mas os soldados menores ficam com as sopas. — Sopas? Os melhores trabalhos? — Isso mesmo, senhor. — Os mais perigosos? — Sim, mon! — Procure viver com isso, grandão. — O que fazemos agora, senhor? Bourne olhou para as luzes coloridas no outro lado do muro. — É o que chamamos de jogo de espera — sem nenhuma alusão a canções de amor, apenas o ódio que sentimos quando outra pessoa quer nos matar. Não há nada parecido, porque não se pode jazer nada. Só pensar no que o inimigo pode estar fazendo, e se ele pensou em alguma coisa na qual você não pensou. Como alguém disse certa vez, eu preferia estar em Filadélfia. — Onde, mon? — Nada. Não é verdade. De repente um grito prolongado e doloroso encheu o ar acompanhado de palavras pronunciadas em meio a terrível sofrimento. Non, non, vous êtes monstrueux!... Arrêtes, arrêtês, je vous supplie! — Agora! — exclamou Jason, passando a correia da Uzi pelo ombro e, saltando para o muro, segurou a parte de cima. O sangue começou a correr do seu pescoço com o movimento brusco. Ele não podia subir! Não podia saltar! Então, mãos fortes o puxaram e ele caiu do outro lado. — As luzes! — gritou Jason. — Atire nelas! O comando ergueu sua Uzi, e os holofotes explodiram nos dois lados do caminho da capela. Outra vez, mãos fortes o puxaram para o abrigo das sombras. Então um facho isolado de luz amarela moveu-se de um lado para o outro. A potente lanterna de halogênio do comando. O velho com terno de gabardine estava deitado na trilha, coberto de sangue, com a garganta cortada. — Parem! Em nome de Deus todo-poderoso, parem onde estão! — disse Fontaine dentro da capela, cuja porta entreaberta deixava ver a luz trêmula das velas elétricas. Os dois homens aproximaram-se da porta com as armas na mão, preparados para uma rajada contínua... mas não para o que Viram. Bourne fechou os olhos, era demais para ele. O velho Fontaine, como o jovem Ishmael, estava deitado sobre a plataforma, sobre os vitrais quebrados da parede esquerda, com o rosto coberto de sangue e presos ao seu corpo havia fios finos que levavam a várias caixas negras colocadas nos dois lados da capela.
— Para trás! — gritou Fontaine. — Corram, seus loucos! Isto é uma bomba... — Oh, Cristo! — Não me lamente, monsieur Le Caméléon. Vou alegremente ao encontro da minha mulher! Este mundo é feio demais, até mesmo para mim. Não é mais divertido. Corram! A bomba vai explodir — eles estão observando! — O senhor, mon! Agora! — rugiu o segundo comando, segurando o paletó de Jason e correndo com ele para o muro, amparando-o nos braços quando saltaram para a folhagem espessa no outro lado. Foi uma explosão maciça, cegante e ensurdecedora. Era como se aquele cantinho da pequena ilha tivesse sido arrancado por um míssil nuclear rastreador de calor. As chamas subiram para o céu noturno, mas a massa candente logo foi transformada pelo vento em brasas cintilantes. — A trilha! — gritou Jason com voz rouca e abafada, erguendo-se com dificuldade entre a folhagem. — Vá para a trilha! — O senhor não está bem, mon... — Posso tomar conta de mim, você toma conta de você. — Acho que tomei conta de nós dois. — Muito bem, então ganhou uma droga de medalha e eu acrescento muito dinheiro a ela. Agora, vamos para a trilha! Empurrando, puxando, e finalmente com os pés de Bourne movendo-se como uma máquina descontrolada, chegaram à trilha a uns dez metros das ruínas em brasa da capela. Entraram pelo mato e dentro de alguns segundos o primeiro comando os encontrou. — Eles estão naquele grupo de palmeiras ao sul — disse ele, ofegante. — Esperaram um pouco para ver se alguém estava vivo, mas não podiam ficar muito tempo. — Você estava lá? — perguntou Jason. — Com eles? — Sem problema, mon, como eu disse, senhor. — O que está acontecendo? Quantos são? — Eram quatro, senhor. Eu matei um homem e tomei o lugar dele. Era negro, e no escuro não fez diferença. Foi tudo rápido e silencioso. A garganta. — Quem sobrou? — O chefe dos narcóticos de “Serrat”, é claro, e dois outros...
— Descreva os dois! — Não vi muito bem, mas um acho que era negro, alto com pouco cabelo. O terceiro eu não vi, porque ele — ou ela — estava com roupas estranhas, com um pano na cabeça como um lenço de mulher ou um véu contra insetos. — Uma mulher? — É possível, senhor. — Uma mulher...? Eles têm de sair daqui... ele tem de sair daqui! — Logo vão passar por esta trilha a caminho da praia, onde se esconderão no bosque até chegar o barco. Não têm escolha. Não podem voltar para o hotel, e mesmo de longe, e com o barulho da banda, os guardas devem ter ouvido a explosão. Eles informarão o hotel. — Escutem — disse Bourne com voz rouca e tensa. — Uma daquelas três pessoas é o homem que eu quero, o homem que eu quero para mim! Portanto, não atirem porque eu o reconhecerei logo que o vir. Não me importo a mínima com os outros, eles podem ser tirados do esconderijo mais tarde. Uma rajada de tiros soou na direção da floresta tropical acompanhada de gritos vindos do corredor antes iluminado, atrás das ruínas da capela. Então, um atrás do outro, os vultos saíram dos arbustos e correram para a trilha. O primeiro a ser apanhado pela linha de pesca estendida na altura da cintura foi o policial louro de Montserrat, que caiu no chão. O segundo homem, magro, alto, moreno com apenas uma franja de cabelos em volta da cabeça, abaixou-se e ajudou o primeiro homem a se levantar. O instinto, ou a certeza, fez com que o segundo assassino girasse sua automática num arco aberto, atirando para os lados da trilha. Apareceu o terceiro vulto. Não era uma mulher. Era um homem vestido de monge. Um padre. Era ele. O Chacal! Bourne ergueu-se e com passo incerto saiu dos arbustos para a trilha, com a Uzi na mão. A vitória era sua, sua a liberdade, sua a família! Quando o homem vestido de padre chegou no primeiro degrau da escada primitiva cortada na pedra, Jason apertou o gatilho e uma rajada fuzilante brotou da arma. O monge curvou o corpo, depois caiu e rolou pelos degraus cortados na rocha vulcânica, estatelando-se na areia lá embaixo. Bourne desceu correndo a escada irregular com os dois comandos atrás dele. Chegou à areia, correu para o corpo e tirou o capuz encharcado de sangue do rosto do homem. E com horror viu o rosto negro de Samuel, o padre da Ilha Tranqüilidade, o Judas que vendera a alma para o Chacal por trinta moedas de prata. Então soou distante o ronco de dois motores potentes e um enorme barco de corrida saiu de um recôncavo da baía na direção de uma abertura entre os recifes de coral. Um holofote iluminou as barreiras de pedra que apareciam acima da superfície da água escura e agitada, e o emblema do barco do governo da patrulha contra drogas. Carlos!... O Chacal não era camaleão, mas estava mudado! Estava envelhecido, mais magro e careca — não era mais a figura grande e musculosa da lembrança de Bourne. Só restavam os traços latinos, com o rosto e a calva queimados de sol. O Chacal estava fugindo!
Os motores do barco roncaram quando passaram pela pequena abertura para o mar aberto. Então, as palavras em inglês com forte sotaque soaram metálicas no alto-falante, ecoando pela baia. — Paris, Jason Bourne! Paris, se tiver coragem! Ou deverá ser numa pequena universidade no Maine, Dr. Webb? Bourne, com as ataduras do pescoço abertas, desmaiou na beira da água, e um filete de sangue correu para o mar.
Capítulo18 O GORDO STEVEN DESOLE, guardião dos segredos mais profundos da CIA, saiu do carro com alguma dificuldade. Ficou de pé no estacionamento deserto do shopping center, em Anápolis, Maryland, onde a única fonte de luz era o luminoso de um posto, de gasolina fechado, com um grande pastor-alemão dormindo na janela. DeSole ajeitou os óculos com aros de metal e consultou o relógio, mal conseguindo ver os ponteiros luminosos. O cálculo mais aproximado era entre 3:15h e 3:20h da manhã, o que significava que tinha chegado muito cedo, o que era bom. Precisava coordenar seus pensamentos e não podia fazer isso quando estava dirigindo porque sua grave cegueira noturna exigia que concentrasse toda a atenção na estrada, e estava fora de cogitação tomar um táxi ou contratar um motorista. A princípio a informação foi... bem, apenas um nome... um nome bastante comum. O nome dele é Webb, havia dito o homem no telefone. Obrigado, respondeu DeSole. Foi dada uma descrição superficial que se adaptava a milhões de homens. Ele agradeceu novamente ao informante e desligou. Mas então, nos recônditos recessos de sua mente analítica, por profissão e prática de armazenagem de dados essenciais e incidentais, soou um alarme. Webb, Webb... amnésia? Uma clínica em Virgínia, há muitos anos. Um homem, mais morto do que vivo, levado de avião de um hospital em Nova York, o arquivo médico de sigilo tão extremo que não podia nem ser mostrado ao Escritório Oval. Porém ele ouviu comentários de especialistas em interrogatório, nos cantos escuros, na maioria das vezes mais para aliviar a frustração do que para impressionar o ouvinte, e ficou sabendo de um paciente difícil, um caso de amnésia, um homem a que chamavam de “Davey”, e às vezes, com hostilidade, apenas de “Webb”, ex-membro da infame Medusa de Saigon, um homem que, eles suspeitavam, estava fingindo ter perdido a memória... Perda de memória? Alex Conklin havia dito que o medusiano treinado para caçar secretamente Carlos, o Chacal, um agente provocador a quem chamavam de Jason Bourne, tinha perdido a memória. Perdeu a memória e quase perdeu a vida porque seus controles não acreditaram naquele tipo de amnésia! Era o homem que eles chamavam de “Davey”... David. David Webb era o Jason Bourne de Conklin! Não podia haver erro! David Webb! E ele estava na casa de Norman Swayne na noite em que a Agência foi informada do suicídio daquele pobre idiota, um fato que não foi publicado pelos jornais por motivos que DeSole não compreendia! David Webb. O antigo medusiano Jason Bourne. Conklin. Por quê? Os faróis de uma limusine cortaram a noite na outra extremidade do estacionamento, aproximando-se do analista da CIA num círculo largo, obrigando-o a fechar os olhos — a luz refletida nas lentes espessas era dolorosa para seus olhos. Precisava explicar para aqueles homens a seqüência do raciocínio de sua descoberta. Eles eram seu meio de vida e sua mulher sonhava com — dinheiro. Não o dinheiro burocrático e insignificante, mas dinheiro de verdade. As melhores universidades para os netos, não as faculdades estaduais nem as bolsas de estudo suplicadas que vinham com seu salário de burocrata — um burocrata tão superior a todos os outros que trabalhavam com ele! DeSole, a Toupeira Muda, eles o chamavam, mas não pagavam mais por sua habilidade superior, a mesma habilidade que o impedia de trabalhar no setor privado, onde as inúmeras proibições legais o impediam de funcionar. Algum dia Washington ia aprender. Não seria durante sua vida, portanto seus seis netos haviam tomado
a decisão por ele. A simpática nova Medusa acenou com grande generosidade e ele, em sua revolta, atendeu correndo. Justificava-se pensando que não era uma decisão menos ética do que a que tomavam todos os anos vários membros do Pentágono, quando saíam de Arlington para os braços dos velhos amigos, os comerciantes da defesa. Como havia dito certa vez um coronel do exército, “É trabalhar agora e ser pago mais tarde”, e Deus sabia que Steven DeSole trabalhava como um escravo para seu país, mas o país não reconhecia seu esforço. Porém, detestava o nome de Medusa e raramente o usava porque era o símbolo de outra era, de um tempo aterrador e confuso. As grandes companhias de petróleo e estradas de ferro nasceram da desonestidade e venalidade dos barões, mas eles não eram hoje o que eram antes. A Medusa podia ter tido origem na corrupção de Saigon destruída pela guerra, podia ser um resultado disso, mas aquela Medusa não existia mais. Fora substituída por uma dezena de nomes e companhias diferentes. Não somos puros, Sr. DeSole, nenhum conglomerado internacional controlado pela América jamais foi — disse o homem que o recrutou —, e é verdade que procuramos o que muitos podem chamar de vantagem econômica injusta, baseada em informações privilegiadas. Segredos, se preferir. O senhor compreende, temos de fazer isso porque é o que fazem nossos competidores em toda a Europa e no Extremo Oriente. A diferença é que eles têm o apoio dos seus governos — nós não temos... Comércio, Sr. DeSole, comércio e lucro. Os mais saudáveis objetivos nesta vida. A Chrysler pode não gostar da Toyota, mas o astuto Sr. Iacocca não pede um ataque aéreo contra Tóquio. Pelo menos, ainda não. Ele descobre meios de unir forças com os japoneses. Sim, pensou DeSole, quando a limusine parou a três metros dele. O que estava fazendo pela “corporação”, como ele preferia chamar, comparado ao que havia feito pela Companhia, podia até ser considerado como um ato de benevolência. Afinal, lucros eram muito melhores do que bombas... e seus netos iriam para as melhores escolas e universidades do país. Dois homens desceram da limusine e aproximaram-se dele. — Como é esse Webb? — perguntou Albert Armbruster, presidente da Comissão Federal de Comércio, enquanto andavam pelo estacionamento. — A única descrição que eu tenho foi feita pelo jardineiro que estava escondido atrás de uma cerca, a dez metros de distância. — O que ele disse? — perguntou o outro homem não identificado, baixo e atarracado, com olhos penetrantes. — Seja preciso. — Ora, esperem um pouco — disse o analista, na defensiva, mas com firmeza. — Sou preciso em tudo que digo e francamente, seja lá quem for, não gosto nada do seu tom de voz. — Ele está nervoso — disse Armbruster, como se seu companheiro não tivesse nenhuma importância. — É uma cabeça de espaguete de Nova York e não confia em ninguém. — Em quem se pode confiar em Nova Iauque? — perguntou o homem moreno e atarracado, rindo e enfiando o cotovelo na barriga de Albert Armbruster. — Vocês, os WASPs, são os piores, vocês
são donos dos bancos, amico! — Vamos continuar assim e fora dos tribunais... A descrição, por favor? — Armbruster olhou para DeSole. — É incompleta, mas há uma ligação muito antiga com a Medusa que vou descrever — com precisão. — Vá em frente, companheiro — disse o homem de Nova York. — É um homem grande — alto, quero dizer — de quase cinqüenta anos e... — Grisalho nas têmporas? — perguntou Armbruster, interrompendo. — Bem, sim, acho que o jardineiro falou nisso — grisalho, ou coisa parecida. Evidentemente por isso calculou sua idade em quase cinqüenta anos. — É Simon — disse Armbruster, olhando para o homem de Nova York. — Quem? — DeSole parou de andar e os outros pararam também, olhando para ele. — Ele disse que se chamava Simon e sabia tudo a seu respeito, Sr. CIA — disse Armbruster. — Sobre você e Bruxelas e outras coisas. — Do que está falando? — Para começar, sua maldita máquina fax, usada exclusivamente entre você e aquela bicha de Bruxelas. — É uma linha anônima, “dedicada”! Está fechada a sete chaves! — Pois alguém encontrou as chaves, Sr. Precisão — disse o homem de Nova York, sem sorrir. — Oh, meu Deus, isso é horrível! O que devo fazer? — Combine uma história com Teagarten, mas faça isso de um telefone público — disse o mafioso. — Um dos dois pode pensar em alguma coisa. — Você sabe sobre Bruxelas? — Há pouca coisa que eu não sei. — Aquele filho da mãe me enganou, fazendo-me pensar que era um dos nossos e me pegou pelo saco! — disse Armbruster zangado, continuando a andar, acompanhado pelos outros dois, DeSole hesitante, preocupado. — Ele parecia saber tudo, mas pensando bem, só falou em coisas esparsas — malditas “coisas” esparsas como Burton e você e Bruxelas — e eu, como um cretino idiota dei uma porção de informação. Merda!
— Escute, espere um pouco! — exclamou o homem da CIA, mais uma vez fazendo-os parar. — Eu não compreendo — sou um estrategista e não estou entendendo. O que David Webb — Jason Bourne, se é que ele é Jason Bourne — estava fazendo na casa de Swayne naquela noite? — Quem diabo é Jason Bourne? — rugiu Armbruster. — É a ligação com a Medusa de Saigon de que eu falei. Treze anos atrás a Agência deu a ele o nome de Jason Bourne — o verdadeiro Bourne estava morto — e o enviaram numa missão especial Quatro Zero — isto é, uma missão de extermínio total... — Um contrato, se você quer falar inglês, paisan. — Isso, isso... Mas as coisas saíram erradas. Ele perdeu a memória e a operação fracassou. Porém, o homem sobreviveu. — Santo Cristo, que monte de zucchinis! — O que pode nos dizer sobre esse tal Webb... ou Bourne — esse Simon ou “Cobra”? Jesus, o homem é ura teatro ambulante! — Aparentemente foi o que ele fez antes. Assumia nomes diferentes, rostos diferentes, personalidades diferentes. Foi treinado para fazer isso quando o mandaram desafiar o assassino chamado Chacal — atraí-lo e matá-lo. — O Chacal? — perguntou atônito o capo supremo da Cosa Nostra. — Como no cinema? — Não, não no cinema nem no livro, seu idiota... — Ei, vai devagar, amico. — Ora, cale a boca... Ilich Ramirez Sanchez, conhecido também como Carlos, o Chacal, é uma pessoa real, um assassino profissional que as autoridades do mundo todo vêm caçando há mais de meio século. Além das centenas de assassinatos confirmados, muitos acham que ele foi a fumaça no verde prado de Dallas, o verdadeiro assassino de John Kennedy. — Está me gozando. — Pode estar certo que não. Fomos informados na Agência, em nível de segurança máxima, que, depois de todos esses anos, Carlos descobriu o paradeiro do único homem vivo capaz de identificálo, Jason Bourne — ou, como estou firmemente convencido, David Webb. — Essa informação deve ter vindo de alguém — explodiu Armbruster. — De quem? — Oh, sim. Tudo tão de repente, tão espantoso... É um agente de campo aposentado, com uma perna aleijada, um homem chamado Conklin... Alexander Conklin. Ele e um psiquiatra — Panov, Morris Panov — são amigos íntimos de Webb... ou Jason Bourne. — Onde estão eles? — perguntou o capo supremo com voz ameaçadora.
— Não podem encontrá-los, nem falar com eles. Estão ambos sob segurança máxima. — Não perguntei sobre as regras do noivado, paisan, perguntei onde eles estão. — Bem, Conklin está num condomínio em Vienna, uma propriedade impenetrável da CIA e o apartamento e o consultório de Panov estão sendo vigiados noite e dia. — Vai me dar os endereços, certo? — Certo, mas garanto que eles não vão falar. — Isso seria uma pena. Estamos só procurando um cara com uma porção de nomes, fazendo perguntas, oferecendo ajuda. — Não vão acreditar. — Talvez eu os convença. — Que diabo, por quê? — exclamou Armbruster, e imediatamente abaixou a voz. — Por que esse Webb, ou Bourne, ou seja lá quem for, estava na casa de Swayne? — É um espaço que não posso preencher — disse DeSole. — Um o quê? — Um termo empregado pela Agência que significa sem resposta. — Não admira que o país esteja neste mar de merda. — Isso não é verdade... — Agora, você cale a bocal — mandou o homem de Nova York, tirando do bolso um pequeno bloco e uma caneta. — Escreva os endereços do fantasma aposentado e do judeu psicanalista. Agora! — Eu quase não estou enxergando — disse DeSole, erguendo o pequeno bloco para a claridade do luminoso do posto de gasolina. — Pronto. O número do apartamento talvez não esteja certo, mas é alguma coisa parecida, e o nome de Panov deve estar na caixa de correspondência. Mas repito, ele não vai falar com vocês. — Nesse caso, pedimos desculpas por incomodá-lo. — É, acredito. Pelo que sei, ele é muito dedicado aos seus pacientes. — Como aquela linha de telefone no seu fax?
— Não, isso é um termo técnico. Linha Número Três, para ser mais preciso. — E você é sempre preciso, não é, paisan? — E você é muito irritante... — Precisamos ir — interrompeu Armbruster, vendo o nova-iorquino guardar o bloco no bolso. — Fique calmo, Steven — acrescentou, controlando a raiva, e voltou para a limusine. — Lembre-se, não há nada que não possamos resolver. Quando falar com Jimmy T., em Bruxelas, veja se inventam uma explicação razoável, certo? Se não encontrarem, não se preocupe, nós encontraremos. — Claro, Sr. Armbruster. Posso fazer uma pergunta? Minha conta em Berna está pronta para ser liberada imediatamente — no caso de... o senhor compreende... no caso de... — É claro que está, Steven. Tudo que tem a fazer é tomar um avião e escrever o número da sua conta pessoalmente. É a sua assinatura, a que está arquivada, lembra-se? — Sim, sim, eu me lembro. — Deve estar em mais de um milhão, agora. — Obrigado, senhor. Muito obrigado... senhor. — Você mereceu, Steven. Boa noite. A tensão não diminuiu quando os dois homens sentaram no banco de trás da limusine. Armbruster olhou para o mafioso quando o chofer, no outro lado da divisória de vidro, ligou o motor. — Onde está o outro carro? O italiano ligou a luz interna e consultou o relógio. — Neste momento está estacionado a menos de dois quilômetros do posto de gasolina. Vai apanhar DeSole na volta e ficar com ele até que tudo esteja acertado. — Seu homem sabe exatamente o que deve fazer? — Ora, vamos, ele não é nenhuma virgem. Tem um holofote tão forte naquele carro que pode ser visto em Miami. Ele se aproxima, liga o holofote e gira a luz na direção certa. Seu idiota de dois milhões de dólares fica cego e fora do jogo, e nós estamos cobrando só um quarto dessa quantia por nosso trabalho. É o seu dia, Alby. O presidente da Comissão Federal de Comércio recostou-se no banco do carro e olhou para as imagens escuras que passavam atrás do vidro fumê, lá fora. — Quer saber de uma coisa — observou, em voz baixa —, há vinte anos, se alguém me dissesse
que hoje eu estaria aqui sentado com um homem como você, dizendo o que estou dizendo, eu diria que era impossível. — É isso que nós gostamos em vocês, da classe alta. Nos olham de cima e nos desprezam até precisarem de nós. Então, de repente somos sócios. Viva e passe bem, Alby, estamos eliminando mais um dos seus problemas. Volte para a sua importante comissão federal e decida quais as companhias que estão limpas e quais não estão — decisões não necessariamente baseadas em água e sabão, certo? — Ora, cale a boca — rugiu Armbruster, batendo com a mão aberta no braço do banco. — Esse Simon — esse Webb! De onde ele vem? Por que está atrás de nós? O que ele quer? — Talvez tenha alguma coisa a ver com aquele cara, o Chacal. — Isso não faz sentido. Não temos nada com o Chacal. — Para que iam ter? — disse o mafioso. — Vocês têm a nós, certo? — É uma associação muito precária, não esqueça... Webb — Simon, que droga, seja lá quem for, temos de encontrá-lo! O que ele já sabia, mais o que eu contei, o homem é uma merda de ameaça! — É um item muito importante, não é? — Da maior importância — concordou Armbruster, olhando para fora com o punho direito fechado e tamborilando furiosamente com os dedos da mão esquerda no braço do banco. — Quer fazer negócio? — O quê? — disse Armbruster bruscamente, voltando-se para o rosto calmo do siciliano. — Você ouviu, só que usei a palavra errada e peço desculpas por isso. Posso lhe dar um número não negociável e você aceita ou não. — Um... contrato? Para Simon — Webb? — Não — disse o mafioso, balançando lentamente a cabeça. — Para um cara chamado Jason Bourne. É mais limpo matar alguém que já está morto, não acha?... Já que acabamos de economizar meio milhão para você, o preço do contrato é cinco. — Cinco milhões? — O custo dos problemas de eliminação está na categoria dos itens mais importantes. Ameaças são mais caras ainda. Cinco milhões, Alby, a metade na ocasião do contrato dentro de 24 horas, como é de praxe. — Isso é absurdo! — Então não aceite. Se me procurar depois, são sete e meio e se voltar pela terceira vez, é o dobro. Quinze milhões.
— Qual a garantia de que vocês podem encontrá-lo? Ouviu o que DeSole disse. O homem é Quatro Zero, o que significa que está fora do alcance de qualquer um, enterrado. — Ora, nós podemos desenterrar o homem e replantar. — Como? Dois milhões e meio é muito dinheiro só por sua palavra. Como? Com um sorriso, o capo supremo da máfia tirou do bolso o bloco de notas onde DeSole havia escrito os endereços. — Amigos íntimos são as melhores fontes, Alby. Pergunte aos idiotas que escrevem todos esses livros de mexericos. Tenho dois endereços. — Não vai nem chegar perto deles. — Qual é, pensa que está tratando com o velho Chicago e os animais? Com Capone, o Cão Danado e Nitti, o dedo nervoso? Temos gente sofisticada na folha de pagamento. Gênios. Cientistas, garotos mágicos da eletrônica — médicos. Quando terminarmos com o fantasma e o judeu, nem vão saber o que aconteceu. Mas teremos Jason Bourne, o cara que não existe porque já está morto. Albert Armbruster balançou a cabeça afirmativamente c voltou-se para a janela. — Vou fechar o hotel por seis meses, mudar o nome, depois começar uma campanha promocional nas revistas, antes de reabrir — disse John St. Jacques, de pé ao lado da janela, enquanto o médico tratava seu cunhado. — Não tem mais ninguém? — perguntou Bourne com uma careta de dor, sentado na poltrona, de robe, enquanto o médico dava o último ponto no seu pescoço. — Tem. Sete casais canadenses malucos, incluindo meu velho amigo que está bordando seu pescoço neste momento. Acredite ou não, eles queriam formar uma brigada, Renfrews da Polícia Montada, para caçar os bandidos. — Foi idéia de Scotty — disse o médico, concentrado no seu trabalho. — Eu estou fora. Estou velho demais para isso. — Scotty também está, mas não sabe. Depois ele queria oferecer uma recompensa de 100 mil dólares por qualquer informação que nos levasse ao et cétera! Eu o convenci de que quanto menos se falar no assunto, melhor para nós. — O melhor é não dizer nada — observou Jason. — É assim que tem de ser. — Um pouco radical, David — disse St. Jacques, sem entender o olhar de Bourne. — Sinto muito, mas é. Estamos procurando desviar a curiosidade local com uma história sobre vazamento maciço de gás propano, mas nem todos estão acreditando. É claro que, para o mundo lá fora, um terremoto nas ilhas não teria mais do que seis linhas nas últimas páginas do caderno de classificados, mas os boatos estão voando pelas Leewards.
— Você disse a curiosidade local... e o resto do mundo? Noticiaram alguma coisa? — Vão noticiar, mas não sobre nossa ilha, não sobre Tranqüilidade. Montserrat sim, a notícia vai ter uma coluna no Times de Londres e talvez um centímetro de espaço nos jornais de Nova York e Washington, mas não acredito que toquem na ilha. — Deixe de ser tão misterioso. — Conversaremos mais tarde. — Pode dizer o que quiser, John — disse o médico. — Estou terminando, e não estou prestando muita atenção. E de qualquer modo, tenho direito de ouvir. — Vou ser breve — disse St. Jacques, colocando-se à direita da poltrona. — O governador da Coroa. Você estava certo, pelo menos tenho de supor que estava certo. — Por quê? — A notícia chegou quando você estava tomando banho. Encontraram o barco do governador esfacelado num dos mais perigosos recifes de Antigua, a caminho de Barbuda. Nenhum sinal de sobreviventes. Plymouth supõe que foi uma daquelas tempestades de vento que vêm do sul, de Nevis, mas isso é difícil de acreditar. Não no vento, necessariamente, mas nas circunstâncias. — Quais? — Os dois marinheiros que saem sempre com ele não estavam no barco. Ele disse no iate clube que não precisava deles, que queria sair sozinho, mas para Henry disse que ia fazer pesca de oceano. — O que significa que ia precisar dos marinheiros — interrompeu o médico canadense. — Oh, desculpe. — Sim, é isso mesmo — concordou o dono do Tranqüilidade. — Não se pode pegar peixe grande e pilotar o barco ao mesmo tempo — pelo menos, o governador não podia. Tinha medo de tirar os olhos das cartas. — Mas sabia ler as cartas, não sabia? — perguntou Jason. — Como navegador, não era nenhum Pedro Álvares Cabral, guiando-se pelas estrelas do Pacífico, mas era suficientemente bom para evitar problemas. — Recebeu ordens para sair sozinho — disse Bourne. — Tinha encontro marcado com um barco em águas que o obrigavam a ficar com os olhos nas cartas. — Jason percebeu que os dedos ágeis não estavam mais tocando seu pescoço, substituídos agora por uma atadura muito apertada e o médico de pé, ao seu lado, observava o próprio trabalho. — Como vamos? — perguntou Bourne com um sorriso. — Terminamos — disse o canadense. — Muito bem... então acho melhor nos encontrarmos mais tarde, para um drinque, certo?
— Puxa, agora que estávamos chegando no melhor pedaço. — Não tem nada de bom, doutor, nada de bom, e eu seria um paciente muito ingrato — o que não sou — se, mesmo por descuido, o deixasse ouvir coisas que não deve saber. O velho canadense olhou para Jason. — Fala sério, não fala? Apesar de tudo que aconteceu, não quer mesmo me envolver mais. E não está fazendo drama, segredo só pelo segredo — por falar nisso, uma velha artimanha de médicos inferiores, mas está preocupado de verdade, certo? — Sim, acho que estou. — Considerando o que aconteceu com você, e não estou falando só das últimas horas das quais participei, mas do que me contam as cicatrizes no seu corpo, é realmente notável que se preocupe por outra pessoa que não seja você mesmo. Sr. Webb, é um homem muito estranho. Às vezes parece dois homens num só. — Não sou estranho, doutor — disse Jason Bourne, fechando os olhos por um breve momento. — Não quero ser estranho, diferente nem exótico. Quero ser tão normal e comum como qualquer homem, sem jogos nem nada. Sou apenas um professor, e é tudo que eu quero ser. Mas, nas atuais circunstâncias, tenho de fazer as coisas a meu modo. — O que significa que devo sair para meu próprio bem? — Isso mesmo. — E se eu algum dia souber de todos os fatos, vou compreender que suas aulas foram muito proveitosas. — Espero que sim. — Aposto que é um professor e tanto. Sr. Webb. — Doutor Webb — disse St. Jacques, como se fosse obrigatório elucidar o fato. — Meu cunhado é também doutor. Como minha irmã, tem um PhD. Fala algumas línguas orientais e é catedrático. Universidades como Harvard, Yale e McGill há anos procuram atraí-lo, mas ele não está interessado... — Quer ficar quieto, por favor — disse Bourne, contendo o riso. — Meu jovem amigo empresário dá muito valor a qualquer letra do alfabeto depois do nome, apesar do fato de que com o que ganho eu não posso me hospedar mais de dois dias numa das suas vilas. — Isso é bobagem. — Eu disse, com o que ganho.
— Certo. — Tenho mulher rica... desculpe, doutor, é uma antiga discussão de família. — Não só um bom professor — disse o médico — mas, sob esse exterior durão, um homem muito interessante. — O canadense foi até a porta, voltou-se e disse: — Aceito aquele drinque mais tarde, será um prazer. — Obrigado — disse Jason. — Obrigado por tudo. O médico balançou a cabeça afirmativamente e saiu, fechando a porta. — Um bom amigo, Johnny. — Na verdade, é frio como um peixe, mas um ótimo médico. Esta foi a única vez que me pareceu humano... Então, você acha que o Chacal combinou um encontro com o governador em algum lugar ao largo de Antigua, conseguiu a informação que queria, matou o governador e o atirou para os tubarões. — Encalhando o barco convenientemente nos recifes — completou Jason. — Talvez ligando o afogador e fixando o curso cm alta velocidade para os recifes. Uma tragédia no mar e desaparece a ligação do governador com Carlos — isso é de importância vital para ele. — É também um problema para mim — disse St. Jacques. — Eu não estive lá, mas aquela parte do recife, ao norte de Falmouth, onde o barco encalhou é chamada Boca do Diabo, e não é muito citada em lugar nenhum. Os barcos de aluguel nem chegam perto, assim ninguém pode falar do número de vidas e de barcos destruídos pelos recifes. — E daí? — Supondo que o lugar marcado para o encontro fosse esse, perto da Boca do Diabo como é que o Chacal sabia? — Seus dois comandos não contaram? — Contaram o quê? Eu os mandei diretamente a Henry, para um relatório completo, enquanto cuidávamos de você. Não tivemos tempo para conversar. — Então agora Henry sabe e provavelmente está em estado de choque. Perdeu dois barcos de corrida em dois dias, e só um tem probabilidades de ser pago. Além disso, ele ainda não sabe que seu patrão, o honrado governador da Coroa, era lacaio do Chacal, que enganou a todos no Ministério do Exterior apresentando um assassino de segunda classe, de Paris, como herói de guerra da França. As linhas de comunicação vão funcionar a noite toda entre o palácio do governo e Whitehall. — Outro barco de corrida? Do que está falando? O que Henry sabe agora — o que meus guardas podem contar a ele?
— Há pouco você perguntou como o Chacal podia saber da existência do recife ao largo de Antigua, chamado Boca do Diabo. — Acredite, Doutor Webb, lembro de ter perguntado. Como? — Ele tinha um terceiro homem aqui. É isso que seus comandos devem ter contado a Henry. Um louro filho da mãe chefe das patrulhas contra drogas em Montserrat. — Ele? Rickman? A Ku Klux Klan britânica de um só homem? Rickman o ditador de regras, o flagelo de todos que não tinham coragem de enfrentá-lo? Cristo! Henry não vai acreditar. — Por que não? Você acaba de descrever um possível discípulo de Carlos. — Sim, tem razão, mas parece tão improvável. O homem é o típico santarrão. Orações matinais antes do trabalho, pedindo a Deus para ajudá-lo na luta contra Satã, nada de álcool, nada de mulheres... — Savonarola? — Eu diria que sim — do que me lembro das aulas de história. — Pois então, garanto que é um prato fino para o Chacal. E Henry vai acreditar quando seu barco patrulha não voltar de Plymouth e os corpos da tripulação aparecerem na praia ou simplesmente não aparecerem para as preces matinais. — Foi assim que Carlos fugiu? — Foi — Bourne fez um gesto afirmativo e apontou para o sofá no outro lado da mesa de centro. — Sente-se, Johnny. Precisamos conversar. — O que estamos fazendo? — Não sobre o que aconteceu, irmão, mas sobre o que vai acontecer. — O que vai acontecer? — perguntou St. Jacques, sentando. — Vou embora. — Não! — exclamou John, levantando-se de um salto como que atingido por um choque elétrico. — Não pode! — Preciso. Ele sabe nossos nomes, sabe onde moramos. Tudo. — Para onde vai? — Paris. — Que droga, não! Não pode fazer isso com Marie! Nem com as crianças, pelo amor de Deus. Não vou permitir.
— Não pode me deter. — Pelo amor de Deus, David, escute! Se Washington é mesquinho, ou não liga a mínima, acredite, Ottawa tem gente melhor. Minha irmã trabalhou para o governo e nosso governo não abandona as pessoas por causa de uma inconveniência ou para não gastar dinheiro. Conheço pessoas — como Scotty, o médico e outros. Uma palavra deles e você vai para uma fortaleza em Calgary. Ninguém vai poder tocá-lo. — Pensa que o meu governo não faria o mesmo? Vou lhe dizer uma coisa, irmão, tem gente em Washington que arriscaria a vida para proteger a minha, a de Marie e das crianças. Sem pensar em nenhuma recompensa para eles ou para o governo. Se eu quisesse um lugar seguro, onde ninguém pudesse nos tocar, provavelmente me dariam uma propriedade na Virgínia, com cavalos e criados e um pelotão de soldados armados para nos proteger noite e dia. — Então essa é a resposta. Aceite. — Para quê, Johnny? Para viver numa prisão particular? As crianças sem poder visitar os amigos, guardas com eles se forem à escola, se não estudarem só com professores particulares, nada de passar a noite na casa de amigos, nada de guerra de travesseiros — nada de vizinhos? Marie e eu olhando um para o outro, olhando para o holofote no jardim, ouvindo os passos dos guardas, uma tosse ou um espirro, ou o tiro de um rifle porque um coelho entrou no jardim? Isso não é vida, isso é prisão. Sua irmã e eu não suportaríamos. — Eu também não, não do modo que você descreve. Mas o que Paris vai resolver? — Posso encontrá-lo. Posso vencê-lo. — Em Paris ele tem mais força. — Eu tenho Jason Bourne — disse David Webb. — Não acredito nessa bobagem! — Eu também não, mas parece que funciona... Estou cobrando sua dívida, Johnny. Proteja minha retaguarda. Diga a Marie que estou bem, não estou ferido e que tenho uma pista do Chacal que só Fontaine podia ter dado — o que é verdade. Um café em Argenteuil, chamado Le Coeur du Soldat. Diga a ela que estarei com Alex Conklin e toda a ajuda que Washington pode me dar. — Mas não é verdade, certo? — Não. O Chacal descobriria. Ele tem espiões em todo o Quai d’Orsay. O único jeito é eu ir sozinho. — Não acha que Marie vai saber disso? — Vai desconfiar, mas não pode ter certeza. Vou pedir para Alex telefonar, confirmando que está em contato com todo o poder de fogo secreto de Paris. Mas você deve ser o primeiro a dizer.
— Por que a mentira? — Não devia perguntar isso, irmão. Eu já a fiz sofrer bastante. — Tudo bem, digo o que você quer, mas Marie não vai acreditar. Ela sempre sabe quando estou mentindo. Desde que éramos pequenos, aqueles olhos castanhos olhavam para mim, quase sempre zangados, mas não como os dos meus irmãos — oh, eu não sei —, não com desprezo porque o “garoto” era um trapalhão. Você entende? — Isso se chama gostar. Ela sempre se preocupou com você — mesmo quando você era um “trapalhão”. — Eu sei, Mare é legal. — Um pouco mais do que isso, eu acho. Telefone para ela dentro de duas horas e diga que pode voltar. É o lugar mais seguro agora para os três. — E você? Como vai chegar a Paris? Os vôos de Antigua e Martinica são dificílimos, às vezes lotados com dias de antecedência. — De qualquer modo, não posso usar essas companhias. Preciso sair secretamente, disfarçado. Um homem em Washington tem de arranjar isso. De algum modo. Ele tem de conseguir. Alexander Conklin saiu da pequena cozinha do apartamento da CIA em Vienna com o rosto e o cabelo molhados. Antigamente, antes dos velhos tempos terem mergulhado num tanque de destilaria, ele deixava o escritório calmamente — não importa onde fosse — quando as coisas ficavam muito pesadas e muito rápidas e dava-se o luxo de um ritual. Ia à melhor churrascaria — estivesse onde estivesse —, tomava dois martínis secos e pedia o bife mais grosso e mais malpassado que havia no menu, acompanhado de batatas com bastante gordura. A solidão, aliada à pequena dose de bebida, o bife quase cru e especialmente as batatas engorduradas, tinham um efeito tão calmante que todas as complicações, os conflitos, a aceleração do dia eram finalmente ordenados de modo racional. Voltava para o escritório — um apartamento elegante em Belgravia Square, Londres, ou os quartos nos fundos de um bordel, em Katmandu — com inúmeras soluções. Foi assim que ganhou o apelido de Santo Alex Conklin. Certa vez mencionou a Mo Panov esse fenômeno gastronômico, e o médico respondeu simplesmente: “Se sua cabeça maluca não o matar, o estômago o mata”. Hoje, porém, com o vácuo do ex-alcoólatra e vários outros inconvenientes, tais como colesterol alto e os idiotas ácidos glicéricos, fossem o que fossem, tinha de encontrar a solução de modo diferente. Encontrou por acaso. Certa manhã, durante as audiências do Irã-contra, que, para ele era o melhor programa humorístico da televisão, o aparelho pifou. Conklin ficou furioso e ligou o rádio portátil que não usava há meses, talvez anos, porque sua televisão tinha rádio conjunto — também enguiçado naquele momento —, mas a pilha do rádio portátil estava derretida há muito tempo. Sentindo dor no pé artificial, foi até o telefone na cozinha, certo de que um telefonema para o técnico de televisão, que lhe devia vários favores, traria o homem correndo à sua casa. Infelizmente, só ouviu um discurso furioso da mulher do técnico, contando que o marido, o “conquistador de freguesas” acabava de fugir com a “cadela rica, negra e assanhada de Embassy Row!” (Zaire, como foi publicado mais tarde nos jornais de
Puerta Vallarta). Conklin, quase apoplético, correu para seus comprimidos contra estresse e pressão alta que estavam no parapeito da janela, acima da pia e abriu a torneira de água fria. A torneira explodiu, lançando um forte jato d’água direto na cabeça de Conklin. Caramba! Acalmado pelo choque, lembrouse que a televisão a cabo ia retransmitir a audiência completa naquela noite. Feliz agora, chamou o encanador e depois saiu para comprar outra televisão. Assim, desde aquela manhã, sempre que suas fúrias ou a situação do mundo o perturbavam — do mundo que ele conhecia —, punha a cabeça sob a torneira e deixava a água fria correr livremente. Acabava de fazer isso nessa manhã. Na droga dessa maldita manhã! DeSole! Morto num acidente numa estrada deserta de Maryland, às 4:30h da manhã. Que diabo Steven DeSole, cuja carteira de motorista dizia claramente que ele sofria de cegueira noturna, estava fazendo numa estrada secundária nos arredores de Anápolis, às 4:30h da manhã? Depois o telefonema de Charlie Casset, furioso, às 6:00h, berrando descontrolado, dizendo que ia pôr o comandante da OTAN no fogo e exigir uma explicação para a comunicação fax secreta entre o general e o falecido chefe de relatórios clandestinos, que não fora vítima de acidente mas de assassinato! Além disso, era melhor que o agente aposentado chamado Conklin contasse tudo que sabia sobre DeSole e Bruxelas e outros assuntos relacionados com o caso, do contrário todo o apoio prometido ao referido agente e a seu amigo Jason Bourne seria retirado. Meio-dia, afinal! E então Ivan Jax! O brilhante médico negro da Jamaica telefonou dizendo que ia devolver o corpo de Norman Swayne ao lugar em que o havia encontrado porque não queria ser a vítima de outro fiasco da Agência. Mas não era da Agência, gritou Conklin para si mesmo, sem poder explicar a Ivan Jax por que, na verdade, havia pedido sua ajuda. Medusa. E Jax não podia simplesmente levar o corpo de volta a Manassas porque a polícia, obedecendo a ordens federais — ordens que o ex-agente de campo havia dado, usando códigos que não tinha o direito de usar, havia selado a propriedade do general Norman Swayne, sem exigir outra explicação. — O que eu faço com o corpo? — gritou Jax. — Mantenha-o no gelo por algum tempo. Cactus ia querer assim. — Cactus? Passei a noite com ele no hospital. Vai ficar bom, mas, como eu, não tem idéia de que diabo está acontecendo! — Nós, do serviço clandestino, nem sempre podemos explicar as coisas — disse Alex, com uma careta para o ridículo das próprias palavras. — Telefono depois. Então ele foi até a cozinha e pôs a cabeça debaixo da torneira de água fria. O que mais podia sair errado? E, é claro, o telefone tocou. — Dunkin Amendoim — disse Conklin, atendendo. — Quero sair daqui — disse Jason Bourne sem nenhum sinal de David Webb na voz. — Quero ir para Paris! — O que aconteceu? — Ele fugiu, foi isso que aconteceu e preciso ir para Paris disfarçado, nada de imigração, nada
de alfândega. Ele controla tudo e não posso lhe dar a oportunidade de me localizar... Alex, você está ouvindo? — DeSole foi morto a noite passada, um acidente que não foi acidente, às 4:30h da manhã. A Medusa está fechando o cerco. — Medusa não me interessa. Para mim, é história passada, começamos no caminho errado. Quero o Chacal e sei onde começar. Posso encontrar, posso apanhar o Chacal. — Deixando a Medusa para mim. — Você disse que queria chegar mais alto — só me deu um prazo de 48 horas para procurar ajuda. Pois, adiante o relógio. As 48 horas terminaram, pode ir mais alto, mas me leve daqui para Paris. — Eles vão querer falar com você. — Quem? — Peter Holland, Casset, quem eles puserem no caso... o procurador da república. Cristo, o próprio presidente. — Para falar sobre o quê? — Você conversou bastante com Armbruster, com a mulher de Swayne e com aquele sargento, Flannagan. Eu não. Só usei algumas palavras de código que provocaram respostas de Armbruster e do embaixador Atkinson, em Londres, nada muito definitivo. Você tem um quadro melhor, de primeira mão. O que eu tenho pode ser facilmente negado. Precisam falar com você. — E deixar o Chacal de molho? — Só por um dia, no máximo dois. — Droga, não. Porque a coisa não funciona assim e você sabe disso! Se voltar, serei a única testemunha material e vão me levar de um interrogatório para outro. E se me recusar a cooperar, me põem sob custódia. De jeito nenhum, Alex. Tenho só uma prioridade e ela está em Paris. — Escute — disse Conklin. — Algumas coisas eu posso controlar, outras não. Precisamos de Charlie Casset e ele nos ajudou, mas ele não é um homem que pode ser enganado, nem eu quero enganá-lo. Ele sabe que a morte de DeSole não foi acidente — um homem com cegueira noturna não faz uma viagem de cinco horas, dirigindo o carro, àquela hora da madrugada — e ele sabe que sabemos muito mais sobre DeSole e Bruxelas do que contamos. Se quisermos a ajuda da Agência, e precisamos dela para coisas como, por exemplo, arranjar um vôo diplomático ou militar para você, para Paris, e só Deus sabe o que mais, quando você chegar lá, não posso ignorar Casset. Ele vai pisar na gente, e Deus sabe que tem razão. Bourne ficou calado e Conklin o ouvia respirar.
— Tudo bem — disse, afinal. — Já vi onde estamos. Diga a Casset que, se ele nos der tudo que estamos pedindo agora, nós lhe daremos — não, eu lhe dou, assim você fica mais “limpo” do que eu — informações suficientes para o Departamento de Justiça apanhar alguns dos maiores peixes no governo, pressupondo que o Departamento não faz parte da Mulher Serpente... Pode dizer também que vou revelar a localização de um cemitério que pode esclarecer muitas coisas. Foi a vez de Conklin ficar em silêncio por um momento. — Ele talvez queira mais do que isso, considerando suas atividades do momento. — É mesmo...? Ah, sim, eu compreendo. Se eu sair perdendo. Tudo bem, diga que quando chegar a Paris vou contratar uma estenógrafa e ditar tudo que sei, tudo que descobri e mando para você. Confio em Santo Alex para fazer a coisa certa. Talvez uma página ou duas de cada vez, para que continuem cooperando. — Deixe essa parte comigo... Agora Paris, ou quase. Se bem me lembro, Montserrat é perto de Dominica e da Martinica, certo? — Menos de uma hora de viagem, e Johnny conhece todos os pilotos da grande ilha. — A Martinica é francesa. Vamos começar por aí. Conheço gente no Deuxième Bureau. Vá até lá e telefone do aeroporto. A essa altura já terei arranjado tudo. — Certo... Uma última coisa, Alex. Marie. Ela e as crianças vão voltar para Tranqüilidade esta tarde. Telefone e diga que estou protegido por todo o poder de fogo de Paris. — Seu mentiroso, filho da mãe. — Faça isso! — É claro que farei. A propósito, e sem mentir, amanhã vou jantar com Mo Panov. Ele é um péssimo cozinheiro, mas pensa que é o maior mestre-cuca judeu. Eu gostaria de contar tudo a ele. Mo vai ficar louco se não souber o que está acontecendo. — Certo. Sem ele nós dois estaríamos em celas acolchoadas mascando couro cru. — Falo com você mais tarde. Boa sorte. No dia seguinte, às 10:25h da manhã, hora de Washington, o Dr. Morris Panov, acompanhado por seu guarda, saiu do Walter Reed Hospital depois de uma sessão com um tenente do exército que sofria os efeitos de um exercício de treino na Geórgia, há oito semanas, no qual morreram cerca de vinte recrutas sob seu comando. Mo não podia fazer muito. O homem era culpado de excesso de esforço competitivo no estilo militar e tinha de viver com essa culpa. O fato de ser um negro financeiramente privilegiado e formado pela Academia de West Point não ajudava. A maioria dos recrutas mortos também eram negros e eram desprivilegiados. Panov, pensando nas opções avaliáveis para o paciente, de repente olhou sobressaltado para seu
guarda. — Você é novo, não é? Quero dizer, pensei que conhecia todos vocês. — Sim, senhor. Sempre nos revezamos de um momento para o outro. Isso nos mantém alerta. — Sim, antecipação hábito-orientada pode diminuir a deficiência de qualquer um. — O psiquiatra caminhou para onde o carro blindado sempre o esperava. Viu um veículo diferente. — Este não é o meu carro — disse, atônito. — Entre — ordenou o guarda, abrindo a porta delicadamente. — O quê? Alguém o agarrou, de dentro do carro, e um homem uniformizado o fez sentar no meio do banco traseiro, com o guarda do outro lado. Os dois homens o seguraram enquanto o homem que estava no carro tirou o paletó de Panov e ergueu a manga curta da sua camisa. Aplicou uma injeção no braço do médico. — Boa noite, doutor — disse o soldado com a insígnia do Corpo Médico nas lapelas do uniforme. — Telefone para Nova York — acrescentou.
Capítulo19 O 747 da Air France, vindo da Martinica, sobrevoou o Aeroporto de Orly no começo da noite. Estava com cinco horas e 22 minutos de atraso devido ao mau tempo no Caribe. Quando o piloto fez a aproximação final o controlador de vôo recebeu da torre a ordem para aterrissar, depois passou para a freqüência indicada e enviou uma última mensagem em francês para uma sala de rádio off-limits. — Deuxième, carga especial. Por favor, diga à parte interessada para se dirigir à área previamente indicada. Obrigado. Câmbio final. — Instruções recebidas e retransmitidas — foi a resposta breve. — Câmbio final. A carga especial em questão estava na fila da esquerda da primeira classe. A poltrona ao seu lado estava vazia, por ordem do Deuxième Bureau, em cooperação com Washington. Impaciente, aborrecido e impedido de dormir por causa de atadura muito apertada no pescoço, Bourne, extremamente cansado, pensou nos acontecimentos das últimas 19 horas. Para não dizer mais, as coisas não haviam sido tão fáceis quanto Conklin esperava. O Deuxième levou mais de seis horas para se resolver, enquanto eram trocados telefonemas nervosos entre Washington e Paris e finalmente para Vienna, Virgínia. O obstáculo, na verdade uma rocha muito dura, era o fato da CIA não poder descrever claramente a operação secreta em termos de um tal Jason Bourne, pois Alexander Conklin, o único que podia revelar esse nome, recusou-se a fazer isso, sabendo que o Chacal tinha informantes por toda a cidade de Paris, exceto talvez nas cozinhas do Tour d’Argent. Afinal, como último recurso e sabendo que era hora de almoço em Paris, Alex deu vários telefonemas comuns transcontinentais, sem nenhuma segurança, para alguns cafés da Rive Gauche, e finalmente encontrou um velho conhecido do Deuxième em um deles, na rue de Vaugirard. — Lembra-se do tinamou e de um americano um pouco mais moço do que é agora que simplificaram as coisas para você? — Ah, o tinamou, o pássaro com asas escondidas e pernas ferozes! Dias melhores aqueles, dias de juventude. E se o americano um pouco mais moço naquele tempo foi elevado ao status de santo, eu jamais o esquecerei. — Não esqueça agora. Preciso de você — É você, Alexander? — Sim, sou eu e tenho um problema com o D. Bureau. — Está resolvido. E estava. Mas não o tempo nas ilhas. A tempestade que havia atingido as ilhas Leewards duas noites atrás foi só um prelúdio da chuva torrencial que inundou as Granadines, com outra logo em seguida. Começava a estação dos furacões nas ilhas, portanto o mau tempo não era nada excepcional,
mas apenas um fator de atraso. Finalmente, quando estavam quase para levantar vôo, descobriram um defeito no motor de estibordo e ninguém reclamou enquanto o defeito foi localizado e corrigido. Assim, mais três horas foram adicionadas ao atraso total do vôo. A não ser pelo turbilhão em sua mente, o vôo foi sem incidentes para Jason, somente a culpa interferindo com o pensamento do que o esperava — Paris, o café em Argenteuil com o nome significativo de Le Coeur du Soldat. O sentimento de culpa intensificou-se durante o curto vôo de Montserrat a Martinica, quando passaram sobre Guadalupe e a Ilha de Basse-Terre. Jason sabia que a uns mil metros abaixo estavam Marie e as crianças, preparando-se para a volta à Ilha Tranqüilidade, para o marido e pai que não estaria mais lá. A pequena Alison, é claro, não entendia nada ainda, mas Jamie sim. O brilho dos seus grandes olhos desapareceria com o desaponto de não encontrar o companheiro de pesca e de natação... e Marie — Cristo, não posso pensar nela! É doloroso demais! Marie ia sentir-se traída, por ele ter fugido para o confronto violento com o inimigo de uma vida distante e passada que não era mais a vida deles. Pensaria como o velho Fontaine, que tentara convencêlo a ir com a família para muito longe do campo de caça do Chacal. Mas nenhum dos dois compreendia. O velho Carlos podia morrer, mas no leito de morte deixaria uma herança, uma última ordem que seria a sentença de morte de Jason Bourne-David Webb e sua família. Eu estou certo, Marie! Procure compreender. Tenho de encontrá-lo, preciso matá-lo. Não podemos viver numa prisão particular pelo resto de nossas vidas! — Monsieur Simon? — perguntou o francês gorducho e bem vestido, um homem idoso com barba bem aparada, pronunciando o nome como Siimoon. — Sim — respondeu Bourne, apertando a mão que o homem estendia, no corredor quase deserto do Aeroporto de Orly. — Sou Bernardine, François Bernardine, um antigo companheiro do nosso amigo, Alexander, o santo. — Alex falou de você — disse Jason com um pequeno sorriso. — Não seu nome, é claro, mas disse que mencionaria sua santidade. Assim eu ficaria sabendo quem é — seu antigo companheiro. — Como vai ele? Ouvimos certas histórias, é claro. — Bernardine deu de ombros. — Fofocas banais, em sua maioria. Ferido na insensata guerra do Vietnã, álcool, demitido, afastado, chamado de volta como um herói da Agência, tantas coisas contraditórias. — Quase todas verdadeiras, ele não tem medo de admitir. Alex está aleijado agora, e não bebe, e foi um herói. Eu sei. — Compreendo. Outras histórias, boatos, quem pode acreditar? Fantasias sobre Beijing, Hong Kong — algumas sobre um homem chamado Jason Bourne. — Sim, eu ouvi. — É claro... Mas agora, Paris. Nosso santo disse que ia precisar de acomodações, roupas compradas en scène, por assim dizer, inteiramente francesas.
— Um guarda-roupa pequeno, mas variado — concordou Jason. — Sei onde e o que vou comprar, e tenho dinheiro suficiente. — Então, temos de nos preocupar com a moradia. Um hotel da sua escolha? La Trémoille? George Cinq? Plaza-Athénée? — Menor, muito menor e mais barato. — Então o dinheiro é um problema? — Não, não é. Só uma questão de aparência. Vamos fazer uma coisa. Eu conheço Montmartre. Posso encontrar um bom lugar. O que preciso é de um carro — registrado em outro nome, de preferência um nome que não leve a ninguém e a lugar nenhum. — O que significa o nome de um morto. Já foi providenciado. Está na garagem subterrânea nos Capucines, perto da Place Vendôme. — Bernardine tirou do bolso um molho de chaves que entregou a Jason. — Um antigo Peugeot na Seção E. Há milhares de carros iguais em Paris e o número da licença está na nota. — Alex disse que estou em missão secreta? — Na verdade, ele não precisou dizer. Acho que o nosso santo, quando esteve aqui, andou examinando os cemitérios, à procura de nomes que pudessem ser úteis. — Provavelmente aprendi isso com ele. — Nós todos aprendemos com aquele homem extraordinário, o melhor na nossa profissão, e tão modesto, tão... je ne sais quoi... tão “por que não tentar”, certo? — Certo, por que não tentar. — Mas devo dizer uma coisa — continuou Bernardine com uma risada. — Uma vez ele escolheu um nome num túmulo que deixou a Sûreté fou... maluca! Era um dos nomes usados pelo assassino da machadinha, procurado há meses pela polícia! — Isso é engraçado — disse Jason, rindo. — Sim, muito. Mais tarde, ele me contou que achou o nome em Rambouillet — num cemitério perto de Rambouillet.Rambouillet! O cemitério onde Alex tentara matá-lo, 13 anos atrás. O sorriso desapareceu dos lábios de Jason e ele olhou fixamente para o amigo de Alex do Deuxième Bureau. — Sabe quem eu sou, não sabe? — perguntou em voz baixa. — Sei — respondeu Bernardine. — Não foi difícil juntar os fatos, não com as histórias e boatos do Extremo Oriente. Afinal, foi em Paris que deixou sua marca na Europa, Sr. Bourne. — Mais alguém sabe?
— Mon Dieu, non! e ninguém vai saber. Devo explicar. Devo a vida a Alexander Conklin, nosso modesto santo de les opérations noires — missões negras, em sua língua. — Não precisa traduzir. Falo francês fluentemente Alex não lhe disse isso? — Oh, meu Deus, está duvidando de mim — disse o homem da Deuxième, erguendo as sobrancelhas grisalhas. — Meu jovem — ou pelo menos mais jovem do que eu —, considere que estou com setenta anos e tenho lapsos de linguagem e procuro corrigi-los, porque quero ser gentil, não subreptice. — D’accord, Je regrette. Estou sendo sincero. — Bien. Alex é alguns anos mais novo do que eu, mas imagino como está controlando isso. A idade, quero dizer. — Como você. Muito mal. — Um poeta inglês — galês, para ser mais exato — escreveu, “Não entre gentilmente nessa boa noite”. Lembra-se? — Sim. Foi Dylan Thomas e ele morreu com trinta e poucos anos. O que ele queria dizer era lute como um filho da mãe. Não se entregue. — É o que pretendo fazer. — Bernardine tirou um cartão do bolso. — Aqui está o endereço do meu escritório — apenas consultor, compreende — e atrás está o número do telefone da minha casa, um telefone especial, na verdade, único. Basta ligar que terá tudo que precisa. Lembre-se, sou o único amigo que tem em Paris. Ninguém mais sabe que está aqui. — Posso fazer uma pergunta? — Mais certainement. — Como pode fazer o que está fazendo quando, para todos os efeitos, está aposentado? — Ah — exclamou o consultor do Deuxième Bureau. — O homem mais jovem fica mais velho! Como Alex, levo minhas credenciais na minha cabeça. Eu conheço os segredos. Como podia ser diferente? — Podia ser afastado, neutralizado — sofrer um acidente. — Stupide, meu jovem! Dizemos que tudo que temos na cabeça está escrito e bem guardado, para vir à luz se nos acontecer alguma coisa fora do comum... É claro que é tudo bobagem, pois o que nós realmente sabemos pode ser negado, atribuído às divagações de homens velhos, mas eles não sabem disso. Medo, monsieur. A arma mais poderosa da nossa profissão. Em segundo lugar, é claro, vem o embaraço, a inconveniência, mas isso geralmente é reservado ao KGB soviético e ao seu FBI, que temem o embaraço mais do que os seus inimigos.
— Você e Conklin vêm da mesma rua, certo? — Mas é claro. Ao que sei, nenhum de nós tem mulher ou família, só amantes esporádicas em nossas camas e sobrinhos e sobrinhas barulhentos e levados que enchem nossos apartamentos nos feriados, nenhum amigo realmente íntimo, a não ser, uma vez ou outra, um inimigo a quem respeitamos e que, ao que sabemos, apesar da trégua pode nos dar um tiro ou nos envenenar com um drinque. Precisamos viver sozinhos, porque somos os profissionais — não temos nada a ver com o mundo normal, apenas o usamos como coverture — enquanto nos esgueiramos por vielas escuras, pagando por segredos que nada significam ao nível das conferências de cúpula. — Então, por que continua? Por que não deixar tudo, se é tão inútil? — É o sangue que corre em nossas veias. Fomos treinados. Derrotar o inimigo no jogo mortal — nós o apanhamos, ou ele nos apanha —, é sempre melhor que não seja ele. — Isso é idiota. — Mas é claro que é. Tudo uma bobagem. Então, por que Jason Bourne vem procurar o Chacal aqui, em Paris? Por que não vai embora e diz chega. Para ter proteção completa só precisa pedir. — A prisão também. Pode me levar até a cidade? Vou encontrar um hotel e entro em contato. — Antes de entrar em contato comigo, fale com Alex. — O quê? — Alex quer que telefone para ele. Aconteceu alguma coisa. — Onde tem um telefone? — Não agora. Duas horas, hora de Washington. Tem mais de uma hora. Só então ele estará de volta. — Ele disse o que aconteceu? — Acho que está tentando descobrir. Estava muito preocupado. O quarto pequeno do Pont Royal, na rue Montalembert, ficava numa parte isolada do hotel. Depois de descer do elevador vagaroso e barulhento, seguia-se por dois corredores estreitos para chegar ao quarto. Tudo isso convinha a Bourne. Era como a caverna numa montanha, distante e segura. Fazendo hora até telefonar para Alex, Jason foi fazer as compras necessárias no Boulevard Saint-Germain. Artigos de toalete, calças de brim com camisas esporte e um paletó leve tipo safári. Meias escuras e tênis que podiam ser esfolados e sujos sem prejuízo. Tudo que pudesse adquirir agora seria útil mais tarde. Felizmente não precisou pedir uma arma para Bernardine. No trajeto de Orly para Paris, o francês abriu o porta-luvas do carro, tirou uma caixa marrom e a entregou a Jason. Dentro havia uma automática com duas caixas de balas. Sob a arma, Bourne encontrou 30 mil francos em notas de
valores variados, cuidadosamente dobradas, cerca de 5 mil dólares americanos. — Amanhã vou providenciar para que possa obter fundos sempre que precisar. Dentro de certos limites, é claro. — Sem limites — disse Bourne. — Vou pedir a Conklin para enviar uma ordem de pagamento de 100 mil, ê depois outra, se for necessário. É só você dizer para onde. — Fundos de contingência? — Não. Dinheiro meu. Obrigado pela arma. Com sacolas nas duas mãos, Jason voltou para Montalembert e para o hotel. Dentro de alguns minutos seriam duas horas em Washington, oito em Paris. Caminhando depressa, tentava inutilmente não pensar no que Alex ia dizer. Se tivesse acontecido alguma coisa com Marie e as crianças, ficaria louco! Mas, o que podia ter acontecido? Estavam em Tranqüilidade e no momento não havia lugar mais seguro. Não havia! Tinha certeza disso. Quando entrou no velho elevador e pôs no chão as sacolas que levava na mão direita para apertar o botão do seu andar e tirar do bolso a chave do quarto, conteve uma exclamação ao sentir uma pontada no pescoço. Fizera um movimento muito brusco, e talvez tivesse repuxado os pontos. Não sentiu o calor do sangue na pele Dessa vez foi apenas um aviso. Caminhou rapidamente pelos corredores, abriu a porta do quarto, atirou as sacolas na cama e apanhou o telefone. Conklin foi pontual. O telefone em Vienna, Virgínia, foi atendido no primeiro toque. — Alex, sou eu. O que aconteceu? Marie...? — Não — interrompeu Alex Conklin bruscamente. — Falei com ela mais ou menos ao meiodia. Estão no hotel e ela está pronta para me matar. Não acreditou numa palavra do que eu disse e eu vou apagar a gravação. Desde Mekong Delta que não ouço esse tipo de linguagem. — Ela está preocupada... — Eu também estou — interrompeu novamente Alex, sem comentar a delicada explicação de Bourne. — Mo desapareceu. — O quê? — Você ouviu. Panov se foi, sumiu. — Meu Deus, como? Ele estava sob guarda a cada minuto. — Estamos tentando reconstituir os fatos. Era o que eu estava fazendo no hospital. — Hospital? — Walter Reed. Esta manhã ele teve uma sessão de psiquiatria com um militar e não voltou para sua escolta. Eles esperaram uns vinte minutos, depois foram procurá-lo e ao guarda que o acompanhava, porque ele tinha muitos compromissos hoje. Disseram que já havia saído.
— Isso é loucura! — E está ficando cada vez mais louco. A enfermeira-chefe do andar disse que um médico do exército, um cirurgião, chegou na recepção, mostrou sua identidade e mandou dizer ao Dr. Panov que sua rotina ia ser alterada e que ele devia usar a saída da ala leste porque ia haver uma marcha de protesto na frente da entrada principal. A área de psiquiatria é ligada à saída leste por um corredor diferente, que não passa pelo saguão principal, mas o cirurgião do exército usou a entrada central. — Repita isso. — Ele passou por nossa escolta para entrar no hospital. — E obviamente saiu pelo mesmo caminho, dando a volta para a saída da ala leste. Quando entrou deu as instruções à enfermeira... Cristo, Alex, mas quem? Carlos estava voltando para Paris! Fosse o que fosse que queria em Washington, ele conseguiu. Ele me encontrou, ele nos encontrou. Não precisava de mais nada! — DeSole — disse Conklin em voz baixa. — DeSole sabia de mim e Mo. Eu ameacei a Agência com o que nós dois podíamos fazer e DeSole estava lá, na sala de reunião. — Não estou entendendo. O que está querendo dizer? — DeSole. Bruxelas... Medusa. — Tudo bem, eu sou meio devagar. — Não é ele, David, são eles. DeSole foi retirado do circuito. Nossa conexão foi cortada. É Medusa. — Para o inferno com eles! Estão na minha lista de espera! — Você não está na deles. Você quebrou seu escudo protetor. Eles querem você agora. — Isso não me interessa nem um pouco. Como eu disse ontem, tenho só uma prioridade e ela está aqui, em Paris, primeira etapa, Argenteuil. — Então acho que não falei claro — disse Alex com voz distante e desanimada. — Ontem à noite jantei com Mo e contei tudo para ele. Tranqüilidade, sua viagem a Paris, Bernardine... Tudo! Um ex-juiz do tribunal do primeiro circuito, residente em Boston, Massachusetts, Estados Unidos da América, fazia parte do pequeno grupo que acompanhava o enterro na superfície plana da colina mais alta da Ilha Tranqüilidade. O cemitério era o local do último descanso — in voce verbatim via amicus curiae, como explicou em linguagem legal às autoridades de Montserrat. Brendan Patrick Pierre Prefontaine viu os dois esplêndidos caixões, generosamente doados pelo dono do Hotel Tranqüilidade, descerem para o túmulo sob a bênção completamente incompreensível do padre nativo que, sem dúvida, geralmente tinha na boca um pescoço de galinha enquanto entoava as bênçãos na linguagem do vodu. “Jean Pierre Fontaine” e sua mulher descansavam em paz.
Porém, com barbarismo e tudo, Brendan, o advogado quase alcoólatra de Harvard Square, acabava de encontrar uma motivação para sua vida. Uma causa além da própria sobrevivência, uma causa notável. Randolph Gates. Lord Randolph o de Gates, o Elegante Randy dos Tribunais da Elite era na realidade um monte de lixo, um condutor da morte no Caribe. E um plano se esboçava na mente cada vez mais clara de Prefontaine, mais clara porque, além de outras privações desumanas, decidira de repente suspender suas doses matinais de vodca. Gates havia fornecido a informação básica que levou os assassinos em potencial à família de Webb, na Ilha Tranqüilidade. Por quê?... Isso era, básica e até mesmo legalmente, irrelevante, mas o fato de ele indicar a localização da família para os assassinos, sabendo que eram assassinos, não era. Isso fazia dele cúmplice de um múltiplo assassinato. Os testículos do Elegante Randy estavam num torno e quando as duas placas do torno se fechassem ele revelaria — tinha de revelar — a informação que seria útil aos Webb, especialmente àquela mulher gloriosa de cabelos castanhos dourados que Prefontaine desejava ter conhecido cinqüenta anos antes. Prefontaine ia voar para Boston na manhã seguinte, e perguntou a St. Jacques se podia voltar algum dia. Talvez sem uma reserva paga com antecedência. — Juiz, minha casa é sua casa — foi a resposta. — Sou capaz até de vir a merecer essa cortesia. Albert Armbruster, presidente da Comissão Federal de Comércio, saiu da limusine e parou na calçada, antes de subir os degraus de entrada de sua casa em Georgetown. — Verifique com o escritório amanhã — disse para o motorista que abriu a porta do carro. — Como você sabe, não estou muito bem. — Sim, senhor. — 0 motorista fechou a porta. — Precisa de alguma ajuda, senhor? — Que diabo, não. Vá embora. — Sim, senhor. O motorista do governo entrou no carro e a partida brusca, com o motor roncando, não foi propriamente um ato de gentileza. Armbruster subiu os degraus de pedra com a barriga e o peito arfando a cada movimento, e praguejou em voz baixa quando viu a silhueta da mulher no vidro da porta vitoriana. “Tagarela de merda”, disse ele, chegando ao último degrau e segurando com força o corrimão antes de enfrentar a adversária de trinta anos. Um som seco e sibilante vibrou no ar, vindo do terreno da propriedade vizinha. Armbruster ergueu os braços, com os pulsos dobrados, como procurando localizar o caos. Tarde demais. O presidente da Comissão Federal de Comércio rolou pelos degraus caindo grotescamente na calçada lá embaixo. Bourne vestiu a calça francesa de brim, uma camisa escura de mangas curtas e o paletó safári de algodão. Guardou nos bolsos o dinheiro, as armas e todas as suas identidades — verdadeiras e falsas —
e saiu do Pont-Royal. Antes, porém, enfileirou os travesseiros no meio da cama e deixou a roupa com que havia viajado bem à vista, sobre a cadeira. Passou pela recepção e na rue Montalembert dirigiu-se apressadamente para a mais próxima cabine telefônica. Colocou a moeda e ligou para a casa de Bernardine. — Sou eu, Simon — disse ele. — Imaginei que fosse — respondeu o francês. — E estava esperando. Acabo de falar com Alex e pedi para não me dizer onde você está. Não se pode revelar o que não se sabe. Porém, se eu fosse você, iria para outro lugar, pelo menos por esta noite. Pode ter sido visto no aeroporto. — E você? — Pretendo fazer o papel de canard. — De pato? — Do tipo isca. O Deuxième está vigiando meu apartamento. Talvez eu receba uma visita, seria conveniente, n’est-ce pas? — Não disse nada no seu escritório sobre... — Sobre você? — interrompeu Bernardine. — Como, se não o conheço? Meu Bureau protetor pensa que recebi um telefonema ameaçador de um antigo adversário, um psicopata. Na verdade eu o removi nas Maritimes há alguns anos, mas jamais arquivei o caso... — É prudente dizer tudo isso no seu telefone? — Se não me engano eu já disse que é um aparelho único no gênero. — Sim, disse. — Basta dizer que se for “grampeado” ele não funciona... Precisa descansar, monsieur. Não vai ser útil a ninguém, muito menos a você, sem um descanso. Procure uma cama, não posso ajudá-lo nisso. — O descanso é uma arma — disse Jason, repetindo a frase que para ele era uma verdade vital, vital para a sobrevivência naquele mundo que ele odiava. — Como disse? — Nada. Vou procurar uma cama e telefono de manhã. — Amanhã, então. Bonne chance, mon ami. Para nós dois. Bourne encontrou um quarto no Avenir, um hotel barato da rue Gay-Lussac. Registrou-se com um nome falso, logo esquecido, subiu para o quarto, despiu-se e se deitou. “O descanso é uma arma”, disse, olhando para as luzes das ruas de Paris que viajavam pelo teto e pelas paredes. Fosse numa caverna nas montanhas, ou numa plantação de arroz do Delta do Mekong, era uma arma quase sempre
mais eficiente do que o poder de fogo. Era uma lição martelada em sua cabeça por D’Anjou, o homem que dera a vida numa floresta de Beijing para que Jason Bourne pudesse viver. O descanso é uma arma, pensou Bourne, levando a mão ao pescoço sem chegar a senti-la, pois mergulhou num sono profundo. Acordou devagar, cautelosamente, com o ruído do tráfego sacudindo os vidros das janelas, as buzinas metálicas como o crocitar errático de corvos irritados entre o ronco dos motores, intenso num momento, quase inaudível no outro. Começava mais um dia normal nas ruas estreitas de Paris. Com o pescoço rígido, Jason sentou no lado da cama não muito cômoda, consultou o relógio e sobressaltou-se, pensando que talvez não o tivesse acertado no horário de Paris. Mas sabia que esse não era o caso. Eram 10:07h da manhã — hora de Paris. Dormira quase 11 horas, um fato confirmado pelos roncos do seu estômago. A exaustão era agora substituída pela fome. Porém, a comida tinha de esperar. Precisava fazer algumas coisas antes, a primeira, falar com Bernardine, depois verificar se o Pont-Royal era seguro. Ficou de pé, sentindo o corpo rígido, com um adormecimento inesperado nas pernas e nos braços. Precisava de um chuveiro quente, o que não havia no Avenir, depois um pouco de exercício para aquecer os músculos, terapias desnecessárias até poucos anos atrás. Tirou o cartão de Bernardine do bolso da calça e voltou para a cama, para usar o telefone na mesa-de-cabeceira. — Le canard não teve visitas — disse o veterano do Deuxième. — Nem sinal de caçadores, o que, suponho, é uma notícia favorável. — Não é enquanto não encontrarmos Panov — se o encontrarmos. Os filhos da mãe! — Sim, isso é uma das coisas que temos de enfrentar. A parte mais feia do nosso trabalho. — Droga, não posso enquadrar um homem como Mo nessa filosofia de “temos de enfrentar”. — Não estou pedindo para fazer isso. Estou apenas fazendo uma observação sobre a realidade. Seus sentimentos têm valor para você, mas não alteram a realidade. Não quis ofendê-lo. — E eu não tive intenção de me irritar. Desculpe. Acontece que ele é uma pessoa muito especial. — Eu entendo... Quais são seus planos? Precisa de alguma coisa? — Ainda não sei — respondeu Bourne. — Vou apanhar o carro nos Capucines e dentro de uma hora, mais ou menos, posso dizer se preciso. Vai estar em casa ou no Deuxième Bureau? — Até você ligar estarei em casa ao lado do meu telefone único. Nestas circunstâncias prefiro que você não telefone para o escritório. — Isso é muito estranho. — Hoje eu não conheço todos no Deuxième, e na minha idade, a cautela não é apenas a melhor parte da coragem, mas quase sempre sua substituta. Além disso, dispensar minha proteção tão depressa pode provocar rumores de senilidade... Falo com você mais tarde, mon ami.
Jason desligou o telefone, pensou em ligar para o Pont-Royal, mas estava em Paris, a cidade da discrição, onde os empregados dos hotéis detestam dar informações pelo telefone para hóspedes desconhecidos. Vestiu-se rapidamente, desceu, pagou a conta e saiu para a rue Gay-Lussac. Havia um ponto de táxi na esquina. Oito minutos mais tarde, Bourne entrou no saguão do Pont-Royal e dirigiu-se à recepção. — Je ma’ppelle monsieur Simon — disse, acrescentando o número do seu quarto. — Encontrei um amigo a noite passada — continuou no seu francês impecável — e dormi na casa dele. Por acaso sabe se alguém me procurou? — Bourne tirou do bolso alguns francos, e seus olhos diziam ao homem que a informação seria paga generosamente. — Ou se alguém descreveu uma pessoa igual a mim — acrescentou em voz baixa. — Merci bien, monsieur... Eu compreendo. Vou perguntar ao porteiro da noite, mas tenho certeza de que ele teria deixado um recado escrito se alguém o tivesse procurado. — Por que tem tanta certeza? — Porque ele deixou um recado escrito para ser transmitido ao senhor. Estou ligando para seu quarto desde as sete da manhã, quando entrei de serviço. — O que diz o recado? — perguntou Jason, contendo a respiração. — Diz o que devo dizer ao senhor. “Fale com seu amigo no outro lado do Atlântico. O homem telefonou a noite inteira”. Posso garantir a veracidade do recado, senhor. A telefonista disse que a última chamada foi há menos de trinta minutos. — Trinta minutos? — perguntou Jason, olhando para o homem, depois para seu relógio. — São cinco horas da manhã lá... a noite toda? O recepcionista fez um gesto afirmativo e Bourne correu para o elevador. — Alex, pelo amor de Deus, o que há? Disseram que você telefonou durante toda a... — Você está no hotel? — interrompeu Conklin, rapidamente. — Estou. — Vá a um telefone público, na rua, e ligue outra vez. Outra vez o elevador lento e desajeitado, o saguão desbotado, agora cheio de parisienses que falavam sem parar, muitos dirigindo-se ao bar para seus aperitivos. Outra vez a rua quente, cheia de sol e o tráfego loucamente congestionado. Onde havia um telefone? Caminhou rapidamente na direção do Sena — onde estava o telefone? Lá! No outro lado da rue du Bac, uma cabine com cúpula vermelha e os lados cobertos de posters. Desviando-se da investida dos automóveis e pequenos caminhões, todos dirigidos por homens furiosos, correu para o outro lado da rua e para a cabine. Entrou, depositou a moeda e depois de alguns
momentos de agonia, durante os quais explicou que não estava telefonando para a Áustria, a telefonista aceitou o número do seu cartão de crédito AT & T e ligou para Vienna, Virgínia. — Por que diabo eu não podia ligar do hotel? — perguntou Bourne zangado. — Ontem à noite telefonei do meu quarto! — Isso foi ontem à noite, não hoje. — Alguma notícia de Mo? — Nada ainda, mas parece que eles cometeram um erro. Temos uma pista do médico do exército. — Tire a informação dele! — Com prazer. Sou capaz de tirar meu pé artificial e socar a cara do homem até ele implorar para cooperar — se a pista for verdadeira. — Não foi por isso que ligou para mim a noite inteira, foi? — Não. Estive cinco horas com Peter Holland ontem. Fui procurá-lo depois de falar com você e a reação dele foi exatamente a que eu esperava, com algumas generosas ofertas em troca. — Medusa? — Sim. Ele exige que você volte imediatamente. Você é o único com conhecimento direto. É uma ordem. — Bobagem! Ele não pode exigir que eu faça coisa alguma, muito menos me dar ordens! — Ele pode cortar você e eu não posso fazer nada. Se você precisar de alguma coisa com urgência, ele não manda. — Bernardine ofereceu-se para ajudar. “O que você precisar”, foi o que ele disse. — Bernardine é limitado. Como eu, pode cobrar dívidas, mas sem acesso à máquina, sua ação é limitada. — Disse a Holland que estou escrevendo tudo que sei, tudo que me foi dito, todas as respostas às minhas perguntas? — Está mesmo? — Vou escrever. — Ele não acredita. Quer interrogar você. Diz que não pode interrogar folhas de papel. — Estou muito perto do Chacal! Não vou voltar! Holland é um filho da mãe que não quer
entender. — Acho que ele quis ser razoável — disse Conklin. — Ele sabe o que você está passando, o que já passou, mas ontem à noite, depois das sete horas, ele fechou as portas. — Por quê? — Armbruster foi morto com um tiro na porta da casa dele. Em Georgetown, estão dizendo que foi assalto para roubo, o que, é claro, não foi. — Oh, Jesus! — Tem mais umas coisas que você precisa saber. Para começar, vamos anunciar o “suicídio” de Swayne. — Mas, por quê? — Para que o assassino pense que está livre e, mais importante, para ver quem aparece nestas duas semanas seguintes. — No enterro? — Não. Vai ser uma “cerimônia fechada, só para a família”. Nada de convidados, nada de formalidades. — Então quem vai aparecer aonde? — Na propriedade, de um modo ou de outro. Muito oficialmente entramos em contato com o advogado de Swayne e ele confirmou o que a mulher disse. A propriedade vai para uma fundação. — Qual delas? — perguntou Bourne. — Uma que você nunca ouviu falar, fundada há alguns anos por amigos ricos do augusto e “rico” general. Muito comovente. Chama-se Refúgio dos Soldados, dos Marinheiros e dos Fuzileiros Navais. O quadro de diretores já está reunido. — Medusianos. — Ou seus representantes. Veremos. — Alex, e aqueles nomes que eu lhe dei, os seis ou sete que Flannagan me deu? E aquelas placas de carros dos que compareciam às reuniões? — Uma gracinha, uma gracinha — disse Conklin enigmaticamente. — O que é uma gracinha? — Veja os nomes — são restos do falso jet-set, nada têm a ver com a elite de Georgetown.
Figuram no National Enquirer, não no Washington Post. — Mas as licenças, as reuniões! Têm de ser a bola de cera! — Mais engraçadinhas ainda — observou Alex. — Uma bola de cocô de carneiro... Todas as licenças estão registradas em nome de várias companhias de limusines. Não preciso dizer o quanto os nomes são autênticos, mesmo que tivéssemos todos os dados para identificá-los. — Há um cemitério na propriedade! — Onde fica? É grande ou pequeno? São 28 acres... — Comecem a procurar! — E contar para todo mundo o que sabemos? — Tem razão, está agindo certo.. Alex, diga ao Holland que não me encontrou. — Está brincando. — Não, falo sério. O recepcionista é meu, posso mandar dizer que não estou. Dê o nome e o telefone do hotel para Holland e diga para ele ligar pessoalmente ou mandar qualquer um da embaixada verificar. O recepcionista vai jurar que deixei o hotel ontem e que não me viu mais. Até a mesa do telefone confirmará isso. Dê-me mais alguns dias, por favor. — Holland pode usar todas suas conexões e provavelmente vai fazer isso. — Não, se pensar que eu voltarei assim que você me encontrar. Quero que ele continue procurando Mo e não faça nenhuma conexão do meu nome com Paris. Bem ou mal, nada de Webb, nem de Simon, nem Bourne! — Vou tentar. — Mais alguma coisa? Tenho muito que fazer. — Sim. Casset vai tomar um avião para Bruxelas de manhã, para interrogar Teagarten — ele não podemos deixar livre e nada tem a ver com você. — Certo. Numa rua transversal de Anderlecht, cinco quilômetros ao sul de Bruxelas, um veículo militar com as flâmulas de general quatro estrelas parou na frente de um café de calçada. O general James Teagarten, comandante da OTAN, com cinco fileiras de divisas na túnica, saiu vagarosamente do carro para a clara luz da tarde. Voltou-se e estendeu a mão para uma belíssima major da WAC, que agradeceu com um sorriso e saiu do carro. Com galante autoridade militar, Teagarten soltou a mão da mulher e segurando o cotovelo dela conduziu-a para as mesas cobertas com pára-sóis, atrás de uma fileira de jardineiras floridas, onde ficava a parte do café ao ar livre. Passaram sob a entrada em arco enfeitado com rosas miúdas e entraram. Todas as mesas estavam ocupadas, exceto uma na extremidade da sala. O
zunzum das conversas era pontuado pelo tinir dos copos e dos delicados talheres nos pratos de porcelana. O tom das conversas desceu de alguns decibéis, e o general, consciente da atenção que sua presença sempre provocava, demonstrada por acenos amistosos e, não raro, aplausos discretos, sorriu com benevolência para ninguém em particular e para todos, enquanto conduzia a mulher para a mesa desocupada com o pequeno cartão Réservé sobre a toalha. O proprietário, com dois garçons que o seguiam como ansiosas garças emplumadas, praticamente voou entre as mesas para cumprimentar o importante freguês. O comandante sentou-se e imediatamente lhe foi apresentada uma garrafa de Corton-Charlemagne gelada e começaram a discutir o cardápio. Um garoto belga de cinco ou seis anos aproximou-se timidamente da mesa, e levando a mão à testa fez continência para o general. Teagarten levantou-se, empertigou o corpo c retribuiu a continência. — Vous êtes un soldat distingué, mon camarade — disse o general em voz alta e autoritária que foi ouvida por toda a sala, conquistando o público com um sorriso brilhante e recebendo alguns aplausos. O garoto afastou-se, e a cerimônia da refeição continuou. Uma hora mais tarde, Teagarten e sua dama foram interrompidos pelo chofer do general, um sargento do exército de meia-idade que parecia extremamente preocupado. O comandante da OTAN acabava de receber uma mensagem urgente no telefone do seu carro e o chofer teve a presença de espírito de escrevê-la para não haver nenhuma dúvida. Entregou o papel a Teagarten. O general levantou-se com o rosto moreno muito pálido e, semicerrando os olhos, observou, furioso e com medo, a sala agora quase vazia. Tirou do bolso um maço de francos belgas, escolheu várias notas grandes e colocou-as na mesa. — Venha — disse para a major. — Vamos... Você — disse para o chofer — ligue o motor. — O que foi? — perguntou a mulher. — Londres. No telefone, Armbruster e DeSole estão mortos. — Oh, meu Deus. Como? — Isso não importa. Tudo que disserem é mentira. — O que está acontecendo? — Não sei. Só sei que vamos sair daqui. Venha! O general e sua dama passaram apressadamente sob o arco florido, atravessaram a calçada e entraram no carro militar. Alguma coisa faltava nos dois lados do capô. O sargento havia retirado as bandeirinhas vermelhas e douradas que indicavam a patente do seu superior, o comandante da OTAN. O carro partiu velozmente e a menos de cinqüenta metros à frente, aconteceu. Uma explosão maciça atirou o veículo militar para o alto e lascas de vidro e de metal, pedaços de carne humana e sangue inundaram a rua estreita de Anderlecht.
— Monsieur! — exclamou o garçom apavorado, enquanto as equipes da polícia e os bombeiros faziam seu trabalho desagradável na rua. — O que é? — perguntou atordoado o dono do café ao ar livre, trêmulo ainda por causa do interrogatório da polícia e do bando de jornalistas. — Estou arruinado. Vão nos chamar de Café de la Mort, o café da morte. — Monsieur, olhe! — O garçom apontou para a mesa onde o general e sua dama tinham almoçado. — A polícia já examinou tudo — disse o proprietário, desconsolado. — Não, monsieur. Agora! Escrito com batom vermelho-vivo na toalha da mesa estava um nome. JASON BOURNE
Capítulo20 MARIE OLHAVA atônita para a televisão que transmitia o noticiário de Miami, via satélite. Então, quando a câmara focalizou uma mesa de vidro numa cidade chamada Anderlecht, na Bélgica, ela viu o nome escrito em vermelho e gritou. — Johnny! St. Jacques entrou correndo na suíte que havia construído para uso próprio no segundo andar do Hotel Tranqüilidade. — Cristo, o que foi? Com as lágrimas descendo pelo rosto, Marie apontou para o horror na tela. O locutor da “retransmissão” transatlântica dizia, com voz monótona: “... como se um selvagem sanguinário do passado tivesse voltado para aterrorizar a sociedade civilizada. O assassino infame, Jason Bourne, superado somente por Carlos, o Chacal no mercado dos assassinos de aluguel, reivindica a responsabilidade pela explosão que tirou a vida do general James Teagarten e dos seus companheiros. Notícias conflitantes chegam dos círculos de Inteligência de Nova York e Londres e das autoridades policiais. Certas fontes em Washington afirmam que o assassino conhecido como Jason Bourne foi caçado c morto em Hong Kong há cinco anos, numa operação conjunta britânico-americana. Entretanto, porta-vozes do Ministério do Exterior e da Inteligência britânicos negam ter conhecimento dessa operação e dizem que um esforço conjunto desse tipo é extremamente improvável. Outras fontes, do quartel-general da Interpol, em Paris, afirmam que seu departamento em Hong Kong sabia da suposta morte de Jason Bourne, mas uma vez que os relatórios e as fotografias que circularam eram superficiais e obscuros, não acreditaram muito na história. Presumiram, como consta também dos relatórios, que Bourne havia desaparecido na República Popular da China para um último contrato no qual perdeu a vida. Tudo que se sabe hoje é que na bela cidade de Anderlecht, na Bélgica, o general James Teagarten, comandante da OTAN, foi assassinado e alguém que se diz chamar Jason Bourne responsabiliza-se por tirar a vida desse grande e popular soldado... Mostramos agora um retrato falado dos arquivos da Interpol, baseado na descrição de pessoas que alegam ter visto Bourne de perto. Lembrem-se, é um retrato falado, traços tirados de dezenas de outras fotografias e, considerando a fama do assassino de mudar constantemente a aparência, provavelmente sem grande valor como identificação”. O rosto de um homem com traços irregulares e indefinidos encheu a tela. — Não é David — disse John St. Jacques. — Pode ser, irmão — disse Marie. “E agora, outras notícias. A seca que assola vastas áreas da Etiópia...”
— Desligue essa coisa maldita — gritou Marie, levantando da poltrona e dirigindo-se para o telefone, enquanto St. Jacques desligava a televisão. — Onde está o telefone de Conklin? Eu anotei aqui na sua mesa, em algum lugar... Aqui está, no mata-borrão. Santo Alex vai ter de explicar muita coisa, aquele filho da mãe! — Furiosa, Marie discou o telefone, sentada na cadeira de St. Jacques, batendo com o punho fechado na mesa, com as lágrimas descendo pelo rosto. Lágrimas de sofrimento e de fúria. — Sou eu, seu filho da mãe!... Você o matou! Você deixou que ele fosse. — Você o ajudou a ir — e você o matou! — Não posso falar com você agora, Marie — disse Alexander Conklin com voz fria e controlada. — Estou falando com Paris na outra linha. — Paris que se dane! Onde ele está? Tire David de lá! — Acredite, estamos tentando encontrá-lo. Isto aqui está um pandemônio. Os britânicos querem a pele de Holland por ter sugerido uma conexão com o Extremo Oriente, e os franceses estão fazendo um barulho danado por causa de uma coisa que eles não sabem, mas suspeitam, ou seja, uma carga especial do Deuxième num avião da Martinica, que foi a princípio rejeitada. Telefono depois, eu juro. Conklin desligou e Marie bateu com força o fone no gancho. — Vou tomar um avião para Paris, Johnny — disse ela, respirando fundo e enxugando as lágrimas com a mão. — Vai o quê? — Você ouviu. Chame a Sra. Cooper. Jamie gosta muito dela e ela trata Alison melhor do que eu — por que não? Ela teve sete filhos, todos criados e que a visitam todos os domingos. — Você está louca! Não posso permitir que vá. — Não sei por que — disse Marie, olhando atentamente para o irmão —, tenho a impressão de que você disse algo parecido para David, quando ele falou em Paris. — Sim, eu disse. — E não pôde impedi-lo, como não pode me impedir agora. — Mas por quê? — Porque conheço todos os lugares que ele conhece em Paris, cada rua, cada café, cada viela, de Sacré-Coeur a Montmartre. David tem de ir a esses lugares e vou encontrá-lo antes que o Deuxième ou a Sûreté o encontrem. O telefone tocou e Marie atendeu. — Eu disse que telefonava logo — começou Alex Conklin. — Bernardine tem uma idéia que pode dar certo.
— Quem é Bernardine? — Um velho companheiro do Deuxième e um bom amigo que está ajudando David. — Que idéia? — Ele arranjou um carro alugado para Jason — David. Sabe o número da placa e está avisando todas as patrulhas policiais de Paris para informar se o virem, mas não parar o carro nem incomodar o motorista. Apenas não perdê-lo de vista e informar Bernardine diretamente. — E você acha que David — Jason — não vai perceber? Tem uma memória pior que a do meu marido. — É uma das possibilidades. Existem outras. — Tais como? — Bem... bem, provavelmente ele vai me telefonar. Quando souber do caso de Teagarten vai ligar para mim. — Por quê? — Como você disse, para tirá-lo de lá. — Com Carlos na mira? Muito difícil, seu cabeça-de-bagre. Tenho uma idéia melhor. Vou tomar um avião para Paris. — Não pode fazer isso. — Não quero ouvir mais isso, não vou ouvir mais. Você vai me ajudar ou faço tudo sozinha? — Eu não poderia nem comprar selo de uma máquina na França e Holland não encontraria nem o endereço da Torre Eiffel. — Então estou sozinha, o que, francamente, nestas circunstâncias me faz sentir muito mais segura. — O que você pode fazer, Marie? — Não vou cantar uma ladainha, mas posso ir a todos os lugares a que fomos juntos quando estávamos fugindo. De algum modo ele vai usá-los outra vez. Tem de usá-los porque na sua gíria maluca são lugares “seguros” e no estado de espírito em que está, David vai voltar a eles porque sabe que são seguros. — Que Deus a abençoe, minha dama favorita. — Ele nos abandonou, Alex. Deus não existe
Prefontaine saiu do terminal do Aeroporto Logan, em Boston, e na plataforma externa ergueu a mão para chamar um táxi. Porém depois de olhar em volta, baixou a mão e entrou na fila. As coisas tinham mudado em trinta anos. Tudo, incluindo aeroportos, tinha se transformado em lanchonetes, onde a gente fica na fila para um prato de cozido irlandês de péssima qualidade, bem como para um táxi. — Ritz-Carlton — disse o juiz para o motorista. — O senhor não tem bagagem? — perguntou o homem. — Só essa malinha aí? — Não, não tenho — respondeu Prefontaine e, sem se conter, acrescentou: — Tenho guardaroupas em todos os lugares. — Tutti-fruti — disse o motorista, tirando do cabelo um pente enorme, de dentes separados e entrando com o carro no tráfego. — Tem reserva, senhor? — perguntou o recepcionista vestido a rigor, no balcão do Ritz. — Um dos meus funcionários fez a reserva para mim. O nome é Scofield, juiz William Scofield da Suprema Corte. Seria muito desagradável se o Ritz tivesse perdido a reserva, especialmente nestes dias em que todo mundo está exigindo proteção ao consumidor. — Juiz Scofield...? Tenho certeza de que deve estar aqui, senhor. — Pedi especificamente a suíte Três-C. Tenho certeza de que está no seu computador. — Três-C... está ocupada. — O quê? — Não, não, eu me enganei, juiz. Eles não chegaram... Quero dizer, foi um erro... estão em outra suíte. — O homem bateu ferozmente na campainha. — Camareiro, camareiro! — Não é necessário, meu jovem. Viajo com pouca bagagem. Dê-me a chave e diga por onde devo ir. — Sim, senhor! — Espero que tenha algumas garrafas de uísque decente na suíte, como sempre. — Se não estiverem lá, vão estar, Sr. juiz. Alguma marca especial? — Um bom rye, bom bourbon e bom brandy. O branco é para efeminados, certo? — Certo, senhor. Imediatamente, senhor. Vinte minutos depois, com o rosto lavado e um copo na mão, Prefontaine apanhou o telefone e ligou para o Dr. Randolph Gates.
— Residência Gates — disse a mulher, atendendo. — Ora, deixe disso, Edie, eu conheceria sua voz até debaixo d’água e isso depois de quase trinta anos. — Conheço a sua também, só que não consigo identificar. — Tente um professor muito severo na faculdade de Direito que exigia muito do seu marido, o que, ao que parece, não causou nenhuma impressão, e talvez ele estivesse certo, porque eu acabei na cadeia. O primeiro juiz local a ser condenado e cassado da profissão e num julgamento muito justo. — Brendan? Meu Deus, é você! Nunca acreditei nas coisas que disseram de você. — Acredite, meu bem, era tudo verdade. Mas neste momento preciso falar com o senhor de Gates. Ele está? — Acho que sim, na verdade não sei. Ele quase não fala mais comigo. — As coisas não vão bem, minha querida? — Eu adoraria falar com você, Brendan. Ele tem um problema, um problema que eu nunca imaginei. — Desconfio que tenha, Edie, e é claro que vamos conversar. Mas no momento preciso falar com ele. Agora. — Vou chamá-lo no intercom. — Não diga que sou eu, Edith. Diga que é um homem chamado Blackburne, da Ilha de Montserrat, no Caribe. — O quê? — Faça o que estou dizendo, Edie. É para o bem dele e o seu — talvez mais por você, para ser franco. — Ele está doente, Brendan. — Sim, está. Vamos tentar curá-lo. Ponha seu marido na linha para mim. — Vou ligar a espera. O silêncio parecia interminável, dois minutos que pareceram duas horas até a voz áspera de Randolph Gates explodir no telefone. — Quem é você? — murmurou o famoso advogado. — Calma, Randy, é Brendan. Edith não reconheceu minha voz, mas reconheci a dela. Você é um
homem de sorte. — O que você quer? Que negócio é esse de Montserrat? — Bem, acabo de voltar de lá... — Você o quê? — Resolvi que precisava de umas férias. — Você não fez isso...! — O murmúrio de Gates era agora um grito de pânico. — Sim, eu fiz, e porque eu fiz sua vida vai mudar completamente. Você compreende, conheci a mulher e as duas crianças nas quais você estava tão interessado, lembra-se? É uma história e tanto e quero contar a você com toda riqueza de detalhes... Você os localizou para serem assassinados, Dandy Randy, e isso não se faz. Expressamente proibido. — Não sei do que está falando! Nunca ouvi falar em Montserrat, ou de qualquer mulher com dois filhos. Você é um bêbado miserável e desesperado e eu negarei suas alegações insanas, atribuindoas à fantasia alcoólica de um criminoso convicto! — Ótimo, conselheiro. Porém, negar qualquer alegação feita por mim não é exatamente o seu dilema. Não, seu dilema está em Paris. — Paris...? — Um certo homem em Paris, um homem que eu não sabia que era real, mas que fiquei sabendo agora. O modo como fiquei sabendo é um tanto confuso, mas aconteceu uma coisa muito estranha em Montserrat. Pensaram que eu era você. — Que você era... o quê? — Mal se ouvia a voz fraca e trêmula de Gates agora. — Isso mesmo. Estranho, não acha? Eu imagino que quando o homem de Paris tentou falar com você aqui, em Boston, alguém disse que sua presença imperial estava fora ou viajando e assim começou o mal-entendido. Duas brilhantes mentes jurídicas, ambas ligadas vagamente a uma mulher e seus dois filhos, e Paris pensou que eu fosse você. — O que aconteceu? — Calma, Randolph. Neste momento provavelmente ele pensa que você está morto. — O quê? — Ele mandou me matar — matar você.. Por transgredir suas ordens. — Oh, meu Deus! — E quando descobrir que você está muito vivo e comendo bem em Boston, não vai permitir
que falhe a segunda tentativa. — Jesus Cristo...! — Pode haver uma saída, Dandy Boy, por isso você deve falar comigo. A propósito, estou na mesma suíte do Ritz em que você estava quando eu vim procurá-lo. Três-C, é só tomar o elevador. Esteja aqui dentro de trinta minutos e lembre-se, não tenho muita paciência com clientes que se atrasam, porque sou um homem muito ocupado. Por falar nisso, o preço da minha consulta é 20 mil dólares por hora, ou qualquer fração desse tempo, portanto, traga dinheiro, Randy. Muito dinheiro. Nada de cheques. Olhando no espelho, satisfeito com o que via, Bourne pensou: estou pronto. Havia gasto três horas preparando-se para a viagem a Argenteuil, a um restaurante chamado Le Coeur du Soldat, o centro das mensagens para um melro, para Carlos, o Chacal. O Camaleão estava vestido de acordo com o ambiente no qual ia entrar. Roupas simples, o corpo e o rosto não tão simples. Para o primeiro, Jason percorreu as lojas de roupas usadas e as lojas de penhores de Montmartre, onde encontrou uma calça jeans desbotada e uma camisa do refugo do exército, além de uma divisa também desbotada, símbolo do veterano ferido. O rosto, um tanto mais complexo, exigiu tinta de cabelo, barba de um dia e outra atadura apertada, esta em volta do joelho direito para não se esquecer de mancar. O cabelo e as sobrancelhas eram agora vermelho-escuros — um vermelho sujo e descuidado que combinava com seu novo ambiente, um hotel barato em Montparnasse, cuja direção procurava o mínimo de contato com os hóspedes. O pescoço era agora mais um fator irritante do que um empecilho. Ou estava se acostumando com a rigidez e com o movimento limitado, ou o ferimento estava em processo de cura. E aquele movimento limitado ajudava seu disfarce. Um veterano ferido e amargurado, um filho da França esquecido, dificilmente esqueceria aquelas duas limitações. Jason pôs a automática de Bernardine no bolso, verificou o dinheiro, as chaves do carro e a faca de caça, comprada numa loja de artigos de esporte e pregada com fita adesiva dentro da camisa, e foi mancando até a porta do quarto pequeno, sujo e deprimente do hotel. Primeira parada, Capucines e um Peugeot igual a tantos numa garagem subterrânea. Sim, estava pronto. Sabia que tinha de andar alguns quarteirões para encontrar um ponto de táxi. Táxis não eram comuns naquela parte de Montmartre... Nem o movimento frenético numa banca de jornais na segunda esquina. As pessoas gritavam, erguiam e sacudiam os braços, agarravam avidamente os jornais, zangadas e frustradas. Instintivamente, Jason apressou o passo, chegou à banca, jogou as moedas e apanhou um jornal. Perdeu o fôlego quando tentou controlar as ondas de choque que o envolveram. Teagarten assassinado! O assassino, Jason Bourne! Jason Bourne! Loucura, insanidade! O que tinha acontecido? Seria a ressurreição de Hong Kong e Macau? Estaria perdendo o que restava de sua mente? Estava vivendo um pesadelo tão real que havia entrado nas suas dimensões, o horror do sonho demente, a fantasia de terror improvisado e evocado transformada em realidade? Afastou-se rapidamente da multidão, deu alguns passos incertos na calçada e encostou-se na parede de pedra de um prédio, respirando com dificuldade, agora com uma dor aguda no pescoço, tentando desesperadamente encontrar um raciocínio lógico. Alex! Um telefone!
— O que aconteceu? — berrou Jason no fone para Vienna, Virgínia. — Controle-se e fique frio — disse Conklin com voz baixa e monótona. — Escute. Quero saber exatamente onde você está. Bernardine vai apanhá-lo e tirar você daí. Ele providencia tudo e põe você no Concorde para Nova York. — Espere um pouco — espere um pouco!... O Chacal fez isto, não fez? — Ao que sabemos, foi um contrato de uma seita de malucos jihad de Beirute. Estão assumindo a responsabilidade. O verdadeiro assassino não é importante. Isso pode ser verdade e pode não ser. No começo eu não acreditei, não depois de DeSole e Armbruster, mas tudo parece confirmar essa informação. Teagarten estava há muito tempo estudando um meio de enviar forças da OTAN para o Líbano e arrasar todos os enclaves palestinos. Ele foi ameaçado antes. O caso é que a conexão com a Medusa é muita coincidência para mim. Mas, respondendo à sua pergunta, é claro que foi o Chacal. — Então ele pôs a culpa em mim. Carlos pôs a culpa em mim! — Ele é um cara muito engenhoso, tenho de reconhecer. Você vai atrás dele e ele executa um contrato que imobiliza Bourne em Paris. — Então, nós invertemos as coisas? — De que diabo está falando? Você, saia daí! — De jeito nenhum. Enquanto ele pensa que estou fugindo — estou entrando no seu ninho. — Você está louco! Trate de sair enquanto podemos tirá-lo de Paris! — Não, eu fico. Primeiro, ele imagina que tenho de ficar para alcançá-lo, mas, como você disse, ele me imobilizou. Pensa que depois de todos esses anos vou entrar em pânico e começar a fazer idiotices — Deus sabe que foi o que fiz em Tranqüilidade — mas idiotices tão absurdas que seu exército de velhos vai me encontrar, procurando nos lugares certos, sabendo o que eu vou procurar. Cristo, ele é bom! Vamos amedrontar o filho da mãe para que ele cometa um erro. Eu o conheço, Alex. Sei como ele pensa e posso pensar na frente. É claro que vou ficar, nada de uma caverna segura pelo resto da vida pra mim. — Caverna? Que caverna? — Um modo de falar, esqueça. Eu já estava instalado, antes das notícias sobre Teagarten. Estou bem. — Você não está bem, você é uma droga de cabeça-de-bagre! Saia daí! — Desculpe, Santo Alex, mas estou exatamente onde quero estar. Vou atrás do Chacal. — Bem, talvez eu consiga fazer com que desista. Falei com Marie há algumas horas. Adivinhe, seu velho Neanderthal! Ela está voando para Paris. Para encontrá-lo.
— Ela não pode lazer isso! — Foi o que eu disse, mas ela não estava disposta a ouvir. Disse que conhece todos os lugares em que vocês estiveram quando fugiam de nós, há 13 anos. Que você vai usá-los outra vez. — Já usei alguns. Mas ela não deve vir. — Diga isso a ela, não a mim. — Qual é o número de Tranqüilidade? Para ser franco, ainda não liguei para ela por medo. Tenho tentado ao máximo não pensar nela e nas crianças. — Essa foi a coisa mais sensata que você disse até agora. — Conklin deu o código de área, 809, e Bourne desligou imediatamente. Nervoso e com pressa, Jason passou pelo angustiante processo de dizer o local, os números dos seus cartões de crédito, ouvir os apitos e palavras entrecortadas, característicos de um telefonema para o Caribe e finalmente, depois de “domar” um idiota na recepção do Tranqüilidade, conseguiu falar com St. Jacques. — Chame Marie! — ordenou Jason. — David? — Sim... David. Chame Marie. — Não posso. Ela se foi. Saiu há uma hora. — Para onde? — Ela não disse. Alugou um avião que sai de Blackburne, mas não quis me dizer para qual ilha internacional pretendia ir. Por aqui só temos Antigua e Martinica, pode ter ido para Saint Maarten ou Porto Rico. Está a caminho de Paris. — Você não podia ter evitado isso? — Cristo, eu tentei, David. Droga, eu tentei! — Por acaso pensou em prendê-la em algum lugar? — Marie? — Sim, eu compreendo... O mais cedo que ela pode chegar a Paris é amanhã. — Você viu as notícias? — exclamou St. Jacques. — O general Teagarten foi assassinado e dizem que foi Jason... — Ora, cale a boca.
Bourne desligou, saiu da cabine e começou a andar para coordenar seus pensamentos. Peter Holland, diretor da CIA, levantou-se atrás da sua mesa e rugiu para o homem sentado à sua frente. — Fazer nada? Será que perdeu essa droga de juízo? — E você perdeu o seu quando fez aquela declaração sobre uma ação conjunta britânicoamericana em Hong Kong. — É a maldita verdade! — Existem verdades e verdades, como negar a verdade quando não convém ao serviço. — Merda! Políticos bichas! — Eu não diria isso, Gengis Khan. Ouvi dizer que alguns deles preferiram o pelotão de fuzilamento a trair a verdade pela qual tinham de viver... Você está mal informado, Peter. Furioso, Holland voltou a sentar. — Talvez, na verdade, eu não esteja no lugar certo. — Talvez não, mas conceda a você mesmo um pouco mais de tempo. Quem sabe consegue ficar tão sujo quanto todos nós. Pode acontecer, você sabe. O diretor recostou-se na cadeira, inclinando a cabeça para trás e falou aos trancos. — Eu era mais sujo do que qualquer um de vocês no trabalho de campo, Alex. Ainda acordo no meio da noite vendo os olhos daqueles garotos pregados em mim, enquanto eu enfiava uma faca no seu peito, tirando suas vidas, de certo modo sabendo que eles não tinham idéia de por que estavam ali. — Era você ou eles. Se pudessem punham uma bala na sua cabeça. — Sim, acho que sim. — O diretor da CIA olhou para Conklin. — Mas não é disso que estamos falando, certo? — Pode-se dizer que é uma variação do tema. — Ora, deixe de bobagem. — é um termo musical. Gosto de música. — Então passe para a linha sinfônica principal, Alex. Eu também gosto de música. — Muito bem. Bourne desapareceu. Ele me disse que encontrou uma caverna — palavras dele, não minhas — onde tem certeza de encontrar a pista do Chacal. Não disse onde, e só Deus sabe quando vai me telefonar outra vez.
— Mandei nosso homem da embaixada ao Pont-Royal à procura de Simon. O que eles lhe disseram é a verdade. Simon pagou o hotel, saiu e não voltou. Onde ele está? — Procurando não ser visto. Bernardine teve uma idéia, mas levou a pior. Pensou que podia localizar Bourne discretamente, fazendo circular o número da placa do carro alugado, mas ninguém o apanhou na garagem e temos certeza de que ninguém vai apanhar. Ele não confia em ninguém agora, nem em mim, e considerando sua história, tem todo direito de não confiar. Com olhar frio, Holland disse, furioso: — Não está mentindo para mim, está, Conklin? — Por que eu ia mentir numa situação destas, sobre um amigo como este? — Isso não é resposta, é uma pergunta. — Certo, então não, não estou mentindo. Não sei onde ele está. — E Alex realmente não sabia. — Então, sua opinião é que não devemos fazer nada. — Não há nada que possamos fazer. Mais cedo ou mais tarde ele vai me procurar. — Você tem idéia do que vai dizer a uma comissão investigadora do Senado, daqui a algumas semanas ou meses, quando a coisa explodir? Porque é certo que vai explodir. Enviamos um homem, que sabemos ser Jason Bourne, numa operação secreta em Paris, que fica tão perto de Bruxelas quanto Nova York de Chicago... — Mais perto, eu acho. — Obrigado. Eu precisava disso... O ilustre comandante da OTAN é assassinado e o dito “Jason Bourne” assume a responsabilidade pelo crime, e nós não dizemos coisa alguma para ninguém! Jesus. Vou acabar limpando latrinas num rebocador! — Mas ele não o matou. — Você sabe e eu sei, mas, por falar na história dele, há um pequeno detalhe de doença mental que vai aparecer assim que nossos relatórios médicos forem indiciados pela comissão. — Chama-se amnésia, não tem nada a ver com violência. — Droga, não tem, é muito pior. Ele não pode se lembrar do que faz. Conklin apertou com força o cabo da bengala. — Não dou a mínima ao que pode parecer, existe uma falha. Meus instintos dizem que o assassinato de Teagarten tem alguma coisa a ver com a Medusa. De algum modo, em algum lugar os fios se cruzaram, uma mensagem foi interceptada e inseriram uma diversão no jogo planejado.
— Acho que eu falo e compreendo nossa língua tão bem quanto você — disse Holland. — Mas neste momento não estou entendendo. — Não há nada para entender, nenhuma aritmética, nenhuma linha de progressão. Eu simplesmente não sei... Mas a Medusa está nisso tudo. — Com seu testemunho, posso implicar Burton e os Chefes da Junta, além de Atkinson, em Londres. — Não, deixe-os em paz. Não os perca de vista, mas não afunde o barco deles, almirante. Como a “retirada” de Swayne, mais cedo ou mais tarde, as abelhas voarão para o mel. — Então o que sugere? — O que eu disse quando cheguei. Não faça nada. É o jogo de espera. — De repente, Alex bateu com a bengala na mesa. — Filho da mãe, é a Medusa. Tem de ser! O velho enrugado e calvo levantou-se do banco da Igreja do Santíssimo Sacramento em Neuillysur-Seine, nos arredores de Paris. Com passos trôpegos dirigiu-se ao segundo confessionário da esquerda. Abriu a cortina negra e com uma dor torturante nas pernas, ajoelhou na frente da grade coberta por um pano negro. — Angelus domini, filho de Deus — disse a voz no outro lado da tela. — Você está bem? — Muito melhor graças à sua generosidade, monsenhor. — Isso me alegra, mas quero algo mais, como você sabe... O que aconteceu em Anderlecht? O que me conta meu amado e eficiente exército? Quem é o suposto culpado? — Nós nos separamos e temos trabalhado durante as últimas oito horas, monsenhor. Pelo que pudemos descobrir, dois homens chegaram de avião, dos Estados Unidos — supomos, porque só falam inglês americano — e se hospedaram numa pension de famille na frente do restaurante. Deixaram a pensão alguns minutos depois do assalto. — Um explosivo detonado por controle remoto? — Aparentemente, monsenhor. Não sabemos nada mais. — Mas por quê? Por quê? — Não podemos ler as mentes dos homens, monsenhor. No outro lado do Atlântico, num rico apartamento em Brooklyn Heights, com as luzes do rio Leste e da ponte de Brooklyn pulsando artisticamente no outro lado da janela, o capo supremo, reclinado num sofá elegante, deliciava-se com uma dose de Perrier. Disse para o amigo que tomava um gim-tônica, sentado à sua frente numa poltrona. — Quer saber, Frankie, eu não sou só inteligente, sou brilhante, sabe o que quero dizer? Eu
percebo as nuanças — isto é, o que pode ser importante e o que não é — e tenho uma intuição fantástica. Ouço um paisan qualquer falar sobre certas coisas, somo quatro mais quatro e, em vez de oito, tenho 12. Bingo! É a resposta. Tem esse gato que se diz chamar “Bourne”, um idiota que pensa que é um grande assassino, mas que não é — é uma droga de esca, uma isca para atrair outra pessoa, mas ele é o cannoli quente que nós queremos, entende? Então, o judeu psicanalista, muito doente, conta tudo que eu quero saber. Esse cannoli só tem metade da cabeça, é um testa balzana, a maior parte do tempo não sabe quem é, e nem o que faz, certo? — Certo, Lou. — E lá está Bourne em Paris, França, a poucos metros do verdadeiro e grande impedimento, um general elegante que os caras silenciosos do outro lado do rio querem tirar de circulação, como os dois outros gorduchos que já plantamos. Capisce? — Capisco, Lou — disse o jovem na poltrona. — Você é mesmo inteligente. — Você não tem nenhuma idéia do que estou falando, seu zabaglione. É como se eu estivesse falando sozinho, e por que não?... Assim, pego os meus 12 e penso, vamos jogar o dado marcado no pano verde, compreendei — Compreendo, Lou. — Temos de eliminar o idiota do general porque ele é um impedimento para os grã-finos que precisam de nós, certo? — Certo, Lou. Um imped... um imped... — Não se preocupe, zabaglione. Então, digo para mim mesmo, vamos explodir o homem e dizer que foi o cannoli, entendeu? — Isso mesmo, Lou. Você é inteligente de verdade. — Então, a gente se livra do impedimento e põe o cannoli, o tal de Jason Bourne, que é fraco da cabeça, na mira de todas as autoridades, certo? Se a gente não pegá-lo, se o tal do Chacal não chegar primeiro, os federais pegam, certo? — Ei, isso é legal, Lou. Tenho de dizer, eu respeito você. — Esqueça o respeito, bello ragazzo. As regras são diferentes nesta casa. Venha e faça um belo amor comigo. O jovem levantou da cadeira e caminhou para o sofá. Na parte de trás do avião, enquanto tomava café, Marie tentava desesperadamente lembrar todos os lugares — esconderijos e locais de repouso — que ela e David haviam usado 13 anos atrás. Havia os piores cafés de Montparnasse e os hotéis baratos. Um motel — onde ficava? — a 16 quilômetros de Paris e uma estalagem com terraço no Argenteuil onde David — Jason — pela primeira vez disse que a
amava mas que não podia ficar com ela porque a amava — o idiota! E havia o Sacré-Coeur, no alto dos degraus, na viela escura onde Jason — David — encontrou-se com o homem que lhe deu as informações necessárias — quais informações? Quem era ele? “Mesdames e monsieurs”, disse a voz no alto-falante da cabine. “Je suis votre capitaine. Bienvenu”. O piloto continuou, primeiro em francês, depois ele e a tripulação repetiram em inglês, alemão, italiano e finalmente, por meio de uma intérprete, em japonês. “Esperamos um vôo tranqüilo até Marselha. O tempo estimado de vôo de sete horas e 14 minutos, com aterrissagem, de acordo com o horário previsto, às 6:00h da manhã, hora de Paris, ou antes disso. Boa viagem”. Marie St. Jacques Webb olhou para o oceano lá embaixo, banhado pelo luar. Depois de voar para San Juan, Porto Rico, havia tomado o vôo noturno para Marselha, onde o serviço de imigração francesa era, na melhor das hipóteses, uma confusão completa e, na pior, intencionalmente falho. Pelo menos era assim há 13 anos, um tempo para o qual ela estava voltando. Tomaria depois o vôo doméstico para Paris e encontraria David. Como há 13 anos, ela o encontraria. Tinha de encontrá-lo! Como há 13 anos, se não o encontrasse, o homem que amava seria um homem morto.
Capítulo21 SENTADO AO LADO da janela, Morris Panov olhava para o pasto de uma fazenda em algum lugar dos Estados Unidos, Maryland, ele supunha. Estava num pequeno quarto de dormir no segundo andar vestido com uma camisola de hospital, seu braço direito nu contando a história que ele conhecia muito bem. Fora drogado repetidamente, levado até a lua, como diziam os que administravam aquelas drogas. Fora mentalmente estuprado, invadido, violado, seus pensamentos e seus segredos mais profundos trazidos à tona. O dano que havia causado era incalculável, Panov sabia disso. Não compreendia por que ainda estava vivo. Nem por que o haviam tratado com tanta deferência. Por que o guarda com a ridícula máscara negra era tão delicado, a comida farta e boa? Era como se o imperativo atual do seu cativeiro fosse restaurar suas forças — profundamente prejudicadas pelas drogas — e proporcionar-lhe o maior conforto possível naquelas circunstâncias. Por quê? A porta se abriu e o guarda entrou, um homem baixo c forte, com uma voz raspante que, para Panov, devia ser do nordeste dos Estados Unidos, ou de Chicago. Em outra situação, o homem seria cômico, com a cabeça grande demais para a idiota máscara de Zorro que usava e que, certamente, não impedia uma identificação imediata. Porém, naquelas circunstâncias, não tinha nada de engraçado. A própria delicadeza do homem era ameaçadora. Tinha no braço esquerdo as roupas do médico. — Tudo bem, Doc, tem de se vestir agora. Mandei lavar e passar tudo, até a cueca. O que acha disso? — Quer dizer que vocês têm tinturaria e lavanderia aqui? — Porra, não, a gente leva para... Oh, não, não vai me pegar assim, Doc! — O guarda sorriu, mostrando os dentes amarelados. — Muito esperto, hein? Achou que eu ia dizer onde estamos, hein? — Só curiosidade. — É, eu sei. Como meu sobrinho, o garoto da minha irmã, que por “simples curiosidade” está sempre me fazendo perguntas que eu não quero responder. Assim como, “Ei, tio, como conseguiu pagar meu curso de medicina, hein?” Isso mesmo! Ele é médico, como você, o que acha disso, hein? — Eu diria que o irmão da mãe dele é muito generoso. — É, bom, o que a gente vai fazer, hein?... Vamos, vista isso, Doc, vamos fazer uma pequena viagem. — Entregou a roupa a Mo. — Suponho que seria bobagem perguntar para onde — disse Panov, levantando-se, tirando a camisola de hospital e vestindo a cueca. — Muita bobagem.
— Espero que não seja bobagem falar sobre o fato do seu sobrinho nunca ter comentado um sintoma que notei em você e que é bastante alarmante. — Mo vestiu a calça calmamente. — Do que está falando? — Talvez de nada — respondeu Panov, vestindo a camisa e sentando para calçar as meias. — Quando viu seu sobrinho pela última vez? — Umas duas semanas. Dei algum dinheiro para cobrir o seguro dele. Merda, aqueles caras são uns sanguessugas! O que tem isso? — Estava pensando se ele não lhe disse nada. — Disse o quê? — Sobre sua boca. — Mo amarrou os cordões dos sapatos e fez um gesto com a cabeça. — Tem um espelho naquela cômoda. Vá olhar. — Olhar o quê? — O subordinado do capo aproximou-se rapidamente do espelho. — Sorria. — Para quem? — Para você mesmo... Veja a cor amarelada dos seus dentes, a palidez das gengivas e como estão retraídas. — E daí? Sempre foram assim. — Pode não ser nada, mas ele devia ter notado. — Notado o quê, pelo amor de Deus? — Ameloblastoma oral. Possivelmente. — Que diabo é isso? Não escovo bem os dentes e não gosto de dentistas. São uns açougueiros! — Quer dizer que há muito tempo não consulta um dentista, nem um cirurgião oral? — E daí? — O capo arreganhou outra vez os dentes na frente do espelho. — Isso explica por que seu sobrinho não disse nada. — Por quê? — Provavelmente pensou que você visita regularmente o dentista e preferiu que ele contasse. — Panov levantou-se.
— Não entendi. — Bem, ele é grato por tudo que você fez, grato por sua generosidade. Eu compreendo por que hesita em contar a verdade. — Que verdade? — O guarda voltou-se rapidamente, dando as costas ao espelho. — Eu posso estar errado, mas você devia consultar um periodontista. — Mo vestiu o paletó. — Estou pronto. O que fazemos agora? O capo subordinado entrecerrou os olhos com uma ruga de ignorância e suspeita entre as sobrancelhas, tirou um grande lenço negro do bolso. — Desculpe, Doc, mas tenho de vendar seus olhos. — Para pôr uma bala na minha cabeça sem que eu perceba o que está acontecendo? — Não, doutor. Nada de bala para você. É muito valioso. — Valioso? — perguntou o capo supremo retoricamente no seu opulento apartamento em Brooklyn Heights. — Como uma mina de ouro saltando do chão para dentro do seu minestrone. Este judeu trabalhou com as cabeças das maiores lasanhas de Washington. Seus arquivos devem valer tanto quanto Detroit. — Você nunca vai pôr as mãos neles, Louis — disse o atraente homem de meia-idade com o caro terno tropical. — Devem estar selados e fora do seu alcance. — Bem, estamos trabalhando nisso, Sr. Park Avenue, Manhattan. Digamos — só por brincadeira — que eu os consiga. Quanto valem para você? Com um sorriso discreto e aristocrático, o homem disse: — Detroit? — Va bene! Gosto de você, tem senso de humor. — Bruscamente o mafioso ficou sério, transformando o sorriso numa expressão quase desagradável. — Os cinco mil estão valendo ainda por esse cara Bourne-Webb, certo? — Com uma ressalva. — Não gosto de ressalvas, senhor advogado, não gosto nem um pouco. — Podemos procurar em outra parte. Você não é o único na cidade. — Deixe-me explicar uma coisa, signor avvocato. De muitos modos, nós — nós todos — somos os únicos na cidade. Não nos intrometemos nos contratos das outras famílias, compreende o que quero dizer? Nossos conselhos resolveram que contratos são muito pessoais, provocam inimizades.
— Quer saber qual é a ressalva? Acho que não vai se ofender. — Atire. — Gostaria que usasse outra palavra. — Vá em frente. — Haverá um bônus de dois milhões de dólares porque queremos que inclua a mulher de Webb e seu amigo do governo, Conklin. — Feito, Sr. Park Avenue, Manhattan. — Ótimo. Agora, ao resto do nosso negócio. — Quero falar sobre o judeu. — Vamos chegar lá... — Agora! — Por favor, não me dê ordens — disse o advogado de uma das firmas mais prestigiosas de Wall Street. — Na verdade, não está em posição para fazer isso, carcamano. — Olha, farabutto! Não fale assim comigo! — Falo como quiser... Por fora, e para seu crédito nas negociações, você é um cara muito masculino, muito macho. — O advogado cruzou e descruzou as pernas, calmamente. — Mas por dentro o negócio é muito diferente, não é? Tem um coração mole, ou devo citar outro lugar, para homens jovens e bonitos. — Silenzio! — O italiano inclinou-se para a frente no sofá. — Não pretendo explorar essa informação. Por outro lado, não acredito que os Direitos dos Gays tenham muita aceitação na agenda da posa Nostra, o que acha? — Seu filho da puta. — Sabe, quando eu era um jovem advogado do exército, em Saigon, defendi um tenente de carreira apanhado em flagrante delito com um garoto vietnamita, obviamente um prostituto. Por meio de manobras legais, usando frases militares ambíguas a respeito dos civis, eu o salvei de uma expulsão desonrosa, mas é claro que ele teve de pedir demissão do exército. Infelizmente ele não aproveitou. Deu um tiro na cabeça duas horas depois do veredito. Você compreende, ele havia se tornado um pária, uma desgraça perante seus iguais e não agüentou. — Continue com seus negócios — disse o capo supremo chamado Louis, em voz baixa e carregada de ódio.
— Muito obrigado... Primeiro, deixei um envelope na mesa do hall. Contém o pagamento pela morte trágica de Armbruster em Georgetown e pelo assassinato igualmente trágico de Teagarten em Bruxelas. — Segundo o médico judeu — interrompeu o mafioso —, eles sabem de mais dois dos seus. Um embaixador em Londres e aquele almirante dos Chefes da Junta. Quer acrescentar outro bônus? — Talvez mais tarde, agora não. Os dois sabem muito pouco e nada sobre nossas operações financeiras. Burton pensa que somos essencialmente um conjunto de veteranos ultraconservadores, remanescentes da desgraça do Vietnã — às margens da lei, para ele, mas que combinamos com seus sentimentos patrióticos. Atkinson é um diletante rico. Faz o que mandamos, sem saber por que nem para quem. É capaz de qualquer coisa para continuar na Corte de Saint James e continua. Sua única conexão era Teagarten... As descobertas importantes de Conklin foram Swayne, Armbruster, Teagarten e, é claro, DeSole, mas os outros dois são artigos de vitrine, muito respeitáveis. Gostaria de saber como ele descobriu. — Quando eu descobrir e eu vou descobrir, eu lhe conto, de graça. — É mesmo? — O advogado ergueu as sobrancelhas. — Como? — Vamos chegar lá. O que mais tem para tratar? — Duas coisas, ambas de importância vital, e a primeira eu lhe dou — de graça. Livre-se do seu namorado atual. Ele vai a lugares que não deve ir e espalha dinheiro como um ladrãozinho barato. Soubemos que se gaba de suas conexões com gente da alta. Não sabemos o que mais ele diz ou o que ele sabe, nem o que descobriu, mas ele nos preocupa. Acho que deve preocupar vocês também. — Il prostituto! — rugiu. Louis, batendo com a mão fechada no braço do sofá. — Il pinguino! Ele está morto. — Aceito seu agradecimento. O outro item é muito mais importante, pelo menos para nós. A casa de Swayne, em Manassas. Está faltando um livro, um diário comercial, que o advogado de Swayne em Manassas — nosso advogado — não conseguiu encontrar. Estava na estante, encadernado como todos os outros livros daquela prateleira. Alguém devia saber exatamente qual era. — O que quer de mim? — O jardineiro era um homem seu. Foi colocado lá para fazer um serviço e recebeu o único número que consideramos seguro, ou seja o de DeSole. — E daí? — Para fazer o serviço, simular o suicídio, ele precisava estudar todos os movimentos de Swayne. Você mesmo me explicou ad nauseam, quando exigiu aquele pagamento absurdo. Não é difícil imaginar seu homem espiando pela janela da sala de trabalho de Swayne, estudando o lugar onde o general supostamente ia cometer suicídio. Seu homem nota então que o general sempre tira o mesmo livro da prateleira, escreve nele e o guarda no mesmo lugar. Isso naturalmente o deixa intrigado. Aquele
livro deve ser valioso. Por que não ficar com ele? Eu ficaria, você também. Então, onde está o livro? O mafioso levantou-se lentamente com um olhar ameaçador. — Escute aqui, avvocato, você tem uma porção de palavras bonitas que levam a certas conclusões, mas não temos nenhum livro e vou dizer como posso provar isso! Se eu tivesse alguma coisa escrita capaz de assar seu traseiro, teria atirado na sua cara agora, capisce? — Não é de todo ilógico — disse o advogado bem vestido, outra vez cruzando e descruzando as pernas, enquanto o capo, ofendido, voltava para o sofá. — Flannagan — acrescentou o advogado de Wall Street. — Naturalmente... mas é claro. Flannagan. Ele e aquela cadela cabeleireira precisavam de uma apólice de seguro, sem dúvida com um pouco de extorsão também. Na verdade, estou aliviado. Eles jamais poderão usar o livro sem se expor a nós. Aceite minhas desculpas, Louis. — Terminou seus negócios? — Acho que sim. — Agora, o judeu. — Qual é o caso? — Como eu disse, ele é uma mina de ouro. — Sem os arquivos dos seus pacientes, ouro com menos de 24 quilates, eu acho. — Pois está errado — disse Louis. — Como eu disse a Armbruster, antes de ele se tornar um grande impedimento para vocês, temos médicos também. Especialistas em todos os ramos da medicina, incluindo o que eles chamam reações motoras e, veja isto, “respostas mentais provocadas por controle externo” —, lembro-me dessa especialmente. É uma espécie de revólver diferente apontado para a cabeça, mas sem sangue. — Suponho que quer me dizer alguma coisa. — Pode apostar seu country clube que quero. Vamos levar o judeu para um lugar na Pensilvânia, uma espécie de casa de repouso onde os muito ricos se internam para curar alcoolismo ou para se consertar, se é que me entende. — Acho que entendo. O mais moderno equipamento médico, pessoal superior — área bem patrulhada. — É isso, você entende. Muita gente da sua classe passou... — Continue — interrompeu o advogado, consultando seu Rolex de ouro. — Não tenho muito tempo. — Pois arranje tempo para isto. Segundo meus especialistas — e usei a palavra “meus” de propósito, deve ter notado — num esquema predeterminado, digamos, a cada quatro ou cinco dias, o
novo paciente é “atirado para a lua” — a frase é deles, não minha. Cristo sabe. Nos intervalos, ele é otimamente tratado. Toma os neutralizantes necessários, ou seja lá o que for, faz exercício, dorme bastante e toda essa besteira... Nós todos devemos ter muito cuidado com nossos corpos, certo, avvocato? — Alguns de nós jogam squash de dois em dois dias. — Bem, vai me perdoar, Sr. Park Avenue, Manhattan, mas para mim, squash é abobrinha, e abobrinha eu como. — Diferenças lingüísticas e culturais sempre aparecem, não é mesmo? — Isso mesmo, não posso negar, consigliere. — Naturalmente que não e meu título é advogado. — Dê-me algum tempo. Pode ser consigliere. — Não temos anos suficientes em nossas vidas, Louis. Vai continuar ou devo ir embora? — Eu continuo, Sr. advogado... Assim, cada vez que o judeu é lançado para a lua como diz o meu especialista, ele está em perfeita forma física, certo? — Sim, eu vejo as remissões periódicas da normalidade, mas não sou médico. — Não sei de que droga está falando, mas também não sou médico, por isso acredito no meu especialista. Cada vez que ele é lançado para a lua sua mente está perfeitamente clara, e então eles lhe dão uma lista de nomes. Muitos deles, a maioria talvez, não têm o menor significado, mas um ou outro sim, depois outro e outro. Com cada um desses nomes eles começam o que chamam de sondagem, encontrando fragmentos de informações, o suficiente para ter uma descrição superficial do paciente sobre o qual ele está falando — o bastante para fazer aquela lasanha morrer de medo quando for procurada por nós. Lembre-se, estamos vivendo num tempo de estresse e esse nosso hebreu trata os mais importantes gatos de Washington, dentro e fora do governo. O que acha disso, Sr. advogado? — Certamente um método único — respondeu o advogado, olhando com atenção para o capo supremo. — É claro que seria infinitamente preferível termos seus arquivos. — E, como eu disse, estamos trabalhando nisso, mas leva tempo. Isto não. É immediato. Dentro de algumas horas ele estará na Pensilvânia. Quer fazer negócio? Só nós dois? — Que negócio? Uma coisa que você não tem e que talvez nunca tenha? — Ei, qual é, o que você pensa que eu sou? — Estou certo de que não quer que eu diga. — Deixe de besteira. Digamos que dentro de um ou dois dias, talvez uma semana, nos encontramos e eu lhe entrego uma lista de nomes interessantes, sobre os quais temos certas informações
— digamos, informações não acessíveis no momento. Você escolhe um ou dois, ou talvez nenhum, o que perde com isso? De qualquer modo, estamos falando de ninharia porque o negócio é só entre nós dois. Ninguém mais está envolvido, exceto meu especialista e seus assistentes que não o conhecem e a quem você não conhece. — Um negócio à margem, por assim dizer? — Não por assim dizer, mas exatamente o que é. Dependendo da informação, eu calculo o preço. Pode ser só um ou dois mil, pode ir a vinte, ou pode ser de graça, quem sabe? Vou ser justo porque quero fazer negócio com você, capisce? — É muito interessante. — Sabe o que diz o meu especialista? Diz que podemos começar nossa indústria de queijo, como ele chama. A gente seqüestra uns 12 psicanalistas, todos com boas conexões no governo, assim como gente do Senado ou da Casa Branca... — Compreendo perfeitamente — interrompeu o advogado, levantando-se —, mas meu tempo acabou... Traga-me uma lista, Louis. O visitante dirigiu-se para o hall de mármore. — Não tem uma pasta elegante de executivo, signor avvocato? — perguntou o capo, levantando-se do sofá. — Para perturbar os mecanismos não muito delicados na sua porta? — Ora, é um mundo violento lá fora. — Não sei disso. O advogado de Wall Street saiu e quando a porta se fechou Louis correu para a escrivaninha Rainha Anne e praticamente saltou sobre o telefone estilo francês de marfim — como de hábito derrubando duas vezes o delicado aparelho antes de segurar o fone numa das mãos e discar com a outra. — Maldito degenerado! — resmungou ele. — Droga de decorador bicha!... Mario? — Alô, Lou — disse a voz agradável, em New Rochelle. — Aposto que telefonou para desejar um feliz aniversário para Antonio, certo? — Quem? — Meu filho, Anthony. Faz 15 anos hoje, você esqueceu? A família toda está no jardim e sentimos sua falta, primo. E, escute Lou, que jardim este ano! Eu sou mesmo um artista. — Pode ser também outra coisa. — O quê?
— Compre um presente para Anthony e mande a conta para mim. Aos 15 anos, talvez uma mulher. Ele está pronto para ser homem. — Lou, você é demais. Há outras coisas... — Só há uma coisa agora, Mario, e quero a verdade da sua boca ou corto fora seus lábios. Uma breve pausa em New Rochelle e então o assassino de voz suave disse: — Não mereço que me fale desse modo, cugino. — Talvez sim, talvez não. Tiraram um livro da casa do general, em Manassas, um livro muito valioso. — Eles deram pela falta, certo? — Merda! Está com você! — Estava, Lou. Era um presente para você, mas eu o perdi. — Perdeu? Que diabo você fez, deixou num táxi? — Não. Eu estava correndo para salvar a vida com aquele maníaco dos sinalizadores, como é o nome, Webb, atrás de mim. Ele me acertou de raspão, eu caí e o livro voou da minha mão — justo quando chegou o carro da polícia. Ele pegou o livro e eu corri como um louco para a cerca. — Está com Webb? — Acho que sim. — Cristo num trampolim... — Mais alguma coisa, Lou? Vamos acender as velinhas do bolo agora. — Tem sim, Mario. Posso precisar de você em Washington — um grande cannoli sem um pé, mas com um livro. — Ei, espere um pouco, cugino, você conhece minhas normas. Sempre um mês entre viagens de negócios. Quanto tempo trabalhei em Manassas? Seis semanas? E em maio foi Key West, três, quase quatro semanas? Não posso telefonar, não posso mandar um cartão — não, Lou, sempre um mês. Tenho responsabilidades para com Angie e as crianças. Não quero ser um pai ausente, eles precisam ter um modelo, sabe o que estou dizendo? — A droga do meu primo é um comediante! Louis desligou o telefone furiosamente e o segurou depressa, mas não antes do marfim delicado rachar com a pancada na mesa.
— O melhor homem no negócio, e ele é um comediante — resmungou o capo supremo discando nervosamente. Quando atenderam, a ansiedade e a fúria desapareceram, mas só da voz. — Alô, Frankie meu bem, como vai meu melhor amigo? — Oh, oi, Lou — soou a voz hesitante e lânguida no elegante apartamento em Greenwich Village. — Posso telefonar daqui a alguns minutos? Estou pondo minha mãe no táxi. Ela vai para Jersey. Certo? — Certo, garoto. Dois minutos. — Mãe? O prostituto. Il pinguiho! Louis foi até o bar de espelhos e mármore com anjos cor-de-rosa pairando no revestimento de lalique, acima das garrafas de uísque. Serviu um drinque e tomou vários goles para se acalmar. O telefone do bar tocou. — Sim? — disse ele, apanhando com cuidado o frágil aparelho de cristal. — Sou eu, Lou, Frankie. Já me despedi da Mama. — Bom menino, Frankie. Nunca esqueça sua mama. — Eu não esqueço, Lou. Você me ensinou isso. Contou que deu à sua mama o maior enterro que já houve em East Hartford. — Isso mesmo, eu comprei a droga de igreja, cara. — Muito bonito, muito bonito. — Agora vamos falar de uma coisa bonita de verdade, certo? Foi um daqueles dias, Frankie, muita confusão, sabe o que quero dizer? — É claro que sei, Lou. — Então tive uma idéia. Preciso me acalmar, venha até aqui, Frankie. — Tão depressa quanto o táxi puder me levar, Lou, Prostituto! Seria o último serviço de Frankie, o Tagarela, para ele. O advogado bem vestido caminhou dois quarteirões para o sul e um quarteirão para leste para chegar à sua limusine estacionada sob o toldo de outro impressionante prédio residencial em Brooklin Heights. Seu motorista atarracado de meia-idade conversava com o porteiro uniformizado ao qual já havia dado uma boa gorjeta. Quando viu o patrão, dirigiu-se rapidamente para a limusine e abriu a porta de trás. Alguns minutos mais tarde, estavam a caminho da ponte. Na quietude do banco traseiro, o advogado desafivelou o cinto de crocodilo, apertou a borda superior e a inferior da fivela e um pequeno cilindro caiu entre suas pernas. Ele o apanhou e afivelou o cinto.
Ergueu o cilindro contra a luz que vinha da janela e examinou a miniatura de gravador ativado pela voz. Um aparelho extraordinário, pequeno e com um mecanismo de acrílico que permitia sua passagem pelos detetores mais sofisticados. O advogado recostou no banco do carro e chamou o motorista. — William. — Sim, senhor. — Vendo pelo retrovisor a mão estendida do patrão, o homem apanhou o cilindro. — Por favor, quer levar para casa e colocar num cassete? — Certo, major. O advogado de Manhattan reclinou-se no banco com um sorriso. Louis lhe daria qualquer coisa agora. Um capo não faz negócios separado da família, para não falar na confissão de suas preferências sexuais. Morris Panov estava no banco da frente do carro, ao lado do guarda, de olhos vendados e as mãos amarradas frouxamente, como se o capo subordinado achasse que estava obedecendo a ordens desnecessárias. Depois de uns trinta minutos de silêncio, o guarda perguntou: — O que é um perri-o-dentista? — Um cirurgião da boca. Um médico que opera a boca dos pacientes com problemas de dentes e gengivas. Silêncio. Sete minutos depois. — Que tipo de problemas? — Uma porção deles, desde infecções e raspagem das raízes até a cirurgia mais complicada, geralmente em conjunto com um oncologista. Silêncio. Quatro minutos depois. — O que é esse último — o tal do conjunto? — Câncer da boca. Quando descoberto em tempo, pode ser detido com a retirada de pequena parte do osso... Do contrário, toda a mandíbula tem de ser removida. — Panov percebeu que o carro dançou como se o motorista tivesse perdido o controle da direção. Silêncio. Um minuto e meio depois. — Toda a droga da mandíbula? A metade do rosto? — Isso ou a vida do paciente. Trinta segundos depois.
— Acha que eu posso ter um negócio desses? — Sou médico, não alarmista. Apenas notei um sintoma, não fiz diagnóstico. — Pois deixe de bobagem! Faça um diagnóstico! — Não sou especialista. — Besteira! Você é médico, não é? Quero dizer, médico de verdade, não um fasullo que diz que é, mas não tem nenhuma prova. — Quer dizer, formado. Sim, sou médico formado. — Então, olhe para mim! — Não posso. Estou com a venda nos olhos. Panov imediatamente sentiu a mão áspera e forte arrancando o lenço amarrado na sua cabeça. O interior escuro do carro respondeu a uma das perguntas de Mo. Como era possível alguém andar pelas ruas com um passageiro de olhos vendados no banco da frente? Naquele carro não era problema, a não ser pelo pára-brisa. As janelas eram escuras e quase opacas de dentro para fora, o que significava que eram opacas de fora para dentro. Ninguém podia ver o interior do carro. — Vamos, olhei — O capo subordinado, sem tirar os olhos da rua, inclinou grotescamente a cabeça grande na direção de Panov com os lábios grossos abertos e os dentes arreganhados como uma criança brincando de monstro na frente do espelho, e gritou: — Diga o que está vendo! — Está muito escuro aqui — respondeu Mo, vendo o que queria ver pela janela da frente. Estavam numa estrada fora da cidade, tão estreita e tão afastada que o acostamento era de terra. Fosse qual fosse o lugar para onde o homem o levava, não estavam seguindo o caminho mais curto. — Abra essa droga de janela! — gritou o guarda, ainda com a cabeça inclinada, os olhos na estrada, a boca aberta como uma caricatura da Orca, a baleia prestes a vomitar. — Não me esconda nada. Quebro cada maldito dedo das mãos daquele farsante! Ele pode fazer sua droga de cirurgia com os cotovelos!... Eu disse para aquela burra da minha irmã que ele não prestava, aquela bicha. Sempre lendo livros, nenhuma ação na rua, sabe o que quero dizer? — Se parar de gritar por alguns segundos, posso examinar melhor — disse Panov, depois de abaixar o vidro da janela, vendo apenas árvores e o mato típico de uma estrada secundária no campo, uma estrada que não devia constar de muitos mapas. — Agora sim — continuou Mo, erguendo as mãos frouxamente atadas para a boca do capo, mas com os olhos na estrada. — Oh, meu Deus! — exclamou o médico de repente. — O que foi? — berrou o guarda.
— Pus. Bolsas de pus por toda a parte. No maxilar inferior e no superior. O pior sinal. — Oh, Cristo! O carro dançou, mas não suficientemente. Uma árvore enorme. Bem na frente, no lado esquerdo da estrada deserta! Morris Panov num movimento brusco ergueu o corpo do banco e estendeu as mãos atadas para a direção, virando o carro violentamente para a esquerda. Então, no último segundo antes do carro bater, lançou-se para a direita e encolheu-se em posição fetal para se proteger do impacto. Foi uma batida violenta com vidros partidos, metal amassado, vapor dos cilindros estourados e chamas esparsas sob o carro, que logo atingiriam o tanque de gasolina. O guarda, inconsciente, gemia, com o rosto ensangüentado. Panov o tirou do carro arrastando-o para longe, com as forças que ainda lhe restavam e caiu exausto um pouco antes da explosão. Na relva úmida, com a respiração quase normalizada, mas o medo ainda intenso, Mo livrou as mãos frouxamente atadas e tirou os fragmentos de vidro do rosto do guarda. Verificou então se havia alguma fratura — aparentemente o braço direito e a perna esquerda —, e no papel de carta roubado de um hotel do qual Mo nunca ouvira falar, e uma caneta, tirados do bolso do guarda, escreveu seu diagnóstico. Encontrou também uma arma — não tinha idéia de que tipo — pesada e muito grande para seu bolso e colocou-a no cinto. Era tudo. O juramento de Hipócrates tinha limites. O guarda tinha também uma incrível quantia em dinheiro — mais ou menos 6 mil dólares, várias carteiras de motorista e cinco carteiras de identidade de estados diferentes. Panov apanhou o dinheiro e as carteiras de motorista para entregar a Conklin. Deixou na carteira a fotografia dos filhos, netos e outros parentes — naturalmente entre eles o jovem médico cujo curso ele havia pago. Ciao, amico, pensou Mo. Arrastou-se até a estrada, ficou de pé e alisou a roupa, procurando parecer o mais respeitável possível. Na estrada, Panov achou mais prudente seguir para o norte, para onde o guarda o estava levando. Voltar para o sul seria inútil e perigoso. E de repente foi como se estivesse acordando de um sonho. Meu Deus! Será que eu fiz o que acabo de fazer? Panov começou a tremer, e o psiquiatra que havia nele fez o diagnóstico de tensão póstraumática. Besteira, seu idiota! Não foi você! Começou a andar, e continuou a andar, e andar e andar. Estava numa estrada no campo, estava na Estrada do Tabaco. Não havia nenhum sinal de civilização, nenhum carro, nenhuma casa — nem ruínas de alguma fazenda —, nem mesmo um muro primitivo como prova de que seres humanos haviam passado por ali. Andou quilômetros e quilômetros, procurando vencer os efeitos da exaustão provocada pelas drogas. Quanto tempo estivera preso? Tinham tirado seu relógio que marcava a data, portanto não podia dizer que dia era, nem há quanto tempo o haviam apanhado no Hospital Walter Reed. Precisava encontrar um telefone. Precisava falar com Alex Conklin! Alguma coisa tinha de
acontecer logo! Aconteceu. Ouviu o motor do carro que se aproximava e virou rapidamente para trás. Um carro vermelho vinha do sul — a toda velocidade, com o acelerador no chão. Panov acenou freneticamente com os dois braços, num gesto de desespero e súplica. O carro passou por ele velozmente... então, com surpresa e alegria ouviu o ranger dos freios e a poeira levantada da estrada. O carro parou! Panov correu para a frente enquanto o carro dava marcha à ré cantando pneus. Lembrou então do que sua mãe sempre dizia no Bronx. Diga sempre a verdade, Morris. É o escudo que Deus nos dá para nos manter no bom caminho. Panov não seguia à risca o conselho da mãe, mas muitas vezes reconheceu que o mesmo tinha certo valor na interação social. Talvez esse fosse o momento de aplicá-lo. Assim, um tanto ofegante aproximou-se da porta esquerda do carro. Olhou para dentro e viu uma mulher loura platinada de uns trinta e poucos anos, excessivamente maquiada, com seios grandes emoldurados por um decote mais próprio para filmes pornôs do que para uma estrada deserta no campo de Maryland. Mesmo assim, as palavras de sua mãe ecoaram em sua mente e ele disse a verdade. — Sei que estou horrível, madame, mas pode estar certa de que é apenas minha aparência externa. Sou médico e sofri um acidente... — Entre no carro, ande! — Muito, muito obrigado. Nem bem ele fechou a porta e a mulher, engatando a marcha, saiu a toda do acostamento de terra para o asfalto. — A senhora está com pressa — observou Panov. — Você também estaria cara, se fosse eu. Tenho um marido lá atrás que está arrumando o caminhão para vir me pegar. — É mesmo? — O cretino miserável! Ele viaja pelo país todo durante três semanas por mês, dormindo com todas as donas que encontra na estrada, depois sobe pelas paredes quando descobre que estou também me divertindo. — Eu sinto muito. — Vai sentir muito mais se ele alcançar a gente. — Como disse? — Você é mesmo médico?
— Sim, sou. — Talvez a gente possa fazer um negócio. — Um negócio? — Você sabe fazer aborto? Morris Panov fechou os olhos.
Capítulo22 DEPOIS DE CAMINHAR durante quase uma hora pelas ruas de Paris tentando coordenar os pensamentos, Bourne chegou à ponte de Solferino, no Sena, que levava ao Quai des Tuileries e aos jardins. Encostado na grade, olhando os barcos que passavam preguiçosamente lá embaixo, perguntava sem cessar, por quê, por quê, por quê? O que Marie pensava que estava fazendo? Voar para Paris! Não era só uma tolice, era uma estupidez — mas sua mulher nada tinha de tola, nem de idiota. Era uma mulher muito inteligente, com grandes reservas de controle e uma mente rápida e analítica. Era isso que fazia sua decisão tão incompreensível. O que ela esperava poder fazer? Marie devia saber que era mais seguro para ele trabalhar sozinho, sem se preocupar com ela, enquanto procurava o Chacal. Mesmo que ela o encontrasse, o risco seria duplo para ambos, e isso ela devia compreender perfeitamente. Números e projeções faziam parte da sua profissão. Então, por quê? A única resposta possível deixava-o furioso. Marie pensava que a mente do marido podia falhar outra vez, como em Hong Kong, quando ela fora a única capaz de trazê-lo de volta para a realidade que era exclusivamente dele, uma realidade assustadora de meias-verdades e lembranças fragmentadas, momentos episódicos com os quais ela conviveu todos os dias do seu casamento. Deus, ele a adorava, ele a amava tanto! E aquela decisão tola, idiota, inexplicável aumentava seu amor por ser tão — tão generosa, tão absurdamente desprovida de egoísmo. Houve momentos, no Extremo Oriente, em que David desejou a própria morte, só para se livrar da culpa que sentia por expor Marie àqueles perigos inaceitáveis. A culpa estava com ele, sempre com ele, mas o homem mais maduro reconhecia outra realidade. Os filhos. O câncer que era o Chacal precisava ser extirpado de todas as suas vidas. Será que Marie não compreendia isso e não podia deixá-lo sozinho? Não. Pois ela não estava voando para Paris para salvar a vida dele — Marie confiava muito em Jason Bourne para isso. Estava indo para Paris para salvar sua mente. Eu posso fazer isso, Marie. Posso e vou fazer. Bernardine. Sim, era possível. O Deuxième podia localizar Marie em Orly ou De Gaulle. Encontrá-la, levá-la para um hotel sob vigilância, dizendo que ninguém sabia onde ele estava. Jason correu da ponte de Solferino para o Quai des Tuileries e para o primeiro telefone que encontrou. — Você pode fazer isso? — perguntou Bourne. — Ela tem só um passaporte e é americano, não canadense. — Posso tentar por minha conta — respondeu Bernardine —, mas não com ajuda do Deuxième. Não sei o quanto Santo Alex lhe contou, mas, no momento, meu cargo de consultor foi cancelado e acho que jogaram minha mesa pela janela. — Merda! — Merda ao cubo, mon ami. O Quai D’Orsay quer incinerar minha roupa de baixo com meu corpo dentro dela, e se não fosse por certas informações que eu tenho sobre vários membros da
Assembléia, eles iriam reativar a guilhotina. — Você pode passar algum dinheiro pela imigração? — Seria melhor agir na minha antiga capacidade oficial, confiando em que o Deuxième não alardeia seus problemas internos. O nome todo dela, por favor. — Marie Elise St. Jacques Webb... — Ah, sim, lembro-me agora, pelo menos o St. Jacques — interrompeu Bernardine. — A famosa economista canadense. Sua fotografia estava em todos os jornais. La belle mademoiselle. — Ela podia passar muito bem sem aquela publicidade. — Tenho certeza que sim. — Alex disse alguma coisa sobre Mo Panov? — O médico seu amigo? — Esse mesmo. — Não, nada. — Droga! — Se posso fazer uma sugestão, deve se preocupar com sua segurança agora. — Compreendo. — Vai apanhar o carro? — Acha que devo? — Francamente, se fosse você, eu não o apanharia. É pouco provável, mas podem descobrir que fui eu que o aluguei. É um risco, embora sem importância. — Foi o que pensei. Comprei um mapa do metrô. Vou andar de trem. Quando posso telefonar outra vez? — Dê-me quatro, talvez cinco horas para voltar dos aeroportos. Como nosso santo explicou, sua mulher pode ter embarcado em cinco lugares diferentes. Vou precisar de tempo para verificar todas as listas de passageiros. — Concentre-se nos vôos que chegarão amanhã de manhã. Ela não pode estar com um passaporte falsificado, não saberia como fazer isso. — Segundo Alex, não devemos subestimar Marie Elise St. Jacques. Ele até falou francês. Disse
que ela é formidable. — Ela é capaz de surpreender qualquer um, pode estar certo. — Qu’est-ce que c’est? — Digamos que ela é especial. — E você? — Vou tomar o metrô. Está escurecendo. Telefono depois da meia-noite. — Bonne chance. — Merci. Quando saiu da cabine, mancando por causa da atadura apertada no joelho, Bourne já sabia o que ia fazer. Podia tomar o metrô para Havre-Caumartin, na estação das Tuileries, e depois a linha norte do Expresso Regional, que o levaria a Argenteuil, passando por St. Denis-Basilique. Argenteuil, uma cidade da Idade Média fundada por Carlos Magno há 13 séculos, em honra de um convento. Tantos séculos depois, era uma cidade que abrigava o centro de mensagens de um assassino tão brutal quanto qualquer um dos homens que vagavam com uma espada pelos campos sangrentos nos dias bárbaros de Carlos Magno, então, como agora, comemorando e santificando a brutalidade sob o manto da religião. Le Coeur du Soldat não ficava numa rua, num bulevar nem numa avenida. Ficava na entrada de um beco sem saída, de frente para uma fábrica fechada há muito tempo, cujos letreiros desbotados indicavam uma metalúrgica outrora próspera na parte mais feia da cidade. O Soldat também não constava das listas telefônicas. O modo de encontrá-lo era perguntar inocentemente a estranhos, acrescentando que íamos encontrar une grosse secousse naquele misterioso pissoir. Quanto mais decrépitos fossem os prédios e mais sujas as ruas, mais exatas eram as informações. Na viela escura e estreita, Bourne estava encostado na parede antiga de tijolos da fábrica no outro lado da rua, na frente da entrada do bistrô. Acima da porta maciça, a tabuleta vermelho-escura, onde faltavam algumas letras grandes e quadradas, dizia L C eur d Soldat. Cada vez que a porta se abria dando passagem aos fregueses, a música marcial e metálica inundava a viela, e quem entrava e saía não era de modo algum candidato a um desfile de alta costura. Eu estou vestido de acordo, pensou Jason. Riscou um fósforo na parede, acendeu o cigarro negro e fino e caminhou mancando para a porta. A não ser pela língua falada e pela música ensurdecedora, podia ser um bar do cais do porto em Palermo, Sicília, pensou Bourne, abrindo caminho para o bar, examinando tudo que podia ver — por um momento confuso perguntando-se quando havia estado em Palermo, na Sicília. Um homem encorpado com camiseta sem mangas desocupou uma banqueta na frente do balcão e Jason sentou-se nela. A mão que parecia uma garra segurou seu ombro. Erguendo a mão direita rapidamente, Bourne segurou o pulso do homem e o torceu, afastando a banqueta e ficando de pé, em toda a sua altura.
— Qual é o seu problema? — perguntou calmamente em francês, de modo a ser ouvido por todos. — Esse lugar é meu, seu porco! Só saí para urinar. — Então, quando você voltar eu talvez vá fazer o mesmo — disse Jason, olhando fixamente para o homem, sem afrouxar os dedos no seu pulso, pressionando um nervo com o polegar, um golpe que nada tinha a ver com força bruta. — Ah, você é um merda de aleijado...! — exclamou o homem, tentando não fazer uma careta de dor. — Não brigo com inválidos. — Vamos fazer uma coisa — disse Bourne, afrouxando a pressão do polegar. — Você volta e a gente se reveza e eu pago um drinque cada vez que você me deixar descansar esta minha perna preguiçosa, certo? O homem ergueu os olhos para Jason e sorriu. — Ei, você é legal. — Não sou legal, mas não estou procurando briga tampouco. Merda, você podia me socar no chão. — Bourne soltou o braço do musculoso Camiseta. — Não garanto nada — disse o homem, rindo e segurando o pulso. — Sente-se, sente-se! Vou dar uma urinada e volto e lhe pago um drinque. Você não parece estar cheio de francos. — Bem, como dizem, as aparências enganam — respondeu Jason, sentando. — Tenho roupas diferentes e melhores, que o amigo com quem vou me encontrar me aconselhou a não usar aqui... Acabo de chegar da África com um bom dinheiro. Você sabe, treinando selvagens... Os pratos bateram na música marcial, metálica e ensurdecedora e Camiseta arregalou os olhos. — África? — interrompeu ele. — Eu sabia! O jeito que pegou meu pulso — LPN. O que restava nos bancos de dados da memória do Camaleão interpretou o código. LPN — Legion Patria Nostra. A Legião Estrangeira da França, os mercenários do mundo Não era o que tinha pensado, mas servia. — Cristo, você também? — perguntou inocentemente, mas com rudeza. — La légion etrangére! A legião é a nossa pátria. — Isto é loucura! — É claro que não andamos anunciando isso por aí. Existe muita inveja porque éramos os melhores e nos pagavam por isso, mas ainda é a nossa gente. Soldados. — Quando deixou a Legião? — perguntou Bourne, percebendo uma nuvem que podia causar
problemas. — Ah, faz nove anos! Eles me expulsaram antes do meu segundo alistamento, por excesso de peso. Estavam certos c provavelmente salvaram minha vida. Sou da Bélgica, cabo. — Dei baixa há um mês, antes de terminar meu primeiro alistamento. Ferimentos durante uma incursão em Angola e porque acharam que eu parecia ser mais velho do que diziam meus documentos. Eles não pagam tratamentos longos. — As palavras saíam facilmente. — Angola? Nós fizemos isso! O que o Quai D’Orsay estava pensando? — Não sei. Sou um soldado, obedeço ordens e não questiono as que não compreendo. — Sente! Meus rins estão para estourar. Volto já. Talvez tenhamos amigos comuns... Nunca ouvi falar de nenhuma operação em Angola. Jason inclinou-se sobre o balcão e pediu une bière, agradecendo a música barulhenta e o grande movimento que impediam o homem do bar de ouvir sua conversa. Entretanto, agradecia muito mais a Santo Alex Conklin, cuja recomendação principal a um agente de campo era “comece mal com quem quer falar, para depois ficar tudo bem”, a teoria de que a passagem da hostilidade para a amabilidade era reforçada pela mudança de atitude. Bourne tomou a cerveja aliviado. Tinha um amigo em Le Coeur du Soldat. Era uma via de acesso, não importante, mas vital, e talvez nem tão sem importância como parecia. Camiseta voltou com o braço musculoso no ombro de um homem de uns vinte e poucos anos, altura média, que parecia um cofre grande e vestia uma jaqueta militar americana. Jason começou a descer da banqueta. — Sente, sentei — exclamou seu novo amigo, inclinando-se para a frente para ser ouvido. — Eu trouxe um virgem. — O quê? — Já esqueceu? Ele está se preparando para ser recruta da Legião. — Oh, isso — disse Bourne com uma risada, para disfarçar a gafe. — Eu estranhei, num lugar como este... — Num lugar como este — interrompeu Camiseta — a metade dá ou toma, de acordo com o caso, desde que seja durão. Mas isso não tem nada a ver. Achei que ele devia falar com você. Ele é americano e seu francês é grotesque, mas se falar devagar, ele entende. — Não é preciso — disse Jason em inglês, com um leve sotaque. — Cresci em Neufchâtel, mas passei alguns anos na América. — É bom ouvir isso. — O homem falava com o jeito arrastado, típico do sul, seu sorriso era genuíno, o olhar cauteloso, mas sem medo.
— Então vamos começar de novo — disse o belga em inglês, com forte sotaque. — Meu nome é... Maurice, um nome tão bom quanto qualquer outro. Meu jovem amigo aqui é Ralph, pelo menos é o que ele diz. Qual é seu nome, meu herói ferido? — François — disse Jason, pensando em Bernardine e imaginando como ele estava se saindo nos aeroportos. — E não sou herói, eles morrem depressa demais... Peçam seus drinques, estou pagando. Enquanto eles faziam seus pedidos, Bourne tentava se lembrar de tudo que sabia sobre a Legião Estrangeira. — Muita coisa muda em nove anos, Maurice. — Com que facilidade ele falava, pensou o Camaleão. — Por que vai se alistar, Ralph? — Acho que é a coisa mais sensata que posso fazer — desaparecer por alguns anos, e sei que cinco é o mínimo. — Se durar até o fim do primeiro, mon ami — observou o belga. — Maurice está certo. Ouça o que ele diz. Os oficiais são durões e difíceis... — Todos franceses — acrescentou o belga. — Pelo menos noventa por cento. Só um estrangeiro em uns trezentos, talvez, chega a oficial. Não tenha ilusões. — Mas eu tenho curso superior. Sou engenheiro. — Pois então vai construir ótimas latrinas para os acampamentos, e desenhar buracos de merda perfeitos nos campos de batalha — disse Maurice com uma risada. — Diga a ele, François. Explique como são tratados os criados. — Os mais instruídos precisam primeiro aprender a lutar — disse Jason, esperando estar certo. — Sempre, em primeiro lugar! — exclamou o belga. — Pois sua instrução é suspeita. Podem ter dúvidas. Podem pensar, quando são pagos apenas para obedecer ordens... Oh, não, mon ami, eu não chamaria atenção para sua erudição. — Deixe que a coisa venha aos poucos — acrescentou Bourne. — Quando eles precisarem, não quando você quer oferecer. — Bien! — exclamou Maurice. — Ele sabe do que está falando. Um verdadeiro légionnaire. — Você sabe lutar? — perguntou Jason. — É capaz de matar? — Eu matei minha feeancee, seus dois irmãos e um primo, todos com uma faca e minhas mãos. Ela estava transando com um grande banqueiro em Nashville e eles a acobertavam porque o homem pagava muito bem... Sim, Sr. François, eu posso matar.
Caçada ao Assassino Louco em Nashville. Jovem engenheiro com futuro promissor escapa ao cerco. Olhando para o jovem americano, Bourne lembrou-se das notícias nos jornais, há poucas semanas. — Vá para a Legião — disse ele. — Se der algum problema, Sr. François, posso dar seu nome como referência? — Não ia ajudar muito, meu jovem, só poderia prejudicá-lo. Se eles o imprensarem, diga a verdade. É sua credencial. — Aussi bien! Ele conhece a Legião. Eles não aceitam maníacos quando podem evitar, mas eles... — como se diz, François? — Olham para o outro lado, eu acho. — Oui. Olham para o outro lado quando estão... — encore, François. — Em caso de circunstâncias especiais. — Está vendo? Meu amigo François também é instruído. Não sei como ele sobreviveu. — Não deixando ninguém saber, Maurice. Um garçom com o avental mais sujo que Jason já vira bateu com a mão no pescoço do belga. — Votre table, René. — E daí? — disse Camiseta, dando de ombros. — Mais um nome. Quelle différence? A gente come e com sorte não morremos envenenados. Duas horas depois, com duas garrafas de vin ordinaire forte consumidas por Maurice e Ralph, para acompanhar um peixe de aspecto suspeito, Le Coeur du Soldat acomodou-se para seu ritual noturno de resistência. Uma ou outra briga começava e era apartada pelos garçons musculosos. A música estridente lembrava batalhas ganhas e perdidas, provocando discussões entre velhos soldados que haviam pertencido basicamente a tropas de assalto, bucha de canhão, todos com o misto de ressentimento e orgulho do sobrevivente, porque tinham sobrevivido ao horror e ao sangue que seus superiores engalanados não conheciam. Era o rugido coletivo do soldado de infantaria, ouvido desde os tempos das legiões dos faraós até os horrores da Coréia e do Vietnã. Os oficiais com seus uniformes impecáveis planejavam muito longe da frente de batalha e os homens da infantaria morriam para preservar a sabedoria dos seus superiores. Bourne lembrou-se de Saigon e justificou a existência do Coeur du Soldat. O chefe dos barmen, um homem enorme e calvo com óculos de aro de metal, atendeu o telefone escondido na extremidade do balcão. Jason o observava. Os olhos do homem percorreram distraidamente o bar apinhado — o que ouvia parecia importante, o que via, não. Falou rapidamente. Depois, pôs a mão sob o balcão por alguns instantes. Acabava de discar um número. Falou rapidamente
outra vez, depois desligou e escondeu o telefone. Era o tipo de seqüência descrita pelo velho Fontaine na Ilha da Tranqüilidade. Mensagem recebida, mensagem transmitida. E na outra extremidade da linha estava o Chacal. Era tudo que ele queria ver naquela noite. Precisava estudar certas coisas, contratar homens, como no passado. Homens que podiam ser mortos, que nada significavam para ele, que podiam ser pagos ou subornados, chantageados ou ameaçados para fazer o que ele queria, sem exigir explicações. — Acabo de ver o homem com quem vim me encontrar — disse Jason para Maurice e Ralph, ambos quase inconscientes. — Ele quer conversar lá fora. — Vai nos deixar? — choramingou o belga. — Ei, cara, não deve fazer isso — disse o jovem americano com sotaque do sul. — Só esta noite — Bourne inclinou-se sobre a mesa. — Estou trabalhando com outro légionnaire que está envolvido num negócio em que rola muito dinheiro. Eu não conheço vocês, mas me parecem homens decentes. — Bourne tirou o maço de notas do bolso e separou mil francos, quinhentos para cada um. — Tomem isto, vocês dois — ponham no bolso, depressa! — Puxa vida! — Merde! — Não garanto, mas talvez eu possa usar os dois. Fiquem de boca fechada e saiam daqui a dez minutos depois que eu sair. Nada de mais vinho. Quero vocês sóbrios amanhã... A que horas este lugar abre, Maurice? — Acho que nunca fecha. Já estive aqui às oito da manhã. É claro que não estava tão cheio... — Estejam aqui lá pelo meio-dia. Mas com as cabeças leves, certo? — Vou ser o caporal extraordinaire de La Légion. O homem que fui antes. Devo usar meu uniforme? — Maurice deu um arroto. — Diabo, não. — Eu vou de terno e gravata. Tenho um terno e uma gravata, verdade! — O americano deu um soluço. — Não. Os dois como estão agora, mas com as cabeças leves. Vocês compreendem? — Você parece très americain, mon ami. — Parece mesmo. — Não sou, mas a verdade não é a primeira necessidade aqui, certo?
— Sei o que ele quer dizer. Eu aprendi isso muito bem. A gente conta uma mentirinha com uma gravata. — Nada de gravata, Ralph. Vejo vocês amanhã. — Bourne levantou da banqueta e de repente teve uma idéia. Em lugar de dirigir-se para a porta, foi cautelosamente até a extremidade do bar onde estava o grandalhão. Não havia lugar vago, por isso, sempre com cuidado e com delicadeza, espremeuse entre dois fregueses, pediu um Pernod e um guardanapo de papel para escrever um bilhete, ostensivamente pessoal, que não interessava a ninguém do bar. Nas costas do guardanapo com o desenho primitivo de um brasão, Jason escreveu em francês: O ninho de um melro vale um milhão de francos. Assunto: conselho sobre negócio confidencial. Se estiver interessado, esteja na fábrica velha da esquina dentro de trinta minutos. Que mal pode haver? Mais 5 mil francos franceses se for sozinho. Bourne juntou uma nota de cem francos ao guardanapo e chamou o bartender, que ajeitou os óculos de aro de metal como se o gesto daquele freguês desconhecido fosse uma impertinência. Adiantou-se devagar e apoiou os braços grossos e tatuados no balcão. — O que é? — perguntou asperamente. — Escrevi um bilhete para você — disse o Camaleão olhando fixamente para os óculos do homem. — Estou sozinho e espero que considere meu pedido. Sou um homem com ferimentos, mas não sou pobre. Rapidamente mas com delicadeza — muita delicadeza — Bourne passou o bilhete e o dinheiro para a mão do bartender. Com um último olhar suplicante para o homem atônito, Jason deu meia-volta e caminhou para a porta, mancando acentuadamente. Lá fora, atravessou a calçada rachada e foi para o outro lado da rua, na entrada do beco. Calculou que sua manobra no bar devia ter durado de oito a 12 minutos. Certo de que o homem do bar o vigiava, não se voltou para ver se os dois companheiros estavam ainda na mesa, mas supôs que deviam estar. Camiseta e Jaqueta de Combate não estavam exatamente alerta e nessa condição minutos não contam. Jason esperava que os quinhentos francos emprestassem a eles um pouco de responsabilidade e que saíssem na hora marcada. Por mais estranho que fosse, confiava mais em Maurice-René do que no jovem americano que se dizia chamar Ralph. Um ex-cabo da Legião reagia automaticamente a ordens e as obedecia cegamente, bêbado ou sóbrio. Jason esperava que isso fosse verdade. Não era imprescindível, mas podia precisar da ajuda deles — se o bartender do Le Coeur du Soldat estivesse interessado na quantia prometida e na possibilidade de conversar a sós com um aleijado que ele podia matar com um só dos seus braços tatuados.Bourne esperou vendo, à luz fraca da rua, diminuir o número dos que entravam e saíam, os que chegavam em melhor estado que os que saíam, todos passando por ele sem um olhar para o bêbado encostado na parede de tijolos. O instinto venceu. Camiseta puxou o jovem Jaqueta de Combate para fora e quando a porta se fechou, esbofeteou o americano, dizendo com voz arrastada que tinham de obedecer às ordens, pois estavam ricos e podiam ficar muito mais ricos.
— É melhor do que levar um tiro em Angola! — exclamou o ex-légionnaire em voz alta. — Por que eles fizeram aquilo? Jason os fez parar na entrada do beco e levou os dois para o lado do prédio de tijolos. — Sou eu! — disse, com voz autoritária. — Sacrebleu...! — Que diabo de droga...? — Quietos! Podem ganhar mais quinhentos francos esta noite, se quiserem. Se não, há uns vinte homens que vão querer. — Nós somos camaradas! — protestou Maurice-René. — E eu podia te fazer em pedaços por assustar a gente desse jeito... Mas meu amigo tem razão, somos camaradas. — Não tem nada com esse negócio de comunismo, tem, Maurice? — Taisez-vous! — Isso quer dizer cale a boca — explicou Bourne. — Eu sei. Estou sempre ouvindo isso. — Escutem. Daqui a pouco o homem do bar deve aparecer para falar comigo. Talvez ele venha, talvez não, eu não sei. É o homenzarrão careca de óculos. Vocês o conhecem? O americano deu de ombros, mas o belga balançou afirmativamente a cabeça e disse: — O nome dele é Santos e ele é espagnol. — Espanhol? — Ou latino-américain. Ninguém sabe. Ilich Ramirez Sanchez, pensou Jason. Carlos, o Chacal, venezuelano de nascimento, terrorista que nem os soviéticos conseguiram manipular. É claro que ele voltaria aos seus. — Você o conhece bem?Dessa vez foi o belga quem deu de ombros. — Ele é a autoridade máxima no Coeur du Soldat. Dizem que já esfacelou muitas cabeças de gente que não se comporta bem. Ele sempre começa por tirar os óculos. É o primeiro sinal de que vai acontecer alguma coisa que nem os soldados experimentados querem ver... Se ele vem aqui falar com você, eu o aconselho a ir embora. — Talvez ele venha porque quer me ver, não para me fazer mal.
— Isso não combina com Santos... — Vocês não precisam saber os detalhes, não são da sua conta. Mas se ele aparecer naquela porta, quero que comecem a conversar com ele. Podem fazer isso? — Mais certainement. Por várias vezes eu dormi no sofá dele, no segundo andar, carregado pelo próprio Santos, quando os faxineiros chegavam. — No segundo andar? — Ele mora em cima do café, no segundo andar. Dizem que ele nunca sai, nunca anda na rua, nem vai ao mercado. Outras pessoas fazem as compras para ele, ou então são entregues em casa. — Compreendo. — Jason tirou dinheiro do bolso e deu mais quinhentos francos para cada um. — Voltem para o beco e se Santos sair, comecem a conversar como se tivessem bebido demais. Peçam dinheiro, uma garrafa, qualquer coisa. Maurice-René e Ralph agarraram o dinheiro como crianças, trocando olhares de conspiradores vitoriosos. François, o légionnaire maluco, estava distribuindo dinheiro como se ele mesmo o fabricasse! O entusiasmo dos dois cresceu. — Por quanto tempo você quer que a gente distraia o cara? — perguntou o americano com sotaque do sul. — Vou falar tanto que as orelhas vão cair da cabeça dele! — acrescentou o belga. — Não, o bastante para ter certeza de que ele está sozinho — disse Bourne. — Que não tem ninguém com ele, nem atrás dele. — Isso é canja, meu velho. — Vamos merecer não apenas seus francos, mas seu respeito. Palavra de um cabo da Legião. — Estou comovido. Agora, voltem para lá.Os dois bêbados voltaram para o beco, Jaqueta de Combate batendo amigavelmente nas costas de Camiseta. Jason encostou na parede, perto do canto do prédio e esperou. Seis minutos depois ouviu as palavras que queria tanto ouvir. — Santos! Meu bom e grande amigo Santos! — O que está fazendo aqui, René? — Meu jovem amigo americano estava enjoado, mas já passou, ele vomitou. — Americano...? — Deixe que eu o apresente, Santos. Ele está para se tornar um grande soldado! — Existe alguma Cruzada das Crianças por aí? — Bourne espiou pelo canto do prédio, quando o
homem olhou para Ralph. — Boa sorte, garoto. Vá procurar sua guerra num playground. — Você fala francês depressa demais, mister, mas peguei alguma coisa. Você é um cara grandão, mas eu talvez seja um bom filho da puta! O homem riu e passou para o inglês com toda facilidade. — Então, acho bom você ser mau em outro lugar, garotinho. No Coeur du Soldat só aceitamos perfeitos cavalheiros... Agora, preciso ir. — Santos! — exclamou Maurice-René. — Me empresta dez francos. Deixei a carteira em casa. — Se você alguma vez teve uma carteira deve ter deixado no norte da África. Conhece minhas regras. Nem um sou para nenhum dos dois. — Gastei todo dinheiro que eu tinha com aquele seu peixe horrível que fez meu amigo vomitar! — Pois faça sua próxima refeição no Ritz, em Paris... Ah, sim! Você fez uma refeição — mas não pagou por ela. — Jason escondeu-se rapidamente quando o homem olhou para o beco. — Boa noite, René. Para você também, garoto guerreiro. Preciso tratar de negócios. Bourne correu para os portões da velha fábrica. Santos caminhou na direção dele. Sozinho. Atravessou a rua para as sombras da refinaria fechada e ficou imóvel, movendo apenas a mão, como para sentir o metal e a segurança da sua automática. Cada passo de Santos anunciava que o Chacal estava mais próximo! Logo a figura enorme saiu do beco, atravessou a rua mal iluminada e aproximouse dos portões enferrujados. — Estou aqui, monsieur — disse Santos. — E eu agradeço. — Prefiro que cumpra sua palavra primeiro. Se não me engano, mencionou 5 mil francos no seu bilhete. — Estão aqui — Jason tirou o dinheiro do bolso e o estendeu para o gerente do Coeur du Soldat. — Muito obrigado — disse Santos, adiantando-se e apanhando o dinheiro. — Peguem ele! — acrescentou, gritando. De repente, as portas da velha fábrica abriram-se atrás de Bourne e dois homens saltaram sobre ele. Antes que Jason pudesse apanhar a arma, foi atingido na cabeça por um instrumento pesado.
Capítulo23 — ESTAMOS SOZINHOS — disse a voz na outra extremidade do quarto escuro, quando Bourne abriu os olhos. O corpo enorme de Santos parecia diminuir o tamanho da grande poltrona, e a única lâmpada, muito fraca, iluminava sua cabeça imensa, branca e calva. Jason virou o pescoço e sentiu a dor do galo no alto da cabeça. Ele estava deitado num canto do sofá. — Nenhuma fratura, nenhum sangue, só o que eu imagino que deva ser um galo muito doloroso — comentou o homem do Chacal. — Seu diagnóstico é exato, especialmente a última parte. — Foi um instrumento de borracha sólida, forrado. Os resultados são previsíveis, exceto quando ocorre concussão. Ao seu lado está uma bolsa de gelo. Acho bom usá-la. Bourne estendeu o braço, apanhou a bolsa e a levou à cabeça. — Muita gentileza sua — disse com voz seca. — Por que não? Temos muito que conversar... talvez um milhão de assuntos, se transformados em francos. — Serão seus sob as condições estipuladas. — Quem é você? — perguntou Santos asperamente. — Essa não é uma das condições. — Não é um homem jovem. — Não que isso importe, mas você tampouco é. — Estava armado com um revólver e uma faca. Facas são para os jovens. — Quem disse? — Nossos reflexos.. O que sabe sobre um melro? — Devia perguntar como fiquei sabendo do Coeur du Soldat. — Como foi? — Me contaram. — Quem?
— Desculpe, não é uma das condições. Represento outra pessoa e é assim que eu trabalho. Meus clientes esperam isso de mim. — Seus clientes esperam também que enfaixe o joelho para fingir que foi ferido? Quando você abriu os olhos, fiz pressão sobre a área e não notei qualquer sinal de dor, de torção, de fratura. Além disso, não tem identificação alguma, mas bastante dinheiro. — Não explico meus métodos, apenas esclareço minhas restrições. Transmiti minha mensagem a você, não foi? Como eu não tinha o número do telefone, duvido que tivesse conseguido alguma coisa chegando ao seu estabelecimento de terno e com uma pasta na mão. Santos riu. — Nem entrava. Seria empurrado para o beco e despido imediatamente. — Essa idéia me ocorreu... Fazemos negocio... digamos, no valor de um milhão de francos? O homem do Chacal deu de ombros. — Eu cheguei a pensar que, quando um comprador menciona uma quantia tão alta na primeira oferta, vai até muito mais. Digamos um milhão e meio. Talvez até dois. — Mas eu não sou o comprador. Sou seu representante. Fui autorizado a pagar um milhão, que, na minha opinião, é demais, porém o tempo é importante. Pegue ou largue, tenho outras opções. — Tem mesmo? — Certamente. — Não se for um cadáver flutuando no Sena sem identificação. — Compreendo. — Jason examinou o apartamento escuro que não combinava nem um pouco com o café lá embaixo. Os móveis eram grandes, proporcionais ao tamanho do dono, mas de bom gosto, não elegantes, mas tampouco baratos. O mais estranho eram as estantes de livros que cobriam a parede entre as duas janelas. Bourne, o professor, gostaria de ler os títulos. Teria assim alguma informação sobre aquele homem imenso e estranho que falava como se tivesse estudado na Sorbonne — um brutamontes na aparência, talvez uma pessoa muito diferente no íntimo. Olhou para Santos. — Então não me será concedido sair daqui livremente, certo? — Certo — respondeu o mensageiro do Chacal. — Teria sido diferente se respondesse às perguntas simples que eu fiz, mas acaba de dizer que suas condições, ou melhor, suas restrições o proíbem de responder... Muito bem, eu também tenho condições e você vai viver ou morrer segundo elas. — Está sendo bem claro. — Não tenho razões para não ser.
— Evidentemente, está perdendo a oportunidade de receber um milhão de francos, como sugeriu, ou talvez muito mais. — Permita-me sugerir também — disse Santos, cruzando os braços fortes na frente do peito c olhando distraidamente para as tatuagens — que um homem com acesso a tanto dinheiro não só está disposto a pagar por sua vida, como também dará qualquer informação pedida para evitar um sofrimento intolerável e desnecessário. — O homem do Chacal bateu com a mão fechada no braço da poltrona e gritou: — O que você sabe sobre um melro? Quem lhe falou sobre Le Coeur du Soldat? De onde você vem, quem é você e quem é seu cliente? Bourne ficou imóvel, com o corpo rígido e a mente funcionando com a velocidade de um turbilhão. Precisava sair dali! Precisava localizar Bernardine — quanto tempo passava da hora marcada para seu telefonema? Onde estaria Marie? Contudo, o que ele queria fazer, tinha de fazer, não podia ser feito enfrentando o gigante na sua frente. Santos não era mentiroso, nem era tolo. Podia matar e mataria o prisioneiro facilmente, sem hesitação... e não podia ser enganado com informações falsas ou confusas. O homem do Chacal estava protegendo dois campos de ação — o seu e o do seu mentor. O Camaleão tinha apenas uma opção, revelar parte da verdade, uma parte suficientemente perigosa para ser acreditada, uma moldura de autenticidade tão plausível que não pudesse ser rejeitada. Jason pôs a bolsa de gelo na bandeja sobre a mesa e falou devagar, da sombra onde estava. — É claro que não pretendo morrei por um cliente, nem ser torturado para proteger sua informação, portanto vou dizer o que sei, que não é tanto quanto eu gostaria que fosse, dadas as circunstâncias. Vou seguir a ordem das suas perguntas, se o medo não me confundir. Para começar, não tenho acesso pessoal ao dinheiro. Passo a informação a um homem em Londres e ele libera uma conta em Berna, Suíça, para um nome e um número — qualquer nome, qualquer número — que eu dou... Vamos esquecer a parte sobre minha vida e o sofrimento insuportável — já respondi a isso. Vejamos, o que sei sobre um melro? O Coeur du Soldat é parte dessa resposta... disseram-me que um velho — nome e nacionalidade desconhecidos, pelo menos para mim, mas acredito que seja francês — procurou um homem público muito conhecido e o avisou de que seria alvo de um assassinato. Quem acredita num bêbado, especialmente num velho com longa ficha criminal e que está à procura de uma recompensa? Infelizmente o assassinato foi consumado. Felizmente um ajudante de ordens do morto estava com ele quando o velho o avisou. O ajudante era e é muito amigo do meu cliente, e o assassinato foi oportuno para ambos. O ajudante passou secretamente a informação do velho. Mensagens para um melro são recebidas num café chamado Le Coeur du Soldat, em Argenteuil. Esse melro deve ser um homem extraordinário e agora meu cliente quer conhecê-lo... Quanto a mim, meus escritórios são quartos de hotéis em diversas cidades. No momento estou registrado com o nome de Simon no PontRoyal, onde guardo meu passaporte e outros papéis. — Bourne fez uma pausa e ergueu as mãos abertas. — Contei toda a verdade que eu conheço. — Não toda a verdade — corrigiu Santos em voz baixa e gutural. — Quem é o seu cliente? — Eles me matam se eu contar. — Eu o mato agora mesmo se não contar — disse o mensageiro do Chacal, tirando a faca de caça de Jason do MU cinto largo de couro. A lâmina cintilou à luz do abajur.
— Por que não dá a informação que meu cliente quer com um nome e um número — qualquer nome, qualquer número —, e eu lhe garanto dois milhões de francos? Tudo que meu cliente quer é que eu seja o único intermediário. Que mal pode fazer? O melro pode não aceitar minha proposta e me mandar para o inferno... Três milhões! Santos hesitou, como se a quantia fosse demais para sua imaginação. — Talvez possamos fazer negócio mais tarde... — Agora. — Não! — O homem de Carlos ergueu o corpo enorme da poltrona e aproximou-se do sofá segurando a faca ameaçadoramente na mão direita. — Seu cliente. — Clientes — respondeu Bourne. — Um grupo de homens poderosos nos Estados Unidos. — Quem? — Os nomes deles são guardados como segredos nucleares, mas eu sei um e acho que é o bastante para você. — Quem? — Descubra você mesmo, ou pelo menos compreenda a enormidade do que estou tentando dizer. Proteja seu melro o melhor possível! Verifique se estou dizendo a verdade e no processo ganhe tanto dinheiro que poderá fazer o que quiser pelo resto da vida. Pode viajar, desaparecer, talvez ter tempo para esses livros em vez de tratar com aquele lixo lá embaixo. Como você mesmo disse, nenhum de nós é jovem. Eu ganho uma comissão generosa e você é um homem rico, livre de preocupações, de escravidão... Repito, que mal faz? Minha proposta pode ser recusada, a dos meus clientes também. Não há qualquer truque. Meus clientes não querem nem vê-lo. Querem apenas contratar seus serviços. — Como se pode fazer isso? Como eu posso verificar? — Invente uma posição importante para você mesmo e procure o embaixador americano em Londres — o nome é Atkinson. Diga que recebeu instruções confidenciais da Mulher Serpente. Pergunte se deve seguir essas instruções. — Mulher Serpente? O que é isso? — Medusa. Eles chamam seu grupo de Medusa. Mo Panov pediu licença e levantou-se. Atravessou a sala da lanchonete cheia de gente na direção do banheiro dos homens, procurando freneticamente um telefone público. Não havia! O único maldito telefone estava a três metros da mesa que ocupavam e podia ser visto pela loura platinada de olhos esgazeados, cuja paranóia estava tão profundamente plantada quanto as raízes do seu cabelo. Quando Panov mencionou casualmente que precisava telefonar para seu consultório para informar sua equipe sobre o acidente e dizer onde estava, a mulher ficou furiosa.
— E atrair um enxame de tiras para apanhar você! Esqueça, xamã! Seu escritório liga para os “homens”, eles ligam para meu querido Chefe Garfo-na-boca e meu traseiro vai bater em todas as cercas do condado. Ele é “assim” com todos os tiras da estrada. Acho que diz para eles onde podem achar mulheres para transar. — Eu não preciso falar de você e na verdade não posso. Se está lembrada, você disse que ele pode não gostar da minha presença. — Não gostar é pouco. Ele vai cortar o seu narizinho. Não vou arriscar — você não parece muito certo da cabeça. Vai falar do seu acidente — logo depois aparecem os tiras. — Quer saber, você não está dizendo coisa com coisa. — Tudo bem. Vou falar claro. Eu grito “estupro!” e digo aos não muito gentis caminhoneiros que encontrei você na estrada há dois dias e tenho sido sua escrava sexual desde então. O que acha disso? — Horrível. Posso pelo menos ir ao banheiro? É urgente. — À vontade. Lugares como estes não têm telefone no banheiro. — Não mesmo?... Não, falando sério, não estou amolado, nem desapontado — apenas curioso. Por que não tem telefone no banheiro? Os caminhoneiros ganham bem, não estão interessados em roubar moedinhas. — Cara, você é de outro mundo. Acontecem coisas nas estradas, coisas são trocadas, desaparecem, sacou? Se as pessoas podem telefonar, outras pessoas vão querer saber quem está fazendo essas coisas. — É mesmo...? — Oh, meu Deus. Ande depressa. Só temos tempo para uns dois sanduíches. Ele vai pegar a Setenta, não a Noventa e Sete. Você não imagina. — Imaginar o quê? O que são a Setenta e a Noventa c Sete? — Estradas, pelo amor de Deus! Existem estradas e existem estradas. Você é um xamã bem burro. Vá ao banheiro, depois mais tarde talvez a gente pare num motel para continuar nossa conversa de negócios e você pode receber um bônus adiantado. — O que foi que disse? — Eu sou a favor da livre escolha. É contra a sua religião? — É claro que não. Sou um defensor da livre escolha. — Ótimo. Vá depressa.
Assim, Panov foi para o banheiro e a mulher tinha razão. Nada de telefone e a janela era pequena demais para alguém maior do que um gato ou rato poder passar por ela... Mas ele tinha dinheiro, muito dinheiro, além de cinco carteiras de motorista de cinco estados diferentes. Na língua de Jason Bourne, eram armas, especialmente o dinheiro. Mo fez o que estava precisando fazer há muito tempo, depois foi até a porta e a abriu um pouco para observar a loura. De repente a porta foi empurrada violentamente e Panov atirado contra a parede. — Opa, desculpe, companheiro! — exclamou um homem baixo e gordo que segurou o psiquiatra pelos ombros. Mo levou as mãos ao rosto. — Você está bem? — É claro. Sim, estou bem. — Está droga nenhuma, seu nariz está sangrando! Venha até aqui, perto das toalhas — ordenou o caminhoneiro com uma das mangas da camiseta enrolada para guardar o maço de cigarros. — Vamos, ponha a cabeça para trás enquanto eu passo água fria na sua tromba... Relaxe e encoste na parede. Assim, assim é melhor, vamos parar este negócio num ou dois minutos. — O homem apertou delicadamente a toalha de papel contra o nariz de Panov segurando a nuca do médico com a outra mão, e a cada dois ou três segundos limpava o sangue. — Pronto, companheiro, quase parou. Respire pela boca, respire fundo, entendeu? Cabeça inclinada para trás, certo? — Muito obrigado — disse Panov, segurando a toalha de papel, admirado com a rapidez com que o sangue tinha parado. — Muito, muito obrigado. — Não me agradeça, eu o amassei sem querer — respondeu o caminhoneiro, enquanto urinava. — Melhor agora? — perguntou, fechando o zíper da calça. — Sim, estou. — E contrariando o conselho de sua querida falecida mãe, Mo resolveu tirar vantagem da situação e esquecer a verdade. — Mas devo explicar que a culpa foi minha, não sua. — O que quer dizer? — perguntou o homem, lavando as mãos. — Francamente, eu estava me escondendo atrás da porta vigiando uma mulher de quem quero me livrar — se é que me entende. O médico particular de Panov riu enxugando as mãos. — Quem não entende? É a história da humanidade, meu chapa! Elas agarram a gente e pronto, choramingam e a gente não sabe o que fazer, elas gritam e a gente vira escravo. Agora, comigo, a coisa é diferente. Casei com uma verdadeira européia, sabe? Ela não fala inglês muito bem, mas é agradecida... E ótima com as crianças, comigo, e ainda fico excitado quando a vejo. Não como essas drogas de princesas por aí. — Uma declaração extremamente interessante, embora visceral — disse o psiquiatra. — É o quê? — Nada, nada. Ainda quero sair daqui sem que ela me veja. Tenho algum dinheiro...
— Guarde seu dinheiro. Quem é ela? Os dois foram até a porta e Panov a abriu um pouco. — Aquela ali, a loura que está sempre olhando para cá e para a porta da frente. Está ficando muito agitada... — Nossa! — interrompeu o caminhoneiro. — Aquela é a mulher do Bronk! Está muito fora da rota. — Fora da rota? O Bronk? — Ele faz as estradas do leste, não estas. Que diabo ela está fazendo aqui? — Acho que está tentando fugir dele. — Isso mesmo — concordou o homem. — Ouvi dizer que ela anda transando e não cobra nada. — Você a conhece? — Diabo, sim, conheço. Estive em alguns churrascos na casa deles. Ele faz um molho bom à beça. — Preciso sair daqui. Como eu já disse, tenho algum dinheiro... — Isso mesmo, já disse. Conversamos sobre isso depois. — Onde? — No meu caminhão. É um reboque vermelho com listras brancas, como a nossa bandeira. Está estacionado na frente, do lado direito. Vá para a lateral do caminhão e esconda-se. — Ela vai me ver quando eu sair. — Não, não vai. Eu vou lhe fazer uma surpresa. Vou dizer a ela que todos os caminhoneiros estão comentando e que Bronk está indo para as Carolinas — pelo menos foi o que me disseram. — Como vou pagar esse favor? — Provavelmente com algum desse dinheiro de que está sempre falando. Mas não muito. O Bronk é um animal e eu sou um cristão reconvertido. — O caminhoneiro abriu a porta quase pregando Panov na parede outra vez. Mo o viu aproximar-se da mulher com os braços estendidos e abraçá-la como quem abraça um velho amigo. Começou a falar rapidamente. Ela o ouvia com atenção, hipnotizada. Panov saiu do banheiro, atravessou a lanchonete e caminhou para o enorme caminhão listrado de vermelho e branco. Com o coração disparado e a respiração ofegante, agachou-se no outro lado do veículo e esperou. De repente, a mulher do Bronk saiu correndo da lanchonete, o cabelo platinado voando
grotescamente atrás da cabeça, e foi direto para seu carro vermelho. Entrou, ligou o motor e continuou sua viagem para o norte, enquanto Mo olhava espantado. — Como vai você, meu chapa — onde diabo você está? — gritou o caminhoneiro sem nome que, além de ter estancado quase miraculosamente uma hemorragia nasal, acabava de salvar Mo de uma mulher maníaca cuja paranóia era um misto de vingança e culpa. Pare com isso, seu idiota, pensou Panov. Disse então em voz alta: — Aqui... meu chapa! Trinta e cinco minutos mais tarde chegaram à entrada de uma cidade não identificada e o caminhoneiro parou na frente de uma série de lojas que ladeavam a estrada. — Tem telefone aí, meu chapa. Boa sorte. — Tem certeza? — perguntou Mo. — Quero dizer, sobre o dinheiro. — É claro que tenho certeza — respondeu o homem. — Duzentos dólares são o bastante — talvez até o que eu ganho —, porém mais do que isso corrompe, não acha? Já me ofereceram cinqüenta vezes essa quantia para transportar carga que eu não transporto, e quer saber o que eu digo para eles? — O que você diz? — Digo que podem mijar contra o vento com seu veneno. Vai voltar tudo para trás e cegar todos eles. — Você é uma boa pessoa — disse Panov, descendo do caminhão. — Tenho de me redimir de algumas coisas. A porta se fechou, o enorme caminhão seguiu viagem e Mo voltou-se, à procura de um telefone. — Onde diabo você está? — berrou Conklin, na Virgínia. — Eu não sei! — respondeu Panov. — Se eu fosse um paciente diria que é o prolongamento de um sonho freudiano porque ele nunca acontece e agora aconteceu comigo. Eles me drogaram, Alex. — Fica frio! Foi o que supomos. Precisamos saber onde você está. Vamos ser realistas, outras pessoas estão também à sua procura. — Tudo bem, tudo bem... Espere um pouco. Tem uma lanchonete no outro lado da rua com um letreiro que diz “Battle Ford’s Best”. Isso ajuda? A resposta foi um suspiro no outro lado da linha. — Sim, ajuda. Se você fosse um membro produtivo da sociedade e estudioso da guerra civil, em vez de um insignificante psiquiatra, saberia que ajuda.
— De que diabo está falando? — Vá para o antigo campo de batalha em Ford’s Bluff. É um marco histórico nacional. Por toda parte há placas indicando a direção. Um helicóptero estará aí em trinta minutos, c não diga nada para ninguém. — Sabe que está sendo brusco demais? Eu fui objeto de hostilidades... — Desligando, ande! Bourne entrou no Pont-Royal, tirou do bolso uma nota de quinhentos francos e a pôs na mão do recepcionista da noite. — O nome é Simon — disse, com um sorriso. — Estive fora. Algum recado? — Nada, monsieur Simon — disse o homem em voz baixa. — Mas há dois homens lá fora, um na Montalembert, outro no outro lado da rue du Bac. Jason tirou do bolso uma nota de mil francos e a entregou discretamente. — Eu pago por olhos atentos, e pago bem. Continue assim. — É claro, monsieur. Bourne tomou o elevador de bronze e caminhou rapidamente pelo corredor até seu quarto. Tudo estava em ordem, exatamente como ele havia deixado, a não ser a cama que estava arrumada. A cama. Meu Deus, como precisava de um descanso. Não podia mais fazer o que fazia antes. Alguma coisa havia mudado dentro dele — menos energia, fôlego mais curto. Porém, precisava dos dois, agora mais do que nunca. Puxa, queria deitar e dormir... Não. Havia Marie. Havia Bernardine. Discou o número que tinha decorado. — Desculpe o atraso — disse Jason. — Quatro horas, mon ami. O que aconteceu? — Não tenho tempo agora. E Marie? — Nada. Absolutamente nada. Ela não estava em nenhum vôo internacional, no ar ou marcado para partir. Verifiquei até as baldeações de Londres, Lisboa, Estocolmo e Amsterdã — nada. Não há nenhuma Marie Elise St. Jacques Webb viajando para Paris. — Tem de haver. Ela não mudaria de idéia. E não ia saber como evitar a imigração. — Eu já disse. O nome dela não consta de nenhum vôo, de nenhum país, para Paris. — Droga! — Vou continuar tentando, meu amigo. As palavras de Santo Alex não saem dos meus ouvidos.
Não subestime la belle mademoiselle. — Ela não é nenhuma droga de mademoiselle, é minha mulher... Não é um de nós, Bernardine, não é uma agente de campo capaz de enganar, mentir e trair. Ela não é assim. Mas está vindo para Paris, eu sei! — As empresas aéreas não sabem, o que mais posso dizer? — Exatamente o que você disse — respondeu Jason, sentindo que seus pulmões não tinham força para inalar o ar necessário, e que suas pálpebras pesadas estavam a ponto de fechar. — Continue tentando. — O que aconteceu esta noite? Conte. — Amanhã — disse David Webb com voz quase inaudível. — Amanhã... Estou tão cansado e tenho de ser outra pessoa. — Do que está falando? Nem parece você mesmo. — Nada. Amanhã. Preciso pensar... Ou talvez seja melhor não pensar. Na fila da imigração em Marselha, pequena ainda àquela hora do dia, Marie assumiu uma expressão de tédio que não sentia. Chegou sua vez. — Américaine — disse o funcionário cheio de sono. — Está aqui a negócios ou passeio, madame? — Je parle français, monsieur. Je suis canadienne d’origine — Quebec. Séparatiste. — Ah, bien! — O funcionário abriu mais os olhos sonolentos e continuou em francês: — Negócios? — Não. É uma viagem sentimental. Meus pais eram de Marselha e morreram recentemente. Quero conhecer a terra deles, onde viveram — talvez o que eu perdi. — Extraordinariamente comovente, bela senhora — disse o funcionário da imigração com um olhar apreciativo. — Talvez precise de um guia? Esta cidade está toda gravada indelevelmente em minha mente. — Muita gentileza sua. Vou ficar no Sofitel Vieux Port. Como se chama? Já tem o meu nome. — Lafontaine, madame. Às suas ordens! — Lafontaine! Foi o que disse?! — Foi o que eu disse. — Muito interessante.
— Eu sou muito interessante — disse o funcionário com os olhos entrecerrados, não mais de sono, enquanto carimbava o passaporte de Marie. — Estou às suas ordens, madame! Deve ser hereditário nesse ramo da família, pensou Marie dirigindo-se para a área da bagagem. Tomaria agora um vôo doméstico para Paris, usando qualquer nome. François Bernardine acordou, sobressaltado, ergueu-se rapidamente, apoiado nos cotovelos, com a testa franzida, perturbado. Ela está vindo para Paris, eu sei! Palavras do marido que a conhecia melhor do que ninguém. O nome dela não consta da lista de nenhum vôo de outro país para Paris. Suas palavras. Paris. A palavra-chave era Paris! Mas, e se não fosse Paris? O veterano do Deuxième saltou da cama na luz suave do começo do dia, que entrava pela janela. Fez a barba em menos tempo do que sua pele merecia, tomou banho, vestiu-se e desceu para a rua e para seu Peugeot com a inevitável multa presa no limpador de pára-brisa. Infelizmente agora não podia se livrar dela com um simples telefonema. Bernardine suspirou, tirou o papel do pára-brisa e entrou no carro. Cinqüenta e oito minutos depois chegava ao estacionamento de um pequeno prédio de tijolos no imenso complexo de carga do Aeroporto de Orly. O prédio era insignificante, o trabalho que se realizava dentro dele não era. Ali funcionava uma seção extremamente importante do Departamento de Imigração, conhecida simplesmente como Escritório de Entradas Aéreas, onde computadores sofisticados mantinham dados atualizados sobre cada pessoa que entrava na França pelos aeroportos internacionais. Era vital para a imigração, mas raramente consultado pelo Deuxième, pois havia muitos outros pontos de entrada usados pelas pessoas nas quais o Deuxième estava interessado. Durante anos, porém, operando de acordo com a teoria de que o óbvio passa desapercebido, Bernardine procurava informação no Escritório de Entradas Aéreas. Uma vez ou outra sua pesquisa foi recompensada. Imaginava se isso iria acontecer nessa manhã.. Dezenove minutos mais tarde tinha a resposta. Era o que queria, mas chegara tarde demais. Bernardine foi até o hall de entrada do prédio, colocou a moeda no telefone público e discou o número do Pont-Royal. — Sim? — atendeu Bourne com voz rouca. — Peço desculpas se o acordei. — François? — Sim. — Eu estava me levantando. Há dois homens no outro lado da rua muito mais cansados do que eu, a não ser que tenham sido revezados. — Por causa do que aconteceu ontem à noite? Ficaram a noite toda? — Sim. Eu conto quando nos encontrarmos. Foi por isso que telefonou?
— Não. Estou em Orly e infelizmente tenho más notícias, informação que prova que sou um idiota. Eu devia ter pensado nisso... Sua mulher chegou em Marselha há pouco mais de duas horas. Não Paris, Marselha. — Essa é a má notícia? — exclamou Jason. — Sabemos onde ela está! Podemos... Oh, Cristo, entendo o que quer dizer — Bourne continuou com voz desanimada. — Ela pode tomar um trem, alugar um carro... — Pode até voar para Paris sob qualquer nome — acrescentou Bernardine. — Mas tenho uma idéia. Talvez tão inútil quanto meu cérebro, mas vou sugerir assim mesmo... Vocês têm algum — como vocês dizem — apelido especial só entre os dois? Sobriquets carinhosos talvez? — Não somos muito dados a esse tipo de coisa, francamente... Espere um pouco. Há uns dois anos Jamie, nosso filho, tinha dificuldade para dizer mommy. Ele dizia “mimom”. Por brincadeira nós todos o chamamos assim durante alguns meses, até ele conseguir falar direito. — Sei que ela fala francês fluentemente. Ela lê os jornais? — Religiosamente, pelo menos o caderno de economia. Não sei se lê outra coisa, mas é seu ritual de todas as manhãs. — Mesmo numa crise? — Especialmente numa crise. Diz que isso a acalma. — Vamos enviar uma mensagem — no caderno de economia. O embaixador Phillip Atkinson preparou-se para mais uma manhã de tedioso trabalho burocrático na embaixada em Londres. Ao tédio somavam-se uma dor latejante nas têmporas e um gosto desagradável na boca. Não era exatamente uma ressaca típica porque ele raramente bebia uísque e há mais de 25 anos não ficava bêbado. Há muito tempo, mais ou menos trinta meses depois da queda de Saigon, Atkinson havia reconhecido a limitação dos próprios talentos, das suas oportunidades e, acima de tudo, dos seus recursos. Quando voltou da guerra com uma folha de serviço não excepcional, mas razoável, sua família o presenteou com um lugar na Bolsa de Valores de Nova York, onde em trinta meses ele conseguiu perder um pouco mais de três milhões de dólares. — Será que não aprendeu nada em Andover e Yale? — rugiu seu pai. — Pelo menos fez alguns bons conhecimentos na Street? — Papai, todos me invejam, você sabe disso. Às vezes tenho a impressão de que querem se vingar de você em mim. Sabe o que eles dizem. Pai e filho, da alta sociedade e toda essa besteira... Lembra-se do artigo do Daily News que nos comparava aos Fairbanks? — Conheci Doug durante quarenta anos! — berrou o pai. — Ele tinha cabeça, uma das melhores. — Ele não estudou em Andover, nem em Yale, papai.
— Não precisava!... Espere um pouco. Ministério do Exterior...? Que droga de diploma você tirou em Yale? — Bacharel em artes. — Esqueça isso. Havia mais alguma coisa. Cursos, ou coisa assim. — Fiz curso de literatura inglesa e o curso de ciência política. — É isso! Ponha o negócio de maricas de lado. Você foi muito bom no outro — aquela bobagem de ciência política. — Papai, não foi meu melhor curso. — Você passou? — Passei... raspando. — Não raspando, com distinção. É isso! Assim Phillip Atkinson III começou sua carreira no Ministério do Exterior por influência de um importante contribuinte político que era seu pai, e nunca olhou para trás. O velho ilustre estava morto há oito anos, mas Phillip jamais esquecia o último conselho do grande lutador: “Não falhe neste também, filho. Se quiser beber, transar, faça tudo dentro de casa ou num deserto qualquer, compreende? E trate aquela sua mulher, sei lá como se chama, com muita afeição na frente dos outros, entendeu?” — Entendi, papai. Por isso Phillip Atkinson sentia-se tão miserável naquela manhã. Passara a noite anterior num jantar com gente importante da realeza que bebia até a bebida sair pelo nariz e com sua mulher, que desculpava esse comportamento porque eram realeza, justamente o que Phillip só podia tolerar depois de sete copos de Chablis. Às vezes ele sentia saudades daquele tempo de farra e bebida, na velha Saigon. A campainha do telefone fez Atkinson borrar sua assinatura num documento que não tinha qualquer sentido para ele. — Sim? — O alto comissário do Comitê Central da Hungria está no telefone, senhor. — Oh? Quem é ele — quem são eles? Nós os reconhecemos — essa coisa — o reconhecemos? — Não sei, senhor embaixador. Na verdade não consigo pronunciar o nome dele. — Está bem, ponha o homem na linha. — Senhor embaixador? — disse a voz com forte sotaque. — Sr. Atkinson?
— Sim, é Atkinson. Perdoe-me, mas não consigo me lembrar do seu nome, nem do comitê que diz representar. — Não importa. Estou falando em nome da Mulher Serpente... — Pare! — exclamou o embaixador na corte de St. James. — Fique na linha e continuamos a falar dentro de alguns segundos. — Atkinson ligou o “misturador” e esperou até não ouvir mais os ruídos do pré-interceptador. — Tudo bem, continue. — Recebi instruções da Mulher Serpente e mandaram confirmar a origem com o senhor. — Confirmada. — Sendo assim devo executar as instruções? — É claro! Tudo que eles disserem. Meu Deus, veja o que aconteceu com Teagarten, em Bruxelas, e com Armbruster, em Washington. Proteja-me! Faça qualquer coisa que eles mandarem. — Muito obrigado, senhor embaixador. Depois do banho mais quente que conseguiu suportar, Bourne passou para o chuveiro mais frio que pôde tolerar. Trocou a atadura do pescoço, voltou para o pequeno quarto de hotel e deitou-se... Então Marie havia encontrado um meio simples e engenhoso de chegar a Paris. Droga! Como ia encontrá-la, protegê-la? Será que ela tinha idéia do que estava fazendo? David teria enlouquecido. Entraria em pânico, cometendo uma porção de erros... Oh, meu Deus, eu sou David! Pare com isso. Controle-se. Fique frio. O telefone tocou e ele atendeu. — Sim? — Santos quer vê-lo. Com paz no coração.
Capítulo24 O HELICÓPTERO do Serviço Médico de Emergência pousou, os motores foram desligados e as lâminas pararam de girar com um baque surdo. Seguindo o procedimento do SME para desembarque de pacientes em estado de emergência, só então as portas se abriram e a escada de metal foi baixada. Um paramédico uniformizado saiu na frente de Panov e ajudou o psiquiatra a descer. Um segundo homem com roupas civis o conduziu à limusine, onde Peter Holland, diretor da CIA, e Alex Conklin o esperavam, Alex na banqueta de frente para o banco traseiro. O psiquiatra sentou ao lado de Holland, respirou fundo várias vezes, suspirou e recostou a cabeça no banco. — Eu sou um maníaco — disse ele, acentuando cada palavra. — Definitivamente insano, e estou disposto a assinar os papéis para meu internamento. — Você está a salvo e isso é o que importa, doutor — disse Holland. — É bom ver você, Mo, maluco — acrescentou Conklin. — Vocês têm idéia do que eu fiz?... Deliberadamente atirei um carro contra uma árvore e eu estava dentro! Em seguida, depois de andar a metade da distância daqui ao Bronx, fui apanhado pela única pessoa que tem mais parafusos soltos do que eu. Sua libido está descontrolada e ela estava fugindo do marido caminhoneiro — que a persegue furioso — e que, mais tarde me disseram, atende pelo nome carinhoso de Bronk. Minha motorista-prostituta me seqüestra com uma porção de ameaças, como gritar “estupro!” numa lanchonete cheia dos maiores e mais fortes zagueiros da Liga Nacional de Futebol Americano — exceto um, que me tirou de lá. — Panov parou de falar e pôs a mão no bolso. — Tome — continuou, estendendo para Conklin as cinco carteiras de motorista e um pouco menos dos 6 mil dólares. — O que é isto? — perguntou Alex, atônito. — Eu roubei um banco e resolvi me tornar motorista profissional! O que acha que é? Tirei do homem que estava me guardando. Descrevi o melhor possível para a tripulação do helicóptero o lugar do acidente. Eles voltaram para procurar o homem. Vão encontrá-lo, ele não vai a lugar algum. Peter Holland apanhou o telefone da limusine e digitou um número. — Entre em contato com EMS-Arlington, Equipamento 57. O homem que vão apanhar deve ser levado diretamente para Langley. Para a enfermaria. E mantenha-me informado do progresso da busca... Desculpe, doutor, continue. — Continuar? Continuar o quê? Fui seqüestrado, fiquei preso numa fazenda, injetaram sódio pentotal nas minhas veias o suficiente para me fazer um habitante de fora deste mundo, onde recentemente Madame Scylla Caribdes2 me acusou de morar. — De que diabo está falando? — perguntou Holland com voz seca.
— De nada, almirante, ou senhor diretor, ou... — Peter é o bastante — completou Holland. — Só que não entendi o que você disse. — Não há nada para entender além dos fatos. Minhas alusões são tentativas compulsivas de erudição. Chama-se estresse pós-traumático. — Certo, agora está falando claro. Panov voltou-se para o diretor com um sorriso nervoso. — Eu devo pedir desculpas, Peter. Estou ainda um pouco tenso. Este último dia, ou estes dias não representam exatamente meu estilo normal de vida. — Acho que não é o estilo normal de ninguém — concordou Holland. — Já vi o que tinha de ver desses métodos, mas nada como isto, essa interferência direta na mente. Não é do meu tempo. — Não temos pressa, Mo — disse Conklin. — Não se esforce mais, você já agüentou muito. Se quiser, posso adiar o seu depoimento para daqui a algumas horas, quando estiver mais descansado e mais calmo. — Não seja idiota, Alex! — protestou o psiquiatra. — Pela segunda vez a vida de David está em perigo por minha causa. Isso é mais difícil de suportar do que qualquer outra coisa. Não podemos perder nem um minuto... Esqueça Langley, Peter. Leve-me a uma das suas clínicas. Flutuando no espaço, quero contar tudo que posso lembrar, consciente ou inconscientemente. Depressa. Direi aos médicos o que devem fazer. — Você deve estar brincando — disse Holland, olhando atentamente para Panov. — Não estou brincando. Vocês dois precisam saber o que eu sei — mesmo o que eu sei sem saber que sei. Não compreendem isso? O diretor apanhou outra vez o telefone e apertou um único número. O chofer, no outro lado da divisória de vidro, levou ao ouvido o fone que ficava no console ao seu lado. — Houve uma mudança nos planos — disse Holland. — Vamos para Estéril Cinco. O carro diminuiu a marcha e entrou na primeira rua à direita, seguindo para as colinas e os campos verdejantes da Virgínia. Morris Panov fechou os olhos, como se estivesse em transe ou preparando-se para uma experiência penosa — a própria execução, talvez. Alex olhou para Peter Holland, os dois olharam para Mo e voltaram a se entreolhar. Fosse o que fosse que Panov estava fazendo, tinha seus motivos. Ninguém disse uma palavra até chegarem aos portões da Estéril Cinco, trinta minutos depois. — DCI e acompanhantes — disse o chofer para o guarda com uniforme de uma firma particular de segurança, mas na verdade um homem da CIA. A limusine seguiu pela entrada de veículos ladeada
de árvores. — Obrigado — disse Mo, abrindo e piscando os olhos. — Naturalmente compreenderam. Estou tentando clarear a mente e se tiver sorte, abaixar um pouco a pressão. — Você não precisa fazer isso — disse Holland. — Sim, preciso — respondeu Panov. — Talvez com o tempo eu pudesse juntar os fatos com uma certa clareza, mas agora não posso e não temos tempo. — Voltou-se para Conklin. — Quanto você pode me contar? — Peter sabe de tudo. Em atenção à sua pressão, não vou contar todos os detalhes, mas, resumindo, David está bem. Pelo menos não soubemos de nada que prove o contrário. — Marie? As crianças? — Na ilha — disse Alex, evitando olhar para Holland. — E Estéril Cinco? — Panov perguntou para Holland. — Suponho que tem um especialista, ou especialistas do tipo que preciso agora. — Revezando-se dia e noite. Provavelmente você conhece alguns. — Prefiro não conhecer. — O carro longo e escuro parou na frente dos degraus de pedra da mansão georgiana com colunas, no centro da grande propriedade. — Vamos — disse Mo em voz baixa, saindo do carro. As portas brancas de madeira trabalhada, o chão de mármore rosado e a elegante escadaria eram um magnífico disfarce para o trabalho realizado em Estéril Cinco. Dissidentes, agentes duplos e triplos e agentes de campo que voltavam de missões complexas para descanso e relatório passavam continuamente por aquele centro. O pessoal, todo de nível confidencial Quatro Zero, consistia de grupos de dois médicos e três enfermeiros que se revezavam, cozinheiros e empregados domésticos recrutados no serviço de relações exteriores — especialmente embaixadas — e guardas, todos com treinamento de Rangers ou equivalente. Circulavam discretamente pela casa, sempre alerta, com armas visíveis ou não, exceto o pessoal médico. O mordomo educado e de terno escuro que os recebeu era encarregado de entregar crachás a todos os visitantes, sem exceção. Era um homem grisalho, intérprete aposentado da CIA, e fazia tão bem seu papel que parecia ter saído de uma peça teatral. É claro que ficou atônito quando viu Holland. Orgulhava-se de saber de cor todas as entrevistas marcadas no Estéril Cinco. — Uma visita de surpresa, senhor? — É um prazer vê-lo, Frank — o diretor apertou a mão do ex-intérprete. — Com certeza lembra-se de Alex Conklin... — Meu Deus, é você, Alex? Há quantos anos! — Mais apertos de mão. — Quando foi a última
vez?... Aquela mulher louca de Varsóvia, não foi? — Desde aquele dia o KGB não pára de rir — disse Conklin. — O único segredo que a mulher tinha era uma receita para o pior golumpki que eu já comi... Sempre no trabalho, Frank? — Uma vez ou outra — disse o homem, com fingida desaprovação. — Esses jovens tradutores não sabem a diferença entre um quiche e um kluski. — Uma vez que eu também não sei — disse Holland —, posso dar uma palavrinha com você, Frank. Os dois homens afastaram-se um pouco, falando em voz baixa. Alex e Mo Panov esperavam, este último franzindo a testa e respirando fundo uma vez ou outra. O diretor voltou e entregou crachás para os dois. — Já sei onde devemos ir. Frank vai avisá-los. Subiram a escadaria curva, Conklin mancando, e caminharam por um corredor atapetado na ala esquerda dos fundos da casa enorme. À direita havia uma porta diferente de todas as outras. Era de carvalho maciço brilhante, com quatro pequenas janelas na parte superior e dois botões negros numa pequena caixa ao lado da maçaneta. Holland colocou a chave na fechadura, girou e apertou o botão inferior. Uma luz vermelha apareceu na pequena câmara imóvel montada no teto. Vinte minutos depois ouviram o barulho metálico do elevador parando no andar. — Entrem, cavalheiros — disse o diretor da CIA. A porta se fechou e eles começaram a descer. — Nós subimos para descer? — perguntou Conklin. — Segurança — respondeu o diretor. — É o único meio de chegar aonde vamos. Não existem elevadores no andar térreo. — Por que não, pode perguntar ao homem sem um pé? — disse Alex. — Acho que você pode responder melhor do que eu — respondeu o diretor. — Aparentemente todos os acessos ao porão são selados, exceto os dois elevadores que passam direto pelo térreo e para os quais precisamos de uma chave. Este nos leva aonde queremos ir. O outro leva às fornalhas, unidades de ar condicionado e todo o resto do equipamento normal de um porão. Frank me deu a chave. Se ela não voltar ao seu nicho depois de um certo tempo, soa um alarme. — Para mim parece uma complicação desnecessária — disse Panov secamente. — Brinquedos caros. — Não exatamente, Mo — disse Conklin. — Explosivos podem ser facilmente escondidos em canos de aquecimento e de água. Você sabia que nos últimos dias do abrigo de Hitler, alguns dos seus ajudantes menos loucos tentaram colocar veneno no sistema de filtros de ar? São apenas precauções. O elevador parou e a porta se abriu.
— Para a esquerda, doutor — disse Holland. O corredor era completamente branco e brilhante, anti-séptico como devia ser, pois o complexo subterrâneo era um centro médico extremamente sofisticado. Destinava-se não apenas ao tratamento de homens e mulheres, mas também ao processo de quebrar sua vontade, anulando sua resistência para que dessem informações, revelando verdades que podiam evitar a infiltração em operações de alto risco, freqüentemente salvando vidas no processo. Entraram numa sala que contrastava acentuadamente com a aparência anti-séptica do corredor fluorescente. Viram poltronas pesadas, suave iluminação indireta, uma cafeteira elétrica sobre a mesa, com xícaras, jornais e revistas arrumados em outras mesinhas, todos os confortos de uma sala de espera. Um homem com jaleco branco apareceu na porta interna, com a testa franzida e expressão de dúvida. — Diretor Holland? — disse ele, aproximando-se de Peter com a mão estendida. — Sou o Dr. Walsh, segundo turno. Não preciso dizer que não o esperava. — Trata-se de uma emergência e não foi escolha minha. Posso apresentar o Dr. Morris Panov — a não ser que já o conheça? — Conheço de nome, é claro. — Walsh estendeu a mão para o médico. — É um prazer, doutor, e um privilégio. — Talvez retire esse último quando terminarmos, doutor. Podemos conversar em particular? — É claro. Meu consultório é lá dentro. Os dois médicos saíram da sala de espera. — Você não devia ir com eles? — perguntou Conklin, olhando para Peter. — Por que não você? — Ora, que diabo, você é o diretor. Devia insistir! — Você devia insistir, como amigo dele. — Não tenho qualquer influência aqui. — A minha desapareceu quando Mo nos tirou da jogada. Venha, vamos tomar um café. Este lugar me deixa arrepiado. — Holland foi até a mesa onde estava o café e serviu duas xícaras. — Como gosta do seu café? — Com mais açúcar e creme do que devia. Deixe que eu preparo. — Eu ainda tomo café puro — disse o diretor, afastando-se da mesa e tirando um maço de cigarros do bolso. — Minha mulher diz que o ácido ainda vai me matar. — Outros dizem que o fumo se encarregará disso. — O quê?
— Veja — Alex apontou para o aviso na parede. OBRIGADO POR NÃO FUMAR. — Para isso tenho bastante influência — disse Holland calmamente, acendendo o cigarro. Quase vinte minutos se passaram. Uma vez ou outra Conklin ou Holland apanhava uma revista ou um jornal e o colocava de novo na mesa sem ler, olhando para a porta do consultório. Finalmente, 28 minutos depois, o médico chamado Walsh apareceu. — Ele disse que o senhor sabe o que está pedindo e que não faz nenhuma objeção, diretor Holland. — Tenho muitas objeções, mas parece que ele venceu todas elas... Oh, desculpe-me, doutor, este é Alex Conklin, É dos nossos e amigo íntimo de Panov. — O que acha, Sr. Conklin? — perguntou Walsh, retribuindo o cumprimento do ex-agente. — Eu abomino o que ele está fazendo — o que ele quer fazer —, mas ele garantiu que faz sentido. Se faz sentido, é direito para ele e eu compreendo sua decisão. Se não faz sentido, eu mesmo o tiro daqui, com um pé a menos e tudo o mais. Isso faz sentido, doutor? E qual é o risco? — Com drogas há sempre um risco, especialmente em termos de equilíbrio químico, e ele sabe. Por isso ele quer uma endovenosa constante que prolonga o sofrimento psicológico, mas reduz em parte o risco de dano potencial. — Em parte? — exclamou Alex. — Estou sendo franco. Ele também. — Resumindo, doutor — disse Holland. — Se alguma coisa der errado, dois ou três meses de terapia, não permanente. — E o sentido? — insistiu Conklin. — Faz algum sentido? — Sim, faz — respondeu Walsh. — Os fatos são recentes e o dominam completamente. Está conscientemente obcecado, o que significa que seu subconsciente está ao nosso alcance. As lembranças que ele não pode alcançar estão muito próximas ainda... Vim até aqui por cortesia. Ele insistiu para que começássemos e pelo que me contou, eu faria o mesmo. Nós todos faríamos. — Qual o nível de segurança? — perguntou Alex. — A enfermeira vai ficar fora da sala. Será apenas um gravador a pilha e eu... e um dos senhores, ou ambos. — O médico voltou-se para a porta e depois olhou para trás. — Mando chamá-los quando chegar a hora — acrescentou, desaparecendo no consultório. Conklin e Peter Holland entreolharam-se. Começou o segundo período de espera. Para espanto dos dois, em menos de dez minutos uma enfermeira entrou na sala e pediu que a
acompanhassem. Passaram por um labirinto de paredes brancas e anti-sépticas com painéis embutidos e maçanetas de vidro. Viram apenas outro ser humano no caminho, um homem com avental branco e máscara cirúrgica que saiu de uma das portas embutidas. Seus olhos penetrantes e intensos, acusadores mesmo, pareciam dizer que Conklin e Holland eram alienígenas de outro mundo sem autoridade para estar na Estéril Cinco. A enfermeira abriu uma porta com uma luz vermelha piscando acima do batente. Ela levou um dedo aos lábios, ordenando silêncio. Holland e Conklin entraram numa sala escura e viram uma cortina branca refletindo um pequeno círculo de luz intensa, atrás da qual devia haver uma cama ou uma mesa de exames. Ouviram o Dr. Walsh dizer em voz baixa e calma: — Está voltando no tempo, doutor, não muito, um ou dois dias, quando começou a sentir a dor no braço... seu braço, doutor. Por que estão machucando seu braço? Você estava na casa de uma fazenda pequena e via o campo pela janela, então eles vendaram seus olhos e começaram a machucar seu braço. Seu braço, doutor. De repente, um facho de luz verde refletiu-se no teto. A cortina foi aberta eletronicamente, revelando a cama, o paciente e o médico. Walsh afastou a mão de um botão ao lado da cama e olhou para eles, fazendo um gesto lento, como quem diz, não há ninguém mais aqui. Confirmado? Os dois homens, como que hipnotizados, depois chocados com a expressão de dor no rosto pálido de Panov e as lágrimas que desciam dos seus olhos abertos, confirmaram com um gesto. Então viram as tiras que o prendiam à cama, evidentemente por ordem do próprio Mo. — O braço, doutor. Temos de começar com o processo de agressão física, não é mesmo? Porque sabemos seus resultados, doutor, certo? Leva a outro processo de agressão que você não pode permitir. Precisa parar a progressão. O grito estridente foi um brado prolongado de desafio e de horror. — Não, não! Não vou contar nada! Eu o matei uma vez, não vou matá-lo novamente. Afastemse de miiiiiim...! Alex desmoronou no chão. Peter Holland, o almirante de ombros largos, veterano das mais negras operações no Extremo Oriente, ajudou-o a se levantar e delicadamente o levou até a enfermeira na outra sala. — Leve-o para longe daqui, por favor. — Sim, senhor. — Peter — disse Alex tossindo, tentando ficar de pé e caindo outra vez por falta de apoio do pé artificial. — Desculpe, eu sinto muito! — Desculpar o quê? — perguntou Holland em voz baixa. — Eu devia assistir, mas não posso!
— Eu compreendo. Está perto demais. Em seu lugar acho que eu também não poderia. — Não, você não compreende! Mo disse que ele matou David, mas é claro que não matou. Mas eu ia matá-lo, eu queria realmente matá-lo! E agora fiz outra vez, eu o mandei para Paris... Não foi Mo, fui eu! — Encoste-o na parede, senhorita. Deixe que ele escorregue para o chão e pode ir. — Sim, senhor! A enfermeira obedeceu e saiu apressadamente, deixando Holland e Alex sozinhos no labirinto branco. — Agora escute, agente de campo — murmurou o diretor grisalho da CIA, ajoelhando na frente de Conklin. — Esta droga de carrossel de culpa tem de parar, do contrário, ninguém vai ser útil para ninguém. Não ligo a mínima para o que você e Panov fizeram trinta anos atrás, ou cinco anos atrás, ou agora! Somos pessoas razoavelmente inteligentes e fizemos o que fizemos porque pensamos que era a coisa certa na ocasião. Quer saber de uma coisa, Santo Alex? Sim, eu sei que o chamam assim. Nós cometemos erros. Muito inconveniente, certo? Talvez não sejamos tão brilhantes, afinal. Talvez Panov não seja o maior não-sei-o-quê comportamental, talvez você não seja o mais astuto filho da mãe no campo, o que foi canonizado, e talvez eu não seja o superestrategista atrás das linhas, que dizem que sou. E daí? Pegamos nossas malas e vamos para onde devemos ir. — Ora, pelo amor de Deus, cale a bocal — gritou Conklin, procurando levantar-se apoiando-se na parede. — Silêncio! — Merda! A última coisa de que preciso é um sermão. Se tivesse os dois pés lhe dava uma surra. — Agora partimos para a força bruta? — Eu era faixa-preta. Primeira classe, almirante. — Puxa! Nossa! Eu nem sei lutar! Seus olhos se encontraram e Alex foi o primeiro a rir baixinho. — Você é demais, Peter. Mensagem recebida. Quer me ajudar? Vou para a sala de espera. Vamos, me dê sua mão. — Uma ova que dou — disse Holland, levantando-se. — Arranje-se sozinho. Alguém me disse que o santo andou duzentos quilômetros de território inimigo, atravessando rios e regatos e a selva c chegou ao acampamento Foxtrot perguntando se alguém tinha uma garrafa de bebida. — É, mas aquilo foi diferente. Eu era muito mais moço e tinha os dois pés. — Pois finja que tem dois agora, Santo Alex — Holland piscou o olho. — Vou voltar para lá.
Um de nós precisa estar presente. — Filho da mãe! Conklin ficou sentado na sala de espera uma hora e 47 minutos. O pé que ele não tinha nunca latejava, mas estava latejando agora. Conklin não sabia o significado dessa sensação impossível, mas não podia ignorar a pulsação que subia pela perna. No mínimo era algo para pensar e ele pensou com saudades nos dias em que era mais jovem, quando tinha os dois pés, e antes disso. Oh, como ele queria mudar o mundo! E como sentia-se tão certo no destino que o obrigou a ser o mais jovem orador de turma na história do seu ginásio, o mais jovem calouro aceito em Georgetown, uma luz cintilante, muito cintilante, que brilhava no fim do túnel acadêmico. Seu declínio começou quando alguém em algum lugar descobriu que seu verdadeiro nome não era Alexander Conklin, mas Aleksei Nikolae Konsolikov. Aquele homem, agora sem rosto, fez uma pergunta casual a Conklin e a resposta mudou sua vida. — Por acaso você fala russo? — É claro — ele respondeu, achando absurdo o visitante pensar que ele não falava. — Como deve saber, meus pais eram imigrantes. Fui criado não só num lar russo, mas num bairro russo — pelo menos nos meus primeiros anos. Não se podia comprar um pão no ovoshchnoi sem falar russo. E na escola paroquial, as freiras e os padres mais velhos insistiam em falar sua língua natal... Tenho certeza de que isso contribuiu para que eu abandonasse a religião. — Nos seus primeiros anos, não foi o que disse? — Sim. — O que mudou? — Tenho certeza de que está em alguma parte do seu relatório do governo e dificilmente vai satisfazer o infame senador McCarthy. Com as palavras, o rosto também voltou à lembrança de Alex. Era um rosto de meia-idade que de repente ficou inexpressivo, com os olhos embaçados pela fúria. — Eu lhe garanto, Sr. Conklin, que não tenho nada a ver com o senador. O senhor o chama de infame, eu tenho outros adjetivos que não são pertinentes a este assunto... O que mudou? — Bem tarde meu pai tornou-se o que ele era na Rússia, um negociante bem-sucedido, um capitalista. Da última vez que contei, tinha sete supermercados nos melhores shoppings. Chamam-se Conklin’s Corners. Meu pai está com mais de oitenta anos agora e embora eu o ame muito, sinto dizer que é um ardente defensor do senador. Eu me limito a levar em consideração sua idade, sua luta, o ódio que ele tem pelos soviéticos, e evito o assunto. — O senhor é muito inteligente e muito diplomata. — Inteligente e diplomata — concordou Alex.
— Já fiz compras em uns dois Conklin’s Corners Um pouco careiros. — Oh, sim. — De onde veio o nome Conklin? — Meu pai. Minha mãe acha que ele o viu num anúncio de óleo para motores, uns quatro ou cinco anos antes de virem para cá. Naturalmente o Konsolikov tinha de desaparecer. Como disse meu muito intolerante pai certa vez, “Só os judeus podem fazer fortuna aqui com nomes russos”. Esse assunto eu também evito. — Muito diplomático. — Não é difícil. Ele tem muita coisa boa para contrabalançar. — Mesmo que não tivesse, tenho certeza de que o senhor poderia ser convincente na sua diplomacia, no modo como sabe disfarçar seus sentimentos. — Por que acha isso tão importante? — Porque é, Sr. Conklin. Eu represento uma agência do governo que está muito interessada na sua pessoa, uma agência na qual seu futuro será tão ilimitado quanto o de qualquer outro recruta em potencial que tenho entrevistado nos últimos dez anos... Essa conversa fora há quase trinta anos, pensou Alex, mais uma vez olhando para a porta da sala de espera que dava para a parte interna de Estéril Cinco. E foram trinta anos loucos. Num esforço que era um desafio ao estresse, à procura de uma expansão irrealista, seu pai se excedeu, comprometendo-se a investir enormes somas de dinheiro que existiam só na sua imaginação e nas mentes dos banqueiros avaros. Perdeu seis dos supermercados, ficando com o menor e menos lucrativo que só lhe permitia um nível de vida inaceitável. Assim, sofreu um derrame fatal e morreu quando Alex apenas começava sua vida de homem adulto. Berlim — Oriental e Ocidental. Moscou, Leningrado, Tashkent e Kamchatka. Viena, Paris, Lisboa e Istambul. Depois a volta, ao redor do mundo, postos em Tóquio, Hong Kong, Seul, Camboja, Laos e finalmente Saigon e a tragédia que foi o Vietnã. Durante todos esses anos, com sua facilidade para línguas e a prática nascida da sobrevivência, tornou-se o homem central da Agência nas operações clandestinas, o principal observador avançado e quase sempre o estrategista no local das atividades secretas. Então, certa manhã, com a neblina pairando sobre o Delta do Mekong, uma mina terrestre esfacelou sua vida e seu pé. Pouco sobrou para um agente de campo cujo trabalho dependia da mobilidade. O resto foi uma rápida descida e a saída do campo. O excesso de bebida ele aceitava e explicava como herança genética. O inverno russo da depressão estendeu-se pela primavera, o verão e o outono. Àquela sombra de homem, trêmula e esquelética, pronta para o fim total, foi oferecida uma segunda oportunidade. David Webb — Jason Bourne — voltou a entrar em sua vida. A porta se abriu, interrompendo as dolorosas lembranças, e Peter Holland entrou devagar na sala de espera. Estava pálido e abatido, com olhos esgazeados, e segurava na mão esquerda duas pequenas caixas de plástico, cada uma com um teipe.
— Enquanto eu viver — disse Peter com voz sumida e distante, quase inaudível. — Espero nunca mais ter de passar por isto, nunca mais ver nada igual. — Como está Mo? — Pensei que não ia resistir... Pensei que ia se matar. Uma vez ou outra Walsh parava. Vou dizer uma coisa, ele estava morrendo de medo. — Por que ele não parou? — Eu perguntei. Ele disse que Panov, além de dar instruções explícitas oralmente, escreveu tudo e assinou, esperando que fossem cumpridas ao pé da letra. Talvez exista um código tácito de ética entre os médicos, eu não sei, mas sei que Walsh o ligou a uni ECG do qual não tirava os olhos. Eu tampouco. Era mais fácil do que olhar para Mo. Vamos dar o fora daqui. — Espere um pouco. E Panov? — Ele não está pronto para a festa de boas-vindas. Vai ficar aqui uns dois dias em observação. Walsh ficou de me telefonar de manhã. — Eu gostaria de vê-lo. Eu quero vê-lo. — Não há nada para ver, só um farrapo humano. Acredite, você não quer e ele não quer que o vejam. Vamos embora. — Para onde? — Seu apartamento em Vienna — nosso apartamento em Vienna. Suponho que você tem um cassete. — Tenho tudo menos um foguete espacial, mas a maioria das coisas eu não sei usar. — Quero parar e comprar uma garrafa de uísque. — Tem tudo que quiser no apartamento. — Isso não o incomoda? — perguntou Holland, olhando atentamente para Alex. — Faria diferença se incomodasse? — Nem um pouco... Se bem me lembro, você tem um quarto extra, não tem? — Tenho. — Ótimo. Talvez passemos grande parte da noite ouvindo isto. — O diretor levantou a mão com os cassetes. — Nas duas primeiras vezes não vai significar nada. Vamos ouvir só a dor, não a informação.
Passava um pouco das cinco da tarde quando deixaram a propriedade conhecida dentro da Agência como Estéril Cinco. Os dias começavam a ficar mais curtos, no meio de setembro, e o sol poente anunciava a mudança com uma intensidade de cor que mostrava a morte de uma estação e o nascimento de outra. — A luz é sempre mais clara quando estamos para morrer — disse Conklin, recostando-se no banco da limusine ao lado de Holland e olhando pela janela. — Acho essa observação não só imprópria como possivelmente imatura. Não garanto a segunda parte enquanto não souber de quem é a frase. Quem disse isso? — Jesus, eu acho. — As Escrituras nunca foram revistas. Muitas fogueiras, nenhuma confirmação visual. Alex riu baixinho e pensativamente. — Você leu, por acaso? Quero dizer, a Bíblia? — Quase inteira — quase todas as versões. — Porque foi obrigado? — Não, nada disso. Meus pais eram tão agnósticos quanto pode ser alguém sem ser qualificado de pária sem Deus. — Eles não faziam comentários a respeito do tema e nos mandavam, eu e minhas duas irmãs, num domingo ao culto protestante, no outro à missa católica, depois a uma sinagoga. Nunca regularmente, mas acho que queriam que tivéssemos noção do panorama completo. É isso que faz a criança ter vontade de ler. Curiosidade natural envolta em misticismo. — Irresistível — concordou Conklin. — Eu perdi minha fé e agora, depois de proclamar minha independência durante anos, começo a perguntar se não perdi algo importante. — Como o quê? — Consolo, Peter. Eu não tenho consolo. — Para quê? — Não sei, coisas que não posso controlar, talvez. — Quer dizer que não tem o consolo de uma desculpa, uma desculpa metafísica. Perdoe, Alex, mas aqui pensamos diferente. Somos responsáveis pelo que fazemos, e nenhuma absolvição no confessionário pode mudar isso. Conklin arregalou os olhos para Holland. — Muito obrigado — disse ele.
— Por quê? — Por falar como eu, mesmo usando palavras diferentes... Voltei de Hong Kong há cinco anos com a Bandeira da Responsabilidade na minha lança. — Agora não entendi. — Esqueça. Estou voltando para trás... “Cuidado com as armadilhas da presunção eclesiástica e do pensamento introvertido...” — Quem diabo disse isso? — Savonarola ou Salvador Dali, não me lembro. — Ora, pelo amor de Deus, deixe de besteira! — disse Holland, rindo. — Por quê? É a primeira risada descontraída que damos. E suas duas irmãs? O que aconteceu com elas? — Essa é a piada melhor — respondeu Peter com um sorriso zombeteiro. — Uma é freira em Nova Delhi, a outra é presidente da sua própria firma de relações públicas, em Nova York e usa o ídiche melhor do que muitos dos colegas de profissão. Há uns dois anos ela me contou que não a chamam mais de shiksa. Ela adora a vida que leva, tal como a outra que está na Índia. — Apesar disso, você escolheu a carreira militar. — Não apesar disso, Alex... E foi escolhida por mim. Eu era um jovem muito revoltado que acreditava piamente que este país estava indo para o brejo. Minha família era privilegiada — dinheiro, influência e escolas caras, o que me garantia — a mim, não ao garoto negro das ruas de Filadélfia ou do Harlem — entrada automática em Anápolis. Eu simplesmente achei que devia fazer por merecer de certo modo esse privilégio. Tinha de mostrar que gente como eu fazia uso das vantagens não para evitar responsabilidades, mas para aumentar o alcance das mesmas. — Renascimento da aristocracia — disse Conklin. — Noblesse oblige — a nobreza impõe obrigações. — Não está sendo justo — protestou Holland. — Sim, estou, no sentido real. Aristo, do grego, significa o “melhor”, e kratia quer dizer “governar”. Na Atenas antiga, esses jovens conduziam exércitos, com as espadas erguidas na frente do corpo, não atrás, para provar aos seus homens que estavam dispostos ao sacrifício ao lado dos menos importantes deles, pois estavam sob seu comando, o comando dos melhores. Peter Holland reclinou a cabeça no encosto forrado de veludo e fechou os olhos. Depois, abriuos e disse: — Talvez isso fosse uma parte também, eu não sei — não tenho certeza. Estávamos pedindo
demais... para quê? Pork Chop Hill? Terra inútil e desconhecida no Mekong? Por quê? Pelo amor de Deus, por quê? Homens feridos, com a barriga e o peito esfacelados por um inimigo que estava a menos de um metro deles, por um “kong” que conhecia as selvas que eles não conheciam? Que tipo de guerra era essa?... Se caras como eu não chegassem e dissessem para os garotos, “Vejam, aqui estou, estou com vocês”, como diabo você pensa que teríamos agüentado o tempo que agüentamos? Haveria revoltas maciças, e talvez fosse melhor. Aqueles garotos eram o que muita gente chama de negro, carcamano e os fracassados que não tinham passado do terceiro ano, primário. Os privilegiados eram isentos — para não se sujar — ou designados para postos que nem chegavam perto do combate. Os outros não. E se minha presença ao lado deles — este filho da mãe privilegiado — significou alguma coisa foi a melhor coisa que já fiz na vida. — Holland calou-se e fechou os olhos. — Desculpe, Peter. Eu não queria fazê-lo voltar a caminhos passados, não queria mesmo. Na verdade, comecei com a minha culpa, não com a sua... É uma loucura como tudo converge e alimenta-se de si mesmo. Como se chama isso? O carrossel da culpa. Onde é que ele pára? — Agora — disse Holland, empertigando-se no banco. Apanhou o telefone, apertou dois números e disse: — Leve-nos a Vienna, por favor. Depois, vá a um restaurante chinês e compre a melhor comida que encontrar... Na verdade, prefiro costeletas e galinha com limão. Holland acertou em parte. A primeira vez que ouviram os teipes de Panov sob os efeitos do soro foi uma verdadeira agonia, a voz terrível, o conteúdo emocional obscurecendo a informação, especialmente para quem conhecia o psiquiatra. Entretanto, na segunda vez, a concentração foi imediata, criada sem dúvida pela própria dor que podiam ouvir. Não tinham tempo para sentimentos pessoais. De repente, a informação era tudo. Os dois homens começaram a tomar notas, muitas vezes interrompendo o teipe e voltando atrás para maior clareza e compreensão. A terceira Vez serviu para acentuar os pontos mais importantes, e no fim da quarta audição, Alex e Peter Holland tinham, cada um, de trinta a quarenta páginas escritas. Passaram uma hora em silêncio, analisando suas notas. — Está pronto? — perguntou o diretor da CIA, no sofá, com o lápis na mão. — Estou — disse Conklin, sentado à mesa dos equipamentos eletrônicos, o cassete ao lado da sua mão. — Alguma observação inicial? — Sim — disse Alex. — Noventa e nove ponto quarenta e quatro por cento do que ouvimos não nos diz nada, exceto que esse Walsh é um explorador fantástico. Ele saltou de um lado para o outro, identificando pistas mais depressa do que eu, e eu não era exatamente um amador em interrogatórios. — Concordo — disse Holland. — Eu também não era muito mau, especialmente com um instrumento sem corte. Walsh é bom. — Melhor do que isso, mas não é o que nos interessa. O que interessa é o que ele conseguiu tirar de Mo — aqui também com um “mas”. Não se trata do que Panov revelou, porque devemos supor que tenha revelado tudo que lhe contei. Trata-se, isso sim, do que ele disse que ouviu. — Conklin procurou no seu bloco de notas. — Aqui está um exemplo. “A família vai ficar satisfeita... nosso supremo vai nos
dar sua bênção”. Ele está repetindo palavras de outra pessoa, não as suas. Ora, Mo não conhece a gíria dos criminosos, pelo menos não a ponto de fazer automaticamente a conexão. Mas a conexão está aí. Tome a palavra “supremo”. “Supremo” — capo supremo, que nada tem a ver com um ente celestial. De repente, “a família” está a anos-luz de Norman Rockwell, e “bênção”, que pode significar recompensa ou bônus. — Máfia — disse Peter, com olhar firme e claro, apesar dos vários drinques obviamente já absorvidos por seu organismo. — Eu não tinha pensado nisso, mas marquei a frase instintivamente... Certo, aqui está uma coisa dentro desse contexto, digo isso porque são também frases que não pertencem a Panov. — Holland folheou o bloco de notas e parou numa página. — Aqui. “Nova York quer tudo”. — Virou mais algumas páginas. — Aqui também, “Aquele Wall Street é uma coisa” — Mais uma vez o diretor procurou no bloco de notas. — E esta aqui, “bichas louras” — o resto está obscuro. — Não notei isso. Ouvi, mas não me pareceu significar alguma coisa. — E por que iria significar, Sr. Aleksei Konsolikov? — Holland sorriu. — Sob esse exterior anglo-saxão, educação e tudo o mais, bate o coração de um russo. Você não é vulnerável ao que alguns de nós têm de suportar. — O quê? — Eu sou um WASP3, e “bichas louras” é um dos apelidos pejorativos usados, devo admitir, por outras minorias oprimidas. Pense nisso. Armbruster, Swayne, Atkinson, Burton, Teagarten — todos “louros”. E Wall Street, algumas firmas naquele bastão financeiro eram WASP, pelo menos originalmente. — Medusa — disse Alex balançando a cabeça afirmativamente — Medusa e Máfia... Santo Cristo. — Temos um número de telefone! — Peter inclinou-se para a frente no sofá. — Está no livrocaixa que Bourne tirou da casa de Swayne. — Eu já tentei, lembra-se? É uma secretária eletrônica, nada mais. — Pois é o bastante. Podemos localizá-la. — Para quê? As mensagens são recebidas por controle remoto e se ele ou ela tem algum miolo, faz isso de um telefone público. Além de ser impossível localizar o receptor da mensagem, ele pode apagar todas as outras da secretária. — Você não é muito sintonizado em alta tecnologia, certo, agente de campo? — Vou dizer o que acontece — disse Conklin. — Eu comprei um VCR para assistir filmes antigos e não consegui desligar o maldito relógio piscante. Telefonei para o vendedor e ele disse, “Leia as instruções na parte interna do painel”. Não consigo encontrar o interior do painel.
— Então deixe que eu explique o que se pode fazer com uma secretária eletrônica. Podemos enguiçar o aparelho de longe. — Puxa vida, Sandy, o que vai dizer agora para a órfã Annie? Que diabo adianta isso? Além de matar a fonte? — Está esquecendo que sabemos o local pelo número do telefone. — É? — Alguém tem de aparecer para consertar o aparelho. — É. — A gente pega o cara e descobre quem o mandou lá. — Quer saber, Peter, você tem possibilidades. Para um novato, você entende das coisas, sem contar sua posição ridiculamente não merecida. — Desculpe, mas não posso lhe oferecer um drinque. Bryce Ogilvie, da firma de advocacia Ogilvie, Spofford, Crawford e Cohen estava ditando uma resposta extremamente complexa para a divisão antitruste do Departamento de Justiça quando seu telefone muito particular tocou. O telefone só tocava na sua mesa. Ele apanhou o fone, apertou um botão verde e falou rapidamente. — Fique na linha — ordenou, olhando para a secretária. — Quer me dar licença, por favor? — Certamente, senhor. — A secretária levantou-se, atravessou o escritório grande e imponente e desapareceu na outra sala. — Sim, o que é? — perguntou Ogilvie, no telefone. — O aparelho não está funcionando — disse a voz na sacrossanta linha. — O que aconteceu? — Não sei. Só dá sinal de linha ocupada. — É o melhor equipamento que existe. Talvez alguém estivesse telefonando quando você ligou. — Estou tentando há duas horas. Tem algum defeito. Os melhores aparelhos podem enguiçar. — Tudo bem. Mande alguém verificar. Use um dos negros. — É claro. Nenhum homem branco iria lá.
Capítulo25 PASSAVA UM POUCO da meia-noite quando Bourne desceu do metrô em Argenteuil. Seu dia estava dividido em segmentos, com horas para seus planos e para a procura de Marie. Foi de um bairro a outro, procurando em todos os cafés, todas as lojas, todos os hotéis grandes e pequenos que faziam parte do pesadelo da fuga há 13 anos. Mais de uma vez conteve a respiração ao ver uma mulher, ao longe ou num café — de costas, um perfil rapidamente percebido, e por duas vezes cabelos vermelhoescuros, traços que a distância ou na luz suave de um café podiam pertencer à sua mulher. Nenhuma delas era Marie, mas Jason procurou entender a própria angústia para poder controlá-la. Essas foram as partes mais impossíveis do dia, o resto foram apenas dificuldades e frustrações. Alex! Onde diabo estava Conklin? Não podia encontrá-lo na Virgínia! Devido à diferença de horário, esperava que Conklin se encarregasse dos detalhes, começando pela rápida remessa de fundos. O dia útil no leste dos Estados Unidos começava às quatro horas de Paris e o dia útil em Paris terminava às cinco, ou antes, hora de Paris. Isso lhe dava uma hora, ou menos, para transferir um milhão de dólares americanos, em nome do Sr. Simon, para o banco escolhido em Paris. Bernardine ajudou muito. Ajudou muito era dizer pouco. Graças a ele a operação foi possível. — Há um banco da rue de Grenelle, usado freqüentemente pelo Deuxième. Podem resolver os casos de horário, a falta de uma ou duas assinaturas, mas não dão nada por nada e não confiam em ninguém, especialmente em alguém ligado ao nosso benevolente governo socialista. — Está dizendo que, independente dos teletipos, se o dinheiro não estiver no banco, nada feito? — Nem um sou. O próprio presidente pode telefonar, que eles o mandam apanhar o dinheiro em Moscou, onde acham que ele devia estar. — Como não consigo falar com Alex, ignorei o banco em Boston e falei com nosso homem nas Ilhas Caimã, onde Marie depositou a maior parte do dinheiro. Ela é canadense e o banco também. Estão esperando instruções. — Vou dar um telefonema. Você está no Pont-Royal? — Não, eu telefono depois. — Onde você está? — Acho que podemos dizer que sou uma borboleta ansiosa e confusa voando de um lugar vagamente lembrado para outro. — Está procurando sua mulher. — Sim. Mas não é essa a questão, certo?
— Desculpe-me, mas espero que não a encontre. — Obrigado, telefono dentro de vinte minutos. Bourne foi a mais dois lugares, o Trocadéro e o Palais de Chaillot. No passado, haviam atirado nele em um dos terraços do Trocadéro. Um tiroteio e homens correndo nos infindáveis degraus de pedra, escondidos intermitentemente pelas estátuas imensas e douradas e pelo véu líquido das fontes, desaparecendo nos jardins formais, desaparecendo, fora de alcance. O que tinha acontecido? Por que lembrava do Trocadéro?... Mas, Marie estava lá — em algum lugar. Onde, naquele complexo enorme? Onde... Um terraço! Ela estava num terraço. Perto de uma estátua — qual estátua?... Descartes? Racine? Tayllerand? A primeira em sua lembrança foi a de Descartes. Ele a encontraria. Encontrou, mas nada de Marie. Consultou o relógio. Há quase 45 minutos falara com Bernardine. Como os homens na tela da sua mente, ele desceu correndo os degraus de pedra, à procura de um telefone. — Vá ao Banque Normandie e peça para falar com monsieur Tabouri. Ele sabe que um monsieur Simon quer transferir mais de sete milhões de francos das Ilhas Caimã, por meio de autorização verbal transmitida ao seu banqueiro nas ilhas. Ele terá prazer em deixá-lo usar seu telefone, mas, acredite, vai cobrar o telefonema. — Obrigado, François. — Onde você está agora? — No Trocadéro. É loucura. Sinto as coisas mais estranhas, como vibrações, mas ela não está aqui. Provavelmente são as coisas que não consigo lembrar. Diabo, acho que levei um tiro aqui, mas simplesmente não sei. — Vá ao banco. Bourne foi e 35 minutos depois do seu telefonema para as Ilhas Caimã, monsieur Tabouri, o banqueiro com sorriso permanente e pele morena, confirmou a chegada do dinheiro. Jason pediu 750 mil francos nas maiores notas possíveis. Foram entregues e o banqueiro, sorridente e obsequioso, o levou confidencialmente para longe da mesa — uma bobagem, pois não havia mais ninguém na sala — e falou em voz baixa, perto da janela. — Em Beirute há uns negócios imobiliários magníficos, acredite, eu sei. Conheço tudo sobre o Oriente Médio e aquela guerra estúpida não vai durar muito tempo mais. Mon Dieu, não vai sobrar ninguém! O Líbano vai se erguer mais uma vez como a Paris do Mediterrâneo. Terras por uma fração do valor real, hotéis por preços ridículos! — Parece interessante. Eu falo com o senhor. Saiu apressadamente do Banque Normandie, como quem foge da peste. Voltou ao Pont-Royal e mais uma vez tentou falar com Alex Conklin, nos Estados Unidos. Era quase uma hora da tarde em Vienna, Virgínia, e só ouviu a voz da secretária eletrônica de Alex, pedindo para deixar seu recado. Por diversas razões, Jason não o fez.
Agora estava em Argenteuil, subindo a escada do metrô. Ia seguir cautelosamente, passando pelas ruas mais feias do bairro, até as proximidades do Coeur du Soldat. Suas instruções eram claras. Não devia ter a mesma aparência da noite anterior, nada de perna dura, nada de roupas surradas, nada que o fizesse ser reconhecido. Devia ser um simples trabalhador braçal, chegar até o portão da velha refinaria c ficar fumando, encostado na parede. Isso devia ser feito entre meia-noite e uma hora da manhã. Nem antes e nem depois. Jason perguntou aos mensageiros de Santos — depois de dar a eles algumas centenas de francos pelo trabalho — o porquê dessas precauções e da hora. O mais falante dos dois respondeu, “Santos nunca sai do Coeur du Soldat”. — Ontem à noite ele saiu. — Só por alguns minutos — disse o homem. — Compreendo. — Bourne fez um gesto afirmativo, mas não compreendia. Santos seria uma espécie de prisioneiro do Chacal, confinado ao sujo café dia e noite? Era uma idéia fascinante, especialmente levando-se em conta o tamanho e a força bruta do homem, aliados a uma inteligência muito acima da média. Eram 0:37h quando Jason, de jeans, boné e um suéter escuro e muito surrado chegou aos portões da velha fábrica. Tirou do bolso um maço de Gauloise e encostou na parede, acendeu o cigarro com um fósforo, mantendo a chama acesa mais tempo do que necessário. Voltou a pensar no enigmático Santos, a ligação principal do exército do Chacal, o satélite mais confiável da órbita de Carlos, um homem que falava francês da Sorbonne, embora fosse latino-americano. Venezuelano, se os instintos de Bourne não o enganavam. Fascinante. E Santos queria vê-lo “com paz no coração”. Bravo, amigo, pensou Jason. Santos havia se comunicado com um embaixador apavorado, em Londres, e fizera uma pergunta tão explosiva que fazia a votação interna de um partido político parecer uma questão neutra e nãopartidária. Atkinson não tinha outra escolha senão afirmar enfaticamente, em pânico, que quaisquer instruções da Mulher Serpente deviam ser cumpridas. O poder da Mulher Serpente era a única proteção do embaixador, seu único refúgio. Por isso, Santos decidira ceder um pouco. Sua decisão baseava-se no intelecto, não na lealdade ou na obrigação. O mensageiro queria se arrastar para fora do esgoto em que vivia e com a perspectiva de três milhões de francos e a escolha de um número enorme de lugares no mundo para recomeçar a vida, a razão mandava considerar a oferta. Havia alternativas quando as oportunidades se apresentavam. Uma acabara de ser apresentada a Santos, o vassalo do Chacal, cuja fidelidade ao seu senhor talvez tivesse chegado ao ponto de asfixia. Essa proteção instintiva fez com que Bourne incluísse no seu pedido — com calma e firmeza, enfatizando o subentendido — frases como você pode viajar, desaparecer... um homem rico, livre de preocupações e da sufocante escravidão. As palavras-chave eram “livre” e “desaparecer”, e os olhos de Santos haviam reagido a elas. Ele estava pronto para morder a isca de três milhões de francos, e Bourne preparado para cortar a linha e deixar que ele nadasse para o fundo, livremente. Jason consultou o relógio. Quinze minutos. Sem dúvida, os homens de Santos estavam verificando as ruas próximas, numa última inspeção antes do aparecimento do sacerdote dos
mensageiros. Bourne pensou em Marie, no que sentira no Trocadéro, e lembrou-se das palavras do velho Fontaine quando juntos vigiavam os caminhos do Hotel Tranqüilidade no quarto de depósito do hotel, à espera de Carlos. Ele está perto, eu sinto. Como a aproximação do trovão distante. Jason tivera essa sensação no Trocadéro, diferente, é claro — muito diferente. Chega! Santos! O Chacal! Seu relógio marcava uma hora e os dois mensageiros do Pont-Royal saíram do beco e atravessaram a rua na direção dos portões da velha refinaria. — Santos quer vê-lo agora — disse o mais desembaraçado. — Mas Santos não está aqui. — Deve vir conosco. Ele não sai do Coeur du Soldat. — Por que será que não estou gostando disso? — Não tem razão para não gostar. Santos está com paz no coração. — E o que me diz da sua faca? — Ele não tem faca, nenhuma arma. Nunca anda armado. — É bom saber disso. Vamos. — Santos não precisa de armas — acrescentou o mensageiro, ameaçadoramente. Entraram no beco, passaram pela entrada com o luminoso e por uma pequena passagem entre os prédios. Em fila indiana, Jason entre os dois homens, dirigiram-se para os fundos do café, chegando a uma das últimas coisas que Jason esperava ver naquele lugar da cidade: um jardim inglês. Um pedaço de terra de uns dez metros de comprimento, por cinco de largura com treliças por onde subiam vários tipos de trepadeiras floridas, uma barragem de cor sob o luar da França. — É uma beleza — disse Jason. — Deve exigir muitos cuidados. — Ah, a paixão de Santos! Ninguém compreende, mas ninguém toca nas flores. Fascinante. Conduziram Bourne a um pequeno elevador externo com a estrutura de aço embutida no muro de pedra. Não havia nenhum outro meio de acesso ao prédio naquele lado. Entraram no elevador, a porta de ferro se fechou e um dos homens apertou um botão e disse: — Estamos aqui, Santos. Camélia. Faça subir. — Camélia? — perguntou Jason. — Ele sabe que está tudo bem. Caso contrário, meu amigo teria dito “lírio” ou “rosa”.
— E então o que aconteceria? — É melhor nem pensar. Eu não quero pensar. — É claro. Naturalmente. O elevador parou com um estranho tranco, e o mensageiro apoiou todo o peso do corpo na porta para abri-la. Bourne foi conduzido à sala que já conhecia, decorada com bom gosto, móveis caros, as estantes de livros e o único abajur, que iluminava Santos na sua poltrona enorme. — Podem ir, meus amigos — disse o homenzarrão. — Apanhem o dinheiro com o embuste e digam a ele para dar cinqüenta francos para René e cinqüenta para o americano que se diz chamar Ralph e pôr os dois para fora daqui. Eles estão mijando nos cantos... Digam que o dinheiro é do amigo da noite passada, que esqueceu deles. — Oh, merda! — explodiu Jason. — Você esqueceu, não foi? — Santos sorriu. — Tinha outras coisas em que pensar. — Sim, senhor. Sim, Santos! — Os dois mensageiros, em vez de voltar ao quarto dos fundos e ao elevador, abriram uma porta na parede esquerda da sala e saíram. Bourne olhou atônito para a porta. — Há uma escada que vai dar na cozinha — disse Santos, respondendo à pergunta silenciosa de Bourne. — A porta só pode ser aberta deste lado, não do outro, a não ser por mim... Sente-se, monsieur Simon. É meu convidado. Como está a sua cabeça? — O galo desapareceu, obrigado. — Bourne sentou-se no enorme sofá, afundando nas almofadas. Não era uma posição de autoridade e não era para ser. — Disseram que você está com a paz no coração. — É um desejo enorme pelos três milhões, nascido na parte mais avara desse mesmo coração. — Então o telefonema para Londres foi satisfatório? — Ninguém podia programar o homem para aquela reação. Existe uma Mulher Serpente que inspira devoção e medo extraordinários em altos níveis — o que significa que essa serpente feminina é muito poderosa. — Foi o que tentei lhe dizer. — Aceito sua palavra. Agora vamos recapitular seu pedido, sua exigência, para dizer melhor... — Minhas restrições — interrompeu Jason. — Muito bem, suas restrições — concordou Santos. — Você e só você deve chegar até o melro,
certo? — Uma condição sine qua non. — Pergunto outra vez, por quê? — Para ser franco, você já sabe demais, mais do que meus clientes imaginam, mas afinal de contas, nenhum deles esteve a ponto de perder a vida no segundo andar de um café em Argenteuil. Não querem nada com você, nenhuma pista, e nessa área você é vulnerável. — Como? — Santos bateu com a mão fechada no braço da poltrona. — Um velho em Paris, com ficha criminal, que tentou avisar um membro da Assembléia de que ele ia ser assassinado. Foi ele quem mencionou o melro. Foi ele quem falou no Coeur du Soldat. Felizmente, nosso homem ouviu e passou a informação para meus clientes, mas isso não é tudo. Quantos outros velhos em Paris, nos seus delírios senis, podem mencionar o Coeur du Soldat — e você?... Não, você não pode ter nada a ver com meus clientes. — Nem mesmo por seu intermédio? — Eu desapareço, você não. Mas, para ser franco, acho que você devia pensar em desaparecer também... Aqui está, eu trouxe uma coisa. — Bourne tirou do bolso traseiro da calça um maço de francos preso com um elástico. Atirou o dinheiro para Santos que o apanhou no ar. — Duzentos mil francos por conta — fui autorizado a dar esse sinal. Para uma base de melhores esforços das duas partes. Você me dá a informação que preciso, eu a transmito para Londres e quer o melro aceite ou não a oferta dos meus clientes, você recebe o resto dos três milhões. — Mas você pode desaparecer antes disso, certo? — Mande me vigiar, como já está fazendo, mande me seguir até Londres e depois até aqui. Eu telefono dizendo os nomes das companhias aéreas que vou usar. O que pode ser mais justo? — Uma coisa pode ser mais justa, monsieur Simon — disse Santos, levantando o corpo imenso da cadeira e caminhando solenemente para uma mesa de jogo encostada na parede laqueada do apartamento. — Quer vir até aqui, por favor? Jason foi até a mesa e ficou atônito com o que viu. — Você faz a coisa completa, não é mesmo? — Procuro fazer... Oh, não culpe os porteiros do hotel, eles são todos seus. Meu nível é muito mais baixo. Prefiro camareiras e empregados subalternos. Não são tão exigentes e ninguém dá por sua falta se não aparecerem. Sobre a mesa estavam os três passaportes de Bourne, cortesia de Cactus, em Washington, além da arma e da faca tiradas dele na noite anterior.
— É muito convincente, mas isso não resolve nada. — Veremos — disse Santos. — Aceito seu dinheiro agora — por meus melhores esforços —, mas em vez de você voar para Londres, faça Londres voar para Paris. Amanhã de manhã. Quando ele chegar ao Pont-Royal você me telefona, vou dar meu telefone particular, é claro, e fazemos o jogo dos soviéticos, toma lá dá cá, como quando esperam no meio da ponte com um prisioneiro de cada lado. O dinheiro pela informação. — Você é louco, Santos. Meus clientes não se expõem assim. Acaba de perder o resto dos três milhões. — Por que não tenta? Eles podem contratar um testa-de-ferro, certo? Um turista inocente com um fundo falso na sua mala Louis Vuitton? Papéis não acionam os alarmes da alfândega. Tente! É o único jeito de obter a informação, monsieur. — Vou fazer o possível — disse Bourne. — Aqui está o número do meu telefone. — Santos apanhou um cartão com o número. — Telefone quando Londres chegar. Enquanto isso, pode estar certo, você vai ser vigiado. — Você é mesmo um cara legal, não é? — Eu o levo até o elevador. No quarto escuro, tomando chá, Marie ouvia os sons de Paris lá fora. Dormir não só era impossível, mas insuportável, uma perda de tempo quando cada minuto era importante. Marie havia tomado o primeiro vôo de Marselha para Paris e fora diretamente para o Meurice, na rue de Rivoli, o mesmo hotel onde havia esperado — há 13 anos — que um homem ouvisse a voz da razão ou perdesse a vida, destruindo, assim, grande parte da vida dela. Naquela ocasião pedira uma xícara de chá e ele voltou. Agora, pediu uma xícara de chá para o camareiro da noite, esperando, talvez, vagamente, que a repetição do ritual o trouxesse para ela outra vez. Oh, Deus, era ele! Não era ilusão, não era engano, era David! Naquela manhã, Marie saiu do hotel e caminhou, seguindo a lista feita no avião, indo de um lugar para o outro, sem nenhuma seqüência lógica, seguindo apenas a ordem em que ia se lembrando dos lugares — sua seqüência pessoal. Era uma lição aprendida com Jason Bourne há 13 anos: Quando em fuga ou caçando, analise sempre suas opções, mas lembre-se da primeira que lhe vem à mente. £ sempre a mais limpa e a melhor. Na maior parte das vezes será a escolhida.Assim, Marie havia seguido a lista, do cais do BateauMouche, no fim da avenue George V, ao banco na Madeleine... ao Trocadéro. Aí, caminhou pelos terraços, como num transe, procurando uma estátua que não conseguia lembrar, empurrada pelos grupos de turistas e seus guias. As imensas estátuas de repente pareciam todas iguais e Marie sentiu-se ofuscada pelo sol de fim de agosto. Ia sentar num banco de mármore, lembrando-se de outra norma de Bourne. O descanso é uma arma, quando viu lá em cima um homem de boné e suéter escuro com decote em V. Ele deu meia-volta e correu para os imponentes degraus de pedra que levavam à avenue George V. Marie conhecia aquele modo de correr, conhecia melhor do que ninguém! Quantas vezes o observara — freqüentemente escondida atrás das arquibancadas — enquanto ele corria na pista da
universidade, tentando se libertar das fúrias que o atormentavam. Era David! Marie correu atrás dele. “David! David, sou eu!... Jason!” Colidiu com um guia de turistas japoneses. O homem ficou furioso, ela ficou furiosa e abriu caminho entre os orientais, quase todos menores do que ela, mas mesmo podendo ver por cima de suas cabeças, perdeu David de vista. Seu marido desapareceu. Onde? Nos jardins? Na rua repleta de gente e de carros que atravessavam a ponte d’Iéna? Pelo amor de Deus, onde? — Jason! — gritou Marie a plenos pulmões. — Jason, volte! As pessoas olhavam para ela, algumas com simpatia pelos infelizes no amor, outras com desaprovação. Marie desceu os degraus infindáveis até a rua e passou um tempo enorme — quanto tempo? — à procura dele. Finalmente, exausta, tomou um táxi e voltou para o Meurice. Atordoada, entrou no quarto e atirou-se na cama, recusando dar vazão às lágrimas. Não era hora de chorar. Era hora de um breve descanso e de uma refeição. Precisava recuperar as energias, lição de Jason Bourne. Depois, de volta às ruas, continuaria a procura. Ali deitada, olhando para a parede, sentiu um aperto no peito, nos pulmões, talvez, acompanhado por uma sensação de alegria passiva. Assim como estava à procura de David, ele estava à procura dela. Seu marido não tinha fugido, Jason Bourne não estava fugindo. Nenhuma das partes do mesmo homem podia tê-la visto naquela manhã. Havia outra razão para aquela descida precipitada no Trocadéro, mas só havia uma razão para David estar lá. Ele também estava procurando as lembranças de Paris há 13 anos. Ele também sabia que em algum lugar daquelas lembranças a encontraria. Marie descansou pediu almoço no quarto e depois voltou às ruas. Agora, tomando o chá, mal podia esperar o nascer do dia. Outro dia de procura. — Bernardine! — Mon Dieu, são quatro horas da manhã, portanto suponho que queira dizer alguma coisa muito importante para este velho de 70 anos. — Estou com um problema. — Acho que você tem muitos problemas, mas talvez esse seja maior. O que é? — Estou tão perto quanto poderia estar, mas preciso de um “homem de ponta”. — Por favor, fale inglês mais claro, ou francês, se quiser. Deve ser uma expressão americana, esse tal “homem de ponta”. Vocês têm uma porção de frases esotéricas. Acho que alguém fica sentado em Langley, só inventando esses mistérios. — Ora vamos, não tenho tempo para seus bon mots. — Ora vamos você, meu amigo. Não estou querendo ser engraçado, estou só tentando acordar... Pronto, meus pés estão no chão e o cigarro na minha boca. Agora, do que se trata?
— Meu contato com o Chacal quer que um inglês voe de Londres para Paris esta manhã, com dois milhões e oitocentos mil francos... — Muito menos do que você tem à sua disposição, suponho — interrompeu Bernardine. — O Banque Normandie ajeitou tudo, certo? — Certo. O dinheiro está no banco, e aquele seu Tabouri é um encanto. Tentou me vender terrenos em Beirute. — Aquele Tabouri é um ladrão — mas Beirute é interessante. — Por favor. — Desculpe. Continue. — Estou sendo vigiado, portanto não posso ir ao banco e não tenho nenhum inglês para levar ao Pont-Royal o que não posso apanhar. — É esse o seu problema? — Sim, é esse. — Está disposto a gastar, digamos, 50 mil francos? — Para quê? — Tabouri. — Acho que sim. — Você assinou alguns papéis, é claro. — É claro. — Pois assine outro, escrito do próprio punho e com sua assinatura, uma ordem de pagamento para — espere um pouco, tenho de ir até minha mesa. — Fez-se silêncio na linha enquanto Bernardine foi até a sala. — Alô? — Estou aqui. — Ah, isto é uma beleza — disse o ex-especialista do Deuxième. — Eu o afundei com veleiro e tudo nos rochedos de Costa Brava. Os tubarões fizeram um banquete, ele era tão gordo e apetitoso! O nome é Antonio Scarzi, da Sardenha, um homem que trocava informação por drogas, mas você não sabe nada disso, é claro. — É claro. — Bourne repetiu o sobrenome, soletrando. — Correto. Feche o envelope, passe a ponta do lápis ou da caneta no seu polegar e aperte o dedo
sobre a parte colada. Depois, entregue ao recepcionista para o Sr. Scarzi. — Compreendi. E o inglês? Esta manhã? Daqui a algumas horas. — O inglês não é problema, mas a manhã é — as poucas horas. Trata-se da simples transferência de fundos de um banco para outro — botões são apertados, computadores verificam os dados e puf, os números aparecem no papel. É outra coisa retirar quase três milhões em dinheiro, e seu contato na certa não vai aceitar libras ou dólares, com medo de ser apanhado trocando ou depositando o dinheiro. Acrescente a isso o problema de conseguir tudo em notas grandes para fazer um volume que passe desapercebido na alfândega... Seu contato, mon ami, deve estar a par dessas dificuldades. Jason olhou para a parede, pensando no que Bernardine dizia. — Acha que ele está me testando? — Só pode estar. — O dinheiro pode ser retirado dos departamentos estrangeiros de vários bancos. Um pequeno avião particular pode atravessar o canal, aterrissar num pasto qualquer onde um carro o espera, para trazer o homem a Paris. — Bien. É claro. Entretanto, essas logísticas exigem tempo, até para as pessoas mais influentes. Não deixe que pareça muito simples, isso seria suspeito. Mantenha seu contato informado do progresso da operação, enfatizando o segredo, o risco de exposição, explique as demoras. Se não houver nenhuma, ele pode desconfiar de uma armadilha. — Eu compreendo. No fim, tudo se resume ao que você acaba de dizer. Não faça parecer muito fácil, do contrário ele não acredita. — Tem mais, mon ami. O camaleão pode ser muitas coisas à luz do dia, mas está mais seguro à noite. — Esqueceu alguma coisa — disse Bourne. — E o inglês? — Até logo, meu chapa — disse Bernardine. A operação correu com a suavidade de todas as operações engendradas por Jason ou assistidas por ele, graças talvez à habilidade de um homem talentoso, que se ressentia de ter sido obrigado a se aposentar cedo demais. Enquanto Bourne dava vários telefonemas para Santos, descrevendo o progresso, Bernardine mandou alguém apanhar o envelope no hotel de Jason e combinou um encontro com monsieur Tabouri. Um pouco depois das quatro e meia da tarde, o veterano do Deuxième entrou no Pont-Royal com um terno escuro risca-de-giz, tão obviamente britânico que parecia gritar Savile Row. Foi até o elevador e depois de errar duas vezes o caminho, chegou ao quarto de Bourne. — Aqui está o dinheiro — disse ele, pondo a pasta no chão e dirigindo-se diretamente para o bar do quarto. Apanhou duas garrafas miniaturas de gim Tanqueray, abriu e passou o conteúdo para um copo de limpeza duvidosa.
— A votre santé. — Tomou a metade do gim, respirou fundo pela boca, e tomou o resto. — Há anos não faço nada parecido. — Verdade? — Francamente, não. Outros faziam essas coisas para mim. É perigoso demais... De qualquer modo, Tabouri será grato a você pelo resto da vida e, para ser franco, ele me convenceu a ver alguns terrenos em Beirute. — O quê? — É claro que eu não tenho seus recursos, mas uma porcentagem de quarenta anos dos les fonds de contingence foi enviada para Genebra, em meu nome. Não sou um homem pobre. — Será um homem morto se o apanharem saindo do hotel. — Ah, mas eu não vou sair — disse Bernardine, abrindo outra vez a pequena geladeira. — Vou ficar neste quarto até você terminar seu negócio. — François abriu mais duas garrafinhas e esvaziou-as no copo. — Agora talvez meu velho coração comece a bater mais devagar — acrescentou, aproximando-se da pequena escrivaninha. Pôs o copo sobre o mata-borrão e tirou duas automáticas e três granadas dos bolsos, enfileirando tudo na frente do copo. — Sim, agora vou descansar. — Que diabo é isso — essas coisas? — exclamou Jason. — Acho que vocês, americanos, chamam de repressão — respondeu Bernardine. — Para ser franco, na minha opinião, vocês e os soviéticos estão se masturbando quando gastam tanto dinheiro em armamentos que não funcionam. Eu sou de outra era. Quando você sair para tratar do seu negócio, deixe a porta aberta. Quem aparecer nesse corredor estreito vai ver uma granada na minha mão. Não é uma abstração nuclear, isso é repressão. — Concordo — disse Bourne, indo até a porta. — Quero acabar logo com isto. Na rue Montalembert, Jason andou até a esquina, e como tinha feito na velha fábrica em Argenteuil, encostou na parede e acendeu um cigarro. Esperou, aparentando calma, com a mente funcionando a mil. Um homem apareceu na rue du Bac, transversal à Montalembert e caminhou para ele. Era o mensageiro tagarela da noite anterior e aproximou-se com a mão no bolso. — Onde está o dinheiro? — perguntou o homem em francês. — Onde está a informação? — perguntou Bourne. — Primeiro o dinheiro. — O combinado não foi isso. — Bruscamente, Jason segurou a lapela do homem de Argenteuil, levantando-o do chão. Com a outra mão apertou o pescoço do mensageiro, enfiando os dedos na carne.
— Volte e diga para Santos que ele acaba de ganhar uma viagem de ida para o inferno. Não faço negócio desse jeito. — Chega! — disse uma voz baixa, na esquina, à direita de Jason. Santos aproximou-se dos dois. — Solte o homem, Simon. Ele não é nada. Agora somos só nós dois. — Pensei que você nunca saía do Coeur du Soldai. — Você mudou isso, não mudou? — Aparentemente. — Bourne soltou o mensageiro, e o homem olhou para Santos e depois fugiu correndo. — Seu inglês chegou — disse Santos quando ficaram sozinhos. — Tinha uma valise. Eu mesmo vi. — Ele chegou com uma valise — concordou Bourne. — Então Londres capitulou, não? Londres está muito ansiosa. — Tem muita coisa em jogo, é tudo que posso dizer. A informação, por favor. — Primeiro, vamos definir novamente a estratégia, certo? — Já definimos várias vezes... Você me dá a informação, meu cliente manda verificar e se eu conseguir um contato satisfatório, trago o resto dos três milhões de francos. — Você fala em “contato satisfatório”. O que vai ser satisfatório para você? Como vai saber que é um contato firme? Como eu vou saber se não vai dizer que não foi satisfatório para não me pagar, quando, na verdade, conseguiu o que seus clientes queriam? — Você é um cara desconfiado, não é? — Oh, muito desconfiado. O nosso mundo, Sr. Simon, não é povoado por santos, é? — Talvez em maior número do que pode imaginar. — Pois isso me surpreenderia. Por favor, responda às minhas perguntas. — Tudo bem. Vou tentar... Como vou saber se o contato é firme? Isso é fácil. Vou saber simplesmente porque é parte do meu trabalho. Para isso sou pago, e um homem na minha posição não comete enganos desse tipo e vive para se desculpar. Eu refinei o processo, fiz minhas pesquisas e vou fazer duas ou três perguntas também. E então saberei — se é firme ou não. — Uma resposta um tanto vaga. — No nosso mundo, Sr. Santos, ser vago nem sempre é uma qualidade negativa, certo?... Quanto à sua preocupação de enganá-lo para ficar com seu dinheiro, posso garantir que não cultivo
inimigos como você e a rede que você e seu melro controlam, assim como não faço dos meus clientes inimigos. Isso seria loucura e uma vida muito mais curta. — Admiro sua perspicácia e sua cautela — disse o intermediário do Chacal. — As estantes de livros não mentiram. É um homem instruído. — Isso não quer dizer nada, mas tenho algumas credenciais. Aparências podem ser um empecilho ou uma vantagem... O que vou dizer agora, Sr. Simon, é do conhecimento apenas de quatro homens no mundo inteiro, e os quatro falam francês fluentemente. Como vai usar a informação não me interessa. Porém, se fizer a menor menção a Argenteuil eu vou saber e você não sairá vivo do PontRoyal. — O contato pode ser feito assim rapidamente? — Por meio de um número de telefone. Mas só deve telefonar no mínimo uma hora depois de nos separarmos. Se telefonar antes, também vou saber, e repito, será um homem morto. — Uma hora. Combinado... Só mais três pessoas têm esse número? Por que não escolher o nome de uma delas, a que você gosta menos, para que eu possa citar — se for necessário? Santos permitiu-se um leve sorriso inexpressivo. — “Moscou” — disse com voz suave. — Lá em cima, na Praça Dzerzhinsky. — O KGB? — O melro está formando uma equipe em Moscou, sempre Moscou, é uma obsessão. Ilich Ramirez Sanchez, pensou Jason. Treinado em Novgorod. Despedido pelo Komitet como um maníaco. O Chacal! — Não vou esquecer — se precisar. O número, por favor. Santos repetiu duas vezes o número e as palavras que Bourne devia dizer. Falou lentamente, obviamente impressionado com o fato de Jason não escrever nada. — Está tudo claro? — Indelevelmente, sem papel ou lápis... Se tudo correr como eu espero, como quer que eu mande o dinheiro? — Telefone, tem meu número. Eu deixarei Argenteuil e me encontro com você. E nunca mais volto para Argenteuil. — Boa sorte, Santos. Algo me diz que você merece. — Ninguém merece tanto quanto eu. Bebi cicuta vezes sem conta.
— Sócrates — disse Jason. — Não diretamente. Diálogo de Platão, para ser exato. Au revoir. Santos afastou-se e Bourne, com o coração aos saltos, voltou para o Pont-Royal, controlando-se desesperadamente para não correr. Um homem correndo é objeto de curiosidade, um alvo. Lição dos cantos de Jason Bourne. — Bernardine! — gritou, correndo pelo estreito corredor, vendo a porta aberta e o homem sentado à escrivaninha com uma granada na mão esquerda e uma arma na direita. — Largue essas ferramentas, descobrimos ouro! — Quem está pagando? — perguntou o veterano do Deuxième quando Jason fechou a porta. — Eu — respondeu Bourne. — Se tudo sair como espero, sua conta em Genebra vai crescer bastante. — Não estou fazendo isto por dinheiro, meu amigo. Nunca me passou pela cabeça. — Eu sei, mas uma vez que estamos distribuindo francos como se fossem fabricados na nossa garagem, por que você não vai ter sua parte? — Não posso discutir isso também. — Uma hora — disse Jason. — Quarenta e três minutos agora, para ser exato. — Para quê? — Para descobrir se é real, real de verdade. — Bourne atirou-se na cama com os braços cruzados sob a nuca, os olhos brilhantes. — Escreva aí, François — Jason disse o número dado por Santos. — Compre, suborne ou ameace qualquer contato de alto nível que você tiver no serviço telefônico de Paris, e localize este número. — Não é um pedido tão caro... — É sim — disse Bourne. — Ele o mantém guardado, inviolado, não podia ser de outro modo. Só quatro pessoas em toda a sua rede de operação têm esse número. — Então talvez seja melhor não procurar no mais alto nível e sim mais perto do chão, na verdade, no subterrâneo. Nos túneis do serviço telefônico sob as ruas. Jason virou rapidamente a cabeça para Bernardine. — Eu não tinha pensado nisso. — Por que ia pensar? Você não é do Deuxième. A fonte são os técnicos, não os burocratas... Eu conheço alguns. Vou procurar um deles e dar um telefonema discreto esta noite...
— Esta noite? — interrompeu Bourne, erguendo-se na cama. — Vai custar uns mil francos, mas você terá a localização do telefone. — Não posso esperar, até a noite. — Então será mais arriscado tentar falar com o homem durante o horário de trabalho. Esses técnicos são monitorados, ninguém confia em ninguém na telefônica. É o paradoxo socialista. Dê responsabilidade às forças trabalhadoras, mas nenhuma autoridade. — Espere um pouco! — disse Jason. — Você tem os números dos telefones das casas deles, não tem? — Estão no meu livro de telefones. Eles não têm números privados. — Mande as mulheres deles telefonarem. Uma emergência. Um pelo menos deve ir para casa. Bernardine fez um gesto afirmativo. — Nada mau, meu amigo. Nada mau. Os minutos transformaram-se em quartos de hora, enquanto o homem do Deuxième trabalhava, obsequioso, com promessas de recompensa para as mulheres dos técnicos da telefônica. Duas desligaram zangadas, três recusaram com palavras de baixo calão, desconfiadas, mas a sexta disse, entre palavrões, “Por que não?” Desde que o rato do seu marido compreendesse que o dinheiro era dela.A hora passou e Jason saiu do hotel, andando devagar, calmamente e atravessou quatro ruas antes de encontrar um telefone público no Quai Voltaire, ao lado do Sena. O manto escuro da noite pairava sobre Paris, as luzes dos barcos e das pontes cintilavam. Respirando fundo, com um autocontrole que jamais julgaria possível, Jason aproximou-se da cabine vermelha. Ia dar o telefonema mais importante da sua vida, mas não podia deixar que o Chacal soubesse disso, se é que se tratava realmente do Chacal. Entrou na cabine, colocou a moeda e discou o número. — Sim? — Uma voz de mulher, o oui francês áspero e brusco. Uma parisiense. — Melros voam em círculos no céu — disse Bourne, repetindo as palavras de Santos, em francês. — Fazem muito barulho, menos um. Ele é silencioso. — De onde está telefonando? — Daqui de Paris, mas não sou de Paris. — De onde, então? — Onde os invernos são muito mais frios — respondeu Jason, sentindo o suor brotar na testa. Controle. Controle-se! — Preciso falar com o melro urgentemente. Fez-se silêncio na linha, um vazio sônico, e Bourne parou de respirar. Então a voz, baixa, firme, tão vazia quanto o silêncio. — Falamos com um moscovita?
O Chacal! Era o Chacal! O francês suave e rápido não escondia o leve sotaque latino. — Eu não disse isso — respondeu Bourne, no dialeto francês que usava freqüentemente, com um traço gutural de gascão. — Eu só disse que os invernos são mais frios que os de Paris. — Quem está falando? — Alguém que é considerado por alguém que o conhece suficientemente importante para saber este número e as palavras certas. Posso lhe oferecer o maior contato da sua carreira, da sua vida. O pagamento é imaterial — peça quanto quiser —, mas as pessoas que pagam estão entre os homens mais poderosos dos EUA. Controlam grande parte da indústria americana, bem como as instituições financeiras do país e têm acesso direto aos centros nervosos do governo. — É também um telefonema muito estranho. Nada ortodoxo. — Se não está interessado, eu esqueço este número e vou procurar em outro lugar. Sou apenas um agente. Basta dizer sim ou não. — Não me comprometo com coisas que não conheço, com pessoas das quais nunca ouvi falar. — Reconheceria os postos que ocupam, se eu tivesse liberdade para revelá-los. Entretanto, não estou procurando um compromisso, apenas seu interesse, por enquanto. Se a resposta for sim, posso revelar mais. Se for não, bem, eu tentei, mas sou obrigado a procurar em outro lugar. Os jornais dizem que ontem ele estava em Bruxelas. Eu o encontrarei. — Ouviu uma exclamação abafada quando mencionou Bruxelas e o não-citado Jason Bourne. — Sim, ou não, melro? Silêncio. Finalmente o Chacal falou: — Telefone de novo dentro de duas horas — ordenou, desligando. Estava feito! Jason encostou a cabeça na parede da cabine com o suor descendo pelo rosto e pelo pescoço. O Pont-Royal. Precisava voltar para Bernardine! — Era Carlos! — disse ele, fechando a porta e dirigindo-se para o telefone ao lado da cama, enquanto tirava do bolso o cartão de Santos. Discou e logo atenderam. — O melro confirmou — disse Jason. — Dê-me um nome, qualquer nome. — A pausa foi breve. — Já entendi. A mercadoria vai ser deixada com o recepcionista. Fechada e selada. Conte e depois mande meus passaportes. Mande seu melhor homem apanhar tudo e suspenda a vigilância. Eles podem levar um melro até você. — Jason desligou e voltou-se para Bernardine. — O telefone é do décimo quinto arrondissement — disse o veterano do Deuxième. — Nosso homem sabia isso, ou pelo menos, supôs que devia ser, logo que eu lhe dei o número. — O que ele vai fazer? — Voltar para os túneis e conseguir a informação completa.
— Vai ligar para cá? — Por sorte ele tem uma moto. Disse que estará de volta ao trabalho em dez minutos mais ou menos e dentro de uma hora telefona para cá. — Perfeito! — Não completamente. Ele quer 5 mil francos. — Podia ter pedido dez vezes mais... O que significa “dentro de uma hora”? Quanto tempo falta para completar essa hora? — Você demorou uns trinta minutos, 35 talvez, e ele falou comigo logo que você saiu. Eu diria que vai telefonar dentro de meia hora. O telefone tocou. Vinte segundos depois tinham o endereço na avenue Lefebvre. — Eu já vou — disse Jason Bourne, apanhando a automática de Bernardine que estava sobre a mesa e guardando duas granadas nos bolsos. — Você se importa? — À vontade — respondeu o Deuxième, tirando a outra arma do cinto. — Paris está tão cheia de batedores de carteira que a gente deve levar sempre uma defesa... Mas para quê? — Tenho pelo menos duas horas e quero fazer um reconhecimento. — Sozinho? — De que outro modo? Se pedirmos ajuda, eu me arrisco a levar um tiro ou passar o resto da vida na cadeia, pelo assassinato na Bélgica com o qual não tive ligação alguma. Ex-juiz do tribunal do primeiro circuito em Boston, o antes Meritíssimo Brendan Patrick Prefontaine observou o desconsolado e choroso Randolph Gates, sentado no sofá do Ritz-Carlton, o rosto nas mãos. — Oh, Cristo, como os poderosos caem com um baque surdo e final — observou Brendan, servindo-se de bourbon on the rocks. — Então, você foi apanhado na armadilha, Randy. Estilo francês. Seu cérebro ágil e sua presença imperial em nada o ajudaram quando você viu Paree, hein? Devia ter ficado “na fazenda”, soldadinho. — Meu Deus, Prefontaine, você não sabe o que passei! Eu estava organizando um cartel — Paris, Bonn, Londres e Nova York, com os mercados de trabalho do Extremo Oriente — um empreendimento que valia bilhões, quando fui tirado do Plaza Athénée e levado para um carro, com os olhos vendados. Então, me puseram num avião e me mandaram para Marselha, onde aconteceram as coisas mais horríveis. Prenderam-me num quarto e começaram a me injetar drogas — durante seis semanas! Eles me levavam mulheres, filmavam — eu não era mais eu! — Talvez fosse o “eu” que você não conhecia, Dandy Boy. O mesmo que aprendeu a reconhecer
a gratificação instantânea, se estou usando a frase certa. Consegue lucros enormes para seus clientes, no papel, que eles negociam nas bolsas, enquanto milhares de empregos são perdidos pelos compradores. Oh, sim, meu caro realista, a tal gratificação instantânea. — Está errado, juiz... — É tão bom ouvir isso outra vez. Obrigado, Randy. — Os sindicatos fortaleceram-se demais. A indústria estava sendo prejudicada. Muitas companhias mudaram-se para o exterior para sobreviver! — E para não negociar? Por estranho que pareça, talvez você tenha razão em parte, mas jamais considerou a alternativa... Não importa, estamos fugindo do assunto. Você saiu da prisão em Marselha como um viciado em drogas — e naturalmente havia os filmes do insigne advogado em situações comprometedoras. — O que eu podia fazer? — exclamou Gates. — Eles me arruinaram! — Sabemos o que você fez. Tornou-se o homem de confiança desse Chacal no mundo das altas finanças, um mundo onde a competição é bagagem indesejável que se deve perder no caminho. — Foi como ele me encontrou, para começar. O cartel que estávamos formando era contrário aos interesses dos japoneses e dos taiwaneses. Eles o contrataram... Oh, meu Deus, ele vai me matar! — Outra vez? — perguntou o juiz. — O quê? — Está esquecendo. Ele pensa que você já está morto — graças a mim. — Tenho casos para tratar, uma audiência do Congresso na próxima semana. Ele vai saber que estou vivo! — Não se você não aparecer. — Mas preciso! Meus clientes esperam... — Então eu concordo — interrompeu Prefontaine. — Ele vai matá-lo. Eu sinto muito, Randy. — O que vou fazer? — Há uma saída, Dandy Boy, não só para o dilema atual, mas também para o futuro. É claro, vai exigir algum sacrifício da sua parte. Para começar, uma longa convalescença num centro de reabilitação, mas antes disso, sua colaboração completa agora. O primeiro significa seu desaparecimento imediato. O segundo — a captura e eliminação de Carlos, o Chacal. Você ficará livre, Randy. — Qualquer coisa!
— Como podemos encontrá-lo? — Tenho um número de telefone! — Gates tirou a carteira do bolso e com dedos trêmulos procurou na parte mais funda. — Só quatro pessoas têm esse número! Prefontaine aceitou seus primeiros 20 mil dólares por hora, mandou Randy voltar para casa, pedir perdão a Edith e preparar-se para deixar Boston no dia seguinte. Brendan tinha ouvido falar de um centro de reabilitação particular em Minneapolis, onde os ricos conservavam o anonimato. Verificaria os detalhes no dia seguinte e telefonaria para Gates, naturalmente esperando os honorários da consulta. Assim que Gates, abatido, saiu do quarto do hotel, ele ligou para John St. Jacques no Hotel Tranqüilidade. — John, é o juiz. Não faça perguntas, mas tenho informação urgente que pode ser valiosa para o marido da sua irmã. Sei que não posso falar com ele, mas sei também que ele se comunica com alguém em Washington... — O nome é Alex Conklin — interrompeu St. Jacques. — Espere um pouco, juiz, Marie anotou o número no mata-borrão da minha mesa. Vou verificar. — O juiz ouviu o telefone ser colocado sobre a mesa e logo St. Jacques apanhou outro. — Aqui está. — O irmão de Marie disse o número. — Depois explico tudo. Obrigado, Johnny. — Droga, todo mundo me diz isso — disse St. Jacques. Prefontaine discou o número com código de Virgínia. O telefone foi atendido com um “Sim?” breve e brusco. — Sr. Conklin, meu nome é Prefontaine e John St. Jacques me deu seu telefone. O que tenho para lhe dizer é urgente. — É o juiz — disse Alex. — Diga isso no passado, infelizmente. Muito passado. — O que há? — Eu sei como falar com o homem que você chama de Chacal. — O quê? — Escute o que vou dizer. Bernardine olhou para o telefone que estava tocando, pensando se devia ou não atender. Não havia dúvida, tinha de atender. — Sim? — Jason? É você, não é?... Talvez tenham ligado para o quarto errado. — Alex? É você?
— François. O que está fazendo aí? Onde está Jason? — As coisas aconteceram muito depressa. Eu sei que ele está tentando falar com você. — Foi um dia muito duro. Panov está de volta. — Isso é uma boa notícia. — Tenho outra. Um número de telefone do Chacal. — Nós temos! E a localização! Nosso homem saiu há uma hora. — Pelo amor de Deus, como vocês conseguiram? — Um processo complicado que só podia ter sido negociado pelo nosso homem. Ele é brilhante, imaginativo, um verdadeiro caméléon. — Vamos comparar. Qual é o seu? Bernardine disse o número que havia anotado seguindo instruções de Bourne. O silêncio no telefone era um brado. — São diferentes — disse Alex, afinal, com voz embargada. — São diferentes! — Uma armadilha — disse o veterano do Deuxième. — Santo Deus, é uma armadilha!
Capítulo26 BOURNE PASSOU duas vezes pela fileira de casas antigas de pedra na avenue Lefebvre, na área decadente do décimo quinto arrondissement. Voltou então para a rue d’Alésia e encontrou um café ao ar livre. Com as mesas na calçada, as velas tremulando sob os vidros, o café estava cheio de estudantes irrequietos e muito falantes da Sorbonne próxima e de Montparnasse. Eram quase dez horas e os garçons de avental começavam a se irritar. A maioria dos fregueses não era muito generosa, nem de coração, nem de bolso. Jason queria só um expresso forte, mas a carranca do garçom convenceu-o de que ia tomar lama se pedisse só café, portanto pediu a bebida mais cara de que se lembrou. Quando o garçom foi apanhar a bebida no bar, Jason tirou do bolso seu bloquinho de notas e a caneta, fechou os olhos por um momento, depois abriu-os e desenhou tudo que conseguiu lembrar da fileira de casas. Havia três estruturas com duas casas geminadas cada uma, separadas por duas passagens estreitas. Cada casa geminada tinha três andares e degraus íngremes de tijolos na frente. Em cada extremidade da vila havia terrenos baldios cheios de lixo, restos da demolição de casas próximas. O endereço do telefone secreto do Chacal — o endereço que constava da lista, nos túneis, para fins de conserto — era o último conjunto de casas da direita, e não precisava muita imaginação para saber que ele devia ocupar as duas, se não todas as daquela fileira. Carlos colocava acima de tudo a própria proteção, assim era de se supor que seu posto de comando em Paris fosse uma fortaleza, guardada por todos os meios de segurança humanos e eletrônicos que a lealdade e a alta tecnologia podem fornecer. E aquela parte do décimo quinto arrondissement aparentemente isolada, quase deserta, era ideal para esse fim. Por isso, na sua primeira passagem pela frente da casa, Bourne pagou um bêbado vagabundo para caminhar com ele, acompanhando-o com seu passo fingidamente claudicante pela rua. Da segunda vez, pagou uma prostituta de meia-idade e substituiu o suposto defeito na perna por um passo ágil e decidido. Agora conhecia o terreno, não era muito, apenas o começo do fim. Era o juramento que fazia a si mesmo. O garçom serviu o expresso e o conhaque. Quando Bourne pôs uma nota de 100 francos sobre a mesa, e indicou com um aceno que não queria troco, uma expressão neutra substituiu a hostilidade no rosto do homem. — Merci — disse ele num resmungo. — Tem algum telefone por perto? — perguntou Bourne, tirando do bolso uma nota de dez francos. — Nesta mesma rua, a uns cinqüenta ou sessenta metros — respondeu o garçom com os olhos pregados no dinheiro. — Nenhum mais perto? — Jason tirou outra nota, desta vez de vinte francos. — Vou telefonar para uma casa aqui perto.
— Venha comigo — disse o garçom, apanhando o dinheiro e conduzindo Bourne até a mulher da caixa que estava sentada numa banqueta alta, ao fundo do café. A mulher pálida e magra olhou irritada para Bourne, certamente pensando que ele ia fazer alguma reclamação. — Ele quer usar seu telefone — disse o garçom. — Por quê? — perguntou a megera secamente. — Para falar com a China? — Vai telefonar para uma das casas desta rua. Ele paga. Jason tirou uma nota de dez francos do bolso, olhando com ar inocente para a mulher desconfiada. — Tá. Telefone — disse ela, tirando o aparelho da prateleira, sob a caixa registradora, e apanhando o dinheiro. — O fio é comprido, pode ir até a parede, como todos fazem. Homens! Negócios e cama, só pensam nisso! Bourne discou para o Pont-Royal e mandou ligar para seu quarto, esperando que Bernardine atendesse no primeiro toque. No terceiro, ficou preocupado, no oitavo profundamente perturbado. Bernardine não estava no hotel! Teria Santos...? Não, o veterano do Deuxième estava armado e sabia usar sua “repressão” — haveria um tiroteio ou mais do que isso, o quarto seria destruído por uma granada. Bernardine tinha saído por vontade própria. Por quê? Os motivos podiam ser vários, pensou Bourne, devolvendo o telefone e voltando para sua mesa na calçada. O primeiro e mais desejado seriam notícias de Marie. O velho agente não quis criar falsas esperanças descrevendo com detalhes as redes que havia espalhado pela cidade para localizá-la, mas elas estavam funcionando, Jason tinha certeza... Bourne não conseguiu pensar em outro motivo e achou melhor esquecer Bernardine naquele momento. Tinha outro compromisso, o mais urgente da sua vida. Voltou ao café forte e ao seu bloco de notas. Cada detalhe devia ser exato. Uma hora depois Bourne terminou o café, tomou um gole de conhaque e jogou o resto na calçada, sob a toalha da mesa. Deixou o café e a rue d’Alésia, virou para a direita e andando devagar como um velho, seguiu na direção da avenue Lefebvre. A medida que se aproximava da última esquina percebia que se intensificavam os sons erráticos e ondulantes que pareciam vir de todas as direções. Sirenas! As sirenas de duas notas da polícia de Paris! O que tinha acontecido? O que estava acontecendo? Abandonando o andar arrastado de velho, Jason correu até o ângulo do prédio na frente da avenue Lefebvre e da fileira de casas de pedra. Imediatamente foi dominado por uma combinação terrível de choque, fúria, espanto e pânico. O que eles estavam fazendo? Cinco radiopatrulhas convergiram para as casas de pedra, e pararam, cantando os pneus, na frente da primeira à direita. Apareceu então um furgão preto da polícia que estacionou na outra entrada, com o holofote iluminando a casa, enquanto um grupo de homens com uniformes negros, empunhando suas automáticas, tomavam posições estratégicas, semi-protegidos pelos carros — preparavam-se para invadir! Idiotas. Malditos idiotas! Alertar Carlos era perder o Chacal! Matar era sua profissão, escapar, sua obsessão. Há 13 anos haviam dito que o refúgio enorme de Carlos, nas montanhas de Vitry-surSeine, nos arredores de Paris, tinha mais paredes e escadas falsas do que o castelo de um nobre, no
Loire, no tempo de Luís XIV. O fato de ninguém saber exatamente onde ficava, ou o nome do proprietário, não diminuía o valor da informação. Assim, era lógico supor que os três conjuntos separados de casas, na avenue Lefebvre, tivessem túneis interligados para o caso de fuga. Pelo amor de Deus, quem tinha feito aquilo? Um erro tremendo fora cometido? Bourne e Bernardine haviam cometido a estupidez de pensar que o Deuxième ou o departamento da CIA, em Paris, ia deixar de instalar escutas no seu telefone do Pont-Royal ou subornar os telefonistas do hotel? Mas nesse caso, Bourne e Bernardine tinham razão. Era quase impossível grampear um telefone num hotel relativamente pequeno, em tão pouco tempo, sem ser notado. A tecnologia exigia um estranho no local, e o suborno oferecido seria suplantado pela generosidade da pessoa vigiada. Santos? O contato do Chacal não ia delatar a Carlos, especialmente depois de libertar-se do contrato com ele. Quem? Como? A pergunta incendiava a mente de Bourne enquanto assistia com horror e desalento à cena na avenue Lefebvre. — Por ordem da polícia, todos os residentes devem abandonar o prédio. — As palavras, ditas no alto-falante, ecoaram metalicamente por toda a rua. — Têm um minuto antes de começarmos o ataque. Que ataque? gritou Bourne no silêncio da sua mente. Você o perdeu. Eu o perdi. Isso é loucura. Quem? Por quê? A porta no topo dos degraus de tijolos na casa da direita abriu-se. Um homem apavorado, pequeno, obeso, de camiseta e suspensórios caminhou cautelosamente para a luz dos holofotes, as mãos protegendo os olhos, virando a cabeça para evitar a claridade. — O que há, senhores? — gritou ele com voz trêmula. — Sou apenas um padeiro — um bom padeiro — e não sei nada sobre esta rua, a não ser que o aluguel é barato! Isso é crime? — Não é o senhor que queremos — disse a voz no alto-falante. — Não é a mim que querem? Vocês chegam como um exército, assustando minha mulher e meus filhos e dizem que não é a mim que querem? Que negócio é esse? Será que vivemos no meio de fascistas?Depressa! pensou Jason. Pelo amor de Deus, andem depressa! Cada segundo é um minuto de vantagem, uma hora para o Chacal! Abriu-se então a porta da casa da direita e apareceu uma freira com hábito negro. Ficou de pé em atitude de desafio e com voz tonitruante, sem o menor sinal de medo, disse: — Como se atrevem! Como ousam perturbar a hora das vésperas. Deviam estar pedindo perdão por seus pecados ao invés de interromper quando pedimos perdão a Deus pelos nossos! — Falou muito bem, irmã — disse o policial no alto-falante. — Mas temos certas informações e insistimos respeitosamente em revistar sua casa. Se recusar, cumpriremos nossas ordens, respeitosamente, é claro. — Somos as Irmãs de Caridade Madalenas! — exclamou a freira. — Esta é a casa sacrossanta de mulheres devotadas a Cristo!
— Respeitamos a sua posição, irmã, mas vamos entrar assim mesmo. Se o que diz é verdade, estou certo de que as autoridades farão uma generosa contribuição à sua causa. Estão perdendo tempo, pensou Bourne, Ele está fugindo! — Que suas almas sejam condenadas ao inferno por isso, por essa invasão do solo sagrado! — Será mesmo, irmã? — disse outra voz no alto-falante. — Acho que não há nada nos cânones da igreja que lhe dê o direito de condenar nossas almas ao inferno por tão pouca coisa... Vá em frente, monsieur inspetor. Sob o hábito talvez o senhor encontre lingerie mais apropriada para o Faubourg. Bourne conhecia aquela voz! Era Bernardine! O que tinha acontecido? Bernardine não era um amigo, afinal? Seria tudo uma encenação, a habilidade de um traidor consumado? Nesse caso, ia haver outra morte naquela noite! A equipe antiterrorista, com seus uniformes negros e suas armas automáticas, correu para a base dos degraus de tijolos, os policiais bloquearam as extremidades norte e sul da avenue Lefebvre, e as luzes vermelhas e azuis das radiopatrulhas girando constantemente transmitiram o aviso, afastem-se da área. — Posso entrar? — perguntou o padeiro. Ninguém respondeu, e o homem obeso correu para dentro, segurando a cintura da calça.Um policial sem uniforme, o líder da operação, juntou-se aos seus homens na calçada ao lado dos degraus. A um sinal seu, subiram e passaram pela porta que a freira segurava aberta cm atitude de desafio. Jason ficou imóvel no canto do prédio, colado à parede de pedra, com o suor descendo da testa, os olhos pregados na cena incompreensível. Ele sabia quem, mas por quê? Seria verdade? O homem em quem ele e Alex Conklin confiavam, seria outro par de olhos e ouvidos do Chacal? Cristo, Jason não queria acreditar nisso. Ao final de 12 minutos, a versão francesa da SWAT saiu da casa, alguns curvando-se para beijar a mão da abadessa, real ou não. Bourne compreendeu que seus instintos e os de Conklin estavam no caminho certo. — Bernardine! — exclamou o chefe da equipe, aproximando-se da primeira radiopatrulha. — Você está acabado. Fora! Nunca mais se atreva a falar com o mais baixo recruta do Deuxième, nem mesmo com o homem que limpa os banheiros! Você está no ostracismo! Por minha vontade, você seria fuzilado!... Assassino internacional na avenue Lefebvre! Um amigo do Bureau! Um agente que devíamos proteger!... Uma droga de convento, seu miserável filho da mãe! Merda! Um convento!... Saia do meu carro, seu porco imundo. Saia, antes que alguma arma dispare por engano e espalhe suas entranhas na calçada, que é onde elas deviam estar! Bernardine saltou do carro com as pernas bambas e caiu duas vezes na calçada. Jason esperou, desejando correr para o amigo, sabendo que devia esperar. As radiopatrulhas e o furgão afastaram-se rapidamente. Bourne precisava esperar ainda. Olhava para Bernardine e para a porta da casa do Chacal. Era a casa do Chacal. A presença da freira provava isso. Carlos jamais abandonou sua fé e a usava
constantemente como um disfarce cômodo. Porém, era muito mais do que isso. Muito mais. Bernardine caminhou com passos trôpegos até a porta de uma loja na frente da casa da freira. Jason saiu do esconderijo e correu para amparar o veterano que, encostado na vitrine, respirava com dificuldade. — Pelo amor de Deus, o que aconteceu? — perguntou Bourne, segurando Bernardine pelos ombros. — Calma, mon ami — disse Bernardine, ofegante. — O porco que estava dentro do carro, um político, sem dúvida — me deu um soco no peito antes de me atirar para fora... Eu disse que não conhecia o pessoal mais novo do Deuxième. Vocês têm os mesmos problemas na América, portanto, por favor, não faça nenhum sermão. — Nem estou pensando nisso... Esta é a casa, Bernardine. Bem aqui! Na nossa frente. — É também uma armadilha. — O quê? — Alex e eu confirmamos. Os números de telefone são diferentes. Você não chegou a dar o segundo telefonema para Carlos, certo? — Não. Eu tinha o endereço e queria fazer um reconhecimento. Que diferença faz? Esta é a casa! — Este é o lugar que o senhor Simon devia visitar, e se fosse realmente o senhor Simon, seria levado a outro lugar, para o encontro. Mas se não fosse o senhor Simon, seria morto — prova — outro homem que procurava o Chacal, morto. — Está enganado! — insistiu Jason, balançando a cabeça e falando em voz baixa e rápida. — Isto pode ser um desvio, mas Carlos continua no fim da linha. Não vai permitir que ninguém me mate antes dele. É um mandamento. — Como o seu a respeito dele? — Sim. Tenho uma família, ele tem uma lenda marginal. A minha é completa para mim, a dele é um vácuo — sem nenhum sentido agora. Ele já foi até onde podia ir. Para continuar terá de passar para o meu território — o território de David Webb — e eliminar Jason Bourne. — Webb? David Webb? Quem, em nome de Deus todo-poderoso, é esse? — Sou eu — disse Bourne com um sorriso cansado, encostando na vitrine, ao lado de Bernardine. — Loucura! — exclamou o ex-agente do Deuxième. — É fou! Insane, não posso acreditar!
— Acredite. — É um homem de família, com filhos e faz este trabalho? — Alex nunca lhe contou? — Se contou, pensei que fosse um disfarce — a gente aceita qualquer coisa neste trabalho. — Balançando a cabeça, Bernardine ergueu os olhos para o companheiro. — Você tem mesmo uma família da qual não quer fugir? — Ao contrário, não vejo a hora de voltar para ela. São as únicas pessoas no mundo que significam alguma coisa para mim. — Mas você é Jason Bourne, Camaleão assassino! Os mais profundos buracos do mundo do crime estremecem ao ouvir seu nome! — Ora, vamos, isso é um pouco demais, mesmo vindo de você. — De jeito nenhum! Você é Bourne, só superado pelo Chacal... — Não! — exclamou o já esquecido David Webb. — Ele não é páreo para mim. Vou apanhá-lo! Vou matá-lo! — Tudo bem, tudo bem, mon ami — disse Bernardine calmamente, olhando para o homem que ele não compreendia. — O que quer que eu faça? Jason Bourne virou para a vitrine e respirou fundo algumas vezes — até divisar, através da névoa da indecisão, uma clara estratégia para o Camaleão. Voltou-se e olhou para a casa no outro lado da rua escura. — A polícia já foi — disse, em voz baixa. — É claro, estou vendo. — Viu também que não apareceu ninguém dos dois outros conjuntos das casas? Mas algumas janelas estão iluminadas. — Eu estava preocupado. O que posso dizer? Mas, não, não notei — Bernardine ergueu as sobrancelhas, lembrando-se. — Mas vi rostos nas janelas, muitos rostos; eu os vi. — Mas ninguém saiu. — Dá para compreender. A polícia... homens armados correndo pela rua. O melhor é se proteger,
certo? — Mesmo depois que a polícia, as armas e as radiopatrulhas se foram? Voltam todos para a televisão, como se nada tivesse acontecido? Ninguém vai perguntar aos vizinhos o que houve? Não é natural, François, não é nem mesmo estranhamente natural. Tudo foi orquestrado. — O que quer dizer? Como? — Um homem aparece na porta e grita, iluminado pelo holofote. Atrai todas as atenções e são perdidos minutos preciosos da ação-surpresa. Então aparece uma freira envolta em sagrada indignação — mais segundos perdidos, mais horas para Carlos. A casa é invadida e o Deuxième não encontra nada... Então, quando tudo acaba, tudo volta ao normal — a uma normalidade anormal. Um trabalho realizado de acordo com o plano, assim, não há motivo para a curiosidade normal — ninguém precisa se reunir na rua para comentar, para externar sua indignação. Apenas ficam dentro de casa, certificando-se de que tudo deu certo. Isso não lhe diz nada? Bernardine fez um gesto afirmativo. — Uma estratégia pré-planejada executada por profissionais — disse o veterano agente de campo. — Exatamente o que eu acho. — Foi o que você viu e eu não vi — disse Bernardine. — Esqueça a bondade, Jason. Estou há muito tempo fora da rua. Muito destreinado, muito velho, sem imaginação. — Eu também estou — disse Bourne. — Mas o que está na balança é muito importante para mim, por isso posso pensar como um homem que quero esquecer. — Palavras de monsieur Webb? — Acho que sim. — Então, como ficamos? — Com um padeiro zangado e uma freira furiosa, e se são quem pensamos, com vários rostos nas janelas. No momento, a escolha é nossa, mas isso não vai durar, não até de manhã. — Como disse? — Carlos vai fechar a casa aqui, imediatamente. Não tem escolha agora. Alguém da sua guarda pretoriana revelou o local do seu quartel-general em Paris, e pode apostar sua aposentadoria — se ainda tiver — que ele está subindo pelas paredes, tentando descobrir quem o traiu... — Afaste-se! — exclamou Bernardine, agarrando Jason pelo paletó e atirando-o para o canto mais escuro da porta da loja. — Saia daí! Deite-se na calçada! Os dois jogaram-se no chão, de bruços sobre o concreto, Bourne com a cabeça encostada na
mureta sob o vidro da vitrine, olhando para a rua. Um furgão escuro apareceu à direita, e não era da polícia. Era mais brilhante e menor, mais reforçado, mais baixo. A única coisa que tinha em comum com o carro da polícia era a luz cegante do holofote... Não, não um, mas dois holofotes, um de cada lado do carro. Jason levou a mão à arma que tinha no cinto — a arma de Bernardine — certo de que seu companheiro já empunhava sua automática. A luz do holofote da esquerda passou sobre os dois e Bourne murmurou: — Bom trabalho, mas como você viu? — O reflexo do movimento do carro nos vidros das janelas — disse o velho François. — Por um momento pensei que fosse meu ex-colega de volta para terminar o trabalho prometido. Isto é, minhas entranhas na calçada... Meu Deus, olhei O furgão passou pelos dois primeiros conjuntos de casas, deu uma volta rápida e parou na frente da última casa, a uns 60 metros de onde eles estavam, a casa mais afastada daquela em que ficava o telefone do Chacal. Assim que o carro parou, a porta traseira se abriu e quatro homens saltaram, empunhando automáticas. Dois correram para o lado da rua, um para a frente da casa e o quarto ficou ao lado das portas abertas do furgão, com a sua MAC-10 pronta para atirar. Uma luz amarela sem brilho apareceu no topo dos degraus de tijolos. A porta se abriu dando passagem a um homem com uma capa de chuva negra. Ele ficou parado por um momento, olhando para os dois lados da avenue Lefebvre. — É ele? — murmurou François. — Não, a não ser que esteja usando peruca e saltos altos — respondeu Jason, enfiando a mão no bolso do paletó. — Vou reconhecê-lo quando o vir — porque eu o vejo todos os dias da minha vida! — Tirou do bolso uma das granadas que tomara emprestada de Bernardine. Pôs a automática no chão e segurando o objeto de aço oval e áspero com uma das mãos, com a outra puxou de leve o pino para verificar se não estava enferrujado. — Que diabo pensa que está fazendo? — perguntou o veterano do Deuxième. — Aquele homem é o chamariz — respondeu Jason com voz suave e monótona. — Daqui a pouco outro vai tomar seu lugar, descer correndo a escada e entrar no furgão, no banco da frente, ou pela porta de trás — espero que seja por trás, mas não faz muita diferença. — Você está louco! Eles o matarão! O que vai adiantar um cadáver para a sua família? — Você não está pensando, François. Os guardas vão entrar correndo pela porta traseira do furgão, porque não há lugar para eles na frente. Há uma grande diferença entre entrar num furgão e sair dele. Para começar, é uma seqüência mais lenta... Quando o último homem entrar e estender a mão para fechar as portas, minha granada já estará dentro do carro... E não tenho nenhuma intenção de virar cadáver. Fique aqui! Antes que Bernardine pudesse fazer outras objeções, Delta de Medusa começou a se arrastar pela rua escura — os holofotes imóveis agora e voltados para os lados, na verdade impediam que Bourne fosse visto. A luz quente e brilhante em volta do carro acentuava a escuridão no resto da rua. O único risco real era o guarda ao lado das portas abertas do veículo. Arrastando-se pelo chão, na frente
das lojas da rua, como se estivesse na relva alta do delta do Mekong, dirigindo-se a um campo de prisioneiros iluminado, Jason avançou, atento ao guarda perto do carro e ao que estava ao lado da escada. De repente, outro vulto apareceu. Era uma mulher com uma maleta numa das mãos e uma bolsa na outra. Falou com o homem de capa preta e quando o guarda olhou para os dois, Bourne, apoiado nos cotovelos e nos joelhos, aproximou-se do furgão, parando num ponto de onde podia observar o movimento sem ser visto. Percebeu que os dois guardas na rua piscavam os olhos e os entrecerravam, incomodados pela luz dos holofotes. Sua situação era a melhor possível, dadas as circunstâncias. Tudo dependia agora de agir no momento exato e do quanto conseguisse lembrar dos tempos muitas vezes esquecidos ou muito vagos, ou muito distantes. Precisava lembrar agora, o instinto tinha de atravessar a névoa da sua memória. Agora. O fim do pesadelo estava próximo. Estava acontecendo! De repente, no meio de uma grande atividade na porta, um terceiro vulto saiu correndo e juntou-se aos outros dois. O homem era mais baixo do que o primeiro, usava um gorro de pintor e levava uma valise. Obviamente deu algumas ordens que incluíam o guarda perto do furgão e o homem adiantou-se para apanhar a valise que o outro atirou do alto da escada. O guarda pôs a arma sob o braço esquerdo e apanhou a valise com toda a facilidade, com a outra mão. — Allez-vous-en. Nous partons! Vite! — gritou o segundo homem, indicando com um gesto que os outros dois deviam descer na sua frente. O homem de capa ficou ao lado do guarda, perto da porta traseira e a mulher acompanhou o homem que dava as ordens... O Chacal? Seria Carlos? Bourne desesperadamente queria acreditar que era — portanto, era ele! O som da porta lateral do veículo se fechando, seguido pelo ronco do potente motor eram o sinal. Os outros três guardas correram para a porta traseira. Entraram, um a um, depois do homem de capa, com as pernas esticadas, braços erguidos, as mãos segurando os dois lados de metal e no impulso impelindo-os para dentro, com as armas atiradas para a frente deles. Então, duas mãos se estenderam para fechar as portas. Agora! Bourne tirou o pino da granada e levantou-se, correndo como nunca havia corrido na vida, para as portas ainda abertas do furgão. Mergulhou, girando o corpo para cair de costas, segurou a porta da esquerda e atirou a granada para dentro. Seis segundos e explodiria. Jason ergueu-se sobre os joelhos e com os dois braços estendidos, fechou as portas do carro. Os guardas responderam com um tiroteio cerrado. Mas era um milagre não programado. O furgão do Chacal era à prova de balas. Tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora! Nenhuma bala atravessou o aço especial. Ouviam-se apenas os impactos surdos e o assobio dos ricochetes... e os gritos dos feridos lá dentro. O veículo brilhante partiu velozmente pela avenue Lefebvre e Bourne, agachado, correu para as lojas vazias no lado leste da rua. Estava quase terminando de atravessar a avenida quando o impossível aconteceu. O impossível! O furgão do Chacal explodiu, incendiando o céu escuro de Paris e no mesmo instante uma limusine marrom parou cantando os pneus na esquina mais próxima, com as janelas abertas e homens armados atirando indiscriminadamente para todos os lados. Jason mergulhou para o abrigo mais próximo, encolhendo-se em posição fetal, aceitando o fato — não com medo mas com fúria — de que aqueles podiam ser seus últimos momentos de vida. Tinha falhado. Falhado com Marie e com as
crianças!... Mas não desse modo. Rolou do esconderijo com a arma na mão. Ia matar. Matar! Esse era o modo de Jason Bourne! Então aconteceu o incrível. O incrível! Uma sereia? A polícia? A limusine marrom partiu rapidamente, passando pelos destroços do furgão do Chacal e desapareceu na rua escura, quando a radiopatrulha chegou com a sirena a todo volume e freou rapidamente a poucos metros das chamas. Nada fazia sentido, pensou Jason. Só uma das cinco radiopatrulhas tinha voltado. Por quê? Mas até essa pergunta era supérflua. Carlos havia montado uma estratégia usando não um, mas sete, talvez oito substitutos, todos descartáveis, todos levados a uma morte terrível por aquele homem que só pensava na própria proteção. O Chacal conseguira fugir da armadilha preparada por ele e invertida por seu inimigo odiado, Delta, produto de Medusa, criação do serviço secreto americano. Mais uma vez, o assassino fora mais esperto, mas Jason não estava morto. Haveria outro dia, outra noite. — Bernardine! — gritou o agente do Deuxième que há menos de trinta minutos havia ofendido o companheiro. Saltando do carro, o homem gritou outra vez. — Bernardine! Onde você está?... Meu Deus, onde você está! Eu voltei, amigo velho, porque não posso deixá-lo! Meu Deus, você estava certo, eu vejo agora! Oh, Cristo! Diga que está vivo! Responda! — Outro está morto — respondeu Bernardine, caminhando devagar, com dificuldade, saindo da frente da loja a uns cem metros ao norte de onde estava Bourne. — Eu tentei dizer, mas você não quis me ouvir... — Eu fui talvez muito precipitado! — rugiu o homem correndo para Bernardine e abraçando-o, enquanto os policiais na radiopatrulha mantinham-se longe do furgão em chamas, protegendo o rosto do calor. — Dei ordem pelo rádio para que todos voltassem! — continuou ele. — Tem de acreditar, amigo, voltei porque não podia deixá-lo daquele modo, não o meu velho camarada... Eu não sabia que você fora assaltado, espancado por aquele porco do jornal. Quando ele me contou eu o joguei para fora do carro!... Voltei por você, você compreende, não é mesmo? Mas, meu Deus, não esperava isto! — É horrível — disse o veterano do Deuxième, examinando a rua cautelosa e rapidamente. Notou os rostos assustados e intensos nas janelas dos outros três conjuntos de casas. O cenário fora pelos ares com a explosão do furgão e o desaparecimento da limusine marrom. Os subalternos estavam sem seu líder e muito assustados. — O erro não foi só seu, meu velho camarada — continuou Bernardine em tom de quem se desculpa. — Eu me enganei de casa. — Ah, ha — exclamou o homem do Deuxième, saboreando o pequeno triunfo. — A casa errada? Sem dúvida um erro de grandes conseqüências, eh, François? — As conseqüências podiam ter sido muito menos trágicas se você não tivesse me abandonado tão precipitadamente, como disse. Em vez de ouvir um homem de grande experiência, me expulsou do seu carro para que eu testemunhasse esse horror. — Seguimos suas ordens! Revistamos a casa — a casa errada! — Se tivesse ficado, nem que fosse para uma breve conversa, isto seria evitado e um amigo estaria vivo. Tenho de incluir esse julgamento no meu relatório...
— Por favor, amigo velho — interrompeu o homem do Deuxième. — Vamos conversar, pelo bem do Bureau... Foi interrompido pela chegada barulhenta do carro de bombeiros. Bernardine ergueu a mão e levou seu antigo companheiro para o outro lado da avenida, ostensivamente para sair do caminho dos bombeiros, mas na verdade para ser ouvido por Bourne. — Quando nossa gente chegar — continuou o homem do Deuxième, erguendo a voz com autoridade — vamos evacuar as casas e deter todos os moradores para interrogatório! — Meu Deus! — exclamou Bernardine. — Não acrescente burrice à incompetência! — O quê? — A limusine, a limusine marrom — certamente você a viu? — Sim, é claro. Meu motorista disse que estavam fugindo. — Foi só o que ele disse? — Bem, o furgão estava em chamas e havia tanta confusão, eu chamando meus homens pelo rádio... — Veja esses vidros partidos! — disse François, apontando para as lojas, para longe de onde Bourne estava escondido. — Olhe os buracos na calçada e na rua. Tiros, meu velho camarada. Os homens envolvidos escaparam, pensando que eu estava morto!... Não diga nada, não faça nada. Deixe essa gente em paz. — Você é incompreensível... — E você é um tolo. Se por qualquer motivo algum daqueles assassinos voltar, não teremos nenhum impedimento. — Agora está sendo inescrutável. — De modo nenhum — protestou Bernardine, olhando para os bombeiros que manejavam as mangueiras e os extintores enormes. — Mande seus homens a todas as casas para saber se está tudo bem e para explicar que as autoridades concluíram que os terríveis eventos na avenida foram atos criminosos. Á crise passou, não há razão para alarme. — Mas isso é verdade? — É o que nós queremos que eles acreditem. Chegou uma ambulância, seguida por duas radiopatrulhas com as sirenas ligadas a todo volume. Nas duas esquinas, moradores dos apartamentos da rue d’Alésia agrupavam-se, curiosos, a maioria vestida apressadamente — calça e camiseta — outros com roupas de dormir — roupões e chinelos
muito surrados. Notando que o furgão do Chacal era agora uma massa derretida de aço retorcido e vidros partidos, Bernardine continuou: — Deixe que o povo satisfaça sua curiosidade mórbida, depois mande dispersar. Dentro de uma hora mais ou menos, quando tudo estiver sob controle e os corpos retirados, diga aos seus policiais que a emergência terminou, e mande que voltem todos para a delegacia, menos um. Esse homem deve ficar de guarda até que seja retirado tudo que restou do furgão. Deve receber ordens para não interferir com pessoa alguma que saia dessas casas, compreendeu? — Nem um pouco. Você disse que alguém podia estar se escondendo... — Eu sei o que disse — respondeu o ex-consultor do Deuxième. — Isso não muda nada. — Então, você vai ficar aqui? — Vou. Vou fazer um reconhecimento lento e cauteloso. — Compreendo... E o relatório para a polícia? E meu relatório? — Use uma parte da verdade, não toda, é claro. Você foi informado — o nome do informante não pode ser revelado — de que ia ser perpetrado um ato de violência, relacionado ao departamento de narcóticos do Bureau, na avenue Lefebvre, numa determinada hora. Você veio até aqui com seus homens e não encontraram nada, mas logo depois, seguindo seus instintos profissionais, você voltou, infelizmente tarde demais para evitar a carnificina. — São capazes até de me promover — disse o homem, mas logo franziu a testa, desconfiado. — E o seu relatório? — perguntou em voz baixa. — Vamos ver se vai ser necessário, certo? — respondeu o reempossado consultor do Deuxième. A equipe médica levou os corpos para a ambulância, enquanto um guindaste colocava num caminhão os destroços queimados do furgão. Os homens da limpeza pública varreram a rua, comentando que não deviam varrer demais senão ninguém ia reconhecer a avenue Lefebvre. Em quinze minutos o trabalho estava terminado e o único policial presente pegou uma carona com os varredores, até o telefone público mais próximo. Passava das quatro da manhã e logo a madrugada ia colorir o céu de Paris, precedendo o barulhento e constante carnaval das suas ruas. Porém, naquele momento, os únicos sinais de vida na avenue Lefebvre eram cinco janelas iluminadas na fileira das casas de pedra controladas por Carlos, o Chacal. Dentro das casas estavam homens e mulheres a quem o sono não era permitido. Precisavam trabalhar para seu monsenhor. Bourne estava sentado na calçada com as pernas estendidas, as costas apoiadas na parede interna da entrada de uma loja, na frente das casas do padeiro furioso e da freira indignada. Bernardine estava em outra entrada, a alguns metros de distância, na frente das duas primeiras casas onde o furgão do Chacal havia parado para apanhar a carga condenada. Estava combinado. Jason ia seguir e agarrar a primeira pessoa que saísse de uma das casas. O veterano do Deuxième seguiria a segunda pessoa que aparecesse, verificaria seu destino, mas não faria nenhum contato. Para Bourne, o padeiro ou a freira eram mensageiros do Chacal, por isso ele tinha escolhido a extremidade norte da fileira de casas.
Em parte ele acertou, mas não havia previsto a interferência de outras pessoas e meios de transporte. Às 5:17h, duas freiras com hábito completo e toucas brancas apareceram, de bicicleta, no lado sul da avenida. Tocando as campainhas discretas das bicicletas, pararam na frente da casa que supostamente abrigava as Irmãs de Caridade Madalenas. A porta se abriu e três freiras, cada uma com uma bicicleta, desceram os degraus de tijolos e juntaram-se às suas irmãs de caridade. Montaram com discrição e seguiram pela avenida. O único consolo para Jason foi que a freira indignada de Carlos ficou destacada atrás das outras. Sem saber como ia acontecer, sabendo apenas que ia acontecer, Bourne saiu da entrada da loja e correu pela avenida escura. Quando chegou no terreno baldio ao lado da casa do Chacal, outra porta se abriu. Bourne agachou-se na sombra e viu o padeiro obeso descer rapidamente a escada e seguir para o sul. Bernardine já tinha o que fazer, pensou Jason, levantando-se e correndo atrás da procissão de bicicletas. O tráfego de Paris é um enigma indecifrável, a qualquer hora do dia ou da noite. Fornece também desculpas para quem quer chegar muito cedo ou muito tarde em algum lugar, chegar ao lugar errado ou ao lugar certo. Em resumo, os parisienses atrás do volante personificam os últimos vestígios civilizados de um descaso letal — talvez só superados pelos motoristas de Roma ou de Atenas. Isso aplicava-se às madalenas ciclistas, especialmente à madre superiora, a última da fila. Na entrada da rue Lecourbe, em Montparnasse, um engarrafamento de caminhões de hortigranjeiros separou-a das companheiras. Com um gesto benevolente, ela as mandou seguir e entrou rapidamente numa estreita rua transversal, começando a pedalar mais depressa. Bourne, com o ferimento do pescoço latejando, não acelerou o passo. Não precisava. A tabuleta azul com letras brancas, no começo da rua, dizia SEM SAÍDA. Bourne encontrou a bicicleta acorrentada a um poste da rua e esperou na entrada de uma loja a menos de quatro metros de distância. Tocou de leve a atadura úmida no pescoço. Estava sangrando um pouco. Com sorte, só um ponto devia estar aberto... Oh, Cristo, suas pernas estavam cansadas — não, “cansadas” não era bem a palavra. Era a dor de músculos pouco usados e agora abusados. Os passos rítmicos da corrida diária não o preparavam para saltos e fintas, nem para paradas e saídas bruscas. Com a respiração pesada, encostou na parede de pedra, sem tirar os olhos da bicicleta, tentando afastar o pensamento que martelava sua mente com irritante regularidade. Poucos anos atrás ele nem teria notado o cansaço nas pernas, porque não teria havido cansaço algum. O som da fechadura sendo aberta quebrou o silêncio do quase nascer do dia na rua estreita, seguido pelo ruído áspero de uma porta que se abria. Era a porta do apartamento na frente do qual a bicicleta estava parada. Encostado na parede, Jason tirou a arma do cinto e viu a mulher com hábito de freira correr para o poste. Na luz fraca ela parecia ter dificuldade em colocar a chave no cadeado da corrente. Bourne saiu para a calçada e caminhou rapidamente para a mulher. — Vai chegar atrasada na primeira missa — disse Jason Bourne. A mulher voltou-se rapidamente, a chave caiu na calçada e ela pôs a mão direita sob as dobras do hábito. Jason saltou para a frente, segurou o braço dela com a mão esquerda e arrancou a touca branca com a direita. Olhou para o rosto à sua frente e soltou uma exclamação de espanto. — Meu Deus — murmurou Jason. — É você!
Capítulo27 — EU A CONHEÇO! — exclamou Bourne. — Paris... anos atrás... seu nome é Lavier... Jacqueline Lavier. Você tinha uma loja de roupas femininas... Les Classiques — St. Honoré —, o esconderijo de Carlos no Faubourg! Eu a encontrei num confessionário em Neuilly-sur-Seine. Pensei que estivesse morta. O rosto enrugado da mulher estava crispado de fúria. Tentou se livrar da mão dele, mas Jason deu um passo para o lado quando ela girou o corpo, puxando-a num movimento circular para o outro lado, atirando-a contra a parede, e imobilizando-a com um braço sobre seu pescoço. — Mas você não estava morta. Era parte da armadilha que terminou no Louvre, que explodiu no Louvre!... Cristo, você vem comigo. Homens morreram naquela armadilha — franceses morreram — e eu não pude ficar lá para contar o que tinha acontecido, nem quem era o responsável... No meu país, se você mata um tira, eles não descansam enquanto não o apanham. Aqui é a mesma coisa e quando se trata de tiras, eles não param de procurar. Oh, eles vão se lembrar do Louvre, eles vão se lembrar dos seus homens! — Está enganado! — disse a mulher meio sufocada, com os olhos verdes saltados. — Não sou quem você pensa... — Você é Lavier! Rainha do Faubourg, único contato com a mulher do Chacal, a esposa do general. Não me diga que estou enganado... Eu segui vocês duas, quando saíram de Neuilly — até aquela igreja com os sinos badalando e cheia de padres — um deles, Carlos! Logo depois a prostituta dele saiu, mas você não. Ela foi embora apressadamente, e então entrei na igreja e descrevi você para um padre velho — se é que era padre — e ele disse que você estava no segundo confessionário à esquerda. Eu abri a cortina e lá estava você. Morta. Eu pensei que tinha sido assassinada e que tudo estava acontecendo muito depressa. Carlos tinha de estar ali! Estava ao meu alcance, ao alcance da minha arma — ou talvez eu estivesse ao alcance dele. Corri, procurando como um louco, e finalmente o vi! Na rua, com seu hábito negro — eu o vi, tive certeza de que era ele porque quando me viu começou a correr no meio do tráfego. Eu o perdi!... Mas tinha um trunfo. Você! Eu espalhei a notícia — Lavier está morta... Era exatamente o que queriam que eu fizesse, não era? Não era? — Eu repito, está enganado! — A mulher não lutava mais para se libertar, era inútil. Ficou imóvel, o corpo rígido encostado na parede, como se com isso conseguisse permissão para falar. — Quer me ouvir? — perguntou ela, com voz rouca, com o braço de Jason apertando ainda seu pescoço. — Esqueça, dona — respondeu Bourne. — Você vai sair daqui quase desmaiada — uma Irmã das Madalenas ajudada, não assaltada por um estranho. Na sua idade essas ameaças de desmaio são comuns, não é mesmo? — Espere.
— Tarde demais. — Precisamos conversar! — Vamos conversar. Jason retirou o braço e imediatamente segurou os ombros da mulher com as duas mãos, apertando os tendões. Ela desmaiou e Jason, apanhando-a antes que caísse, carregou-a pela rua estreita como um suplicante levando uma assistente social religiosa. A luz do dia começava a incendiar o céu e vários madrugadores, um deles um jovem de short que fazia seu jogging, aproximaram-se do homem que carregava uma freira. — Ela passou quase dois dias sem dormir, com minha mulher e meus filhos doentes! — disse o Camaleão em francês das ruas. — Alguém quer, por favor, arranjar um táxi para levá-la ao convento no nono arrondissement? — Eu vou! — disse o jovem de short. — Tem um ponto que funciona dia e noite na rue de Sèvres e eu sou muito rápido! — É uma dádiva, senhor — disse Jason, agradecendo, mas não gostando da excessiva confiança do jovem. Seis minutos depois o táxi chegou com o rapaz de short. — Eu disse ao chofer que o senhor tem dinheiro — disse ele, saltando do carro. — Espero que tenha. — É claro. E muito obrigado. — Conte para a irmã o que eu fiz — acrescentou o corredor, delicadamente ajudando Bourne a pôr a mulher inconsciente no banco de trás do táxi. — Vou precisar de toda ajuda que puder obter quando chegar a minha hora. — Espero que não esteja iminente — disse Jason, tentando retribuir o largo sorriso do rapaz. — Não está. Eu represento a minha firma na maratona. — O garoto crescido começou a correr no mesmo lugar. — Mais uma vez, obrigado. Espero que ganhe a próxima. — Diga à irmã para rezar por mim! — gritou o atleta, afastando-se. — O Bois de Boulogne — disse Bourne, fechando a porta do carro. — O Bois? Aquele doido afrescalhado disse que era uma emergência! Que precisava levar a freira para o hospital! — Ela tomou muito vinho, o que mais posso dizer?
— O Bois de Boulogne — disse o chofer, balançando a cabeça afirmativamente. — Faça ela andar bastante. Tenho uma prima em segundo grau no convento de Lyons. Quando sai por uma semana ela enche a cara. Quem pode culpá-la? Os raios do sol iam chegando aos poucos ao banco no Bois de Boulogne quando a mulher de meia-idade, vestida de freira, sacudiu a cabeça. — Como vai, irmã? — perguntou Jason, sentado ao lado da sua prisioneira. — Como se tivesse sido atingida por um tanque do exército — respondeu a mulher, piscando os olhos e abrindo a boca para respirar fundo. — No mínimo um tanque. — Aposto que sabe mais sobre tanques do que sobre o furgão de caridade das Irmãs Madalenas. — Tem razão — concordou ela. — Não se dê ao trabalho de procurar sua arma — disse Bourne. — Eu a tirei do cinto muito caro que usa sob o hábito. — Ainda bem que reconheceu o valor do cinto. É parte do que temos a conversar... Uma vez que não estou numa delegacia de polícia, suponho que me concedeu permissão para falar. — Só se o que disser for do meu interesse, suponho que compreende isso. — Mas é do seu interesse, vai ver. Eu falhei. Fui apanhada. Não estou onde devia estar, e seja qual for a hora, a luz me diz que é tarde demais para desculpas. Além disso, minha bicicleta desapareceu ou está ainda acorrentada no poste. — Eu não a tirei de lá. — Então estou morta. E se ela desapareceu, estou morta também, não compreende? — Por que você desapareceu? Não está onde devia estar? — É claro. — Você é Lavier! — É verdade. Sou Lavier. Mas não sou a mulher que você conheceu. Você conheceu minha irmã Jacqueline — eu sou Dominique Lavier. Tínhamos pequena diferença de idade e éramos muito parecidas, desde pequenas. Mas está certo quanto a Neuilly-sur-Seine e sobre o que viu lá. Minha irmã foi morta porque violou uma regra capital, cometeu um pecado mortal, se quiser. Ela entrou em pânico e levou você à mulher de Carlos, seu segredo mais querido e mais útil. — Eu?... Você sabe quem eu sou? — Toda Paris — toda Paris do Chacal — sabe quem você é, monsieur Bourne. Não o conhecem de vista, mas sabem que está aqui e sabem que está procurando Carlos.
— E você faz parte dessa Paris? — Faço. — Cristo, ele matou sua irmã! — Sei disso. — E mesmo assim, trabalha para ele? — Há momentos na vida de uma pessoa em que as escolhas são muito reduzidas. Por exemplo, viver ou morrer. Até seis anos atrás, quando o Classiques mudou de dono, era um ponto vital para o monsenhor. Eu tomei o lugar de Jacqui... — Assim, sem mais nem menos? — Não foi difícil. Eu era mais jovem e, o mais importante, parecia mais jovem. — As rugas no rosto de meia-idade acentuaram-se com o sorriso breve e pensativo. — Minha irmã dizia que era porque eu morava no Mediterrâneo... Seja como for, a cirurgia plástica é comum no mundo da alta-costura. Jacqui supostamente foi à Suíça para uma plástica geral... e voltou para Paris depois de oito semanas de preparação. — Como fez isso? Como pôde fazer isso, sabendo o que sabia, como diabo fez isso? — Eu não sabia, no começo, o que fiquei sabendo mais tarde, e então não adiantava mais. A essa altura minha escolha era a que já mencionei. Viver ou morrer. — Nunca pensou em procurar a polícia ou a Sûreté? — A respeito de Carlos? — A mulher olhou para Bourne como se ele fosse um garotinho tolo. — Como dizem os britânicos em Cap Ferrat, “sem dúvida você está brincando”. — Então você entrou feliz no jogo da morte. — Não conscientemente. Fui conduzida gradualmente para ele, num processo lento e fragmentário... No começo disseram que Jacqueline tinha morrido num acidente de barco com seu namorado daquele mês e que eu seria muito bem paga para tomar o lugar dela. Les Classiques era muito mais do que um salão de modas... — Muito mais — concordou Jason. — Era o ponto de recepção dos segredos mais bem guardados dos militares e do serviço secreto da França, transmitidos ao Chacal por uma mulher, a mulher de um general famoso. — Só fiquei sabendo disso muito depois que o general a matou. O nome dele era Villiers, se não me engano. — Sim, era. — Jason olhou para os lírios brancos que flutuavam nas águas tranqüilas do pequeno lago. Imagens voltaram à sua mente. — Fui eu quem o encontrou, os encontrou. Villiers estava
numa cadeira de espaldar alto com a arma na mão. A mulher estava nua na cama, coberta de sangue, morta. Ele ia se matar. Era a execução adequada para um traidor, disse ele, pois o amor cego que dedicava à mulher fizera dele um traidor da França... Eu o convenci de que havia outro meio — quase funcionou, há 13 anos. Numa casa estranha na rua Setenta e Um, em Nova York. — Eu não sei o que aconteceu em Nova York, mas o general Villiers deixou instruções para que fosse dado a público, depois da sua morte, o que havia acontecido em Paris. Dizem que quando ele morreu e a verdade foi revelada Carlos ficou louco de raiva e assassinou vários militares só porque eram generais... — É uma velha história — interrompeu Bourne, bruscamente. — Isto é agora, 13 anos depois. O que acontece agora? — Não sei, monsieur. Não tenho escolha, tenho? De um modo ou de outro, vai me matar, suponho. — Talvez não. Ajude-me a apanhá-lo e ficará livre de nós dois. Pode voltar para o Mediterrâneo e viver em paz. Nem precisa desaparecer — volta ao que quiser voltar, depois de alguns anos muito lucrativos em Paris. — Desaparecer? — disse Lavier, observando atentamente o rosto cansado do seu captor. — Assim como “sumir”? — Não precisa disso. Carlos não poderá encontrá-la porque ele estará morto. — Sim, compreendi essa parte. O que me interessa é o desaparecimento e os anos “lucrativos” em Paris. Esse lucro, vem do senhor? — Sim. — Compreendo... Foi o que ofereceu a Santos? Um desaparecimento lucrativo? Foi como se ela o tivesse esbofeteado. Jason olhou para sua prisioneira. — Então, foi mesmo Santos — disse ele, em voz baixa. — A avenue Lefebvre era uma armadilha. Cristo, ele é bom. — Ele está morto, Le Coeur du Soldat fechado, liquidado. — O quê? — Bourne olhou atônito para Lavier. — Foi essa a recompensa por me enganar? — Não, por trair Carlos. — Não compreendo. — O monsenhor tem olhos por toda parte, estou certa que sabe disso. Viram Santos, o recluso, entregar várias caixas pesadas ao seu fornecedor de alimentos e ontem de manhã ele não podou nem regou as plantas do seu precioso jardim, um ritual de verão tão previsível quanto o sol. Um homem foi
mandado ao armazém do fornecedor e abriu as caixas.. — Livros — interrompeu Jason quase num murmúrio. — Para serem guardados até novas instruções — completou Dominique Lavier. — A partida de Santos ia ser rápida e secreta. — E Carlos sabia que não havia ninguém em Moscou para dar o número do telefone. — O que foi que disse? — Nada... Que tipo de homem era Santos? — Eu não o conheci, nunca o vi. Só ouvi os comentários, que não foram muitos. — Não tenho tempo para muitos. Quais foram os comentários? — Aparentemente ele era um homem grande... — Eu sei disso — interrompeu Jason impaciente. — E sabemos que lia muito, que era provavelmente culto, pelo modo que falava. De onde ele veio e por que trabalhava para o Chacal? — Dizem que era cubano e que lutou na revolução de Fidel, que era um pensador profundo e colega de Castro na faculdade de direito, e no passado, um grande atleta. Então, é claro, como acontece em todas as revoluções, a luta interna desvirtuou a vitória — pelo menos é o que dizem meus antigos companheiros das barricadas do Dia de Maio. — Tradução, por favor. — Fidel tinha ciúmes dos líderes de certos grupos, especialmente de Che Guevara e do homem que você conheceu como Santos. Castro podia ser maior do que a vida, mas os dois eram maiores do que ele, e Fidel não podia tolerar a competição. Che foi enviado numa missão na qual perdeu a vida, e Santos foi falsamente acusado de atividades contra-revolucionárias. Uma hora antes da sua execução, Carlos e seus homens invadiram a prisão e o levaram com eles. — Vestidos de padres, sem dúvida. — Tenho certeza que sim. A igreja com todos seus absurdos medievais era muito importante em Cuba. — Você fala com amargura. — Sou mulher, o Papa não é, ele é apenas medieval. — Julgamento registrado... Assim Santos juntou-se a Carlos, dois marxistas desiludidos à procura das suas causas pessoais — ou talvez do seu Hollywood pessoal. — Se eu o compreendi, a fantasia pertence ao brilhante Carlos, a desilusão amarga foi o destino
de Santos. Ele devia a vida ao Chacal, portanto, por que não entregá-la a ele? O que mais restava?... Até sua chegada. — É tudo que preciso. Obrigado. Eu só queria preencher certas lacunas. — Lacunas? — Coisas que eu não sabia. — O que fazemos agora, monsieur Bourne? Não foi essa a sua pergunta original? — O que quer fazer, madame Lavier? — Sei que não quero morrer. E não sou madame Lavier não sou casada. As restrições não me atraem e os benefícios me parecem desnecessários. Durante anos fui uma prostituta muito cara em Monte Cario, Nice e Cap Ferrat, até a juventude me abandonar. Durante algum tempo, porém, conservei amigos dos velhos dias, amantes intermitentes que tomavam conta de mim. Quase todos estão mortos agora, uma pena. — Pensei que era muito bem paga para assumir a identidade de sua irmã. — Eu era, e de certo modo ainda sou, pois tenho algum valor. Eu circulo entre a elite de Paris, onde são muitas as informações. Tenho um belo apartamento na avenue Montaigne. Objetos antigos, quadros bons, criados, crédito — tudo que essa elite espera que tenha uma mulher que trabalhou no mundo da moda. E dinheiro. Todos os meses um banco recebe 80 mil francos de Genebra — um pouco mais do que preciso para pagar minhas cotas. Pois só eu posso pagá-las, ninguém mais. — Então, você tem dinheiro. — Não, monsieur, tenho um estilo de vida, não dinheiro. É assim que o Chacal age. A não ser os velhos, ele só paga em termos de serviço imediato. Se o dinheiro de Genebra não chegar ao meu banco no dia dez de cada mês, em trinta dias estou na rua. Mas se Carlos resolver se livrar de mim, não precisa recorrer a Genebra. Estarei morta — como sem dúvida estou agora. Se voltar para meu apartamento na avenue Montaigne esta manhã, nunca mais vou sair... como minha irmã não saiu daquela igreja em Neuilly-sur-Seine. Pelo menos, não com vida. — Tem certeza disso? — É claro. Aquela parada onde deixei a bicicleta foi para receber instruções de um dos velhos. As ordens foram precisas e deviam ser seguidas à risca. Dentro de vinte minutos devia me encontrar com uma mulher que conheço, na padaria em Saint-Germain, onde trocaríamos nossas roupas. Ela devia ir para a missão das Madalenas e eu ia encontrar o mensageiro de Atenas num quarto do Hotel Trémoille. — A missão das Madalenas...? Quer dizer que aquelas mulheres de bicicleta eram freiras de verdade?
— Perfeitamente, com votos de castidade e pobreza. Eu sou a superiora do convento em SaintMalo que as visita com freqüência. — E a mulher na padaria, ela é...? — Ela peca uma vez ou outra, mas é ótima administradora. — Jesus — murmurou Bourne. — Ele está sempre nos lábios delas. Compreende agora a dificuldade da minha posição? — Não estou bem certo. — Então, tenho de duvidar que seja mesmo o Camaleão. Eu não estive na padaria. O encontro com o mensageiro grego não se realizou. Onde eu estava? — Você se atrasou. A corrente da bicicleta quebrou. Um daqueles caminhões raspou em você, na rue Lecourbe. Diabo, foi assaltada. Que diferença faz? Você se atrasou. — Quanto tempo faz que me deixou inconsciente? Jason consultou o relógio à luz clara da manhã. — Pouco mais de uma hora, eu acho, uma hora e meia, talvez. Considerando o modo como está vestida, o chofer do táxi deu umas voltas à procura de um lugar discreto para que eu pudesse cuidar de você. Foi bem pago por essa ajuda. — Uma hora e meia? — perguntou Lavier. — Sim, e daí? — Então, por que não telefonei para a padaria ou para o Hotel Trémoille? — Complicações?... Não, é fácil verificar — disse Bourne balançando a cabeça. — Ou? — Os grandes olhos verdes encontraram-se com os dele. — Ou, monsieur? — A avenue Lefebvre — respondeu Jason suavemente. — A armadilha. Como eu virei a armadilha contra ele, ele a virou contra mim, três horas depois. Então, eu quebrei a estratégia e apanhei você. — Exatamente. — A ex-prostituta de Monte Cario fez um gesto afirmativo. — E ele não pode saber sobre o que falamos... portanto, estou marcada para a execução. Um peão é removido do jogo, pois não passa de um peão, Não pode revelar nada importante para as autoridades, nunca viu o Chacal, só pode repetir os mexericos dos subalternos. — Você nunca o viu? — Pode ser, mas não que eu saiba. Os rumores voam por toda Paris. Ele tem pele latina, morena,
ou tem olhos e bigodes negros. “Aquele é mesmo Carlos, você sabe” — quantas vezes ouvi essas frases! Mas não, nenhum homem jamais chegou para mim e disse “Eu sou ele e faço sua vida agradável, sua prostituta elegante e envelhecida”. Eu só me comunico com os velhos que, uma vez ou outra, me trazem informações — como esta noite na avenue Lefebvre. — Compreendo — Bourne levantou-se, espreguiçando-se, e olhou para sua prisioneira sentada no banco. — Eu posso tirá-la disso — disse ele, em voz baixa.. — Para fora de Paris, para fora da Europa. Fora do alcance de Carlos. Você quer? — Tanto quanto Santos queria — respondeu Lavier com olhar suplicante. — Estou disposta a passar minha lealdade para você. — Por quê? — Porque ele é velho e cinzento e não se compara a você. Você me oferece a vida, ele me oferece a morte. — Nesse caso, é uma decisão sensata — disse Jason com um leve sorriso. — Tem algum dinheiro? Com você, quero dizer. — As freiras fazem votos de pobreza, monsieur — respondeu Dominique Lavier, retribuindo o sorriso. — Na verdade, tenho algumas centenas de francos. Por quê? — Não é suficiente — continuou Bourne, tirando do bolso um alentado maço de notas. — Aqui estão três mil — disse, estendendo o dinheiro para ela. — Compre roupa em algum lugar — tenho certeza de que sabe como — e vá para o Meurice, na rue de Rivoli. — Que nome devo usar? — Qual o que mais lhe convém? — O que acha de Brielle? Uma cidade da costa, bem bonitinha. — Por que não?... Dê-me dez minutos para sair daqui, depois saia. Eu a encontro no Meurice ao meio-dia. — Com todo o meu coração, Jason Bourne. — Vamos esquecer esse nome. O Camaleão saiu do Bois de Boulogne direto para um ponto de táxis. O chofer extasiado recebeu cem francos para ficar parado no fim da fila de três veículos, com o passageiro abaixado no banco traseiro. — A freira está saindo, monsieur — exclamou o chofer. — Entrou no primeiro táxi.
— Siga o táxi — disse Jason, sentando no banco. Na avenue Victor Hugo o táxi de Lavier diminuiu a marcha e parou na frente de uma das poucas concessões que Paris faz à tradição — um telefone público aberto, com cúpula de plástico. — Pare aqui — ordenou Bourne, descendo assim que o carro encostou no meio-fio. Mancando, o Camaleão caminhou rapidamente e em silêncio para o telefone que ficava atrás do que a freira nervosa estava usando. Ela não o via, mas Bourne a ouvia claramente. — O Meurice! — ela gritou no telefone. — O nome é Brielle. Ele estará lá ao meio-dia... Sim, sim, vou dar uma parada no meu apartamento para mudar de roupa e estarei lá dentro de uma hora. — Lavier desligou e voltou-se, abrindo a boca assustada quando viu Jason. — Não! — gritou ela. — Eu acho que sim — disse Bourne. — Meu táxi ou o seu? “Ele é velho e cinzento” — foi o que você disse, Dominique. Uma descrição muito exata para quem nunca viu Carlos. Bernardine saiu do Pont-Royal furioso, ao lado do porteiro que o tinha chamado. — Isto é ridículo! — gritou ele, aproximando-se do táxi. — Não, não é — corrigiu, olhando para dentro. — É apenas insano. — Entre — disse Jason ao lado da mulher com hábito de freira. François entrou, olhando para o hábito negro, a touca branca e pontuda e o rosto pálido da religiosa sentada entre os dois. — Ela podia fazer uma fortuna no seu cinéma-verité, acredite — disse Jason. — Não sou um homem muito religioso, mas espero que você não tenha cometido um erro... Eu cometi — ou melhor, nós cometemos — com aquele padeiro porco. — Por quê? — Ele é padeiro, é isso que ele é! Eu quase atirei uma granada nos fornos dele, mas ninguém, a não ser um padeiro francês, sabe implorar como ele implorou. — Confere — disse Jason. — A lógica ilógica de Carlos — não me lembro quem disse isso, provavelmente fui eu. — O táxi fez uma volta completa e entrou na rue du Bac. — Estamos indo para o Meurice — acrescentou ele. — Estou certo de que tem um bom motivo para isso — disse Bernardine, olhando para o rosto enigmático de Dominique Lavier. — Quero dizer, esta doce e velha senhora não diz nada. — Não sou velha! — É claro que não, minha querida — concordou o veterano do Deuxième. — Só mais desejável na sua idade madura.
— Cara, você acertou em cheio! — Por que o Meurice? — perguntou Bernardine. — É a última armadilha do Chacal para mim — respondeu Bourne. — Cortesia da nossa persuasiva irmã de caridade das Madalenas, aqui. Ele espera que eu esteja lá e eu vou estar. — Vou chamar o Deuxième. Graças a um burocrata assustado, agora vão fazer tudo que eu pedir. Não ponha sua vida em perigo, meu amigo. — Não quero ofendê-lo, François, mas você me disse que não conhece todo o pessoal do Deuxième agora. Não posso arriscar um vazamento de informação. Basta um homem para dar o alarme. — Deixe-me ajudar. — A voz baixa e suave de Dominique Lavier interrompeu o murmúrio do tráfego lá fora como o primeiro movimento de uma serra. — Eu posso ajudar. — Já ouvi isso antes, dona, e com sua ajuda eu ia caminhar para minha execução. Não, obrigado. — Isso foi antes, não agora. Como deve estar mais do que claro, minha posição agora é desesperadora. — Será que não ouvi essas palavras recentemente? — Não, não ouviu. Eu acrescentei a palavra “agora”... Pelo amor de Deus, ponha-se rio meu lugar. Não quero fingir que entendo, mas este velho boulevardier ao meu lado diz casualmente que vai chamar o Deuxième — o Deuxième, monsieur Bourne! Para muitos, é nada menos do que a Gestapo francesa! Mesmo que eu sobreviva, estarei marcada por aquele infame departamento do governo. Sem dúvida vão me mandar para uma horrível colônia penal do outro lado do mundo — oh, eu tenho ouvido as histórias do Deuxième! — É mesmo? — perguntou Bernardine. — Pois eu não. Parece realmente fascinante. Maravilhoso! — Além disso... — continuou Lavier, olhando furiosa para Jason e tirando a touca branca. O chofer, olhando pelo retrovisor, ergueu as sobrancelhas. — Sem mim, sem minha presença com outra roupa, no Meurice, Carlos não vai chegar perto da rue Rivoli. — Bernardine bateu de leve no ombro dela e levou o indicador aos lábios, inclinando a cabeça na direção do chofer. — O homem com quem você quer conversar não estará lá — terminou ela, apressadamente. — Ela está certa — disse Bourne, inclinando-se para a frente e olhando para a rua no lado de Bernardine. — A irmã aqui tem um apartamento na Montaigne, onde eles sabem que ela vai parar para trocar de roupa e nenhum de nós pode ir com ela. — Isso cria um dilema, certo? — disse Bernardine. — Não podemos monitorar o telefone, daqui de fora, podemos?
— Seus tolos!... Não tenho escolha senão cooperar com vocês e se não podem ver isso deviam ser conduzidos por cães de cego! Este homem velho, muito velho, vai pôr meu nome nos arquivos do Deuxième na primeira oportunidade, e como deve saber o famoso Jason Bourne, se a gente tem alguma coisa a ver com o Deuxième, várias perguntas serão feitas — no passado feitas por minha irmã, Jacqueline. Quem é este Bourne? Ele é real ou não? É o assassino da Ásia, ou uma fraude, uma isca? Ela me telefonou uma noite, para Nice, depois de muitos drinques — uma noite da qual talvez se lembre, monsieur Caméléon — num restaurante muito caro de Paris. Você a ameaçou... em nome de pessoas poderosas, anônimas, você a ameaçou! Exigiu que ela revelasse tudo que sabia sobre um conhecido — naquele tempo eu não tinha idéia de quem se tratava — mas você a assustou. Ela disse que você parecia louco, com os olhos esgazeados e falando numa língua que ela não conhecia. — Eu me lembro — interrompeu Bourne secamente. — Jantamos, eu a ameacei e ela ficou assustada. Ela foi ao toalete, pagou alguém para dar um telefonema e eu tive de sair do restaurante. — E agora o Deuxième está aliado àquelas pessoas muito poderosas? — Dominique Lavier balançou a cabeça várias vezes e baixou a voz. — Não, senhores, eu sou uma sobrevivente e não luto contra o impossível. A gente tem de saber quando deve passar a banca no bacará. Depois de um curto silêncio, Bernardine disse: — Qual é o seu endereço na avenue Montaigne? Vou dizer ao chofer para nos levar até lá, mas antes disso compreenda uma coisa, madame, se estiver mentindo, sofrerá todos os horrores do Deuxième que descreveu. Marie lia os jornais sentada à mesa na pequena suíte do Hotel Meurice. Não conseguia se concentrar no que lia. A ansiedade a impediu de dormir quando voltou para o hotel, um pouco depois da meia-noite, depois de ter estado em cinco dos cafés que ela e David haviam freqüentado há tantos anos, em Paris. Finalmente, às quatro e pouco da manhã, a exaustão foi mais forte e ela dormiu com o abajur aceso. Acordou quase seis horas depois. Seu sono mais longo desde aquela primeira noite na Ilha Tranqüilidade, que era agora apenas uma lembrança distante a não ser pela dor de não ver os filhos e não ouvir suas vozes. Não pense neles, é muito doloroso. Pense em David... Não, pense em Bourne! Onde? Concentre-se! Deixou o Tribune de Paris e serviu a terceira xícara de café forte e puro, olhando para as portas de vidro que davam para o terraço e para a rue Rivoli. A manhã clara e brilhante transformara-se num dia triste e cinzento. Logo ia chover, dificultando a sua procura. Resignada, tomou o café e pôs a xícara elegante no pires elegante, não a caneca de louça comum preferida por David e por ela na sua cozinha rústica no Maine. Oh, Deus, será que voltariam para lá algum dia? Não pense nisso! Concentre-se! Apanhou outra vez o Tribune, e virou as páginas distraidamente, vendo só as palavras isoladas, não frases ou parágrafos, sem nenhuma continuidade de pensamento. Então viu a linha entre aspas no fim de página. A palavra era Memom, seguida de um número de telefone, e embora o Tribune fosse impresso em inglês, Marie traduziu instintivamente para o francês como maymohom. Ia virar a página quando outra parte do seu cérebro avisou, Pare.
— Memom... mommy — a modificação feita por uma criança aprendendo a falar. Memom! Jamie — o seu Jamie! O nome engraçado que ele inventou e usou durante algumas semanas! David achou graça, mas Marie apavorou-se, temendo que o menino tivesse dislexia. “Talvez ele só esteja um pouco confuso, memom”, dissera David então, com um sorriso. David! Olhou para o alto da página. Era a seção financeira que ela instintivamente lia todas as manhãs. Uma mensagem de David! Levantou-se, derrubando a cadeira e com o jornal na mão foi até o telefone. Com mãos trêmulas discou o número. Ninguém atendeu. Talvez tivesse discado errado ou tivesse esquecido do código de área de Paris. Tentou outra vez, lenta e atentamente agora. Ninguém atendeu. Mas era David, Marie sentia, sabia. Ele estava à sua procura no Trocadéro e agora valia-se de um apelido usado por pouco tempo e que só os dois conheciam. Meu amor, meu amor, eu o encontrei!... Não podia mais ficar confinada no pequeno quarto do hotel, andando de um lado para o outro e discando o telefone, quase enlouquecendo a cada chamada não respondida. Quando estiver tensa a ponto de estourar, procure um lugar onde possa se mover sem ser notada. Mantenha-se em movimento! Isso é vital! Não pode deixar explodir sua mente. Marie vestiu-se rapidamente. Destacou a mensagem do jornal e deixou a suíte opressiva, controlando-se para não correr até os elevadores, sentindo que precisava das ruas movimentadas de Paris para continuar a andar sem ser notada. De um telefone público para outro. A descida até o saguão foi interminável e também desagradável, graças a um casal americano — ele com a máquina fotográfica, ela com pálpebras pintadas de roxo e cabelos oxigenados, num penteado bufante que parecia montado em concreto — queixando-se de que pouca gente em Paris, França, falava inglês. Finalmente a porta se abriu e Marie saiu rapidamente para o saguão movimentado do Meurice. Quando se dirigia para as grandes portas de vidro da entrada, com ornatos em filigrana, parou instintivamente vendo um homem velho com um terno risca-de-giz, sentado numa pesada poltrona de couro à sua direita, inclinar o corpo magro para a frente com uma exclamação abafada. O homem olhou para ela atônito, com os lábios finos entreabertos, uma expressão de espanto nos olhos. — Marie St. Jacques! — murmurou ele. — Meu Deus, saia daqui! — Perdão, mas... O quê? O francês idoso levantou-se com alguma dificuldade, examinando o saguão com olhar atento. — Não pode ser vista aqui, Sra. Webb — disse ele em voz muito baixa, mas autoritária. — Não olhe para mim! Olhe para seu relógio. Fique com a cabeça abaixada. — O veterano do Deuxième olhou para longe, balançando a cabeça vagamente na direção das pessoas mais próximas e continuou, quase sem mover os lábios. — Vá até a porta da esquerda, a que é usada para bagagem. Depressa! — Não! — disse Marie, olhando para o relógio com a cabeça abaixada. — Você me conhece, mas eu não o conheço. Quem é você? — Amigo do seu marido.
— Meu Deus, ele está aqui? — A questão é, por que você está aqui? — Já estive neste hotel antes. Achei que ele talvez se lembrasse. — Ele lembrou, mas num contexto diferente. Mon Dieu, do contrário, ele jamais o teria escolhido. Agora, saia daqui. — Não vou sair. Tenho de encontrá-lo. Onde ele está? — Se não sair, talvez encontre só o seu cadáver. Há uma mensagem para você no Tribune... — Está na minha bolsa. Na página de finanças, memom... — Telefone daqui a algumas horas. — Não pode fazer isto comigo. — Você não pode fazer isto com ele. Vai matá-lo! Saia daqui! Agora! Com os olhos quase cegos de fúria, medo e lágrimas, Marie dirigiu-se para o lado esquerdo do saguão, desejando desesperadamente olhar para trás, mas consciente de que não devia. Chegou às portas estreitas de vidro e colidiu com um carregador cheio de malas — Pardon, madame! — Moi aussi — murmurou Marie, desviando das malas e do homem e saindo para a rua. O que podia fazer — o que ia fazer? David estava em algum lugar do hotel — dentro do hotel! E um estranho a reconheceu e a mandou sair — ir embora! O que estava acontecendo?... Meu Deus, alguém está tentando matar David! Foi o que disse o velho francês — quem era... quem eram? Onde estavam? Jason, ajude-me, pelo amor de Deus! Diga-me o que devo fazer, Jason?... Sim, Jason, ajude-me! Ficou parada, imóvel, olhando sem ver os táxis e limusines que paravam na frente do Meurice, onde o porteiro com alamares dourados recebia os recém-chegados e os hóspedes antigos, dando ordens aos carregadores que corriam em todas as direções. Uma limusine grande, preta, com uma insígnia religiosa discreta na porta da direita, o símbolo cruciforme de algum alto dignitário da Igreja, parou sob a marquise do hotel. Marie olhou para o pequeno emblema. Era circular, não tinha mais de quinze centímetros de diâmetro, com um globo cor de púrpura real circundando o crucifixo em ouro. Com um estremecimento, Marie conteve a respiração. Seu pânico adquiria agora nova dimensão. Já vira aquela insígnia antes e lembrava-se apenas do horror que tinha sentido. A limusine parou, as duas portas da direita foram abertas pelo porteiro sorridente e obsequioso. Cinco padres desceram, um do banco da frente, quatro da parte de trás do carro. Estranhamente, os três últimos abriram caminho entre os transeuntes, e dois colocaram-se atrás da limusine. O outro passou por
Marie, roçando a batina negra no vestido dela, tão próximo que ela pôde ver os olhos penetrantes de alguém que não pertencia a ordem religiosa alguma... Então, associando o rosto ao emblema do carro, à insígnia religiosa, Marie lembrou-se! Anos atrás, quando David — quando Jason — fazia terapia intensiva com Panov, o psicanalista o aconselhava a desenhar qualquer imagem que lhe viesse à mente. Vezes sem conta ele desenhou aquele crucifixo... sempre quebrado ou atacado ferozmente com a ponta do lápis. O Chacal! Então Marie viu o homem alto, com suéter e calça escuros — que atravessava a rue de Rivoli mancando, desviando-se dos veículos, com a mão erguida protegendo o rosto da garoa que logo se transformaria em chuva. Ele não era manco! O movimento dos ombros, girando um pouco o corpo para compensar a perna rígida, era um movimento de desafio que ela conhecia muito bem. Era David! Outra pessoa, a menos de dois metros de onde ela estava, também o viu. O homem levou um pequeno transmissor aos lábios. Num movimento brusco, com os braços estendidos, como uma tigresa, Marie lançou-se sobre o falso padre. — David! — gritou ela, com as unhas tirando sangue do rosto do homem do Chacal. Os tiros ecoaram pela rue de Rivoli. O povo entrou em pânico, correndo para o hotel, outros fugindo dele, todos gritando, procurando fugir da insanidade assassina que explodia na rua civilizada de Paris. Na luta com o homem que ia matar seu marido, Marie, a canadense forte e decidida, tirou a automática do adversário e atirou na cabeça dele, espalhando no ar sangue e tecido. — Jason — gritou ela outra vez quando o assassino caiu, compreendendo que estava sozinha com o corpo do homem aos pés — um alvo perfeito! Então a morte certa transformou-se numa possibilidade de vida. O velho francês aristocrata, que a reconhecera no saguão do hotel, saiu correndo para a rua, atingindo com os tiros contínuos da sua automática todo o lado da limusine negra, parando por um instante para mudar o alvo e esfacelando as pernas de um dos “padres” que estava com a arma erguida, pronta para atirar. — Mon ami! — rugiu Bernardine. — Aqui! — gritou Bourne. — Onde está ela? — A votre droite! Auprès de... — Um tiro isolado partiu das portas de vidro do Meurice. Caindo, o veterano do Deuxième exclamou: — Les Capucines, mon ami. Les Capucines! Bernardine caiu na calçada e um segundo tiro pôs fim à sua vida. Marie estava paralisada. Tudo era uma chuva de gelo, um furacão de partículas geladas que explodia contra seu rosto, impedindo-a de pensar. Chorando descontroladamente, caiu de joelhos, depois desabou na calçada, seus gritos de desespero claros aos ouvidos do homem que de repente estava ao lado dela. — Meus filhos... oh, Deus, os meus filhos! — Nossos filhos — disse Jason Bourne com a voz de David Webb. — Vamos sair daqui, está
entendendo? — Sim, sim! — Com dificuldade, Marie levantou-se, ajudada pelo marido que não sabia mais se conhecia ou não. — David? — É claro que sou David. Vamos! — Você me assusta... — Eu me assusto. Vamos! Bernardine nos abriu o caminho para a fuga. Corra comigo, segure a minha mão! Correram pela rue de Rivoli, seguindo para o leste na avenue St. Michel até certificarem-se, pela nonchalance du jour dos transeuntes, que estavam a salvo dos horrores do Meurice. Pararam, abraçados, numa viela. — Por que você fez isso? — perguntou Marie segurando o rosto dele com as duas mãos. — Por que fugiu de nós? — Porque sou melhor sem você, sabe disso. — Mas não era antes, David. Ou devo dizer Jason? — Nomes não importam, precisamos sair daqui. — Para onde? — Não estou bem certo. Mas podemos sair, isso é o que importa. Bernardine nos deu uma saída. — O velho francês? — Não vamos falar nele, certo? Pelo menos, não por algum tempo. Já estou bastante abalado. — Tudo bem, não falaremos nele. Porém, ele mencionou Les Capucines — o que quis dizer? — É a nossa saída. Um carro está à minha espera na avenue des Capucines. Era isso que ele estava dizendo. Vamos! No Peugeot anônimo eles saíram de Paris, seguindo para o sul pela estrada Barbizon, que levava a Villeneuve St. Georges. Marie sentou-se juntinho do marido, seus corpos se tocando, a mão dela no braço dele. Mas sentia que o calor do seu carinho não era retribuído. Só uma parte daquele homem era seu David, o resto era agora dominado por Jason Bourne. — Por favor, fale comigo! — exclamou Marie. — Estou pensando... Por que veio a Paris? — Cristo! — explodiu ela. — Para encontrá-lo, para ajudá-lo!
— Tenho certeza de que pensou que estava fazendo a coisa certa... mas não estava, sabe? — Essa voz outra vez — protestou Marie. — Esse maldito tom de voz sem corpo! Quem diabo pensa que é para dizer isso? Deus! Para ser clara — não clara, mas brutal —, você tem dificuldade para se lembrar de certas coisas, meu querido. — Não sobre Paris — negou Jason. — Lembro-me de tudo sobre Paris. Tudo. — Seu amigo Bernardine não pensava assim! Ele me disse que você jamais teria escolhido o Meurice se tivesse se lembrado. — O quê? — Bourne olhou rapidamente para a mulher, — Pense. Por que escolheu — e você escolheu — o Meurice? — Não sei... Não tenho certeza. É um hotel, apenas me lembrei do nome. — Pense: O que aconteceu anos atrás no Meurice — bem na frente do Meurice? — Eu... sei que aconteceu alguma coisa... Você? — Sim, meu amor, eu. Eu me hospedei com um nome falso e você foi se encontrar comigo e andamos até a banca de jornais na esquina, onde, por um momento horrível, nós dois soubemos que minha vida jamais seria a mesma — com você ou sem você. — Oh, Jesus, eu tinha esquecido! Os jornais — sua fotografia nas primeiras páginas de todos os jornais. Você era a funcionária do governo canadense... — A economista canadense em fuga — interrompeu Marie —, caçada em toda a Europa, acusada de múltiplos assassinatos em Zurique ligados ao roubo de milhões dos bancos suíços! Esse tipo de publicidade jamais se apaga da Vida de uma pessoa. As acusações podem ser refutadas, sua falsidade provada e comprovada, mas a dúvida permanece: “Onde há fumaça há fogo”, diz o velho ditado. Meus próprios companheiros de trabalho em Ottawa... amigos muito queridos com os quais eu trabalhava há anos... tinham medo de falar comigo. — Espere um pouco! — exclamou Bourne, olhando outra vez rapidamente para a mulher de David. — As acusações eram falsas — um golpe de Treadstone para me atrair —, você foi a única que compreendeu isso. Eu não compreendi. — É claro, você estava sob forte tensão naquele tempo. Para mim não fez diferença, porque eu já havia tomado uma decisão, com minha mente analítica que está à altura da sua em qualquer circunstância, meu doce estudioso. — O quê? — Olhe para a estrada! Passamos a entrada, exatamente como você passou a entrada para a nossa casa de campo há poucos dias — ou foram anos?
— De que diabo está falando? — A pequena estalagem onde ficamos perto de Barbizon. Você pediu delicadamente para acenderem a lareira no restaurante — éramos os únicos hóspedes. Foi a terceira vez que eu vi, através da máscara de Jason Bourne, o homem pelo qual eu estava me apaixonando. — Não faça isso comigo. — Tenho de fazer, David. Nem que seja só por mim, agora. Preciso saber que você está aí. Silêncio. Jason deu a volta na grand-route e pisou fundo no acelerador. — Estou aqui — disse David, passando o braço direito pelos ombros de Marie e puxando-a para ele. — Não sei por quanto tempo, mas estou aqui. — Depressa, querido. — Certo. Mas quero ficar assim abraçado com você. — E eu quero telefonar para as crianças. — Agora eu sei que estou aqui.
Capítulo28 — VAI NOS CONTAR voluntariamente tudo que queremos saber, ou nós o lançaremos numa órbita química com a qual os raptores do Dr. Panov jamais sonharam — disse Peter Holland, diretor da CIA, sua voz baixa e monótona contundente e suave como granito polido. — Além disso, devo explicar os extremos aos quais estou disposto a recorrer, porque sou da velha escola, paisano. Não dou a mínima para os regulamentos que favorecem o lixo. Você banca o difícil comigo, e eu o afundo, ainda respirando, a 160 quilômetros do cabo Hateras, dentro de um torpedo. Fui claro? O capo subordinado, com a perna direita e o braço esquerdo engessados, estava deitado na cama da enfermaria deserta de Langley, deserta porque o diretor mandou que a equipe médica fosse para bem longe, para seu próprio bem. O rosto gorducho do mafioso parecia mais gordo por causa das equimoses em volta dos olhos e dos lábios naturalmente grossos, resultado do encontro de sua cabeça com o painel quando Mo Panov jogou o carro contra um carvalho de Maryland. Ele olhou para Holland com as pálpebras inchadas e depois para Conklin sentado ao lado da cama, segurando a indefectível bengala. — Não tem direito, seu “mandachuva” — disse o capo, desafiadoramente. — Porque eu tenho meus direitos, sabia? — O médico também tinha e vocês o violaram — Jesus, e como os violaram! — Não vou falar sem meu advogado. — Onde diabo estava o advogado de Panov? — gritou Alex, batendo com a bengala no chão. — Não é assim que o sistema funciona — protestou o capo, tentando erguer as sobrancelhas, indignado. — Além disso, eu fui bom com o doutor. Ele se aproveitou da minha bondade, Deus sabe! — Você é um comediante — disse Holland. — Um comediante nada divertido. Não temos advogados aqui, linguine, só nós três e uma cápsula de torpedo começa a se desenhar no seu futuro. — O que querem de mim? — exclamou o mafioso. — O que eu sei? Só faço o que me mandam, como fazia meu irmão mais velho — que descanse em paz — e meu pai — que descanse em paz também — e provavelmente o pai dele, de quem eu não sei nada. — Assim, como gerações e gerações vivendo à custa do governo, não é mesmo? — observou Conklin. — Os parasitas nunca saem da lista. — Ei, está falando da minha família, seja lá de que droga está falando. — Peço desculpas ao seu brasão de nobreza — disse Alex. — Pois é na sua família que estamos interessados, Augie — disse o diretor da CIA. — É Augie, não é? Esse é o nome numa das cinco carteiras de motorista e achamos que parece o mais autêntico.
— Pois você não é tão autenticamente inteligente, seu “mandachuva” — respondeu agressivamente o homem com os lábios inchados. — Não tenho nenhum daqueles nomes. — Temos de chamar você de alguma coisa — disse Holland. — Nem que seja para gravar a fogo na cápsula em Hateras para que algum arqueólogo, daqui a milhares de anos, possa dar uma identidade aos dentes que vai examinar. — Que tal Chauncy? — propôs Conklin. — Muito étnico — respondeu Peter. — Eu gosto de cretino, porque é isso que ele é. Vai ser amarrado dentro de um tubo e afundado na plataforma continental debaixo de oito quilômetros de água, pelos crimes cometidos por outros. Para mim, isso é que é ser cretino. — Pare com isso! — rugiu o cretino. — Tudo bem, meu nome é Nicolo... Nicholas Dellacroce, e só por contar isso vocês têm de me dar proteção! Como no caso de Valachi, faz parte do acordo. — É mesmo? — Holland franziu a testa. — Não me lembro de ter mencionado nenhum acordo. — Pois então não vai ter nada. — Está errado, Nicky — disse Àlex, no outro lado do quarta, pequeno. — Vamos conseguir tudo que queremos. O único inconveniente é que tem de ser tudo de uma vez. Não teremos tempo para outro interrogatório, nem para levar você ao tribunal federal, nem mesmo para fazê-lo assinar um depoimento. — Hein? — Você vai virar um vegetal com o cérebro derretido. É claro, pode ser uma bênção, de certo modo. Nem vai perceber quando entrar naquele tubo em Hateras. — Ei, do que está falando? — Simples lógica — respondeu o ex-comando naval e atual diretor da CIA. — Quando nossa equipe médica acabar com você, não espera que seja possível deixá-lo solto por aí, certo? Uma autópsia ia atrasar nossa vida em trinta anos e, francamente, não temos tempo para isso... Então, o que vai ser, Nicky? Quer falar conosco ou prefere um padre? — Tenho de pensar... — Vamos embora, Alex — disse Holland secamente, caminhando para a porta. — Vou mandar o padre. Este pobre filho da mãe vai precisar de todo o consolo possível. — Em momentos como este — observou Conklin, levantando, apoiado na bengala — é que eju penso seriamente na desumanidade do homem para com o homem. Então procuro explicar. Não é brutalidade, pois isso não passa de uma abstração descritiva. Trata-se apenas do método de comércio que nos envolve. Porém, o indivíduo existe — com mente, carne e seus sensíveis terminais nervosos. E a dor excruciante. Graças a Deus eu sempre estive em segundo plano, fora de alcance — como os companheiros de Nicky. Eles comem em restaurantes elegantes e ele vai dentro de um tubo para a
plataforma continental, a oito quilômetros de profundidade, com o corpo explodindo dentro dele mesmo. — Tudo bem, tudo bem — gritou Nicolo Dellacroce, contorcendo o corpo obeso sob as cobertas. — Façam suas drogas de perguntas, mas vocês me dão proteção, capisce? — Isso depende da veracidade das suas respostas — disse Holland, voltando para o lado da cama. — Se fosse você, eu seria muito sincero, Nicky — observou Alex, claudicando de volta para a cadeira. — Uma mentira e vai dormir com os peixes — acho que é assim que se diz. — Não preciso que me ensinem, eu sei onde está a verdade. — Vamos começar, Sr. Dellacroce — disse o chefe da CIA, tirando do bolso um pequeno gravador. Verificou se estava em ordem e colocou-o sobre a mesa-de-cabeceira. Depois puxou uma cadeira para perto da cama e continuou a falar, dirigindo a introdução ao gravador. — Meu nome é Almirante Peter Holland, atualmente diretor da Agência Central de Inteligência, ã confirmação da minha voz pode ser feita, se for necessário. Esta é uma entrevista com um informante, que chamaremos de John Smith, características da voz seguem no teipe central da agência, identificação nos arquivos confidenciais do diretor... Tudo bem, Sr. Smith, vamos deixar de lado as bobagens e partir para as perguntas essenciais. Para sua proteção, vou generalizar as perguntas na medida do possível, mas vai saber exatamente do que estou falando e eu espero respostas específicas... Para quem o senhor trabalha, Sr. Smith? — Atlas Coin Vending Machines, Long Island City — respondeu Dellacroce, arrastando as palavras e com voz zangada. — Quem é o dono? — Eu não sei. Quase todos nós trabalhamos em casa — uns 15 ou vinte caras, sabe o que quero dizer? Nós fazemos a manutenção das máquinas e mandamos nossos relatórios. Holland olhou para Conklin e trocaram um sorriso. Com uma única resposta, o mafioso colocava-se dentro de um vasto círculo de informantes em potencial. O jogo não era novo para Nicolo. — Quem assina seus contracheques, Sr. Smith? — Um Sr. Louis DeFazio, um comerciante legítimo, ao que eu sei. Ele distribui nosso trabalho. — Sabe onde ele mora? — Brooklyn Heights. No rio, foi o que me disseram. — Para onde estava indo quando foi interceptado por nossos homens? Dellacroce fez uma careta e fechou um olho inchado, por um momento, antes de responder.
— Para um daqueles buracos de bebida e drogas no sul de Filadélfia — que você já conhece, seu “mandachuva”, porque encontrou marcado no mapa do carro. Holland, furioso, desligou o gravador. — Você está a caminho de Hateras, seu filho da mãe! — Ei, você consegue sua informação a seu modo, eu dou a minha, certo? Tinha um mapa — sempre tem um mapa — e a gente tinha de andar por aquelas malditas estradas secundárias até o lugar, como se estivesse levando o presidente ou um don superior, para uma conferência nos Apalaches... Você me dá um bloco de notas e um lápis que eu desenho o lugar certinho, até a placa de bronze na pedra do portão. — O mafioso ergueu o braço não engessado e apontou o indicador para o diretor da CIA. — Vai ser o lugar exato, seu “mandachuva” porque não quero dormir com os peixes, capisce? — Mas não quer que seja gravado — disse Holland intrigado. — Por quê? — Essa merda de gravador? Como foi que o chamou? Uma besteira qualquer central da agência? O que está pensando... que a nossa gente não pode entrar nessa sua coisa central? Ha-ha! Aquela merda de médico de vocês podia ser um dos nossos! — Não é, mas vamos apanhar um médico do exército que é. — Peter Holland apanhou o bloco e o lápis da mesa-de-cabeceira e os entregou a Dellacroce. Não ligou o gravador. Estavam além dos acessórios comuns, no jogo para valer Na cidade de Nova York, rua 138, entre a Broadway e a avenida Amsterdam, o centro do Harlem, um homem negro e grande cambaleou para a calçada. Raspou o muro de tijolos de um prédio miserável de apartamentos e continuou a andar, com o rosto barbado quase encostando na gola suja da túnica do exército. — Pelo jeito que me olham — disse ele em voz baixa no microfone sob a gola da camisa — parece que acabo de invadir o colo superior do distrito branco comercial de Palm Springs. — Você está indo muito bem — respondeu a voz metálica no minúsculo aparelho preso na camisa do agente. — O lugar está cercado, você será avisado com bastante antecedência. Aquela secretária eletrônica está tão estragada que solta fumaça e assobia. — Como foi que vocês dois entraram naquele buraco de rato esta manhã? — Chegamos muito cedo, tão cedo que ninguém viu nossas caras. — Mal posso esperar para ver vocês saindo de lá. É um condomínio um tanto exclusivo. Por falar nisso, os tiras da área estão avisados? Eu não gostaria nada de ser detido, depois de deixar crescer esta barba que parece cerda de javali. Coca como o diabo e minha nova mulher de três meses não gosta nem um pouco. — Você devia ter ficado com a primeira, meu chapa.
— Muito engraçadinho, garoto branco. Ela não gostava da hora nem da geografia. Assim como eu passar semanas seguidas brincando no Zimbabwe. Responda, por favor? — Os tiras têm a sua descrição e conhecem o plano. Você faz parte de uma operação federal, portanto, eles não o importunarão... Espere! A conversa acabou. Esse tem de ser o nosso homem, tem uma sacola da telefônica no cinto... É ele. Está indo para a entrada. É todo seu, Imperador Jones. — Garotinho branco engraçadinho... Já vi o homem e posso dizer que é uma musse macia de chocolate. Está morrendo de medo de entrar no prédio. — O que significa que ele é mesmo da telefônica — disse a voz metálica na gola da blusa do agente. — Isso é ótimo. — Isso é péssimo, meu filho — disse o agente negro imediatamente. — Se você estiver certo, ele não sabe de nada, e as camadas entre ele e a fonte principal são tão espessas quanto melado do sul. — Oh! Então, qual a sua idéia? — Tecnologia local. Tenho de ver os números quando ele os programar no seu aparelho de conserto. — Que diabo significa isso? — Ele pode ser da telefônica, mas também está assustado e não por causa do lugar. — O que quer dizer? — Está na cara, homem. Ele pode programar com números falsos se desconfiar que está sendo vigiado. — Não estou entendendo nada, cara. — Ele tem de duplicar os números que correspondem ao controle remoto para fazer funcionar os bips... — Esqueça. Isso é alta tecnologia e eu não entendo. Além disso, temos um homem na companhia Reco-qualquer-coisa. Ele está à sua espera. — Então, preciso trabalhar. Desligo, mas continue a me monitorar. O agente levantou da calçada e com passos incertos dirigiu-se para o prédio dilapidado. O homem da telefônica chegou ao segundo andar e virou para a direita no corredor estreito e sujo. Evidentemente conhecia o caminho, pois não hesitou nem um momento, nem verificou os números quase ilegíveis nas portas. As coisas iam ser um pouco mais fáceis, pensou o homem da CIA, agradecendo o fato daquela missão estar fora do campo de ação da agência. Fora do campo de ação era dizer pouco, era completamente ilegal. O agente subiu a escada de três em três degraus, as solas de borracha macia amortecendo seus
passos, embora sem evitar os estalos da escada velha de madeira. Encostando-se na parede, espiou para o corredor cheio de lixo e viu o homem inserir três chaves em três fechaduras verticais, girando uma de cada vez e entrando na última porta à esquerda. As coisas talvez não fossem tão fáceis, afinal, pensou o agente. Assim que o homem fechou a porta, ele correu silenciosamente pelo corredor e parou perto da porta, imóvel, escutando. Nada genial, mas tampouco o pior, pensou ele, ouvindo o ruído de uma única fechadura. O homem estava com pressa. Encostou o ouvido na pintura descascada da parede e prendeu a respiração. Trinta segundos depois, virou a cabeça, soltou o ar, respirou fundo e voltou para a porta. Ouviu as palavras abafadas, mas perfeitamente compreensíveis. — Central, aqui é Mike na rua 138, seção 12, aparelho 16. Existe outra unidade no prédio, se você disser que existe não vou acreditar. — Seguiu-se um silêncio de mais ou menos vinte segundos. — ... Não temos, certo? Bem, temos a interferência de uma freqüência que não faz sentido... O quê? Televisão a cabo? Ninguém neste lugar tem grana para isso... Ah, peguei, irmão. Cabo de área. Os caras da droga levam boa vida, não é mesmo? Os endereços podem ser uma merda, mas dentro de casa eles têm um montão de coisas finas... Então, libere a linha e ligue outra vez. Vou ficar aqui até ouvir um sinal perfeito, certo, irmão? O agente afastou-se um pouco outra vez para respirar, agora de alívio. Podia ir embora sem nenhum confronto, já tinha o que precisava. Rua 138, seção 12, aparelho 16, e eles sabiam o nome da firma que havia instalado o equipamento. A Reco-Metropolitan Company, Sheridan Square, Nova York. Os branquinhos poderiam fazer o serviço agora. Voltou para a escada e ergueu a gola da túnica. — Se eu for atropelado por um caminhão, aqui vão os dados. Está me ouvindo? — Alto e claro, Imperador Jones. — Aparelho 16 no que eles chamam de seção 12. — Já anotei! Você fez jus ao seu ordenado. — Você podia pelo menos dizer, “notável, meu chapa”. — Ora, você é o cara que esteve na universidade, não eu. — Alguns de nós somos excepcionais... Espere! Tenho companhia! Lá embaixo apareceu um negro pequeno e troncudo com os olhos saltados pregados no agente e uma arma na mão. O homem da CIA rapidamente protegeu-se no canto da parede e quatro tiros sucessivos ecoaram no corredor. Lançando-se para a frente e tirando a arma do coldre, o agente atirou duas vezes, mas o primeiro tiro fez o serviço. O assaltante caiu no chão imundo do hall. — Peguei um ricochete ria perna — exclamou o agente. — Mas ele está no chão — não sei se completamente morto. Traga o carro e tire a gente daqui. Rápido. — Carro a caminho. Fique onde está! Passava um pouco das oito na manhã seguinte quando Alex Conklin entrou mancando no
escritório de Peter Holland, impressionando os guardas nos portões da CIA com seu acesso imediato ao gabinete do diretor. — Alguma coisa? — perguntou Holland, erguendo os olhos dos papéis na sua mesa. — Nada — respondeu Conklin irritado, preferindo o sofá encostado na parede à cadeira. — Nada de nada. Jesus, que droga de dia e nem começou ainda! Casset e Valentino estão no porão enviando mensagens para todos os esgotos de Paris e até agora, nada... Cristo, olhe para o cenário e me mostre uma pista! Swayne, Armbruster, DeSole — nosso filho da mãe mudo, a toupeira. Depois, para piorar, Teagarten com o cartão de visitas de Bourne, quando sabemos perfeitamente que é uma armadilha para Jason, planejada pelo Chacal. Mas não há nenhuma ligação lógica entre Carlos e Teagarten e, conseqüentemente, com a Medusa. Nada faz sentido, Peter. Perdemos o fio da meada — tudo está confuso! — Acalme-se — disse Holland. — Como vou me acalmar? Bourne desapareceu — quero dizer, desapareceu de verdade, se não estiver morto. E nem sinal de Marie, nem uma palavra dela, então somos informados de que Bernardine foi morto num tiroteio, poucas horas atrás, na rue de Rivoli — Cristo, assassinado em plena luz do dia! E isso significa que Jason estava lá, tinha de estar! — Uma vez que nenhum dos mortos ou feridos corresponde à descrição dele, Jason deve ter fugido, certo? — Sim, devemos esperar isso. — Você pediu uma pista — disse o diretor pensativo. — Não tenho certeza se posso dar uma, mas posso dar algo bem parecido. — Nova York? — Conklin inclinou-se para a frente no sofá. — A secretária eletrônica? Aquele assecla de DeFazio, em Brooklyn Heights? — Vamos chegar a Nova York, a tudo isso — a todos eles. Mas no momento, concentremo-nos naquela pequena pista de que você falou, aquele ponto central. — Não sou o garoto mais burro do bairro, mas onde está ela? Holland recostou-se na cadeira, olhou para os papéis sobre a mesa, depois para Alex. — Setenta e duas horas atrás, quando resolveu contar tudo, você disse que a base da estratégia de Bourne era convencer o Chacal e a moderna Medusa a unirem suas forças, tendo Bourne como alvo comum, alimentando-se mutuamente. Não era essa a intenção básica? Os dois lados queriam Bourne morto. Carlos tinha dois motivos — vingança e o fato de acreditar que Bourne pode identificá-lo; os medusianos, porque Bourne sabe muito sobre eles. — Sim, essa era a premissa principal — concordou Conklin, com um gesto afirmativo. — Por isso eu pesquisei e dei aqueles telefonemas, jamais esperando encontrar o que encontrei. Jesus, um
cartel mundial nascido há vinte anos em Saigon, formado pelos maiorais dentro e fora do governo e das forças armadas. Foi o tipo de mina que eu não estava procurando. Pensei que ia descobrir uns dez ou 12 milionários importantes, com contas bancárias muito aumentadas depois de Saigon e que podiam ser examinadas, mas nunca isto, não esta Medusa. — Simplificando a coisa — continuou Holland, franzindo a testa, olhando outra vez para os papéis à sua frente, depois para Alex. — Uma vez feita a conexão entre a Medusa e Carlos, o Chacal seria informado de que a Medusa queria eliminar um homem, e que dinheiro não era problema. Certo, até aqui? — A chave, nesse caso, era o calibre e a posição dos homens que iam procurar Carlos — explicou Conklin. — Deviam ser os mais genuínos membros do Olimpo que pudéssemos encontrar, o tipo de cliente que o Chacal não tem e nunca teve. — Então, seria revelado o nome do alvo — digamos, algo assim como, “John Smith, há anos atrás conhecido como Jason Bourne” — e o Chacal mordia a isca. Bourne, o homem que ele mais deseja ver morto. — Sim, por isso os medusianos que fossem falar com Carlos precisavam ser consistentes, tão acima de qualquer suspeita que Carlos os aceitasse sem pensar em uma armadilha. — Porque — continuou Holland — Jason Bourne pertenceu à Medusa de Saigon — um fato conhecido por Carlos — mas nunca compartilhou da prosperidade da nova Medusa. Esse é o cenário de fundo, certo? — A lógica é perfeita. Durante três anos ele foi usado e quase morreu numa operação secreta, e durante esse tempo, supostamente descobriu que muitos dos antigos homens de Saigon, sem nenhum mérito, estavam dirigindo Jaguares, passeando em iates e com ordenados que eram verdadeiras fortunas, ao passo que ele tinha de se contentar com a aposentadoria do governo. Era para tentar a paciência de São João Batista, para não falar em Barrabás. — Um libreto magnífico — concedeu Holland, com um lento sorriso. — Posso ouvir os tenores pairando em triunfo e os baixos maquiavélicos desaparecendo do palco, derrotados... Não faça essa cara para mim, Alèx! Estou falando sério! É realmente engenhoso. Tão inevitável que tornou-se uma profecia automaticamente realizada. — De que diabo está falando? — Seu Bourne estava certo desde o começo. Tudo aconteceu como ele previu, mas não como ele podia imaginar. Porque era inevitável, em algum lugar devia existir um contrapolinizador. — Por favor, desça de Marte e explique para um terráqueo, Peter. — Medusa usando o Chacal! Agora. O assassinato de Teagarten prova isso, a não ser que você ache que foi Bourne quem explodiu aquele carro em Bruxelas. — É claro que não.
— Então o nome de Carlos foi revelado a alguém de Medusa que já sabia de Jason Bourne. Não podia ser de outro modo. Você não mencionou nenhum dos dois para Armbruster, nem para Swayne ou para Atkinson, em Londres, mencionou? — Mais uma vez, é claro que não. Não era a hora certa, não estávamos prontos para puxar esses gatilhos. — Sobra quem? — perguntou Holland.Alex olhou para o diretor da CIA. — Meu Deus — disse em voz baixa. — DeSole? — Isso mesmo, DeSole, o especialista muito mal pago que se queixava incessantemente, em tom de brincadeira, dizendo que nenhum homem podia dar educação aos filhos e aos netos com o que ganhava trabalhando para o governo. Ele esteve presente a todas as nossas conversas, começando com o assalto na sala de conferências. — Sim, ele esteve, mas isso foi limitado a Bourne e ao Chacal. Ninguém mencionou Armbruster, Swayne, Teagarten ou Atkinson — a nova.Medusa nem apareceu em cena. Diabo, Peter, você não sabia até 72 horas atrás. — Certo, mas DeSole sabia porque tinha se vendido, era parte da coisa toda. Naturalmente foi avisado... “Cuidado. Fomos infiltrados. Um maníaco está ameaçando expor a nossa organização, acabar conosco...” Você mesmo disse que a Comissão de Comércio enviou mensagens de pânico para o Pentágono e para Londres. — Sim, foram enviadas — concordou Conklin. — Tão apavoradas que dois deles tiveram de ser eliminados, além de Teagarten e nossa pobre toupeira. Os líderes da Mulher Serpente resolveram rapidamente quem era vulnerável. Mas onde Bourne e Carlos entram nisso? Não vejo nenhuma ligação. — Pensei que tínhamos concordado que há uma ligação. — DeSole? — Conklin balançou a cabeça. — Uma idéia interessante, mas não cola. Ele não podia supor que eu sabia sobre a infiltração da Medusa, porque nem tínhamos começado. — Mas quando começamos, a seqüência tinha de preocupá-lo, nem que fosse só no sentido de que, mesmo em pólos opostos, uma crise vinha logo depois da outra. Com que intervalo? Uma questão de horas? — Menos de 24 horas... Porém, estavam em pólos opostos. — Não para o analista dos analistas — observou Holland. — Se uma coisa anda como um pato e crocita como um pato, procure um pato. Estou quase certo de que em algum lugar, em algum momento, DeSole fez as conexões entre Jason Bourne e o louco que havia se infiltrado na Medusa — a nova Medusa. — Pelo amor de Deus, como?
— Não sei. Talvez porque você nos disse que Bourne pertencera à velha Medusa de Saigon — é uma conexão danada de clara. — Meu Deus, você pode estar certo — disse Alex, recostando-se no sofá. — A força impulsora que atribuímos ao nosso louco anônimo foi o fato de ele ter sido ignorado pela nova Medusa. Eu mesmo disse isso em todos os telefonemas. “Ele levou anos para juntar as provas...” “Ele tem nomes, postos e os bancos de Zurique...” Jesus, eu sou cego! Eu disse essas coisas a completos estranhos para jogar verde, e sem pensar mencionei o fato de Bourne ter pertencido à Medusa naquela reunião em que DeSole estava presente. — Por que você ia pensar nisso? Você e seu homem resolveram fazer um jogo separado, só os dois. — Nossas razões eram mais do que válidas — disse Conklin. — Pelo que eu sabia, você podia pertencer à Medusa. — Muito obrigado. — Ora, vamos, não venha com essa. “Temos um cara importante em Langley”... foi o que ouvi de Londres. O que você teria pensado, o que teria feito? — Exatamente o que você fez — respondeu Holland com um sorriso. — Mas você tem fama de inteligente, muito mais inteligente do que eu. — Muito obrigado. — Não seja tão severo com você mesmo. Você fez o que qualquer um de nós teria feito em seu lugar. — Por isso eu agradeço de verdade. E você está certo, é claro. Tinha de ser DeSole. Não sei como ele conseguiu, mas tinha de ser ele. Provavelmente procurou nos antigos arquivos do seu cérebro — ele jamais esquecia nada, você sabe. Sua mente era uma esponja que absorvia tudo e ele jamais deixava escapar uma lembrança. Ele se lembrava de palavras e frases, até resmungos espontâneos de aprovação ou desaprovação que nós todos esquecemos... E eu dei a ele toda a história Bourne-Chacal — então, alguém da Medusa a usou em Bruxelas. — Fizeram mais do que isso, Alex — disse Holland, inclinando-se para a frente e procurando entre os papéis. — Roubaram seu script, usurparam sua estratégia. Eles atiçaram Bourne contra o Chacal, mas os controles não estavam nas suas mãos, e sim nas deles. Medusa está com o controle. Bourne está de volta à Europa, exatamente como há 13 anos, talvez com a mulher, talvez não, com a única diferença de que, além de Carlos e da Interpol e de toda a polícia do continente, tem agora outro inimigo mortal. — Isso está nesses papéis em sua mão, não está? A informação de Nova York? — Não posso garantir, mas acho que sim. É o contra-polinizador de que falei, a abelha que vai de uma flor apodrecida pra outra, carregando veneno.
— Diga logo do que se trata. — Nicolo Dellacroce e os maiorais acima dele. — Máfia? — É consistente, embora não aceitável socialmente. A Medusa originou-se do corpo de oficiais de Saigon e ainda entrega o trabalho sujo aos famintos e corruptos inferiores. Veja Nicky D. e homens como o sargento Flannagan. Quando se trata de matar ou seqüestrar ou de usar drogas em prisioneiros, os garotos de camisa engomada ficam bem longe, ninguém pode encontrá-los. — Mas suponho que você os encontrou — disse Conklin, impaciente. — Achamos que sim. Por “nós” quero dizer nossa gente em consulta discreta com a divisão anticrime de Nova York, especialmente uma unidade chamada patrulha U.S. — Nunca ouvi falar. — São quase todos ítalo-americanos e denominam-se os Untouchables Sicilians. Daí o U.S. com conotação dupla. — Sicilianos Intocáveis, muito interessante. — Trabalho da unnice... De acordo com os arquivos da Reco-Metropolitan... — Ao quê? — A companhia que instalou a secretária eletrônica na rua 138, em Manhattan. — Desculpe, continue. — De acordo com os arquivos, o aparelho foi alugado a uma pequena firma importadora da Décima Primeira Avenida, a alguns quarteirões do cais. Há uma hora recebi a lista de telefonemas da companhia nos últimos dois meses e adivinha o que descobrimos? — Prefiro não esperar — disse Alex. — Nove telefonemas para um número razoavelmente aceitável em Brooklyn Heights e três no espaço de uma hora para um telefone nada aceitável na Wall Street. — Alguém ficou nervoso... — Foi o que pensamos — “nós”, neste caso, nossa própria unidade. Pedimos aos sicilianos toda a informação que tinham sobre Brooklyn Heights. — DeFazio? — Vamos dizer o seguinte. Ele mora lá, mas o telefone está no nome da Atlas Coin Vending
Compàny, em Long Island. — Confere. É idiota, mas confere. E DeFazio? — É um capo de nível médio, muito ambicioso, da família Giancavallo. Ele é muito fechado, muito mundo subterrâneo, muito cruel... e muito gay. — Cristo Santíssimo! — Os Intocáveis nos fizeram jurar que guardaríamos segredo. Querem tratar dele pessoalmente. — Besteira — disse Conklin, suavemente. — Uma das primeiras coisas que aprendemos neste serviço é mentir para todo mundo, especialmente para quem é bastante tolo para confiar em nós. Usamos o segredo sempre que nos ajuda a dar um passo à frente... Qual é o outro número de telefone, o menos aceitável? — Uma das mais poderosas firmas de Wall Street, talvez a mais poderosa. — Medusa — disse Conklin. — Foi o que entendi. Eles têm 66 advogados em dois andares do prédio. Qual deles é Medusa — ou quem, entre eles, é Medusa? — Não me interessa a mínima! Vamos em cima de DeFazio e do controle que ele vai mandar para Paris. Para a Europa, para alimentar o Chacal. Eles são os assassinos que estão atrás de Jason e é só isso. que me interessa. Comece a trabalhar DeFazio. Ele é que tem o contrato!Peter Holland inclinou-se para trás na cadeira, rígido, tenso. — Tinha de chegar a isto, não é, Alex? — perguntou em voz baixa. — Nós dois temos nossas prioridades... Eu faria qualquer coisa dentro da autoridade do meu cargo para salvar as vidas de Jason Bourne e de sua mulher, mas não vou quebrar meu juramento de defender este país em primeiro lugar. Não posso fazer isso e acho que você sabe. Minha prioridade é a Medusa, em suas palavras, um cartel mundial que pretende ser um governo dentro do nosso governo. É atrás dela que eu vou. Em primeiro lugar e sem me preocupar com as prováveis baixas. Para ser claro, meu amigo — e espero que seja meu amigo —, os Bourne, ou sejam lá quem forem, são descartáveis. Sinto muito, Alex. — Foi para isso que me chamou aqui esta manhã, não, foi? — disse Conklin, firmando a bengala no chão e levantando-se com dificuldade. — Sim, foi. — Você tem seu plano de jogo contra a Medusa — e não podemos tomar parte nele. — Não, não podem. É um conflito fundamental de interesses. — Pois pode ficar certo de uma coisa. Você vai ficar todo atrapalhado no momento em que eu conseguir ajudar Jason e Marie. Naturalmente, na minha opinião particular e profissional, se toda a
droga do governo dos Estados Unidos não pode desmantelar uma Medusa sem sacrificar um homem e uma mulher que já deram tanto ao país, não sei se vale um centavo. — Eu também não sei — disse Holland, levantando-se. — Mas eu irei tentar — de acordo com as prioridades que jurei defender. — Será que tem alguma coisa interessante ainda para mim? — Qualquer coisa que não comprometa nossa ação contra a Medusa. — Que tal dois lugares num avião militar para Paris, com imunidade diplomática da CIA? — Alex, você está louco! — Acho que você não compreende, Peter. A mulher de Mo morreu quando completavam dez anos de casamento e eu nunca tive a coragem de tentar. Portanto, você tem de compreender, “Jason Bourne” e Marie são a única família que eu tenho. Ela faz um bolo de carne delicioso, se quer saber. — Duas passagens para Paris — disse Holland, em-palidecendo.
Capítulo29 MARIE OBSERVAVA O marido que andava de um lado para o outro com passos decididos e vigorosos, entre a escrivaninha e as cortinas ensolaradas das duas janelas que davam para o gramado do Auberge des Artistes, em Barbizon. O hotelzinho no campo era o que Marie lembrava, mas não fazia parte da lembrança de David Webb e quando ele disse isso, Marie fechou os olhos por um instante, ouvindo outra voz ecoando de anos atrás. “Acima de tudo, ele deve evitar estresse extremo, o tipo de tensão que acompanha a sobrevivência em circunstâncias de perigo de vida. Se você perceber que ele está regredindo para esse estado mental — e vai saber, quando acontecer —, faça com que ele pare. Procure seduzi-lo, bata no rosto dele, chore, fique zangada... qualquer coisa, mas não deixe que continue.” Morris Panov, amigo querido, médico e força orientadora da terapia do seu marido. Marie tentara a sedução minutos depois de estarem a sós. Foi um erro, quase uma farsa, desagradável para ambos. Nenhum dos dois estava realmente disposto. Mas não se afastaram. Abraçaram-se na cama, compreendendo. — Somos um par de supersexuados, não somos? — disse Marie. — Já aconteceu antes — respondeu David Webb, suavemente —, e não tenho dúvida de que vai acontecer outra vez. — Então Jason Bourne levantou-se. — Preciso” fazer uma lista — disse com urgência na voz, dirigindo-se para a mesinha delicada encostada na parede, que servia de escrivaninha e onde estava o telefone. — Precisamos saber onde estamos e para onde vamos. — E eu tenho de telefonar para Johnny, na ilha — disse Marie, levantando-se e alisando a saia. — Depois de falar com ele, quero falar com Jamie para dizer que está tudo bem e que logo estaremos de volta. — Marie dirigiu-se para o telefone e o marido — que não era bem seu marido — colocou-se na frente dela. — Não — disse Bourne em voz baixa, balançando a cabeça. — Não diga não para mim — protestou ela com os olhos cintilando de fúria. — O que aconteceu na rue de Rivoli mudou tudo. Nada é a mesma coisa agora. Você não compreende? — Compreendo que meus filhos estão muito longe de mim e que pretendo falar com eles. Você não compreende isso? — É claro que sim, mas não posso permitir — respondeu Jason.
— Vá para o inferno, Sr. Bourne! — Quer me ouvir?... Você vai falar com Johnny e com Jamie. Nós dois vamos falar com eles. Mas não daqui e não enquanto estiverem na ilha. — O quê...? — Vou telefonar para Alex dentro de alguns minutos e mandar que tire todos de lá, incluindo a Sra. Cooper, é claro. Marie olhou para ele e entendeu. — Oh, meu Deus, Carlos! — Isso mesmo. Desde o que aconteceu hoje ele só tem um lugar para atacar — Tranqüilidade. Se não sabe ainda, logo vai saber que Jamie e Alison estão com Johnny. Eu confio no seu. irmão e nos seus Tontons Macoutes particulares, mas mesmo assim quero todos longe da ilha antes da noite. Não sei se Carlos tem espiões na ilha que podem interceptar um telefonema daqui, mas sei que o telefone de Alex é seguro. Por isso você não pode telefonar agora. Daqui para a ilha. — Então, telefone para Alex! Que diabo está esperando? — Não estou bem certo. — Por um momento Marie percebeu um vazio de pânico nos olhos do marido — os olhos de David Webb, não de Jason Bourne. — Preciso resolver — para onde vou mandar as crianças? — Alex deve saber, Jason — disse Marie, com os olhos nos dele. — Agora. — Sim... sim, é claro. Agora. — A expressão velada e vazia desapareceu e Bourne apanhou o telefone. Alexander Conklin não estava em Vienna, Virgínia, EUA. A voz monótona da telefonista soou como um trovão para Bourne. “O número chamado foi desligado.” Bourne ligou mais duas vezes, esperando desesperada-mente que fosse um engano do serviço telefônico francês. Então vieram os relâmpagos. “O número chamado foi desligado.” Pela terceira vez. Bourne começou a andar no quarto, da mesa até as janelas e de volta para a mesa. Abria as cortinas, olhava ansiosamente para fora, depois voltava à lista crescente de nomes de pessoas e lugares. Marie sugeriu que fossem almoçar, ele não ouviu. Então ela o observou em silêncio. Os movimentos rápidos e bruscos eram como os de um gato suave, fluido, alerta para o inesperado. Eram os movimentos de Jason Bourne e, antes dele, de Delta da Medusa, não de David Webb. Marie lembrou-se dos relatórios médicos compilados por Mo Panov nos primeiros dias da terapia. Muitos eram cheios de descrições divergentes de pessoas que afirmavam ter visto o Camaleão, mas entre os mais confiáveis estava a referência comum aos movimentos felinos do “assassino”. Panov estava procurando pistas da identidade de Jason Bourne, pois tudo que tinham, naquela época, eram um
primeiro nome e imagens fragmentadas de mortes dolorosas no Camboja. Mo muitas vezes perguntavase em voz alta se havia mais na destreza do paciente do que mero preparo físico. Por mais estranho que fosse, não havia. Lembrando agora, Marie sentia que as pequenas diferenças físicas entre os dois homens que eram seu marido a fascinavam e a repeliam. Ambos eram musculosos e ágeis, ambos capazes de realizar tarefas difíceis que exigiam perfeita coordenação física. Mas, enquanto a força e a mobilidade de David eram produto de um calmo senso de realização, em Jason eram repletas de malícia, sem nenhum prazer na realização, com um objetivo hostil. Quando mencionou isso a Panov, a resposta foi sucinta. “David nunca poderia matar. Jason pode, foi treinado para isso”. Mo, porém, ficou satisfeito por ela ter notado as diferentes “manifestações físicas”, como ele chamava. “E outro aviso para você. Quando você estiver vendo Bourne, traga David de volta o mais rápido possível. Se não puder, me chame”. Marie não podia trazer David de volta agora. Pelas crianças, por ela e por David, não ousava tentar. — Vou sair um pouco — disse Jason, perto da janela. — Não pode! — exclamou Marie. — Pelo amor de Deus, não me deixe sozinha. Bourne franziu a testa, como que enfrentando um conflito indefinível e disse em voz baixa: — Só vou de carro até a estrada para ver se encontro um telefone. — Leve-me com você. Por favor. Não posso mais ficar sozinha. — Está bem... Na verdade, precisamos comprar umas coisas. Vamos procurar uma daquelas galerias e comprar roupas — escovas de dentes, um aparelho de barba, e outras coisas de que nos lembrarmos. — Quer dizer que não podemos voltar a Paris? — Podemos e provavelmente voltaremos, mas não para os nossos hotéis. Está com seu passaporte? — Passaporte, dinheiro, cartões de crédito, tudo. Estão na minha bolsa, que só fiquei sabendo que estava comigo quando você me entregou no carro. — Não achei que era uma boa idéia deixá-la no Meurice. Vamos. O telefone primeiro. — Vai telefonar para quem? — Para Alex. — Você acabou de telefonar.
— Para o apartamento dele. Ele foi expulso da casa segura da Agência, na Virgínia. Então, vou falar com Mo Panov. Vamos. Seguiram para o sul até a cidadezinha de Corbeil-Essones, onde havia um shopping center relativamente novo, alguns quilômetros a oeste da estrada principal. O centro comercial movimentado era uma agressão à paisagem do campo, mas uma bênção para os fugitivos. Jason estacionou o carro e como um casal comum passearam pelo complexo, procurando desesperadamente um telefone. — Nem um maldito telefone na estrada! — disse Bourne com os dentes cerrados. — O que acham que os motoristas devem fazer em caso de acidente ou pneu furado? — Esperar a polícia — respondeu Marie. — E há um telefone, só que estava quebrado. Talvez por isso não existam outros. Lá está um. Mais uma vez Jason submeteu-se ao processo irritante de uma ligação internacional através das telefonistas locais que não gostavam de se comunicar com o ramo internacional do sistema telefônico. E então o trovão voltou, distante, mas implacável. — Aqui fala Alex — disse a voz gravada. — Estarei fora por algum tempo, visitando um lugar onde foi cometido um erro grave. Telefone dentro de cinco ou seis horas. Agora são 9:30h da manhã, hora da costa leste. Desligo, Juneau. Atônito, com a mente num turbilhão, Bourne desligou e olhou para Marie. — Aconteceu alguma coisa e preciso pensar. A mensagem terminou com “Desligo, Juneau”. — Juneau? — Marie entrecerrou os olhos, depois abriu-os. — Alfa, Bravo, Charlie — acrescentou em voz baixa. — Alfabetos militares alternativos — disse então, falando depressa. — Foxtrot, Golf... Índia, Juneau! Juneau para J e J para Jason!... Como é o resto? — Ele foi visitai um lugar... — Venha, vamos andar. — Marie notou a curiosidade de dois homens que esperavam para usar o telefone e segurando o braço de Jason, puxou-o para fora da cabine. — Ele podia ser mais explícito — observou, quando começaram a andar. — Era uma gravação. “... onde foi cometido um erro grave”. — Um o quê? — Ele disse para telefonar dentro de cinco ou seis horas — estava indo a um lugar onde foi cometido um erro — grave? — meu Deus, é Rambouillet! — O cemitério...?
— Onde ele tentou me matar há 13 anos. É isso! Rambouillet! — Não em cinco ou seis horas — observou Marie. — Não importa a hora da mensagem, ele não podia voar para Paris e chegar a Rambouillet em cinco horas. Ele estava em Washington. — É claro que podia. Nós fizemos isso antes, Um jato do exército saindo da base Andrews da Força Aérea, com imunidade diplomática. Peter Holland o expulsou, mas deu um presente de despedida. Separação imediata, mas um bônus por lhe entregar a Medusa. — Bourne consultou o relógio. — É mais ou menos meio-dia nas ilhas, agora. Vamos procurar outro telefone. — Johnny? Tranqüilidade? Você acha mesmo que... — Não posso deixar de pensar — interrompeu Jason, apressando o passo e puxando Marie pela mão. — Glace — disse ele, olhando para a direita. — Sorvete! — Tem um telefone lá dentro — respondeu Jason, andando mais devagar e aproximando-se das imensas vitrines de uma patisserie com a faixa que anunciava sorvete de vários sabores. — Peça um de baunilha para mim — disse ele quando entraram na sorveteria cheia de gente. — Baunilha com o quê? — Qualquer coisa. — Você não vai conseguir ouvir... — Ele vai me ouvir, e é isso que importa. Não se apresse, dê-me algum tempo. Bourne dirigiu-se para o telefone, compreendendo imediatamente por que não era usado. O barulho era ensurdecedor. — Mademoiselle, s’il vous plait, c’est’urgent! Três minutos depois, com a mão sobre o ouvido esquerdo, Jason aliviado ouviu a voz do empregado mais irritante de Tranqüilidade. — Fala o Sr. Pritchard, subgerente do Hotel Tranqüilidade. Minha mesa telefônica informa que o senhor tem uma emergência. Posso perguntar a natureza da sua... — Você pode calar a boca! — gritou Jason na caco-fonia da sorveteria em Corbeil-Essones, França. — Chame Jay St. Jay imediatamente, agora! É o cunhado dele. — Oh, é um prazer ouvi-lo, senhor! Muita coisa aconteceu depois que o senhor partiu. Seus lindos filhos estão conosco e o belo menino brinca na praia — comigo, senhor — e tudo está...
— O Sr. St. Jacques, por favor. Agora! — Certamente, senhor. Ele está lá em cima... — Johnny? — David, onde você está? — Isso não importa. Saia já daí. Leve as crianças e a Sra. Cooper e saia daí! — Sabemos de tudo, Dave. Alex Conklin telefonou algumas horas atrás e disse que alguém chamado Holland ia se comunicar conosco... É o chefão do seu serviço de Inteligência, certo? — Sim, é. Ele já se comunicou? — Já, uns vinte minutos depois que falei com Alex. Disse que um helicóptero vem nos apanhar mais ou menos às duas horas. Ele precisava de tempo para conseguir um avião. A Sra. Cooper foi idéia minha, porque seu filho retardado disse que não sabe trocar fraldas... David, que diabo está acontecendo? Onde está Marie? — Ela está bem — explico tudo depois. Faça o que Holland mandar. Ele disse para onde vai levá-los? — Não queria dizer. Mas nenhuma droga de americano vai me dar ordens nem aos seus filhos — os filhos da minha irmã canadense —, e eu disse isso para ele sem rodeios. — Isso é ótimo, Johnny. É bom fazer amizade com o diretor da CIA. — Não me importa a mínima fazer amizade ou não. No meu país essas iniciais significam apanhado em flagrante e eu disse isso também para ele! — Mais do que ótimo... O que ele respondeu? — Disse que ia nos levar para uma casa segura nà Virgínia e eu disse que a minha é muito segura aqui e que temos piscina e serviço de quarto e dez guardas capazes de acertar os colhões dele a duzentos metros. — Você é o mestre do tato. E o que foi que ele disse? — Na verdade, ele riu. Depois explicou que o lugar na Virgínia tem 20 guardas que podem acertar um dos meus colhões a quatrocentos metros, além de cozinha e serviço de quarto e televisão para as crianças. — Bastante convincente. — Bem, ele disse outra coisa, muito mais convincente. Disse que não há acesso público, que fica numa antiga propriedade em Fairfax doada ao governo por um embaixador que tinha mais dinheiro do que Ottawa inteira, com pista de pouso particular e uma entrada que fica a seis quilômetros da
estrada principal. — Conheço o lugar — disse Bourne com uma careta para o barulho na pâtisserie. — É a propriedade Tannenbaum. Holland tem razão, é o melhor esconderijo que existe. Ele gosta de nós. — Já perguntei antes — onde está Marie? — Está comigo. — Ela o encontrou! — Mais tarde, Johnny. Eu ligo para Fairfax. — Jason desligou e Marie, abrindo caminho entre os fregueses, estendeu um copo de plástico com uma colher também de plástico enfiada numa pilha de bolas marrom-escuras. — As crianças? — perguntou ela, quase gritando para ser ouvida. — Está tudo bem, melhor do que eu esperava. Alex chegou à mesma conclusão que eu cheguei sobre o Chacal. Peter Holland vai levá-los para uma casa segura na Virgínia, a Sra. Cooper também. — Graças a Deus! — Graças a Alex. — Bourne olhou para o copo de piá tico cor-de-rosa e para a colher azul. — O que é esta coisa Não tinham baunilha? — E um sundae hot-fudge. Era para o homem que estava ao meu lado, mas ele estava gritando com a mulher e cu fiquei com o sorvete. — Não gosto de hot-fudge. — Pois então grite com sua mulher. Venha, vamos comprar roupas. O sol do começo da tarde, no Caribe, escaldava o Hotel Tranqüilidade quando St. Jacques desceu para o saguão com uma mala LeSport na mão direita. Acenou com a cabeça para o Sr. Pritchard, a quem havia explicado por telefone que ia se ausentar por alguns dias e entraria em contato com ele quando chegasse a Toronto. O resto do pessoal foi informado dessa partida intempestiva e necessária, e Johnny tinha absoluta confiança no seu assistente, o Sr. Pritchard. Estava Certo de que não surgiria nenhum problema que o subgerente não pudesse resolver sem sua ajuda., O Hotel Tranqüilidade, para todos os efeitos, estava praticamente fechado. Entretanto, Sir Henry Sykes, no palácio do governo, devia ser informado se houvesse alguma dificuldade. — Não haverá nenhuma que eu não possa resolver — garantiu Pritchard. — O pessoal da manutenção e reparos vai trabalhar como se o senhor estivesse aqui. St. Jacques caminhou para as portas de vidro do prédio circular, dirigindo-se para a primeira vila da direita, a que ficava mais próxima dos degraus que levavam ao cais e à praia. A Sra. Cooper e as duas crianças esperavam dentro da vila a chegada do helicóptero da Marinha dos Estados Unidos, com
grande autonomia de vôo, que os levaria a Porto Rico, onde tomariam o jato militar para a Base Andrews da Força Aérea, nos arredores de Washington. Pelas grandes janelas do hotel, o Sr. Pritchard viu seu patrão entrar na Vila Número Um. No mesmo instante ouviu os rotores do enorme helicóptero agitando o ar sobre o hotel. Aparentemente, pensou o Sr. Pritchard, os passageiros também ouviram, pois saíram da vila, St. Jacques segurando a mão do sobrinho e a Sra. Cooper com Alison no colo, envolta num cobertor, seguidos pelos dois guardas que carregavam as malas. Pritchard apanhou sob o balcão o telefone direto que não passa pela mesa telefônica. Discou. — Escritório do subdiretor de imigração, o subdiretor falando. — Estimado tio... — É você? — interrompeu o funcionário da alfândega no Aeroporto Blackburne, abaixando imediatamente a voz. — O que descobriu? — Informação de grande valor, pode estar certo. Ouvi tudo nó telefone! — A mais alta autoridade garantiu que seremos regiamente recompensados. Eles podem ser terroristas em fuga, sabia? O próprio St. Jacques é o líder. Dizem que podem enganar até Washington. Qual a informação que posso passar adiante, meu brilhante sobrinho? — Estão sendo levados para o que chamam de casa “segura” na Virgínia. É conhecida como propriedade Tannenbaum e tem aeroporto próprio, dá para acreditar? — Posso acreditar em qualquer coisa quando se trata desses animais. — Não esqueça de incluir meu nome e minha posição, estimado tio. — Acha que posso esquecer? Acha que vou esquecer? Seremos os heróis de Montserrat!... Mas, lembre-se, meu inteligente sobrinho, tudo deve ficar em segredo. Juramos guardar segredo, lembre-se disso. Imagine só! Fomos escolhidos para prestar serviço a uma grande organização internacional. Líderes do mundo inteiro vão saber da nossa contribuição. — Meu coração está quase estourando de orgulho. Posso saber o nome dessa augusta organização? — Shhh! Não tem nome, isso faz parte do segredo. O dinheiro foi enviado através do computador de um banco, diretamente da Suíça, essa é a prova. — Uma incumbência sagrada — acrescentou o Sr. Pritchard. — E também .muito bem paga, sobrinho, e isto é só o começo. Eu estou monitorando pessoalmente todos os aviões que chegam e enviando as listas para a Martinica, para um famoso cirurgião, imagine! É claro que no momento todos os vôos estão suspensos, por ordem do governo.
— O helicóptero militar americano? — perguntou o deslumbrado Pritchard. — Shhh! Isso também é segredo, tudo é segredo. — Então é um segredo muito barulhento e visível, estimado tio. O pessoal está na praia agora olhando para ele. — O quê? — Está aqui. O Sr. St. Jay e as crianças estão embarcando neste momento. Também aquela horrível Sra. Cooper... — Preciso telefonar imediatamente para Paris — interrompeu o funcionário da imigração, desligando. — Paris? — repetiu o Sr. Pritchard. — Que maravilha! Como somos privilegiados! — Eu não contei tudo a ele — disse Peter Holland em voz. baixa, balançando a cabeça. — Eu queria — eu pretendia — mas estava nos seus olhos, na verdade, em suas palavras. Ele disse que ia me atrapalhar se conseguisse ajudar Bourne e a mulher. — E vai mesmo. — Charles Casset, sentado na frente da mesa do diretor, com o impresso de computador de um arquivo há muito tempo enterrado, nas mãos, balançou a cabeça afirmativamente. — Quando ler isto vai compreender. Alex, na verdade, tentou matar Bourne em Paris anos atrás — seu melhor amigo, e tentou pôr uma bala na cabeça dele por motivos falsos. — Conklin está a caminho de Paris, agora. Ele e Morris Panov. — Isso é responsabilidade sua, Peter. Eu não teria feito o mesmo, não sem garantias. — Não podia recusar. — É claro que podia. Você não quis. — Ele nos trouxe a Medusa — e daqui por diante, Charlie, é só o que nos interessa. — Compreendo, diretor Holland — disse Casset secamente. — E suponho que, devido a envolvimento no exterior, você está andando para trás, entrando numa conspiração doméstica que precisa ser incontestavelmente comprovada, antes de alertar os guardiões do acordo doméstico, ou seja, o FBI. — Está me ameaçando, seu verme? — É claro que estou, Peter. — Casset substituiu a expressão severa por um calmo sorriso. — Você está violando a lei, Sr. diretor... Isso é lamentável, meu velho, como diriam meus predecessores. — Que diabo você quer de mim? — exclamou Holland.
— Proteção para um dos nossos, um dos melhores que já tivemos. Não só quero, como insisto. — Se pensa que vou dar tudo a ele, incluindo o nome da firma de advocacia da Medusa na Wall Street, está completamente louco. É nossa pedra fundamental. — Pelo amor de Deus, volte para a marinha, almirante — disse o subdiretor com voz inexpressiva e outra vez fria. — Se acha loucura o que estou sugerindo, não aprendeu muita coisa nessa cadeira. — Ei, pare com isso, seu atrevido. É quase insubordinação. — É claro que é, porque sou insubordinado — mas não estamos na Marinha. Não pode me fazer passar por baixo da quilha, nem me enforcar no mastro, ou cortar minha ração de rum. Tudo que pode fazer é me despedir e nesse caso muita gente vai querer saber por quê, o que não será nada bom para a Agência. Mas isso não é necessário. — De que diabo você está falando, Charlie? — Bem, para começar, não estou falando daquela firma de advocacia de Nova York porque você está certo, é nossa pedra fundamental, e Alex, com sua imaginação infinita, ia pesquisar e ameaçar até onde começam os primeiros farrapos e onde termina nossa trilha de papel aqui e no exterior. — Foi mais ou menos o que pensei... — Então, acertou outra vez — interrompeu Casset, balançando a cabeça afirmativamente. — Assim, mantemos Alex longe da nossa pedra fundamental, tão longe de nós quanto for possível, mas damos a ele o que descobrimos. Alguma coisa tangível com a qual ele possa começar, conhecendo seu valor. Silêncio. Então Holland disse: — Não compreendi uma palavra. — Compreenderia se conhecesse melhor Conklin. Ele sabe que há uma conexão entre a Medusa e o Chacal. Como foi que você a chamou? Uma profecia de realização automática? — Eu disse que a estratégia era tão perfeita que era inevitável e, portanto, de realização automática. DeSole foi o catalista não previsto que apressou as coisas — ele, e seja lá o que foi que aconteceu em Montserrat... Qual é a sua informação valiosa? — A pista, Peter. Sabendo o que ele sabe, você não pode deixar que Alex ande por toda Europa como um canhão desgovernado, assim como não pode dar a ele o nome da firma em Nova York. Precisamos de um meio de comunicação com ele para sabermos o que pretende fazer — mais do que uma idéia, se for possível. Alguém como seu amigo Bernardine, mas que seja nosso amigo. — Onde encontramos essa pessoa?
— Tenho um candidato — e espero que nossa conversa não esteja sendo gravada. — Não se preocupe — disse Holland, ofendido. — Não acredito nessa droga, e este escritório é “varrido” todas as manhãs. Quem é o candidato? — Um homem na embaixada soviética, em Paris — disse Casset, calmamente. — Acho que podemos negociar com ele. — Uma toupeira? — Nem por um minuto. Um oficial do KGB que jamais mudou sua principal prioridade. Encontrar Carlos. Matar o Chacal. Proteger Novgorod. — Novgorod...? A cidade americanizada onde o Chacal fez seu treinamento, na Rússia? — Metade do treinamento e de onde ele fugiu antes de ser fuzilado como maníaco. Só que não existe apenas um complexo americano — esse é um erro que cometemos freqüentemente. Há complexos britânicos e franceses, bem como israelenses, holandeses, espanhóis, alemães ocidentais e só Deus sabe quantos mais. Dezenas de quilômetros quadrados no meio das florestas nas margens do rio Volkhov, pontilhados de cidadezinhas onde você jura que está passando de um país para outro — se você puder entrar, o que não pode. Como as fazendas de criação de arianos, as Lebensborn da Alemanha nazista, Novgorod é um dos segredos mais bem guardados da União Soviética. Eles querem o Chacal tanto quanto Jason Bourne o quer. — E você acha que o cara do KGB vai cooperar, mantendo-nos informados sobre Conklin, se conseguirem fazer contato? — Posso tentar. Afinal, temos um objetivo comum e sei que Alex vai aceitá-lo, porque ele sabe o quanto os soviéticos querem Carlos na lista dos mortos. Holland inclinou-se para a frente. — Eu disse a Conklin que o ajudaria sempre que fosse possível, desde que não comprometesse nossa ação contra a Medusa... Ele deve chegar a Paris daqui a uma hora. Quer que eu deixe instruções no balcão de atendimento da seção diplomática, para que ele entre em contato com você? — Mande ligar para Charlie Bravo Mais Um — disse Casset, levantando-se e pondo os impressos de computador sobre a mesa. — Não sei quanto posso dar a ele daqui a uma hora, mas vou começar a trabalhar. Tenho um canal seguro para nosso russo, graças a um “consultor” importante que temos em Paris. — Ofereça um bônus para ele. — Ele já pediu um bônus —. ou melhor, quase me comprometeu. Ela dirige um dos mais limpos serviços de acompanhantes da cidade. As mulheres são examinadas semanalmente. — Por que não contrata todas? — perguntou o diretor com um sorriso.
— Acho que sete já estão na folha de pagamento, senhor — respondeu o subdiretor, o olhar sério contrastando com as sobrancelhas erguidas. O cabo da marinha, com uniforme engomado de verão e carregando as malas, ajudou o Dr. Morris Panov, ainda com as pernas fracas, a descer do jato. — Como vocês conseguem parecer tão apresentáveis depois de uma viagem horrível como esta? — perguntou o psiquiatra. — Nenhum de nós estará apresentável depois de umas duas horas de folga em Paris, senhor. — Algumas coisas nunca mudam, cabo. Graças a Deus... Onde está aquele delinqüente aleijado que veio comigo? — Uma viatura o levou para um diplógrafo, senhor. — Quer repetir? Não entendi nada. — Não é difícil, doutor — disse o cabo rindo, levando Panov para o jipe com motorista uniformizado e o desenho da bandeira americana na porta. — Durante nossa descida, a torre passou um rádio para o piloto dizendo que havia uma mensagem urgente para ele. — Pensei que ele tinha ido ao banheiro. — Isso também, senhor, pode acreditar. — O cabo pôs a mala num porta-bagagem do carro e ajudou Mo a subir.. — Calma agora, doutor, levante um pouco mais a perna. — É o outro, não eu — protestou o psiquiatra. — É ele que não tem um pé. — Fomos informados de que o senhor esteve doente, senhor. — Não nas minhas pernas... Desculpe, jovem, não quis ofender. Só que não gosto de voar em pequenos tubos a mais de duzentos quilômetros. Não são muitos os astronautas que vêm da Avenida Tremont, no Bronx. — Está falando sério, doutor? — O quê? — Eu sou da rua Garden, sabe, na frente do zoo. O nome é Fleishman, Morris Fleishman. É um prazer conhecer outro bronxiano. — Morris? — disse Panov, apertando a mão do cabo. — Morris, o Marinheiro? Eu devia ter uma conversa com seus pais... Boa sorte, Mo. E muito obrigado pela atenção.
— Fique bom, doutor, e quando estiver outra vez na Avenida Tremont, dê lembranças minhas, certo? — Pode deixar, Morris — respondeu Morris, erguendo a mão, enquanto o jipe diplomático se afastava. Quatro minutos depois, acompanhado pelo motorista, Panov entrou no corredor longo e cinzento que dava acesso livre à França aos funcionários das nações bem cotadas junto ao Quai d’Orsay. Entraram numa sala de espera onde homens e mulheres, em pequenos grupos, conversavam discretamente, em várias línguas. Ficou alarmado quando não viu Conklin e voltou-se para o motorista; uma jovem com o uniforme neutro de atendente de bordo aproximou-se dele. — Docteur? — perguntou ela. — Sim — respondeu Mo, surpreso. — Mas meu francês está muito enferrujado, para ser franco, nem existe. — Não tem importância, senhor. Seu companheiro pediu para esperá-lo aqui. Ele garantiu que vai demorar apenas alguns minutos... Por favor, sente-se. Aceita um drinque? — Bourbon com gelo, por favor — respondeu Panov, sentando-se. — Certamente, senhor. A jovem afastou-se e o motorista pôs a mala ao lado da cadeira. — Tenho de voltar para a minha viatura — disse o acompanhante. — O senhor vai ficar bem aqui. — Gostaria de saber para onde foi o meu amigo — disse Panov, consultando o relógio. — Provavelmente foi procurar um telefone no terminal, doutor. Eles chegam aqui, recebem mensagens nos balcões, e vão correndo para o terminal à procura de um telefone público. Não gostam dos telefones desta parte do aeroporto. Os ruskies são os que correm mais depressa, os árabes são os mais lentos. — Deve ser influência da diferença de «lima — observou o psiquiatra com um sorriso. — Não aposte seu estetoscópio, doutor. — O motorista riu e ergueu a mão numa saudação informal. — Cuide-se, doutor, e procure descansar. Parece cansado. — Muito obrigado, meu jovem. Adeus. Estou cansado, pensou Panov, vendo o homem desaparecer no corredor cinzento. Muito cansado, mas Alex tinha razão. Se ele tivesse vindo sozinho, eu jamais o perdoaria... David! Precisamos encontrá-lo! O dano pode ser incalculável — nenhum deles compreende. Com um único ato sua mente frágil e vulnerável pode sofrer uma regressão de anos — 13 anos — para o tempo em que ele
funcionava como um assassino, e para ele, nada mais!... Uma voz. Alguém de pé ao seu lado. — Desculpe, eu sinto muito... Seu drinque, doutor — disse a jovem. — Fiquei na dúvida se devia ou não acordá-lo, mas então o senhor se mexeu e parecia estar sentindo dor... — Não, nada disso, minha cara, apenas cansado. — Compreendo, senhor. Esses vôos muito rápidos podem ser exaustivos, mas quando são longos e desconfortáveis, pior ainda. — Mencionou todos os pontos importantes, senhorita — concordou Panov, apanhando o copo. — Obrigado. — O senhor é americano, é claro. — Como sabe? Não estou com botas de caubói nem com camisa havaiana. Com um sorriso encantador ela disse: — Conheço o motorista que o acompanhou até aqui. É da segurança americana e muito simpático, muito atraente. — Segurança? Quer dizer, algo assim como a “polícia”? — Oh, assim mesmo, mas nunca usamos essa palavra... Ah, aqui está seu companheiro. — A moça baixou a voz. — Posso perguntar rapidamente, doutor? Ele precisa de uma cadeira de rodas? — Nossa, não! Há anos ele anda assim. — Muito bem. Tenha uma boa estadia em Paris, senhor. Ela se afastou e Alex, abrindo caminho entre os vários grupos de europeus, chegou até Panov. Sentou-se inclinando-se para a frente na poltrona de couro macio. Evidentemente estava perturbado. — O que há? — perguntou Mo. — Acabo de falar com Charlie Casset, de Washington. — Aquele de quem você gosta, em quem confia? — É o melhor que existe quando tem contato pessoal, ou pelo menos, informação humana. Quando ele pode ver e ouvir e observar pessoalmente, e não apenas ler palavras escritas na tela de um computador sem fazer perguntas. — Por acaso está outra vez invadindo meu território, Doutor Conklin? — Na semana passada acusei David de fazer isso e vou dizer o que ele me disse. “É um país livre, e apesar de toda sua experiência, não tem exclusividade quando se trata de bom-senso.”
— Mea culpa — concordou Panov. — Suponho que seu amigo fez alguma coisa que você não aprova. — Ele fez uma coisa que ele não aprovaria se tivesse mais informações sobre a pessoa com quem fez a coisa. — Isso me parece positivamente freudiano, eu diria que é até mesmo uma imprudência clínica. — As duas coisas, eu acho. Ele fez um trato por fora com um homem chamado Dimitri Krupkin, na embaixada russa, aqui em Paris. Vamos trabalhar com o KGB local — você, eu, Bourne, Marie — se e quando os encontrarmos. Com sorte será no Rambouillet, daqui a uma hora mais ou menos. — O que está dizendo? — perguntou Mo atônito, em voz muito baixa. — História longa, tempo curto. Moscou quer a cabeça do Chacal e o resto separado dela. Washington não pode nos dar proteção, portanto os soviéticos serão nossos paterfamílias temporários, se tivermos algum problema. Panov franziu a testa, depois balançou a cabeça como se estivesse absorvendo informação muito estranha. Então disse: — Suponho que não seja o que você queria, mas há uma certa lógica, até mesmo um certo alívio nessa providência. — No papel, Mo — disse Conklin. — Não com Dimitri Krupkin. Eu o conheço, Charlie não. — Ah, então ele é um dos homens maus? — Kruppie mau? Não, não realmente... — Kruppie? — Éramos jovens muito ativos no fim dos anos 60, em Istambul, depois Atenas, depois Amsterdam... Krupkin não é maldoso e trabalha como um filho da mãe para Moscou, com sua mente de segunda classe, melhor do que as de oitenta por cento dos palhaços que estão no ramo, mas ele tem um problema. Está basicamente no lado errado, na sociedade errada. Os pais dele deviam ter vindo com os meus quando os bolcheviques tomaram o poder. — Tinha me esquecido que seus pais eram russos. — Eu falo a língua e isso ajuda quando se trata de Kruppie. Percebo suas nuances. Ele é um capitalista puro. Como os ministros da economia em Beijing, ele não só gosta de dinheiro, mas é obcecado por ele — e tudo que se relaciona ao dinheiro. Às escondidas e sem que ninguém soubesse, ele podia ser comprado. — Quer dizer, pelo Chacal? — Eu o vi ser comprado em Atenas por construtores gregos que estavam vendendo pistas de
pouso adicionais para Washington quando sabiam que os comunistas iam nos expulsar. Eles pagaram Kruppie para ficar calado. Depois eu o vi ser intermediário no negócio de diamantes, em Amsterdam, entre os negociantes do Nieuwmarkt e a elite das dachas em Moscou. Uma noite, estávamos tomando uns drinques no Kattengat e eu perguntei, “Kruppie, que diabo você está fazendo?” Quer saber o que ele disse? Ele disse, vestido com uma roupa que não podia comprar, “Aleski, faço tudo que posso para enganar vocês, para ajudar o Soviete Supremo a dominar o mundo, mas enquanto isso, se você quiser tirar umas férias, tenho uma casa muito bonita no lago, em Genebra.” Foi o que ele disse, Mo. — Um homem notável. É claro que você contou tudo isso ao seu amigo Casset... — É claro que não contei — interrompeu Conklin. — Meu Deus, e por que não? — Porque Krupkin evidentemente não contou a Charlie que ele me conhece. Casset pode ter o acordo mas quem vai negociar sou eu. — Com o quê? Como? — David — Jason — tem mais de cinco milhões nas Ilhas Caimã. Com uma pitada dessa quantia faço Kruppie trabalhar só para nós, se precisarmos dele e quisermos sua ajuda. — O que significa que não confia em Casset. — Não é isso — disse Alex. — Confio em Charlie com a minha vida. Mas não tenho certeza se quero colocá-la nas mãos dele. Ele e Peter Holland têm suas prioridades e nós temos as nossas. A deles é Medusa, a nossa é David e Marie. — Messieurs? — A comissária dirigiu-se a Conklin. — Seu carro chegou. Está na plataforma sul. — Tem certeza que é para mim? — perguntou Alex. — Perdoe-me, monsieur, mas o atendente disse que o Sr. Smith tem um problema na perna. — Pois ele tem toda razão. — Chamei um carregador para levar suas malas, messieurs. É uma longa caminhada. Ele os encontra na plataforma. — Muito obrigado. — Conklin levantou-se e tirou algumas notas do bolso. — Pardon, monsieur — disse a jovem. — Não podemos aceitar gorjetas. — Tem razão, eu esqueci... Minha mala está debaixo do seu balcão, certo? — Onde seu acompanhante a deixou, senhor. Juntamente com as do doutor, estarão na plataforma dentro de alguns minutos.
— Muito obrigado outra vez — disse Conklin. — Desculpe por oferecer a gorjeta. — Nós todos somos bem pagos, senhor, mas obrigada pela intenção. Enquanto caminhavam para a porta que dava para o terminal do Aeroporto de Oily, Conklin perguntou: — Como ela sabia que você é médico? Você anda caçando pacientes na rua? — Não seria fácil. O transporte é muito cansativo. — Então, como? Eu não disse para ninguém que você é médico. — Ela conhece o segurança que me levou até à sala de espera. Na verdade, acho que ela o conhece muito bem. Ela disse, com aquele sotaque delicioso, que ele é “muito atraente”. Orientando-se pelas placas no terminal apinhado, dirigiram-se para a plataforma sul. O que nenhum dos dois viu foi um homem moreno e distinto, com cabelo negro ondulado, sair apressadamente da sala de espera com os grandes olhos escuros pregados nos dois americanos. Foi até a parede, abrindo caminho entre a multidão, até ficar diagonalmente na frente de Conklin e Panov, perto da plataforma dos táxis. Depois, como se não tivesse certeza, tirou do bolso uma pequena fotografia e a examinou, erguendo os olhos para os dois passageiros dos EUA. Era a fotografia do Dr. Morris Panov, com uma camisola de hospital e uma expressão atordoada e distante nos olhos. Os americanos saíram para a plataforma, o homem de cabelos negros também. Os americanos olharam para o lado, à procura de um táxi, o homem moreno fez sinal para um carro particular. O chofer do táxi desceu do carro e aproximando-se, falou em voz baixa com Conklin e Panov, quando o carregador chegou com as malas. Os americanos entraram no táxi. O estranho entrou no carro particular parado dois carros atrás. — Pazzo! — disse o homem de cabelos negros em italiano para a mulher de meia-idade com o elegante uniforme de motorista. — É uma loucura! Por três dias esperamos, vigiamos todos os aviões da América e estávamos quase desistindo. Mas aquele idiota em Nova York estava certo. São eles!... Deixe que eu dirijo. Você desce e vai falar com nossos homens. Mande avisar DeFazio para ir ao seu outro restaurante favorito e esperar meu telefonema. Ele não deve sair enquanto não falar comigo. — É você, meu velho? — perguntou a comissária na sala de espera da seção diplomática do aeroporto, falando em voz baixa no telefone do balcão de atendimento. — Sim, sou eu — respondeu a voz trêmula. — E o Ângelus toca eternamente nos meus ouvidos. — Então é você. — Eu já disse que sou eu, o que tem para mim? — A lista que recebemos na semana passada inclui um americano alto e magro que manca,
possivelmente acompanhado por um médico. Confere? — Confere! E então? — Acabaram de passar por aqui. Eu chamei o companheiro do aleijado de doutor e ele respondeu. — Para onde foram? É muito importante saber isso. — Não disseram, mas logo terei informação suficiente para você descobrir, meu velho. O carregador que levou as malas para a plataforma sul vai me trazer a placa e a descrição do táxi que os levou. — Em nome de Deus, telefone logo com essa informação! A quatro mil quilômetros de Paris, Louis DeFazio estava sentado sozinho a uma mesa de fundo no Trafficante’s Ciam Hou-se, na Avenida Prospect, no Brooklyn, Nova York. Terminou seu almoço, um vitello tonnato, e limpou os lábios com o guardanapo vermelho, tentando parecer jovial e ao mesmo tempo superior, como sempre. Maledetto! Estava há quase duas horas no Trafficante’s — duas horas! E levou quarenta e cinco minutos para chegar ao restaurante, depois do telefonema no Garafola’s Pasta Palace em Manhattan, portanto, na verdade, estava esperando há mais de duas horas, quase três, desde que aquele camponês em Paris, França, encontrara os dois alvos. Em quanto tempo os dois bersaglios podiam ir do aeroporto até um hotel na cidade? Três horas? Não, a não ser que aquele camponês de Palermo tivesse ido parar em Londres, Inglaterra, o que não era impossível, não se DeFazio conhecia Palermo. Mesmo assim, DeFazio tinha acertado! Do modo que o médico judeu falou sob o efeito da droga, ele e o ex-espião não podiam ir a outro lugar que não fosse Paris, à procura do companheiro, o falso assassino... Então, Nicolo e o judeu desapareceram, puff-zum! E daí? O judeu escapou e Nicky ia para a cadeia. Mas Nicolo não iria falar, ele sabia que problemas sérios, como uma faca nos rins, estariam à sua espera se falasse. Além disso, Nicky não sabia nada importante. Os advogados podiam apagar facilmente qualquer informação de segunda mão transmitida por um idiota de quinta classe. E o médico de loucos só sabia que tinha estado no quarto de uma fazenda, se é que podia lembrar isso. Ele não viu ninguém a não ser Nicolo, quando estava “compass mantis”, como dizem. Mas Louis DeFazio sabia que estava certo. E porque ele estava certo, mais de sete milhões esperavam por ele em Paris. Sete milhões! Cristo santíssimo! Ele podia dar aos camponeses de Palermo muito mais do que eles esperavam e ainda sair com muito dinheiro. Um garçom idoso, do velho país, tio do Trafficante, aproximou-se da mesa e Louis prendeu a respiração. — Fala Nova York — disse DeFazio. Como sempre, o capo supremo dirigiu-se a um telefone público no final de um corredor estreito, do lado de fora do banheiro masculino.
— Fala Nova York — disse DeFazio. — Fala Paris, signor Nova York. Aqui é também pazzo! — Onde você esteve? Foi bastante pazzo para parar em Londres, Inglaterra? Estou esperando há três horas! — Estive foi em uma porção de estradas escuras no campo, que são importantes só para os meus nervos. Onde estou agora é uma loucura! — Onde? — Estou usando o telefone do guarda do portão e pagando quase 100 dólares americanos por isso e o buffone francês fica espiando pela janela para ver se não vou roubar nada, talvez sua marmita, quem sabe? — Você não parece muito burro para um camponês. Então que guarda do portão é esse? Do que está falando? — Estou num cemitério, a uns 30 quilômetros de Paris, se quer saber... — Um cimitero? — interrompeu Louis. — Que diabo está fazendo aí? — Seus dois conhecidos vieram para cá, direto do aeroporto, seu ignorante! Neste momento estão enterrando alguém — um enterro grande com procissão e velas acesas que logo vão se apagar na chuva —, e se seus dois conhecidos voaram até aqui para assistir esta cerimônia bárbara, então o ar na América está cheio de poluentes que atacam o cérebro! Não fizemos nenhum trato para esta schicchezze, Nova York. Temos nosso próprio trabalho aqui. — Eles foram encontrar o grande cannoli — disse DeFazio em voz baixa, como se estivesse falando sozinho. — Quanto ao trabalho, camponês, se quiser trabalhar conosco, em Filadélfia, Chicago ou Los Angeles outra vez, faça o que eu mando. Vai ser muito bem pago, capisce? — Tenho de admitir que isso faz mais sentido. — Não deixe que o vejam, mas fique com eles. Descubra para onde vão e com quem se encontram. Vou para aí logo que puder, mas tenho de ir via Canadá ou México, para ter certeza de não estar sendo vigiado. Estarei aí amanhã à noite ou depois de amanhã cedo. — Ciao — disse Paris. — Omertà — disse De Fazio.
Capítulo30 As VELAS TREMULAVAM sob a garoa noturna nas mãos dos acompanhantes do enterro, que seguiam solenemente, em fila dupla, o caixão branco carregado por seis homens. Muitos escorregavam no caminho de cascalho molhado do cemitério. Flanqueando a procissão quatro tambores, dois de cada lado, marcavam a cadência lenta da marcha, batendo desencontrados porque os homens tropeçavam às vezes nas pedras e nos túmulos não muito visíveis, rentes ao solo. Morris Panov, balançando ‘a cabeça, como quem não pode acreditar, observava o ritual noturno, e com alívio viu Alex claudicando entre os túmulos na sua direção. — Algum sinal deles? — perguntou Alex. — Nenhum — respondeu Panov. — Você tampouco viu nada? — Pior. Encontrei um doido. — Como foi? — Vi uma luz na casa do guarda do portão, então fui até lá, pensando que David ou Marie podiam ter deixado alguma mensagem. Um palhaço estava do lado de fora, espiando pela janela, dizendo que ele é o vigia e se eu queria alugar seu telefone. — Seu telefone? — Ele disse que tinha preços especiais à noite, porque o telefone público mais próximo fica a dez quilômetros, na estrada. — Um doido — concordou Panov. — Expliquei que estava procurando um homem e uma mulher com quem eu devia me encontrar aqui e pensei que eles tinham deixado algum recado para mim. Não tinha nenhum recado, mas tinha o telefone. Duzentos francos — maluco. — Eu podia ganhar muito dinheiro em Paris — disse Mo, com um sorriso. — Por acaso ele não viu um casal andando por aí? — Eu perguntei e ele fez um gesto afirmativo, dizendo que tinha visto dezenas. Então apontou para a procissão de velas e voltou para a maldita janela. — A propósito, o que é a procissão? — Eu perguntei também. É um culto religioso que só enterra os mortos à noite. Ele acha que são ciganos. Disse isso fazendo o sinal-da-cruz.
— Vão ser uns ciganos muito molhados — observou Panov, levantando a gola do paletó. A garoa transformava-se em chuva. — Cristo, por que não pensei nisso? — exclamou Conklin, olhando para trás. — A chuva? — perguntou o psicanalista, sem entender. — Não, o túmulo grande a meio caminho para a colina, além do portão. Foi onde aconteceu. — Onde você tentou... — Mo não terminou a frase, não precisava. — Onde ele podia ter me matado, mas não matou — completou Alex. — Vamos! Os dois americanos voltaram pelo caminho de cascalho, passaram pelo portão e mergulharam na escuridão da colina coberta de relva, pontilhada de túmulos brancos que cintilavam sob a chuva. — Devagar — exclamou Panov, sem fôlego. — Você está acostumado com esse seu pé inexistente, mas meu corpo puro ainda não se acostumou com a idéia de ter sido violentado por drogas. — Desculpe. — Mo! — gritou uma voz de mulher vinda de um pórtico de mármore acima deles. O vulto balançou os braços, sob o teto suspenso do túmulo que parecia um pequeno mausoléu, sustentado por colunas. — Marie? — berrou Panov, correndo na frente de Conklin. — Isso é ótimo! — rugiu Alex, subindo com dificuldade pela relva molhada e escorregadia. — Você ouve uma voz de mulher e de repente não foi mais violentado. Você precisa de um médico de loucos, seu farsante! Os abraços tinham um significado especial. Era uma família que se reunia. Enquanto Marie e Mo conversavam em voz baixa, Jason levou Conklin para um lado, sob o teto do túmulo. A chuva estava forte agora. A procissão lá embaixo, com as velas apagadas, estava meio espalhada, meio agrupada em volta do túmulo. — Eu não queria escolher este lugar, Alex — disse Jason. — Mas com toda aquela gente, não pude pensar em outro. — Lembra-se da casa do guarda e aquela trilha larga que vai dar no estacionamento?... Você tinha vencido. Eu estava sem munição e você podia ter estourado meus miolos — Quantas vezes tenho de dizer que está enganado? Eu não podia matar você. Estava nos seus olhos, mesmo que eu não os pudesse ver muito bem, eu sabia que estava lá. Raiva e confusão, mas, acima de tudo, confusão. — Isso nunca foi motivo para não matar um homem que está tentando matar você.
— É quando não se pode lembrar. A memória pode ter desaparecido mas não os fragmentos, não as — bem, eram para mim... imagens pulsantes. Apareciam e desapareciam, iam e vinham. Conklin ergueu os olhos para Bourne com um sorriso triste. — A pulsação — disse ele. — O termo que Mo usou. Você roubou dele. — Provavelmente — disse Jason e os dois olharam para Marie e Panov. — Ela está falando de mim, você sabe, não sabe? — Por que não? Elar está preocupada e ele está preocupado. — Detesto pensar nas preocupações que eu crio para eles. Para você também, imagino. — O que está tentando me dizer, David? — Exatamente isso. Esqueça David. David Webb não existe, não aqui, não agora. Ele é um ato representado para sua mulher e muito mal representado. Quero que ela volte para os Estados Unidos, para os filhos dela. — Os filhos dela? Marie não vai voltar. Ela veio para encontrar você e encontrou. Ela lembra-se de Paris há 13 anos e não vai abandoná-lo. Sem ela você não estaria vivo hoje. — Ela é um empecilho. Precisa ir. Vou dar um jeito. Alex olhou para os olhos frios do homem criado pela CIA e conhecido como Camaleão, e disse em voz baixa: — Você está com cinqüenta anos, Jason. Isto não é Paris 13 anos atrás, nem Saigon, antes disso. Isto é agora e você precisa de toda ajuda que conseguir obter. Se ela acha que pode dar alguma ajuda, eu pelo menos acredito. Bourne virou a cabeça rapidamente para Conklin. — Eu resolvo quem acredita e no quê. — Isso é um pouco radical, amigo. — Sabe o que quero dizer — Jason continuou com voz mais suave. — Não quero que aconteça aqui o que aconteceu em Hong Kong. Isso não pode ser um problema para você. — Talvez não... Escute, vamos sair daqui. Nosso motorista conhece um pequeno restaurante em Epernon, a uns oito quilômetros, onde podemos conversar. Precisamos acertar muitas coisas. — Diga — perguntou Bourne. — Por que Panov? Por que trouxe Mo com você? — Porque do contrário ele ia pôr estricnina na minha vacina contra a gripe. — Que diabo quer dizer isso?
— Exatamente o que eu disse. Ele é parte de nós e você sabe disso melhor do que eu ou Marie. — Aconteceu alguma coisa com ele, não aconteceu? Por minha causa. — Já acabou e ele está de volta, isso é tudo que você precisa saber agora. — Foi a Medusa, não foi? — Foi, mas repito, ele está de volta e, a não ser por um pouco de cansaço, está muito bem. — Um pouco...? Isso me faz lembrar. Um pequeno restaurante no campo a oito quilômetros daqui, foi o que o motorista disse? — Foi, ele conhece Paris e tudo em volta. — Quem é ele? — Um argelino francês que trabalhou para a Agência durante anos. Charlie “Casset o recrutou para nós. É durão, sabe das coisas e está sendo muito bem pago. Acima de tudo, podemos confiar nele. — Suponho que seja o bastante. — Não suponha, aceite. Num reservado no fundo do pequeno restaurante, sob um dossel antigo, banquetas duras de pinho perfeitamente aceitável, os quatro sentaram-se para conversar. O proprietário, um homem expansivo, gordo e corado garantiu que a cuisine era extraordinária, mas como ninguém estava com fome, Bourne pagou por quatro refeições para fazer o homem feliz. Conseguiu. Ele mandou duas garrafas grandes de bom vin ordinaire e uma garrafa de água mineral, e ficou longe da mesa. — Tudo bem, Mo — disse Jason —, você não quer me contar o que aconteceu, nem quem foi, mas você continua o mesmo curandeiro eficiente, superior e falante com uma galinha na boca, que conhecemos há 13 anos, estou certo? — Certo, seu esquizofrênico fugitivo de Bellevue. E para o caso de pensar que estou bancando o herói, quero que fique bem claro que estou aqui apenas para proteger meus direitos civis não profissionais. Meu maior interesse por minha adorável Marie, que, você deve ter notado, está sentada perto de mim, não de você. Eu fico com a boca cheia d’água só em pensar naquele bolo de carne que ela faz. — Oh, como eu te adoro, Mo — disse a mulher de David Webb, apertando o braço de Panov. — Deixe-me dizer o quanto — respondeu o médico beijando-a no rosto. — Eu estou aqui — disse Conklin. — Meu nome é Alex e tenho de falar sobre algumas coisas que não incluem bolo de carne... Embora deva dizer, Marie, que ontem mesmo eu disse a Peter Holland que é magnífico.
— O que há com meu maldito bolo de carne? — É o molho vermelho — disse Panov. — Podemos falar sobre o que nos trouxe aqui? — disse Jason Bourne com voz inexpressiva. — Desculpe, querido. — Vamos trabalhar com os soviéticos — Conklin falou rapidamente, não dando tempo para a reação de Jason e Marie. — Está tudo bem. Eu conheço o contato, conheço há muitos anos, mas Washington não sabe disso. O nome dele é Krupkin, Dimitri Krupkin e, como eu disse a Mo, pode ser comprado por cinco moedas de prata. — Dê trinta e uma — interrompeu Bourne — para garantir que vai ficar do nosso lado. — Imaginei que você ia dizer isso. Tenho um limite? — Nenhum. — Mais devagar — disse Marie. — Qual é a oferta inicial negociável? — Considerando a posição dele no KGB, eu diria mais ou menos 50 mil, americanos. — Ofereça 35 e vá até 75 sob pressão. Até 100 mil, se for necessário, é claro. — Pelo amor de Deus — exclamou Jason, controlando o tom de voz. — Estamos falando de nós, do Chacal. Dê o que ele pedir. — Facilmente comprado, facilmente vendido para o outro lado. Por uma oferta melhor. — Ela está certa? — perguntou Bourne, voltando-se para Conklin. — Em condições normais, está, mas neste caso seria o equivalente a uma mina de diamante em funcionamento. Ninguém deseja mais ver Carlos na lista dos mortos do que os soviéticos, e o homem que entregar o corpo será o herói do Kremlin. Lembrem-se, ele foi treinado em Novgorod. Moscou não se esquece disso. — Então, faça o que ele diz, apenas compre o homem — disse Jason. — Compreendo. — Conklin inclinou-se para a frente, girando o copo de água mineral sobre a mesa. — Vou telefonar para ele esta noite, telefone público para telefone público, e acertar o negócio. Então marco um encontro para amanhã, talvez um almoço em algum lugar fora de Paris. Bem cedo, antes, da chegada dos fregueses habituais. — Por que não aqui? — perguntou Bourne. — É bastante afastado e eu conheço o caminho.
— Por que não? — concordou Alex. — Vou falar com o dono. Mas não nós quatro. Só — Jason e eu. — Isso nem precisa dizer — observou Bourne, secamente. — Marie não deve se envolver. Não deve ser vista nem ouvida. Está bem claro? — David, realmente... — Sim, realmente. — Eu fico com ela — disse Panov, rapidamente. — Bolo de carne? — acrescentou, para atenuar a tensão. — Não tenho cozinha aqui, mas conheço um restaurante bonitinho que serve truta fresca. — Faço o sacrifício — disse o psiquiatra. — Acho que você deve almoçar no quarto do hotel. — A voz de Bourne estava agora autoritária. — Não sou uma prisioneira — disse Marie em voz baixa, olhando para o marido. — Ninguém sabe quem somos nem onde estamos e eu acho que uma pessoa trancada no quarto, que não aparece para ninguém, atrai mais atenção do que uma francesa perfeitamente normal, que continua com sua vida de todos os dias. — Ela tem razão — observou Alex. — Se a rede de espiões de Carlos está por aqui, uma pessoa que faça qualquer coisa diferente vai despertar suspeitas. Além disso, Panov ajuda — finja que é médico ou coisa assim, Mo. Ninguém vai acreditar, mas dá um toque de classe. Não sei por quê, mas os médicos geralmente estão acima de qualquer suspeita. — Psicopata ingrato — resmungou Panov. — Podemos voltar ao que interessa? — disse Bourne bruscamente. — Está sendo mal-educado, David. — Estou muito impaciente, você se importa? — Tudo bem, calma — disse Conklin. — Estamos todos tensos, mas precisamos esclarecer as coisas. Assim que Krupkin estiver conosco, seu primeiro trabalho será localizar o número do telefone que Gates deu a Prefontaine, em Boston. — Quem deu o quê, onde? — perguntou Panov intrigado. — Você não estava nessa, Mo. Prefontaine é um juiz proibido de exercer a profissão, que descobriu um contato do Chacal. Resumindo, o contato deu ao nosso juiz um número de telefone de Paris para falar com o Chacal, mas não coincide com o número que Jason já havia conseguido. Não temos dúvida de que o contato, um advogado chamado Gates, comunicou-se com o Chacal.
— Randolph Gates? A dádiva de Boston às bolsas de valores de Gengis Khan? — Esse mesmo. — Cristo santíssimo — desculpe, eu não devia dizer isso, não sou cristão. Que diabo, não sou nada, mas devem admitir que é chocante. — Muito, e precisamos saber de quem é o telefone aqui em Paris. Krupkin pode encontrar para nós. É meio saca-rolha, mas é isso aí. — Saca-rolha? — perguntou Panov. — Você pretende revelar um dado Rubik em árabe? Ou talvez acrósticos do Times de Londres? Em nome de Deus, o que é um Prefontaine, juiz, júri ou o quê? Soa como um péssimo vinho novo. — Pois é de uma safra muito boa — disse Marie. — Você ia gostar dele. Podia passar meses estudando sua mente porque ele tem coisas muito mais interessantes do que nós a revelar, e seu grande intelecto continua intato, a despeito de certos inconvenientes como álcool, corrupção, perda da família e prisão. Ele é original, Mo, e enquanto a maioria das pessoas na situação dele culpam o mundo inteiro, mas nunca a elas mesmas, ele é diferente. Tem um senso de humor glorioso e irônico. Se o judiciário americano tivesse alguma inteligência — o que o Departamento de Justiça parece negar —, eles o devolveriam à ativa... Ele combateu aquela gente do Chacal só por princípio, porque queriam me matar e aos meus filhos. Se na segunda rodada do jogo ele conseguir ganhar alguns dólares, merece cada centavo e eu vou providenciar para que ele ganhe. — Foi bem clara. Você gosta dele. — Eu o adoro, como adoro você e Alex. Têm se arriscado tanto por nós... — Será que podemos voltar ao assunto que nos trouxe aqui? — perguntou o Camaleão zangado. — O passado não me interessa, só o amanhã. — Além de mal-educado, meu querido, você está sendo ingrato. — Tudo bem. Onde estávamos? — No momento, com Prefontaine — respondeu Alex, secamente, olhando para Bourne. — Mas talvez não seja importante, porque provavelmente não vai sobreviver a Boston... Telefono para você no hotel em Barbizon, amanhã, para combinarmos a hora do almoço. Aqui. Acerte seu relógio para a gente não ficar rodando por aí como gansos da neve à procura dos companheiros. Além disso, se o cara disse a verdade sobre a cuisine, Kruppie vai adorar e dizer a todo mundo que ele descobriu o restaurante. — Kruppie? — Fica frio, eu já disse, nos conhecemos há muito tempo. — E não insistam — recomendou Panov. — Não vão querer ouvir tudo sobre Istambul e Amsterdam. Os dois são uma dupla de ladrões.
— Nós passamos — disse Marie. — Continue, Alex, o que mais sobre amanhã? — Mo e eu iremos de táxi ao seu hotel, e seu marido e eu viremos de carro para cá. Telefonamos depois do almoço. — E aquele seu motorista, o que Casset arranjou para você? — perguntou o Camaleão, com olhar frio. — O que tem ele? Vai receber o dobro do que ganha em um mês com seu táxi, só por esta noite e depois nos deixa no hotel e desaparece. Não o veremos mais. — Ele vai falar com alguém? — Não, se quiser viver e mandar dinheiro para os parentes na Argélia. Eu já disse, Casset verificou, o homem é de granito. — Amanhã, então — disse Bourne, sombrio, olhando para Marie e Panov. — Quando sairmos para Paris vocês ficam em Barbizon e não devem sair do hotel. Compreenderam? — Quer saber de uma coisa, David — disse Marie. — Vou dizer na frente de Mo e Alex porque eles são da família, tanto quanto nossos filhos. Nós, nós todos, fazemos suas vontades e às vezes até o mimamos por causa das coisas horríveis que você passou. Mas você não pode e não vai nos dar ordens como se fôssemos seres inferiores, na sua augusta presença. Você entendeu? — Em alto e bom som, senhora. Então talvez seja melhor você voltar para os EUA para não ter de aturar a augusta presença. — Jason Bourne levantou-se, empurrando a cadeira para trás. — Amanhã teremos um dia cheio, portanto precisamos dormir um pouco — não tenho dormido muito ultimamente — e um homem melhor do que nós todos certa vez me disse que o descanso é uma arma. Eu acredito nisso... Estarei no carro dentro de dois minutos. Faça sua escolha. Tenho certeza de que Alex pode fazer você sair da França sem problemas. — Seu filho da mãe — murmurou Marie. — É isso aí — disse o Camaleão, afastando-se. — Não posso controlar isso, Mo! — Não controle, apenas fique com ele. Você é a única tábua de salvação que ele tem. Não precisa nem falar, apenas fique com ele. — Ele se transformou num assassino outra vez. — Jason jamais fará mal a você... — É claro que não, eu sei disso. — Então, procure ser aquele elo de ligação de Jason com David Webb. Precisa existir sempre, Marie.
— Oh, Deus, eu o amo tanto! — exclamou Marie, levantando-se e correndo para o marido que não era seu marido. — Acha que deu o conselho certo, Mo? — perguntou Conklin. — Não sei, Alex. Mas não acho que ele deva ficar sozinho com seus pesadelos, ninguém deve. Isso não é psiquiatria, apenas bom-senso. — Às vezes você fala como um verdadeiro médico, sabia? O bairro argelino de Paris fica entre o décimo e décimo primeiro arrcndissements, apenas três quarteirões, onde os prédios baixos são parisienses mas os ruídos e os odores são árabes. Uma limusine negra e longa com a insígnia de um alto prelado da igreja, pequena, mas gravada em ouro nas portas, entrou no enclave étnico. Parou na frente de uma casa de madeira de três andares. Um velho padre desceu do carro e foi até a porta da casa. Escolheu um nome na pequena placa de metal e apertou o botão que fez soar uma campainha no segundo andar. — Oui? — disse a voz metálica no intercom primitivo. — Sou mensageiro da embaixada americana — respondeu o visitante vestido de padre, num francês pouco gramatical, como falam geralmente os americanos. — Não posso abandonar meu carro, mas temos uma mensagem importante para você. — Desço num instante — disse o motorista franco-argelino, recrutado por Charles Casset, em Washington. Três minutos depois ele saiu do prédio para a calçada estreita. — Por que está com essa roupa? — perguntou ao mensageiro que estava ao lado da limusine, cobrindo com o corpo a insígnia da porta. — Sou o capelão católico, meu filho. Nosso chargé d’aj-faires militar quer falar com você. — O padre abriu a porta do carro. — Eu faço muitas coisas para vocês — disse o motorista rindo e abaixando-se para entrar na limusine —, mas ser recrutado para o exército não é uma delas... Sim, senhor, o que posso fazer pelo senhor? — Para onde levou nossos homens? — perguntou o vulto no banco traseiro com o rosto na sombra. — Que homens? — perguntou o argelino, preocupado, de repente. — Os dois que você apanhou no aeroporto há algumas horas. O aleijado e o amigo. — Se é da embaixada e eles quiserem que saiba para onde foram, telefonam informando, certo?
— Você vai me dizer! Um homem forte com uniforme de chofer apareceu de trás da mala do carro. Caminhou rapidamente, levantou o braço e desferiu um golpe violento com um cassetete na cabeça do argelino. Empurrou a vítima para dentro do carro, o velho com roupa de capelão entrou também e fechou a porta enquanto o chofer dava a volta pela frente da limusine para assumir a direção. A limusine partiu velozmente pela rua estreita. Uma hora depois, o corpo do argelino, ferido e ensangüentado, foi atirado da limusine na rue Houdon, deserta, a um quarteirão da Place Pigalle. No carro, o vulto na sombra dirigiu-se ao velho e falso padre. — Apanhe seu carro e vigie o hotel do aleijado. Fique acordado. Será substituído de manhã e pode descansar o resto do dia. Informe todos os movimentos do homem. Não falhe. — Nunca, monsenhor. Dimitri Krupkin aparentava ter mais do que sua altura média c ser mais gordo do que era na verdade. Seu rosto cheio era agradável e andava com a cabeça grande sempre erguida. As sobrancelhas espessas e o cavanhaque bem aparado e bem penteado combinavam com os olhos azuis muito vivos e com a expressão sempre sorridente de um homem que gosta da vida e do trabalho que faz, desfrutando ambos com inteligência. No momento estava num reservado, de frente para a parede, no restaurante quase vazio em Epernon, olhando para Alex Conklin que, ao lado do não-identificado Bourne, acabava de explicar que não tomava mais nenhuma bebida alcoólica. — O mundo vai acabar! — exclamou o russo em inglês com forte sotaque. — Está vendo o que a indulgência do Ocidente faz a um homem? Seus pais deviam se envergonhar por não terem ficado conosco. — Acho que não quer comparar os índices de alcoolismo dos nossos países. — Não por uma aposta muito alta — disse Krupkin, com um largo sorriso. — E por falar em dinheiro, meu querido inimigo, como e onde vou ser pago, de acordo com o que combinamos a noite passada no telefone? — Como e onde quer ser pago? — perguntou Jason. — Ah, ah, então é o meu benfeitor, senhor? — Sim, eu estou pagando. — Esperem! — murmurou Conklin, olhando para a porta do restaurante. Inclinou-se para a parte aberta do reservado com a mão na testa, depois recuou rapidamente quando o garçom conduziu um casal a uma mesa no canto, à esquerda da entrada. — O que foi? — perguntou Bourne.
— Não sei... não tenho certeza. — Quem entrou, Aleksei? — Esse é o caso, acho que eu devia conhecê-lo, mas não conheço. — Onde ele está? Num reservado? — Não, numa mesa. No canto, depois do bar. Está com uma mulher. Krupkin foi para a ponta do banco e tirou da carteira um espelho do tamanho de um cartão de crédito. Cautelosamente afastou para o lado do corpo as duas mãos em concha com o espelho. — Você devia ler as colunas sociais dos jornais sensacionalistas de Paris — disse o russo, rindo e guardando o espelho na carteira e a carteira no bolso do paletó. — Ele trabalha na embaixada italiana e aquela é sua mulher. Paolo e Davinia, não sei do quê, com pretensões à nobreza, eu acho. Estritamente corpo diplomático em nível de protocolo. Oferecem belas festas e são, é claro, escandalosamente ricos. — Não circulo nesses meios, mas já o vi antes. — É claro que viu. Ele se parece com todos os atores de meia-idade do cinema italiano ou com os donos de vinhedos que exaltam as virtudes do Chianti Clássico nos comerciais de televisão. — Talvez você esteja certo. — Estou — Krupkin voltou-se para Bourne. — Vou escrever o nome de um banco e o número de uma conta em Genebra. — Tirou uma caneta do bolso e apanhou um guardanapo de papel. Não chegou a usar nenhum dos dois, pois um homem de trinta e poucos anos, com um terno muito elegante, aproximou-se rapidamente da mesa. — O que é, Sergei? — perguntou Krupkin. — Não o senhor — respondeu o ajudante soviético. — Ele — com um gesto da cabeça indicou Bourne. — O que é? — repetiu Jason. — O senhor foi seguido. A princípio não tínhamos certeza, pois é um velho com problemas urinários. Ele desceu do carro duas vezes para urinar, mas depois usou o telefone do carro e espiou pelo pára-brisa para ler o nome do restaurante. Isso foi há poucos minutos. — Como sabe que estava me seguindo? — Ele chegou logo depois do senhor, e nós estávamos aqui há meia hora verificando a área. — Verificando a área! — exclamou Conklin, olhando para o russo. — Pensei que este encontro era só entre nós três.
— Querido Aleksei, benevolente Aleksei, que vai me salvar de mim mesmo. Será que acreditou que eu ia me encontrai com você sem pensar na minha proteção? Não você, pessoalmente, velho amigo, mas os agressores de Washington. Já imaginou? Um diretor assistente da CIA negociando comigo a respeito de um homem que ele finge pensar que eu não conheço. Um golpe de amador. — Ora vá para o inferno, eu não contei para ele! — Oh, então eu me enganei. Peço desculpas, Aleksei. — Não se desculpe — disse Jason, com voz firme. — O velho é do Chacal... — Carlos! — exclamou Krupkin, com o rosto corado, os olhos agora alerta e furiosos. — O Chacal está atrás de você, Aleksei? — Não, atrás dele — disse Conklin. — Do seu benfeitor. — Meu Deus! Com o que já sabíamos, tudo se encaixa. Então tenho a distinta honra de conhecer o infame Jason Bourne. Um grande prazer, senhor! Temos o mesmo objetivo no que se refere a Carlos, não temos? — Se seus homens forem bons, podemos alcançar esse objetivo dentro de uma hora. Vamos! Vamos sair pelos fundos, pela cozinha, por uma janela, qualquer coisa. Ele me encontrou e pode apostar o que quiser que logo estará aqui. Só que não sabe que eu sei. Vamos! Os três homens levantaram-se e Krupkin disse ao seu ajudante: — Leve o carro para os fundos do restaurante, a entrada de serviço, se houver, mas faça isso disjarçadamente, Sergei. Sem nenhuma pressa, entendeu? — Podemos seguir por um quilômetro, mais ou menos, na estrada e entrar num pasto que vai dar nos fundos do restaurante. Assim não seremos vistos pelo velho no carro. — Muito bom, Sergei. E diga ao seu reforço para ficar onde está e alerta. — É claro, camarada. — O ajudante correu para a porta. — Um reforço! — explodiu Alex. — Você tinha um reforço? — Por favor Alex, para que discutir? A culpa é sua. Ontem à noite, no telefone, você não me contou sobre sua conspiração contra seu próprio diretor. — Ora, pelo amor de Deus, não foi conspiração nenhuma! — Não foi exatamente uma perfeita compreensão entre o escritório e o campo, foi? Não, Aleksei Nikolae Konsolikov, você estava certo de que podia — digamos assim — me usar e você usou. Lembrese sempre, meu bom e velho adversário, você é russo. — Quer calar a boca e sair daqui?
Esperaram no Citroen blindado de Krupkin ao lado de um campo com relva alta, a uns trinta metros do carro do velho, de onde viam perfeitamente a porta do restaurante. Para aborrecimento de Bourne, Conklin e o agente do KGB, como dois velhos profissionais, começaram a relembrar as estratégias de operações secretas do passado, cada um apontando as deficiências do outro. O reforço do soviético era um carro de quatro portas que estava no acostamento da estrada, no outro lado do restaurante, com dois homens prontos para saltar com suas automáticas, se fosse preciso. De repente, uma caminhonete Renault parou na frente do restaurante, com três casais. Todos desceram, menos o motorista, de braços dados e rindo alegremente. Caminharam para a entrada, enquanto o carro seguia para o pequeno estacionamento. — Detenha-os — disse Jason. — Podem ser mortos. — Sim, podem, Sr. Bourne, mas se fizermos isso, perdemos o Chacal. Jason olhou para o russo, sem saber o que dizer, com nuvens de confusão e raiva obscurecendo seu pensamento. Começou a protestar, mas as palavras não chegaram aos seus lábios. E então, era tarde demais para protestar. Um furgão marrom-escuro apareceu na estrada principal de Paris e Bourne disse: — É o mesmo da avenue Lefebvre. o furgão que fugiu! — De onde? — perguntou Conklin. — Há alguns dias houve um problema na avenue Lefebvre — disse Krupkin. — Um automóvel, ou um furgão, explodiu. É disso que está falando? — Era uma armadilha. Para mim... Um furgão, depois uma limusine e um homem personificando Carlos — uma armadilha. Esse é o segundo furgão que saiu de uma rua lateral, eu acho, e tentou impedir nosso avanço com um fogo cerrado. — Nosso? — Alex olhou atentamente para Jason e viu a fúria não disfarçada nos olhos do Camaleão, a linha fina e firme dos lábios cerrados, os dedos fortes abrindo-se e se fechando. — Bernardine e eu — murmurou Bourne, e depois, erguendo a voz de repente: — Quero uma arma — exclamou. — O revólver que tenho no bolso não é uma arma! Sergei, o reforçado ajudante de Krupkin, que estava na direção do carro, apanhou no banco da frente uma AK-47 russa e a entregou para Jason por sobre o ombro. Uma limusine marrom-escura surgiu na estrada secundária e parou, cantando pneus na frente do restaurante. Como comandos treinados, dois homens com máscaras de meia e empunhando automáticas saltaram pela porta lateral. Correram para a entrada e cada um encostou-se de um lado da porta. Um terceiro homem saiu do veículo quadrado, um homem quase completamente calvo vestido de padre. A um gesto da sua arma, os dois comandos colocaram-se de frente para a porta com as mãos nas maçanetas grossas de bronze. O motorista do furgão ligou o motor. — Vamos! — gritou Bourne. — 6 ele! É o Carlos!
— Não! — rugiu Krupkin. — Espere. A armadilha agora é nossa, e ele deve ser apanhado — dentro. — Pelo amor de Deus, há muita gente lá dentro! — disse Jason. — Todas as guerras têm vítimas acidentais, Sr. Bourne, e para o caso de não saber, isto é uma guerra. Sua e minha. A sua muito mais pessoal do que a minha. De repente, soou o grito estridente de vingança do Chacal, as portas duplas foram empurradas e os terroristas entraram atirando. — Agora! — exclamou Sergei, ligando o motor e levando o acelerador até o chão. O Citroen entrou velozmente na estrada diretamente na direção do furgão, mas foi desviado por uma explosão enorme à direita. O velho e o carro cinzento voaram pelos ares, e o Citroen foi atirado para a esquerda contra a velha cerca do estacionamento, ao lado do restaurante. No mesmo instante o furgão marromescuro do Chacal, ao invés de lançar-se para a frente, deu marcha a ré e parou com um tranco. O homem que o dirigia saltou e se escondeu atrás do carro. Acabava de ver o reforço dos soviéticos. Os dois russos correram para o restaurante. O homem do Chacal, escondido atrás do furgão, matou um. O outro atirou-se na relva, na margem da estrada, e viu, sem poder fazer nada, o homem de Carlos atirar nos vidros e nos pneus do veículo dos soviéticos. — Saiam! — gritou Sergei, empurrando Bourne para fora, ao lado da cerca, enquanto Alex e seu superior arrastavam-se para fora, atrás dele. — Vamos! — exclamou Jason, levantando-se com a AK-47 na mão. — Aquele filho da mãe explodiu o carro por controle remoto. — Eu vou na frente — disse o soviético. — Por quê? — Para ser franco, porque sou mais moço e mais forte... — Ora, cale a bocal Bourne correu em ziguezague e atirou-se no chão quando o motorista do furgão de Carlos começou a atirar. Ergueu a arma sobre a relva, certo de que o homem do Chacal pensava que o tinha atingido. A cabeça apareceu, Jason puxou o gatilho e ela desapareceu. O segundo reforço dos russos, ouvindo o grito de morte atrás do furgão, levantou e avançou para a porta do restaurante. De dentro vinha o som do tiroteio desordenado, gritos de pânico e mais tiros. Um pesadelo vivo de terror e sangue desenrolava-se no interior do pequeno e bucólico restaurante. Bourne ficou de pé e com Sergei ao seu lado alcançaram o ajudante sobrevivente. A um sinal de Jason, os russos empurraram as portas e os três entraram ao mesmo tempo. Os sessenta segundos seguintes foram tão horríveis quanto o inferno ululante descrito por Munch. Um garçom e dois homens dos três casais que haviam entrado juntos, estavam mortos, o
garçom e um deles no chão, com as cabeças esfaceladas e, o que restava dos seus rostos, coberto de sangue. O outro homem estava encostado na parede do reservado, com os olhos arregalados e sem vida, o corpo todo perfurado de balas, o sangue escorrendo pela roupa. As mulheres estavam em estado de choque, alternando os gritos com gemidos, tentando saltar por cima das divisórias de pinho do reservado. O homem e a mulher bem vestidos da embaixada italiana tinham desaparecido. Sergei correu de repente para um canto afastado da sala, atirando, na direção “de um vulto que Bourne não havia notado. O assassino com a máscara de meia saltou da sombra com a arma na mão, mas antes que pudesse puxar o gatilho, o soviético o abateu... Outro! Uma sombra atrás do pequeno balcão do bar. Seria o Chacal? Jason girou o corpo perto da parede atento aos menores recantos ao lado da prateleira das bebidas. Num movimento rápido, colocou-se na base do balcão quando o segundo reforço dos russos, percebendo a situação, correu para as mulheres histéricas, e ficou de costas para elas, movendo a arma de um lado para o outro, protegendo-as. A cabeça com máscara e a mão com a arma apareceram sobre o balcão. Bourne levantou-se de um salto, segurando o cano quente com a mão esquerda e com a direita no comando da AK-47, atirou à queima-roupa no rosto coberto do terrorista. Não era Carlos. Onde estava o Chacal? — Aqui! — gritou Sergei, como se tivesse ouvido a pergunta furiosa de Jason. — Onde? — Aquelas portas! Os dois homens convergiram para as portas de vaivém que davam para a cozinha. Outra vez Bourne fez o sinal para o ataque, mas antes que pudessem fazer um movimento, foram atirados para trás por uma explosão. Uma granada fora detonada na cozinha e fragmentos de metal e de vidro cravaram-se na madeira das portas. A fumaça espiralou, espalhando-se pela sala com um cheiro acre e enjoativo. Silêncio. Jason e Sergei aproximaram-se novamente da entrada da cozinha e mais uma vez seu avanço foi detido por uma explosão acompanhada de tiros seguidos, que atingiram as folhas das portas. Silêncio. Espera. Silêncio. Era demais para a fúria e o ímpeto do Camaleão. Abriu o ferrolho da sua AK-47, puxou a alavanca seletiva, e depois o gatilho para tiro automático, e abriu as portas com um tranco, atirando-se no chão. Silêncio. Outra cena de outro inferno. Uma parte da parede externa tinha desaparecido, o obeso dono do restaurante e seu cozinheiro, este ainda com o chapéu alto, estavam mortos, cadáveres pregados nas
prateleiras mais baixas da cozinha, com o sangue escorrendo para a madeira. Bourne levantou-se devagar, com uma dor excruciante nas pernas, cada nervo do seu corpo esgarçado e tenso, muito perto da histeria. Como num transe, olhou à sua volta, através da fumaça e dos destroços, e seus olhos finalmente pousaram num pedaço de papel pardo de açougue pregado na parede com um pesado cutelo. Aproximou-se e, arrancando o cutelo, leu as palavras escritas com lápis preto de açougueiro: As árvores de Tannenbaum arderão em chamas e as crianças com elas. Durma bem, Jason Bourne. Os espelhos de sua vida partiram-se em mil pedaços. Nada mais tinha a fazer senão gritar.
Capítulo31 — PARE COM ISSO, David! — Meu Deus, ele enlouqueceu, Aleksei. Sergei, segure-o, não o deixe ir... Você, ajude Sergei. Deite-o no chão para falarmos com ele. Precisamos sair daqui imediatamente! Os dois ajudantes russos com muito esforço conseguiram deitar Jason na relva. Quando leu o papel, Bourne saiu pela abertura na parede, e correu pelo campo, na tentativa inútil de encontrar o Chacal, atirando com sua AK-47 até acabar a munição. Sergei e o outro ajudante correram atrás dele. O primeiro tirou a arma das mãos de Jason e os dois levaram o homem histérico de volta para o restaurante semidestruído, onde Alex e Krupkin os esperavam. Com grande esforço levaram Jason, coberto de suor e ofegante, até a frente do restaurante. Então a histeria incontrolável dominou novamente o Camaleão. O furgão do Chacal tinha desaparecido. Carlos, invertendo sua linha de fogo, conseguira escapar e Jason estava louco. — Segurem o homem! — rugiu Krupkin, ajoelhando ao lado de Jason, enquanto os dois ajudantes o mantinham deitado no chão. O agente do KGB espalmou a mão sobre o rosto do americano, apertando dos dois lados com o polegar e o indicador, obrigando Treadstone Setenta e Um a olhar para ele. — Vou dizer só uma vez, Sr. Bourne, e se não me entender, pode ficar aqui sozinho e enfrentar as conseqüências! Nós temos de sair daqui. Se conseguir se controlar, entraremos em contato com as autoridades do seu país dentro de uma hora, em Paris. Eu li o aviso e garanto que sua gente pode proteger sua família — como sua família me foi explicada por Aleksei. Mas você, em pessoa, deve fazer parte desse comunicado. Pode recobrar a razão, Sr. Bourne, ou pode ir para o inferno. O que escolhe? O Camaleão, procurando se livrar dos joelhos que o prendiam ao solo, soltou o ar dos pulmões como se fosse seu último suspiro. Seus olhos entraram em foco e ele disse: — Tire os filhos da mãe de cima de mim. — Um desses filhos da mãe salvou sua vida — disse Conklin. — E eu salvei a vida de um deles. Estamos quites. O Citroen blindado seguiu velozmente pela estrada principal que levava a Paris. No telefone celular com misturador, Krupkin deu ordens para que uma equipe fosse enviada a Epernon a fim de remover imediatamente o que restava do carro dos russos. O corpo do homem fora colocado cuidadosamente na mala do Citroen, e o comentário oficial dos soviéticos, se alguém perguntasse, seria
de nenhum envolvimento com o caso. Dois funcionários subalternos da embaixada estavam almoçando no campo quando ocorreu o massacre. Vários assassinos usavam máscaras de meia, os outros nem foram vistos porque os russos da embaixada fugiram pela porta dos fundos para salvar suas vidas. Quando tudo terminou, voltaram ao restaurante e tentaram acalmar as mulheres histéricas e o único homem sobrevivente. Comunicaram o terrível incidente aos seus superiores e receberam instruções para informar a polícia local e voltar imediatamente para a embaixada. Os interesses soviéticos não podiam ser prejudicados por sua presença acidental no cenário de um ato criminoso de franceses. — Parece tão russo — disse Krupkin. — Será que alguém vai acreditar? — perguntou Alex. — Não importa — respondeu o russo. — Epernon cheira a vingança#do Chacal. O velho que eles explodiram, dois terroristas subordinados com máscaras de meia — a Sûreté conhece esses sinais. Se estivéssemos envolvidos, estaríamos no lado certo, portanto, não vão investigar o motivo da nossa presença. Bourne estava perto da janela do carro, em silêncio, com Krupkin ao seu lado e Alex na banqueta, de frente para os dois. Jason quebrou seu silêncio de revolta, desviando os olhos da paisagem e batendo com a mão fechada no braço do banco. — Oh, Cristo, as crianças! — exclamou. — Como aquele filho da mãe ficou sabendo que foram para Tannenbaum? — Perdoe-me, Sr. Bourne — disse Krupkin em voz baixa. — Sei que é mais fácil para mim dizer, do que para o senhor aceitar, mas logo entraremos em contato com Washington. Eu sei alguma coisa sobre a capacidade da Agência para proteger sua gente e posso garantir que é de uma eficiência a toda prova. — Não pode ser tão eficiente se Carlos pode penetrar as defesas como penetrou. — Talvez não tenha sido isso. Talvez ele tenha outra fonte — disse o soviético. — Não podia ter nenhuma. — Nunca se sabe, senhor. Seguiram velozmente pelas ruas de Paris, sob o sol ofuscante da tarde, entre as calçadas repletas de pedestres. Chegaram à embaixada soviética na avenue de Lannes e passaram pelos portões, os guardas apenas acenando ao ver o Citroen blindado de Krupkin. Deram a volta no pátio de cascalho e pararam na frente da imponente escadaria de mármore e do arco esculpido da entrada. — Fique por perto, Sergei — ordenou o homem do KGB. — Se precisarmos falar com a Sûreté, você se encarrega disso. — Então, como se só então tivesse lembrado, Krupkin dirigiu-se ao outro ajudante ao lado de
Sergei, no banco da frente. — Não se ofenda, jovem, mas é que durante todos estes anos meu velho amigo e motorista tem-se mostrado muito eficiente nessas situações. Entretanto, você também tem um trabalho para fazer. Providencie para que o corpo do nosso leal camarada seja cremado. Operações internas lhe dirão quais os papéis necessários. — Com um aceno, Dimitri Krupkin indicou que Bourne e Alex Conklin podiam descer do carro.Entraram, e Dimitri disse aos guardas que seus hóspedes não deviam passar pelo detetor de metais ao qual eram submetidos todos os visitantes da embaixada. Murmurou, em inglês, para seus convidados: — Podem imaginar o que ia acontecer? Dois americanos armados da CIA selvagem passeando pelos salões do bastião do proletariado? Nem é bom pensar, sinto o frio da Sibéria nos meus testículos. Passaram do saguão, ricamente decorado ao estilo do século XIX, para o elevador típico francês, com grade de bronze, que os levou ao terceiro andar. A porta do elevador se abriu e Krupkin os conduziu por um largo corredor. — Vamos usar uma sala de conferências não formal — disse ele. — Serão os primeiros americanos a entrar nela e talvez os últimos porque é o único compartimento da embaixada sem microfones e escutas. — Você não faria essa declaração num detetor de mentiras, faria? — perguntou Conklin com uma risada. — Como você, Aleksei, aprendi há muito tempo a enganar essas máquinas idiotas, mas independente disso, eu faria sim, porque é verdade. Com toda franqueza, é para nos proteger de nós mesmos. Venham agora. A sala de conferências era do tamanho de uma sala de jantar burguesa comum, mas com uma mesa longa e comprida e móveis escuros e masculinos, as cadeiras fortes, pesadas e bastante confortáveis. As paredes eram recobertas de madeira marrom-escura, o inevitável retrato de Lenin pendia ostensivamente da parede, atrás da cadeira principal, onde havia, também, uma mesa baixa com o console do telefone. — Sei que está ansioso para telefonar — disse Krupkin, aproximando-se do console. — Por isso vou autorizar uma linha internacional. Dimitri apanhou o fone, falou rapidamente em russo, desligou e voltou-se para os americanos. — Vocês têm o número 26. É o último botão à direita, segunda fileira. — Obrigado. — Conklin tirou um papel do bolso e o entregou ao agente do KGB. — Preciso de outro favor, Kruppie. Esse é o número de um telefone em Paris, supostamente uma linha direta para o Chacal, mas não combina com o número que deram a Bourne e que era do Chacal. Não sabemos onde ele se encaixa, mas, seja onde for, tem a ver com Carlos. — E você não quer telefonar para que não saibam que tem o número — códigos iniciais e toda essa coisa. Eu compreendo, é claro. Para que enviar um alerta sem necessidade? Eu me encarrego disso.
— Krupkin olhou para Jason como um companheiro mais velho e compreensivo. — Anime-se e tenha confiança, Sr. Bourne, como diziam os czaristas, sem enfrentar nenhum perigo visível. A despeito das suas preocupações, tenho uma grande confiança na capacidade de Langley. Eles prejudicaram minhas operações nada insignificantes mais vezes do que gosto de lembrar. — Tenho certeza de que fez sua parte prejudicando-os também — disse Jason impaciente, olhando para o telefone. — A certeza disso me mantém ativo. — Obrigado, Kruppie — disse Alex. — Como você mesmo disse, é um bom e velho inimigo. — E eu repito, seus pais deviam se envergonhar! Imagine só, se tivessem ficado na Mãe Rússia. A esta altura você e eu estaríamos dirigindo o Komitet. — E teríamos duas casas de frente para o lago? — Está louco, Aleksei? Podíamos ser donos de todo o lago de Genebra! — Krupkin deu meiavolta, caminhou para a porta e saiu com uma risada. — Com vocês tudo é uma droga de jogo, não é? — disse Bourne. — Até certo ponto — concordou Alex. — Mas não quando informação roubada significa perda de vidas — dos dois lados, é claro. É então que as armas aparecem e o jogo acaba. — Fale com Langley — disse Jason bruscamente, indicando o console com um gesto da cabeça. — Holland tem umas explicações a dar. — Falar com Langley não vai adiantar... — O quê? — É cedo demais, nem sete horas ainda nos Estados Unidos, mas não se preocupe, eu posso contornar. — Conklin tirou um caderninho do bolso. — Contornar? — exclamou Bourne. — Que diabo de conversa é essa? Estou a ponto de enlouquecer, Alex, aquelas crianças são meus filhos! — Calma, isso quer dizer que eu tenho o telefone particular dele, que não consta da lista. — Conklin sentou-se ao lado do telefone e discou. — Contornar, pelo amor de Deus! Vocês, relíquias de códigos ultrapassados não sabem falar claro. Contornar! — Desculpe, professor, é um hábito... Peter? Alex. Abra os olhos e acorde, marinheiro. Temos complicações. — Não preciso acordar — disse a voz em Fairfax, Virgínia. — Acabo de chegar de uma corrida
de dez quilômetros. — Ah, vocês que têm pés pensam que são tão espertos! — Jesus, desculpe, Alex, eu não queria... — É claro que não, grumete Holland, mas temos um problema. — O que significa que, pelo menos, você fez contato. Encontrou Bourne. — Ele está aqui ao meu lado e estamos telefonando da baixada soviética em Paris — O quê? Santa merda! — Nada de santa. Apenas Casset, lembra-se? — Ah, sim, tinha esquecido... E a mulher dele? — Mo Panov está com ela. O bom doutor está cobrindo a parte médica, pelo que lhe sou muito grato. — Eu também. Outros progressos? — Nada que você queira ouvir, mas vai ouvir em alto e bom som. — Do que está falando? — O Chacal sabe sobre a propriedade Tannenbaum. — Está louco! — gritou o diretor da CIA, tão alto que provocou um som metálico na linha internacional. — Ninguém sabe! Só Charlie Casset e eu. Organizamos um cronograma com nomes falsos e biografias da América Central, tão distantes de Paris que ninguém poderia fazer a conexão. Além disso, não há nenhuma menção a Tannenbaum nas ordens! Pode estar certo, Alex, foi uma operação inviolável porque não deixamos ninguém interferir. — Fatos são fatos, Peter. Meu amigo recebeu um recado dizendo que as árvores de Tannenbaum vão arder em chamas e as crianças com elas. — Filho da mãe! — berrou Holland. — Fique na linha. Vou telefonar para St. Jacques, depois para a segurança máxima, e mandar que sejam removidos de lá esta manhã. Fique na linha! Conklin ergueu os olhos para Bourne que escutava com ele no telefone. — Se há um vazamento, e há um vazamento, não é em Langley — disse Alex. — Tem de ser lá. Ele não verificou direito. — Onde ele vai verificar?
— Cristo, vocês são os entendidos. O helicóptero que os tirou da ilha, a tripulação, o pessoal que liberou o avião para a Grã-Bretanha. Meu Deus! Carlos comprou o miserável governador da Coroa em Montserrat e o chefe da equipe antidrogas. O que o impede de monitorar nossas comunicações entre nossas forças armadas e Plymouth? — Mas você ouviu — insistiu Conklin. — Os nomes eram falsos, as cronologias orientadas para a América Central, e acima de tudo, ninguém nos vôos sabia sobre Tannenbaum. Ninguém... Temos uma lacuna. — Por favor, poupe-me essa linguagem de código. — Não é nenhum código. Uma lacuna é um espaço vazio. — Alex? — A voz zangada de Peter Holland. — Sim, Peter? — Estamos tirando todos de lá, e não vou dizer nem para você para onde vão agora. St. Jacques ficou furioso porque a Sra. Cooper e as crianças já estavam instaladas, mas eu disse que eles têm uma hora. — Quero falar com Johnny — disse Bourne, inclinando-se e falando em voz bem alta para ser ouvido por Holland. — É um prazer conhecê-lo, mesmo só por telefone — disse Holland. — Obrigado por tudo que está fazendo por nós — disse Jason em voz baixa e sincera. — Muito obrigado mesmo. — Quid pro quo, Bourne. Na sua caçada ao Chacal você tirou um coelho grande e feio de uma cartola imunda que ninguém sabia que existia. — O quê? — Medusa, a nova. — Como vai a investigação? — perguntou Conklin. — Estamos fazendo nossa contrapolinização entre os sicilianos e uma porção de bancos europeus. Está sujando tudo o que eles tocam, mas temos agora mais fios ligados naquela todo-poderosa firma de advocacia em Nova York do que a NASA inteira num lançamento de foguete. Estamos fechando o cerco. — Boa caça — disse Jason. — Pode me dar um número em Tannenbaum para falar com John St. Jacques? Holland deu o número. Alex anotou e desligou.
— O clarim é todo seu — disse Conklin, levantando-se com dificuldade e caminhando para a outra ponta da mesa. Bourne sentou-se, concentrado na miríade de botões à sua frente. Apanhou o telefone e digitou os números anotados por Alex. Os cumprimentos foram bruscos, as perguntas de Jason diretas, feitas em voz autoritária. — Com quem você falou sobre Tannenbaum? — Vá com calma, David — disse St. Jacques, na defensiva. — O que quer dizer com quem falei? — Exatamente isso. De Tranqüilidade para Washington, com quem você falou sobre Tannenbaum? — Quer dizer, depois que Holland falou comigo? — Pelo amor de Deus, Johnny, não podia ser antes, podia? — Não, não podia, Sherlock Holmes. — Então com quem? — Com você. Só com você, meu estimado cunhado. — O quê? — Você ouviu. Tudo estava acontecendo tão depressa que eu provavelmente me esqueci do nome Tannenbaum, e se me lembrasse, na certa não era para ficar anunciando por aí. — Você deve ter falado. Houve um vazamento e não foi em Langley. — Eu também não fui. Escute, Dr. Acadêmico, posso não ter um alfabeto inteiro depois do meu nome, mas não sou exatamente um idiota. São meus sobrinhos no quarto ao lado e eu espero vê-los crescidos... Por isso vamos sair daqui? — Sim. — Muito grave? — Gravidade máxima. O Chacal. — Jesus! — explodiu St. Jacques. — Se o bastardo aparecer na vizinhança, ele é meu! — Calma, Canadá — disse Jason com voz mais suave, exprimindo mais preocupação do que zanga. — Você diz e eu acredito que só descreveu Tannenbaum para mim e, se bem me lembro, eu o identifiquei.
— Certo. Eu lembro porque quando Pritchard me disse que você estava no telefone, eu estava na outra linha, falando com Henry Sykes em Serrat. Lembra-se de Henry, o ajudante do governador da Coroa? — É claro. — Eu estava pedindo para ele ficar de olho em Tranqüilidade porque eu precisava me afastar por alguns dias. Naturalmente ele sabia disso porque teve de liberar o avião na ilha e lembro-me muito bem de ele perguntar para onde eu ia e eu dizer Washington. Nunca me ocorreu dizer nada que se parecesse com Tannenbaum, e Sykes não insistiu porque deve ter compreendido que tinha a ver com as coisas horríveis que haviam acontecido na ilha. Pode-se dizer que ele é um profissional nesses assuntos. — St. Jacques fez uma pausa, mas antes que Bourne pudesse falar, exclamou com voz rouca: — Oh, meu Deus! — Pritchard — disse Jason. — Ele ficou na linha. — Por quê? Por que ele ia fazer isso? — Você está esquecendo — explicou Bourne. — Carlos comprou seu governador da Coroa e seu Savonarola, o chefe da equipe antidrogas. Devem ter custado muito dinheiro. Ele pode ter comprado Pritchard por muito menos. — Não, você está enganado, David. Pritchard pode ser um cretino pomposo e com mania de grandeza, mas não me trairia por dinheiro. Não é tão importante nas ilhas — prestígio é. E a não ser quando ele; quase me faz subir pelas paredes, eu procuro prestigiá-lo. Na verdade, ele é um ótimo funcionário. — Não tem mais ninguém, irmão. — Temos um meio de descobrir. Eu estou aqui, não lá, e não vou sair daqui tão cedo. — No que está pensando? — Quero pedir ajuda a Henry Sykes. Está tudo bem com você? — Tudo vem. — Como vai Marie? — Tão bem quanto podia estar, dadas as circunstâncias... E, Johnny, não quero que ela saiba nada sobre isto, compreende? Quando ela falar com você, e vai falar, diga que estão instalados e que tudo está bem, nada sobre a mudança nem sobre Carlos. — Compreendo. — Tudo está bem, não está? Como vão as crianças — como Jamie está enfrentando tudo isso?
— Você pode ficar sentido, mas ele está se divertindo a valer, e a Sra. Cooper não me deixa nem tocar em Alison. — Não fico sentido com nenhuma das duas coisas. — Obrigado. E você? Algum progresso? — Falamos depois — disse Jason desligando e voltando-se para Alex. — Não faz sentido e Carlos sempre faz sentido, se a gente prestar atenção. Ele deixa um recado que quase me enlouquece de medo, mas não tem meios de cumprir a ameaça. O que você acha disso? — O objetivo é enlouquecer você — respondeu Conklin. — O Chacal não vai tomar uma instalação como a casa de Tannenbaum a distância. A mensagem era para fazer você entrar em pânico e conseguiu. Ele quer deixá-lo perturbado a ponto de cometer erros graves. Ele quer o controle da situação. — Outro motivo para Marie voltar para os Estados Unidos o mais cedo possível. Ela tem de ir. Quero Marie dentro de uma fortaleza e não almoçando abertamente em Barbizon. — Concordo mais com a idéia hoje do que ontem à noite. — Alex foi interrompido pela entrada de Krupkin com vários impressos de computador na mão. — O número que você me deu foi desligado — disse ele, com certa hesitação. — Estava ligado em nome de quem? — Você não vai gostar disto mais do que eu gostei, e se eu pudesse inventar uma mentira plausível, mentiria para você, mas não posso, e não devo... Há cinco dias foi transferido de uma organização evidentemente falsa para o nome de Webb. David Webb. Conklin e Bourne olharam em silêncio para o agente soviético, mas era um silêncio quebrado pela estática de uma corrente de alta voltagem. — Por que tinha tanta certeza de que eu não ia gostar da informação? — perguntou Alex, em voz baixa. — Meu bom e velho inimigo — disse Krupkin com voz suave, tão baixa quanto a de Conklin. — Quando o Sr. Bourne saiu daquele café de horrores com o papel pardo na mão, ele estava histérico. Tentando acalmá-lo você o chamou de David... Agora eu tenho um nome que sinceramente não queria ter. — Esqueça — disse Bourne. — Vou fazer o possível, mas há certos modos... — Não é disso que estou falando — interrompeu Jason. — Preciso conviver com o fato de que você sabe e isso é possível. Onde o telefone foi instalado? Qual é o endereço?
— Segundo os computadores, é uma casa de missão dirigida pelas Irmãs de Caridade Madalenas. Também obviamente falsa. — Obviamente verdadeira — corrigiu Bourne. — Essa organização existe. É legítima e legalizada até às toucas engomadas das freiras, e é também um disfarce muito útil. Pelo menos era. — Fascinante — murmurou Krupkin. — Tantas fachadas do Chacal relacionam-se com a Igreja. Um modus operandi brilhante, embora um pouco ultrapassado. Dizem que ele estudou para padre. — Então a Igreja chegou na sua frente — disse Alex, inclinando a cabeça com um sorriso. — Ela o expulsou antes de vocês. — Eu nunca subestimei o Vaticano — disse Dimitri, rindo. — Ficou mais do que provado que nosso louco Joseph Stalin não compreendeu as prioridades quando perguntou com quantos batalhões o Papa podia contar. Sua Santidade não precisa deles. Consegue mais do que Stalin jamais conseguiu com todos seus expurgos. O poder vai para aquele que inspira mais medo, não é mesmo, Aleksei? Todos os príncipes da Terra usam o medo com eficácia brutal. E tudo gira em torno da morte — o medo da morte, antes e depois dela. Quando vamos crescer e mandar todos eles para o inferno? — Morte — murmurou Jason, franzindo a testa. — Morte na rue Rivoli, no Meurice, nas Irmãs Madalenas... meu Deus, eu me esqueci por completo! Dominique Lavier! Ela estava no Meurice — talvez ainda esteja lá! Ela disse que ia trabalhar comigo. — Por quê? — perguntou Krupkin, bruscamente. — Porque Carlos matou a irmã dela e ela não teve escolha senão trabalhar para ele ou ser morta. — Bourne voltou-se para o telefone. — Preciso do telefone do Meurice... — Quatro-dois-seis-zero-três-oito-seis-zero — recitou Krupkin, enquanto Jason anotava no bloco de Alex. — Um lugar agradável, antes conhecido como hotel dos reis. Eu gosto especialmente do grill. Bourne digitou o número e ergueu a mão pedindo silêncio. Lembrando-se, pediu o quarto de Madame Brielle e quando a telefonista disse “Mais oui”, ele balançou a cabeça afirmativamente para Alex e Dimitri. Lavier atendeu. — Sim? — Sou eu, madame — disse Jason, num francês áspero, levemente anglicanizado. O Camaleão estava em ação. — Sua governanta sugeriu que podíamos encontrá-la aí. Madame, seu vestido está pronto. Pedimos desculpa pela demora. — Devia ter sido entregue ontem ao meio-dia, seu cretino! Eu queria usá-lo a noite passada no Grand Véfour. Fiquei muito aborrecida! — Mil desculpas. Podemos entregar imediatamente no hotel.
— Você é mesmo um cretino! Na certa minha empregada disse também que vou ficar só dois dias aqui no hotel. Entregue no meu apartamento na Montaigne e se não estiver lá até às quatro horas, vai esperar um mês para receber o pagamento! Um estalido forte na linha parecia indicar que a ligação fora cortada. Bourne desligou o telefone com o suor brotando na testa. — Estive muito tempo fora disto — disse ele, respirando fundo. — Ela tem um apartamento na Montaigne e estará lá às quatro horas. — Quem diabo é Dominique não sei do quê? — berrou Conklin irritado. — Lavier — respondeu Krupkin. — Mas ela usa o nome da irmã morta, Jacqueline. Há anos vem fazendo o papel da irmã. — Você sabe disso? — perguntou Jason, impressionado. — Sei, mas nunca nos adiantou muito. Foi um golpe fácil de compreender — irmãs parecidas, vários meses de ausência, plástica facial —, tudo normal no mundo anormal da alta moda. Quem presta atenção a pessoas que se movem nessa órbita superficial? Nós a vigiamos, mas ela jamais nos levou ao Chacal, ela não sabe como fazer isso. Não tem acesso direto, tudo que ela informa é filtrado, com portas fechadas para ela a cada entrega de informação. É assim que o Chacal trabalha. — Não é sempre assim — disse Bourne. — Havia um homem chamado Santos que dirigia um café de terceira classe em Argenteuil, o Coeur du Soldat. Santos tinha acesso direto. Ele me deu uma informação muito especial. — Havia? — Krupkin ergueu as sobrancelhas. — Fala nele no passado? — Santos está morto. — E o café de terceira classe em Argenteuil, funciona ainda? — Foi limpo e fechado — admitiu Jason, sem implicar que se tratava de uma derrota. — Então o acesso terminou, certo? — Certo, mas acredito no que ele me disse porque foi morto por isso. Santos estava saindo, assim como esta mulher Lavier quer sair agora — só que sua conexão era muito antiga. Começou em Cuba, quando Carlos salvou da execução um desajustado igual a ele. Sabia que podia usar o homem, aquele gigante imenso e imponente capaz de operar entre o lixo da humanidade e ser seu mensageiro direto. Santos tinha acesso direto. Provou isso quando me deu o número do telefone com o qual falei com o Chacal. Poucos homens podem fazer isso. — Fascinante — disse Krupkin, olhando atentamente para Bourne. — Mas, como perguntaria meu bom e velho inimigo Aleksei, que parece tão espantado quanto eu, aonde quer chegar, Sr. Bourne?
Suas palavras são ambíguas, mas as acusações insinuadas parecem perigosas. — Para vocês. Não para nós. — Não entendi. — Santos me disse que só quatro homens no mundo todo têm acesso direto ao Chacal. Um deles está na Praça Dzerzhinsky. “Muito alto no Komitet” foram suas palavras, e acredite, ele não tinha muito respeito por esse seu superior. Foi como se Dimitri Krupkin tivesse sido esbofeteado pelo diretor do Politburo no meio da Praça Vermelha, durante a parada do Primeiro de Maio. O russo empalideceu e seus olhos ficaram parados, sem piscar. — O que mais Santos lhe contou? Tenho de saberl — Só que Carlos tinha uma obsessão com Moscou, que estava fazendo contato com pessoas do alto escalão... Se puder encontrar esse contato na Praça Dzerzhinsky, daremos um grande passo à frente. Por enquanto, tudo que temos é Dominique Lavier... — Droga, droga! — rugiu Krupkin interrompendo Jason. — Tão insano e ao mesmo tempo tão perfeitamente lógico. Acaba de responder a várias perguntas, Sr. Bourne, perguntas que me atormentam há tempos. Tantas vezes cheguei perto — e sempre, nada. Muito bem, deixe que lhes diga, cavalheiros, os jogos do demônio não se limitam aos que estão no inferno. Outros podem jogá-los também. Meu Deus. Sinto-me como uma pérola jogada de uma ostra para outra, sempre o grande idiota!... Não use mais esse telefone! Eram 3:30h da tarde, hora de Moscou, e o homem idoso com uniforme de oficial do exército soviético caminhava com a maior velocidade que a idade lhe permitia pelo corredor do quinto andar da sede do KGB na Praça Dzerzhinsky. O dia estava quente e o ar condicionado, como de hábito, fraco e irregular, por isso o general Grigorie Rodchenko, valendo-se tlc um dos privilégios do seu posto, estava com a gola da Iúnica desabotoada. Isso porém não impedia que o suor descesse pela face enrugada até o pescoço. Não sentir o colarinho alto e apertado, no entanto, era um alívio. Chegou aos elevadores, apertou o botão e esperou, com uma chave na mão. As portas da direita abriram-se, e ele viu com satisfação que o elevador estava vazio. Era mais fácil do que mandar que todos saíssem — pelo menos, menos constrangedor. Entrou, inseriu a chave na fechadura acima do painel e esperou que o mecanismo realizasse sua função. Num instante o elevador desceu direto para o nível mais baixo dos subterrâneos do prédio. As portas se abriram e o general saiu, notando imediatamente o silêncio nos corredores, tanto o da esquerda, quanto o da direita. Dentro de alguns instantes, isso mudaria, pensou ele. Caminhou pelo corredor da esquerda, até uma porta grande de aço com uma placa de metal no centro.
ENTRADA PROIBIDA SÓ PESSOAL AUTORIZADO Um aviso tolo, pensou o general, tirando um cartão de plástico do bolso e inserindo-o lenta e cuidadosamente na pequena abertura da direita. Sem o cartão — e às vezes só quando era inserido rapidamente — a porta não se abria. Ouviu dois estalidos e retirou o cartão. A porta pesada e sem maçaneta se abriu, e um monitor de televisão registrou sua entrada. A atividade era intensa nas dezenas de cubículos iluminados que dividiam o enorme complexo de teto baixo, do tamanho de um salão de baile do tempo dos czares, mas sem nenhuma ornamentação. E felizmente, o ar estava fresco, na verdade, quase frio. As máquinas exigiam o controle exato de temperatura, pois ali funcionava o centro de comunicações do KGB. Informações do mundo todo chegavam ao centro durante as 24 horas do dia. O velho soldado seguiu o caminho que conhecia muito bem até a última passagem da direita, depois para a esquerda, chegando ao cubículo na extremidade da grande sala. Era uma longa caminhada, e a respiração do general estava muito ofegante, suas pernas muito cansadas. Entrou, cumprimentando com um aceno da cabeça o operador de meia-idade que ergueu os olhos e retirou os fones do ouvido. No balcão branco à sua frente havia um grande console eletrônico com uma infinidade de botões, interruptores e painéis iluminados. Rodchehko sentou numa cadeira de aço, ao lado do homem, e disse, parando para respirar entre uma palavra e outra: — Alguma notícia do coronel Krupkin, de Paris? — Tenho notícias sobre o coronel Krupkin, general. Seguindo suas instruções para monitorar as conversas telefônicas do coronel, incluindo as ligações internacionais autorizadas por ele, recebi um teipe de Paris há alguns minutos. Estou certo de que o senhor quer ouvir. — Como sempre, você foi muito eficiente e eu agradeço, e como sempre, tenho certeza de que o coronel Krupkin vai nos informar sobre tudo isso, mas você sabe, ele é um homem muito ocupado. — Não precisa explicar, senhor. As conversas que vai ouvir foram gravadas há meia hora. Os fones, por favor? Rodchenko colocou os fones no ouvido e fez um gesto afirmativo. O operador pôs um bloco de notas e lápis bem apontados no balcão, na frente do general, digitou um número e recostou-se na cadeira enquanto o poderoso direktor do Komitet inclinava-se para a frente, escutando. Logo o general começou a tomar notas, minutos depois estava escrevendo furiosamente. O teipe terminou e Rodchenko retirou os fones do ouvido. Olhou carrancudo para o operador, seus estreitos olhos eslavos rígidos entre as pálpebras emaciadas, as rugas do rosto mais acentuadas do que antes. — Apague a fita, depois destrua o disco — ordenou ele levantando-se. — Como sempre, você não ouviu nada. — Como sempre, general.
— E como sempre, será bem recompensado. Eram 4:17h quando Rodchenko chegou ao seu escritório e sentou à mesa de trabalho, estudando suas notas. Era incrível! Inacreditável, mas ali estava — acabava de ouvir as palavras e as vozes... Não o que se referia ao monsenhor, em Paris. Isso era secundário agora e podia se comunicar com ele dentro de minutos, se fosse necessário. O monsenhor podia esperar, mas a outra parte da conversa não podia! O general apanhou o telefone e chamou sua secretária. — Quero uma transmissão imediata, via satélite, para nosso consulado em Nova York. Todos os misturadores máximos ligados e operando. Como podia ter acontecido? Medusa!
Capítulo32 COM A TESTA FRANZIDA, Marie ouviu a voz do marido no telefone e fez um sinal para Mo Panov. — Onde você está agora? — ela perguntou. — Num telefone público, no Plaza-Athénée — disse Bourne. — Estarei de volta dentro de algumas horas. — O que está acontecendo? — Complicações, mas também algum progresso. — Isso não me diz nada. — Não há muito para dizer. — Como é esse Krupkin? — Original. Ele nos levou à embaixada soviética e eu falei com Johnny num dos telefones deles. — O quê?... Como estão as crianças? — Muito bem. Tudo está bem. Jamie está se divertindo muito, e a Sra. Cooper não deixa Johnny nem tocar em Alison. — O que significa que Johnny não quer nem tocar em Alison. — Pode ser. — Qual é o número? Quero falar com eles. — Holland está instalando uma linha segura. Saberemos o número dentro de uma hora mais ou menos. — O que significa que você está mentindo. — Se pensa assim... Você devia estar com eles. Se for me atrasar eu telefono. — Espere um pouco. Mo quer falar com você. Bourne desligou. Na outra extremidade do quarto, Mo Panov balançou a cabeça lentamente.
— Esqueça — disse ele. — Eu sou a última pessoa com quem ele quer falar. — Ele está de volta àquele lugar, Mo. Não é mais David. — Tem uma missão diferente agora — disse Panov, suavemente. — David não poderia cumprila. — Acho que é a coisa mais assustadora que você já disse, O psiquiatra balançou a cabeça num gesto afirmativo — Talvez seja. O Citroen cinzento estava parado a alguns metros, em diagonal com a entrada do prédio de apartamentos de Dominique Lavier, na elegante avenue Montaigne. Krupkin, Alex e Bourne estavam no banco de trás, Conklin na banqueta, de frente para os dois, mais cômoda para sua perna e seu tamanho. Falavam raramente, observando a porta de vidro do prédio. — Tem certeza de que isto vai funcionar? — perguntou Jason. — Tudo que sei é que Sergei é um profissional talentoso — respondeu Krupkin. — Foi treinado em Novgorod, você sabe, e seu francês é impecável. Tem também diversos documentos de identificação capazes de enganar a Divisão de Documentos do Deuxième Bureau. — E os outros dois? — insistiu Bourne. — Subordinados silenciosos, controlados por seu superior e subservientes a ele. São também especialistas... Lá vem ele! Sergei saiu do prédio, andou para a esquerda e logo estava atravessando a avenida larga, na direção do Citroen. Passou pela frente do carro e sentou-se atrás do volante. — Tudo está em ordem — disse, olhando para trás. — Madame ainda não voltou e o apartamento é o 21, segundo andar, de frente. Foi “varrido” completamente, não encontramos nenhum interceptor. — Tem certeza? — perguntou Conklin. — Há uma margem de erro nesse processo, Sergei. — Nossos instrumentos são os melhores, senhor — respondeu o ajudante do KGB com um sorriso. — Sinto dizer isso, mas foram fabricados pela General Electronics Corporation, por encomenda de Langley. — Dois pontos para o nosso lado — disse Alex. — Doze a menos por permitir o roubo da tecnologia — observou Krupkin. — Além disso, tenho certeza de que anos atrás a nossa Madame Lavier tinha microfone no colchão... — Verificado — interrompeu Sergei.
— Obrigado, mas quero dizer que dificilmente o Chacal terá monitores por toda a cidade de Paris. É muito complicado. — Onde estão os outros dois homens? — perguntou Bourne. — Nos corredores do primeiro andar, senhor. Logo vou me juntar a eles e temos um veículo de reforço mais adiante na rua, todos com contato de rádio, é claro... Vou levá-los agora. — Espere um pouco — disse Conklin. — Como vamos entrar? O que vamos dizer? — Já foi dito, senhor, não precisam dizer nada. Fazem parte do serviço secreto, o SEDCE francês... — O quê? — perguntou Jason. — O Serviço de Documentação Externa e Contra-espionagem — respondeu Alex. — É o que eles têm de mais parecido com Langley. — E o Deuxième? — Departamento Especial — disse Conklin, distraidamente. — Alguns dizem que é um corpo de elite, outros dizem o contrário... Sergei, eles não vão verificar? — Já verificaram, senhor. Depois de mostrar minha identificação ao zelador e a seu assistente, dei a eles um número de telefone que não consta da lista, que confirmou minha posição no Serviço. Depois, descrevi vocês três e disse que deviam ter acesso ao apartamento de Madame Lavier sem mais conversa... Vamos agora. Chegando de carro, o porteiro vai ficar melhor impressionado. — Às vezes a simplicidade reforçada pela autoridade é a melhor coisa para enganar os outros — observou Krupkin, enquanto o Citroen atravessava a avenida larga e movimentada, na direção da porta do complexo de pedra branca. — Leve o carro para o outro lado da esquina, Sergei — ordenou o agente do KGB, estendendo a mão para abrir a porta. — Meu rádio, por favor. — Sim, senhor — respondeu o ajudante, entregando um Inlcrcom eletrônico em miniatura. — Aviso quando estiver à postos. — Posso falar com vocês todos com isto? — Sim, camarada. Além de 150 metros, a freqüência não pode ser detetada. — Vamos, cavalheiros. Na portaria de mármore, Krupkin cumprimentou com um gesto o zelador atrás do balcão. Jason e Alex estavam à direita do soviético. — La porte est ouverte — disse o zelador, evitando olhar diretamente para eles. — Eu não estarei aqui quando II madame chegar — continuou em francês. — Não sei como os senhores entraram, porém existe uma entrada de serviço nos fundos do prédio.
— Se não fosse, por cortesia oficial, devíamos ter entrado por ela — disse Krupkin, olhando para a frente. Os três dirigiram-se para o elevador. O apartamento de Lavier era uma amostra do mundo elegante da alta-costura. As paredes estavam cobertas de fotografias dos grandes da moda em desfiles importantes e eventos, bem como reproduções de desenhistas de moda famosos. Como num quadro de Mondrian, os móveis eram extremamente simples, as cores ousadas, predominando o vermelho, o preto e o verde-escuro. As cadeiras, sofás e mesas assemelhavam-se vagamente a cadeiras, sofás e mesas — pareciam mais adequados a uma nave espacial. Quase instintivamente, Conklin e o russo começaram a examinar as mesas, lendo as anotações que estavam ao lado do telefone de madrepérola sobre uma coisa curva, espessa e escura que devia ser uma mesa. — Se isto é uma mesa — disse Alex —, onde diabo estão as gavetas e os puxadores? — É a última novidade de Leconte — disse Krupkin. — O tenista? — perguntou Conklin. — Não, Aleksei, o desenhista de móveis. Você aperta e a gaveta se abre. — Está brincando — Experimente. Conklin experimentou e uma gaveta quase invisível saltou para fora de uma abertura também invisível. — Macacos me mordam... O rádio no bolso de Krupkin emitiu dois bips agudos. — Deve-ser Sergei — disse Dimitri, tirando o aparelho do bolso. — Está na sua posição, camarada? — perguntou. — Mais do que isso — disse a voz tranqüila do ajudante acompanhada de alguma estática. — A mulher Lavier acaba de entrar no prédio. — O zelador? — Desapareceu. — Ótimo. Desligo... Aleksei, saia daí. Lavier está subindo.
— Você quer se esconder? — perguntou Conklin, zombando, virando as páginas do livro de telefones. — Prefiro não começar com hostilidades, o que vai acontecer se ela o vir examinando seus objetos pessoais. — Tudo bem, tudo bem. — Alex guardou o livro e fechou a gaveta. — Mas se ela não quiser cooperar, vou levar o livrinho preto. — Ela vai cooperar — disse Bourne. — Eu já disse, ela quer sair disto e o único meio é com o Chacal morto. O dinheiro é secundário, não sem importância, mas sair vem em primeiro lugar. — Dinheiro? — perguntou Conklin. — Que dinheiro? — Eu me ofereci para pagar e vou pagar. — Posso afirmar que o dinheiro não é secundário para Madame Lavier — observou o russo. O ruído da chave na fechadura ecoou pela sala. Os três homens voltaram-se para a porta, para a assustada Dominique. Mas o susto durou uma fração de segundo, sem em nada alterar sua aparente calma. Com as sobrancelhas arqueadas e a pose regia de modelo, guardou a chave na bolsa, olhou para os intrusos e disse, em inglês: — Ora, ora, Kruppie, eu devia imaginar que você estava em algum lugar desta bouillabaisse. — Ah, a encantadora Jacqueline, ou podemos deixar de fingir, Domie? — Kruppie? — exclamou Alex. — Domie?... O que é isto, encontro de família? — O camarada Krupkin é um dos mais populares agentes do KGB em Paris — disse Lavier, deixando a bolsa sobre a mesa longa, em forma de cubo, atrás do sofá de seda branca. — Conhecê-lo é de rigueur em certos círculos. — Tem certas vantagens, querida Domie. Nem pode imaginar quanta desinformação o Quai D’Orsay me passa por intermédio desses círculos, e eu finjo que acredito, sabendo que são falsas. A propósito, sei que já conhece nosso alto amigo americano e que chegou até a negociar com ele, por isso acho que só preciso apresentar seu companheiro... Madame, Monsieur Aleksei Konsolikov. — Eu não acredito. Ele não é soviético. Meu nariz está treinado para detetar o urso mal lavado. — Ah, você me destrói, Domie! Mas tem razão, foi um erro de julgamento dos pais. Sendo assim, ele que se apresente, se quiser. — O nome é Conklin, Alex Conklin, Senhorita Lavier, e sou americano. Entretanto, nosso amigo comum “Kruppie” tem razão numa coisa. Meus pais eram russos e falo russo fluentemente, por isso ele não pode me enganar quando estamos em companhia de russos. — Acho isso delicioso.
— Bem, pelo menos é apetitoso, se conhece Kruppie. — Estou ferido, ferido de morte! — exclamou Krupkin. — Mas meus ferimentos não são importantes para esta reunião. Vai trabalhar conosco, Domie? — Vou trabalhar com vocês, Kruppie. Meu Deus, se vou trabalhar com vocês! Só quero que Jason Bourne esclareça sua oferta. Com Carlos sou um animal enjaulado, mas sem ele sou uma cortesã quase pobre. Quero que ele pague pela morte de minha irmã e por tudo que me fez, mas não quero dormir na sarjeta. — Diga seu preço — disse Jason. — Escreva — recomendou Conklin, olhando para Krupkin. — Deixe ver — disse Lavier passando por trás do sofá, dirigindo-se para a mesa. — Daqui a poucos anos estarei com sessenta — de um lado ou de outro, isso é imaterial —, e sem o Chacal e a ausência de alguma doença fatal, tenho ainda uns 15 ou vinte anos de vida. — Inclinou-se sobre a mesa, escreveu, tirou a folha do bloco de notas e olhou para o americano alto. — Para o senhor, Sr. Bourne, e acho melhor não discutir. Eu acho que é justo. Jason apanhou o papel e leu. Um milhão de dólares, americanos. — É justo — disse Bourne, devolvendo o papel para Lavier. — Acrescente como e onde quer receber, que eu providencio quando sairmos daqui. O dinheiro estará no lugar que escolher amanhã cedo. A cortesã idosa olhou diretamente para ele. — Acredito no senhor — disse, inclinando-se outra vez para escrever as instruções. Devolveu o papel para Jason. — O acordo está feito, monsieur, e que Deus nos garanta a morte do Chacal. Do contrário, estamos mortos. — Está falando como uma irmã Madalena? — Estou falando como uma irmã apavorada, nem mais e, pode estar certo, nem menos. Bourne fez um gesto afirmativo. — Tenho algumas perguntas. Não quer sentar? . — Oui. Com um cigarro. — Lavier foi até o sofá e mergulhando nas almofadas, apanhou a bolsa na mesa vermelha. Tirou o maço de cigarros e apanhou o isqueiro de ouro na mesa de centro. — Um hábito anti-higiênico, mas tão necessário — disse ela, acendendo o cigarro e dando uma longa tragada. — Suas perguntas, monsieur! — O que aconteceu no Meurice? Como aconteceu?
— A mulher aconteceu — sua mulher, eu suponho — foi o que entendi. Como tínhamos combinado, o senhor e seu amigo do Deuxième estavam preparados para matar Carlos quando ele chegasse, pensando que iam apanhá-lo de surpresa. Por motivos que ninguém sabe, sua mulher gritou quando o senhor atravessou a rue de Rivoli. O resto o senhor viu... Por que me mandou ficar num quarto do Meurice, sabendo que ela estava lá? — Essa resposta é fácil. Eu não sabia. Como ficamos agora? — Carlos ainda confia em mim. Ele atribui toda a culpa à sua mulher, foi o que me disseram, e não tem nenhum motivo para me responsabilizar. Afinal, o senhor estava lá, o que prova a minha lealdade. Se não fosse pelo agente do Deuxième, o senhor estaria morto.Bourne concordou com um gesto. — Como pode entrar em contato com ele? — Pessoalmente não posso. Nunca fiz e não tenho vontade de fazer. Ele prefere assim e, como eu já disse, os cheques chegam em dia, portanto não preciso de contato pessoal. — Mas envia mensagens para ele — insistiu Jason. — Eu a ouvi no telefone. — Sim, mas nunca diretamente. Ligo para um dos velhos nos cafés baratos — os nomes e números variam de semana para semana e poucos deles têm idéia do que estamos falando, mas os que sabem do que se trata telefonam para outros, imediatamente, e esses telefonam ainda para outros. De algum modo a mensagem chega ao destino. Rapidamente, devo dizer. — O que foi que eu disse? — observou Krupkin enfaticamente. — Todas as mensagens terminam em nomes falsos e cafés imundos. Muros de pedra! — Mas chegam ao destino — disse Alex Conklin, repetindo as palavras de Lavier. — Kruppie, porém, tem razão. — A mulher idosa e ainda atraente deu uma tragada longa e nervosa no cigarro. — O caminho é tão sinuoso que não pode ser seguido. — Isso não importa — disse Alex, entrecerrando os olhos para alguma coisa que os outros não viam. — As mensagens chegam rapidamente a Carlos, isso ficou bem claro. — É verdade. Conklin voltou os olhos, bem abertos agora, para Lavier. — Quero que envie a mensagem mais urgente que já enviou ao Chacal. Precisa falar diretamente com ele. É uma emergência que você não pode confiar a ninguém, só ao próprio Carlos. . — Sobre o quê? — perguntou Krupkin. — O que pode ser tão urgente a ponto de o Chacal concordar? Como o nosso Sr. Bourne, ele é obcecado pela idéia de armadilhas e, nestas circunstâncias, qualquer comunicação direta tem cheiro de armadilha!
Balançando a cabeça, Alex caminhou, mancando até a janela, entrecerrando os olhos novamente, absorto, com expressão de intensa concentração. Então aos poucos abriu os olhos e observou a rua lá embaixo. — Meu Deus, podia funcionar — murmurou. — O que podia funcionar? — quis saber Bourne. — Dimitri, depressa! Telefone para a embaixada e mande trazer a maior e mais bonita limusine que vocês, os proletários, possuem. — O quê? — Faça o que eu disse! Depressa! — Aleksei... — Agora! A força e a urgência da ordem surtiram efeito. O russo foi rapidamente até o telefone de madrepérola e discou, olhando interrogativamente para Alex, que continuava a observar a rua. Lavier olhou para Jason e ele balançou a cabeça negativamente, intrigado também. Krupkin deu as ordens, em russo, com frases curtas e autoritárias. — Está feito — disse o agente do KGB, desligando. — Agora, acho que deve haver uma razão muito convincente para isto. — Moscou — respondeu Conklin, ainda olhando pela janela. — Alex, pelo amor de Deus... — O que você disse? — rugiu Krupkin. — Temos de tirar Carlos de Paris — disse Conklin voltando-se. — O que pode ser melhor do que Moscou? — Antes que o russo atônito pudesse responder, Alex olhou para Lavier. — Disse que ele ainda confia em você? — Não tem nenhuma razão para não confiar. — Então duas palavras bastam. “Moscou, emergência”, essa é a base da mensagem que vai dar a ele. Fale como quiser, mas diga que só pode falar diretamente com Carlos. — Mas eu nunca falei. Conheço homens que falaram com ele e que, quando bêbados, tentaram descrevê-lo, mas para mim ele é um completo estranho. — Melhor ainda — disse Conklin, voltando-se para Bourne e Krupkin. — Nesta cidade, ele está com todos os trunfos, todos. Poder de fogo, uma rede inexpugnável de assassinos e mensageiros e dezenas e dezenas de buracos onde pode se esconder e de onde pode atacar. Paris é o seu território, sua
proteção — podemos andar às cegas por toda a cidade, durante dias, semanas, meses, sem conseguir nada, até ele ter você e Marie na mira de sua arma... e pode acrescentar Mo e eu mesmo ao script. Londres, Amsterdam, Bruxelas, Roma — todas essas cidades seriam melhores para nós do que Paris, mas a melhor é Moscou. Por mais estranho que pareça, é o lugar do mundo que exerce uma atração quase hipnótica para ele — e também a menos hospitaleira. — Aleksei, Aleksei — exclamou Dimitri Krupkin. — Sinceramente, acho que você deve pensar em voltar a beber, pois é evidente que está louco! Digamos que Domie consiga falar com ele e diga o que você mandou. Acredita mesmo que, baseado apenas numa “emergência” em Moscou, ele vai sair correndo e tomar um avião para a Rússia? Loucura! — Pode apostar seu último rublo do mercado negro que acredito — respondeu Conklin. — A mensagem é só que ela precisa falar diretamente com ele. Então, ela explode a bomba... Acabou de obter uma informação extraordinária que só podia transmitir diretamente, sem passar pelos túneis dos mensageiros. — E em nome de Deus, que informação seria essa? — perguntou Lavier, tirando outro cigarro do maço e acendendo. — O KGB, em Moscou, está fechando o cerco em redor do homem do Chacal, na Praça Dzerzhinsky. As suspeitas limitam-se agora a dez ou 15 funcionários do mais alto escalão. Quando o encontrarem, Carlos estará neutralizado no Komitet — pior, vai perder um informante que sabe demais sobre ele para cair nas mãos dos interrogadores da Lubyanka. — Mas como Lavier vai saber disso? — perguntou Jason. — Quem vai contar a ela? — quis saber Krupkin. — É a verdade, não é? — Como são suas subestações secretas em Beijing, Kabul e — perdoe a minha impertinência — a Ilha Príncipe Eduardo, no Canadá, mas vocês não ficam anunciando para quem quiser ouvir — disse Krupkin. — Eu não Sabia da Ilha Príncipe Eduardo — confessou Conklin. — Mas acontece que há momentos em que não é preciso anunciar, basta transmitir a informação com credibilidade. Há alguns momentos eu não tinha os meios, só a autenticidade, mas essa lacuna foi preenchida... Venha cá, Kruppie — só você, por enquanto, e não se aproxime da janela. Olhe pelos cantos da cortina. — O russo obedeceu. — O que está vendo? — perguntou Alex, apontando para um carro marrom e comum na avenue Montaigne. — Não combina com a vizinhança, combina? Krupkin não se deu o trabalho de responder. Tirou o rádio do bolso e apertou o botão transmissor. — Sergei, há um automóvel marrom a uns oitenta metros da entrada do prédio... — Nós sabemos, senhor — interrompeu o ajudante. — Está coberto por nós e deve ter notado
que nosso reforço está atravessado na frente dele. É um velho que só se mexe para olhar pela janela. — Ele tem um telefone no carro? — Não, camarada, e se sair do carro, será seguido, assim não pode dar nenhum telefonema, a não ser que nos dê ordens em contrário. — Não, nenhuma ordem em contrário. Obrigado, Sergei. Desligo. — O russo olhou para Conklin. — O velho — disse ele. — Você o viu. — Careca e tudo o mais — confirmou Alex. — Ele não é tolo. Já fez isso antes e sabe que está sendo vigiado. Não pode ir embora com medo de perder alguma coisa, e se tivesse um telefone haveria outros carros na avenue Montaigne. — O Chacal — disse Bourne, dando um passo para a frente. Parou, lembrando-se da advertência de Conklin sobre a janela. — Agora, você compreende? — perguntou Alex, dirigindo-se a Krupkin. — É claro — concordou o agente do KGB, com um sorriso. — Por isso pediu uma limusine da nossa embaixada. Quando saímos, Carlos é informado de que um veículo da embaixada soviética nos apanhou, e por que estaríamos aqui se não para interrogar Madame Lavier? Naturalmente, na minha companhia estava um homem alto que pode ou não ser Jason Bourne, e outros, mais baixo, com uma perna defeituosa — o que confirma que se trata de Jason Bourne... Nossa profana aliança é confirmada e observada e durante o rigoroso interrogatório de Madame Lavier, os ânimos se exaltam e são feitas referências ao informante do Chacal na Praça Dzerzhinsky. — Sobre o qual só eu sabia por minha conversa com Santos no Coeur du Soldat — disse Jason, em voz baixa. — Assim, Dominique tem um observador confiável — um velho do exército de velhos de Carlos — para confirmar sua informação... Tenho de admitir, Santo Alex, que seu cérebro ser-pentino não perdeu nem um pouco de astúcia. — Estou ouvindo um professor que conheci certa vez... pensei que ele nos tinha abandonado. — Ele os abandonou. — Só por algum tempo, espero. — Muito bem, Aleksei. Você tem ainda o toque mágico, pode continuar abstêmio, por mais desalentador que isso seja para mim... São sempre as nuances, certo? — Nem sempre, de modo algum — discordou Conklin com simplicidade, balançando a cabeça. — A maior parte do tempo são erros idiotas. Por exemplo, disseram à nossa nova companheira aqui, “Domie”, como você a chama afetuosamente, que Carlos ainda confia nela, mas não é verdade, não completamente. Assim, mandam um velho vigiar o apartamento — nada de mais, só um corretor de seguros num carro que não combina com os Jaguares e Rolls-Royces da vizinhança. Então, pagamos a pequena apólice e, com sorte, recebemos o prêmio. Moscou.
— Deixe-me intelectualizar — disse Krupkin. — Embora você tenha sido sempre melhor do que eu nesse departamento. Eu prefiro os melhores vinhos aos pensamentos mais profundos, embora estes últimos — no seu país e no meu — invariavelmente levem aos primeiros. — Merde! — gritou Dominique Lavier, apagando o cigarro no cinzeiro. — Do que esses dois idiotas estão falando? — Eles vão nos contar, acredite — respondeu Bourne. — Tem sido registrado e repetido nos círculos seguros, vezes sem conta — continuou o soviético — que, anos atrás, treinamos um louco em Novgorod e que, anos atrás, teríamos estourado seus miolos com uma bala se ele não tivesse escapado. Seus métodos, se fossem sancionados por qualquer governo legítimo, especialmente os das duas superpotências, levariam a um confronto que nenhuma das duas podia permitir. Além disso, no começo ele era um verdadeiro revolucionário, com R maiúsculo e nós, os ultraverdadeiros revolucionários o deserdamos... Na opinião dele, foi uma injustiça muito grande, que jamais esqueceu. Deseja ardentemente voltar ao seio da mãe, pois foi lá que ele nasceu... Bom Deus, as pessoas que ele matou em nome de “agressores”, fazendo uma fortuna incrível com isso, é revoltante. — Mas vocês o renegaram — disse Bourne com voz inexpressiva —, e ele quer que essa sentença seja anulada. Quer ser reconhecido como o mestre-assassino que vocês treinaram. Tudo que eu e Alex planejamos baseia-se no seu ego psicopata... Santos disse que o Chacal sempre se gabava da equipe que está formando em Moscou — “Sempre Moscou, é uma obsessão” — foi o que Santos disse. A única pessoa específica que ele conhecia, e não pelo nome, era o “agente latente”, ou “toupeira” de Carlos num alto posto do KGB, mas disse que Carlos afirmava que havia outros em postos-chave de vários departamentos e que, como monsenhor, há anos enviava dinheiro para eles. — Então o Chacal pensa que está formando um centro de adeptos dentro do nosso governo — observou Krupkin. — Apesar de tudo, acredita ainda que pode voltar. Sem dúvida é um egomaníaco, mas jamais compreendeu a mentalidade russa. Pode corromper por algum tempo alguns oportunistas cínicos, mas esses homens, para se proteger, vão acabar voltando-se contra ele. Ninguém gosta da idéia de uma temporada na Lubyanka ou num gulag da Sibéria. A aldeia Potemkin do Chacal será reduzida a cinzas. — Mais um motivo para ele correr para Moscou a fim de apagar o fogo — disse Alex. — O que quer dizer? — perguntou Bourne. — O incêndio vai começar com a descoberta do homem do Chacal, na Praça Dzerzhinsky, ele sabe disso. O único meio de evitar é chegar em Moscou e expor suas condições. Ou seu informante despista a segurança interna, ou o Chacal terá de matá-lo. — Eu havia esquecido — interrompeu Bourne. — Uma coisa que Santos disse... a maior parte dos russos pagos pelo Chacal fala francês. Procure um homem num alto posto do Komitet que fale francês. O rádio de Krupkin chamou outra vez com seus bips mal abafados pelo paletó do russo.
— Sim? — Não sei como nem por quê, camarada — disse a voz tensa de Sergei —, mas a limusine do embaixador acaba de parar na frente do prédio. Eu juro que não tenho idéia do que aconteceu. — Eu tenho. Eu pedi a limusine. — Mas todos vão ver a bandeira da embaixada! — Incluindo, eu espero, um velho alerta num carro marrom. Vamos descer logo. Desligo. — Krupkin voltou-se para os outros. — O carro chegou, cavalheiros. Onde nos encontramos, Domie? E quando? — Esta noite — disse Lavier. — Vai haver um show na Galerie d’Or, na rue de Paradis. O artista é um jovem novato que quer ser estrela do rock ou coisa assim, mas é a coqueluche do momento e todo mundo vai estar lá. — Esta noite, então... Venham, cavalheiros. Contrariando nossos instintos, devemos ser muito “visíveis” quando chegarmos à calçada. A multidão movia-se dentro e fora dos cones de luz enquanto a banda de rock por sorte instalada numa sala ao lado, longe da área da exposição, encarregava-se da música ensurdecedora. Se não fosse pelos quadros nas paredes, iluminados pelos discretos spotlights, qualquer um ia pensar que estava numa discoteca e não em uma das elegantes galerias de arte de Paris. Por meio de uma série de sinais, Dominique Lavier conduziu Krupkin para um canto do salão. Os sorrisos delicados dos dois, as sobrancelhas arqueadas e as risadas intermitentes disfarçavam a conversa séria. — A mensagem passada através dos velhos diz que o monsenhor vai se ausentar por alguns dias. Entretanto, eles devem continuar à procura do americano alto e do seu amigo aleijado e anotar todos os lugares em que forem vistos. — Você deve ter trabalhado muito bem. — Enquanto eu passava a informação ele ficou em completo silêncio. Sua respiração, entretanto, traía um ódio extremo. Fiquei gelada até os ossos. — Ele está a caminho de Moscou — disse o russo. — Sem dúvida passando por Praga. — O que vocês vão fazer agora? Krupkin ergueu os olhos para o teto com um riso falso e silencioso. Depois, olhando para ela disse, sempre sorrindo: — Moscou.
Capítulo33 BRYCE OGILVIE, diretor associado de Ogilvie, Spofford, Crawford e Cohen, orgulhava-se da sua autodisciplina. Não apenas da sua aparência externa sempre controlada, mas da calma fria que impunha aos seus mais profundos temores em momentos de crise. Entretanto, quando chegou ao escritório — cinqüenta minutos atrás — e ouviu o toque insistente do seu telefone particular, sentiu um estremecimento de apreensão. Era muito cedo para um chamado naquela linha particular. Então, quando ouviu a voz com forte sotaque, do cônsul-geral soviético em Nova York, exigindo um encontro imediato, não pôde controlar a sensação de vazio no peito... e quando o russo deu as instruções — a ordem — para Ogilvie estar no Carlyle Hotel, suíte 4-C, em uma hora, em vez do lugar em que sempre se encontravam, o apartamento na esquina da Trinta e Dois com a avenida Madison, uma dor lancinante encheu o vazio no seu peito. E quando ele mansamente reclamou do inesperado do encontro, fora do programa, a dor transformou-se em fogo e as chamas subiram até sua garganta, ouvindo a resposta do soviético. — O que vou lhe mostrar vai fazer com que deseje ardentemente que jamais nos tivéssemos conhecido, muito menos tido a ocasião de nos encontrar esta manhã. Esteja lá! Ogilvie afundou o corpo no banco da limusine, com as pernas estendidas e rígidas. Pensamentos abstratos de riqueza pessoal, poder e influência turbilhonavam em sua mente. Precisava se controlar! Afinal, era Bryce Ogilvie, o Bryce Ogilvie, talvez o mais bem-sucedido advogado associado de Nova York e provavelmente o segundo depois de Randolph Gates, de Boston, no campo do direito antitruste e corporativo. Gates! A lembrança daquele filho da mãe era bem-vinda nesse momento. A Medusa havia pedido um pequeno favor ao famoso Gates, uma indicação inconseqüente e perfeitamente aceitável para uma comissão ad hoc, orientada pelo governo, e Gates nem se dera o trabalho de responder aos telefonemas! Telefonemas de outra fonte perfeitamente aceitável, o imparcial e supostamente impecável chefe da intendência do Pentágono, um cretino chamado general Norman Swayne, que exigia sempre as melhores informações. Bem, talvez mais do que informações, mas Gates não devia saber disso... Gates? Havia alguma coisa no Times há alguns dias sobre a retirada de Gates de um processo hostil de confisco. O que era mesmo? A limusine parou na frente do Carlyle Hotel, no passado o preferido da família Kennedy, na cidade de Nova York, agora temporária e clandestinamente o favorito dos soviéticos. Ogilvie esperou que o motorista uniformizado abrisse a porta e desceu do carro. Normalmente não fazia isso, pois achava que a demora era uma afetação desnecessária, mas nessa manhã fez, tinha de se controlar. Precisava ser o Ogilvie frio como gelo que seus adversários temiam. A subida no elevador até o quarto andar foi rápida, a caminhada pelo corredor, até a suíte 4-C, muito mais vagarosa, a distância muito menor. Bryce Ogilvie respirou funda e calmamente, empertigouse e apertou o botão da campainha. Vinte e oito segundos depois, marcados com irritação enquanto o advogado contava “um mil, dois mil”, ad nauseam, a porta foi aberta pelo cônsul-geral soviético, um
homem magro de altura média, rosto comprido, pele muito branca e esticada e enormes olhos castanhos. Vladimir Sulikov era um homem de 73 anos, magro, rijo e cheio de energia, antigo professor de história na Universidade de Moscou, marxista convicto, mas estranhamente, considerando sua posição, não era membro do Partido Comunista. Na verdade, não estava comprometido com qualquer ortodoxia política, preferindo o papel passivo do indivíduo não ortodoxo, dentro de uma sociedade coletivista. Isso e uma inteligência viva e perspicaz contribuíam para que fosse enviado para postos onde homens mais conformistas não teriam a metade da sua eficiência. A combinação desses atributos mais a fidelidade aos exercícios físicos faziam com que Sulikov parecesse 15 anos mais moço do que era. Todos que negociavam com ele sentiam a força da sua presença e a sabedoria adquirida através dos anos, complementadas por uma vitalidade extremamente jovem. Os dois homens cumprimentaram-se brusca e secamente. Depois de estender a mão para o visitante, Sulikov convidou-o a sentar-se, com um gesto rígido, e ficou de pé na frente da lareira da suíte, como se a estreita moldura de mármore branco fosse um quadro-negro, as mãos atrás das costas, a figura de um professor nervoso pronto para interrogar e ao mesmo tempo instruir um aluno questionador e inquieto. — Vamos ao assunto — disse o russo secamente. — Você já ouviu falar no almirante Peter Holland? — É claro. É o diretor da CIA. Por que pergunta? — Ele é um dos seus? — Não. — Tem certeza absoluta? — É claro que tenho. — É possível que tenha se tornado um dos seus sem seu conhecimento? — De modo algum, eu nem conheço o homem. E se isto é uma espécie de interrogatório amador, ao estilo soviético, acho que devia praticar com outra pessoa qualquer. — Oh, o caro e elegante advogado americano faz objeção a algumas perguntas simples? — Faço objeção ao insulto. Você fez uma afirmação espantosa ao telefone. Exijo uma explicação, portanto, por favor, explique. — Vou chegar lá, senhor conselheiro, acredite, vou chegar lá, mas a meu modo. Nós, os russos, protegemos nossos flancos, uma lição aprendida com a tragédia e o triunfo de Stalingrado — uma experiência que vocês, os americanos, jamais tiveram. — Eu venho de outra guerra, como sabe muito bem — disse Ogilvie secamente. — Mas se os livros de história dizem a verdade, vocês foram ajudados por seu inverno russo.
— É difícil explicar isso a milhares e milhares de cadáveres de russos congelados. — Certo, receba minhas condolências e minhas congratulações, mas não tem nada a ver com a explicação que eu pedi. — Estou apenas tentando explicar um truísmo, meu jovem. Como já foi dito, estamos mais propensos a repetir as lições dolorosas da história que nos são desconhecidas... Como vê, protegemos nossos flancos, e se alguém na nossa arena diplomática suspeitar que fomos enganados e envolvidos em algum embaraço internacional, reforçamos esses flancos. É uma lição muito simples para um erudito como o senhor. — É tão óbvia que chega a ser trivial. O que há com o almirante Holland? — Vou chegar lá... Primeiro, diga o que sabe sobre um homem chamado Alexander Conklin. Bryce Ogilvie lançou o corpo para a frente num gesto brusco de espanto. — Onde conseguiu esse nome? — perguntou em voz quase inaudível. — Tem mais... Alguém chamado Panov, Mortimer ou Moishe Panov, um médico judeu, acreditamos. E finalmente, senhor conselheiro, um casal que supomos ser Jason Bourne, o assassino, e sua mulher. — Meu Deus! — exclamou Ogilvie com o corpo tenso, os olhos arregalados. — O que essa gente tem a ver conosco? — É o que queremos saber — respondeu Sulikov, olhando fixamente para o advogado de Wall Street. — Evidentemente conhece todos eles, certo? — Bem, sim — não! — protestou Ogilvie com o rosto muito corado, atropelando as palavras. — Em uma situação completamente diversa. Não tem nada a ver com nossos negócios — um negócio no qual investimos milhões e que estamos desenvolvendo há vinte anos! — E com o qual tem ganho milhões, conselheiro, se me permite lembrar esse pormenor. — Capital investido no mercado internacional! — exclamou o advogado. — Não é crime neste país. O dinheiro flui através dos oceanos ao toque de um botão de computador. Não é crime! — Não mesmo? — O cônsul-geral soviético ergueu as sobrancelhas. — Pensei que você fosse melhor advogado do que sugere essa afirmação. Vocês vêm comprando companhias cm toda a Europa por meio de fusões e aquisições, em nome de testas-de-ferro e companhias inexistentes. As firmas que vocês adquirem representam fontes de suprimento, geralmente dos mesmos mercados, e desse modo vocês podem determinar os preços entre antigos competidores. Acredito que isso se chama colusão e coibição ao comércio, termos legais que não se aplicam à União Soviética, uma vez que lá ò Estado determina os preços. — Não existe qualquer prova dessas acusações — disse Olgilvie.
— É claro que não, enquanto houver advogados mentirosos e inescrupulosos para subornar e aconselhar os mentirosos. É um empreendimento tortuoso, executado brilhantemente, e nós dois temos lucrado com ele. Há anos vocês nos vendem o que pedimos, incluindo itens especiais da lista restrita do seu governo, sob nomes tão diversos que nossos computadores enguiçaram tentando descobrir as origens dos mesmos. — Nenhuma provai — insistiu enfaticamente o advogado de Wall Street. — Não estou interessado na prova, conselheiro. Só me interessam os nomes que mencionei. Nesta ordem, almirante Peter Holland, Alexander Conklin, Dr. Panov e, finalmente, Jason Bourne e sua mulher. Por favor, fale sobre eles. — Por quê? — perguntou Ogilvie. — Acabo de explicar que não têm nada a ver com você ou comigo, nada a ver com nosso acordo. — Achamos que talvez tenham, portanto, por que não começar com o almirante Peter Holland? — Ora, pelo amor de Deus...! — O advogado, muito agitado, balançou a cabeça negativamente, gaguejou e afinal disse: — Holland — tudo bem, você vai ver... Nós recrutamos um homem na CIA, um analista chamado DeSole que entrou em pânico e queria se desligar de nós. É claro que não podíamos permitir isso, portanto teve de ser eliminado — eliminado profissionalmente —, como fomos obrigados a fazer com outros que eram perigosamente instáveis. Holland deve ter desconfiado e provavelmente suspeitou que se tratavam de crimes, mas não pode ter passado das suspeitas — os profissionais que contratamos não deixam traços, nunca. — Muito bem — disse Sulikov, olhando atentamente para o nervoso advogado. — O seguinte, Alexander Conklin. — É um ex-chefe de departamento da CIA e ligado a Panov, que é psiquiatra — ambos estão ligados ao homem a quem chamam de Jason Bourne e à sua mulher. É uma ligação antiga, na verdade, desde Saigon. Você compreende, fomos infiltrados, muitos dos nossos foram identificados e ameaçados, e DeSole chegou à conclusão de que esse Bourne, com a ajuda de Conklin, era o responsável. — Como ele podia fazer isso? — Não sei. Só sei que ele tem de ser eliminado e nossos profissionais aceitaram o contrato — os contratos. Todos eles têm de morrer. — Você mencionou Saigon. — Bourne pertencia à antiga Medusa — admitiu Ogilvie, em voz baixa. — E como a maioria daqueles homens, era um ladrão desajustado... Pode ter sido uma coisa simples, como ter reconhecido alguém daquele tempo. A história ouvida por DeSole foi de que esse lixo, esse Bourne — a propósito, esse não é seu nome verdadeiro — foi na verdade treinado pela Agência para se fazer passar por um assassino internacional, com o fim de atrair um assassino que eles chamam de Chacal. A estratégia falhou e Bourne foi aposentado — permanentemente. “Obrigado por tentar, meu velho, mas está tudo acabado.” Evidentemente ele queria muito mais do que isso, então veio atrás de nós... Você entende
agora, não entende? São dois casos separados, sem ligação. Um nada tem a ver com o outro. O russo descruzou as mãos atrás das costas e deu um passo para a frente. Parecia mais preocupado do que alarmado. — Será que está cego, ou tão bitolado que não vê nada além do seu empreendimento? — Para começar, rejeito o insulto. De que diabo está falando? — Existe uma conexão porque ela foi criada proposital-mente com um único objetivo. Vocês eram apenas um subproduto, um problema secundário que se tornou, de repente, de extrema importância para as autoridades. — Eu... não compreendo — murmurou Ogilvie, empalidecendo. — Você acabou de dizer, “um assassino que chamam de Chacal” e antes disso citou Bourne como um bandido insignificante, treinado para se fazer passar por assassino, uma estratégia que falhou, e por isso ele foi aposentado, “para sempre”, acho que foi o que disse. — Foi o que me disseram... — E o que mais lhe disseram sobre Carlos, o Chacal? Sobre o homem que usa o nome de Jason Bourne? O que sabe sobre eles? — Para ser franco, muito pouco. Dois assassinos idosos, bandidos que se perseguem mutuamente há anos. Na verdade, quem se importa com isso? Minha única preocupação é manter em segredo a nossa organização — o que você parece questionar. — Ainda não compreendeu, não é mesmo? — Compreender o quê, pelo amor de Deus? — Bourne talvez não seja o bandido insignificante que você pensa que ele é, não se levarmos em conta seus amigos. — Por favor, seja mais claro — disse Ogilvie, com voz inexpressiva. — Ele está usando a Medusa para caçar o Chacal. — Impossível! Aquela Medusa foi destruída há anos, em Saigon. — Evidentemente, ele não pensa assim. Será que se importaria de tirar o seu elegante paletó, arregaçar a manga da camisa e mostrar sua tatuagem na parte interna do braço? — Não é relevante! Uma marca de honra numa guerra que ninguém apoiava, mas na qual tivemos de lutar! — Ora, vamos, conselheiro. Pelos cais e depósitos de suprimentos de Saigon? Roubando
escandalosamente das suas próprias forças armadas e mandando mensageiros aos bancos da Suíça. Não se conferem medalhas por esses atos de heroísmo. — Pura especulação, sem nenhum fundamento! — exclamou Ogilvie. — Diga isso a Jason Bourne, diplomado pela Mulher Serpente original... Oh, sim, conselheiro, ele os procurou, encontrou e os está usando para atrair o Chacal à sua armadilha. — Pelo amor de Deus, como? — Francamente, eu não sei, más acho melhor você ler isto. — O cônsul-geral foi rapidamente até a mesa, apanhou um maço de papéis datilografados e o entregou a Ogilvie. — São conversas telefônicas trocadas há quatro horas e decifradas por nossa embaixada em Paris. As identificações e as origens foram comprovadas. Leia com atenção, conselheiro, depois dê sua opinião legal. O famoso advogado, o Ogilvie frio como gelo, apanhou os papéis e começou a ler. À medida que passava de uma página para a outra, seu rosto adquiria uma palidez de morte. — Meu Deus, eles sabem de tudo. Meus escritórios estão grampeados. Como? Por quê? É loucura! Nós somos inexpugnáveis! — Mais uma vez sugiro que diga isso a Jason Bourne e ao seu amigo, o ex-chefe de posto, em Saigon, Alexander Conklin. Eles os encontraram. — Não é possível! — rugiu Ogilvie. — Nós subornamos ou eliminamos todos da Mulher Serpente que podiam suspeitar da extensão das nossas atividades. Jesus, não eram muitos e pouquíssimos no campo! Eu disse que eram lixo e eram realmente — eram ladrões do mundo todo, procurados por crimes, na Austrália e no Extremo Oriente. Os que estavam em combate, nós conhecíamos e encontramos! — Ao que parece, esqueceram-se de uns dois — observou Sulikov. O advogado devolveu as folhas datilografadas com a testa molhada de suor. — Deus do céu, estou arruinado — murmurou, com voz embargada. — Essa idéia também me ocorreu — disse o cônsul-geral soviético em Nova York —, mas existem opções, não?... É claro que só há um curso de ação para nós. Como grande parte do continente, fomos enganados por piratas capitalistas. Ovelhas conduzidas aos altares da cobiça, enquanto esse cartel americano de ladrões tomava de assalto os mercados, vendendo material e serviços inferiores a preços abusivos, afirmando e provando com documentos falsos que tinham permissão de Washington para entregar a nós e a nossos satélites milhares de itens restritos ao seu governo e ao seu país. — Seu filho da mãe! — explodiu Ogilvie. — Vocês — vocês todos — cooperaram conosco em tudo. Vocês retiraram milhões para nós dos países do bloco, desviaram, trocaram os nomes. Cristo, pintaram de novo — navios que fazem a rota do Mediterrâneo, do mar Egeu, do Bósforo, até Mármara, para não falar nos portos do Báltico!
— Prove isso, conselheiro — disse Sulikov, rindo baixinho. — Se quiser, posso providenciar uma deserção honrosa para você. Moscou ia apreciar muito suas habilidades. — O quê? — exclamou o advogado, em pânico. — Bem, certamente não pode ficar aqui nem uma hora além do necessário. Leia essas palavras, Sr. Ogilvie. Vocês estão nos últimos estágios da vigilância eletrônica, prestes a serem apanhados pelas autoridades. — Oh, meu Deus... — Poderia talvez operar de Hong Kong ou de Macau — na certa acolheriam muito bem seu dinheiro, mas com os problemas atuais com os mercados do continente e com o Tratado Sino-britânico de 97, provavelmente. não vão aprovar as acusações que pesam sobre você. Eu diria que a Suíça está fora de questão, as leis recíprocas são tão estreitas hoje em dia, como Vesco teve ocasião de provar. Ah, Vesco. Você podia se juntar a ele em Cuba. — Pare com isso! — gritou Ogilvie. — Ou você podia se oferecer para depor a favor da acusação. Há tanta coisa para revelar. Talvez diminuam uns dez anos da sua sentença de trinta. — Pare com isso, ou vou te matar! A porta se abriu e apareceu um guarda do consulado em atitude ameaçadora, com a mão dentro do paletó. O advogado, que tinha se levantado de um salto e estava parado, tremendo incontrolavelmente, voltou para a poltrona e inclinou-se para a frente, com a cabeça nas mãos. — Tal comportamento não seria bem visto — disse Sulikov. — Vamos, conselheiro, é um momento para cabeça fria, não para explosões emocionais. — Como pode dizer isso? — perguntou Ogilvie com voz embargada, quase chorando. — Estou liquidado! — Uma afirmação extrema para um homem tão cheio de recursos. Falo sério. É verdade que não pode ficar aqui, mas mesmo assim, seus recursos são imensos. Procure agir dessa posição de força. Obrigue outros a certas concessões. É a arte da sobrevivência. No fim, as autoridades vão reconhecer o valor da sua contribuição, como aconteceu com Bloesky, Levine e dezenas de outros que cumprem suas sentenças mínimas jogando tênis e gamão, desfrutando ainda suas fortunas. Tente. — Como? — perguntou o advogado, erguendo os olhos vermelhos e suplicantes para o russo. — “Onde” vem em primeiro lugar — explicou Sulikov. — Procure um país neutro que não tenha tratado de extradição com Washington, onde os funcionários do governo podem ser persuadidos a lhe garantir residência temporária para continuar com suas atividades comerciais — a palavra “temporária” é extremamente elástica, é claro. Bahrain, os Emirados, Marrocos, Turquia, Grécia — não faltam possibilidades atraentes. Todas com círculos onde se fala inglês... Podemos até mesmo ajudá-lo,
talvez, muito discretamente. — Por que fariam isso? — Está cego outra vez, Sr. Ogilvie. Por um preço, é claro... Você tem uma operação extraordinária na Europa. Está firme e funcionando, e sob nosso controle, pode nos dar muito lucro. — Oh... meu... Deus — disse o líder da Medusa,, olhando para o cônsul-geral. — Será que tem outra escolha, conselheiro?... Vamos, precisamos nos apressar. Providências devem ser tomadas. Felizmente o dia está começando. Às 3:25h da tarde, Charles Casset entrou no escritório de Peter Holland na CIA. — Temos uma brecha — disse o assistente de diretor, acrescentando com menor entusiasmo. — Mais ou menos. — Da firma Ogilvie? — perguntou o diretor da CIA. — Da esquerda — respondeu Casset, pondo várias pilhas de fotografias sobre a mesa de Holland. — Estas foram enviadas por fax do Aeroporto Kennedy, há uma hora. Acredite, foram sessenta minutos de muita ansiedade desde então. — De Kennedy? — Franzindo a testa, Peter estudou as cópias. Era uma seqüência de fotografias mostrando uma porção de gente que passava pelos detetores eletrônicos num dos terminais do aeroporto. A cabeça de um homem estava assinalada por um círculo vermelho em todas as fotografias. — O que é? Quem é ele? — São passageiros seguindo para a sala de espera da Aeroflot, a caminho de Moscou, avião soviético, é claro. Faz parte da rotina da segurança fotografar cidadãos americanos que viajam nessa linha. — Tudo bem. Quem é ele? — Ogilvie em pessoa. — O quê? — Está no vôo das duas horas, sem escalas, para Moscou ... Só que oficialmente ele não está. — Como é? — Três telefonemas separados para seu escritório obtiveram a mesma informação. Ele está fora do país, em Londres, no Dorchester, o que nós sabemos que não é verdade. Entretanto, o Dorchester confirmou a reserva, mas disse que Ogilvie ainda não chegou, portanto estão anotando recados para ele. — Eu não compreendo, Charlie.
— É uma cortina de fumaça arranjada com muita pressa. Para começar, por que um homem rico como Ogilvie viaja pela Aeroflot quando pode tomar o Concorde até Paris e o vôo da Air France para Moscou? Além disso, por que seu escritório afirma que ele está em Londres ou a caminho de Londres, quando ele está indo para Moscou? — O vôo da Aeroflot é óbvio — disse Holland. — É a companhia do governo e está sob a proteção dos soviéticos. O negócio Londres-Dorchester também não é difícil de entender. É para despistar — meu Deus, para despistar! — Acertou em cheio, mestre. Então Valentino verificou, com todo aquele equipamento sofisticado do porão e... adivinhe? A Sra. Ogilvie e os dois filhos adolescentes têm reservas no vôo da Royal Air Marrocos para Casablanca, com escala em Marrakesh. — Marrakesh... Air Marrocos, Marrakesh. Espere um pouco. Naqueles impressos de computador sobre os hóspedes do Hotel Mayflower, que Conklin nos deu para examinar, havia uma mulher — uma das três pessoas que ele achava que tinham ligação com a Medusa — que tinha estado em Marrakesh. — Parabéns por sua memória, Peter. Aquela mulher e a mulher de Ogilvie foram companheiras de quarto na Universidade Bunnington, no começo dos anos 70. De famílias tradicionais e bons antecedentes, podem estar sempre juntas e trocar confidencias. — Charlie, que diabo está acontecendo? — Os Ogilvie foram avisados e estão fugindo. Além disso, se não estou enganado e se pudermos examinar várias contas bancárias, veremos que milhões foram transferidos de Nova York só Deus sabe para onde, muito além destas praias. — E então? — Medusa está agora em Moscou, Sr. Diretor.
Capítulo34 LOUIS DEFAZIO desceu cansado do táxi, na avenue Massena, seguido por seu primo Mario de Larchmont, Nova York, maior, mais pesado e muito mais forte. Pararam na calçada, na frente do restaurante com o nome Tetrazzini’s escrito em vermelho no vidro verde da janela. — É aqui — disse Louis. — Devem estar num reservado, nos fundos. — Já é bem tarde — Mario consultou o relógio à luz da rua. — Meu relógio está com a hora de Paris, é quase meia-noite aqui. — Eles esperam. — Você ainda não me disse os nomes deles, Lou. Como vou chamá-los? — Não vai — respondeu DeFazio, caminhando para a porta. — Nada de nomes — de qualquer modo, não significam nada. Tudo que tem a fazer é tratá-los com respeito, sabe o que quero dizer? — Não precisa me dizer isso, Lou, não precisa mesmo — reclamou Mario com sua voz macia. — Mas para minha informação, por que pensou nisso? — Ele é um diplomático de alta classe — explicou o capo supremo, parando por um momento e erguendo os olhos para o homem que quase matara Jason Bourne em Manassas, Virgínia. — Ele opera em Roma, em altos círculos do governo, mas está em contato direto com os dons da Sicília. Ele e a mulher são muito considerados, compreende o que estou dizendo? — Sim, e não — admitiu o primo. — Se ele é tão importante por que aceitou uma tarefa tão prosaica como seguir nossos alvos? — Porque ele pode. Pode ir a lugares que alguns dos nossos pagliacci nem podem chegar perto, entende o que estou dizendo? Além disso eu disse aos nossos homens, em Nova York, quem são nossos clientes, especialmente um deles, capisce? Os dons, de Manhattan aos estados ao sul de Palermo, têm uma linguagem que só eles conhecem, sabia disso, cugino?... Resume-se em duas ordens. “Faça” e “Não faça”. — Acho que entendo, Lou. Nós lhes devemos respeito. — Respeito, sim, meu primo elegante, mas não fraqueza, capisce? Todos, do mais alto ao mais baixo devem saber que esta é uma operação sob o controle de Lou DeFazio do começo até o fim. Entendeu isso? — Nesse caso, acho que posso voltar para casa, para Angie e as crianças — disse Mario com um largo sorriso.
— O quê?... Ora, cale a boca, cugino. Só com este trabalho vai pagar as anuidades de todo seu bando de bambinos. — Não um bando, Lou, só cinco. — Vamos. Lembre-se, respeito, mas não aturamos nenhum desaforo. A sala de jantar reservada era uma versão em miniatura da decoração do Tetrazzirti’s. O ambiente era completamente italiano. As paredes ornadas com murais desbotados de Veneza, Roma e Florença, a música suave dos alto-falantes embutidos era constituída especialmente de árias de óperas e tarantelas, e a iluminação indireta formava bolsões de sombras. Se o freguês não soubesse que estava em Paris, acreditaria estar jantando na Via Frascati, em Roma, num dos vários ristoranti comerciais, tipo família, da antiga rua. A mesa grande e redonda no centro era coberta por uma toalha vermelho-vivo, que ia quase até o chão, rodeada por quatro cadeiras eqüidistantes. Havia outras cadeiras encostadas na parede, para o caso de conferências ou para subalternos, geralmente armados. Num dos lados da mesa estava um homem moreno de porte distinto e cabelo escuro e ondulado, tendo à sua esquerda uma mulher de meia-idade, elegantemente vestida e penteada. Entre os dois, uma garrafa de Chianti Clássico e copos com pés grossos, não do tipo que se vê em jantares elegantes. Na cadeira, atrás do diplomático estava uma pasta de couro negro. — Eu sou DeFazio — disse o capo supremo de Nova York, fechando a porta. — Este é meu primo Mario, de quem já deve ter ouvido falar — um homem muito talentoso que está se privando de momentos preciosos com a família para nos fazer companhia. — Sim, é claro — disse o mafioso aristocrata. — Mario, il boia esecuzione garantito — mortal com qualquer arma. Sentem-se, cavalheiros. — Para mim essa descrição não tem sentido — respondeu Mario, aproximando-se da cadeira. — Sou bom na minha arte, só isso. — Fala como um profissional, signore — disse a mulher, enquanto DeFazio e Mario sentavamse. — Posso pedir vinho para os senhores, drinques? — Ainda não — respondeu Louis. — Talvez mais tarde — talvez... Meu talentoso parente por parte de mãe, que ela descanse nos braços de Cristo, fez uma boa pergunta, antes de entrarmos. Como devemos chamá-los, Sr. e Sra. Paris, França? Isso quer dizer que não preciso dos nomes verdadeiros, — Conte e Contessa, é como nos chamam — respondeu o homem com um sorriso frio, mais apropriado para uma máscara do que para um rosto humano. — Vê o que eu queria dizer, cugino? São pessoas da alta... Então, Sr. Conde, que tal nos contar as novidades?
— Sem dúvida, Signor DeFazio — respondeu o romano com voz tão fria quanto o sorriso que já havia desaparecido. — Vou contar as novidades e se estivesse em meu poder eu as deixaria no passado distante. — Ei, que droga de conversa é essa? — Lou, por favor! — interpôs Mario, em voz baixa mas firme. — Olhe essa linguagem! — E a linguagem dele? Que tipo de linguagem é essa? Ele quer me deixar numa espécie de sujeira? — Perguntou o que tinha acontecido, Signor DeFazio e eu estou lhe dizendo — disse o conde com voz tensa. — Ontem ao meio-dia minha mulher e eu quase fomos mortos — mortos, Signor DeFazio. Não é o tipo de experiência a que estamos acostumados ou que podemos tolerar. Tem alguma idéia da coisa em que está metido? — O senhor...? Eles marcaram o senhor? — Se quer dizer se sabiam quem eu era, não, felizmente não sabiam. Se soubessem não estaríamos sentados a esta mesa! — Signor DeFazio — disse a condessa, olhando rapidamente para o marido, como que tentando acalmá-lo. — O que soubemos aqui foi que o senhor tem um contrato para o aleijado e seu amigo, o médico. É verdade? — É — confirmou o capo supremo cautelosamente. — Isso também, mas tem mais, se sabe o que estou dizendo. — Não tenho a menor idéia — respondeu o conde secamente. — Estou dizendo isto porque talvez precise da sua ajuda, pela qual, como eu já disse, serão muito bem pagos, muito bem mesmo. — Como é que “tem mais” no contrato? — perguntou a mulher. — Tem mais alguém que vamos liquidar. Um terceiro homem que esses dois vieram encontrar aqui. O conde e sua condessa entreolharam-se. — “Um terceiro homem” — repetiu o homem de Roma, levando o copo de vinho aos lábios. — Compreendo... Um contrato com três alvos geralmente é muito lucrativo. Quão lucrativo, Signor DeFazio? — Ora, qual é, estou perguntando quanto ganha por semana em Paris, França? Vamos dizer apenas que é muito e que vocês dois, pessoalmente, podem contar com seis algarismos, se tudo sair como manda o figurino.
— Seis algarismos abrangem muita variação — observou a condessa. — Indica também que o contrato deve ser de sete algarismos. — Sete...? — DeFazio olhou para a mulher, prendendo a respiração. — Mais de um milhão de dólares — concluiu a condessa. — Bem, compreendem, é importante para nossos clientes que essas pessoas deixem este mundo — disse Louis, respirando outra vez, já que sete algarismos não significavam sete milhões. — Não perguntamos por quê, apenas fazemos o trabalho. Em situações como esta nossos dons são generosos. Ficamos com quase todo o dinheiro e “a cosa nostra” ganha fama de eficiente. Certo, Mario? — Certo, Louis, mas não me envolva nessas coisas. — Você está sendo pago, não está, cugino? — Do contrário não estaria aqui, Lou. — Vê o que eu digo? — Louis voltou-se para os aristocratas da máfia européia, que não demonstraram nenhuma reação, continuando a olhar para o capo supremo. — Ei, o que há?... Oh, aquela coisa que aconteceu ontem, certo? O que foi — eles os viram, certo? Eles os viram e algum gorila deu uns tiros para assustá-los, foi isso, não foi? Quero dizer, o que mais podia ser, hein? Eles não sabiam quem vocês eram, mas vocês estavam lá— uma ou duas vezes a mais, talvez —, portanto usaram um pouco os músculos, certo? É um golpe velho. Pregue um susto danado em estranhos que vocês virem mais de uma vez. — Lou, eu pedi para controlar sua linguagem. — Controlar? Estou perdendo o controle. Quero fazer negócio! — Falando claro — disse o conde, com voz suave e as sobrancelhas erguidas, ignorando o discurso de DeFazio. — Diz que tem de matar o aleijado e seu amigo, o médico, bem como um terceiro homem, estou certo? — Falando claro, está. — Sabe quem é esse terceiro homem — além de uma fotografia oü de uma descrição detalhada? — Claro, é um verme do governo que há alguns anos foi mandado para fazer o que o Mario aqui faz, uma esecuzione, dá para acreditar? Mas esses três indivíduos prejudicaram nossos clientes, quero dizer, feriram de verdade. Por isso o contrato, o que mais posso dizer? — Não temos certeza — disse a condessa, tomando graciosamente um gole de vinho. — Talvez você não saiba mesmo. — Saber o quê?
— Saber que existe alguém que quer matar esse terceiro homem muito mais do que você quer — explicou o conde. — Ontem ao meio-dia ele assaltou um pequeno café no campo, com um tiroteio assassino e matou uma porção de gente, só porque seu terceiro homem estava lá dentro. Nós também estávamos... Nós os vimos — o vimos — ser avisado por um guarda e sair correndo para fora. Certas emergências são intercomunicadas. Saímos imediatamente, minutos antes do massacre. — Condannare! — exclamou DeFazio. — Quem é o filho da mãe que quer o contrato? Diga! — Passamos toda a tarde ontem e o dia inteiro hoje tentando descobrir — disse a mulher, inclinando-se para a frente e segurando delicadamente o copo grosseiro, como se fosse uma ofensa para a sua sensibilidade. — Seus alvos nunca estão sozinhos. Há sempre homens em volta deles, guardas armados e no começo não sabíamos de onde eles vinham. Então, na avenue Montaigne, vimos uma limusine soviética apanhá-los, e seu terceiro homem estava na companhia de um homem muito conhecido do KGB. Agora, achamos que sabemos. — Porém, só vocês podem confirmar — disse o conde. — Como se chama o terceiro homem do contrato? Sem dúvida temos o direito de saber. — Por que não? É um perdedor chamado Bourne, Jason Bourne, que está chantageando nossos clientes. — Ecco — disse o conde em voz baixa. — Ultimo — acrescentou a condessa. — O que sabe sobre esse Bourne? — perguntou. — O que eu já disse. Ele foi incumbido de uma missão secreta para o governo e foi afastado pelos grandes de Washington. Ficou furioso e resolveu assacar nossos clientes. Um verme. — Nunca ouviu falar em Carlos, o Chacal? — disse o conde, recostando-se na cadeira, sem tirar os olhos do capo supremo. — Oh, sim, ouvi falar e sei o que quer dizer. Dizem que esse cara, o Chacal, tem ódio do tal Bourne e vice-versa, mas isso não tem nada a ver comigo. Querem saber de uma coisa, pensei que aquele gato-raposa só existisse nos livros, no cinema, entendem o que quero dizer? Então me dizem que ele é real e que é um assassino pago, o que acham disso? — Muito real — concordou a condessa. — Mas, como eu disse, não me importo a mínima. Eu quero o médico de loucos judeu, o aleijado e esse lixo Bourne, isso é tudo. E quero de verdade. O diplomata e a mulher entreolharam-se outra vez, ergueram os ombros num gesto quase de zombaria e a condessa deu a palavra ao marido. — Seu senso de ficção foi esfacelado pela realidade — disse o conde. — Como é?
— Existiu um Robin Hood, você sabe, mas não era um nobre de Locksley. Era um chefe saxão bárbaro que lutou contra os normandos, um ladrão assassino e sanguinário, exaltado somente nas lendas. E existiu um Inocente Terceiro, um papa que nada tinha de inocente e que continuou a política selvagem do seu predecessor, São Gregório Sétimo, que nada tinha de santo. Os três fizeram a Europa em pedaços, dividida por rios de sangue em nome do poder político e para encher os cofres do “Santo Império”. Séculos antes existiu o gentil Quintus Cassius Longinus de Roma, amado protetor da futura Espanha, que mutilou e torturou milhares de espanhóis. — De que diabo está falando? — Esses homens foram fantasiados pela ficção, Signor DeFazio, a verdade sobre eles foi recoberta com mantos de várias cores, mas apesar dessas distorções, eles existiram, eram reais. Assim como o Chacal é uma realidade que vai lhe causar muitos problemas. Infelizmente, ele é também um problema para nós, pois é uma complicação que não podemos aceitar. — Como é? — O capo supremo olhou boquiaberto para o aristocrata italiano. — A presença dos soviéticos nos pareceu alarmante e enigmática — continuou o conde. — Então, finalmente compreendemos a possível conexão, que você acaba de confirmar... Há anos Moscou vem caçando Carlos com um único objetivo, executá-lo, e tudo que tem conseguido até agora é a morte dos seus caçadores. De algum modo — só Deus sabe como — Jason Bourne negociou com os russos a realização do objetivo comum. — Jesus Cristo! Fale inglês ou italiano, mas com palavras que tenham sentido. Não estudei no Harvard City Col-lege, não precisei, capisce? — Ontem o Chacal atacou aquele restaurante no campo. Ele é quem está caçando Jason Bourne, que fez a tolice de voltar a Paris e convenceu os soviéticos a ajudá-lo. Uma estupidez, porque é Paris e Carlos será o vencedor. Ele vai matar Bourne e seus outros dois alvos e vai rir dos russos. Depois, vai anunciar aos departamentos clandestinos de todos os governos que ele venceu, que ele é o padrone, o maestro. Vocês, na América, nunca souberam a história toda, apenas partes dela, pois seu interesse na Europa limita-se ao dinheiro. Mas nós a vivemos, assistindo fascinados, e agora estamos hipnotizados. Dois mestres do crime, de meia-idade, obcecados pelo ódio, cada um procurando cortar a garganta do outro. — Ei, espera um pouco, cara! — gritou DeFazio. — O verme Bourne é uma farsa, uma contraffazione. Ele nunca foi um matador! — Errado, signore — disse a condessa. — Ele pode não ter entrado na arena com uma arma, mas ela tornou-se seu instrumento favorito. Pergunte ao Chacal. — Dane-se o Chacal! — exclamou DeFazio, levantando-se. — Lou! — Ora, cale a boca, Mario! Esse Bourne é meu, nosso! Nós entregamos os corpos e as fotografias. Eu — nós — segurando pelos cabelos os corpos com uma dúzia de furadores de gelo
espetados neles. Assim, ninguém pode dizer que o trabalho não foi nosso! — Agora é você que está sendo pazzo — disse o conde da máfia em voz baixa, contrastando com a gritaria do capo supremo. — E por favor, fale mais baixo. — Então, não me provoque... — Lou, ele está tentando explicar as coisas — disse o primo, o assassino. — Quero ouvir o que o cavalheiro tem a dizer porque pode ser muito importante para meus planos. Sente-se, primo — Louis obedeceu. — Por favor, continue, conde. — Obrigado, Mario. Não se importa que o chame de Mario? — É claro que não, senhor. — Acho que devia visitar Roma, o que acha? — Acho que devemos voltar para Paris — disse o capo supremo. — Muito bem — concordou o romano, dividindo a atenção entre DeFazio e o primo, mas favorecendo o último. — Poderiam talvez acertar os três alvos com um rifle de longo alcance, mas não chegariam perto dos corpos. Os guardas soviéticos estariam vigiando a área, praticamente invisíveis, e se vissem vocês abririam fogo, pensando que se tratava de gente do Chacal! — Então precisamos criar uma diversão para isolar os alvos — disse Mario, com os cotovelos na mesa e os olhos inteligentes no conde. — Talvez uma emergência nas primeiras horas da manhã. Um incêndio no lugar em que estão hospedados, obrigando-os a sair. Já fiz isso antes. Na confusão, com as sirenes dos bombeiros e da polícia e o pânico geral, podemos isolar os alvos e completar o trabalho. — Uma boa estratégia, Mario, mas temos de pensar nos guardas soviéticos. — Nós os fazemos sair também! — Vocês são apenas dois — disse o diplomata —, e eles têm pelo menos três guardas em Barbizon, para não falar no hotel, em Paris, onde estão hospedados o médico e o aleijado. — Nesse caso, temos de superá-los. — O capo supremo enxugou o suor da testa com as costas da mão. — Atacamos Barbizon primeiro, certo? — Só com dois homens? — perguntou a condessa, arregalando os olhos bem. pintados. — Vocês têm homens! — exclamou DeFazio. — Podemos usar alguns... Eu pago. Balançando a cabeça vagarosamente o conde disse em voz calma: — Não vamos declarar guerra ao Chacal. Essas são as minhas instruções.
— Maricás filhos da mãe! — Um comentário interessante, vindo de você — observou a condessa com um sorriso insultuoso. — Talvez nossos dons não sejam tão generosos quanto os seus — continuou o diplomata. — Estamos dispostos a cooperar até certo ponto, nada mais. — Vocês nunca mais vão mandar mercadorias para Nova York, Filadélfia ou Chicago! — Vamos deixar esse assunto para nossos superiores, certo? Foram interrompidos por quatro batidas fortes na porta do reservado. — Avanti — disse o conde. Imediatamente tirou a automática do cinto e a escondeu sob a toalha comprida da mesa, enquanto sorria para o gerente do Tetrazzini’s, parado na porta. — Emergenza — disse o homem gordo, caminhando rapidamente para o mafioso bem vestido e entregando um papel. — Grazie. — Prego — respondeu o homem, voltando para a porta e saindo depressa. — Os deuses ansiosos da Sicília devem estar sorrindo para vocês, afinal — disse o conde, lendo. — Este recado é do homem que está seguindo seus alvos. Estão fora de Paris e sozinhos, e por razões acima da minha compreensão, sem nenhum guarda. Estão completamente desprotegidos. — Onde? — exclamou DeFazio, levantando-se de um salto. Sem responder, o diplomata tirou do bolso o isqueiro de ouro, acendeu e queimou o pequeno pedaço de papel, jogando-o no cinzeiro. Mario levantou-se rapidamente. O homem de Roma pôs o isqueiro na mesa e ergueu a arma que estava no seu colo. — Primeiro, vamos resolver o pagamento — disse, enquanto o papel era reduzido a cinzas no cinzeiro. — Nossos dons em Palermo definitivamente não são tão generosos quanto os seus. Por favor, falem depressa, pois cada minuto é precioso. — Seu filho de uma égua, miserável. — Minha ascendência não é da sua conta. Quanto, Signor DeFazio? — Vou ao limite máximo — respondeu o capo supremo, sentando outra vez e olhando para as cinzas da informação no cinzeiro. — Trezentos mil, americanos. É tudo. — Isso é excremento — disse a condessa. — Tente outra vez. Os segundos se transformam em minutos e você não tem esse tempo.
— Está bem, está bem! O dobro. — Mais as despesas — acrescentou a mulher. — Que merda de despesas? — Seu primo Mario tem razão — disse o diplomata. — Por favor, controle a sua linguagem na frente da minha mulher. — Merda santíssima... — Eu avisei, signore. As despesas são mais um quarto de milhão, americanos. — O que há com você, é maluco? — Não, você é vulgar. O total é um milhão e quinhentos mil dólares, pagos a mensageiros em Nova York, portanto trate de providenciar... Do contrário, vão sentir sua falta em — como é mesmo? — Brooklyn Heights, Signor DeFazio. — Onde estão os alvos? — perguntou o capo supremo, sentindo dolorosamente a derrota. — Num pequeno aeroporto particular em Pontcarré, a uns quarenta e cinco minutos de Paris. Estão esperando um avião que teve de descer em Poitiers por causa do mau tempo. O avião não pode chegar antes de l:15h. — Trouxe o equipamento que pedimos? — perguntou Mario, rapidamente. — Está aqui — respondeu a condessa, apontando para a mala preta sobre a cadeira encostada na parede. — Um carro, um carro veloz! — exclamou DeFazio, enquanto seu matador apanhava a mala. — Lá fora — disse o conde. — O chofer sabe onde deve levá-los. Ele conhece aquele aeroporto. — Vamos, cugino. Esta noite fazemos nosso trabalho e você acerta suas contas! Não havia mais ninguém na única sala do terminal do pequeno aeroporto em Pontcarré além do funcionário atrás do balcão e o controlador de vôo, contratado para algumas horas extras na torre de comando. Alex Conklin e Mo Panov ficaram discretamente para trás, quando Bourne levou Marie para a área na frente do campo, atrás de uma cerca baixa de metal. As duas fileiras de luzes ambarinas, que marcavam a longa pista de pouso para o avião que devia chegar de Poitiers, foram acesas. — Não vai demorar agora — disse Jason. — Toda esta droga é uma estupidez — disse a mulher de Webb. — Tudo isto. — Não há nenhum motivo para você ficar e muitos motivos para partir. Ficar sozinha em Paris seria absurdo. Alex tem razão. Se o pessoal de Carlos a encontrasse, eles a tomariam como refém. Para
que correr esse risco? — Porque sei como me esconder e porque não quero ficar a milhares de quilômetros de você. Desculpe-me se me preocupo com você, Sr. Bourne. E se gosto de você. Jason olhou para ela, agradecendo a pouca luz que a impedia de ver seus olhos. — Então, seja razoável e use a cabeça — disse friamente, sentindo-se de repente velho demais para fingir tanta falta de sentimento. — Sabemos que Carlos está em Moscou e Krupkin atrás dele. Dimitri vai nos levar de avião amanhã cedo, e estaremos sob a proteção do KGB na cidade mais fechada do mundo. O que mais podemos desejar? — Você estava sob a proteção do governo dos Estados Unidos num pequeno quarteirão do East Side, em Nova York, há 13 anos, e isso não adiantou muito. — Era muito diferente. Naquela ocasião, o Chacal sabia onde eu ia estar e quando. Agora, ele nem tem idéia de que sabemos que está em Moscou. Ele tem outros problemas, muito importantes, e pensa que estamos aqui em Paris — deixou ordens para sua gente continuar a nos procurar aqui. — O que vocês vão fazer em Moscou? — Só vamos saber quando chegarmos lá, mas seja o que for, é melhor do que aqui, em Paris. Krupkin preparou tudo. Todos os funcionários da Praça Dzerzhinsky que falam francês estão sob vigilância. Ele disse que o fato de falar francês limitou as possibilidades e que alguma coisa tem de acontecer... Alguma coisa vai acontecer; as vantagens estão do nosso lado. E quando acontecer, não quero me preocupar, pensando em você em Paris. — É a coisa mais bonita que você disse nas últimas 36 horas. — Tudo bem. Você sabe muito bem que deve estar com as crianças. Estarão a salvo e fora do alcance deles... e as crianças precisam de você. A Sra. Cooper é formidável, mas não é a mãe delas. Além disso, a esta altura, seu irmão deve estar dando charutos cubanos para Jamie e jogando Monopólio com ele com dinheiro de verdade. Com um sorriso carinhoso nos lábios e na voz, Marie ergueu os olhos para o marido. — Obrigada por me fazer rir. Eu precisava. — Pode ser verdade — seu irmão, quero dizer. Se houver alguma mulher bonita por lá, nosso filho provavelmente já perdeu a virgindade. — David! — Bourne ficou calado. Marie riu baixinho e continuou. — Acho que não posso mesmo discutir com você. — Discutiria se meu argumento fosse falho, Dra. St. Jacques. Aprendi isso nestes últimos 13 anos.
— Ainda sou contra esta viagem maluca para Washington! Daqui para Marselha, depois Londres, depois para Dulles. Seria muito mais simples tomar um avião em Orly, direto para os EUA. — Idéia de Peter Holland. Ele vai esperá-la no aeroporto, portanto pode fazer sua reclamação pessoalmente. Peter não fala muito ao telefone. Acho que não quer se comunicar com as autoridades francesas temendo algum vazamento para o pessoal de Carlos. Uma mulher sozinha com um nome comum, em vôos lotados, provavelmente é o melhor. — Vou passar mais tempo sentada nos aeroportos do que no ar. — É possível, portanto cubra essas pernas fantásticas e leve uma Bíblia. — Isso é um encanto — disse Marie, tocando de leve o rosto dele. — De repente estou ouvindo David. — O quê? — Bourne não correspondeu ao calor na voz dela. — Nada... Me faz um favor? — O que é? — perguntou Jason com voz inexpressiva. — Traga aquele David de volta para mim. — Vamos nos informar sobre o avião — disse Bourne bruscamente, segurando o cotovelo dela e levando-a para dentro. Estou ficando velho — velho — e não posso ser o que não sou por muito tempo mais. O Camaleão está se afastando. Sua imaginação não é a mesma. Mas não posso parar! Não agora! Afaste-se de mim, David Webb! Assim que entraram na sala, o telefone do balcão começou a tocar. O único funcionário presente atendeu. — Oui? — Escutou por não mais de cinco segundos. — Merci. — Desligou e voltou-se para os quatro, dizendo em francês: — Era da torre. O avião de Poitiers deve aterrissar aproximadamente dentro de quatro minutos. O piloto pediu para a senhora estar pronta, madame, pois quer sair antes que chegue aqui a frente que se move para o leste. — Eu também quero — concordou Marie, aproximando-se rapidamente de Alex Conklin e Mo Panov. As despedidas foram breves, os abraços fortes, as palavras sinceras. Bourne levou a mulher para fora outra vez. — Acabo de me lembrar — onde estão os guardas de Krupkin? — perguntou ela, quando Jason abriu o portão e caminharam para a pista iluminada. — Não precisamos deles nem queremos que nos sigam — disse Jason. — A conexão soviética foi feita na avenue Montaigne, portanto devemos supor que a embaixada está sendo vigiada. Se não virem guardas saindo apressados com seus carros, pensarão que não há nenhum movimento nosso para comunicar ao pessoal de Carlos.
— Compreendo. — Ouviram o ruído da desaceleração do jato que, depois de uma volta sobre o campo, desceu na pista de 1.200 metros. — Eu te amo tanto, David — disse Marie, em voz alta, por causa do barulho do avião que taxiava na direção deles. — Ele te ama tanto — disse Bourne com imagens colidindo em sua mente. — Eu te amo tanto! O jato apareceu claramente entre as duas fileiras de luzes, um aparelho em forma de bala com asas delta curtas voltadas para trás, como um inseto agressivo e zangado. O piloto deu uma volta completa e parou. A porta da cabine de passageiros se abriu e a escada de metal desceu. Jason e Marie correram para ela. Aconteceu com o impacto de um assassino golpe de vento, implacável, envolvente, como os ventos turbilhonantes da morte! Tiros. Duas armas automáticas — uma muito próxima, a outra mais distante — partindo os vidros das janelas, entranhando-se na madeira, um grito estridente de dor partindo do terminal, anunciando um ferimento mortal. Bourne ergueu Marie pela cintura e a pôs dentro do avião, gritando para o piloto: — Feche a porta e saia daqui! — Mon Dieu! — exclamou o homem da cabine de comando aberta. — Allez-vous-en! — gritou, mandando Jason se afastar. Jason atirou-se no chão e ergueu os olhos. Viu o rosto de Marie na janela. Ela gritava histericamente. O avião deslizou na pista. Estava livre! Bourne não estava. No meio das luzes, ambarinas da pista, dentro de um verdadeiro ciclorama amarelo-alaranjado, onde quer que ficasse, seu corpo delineava-se em silhueta contra as luzes. Tirou a automática do cinto — a arma dada por Bernardine — e começou a se arrastar para a relva que cobria a área além do portão. O tiroteio recomeçou, mas eram tiros esparsos e separados, dentro do terminal, agora às escuras. Deviam ser da arma de Conklin, ou talvez do funcionário do aeroporto. Panov não estava armado. Então, quem fora atingido mortalmente?... Não tinha tempo. O rifle automático mais próximo entrou outra vez em ação, numa saraivada de tiros que varreu o lado do pequeno terminal e a área do portão. Então foi a vez dá segunda arma automática. Pelo som, devia estar no outro lado da sala de espera do terminal. Momentos mais tarde, ouviram-se dois tiros isolados, o último seguido por um grito... no outro lado do prédio. — Fui ferido! — Era a voz de um homem com muita dor... no outro lado do prédio. O rifle automático! Jason ergueu-se sobre os joelhos e perscrutou a escuridão. Um movimento quase imperceptível no escuro. Ergueu a arma e atirou, ao mesmo tempo em que se levantava e corria para a área de embarque, voltando-se e atirando, até acabar a munição e não mais avistar o outro lado do prédio, onde terminava a pista e as luzes ambarinas. Arrastou-se cautelosamente para a cerca baixa paralela ao canto do terminal. Viu com alívio o cascalho branco-acinzentado do estacionamento. Agora
podia ver o homem que se contorcia no chão. Sem largar a arma, o homem ferido ergueu um pouco o corpo. — Cuginol — ele gritou. — Ajude-me! — A resposta foi outra saraivada de balas do lado oeste do prédio, na direção diagonal, à direita do homem ferido. — Cristo Santíssimo! — gritou ele. — Estou gravemente ferido! — Outra vez o rifle automático entrou em ação, agora seguido do barulho de vidros quebrados. O atirador no outro lado do prédio acabava de quebrar os vidros das janelas e estava destruindo tudo lá dentro. Bourne largou a automática vazia e saltou a cerca baixa, sentindo uma dor terrível na perna quando tocou o chão. O que aconteceu comigo? Por que estou sentindo dor? Droga! Foi mancando até o canto do prédio e com o rosto encostado na madeira olhou para o outro lado. O homem ferido caiu para trás, fraco demais para continuar apoiado no rifle automático. Jason apanhou uma pedra e a atirou com força, para além do homem no chão. Ela saltou no cascalho, imitando, por um momento, o som de passos. O ferido ergueu-se um pouco e girou o corpo para trás, agarrando a arma que por duas vezes escapou das suas mãos. Agora! Bourne correu para o estacionamento e deu um pontapé no homem ferido. Tirou a arma da mão do assassino e golpeou com ela a cabeça dele. O homem caiu para trás, imóvel. Então, os tiros recomeçaram num crescendo, vindos do lado oeste e externo do terminal, outra vez acompanhados pelo barulho de vidros partidos. O assassino mais próximo, o primeiro, estava atingindo seus alvos. Tinha de ser detido! pensou Jason, ofegante, com todos os músculos doloridos. Onde está o homem de ontem? Onde está Delta de Medusa? O Camaleão de Treadstone Setenta e Um? Onde estava aquele homem? Bourne apanhou a metralhadora portátil MAC-10 do homem inconsciente e correu para a porta do terminal. — Alex! — rugiu ele. — Deixe-me entrar! Estou com a arma! A porta se abriu rapidamente. — Meu Deus, você está vivo! — gritou Conklin, no escuro, enquanto Jason entrava rapidamente. — Mo está mal — um tiro no peito. O funcionário do aeroporto está morto e não conseguimos falar com a torre. Provavelmente eles a atacaram em primeiro lugar. — Alex fechou a porta. — Deite-se no chão! — Uma rajada de balas varreu a parede. De joelhos, Bourne respondeu aos tiros, depois atirou-se no chão, ao lado de Conklin. — O que aconteceu? — perguntou Jason, ofegante, a voz tensa, o suor descendo pelo rosto. — Aconteceu o Chacal. — Como ele fez isso? — Enganou todo mundo, você, eu, Krupkin, Lavier —, o pior de tudo, ele me enganou. Ele mandou dizer que ia se ausentar, sem nenhuma explicação, mesmo com você aqui em Paris, apenas que ia ficar fora durante algum tempo. Pensamos que nosso plano tinha funcionado, tudo apontava para Moscou... Ele nos atraiu para uma cilada. Oh, Cristo, ele nos enganou! Eu devia saber, devia ter
percebido a trama! Estava clara demais... Desculpe, David. Oh, Deus, eu sinto muito! — É ele lá fora, não é? Quer fazer o trabalho pessoalmente — nada mais importa para ele. A luz forte de uma lanterna apareceu na janela sem vidros. Bourne ergueu a MAC-10 e atirou, acertando no foco de luz que se apagou. O mal, porém, estava feito. O assassino sabia agora onde eles estavam. — Para cá! — gritou Alex, agarrando Bourne e mergulhando atrás do balcão, no momento em que uma rajada de balas varreu o lugar onde tinham estado. Os tiros pararam, ouviram o estalido da arma. — Ele tem de recarregar. — murmurou Bourne. — Fique aqui. Jason levantou-se e correu para a porta lateral, passou por ela com a arma na mão direita, de bruços no chão, tenso, pronto para matar — se a idade permitisse. Tinha de permitir! Arrastando-se, passou pelo portão de embarque que ele havia aberto para Marie e virou para a direita, seguindo a cerca. Ele era Delta — da Medusa de Saigon... podia fazer aquilo! Não tinha a selva amiga agora, mas havia todo o resto que podia usar — que Delta podia usar — o escuro da noite, a passagem intermitente das nuvens encobrindo a luz da lua. Use tudo! Foi treinado para isso... há tantos anos — tantos! Esqueça, esqueça o tempo! Faça o que tem de fazer! O animal a poucos passos de você quer matá-lo — matar sua mulher, seus filhos. Quer ver todos mortos! A rapidez nascida de pura fúria o impulsionava, o obcecava, e Bourne sabia que para vencer tinha de vencer depressa, com toda a velocidade de que era capaz. Continuou a se arrastar rapidamente ao longo da cerca que circundava o terminal e, passando pelo canto do prédio, preparou-se para o momento em que ia se expor ao inimigo. A metralhadora letal estava na sua mão, seu dedo no gatilho. Viu um grupo de arbustos e depois duas árvores grandes a uns dez metros. Se pudesse chegar até elas, a vantagem seria sua. Teria a “parte alta” do terreno, e o Chacal estaria no vale da morte, nem que fosse só pelo fato de Bourne estar atrás do assassino e fora do seu campo de visão. Chegou aos arbustos. Ouviu então o barulho de vidros quebrados e uma rajada de balas — desta vez tão prolongada que o assassino devia ter usado toda a munição na arma. Bourne não fora visto. O vulto ao lado da janela recuou para recarregar, concentrado no que fazia, nem pensando na possibilidade de alguém ter escapado. Carlos também estava ficando velho e perdendo sua habilidade, pensou Jason Bourne. Onde estavam os sinalizadores intrínsecos a esse tipo de operação? Onde os olhos alerta e irrequietos que podiam recarregar a arma na mais completa escuridão? O escuro da noite. As nuvens bloquearam a luz amarela da lua. Aí estava a noite. Bourne saltou a cerca e se escondeu atrás dos arbustos, depois correu para a primeira árvore, onde podia ficar de pé, observar a cena e estudar suas opções. Alguma coisa estava errada. Percebia um primitivismo que não era próprio do Chacal. O assassino havia isolado o terminal, ad valorem, e o preço era alto, mas Bourne não via os toques mais caprichados da equação mortal. Faltava a sutileza, substituída agora pela força bruta, que tinha seu valor, mas não contra o homem que chamavam de Jason Bourne e que já havia escapado da armadilha.
O homem ao lado da janela tirou um pente de balas do bolso do paletó. Jason saiu correndo do abrigo das árvores com a MAC-10 em tiro automático, explodindo o solo na frente do assassino, depois atirando em volta do corpo dele. — É isso! — gritou ele, aproximando-se do homem. — Você está morto, Carlos, basta um movimento do meu dedo no gatilho — se você é o Chacal. O homem ao lado da janela jogou para longe a arma. — Não sou, Sr. Bourne — disse o assassino de Larchmont, Nova York. — Já nos encontramos antes, mas não sou a pessoa de quem falou agora. — Deite-se no chão, seu filho da mãe! — O homem obedeceu e Jason chegou mais perto. — Separe as pernas e abra os braços! — Essa ordem também foi obedecida. — Levante a cabeça! Bourne olhou para o rosto vagamente iluminado pelo brilho distante das luzes da pista. — Está vendo agora? — disse Mario. — Não sou quem pensou que eu fosse. — Meu Deus! — murmurou Jason, sem esconder o espanto. — Você estava em Manassas, Virgínia. Você tentou matar Cactus, e depois tentou me matar! — Contratos, Sr. Bourne, nada mais. — E a torre? O controlador de vôo está na torrei — Eu não mato indiscriminadamente. Assim que ele liberou a aterrissagem do avião de Poitiers, eu o mandei embora... Perdoe-me, mas sua mulher também está na lista. Felizmente, já que ela é mãe, não peguei essa parte do contrato. — Quem diabo é você? — Acabei de dizer. Um contratado. — Já vi melhores. — Talvez eu não esteja à sua altura, mas sirvo muito bem à minha organização. — Jesus, você é da Medusa! — Já ouvi esse nome, mas é tudo que posso dizer... Deixe-me esclarecer uma coisa, Sr. Bourne. Não quero que minha mulher fique viúva, nem meus filhos órfãos só por causa de um contrato. Essa situação simplesmente não é viável. Eles significam muito para mim. — Vai passar 150 anos na cadeia, isso se for julgado num Estado que não tenha pena de morte. — Não com o que eu sei, Sr. Bourne. Eu e minha família seremos bem tratados — um novo
nome, talvez uma bela fazenda em Dakota ou Wyoming. O senhor compreende, eu sabia que este momento ia chegar. — O que vai chegar agora, seu filho da mãe, é que um amigo meu está lá dentro ferido. E foi você quem atirou! — Uma trégua, então? — disse Mario. — Que diabo quer dizer com isso? — Tenho um carro muito veloz a um quilômetro e meio daqui. — O assassino de Larchmont, Nova York, tirou um aparelho quadrado do bolso. — Pode chegar aqui em um minuto. Estou certo de que o chofer sabe onde fica o hospital mais próximo. — Chame o carro! — Feito, Jason Bourne — disse Mario, apertando um botão. Morris Panov foi levado para a sala de operações, e Louis DeFazio ficou na maça porque seu ferimento era superficial. Por meio de negociações entre Washington e o Quai D’Orsay o criminoso conhecido como Mario foi entregue à custódia da embaixada americana em Paris. Quando o médico todo de branco entrou na sala de espera, Bourne e Conklin levantaram-se, assustados — Não vou fingir que trago boas notícias — disse o médico, em francês —, pois isso não seria verdade. Os dois pulmões do seu amigo foram atingidos, bem como a parede do coração. Na melhor das hipóteses, a possibilidade de sobrevivência é de 46% — contra ele. Mas é um homem de vontade forte e quer viver. Muitas vezes isso vale mais do que todos os diagnósticos médicos. O que mais posso dizer? — Obrigado, doutor. — Jason afastou-se do médico. — Preciso usar o telefone — disse Alex. — Devia ir à nossa embaixada, mas não tenho tempo. Pode me garantir que o telefone não tem escuta? — Acho que posso. Não sabemos como fazer isso. Use meu consultório, por favor. — Peter? — Alex! — exclamou Holland em Langley, Virgínia. — Tudo correu bem? Marie já foi? — Para responder à primeira pergunta, não, nada correu bem. Quanto a Marie, pode esperar um telefonema histérico assim que ela chegar a Marselha. Aquele piloto não vai usar o rádio. — O quê? — Diga a ela que estamos bem, que David não está ferido...
— Do que está falando? — interrompeu o diretor da CIA. — Caímos numa cilada quando esperávamos o avião de Poitiers. Mo Panov está mal, tão mal que não quero pensar nisso agora. Estamos no hospital e o médico não foi muito animador. — Oh, Deus, Alex, eu sinto muito. — A seu modo, Mo é um lutador. Continuo apostando nele. A propósito, não conte para Marie. Ela pensa demais. — É claro que não. Posso fazer alguma coisa? — Sim, pode, Peter. Pode me dizer por que a Medusa está aqui, em Paris? — Em Paris? Não de acordo com o que eu sei, e eu sei muito. — Nossa identificação é positiva. Os dois assassinos que nos atacaram foram mandados pela Medusa. Temos até uma espécie de confissão. — Eu não compreendo! — protestou Holland. — Nem pensamos em Paris. Não temos nenhum vazamento nesse cenário. — É claro que têm. Você mesmo disse. Chamou de profecia automaticamente realizada, lembrase? A lógica suprema que Bourne criou como teoria. A Medusa está se aliando ao Chacal e o alvo é Jason Bourne. — Essa é a questão, Alex. Era só uma teoria, hipoteticamente convincente, mas uma teoria, a base para uma estratégia perfeita. Porém, não aconteceu. — Obviamente aconteceu. — Não deste lado. Ao que sabemos, a Medusa está agora em Moscou. — Moscou? — Conklin quase deixou cair o fone na mesa do médico. — Isso mesmo. Concentramos a vigilância em Ogilvie, da firma de advocacia de Nova York, gravamos tudo que pudemos gravar. De algum modo — não sabemos como —, Ogilvie foi avisado e saiu do país. Tomou um avião da Aeroflot para Moscou, e o resto da família foi para Marrakesh. — Ogilvie...? — Alex disse em voz baixa, franzindo a testa, tentando se lembrar. — De Saigon? Um oficial advogado de Saigon? — Isso mesmo. Estamos convencidos de que ele dirige a Medusa. — E você escondeu essa informação de mim? — Só o nome da firma. Eu disse que tínhamos nossas prioridades e você tinha as suas. Para nós, a Medusa vem em primeiro lugar.
— Seu simplório ignorante! — explodiu Conklin. — Eu conheço Ogilvie — ou melhor, eu o conheci. Vou lhe dizer como o chamavam em Saigon: Ogilvie Frio-como-Gelo, o advogado de fala macia mais safado do Vietnã. Com algumas intimações legais e um pouco de pesquisa, eu podia ter dito onde ele esconde alguns dos seus esqueletos — você estragou tudo! Podia ter detido o homem por subornar os tribunais militares em um ou dois casos de assassinato — não existem estatutos civis ou militares sobre esses crimes. Jesus, por que não me contou? — Para ser franco, Alex, você não perguntou. Simplesmente supôs — e com razão — que eu não ia contar. — Tudo bem, tudo bem, está feito — ao diabo com isso! Amanhã ou depois você terá os dois medusianos, trate de trabalhar bem os homens. Eles querem salvar a pele — o capo é um verme, mas seu atirador não pára de rezar por sua família e não pertence à organização. — O que vocês vão fazer? — perguntou Holland. — Estamos a caminho de Moscou. — Atrás do Ogilvie? — Não, atrás do Chacal. Mas se me encontrar com Bryce, transmito suas lembranças.
Capítulo35 BUCKINGHAM PRITCHARD estava sentado ao lado do tio uniformizado, Cyril Sylvester Pritchard, diretor-assistente da imigração, no escritório de Sir Henry Sykes, do Palácio do Governo em Montserrat. À direita do diretor de imigração estava o melhor advogado nativo que Sykes conseguiu convencer a defender os Pritchard, se a Coroa os processasse como acessórios de atos de terrorismo. Sentado à sua mesa, Sir Henry olhou um tanto chocado para o advogado, um tal de Jonathan Lemuel, que erguia a cabeça e os olhos para o teto, não para se beneficiar do ventilador, mas em sinal de descrença total. Lemuel era um advogado formado por Cambridge, um “bolsista” das colônias, que há alguns anos havia ganho dinheiro em Londres e voltava agora, no outono da sua vida, para ‘Serrat a fim de desfrutar o prêmio do seu trabalho. Na verdade, Sir Henry havia convencido o amigo aposentado a dar assistência a dois idiotas que podiam ter-se envolvido num grave assunto internacional. O choque de Sir Henry e a descrença e irritação de Jonathan Lemuel foram provocados pela seguinte troca de palavras entre Sykes e o diretor-assistente da imigração. — Sr. Pritchard, temos provas de que seu sobrinho ouviu uma conversa telefônica entre John St. Jacques e seu cunhado, o americano Dr. David Webb. Em seguida, seu sobrinho, Buckingham Pritchard, admitiu de livre e espontânea vontade, até mesmo alegremente, ter telefonado para o senhor para transmitir certa informação contida naquela conversa e que o senhor, por sua vez, disse que precisava falar com Paris imediatamente. Isso é verdade? — Tudo é completamente verdadeiro, Sir Henry. — Com quem falou em Paris? Qual é o número do telefone? — Com todo respeito, senhor, jurei guardar segredo. Ouvindo a resposta sucinta e inesperada, Jonathan Lemuel ergueu os olhos atônitos para o teto. Sykes, recuperando a compostura, pôs um fim à breve pausa de espanto. — Como foi que disse, Sr. Pritchard? — Meu sobrinho e eu somos parte de uma organização internacional composta por grandes líderes do mundo e juramos guardar segredo. — Bom Deus, ele acredita nisso — resmungou Sir Henry. — Ora, por Deus do céu — disse Lemuel, baixando a cabeça. — Nosso serviço de telefone não é o mais sofisticado no mundo, especialmente no que se refere a telefones públicos, os quais suponho que foram instruídos para usar, mas dentro de um ou dois dias saberemos o número. Por que não dizer agora a Sir Henry? Evidentemente ele precisa saber depressa, portanto, que mal pode haver? — O mal, senhor, é para nossos superiores da organização — isso me foi explicado claramente.
— Qual é o nome dessa organização internacional? — Eu não sei, Sir Henry. Isso faz parte da confidencialidade, o senhor não compreende? — Acho que o senhor não compreende, Sr. Pritchard — disse Sykes, mal disfarçando a fúria. — Oh, mas eu compreendo, Sir Henry, e vou provar ao senhor! — afirmou Pritchard, olhando de um para outro, como se quisesse incluir o cético Sykes e o advogado atônito, bem como seu sobrinho em sua confidencia. — Uma grande soma em dinheiro foi enviada por telegrama de um grande banco da Suíça para a minha conta particular, aqui em Montserrat. As instruções foram claras, embora flexíveis. O dinheiro devia ser usado liberalmente para o cumprimento das ordens que recebi... Transporte, diversão, moradia — disseram que deixavam à minha discrição como gastá-lo, mas é claro que estou anotando todas as despesas, como faço no meu trabalho de segunda autoridade na imigração... Quem, a não ser gente muito superior, iria confiar desse modo num homem que só conhecem por reputação e posição invejáveis? Henry Sykes e Lemuel entreolharam-se, acrescentando um fascínio total ao espanto e à descrença. Sir Henry inclinou-se para a frente sobre a mesa. — Além dessa, como podemos dizer, observação profunda dos movimentos de John St. Jacques, evidentemente a cargo do seu sobrinho, receberam outras missões? — Na verdade não, senhor, mas tenho certeza de que, quando os líderes souberem da presteza com que essa foi executada, nos encarregarão de outras. Lemuel ergueu um pouco a mão sobre o braço da cadeira, como um sinal para Sykes se acalmar. — Diga-me — sua voz era baixa e suave. — Essa grande soma de dinheiro que veio da Suíça, quanto era? A quantia não é importante legalmente, e Sir Henry pode conseguir a informação telefonando ao. seu banco sob as leis da Coroa, portanto diga-nos, por favor. — Trezentas libras! — disse o Pritchard mais velho, com orgulho. — Trezentas...? — O advogado não terminou a frase. — Não exatamente uma fortuna, hein? — murmurou Sir Henry, recostando-se na cadeira, sem mais palavras. — Mais ou menos — continuou Lemuel —, quais foram suas despesas? — Não mais ou menos, mas exatamente — afirmou o diretor-assistente da imigração, tirando um caderninho do bolso do uniforme. — Meu brilhante tio é sempre exato — observou Buckingham Pritchard. — Muito obrigado, sobrinho. — Quanto? — insistiu o advogado.
— Exatamente 25 libras, cinco xelins, ingleses, ou o equivalente, 132 dólares do Caribe oriental, sendo que este último foi arredondado para o mais próximo zero duplo na última cotação da bolsa — neste caso, eu absorvi 47 centavos, que estão anotados. — Impressionante — disse Sykes, atônito. — Guardei todos os recibos escrupulosamente — continuou Pritchard, entusiasmando-se à medida que lia. — Estão guardados num cofre no meu apartamento na Old Road Bay, e incluem o seguinte: um total de sete dólares e dezoito centavos para telefonemas locais para Tranqüilidade — não usei meu telefone oficial; vinte e três dólares e sessenta e cinco centavos do telefonema para Paris; sessenta e oito dólares e oitenta centavos... jantar para mim e meu sobrinho no Vue Point, uma reunião de negócios, é claro... — Isso chega — interrompeu Jonathan Lemuel, enxugando a testa negra com um lenço, embora o ventilador tropical estivesse funcionando perfeitamente. — Estou preparado para apresentar tudo no momento certo... — Eu disse que chega, Cyril. — Precisam saber que recusei quando um chofer de táxi se ofereceu para aumentar o preço da corrida, no recibo, e o censurei, usando os direitos da minha posição oficial. — Chega! — bradou Sykes com as veias do pescoço saltadas. — Vocês foram dois perfeitos idiotas. Pensar que John St. Jacques podia ser um criminoso é o maior absurdo que já ouvi! — Sir Henry — disse o jovem Pritchard. — Eu vi com meus olhos o que aconteceu no Hotel Tranqüilidade! Foi horrível! Caixões no cais, a capela destruída por uma bomba, barcos do governo em volta da nossa pacífica ilha! Vamos precisar de meses para voltar a funcionar. — Exatamente! — rugiu Sykes. — E acreditaram que John St. Jacques destruiria sua propriedade, seu próprio negócio? — Coisas mais estranhas têm acontecido no mundo do crime lá fora, Sir Henry — disse Cyril Sylvester Pritchard solenemente. — Na minha função oficial, tenho ouvido muitas e muitas histórias. Os incidentes descritos por meu sobrinho são chamados táticas diversionárias, com o fim de criar a ilusão de que os bandidos são as vítimas. Tudo foi muito bem explicado para mim. — Ah, foi, não foi? — exclamou o ex-brigadeiro do exército britânico. — Muito bem, deixe que eu lhe explique outra coisa. Você foi enganado por um terrorista procurado no mundo inteiro! Sabe qual é a pena por acobertar e ajudar um assassino como ele? Vou deixar bem claro, para o caso de ter escapado à sua atenção — na sua função oficial, é claro... É morte por fuzilamento ou, menos misericordioso, enforcamento público! Agora, qual é o maldito número em Paris? — Abaixo das circunstâncias — disse o subdiretor, com toda a dignidade que lhe restava, embora o sobrinho estivesse apertando nervosamente seu braço esquerdo e sua mão tremesse quando
tirou o livrinho de notas do bolso. — Vou escrever para o senhor... A gente pergunta pelo melro. Em francês, Sir Henry. Eu falo algumas palavras, Sir Henry. Em francês — Sir Henry. Chamado por um guarda armado vestido como um convidado de fim de semana, com calça esporte branca e camisa de linho larga e solta, John St. Jacques entrou na biblioteca da sua nova casa segura, uma propriedade em Chesapeake Bay. O guarda, um homem musculoso de estatura média e aparência latina, ficou do lado de dentro da porta e apontou para o telefone na mesa grande de cerejeira. — Para o senhor, Sr. Jones. É o diretor. — Obrigado, Hector — disse Johnny, e depois de uma pausa: — Esse negócio de Sir Jones é mesmo necessário? — Tão necessário quanto Hector. Meu nome verdadeiro é Roger... ou Daniel. Qualquer um. — Saquei. — St. Jacques foi até a mesa e apanhou o fone. — Holland? — O número que seu amigo Sykes conseguiu é falso, mas útil. — Como diz meu cunhado, por favor, fale inglês. — É o número de um café no cais Marais, no Sena. A senha é perguntar por um melro — un oiseau noir — e alguém chama, gritando. Se o pássaro estiver lá, o contato está feito. Se não estiver, você tenta outra vez. — Por que é útil? — Vamos tentar outra vez — e outra vez — com um homem lá dentro. — Além disso, o que mais está acontecendo? — Só posso dar uma resposta parcial. — Que droga! — Marie pode contar o resto... — Marie? — Está a caminho de casa. Danada como o diabo, mas também aliviada como esposa e mãe. — Por que está danada? — Eu reservei passagens para ela discretamente em vários vôos... — Por Deus, por quê? — interrompeu Johnny furioso. — Mande um maldito avião para ela! Marie vale mais para você do que qualquer membro do
seu congresso idiota ou da sua organização complicada, e você manda aviões para eles no mundo inteiro. Não estou brincando, Holland! — Eu não mando esses aviões — respondeu o diretor com voz firme. — Outros mandam. Os que são mandados por mim despertam muita curiosidade e muitas perguntas no exterior e isso é tudo que posso dizer. A segurança dela é mais importante do que o conforto. — Nisso concordamos, chefão. O diretor ficou em silêncio por um momento, depois disse, irritado: — Quer saber de uma coisa? Você não é um cara muito simpático, sabia? — Minha irmã gosta de mim como sou e isso basta para tirar todo o valor da sua opinião. Por que ela está aliviada — como esposa e mãe, não foi o que você disse? Outra pausa, não para controlar a irritação agora, mas para procurar as palavras. — Aconteceu uma coisa desagradável, um incidente que nenhum de nós podia prever, nem imaginar. — Oh, conheço essas famosas palavras típicas das autoridades americanas! — rugiu St. Jacques. — O que vocês perderam desta vez? Um caminhão de mísseis americanos para os agentes do Aiatolá em Paris? O que aconteceu? Pela terceira vez, Holland recorreu a um momento de silêncio, mas sua respiração podia ser ouvida no outro lado da linha. — Quer saber de uma coisa, jovem, eu podia simplesmente desligar e esquecer que você existe, o que seria muito bom para minha pressão. — Escute, chefão, estamos falando da minha irmã e do marido dela que eu acho formidável. Cinco anos atrás, vocês filhos da mãe — repito, vocês filhos da mãe — quase mataram os dois em Hong Kong e no Extremo Oriente. Não sei todos os fatos porque os dois, por decência ou por tolice, não falam muito a respeito, mas o que sei é o bastante para não apostar em você nem com o ordenado de um garçom na ilha! — Está certo — disse Holland, mais calmo. — Não que seja importante, mas naquele tempo eu ainda não estava aqui. — Não importa. É o seu sistema subterrâneo. Você teria feito a mesma coisa. — Conhecendo as circunstâncias, sim, talvez fizesse. E você também faria se as conhecesse. Mas isso também não importa. É história. — E agora é agora — disse St. Jacques. — O que aconteceu em Paris, esse tal “incidente desagradável”?
— Segundo Conklin foi uma cilada num aeroporto particular em Pontcarré. Eles não conseguiram. Seu cunhado não está ferido, nem Alex. E tudo que posso dizer. — É tudo que eu quero ouvir. — Falei com Marie há pouco. Ela está em Marselha e deverá estar aqui amanhã cedo. Eu mesmo vou esperá-la no aeroporto e levá-la a Chesapeake. — E David? — Quem? — Meu cunhado! — Oh... sim, é claro. Está a caminho de Moscou. — O quê? O jato da Aeroflot aterrissou no Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou. O piloto passou taxiando para a pista de saída adjacente e parou a quatrocentos metros do terminal, quando a torre avisou, em russo e em francês. — O desembarque vai sofrer um atraso de cinco minutos. Por favor, permaneçam sentados.Não foi dada nenhuma explicação, e os passageiros que chegavam de Paris e não eram cidadãos soviéticos voltaram aos seus livros e suas revistas, certos de que a demora era devida à partida de algum outro avião. Porém, os que eram cidadãos, bem como uns poucos que conheciam a rotina de desembarque em solo soviético, sabiam que o caso não era esse. A pequena área na frente do grande Ilyushin, separada da cabine central por uma cortina e reservada a passageiros especiais, invisíveis para os outros, começou a ser evacuada, senão toda, pelo menos em parte. Habitualmente uma plataforma, com a escada protegida nos dois lados por escudos de metal, era levada até a porta de saída da frente do aparelho. Sempre havia uma limusine do governo parada a alguns metros do avião, e enquanto os demais passageiros viam rapidamente as costas dos que desembarcavam, as comissárias de bordo percorriam a cabine, certificando-se de que ninguém estava usando uma máquina fotográfica. Nunca encontravam nenhuma. Aqueles viajantes especiais eram propriedade do KGB e por motivos que só o Komitet conhecia, não deviam ser vistos no terminal internacional de Sheremetyevo. Era esse o caso, naquele fim de tarde, nas vizinhanças de Moscou. Alex Conklin desceu pela escada protegida, seguido de Bourne que carregava duas grandes sacolas de viagem, que eram toda a bagagem dos dois. Dimitri Krupkin saiu da limusine e correu para eles. A escada afastou-se do avião e o ruído dos motores começou a aumentar gradualmente. — Como vai seu amigo doutor? — perguntou o agente soviético em voz muito alta, por causa do barulho dos motores. — Resistindo! — gritou Alex. — Talvez não consiga, mas está lutando como um leão.
— A culpa foi sua, Aleksei! — O jato afastou-se e Krupkin baixou a voz, falando alto ainda, mas sem gritar. — Você devia ter telefonado para Sergei na embaixada. A unidade dele estava preparada para escoltá-los a qualquer lugar. — Na verdade achamos que isso seria o mesmo que alertar o inimigo. — É melhor um alerta do que um convite ao assalto! — disse o russo. — Os homens de Carlos não se atreveriam a atacá-los se estivessem sob nossa proteção. — Não foi o Chacal — o Chacal — disse Conklin, bruscamente voltando ao tom de voz natural, quando o ruído do avião quase desapareceu ao longe. — É claro que não — ele está aqui. Foram aqueles bandidos, seguindo ordens. — Não os bandidos dele, nem suas ordens. — Do que está falando? — Conversamos sobre isso mais tarde. Vamos sair daqui. — Espere. — Krupkin ergueu as sobrancelhas. — Primeiro vamos conversar — e antes de tudo, bem-vindos à Mãe Rússia. Segundo, eu ficaria muito grato se você não comentasse com ninguém aqui certos aspectos do meu estilo de vida, quando estou a serviço do meu governo no Ocidente hostil e belicoso. — Quer saber de uma coisa, Krupkie, um dia destes eles vão te pegar. — Nunca. Eles me adoram, pois eu forneço ao Komitet mais informações úteis sobre os altos escalões do mundo devasso, que vocês chamam de livre, do que qualquer outro agente em postos estrangeiros. Além disso, eu também recebo meus superiores naquele mundo devasso muito melhor do que qualquer agente em qualquer lugar. E agora, se conseguirmos pegar o Chacal aqui em Moscou, sem dúvida me farão membro do Politburo, com status de herói. — Então você pode roubar. — Por que não? Todos roubam. — Se não se importam — interrompeu Bourne delicadamente, pondo as duas malas no chão. — O que aconteceu? Algum progresso na Praça Dzerzhinsky? — Um bom progresso, considerando que começamos há menos de 30 horas. O número dos possíveis suspeitos diminuiu para 13. Todos falam francês fluentemente. Estão sob vigilância humana e eletrônica, sabemos exatamente onde estão a cada minuto do dia, com quem se encontram, com quem falam no telefone... Estou trabalhando com dois comissários que não falam francês — mal sabem falar russo corretamente, mas às vezes é assim. O caso é que são eficientes e dedicados. Preferem ajudar a capturar o Chacal a ter de lutar outra vez contra os nazistas. Foram muito eficazes na organização da vigilância.
— Sua vigilância é uma droga e você sabe disso — disse Alex. — Seus homens tropeçam nas privadas, no banheiro de mulheres, quando estão perseguindo um cara. — Não desta vez, porque eu mesmo os escolhi — insistiu Krupkin. — Temos quatro russos e os outros são fugitivos da Grã-Bretanha, América, França e África do Sul — todos com prática do serviço secreto e que podem perder suas dachas se meterem os pés pelas mãos, como vocês dizem. Na verdade, eu gostaria de ser indicado para um posto no Presidium, ou talvez até mesmo no Comitê Central. Podem me mandar para Washington ou Nova York. — Onde você vai poder roubar de verdade — disse Conklin. — Você é maldoso, Aleksei. Depois de uma vodca, ou seis, lembre-se de contar a história de umas terras que nosso chargé d’affaires comprou na Virgínia há dois anos. Por uma ninharia e financiado pelo banco da amante, em Richmond. Agora, uma empresa imobiliária está oferecendo dez vezes mais!... Venham, aqui está o carro. — Eu não acredito no que estou ouvindo — disse Bourne, apanhando as malas. — Bem-vindos ao verdadeiro mundo do serviço secreto de alta tecnologia — explicou Conklin com uma risada. — Pelo menos, sob certo ponto de vista. — Sob todos os pontos de vista — disse Krupkin, enquanto dirigiam-se para a limusine. — Entretanto, vamos dispensar esse tipo de conversa enquanto estivermos no veículo oficial, certo, cavalheiros? A propósito, reservei uma suíte com dois quartos, no Metrópole, na Marx Prospekt. É conveniente e eu mesmo desliguei todas as escutas. — Posso compreender por quê, mas como conseguiu? — Como você sabe, o constrangimento é o grande inimigo do Komitet. Expliquei à segurança interna que qualquer gravação naquela suíte podia ser muito embaraçosa para certas pessoas e que certamente todos que as ouvissem seriam transferidos para Kamchatka. — O chofer com um terno escuro, igual ao que Sergei usava em Paris, abriu a porta da limusine. — A fazenda é a mesma — disse Krupkin, em francês, vendo que seus companheiros haviam notado a semelhança. — Infelizmente o corte não é. Eu fiz questão de mandar reformar o terno de Sergei no Faubourg. O Hotel Metrópole é uma construção pré-revolucionária reformada, no estilo arquitetônico muito decorado, preferido pelo czar, depois que ele conheceu o estilo fin-de-siècle de Viena e Paris. O pé-direito é muito alto, o mármore abundante, e as raras tapeçarias valiosas. O saguão ricamente ornamentado parece um desafio a um governo que permite a entrada de cidadãos tão mal vestidos. As paredes majestosas e os lustres filigranados parecem olhar com desprezo para os indignos invasores. Essas impressões, porém, não se aplicavam a Dimitri Krupkin, que, com seu porte aristocrático, parecia perfeitamente à vontade naquele ambiente. — Camarada! — disse o gerente sotto voce, vendo o oficial do KGB conduzindo os convidados para o elevador. — Temos uma mensagem urgente para o senhor — continuou ele, aproximando-se e entregando um papel dobrado a Dimitri.
— Minhas ordens foram para lhe entregar pessoalmente. — Cumpriu suas ordens e eu agradeço — o homem se afastou e Dimitri leu a mensagem. — Preciso falar com Dzerzhinsky agora mesmo — disse ele. — É a extensão do meu comissário. Venham, vamos depressa. A suíte, como o saguão, pertencia a outro tempo, a outra era, na verdade, a outro país. Estava prejudicada apenas pelos tecidos desbotados e pelas restaurações imperfeitas dos ornamentos originais. As imperfeições acentuavam a distância entre o passado e o presente. Os quartos ficavam um de cada lado da sala de estar, onde havia um pequeno bar de cobre com algumas garrafas de bebidas raramente encontradas nas prateleiras de Moscou. — Sirvam-se — disse Krupkin, dirigindo-se para a mesinha do telefone, uma falsa antigüidade, um misto do estilo Queen Anne e um Luís de fim de período. — Oh, eu me esqueci, Aleksei, vou pedir chá ou água... — Esqueça — disse Conklin, apanhando sua mala da mão de Jason e dirigindo-se para o quarto da esquerda. — Vou me lavar, aquele avião estava imundo. — Espero que tenha gostado do preço da passagem — respondeu Krupkin, tirando o fone do gancho e discando. — A propósito, seu ingrato, as armas estão na gaveta da mesa-de-cabeceira. São ambas Graz Burya, calibre 38, automáticas... Venha, Sr. Bourne — acrescentou. — Não é abstêmio e foi uma longa viagem — esta conversa pode ser longa também. Meu comissário número dois gosta muito de falar. — Sim, acho que vou aceitar — disse Jason, pondo a mala no chão ao lado da porta do outro quarto. Foi até o bar, serviu-se de um drinque enquanto Krupkin começava a falar em russo. Bourne não falava a língua, por isso foi até as duas janelas estilo catedral que davam para a avenida Marx Prospekt. — Dobryi dyen... Da, da — pochemu?... Sadovaya togda. Dvadtsat minut. Krupkin balançou a cabeça irritado e desligou. Jason voltou-se para ele. — Meu segundo comissário não quis falar muito, Sr. Bourne. A urgência e as ordens tiveram precedência neste comunicado. — O que quer dizer? — Precisamos sair imediatamente. — Krupkin olhou para o quarto da esquerda e disse em voz alta: — Aleksei, venha cá. Depressa!... Tentei dizer a ele que vocês acabam de chegar — continuou o homem do KGB, dirigindo-se a Jason. — Mas ele nem quis ouvir. Cheguei a dizer que um dos dois estava tomando banho e seu único comentário foi, “Diga a ele para sair do banho e se vestir”. Conklin entrou na sala, mancando, com a camisa desabo-toada e enxugando o rosto com uma toalha. — Desculpe, Aleksei, mas precisamos ir.
— Ir aonde? Acabamos de chegar. — Nós temos um apartamento no Sadovaya — é o “Grand Boulevard de Moscou”, Sr. Bourne. Não é o Champs-Elysées, mas também não é insignificante. Os czares sabiam construir. — O que há no Sadovaya? — O comissário número um — disse Krupkin. — Usamos o apartamento como nosso quartelgeneral. Um pequeno e delicioso anexo da Praça Dzerzhinsky — só que ninguém sabe, além de nós cinco. Alguma coisa aconteceu e precisamos ir para lá imediatamente. — Tudo bem para mim — disse Jason, pondo o copo sobre o bar. — Acabe seu drinque — disse Alex, voltando para o quarto —, preciso tirar o sabão dos olhos e amarrar esta droga de bota. Bourne apanhou o copo, e viu que o agente soviético olhava na direção do quarto de Conklin com a testa franzida e uma expressão de profunda tristeza. — Você o conheceu antes de ele perder o pé, não conheceu? — Oh, sim, Sr. Bourne. Nós nos conhecemos há 25, 26 anos. Istambul, Atenas, Roma... Amsterdam. Era um adversário notável. É claro, éramos jovens, então, ambos ágeis e magros, procurando viver as imagens que fazíamos de nós mesmos. Tudo isso foi há muito tempo. Éramos extremamente bons. Na verdade, ele era melhor do que eu, mas não conte a ele que eu disse isso. Ele sempre via a totalidade do cenário, muito além do que eu via. É claro que isso era o russo que existe nele. — Por que usa a palavra “adversário”? — perguntou Jason. — É tão esportiva, como se estivesse disputando um jogo. Ele não era seu inimigo? Krupkin virou rapidamente a cabeça grande para Jason, sem nenhum calor nos olhos. — É claro que ele era meu inimigo, Sr. Bourne, e para ser mais claro, ele ainda é meu inimigo. Por favor, não interprete erradamente minhas indulgências. As fraquezas de um homem podem interferir com sua crença, mas não a diminuem nunca. Não tenho a conveniência da confissão católica para ser perdoado e pecar outra vez, a despeito do que acredito, mas eu acredito... Meus avós foram enforcados — enforcados — por roubar galinhas da propriedade de um Romanov. Poucos dos meus antepassados — talvez nenhum — tiveram o privilégio da instrução mais rudimentar, muito menos qualquer estudo. A revolução do Soviete Supremo de Karl Marx e Vladimir Lenin possibilitou o começo de tudo. Milhares e milhares de erros foram cometidos — alguns indesculpáveis, outros brutais —, mas foi construído um começo. Eu sou uma prova do erro e do acerto do regime. — Creio que não compreendi exatamente o que quer dizer. — Isso é porque seus intelectuais senis nunca compreenderam o que nós compreendemos desde o começo. Das Kapital, Sr. Bourne, prevê estágios para chegarmos à sociedade justa, econômica e
política, mas não determina e nunca determinou as formas específicas das peças básicas desse governo. Diz apenas que não podia continuar como estava. — Não sou estudioso do assunto. — Não precisa ser. Daqui a cem anos vocês podem ser os socialistas e, com alguma sorte, nós seremos os capitalistas, da? — Diga-me uma coisa — disse Jason, ouvindo, como Krupkin ouviu, que Conklin acabava de fechar as torneiras do banheiro. — Você seria capaz de matar Alex — Aleksei? — Tanto quanto ele seria capaz de me matar — com profundo sentimento — se o valor da informação merecesse isso. Somos profissionais. Compreendemos isso, quase sempre com relutância. — Não entendo vocês dois. — Nem tente, Sr. Bourne, o senhor ainda não chegou lá — está perto, mas ainda não chegou. — Quer explicar isso? — Você está no topo, Jason — posso chamá-lo de Jason? — Por favor. — Está com cinqüenta anos, ou quase, certo? — Certo. Completo 51 dentro de alguns meses. E daí? — Aleksei e eu já chegamos aos sessenta — tem idéia do salto que isso representa? — Não, não tenho. — Vou lhe dizer. Você pode se imaginar ainda como um homem mais jovem, um pósadolescente capaz de fazer as coisas que fazia há apenas alguns momentos, e de certo modo está certo. O controle motor está presente, a vontade também, você ainda é o dono do seu corpo. Então, de repente, por mais intensa que seja ainda a força da vontade e do corpo, a mente começa, aos poucos, insidiosamente a rejeitar a necessidade de uma decisão imediata — tanto intelectual quanto fisicamente. Simplificando, não nos importamos tanto. Devemos ser condenados ou elogiados por conseguir sobreviver? — Acho que acaba de dizer que não seria capaz de matar Alex. — Não conte com isso, Jason Bourne — ou David, ou seja lá quem for. Conklin entrou na sala, claudicando acentuadamente, com expressão de dor. — Vamos — disse ele.
— Você colocou o pé errado outra vez? — perguntou Jason. — Quer que eu... — Esqueça — disse Alex, irritado. — Só um contorcionista consegue pôr essa droga direito. Bourne compreendeu e nem pensou mais em ajustar a prótese do amigo. Krupkin olhou outra vez para Alex com aquele misto de tristeza e curiosidade, depois disse rapidamente: — O carro está um pouco distante, na Sverdlov, onde não desperta tanta atenção. Vou mandar trazê-lo para a frente do hotel. — Obrigado — disse Conklin. O rico apartamento na movimentada Sadovaya ficava num dos muitos prédios antigos que, como o Metrópole, refletiam os excessos arquitetônicos do império russo. Os apartamentos eram usados — e “grampeados” — por dignitários convidados e as camareiras, porteiros e recepcionistas eram freqüentemente interrogados pelo KGB, quando não trabalhavam diretamente para o Komitet. As paredes eram forradas de tecido vermelho aveludado, os móveis pesados lembravam o antigo regime. Entretanto, à direita da imensa e muito adornada lareira da sala, destacava-se um pesadelo de qualquer decorador, um console com uma televisão enorme e tape decks compatíveis com os vários tamanhos de cassetes. A segunda contradição, sem dúvida uma afronta à memória dos elegantes Romanov, era um homem enorme com um uniforme amarrotado, a túnica aberta no pescoço e manchada com vestígios de refeições recentes. O rosto era cheio e vulgar, o cabelo grisalho muito curto e a falha no maxilar superior, ladeada por dentes amarelados indicava que o homem não gostava de dentista. Os olhos, sempre entrecerrados e penetrantes, traíam a inteligência astuta do camponês. Era o comissário número um de Krupkin. — Meu inglês não bom — disse o homem, cumprimentando os visitantes com um movimento da cabeça —, mas dá para entender. Também para vocês eu não tenho nome, nem posição oficial. Podem me chamar de coronel, está bem? É abaixo do meu posto, mas todos os americanos pensam que no Komitet só tem coronéis, da? Ok? — Eu falo russo — disse Alex. — Se for mais fácil para você, eu traduzo para meu companheiro. — Ha! — rugiu o coronel com uma risada. — Assim Krupkin não pode enganá-lo, certo? — Certo, ele não pode me enganar. — Isso é bom. Ele fala muito depressa, da? Mesmo em russo, suas palavras parecem balas perdidas. — Em francês também, coronel. — Por falar nisso — disse Dimitri — podemos ir direto ao assunto, camarada? Nosso companheiro na Dzerzhinsky disse que devíamos vir imediatamente.
— Da! Imediatamente. — O homem do KGB foi até o console enorme de ébano, apanhou um controle remoto e voltou-se para os outros. — Vou falar inglês — é bom para praticar... Venham. Olhem. Está tudo na fita. Todo material colhido por homens e mulheres escolhidos por Krupkin para seguir nossos homens que falam francês. — Pessoas que não podem ter nenhuma ligação com o Chacal — esclareceu Krupkin. — Olhem! — insistiu o coronel camponês, apertando um botão no controle remoto. A tela se iluminou, com imagens tremidas e imprecisas, muitas tiradas com câmaras manuais, de dentro de carros. Mostravam certos homens andando nas ruas de Moscou ou entrando em carros oficiais, dirigindo ou levados por motoristas por toda a cidade, às vezes para fora da cidade, por estradas secundárias. Em todos os casos, os indivíduos vigiados encontravam-se com outros homens e mulheres, cujos rostos apareciam ampliados por lentes zoom. Algumas imagens mostravam interiores de prédios com luz insuficiente e as câmaras desajeitadamente posicionadas. — Aquela é prostituta cara! — disse o coronel, rindo, quando a tela mostrou um homem de quase setenta anos acompanhando uma mulher muito mais moça no elevador. — É o Hotel Solnechy, na Varshavkoye. Eu verifico pessoalmente os passes do coronel e encontro um aliado fiel, da? O teipe muito mal filmado continuou e Krupkin e os dois americanos começaram a ficar cansados daquelas cenas repetitivas e aparentemente sem sentido. Então, de repente apareceu uma catedral enorme na tela, muitos transeuntes na calçada, a luz indicando o começo da noite. — Catedral São Basílio, na Praça Vermelha — disse Krupkin. — É um museu muito bom, agora, mas uma vez ou outra algum fanático — geralmente estrangeiro — celebra uma pequena cerimônia. Ninguém interfere, porque é exatamente o que o fanático quer provocar. A tela ficou pouco nítida outra vez, o foco trêmulo dançou de um lado para o outro. A extensão da câmara estava dentro da igreja e o operador foi empurrado pelos transeuntes. Então, a imagem se firmou, com a câmara talvez apoiada numa coluna. Viram um homem idoso, seu cabelo branco contrastando com a capa de chuva preta. Caminhava pela passagem lateral olhando pensativamente para os vários ícones e para os vitrais majestosos, mais acima. — Rodchenko — disse o coronel-camponês com sua voz gutural. — O grande Rodchenko. O homem na tela dirigiu-se ao que parecia ser um canto de pedra da catedral onde velas grandes sobre pedestais desenhavam sombras trêmulas nas paredes. A câmara de vídeo moveu-se bruscamente para cima, como se o agente que a operava tivesse subido às pressas numa banqueta ou em outra coisa qualquer. A imagem então ficou mais detalhada, as figuras ampliadas pelas lentes zoom. O homem de cabelos brancos aproximou-se de outro homem, um padre de batina — calvo, magro, moreno. — É ele! — exclamou Bourne. — É Carlos! Um terceiro homem apareceu na tela, ao lado dos outros dois e Conklin gritou. — Jesus! — Todos estavam com os olhos pregados na tela. — Pare aí! — O comissário
imediatamente obedeceu e a imagem parou, trêmula mas constante. — O outro! Você o reconhece, David? — Eu o conheço, mas não conheço — respondeu Bourne em voz baixa, voltando às imagens, do passado em sua mente. Via explosões, luzes brancas cegantes com vultos mal definidos correndo na selva... e então um homem, um oriental atingido por vários tiros, gritando, enquanto era praticamente pregado no tronco de uma árvore por uma arma automática. A névoa confusa cresceu, depois se dissolveu, transformando-se numa sala pequena, aparentemente de quartel com soldados sentados a uma mesa longa, uma cadeira à direita, um homem sentado nela, nervoso e inquieto. Então, de repente Jason reconheceu o homem na cadeira — era ele mesmo! Um Jason jovem, muito mais jovem, e havia outro homem de uniforme, andando de um lado para o outro como um animal enjaulado na frente da cadeira, censurando selvagemente o homem que chamavam de Delta Um. Com uma exclamação abafada e os olhos na televisão, Bourne compreendeu que estava vendo aquele homem furioso que andava de um lado para o outro, mais velho agora. — Um tribunal num acampamento ao norte de Saigon — murmurou ele. — É Ogilvie — disse Conklin com voz distante e vazia. — Bryce Ogilvie... Meu Deus, eles se uniram. A Medusa encontrou o Chacal!
Capítulo36 — FOI UM JULGAMENTO, não foi, Alex? — perguntou Bourne, atônito, as palavras hesitantes e soltas no ar. — Um tribunal militar. — Sim, foi — concordou Conklin. — Mas não era você quem estava sendo julgado, você não era o acusado. — Não? — Não. Você era o acusador, uma coisa muito rara no seu grupe, em combate ou fora dele. Muitos homens do exército tentaram impedi-lo, mas não conseguiram... Falamos disso mais tarde. — Quero falar agora — disse Jason, com voz firme. — Esse homem está com o Chacal, bem aí na frente dos nossos olhos. Quero saber quem é e o que é e por que está aqui em Moscou — com o Chacal. — Mais tarde... — Agora. Seu amigo Krupkin está nos ajudando, o que significa que está ajudando Marie e eu sou grato por essa ajuda. O coronel aqui também está do nosso lado, do contrário não estaríamos vendo isso na televisão. Quero saber o que aconteceu entre nós dois, entre mim e esse homem, e que vão para o inferno todas as medidas de segurança de Langley. Quanto mais eu souber sobre ele — agora — mais saberei o que devo perguntar e esperar. — Bourne voltou-se para os soviéticos. — Para sua informação, há um período na minha vida do qual não me lembro completamente, e isso é tudo .que precisam saber. Continue, Alex. — Eu tenho dificuldade para lembrar o que fiz ontem à noite — disse o coronel. — Diga o que ele quer saber, Aleksei. Não pode ter nada a ver com nossos interesses. O Capítulo Saigon está encerrado, bem como Kabul. — Tudo bem. — Conklin sentou-se, massageando a perna direita. Depois, tentou falar desapaixonadamente, sem muito sucesso. — Em dezembro de 1970, um dos nossos homens foi morto durante uma patrulha de procurar-edestruir. A morte foi dada como acidente de “fogo amigo”, mas você sabia que não era verdade, Você sabia que ele estava marcado por alguns artistas de merda da base ao sul do seu quartel-general. Eles resolveram matá-lo. Ele era cambojano e nada tinha de santo, mas conhecia todas as rotas de contrabando, por isso era seu guia. — Só imagens — interrompeu Bourne. — Tudo que tenho são fragmentos. Eu vejo, mas não consigo me lembrar.
— Os fatos não são importantes agora, estão enterrados com milhares de outros casos questionáveis. Aparentemente um grande negócio de narcóticos saiu errado no Triângulo e puseram a culpa no seu guia. Alguns mandachuvas em Saigon acharam que deviam dar uma lição àqueles nativos. Voaram até seu território, esconderam-se na relva e o apanharam, para que pensassem que se tratava de uma unidade avançada do inimigo. Mas você os viu do alto de uma elevação do terreno e estragou todo o plano. Seguiu-os até o helicóptero e ofereceu a eles uma escolha. Entrar no aparelho e você o estouraria, não sobrando ninguém, ou seguirem com você até sua base. Eles voltaram sob as armas dos seus homens e você obrigou o Comando de Campo a aceitar suas acusações de assassinatos múltiplos. Foi quando apareceu Ogilvie Frio-como-Gelo para defender seus garotos de Saigon. — Então aconteceu alguma coisa, certo? Uma coisa maluca — tudo ficou confuso, deturpado. — Isso mesmo. Bryce pôs você no banco das testemunhas e fez com que parecesse um maníaco, um mentiroso patológico e assassino que, a não ser pela guerra e por sua prática de combate, estaria numa prisão de segurança máxima.Só não o chamou de santo e exigiu que você revelasse seu nome verdadeiro — o que você não quis fazer, não podia fazer porque, se revelasse, sua primeira mulher, cambojana, e seus filhos, seriam massacrados. Ele tentou confundi-lo com armadilhas verbais e como não conseguiu, ameaçou-o de corte marcial, que ia expor todo o maldito batalhão, o que também não podia ser permitido... Os assassinos de Ogilvie foram libertados por falta de testemunho confiável e depois do julgamento você teve de ser retido na base até Ogilvie tomar o helicóptero de volta para Saigon. — O nome dele era Kwan Soo — disse Bourne, como em sonho, balançando a cabeça, procurando afastar o pesadelo. — Era um garoto, 16 ou 17 anos, que mandava o dinheiro das drogas para três aldeias para que o povo não morresse de fome. Não tinham outro meio... oh, merda! O que nós teríamos feito se as nossas famílias estivessem morrendo à míngua? — Você não podia dizer nada disso no julgamento, portanto ficou calado, sujeitando-se às invectivas baixas de Ogilvie. Eu assisti ao julgamento e nunca vi um homem com tanto controle sobre o ódio que sentia. — Não é assim que eu lembro — a parte que consigo lembrar. Alguma coisa está voltando, não muita. — Durante aquele julgamento você se adaptou às necessidades do ambiente — podemos dizer, como um Camaleão. Os olhos dos dois se encontraram e Bourne voltou logo os seus para a televisão. — E aí está ele com Carlos. É um mundo pequeno e podre, não é? Ele sabe que eu sou Jason Bourne? — Como vai saber? — disse Conklin, levantando-se. — Não existia nenhum Jason Bourne naquele tempo. Não existia nem mesmo um David, só um guerrilheiro que eles chamavam de Delta Um. Nenhum nome era usado, lembra-se? — Sempre me esqueço, o que mais pode me contar? — Jason apontou para a tela. — Por que ele
está em Moscou? Por que você disse que a Medusa encontrou o Chacal? Por quê? — Porque ele é a firma de advocacia de Nova York. — O quê? — Bourne virou a cabeça bruscamente para Conklin. — Ele é a... — O presidente da firma — completou Alex, interrompendo. — A Agência fechou o cerco e ele fugiu. Há dois dias. — Por que diabo você não me contou? — exclamou Jason furioso. — Porque nem por um momento imaginei que estaríamos aqui sentados olhando para aquela imagem na tela. Eu ainda não compreendo, mas não posso negar o que vejo. Além disso, não vi nenhum motivo para citar um nome que você podia lembrar ou não, uma ocorrência muito traumática, que você podia lembrar ou não. Por que acrescentar complicações desnecessárias? Já temos tensão mais do que suficiente. — Tudo bem, Aleksei — disse Krupkin agitado, dando um passo à frente. — Ouvi palavras e nomes que trouxeram certas lembranças desagradáveis, e acho que tenho o direito de fazer algumas perguntas — especialmente uma. Quem é exatamente esse Ogilvie que os interessa tanto? Você nos disse que ele estava em Saigon, mas quem é ele agora? — Por que não? — Conklin perguntou a si mesmo em voz baixa. — É um advogado de Nova York, chefe de uma organização que opera em toda Europa e no Mediterrâneo. No começo, apertando os botões certos em Washington, eles compraram companhias por meio de extorsão e controle financeiro, encurralaram mercados com preços determinados e, em troca, entraram no jogo do assassinato, empregando alguns dos melhores profissionais do ramo. Existem provas reais de que contrataram os assassinatos de vários funcionários do governo e de militares, sendo o exemplo mais recente — do qual você sem dúvida ouviu falar — o do general Teagarten, comandante supremo da OTAN — Incrível! — murmurou Krupkin. — Jeez-Chrize! — disse o coronel-camponês, arregalando os olhos. — Oh, eles são muito criativos, e Ogilvie o mais inventivo de todos. É a Superaranha e estendeu uma teia que vai de Washington a todas as capitais da Europa. Infelizmente para ele, e graças ao meu amigo aqui, foi apanhado como uma mosca na própria teia. O pessoal de Washington que ele não podia jamais corromper estava pronto para o bote, mas alguém o avisou e ele fugiu anteontem... Não tenho a mínima idéia por que ele veio para Moscou. — Talvez eu possa responder a isso — disse Krupkin, olhando rapidamente para o coronel do KGB e fazendo um gesto afirmativo, como quem diz, “Está tudo bem”. — Não sei nada — absolutamente nada — desse assassinato ao qual se referiu — de nenhum assassinato, para ser franco. Entretanto, você podia estar descrevendo uma empresa americana na Europa que há anos vem servindo aos nossos interesses.
— De que modo? — perguntou Alex. — Fornecendo todo o tipo de tecnologia americana cuja exportação seu governo proíbe, bem como armamentos, munição, peças para aviões e sistemas de armas — até os próprios aviões e sistemas, em várias ocasiões, através dos países do bloco. Estou certo de que vocês sabem que negarei veementemente ter dito qualquer coisa a respeito. — Certo — disse Conklin, com um gesto afirmativo. — Qual é o nome dessa empresa? — Não tem um nome só. São cinqüenta ou sessenta companhias aparentemente sob o mesmo guarda-chuva mas com tantos títulos e origens diferentes que é impossível determinar o tipo de relacionamento entre elas. — Tem um nome e Ogilvie a dirige — disse Alex. — Pensei nisso — disse Krupkin, com um olhar gelado e a expressão de um fanático implacável. — Entretanto, o que parece tão perturbador para vocês sobre seu advogado americano, podem estar certos de que é muito, mas muito menos importante do que aquilo que nos preocupa. — Dimitri olhou furioso para a televisão e para a imagem parada e trêmula. — O homem do serviço secreto daquela tela é o general Rodchenko, segundo em comando do KGB e conselheiro do premiê da União Soviética. Muitas coisas podem Ser feitas em nome dos interesses russos e sem o conhecimento do premiê, mas nos nossos dias, em nossa era, não nas áreas que você descreveu. Meu Deus, o comandante supremo da OTAN! E nunca — nunca — usando os serviços de Carlos, o Chacal! Seriam para nós catástrofes perigosas e assustadoras. — Tem alguma sugestão? — perguntou Conklin. — Uma pergunta tola — respondeu o coronel, zangado — Prender, depois a Lubyanka... depois silêncio... — Há um problema com essa solução — disse Alex. — A CIA sabe que Ogilvie está em Moscou. — E qual é o problema? Nós livramos as duas agências de uma pessoa perniciosa e dos seus crimes e continuamos com nossos negócios. — Pode parecer estranho para você, mas o problema não se limita à pessoa perniciosa e aos seus crimes, mesmo no que se refere à União Soviética. O problema está no segredo — no que se refere a Washington. Ó oficial do Komitet olhou para Krupkin e disse, em russo: — Do que esse homem está falando? — É difícil para nós entender isso — respondeu Dimitri também em russo. — Porém, para eles é
um problema. Vou tentar explicar. — O que ele está dizendo? — perguntou Bourne, irritado. — Acho que vai nos dar uma aula de educação cívica, à moda americana. — Essas lições geralmente caem em ouvidos surdos em Washington — disse Krupkin em inglês, passando outra vez para o russo e dirigindo-se ao seu superior no KGB. — Você compreende, camarada, ninguém na América nos culparia por tirar vantagem das atividades criminais desse tal Ogilvie. Eles têm um provérbio tão repetido que cobre um oceano de culpa. “A cavalo dado não se olham os dentes...” — O que os dentes do cavalo têm a ver com presentes? Do seu traseiro sai só estéreo para a fazenda, da sua boca, só saliva. — Perde um pouco na tradução... Vamos continuar. Esse advogado, Ogilvie, aparentemente tinha ótimas conexões no governo, funcionários que ignoravam seus métodos questionáveis em troca de grandes somas de dinheiro, métodos que envolviam milhões e milhões de dólares. Leis foram burladas, homens assassinados, mentiras aceitas como verdades, em suma, a corrupção foi considerável e, como nós sabemos, os americanos são obcecados com a idéia de corrupção. Chegam a chamar qualquer acomodação progressiva de potencialmente “corrupta” e os povos mais antigos e mais sábios nada podem fazer contra isso. Eles lavam sua roupa suja na frente do mundo todo como um símbolo de honra. — Porque é — disse Alex, em inglês. — Isso é uma coisa que muita gente aqui não poderia compreender, porque vocês encobrem todas suas acomodações, todos seus crimes, todas as bocas que fazem calar com uma cesta de rosas... Entretanto, considerando uma coisa e outra e as comparações detestáveis, eu dispenso a palestra. Estou dizendo apenas que Ogilvie tem de ser mandado para os Estados Unidos e as contas ajustadas. Essa é a “acomodação progressiva” que vocês têm de fazer. — Tenho certeza de que vamos pensar no assunto. — Não é o bastante — disse Conklin. — Vejamos a coisa do seguinte modo. Muita coisa é conhecida — ou será, em questão de dias — sobre o empreendimento de Ogilvie, incluindo a conexão com a morte de Teagarten, portanto não podem mantê-lo aqui. Não só Washington, mas toda a comunidade européia cairia em cima de vocês. Se quer falar em embaraço, este é uma beleza, para não falar nos efeitos sobre o comércio, ou sobre suas importações c exportações... — Você me convenceu, Aleksei — interrompeu Krupkin. — Supondo que sejam possíveis as acomodações, podemos ter a garantia de que ficará claro e evidente que Moscou cooperou para entregar esse criminoso à justiça americana? — É claro que não podíamos fazer isso sem você. Como agente temporário de campo, posso jurar isso perante os comitês da Inteligência e do Congresso, se for preciso. — E que não tivemos nada — absolutamente nada a ver com os assassinatos que mencionou, especialmente o assassinato do comandante supremo da OTAN?
— Perfeitamente claro. Foi um dos motivos principais da sua cooperação. Seu governo ficou horrorizado com esse crime. Krupkin olhou fixamente para Alex. Voltou-se para a televisão e outra vez para Conklin. — O general Rodchenko — disse com voz firme. — O que vamos fazer com o general Rodchenko? — O que vocês fazem com o general Rodchenko é negócio seu — respondeu Alex, em voz baixa. — Nem eu, nem Bourne, jamais ouvimos esse nome. — Da — disse Krupkin, balançando a cabeça afirmativamente. — E o que vocês vão fazer com o Chacal em território soviético é assunto seu, Aleksei. Entretanto, pode ficar certo de que vamos cooperar ao máximo. — Como começamos? — perguntou Jason, impaciente. — Primeiro o que vem primeiro. — Dimitri olhou para o comissário do KGB. — Camarada, compreendeu o que dissemos? — O suficiente, Krupkin — respondeu o coronel-camponês peso-pesado, dirigindo-se para um telefone sobre a mesa de mármore encostada na parede. Discou e foi atendido imediatamente. — Sou eu — disse o comissário, em russo. — O terceiro homem, no teipe sete, com Rodchenko e o padre, o que Nova York identificou como um americano chamado Ogilvie. A partir deste momento ele deve ser vigiado e não pode deixar Moscou. — O coronel de repente ergueu as sobrancelhas espessas e seu rosto ficou rubro. — Essa ordem está revogada. Ele não é mais responsabilidade do Departamento de Relações Diplomáticas, agora é propriedade unicamente do KGB... Uma razão? Use a cuca, cabeça-debagre! Diga a eles que estamos convencidos de que o americano é um agente duplo, que aqueles tolos não descobriram. Depois, o lixo de sempre. Acobertando inimigos do Estado por negligência, suas altas posições mais uma vez. protegidas pelo Komitet — esse tipo de coisa. Pode mencionar também que não devem examinar a boca do cavalo dado... Eu também não entendo, camarada, mas estas borboletas aqui, com seus ternos elegantes, provavelmente vão entender. Alertem os aeroportos. — O comissário desligou. — Ele conseguiu — Conklin disse para Bourne. — Ogilvie fica em Moscou. — Não dou a mínima para Ogilvie — explodiu Jason, com a voz e os músculos do rosto tensos. — Estou aqui por causa de Carlos! — O padre? — perguntou o coronel, afastando-se da mesa do telefone. — Exatamente. — É simples. Vamos dar ao general Rodchenko uma corda muito longa que ele não pode sentir, nem ver. Você fica na outra ponta. Ele vai se encontrar com o padre Chacal outra vez. — É tudo que eu peço — disse Jason.
O general Grigorie Rodchenko estava na mesa ao lado da janela, no restaurante Lastochka, ao lado da ponte Krymsky, nó rio Moscou. Era seu lugar favorito para um jantar tarde da noite. As luzes da ponte e os barcos no rio eram um espetáculo repousante para os olhos e para o metabolismo. Ele precisava dessa atmosfera calmante, pois os dois últimos dias haviam sido extremamente tensos. Estaria certo ou errado? Seus instintos o tinham levado ao alvo, ou estava muito longe dele? Não podia saber naquele momento, mas esses mesmos instintos o haviam ajudado a sobreviver ao louco Stalin, quando era jovem, ao irrequieto Khrushchev, na meia-idade, e ao inepto Brezhnev, alguns anos mais tarde. Agora havia ainda a nova Rússia, sob Gorbachev, uma Nova União Soviética, na verdade, e sua idade avançada a recebia de braços abertos. Talvez as coisas fiquem menos tensas e inimizades de longa data desapareçam no horizonte antes hostil. Porém, horizontes hostis nunca mudavam realmente, eram sempre horizontes, distantes, planos, incendiados de cor ou escuros, mas sempre distantes, planos e inacessíveis. Ele era um sobrevivente, Rodchenko compreendia isso, e um sobrevivente protege-se em alguns pontos da bússola. Havia também se insinuado em todos os pontos possíveis dessa bússola. Além disso, trabalhara diligentemente para conquistar a confiança do presidente. Era especialista em conseguir informações para o Komitet. Era o principal elo de ligação com a empresa americana, conhecida somente por ele, em Moscou, pelo nome de Medusa, por meio da qual negócios extraordinários haviam sido realizados em toda a Rússia e nas nações do bloco. Por outro lado, era também o elo de ligação com o monsenhor em Paris, Carlos, o Chacal, a quem havia convencido ou comprado para desistir de contratos que podiam apontar diretamente para a União Soviética. Eie era o burocrata perfeito, trabalhando nos bastidores do palco internacional, sem procurar aplauso nem fama, apenas sobrevivência. Então, por que tinha feito aquilo? Seria mera impetuosidade, nascida do cansaço e do medo e da sensação de uma-praga-nas-nossas-duas-casas? Não, era uma extensão lógica dos acontecimentos, consistente com as necessidades do seu país e, acima de tudo, com a absoluta necessidade de que Moscou se dissociasse tanto da Medusa, quanto do Chacal. Segundo o cônsul-geral em Nova York, Bryce Ogilvie estava liquidado na América. A sugestão do cônsul era encontrar asilo para ele em algum lugar e, em troca, absorver gradualmente seus empreendimentos na Europa. O cônsul-geral em Nova York não estava preocupado com as manipulações financeiras de Ogilvie, que violavam mais leis do que o número de tribunais que existiam para julgá-las, mas com os assassinatos, os quais, até onde ele sabia, eram muitos e em vários lugares, incluindo o assassinato de altos funcionários do governo e, a não ser que estivesse muito enganado, o do comandante supremo da OTAN. Completando essa trama de horrores, havia a opinião de Nova York de que, para salvar do confisco muitas das suas companhias, Ogilvie teria ordenado outras mortes na Europa, especialmente dos poucos executivos poderosos das várias firmas que compunham as conexões internacionais com uma grande firma de advocacia e o nome secreto de Medusa. Se esses contratos fossem executados enquanto Ogilvie estava em Moscou, surgiriam dúvidas que Moscou não podia tolerar. De repente, refletiu Rodchenko, entrou nessa dança macabra o paranóico monsenhor de Paris. Era imperativo que se encontrassem imediatamente! Carlos praticamente gritou sua exigência na conversa em telefones públicos, como haviam combinado, mas deviam ser tomadas todas as precauções. O Chacal, como sempre, escolheu um lugar público, com muita gente e várias saídas, onde ele podia revoar como um gavião, só aparecendo depois de examinar tudo com seus olhos de
profissional. Dois telefonemas depois, de dois lugares diferentes, o encontro foi marcado. Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, no começo da noite de verão, quando era maior o movimento de turistas. Num canto escuro à direita do altar, com saídas para fora, pelos corredores que levavam à sacristia. Feito! Então, durante o terceiro telefonema, Rodchenko teve uma idéia, que o assaltou como o trovão sobre o Mar Negro. Uma idéia tão espetacularmente ousada e ao mesmo tempo tão óbvia e simples que o general ficou sem fôlego por um momento. Era a solução que distanciava completamente o governo soviético de qualquer envolvimento ou cumplicidade com o Chacal e com a Medusa de Ogilvie, se fosse necessário provar isso aos olhos do mundo. O plano de Rodchenko consistia em, sem que nenhum dos dois soubesse, provocar um encontro entre o Chacal e Ogilvie, nem que fosse por um instante, o suficiente para conseguir uma fotografia dos dois juntos. Era tudo que ele precisava. No dia anterior, Rodchenko fora ao Departamento de Relações Diplomáticas, depois de pedir uma entrevista de rotina com Ogilvie. Durante a conversa muito amistosa e sem maiores conseqüências, Rodchenko esperou sua deixa — a deixa que havia preparado com precisão, depois de um trabalho de pesquisa. — Você passa os verões em Cape Cod, da? — disse o general. — Eu, só os fins de semana. Minha mulher e meus filhos passam toda a temporada. — Quando eu estava em Washington, eu tinha dois amigos americanos em Cape Cod. Passei muitos fins de semana agradáveis com eles. Talvez você os conheça, os Frost — Hardeleigh e Carol Frost? — É claro que conheço. Ele também é advogado, especializado em lei marítima. Moram na estrada da praia em Dennis. — Uma mulher muito atraente, a Sra. Frost. — Muito. — Da. Alguma vez tentou recrutar o marido dela para a sua firma? — Não. Ele tem uma firma. Frost, Goldfarb e O’Shau-nessy, cobrem, por assim dizer, a costa de Massachusetts. — É como se eu o conhecesse, Sr. Ogilvie, através de amigos comuns. — É uma pena que nunca tenhamos nos encontrado no Cape. — Bem, talvez eu possa me aproveitar desse quase encontro — através de amigos comuns — e lhe pedir um favor, muito menor do que as conveniências que o meu governo está disposto a lhe conceder.
— Ao que eu entendi, a conveniência é mútua — disse Ogilvie. — Ah, não entendo desses assuntos diplomáticos, mas talvez eu possa intervir a seu favor se cooperar conosco — com meu pequeno, mas não insignificante departamento. — Do que se trata? — Há um padre, um padre militante na área de assistência social, que afirma ser um agitador marxista muito conhecido nos tribunais da cidade de Nova York. Ele chegou há algumas horas e exige um encontro clandestino imediatamente. Não temos tempo para verificar a verdade do que ele afirma, mas como ele insiste em dizer que tem uma longa história de “processos” legais nos tribunais de Nova York, bem como várias fotografias nos jornais, talvez o senhor possa reconhecê-lo. — Eu provavelmente o reconheceria se ele está dizendo a verdade. — Da! De um modo ou de outro, nosso governo será informado da sua cooperação. Tudo foi então combinado. Ogilvie devia estar na Catedral de São Basílio, perto do lugar marcado. Quando Rodchenko se encontrasse com um padre, no canto à direita do altar, devia aproximar-se do general, fingindo surpresa. Deviam se cumprimentar brevemente, quase secamente, sem nenhuma demonstração de intimidade, como conhecidos hostis que não podem evitar esses encontros em lugares públicos. Era preciso também que os dois homens ficassem muito próximos porque a luz fraca na catedral podia impedir que Ogilvie visse o rosto do padre. Ogilvie desempenhou o papel com a perfeição de um advogado habilidoso que, depois de armar uma cilada verbal para a testemunha da acusação, exclama, “Retiro a pergunta”, desarmando o promotor do caso. O Chacal imediatamente virou o rosto, furioso, mas não antes que uma mulher idosa e obesa, com uma câmara automática escondida na bolsa, tivesse tirado uma série de fotografias com filme ultraveloz. A prova estava agora no cofre do escritório de Rodchenko. A pasta que a continha intitulavase Vigilância do americano B. Ogilvie. Na página sob a fotografia que mostrava o assassino e o advogado americano juntos, estava escrito o seguinte. O indivíduo sob vigilância com um contato ainda não identificado, durante encontro secreto na Catedral de São Basílio. O encontro durou onze minutos e trinta e dois segundos. Fotografias enviadas a Paris para possível identificação. Acredita-se que o contato não identificado seja Carlos, o Chacal. Nem é preciso dizer que Paris estava preparando uma resposta que incluía várias composições fotográficas do Deuxième Bureau e da Sûreté. Resposta: Confirmado. Sem dúvida é o Chacal. Chocante! E em solo soviético! Por outro lado, o assassino não foi muito cooperativo. Depois do encontro breve e constrangedor com o americano, Carlos continuou seu frio interrogatório, mal disfarçando a fúria selvagem.
— Estão fechando o cerco à sua volta! — disse o Chacal. — Quem? — O Komitet. — Eu sou o Komitet. — Talvez esteja enganado. — Não acontece nada no KGB sem que eu saiba. Onde conseguiu a informação? — Paris. A fonte é Krupkin. — Krupkin é capaz de qualquer coisa para se promover, inclusive espalhar informações falsas, mesmo a meu respeito. Ele é um enigma — num momento um oficial do serviço secreto, eficiente e que fala muitas línguas, logo depois um palhaço fofoqueiro com plumagem francesa, mais tarde um cafetão para ministros visitantes. Não pode ser levado a sério, não quando se trata de assunto sério. — Espero que esteja certo. Falo com você amanhã, tarde da noite. Vai estar em casa? — Não por causa de um telefonema seu. Vou jantar sozinho no Lastochka, bem tarde. O que você vai fazer amanhã? — Certificar-me de que você está certo. — O Chacal desapareceu no meio da multidão, na catedral. Isso fora há mais de 24 horas e Rodchenko não teve nenhuma notícia que pudesse alterar o combinado. Talvez o psicopata tivesse voltado para Paris, convencido de que suas suspeitas paranóicas não tinham fundamento, sua necessidade de estar sempre em movimento, correndo, voando por toda a Europa, superando afinal o pânico momentâneo. Quem podia saber? Carlos também era um enigma. Era em parte um sádico retardado, profundo conhecedor dos mais terríveis métodos da crueldade e do assassinato, e em parte um romântico doentio, um adolescente mentalmente deformado à procura de uma ilusão que não queria nada com ele. Quem podia saber? Estava chegando a hora em que uma bala em sua cabeça seria a resposta. Rodchenko ergueu a mão para pedir café e brandy — o bom brandy francês, reservado para os verdadeiros heróis da Revolução, especialmente os sobreviventes. Mas não foi o garçom que atendeu. O gerente do Lastochka aproximou-se da mesa com o telefone na mão. — Um telefonema urgente para o senhor, general — disse o homem de terno preto e folgado, pondo o telefone sobre a mesa e estendendo para ele o fio com a tomada. — Obrigado. O gerente se afastou e Rodchenko ligou a tomada na parede. — Sim?
— Você está sendo vigiado por toda parte — disse a voz do Chacal. — Por quem? — Por sua própria gente. — Não acredito. — Estive observando o dia todo. Quer que eu descreva os lugares onde esteve nas últimas trinta horas? Começou com drinques num café no Kalinin, um quiosque no Arbat, o Sla-vuanky para almoço, uma caminhada à tarde pela Luznekaya. — Pare! Onde você está? — Saia do Lastochka, andando devagar, naturalmente. Vou provar o que estou dizendo. O Chacal desligou. Rodchenko fez sinal ao garçom pedindo a conta. A rapidez com que foi atendido devia-se menos ao status do general do que ao fato de ser o último freguês da noite. O velho soldado deixou o dinheiro sobre a conta, disse boa noite, atravessou o saguão pouco iluminado e saiu para a rua. Era quase l:30h da manhã e a não ser por alguns raros bêbados, a rua estava deserta. Um vulto alto surgiu à direita do general, sua silhueta desenhada pela lâmpada da rua. Era o Chacal, ainda com o terno negro e o colarinho branco de padre. Fez sinal ao general para acompanhá-lo e caminhou para um carro marromescuro parado no outro lado da rua. Rodchenko alcançou o assassino quando ele parou na calçada ao lado do veículo que estava de frente para o restaurante Lastochka. De repente, o Chacal acendeu uma lanterna de mão e dirigiu a luz forte para a janela do carro. O. velho soldado prendeu a respiração por um momento, ao ver a cena horrível. O agente do KGB estava sentado à direção, com a cabeça atirada para trás, o pescoço cortado e um rio de sangue inundando sua roupa. O outro agente estava com os pulsos e os pés amarrados com arame, com uma corda grossa servindo de mordaça, quase sufocado, tossindo asperamente. Estava vivo, com os olhos arregalados de terror. — O motorista foi treinado em Novgorod — disse o general, sem nenhum outro comentário. — Eu sei — respondeu Carlos. — Estou com os documentos dele. Esse treinamento não é mais o que era, camarada. — Este outro é um dos homens de Krupkin aqui em Moscou. Filho de um grande amigo, segundo me disseram. — Agora ele é meu. — O que você vai fazer? — perguntou Rodchenko, olhando para o Chacal. — Corrigir um erro — respondeu Carlos, erguendo a arma com silenciador e disparando três
tiros certeiros no pescoço do general.
Capítulo37 A NOITE ESTAVA ESCURA, o céu encoberto, as nuvens de tempestade giravam e colidiam sobre Moscou, prometendo chuva, trovões e relâmpagos. O carro marrom seguia velozmente pela estrada, passando por campos cultivados, o motorista segurando a direção com força, olhando uma vez ou outra para seu prisioneiro, o jovem que lutava para libertar as mãos e os pés atados com fios de arame, os olhos arregalados de medo e o rosto contraído de dor, sob a corda que torturava sua boca. No banco traseiro coberto de sangue, estavam os corpos do general Grigorie Rodchenko e do graduado de Novgorod do KGB, que dirigia a equipe de vigilância do velho soldado. De repente, sem diminuir a marcha, sem nenhuma indicação do que ia fazer, o Chacal viu o que procurava e saiu da estrada. Cantando pneus o carro entrou num campo de relva alta e parou bruscamente, atirando os dois corpos contra o encosto dos bancos dianteiros. Carlos abriu a porta e saltou do carro. Começou então a puxar os corpos do banco traseiro, arrastando-os para a relva. Deixou o general em cima do oficial do Komitet, seus fluidos vitais agora misturando-se, absorvidos pelo solo. Voltou para o carro e puxou brutalmente o jovem agente do KGB com uma das mãos, segurando a faca de caça na outra. — Nós dois temos muito que conversar — o Chacal disse, em russo. — E será tolice me esconder qualquer coisa... Você não vai fazer isso, é muito jovem, muito fraco. — Carlos atirou o homem no chão. A relva alta dobrou-se sob o peso. Com a lanterna na mão, ajoelhou ao lado do prisioneiro com a faca apontada para os olhos do jovem agente. As últimas palavras do homem ensangüentado e sem vida ecoavam como tambores nos ouvidos de Ilich Ramirez Sanchez. Jason Bourne estava em Moscou! Tinha de ser Bourne, pois o jovem agente do KGB, apavorado, dera a informação com frases entrecortadas, inacabadas, dizendo qualquer coisa e tudo que podia salvar sua vida. O camarada Krupkin — dois americanos, um alto, o outro com um defeito na perna! Nós os levamos ao hotel, depois à Sadovaya para uma reunião. Krupkin e o odiado Bourne haviam subornado sua gente em Paris — em Paris, sua fortaleza inexpugnável! — e o seguiram até Moscou. Como? Quem?... Não importava agora. O importante era que o Camaleão estava no Metrópole. Os traidores de Paris podiam esperar. No Metropole! Seu maior inimigo estava a uma hora de distância, sem desconfiar que Carlos, o Chacal, sabia da sua presença em Moscou. O assassino sentiu a euforia do triunfo — sobre a vida e sobre a morte. Os médicos diziam que ele estava morrendo, mas médicos muitas vezes se enganam e naquele momento, estavam errados! A morte de Jason Bourne renovaria sua vida. Porém, não podia ser agora. Três horas da manhã não eram o momento apropriado para procurar uma vítima nas ruas ou nos hotéis de Moscou, uma cidade envolta num manto permanente de suspeita e desconfiança, que aumentava com a chegada da noite. Todos sabiam que os recepcionistas dos hotéis de Moscou andavam armados e eram escolhidos mais por sua habilidade como atiradores do que por sua eficiência naquele trabalho. A luz do dia aliviava um pouco a tensão. A primeira parte da manhã, com
movimento intenso, era a hora ideal para o ataque — e o Chacal ia atacar. Mas aquele era o momento exato para outro tipo de ataque, ou pelo menos para o prelúdio da ação. Estava na hora de reunir seus discípulos do governo da União Soviética e informá-los da chegada do monsenhor, comunicar que seu messias estava ali para libertá-los. Antes de deixar Paris ele havia apanhado todas as pastas do arquivo com informações gerais e secretas. Os documentos, à primeira vista, pareciam apenas páginas em branco, mas quando expostos à luz infravermelha, transformavam-se em informações datilografadas. O Chacal havia escolhido uma pequena loja vazia, na Vavilova, para seu ponto de encontro. Usaria o telefone público para se comunicar com cada discípulo, informando a hora — 5:30h — e o lugar do encontro, recomendando que usassem ruas desertas. Às 6:30h a tarefa estaria terminada, cada discípulo armado com a informação que o elevaria aos mais altos escalões da elite de Moscou. Era outro exército invisível, muito menor que o de Paris, mas igualmente eficiente e dedicado a Carlos, o invisível monsenhor que fazia a vida dos seus seguidores infinitamente mais confortável. E às 7:30h, o poderoso Chacal estaria na sua posição, no Metrópole, pronto para os primeiros movimentos dos hóspedes, na hora em que os garçons passavam apressados com bandejas e mesas e o saguão animava-se com as conversas, a ansiedade e a burocracia. Ali no Metrópole, ele estaria preparado para Jason Bourne. Um a um, como viajantes perdidos e cautelosos, à primeira luz do dia, os cinco homens e três mulheres chegaram à loja abandonada na rua conhecida apenas como Vavilova. Tinham de ser cuidadosos porque aquele era um bairro perigoso, não necessariamente por causa dos habitantes, pois a polícia de Moscou patrulhava eficientemente a área, mas devido ao estado dos velhos prédios. A área estava em processo de renovação, como projetos semelhantes no mundo todo, mas o progresso tinha duas velocidades, lenta e parada. A eletricidade era á única constante no bairro e, na melhor das hipóteses, uma conveniência perigosa que Carlos sabia usar a seu favor. Carlos estava de pé, na extremidade da sala vazia, e uma lâmpada no chão, atrás dele, delineava sua silhueta, deixando o rosto no escuro, protegido também pela gola levantada do terno negro. À sua direita, numa mesa baixa de madeira, estavam as pastas com os papéis e à esquerda, sob uma pilha de jornais, fora da vista dos discípulos, uma arma de assalto AK-47, Tipo 56, cano serrado, carregada com um pente de balas. O outro estava no cinto do Chacal. Era uma norma da sua profissão. Carlos não esperava nenhum problema. Só adoração. Observou o grupo, percebendo que todos entreolhavam-se furtivamente. Ninguém falava. O ar úmido na loja abandonada e quase às escuras estava carregado de apreensão. Carlos compreendeu que precisava eliminar aquele medo, aquela atitude furtiva, o mais depressa possível, por isso havia apanhado oito cadeiras dos vários escritórios desertos nos fundos da loja. Sentados, eles ficariam menos tensos, era um truísmo. Entretanto, ninguém estava usando as cadeiras. — Muito obrigado por terem vindo esta manhã — disse o Chacal, em russo. — Por favor, sentem-se. Nossa conversa não vai ser longa, mas exige a maior concentração... O camarada perto da porta, quer fechá-la, por favor? Todos já estão aqui. O homem, um burocrata de andar rígido, fechou a porta pesada e os outros sentaram-se, afastando as cadeiras umas das outras. Quando terminou o barulho das cadeiras raspando o chão de cimento, o Chacal, como um orador experiente, ficou um momento calado na frente do grupo. Fixou
rapidamente em cada um os olhos negros e penetrantes, como se cada pessoa ali fosse especial para ele. As mulheres reagiram com leves movimentos, ajeitando e alisando as saias. Estavam vestidos de acordo com seus altos postos nos departamentos do governo — roupas muito usadas de estilo conservador, mas limpas e bem passadas. — Eu sou o monsenhor de Paris — começou o assassino vestido de padre. — Sou aquele que passou vários anos escolhendo cada um de vocês — com a ajuda de camaradas de Moscou e de outros lugares — e aquele que lhes enviou grandes quantias de dinheiro, pedindo apenas que aguardassem minha chegada em silêncio e retribuíssem a lealdade com que os tratei... Posso antecipar suas perguntas pela expressão dos seus rostos, por isso, vou ser mais explícito. Anos atrás eu fazia parte dos poucos membros de elite escolhidos para o treinamento em Novgorod. Houve uma reação discreta mas audível dos oito escolhidos. O mito de Novgorod era igual à realidade. Era um centro avançado de doutrinação para os camaradas mais bem-dotados — como diziam, porém, era difícil de entender, uma vez que quase ninguém falava em Novgorod, e sempre em voz muito baixa. Balançando várias vezes a cabeça num gesto afirmativo, Carlos demonstrou ter percebido o impacto das suas palavras, e então continuou: — Esses anos todos passei em vários países estrangeiros, promovendo os interesses da grande revolução soviética, um comissário secreto com um portfólio flexível, que exigiu muitas visitas a Moscou e pesquisa extensa nos departamentos onde cada um de vocês ocupa uma posição de responsabilidade. — Outra pausa e então o Chacal falou com voz áspera. — Posições de responsabilidade, mas sem a autoridade que deviam ter. Suas habilidades são subestimadas e mal pagas, pois acima de vocês existe muita madeira podre. A reação foi mais significativa dessa vez, muito menos controlada. — Comparados aos departamentos similares nos governos dos nossos adversários — continuou Carlos — nós, aqui em Moscou, paramos no tempo. Quando devíamos estar à frente de todos, estamos atrasados porque seus talentos foram abafados pelos funcionários que se preocupam mais com os privilégios das suas posições do que com o trabalho dos departamentos que chefiam. A resposta foi imediata, quase elétrica. As três mulheres aplaudiram abertamente. — Por esse motivo, por esses motivos, eu e meus camaradas aqui de Moscou os procuramos e escolhemos. Por isso eu lhes mandei dinheiro — para ser usado como bem entendessem — quantias que correspondem aproximadamente aos privilégios desfrutados por seus superiores. Por que vocês não devem receber o mesmo e desfrutar como eles desfrutam? O murmúrio de por que não e ele tem razão encheu a sala e todos agora se entreolhavam, balançando as cabeças afirmativamente. O Chacal começou então a nomear os departamentos em questão e a cada nome citado, todos faziam gestos afirmativos enfáticos. —: Os ministérios de Transportes, Informações, Finanças, Importação/Exportação, Procedimentos Legais, Suprimentos Militares, Pesquisa Científica... e por último, mas não o menos importante, Nomeações para o Presidium... Esses são os seus domínios, mas vocês foram excluídos de
todas as decisões finais... Não podemos mais aceitar isso — mudanças devem ser feitas! Os oito ouvintes ficaram de pé, não mais estranhos, mas pessoas unidas por uma causa. Então, um deles, o burocrata cauteloso que havia fechado a porta, perguntou: — Ao que parece, o senhor conhece nossa situação, mas o que pode mudá-la? — Isto aqui! — disse Carlos, apontando com um gesto dramático as pastas que estavam sobre a mesa baixa. O pequeno grupo sentou outra vez, aos pares ou isolados, entreolhando-se e olhando para as pastas. — Nesta mesa estão informações confidenciais e completas sobre cada superior dos oito departamentos citados. Contêm fatos tão sérios que, quando forem apresentados por cada um de vocês, pessoalmente, vão lhes garantir promoções imediatas e, em vários casos, posições de chefia no governo. Seus superiores não terão escolha, pois estes arquivos são adagas encostadas nos seus pescoços — a revelação dos mesmos significaria desgraça e morte. — Senhor? — Uma mulher de meia-idade com um vestido azul, simples, mas limpo e passado, levantou-se um tanto hesitante. O cabelo louro estava preso na nuca num coque ao qual ela levava a mão, uma vez ou outra, enquanto falava. — Eu faço a avaliação dos arquivos de informações pessoais diariamente... e muitas vezes descubro erros... como pode ter certeza de que essas informações são exatas? Pois, se não forem, estaremos nos colocando numa situação extremamente perigosa, não é verdade? — Considero uma afronta o fato da senhora duvidar da exatidão destas informações, madame — respondeu o Chacal, friamente. — Eu sou o monsenhor de Paris. Descrevi com exatidão a situação de cada um de vocês e demonstrei com exatidão a inferioridade dos seus superiores. Além disso, com grande despesa e grande risco para mim e para meus camaradas de Moscou, enviei dinheiro secretamente para que pudessem ter uma vida melhor. — Falando por mim — disse um homem magro, de óculos e com terno marrom —, eu agradeço pelo dinheiro. Investi o meu no nosso fundo coletivo e espero um lucro moderado — mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Trabalho para o Ministério das Finanças, é claro, e admitindo isso, estou me absolvendo da cumplicidade de ter declarado meu status. — Seja lá o que for que isso significa, contador, você está sendo tão claro quanto seu ministério paralisado — observou um homem obeso com um terno negro muito pequeno para seu corpo. — Além disso, me faz duvidar da sua capacidade para reconhecer um lucro decente! É claro que estou com o Suprimento Militar, e vocês estão sempre roubando de nós nas negociações. — Como vocês fazem sempre com a Pesquisa Científica — exclamou um homem com terno de sarja e ar professoral, a barba mal aparada, talvez devido à vista fraca, apesar das lentes grossas dos óculos. — Lucro de investimento, essa é boa! O que me diz das tributações? — Mais do que o suficiente para vocês, cientistas de curso primário! É melhor gastar o dinheiro
roubando do Ocidente! — Parem com isso! — exclamou o padre assassino, erguendo o braço como um messias. — Não estamos aqui para discutir conflitos entre departamentos, pois todos serão resolvidos com o nascimento da nossa nova elite. Lembrem-se! Eu sou o monsenhor de Paris e juntos criaremos uma ordem nova e limpa para ‘nossa grande revolução! Acabou a complacência! — Uma idéia sensacional, senhor — disse uma mulher de trinta e poucos anos, com uma saia elegantemente pregueada, sem dúvida reconhecida por todos os outros do grupo como uma popular apresentadora da televisão. — Entretanto, pode mos voltar ao assunto da exatidão das informações? — Está resolvido — disse Carlos, fixando os olhos escuros em um de cada vez. — De que modo eu podia saber tanto sobre vocês? — Não estou duvidando, senhor — continuou a mulher. — Mas, como jornalista, sempre procuro uma segunda fonte de informações, a não ser que o ministério determine o contrário. Uma vez que o senhor não trabalha para o Ministério de Informações, senhor, e sabendo que tudo que diz é confidencial e deve continuar assim, pode nos indicar uma segunda fonte? — Por acaso tenho de ser interrogado por jornalistas manipulados quando estou dizendo a verdade? — O assassino conteve a respiração por um segundo, furioso. — Tudo que eu disse é verdade, e vocês sabem disso. — Os crimes de Stalin também eram, senhor, e ficaram enterrados com vinte milhões de cadáveres durante trinta anos. — Você quer provas, jornalista? Pois eu lhe dou a prova. São meus os olhos e os ouvidos dos líderes do KGB — especialmente do grande general Grigori Rodchenko. Ele é meus olhos e meus ouvidos e se quiser saber outra verdade, ele é fiel a mim! Pois eu sou também seu monsenhor de Paris. Todos se mexeram inquietos, hesitantes, pigarreando em uníssono. A apresentadora da televisão disse, com voz mais suave e os grandes olhos castanhos pregados no homem vestido de padre: — Pode ser o que diz que é, senhor — mas na certa não escuta a estação da Rádio Moscou que funciona a noite toda. Há uma hora anunciaram que o general Rodchenko foi morto a tiros, esta madrugada, por criminosos estrangeiros... Noticiaram também que todos os altos funcionários do Komitet foram convocados para uma reunião de emergência para avaliar as condições da morte do general. Todos acham que devia haver um motivo muito forte para que o general fosse atraído para a armadilha dos criminosos estrangeiros. — Vão vasculhar os arquivos dele — acrescentou o burocrata cauteloso, levantando-se com movimentos rígidos. — Vão colocar tudo sob os microscópios do KGB, à procura desses “motivos extraordinários”. — O circunspecto funcionário público olhou para o assassino vestido de padre. — Talvez eles o encontrem, senhor. E a seus arquivos.
— Não — disse o Chacal, com o suor brotando na testa. — Não! Isso é impossível! Eu tenho as únicas cópias daqueles arquivos — não existem outras! — Se acredita nisso, padre — disse o homem obeso do Ministério de Suprimento Militar — não conhece o Komitet. — Conhecer? — exclamou Carlos, com um tremor na mão esquerda. — Eu tenho a alma do Komitet! Eles não têm segredos para mim, pois eu sou o repositório de todos os segredos! Tenho volumes sobre os governos de todas as partes do mundo, sobre seus líderes, seus generais, seus mais altos funcionários — tenho fontes de informação no mundo todo! — Não tem mais Rodchenko — continuou o homem obeso, levantando-se também. — E pensando bem, não me pareceu nem um pouco surpreso com a notícia. — O quê? — A maior parte de nós, talvez todos, assim que acordamos de manhã, a primeira coisa que fazemos é ligar o rádio. Ouvimos sempre as mesmas bobagens e acho que há um certo conforto nisso, mas tenho certeza de que todos aqui sabiam da morte de Rodchenko... Mas você não sabia, padre, e quando nossa jornalista da televisão lhe contou, não ficou atônito, nem mesmo chocado — como eu disse, não demonstrou a menor surpresa. — É claro que fiquei surpreso! — gritou o Chacal. — O que vocês não compreendem é que tenho um controle extraordinário. Por isso confiam em mim, por isso os líderes do marxismo do mundo todo precisam de mim. — Isso nem está mais na moda — murmurou a mulher loura de meia-idade, especializada em arquivos de informações pessoais. Ela também se levantou. — O que estão dizendo? — A voz de Carlos era agora um murmúrio áspero e acusador, que aumentava rapidamente em intensidade e volume. — Eu sou o monsenhor de Paris. Proporcionei um conforto às suas vidas, muito além das suas miseráveis expectativas e agora vocês duvidam de mim? Como eu poderia saber o que sei — como podia ter aplicado minha concentração e meus recursos em vocês todos, se eu não estivesse entre os mais privilegiados de Moscou? Lembrem-se de quem eu soul — Mas não sabemos quem você é — disse outro homem, levantando-se. Como os outros, vestia roupas limpas, discretas e bem passadas, mas havia uma diferença, eram bem-feitas, como se ele dedicasse um cuidado especial à própria aparência. O rosto também era diferente, mais pálido e com olhos mais intensos, dando a impressão. de que pesava cuidadosamente cada palavra. — Além do título religioso que se atribui, não sabemos nada sobre sua identidade e você evidentemente não pretende revelar. Quanto ao que você sabe, descreveu fraquezas evidentes e as injustiças resultantes, nos sistemas dos nossos departamentos, mas são fraquezas e injustiças comuns a todos os ministérios. Podia ter escolhido dezenas de outros em outros departamentos, e garanto que as reclamações seriam as mesmas. Nada de novo nisso... — Como se atrevei — berrou Carlos, o Chacal, com as veias do pescoço saltadas. — Quem é
você para dizer essas coisas? Eu sou o monsenhor de Paris, um verdadeiro filho da Revolução! — E eu sou advogado e juiz no Ministério de Procedimentos Legais, camarada Monsenhor, um produto muito mais jovem dessa revolução. Posso não conhecer os chefes do KGB que você diz que são seus asseclas, mas conheço as penas por fazer justiça com nossas próprias mãos e por acusar pessoalmente — secretamente — nossos superiores, em vez de levar a informação diretamente ao Escritório de Irregularidades. Eu não correria esse risco baseado apenas em material contido em arquivos de fonte desconhecida, possivelmente inventado por funcionários descontentes, talvez de posição inferior às nossas... Francamente, não quero ver esses arquivos, pois não vou me comprometer com testemunhos gratuitos e prejulga-mentos que podem prejudicar minha posição. — Você é um advogado insignificante! — rugiu o assassino vestido de padre, abrindo e fechando as mãos e agora com os olhos injetados. — Vocês são todos falsificadores da verdade! São companheiros dos ventos prevalentes da conveniência. — Disse muito bem — observou o advogado de Procedimentos Legais, com um sorriso. — Exceto, camarada, que roubou a frase do inglês Blackstone. — Não vou tolerar sua insolência! — Não precisa, camarada Padre, pois pretendo ir embora e meu conselho legal a vocês todos é que façam o mesmo. — Vocês teriam coragem’? — Eu tenho — disse o advogado soviético, olhando para os outros com um sorriso bemhumorado. — Do contrário teria de acusar a mim mesmo e sou muito bom na minha profissão para arriscar isso. — O dinheiro! — gritou o Chacal estridentemente. — Mandei muito dinheiro para vocês! — Onde está o registro? — perguntou o advogado com ar de inocência. — Você mesmo se encarregou de providenciar para que não pudesse ser detetado. Sacolas de papel nas nossas caixas de correio, nas gavetas das nossas mesas de trabalho — bilhetes com instruções para serem queimados. Quem, entre nossos cidadãos, vai admitir que colocou essas coisas nesses lugares? Seriam mandados diretamente para a Lubyanka. . Adeus, camarada Monsenhor — disse o advogado do Ministério de Procedimentos Legais, empurrando a cadeira para onde a havia apanhado e dirigindo-se para a porta. Um a um, como na chegada, o grupo acompanhou o advogado, olhando para aquele homem estranho que, por um momento, havia interrompido de modo tão exótico o tédio de suas vidas,, todos certos de que no caminho dele estava a desgraça e a execução. A Morte. Mas ninguém estava preparado para o que se seguiu. O assassino vestido de padre de repente pareceu sair de um transe, com descargas elétricas ativando sua loucura. Os olhos escuros ardiam com uma chama furiosa que só podia ser satisfeita com a violência extrema — a vingança brutal e selvagem por todas as injustiças cometidas contra seu objetivo puro de matar os descrentes! O Chacal jogou no chão as pastas que estavam sobre a mesa e inclinando-se para a pilha de jornais, apanhou a arma mortal,
gritando: — Parem! Vocês todos, parem! Ninguém obedeceu e a energia psicopata tornou-se a ordem do momento. O assassino apertou o gatilho repetidamente e homens e mulheres morreram. Entre os gritos dos corpos dilacerados, perto da porta, o assassino correu para fora, saltando sobre os cadáveres, o rifle de assalto ligado no automático, dizimando as pessoas que passavam na rua, praguejando aos berros, condenando os descrentes a um inferno que só ele podia imaginar. — Traidores! Imundos! Lixo! — gritava o Chacal ensandecido, saltando sobre os corpos, correndo para o carro roubado do Komitet e da sua unidade de vigilância inexperiente. A noite acabou, o dia começava. O telefone do Metrópole não tocou, entrou em erupção. Sobressaltado, Alex Conklin abriu os olhos e agarrou o instrumento estridente da mesa-de-cabeceira. — Sim? — atendeu, sem saber ao certo se estava falando no bocal ou no outro lado do fone. — Aleksei, fique onde está. Não deixe ninguém entrar no seu quarto e carregue suas armas! — Krupkin?... De que diabo você está falando? — Um cachorro louco está solto em Moscou. — Carlos? — Ele ficou completamente louco. Matou Rodchenko e fez uma verdadeira carnificina com os dois agentes que o estavam seguindo. Um fazendeiro encontrou os corpos mais ou menos às quatro horas da manhã. — Parece que os cães o acordaram quando sentiram o cheiro do sangue levado pelo vento. — Cristo, ele ficou mesmo louco... Mas por que você acha... — Um dos nossos agentes foi torturado antes de ser morto — disse o homem do KGB, sem esperar a pergunta de Alex. — O chofer que nos levou do aeroporto para o Metrópole, meu protegido e filho de um colega de classe com quem eu dividia um quarto na universidade. Um jovem bom, de uma boa família, mas não treinado para o que teve de enfrentar. — Está dizendo que ele pode ter dito a Carlos onde estamos, é isso? — Isso mesmo... Tem mais. Há uma hora mais ou menos, na Vavilova, oito pessoas foram mortas por uma automática. Foi um verdadeiro massacre. Uma delas, antes de morrer, uma mulher que trabalhava para o Ministério de Informações, direktcr segunda classe e jornalista de televisão, disse que o assassino é um padre de Paris que se apresenta como “monsenhor”— Jesus! — explodiu Conklin, sentando com as pernas para fora da cama. — Era o grupo dele.
— Assim chamado e com o verbo no passado — disse Krupkin. — Deve estar lembrado, eu disse que esses recrutas iam abandoná-lo ao menor sinal de perigo. — Vou chamar Jason... — Aleksei, ouça o que vou dizer! — O quê? — Conklin segurou o telefone sob o queixo e estendeu a mão para a prótese ao lado da cama. — Organizamos uma equipe de assalto, homens e mulheres em trajes civis. Estão recebendo as instruções agora e logo estarão aí. — Ótimo. — Mas não alertamos o pessoal do hotel e nem a polícia. — Isso seria idiotice — disse Alex. — Vamos apanhar o filho da mãe aqui! Nunca dá certo com uniformes andando de um lado para o outro ou com empregados histéricos. O Chacal tem olhos nos joelhos. — Faça o que eu digo — ordenou o soviético. — Não deixe ninguém entrar, fique longe das janelas e tome todas as precauções. — É claro... O que quer dizer com janelas? Ele vai precisar de algum tempo para nos encontrar aqui... interrogar as criadas, os porteiros... — Desculpe, meu velho amigo — interrompeu Krupkin. — Mas um padre angélico perguntando sobre dois americanos, um que manca, na parte da manhã, na hora de maior movimento? — Bem pensado, apesar de você ser paranóico. — Vocês estão num andar alto, e bem no outro lado da Marx Prospekt fica o telhado de outro prédio. — Você também pensa depressa. — Certamente mais depressa do que aquele tolo na Dzerzhinsky. Eu teria falado antes com você, mas meu comissário Kartoshki só me telefonou há dois minutos. — Vou acordar Bourne. — Tome cuidado. Conklin não ouviu a última recomendação de Krupkin. Desligou o telefone e apanhou o pé artificial, amarrando descuidadamente as tiras em volta da perna. Tirou a automática Graz Burya da gaveta, uma arma soviética de desenho especial com três pentes de munição. A Graz, como era conhecida, era uma arma única no gênero, no sentido de ser a única automática que aceitava um
silenciador. O instrumento cilíndrico tinha rolado para a frente da gaveta. Conklin o apanhou e aparafusou na arma. Vestiu a calça, equilibrando-se com dificuldade, pôs a arma no cinto e dirigiu-se para a porta. Abriu-a e saiu do quarto. Jason estava vestido, de pé, na frente de uma das janelas da sala estilo vitoriano. — Foi Krupkin quem telefonou — disse Bourne. — Foi. Saia dessa janela. — Carlos? — Bourne recuou imediatamente, voltando-se para Alex. — Ele sabe que estamos em Moscou? Ele sabe onde estamos? — As probabilidades são de que deve saber as duas coisas. — Conklin contou rapidamente o que tinha ouvido de Krupkin. — Isso lhe diz alguma coisa? — perguntou então. — Ele enlouqueceu — respondeu Jason, em voz baixa. — Tinha de acontecer. A bomba de tempo na cabeça dele, finalmente explodiu. — É o que também acho. Sua equipe de Moscou transformou-se num mito. Provavelmente eles o mandaram plantar batatas e Carlos explodiu. — Eu sinto a perda dessas vidas — disse Bourne. — Preferia que tivesse acontecido de outro modo, mas não sinto o estado em que ele está. O que aconteceu com ele, foi o que ele desejava para mim — enlouquecer completamente. — Kruppie disse isso — observou Conklin. — O Chacal tem um desejo psicopático mortal de voltar aos primeiros que descobriram que ele era louco. Agora, se ele sabe que você está aqui, e temos de supor que ele sabe, a obsessão é dupla, sua morte em lugar da dele — como uma espécie de triunfo simbólico, talvez. — Você andou falando muito com Panov. . Fico imaginando como ele está. — Não precisa se preocupar. Telefonei para o hospital às três horas da manhã — cinco horas em Paris. Ele pode perder o uso do braço esquerdo e sofrer paralisia parcial da perna direita, mas eles acham que ele vai resistir. — Não ligo a mínima para seus braços ou suas pernas. E a cabeça! — Aparentemente está intacta. A enfermeira-chefe do andar disse para um médico que ele é um paciente terrível. — Graças a Cristo! — Pensei que você fosse agnóstico. — É uma frase simbólica, pode perguntar ao Mo — Bourne apontou para a arma no cinto de Alex. — Um tanto óbvia, não acha?
— Para quem? — Para o serviço de quarto — respondeu Jason. — Pedi o que eles tiverem para comer de manhã e um grande bule de café. — De jeito nenhum. Krupkin disse para não deixarmos ninguém entrar e eu dei minha palavra. — Isso é uma paranóia idiota... — Mais ou menos o que eu disse, mas este é território dele, não nosso. Vale também para as janelas. — Espere um pouco — disse Bourne. — E se ele estiver certo? — Pouco provável, mas possível, só que... — Conklin não terminou a frase. Jason ergueu a parte de trás do paletó, tirou do cinto sua Graz Burya e dirigiu-se para a porta da suíte. — O que está fazendo? — gritou Alex. — Provavelmente dando ao seu amigo “Kruppie” mais crédito do que ele merece, mas vale a pena tentar. — Fique ali — continuou, apontando para a outra extremidade da sala. — Vou destrancar a porta e quando o garçom chegar, mande entrar — em russo. — E você? — No corredor tem uma máquina de gelo que não funciona, mas fica num cubículo ao lado da máquina de Pepsi, que também não funciona. Vou ficar lá dentro. — Graças a Deus pelos capitalistas, por mais errados que estejam. Vá então! O homem da Medusa, antes chamado Delta Um, abriu a porta, olhou para os dois lados do corredor do Metrópole e correu até a alcova onde estavam as duas máquinas, agachando-se, encostado na parede dos fundos. Esperou, com dor nas pernas e nos joelhos — dores que não sentia antes — e então ouviu o som do carrinho da copa. O carro, coberto com uma toalha de mesa, passou e seguiu para a porta da suíte. Jason observou o homem jovem, louro e baixo, de gestos obsequiosos, parar na porta e bater cautelosamente. Esse não era Carlos, pensou Jason, levantando-se. Ouviu a voz abafada de Conklin, mandando entrar e quando o jovem abriu a porta e entrou com o carrinho, Jason, calmamente, guardou a arma no cinto. Inclinou-se para massagear a perna dolorida, sentindo o músculo enrijecido. Tudo aconteceu com o impacto de Uma onda furiosa batendo na rocha. Um vulto vestido de negro saltou de uma reentrância invisível do corredor e passou correndo pelo cubículo das máquinas. Bourne, com um gesto rápido, encostou na parede. Era o Chacal!
Capítulo38 LOUCURA! Com toda a força, Carlos bateu com o ombro direito no garçom louro, atirando-o para a extremidade do corredor. A mesa virou de lado e os pratos esfacelaram-se no tapete. De repente, num movimento incrível, o garçom girou o corpo para a esquerda, ainda no ar, e tirou uma arma do cinto. O Chacal viu ou sentiu o movimento. Voltou-se rapidamente e com uma saraivada rápida da automática pregou o homem na parede, acertando a cabeça e o torso do russo louro. Naquele momento horrível, que pareceu, uma eternidade, a arma de Bourne enganchou na cintura da sua calça. Jason rasgou o tecido e seus olhos encontraram-se com a fúria assassina e o triunfo dos olhos de Carlos. Jason soltou a arma, girou o corpo, agachando-se dentro da pequena alcova, e à rajada de balas destroçou as partes da frente das duas máquinas. Deitado de bruços, Bourne adiantou-se para fora do cubículo, atirando com a maior velocidade possível. Ouviu outros tiros, não de uma metralhadora portátil. Alex estava atirando de dentro da suíte! Carlos estava entre dois fogos! Era possível — tudo podia terminar num corredor de hotel, em Moscou! Tomara que aconteça, tomara que aconteça! O Chacal soltou um rugido desafiador de fera ferida. Bourne girou o corpo para dentro da alcova, distraído brevemente pelo barulho da máquina de gelo que começou a funcionar. Agachado, com o rosto encostado na parede lateral do cubículo, olhou para o corredor no momento em que a insanidade assassina atingiu o máximo na loucura febril do combate quase corpo a corpo. Como um animal furioso enjaulado, o Chacal ferido girava o corpo a esmo, atirando seguidamente nas paredes que pareciam se fechar sobre ele. Jason ouviu dois gritos estridentes que vinham do fim do corredor, um de homem, outro de mulher, um casal morto ou ferido pela rajada descontrolada da arma assassina. — Abaixe-se! — O grito de Conklin, no outro lado do corredor, era uma ordem, para quem Jason não sabia. — Proteja-se! Agarre a droga da parede! — Bourne obedeceu, compreendendo apenas que devia entrar no menor espaço que encontrasse, protegendo a cabeça o mais possível. O canto. Ele se atirou pára a frente quando a primeira explosão fez estremecer as paredes — em algum lugar —, depois a segunda, muito mais perto, o barulho muito maior, no corredor. Granadas! A fumaça subiu no ar, misturada com reboco e vidros partidos. Tiros. Nove, um depois do outro — uma automática Graz Burya... Alex! Jason saiu rapidamente da alcova. Conklin, de pé na porta da suíte, ao lado da mesa derrubada, tirou o pente vazio da arma e procurou outro nos bolsos da calça. — Não estou com o outro! — gritou furioso, referindo-se ao pente de balas deixado por Krupkin. — Ele correu para o outro corredor, e eu não tenho mais nenhuma droga de bala. — Eu tenho e sou mais rápido do que você — disse Jason, recarregando sua arma. — Volte para dentro e telefone para a portaria. Mande tirar todo mundo do saguão. — Krupkin disse... — Para o diabo com o que ele disse! Mande fechar os elevadores, bloquear todas as saídas das
escadas, e ficarem longe deste andar! — Compreendo o que você quer fazer... — Faça isso! — Bourne correu pelo corredor, estremecendo quando passou pelo casal ferido. Os dois estavam vivos, gemendo de dor. Suas roupas estavam ensangüentadas, mas eles se moviam! Bourne voltou-se e gritou para Alex, que estava perto da mesa, na porta da suíte. — Mande trazer socorro! — Apontou para uma porta no corredor. — Eles estão vivos! Mande usar esta porta, só está!A caçada começou, ajudada e ao mesmo tempo prejudicada pelo fato de a notícia do que estava acontecendo ter se espalhado por todas as alas do décimo andar do Metrópole. Não era preciso muita imaginação para compreender que inúmeras pessoas em pânico estavam ligando para a portaria do hotel enquanto os tiros ecoavam pelos corredores. A equipe tática de Krupkin, em trajes civis, fora anulada pela primeira rajada de balas da automática do Chacal. Onde estava ele? Havia outra porta no fim do longo corredor em que Jason acabava de entrar, mas havia também uns 15 ou 18 quartos naquela ala. Carlos não era tolo e ferido como estava ia se valer de tudo que aprendera em sua longa vida de violência para sobreviver, nem que fosse só até conseguir o que desejava mais do que a própria vida, matar Jason Bourne... Bourne compreendeu a exatidão dessa análise quando viu que estava descrevendo a si mesmo. O que o velho Fontaine havia dito em Tranqüilidade, naquele quarto de depósito, enquanto .observavam os padres, sabendo que um deles fora comprado pelo Chacal? “... Dois leões envelhecidos tocaiando um ao outro, sem se importar com quem matavam no seu fogo cruzado.” Palavras de Fontaine, p homem que sacrificou a vida por um quase desconhecido porque sua mulher não existia mais, porque a mulher que ele amava estava morta. Caminhando cautelosamente para a primeira porta à direita, Jason imaginava se faria o mesmo. Queria desesperadamente viver — com Marie e os filhos — mas se ela se fosse... se eles se fossem... será que a vida ainda teria importância? Desistiria dela se visse em outro homem um reflexo de algo que existia nele também? Não tinha tempo. David Webb, não tenho tempo agora para sua meditação, para sua fraqueza. Afaste-se de mim. Preciso atrair para campo aberto uma ave de rapina que procuro há 13 anos. Suas garras são afiadas como navalhas e ela já matou demais, vezes sem conta, e agora quer matar os meus — sua família. Afaste-se de mim! Manchas de sangue! No tapete marrom-escuro, as gotinhas brilhavam à luz fraca do corredor. Bourne abaixou-se e tocou uma delas com a ponta do dedo. Estavam úmidas, vermelhas — sangue. A trilha de sangue passava pela primeira porta, depois a segunda, sempre à esquerda — depois cruzava o corredor e o desenho era diferente, não seguia mais em linha reta, mas em ziguezague, como se o ferimento tivesse sido localizado e a hemorragia estancada em parte. Jason acompanhou a trilha de sangue que passava pela sexta porta à direita, a sétima... e então, desaparecia — não, não completamente. Um filete vermelho, quase invisível, seguia para a esquerda, atravessava o corredor — lá estava! Uma leve mancha de sangue logo acima da maçaneta da oitava porta da esquerda, a menos de seis metros da porta que dava para a escada. Carlos estava atrás daquela porta, talvez mantendo os hóspedes como reféns. A precisão era tudo agora, cada movimento, cada som concentrados na captura da presa. Respirando controladamente, impondo ao próprio corpo a eliminação dos espasmos musculares
involuntários, Bourne, silenciosamente, voltou pelo caminho que tinha feito. A uns trinta passos da oitava porta à esquerda, voltou-se bruscamente. Atrás das portas fechadas do corredor, soavam soluços esporádicos e choro nervoso. Os hóspedes haviam recebido ordens numa linguagem muito diferente das instruções de Krupkin. Fiquem nos quartos, por favor. Não deixem ninguém entrar. Nossos homens estão investigando. Era sempre “nossos homens”, nunca “a polícia”, nunca “as autoridades”, porque essas palavras significavam pânico. E pânico era exatamente o que Delta Um da Medusa pretendia provocar. Pânico e diversão, os eternos componentes da caçada humana, aliados da armadilha mortal. Jason ergueu a Graz Burya e atirou duas vezes num dós lustres ornados do corredor, acompanhando com gritos furiosos as explosões e o ruído do vidro partido que caía do teto. “Lá vai ele! Um terno negro!” Bourne correu, batendo os pés com força no chão até a oitava porta da esquerda e passou por ela, gritando outra vez. “A saída... a saída!” Parou bruscamente, deu mais um tiro em outro lustre e com o ruído dos tiros e dos vidros partidos abafando seus passos, girou o corpo e encostou na parede, de frente para a oitava porta. Então, num movimento rápido, lançou-se contra a porta, arrombando-a no ímpeto do assalto e atirou-se no chão do quarto com a arma erguida, preparado para fogo rápido. Jason estava errado! Percebeu isso imediatamente — estava sendo armada uma contraarmadilha final. Outra porta se abriu em algum lugar do corredor — ele ouviu ou sentiu, instintivamente. Furioso, rolou para a direita, derrubando com a perna uma luminária, vendo de relance um casal de velhos agachado na outra extremidade do quarto. O vulto vestido de branco irrompeu no quarto atirando a esmo, numa seqüência ensurdecedora. Bourne atirou repetidamente no vulto branco e saltou para a parede da esquerda, percebendo que, por uma fração de segundo, ficaria no ponto invisível para o assassino, à sua direita. Foi o suficiente! Jason acertou o ombro do Chacal — o ombro direito! Ele dobrou o braço instintivamente, soltando a arma. Sem interromper o movimento do corpo, Carlos girou o corpo, o manto branco abriuse, enfunado como uma vela ao vento e, levando a mão esquerda ao ferimento provocado pela Graz Burya, chutou a luminária contra o rosto de Jason. Bourne atirou outra vez, sua visão prejudicada pela cúpula da pesada luminária, o tiro desviado pelo pé de bronze. Jason firmou a arma e apertou o gatilho, mas ouviu apenas o estalido seco e metálico — a automática estava descarregada! Agachando-se, estendeu a mão para a arma de Carlos caída no chão, enquanto o vulto vestido de branco correu para o corredor. Jason levantou-se, mas seu joelho cedeu! Oh, Cristo! Arrastou-se para a cama e mergulhou para debaixo dela, tentando alcançar o telefone na mesa-de-cabeceira do outro lado. A mesa e o telefone estavam esfacelados no chão! A mente ensandecida de Carlos recorria a todas as táticas, a todos os contra-ataques que ele conhecia. Outro som! Alto e brusco. A tranca da saída para a escada foi erguida e a porta pesada de metal bateu com força na parede. O Chacal estava descendo para o saguão. Se os homens na portaria tinham obedecido às ordens de Conklin, ele estava encurralado! Bourne olhou para o casal de velhos, notando que o homem protegia a mulher com o próprio corpo.
— Está tudo bem — disse ele, em voz baixa, procurando acalmá-los. — Sei que vocês talvez não compreendam a minha língua — eu não falo russo — mas estão seguros agora. — Nós também não falamos russo — disse o inglês, desconfiado ainda, olhando atentamente para Bourne e começando a se levantar. — Trinta anos atrás eu estaria de pé naquela porta! Oitavo exército, com Monty, sabe? Muito heróico em El Alamein — nós todos, é claro. Parafraseando: a idade enfraquece, como dizem. — Prefiro não ouvir isso, general... — Não, não, um mero brigadeiro... — Ótimo! — Bourne sentou na cama, tentando movimentar o joelho. Fosse o que fosse, foi resolvido com um estalido seco. — Preciso de um telefone! — Na verdade, o que me deixou furioso foi aquele maldito manto! — continuou o veterano de El Alamein. — Uma merda de vergonha, isto é que é — desculpe, querida. — Do que está falando? — O manto branco, rapaz! Tem de ser o de Binky — o casal no outro lado do corredor, que está viajando conosco. Deve ter apanhado naquele Beau Rivage, em Lausanne. O roubo já foi uma vergonha, mas ter dado o manto para este porco é imperdoável! Jason apanhou a arma do Chacal e correu para o corredor, certo de que “Binky” merecia mais admiração do que o brigadeiro lhe concedia. Ele estava no chão, sangrando dos ferimentos de faca na barriga e no pescoço. — Não consigo falar com ninguém! — gritou a mulher grisalha ajoelhada ao lado da vítima, chorando histericamente. — Ele lutou como um louco — de certo modo sabia que o padre não ia atirar! — Mantenha os ferimentos fechados do melhor modo possível — gritou Bourne, olhando para o telefone. Estava intacto! Em vez de ligar para a portaria, Jason discou p número da suíte. — Krupkin? — exclamou Alex. — Não, eu! Primeiro: Carlos está na escada — do corredor em que eu estou! Segundo: tem um homem ferido nesse mesmo corredor, sétima porta à direita! Depressa! — O mais depressa possível. Tenho uma linha aberta para o escritório. — Onde diabo está a equipe do KGB? — Acabaram de chegar. Krupkin ligou há pouco do saguão — por isso pensei que você fosse... — Estou indo para a escada! — Pelo amor de Deus, por quê?
— Porque ele é meu! Jason correu para a porta, sem nenhuma palavra de conforto para a mulher histérica, não tinha nenhuma a oferecer. Chegou à escada com a arma do Chacal na mão. Começou a descer, ouvindo o som dos próprios passos. Parou no sétimo andar e tirou os sapatos e as meias. De certo modo a superfície fria sob seus pés lembrava a selva, o contato direto com a relva úmida, e isso parecia infundir nova coragem — a selva sempre foi a grande amiga de Delta Um. Continuou a descida, seguindo a trilha de sangue, mais larga agora, pois o último ferimento era grave demais para se resolver com uma simples pressão. A pressão foi aplicada duas vezes, uma no quinto andar e a outra perto da porta do terceiro, onde manchas de sangue escuro indicavam que ele tivera dificuldade para manipular as fechaduras externas sem as chaves de segurança. O segundo andar, depois o primeiro, não havia mais nenhum! Carlos estava encurralado! Em algum lugar, no escuro, estava a morte do assassino que libertaria Bourne para sempre. Bourne tirou do bolso uma caixa de fósforos do Metrópole, encostou na parede e, acendendo um fósforo, pôs fogo na caixa. Atirou o pedaço de papelão em chamas por cima do corrimão, com a arma pronta para atirar ab menor movimento. Nada. Nada! O primeiro andar estava deserto — não havia ninguém lá! Impossível! Jason desceu correndo c último lance da escada e bateu com força na porta que dava para o saguão. — Shto? — gritaram do outro lado. — Kto tam? — Sou americano! Estou trabalhando com o KGB! Deixe-me entrar! — Shto...? — Eu entendi — gritou outra voz. — E por favor, compreenda que muitas armas estarão apontadas para você quando a porta for aberta. Compreendeu? — Compreendi! — gritou Bourne, no último instante lembrando-se de jogar no chão a arma do Chacal. A porta se abriu. — Da! — disse o oficial de polícia soviético, corrigindo-se imediatamente quando viu a metralhadora portátil aos pés de Jason. — Nyet! — gritou o homem. — Nye za shto? — disse Krupkin ofegante, lançando-se para a frente. — Pochemu? — Komitet? — Prekrasno. — O policial balançou a cabeça afirmativamente num gesto obediente, mas não saiu do lugar. — Ele estava aqui! — murmurou Bourne, em voz baixa e intensa que definia sua incredulidade.
— O Chacal? — perguntou Krupkin, atônito. — Ele desceu por aquela escada! Não podia ter saído em nenhum andar. Todas as saídas de incêndio estão fechadas por fora — só as trancas de metal podem abri-las. — Shazhi — disse o homem do KGB para o guarda do hotel, e continuou, em russo. — Alguém passou por aquela porta nos últimos dez minutos, depois das ordens para fechar todas as portas? — Não, senhor — respondeu o mititsiya. — Só uma mulher histérica com um roupão sujo. Em pânico, ela caiu no banheiro e se cortou. Pensamos que ia ter um enfarte, do jeito que ela gritava. Nós a levamos imediatamente para a enfermaria. Krupkin voltou-se para Jason e repetiu em inglês: — Só uma mulher passou por aquela porta. Uma mulher em pânico que se cortou no banheiro. — Uma mulher? Ele tem certeza?... De que cor era o cabelo dela? Dimitri perguntou ao guarda e voltou-se outra vez para Bourne. — Ele diz que era avermelhado e muito crespo. — Avermelhado? — Uma imagem muito desagradável desenhou-se na mente de Jason. — Um telefone interno — não, da portaria! Venha, posso precisar da sua ajuda. — Seguido por Krupkin, Bourne, descalço, correu para o balcão de recepção. — Você fala inglês? — É claro, muito bem, até alguns dialetos, senhor. — O plano dos quartos do décimo andar. Depressa! — Senhor? Krupkin traduziu, e um livro grande de folhas soltas, cada uma dentro de um envelope de plástico, foi colocado sobre o balcão. — Este quarto! — disse Jason, apontando e fazendo o possível para não assustar o recepcionista. — Ligue para lá! Se o telefone estiver ocupado, interrompa a ligação! Krupkin traduziu outra vez e puseram um telefone na frente de Bourne. Ele disse: — Aqui é o homem que esteve no seu quarto há pouco... — Oh, sim, é claro, caro rapaz. Muito obrigado! O médico está aqui e Binky... — Preciso saber uma coisa imediatamente... Vocês têm perucas, ou meias perucas no quarto? — Eu diria que é uma pergunta muito impertinente...
— Minha senhora, não tenho tempo para delicadezas, preciso saber! Têm ou não? — Bem, sim, eu tenho. Na verdade, não é segredo, todas as minhas amigas sabem e desculpam o artifício. Você compreende, meu caro rapaz, sou diabética... meu cabelo é muito ralo. — Uma das suas perucas é vermelha? — Para falar a verdade, é. Gosto de mudar... Bourne desligou o telefone e olhou para Krupkin. — O filho da mãe conseguiu! Era Carlos! — Venha comigo! — disse Krupkip, e os dois dirigiram-se para os escritórios no Metrópole. Entraram na enfermaria e pararam, horrorizados. Rolos de gaze e de esparadrapo, seringas e vidros de antibióticos quebrados estavam espalhados pela mesa de exame e no chão, como se alguém tivesse feito um curativo em pânico e com muita pressa. Porém, o que os dois homens realmente viram foi a mulher que havia atendido o louco paciente. A enfermeira do Metrópole estava na cadeira, com a cabeça para trás, sobre o encosto, a garganta cirurgicamente cortada e com um filete de sangue escorrendo pelo uniforme imaculadamente branco. Loucura! De pé ao lado da mesa da sala, Krupkin falava ao telefone, enquanto Alex Conklin, sentado no sofá de brocado, massageava a perna. Bourne, na janela, olhava para a Marx Prospekt. Alex ergueu os olhos para o oficial do KGB com um sorriso. Krupkin fez um gesto afirmativo. Uma mensagem estava sendo transmitida entre os dois. Eram adversários iguais numa guerra infindável e fútil na qual apenas batalhas eram ganhas, mas os conflitos filosóficos jamais eram resolvidos. — Tenho sua garantia então, camarada — disse Krupkin, em russo — e para ser franco, vou cobrar... É claro que estou gravando esta conversa. Você não faria o mesmo?... Ótimo! Nós nos entendemos e entendemos nossas responsabilidades, portanto vamos recapitular. O homem está gravemente ferido, portanto todos os serviços de táxi e todos os médicos e hospitais foram avisados. A descrição do carro roubado foi distribuída por toda a cidade e qualquer sinal do homem ou do carro será levado somente ao seu conhecimento. A pena por não obedecer a essas ordens é a Lubyanka, quero que isso fique bem claro... Ótimo! Temos um acordo e espero notícias suas logo que tiver alguma informação, certo?... Não tenha uma parada cardíaca, camarada. Sei perfeitamente que é meu superior, mas esta é uma sociedade proletária, certo? Simplesmente siga o conselho de um subordinado muito experiente. Tenha um bom dia... Não, não é uma ameaça, apenas uma frase que aprendi em Paris — de origem americana, eu acho. — Krupkin desligou e deu um suspiro. — Havia algo de bom na nossa aristocracia educada e completamente desaparecida, eu acho. — Não diga isso em voz alta — observou Conklin, indicando o telefone. — Não aconteceu nada ainda, ao que entendi. — Nada que exija ação imediata, apenas uma coisa interessante, fascinante mesmo, na sua natureza macabra. — Suponho que está falando de Carlos.
— Isso mesmo — Krupkin balançou a cabeça quando Jason olhou para ele. — Quando passei por meu escritório, para me juntar à equipe de assalto, encontrei na minha mesa oito envelopes pardos grandes. Só um estava aberto. A polícia os encontrou na Vavilova e, fiel aos seus hábitos, depois de ler o primeiro, nem quis abrir os outros. — O que havia neles? — perguntou Alex com uma risada. — Segredos de Estado revelando que todo o Politburo é gay? — Talvez você não esteja muito longe da verdade — interrompeu Jason. — Era a equipe de Moscou do Chacal, na Vavilova. Ele devia estar mostrando toda a sujeira que havia descoberto sobre cada um ou entregando a eles a sujeira dos outros. — E o segundo caso — disse Krupkin. — Uma coleção de acusações absurdas aos chefes dos nossos principais ministérios. — Ele tem cofres e cofres cheios desse lixo. É o método operacional padronizado de Carlos. É assim que ele compra entrada para os círculos que, de outro modo, nunca poderia penetrar. — Então, eu não fui muito claro, Jason — disse o oficial do KGB. — Quando eu digo absurdas, quero dizer exatamente isso — inacreditáveis! Loucura! — Quase sempre ele acerta no alvo. Não leve sua opinião a nenhum banco. — Se fosse possível, eu levaria e ia conseguir um bom empréstimo, dando-a como colateral. A maioria das informações é tirada dos piores jornais sensacionalistas — nada de estranho nisso, é claro —, mas ao lado dessas tolices há distorções evidentes de tempo, lugares, funções e até mesmo de identidades. Por exemplo, o Ministério dos Transportes não fica onde diz uma das informações, mas um quarteirão adiante, e um certo camarada direktor não é casado com a mulher citada, mas com outra — a mulher mencionada é filha dele e não está em Moscou, mas em Cuba, para onde foi há seis anos. Além disso, o homem dado como chefe da Rádio Moscou e acusado de quase tudo, menos de transar com cães, morreu há 11 meses e todos sabiam que era católico ortodoxo e que teria sido muito mais feliz como padre... Localizei essas mentiras evidentes em poucos minutos, porque estava com pressa, mas tenho certeza de que há muitas mais. — Está dizendo que Carlos foi enganado? — De modo tão absurdo — embora compilado com extrema convicção — que as acusações seriam motivo de riso para os mais rígidos tribunais doutrinários. Quem forneceu essas informações melodramáticas teve o cuidado de incluir a negação automática das mesmas. — Rodchenko? — perguntou Bourne. — Não podia ser outro. Grigorie — estou dizendo “Grigorie”, mas nunca o chamei assim, pessoalmente, era sempre”general” — era um estrategista consumado, o protótipo do sobrevivente, bem como um marxista convicto. Controle era sua palavra-chave, na verdade, seu vício, e se pudesse controlar o Chacal para servir aos interesses da Mãe Pátria, isso seria motivo de imensa alegria para ele. Mas o Chacal o matou com aqueles tiros simbólicos no pescoço. Foi traição ou descuido da parte de
Rodchenko? Qual dos dois? Jamais saberemos. O telefone tocou e Krupkin atendeu imediatamente. — Da? — Krupkin fez sinal a Conklin para colocar a prótese, enquanto dizia, em russo, ao telefone: — Agora, ouça com atenção, camarada. A polícia não deve fazer nada — acima de tudo, não deve se mostrar. Mande um dos seus veículos comuns substituir a radiopatrulha, entendeu?... Ótimo. Usaremos a freqüência Moréia. — Alguma pista? — perguntou Bourne, afastando-se da janela. — Perfeita! — respondeu Krupkin. — Viram o carro na estrada de Nemchinovka, indo para Odintsovo. — Isso não me diz nada. O que há em Odintsovo, ou seja lá como se chama? — Não sei exatamente, mas devemos supor que ele sabe. Lembrem-se, ele conhece Moscou e as vizinhanças da cidade. Odintsovo é o que se pode chamar de subúrbio industrial, a uns trinta minutos do centro... — Droga! — gritou Alex, tentando adaptar a prótese. — Deixe que eu faço isso — disse Jason, num tom que não admitia objeções, ajoelhando e manipulando as tiras de pano grosso. — Por que Carlos está usando ainda o carro de Dzerzhinsky? — continuou Bourne, dirigindo-se a Krupkin — Não combina com ele correr esse risco. — Combina, se não tiver escolha. Ele deve saber que todos os táxis de Moscou são um braço silencioso do governo e, afinal de contas, ele está gravemente ferido e sem a arma que havia reservado para acabar com você. Não está em condição de ameaçar um motorista, nem de roubar um carro... Além disso, ele chegou muito depressa na Nemchinovka. O carro foi visto por puro acaso. A estrada quase não tem movimento, o que provavelmente ele também sabe. — Vamos sair daqui! — exclamou Conklin, irritado com a atenção de Jason e com a própria invalidez. Levantou-se, com um gesto brusco, recusou a mão que Krupkin estendia e dirigiu-se para a porta. — Podemos conversar no carro. Estamos perdendo tempo. — Moréia, responda, por favor — disse Krupkin, em russo, ao lado do motorista da equipe de assalto, com o microfone perto dos lábios, a mão no painel de controle. — Moréia, se está me ouvindo, responda. — Que diabo ele está dizendo? — perguntou Bourne, no banco de trás, ao lado de Alex. — Está tentando falar com o carro do KGB que está seguindo Carlos. Ele fica passando de uma freqüência para outra. É o código Moréia. — O código o quê? — É uma espécie de cobra aquática, Jason — disse Krupkin, olhando para trás. — Da família
dos murianídeos, com guelras porosas e capacidade para descer a grandes profundidades. Algumas espécies são mortais. — Muito obrigado, Peter Lorre — disse Bourne. — Muito boa — disse o agente do KGB, com uma risada. — Mas tem de admitir que é uma comparação apropriada. Poucos rádios podem transmitir ou receber nessa freqüência. — Quando vocês a roubaram de nós? — Oh, não de vocês, de modo nenhum. Dos britânicos, é verdade. Como sempre, Londres é muito discreta a respeito dessas coisas, mas estão muito mais avançados do que vocês e os japoneses em certas áreas. É aquele maldito MI-Seis. Eles jantam nos seus clubes em Knightsbridge, fumam seus cachimbos horríveis, bancam os inocentes e nos mandam espiões treinados no Old Vic. — Eles também cometeram algumas “ratas” — disse Conklin, defensivamente. — Mais nas suas revelações de revolta do que na realidade, Aleksei. Você está afastado há muito tempo. Nós perdemos muito mais do que eles nesse departamento, mas os britânicos sabem como tratar o constrangimento público — nós ainda não aprendemos essa arte milenar. Enterramos nossas ratas, como você diz. Procuramos conquistar a respeitabilidade que tantas vezes foge de nós. Bem, acho que, historicamente, somos muito mais jovens do que eles. — Krupkin voltou a falar russo. — Moréia, responda, por favor! Estou chegando ao fim do espectro. Onde você está, Moréia? — Pare aí, camarada! — disse a voz metálica no alto-falante. — Estamos em contato. Está me ouvindo? — Você parece um castrado, mas estou ouvindo. — Deve ser o camarada Krupkin... — Quem você esperava que fosse, o Papa? Quem é você? — Orlov. — Ótimo. Você sabe o que está fazendo? — Espero que você saiba, Dimitri. — Por que diz isso? — Por causa das suas ordens absurdas de não fazer nada. Estamos a dois quilômetros do prédio — nosso carro está fora da estrada, numa pequena colina —, e estamos vigiando o veículo. Está no estacionamento e o suspeito dentro do prédio. — Que prédio? Que colina? Não me disse nada. — O Arsenal Kubinka.
Conklin inclinou-se bruscamente para a frente. — Oh, meu Deus! — exclamou ele. — O que foi? — perguntou Bourne. — Ele está num arsenal. — Bourne franziu a testa, sem entender. — Aqui, os arsenais são muito mais do que campos fechados para desfiles de veteranos e reservistas. São centros de treinamento e armazéns de armas e munições. — Ele não estava indo para Odintsovo — disse Krupkin. — O arsenal fica mais para o sul, a uns quatro ou cinco quilômetros da cidade. Ele já esteve lá antes. — Esses lugares devem ter segurança máxima — disse Bourne. — Ele não pode ir entrando sem mais nem menos. — Ele já entrou — disse o agente do KGB em Paris. — Quero dizer, em áreas restritas — como depósitos de armas. — É isso que me preocupa — disse Krupkin, com o microfone na mão. — Se ele já esteve lá antes — e evidentemente já esteve —, o que ele sabe sobre as instalações... quem ele conhece lá dentro? — Chame o arsenal pelo rádio e mande detê-lo — sugeriu Jason. — E se eu falar com a pessoa errada, ou se ele já estiver armado e começar a atirar? Um telefonema, um sinal de hostilidade, até mesmo o aparecimento de um carro estranho, podem provocar uma carnificina, a morte de dezenas de homens e mulheres. Vimos o que ele fez no Metrópole, na Vavilova. Ele está descontrolado, completamente louco. — Dimitri — disse a voz metálica no rádio. — Alguma coisa está acontecendo. O homem acaba de sair por uma porta lateral com um saco de estopa na mão e vai indo para o carro... Camarada, não tenho certeza de que é o mesmo homem. Provavelmente é, mas tem alguma coisa diferente. — O que quer dizer? A roupa? — Não. Está com um terno escuro e com o braço direito na tipóia, como antes... mas está se movendo mais depressa, com o passo mais firme, o corpo mais empertigado. — Está dizendo que não parece ferido, é isso? — Acho que sim, sim, é o que estou dizendo. — Ele pode estar fingindo — disse Conklin. — Aquele filho da mãe pode estar dando o último suspiro e convencer a gente de que está pronto para a maratona. — Para quê, Aleksei? Por que fingir que não está ferido?
— Não sei, mas se seu homem pode vê-lo, pode ver o carro também. Talvez ele só esteja com uma pressa danada. — O que está acontecendo? — perguntou Bourne, irritado. — Alguém saiu com um saco cheio de mercadoria e está indo para o carro — disse Conklin, em inglês. — Pelo amor de Deus, detenham o homem! — Não temos certeza de que é o Chacal — disse Krupkin. — A roupa é a mesma, e está com o braço na tipóia, mas há certas diferenças... — Então, ele quer que pensem que não é ele! — disse Jason, com firmeza. — Shto?... O quê? — Ele está se colocando no seu lugar, pensando como você está pensando, e desse modo passando na sua frente. Ele pode saber ou não que está sendo vigiado, que viram o carro, mas tem de supor o pior e agir de acordo. Em quanto tempo estaremos lá? — Do jeito maluco que meu jovem camarada está dirigindo, eu diria que dentro de três ou quatro minutos. — Krupkin! — soou a voz no rádio. — Quatro pessoas saíram agora — três homens e uma mulher. Estão correndo para o carro! — O que ele disse? — perguntou Bourne. Alex traduziu e Jason franziu a testa. — Reféns? — murmurou, como que falando para si mesmo. — Ele acaba de cometer um erro! — Delta Um da Medusa inclinou-se para a frente e tocou o ombro de Krupkin. — Diga ao seu homem para sair de onde está logo que o carro partir e ele souber para onde está indo. Diga a ele para se mostrar, para tocar a buzina como doido quando passar pela frente do arsenal, por onde ele deve passar, de qualquer jeito! — Meu caro amigo — explodiu o soviético. — Pode me explicar o motivo dessa ordem? — O seu companheiro estava certo e eu estava errado. O homem com a tipóia não é Carlos. O Chacal está lá dentro, esperando que a cavalaria passe pelo forte para sair em outro carro — se é que existe uma cavalaria. — Em nome do nosso adorado Karl Marx, explique como chegou a essa conclusão contraditória! — Simples. Ele cometeu um erro... Mesmo que você pudesse, não ia atirar naquele carro, ia? — Certo, não ia atirar. Há três ou quatro pessoas dentro dele, sem dúvida cidadãos soviéticos inocentes obrigados a parecer cúmplices. — Reféns?
— Sim, é claro. — Quando foi a última vez que você ouviu falar de gente correndo voluntariamente para se tornar refém? Mesmo que tivesse alguém apontando uma arma, de dentro da porta, um ou dois, senão todos, tentariam se proteger atrás dos carros do estacionamento. — Tem razão... — Mas você estava certo sobre uma coisa. Carlos tem um contato dentro do arsenal — o homem com a tipóia. Pode ser só um russo inocente com um irmão ou uma irmã em Paris, mas o Chacal é dono dele. — Dimitri! — gritou a voz metálica, em russo. — O carro está saindo a toda do estacionamento. Krupkin apertou o botão para transmitir e deu suas ordens. Deviam seguir o carro até a fronteira com a Finlândia, se fosse necessário, mas procurar detê-lo sem violência e chamar a polícia, se precisassem. A última ordem era passar pela frente do arsenal, tocando a buzina várias vezes. O agente Orlov perguntou em russo coloquial: — Por que droga de merda tocar a buzina? — Porque eu tive uma visão de São Nicolau, o Bom! Além disso, sou seu superior muito caridoso. Faça o que eu mandei! — Você não está bem, Dimitri. — E você quer um fantástico relatório que vai mandá-lo diretamente para Tashkent? — Estou a caminho, camarada. Krupkin pôs o microfone rio lugar. — Tudo procede — disse ele, virando para trás. — Se posso escolher minha morte ao lado de um assassino louco ou de um lunático que demonstra um certo senso de decência, acho que escolho o segundo. Contrariando os céticos mais esclarecidos, acho que existe um Deus, afinal... Aleksei, você não quer comprar uma casa no lago, em Genebra? — Talvez eu compre — disse Bourne. — Se eu viver até o fim deste dia e fizer o que pretendo, você me diz o preço. Não vou pechinchar. — Ei, David — disse Conklin —, Marie ganhou aquele dinheiro, não você. — Ela sempre ouve o que eu digo. O que ele diz. — Que história é essa, seja lá você quem for? — perguntou Krupkin. — Quero que me dê todas as armas que tiver na mala deste carro e me deixe no meio da relva, na frente do arsenal. Depois, dê-me uns dois minutos para me posicionar e entre ostensivamente no estacionamento — o mais ostensivamente possível — e então, vendo que o carro não está mais lá, saia a
toda para a estrada. — E deixamos você sozinho? — exclamou Alex. — Só assim eu posso pegá-lo. É o único modo de apanhá-lo. — Loucura! — disse Krupkin, indignado. — Não, Kruppie, realidade — disse Jason Bourne, calmamente. — É como no começo. Um contra um, é o único jeito. — Isso é heroísmo de calouro! — rugiu o russo, batendo com a mão no encosto do banco. — Pior, é uma estratégia ridícula. Se você está certo, eu posso cercar o arsenal com centenas de homens! — O que exatamente ele ia querer que você fizesse — o que eu ia querer, se eu fosse Carlos. Você não compreende? Ele pode fugir no meio da confusão, no meio de tanta gente — isso não é problema para nenhum de nós, já fizemos milhares de vezes antes. Multidões e ansiedade são nossa proteção — é brinquedo de criança. Uma faca num uniforme, o uniforme no nosso corpo, uma granada no meio dos soldados, e depois da explosão, somos uma das vítimas cambaleantes — isso é programa de amador para assassinos pagos. Acredite — contra a minha vontade, eu me tornei um deles. — Então, o que acha que pode fazer sozinho, Baíman? — perguntou Conklin, massageando furiosamente a perna. — Tocaiar o assassino que quer me matar — e apanhá-lo — Você é uma merda de um megalomaníaco! — Está absolutamente certo. É o único modo de funcionar no jogo da morte. É a única vantagem que temos. — Insanidade! — resmungou Krupkin. — Permita-me então, tenho direito a um pouco de insanidade. Se eu achasse que todo o exército russo podia garantir minha sobrevivência, eu gritaria por ele. Mas não pode. Este é o único modo... Pare o carro que quero escolher as armas.
Capítulo39 O SEDÃ VERDE-ESCURO DO KGB fez a última curva na estrada que atravessava os campos, terminando a descida suave. Agora seguiam por um trecho plano ladeado por extensões de relva verde de verão, e aproximavam-se do prédio maciço e marrom do Arsenal Kubinka. A construção parecia erguer-se do solo, como uma caixa enorme e quadrada, um feio contraste criado pelo homem na paisagem rural, feito de madeira marrom com janelas pequenas, três andares e ocupando dois acres de terra. Como o prédio, a entrada era grande, quadrada e nua, a não ser pelo baixo-relevo acima da porta representando três soldados soviéticos nos ventos mortais da batalha, com os rifles em posição de combate, prontos para estourar as cabeças uns dos outros. Armado com uma autêntica AK-47 russa e cinco pentes-padrão de trinta balas cada um, Bourne saltou do carro que seguia silencioso, em marcha lenta, escondendo-se imediatamente entre a relva, no outro lado da estrada, bem na frente do arsenal. O estacionamento enorme, com chão de terra, ficava à direita do prédio. O gramado da frente era limitado por uma cerca viva de plantas maltratadas e tinha no centro um mastro alto e branco com a bandeira soviética imóvel e flácida no ar parado da manhã. Jason atravessou correndo a estrada, com o corpo curvado e agachou-se ao lado da cerca. Tinha apenas alguns momentos para verificar, através dos arbustos, o sistema de segurança do arsenal. Aparentemente era informal, ou até mesmo inexistente. Na parede da direita, na entrada, havia uma janelinha como uma bilheteria de cinema, atrás da qual um guarda uniformizado lia uma revista, e ao lado dele, menos visível, outro dormia com a cabeça sobre, o balcão. Dois outros soldados apareceram nas portas duplas e enormes do arsenal, tranqüilos, um consultando o relógio, o outro acendendo um cigarro. Essa era a segurança. Não esperavam nenhum assalto, não tinham sido assaltados, pelo menos o alarme não chegara até as patrulhas da frente do prédio, geralmente as primeiras a serem avisadas. Era sinistro, anormal, além de qualquer expectativa. O Chacal estava dentro da instalação militar, mas não havia nenhum sinal de invasão, nada indicava que, em algum lugar do complexo, ele estava controlando um pequeno número de pessoas — o homem da tipóia, os outros três homens e a mulher. O estacionamento? Bourne não havia entendido a conversa entre Alex, Krupkin e o homem no rádio, mas percebia agora que, quando falaram das pessoas que corriam para o carro roubado, não se referiam à entrada principal! Devia haver uma saída para o estacionamento! Cristo, em alguns segundos o chofer do Komitet ia ligar o motor e sair apressadamente do estacionamento, anunciando assim a chegada do veículo do governo e sua partida rápida e calamitosa. Se Carlos ia tentar fugir, seria nessa hora! Depois de esperar pela comunicação pelo rádio, cada momento que aumentasse a distância entre ele e o arsenal tornava mais difícil encontrar sua pista. E ele, Jason, a eficiente máquina de matar da Medusa, estava no lugar errado! Além disso, um civil correndo pelo gramado ou pela estrada com uma arma automática, dentro de um complexo militar, seria um convite para o desastre. Uma omissão pequena e estúpida! Três ou quatro palavras traduzidas e um ouvinte menos arrogante, ou mais interessado, teriam evitado aquele erro. Eram sempre as pequenas coisas, as coisas aparentemente insignificantes, que acinzentavam as operações negras. Droga! A uns cem metros o seda do KGB ligou o motor e fez uma volta completa no estacionamento,
erguendo nuvens de poeira, com os pneus lançando para longe pedaços de pedra. Bourne não tinha tempo para pensar, só para agir. Apoiou a AK-47 na perna direita, escondendo-a tanto quanto possível, e levantou-se, com a mão esquerda na parte superior da cerca viva — um jardineiro, talvez, preparando-se para o trabalho, ou um caminhante descontraído, nada que parecesse ameaçador, apenas uma cena comum. Para o observador casual, ele podia estar caminhando por ali há algum tempo sem ser notado. Jason olhou para a entrada do arsenal. Os dois soldados estavam rindo, um deles outra vez consultando o relógio. Então, o objeto daquela espera saiu pela porta da esquerda, uma mulher morena e atraente, de vinte anos ou menos. Rindo, ela levou as duas mãos aos ouvidos, fez uma careta e caminhou rapidamente para o homem uniformizado que tanto se preocupava com as horas, beijando-o na boca. De braços dados, com a mulher no centro, os três caminharam para a direita, afastando-se da porta. Uma batida! Metal contra metal, vidro partindo vidro, o som agudo e alto vinha do estacionamento. Alguma coisa tinha acontecido com o carro do Komitet, com Krupkin e Alex. O jovem chofer da equipe de assalto acabava de bater em outro carro. Usando o som como pretexto, Jason caminhou pela estrada, pensando em Conklin, com a perna dura para esconder melhor a arma. Virou a cabeça, esperando ver os dois soldados e a mulher correndo para o lugar do acidente, mas eles estavam correndo em direção contrária, fugindo de qualquer envolvimento com o desastre. Sem dúvida as violações preciosas dos regulamentos militares eram protegidas ciumentamente. Deixando de mancar, Bourne atravessou a cerca viva e correu para a passagem de cimento que ia até o canto do prédio, aumentando a velocidade e respirando pesadamente. Jason agora segurava a arma na mão direita erguida, enquanto corria. Chegou ofegante ao fim da passagem, as veias do pescoço saltadas, o suor inundando seu rosto, seu pescoço, sua camisa. Com a respiração entrecortada, firmou a AK-47 na posição de atirar, encostou na parede do prédio, depois entrou rapidamente no estacionamento e ficou paralisado com o que viu. O ruído dos seus passos e o latejar nos ouvidos, provocados pela ansiedade e pelo esforço físico, haviam impedido que ouvisse qualquer som à sua frente. O que estava vendo agora era o resultado de uma arma munida de silenciador. Quase com, frieza, Delta Um da Medusa sentiu que estava vendo uma cena tantas vezes repetida há muitos anos. Em certas circunstâncias, a morte tem de ser silenciosa — o silêncio completo era impossível, mas o objetivo era sempre o maior silêncio possível. O jovem motorista da equipe de assalto do KGB estava no chão ao lado do carro verde-escuro, morto, com a cabeça crivada de balas. O carro batera na parte lateral do ônibus do governo que transportava funcionários das repartições. Como ou por quê, Bourne não sabia. Não sabia também se Alex e Krupkin estavam vivos. As janelas do carro estavam crivadas de balas e não se percebia qualquer movimento, o que sugeria o pior. Acima de tudo, naquele momento o Camaleão compreendeu que não podia deixar que a cena o afetasse — emoções eram proibidas! Se tivesse acontecido o pior, lamentaria depois, a vingança tinha de ser agora. Pense! Como! Depressa! Krupkin havia dito que “dezenas de homens e mulheres” trabalhavam no arsenal. Onde estavam eles? O Chacal não estava agindo num vácuo, era impossível! Entretanto, o barulho da batida violenta devia ter sido ouvido a uma grande distância — uma distância maior do que um campo de futebol — e
um homem foi morto a tiros no lugar do acidente, c ninguém apareceu no local — nem por coincidência, nem propositalmente. À exceção de Carlos e de cinco desconhecidos, todo o arsenal estaria funcionando num vácuo. Nada fazia sentido! Então Jason ouviu a música abafada que vinha do interior do prédio. Música marcial, tambores e pistões, com crescendos que deviam ser ensurdecedores dentro da imensa estrutura. Jason lembrou da jovem que saiu do arsenal com as mãos nos ouvidos e fazendo uma careta e compreendeu. Ela estava saindo do interior do arsenal, onde a música devia ser intolerável. Estava havendo alguma comemoração no Kubinka, um evento normal que explicava a profusão de automóveis particulares, pequenos furgões e ônibus, no estacionamento — profusão em termos da União Soviética, onde esses veículos não eram em grande número. Ao todo devia haver uns vinte carros no estacionamento de terra, estacionados em semicírculo. A atividade lá dentro era uma estratégia diversionária e ao mesmo tempo proteção para o Chacal. Ele sabia orquestrar ambas para o próprio proveito. Seu inimigo também sabia. Por que Carlos não saía? Por que não tinha saído antes? O que ele estava esperando? As circunstâncias eram perfeitas, não podiam ser melhores. O ferimento o obrigava a atrasar seus planos a ponto de perder as vantagens que havia criado? Era possível, mas pouco provável. Depois de chegar até ali, a fuga estava próxima, e ele tinha de continuar, fazer mais ainda. Então, por quê? A lógica irreversível, a lógica de sobrevivência do assassino, mandava que, depois de garantir a retaguarda, ele fugisse o mais depressa possível. Era sua única chance! Então, por que estava ainda lá dentro? Por que seu carro não havia deixado a área, partindo veloz para a liberdade? Outra vez encostado na parede, Jason deu alguns passos para a esquerda, observando tudo que podia ver. Como a maioria dos arsenais no mundo todo, Kubinka não tinha janelas no primeiro andar, pelo menos não nos primeiros cinco metros a partir do solo, talvez porque vidros não combinavam exatamente com cavalos a galope. Jason viu uma janela a uma altura que podia ser a do segundo andar. Dali podia ter partido o tiro com silenciador que matou o motorista do KGB. No térreo havia uma porta, a saída dos fundos que ninguém se dera o trabalho de mencionar. As pequenas coisas, as coisas insignificantes! Droga! A música lá dentro aumentou de volume, mas diferente agora, os tambores soavam mais alto, as notas dos pistões eram mais longas, mais estridentes. O fim de uma marcha sinfônica, música marcial em sua maior intensidade... Era isso! O Chacal ia usar o momento da saída dos convidados para fugir. Quando vissem a cena no estacionamento, na certa todos entrariam em pânico e o Chacal aproveitaria para escapar — com quem e em qual veículo? Bourne precisava entrar no arsenal, deter Carlos, apanhá-lo! Krupkin preocupava-se com as vidas de “dezenas de homens e mulheres” — mas não sabia que, na realidade, podiam ser centenas. O Chacal usaria todas as armas que pudesse roubar, incluindo granadas, para provocar a histeria em massa, o que facilitaria sua fuga. As vidas nada significavam se tivessem de ser sacrificadas para salvar a dele, nada. Abandonando a cautela, Bourne correu para a porta com o pino de segurança da AK-47 destravado, o dedo no gatilho. Em vão tentou girar a maçaneta. Atirou no metal em volta da fechadura, depois na parte interna, e quando estendeu a mão para a maçaneta seu mundo pessoal enlouqueceu! Um caminhão pesado saiu da fileira de carros no estacionamento e partiu diretamente para cima dele, acelerando à medida que se aproximava. Ao mesmo tempo uma rajada de tiros varreu a madeira à
sua direita. Bourne saltou para a esquerda, rolou no chão e continuou rolando com os olhos e o nariz cheios de poeira. Então aconteceu! A explosão maciça destroçou a porta, arrancando uma boa parte da parede acima dela, e através da fumaça negra e do entulho que caía, ele viu um vulto caminhando com dificuldade para o círculo de veículos. Seu assassino estava fugindo. Mas ele estava vivo! E a razão era óbvia. O Chacal cometera um erro! Não a armadilha, essa fora extraordinária, Carlos sabia que seu inimigo estava com Alex, Krupkin e o homem do KGB, por isso, saiu e esperou por ele. Seu erro fora na colocação dos explosivos. A bomba, ou bombas, estavam armadas na capota do caminhão, não debaixo dos chassis. Os componentes de um explosivo procuram se libertar através das barreiras menos resistentes que encontram, e a capota de um veículo é muito menos resistente do que a armação sólida de ferro dos chassis. A bomba estourou para cima, não ao nível do solo, onde espalharia fragmentos mortais por uma grande extensão. Não tinha tempo! Bourne levantou-se e correu para o carro do Komitet com um pressentimento horrível. Olhou pela janela da frente do carro, viu um leve movimento e abriu a porta. Krupkin estava caído sob o painel, com o ombro direito quase completamente esfacelado. — Estamos feridos — disse o oficial do KGB com voz fraca mas calma. — O ferimento de Aleksei é mais grave do que o meu, por isso, cuide dele primeiro, por favor. — O pessoal está saindo agora... — Aqui! — interrompeu Krupkin, com dificuldade, tirando do bolso seu cartão plastificado de identificação. — Procure o idiota encarregado e traga-o aqui. Precisamos de um médico. Para Aleksei, seu tolo. Depressa! Numa das extremidades da enfermaria do arsenal, Bourne observava os dois homens feridos e os médicos, sem entender o que diziam. Três médicos do Hospital do Povo, na Serova Prospekt haviam chegado de helicóptero — dois cirurgiões e um anestesista, mas a cooperação deste último não foi necessária. A anestesia local era suficiente para limpar e suturar os ferimentos, acompanhada por injeções de antibióticos. Os objetos estranhos haviam passado através dos seus corpos, explicou o médico chefe. — Suponho que quer dizer balas, quando fala reverentemente de “objetos estranhos” — disse Krupkin, irritado. — Ele quer dizer balas — confirmou Alex, em russo, com voz rouca. Conklin não podia mover a cabeça por causa das ataduras no pescoço. Largas tiras de esparadrapo estendiam-se sobre sua clavícula e o ombro direito. — Obrigado — disse o cirurgião. — Vocês tiveram muita sorte, especialmente você, nosso paciente americano, para o qual devemos fazer um relatório médico confidencial. A propósito, dê aos nossos auxiliares o nome e o endereço do seu médico nos Estados Unidos. Vai precisar dos serviços dele durante algumas semanas.
— No momento ele está num hospital em Paris. — Como disse? — Bem, sempre que alguma coisa me acontece, mando recado e ele me indica um médico. — Isso não é exatamente medicina socializada. — Para mim, é. Vou dar o nome e o endereço dele para a enfermeira. Com sorte, ele logo estará de volta. — Repito, você teve muita sorte. — Fui muito rápido, doutor, assim como seu camarada. Vimos aquele filho da mãe correndo para nós, então trancamos as portas e sem parar de nos movimentar dentro do carro atiramos, para evitar que ele chegasse mais perto e acabasse conosco, o que ele quase conseguiu... É uma pena que tenha matado o motorista, era um jovem muito corajoso. — Um jovem furioso também, Aleksei — disse Krupkin, da outra mesa. — Os primeiros tiros, vindos da porta do arsenal, provocaram a batida do carro no ônibus. A porta da enfermaria abriu-se bruscamente, ou melhor, a sala foi invadida pela augusta presença do comissário do apartamento em Slavyansky. Os modos do oficial do Komitet estavam perfeitamente de acordo com seus traços pesados, sua fala rude e seu uniforme em desordem. — Você — disse ele para o médico. — Falei com seus companheiros lá fora. Disseram que já acabou aqui. — Não completamente, camarada. Faltam ainda algumas pequenas coisas, certas medidas terapêuticas... — Mais tarde — interrompeu o comissário. — Vamos falar em particular. Sozinhos. — O Komitet fala? — perguntou o cirurgião, com desprezo mal disfarçado. — O Komitet fala. — Às vezes demais. — O quê? — Você ouviu — disse o médico, dirigindo-se para a porta. O homem do KGB deu de ombros e esperou que o médico saísse, fechando a porta da enfermaria. Aproximou-se então dos pés das duas mesas de curativo, e os olhos entrecerrados, quase escondidos no rosto gordo, iam de um ferido para o outro. Disse apenas uma palavra. — Novgorod!
— O quê? — O quê...? As perguntas foram simultâneas e até Bourne deu um passo à frente, desencostando da parede. — Você — disse o comissário, no seu inglês claudicante. — Compreende? — Se você disse o que eu penso que disse, eu compreendo, mas só o nome. — Explico muito bem. Interrogamos os nove homens e mulheres que ele trancou no depósito de armas. Ele mata dois guardas que não podem detê-lo, certo? Ele tira chaves dos carros de quatro homens, mas não usa carros, certo? — Eu vi quando ele correu para os carros! — Qual? Três outras pessoas em Kubinka mortas, documentos, carros tomados. Qual? — Pelo amor de Deus, verifique com seu departamento de veículos, ou seja lá como vocês chamam! — Leva tempo. Também em Moscou, automóveis sob nomes diferentes, placas diferentes — Leningrado, Smolensk, quem sabe —, para não mencionar as leis de automóveis violadas. — De que diabo ele está falando? — gritou Jason. — A propriedade dos automóveis é regulamentada pelo governo — explicou Krupkin. — Cada centro importante tem registros separados e geralmente se recusa a cooperar com outros centros. — Por quê? — Propriedade individual sob sobrenomes diferentes — até sem sobrenomes. É proibido. Há poucos carros à venda. — E daí? — O suborno local é um fato da vida. Ninguém em Leningrado quer que um burocrata de Moscou aponte um dedo para ele. Ele está dizendo que pode levar vários dias até descobrir qual o automóvel que o Chacal está dirigindo. — Isso é loucura! — Você disse, Sr. Bourne, não eu. Sou um cidadão importante da União Soviética, por favor, lembre-se disso. — Mas o que tudo isso tem a ver com Novgorod — foi o que ele disse, não foi? — Novgorod. Shto eto znachit? — Krupkin perguntou ao oficial do KGB.
Falando rapidamente em russo, o comissário-camponês descreveu os detalhes essenciais para o companheiro de Paris. Krupkin traduziu. — Preste atenção, Jason — disse ele com voz fraca e irregular, a respiração cada vez mais difícil. — Aparentemente a arena do arsenal é circundada por uma galeria. Da janela dessa galeria ele o viu ao lado da cerca viva, fora do arsenal, e voltou para a sala de armas gritando como o louco que ele é. Aos berros, disse aos seus reféns amarrados que você era dele e que você estava morto... E que só faltava uma coisa para ele fazer. — Novgorod — interrompeu Conklin, num murmúrio, a cabeça rígida, os olhos no teto. — Exatamente — disse Krupkin, olhando para o perfil de Alex, na mesa ao lado da sua. — Ele está voltando para o lugar do seu nascimento... onde Ilich Ramirez Sanchez tornou-se Carlos, o Chacal, por ter sido renegado, marcado para execução por sua loucura. Com a arma nos pescoços dos seus prisioneiros, fez com que indicassem o melhor caminho para Novgorod, ameaçando matar quem mentisse. É claro que ninguém mentiu e os que sabiam disseram que ficava a seiscentos quilômetros, um dia inteiro de viagem, de carro. — De carro? — perguntou Bourne. — Ele sabe que não pode usar qualquer outro meio de transporte. As estradas de ferro, os aeroportos — até os pequenos — estão sendo vigiados, e ele sabe disso. — O que ele vai fazer em Novgorod? — perguntou Jason, rapidamente. — Bom Deus do céu — duas coisas que, é claro, não existem —, quem sabe! Ele quer deixar sua marca, uma lembrança extremamente destrutiva da própria pessoa, sem dúvida, em resposta àqueles que, como ele acredita, o traíram há trinta e tantos anos, bem como às pobres almas que ele matou esta manhã na Vavilova... Ele tomou os documentos do nosso agente treinado em Novgorod, pensando que pode entrar com eles. Mas não vai entrar — nós o deteremos. — Nem tente — disse Bourne. — Ele pode usar ou não a identificação, dependendo do que vir, do que ele sentir. Carlos não precisa de papéis para entrar em Novgorod, como eu também não preciso, mas se sentir que alguma coisa está errada, e ele vai sentir, mata uma porção de gente e entra. — Aonde você quer chegar? — perguntou Krupkin com voz cansada, olhando para Bourne, o americano com identidades alternadas e aparentemente com estilos de vida conflitantes. — Quero que me faça entrar antes dele com um mapa detalhado de todo o complexo e documentos que me dêem acesso livre a qualquer lugar. — Você perdeu o juiz! — exclamou Dimitri. — Um americano infalível, um assassino procurado por todos os países da OTAN na Europa, dentro de Novgorod? — Nyet, nyet, nyet! — rugiu o comissário do Komitet. — Eu compreendo bem, certo? Você é um lunático, certo?
— Vocês querem o Chacal? — É claro, mas há limites para o que vamos pagar. — Não tenho o menor interesse por Novgorod ou qualquer outro complexo — a esta altura já deviam saber disso Suas operaçõezinhas de infiltração e as nossas operações de infiltração podem continuar eternamente porque, a longo prazo, não significam nada. É tudo um jogo de adolescentes. Ou vivemos juntos neste planeta ou não vai haver planeta algum... Só Carlos me interessa. Quero o Chacal morto para que eu possa continuar a viver. — É claro, eu pessoalmente concordo com quase tudo que você disse, embora os jogos de adolescentes sirvam para nos manter empregados. Entretanto, de modo nenhum posso convencer meus superiores, a começar por este que está aqui ao meu lado. — Tudo bem — disse Conklin, sempre olhando para o teto. — Vamos negociar — sujo e rasteiro. Vocês põem Bourne dentro de Novgorod e podem ficar com Ogilvie. — Já estamos com ele, Aleksei. — Não totalmente. Washington sabe que ele está aqui. — E daí? — Daí que eu posso dizer que vocês o perderam e eles vão acreditar. Vão acreditar se eu disser que ele fugiu do seu ninho e que vocês estão danados da vida, mas não podem trazê-lo de volta. Ele está operando de pontos desconhecidos ou fora do seu alcance, mas evidentemente sob a proteção soberana de um país das Nações Unidas. Por conjetura, acho que foi assim que vocês conseguiram que ele viesse para cá. — Está sendo enigmático, meu bom e velho inimigo. Com que objetivo eu deveria aceitar sua sugestão? — Nenhum problema com o Tribunal Mundial, nenhuma acusação de dar proteção a um americano acusado de crimes internacionais... Vocês ganham as fontes de lucro na Europa... Confiscam a operação Medusa sem nenhuma complicação — em nome de um tal Dimitri Krupkin, um homem comprovadamente sofisticado da sociedade cosmopolita de Paris. Quem melhor para dirigir o empreendimento?... O mais novo herói do Soviete, membro do conselho privado econômico do Presidium. Esqueça da droga de casa em Genebra, Kruppie, que tal uma mansão no Mar Negro? — É uma oferta inteligente e muito atraente, pode estar certo — disse Krupkin. — Conheço uns dois ou três homens no comitê central com quem posso me comunicar em questão de minutos — tudo muito confidencial, é claro. — Nyet! Nyet! — gritou o comissário do KGB, batendo com a mão fechada na mesa de Dimitri. — Eu compreendo alguma coisa — vocês falam muito depressa — mas tudo é loucura! — Ora, cale a boca, pelo amor de Deus! — rugiu Krupkin. — Estamos falando de coisas muito
além da sua compreensão. — Shto? — Como uma criança repreendida por um adulto, o comissário do Komitet arregalou os olhos, atônito e assustado. — Dê uma oportunidade ao meu amigo, Kruppie — disse Alex. — Ele é o melhor que existe e pode trazer o Chacal para você. — Pode também morrer, Aleksei. — Ele já esteve lá antes. Acredito nele. — Acreditar — murmurou Krupkin, por sua vez olhando para o teto. — Um luxo tão especial... Muito bem, a ordem será dada secretamente, sua origem desconhecida, é claro. Você entra no nosso complexo americano. É o complexo que menos compreendemos. — Em quanto tempo posso chegar lá? — perguntou Bourne. — Tenho de preparar muita coisa. — Temos um aeroporto em Vnokova sob nosso controle. A menos de uma hora daqui. Primeiro, preciso tomar as providências. Tragam-me um telefone... Você, meu comissário imbecil! Nem mais uma palavra! Um telefonei O superior, antes todo-poderoso, agora domado, que na verdade só havia entendido as palavras “Presidium” e “comitê central”, cheio de boa vontade, levou a extensão até a mesa onde estava Krupkin. — Mais uma coisa — disse Bourne. — Mande a Tass expedir imediatamente um boletim, com cobertura total dos jornais, rádios e televisão, anunciando que o assassino conhecido como Jason Bourne morreu em Moscou, em virtude de ferimentos recebidos. Não entre em detalhes, mas o suficiente para que possam relacionar minha morte com o que aconteceu aqui esta manhã. — Isso não é difícil. A Tass é um instrumento obediente do Estado. — Não acabei ainda — continuou Jason. — Quero que inclua nos detalhes vagos a informação de que, entre os objetos pessoais de Bourne, foi encontrado um mapa das ruas e estradas de Bruxelas e vizinhanças. A cidade de Anderlecht estava marcada com um círculo vermelho — isso tem de ser noticiado. — O assassinato do comandante supremo da OTAN — muito bom, muito convincente. Entretanto, Sr. Bourne, ou Sr. Webb, ou seja lá qual for seu nome, deve saber que a história vai se espalhar pelo mundo todo como uma onda gigantesca. — Sei disso. — Está preparado para isso? — Sim, estou. — E sua mulher? Não acha melhor falar com ela primeiro, antes de o mundo civilizado saber
que Jason Bourne está morto? — Não. Não quero arriscar qualquer vazamento. — Jesus! — explodiu Alex, tossindo. — Você está falando de Marie. Ela vai ficar arrasada! — Aceito o risco — disse Delta, friamente. — Seu filho da mãe! — Que seja — disse o Camaleão. John St. Jacques entrou na sala clara e ensolarada da casa em Maryland com os olhos cheios de lágrimas e um impresso de computador na mão. A irmã estava sentada no chão, na frente do sofá, brincando com Jamie, depois de ter levado Alison para a cama. Marie parecia cansada e abatida, pálida e com olheiras, exausta e tensa, e sob os efeitos do jet lag dos longos vôos idiotas da sua viagem de Paris a Washington. Embora tivesse chegado tarde na noite anterior, levantou cedo para estar com os filhos — ignorando os conselhos bem intencionados da materna! Sra. Cooper. John teria dado anos de sua vida para não fazer o que ia fazer dentro de poucos minutos, mas não podia arriscar as alternativas. Precisava estar com ela quando Marie soubesse. — Jamie — disse St. Jacques docemente. — Quer ir procurar a Sra. Cooper, por favor? Acho que ela está na cozinha. — Por quê, tio John? — Quero falar um pouco com sua mãe. — Johnny, por favor — reclamou Marie. — Eu preciso, Marie. — O quê...? Jamie, como acontece com as crianças, sentiu que alguma coisa muito séria tinha acontecido e, quando chegou perto da porta, voltou-se e olhou fixamente para o tio. Marie levantou-se e viu as lágrimas descendo pelo rosto do irmão. A mensagem terrível estava dada. — Não...! — murmurou ela, ficando mais pálida ainda. — Bom Deus, não! — exclamou, com as mãos e os ombros tremendo incontrolavelmente. — Não... não! — quase gritou Marie. — Ele se foi, mana. Eu queria que você soubesse por mim, não pelo rádio ou televisão. Quero estar com você. — Você está enganado, enganado! — gritou Marie, correndo para ele e agarrando-o pela camisa. — Ele está protegido! ... Ele me prometeu que estaria protegido! — Isto acaba de chegar de Langley. — Johnny estendeu o impresso de computador. — Holland
telefonou há poucos minutos, avisando que ia mandar. Ele sabia que você ia querer ver. É a notícia da Rádio Moscou, transmitida durante a noite, e estará em todos os jornais, rádios e televisões de manhã. — Dê-me isso! — exclamou Marie desafiadoramente. Johnny entregou o impresso, preparado para abraçá-la e dar o conforto que fosse possível. Marie leu rapidamente, depois sacudiu as mãos e caminhou para ò sofá, franzindo a testa, pensativa. Sua concentração era completa. Pôs o papel na mesa de centro e o estudou como se fosse um achado arqueológico, um pergaminho precioso. — Ele se foi, Marie. Não sei o que dizer — você sabe o que eu sentia por ele. — Sim, eu sei, Johnny. — Então, para espanto do irmão, ela ergueu os olhos com um leve sorriso nos lábios pálidos. — Mas é um pouco cedo demais para lágrimas, Johnny. Ele está vivo. Jason Bourne está vivo e fazendo das suas, o que significa que David está vivo também. Meu Deus, ela não quer aceitar, pensou John St. Jacques, ajoelhando ao lado da irmã e segurando as mãos dela. — Mana, meu bem, acho que não compreendeu. Farei o possível para ajudá-la, mas você tem de aceitar. — Johnny, você é um amor, mas não leu isto com atenção, com bastante atenção. O impacto da mensagem é minimizado pelo subtexto. Em economia chamamos de ofuscação com uma nuvem de fumaça e dois espelhos. — O quê? — St. Jacques soltou a mão dela e ficou de pé. — Do que está falando? Marie apanhou o impresso e examinou-o outra vez. — Depois de um relato confuso, até mesmo contraditório do que aconteceu — disse ela —, feito por pessoas que assistiram à cena neste arsenal, ou seja lá o que for, vem o seguinte, quase escondido no parágrafo seguinte: “Entre os objetos pessoais encontrados no corpo do assassino estava um mapa de Bruxelas e vizinhanças, com a cidade de Anderlecht marcada com um círculo vermelho.” Então continua, fazendo a conexão óbvia com o assassino de Teagarten. É uma mentira, Johnny, sob dois aspectos... Primeiro, David jamais levaria com ele esse mapa. Segundo, e muito mais significativo. É estranho o fato de a mídia soviética dar tanto destaque ao acontecido, mas a referência ao assassinato do general Teagarten é inconcebível. — O que quer dizer? Por quê? — Porque o suposto assassino estava na Rússia, e Moscou não quer ter nenhuma ligação com o assassinato do comandante supremo da OTAN... Não, Johnny, alguém burlou as regras e convenceu a Tass a publicar isso e eu suspeito que cabeças vão rolar. Não sei onde está Jason Bourne, mas sei que não está morto. David providenciou para que eu tivesse certeza disso. Peter Holland apanhou o telefone e digitou os números da linha particular de Charles Casset. — Sim?
— Charlie, é Peter. — Fico aliviado ouvindo isso. — Por quê? — Porque tudo que estou recebendo neste telefone é confusão e problema. Acabo de falar com nossa fonte na Praça Dzerzhinsky e ela disse que o KGB quer sangue. — A notícia da Tass sobre Bourne? — Certo. A Tass e a Rádio Moscou acham que a história foi chancelada oficialmente porque foi enviada por fax pelo Ministério de Informações por meio de códigos de transmissão direta. Quando a merda, acertar o ventilador, ninguém vai ser responsável, e não vão poder identificar quem programou os códigos. — O que você acha? — Não estou bem certo, mas pelo que tenho ouvido sobre Dimitri Krupkin, parece ser seu estilo. Ele está trabalhando com Alex e se isto não é uma coisa tirada do livro de Conklin, eu não conheço Santo Alex. E eu sei que conheço. — Isso combina com a opinião de Marie. — Marie? — A mulher de Bourne. Acabo de falar com ela e seu argumento é bem forte. Ela diz que a notícia de Moscou é uma farsa e todas as suas razões são válidas. Seu marido está vivo. — Eu concordo. Foi para isso que você telefonou? — Não — disse o diretor, respirando fundo. — Foi para acrescentar mais confusão e mais problemas aos que você já tem. — Não é um alívio ouvir isso. O que há? — O número de telefone em Paris, que Henri Sykes conseguiu para nós, em Montserrat, do café do cais Marais, Paris. — Onde alguém devia responder quando chamassem um melro. Sim, eu me lembro. — Alguém atendeu e nós o seguimos. Você não vai gostar. — Alex Conklin está prestes a ganhar o prêmio do maior vidente do ano. Ele nos deu a pista de Sykes, certo? — Certo.
— Vá em frente. — A mensagem foi entregue na casa do diretor do Deuxième Bureau. — Meu Deus, acho melhor informar o departamento SED, da Inteligência francesa, com uma cronologia restrita. — Não vou informar ninguém de coisa alguma, antes de falar com Conklin. Acho que lhe devemos pelo menos isso. — Que diabo eles estão fazendo? — berrou Casset, frustrado. — Espalhando notícias falsas de morte — de Moscou, nem mais, nem menos! Para quê? — Jason Bourne foi caçar — disse Peter Holland. — E quando a caçada terminar — se terminar e se ele matar —, vai ter de sair do bosque antes que alguém o pegue... Quero todas as estações e postos nas fronteiras da União Soviética em alerta permanente. Nome de código: Assassino. Traga-o de volta.
Capítulo40 NOVGOROD. Dizer que era incrível seria reconhecer obliquamente a existência da credibilidade e isso era quase impossível. Era a fantasia extrema, com ilusões de ótica mais reais do que a realidade. A fantasmagoria podia ser tocada e sentida, usada, era possível entrar nela e sair, uma obraprima coletiva de criatividade no meio das florestas imensas ao longo do Rio Volkhov. Desde o momento em que saiu do túnel sob a água, com seus guardas, portões e miríades de câmaras, Bourne quase entrou em estado de choque, embora continuasse a andar, observar, absorver o que via, pensar. O complexo americano, supostamente igual aos de outras nacionalidades, era dividido em seções, construídas em áreas que iam de dois a cinco acres, cada uma completamente separada das outras. Uma área, construída às margens do rio, podia ser o coração de uma cidadezinha da costa do Maine. Outra, mais para o interior, era uma pequena cidade do sul, outra ainda, a rua movimentada de um grande centro. Cada uma completamente “autêntica”, com o tráfego apropriado de veículos, policiais, vestuário, lojas, armazéns e lanchonetes, postos de gasolina e imitações de prédios — alguns com dois andares e tão reais que tinham ferragens americanas nas portas e nas janelas. Evidentemente, tão importante quanto a aparência era a língua — não apenas o uso fluente do inglês, mas o domínio completo das variações, os sotaques característicos de cada lugar. Passando de uma seção para outra, Jason ouvia distintamente as entonações, as pronúncias diferentes. Desde o “eeahh” da Nova Inglaterra, no leste, ao falar arrastado do Texas e a pronúncia anasalada e preguiçosa do centro-oeste, até a fala alta e rascante das grandes cidades e o leste com o inevitável “sabe o que quero dizer?” no final das frases, fossem elas perguntas ou afirmações. Era tudo incrível. Não apenas isso. Tornava assustadoramente inviável qualquer incredulidade. Jason embarcou em Vnokova na companhia de um graduado idoso de Novgorod, urgentemente requisitado por Krupkin para dar todas as informações necessárias sobre o complexo. O homem, pequeno e, calvo, além de dar as instruções com os menores detalhes, era também fascinante. Se alguém tivesse dito a Jason Bourne que algum dia ele ia receber instruções detalhadas de um agente de espionagem soviético, cujo inglês era tão tipicamente sulino que parecia flutuar da sua boca com perfume de magnólia, ele teria achado a idéia ridícula. — Bom Deus — disse o homem, com a fala arrastada do sul dos Estados Unidos. — Como sinto falta daqueles churrascos, especialmente das costeletas. Quer saber quem fazia as melhores costeletas? Aquele cara negro que eu pensei que fosse meu amigo e que me delatou. Pode imaginar? Pensei que ele fosse um daqueles radicais. Acabou que ele era de Dartmouth e trabalhava para a CIA. Um advogado, nem mais nem menos... Diabo, a troca foi feita na Aeroflot, em Nova York, e ainda nos correspondemos. — Jogos de adolescentes — murmurou Bourne. — Jogos?. . Oh, sim, ele era um treinador danado de bom. — Treinador?
— Isso mesmo. Nós fundamos um pequeno time em East Point. Isso fica perto de Atlanta. Incrível. — Podemos nos concentrar em Novgorod, por favor? — Certo, Dimitri com certeza lhe disse, estou semi-aposentado, mas minha pensão exige que eu passe cinco dias por mês no complexo, como um tak govoroya — um “instrutor”, como você diria. — Não compreendi o que ele me disse. — Vou explicar. — O homem estranho, cuja voz parecia pertencer à antiga Confederação, explicou detalhadamente. Cada complexo de Novgorod tinha três classes de pessoal: os instrutores, os candidatos e os operadores. A última categoria incluía o pessoal do KGB, guardas e o pessoal da manutenção. A estrutura da complementação prática do processo era bastante simples. Uma equipe elaborava os planos das tarefas diárias para cada seção, e os treinadores, tanto os permanentes como os aposentados que trabalhavam cinco dias por mês, dirigiam todas as atividades individuais e de grupo dos candidatos, usando somente a língua do complexo e os dialetos das áreas específicas nas quais estavam. Não era permitido falar russo. Essa regra era testada freqüentemente pelos instrutores que, de repente, gritavam ordens ou insultos na sua língua nativa. Os candidatos não podiam demonstrar que compreendiam. — O que você quer dizer com tarefas? — perguntou Bourne. — Situações, meu amigo. Tudo que você pode imaginar. Como pedir almoço ou jantar, comprar roupa, encher o tanque do carro, pedindo um determinado tipo de gasolina... com aditivo ou sem aditivo e os graus de octana — coisas de que nem temos idéia por aqui. É claro, há também eventos mais sérios, inesperados, para testar as reações dos candidatos. Por exemplo, um acidente de automóvel que exige uma conversa com a polícia “americana” e todos os formulários de seguro que devem ser preenchidos — a gente pode se trair se não souber essas coisas. As coisas pequenas, as coisas insignificantes — são vitais. Uma porta nos fundos do Arsenal Kubinka. — O que mais? — Tantas coisas que a gente pensa que não são importantes, mas são. Digamos, ser assaltado na rua de uma cidade, à noite — o que fazer, o que não fazer? Lembre-se, muitos dos nossos candidatos, e todos os mais jovens, aprendem defesa pessoal, mas dependendo das circunstâncias, pode não ser prudente usar essa habilidade. Podem surgir dúvidas quanto ao seu passado. Discrição, sempre discrição De minha parte, como um tak govoroya experiente, sempre preferi as situações mais imaginativas nas quais podemos improvisar à vontade, desde que não sejam ultrapassados os limites da infiltração ambiental. — O que quer dizer isso?
— Aprenda sempre, mas nunca demonstre que está aprendendo. Por exemplo, uma das minhas situações favoritas consiste em me aproximar de alguns candidatos, digamos, num bar, numa “localidade” próxima de uma base militar de testes. Finjo que sou um funcionário do governo revoltado, ou um funcionário da defesa, bêbado — obviamente alguém com acesso a informações importantes —, e começo a expor informação confidencial de grande valor. — Só por curiosidade — interrompeu Bourne —, nessas circunstâncias, como o candidato deve reagir? — Escutar com atenção para ser capaz de escrever os detalhes mais importantes, durante todo o tempo fingindo falta de interesse com observações como esta: aqui em Novgorod, o dialeto sulino dos graduados parece tanto com o dos montanheses do sul que as magnólias se transformam em bebida azeda, “Quem se importa com toda essa baboseira?” Ou “Eles têm mesmo todas aquelas prostitutas lá dentro, como dizem?” Ou ainda, “Não entendo nenhuma droga de palavra do que você está dizendo, seu cretino, só sei que está me enchendo o saco”... esse tipo de coisa. — E depois? — Mais tarde, cada homem é chamado para fazer uma lista de tudo que ouviu — fato por fato. — E para passar adiante a informação? Existe também um processo para isso? O instrutor soviético de Jason olhou para ele em silêncio por alguns momentos, depois disse: — É uma pena que você tenha feito essa pergunta — disse ele. — Sou obrigado a informar no meu relatório. — Eu não precisei fazer a pergunta. Foi simples curiosidade. Esqueça. — Não posso. Não vou fazer isso. — Você confia em Krupkin? — É claro que confio. Ele é brilhante, fala muitas línguas. Um verdadeiro herói do Komitet. Você não sabe nem a metade, pensou Bourne, mas disse, com reverência: — Então, faça seu relatório só para ele. Ele vai dizer que foi apenas curiosidade minha. Não devo absolutamente nada ao meu governo, ao contrário, é ele que me deve. — Muito bem... Por falar em você, com a autoridade de Dimitri, providenciei tudo para sua visita a Novgorod. Por favor, não me diga qual é seu objetivo, não me interessa, assim como o que você perguntou não o interessa. — Compreendido. As providências? — Você vai entrar em contato com um jovem instrutor chamado Benjamin, do modo que vou descrever. Primeiro vou falar sobre Benjamin, para que você compreenda sua atitude. Seus pais
trabalharam quase vinte anos para o Komitet, no consulado de Los Angeles. Ele praticamente foi criado nos EUA e fez os dois primeiros anos na UCLA. Na verdade, até ele e o pai serem chamados apressadamente a Moscou, há quatro anos... — Ele e o pai? — Sim. A mãe foi apanhada numa operação do FBI na base naval de San Diego. Ela tem de cumprir ainda três anos de prisão. Não existe clemência, nem trocas para uma momma russa. — Ei, espere um pouco. Então, não pode ser tudo culpa nossa. — Eu não disse que era. Estou só relatando os fatos. — Compreendi. Eu faço contato com Benjamin. — Ele é o único que sabe quem você é — não. seu nome, é claro, você vai usar o nome de “Archie”. Ele vai dar a autorização necessária para transitar de um complexo para outro. — Documentos? — Ele explicará. Benjamin vai também vigiá-lo, vai estar com você o tempo todo e, francamente, ele falou com o camarada Krupkin e sabe muito mais do que eu, exatamente como um aposentado da Geórgia gosta das coisas... Boa caçada, gato do mato, se você vai caçar. Não estupre nenhum índio de madeira. Bourne seguiu as placas, todas em inglês, para a cidade de Rockledge, Flórida, 25 quilômetros a sudoeste da NASA, em Cabo Canaveral. Ia se encontrar com Benjamin, na lanchonete da Woolworth local, e devia procurar um homem de vinte e poucos anos, com camisa xadrez vermelha, guardando uma banqueta ao seu lado com um boné de beisebol. Estava na hora combinada, 3:35h da tarde. Bourne o viu. O russo de cabelos louros quase brancos, criado e educado na Califórnia, estava na extremidade direita do balcão, com o boné de beisebol na banqueta ao seu lado. Uma meia dúzia de homens e mulheres consumiam refrigerantes e sanduíches, conversando descontraidamente Jason aproximou-se da banqueta vazia, olhou para o boné e perguntou educadamente: — Este lugar está ocupado? — Estou esperando alguém — disse o jovem instrutor do KGB, com voz inexpressiva, observando Bourne com atenção. — Arranjo outro lugar. — Ela ainda vai demorar cinco minutos. — Bem, vou só tomar uma vaca-preta. Em menos de cinco minutos estou saindo... — Sente — disse Benjamin, pondo o boné na cabeça.
O rapaz do balcão aproximou-se, mascando chiclete, Bourne fez seu pedido, foi servido e o instrutor do Komitet disse em voz baixa, olhando agora para a espuma do seu milk shake e tomando um gole no canudinho: — Então, você é Archie, como na história em quadrinhos. — E você é Benjamin. Muito prazer. — Nós dois vamos ver se é ou não, certa? — Temos algum problema? — Quero esclarecer as regras, para que não haja nenhum — disse o soviético da Costa Oeste dos Estados Unidos. — Não aprovo a permissão para sua entrada aqui. Independente do meu passado e do modo que eu falo, não gosto muito da América. — Escute aqui, Ben — interrompeu Bourne, obrigando o instrutor a olhar para ele. — De um modo geral, também não aprovo o fato de sua mãe estar ainda na prisão, nos EUA, mas não fui eu quem a prendeu. — Nós libertamos os dissidentes e os judeus, mas vocês insistem em manter presa uma mulher de 58 anos que, na pior das hipóteses, não passava de uma mensageira! — disse o russo em voz baixa e indignada. — Não conheço os fatos e não chamaria Moscou de capital da clemência, mas se você puder me ajudar — me ajudar de verdade —, talvez eu possa ajudar sua mãe. — Besteiras, promessas idiotas. Que diabo você pode fazer? — Repetindo o que eu disse uma hora atrás a um seu amigo careca, no avião, não devo nada ao meu governo, mas ele me deve, e muito. Ajude-me, Benjamin. — Vou ajudar porque são as ordens que recebi, não por causa da sua conversa. Mas se tentar descobrir coisas que nada têm a ver com seu objetivo aqui — nunca mais vai sair. Está claro? — Não só claro, como irrelevante e desnecessário. Além do espanto e da curiosidade naturais, que pretendo controlar da melhor maneira possível, não tenho o menor interesse nos objetivos de Novgorod. Para ser franco, acho que não levam a nada... Porém, eu juro, o complexo deixa a Disneylândia no chinelo. Benjamin estava com o canudinho na boca, e o riso espontâneo espalhou espuma de milk shake sobre o balcão. — Já esteve em Anaheim? — perguntou ele, com um olhar malicioso. — Nunca tive dinheiro suficiente. — Nós tínhamos passes diplomáticos.
— Cristo. Você é humano, afinal. Venha, vamos dar um passeio e falar de negócios. Atravessaram uma ponte em miniatura para New London, Connecticut, o centro da construção de submarinos nos Estados Unidos, e caminharam para o Rio Volkhov, naquela área transformada numa base naval de segurança máxima — tudo muito real e em miniatura. As cercas eram altas, e guardas armados dos “Fuzileiros Navais”, nos portões, patrulhavam a área na frente de armações de concreto com imitações dos submarinos nucleares da Marinha americana. — Temos todas as estações, todos os planos de atividades, todos os aparelhos e cada centímetro do cais — disse Benjamin. — E temos ainda de descobrir todo o procedimento de segurança, não é loucura? — Nem um pouco. Nós somos muito bons. — É, mas nós somos melhores. A não ser por pequenos grupos de descontentes, suponho. Vocês apenas aceitam. — O quê? — Apesar de todas as suas bobagens, a América branca nunca foi escravizada. Nós fomos. — Isso não é só história antiga, meu jovem, como também história muito seletiva, não concorda? — Você fala como um professor. — E se eu fosse? — Eu discutiria com você. — Só se estivesse num ambiente onde fosse permitida uma visão larga e onde pudesse discutir com autoridade. — Ora, vamos, deixe de besteira, cara! O lugar-comum da liberdade acadêmica é que é história antiga. Veja nossas universidades. Temos rock e blue jeans e mais grama do que, papel para embrulhála. — Isso é progresso. — Acreditaria que é um começo? — Tenho de pensar no assunto. — Pode mesmo ajudar minha mãe? — Pode mesmo me ajudar?
— Vamos tentar... Tudo bem, Carlos, o Chacal. Ouvi falar nele, mas não ocupa lugar importante no meu vocabulário. O direktor Krupkin diz que ele é um cara muito mau. — Estou ouvindo a Califórnia. — Sempre volta. Esqueça. Eu estou onde quero estar e nem por um instante pense o contrário. — Eu não me atreveria. — O quê? — Você está sempre protestando... — Shakespeare disse melhor. Fiz o curso de literatura inglesa na UCLA. — Ia se formar em quê? — História americana. O que mais, vovô? — Obrigado, garoto. — Esse Chacal — disse Benjamin, apoiando-se na cerca. Alguns guardas correram para ele. — Prosteetye! — gritou. — Não, não, quero dizer, desculpe. Tak govoroya! Sou instrutor!... Oh, merda! — Vão denunciá-lo? — perguntou Jason, quando os guardas se afastaram. — Não, são burros demais. É pessoal da manutenção uniformizado. Eles patrulham a área, mas na verdade não sabem do que se trata. Só quem e o que devem deter. — Os cães de Pavlov? — E por que não? Os animais não raciocinam, vão direto no pescoço e enfiam os dentes. — O que nos leva de volta ao Chacal. — Não compreendi. — Não precisa, é simbólico. Como é que ele pode entrar aqui? — Não devia poder. Todos os guardas, em todos os túneis, têm o nome e o número de série dos documentos do agente que ele matou em Moscou. Se ele aparecer vai ser fuzilado sumariamente. — Eu disse a Krupkin para não fazer isso. — Deus do céu, por quê? — Porque não vai ser ele, e vidas serão sacrificadas. Ele vai mandar outros, dois, três ou quatro, nos diversos complexos, sempre experimentando, confundindo, até encontrar um jeito de entrar.
— Você é doido. O que acontece com os homens que ele mandar? — Isso não importa. Se forem mortos, ele vê e aprende mais uma coisa. — Você é mesmo biruta. Onde ele vai encontrar gente desse tipo? — Em qualquer lugar onde exista gente que pensa que está ganhando o salário de um mês por alguns minutos de trabalho. Ele pode dizer que se trata de uma verificação de rotina da segurança — lembre-se, ele tem os documentos para provar que trabalha para o governo. Com ajuda do dinheiro, as pessoas ficam impressionadas e não duvidam dele. — E no primeiro portão ele perde os papéis — insistiu o instrutor. — Não, não perde. Ele está viajando por mais de seiscentos quilômetros, passando por dezenas de cidades e lugarejos. Pode fazer cópias em qualquer lugar. Seus centros comerciais têm máquinas Xerox, estão por toda parte e é muito fácil fazer com que as cópias pareçam verdadeiras. — Bourne parou, olhando para o soviético americanizado. — Você está falando de detalhes, Ben, e acredite, eles não contam. Carlos está vindo para cá para deixar sua marca e nós temos uma vantagem que anula toda sua experiência. Se Krupkin conseguiu fazer com que a notícia saia em todos os jornais, o Chacal pensa que eu estou morto. — O mundo todo pensa que você está morto... Sim, Krupkin me contou, seria bobagem não contar. Aqui você é um recruta chamado Archie, mas eu sei quem você é, Bourne. Mesmo que nunca tivesse ouvido falar em você antes, agora ouvi o bastante. Nas últimas quatro horas a Rádio Moscou não fala em outra coisa. — Então, podemos supor que Carlos tenha ouvido a notícia. — Sem dúvida. Todos os veículos na Rússia têm rádio, é padrão. Se quer saber, é para o caso de um ataque americano. — Bom marketing. — Você assassinou Teagarten em Bruxelas? — Deixe de ser curioso... — Off-limits, certo. O que você pretende? — Krupkin devia ter deixado a meu cargo. — Deixado o quê? — A entrada do Chacal. — De que diabo você está falando? — Use Krupkin, se for necessário, mas avise todos os túneis, todos os acessos a Novgorod para
deixar entrar quem estiver com aqueles documentos. Meu cálculo é que vão aparecer três, talvez quatro ou cinco. Devem vigiá-los, mas não impedir que entrem. — Você acaba de ganhar um quarto forrado com espuma de borracha. Você é louco, Archie. — Não, não sou. Eu disse que todos devem ser vigiados, seguidos, que os guardam devem manter contato permanente conosco. — E daí? — Um desses homens vai desaparecer depois de alguns minutos. Ninguém vai saber onde ele está, nem para onde foi. Esse homem vai ser Carlos. — E então? — Ele vai se convencer de que é invulnerável, que está livre para fazer o que quiser, porque pensa que eu estou morto. Isso o liberta. — Por quê? — Porque ele sabe e eu sei que só eu posso encontrá-lo, como só ele pode me encontrar, seja na selva ou nas cidades, ou numa combinação de ambas. O ódio faz isso, Benjamin. Ou o desespero. — É um bocado emocional, não acha? Muito abstrato, também. — Nada disso — respondeu Jason. — Tenho de pensar como ele pensa — fui treinado para isso há muitos anos... Vamos examinar as alternativas. Até que parte do Volkhov vai Novgorod? Trinta, quarenta quilômetros? — Quarenta e sete, para ser exato, e cada metro é impenetrável. Temos uma rede de canos de magnésio na água, com espaços acima e abaixo da superfície para evitar que os animais marinhos acionem o alarme. Na margem leste temos grades entrelaçadas, todas sensíveis ao peso. Qualquer coisa com mais de quatro quilos e meio aciona o alarme e monitores de televisão e holofotes são imediatamente focalizados no intruso. Mesmo que uma maravilha de quatro quilos chegue na cerca, uma descarga elétrica a deixa inconsciente. Os canos de magnésio também funcionam assim. É claro que árvores caídas, troncos e animais mais pesados dão muito trabalho à nossa segurança. Mas é boa disciplina, eu acho. — Então, sobram só os túneis — disse Bourne. — Certo? — Você entrou por um deles. O que posso lhe dizer que você não tenha visto? A não ser que grades de ferro praticamente despencam à menor irregularidade, e que em caso de emergência todos os túneis podem ser inundados. — Carlos sabe de tudo isso. Ele foi treinado aqui. — Há muitos anos, Krupkin me disse. — Muitos anos — concordou Jason. — Será que houve muita mudança?
— Tecnologicamente falando, pode encher vários volumes, especialmente no que se refere a comunicações e segurança, mas não basicamente. Não os túneis, as grades dentro e fora d’água. Foram construídos para durar séculos. Quanto aos complexos, sempre há atualizações de menor importância, mas não acredito que eles destruam ruas ou cheguem a demolir prédios. Seria mais fácil mudar uma dezena de cidades. — Assim, se houve alguma mudança, foram todas internas. — Chegaram a uma miniatura de cruzamento onde o motorista briguento de um Chevrolet dos anos setenta recebia uma multa de um guarda de trânsito, igualmente desagradável. — O que está acontecendo? — perguntou Bourne. — O objetivo do exercício é provocar a ira do motorista. Nos EUA todos discutem em voz alta com os guardas de trânsito. O que não acontece aqui. — Questionar a autoridade, como, por exemplo, o aluno que contradiz o professor? Acho que também não acontece muito. — Isso é completamente diferente. — Ainda bem que você pensa assim. — Jason ouviu um zumbido distante e olhou para o céu. Um aquaplano leve, monomotor, voava para o sul, acompanhando o Rio Volkhov. — Meu Deus, por ar — murmurou ele. — Esqueça — disse Benjamin. — Aquele avião é nosso... Tecnologia outra vez. Primeiro, não existe nenhum lugar para pousar, a não ser os heliportos e dois são protegidos por radar. Um avião não identificado que chegue a cinqüenta quilômetros daqui é abatido pela base de Belopol. No outro lado da rua algumas pessoas assistiam à discussão entre o policial desagradável e o motorista briguento que batia com a mão na capota do Chevrolet, incentivado pelos assistentes. — Os americanos podem ser muito tolos — resmungou o jovem instrutor, visivelmente embaraçado. — Pelo menos algumas idéias sobre os americanos podem ser tolas — disse Bourne com um sorriso. — Vamos — disse Benjamin, começando a andar. — Eu já observei que esse exercício não é muito realista, mas me explicaram que o importante é criar a atitude. — Como dizer a um aluno que ele pode discutir com o professor, ou a um cidadão que ele pode criticar abertamente um membro do Politburo? São atitudes estranhas, não são? — Vá plantar batatas, Archie.
— Fica frio, jovem Lenin — disse Jason, caminhando ao lado dele. — Onde está sua fria sofisticação de Los Angeles? — Deixei no La Brea Tar Pits. — Quero estudar os mapas, todos eles. Estavam na sala de conferências do quartel-general com a mesa longa e retangular coberta de mapas do complexo de Novgorod. Mesmo depois de quase quatro horas de concentração, Bourne freqüentemente balançava a cabeça, admirado. A série de áreas de treinamento ultra-secretas, ao longo do Volkhov, era mais extensa e mais complicada do que ele havia imaginado. A observação de Benjamin de que “seria mais fácil mudar uma dezena de cidades” do que modificar Novgorod era simplesmente a constatação de um fato, não era exagerada. Em escala menor, réplicas de cidades grandes e pequenas, portos e aeroportos, instalações militares e científicas, do Mediterrâneo ao Atlântico, do norte do Báltico ao Golfo de Bothnia, estavam representadas com suas fronteiras, todas de acordo com as medidas reais. Porém, todos os detalhes maciços estavam contidos em pouco mais de quarenta quilômetros de floresta na margem do rio, graças à imaginação e ao processo de miniaturização, numa profundidade de quatro a cinco quilômetros. — Egito, Israel, Itália — disse Jason, dando volta na mesa, olhando para os mapas —, Grécia, Portugal, Espanha, França e Grã-Bretanha. Estava no canto da mesa quando Benjamin interrompeu, recostando-se na cadeira com um gesto cansado. — Alemanha, Países Baixos e Escandinavos. Como eu expliquei, a maioria dos complexos inclui dois países diferentes, geralmente quando têm limites comuns, semelhanças culturais ou apenas para economizar espaço. Basicamente há nove complexos representando todas as nações importantes — importantes para os nossos interesses —, portanto nove túneis, com uma distância de nove quilômetros entre um e outro, começando com este aqui e seguindo o rio, para o norte. — Então, o primeiro túnel depois deste é o da Grã-Bretanha, certo? — Sim, seguido pelo da França, depois Espanha — que inclui Portugal —, depois, o outro lado do Mediterrâneo, com Egito ao lado de Israel... — Está claro — interrompeu Jason, sentando-se à, cabeceira da mesa e juntando as pontas dos dedos, numa atitude pensativa. — Mandou avisar que devem admitir qualquer pessoa que apresente aqueles documentos, não importa sua aparência? — Não. — O quê? — Bourne virou a cabeça rapidamente para o jovem instrutor. — Mandei o camarada Krupkin fazer isso. Ele está no hospital em Moscou, assim não podem prendê-lo lá por fadiga causada por excesso de trabalho.
— Como posso passar para outro complexo? Rapidamente, se for necessário? — Então está pronto para as regras básicas? — Estou pronto. Já vi o que tinha de ver nos mapas. — Certo. — Benjamin tirou do bolso um objeto negro do tamanho de um cartão de crédito e um pouco mais grosso. Jogou para Jason, que o apanhou no ar e o examinou. — Esse é o seu passaporte — continuou o soviético. — Só os chefes de equipe têm esse passe e se for perdido, ou esquecido em algum lugar, nem que seja por poucos minutos, o fato deve ser comunicado imediatamente. — Não tem identidade, nada escrito, nenhuma marca. — Está tudo dentro, computadorizado e codificado. Na entrada de cada complexo tem uma abertura especial. Você insere o cartão e as barreiras se levantam, admitindo-o e avisando os guardas que você tem permissão do quartel-general — e sua presença é anotada. — Muito inteligentes esses marxistas atrasados. — Eles tinham um cartãozinho idêntico para quase todos os quartos de hotel de Los Angeles, e isso foi há quatro anos... Agora, vamos ao resto. — As regras? — Krupkin as chama de medidas de proteção — tanto para nós quanto para você. Francamente, ele não acredita que você saia daqui vivo, e se não sair, está frito e perdido para sempre. — Deliciosamente realista. — Ele gosta de você, Bourne... Archie. — Continue. — No que se refere à equipe dirigente, você está em missão secreta para o escritório do inspetorgeral, em Moscou, um especialista americano enviado para verificar vazamentos de informações de Novgorod para o Ocidente. Devem dar tudo que você pedir, incluindo armas, mas ninguém deve falar com você, a não ser que você fale primeiro. Por causa do meu passado, sou seu contato. Qualquer coisa que precise, fale comigo. — Agradeço muito. — Talvez não muito — disse Benjamin. — Você não vai a lugar algum sem mim. — Isso é inaceitável. — Mas é como vai ser. — Não, não é.
— Por quê? — Porque não quero que me atrapalhem... e se eu sair daqui, quero que a mãe de um certo Benjamin o encontre vivo e bem-disposto, passeando em Moscou. O jovem russo olhou demoradamente para Bourne, com um misto de força e sofrimento nos olhos. — Você acha mesmo que pode nos ajudar? — Eu sei que posso... portanto, ajude-me. Jogue segundo minhas regras, Benjamin. — Você é um homem estranho. — Sou um homem faminto. Será que se pode arranjar alguma coisa para comer por aqui? E talvez algumas bandagens. Fui ferido há pouco tempo e meu pescoço e meu ombro não querem que eu esqueça. Jason tirou o paletó. Sua camisa estava ensopada de sangue. — Jesus Cristo! Vou chamar um médico... — Não, não vai. Só um enfermeiro, nada mais... Minhas regras, Ben. — Tudo bem, Archie. Estamos hospedados na suíte dos comissários visitantes, fica no último andar. Pedimos a comida no quarto e vou telefonar para a enfermaria pedindo o enfermeiro. — Como eu disse, estou com fome e sentindo dor, mas não é isso que me preocupa mais. — Fique descansado — disse o californiano soviético. — Assim que acontecer alguma coisa fora do normal, você será avisado. Vou enrolar os mapas. Aconteceu exatamente à meia-noite e dois minutos, logo depois da mudança universal da guarda, quando maior é o escuro da noite. O telefone tocou estridentemente na suíte dos comissários visitantes e Benjamin saltou do sofá. Atravessou o quarto correndo e agarrou o aparelho gritante e insistente. — Sim?... Pdye? Kogda? Shto eio znachit?... Da! — Desligou o telefone e voltou-se para Bourne, que estava sentado à mesa, os mapas de Novgorod substituídos pelos pratos do jantar. — É incrível! No túnel da “Espanha” — no outro lado do rio, dois guardas mortos, e deste lado o oficial da guarda foi encontrado a cinqüenta metros do seu posto, com uma bala no pescoço. Passaram os teipes e tudo o que viram foi um homem não identificado, carregando uma sacola de pano! Com uniforme de guarda! — Havia mais alguma coisa, não havia? — perguntou Delta friamente. — Sim, e talvez você tenha razão. Do outro lado encontraram um camponês com papéis rasgados na mão. Estava entre dois guardas assassinados, um deles só de cueca e com sapatos... Como é
que ele fez isso? — Ele era o cara bonzinho, não posso pensar em nada mais — disse Bourne, erguendo-se rapidamente e apanhando o mapa do complexo da “Espanha”. — Ele deve ter mandado o impostor pago com os papéis falsos, depois entrou correndo, o oficial do Komitet ferido descobriu a fraude falando uma língua estrangeira que o impostor não sabia compreender... Eu disse, Ben. Experimentando, testando, agitando e confundindo, ele vai encontrar um meio de entrar. Roubar o uniforme é método padrão, e na confusão ele entrou no túnel. — Mas qualquer pessoa com os papéis devia ser vigiada e seguida. Foram suas instruções e as de Krupkin! — O Kubinka — disse Jason, olhando pensativo para o mapa. — O Arsenal? O que foi mencionado no noticiário da Rádio Moscou? — Exatamente. Como no Kubinka, Carlos tem alguém aqui dentro. Alguém com autoridade suficiente para mandar que um oficial descartável da guarda leve à sua presença qualquer pessoa que invadir um túnel, antes de soar o alarme. — Isso é possível — concordou o jovem instrutor rapidamente, com voz firme. — Envolver o quartel-general com alarmes falsos é embaraçoso, e, como você diz, deve ter havido muita confusão. — Em Paris — disse Bourne, erguendo os olhos do mapa — me disseram que o embaraço é o pior inimigo do KGB. É verdade? — Numa escala de um a dez, pelo menos oito — respondeu Benjamin. — Mas quem ele pode ter aqui, quem ele poderia ter? Há mais de trinta anos que ele não vem a Novgorod. — Se tivéssemos umas duas horas e alguns computadores programados com as informações sobre todo o pessoal de Novgorod, podíamos talvez pesquisar uma centena de nomes e conseguir algumas possibilidades, mas não temos horas. Não temos nem minutos! Além disso, se eu conheço o Chacal, isso não importa. — Acho que importa e muito! — exclamou o soviético americanizado. — Há um traidor aqui e vamos saber quem é! — Aposto que vai descobrir antes do que pensa... Detalhes, Ben. A questão é: ele está aqui! Vamos, e você vai me arranjar o que preciso. — Certo. — Tudo de que eu preciso. — Tenho permissão para isso. — Então, você desaparece. Sei do que estou falando.
— De jeito nenhum, José! — Califórnia outra vez? — Você ouviu. — Então, a mãe do jovem Benjamin vai encontrar um cadáver quando ela voltar para Moscou. — Que seja! — Quê...? Por que teve de dizer isso? — Não sei, me pareceu a coisa certa. — Cale a boca! Vamos sair daqui!
Capítulo41 ILICH RAMIREZ SANCHEZ estalou duas vezes os dedos no escuro enquanto subia os pequenos degraus da entrada em miniatura de uma pequena igreja ao Paseo dei Prado, em “Madri”, com a sacola na mão esquerda. Um vulto saiu de trás de uma imitação de coluna, um homem pesado de sessenta e poucos anos que caminhou quase diretamente sob a luz fraca da lâmpada distante. Vestia uniforme de oficial do exército espanhol, tenente-general com três fileiras de divisas na túnica. Carregava uma maleta de couro que ergueu um pouco e disse, na língua do complexo: — Entre para a sacristia. Pode trocar de roupa lá. Essa túnica de guarda não lhe serve e pode ser um convite para atiradores furtivos. — É bom falar a nossa língua outra vez — disse Carlos, acompanhando o homem para dentro, da igrejinha e voltando-se com o corpo rígido para fechar a porta pesada. — Devo-lhe um favor, Enrique — acrescentou, olhando para as fileiras de bancos vazios e para as luzes fracas no altar, onde brilhava o crucifixo de ouro. — Você me deve há mais de trinta anos, Ramirez, e o que foi que ganhei com isso? — disse rindo o velho soldado, caminhando pela passagem central, na direção da sacristia. — Então, talvez você não tenha notícias do que resta da sua família, em Baracoa. Nem os irmãos e irmãs de Fidel vivem tão bem. — Nem o louco do Fidel, mas ele não se importa. Dizem que ele agora toma banho com maior freqüência e eu acho que isso é um progresso. Porém você estava falando da minha família em Baracoa, e o que me diz de mim, meu bom assassino internacional? Nada de iates, nada de corridas, devia se envergonhar! Se não fosse o meu aviso, você teria sido executado neste mesmo complexo, há 33 anos. Pensando bem, foi bem na frente desta igrejinha idiota, no Prado, que você conseguiu escapar — vestido de padre, uma figura que desperta respeito nos russos, como em todo mundo. — Depois que me estabeleci você passou alguma necessidade? — Entraram num quarto pequeno onde supostos prelados preparavam os sacramentos. — Eu lhe recusei alguma coisa? — perguntou Carlos, pondo a sacola pesada no chão. — Estou brincando com você, é claro — disse Enrique, com um sorriso bem-humorado e olhando para o Chacal. — Onde está aquele seu senso de humor, meu velho e infame amigo? — Tenho outras preocupações. — É claro que tem, e na verdade você nunca foi menos do que generoso no que se refere à minha família em Cuba, e eu agradeço. Meu pai e minha mãe viveram em paz e com conforto, intrigados, é claro, mas muito melhor do que todos que conheciam... Tudo foi uma loucura. Revolucionários perseguidos por seus líderes da revolução.
— Vocês eram ameaça para Castro, assim como Che. Tudo é passado. — Muita coisa passou ‘— concordou Enrique, olhando atentamente para Carlos. — Os anos não foram bons para você, Carlos. Onde está aquela farta cabeleira e o rosto forte com olhos claros? — Não vamos falar nisso. — Tudo bem, eu engordei, você emagreceu, isso significa alguma coisa. Seu ferimento é grave? — Posso me movimentar o bastante para o que pretendo fazer — o que devo fazer. — Ramirez, o que mais existe ainda? Ele está morto! Moscou reivindica o crédito por essa morte, mas logo que ouvi a notícia, compreendi que o crédito é seu, a execução sua obra. Jason Bourne está morto! Seu inimigo partiu deste mundo. Você não está bem, volte para Paris e procure recuperar as forças. Eu o faço sair do mesmo modo que o fiz entrar.Entramos na “França” e eu abro caminho. Você será um mensageiro do comandante de “Espanha” e “Portugal”, levando uma mensagem confidencial à Praça Dzerzhinsky. Fazemos isso constantemente. Aqui ninguém confia em ninguém, especialmente nos portões. Nem precisa se arriscar matando um guarda. — Não! Eles precisam aprender uma lição! — Então, vou dizer de outro modo. Quando você telefonou com seus códigos de emergência, eu fiz o que pediu, pois sem dúvida você cumpriu suas obrigações para comigo, obrigações que remontam a trinta anos. Mas agora há outro risco envolvido — riscos, para ser exato — e acho que não estou disposto a enfrentá-los. — Atreve-se a falar assim comigo? — exclamou o Chacal, tirando a túnica do guarda morto, expondo as ataduras limpas e brancas sobre o ferimento no ombro direito. — Deixe de ser teatral — disse Enrique, com voz macia. — Nos conhecemos há muito tempo. Estou falando com um jovem revolucionário com quem eu saí de Cuba, acompanhado pelo grande atleta chamado Santos... Por falar nisso, como vai ele? Santos era a verdadeira ameaça para Fidel. — Ele está bem — respondeu Carlos secamente. — Vamos mudar o Coeur du Soldat. — Santos ainda cuida do jardim — do seu jardim inglês? — Sim, ainda. — Ele devia ser paisagista, ou florista, eu acho. E eu teria sido um ótimo engenheiro agrônomo, como eles dizem — foi assim que eu e Santos nos conhecemos, sabia?... Os melodramas políticos mudaram nossas vidas, não foi mesmo? — Compromissos políticos as mudaram. Por toda parte os fascistas mudaram nossas vidas.
— E agora queremos ser iguais a eles e eles querem tomar o que nós, os comunistas, temos de menos terrível e espalhar um pouco de dinheiro. O que não funciona, mas é interessante assim mesmo. — O que isso tudo tem a ver comigo — seu monsenhor? — Estéreo de cavalo, Ramirez. Como você deve saber, ou não, minha mulher russa morreu há alguns anos e eu tenho três filhos na Universidade de Moscou. Sem a minha posição, eles não estariam lá e eu quero que continuem onde estão. Serão cientistas, médicos... Esses são os riscos que você está exigindo de mim. Até este momento consegui não ser apanhado e você merece este momento — mas nada mais. Vou me aposentar e, por meus serviços no Mediterrâneo e no sul da Europa, terei uma dacha no Mar Negro, onde meus filhos podem me visitar. Não quero arriscar sem motivo os anos que me restam para viver. Portanto, seja claro, Ramirez, e diga se você está sozinho ou não... Eu repito, não podem saber que o ajudei a entrar e, como já disse também, você merecia que o ajudasse, mas é aqui que eu paro. — Compreendo — disse Carlos, aproximando-se da mala que Enrique havia posto sobre a mesa da sacristia. — Espero que compreenda. Durante todos esses anos você foi bom para minha família, de um modo que eu jamais poderia ser, e eu o servi bem sempre que foi possível. Eu o levei a Rodchenko, inseri seu nome nos ministérios de informações, onde o próprio Rodchenko examinou suas credenciais. Assim, meu camarada revolucionário, não estive de braços cruzados no que diz respeito a seus interesses. Porém, as coisas são diferentes agora, não somos mais jovens entusiasmados à procura de uma causa, pois perdemos nosso apetite por causas — você, muito antes do que eu, é claro. — Minha causa ainda é a mesma — interrompeu o Chacal. — É a minha pessoa e todos que me servem. — Eu o servi... — Você deixou isso bem claro, assim como minha generosidade para com você e sua família. E agora, que estou aqui, está imaginando se eu mereço mais ajuda, é isso, não é? — Preciso me proteger. Por que você está aqui? — Eu já disse. Para dar uma lição, entregar uma mensagem. — As duas são a mesma coisa? — Sim, são. Carlos abriu a mala. Dentro havia uma camisa de fazenda áspera, um boné de pescador português, calça com cinto de corda e uma mochila de marinheiro. — Para que estas roupas? — perguntou o Chacal.
— São largas e eu não o via há anos — desde os anos setenta, em Málaga, eu acho. Não podia fazer roupas sob medida e isso foi bom —, você não é mais o homem que eu lembrava, Ramirez. — Você não está muito diferente — respondeu o assassino. — Um pouco mais gordo, mais barrigudo, talvez, mas temos ainda a mesma altura, a mesma estrutura básica. — Sim, e daí? — Num momento... As coisas mudaram muito por aqui? — Constantemente. Chegam os fotógrafos e no dia seguinte a turma da construção. O Prado, aqui em “Madri”, tem lojas novas, luminosos, até uma nova rede de esgotos, como a cidade verdadeira. “Lisboa” e as docas no “Rio Tejo” e na “Baía” foram alteradas, de acordo com as mudanças em Portugal. Somos sempre autênticos. Os candidatos que completam o treinamento sentem-se literalmente em casa nos lugares para onde são enviados. Às vezes chego a pensar que é um pouco demais, depois me lembro da minha primeira missão na base naval, em Barcelona, e de como eu me sentia bem. Comecei a trabalhar imediatamente porque a orientação psicológica já estava feita, não havia surpresa importante. — Está descrevendo aparências — interrompeu Carlos. — É claro, o que mais? — Estruturas mais permanentes, não tão em evidência. — Por exemplo? — Armazéns, depósitos de combustíveis, corpo de bombeiros, que não fazem parte do cenário duplicado. Continuam onde eram antes? — De um modo geral, sim. Especialmente os armazéns principais e os depósitos de combustíveis com tanques subterrâneos. A maioria está ainda a oeste do distrito de “São Roque”, o acesso para “Gibraltar”. — E as passagens de um complexo para o outro? — Bem, isso mudou. — Enrique tirou do bolso da túnica um pequeno objeto quadrado. — Cada ponto de entrada nas fronteiras tem um registro computadorizado que abre as portas quando este cartão é inserido na .abertura. — Nenhuma pergunta? — Só no quartel-general da capital de Novgorod, quando é necessário fazer alguma pergunta. — Como assim? — Se um destes cartões for roubado, o furto é comunicado imediatamente e os códigos anulados.
— Compreendo. — Pois eu não. Por que todas essas perguntas? Por que você está aqui? Que lição é essa, que mensagem? — O distrito de “São Roque”...? — disse Carlos, tentando se lembrar. — Fica a uns três ou quatro quilômetros ao sul do túnel, certo? Uma cidadezinha na costa, não é isso? — O acesso para “Gibraltar”, sim, é isso. — E o complexo seguinte é “França”, é claro, depois “Inglaterra” e finalmente o maior, “Estados Unidos”. Sim, lembro-me bem. — O Chacal voltou-se e sua mão desapareceu sob a calça. — Pois nada está claro para mim — disse Enrique, em voz baixa e ameaçadora. — E eu tenho de saber, Ramirez. Por que você está aqui? — Como se atreve a me interrogar? — disse Carlos, de costas para o antigo companheiro. — Como qualquer pessoa se atreve a interrogar o monsenhor de Paris? — Pois agora escute, Padre de Merda. Você me responde ou eu saio daqui e em poucos minutos você é um monsenhor muito morto. — Está bem, Enrique — disse Ilich Ramirez Sanchez, falando para as paredes da sacristia. — Minha mensagem será triunfalmente clara e vai abalar as bases do Kremlin. O Chacal não só matou o falso e fraco Jason Bourne em solo soviético, como também deixou uma lembrança para a Rússia toda pelo terrível erro cometido pelo Komitet quando se recusou a utilizar seus talentos extraordinários. — Ora, deixe disso — disse Enrique, rindo baixinho, como se estivesse tratando com um homem muito menos extraordinário. — Mais teatro, Ramirez? E como é que vai deixar essa lembrança, essa mensagem, esta afirmação suprema? — É muito simples — respondeu o Chacal, voltando-se com uma arma com silenciador na mão. — Vamos trocar de lugar. — O quê? — Eu vou incendiar Novgorod. Carlos deu um único tiro no pescoço de Enrique. Não queria muito sangue na túnica do homem. Em uniforme de combate com insígnias de major do exército no ombro da túnica, Bourne era mais um dos poucos militares que percorriam o complexo americano na sua patrulha noturna. Segundo Benjamin, não eram mais de trinta homens, que cobriam toda a extensão do complexo. Nas áreas “metropolitanas” geralmente faziam a ronda a pé, de dois em dois. Nos distritos “rurais” usavam veículos militares. O jovem instrutor requisitou um jipe. Saíram da suíte dos comissários para o armazém militar a oeste do rio, onde entraram
apresentando os documentos de Benjamin. Lá dentro os guardas atônitos viram o homem alto e silencioso receber um uniforme completo de combate, uma baioneta, uma automática 45 e cinco pentes de munição real, estes últimos depois de um telefonema para os subordinados não identificados de Krupkin, no quartel-general da capital. Saíram do armazém e Jason disse: — E os sinalizadores que eu pedi, e pelo menos três ou quatro granadas? Você disse que iam me dar tudo de que eu precisasse, não apenas a metade! — Estão a caminho — respondeu Benjamin, saindo rapidamente do estacionamento do armazém. — Os sinalizadores estão no departamento de veículos motorizados e as granadas não fazem parte do nosso armamento comum. Estão em cofres de aço no túnel — em todos os túneis — na seção de armamentos de emergência. — O jovem instrutor olhou para Jason com riso nos olhos. — Para o caso de um ataque da OTAN, provavelmente. — Isso é bobagem. Nós viríamos do céu. — Não com a base aérea a noventa segundos, tempo de vôo, é claro. — Vamos depressa, eu quero as granadas. Teremos algum problema? — Não se Krupkin continuar trabalhando bem. Krupkin continuava trabalhando bem. Obtidos os sinalizadores, o túnel era a última parada dos dois. Quatro granadas do exército russo foram separadas e Benjamin assinou o recibo. — Agora, para onde? — perguntou o instrutor, quando o soldado com uniforme americano voltou para sua guarita de concreto. — Não são exatamente granadas americanas — disse Jason, guardando as quatro, cuidadosamente, uma a uma, nos bolsos do seu uniforme. — Também não são para treinamento. A orientação básica dos complexos não é militar, mas civil. Se essas granadas forem usadas, não será para doutrinação... Para onde vamos agora? — Ligue para o quartel-general e verifique se aconteceu mais alguma coisa nas fronteiras. — Meu bfp teria avisado... — Não confio em bips, gosto de palavras — interrompeu Jason. — Chame pelo rádio. Benjamin obedeceu, falando em russo e usando os códigos só conhecidos pelo alto escalão. A resposta soou áspera em russo. O instrutor desligou o rádio e voltou-se para Bourne. — Nenhuma atividade. Apenas algumas entregas de combustíveis entre os complexos. — Que combustível? — A maior parte, gasolina. Alguns complexos têm tanques maiores, assim a logística determina
cotas de rotina até os suprimentos maiores serem despachados rio abaixo. — Fazem a distribuição à noite? — É melhor, para que os caminhões não obstruam as ruas durante o dia. Lembre-se, tudo aqui é em escala. Além disso, estamos usando as estradas secundárias, mas um exército de manutenção está fazendo a limpeza de lojas, escritórios e restaurantes nos pontos centrais, preparando tudo para os exercícios de amanhã. Os caminhões só iam atrapalhar. — Cristo, ê a Disneylândia... Tudo bem, vamos para a fronteira da “Espanha”, Pedro. — Teremos de atravessar a “Inglaterra” e a “França”. Acho que não tem muita importância, mas não falo francês. Nem espanhol. Você fala? — Francês, fluentemente, espanhol, dá para o gasto. Mais alguma coisa? — Acho melhor você dirigir. O Chacal freou o caminhão enorme na fronteira da “Alemanha Ocidental”. Não pretendia ir mais adiante. As outras áreas do norte, “Escandinávia” e “Holanda”, eram satélites sem importância, o impacto da sua destruição não podia se comparar ao dos complexos mais ao sul e não compensava perder tempo com elas. Tudo estava de acordo com seus cálculos e a “Alemanha Ocidental” ia dar início à conflagração em massa. Ajeitou a camisa portuguesa que encobria a túnica espanhola de general e, quando o soldado saiu da casa da guarda, Carlos falou em russo, usando as mesmas palavras que havia usado nas outras fronteiras. — Não me peça para falar essa língua estúpida que vocês falam. Eu entrego gasolina, não passo meu tempo nas salas de aula! Aqui está a minha chave. — Eu também falo muito mal a língua daqui, camarada — disse o guarda, rindo e inserindo o objeto pequeno e quadrado na máquina computadorizada. A barreira pesada de ferro foi levantada, o guarda devolveu a chave e o Chacal entrou rapidamente com o caminhão na “Alemanha Ocidental”. Passou pela réplica estreita da Kurfurstendamm até a Budapesterstrasse, onde diminuiu a marcha e abriu a válvula da gasolina. O combustível inundou a rua. Carlos tirou da mochila os pequenos explosivos de tempo, de plástico e, como havia feito nos complexos ao sul da fronteira da “França”, atirou-os pelas janelas dos dois lados do caminhão, para perto dos prédios de madeira. Passou rapidamente pelo setor de “Munique”, depois pelo porto de “Bremerhaven”, no rio, e finalmente entrou em “Bonn”, na “Bad Godesberg” onde ficavam as cópias em pequena escala das embaixadas, por toda parte inundando as ruas e atirando os explosivos. Consultou o relógio. Hora de voltar. Dentro de 15 minutos os explosivos iam detonar em toda a “Alemanha Ocidental”, depois nos complexos combinados de “Itália-Grécia”, “Israel-Egito” e “Espa-nha-Portugal”, com um espaço de tempo de oito minutos entre um e outro, para criar o maior caos possível. Os corpos de bombeiros de cada complexo não poderiam de modo algum deter o fogo nas ruas e nos prédios, em setores diferentes, ao norte da “França”. Os que fossem chamados dos complexos vizinhos teriam de voltar para atender à emergência em suas áreas. Era uma fórmula simples de
confusão cósmica, sendo o cosmos o universo falso de Novgorod. As barreiras nas fronteiras seriam abertas, o tráfego entraria em pânico e, para completar a devastação, o gênio que era Ilich Ramirez Sanchez — levado para o mundo do terror como Carlos, o Chacal, por aquele mesmo Novgorod — precisava estar em “Paris”. Não a sua Paris, mas a odiada “Paris” de Novgorod que ele transformaria em cinzas como os nazistas maníacos jamais sonharam fazer. Depois, a “Inglaterra”, e finalmente, para terminar, o maior complexo do desprezado, isolado e falso Novgorod, onde ele deixaria sua mensagem triunfante — os “Estados Unidos da América”, criador do assassino apóstata Jason Bourne. Uma mensagem pura e clara, como água dos Alpes, lavando o sangue de um universo falso destruído. Fiz tudo isto sozinho. Meus inimigos estão mortos e eu estou vivo. Carlos examinou a mochila. Restavam apenas os mais letais instrumentos de morte encontrados no arsenal de Kubinka. Quatro fileiras de mísseis termodirigidos, vinte ao todo, cada um capaz de explodir toda a base do Monumento a Washington, e uma vez acesos e retirados das capas protetoras, cada um ia procurar as fontes de calor e fazer seu trabalho. Satisfeito, o Chacal fechou a válvula da gasolina e voltou para a fronteira. O técnico no quartel-general da capital piscou os olhos, cheio de sono, e olhou para as letras verdes na tela à sua frente. O que estava lendo não fazia sentido, mas os acessos não foram questionados. Pela quinta vez o “comandante” do complexo “espanhol” havia cruzado, indo e voltando, as fronteiras do norte, na “Alemanha”, e agora voltava para a “França”. Duas vezes antes, quando recebeu o sinal, obedecendo ao código de alerta máximo em vigor, o técnico havia telefonado para os pontos de entrada de “Israel” e da “Itália” e foi informado de que apenas um caminhão-tanque havia passado por eles. Passou a informação para o instrutor com código de acesso total, Benjamin. Mas agora ele estava intrigado. Por que um oficial de patente tão alta estaria dirigindo um caminhão-tanque?... Por outro lado, por que não? Todos suspeitavam que Novgorod estava eivado de corrupção, portanto, talvez o “comandante” estivesse procurando os corruptos ou fazendo sua coleta, à noite. De qualquer modo, uma vez que não havia qualquer informação sobre o roubo de um cartão de acesso e os computadores não fizeram nenhuma objeção, era melhor deixar as coisas como estavam. Nunca se sabia quem ia ser o próximo superior. — Voici ma carte — disse Bourne para o guarda da fronteira, entregando o cartão computadorizado. — Viíe, s’il vous plait! — Da... oui — respondeu o guarda, dirigindo-se rapidamente para a máquina, no momento em que um enorme caminhão-tanque passava em sentido contrário, dirigindo-se para a “Inglaterra”. — Não insista muito no francês — disse Benjamin, sentado no jipe, ao lado de Jason. — Esses caras fazem o melhor possível, mas não são lingüistas. — Cal-if-fórnia... aqui vou eu — cantou Bourne suavemente. — Tem certeza de que você e seu pai não querem se juntar à sua mãe em Los Angeles? — Ora, cale a boca! O guarda voltou, fez continência, e a barreira de ferro foi levantada. Jason acelerou e logo
estavam vendo uma réplica da Torre Eiffel, iluminada por holofotes. A direita, ao longe, estava a miniatura dos Champs-Elysées com uma reprodução em madeira do Arco do Triunfo, suficientemente alto para ser inconfundível. Bourne lembrou aquelas horas terríveis e tensas em que ele e Marie percorriam Paris, um à procura do outro... Marie, oh Deus, Marie! Eu quero voltar, quero ser David outra vez. Ele e eu — estamos muito mais velhos agora.Ele não me assusta mais e eu não o irrito... Quem? Qual de nós dois? Oh, Cristo! — Espere — disse Benjamin, tocando o braço de Jason. — Vá mais devagar. — O que foi? — Pare! — exclamou o jovem instrutor. — Estacione no meio-fio e desligue o motor. — O que há com você? — Não tenho certeza. — Benjamin inclinou a cabeça para trás e olhou para o céu cintilante de estrelas. — Nenhuma nuvem — disse ele. — Nenhuma tempestade. — Também não está chovendo. E daí? Quero chegar logo ao complexo “espanhol”. — Lá vai outra vez... — De que droga você está falando? — Então Bourne ouviu... ao longe, o ruído do trovão, mas a noite estava clara. Outra vez e outra, e outra, um rolar profundo depois do outro. — Lá! — gritou Benjamin, de pé no jipe, apontando para o norte. — O que é isso? — Isso é fogo — respondeu Jason, em voz baixa e hesitante, levantando-se também e olhando para o reflexo bruxuleante da luz, ao longe, no céu. — E aposto que é no complexo espanhol. Ele começou lá seu treinamento e foi para isso que ele voltou — para destruir tudo. É a sua vingança!.. Sente-se! Precisamos ir para lá! — Não, está errado — disse Benjamin, sentando-se imediatamente. Jason ligou o motor e engatou a marcha. — A “Espanha” fica a seis ou sete quilômetros daqui. Aquele fogo está mais longe. — Mostre o caminho mais rápido — disse Jason, com o acelerador no chão do jipe. Guiados pelos olhos atentos do jovem instrutor e gritos bruscos de “Vire aqui!” “Para a direita!” e “Vá em frente!” eles atravessaram “Paris” e seguiram para o norte, passando por setores de “Marselha”, “Montbéliard”, “Le Havre”, “Strasbourg” e muitos outros, dando a volta nas praças e seguindo por ruas e quarteirões elegantes em miniatura, até a fronteira da “Espanha”. À medida que se aproximavam, as explosões soavam mais fortes e o brilho amarelo no céu ficava mais intenso. Os guardas da fronteira falavam frenéticos nos telefones e nos rádios portáteis. As sirenas de dois tons juntaram-se aos gritos de ordens e de desespero, quando os carros da polícia e os bombeiros apareceram aparentemente do nada, correndo pelas ruas de “Madri” a caminho da fronteira mais próxima. — O que está acontecendo? — gritou em russo Benjamin, saltando do jipe e ignorando todo o
treinamento de Novgorod. — Sou da equipe de instrução. — Inseriu o cartão, a barreira foi levantada. — Digam, o que está acontecendo? — Uma loucura, camarada — gritou um policial, da janela da casa da guarda. — Incrível!... É como se o mundo tivesse enlouquecido! Primeiro a “Alemanha”, por toda parte explosões e fogo, nas ruas e nos prédios, tudo devorado pelas chamas. A terra treme, e nos disseram que é uma espécie de terremoto. Depois foi na “Itália” — “Roma” está em chamas e no setor “grego”, em “Atenas” e no porto do “Pireu” há fogo por toda parte e as explosões continuam, todas as ruas em chamas! — O que disse o quartel-general da capital? — Eles não sabem o que dizer! A bobagem do terremoto foi só isso — bobagem. O pânico é geral, todo mundo dá ordens e contra-ordens. — Outro telefone tocou, o guarda atendeu, escutou e gritou a plenos pulmões. — Loucura, loucura completa! Tem certeza? — O que foi? — gritou Benjamin, correndo para a janela da casa da guarda. — “Egito!” — gritou Benjamin, com o telefone no ouvido. — “Israel!”... “Cairo” e “Tel Aviv” — fogo e bombas por toda parte! Ninguém pode impedir a devastação. Os caminhões colidem uns com os outros nas ruas estreitas. Os hidrantes explodem, a água corre nas sarjetas, mas o fogo continua ... E algum idiota acaba de telefonar perguntando se os avisos de “Não Fumar” estão nos lugares certos, enquanto os prédios de madeira transformam-se em cinzas! Idiotas. São todos uns idiotas! — Volte aqui! — gritou Bourne, passando pelo portão com o jipe. — Ele está aqui, em algum lugar! Você dirige e eu... — Foi interrompido por uma explosão ensurdecedora no centro do “Paseo dei Prado”, em “Madri”. Foi uma detonação enorme que lançou madeira e pedra para o céu em chamas. Então, como se o Paseo fosse uma parede de fogo viva, imensa e pulsante, as chamas rolaram para a frente, virando para a esquerda, para fora da “cidade”, invadindo a estrada que levava à fronteira. — Cuidado! — gritou Bourne, enquanto saía agachado do jipe, e deitado no chão de cascalho protegeu com as mãos o rosto, o nariz. — Cristo! — rugiu ele. — Toda a maldita estrada está encharcada de gasolina! — Uma coluna de fogo ergueu-se a trinta metros na frente do jipe, lançando pedras e terra na grade de metal, enquanto as chamas avançavam com uma velocidade aterradora. Plásticos!, pensou Jason, depois gritou para Benjamin que corria para o jipe. — Volte para lá! Tire todos de lá! O filho da mãe espalhou explosivos de plástico por toda parte! Vão todos para o rio! — Eu vou com você! — gritou o jovem soviético, com a mão na porta do jipe. — Desculpe, garoto — exclamou Bourne, saindo com o veículo militar, atirando Benjamin ao chão. — Isto é para gente adulta. — O que você está fazendo? — gritou Benjamin, enquanto o jipe desaparecia na estrada. “O maldito caminhão, aquela droga de caminhão-tanque!” — murmurou Jason, entrando velozmente em “Strasbourg, França”. Aconteceu em “Paris” — onde mais senão em Paris! A enorme duplicata da Torre Eiffel
explodiu com tamanha força que a terra tremeu. Foguetes? Mísseis? O Chacal havia roubado mísseis do Arsenal Kubinka! Segundos depois, bem atrás dele, as explosões começaram e as ruas se transformaram em imensas fogueiras. Por toda parte. Toda a “França” estava sendo destruída de um modo que nem o louco Adolf Hitler podia ter imaginado nos seus sonhos mais insanos. Homens e mulheres em pânico corriam pelas ruas gritando, caindo, implorando aos deuses renegados por seus líderes. “Inglaterra!” Precisava chegar na “Inglaterra” e, depois, nos “EUA” onde, diziam seus instintos, ia ser o fim — de um modo ou de outro. Precisava encontrar o carro-tanque dirigido pelo Chacal e destruir os dois. Podia fazer isso — podia! Carlos pensava que ele estava morto e essa era a chave, porque o Chacal faria o que tinha de fazer, o que ele, Jason Bourne faria se fosse Carlos. Quando o holocausto provocado por ele chegasse ao auge, o Chacal deixaria o carro-tanque e ia pôr em jogo seu plano de fuga — sua fuga para Paris, para a verdadeira Paris, onde seu exército de velhos espalharia a notícia do triunfo do monsenhor sobre os soviéticos, onipresentes e ateus. Seria em algum lugar perto do túnel, isso era certo. A corrida por “Londres”, “Coventry” e “Portsmouth” só podia ser comparada às imagens do filme noticiário da Segunda Guerra, mostrando a carnificina provocada pela Luftwaffe na Grã-Bretanha, que começava com os primeiros gritos e passava ao terror silencioso das bombas V-2 e V-5. Mas os residentes de Novgorod não eram britânicos — a paciência corajosa dava lugar à histeria em massa, a preocupação por todos era substituída pela luta individual pela sobrevivência. Enquanto as impressionantes reproduções do Big Ben e das Casas do Parlamento desabavam em chamas e as fábricas de aviões em “Coventry” eram reduzidas a imensas fogueiras, as ruas enchiam-se de gritos, multidões apavoradas corriam nas estradas que levavam ao Rio Volkhov e ao porto de “Portsmouth”. Ali, dos cais em escala pequena, milhares de pessoas atiravam-se na água, eram apanhadas pelas grades de magnésio com as descargas elétricas rápidas e violentas e os corpos flutuavam para as outras armadilhas de metal acima e abaixo da superfície das águas revoltas. Grupos de homens e mulheres observavam a tragédia, paralisados, e voltavam para a miniatura da cidade de “Portsea”. Os guardas abandonavam seus postos e o caos dominava a noite. Girando o holofote lateral do jipe, Bourne seguia em marcha ora lenta, ora mais acelerada, pelas vielas e ruas menos movimentadas — para o sul, sempre para o sul. Apanhou um sinalizador do chão do jipe, puxou o cordão, acendendo o cilindro e sacudindo-o de um lado e do outro, aproximava-o o mais possível das mãos e dos rostos dos fugitivos histéricos que tentavam subir no veículo. Eles gritavam e recuavam, cegos pela chama viva do sinalizador, pensando sem dúvida que era outra explosão. Uma estrada de cascalho! Os portões do complexo americano estavam a menos de cem metros... A estrada de cascalho? Encharcada de gasolina! Os explosivos de plástico ainda não tinham explodido — mas iam explodir dentro de alguns minutos, criando um muro de chamas que envolveria o jipe e o motorista! Com o acelerador no chão, Jason chegou ao portão. Estava deserto — com a barreira de ferro abaixada! Pisou bruscamente no freio, derrapando antes de parar, esperando, além de qualquer esperança razoável, não ter provocado fagulhas que incendiariam a estrada. Colocou o sinalizador ainda aceso no chão de metal e tirou rapidamente dos bolsos as granadas — das quais se desfazia com relutância —, puxou os pinos e atirou duas na direção dos portões. A explosão maciça destruiu a barricada e ao mesmo tempo incendiou a estrada. As chamas altas e ávidas o envolveram! Jason não teve escolha, jogou para longe o sinalizador e acelerou, passando pelo túnel de fogo, para o maior complexo de Novgorod. Nesse instante, a casa de concreto da guarda na fronteira “inglesa” explodiu,
espalhando pedaços de metal e de pedra. Na pressa de chegar à “Espanha”, Jason não havia gravado perfeitamente a ordem e os nomes das pequenas réplicas das cidades americanas, nem o caminho mais curto para o túnel. Seguira apenas os comandos gritados de Benjamin, mas lembrava-se do californiano ter se referido várias vezes à “estrada da costa — como a Route One, cara, que vai para Carmel!” Sem dúvida eram as ruas mais próximas do Rio Volkhov que por sua vez tornavam-se, sem ordem de seqüência geográfica, uma praia no “Maine”, o Rio Potomac, de “Washington” e as águas do norte de Long Isíand Sound, onde ficava a base naval de “New London”. A loucura já estava nos “EUA”. Carros da polícia, com a sirena a toda, corriam pelas ruas, homens gritavam nos rádios portáteis e o povo, vestido e semidespido, saía correndo e gritando, dos prédios e das lojas, fugindo do terrível terremoto que abalava aquele braço do Volkhov, mais severo do que a catástrofe da Armênia. Mesmo sabendo com certeza que se tratava de uma infiltração devastadora, os líderes de Novgorod não podiam dizer a verdade ao povo. Era como se tivessem esquecido todos os sismólogos do mundo, como se todas as suas descobertas não tivessem fundamento. As forças gigantescas que atuam sob a terra não colidem e explodem com terrível rapidez, mas em ondas, enviando uma série de golpes do norte para o sul. Quem pode questionar a autoridade de quem, em pânico, luta pela sobrevivência? Todos nos “EUA” estavam sendo preparados. Para o quê, não sabiam. Descobriram dez minutos depois da destruição de grande parte da “Grã-Bretanha” em miniatura. Bourne estava chegando a “Washington, D.C.” quando o fogo começou. O primeiro edifício a arder em chamas, com o ruído da explosão soando uma fração de segundo depois, foi a duplicata em madeira da cúpula do Capitólio que subiu para o céu amarelado como a frágil e oca réplica que era. Momentos depois — apenas momentos — o Monumento a Washington, no centro do gramado do parque, desmoronou com um som surdo e distante como se seus falsos alicerces tivessem sido empurrados por uma enorme removedora de terra. Em segundos, a construção artificial que representava a Casa Branca desfez-se em chamas, as explosões abafadas pelo rio de chamas que era a “Avenida Pensilvânia”. Agora Bourne sabia onde ele estava. O túnel ficava entre “Washington” e “New London, Connecticut”, a menos de cinco minutos dali! Seguiu a margem do rio, entre a multidão assustada e histérica. Os policiais gritavam nos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em russo, explicando as conseqüências terríveis se alguém tentasse atravessar o rio a nado, com os holofotes girando de um lado para o outro, localizando os corpos dos que haviam tentado esse meio de fuga nos complexos do norte. — O túnel, o túnel! Abram o túnel! Os gritos da multidão transformaram-se numa ladainha que era quase uma força física. Os encanamentos subterrâneos estavam prestes a ser assaltados. Jason saltou do jipe rodeado de gente, pôs nos bolsos os três sinalizadores restantes e, abrindo caminho com os braços e os ombros, tentou inutilmente atravessar a massa compacta e apavorada. Não tinha outro recurso. Apanhou um sinalizador e acendeu. Deu resultado, o calor e o fogo eram catalisadores. Ele correu no meio do povo, empurrando quem se punha na frente, aproximando o fogo e a luz dos rostos apavorados, até chegar ao cordão formado pelos guardas com uniformes do exército dos Estados Unidos. Era loucura, insanidade! O mundo estava louco!
Não! Ali! O caminhão-tanque estava no estacionamento cercado! Jason atravessou o cordão de guardas, com o cartão de passe na mão erguida e correu para o soldado de posto mais alto, um coronel, com uma AK-47 na cintura e tão apavorado quanto os oficiais de alta patente que ele vira em Saigon. — Minha identificação é com o nome “Archie” e você pode liberar imediatamente. Mesmo agora, recuso-me a falar nossa língua, só inglês! Entendeu? Disciplina é disciplina. — Togda? — berrou o oficial, questionando o momento, depois passando rapidamente para o inglês, com um afetadíssimo sotaque de Boston. — É claro, nós o conhecemos — gritou. — Mas o que posso fazer? Isto é uma desordem incontrolável. — Alguém passou pelo túnel na última meia hora? — Ninguém, absolutamente ninguém! Nossas ordens são para manter o túnel fechado a todo custo! — Ótimo... Use o alto-falante e disperse o povo. Diga que a crise passou e o perigo também. — Como posso dizer isso? O fogo está por toda parte, explosões por toda parte! — Vão acabar logo. — Como você sabe? — Eu sei. Faça o que estou mandando. — Faça o que ele está mandando! — rugiu alguém atrás de Bourne. Benjamin, com a camisa encharcada de suor, continuou: — E espero que você saiba do que está falando! — De onde você veio? — De onde, você sabe; como, é outra história. Tente fazer o quartel-general se sujar de medo para conseguir um helicóptero, ordenado por um Krupkin apoplético, de um leito de hospital em Moscou. — “Apoplético”. Nada mau para um russo... — Quem está me dando essas ordens? — berrou o oficial da guarda. — Você não passa de um garoto. — Verifique, meu chapa, mas faça depressa — respondeu Benjamin, mostrando seu cartão. — Do contrário acho que vou mandar transferi-lo para Tashkent. Bela paisagem, mas sem banheiros individuais... Mexa-se, seu cretino! — Cal-if-fórnia, aqui vou... — Cale a boca!
— Ele está aqui! Lá está o caminhão-tanque. Bem ali. — Jason apontou para o veículo enorme, bem mais alto do que os carros e furgões espalhados no estacionamento. — Um caminhão-tanque? Como você descobriu? — perguntou Benjamin, atônito. — Aquele caminhão deve ter capacidade para 50 mil litros. Combinado com os explosivos de plástico, estrategicamente colocados, é o bastante para destruir as ruas e aquelas estruturas falsas de madeira velha e seca. — Slushaytye! — berraram os vários alto-falantes ao redor do túnel, pedindo atenção, pois as explosões tinham realmente diminuído. O coronel subiu no telhado de concreto da casa baixa da guarda, com um microfone na mão, iluminado pelos poderosos holofotes. — O terremoto passou — gritou ele, em russo. — E embora os danos extensivos e o fogo possam continuar por toda a noite, a crise passou...! Fiquem perto da margem do rio, e nossos camaradas da equipe de manutenção farão o melhor possível para providenciar tudo de que precisam... Essas são as ordens dos nossos superiores, camaradas. Não nos dêem nenhum motivo para usar a força, eu lhes peço. — Que terremoto? — gritou um homem na primeira fila do povo, em pânico. — Você diz que é um terremoto e todos nos dizem que é um terremoto mas vocês têm o cérebro na barriga! Já passei por dois terremotos e isto não é terremoto nenhum. É um ataque armado! — Isso mesmo, sim, um ataque! — Estamos sendo atacados! — Invadidos! É uma invasão! — Abram o túnel e nos deixem sair, do contrário vão ter de nos matar. Abram o túnel! O coro de protestos vinha de todos os lados e os soldados ficaram firmes, com as baionetas caladas. O coronel continuou com o rosto contraído, a voz quase igual à histeria do povo. — Escutem e façam uma pergunta a vocês mesmos! — berrou ele. — Estou dizendo, como me disseram, que isto é um terremoto e sei que é verdade. Tem mais, vou dizer como sei que é verdade... Vocês ouviram um único tiro? Sim, essa é a questão! Um único tiro? Não, não ouviram!... Aqui, como em todos os complexos e em todos os setores desses complexos, existem policiais, soldados e instrutores armados. Suas ordens são para repelir pela força qualquer demonstração de violência, para não falar em invasores armados! Porém, em nenhum desses lugares foi dado um tiro... — O que ele está berrando? — perguntou Jason, voltando-se para Benjamin. — Está tentando convencer o povo de que é — ou foi — um terremoto. Eles não acreditam, pensam que é uma invasão. Ele está dizendo que não pode ser porque não houve nenhum tiroteio. — Tiroteio?
— Essa é a prova que ele está apresentando. Ninguém está atirando em ninguém e na certa estariam, se fosse um ataque armado. Sem tiroteio não tem ataque. — Tiros...? — Bourne agarrou o braço do jovem soviético, fazendo-o virar para o povo. — Diga a ele para parar. Pelo amor de Deus, faça o homem parar de falar! — O quê? — Ele está dando ao Chacal a deixa que ele espera — que ele precisa! — Agora, do que você está falando? — Tiroteio... tiros, confusão! — Nyet! — Uma mulher abriu caminho entre a multidão e gritou para o oficial iluminado pelos holofotes. — As explosões são bombas! Lançadas do alto por bombardeiros! — Que tolice! — respondeu o coronel. — Se fosse um ataque aéreo, nossos aviões de Belopol estariam todos no céu!... As explosões vieram da terra, o fogo, da terra, dos gases lá embaixo... Foram as últimas palavras do coronel. Uma rajada de balas, vinda das sombras do estacionamento, ao lado do túnel, atingiu o oficial e seu corpo sem vida caiu, desaparecendo atrás da casa da guarda. O povo enlouqueceu. O cordão de soldados “americanos” partiu-se e a multidão niilista substituiu o caos. A entrada do túnel, estreita e protegida pela cerca, foi arrombada, e o povo em desordem, uns por cima dos outros, empurrando e caindo, correu para a entrada da passagem sob a água. Jason puxou o jovem instrutor para trás, para fora do caminho da horda frenética, sem tirar os olhos da parte escura do estacionamento. — Você sabe fazer funcionar o mecanismo do túnel? — gritou ele. — Sei! Todos nós, da direção, sabemos, faz parte do nosso trabalho. — Os portões de ferro de que você me falou? — É claro. — Onde ficam os mecanismos? — Na casa da guarda. — Entre lá! — gritou Bourne, tirando do bolso um dos três últimos sinalizadores e entregando-o a Benjamin. — Tenho mais dois destes e duas granadas... Quando eu atirar um dos sinalizadores por cima do povo, abaixe os portões deste lado — só deste lado, compreendeu? — Para quê? — Minhas regras, Ben. Faça! Depois acenda o sinalizador e atire pela janela para que eu saiba
que os portões foram abaixados. — E depois? — Uma coisa que você talvez não queira fazer, mas que tem de ser feita... Apanhe a 47 do coronel morto e obrigue a multidão a voltar para a rua. Atire no chão, na frente deles — ou acima —, faça o que for preciso, mesmo que tenha de ferir alguns. Seja como for, tem de ser feito. Eu preciso encontrar e isolar o Chacal, acima de tudo afastá-lo de qualquer pessoa que esteja tentando sair daqui. — Você é um louco maníaco — exclamou Benjamin, com as veias saltadas nas têmporas. — Eu posso matar alguns — mais do que alguns! Você está doido! — Neste momento sou o homem mais racional que você já viu — disse Jason asperamente, olhando para os habitantes de Novgorod que passavam correndo por eles. — Todos os generais racionais do exército soviético — o mesmo que retomou Stalingrado — concordariam comigo... Chama-se “cálculo estimativo de perdas”, e há uma boa razão. Significa simplesmente que vamos pagar muito menos por aquilo que tomamos agora do que pagaremos se deixarmos para depois. — Você está pedindo demais! Essas pessoas são meus camaradas, meus amigos, são russos. Você atiraria numa muitidão de americanos? Um movimento em falso da minha mão — um milímetro ou dois, na 47 — e posso ferir ou matar meia dúzia de pessoas! É um risco muito grande! — Você não tem escolha. Se o Chacal se aproximar de mim — e eu vou saber se isso acontecer — atiro uma granada e mato vinte. — Seu filho da mãe! — Acredite, Ben. Quando se trata de Carlos, sou um filho da mãe. Não posso mais me dar o luxo de deixá-lo vivo, o mundo também não. Mexa-se! O instrutor chamado Benjamin cuspiu no rosto de Bourne, depois deu meia-volta e começou a abrir caminho para a casa da guarda e o corpo do coronel, atrás dela. Jason limpou o rosto com as costas da mão, num gesto quase automático, toda sua atenção concentrada no estacionamento, os olhos procurando nas sombras a origem dos tiros, sabendo que era inútil. A essa altura o Chacal já devia ter mudado de posição. Além do caminhão-tanque, havia mais nove veículos estacionados ao lado da cerca — duas caminhonetes, quatro sedas e os furgões, todos de fabricação americana ou imitações. Carlos estava escondido atrás de um deles. O caminhão-tanque era o menos provável por estar mais distante do portão que dava acesso à casa da guarda e ao túnel. Jason avançou agachado até a cerca baixa. O pandemônio continuava ensurdecedor atrás dele. Todos seus músculos e juntas latejavam de dor, sentia câimbras no corpo inteiro! Não pense nisso, não dê importância. Você está muito perto, David! Continue. Jason Bourne sabe o que deve fazer. Confie nele! Aiii! Quando saltou a cerca, o cabo da baioneta embainhada enterrou-se nas suas costas, na altura dos rins. A dor não existe! Você está muito perto, David — Jason. Obedeça a Jason.
Os holofotes! As luzes enlouqueceram e começaram a girar rapidamente em círculos cegantes, completamente descontroladas. Para onde Carlos podia ir? Onde podia se esconder? Os holofotes iluminavam tudo quase ao mesmo tempo! Então, de uma passagem que ele não podia ver, saíram dois carros de polícia com as sirenas a todo volume. Homens uniformizados saltaram de todas as portas e, ao contrário de qualquer coisa que ele podia esperar, correram para perto da cerca, atrás dos carros e dos furgões, e um a um, passando de um carro para outro, aproximaram-se do portão aberto que levava à casa da guarda e ao túnel. Houve uma quebra de espaço, de tempo. De homens! Os últimos quatro homens saídos dos carros eram agora três — e só alguns momentos depois o quarto reapareceu —, mas não era o mesmo homem —, o uniforme era diferente! Jason via os pontos vermelhos e cor de laranja no uniforme e o quepe tinha uma fita dourada, a aba era maior do que a aba do quepe americano, a copa pontuda demais. O que era?... De repente Bourne compreendeu. Fragmentos de memória espiralaram, voltando no tempo, para Madri ou Casvieja, quando ele estava seguindo os contratos do Chacal com os falangistas. Era um uniforme espanhol! Era isso! Carlos havia se infiltrado no complexo espanhol e com seu russo fluente estava usando o uniforme de oficial para escapar de Novgorod. Jason ficou de pé com a automática na mão e correu pelo estacionamento, com a mão esquerda tirando o penúltimo sinalizador do bolso da túnica. Puxou o cordão e atirou o cilindro aceso por cima dos carros e da cerca. Benjamin não podia ver esse sinal da casa da guarda, assim não o confundiria com o sinal para fechar os portões. Logo Jason enviaria o sinal combinado — dentro de segundos, talvez — mas por enquanto seria prematuro. — Eto srochno! — rugiu um dos fugitivos, voltando-se rapidamente e em pânico para o cilindro de luz cegante. — Skoryeye! — gritou outro, passando na frente dos três companheiros e correndo para a parte aberta da cerca. Os holofotes continuavam na sua dança louca. Bourne contou os sete vultos quando, um a um, saíram de trás do último carro e passaram pela abertura, misturando-se à multidão na entrada do túnel. O oitavo homem não apareceu. O uniforme de oficial espanhol não estava em lugar algum. O Chacal estava encurralado! Agora! Jason atirou o último sinalizador aceso com toda força por cima dos homens e mulheres que corriam para o túnel, provocando protestos, gritos e aumentando o caos. Uma arma automática disparou rapidamente duas vezes e comandos ininteligíveis soaram em russo nos alto-falantes... Outra rajada de balas e a mesma voz continuou, mais alta, mais autoritária. A multidão quase silenciou por um momento, è depois os gritos e brados de desespero recomeçaram mais altos do que nunca. Bourne virou a cabeça e atônito viu Benjamin de pé no telhado da casa da guarda. O jovem instrutor gritava no microfone, pedindo que seguissem suas instruções, que Jason não podia compreender... Mas, fossem quais fossem, foram obedecidas! Aos poucos, tomando impulso, aquela gente apavorada mudou de direção — e como uma só pessoa, começou a correr de volta para a rua! Benjamin acendeu o sinalizador e o sacudiu no ar, apontando para o norte. Era o seu sinal para Jason. O túnel estava fechado e a multidão dispersa sem que Benjamin tivesse feito uso da sua AK-47. O instrutor havia descoberto um meio melhor.
Bourne deitou no chão, examinando a parte de baixo de cada veículo à luz do sinalizador... Viu as pernas — com botas. Atrás do terceiro automóvel à esquerda, a uns vinte metros da abertura na cerca que levava ao túnel. Carlos era todo seu! O fim estava próximo! Não há tempo! Faça o que tem de jazer e faça depressa! Pôs a arma no chão e com a granada na mão direita tirou o pino, apanhou a 47 com a mão esquerda e levantando-se, correu para os carros. A uns dez metros, mergulhou outra vez para o chão, girou o corpo de lado e atirou a granada sob o primeiro carro. Assim que a granada saiu da sua mão, Jason percebeu que havia cometido um erro terrível! As pernas sob o carro não se moveram — as botas ficaram onde estavam porque eram apenas isso, botas! Jason girou o corpo para a direita, rolando furiosamente nas pedras cortantes, protegendo o rosto, dobrando as pernas contra o peito. A explosão foi ensurdecedora e os estilhaços mortais subiram para o céu noturno, cintilando nos fachos de luz dos holofotes. Fragmentos de metal atingiram os braços e as pernas de Jason. Mexa-se, mexa-se, gritou a voz em sua mente. Jason ficou de joelhos, depois de pé no meio da fumaça do carro em chamas. Nesse momento, o chão de cascalho explodiu em volta dele. Correu em ziguezague para a proteção do veículo mais próximo, um furgão quadrado. Jason foi atingido duas vezes, no ombro e no quadril! Girou o corpo para o lado do carro no momento exato em que o pára-brisa traseiro explodiu. — Você não é páreo para mim, Jason Bourne! — gritou Carlos, o Chacal atirando com sua automática. — Nunca foi! Você é um farsante, uma fraude! — Que seja — rugiu Bourne. — Pois então venha me pegar! Jason correu para a porta esquerda da frente do furgão, abriu-a, voltou para a parte de trás e se agachou, com o rosto encostado no carro, o Colt 45 pronto para atirar. O sinalizador apagou, com um silvo longo, e o Chacal parou de atirar. Bourne compreendeu. Carlos estava na frente da porta aberta, inseguro, indeciso... só tinha alguns segundos para resolver. Então de fechou a porta do furgão com o cano da arma. Agora! Jason saltou para o lado do furgão, atirando no uniforme espanhol. A arma voou da mão do Chacal. Um, dois, três. As cápsulas saltavam no ar — e então tudo parou! As explosões foram substituídas por um estalido seco. A arma de Jason falhou! Carlos saltou para apanhar sua arma no chão com o braço esquerdo imóvel e sangrando, mas a mão direita forte ainda. Agarrou a arma como um animal enlouquecido. Bourne tirou a baioneta da bainha e saltou para a frente, tentando acertar com a lâmina o braço direito do Chacal. Tarde demais! Carlos apontou a arma! Jason atirou-se para a frente e segurou o cano quente da automática — não largue, não largue! Você não pode largar! Gire o cano para o lado! Para a esquerda! Use a baioneta — não, não use! Deixe cair a baioneta! Use as duas mãos! As ordens conflitantes colidiram em sua mente, loucura. Jason não tinha mais fôlego, não tinha forças, não conseguia focalizar a vista — o ombro. Como Bourne, o Chacal fora ferido no ombro direito! Fique firme! Alcance o ombro dele, mas fique firmei Num último e desesperado impulso, Bourne avançou e atirou Carlos contra o lado do furgão, esbarrando no ombro ferido do Chacal. Carlos gritou, deixou cair a arma e com o pé a empurrou para baixo do veículo. De repente, um golpe, vindo Jason não sabia de onde, o atingiu, e foi como se sua cabeça tivesse
sido aberta ao meio. Então compreendeu. Tinha escorregado no cascalho coberto de sangue e batido a cabeça na grade de metal do furgão. Não importava — nada importava!Carlos, o Chacal, estava fugindo! No meio da confusão, não seria difícil para ele sair de Novgorod. Tudo aquilo para nada! Mas Jason tinha ainda uma granada. Por que não? Bourne tirou o pino e atirou a granada por cima do furgão, no meio do estacionamento. Seguiu-se a explosão e Jason levantou-se. Talvez Benjamin, ouvindo a explosão, compreendesse que devia dirigir a atenção para aquela área. Cambaleando, quase sem poder andar, Jason dirigiu-se para a abertura na cerca que levava à casa da guarda e ao túnel. Oh, Deus, Marie, eu falhei! Eu sinto muito. Nada! Tudo isso por nada! E então, como se todo Novgorod estivesse rindo dele, viu que alguém abrira as portas do túnel, convidando o Chacal para a liberdade. — Archie...? — A voz atônita de Benjamin flutuou sobre os sons do rio, e Jason viu o jovem soviético correndo para ele. — Cristo santíssimo, pensei que você estivesse morto. — Então você abriu os portões e deixou fugir o homem que me executou — gritou Jason. — Por que não pediu uma limusine para ele? — Sugiro que olhe outra vez, professor — respondeu Benjamin, ofegante, parando na frente de Bourne, examinando o rosto com equimoses e a roupa ensangüentada. — A idade enfraqueceu seus olhos. — O quê? — Você quer portões, pois terá portões. — O instrutor gritou uma ordem, em russo, para alguém na casa da guarda. Segundos depois as pesadas portas de ferro desceram outra vez, cobrindo a entrada do túnel. Mas havia alguma coisa estranha. Bourne não tinha visto as portas abaixadas antes, porém não eram o que tinha imaginado. Pareciam... inchadas, distorcidas. — Vidro — disse Benjamin. — Vidro? — perguntou Jason. — Nas duas extremidades do túnel, paredes de vidro com quinze centímetros de espessura, hermeticamente fechadas. — Do que você está falando? O russo não precisou explicar. De repente, como uma série de ondas gigantescas contra o vidro de um aquário, o Rio Volkhov invadiu o túnel. Então, no meio da massa líquida revolta e violenta apareceu um objeto... uma coisa, uma forma, um corpo! Bourne arregalou os olhos e abriu a boca para o grito de horror que não conseguiu emitir. Reunindo as forças que lhe restavam ele correu, caindo duas vezes de joelhos, ganhando velocidade a cada passo, na direção da parede maciça de vidro que fechava a entrada do túnel. Ofegante, apoiou as duas mãos no vidro e assistiu à cena macabra a poucos centímetros dos seus olhos. O corpo grotesco de Carlos, o Chacal, com o uniforme espanhol, ia e vinha, batendo nas grades de aço do portão, o rosto contraído cheio de ódio, os olhos esgazeados maldizendo a morte que o reclamava.
Os olhos frios de Bourne assistiam satisfeitos, seus lábios apertados numa linha fina e rígida, o rosto de um matador, um matador entre matadores, o vencedor. Por um momento, David Webb apareceu, com olhar suave, lábios entreabertos, o rosto de um homem que havia tirado dos seus ombros o peso d”e um mundo que ele detestava. — Ele se foi, Archie — observou Benjamin ao lado dele. — O miserável não pode voltar. — Você inundou o túnel — disse Bourne simplesmente. — Como sabia que era ele? — Você não tinha uma automática, mas ele sim. Francamente, pensei que a profecia de Krupkin ia — como posso dizer — se realizar. Você estava morto e seu assassino ia procurar o caminho mais fácil. O uniforme dele confirmou minhas suspeitas. Tudo fazia sentido, de repente, desde o complexo “espanhol”. — Como conseguiu afastar o povo? — Eu disse que iam mandar barcaças para apanhá-los e levá-los para o outro lado do rio — a uns três quilômetros ao norte... Por falar em Krupkin, preciso sair daqui. Agora. Venha, o heliporto fica a seiscentos metros. Usaremos o jipe. Depressa, pelo amor de Deus! — Instruções de Krupkin? — De um leito de hospital, ele estava furioso e chocado. — Por quê? — Acho melhor você saber. Alguém, no círculo rarefeito — Krupkin não sabe quem —, deu ordens para impedir sua saída de Novgorod a qualquer custo. Para ser mais claro, ninguém podia imaginar que todo o maldito Novgorod explodisse em chamas, e esse é nosso meio de escape. — Nosso? — Não sou seu executor, outra pessoa quer matá-lo. Eu não sei nada a respeito e, nesta confusão, jamais vou saber. — Espere um pouco. Para onde o helicóptero vai me levar? — Cruze os dedos, professor e peça para que Krupkin e seu amigo americano saibam o que estão fazendo. O helicóptero vai levá-lo para Yelsk, e de lá, um avião o leva para Zomosc, do outro lado da fronteira polonesa, onde um satélite ingrato permitiu a instalação de um posto de escuta da CIA. — Cristo, mas é ainda território do bloco soviético. — O que entendi é que sua gente vai estar preparada. Boa sorte. — Ben — disse Jason, olhando atentamente para o jovem. — Por que está fazendo isto? Está desobedecendo uma ordem direta...
— Não recebi ordem nenhuma! — interrompeu o russo. — E mesmo que tivesse recebido não sou um robô. Você tinha um trato e cumpriu sua parte... Além disso, se houver uma chance para minha mãe... — Há mais do que uma chance — interrompeu Bourne. — Venha, vamos embora! Estamos perdendo tempo. Yelsk e Zomosc são apenas o começo para você. Terá de enfrentar uma jornada longa e perigosa, Archie.
Capítulo 42 PÔR-DO-SOL, e a noite descia sobre as ilhas de Montserrat, transformando-as em retalhos verde-escuros, no meio do mar azul e cintilante, e da infindável garoa de espuma branca que se erguia dos recifes de coral, tudo banhado pela luz alaranjada e diáfana do horizonte do Caribe. Na ilha Tranqüilidade as luzes se acendiam, uma depois da outra, e os vultos se moviam dentro das casas e nas varandas iluminadas pelos últimos raios do sol. As brisas suaves espalhavam o perfume dos hibiscos e das poinsétias pela folhagem tropical e um barco pesqueiro solitário dirigia-se para a terra, com sua carga de peixe para a cozinha do hotel. Brendan Patrick Pierre Prefontaine levou sua garrafa de Perrier para a varanda da Vila Dezessete, onde Johnny St. Jacques, encostado na grade, tomava seu rum e tônica. — Em quanto tempo você acha que pode reabrir o hotel? — perguntou o ex-juiz de Boston, sentando-se ao lado da mesa de ferro batido. — Os danos estruturais podem ser consertados em algumas semanas — respondeu o dono do Hotel Tranqüilidade —, mas o efeito psicológico do que aconteceu aqui vai demorar mais tempo para desaparecer, muito mais tempo. — Quanto tempo? — Vou esperar uns quatro ou cinco meses para enviar os primeiros folhetos — será tarde para as reservas da estação, mas Marie concorda. Fazer qualquer coisa antes, além de parecer de mau gosto, pode servir apenas para reacender as fofocas... Terroristas, traficantes de drogas, governo corrupto na ilha — não queremos e não merecemos isso. — Bem, como eu já disse, posso pagar minha estadia — disse o ex-juiz do tribunal federal distrital de Massachusetts. — Talvez não os seus preços de temporada, meu caro, mas o suficiente para cobrir as despesas de uma vila, mais um pouco para a caixinha do hotel. — E como eu já disse, esqueça. Eu. lhe devo mais do que posso pagar. Tranqüilidade é todo seu, pelo tempo que quiser. — St. Jacques olhou para o barco pesqueiro e depois sentou-se de frente para Prefontaine. — Eu me preocupo com o povo da ilha, nos botes e na praia. Antes, três barcos nos traziam o peixe fresquinho. Agora é só um para nós e para o que restou do pessoal do hotel — todos recebendo metade do salário. — Então você precisa do meu dinheiro. — Ora, juiz, que dinheiro? Não quero parecer impertinente, mas Washington me deu todas as informações a seu respeito. Há anos você vive do que ganha nas ruas. — Ah, sim, Washington — disse Prefontaine, erguendo o copo para o céu laranja e azul. — Como sempre, está a doze passos do crime — vinte passos no que se refere à sua própria criminalidade.
— Do que está falando? — De Randolph Gates, é disso que estou falando — de quem estou falando. — Aquele miserável de Boston! O que pôs o Chacal na pista de David? — O novo Randolph Gates, comoventemente reformado, Johnny. Reformado em tudo, exceto no que se refere à restituição do dinheiro que deve, devo acrescentar... Conservando ainda a mente e a consciência que eu conheci em Harvard há muitos anos. Não o mais brilhante, não o melhor, mas com a habilidade literária e de oratória que imitam um brilhantismo que jamais existiu. — Mais uma vez, de que diabo você está falando? — Eu o visitei há alguns dias no centro de reabilitação, em Minnesota, ou Michigan, não me lembro, porque viajei de primeira classe e serviam quantos drinques fossem pedidos.Seja como for, nós conversamos e concluímos nosso acordo. Ele mudou de lado, Johnny. Agora vai lutar — legalmente — pelo povo, não para os conglomerados que compram e vendem só no papel. Disse que vai atacar agora os aventureiros e os agentes que fizeram milhões nos mercados e custaram milhares e milhares de empregos. — Como ele pode fazer isso? — Ele esteve lá. Ele fez tudo, conhece todos os truques e está disposto a usar seus talentos consideráveis para isso. — Por que ele vai fazer isso? — Porque reconquistou Edith. — Quem, em nome de Deus, é Edith? — A mulher dele... Na verdade, eu ainda a amo. Desde que nos conhecemos, mas naquele tempo, um juiz com mulher e filho, por mais repulsivos que eles fossem, não podia pensar nessas coisas. Randy, o Grande, nunca a mereceu. Talvez agora ele compense os anos perdidos. — Isso é muito interessante, mas o que tem a ver com nossos planos? — Será que eu já disse que Lord Randolph Gates fez muito dinheiro durante esses anos perdidos mas muito lucrativos? — Várias vezes. E daí? — Bem, reconhecendo que os serviços prestados por mim resolveram a situação de perigo de vida em que ele se encontrava, sendo que a ameaça vinha de Paris, ele se convenceu da necessidade de me recompensar. Especialmente por causa das coisas que eu sei... Você compreende, depois de algumas lutas sangrentas nos tribunais, acho que ele vai se candidatar a uma cátedra de juiz. Muito mais alta do que a minha, estou certo.
— E daí? — Daí que, se eu ficar calado, sair de Boston, não soltar a língua, e ficar longe da bebida, seu banco vai me enviar cinqüenta mil dólares por ano pelo resto da minha vida. — Jesus Cristo! — Exatamente o que eu disse para mim mesmo quando ele concordou. Até fui à missa, pela primeira vez em trinta e tantos anos. — Você não pode, no entanto, voltar para casa. — Para casa? —, Prefontaine riu baixinho. — Era mesmo minha casa? Não importa, acho que encontrei outra. Um cavalheiro chamado Peter Holland, da CIA, deu-me uma recomendação para Sir Henry Sykes, aqui em Montserrat, o qual, por sua vez, me apresentou a um advogado londrino aposentado chamado Jonathan Lemuel, nativo da ilha. Estamos nos dando muito bem, mas nenhum de nós está preparado para um tipo diferente de “lar”. Podemos abrir uma firma de consultas, especialista em direito de importação e exportação, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. É claro que precisamos nos atualizar, estudar um pouco, mas podemos fazer isso. Espero ficar aqui por muitos anos. St. Jacques levantou-se rapidamente para apanhar outro drinque, olhando desconfiado para o exjuiz. Morris Panov caminhou penosa e cuidadosamente do quarto até a sala de estar da Vila Dezoito, onde Alex Conklin estava sentado numa cadeira de rodas. As ataduras no peito do psiquiatra apareciam através da fazenda fina da guayabera branca. Iam até o braço esquerdo, abaixo do cotovelo. — Levei quase quarenta minutos para enfiar a manga desta coisa inútil — queixou-se ele, zangado. — Devia ter me chamado — disse Alex, girando a cadeira que estava perto do telefone. — Eu ainda sei manejar bem esta coisa. É claro que tive uns dois anos de experiência antes da minha bota de Quasímodo. — Muito obrigado, mas prefiro me vestir sozinho — como acho que você preferiu andar sozinho quando colocou a prótese. — Essa é a primeira lição, doutor. Espero que haja alguma coisa a respeito nos seus livros. — Há, sim. Chama-se estupidez cretina, ou se preferir, obstinada. — Não, não é — disse o ex-agente, olhando para Panov que estava se sentando devagar. — Não... não é — concordou Mo, retribuindo o olhar. — A primeira lição é independência. Pegue toda que puder e continue tentando pegar mais. — Tem um lado bom, também — disse Alex, ajeitando a atadura do pescoço e sorrindo. — Fica
cada vez mais fácil, não mais difícil. A gente aprende novos truques todos os dias. É espantoso o que nossas células cinzentas podem inventar. — Diga-me, então. Preciso explorar esse campo algum dia... Você estava falando no telefone, com quem? — Holland. Os fios estão quentes em todos os canais secretos entre Moscou e Washington, os telefones dos dois lados quase paralisados com medo de serem responsabilizados por qualquer vazamento do código. — Medusa? — Você nunca ouviu esse nome. Eu nunca ouvi esse nome, e ninguém que conhecemos jamais ouviu esse nome. Já houve muita carnificina no mercado internacional — para não falar de alguns baldes de sangue verdadeiro — para questionar agora a sanidade das instituições que controlam os dois governos, os quais, evidentemente, pecaram por estupidez crassa. — Que tal, simplesmente culpados? — perguntou Panov. — Há muito poucos no topo para garantir a destruição do todo — esse foi o veredicto de Langley e da Praça Dzerzhinsky. Os chefões do Departamento de Estado e do Conselho dos Ministros do Kremlin concordam. Não adianta nada perseguir ou expor a extensão da conduta ilegal — o que acha disso, conduta ilegal? Assassinato, seqüestro, extorsão e corrupção em larga escala, os dois lados do Atlântico fazendo uso do crime organizado, tudo isso vai ser convenientemente etiquetado de “conduta ilegal”! Dizem que é melhor salvar o que podemos com a maior discrição e rapidez possíveis. — Isso é obsceno. — Isso é a realidade, doutor. Você está prestes a assistir a uma das maiores farsas da história moderna entre duas potências soberanas... E a verdadeira obscenidade está no fato de que talvez eles estejam certos. Se a Medusa fosse totalmente exposta — e é o único modo pelo qual poderia ser exposta —, o povo, com justa indignação, expulsaria os miseráveis, muitos deles os homens errados, manchados só por associação. Esse tipo de coisa cria verdadeiros vácuos nos altos postos, e esta não é a hora para vácuos de qualquer tipo. Melhor os demônios conhecidos do que os desconhecidos que virão depois. — Então, o que vai acontecer? — Negociação — disse Conklin, pensativamente. — As operações da Medusa cobrem uma área tão extensa, geográfica e estruturalmente falando, que é quase impossível desfazer completamente a rede. Moscou vai mandar Ogilvie de volta com uma equipe de analistas financeiros que junto com os nossos vão começar o desmantelamento da organização. Holland prevê uma minirreunião econômica de cúpula, muito discreta, com a presença de ministros das finanças da OTAN e dos países do bloco oriental. Sempre que os bens da Medusa possam se manter independentemente ou possam ser absorvidos por suas economias individuais, isso será feito por meio de acordos restritos entre todas as partes. A questão principal é evitar pânico financeiro com o fechamento em massa de fábricas e das companhias de venda de matéria-prima.
— O que enterraria para sempre a Medusa — disse Panov. — É também a história, não registrada, não reconhecida, como tem sido desde o começo. — Acima de tudo isso — concordou Alex —, por omissão e comissão sobra muita coisa para todos. — E homens como Burton ou os Chefes da Junta, e Atkinson em Londres? — Nada mais que mensageiros e testas-de-ferro. Estão afastados por motivos de saúde, e pode acreditar, eles compreendem. Com uma careta, Panov ajeitou o corpo dolorido na cadeira. — Não compensa seus crimes, mas o Chacal prestou um serviço, não acha? Se você não estivesse caçando Carlos, não teria encontrado a Medusa. — A coincidência do mal, Mo — disse Conklin. — Não estou pensando em recomendar uma medalha póstuma. — Eu diria que é mais do que coincidência — observou Panov, balançando a cabeça. — Em última análise, David estava certo. Forçada ou não, existia a conexão. Alguém da Medusa fez com que um assassino, ou assassinos, usando o nome de Jason Bourne, eliminasse um alvo muito visível no território do Chacal. Essa pessoa sabia exatamente o que estava fazendo. — Está falando de Teagarten, é claro. — Sim. Uma vez que Bourne estava na lista de morte da Medusa, nosso traidor patético, DeSole, teve de contar o que sabia sobre a operação Treadstone, talvez sem conhecer esse nome, mas conhecendo os fatos essenciais. Quando souberam que Jason — David — estava em Paris, usaram o roteiro original, ou seja, Bourne contra o Chacal. Matando Teagarten daquele modo, estavam certos de ter recrutado o parceiro mais mortal que podiam encontrar para localizar e assassinar David. — Isso nós sabemos. E daí? — Alex, você não vê? Pensando em tudo isso, Bruxelas foi o começo do fim e no fim David usou aquela acusação falsa para avisar Marie que ele estava vivo, para que Marie dissesse a Holland que ele estava vivo. O mapa com a cidade de Anderlecht marcada com um círculo vermelho. — Ele deu esperanças, foi isso. Eu não confio muito em esperança, Mo. — Ele fez mais do que dar esperança. Aquela mensagem fez com que Holland preparasse todas as estações da Europa para esperar Jason Bourne, assassino, e usar todos os meios possíveis para trazêlo de volta. — Funcionou. Às vezes esse tipo de coisa não funciona. — Funcionou porque algumas semanas atrás um homem chamado Jason Bourne compreendeu
que para caçar Carlos precisava criar uma conexão entre ele e o Chacal, uma conexão há muito esquecida que tinha de voltar à superfície. Ele conseguiu, você conseguiu! — De um modo muito indireto e complicado — admitiu Conklin. — Estávamos procurando, nada mais. Possibilidades, probabilidades, abstrações — era só o que tínhamos. — Abstrações? — perguntou Panov. — Um termo erradamente interpretado como passivo. Tem idéia da revolução que as abstrações podem provocar na mente? — Eu nem sei do que você está falando. — Aquelas células cinzentas, Alex. Elas ficam malucas, girando como minúsculas bolas de pingue-pongue, procurando passagem nos túneis minúsculos, atraídas pelas próprias compulsões. — Agora estou boiando. — Você mesmo disse, a coincidência do mal. Mas eu sugiro outro condutor — o ímã do mal. Foi isso que você e David criaram, e dentro do campo magnético estava a Medusa. Conklin girou a cadeira e foi para a varanda, para o brilho alaranjado que descia no horizonte, além das ilhas verde-escuras de Montserrat. — Eu gostaria que tudo fosse tão simples como você diz, Mo — falou rapidamente. — Mas infelizmente não é. — Explique. — Krupkin é um homem morto. — O quê? — Eu lamento o amigo e um inimigo fantástico. Ele possibilitou tudo para nós e no fim fez o que era certo, não o que lhe ordenaram. Permitiu que David vivesse e agora está pagando por isso. — O que aconteceu com ele? — Segundo Holland, ele desapareceu do hospital em Moscou há cinco dias — simplesmente pegou suas roupas e saiu. Ninguém sabe como fez isso, nem para onde foi, mas uma hora depois da sua partida, o KGB chegou para prendê-lo e levá-lo para a Lubyanka. — Então não o apanharam... — Mas vão apanhar. Quando o Kremlin dá uma ordem de Alerta Negro, todas as estradas, estações de trens, aeroportos e postos de fronteiras são colocados sob um microscópio. Os incentivos são irresistíveis. Quem o deixar sair passa dez anos num gulag. É uma questão de tempo. Droga! Bateram na porta e Panov disse:
— Está aberta, porque é mais fácil. Entre. Entrou o subgerente, Sr. Pritchard, imaculadamente vestido, precedido por uma mesa de serviço de quarto que ele podia empurrar sem se curvar nem um milímetro. Com um sorriso imenso anunciou sua presença e sua missão. — Buckingham Pritchard, às suas ordens, cavalheiros. Eu trago alguns petiscos do mar para sua reunião colegial, antes da refeição da noite, cujo preparo eu assisti pessoalmente ao lado do chef que, todos sabem, é propenso a erros sem a orientação experiente que tive o. maior prazer de fornecer. — Colegial? — disse Alex. — Deixei a droga de colégio há quase 35 anos. — Obviamente não restou nada, no que concerne às nuances da língua inglesa — murmurou Morris Panov. — Diga-me, Sr. Pritchard, não está com um calor horrível dentro dessas roupas? Eu estou suando como um porco. — Nenhuma nuance, apenas um chavão não provado — resmungou Conklin. — Eu não transpiro, senhor — respondeu o subgerente. — Aposto minha aposentadoria como você “transpirou” quando o Sr. St. Jacques voltou de Washington — disse Alex. — Cristo santíssimo, Johnny um “terrorista”! — O incidente já foi esquecido, senhor — disse Pritchard estoicamente. — O Sr. Saint Jay e Sir Henry compreenderam que meu brilhante tio e eu estávamos pensando somente no bem das crianças. — Sei, sei, sei — observou Conklin. — Vou preparar os canapés, cavalheiros, e verificar o gelo. Os outros estarão aqui dentro de alguns minutos. — Muita bondade sua — disse Panov. Encostado na grade da varanda, David Webb observava Marie que terminava de ler uma história para o filho. A imponente Sra. Cooper cochilava numa poltrona. A cabeça de cabelos negros com fios branco-prateados oscilava sobre o peito generoso como se esperasse a todo momento ouvir o choro da pequena Alison no quarto ao lado. As cadências da voz suave de Marie interpretavam os personagens e o sentido da história, como provavam os olhos atentos e os lábios entreabertos de Jamie. Se não fosse por sua mente analítica que ouvia música nos números, ela podia ser uma atriz, pensou David. Marie tinha os atributos superficiais dessa profissão — um belo rosto, uma presença marcante, o sine qua non que fazia silenciar homens e mulheres quando aparecia em algum lugar. — Papai, você pode ler para mim amanhã? A história terminou, Jamie saltou do sofá e a Sra. Cooper abriu os olhos. — Eu quis ler esta noite — defendeu-se David.
— Bem, é que ainda você cheira esquisito — disse o garoto, franzindo a testa. — Seu pai não tem nenhum cheiro, Jamie, eu já disse — explicou Marie, com um sorriso. — É o remédio que o médico mandou usar nos machucados. — Ele cheira, sim. — Não se pode discutir com uma mente analítica quando ela está certa, não concorda? — disse David. — É muito cedo para ir dormir, mamãe! Posso acordar Alison e ela vai começar a chorar outra vez. — Eu sei, meu bem, mas papai e eu temos de visitar seus tios... — É meu novo avô! — exclamou o garoto com entusiasmo. — O vovô Brendan disse que vai me ensinar a ser juiz algum dia. — Que Deus te ajude, Jamie — disse a Sra. Cooper. — Aquele homem se veste como um pavão na época do acasalamento. — Você pode ir ver televisão no nosso quarto — disse Marie rapidamente. — Mas só por meia hora... — Puxa! — Está bem, talvez uma hora, mas a Sra. Cooper escolhe os programas. — Obrigado, mamãe! — Jamie correu para o quarto dos pais seguido pela Sra. Cooper. — Bem, eu posso ficar um pouco com ele — disse Marie, levantando-se. — Não, Miss Marie — protestou a Sra. Cooper. — Fique com seu marido. Esse homem está sentindo muita dor e não diz nada. — Ela saiu da sala. — É verdade, meu bem? — perguntou Marie. — Você está sentindo dor? — Detesto destruir o mito da incontestável percepção de uma grande dama, mas ela está errada. — Por que você tem de usar tantas palavras, quando uma seria suficiente? — Porque sou supostamente um erudito estudioso» Nós, os acadêmicos, jamais tomamos o caminho direto porque não nos oferece nenhum desvio para o caso de estarmos errados. O que você é, uma antiintelectual? — Não — respondeu Marie. — Como vê, esse é um “declarativo” simples de uma só palavra.
— O que é um “ declarativo”? — perguntou Webb. Ele a tomou nos braços e beijaram-se longa e amorosamente. — É o caminho mais curto para a verdade — disse Marie, inclinando a cabeça para trás para olhar para o marido. — Nada de desvios, nada de circunlóquios, apenas fatos. Como: cinco mais cinco são dez, não nove ou onze, mas dez. — Você é um dez. — Isso é banal, mas eu aceito... Você está menos tenso, posso senti-lo outra vez. Jason Bourne está desaparecendo, não está? — Quase completamente. Enquanto você estava com Alison, Ed McAllister, da Agência de Segurança Nacional, me telefonou. A mãe de Benjamin está a caminho de Moscou. — Ora, isso é maravilhoso, David. — Mac e eu rimos no telefone e enquanto estávamos rindo, eu lembrei que nunca tinha visto nem ouvido McAllister rir assim. Foi muito bom. — Ele mal disfarçava o sentimento de culpa — era evidente. Foi ele quem nos mandou para Hong Kong e nunca se perdoou por isso. Agora você está de volta, vivo e livre. Não sei se eu posso perdoá-lo, mas pelo menos não vou mais desligar cada vez que ele telefonar. — Mac vai gostar disso. Na verdade, eu disse para ele telefonar, que você era até capaz de convidá-lo para jantar qualquer dia destes. — Eu não fui tão longe. — A mãe de Benjamin? Aquele garoto salvou minha vida. — Talvez um pequeno ajantarado. — Tire as mãos de cima de mim, mulher. Dentro de quinze segundos vou expulsar Jamie e a Sra. Cooper do nosso quarto e exigir meus direitos de marido. — É uma tentação, Átila, mas acho que Johnny está à nossa espera. Dois indivíduos rabugentos e um ex-juiz superimaginativo são mais do que um rancheiro do Ontário pode agüentar. — Eu gosto de todos eles. — Eu também. Vamos. O sol do Caribe desapareceu e só uma névoa alaranjada iluminava o horizonte. As chamas das velas dentro dos vidros protetores estavam firmes, apontando para o alto, a fumaça espiralando acima delas, sua luz aconchegante desenhando sombras na varanda da Vila Dezoito. A conversa era também agradável e descontraída — os sobreviventes comemorando sua libertação do pesadelo.
— Eu expliquei enfaticamente para Dandy Randy que a doutrina de stare decisis tem de ser questionada, se o tempo alterou as interpretações existentes quando foram determinadas as decisões originais — disse Prefontaine. — Mudança, mudança — o resultado inevitável do calendário. — Isso é tão óbvio. Não posso imaginar ninguém discutindo esse assunto — disse Alex. — Oh, Inunde-os-Portões fazia sempre uso disso, confundindo os jurados com sua erudição e confundindo seus colegas com múltipla decisis. — Espelhos e fumaça — disse Marie, rindo. — Fazemos o mesmo em economia. Lembra-se, Johnny, quando eu disse isso? — Não compreendi nem uma palavra. E ainda não compreendo. — Nada de espelhos ou de fumaça no campo da medicina — disse Panov. — Pelo menos, não onde os laboratórios são monitorados e os exploradores dos produtos farmacêuticos são proibidos. Avanços legítimos são validados todos os dias na medicina. — Sob muitos aspectos é o objetivo básico da nossa Constituição — continuou o ex-juiz. — É como se nossos Fundadores tivessem lido Nostradamus mas não quisessem admitir suas frivolidades, ou talvez tivessem estudado os desenhos dos aparelhos voadores de Da Vinci. Compreenderam que não poderiam legislar para o futuro, pois não tinham idéia de como seria, nem o que a sociedade iria precisar para sua futura liberdade. Eles criaram omissões brilhantes. — Não aceitas como tais pelo brilhante Randolph Gates, se não me falha a memória — disse Conklin. — Oh, ele vai mudar depressa, agora — afirmou Prefontaine, com uma risada. — Ele sempre foi o companheiro jurado do vento e é bastante esperto para ajustar as velas quando precisa navegar contra ele. — Muitas vezes eu fico pensando o que aconteceu com a mulher da lanchonete casada com um homem chamado “Bronk” — disse o psiquiatra. — Tente imaginar uma casa pequena com cerca de madeira, et cetera — sugeriu Alex. — Assim é mais fácil. — Que mulher de caminhoneiro? — perguntou St. Jacques. — Esquece, Johnny, eu prefiro não saber — disse Marie. — Ou aquele filho da mãe de médico do exército que me encheu de Amital — insistiu Panov. — Está dirigindo uma clínica em Leavenworth — disse Conklin. — Eu me esqueci de dizer... São tantos, tão loucos. E Krupkin. O maluco velho Kruppie, com sua elegância e tudo. Devemos muito a ele, mas não podemos ajudar.
Por um breve momento, todos pensaram no homem que corajosamente tinha desafiado um sistema monolítico que exigia a morte de David Webb, que estava agora encostado na grade da varanda olhando para o mar escuro, de certo modo separado física e mentalmente dos outros. Ia levar tempo, ele estava certo. Jason Bourne tinha de desaparecer, tinha de abandoná-lo. Quando?Não agora! Saída da noite que acabava de chegar, a loucura recomeçou! O ruído de vários motores quebrou o silêncio do céu como ziguezagues furiosos de relâmpagos. Três helicópteros militares mergulharam na direção do cais de Tranqüilidade, varrendo a costa com rajadas de balas, enquanto um potente barco de corrida passava pelos recifes, na direção da praia. St. Jacques estava no intercom. — Alarme na praia! — gritou ele. — Apanhem suas armas! — Cristo, o Chacal está morto — gritou Conklin. — Seus malditos discípulos não estão — disse Jason Bourne, sem o menor vestígio de David Webb no rosto ou na voz, empurrando Marie para o chão e tirando uma arma do cinto, uma arma cuja existência Marie ignorava. — Disseram a eles que ele estava aqui! — É loucura! — Isso é Carlos! — respondeu Jason, correndo para a varanda. — Ele os possui! Eles pertencem a Carlos para sempre. — Merda! — rugiu Alex, manejando a cadeira de rodas e puxando Panov para longe da mesa e das velas. De repente, ouviram os estalidos de estática e o piloto de um dos helicópteros disse, no altofalante a todo volume: — Você viu o que fizemos na praia, mon. Vamos parti-lo pelo meio se não desligar seu motor!... Assim é melhor, mon. Deixe as ondas o levarem para a praia — só as ondas, nada de motor e saiam os dois para o convés com as mãos para fora, sobre a amurada! Façam isso agora! Os holofotes dos dois helicópteros iluminaram o barco, enquanto o primeiro descia na praia com os rotores girando, levantando areia. Quatro homens desceram com as armas apontadas para o barco. Os que estavam na Vila Dezoito olhavam atônitos a cena na praia. — Pritchard! — gritou St. Jacques. — Traga-me o binóculo! — Está em minhas mãos, Sr. St. Jay — oh, aqui está. — O subgerente entregou o potente binóculo para seu patrão. — Eu consegui limpar as lentes, senhor! — O que você está vendo? — Bourne perguntou rapidamente. — Não sei. Dois homens. — Um belo exército! — disse Conklin.
— Deixe ver — ordenou Jason, tirando o binóculo das mãos do cunhado. — O que é, David? — gritou Marie, vendo o espanto no rosto do marido. — É Krupkin — disse ele. Sentado à mesa branca de ferro, com o rosto muito pálido — todo ele, pois tinha tirado a barba — Krupkin recusou-se a falar antes de terminar seu terceiro brandy. Como Panov, Conklin e David Webb, estava ferido, evidentemente sofrendo dores atrozes, e como os outros, ele procurava não demonstrar, pois o que o futuro prometia era muito melhor do que o que havia ficado para trás. Parecia se aborrecer profundamente cada vez que olhava para a roupa de qualidade inferior que estava usando, mas erguia os ombros em silêncio, como dizendo que logo estaria de volta ao seu esplendor. Suas primeiras palavras foram para o velho Brendan Prefontaine, examinando a guayabera cor de pêssego e a calça azul-real do ex-juiz. — Gosto dessa roupa — disse, com admiração. — Muito tropical e de bom gosto para o clima. — Obrigado. As apresentações foram feitas e o soviético viu-se à frente de uma cerrada barragem de perguntas. Ergueu as mãos, como o Papa no balcão da Praça São Pedro e disse: — Não vou aborrecer nem perturbar ninguém com os detalhes triviais da minha fuga da MãeRússia, a não ser para dizer que estou enojado com o alto preço da corrupção e nunca vou me esquecer, nem vou perdoar, as acomodações imundas que fui obrigado a suportar em troca das exorbitantes quantias que gastei... Dito isso, graças a Deus pelo Crédit Suisse e por aqueles lindos cupons verdes que eles emitem. — Conte o que aconteceu — disse Marie. — Você, minha cara senhora, é ainda é mais bonita do que imaginei. Se nos tivéssemos conhecido em Paris eu a teria roubado deste maltrapilho dickensiano que chama de marido. Nossa. Vejam que cabelo glorioso! — Ele provavelmente não sabe dizer a cor do meu cabelo — disse Marie, sorrindo. — Você será a ameaça que vou manter sobre a cabeça dele. — Porém, para a idade, ele é muito competente. — Isso porque eu o faço tomar uma porção de pílulas, Dimitri, de todo tipo. Agora, conte o que aconteceu. — O que aconteceu? Eles me descobriram, foi isso que aconteceu! Confiscaram minha bela casa em Genebra! Agora é um anexo da embaixada soviética. É de cortar o coração! — Acho que minha mulher está falando deste pobre camponês — disse Webb. — Você estava no hospital em Moscou e descobriu o que alguém tinha reservado para mim — ou seja, a minha
execução. Então, vccê mandou Benjamin me tirar de Novgorod. — Eu tenho algumas fontes, erros são cometidos nos altos postos e não vou incriminar ninguém citando nomes. Simplesmente foi uma coisa errada. Se aprendemos alguma coisa em Nuremberg, foi que ordens obscenas não devem ser obedecidas. Essa lição atravessa fronteiras e penetra em muitas mentes. Nós, na Rússia, sofremos mais, muito mais do que qualquer pessoa na América, durante a guerra. Alguns lembram ainda, e não vamos imitar o inimigo. — Falou muito bem — disse Prefontaine, erguendo o copo de Perrier para o soviético. — No fim das contas, nós todos fazemos parte da mesma raça humana, pensante e capaz de sentir, não é mesmo? — Bem — disse Krupkin, tomando a quarta dose de brandy. — Além dessa observação atraente, mas muito usada, existem divisões de compromissos, juiz. Não sérios, é claro, mas assim mesmo, variados. Por exemplo, embora minha casa no lago de Genebra não seja mais minha, minha conta nas Ilhas Caimã continua intensamente pessoal. A propósito, a que distância ficam as Caimã daqui? — Mais ou menos mil e quinhentos quilômetros a oeste — respondeu St. Jacques. — Um jato saindo de Antigua o leva até lá em pouco mais de três horas. — Foi o que pensei — disse Krupkin. — Quando estávamos no hospital, em Moscou, Alex falava sempre da Ilha Tranqüilidade e de Montserrat, por isso verifiquei no mapa da biblioteca do hospital. Tudo parece seguir seu curso... A propósito, os homens no barco, não vão ser muito severos com eles, vão? Meus papéis escandalosamente falsos estão em ordem. — O crime que ele cometeu foi ter aparecido assim, não trazer você até aqui. — Eu estava com pressa, quero dizer, correndo para salvar a vida. — Já expliquei ao governo da ilha que você é um velho amigo do meu cunhado. — Ótimo. Muito bom. — O que você vai fazer, Dimitri? — perguntou Marie. — Minhas opções são limitadas, eu acho. Nosso urso russo tem mais garras do que as pernas de uma centopéia e além disso conta com uma rede global de computadores. Tenho de ficar enterrado por muito tempo enquanto vou construindo uma nova existência. Desde o nascimento, é claro. — Krupkin voltou-se para St. Jacques. — Seria possível me alugar uma dessas lindas vilas, Sr. St. Jacques? — Depois do que fez por David e por minha irmã, nem precisa perguntar. Nossa casa é sua casa, Sr. Krupkin, toda ela. — Quanta bondade. É claro que primeiro tenho de ir até as Caimã onde, me disseram, há excelentes alfaiates, depois, talvez um pequeno iate e em seguida um negócio também pequeno que se possa provar que foi originário da Terra do Fogo ou das Malvinas, ou de outro lugar esquecido de Deus onde por pouco dinheiro se consegue uma identidade e um passado obscuro, mas extremamente legal.
Depois que tudo isso estiver funcionando, há um médico em Buenos Aires que faz maravilhas com impressões digitais — um processo indolor, segundo me disseram — e depois uma pequena cirurgia plástica — o Rio tem o melhor, vocês sabem, muito melhor que os de Nova York — só para alterar o perfil e talvez remover alguns anos... Nestes últimos dias e noites não fiz outra coisa senão pensar e planejar, suportando situações que não quero descrever na frente da Sra. Webb. — Você esteve pensando de verdade — concordou Marie, impressionada. — E por favor, me chame de Marie. Como vou ameaçá-lo com sua imagem se eu sou a Sra. Webb? — Ah, a adorável Marie! — E esses seus planos adoráveis? — perguntou Conklin. — Quanto tempo vai precisar para realizar tudo? — Imagine, você fazer essa pergunta! — Krupkin olhou para Alex, atônito. — Achei melhor perguntar — disse Alex. — Você, que foi o instrumento da criação da história da vida da maior criação que o mundo do terrorismo internacional já conheceu? O incomparável Jason Bourne? — Se está me incluindo nisso — disse Webb —, eu estou fora. Minha especialidade é decoração de interiores. — Quanto tempo, Kruppie? — Ora, tenha paciência, homem, você estava treinando um recruta para uma única missão. Eu vou mudar uma vida inteira! — Quanto tempo? — Diga você, Alex. Agora estamos falando dá minha vida. Por mais insignificante que ela possa ser na ordem geopolítica das coisas, ainda é a minha vida. — Tudo que ele precisar — disse David Webb, com Jason Bourne, invisível, espiando por cima do seu ombro. — Dois anos para fazer bem, três para fazer melhor — disse Dimitri Krupkin. — São seus — disse Marie. — Pritchard! — disse St. Jacques. — Por favor me dê um drinque.
Epílogo ELES CAMINHAVAM pela praia enluarada, ora se tocando, ora se afastando, o constrangimento alternando-se com a intimidade, como se o mundo que os havia separado não os tivesse libertado de sua órbita terrível, puxando-os constantemente para seu núcleo flamejante. — Você estava com uma arma — disse Marie suavemente. — Eu nem fazia idéia. Odeio armas. — Eu também. Não estou muito certo, mas acho que nem sabia que tinha uma. Ela apenas estava lá. — Reflexo? Compulsão? — Os dois, eu creio. Mas não importa. Eu não a usei. — Mas queria usar, não queria? — Também não estou certo. Se você e as crianças fossem ameaçadas, é claro que eu usaria, mas não acredito que seja capaz de atirar indiscriminadamente. — Tem certeza, David? Será que a mera sugestão de perigo para nós não vai fazer você atirar em sombras? Passos. Na areia! Ondas batendo contra a inequívoca intrusão do ser humano, uma quebra no fluxo do ritmo natural — sons que Jason Bourne conhecia de centenas de praias! Ele girou o corpo, levantou Marie pela cintura e a atirou com violência para fora da linha de tiro, ao mesmo tempo abaixando-se com a arma na mão. — Por favor, não me mate, David — disse Morris Panov, iluminando a cena, com sua lanterna. — Simplesmente não teria nenhum sentido. — Jesus, Mo — exclamou Webb. — O que você estava fazendo? — Tentando encontrá-los, nada mais... Quer fazer o favor de ajudar Marie? Webb obedeceu, ajudando Marie a se levantar, os dois quase cegos com a luz da lanterna. — Meu Deus, você é o espião! — exclamou Jason Bourne, erguendo a arma. — Você sabia de todos os meus movimentos. — No quê? — gritou o psiquiatra, jogando a lanterna no chão. — Se acredita nisso, por que não me mata, seu filho da mãe? — Eu não sei, Mo, não sei mais nada... — David inclinou a cabeça para trás, num gesto de dor. — Pois então, chore até não poder mais, seu miserável. Chore como nunca chorou antes! Jason
Bourne está morto, cremado em Moscou e é assim que tem de ser. Ou você aceita isso ou não quero me preocupar mais com você! Entendeu isso, sua criação brilhante e arrogante? Você fez o que tinha de ser feito, e acabou! Webb caiu de joelhos com os olhos cheios de lágrimas, tremendo, em completo silêncio. — Vamos ficar bem, Mo — disse Marie, ajoelhando ao lado do marido, amparando-o. — Eu sei disso — respondeu Panov, balançando a cabeça afirmativamente à luz da lanterna caída no chão. — Duas vidas numa mente, nós não podemos imaginar o que é isso. Mas acabou. Acabou de verdade. FIM
1) Snake eyes — olhos de cobra. No jogo de dados, dois pontos, um resultado perdedor. (N. da T.) ↵
2) Alusão à frase “ entre Cila e Caribde ” , que signif ica entre dois perigos inevitáveis. (N. da T. ) ↵
3) WASP — branco, anglo-saxão, protestante, gera lmente designando a classe rica, conservadora e privilegi ada dos Estados Unidos. (N. da T.) ↵