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DIFERENÇA E SUBJETIVIDADE: OS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO DIFFERENCE AND SUBJECTIVITY: ANIMALS AS SUBJECT OF RIGHTS

Fernando de Brito Alves Thiago Freitas Hansen RESUMO Trata o presente artigo de esclarecer alguns pontos sobre a possibilidade de se garantir personalidade jurídica aos animais na contemporaneidade, pela ampliação do conceito de sujeitos de direito a animais não humanos. Inicia a discussão no campo da filosofia da diferença pela qual tenta coligar com outras duas vertentes conhecidas da defesa dos direitos animais, sejam elas, o utilitarismo de Peter Singer e o abolicionismo. Em seguida, o foco do estudo volta-se ao direito comparado, em especial as legislações francesas e alemãs, e o tratamento dado aos animais pelo direito pátrio, que assumiu posição conservadora. Por fim, em um terceiro momento, retoma-se discussões da ética para legitimação dos direitos dos animais e da posição destes como sujeitos de direitos. PALAVRAS-CHAVES: PERSONALIDADE; UTILITARISMO; ABOLICIONISMO.

ANIMAIS;

DIFERENÇA;

ABSTRACT The present article intends to clarify some points about the possibility of ensure legal personhood to animals in the contemporary times, by the enlargement of the concept of subject of rights to nonhuman animals. Starts the discussion in the philosophy of difference field, by which tries to combine with other two well known doctrines in the animal rights movement, which are, Peter Singer’s utilitarism and the abolitionism. To further, shift the focus of the study to the comparative law, in special the French and German laws cases, and the treatment given by home law, which assumes a conservative position. Finally, in a third moment, restarts the discussion in the ethics to legimitize the animal rights and their position as subject of rights. KEYWORDS: PERSONHOOD; ABOLITIONISM.

ANIMALS;

DIFFERENCE;

UTILITARISM;

INTRODUÇÃO

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Um dos grandes desafios éticos da contemporaneidade é a consideração dos animais como sujeitos de direito. Para tanto é necessária uma ruptura epistemológica para o alargamento do conceito de pessoa, e a inclusão dos animais no rol daqueles a quem o direito atribui personalidade jurídica e, portanto, considera sujeitos de direitos. O conceito de pessoa é uma construção cultural, vale dizer que, ele não é dado de forma natural, tanto que para o direito existem pessoas não humanas, como as pessoas jurídicas, mera construção ficcional que serve a utilidades pragmáticas que surgem em um contexto de intensificação do comércio e incremento de arranjos sociais cada vez mais complexos. Mulheres, negros, portadores de deficiência, homossexuais entre outros tiveram e ainda tem o estatuto de pessoa negado, senão pelo direito, por práticas sistematicamente excludentes. O direito animal surge, nesse contexto, como uma das mais novas fronteiras do direito, repropondo o conceito de pessoa para considerar também os animais como sujeitos de direito. Nesse contexto, tanto o referencial teórico do utilitarismo filosófico, quanto às reflexões proporcionadas pela filosofia da diferença são capazes de fornecer subsídios teóricos importantes para o enfrentamento do tema.

1.

FILOSOFIA DA DIFERENÇA E DIREITO DOS ANIMAIS

Pondera Miroslav Milovic que a história da filosofia, e inclui-se ingualmente ai a história do direito, construiu várias formas de tematização do Outro e dos outros sempre os sujeitando a mediação do Mesmo. Essa postura epistemológica conduz a construção de uma ontologia da exclusão, que inegavelmente não possibilita a consideração dos animais como detentores de personalidade jurídica e, portanto, como sujeitos de direito. O citado autor textualmente afirma que

[...] parece que toda a história da filosofia comete uma injustiça profunda, tematizando várias formas do Mesmo e esquecendo o Outro. Como tematizar o Outro? Podemos imaginar a relação de simetria entre Mesmo e Outro, mas neste caso a dúvida é saber se assim se afirma a posição autêntica dos outros. Outra alternativa seria a posição assimétrica em favor do Mesmo, o que a filosofia representa até hoje. A terceira alternativa seria a assimetria em favor do Outro. (2004, p. 117)

Só é possível pensar o direito à diferença se for possível pensar o ser concretamente. Isso significa que é necessário retirar da filosofia seu falso ar de inocência, e reconhecer

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que posturas filosóficas esboçam posicionamentos pragmáticos incontestavelmente diferentes e às vezes perigosos. Regina Schöpke afirma que:

Inegavelmente, essa lamentável orientação da filosofia [a que referia-se alhures] levou a uma confusão dos ideais do pensamento com aqueles defendidos pelo Estado, pela religião e pela moral vigente. “Sem derrubar os sentimentos estabelecidos”, a filosofia fez do pensamento um puro ato recognitivo – uma faculdade “reconhecedora” do mundo e dos valores. Impedindo o exercício de sua natureza criativa e absolutamente insubordinada, a filosofia fez do pensamento um “bom moço”, sempre complacente com as tolices do mundo. Mas como diz Deleuze, eis que surgem os gritos apaixonados... Ah! Esses sujeitos de má vontade... Por que querem mudar aquilo que todos aceitam de bom grado e sem qualquer reflexão? Quem lhes dá o direito de levantaram a voz para dizer que não sabem aquilo que “todo mundo sabe”? O pensamento como afirmação da diferença, como afirmação de nossa própria diferença. É isso que defendem os “filósofos da diferença”, os “pensadores nômades” – aqueles que não se enquadram em modelos prévios. Fazer do pensamento um “modo de existência”, uma “máquina de guerra nômade” cujo maior desafio é permanecer livre dos modelos da representação, livre da Moral que tornou o pensamento um beato companheiro dos poderes vigentes. Este é o maior objetivo de Deleuze (e também era o de Nietzsche); lutar sobretudo contra as idéias de transcendência e de verdade absoluta. (2004, p. 29)

A principal característica da filosofia da diferença é, em oposição ao pensamento de sobre-vôo, a consideração da diferença em si mesma. Tal forma de abordagem tem início na filosofia pré-socrática, com Heráclito e seus esforços em pensar o devir. Para os filósofos da diferença, ao contrário do que ocorreria com os metafísicos antigos, por exemplo, a relação fundamental que se estabelece entre os seres, e entre os entes e a idéia é do diferente com o diferente, e não do semelhante com o semelhante. Isso porque não existe identidade no plano ideal e, tampouco, no real. A questão da diferença não despreza de todo a metafísica, ou a problemática ontológica.

[...] o aprofundamento do conceito de diferença pura nos leva inevitavelmente ao conceito de ser, mesmo que de uma forma totalmente nova. Vejamos a questão mais de perto: para Deleuze, o ser é unívoco, mas isso não quer dizer que ele seja uno (ou seja, que exista um único e mesmo ser para todas as coisas, tal como em Espinosa). Para ele, não existe um ser, mas múltiplos seres. Assim, unívoco quer dizer, especificamente, uma “só voz” para toda uma multiplicidade de seres. Em outras palavras, todos “dizem” da mesma maneira, isto é, em sua própria diferença. (SHÖPKE, 2004, p. 15)

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A tradição filosófica da metafísica clássica, que aqui bem poderia ser chamada de filosofia estática, quando desloca sua reflexão para o problema do ser, produz um tipo de filosofia totalitária que pensa existir apenas um ser, sendo doador do ser dos outros seres, seus semelhantes. A filosofia da diferença, ao contrário, tende a reconhecer a multiplicidade e a fragmentação da realidade, criando agora condições de se estabelecer uma filosofia epistemologicamente totalizante, não mais totalitária, com relação à compreensão do mundo, outorgando assim estatuto ontológico de ser àqueles a quem a história tradicionalmente negou, incluindo ai os animais. Considerar a diferença em si mesma, sua gênese/genealogia, e sua ontologia é um importante passo na construção da Ética e do Direito da Alteridade. Pondera Miroslav Milovic (2004, p. 50-60) que os Outros aparecem na história da filosofia como possibilidade de superação do solipsismo produzido pela noção de representação, principalmente da filosofia moderna, que inaugurada por Descartes com o Cogito, permanecera centrada na subjetividade e no problema do subjetivo-objetivo, sem fazer referência à “outras subjetividades”. O problema do Outro, e subseqüentemente o problema da diferença, não nasce como referência social, mas como desdobramento da fenomenologia, o que significa que ele existe apenas quando aparece à consciência. Não se constituiu uma forma de pensar o outro sem referência ou analogia a consciência, o que fez com que o problema do Outro permanece no âmbito subjetivo/objetivo. Os frankfurtianos perceberam a que nos levaria a racionalidade moderna, o que faz com que Theodor Adorno teça fortes críticas do projeto da modernidade tanto na Dialética do esclarecimento (1997) quanto na Dialética negativa (1982). A saída aparente da crítica ou dialética – razão que pensa contra si mesma – é a reafirmação da natureza, do não idêntico, da diferença, em oposição às formas de identidade modernas. A dialética negativa de Adorno poderia ser considerada o primeiro projeto de afirmação da diferença. Wittgenstein, Gadamer, Rorty, e Habermas (Cf. MILOVIC, 2004, p. 52-66 passim) teceram não poucas críticas a Escola de Frankfurt, mas continuaram o projeto de pensamento do Outro, ainda que alguns tenham assimetricamente pendido para o Mesmo. Na verdade, a representação e a igualdade se constituem como instâncias seletivas de valor, a serviço dos ideais morais (Cf. SHÖPKE, 2004, p. 23), como já denunciara Nietzsche na Genealogia da Moral, desprezando tudo o que não se enquadra em modelos específicos ou paradigmáticos. Quando Platão despreza os simulacros – nossa realidade fenomênica – em última instância, de acordo com Deleuze, ele estaria condenando toda forma de manifestação da diferença livre, tudo o que recusa a modelos impostos. O simulacro, nesse sentido, contestaria a existência tanto da cópia quanto do original, e por compreender em si a diferença, seria tão indesejável ao espírito. O filósofo bósnio citado no início deste capítulo, dialogando com a filósofa judia Hannah Arendt pondera que ela,

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[...] acredita que a separação platônica do ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma tirania própria à razão e dos padrões na nossa vida. Isso é o que Nietzsche diagnostica como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem conseqüências catastróficas para o próprio pensamento. Ele se torna mera subsunção das aparências às formas superiores do ser. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais. O pensamento não altera a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou. (MILOVIC, 2004, p. 92-93)

Pensar a diferença por si é pressuposto fundamental para se discutir as grandes questões da justiça e da igualdade, relacionadas inclusive ao direito dos animais. Considerar que o conceito de diferença, como todos os outros conceitos e todas as idéias, não passa de virtualidade, de ficção, é imperioso para concluir que o Homem não existe, muito menos a Humanidade como essência metafísica; o que existem são seres in concreto, são seres diferentes do ponto de vista biológico, social, econômico, etc. que convivem e partilham de um mesmo macro-espaço, e que por tal motivo o homem não possui estatuto ontológico privilegiado. Reconhecer a alteridade é pressuposto ético para a construção/reconhecimento do direito à diferença.

2. OS ANIMAIS COMO NOVOS SUJEITOS DE DIREITO: BREVES NOTAS DE DIREITO COMPARADO

O grande desafio da teoria do direito ao tentar incorporar os temas relacionados com a diferença, e dentre eles, o direito dos animais, é que a idéia de diferença é inimiga do pensamento e do próprio direito; inimiga do pensamento como representação e do direito como mantenedor de relações de poder. Embora resistente, não existe qualquer óbice por parte do ordenamento jurídico a atribuição de personalidade jurídica aos animais, tendo em vista, como já dito que o faz com relação às pessoas jurídicas, que são meras ficções de direito e adquirem personalidade com o registro de seus atos constitutivos nos órgãos competentes. Os animais, da mesma forma que as pessoas jurídicas, como não podem pessoalmente comparecer em juízo para a defesa de seus direitos e interesses, são representados na forma da lei.

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A possibilidade de consideração dos animais como sujeitos de direito é antiga no ordenamento pátrio, tanto que o Decreto 24.645/34 que no artigo 2°, § 3° dispõe: “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais”. Tal norma legal foi erigida a categoria de direito constitucional, com a Carta Magna de 1988, que disciplinou o tema nos artigos 127 e 129, inciso III. Embora não haja referência explícita a representação dos animais em juízo, especificamente o inciso III do artigo 129 consignou entre as funções institucionais do Ministério Público a proteção do meio ambiente. Assim sendo, se os animais pudessem ser considerados coisas em sentido stricto, não teria sentido algum disposições legais legitimando a substituição ou assistência deles, em juízo, pelo Ministério Público. A despeito de tais consideraçãos a polêmica com relação aos direitos dos animais ocorre porque o ordenamento jurídico é anti-tético quanto aos animais. Ao mesmo tempo em que têm resguardados seus direitos, para o direito civil, se forem animais silvestres são classificados como bens de uso comum, e se domésticos são passíveis de serem objetos de direitos reais, sendo reduzidos a condição de semoventes. Não é diferente em outros ordenamentos jurídicos, a título de exemplificação, muito embora a legislação francesa seja mais generosa que a brasileira na proteção dos interesses dos animais, eles também são considerados como componentes do arcevo patrimonial de quem pertencem. A propósito, segue o artigo 528 do Código Civil Francês: “São móveis os que pela sua natureza animal podem se transportar de um lugar para outro, ou por si, ou pela atuação de uma força externa” (tradução nossa). Consigne-se todavia, que muitos juristas franceses concordam que é necessário uma ampla discussão sobre o estatuto jurídico dos animais, que seria um tertio genus com relação as pessoas humanas e as jurídicas, para atender as suas particularidades (NOIRTIN et al, 2009). A legislação alemã da mesma forma possui dispositivos que traduzem com alguma esperança a tendência da ampliação da proteção dos direitos dos animais, que assinalam a importância de uma profunda reforma no ordenamento jurídico pátrio, bem como no francês. Por exemplo, o novo artigo 20-A da Lei Fundamental da Alemanha dispõe: “O Estado protege também como responsabilidade para as gerações futuras, os fundamentos da vida e dos animais no contexto desta Constituição […]” (tradução nossa) Em 1990, foi inserido um novo parágrafo no Código Civil Alemão (§ 90 – A) que textualmente afirmou que os animais não são coisas e são responsáveis nos termos das leis especiais aplicáveis: “Os animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. [...] salvo disposição em contrário” (tradução nossa). Apesar disso, a Lei Alemã de Proteção dos Animais de 25 de maio de 1998 (publicada na Revista de Legislção Federal I, p. 1094), prevê no seu artigo primeiro, na primeira seção, sob o título de princípio que é proibido causar sofrimento ou dor aos animais sem uma boa razão (as boas razões ou justos motivos vão ser disciplinados nos artigos seguintes da lei, embora alguns sejam criticáveis). O que denota que o direito alemão caminha no sentido de alcançar a consistência necessária com relação à proteção do animal, e principalmente a sua consideração como sujeito de direitos.

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Voltando a análise do direito pátrio, apesar de como dito alhures os animais poderem ser assistidos em juízo pelo Ministério Público, e os já descompassos apresentados com relação a legislação civil que os considera como bens de uso comum ou semoventes, o direito penal também é antitético. Por exemplo, o artigo 32 da da lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), prevê expressamente que constitui crime “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, todavia, para o direito penal os animais quando sujeitos passivos de crime não são considerados vítimas, mas objetos materiais dos delitos, quem é considerado sujeito passivo do delito é a própria coletividade, que deveras representa um profundo descompasso na tendência de se reconhecer os animais como sujeitos de direitos (LEVAI, 2007; COPOLA 2008). Para tanto se defende além de uma reforma legislativa, uma mudança na mentalidade do operador do direito para a consideração dos animais como pessoas, no sentido jurídico, e dessa forma, ssujeitos de direitos. São vários os fundamentos éticos para se legitimar a tutela dos direitos dos animais, tema que será abordado na próxima seção.

3. FUNDAMENTOS ÉTICOS DO RECONHECIMENTO DOS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITOS

O primeiro fundamento ético para o reconhecimento dos animais como sujeitos de direito é a filosofia da diferença que serviu de mote e introdução para a discussão do tema. Normalmente são utilizadas duas argumentações fundamentais assossiadas ao abolicionismo animal ou ao utilitarismo. A proposta de introduzir argumentos da filosofia da diferença na fundamentação ética é ampliar os referenciais teóricos de modo a encontrar alternativas de legitimação dos animais como sujeitos de direitos sem esgotar os modelos já existentes. Os limites de tal argumentação é que a filosofia da diferença normalmente tem sido associada a defesa dos direitos de minorias, e não na afirmação dos direitos dos animais. Todavia, é de se considerar, que em última medida, analogicamente, a argumentação utilizada para referendar os direitos de minorias poderia servir para justificar os direitos dos animais guardadas algumas proporções. Emannuel Levinas no Diálogo sobre pensar-no-outro afirmaria que:

[...] É possível perguntar-se se a materialidade da matéria em seus últimos “confinamentos”, sob a solidez do átomo de que falam os físicos, não seria o analogon da interioridade do ser puro antes da ética ou sem ela, absorvida em seu conatus essendi à guisa de eu-substância, analogon da solidez do sólido, da dureza do duro, já metáfora da crueldade do cruel na luta pela vida e o egoísmo das guerras. Tentação permanente de uma metafísica materialista! A ética, o cuidado reservado ao ser do outro-que-simesmo, a não-indiferença para com a morte de outrem e, consequentemente, a possibilidade de morrer por outrem, chance de santidade, seria o abrandamento desta

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contração ontológica que o verbo ser diz, o des-inter-essamento rompendo a obstinação em ser, abrindo a ordem do humano [...] (2005, p. 268-269)

A proposta da filosofia da diferença, nesse sentido seria a de uma ruptura ontológica ou de uma mudança epistemológica radical para a consideração do alter. A grande dificuldade de aceitação dos animais como sujeitos de direitos e os limites do especismo passam pelo endurecimento do ser, e pela desconsideração do outro. Dialogar com o outro é, além de não ser indiferente, pressuposto de uma ética sensível com a crueldade e não solipsista e ensimesmada, que tenha o homem no centro. Keith Thomas (1996, p. 49) atrai sua discussão histórica para a diferença, e demonstra a utilização dos animais como objetos de processos de exclusão do “outro”, sendo estes mesmos considerados “outros” ao citar: “‘em todo o mundo natural mentalmente elaborado’, escreve um antropólogo moderno, ‘o contraste entre homem e não-homem fornece uma analogia para o contraste entre o membro da sociedade humana e o estranho a ela’” e aprofunda ao mostrar que “igual atitude de exclusão do outro se notava, em escala ainda maior, face aos povos ‘primitivos’ que não dispunham de atributos como os que também faltavam aos animais: tecnologia, linguagem inteligível, religião cristã”. Nesse sentido a transcendência em direção ao outro, não é a busca do absoluto, mas o encontro com os outros próximos que no caso da proposta ora apresentada são os animais. Afastando-se um pouco da argumentação da filosofia da diferença para a apresentação de algumas questões levantadas pelos utilitaristas, Peter Singer, em Ética Prática (2006), depois de apresentar algumas considerações sobre o conteúdo do princípio ético (e jurídico) da igualdade a partir do pensamento de Rawls, sugere a aplicação do mesmo aos animais. Singer tem consciência e admite (2006, p. 66-67 passim) que a aplicação do princípio de igualdade a não humanos pode soar uma tese bizarra, tendo em vista um “preconceito popular”, que talvez seja um dos mais fortes entraves para a superação do especismo. Todavia, antes de Peter Singer, e certamente seus precursores e marco teórico do utilitarismo, não foram poucos os filósofos modernos que sugeriram não haver diferenças entres os animais homens e os animais não-homens, ou que essas diferenças seriam construções meramente culturais humanas, que serviriam para justificar a superioridade do homem não só em relação aos animais como em relação à outros homens. O historiador inglês Keith Thomas pontua que na modernidade,

O homem atribuía aos animais os impulsos da natureza que mais temia em si mesmo – a ferocidade, a gula, a sexualidade – mesmo sendo o homem, e não os animais, quem guerreava a sua própria espécie, comia mais do que devia e era sexualmente ativo durante todo o ano (1996, p. 48)

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Nasce nesta mesma época ai idéia de “sub-humano” ou “semi-animal”, de modo que qualquer homem que não reprimisse os impulsos selvagens seria considerado mais próximo da condição de animal inferior que da condição de humano sendo então passível de exclusão da sociedade, exclusão na qual incorreram às minorias, sejam elas, as mulheres, os loucos, os pobres etc. Portanto, Keith Thomas (1996, p. 53) finaliza demonstrando que “a ética da dominação humana removia os animais da esfera de preocupação do homem. Mas também legitimava os maus-tratos àqueles que supostamente viviam uma condição animal”. Michael Montaigne, já no século XVI, um dos humanistas mais críticos do projeto da modernidade, viria a afirmar:

Observemos ademais algumas semelhanças existentes entre o homem e os animais. Conhecemos alguma coisa de seus sentimentos, pouco mais ou menos o que conhecem dos nossos, pois nos fazem festa, nos ameaçam ou nos pedem o que querem, quase da mesma maneira porque nos conduzimos com eles. De resto entendem-se entre si perfeitamente e não só entre os da mesma espécie, mas também entre os de espécie diferente. “Os animais domésticos, como os bichos ferozes, emitem sons diferentes segundo o medo, a dor ou o prazer que sentem”. Pelo latido do cão sabe o cavalo de sua cólera; não o receia quando outra é a modulação da voz. (2000, p. 382)

Não é necessário recorrer às recentes descobertas da primatologia de cientistas como Frans de Waal, que em sua obra de psicologia comparada Eu, primata (2007), que relata as ligações claras entre os primatas nus (homo sapiens) e os outros dois primatas mais próximos, os chimpanzés e os bonobos, tanto nas relações políticas, sexuais, morais e jurídicas, para perceber, como os modernos já o haviam feito, que o único fundamento do especismo é uma espécie de narcisismo culturalmente construído e perpetuado pelos animais humanos. Ora, Frans de Waal (2007, p. 222) já afirmou que devido às recentes descobertas primatólogas, o narcisismo humano, está em xeque já que “o lugar especial da humanidade é marcado por definições abandonadas e traves de gol móveis” Da mesma forma Hume ponderou que:

Em primeiro lugar, parece evidente que os animais, como os homens, aprendem muitas coisas da experiência e inferem que os mesmo eventos resultarão sempre das mesmas causas [...] podemos constatar que o animal infere um fato que ultrapassa aquele que impressiona imediatamente seus sentidos e que esta experiência está completamente fundada na experiência passada, visto que a criatura espera do objeto presente os mesmos resultados que, em sua observação, sempre tem visto derivar de objetos semelhantes. (1999, 107)

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Hume na obra Investigação acerca do entendimento humano, da qual o excerto foi extraído, é categórico em denunciar que a racionalidade é como um teatro, que funciona por meio de associações e não é exclusiva da humanidade, como acreditaria Descartes e os outros racionalistas. Por fim, para fixar a principal referencia de Peter Singer, Bentham (1984, p. 63) afirmou que:

(...) Pode vir o dia em que o resto da criação animal adquira aqueles direitos que nunca lhe deviam ter sido tirados, se não fosse por tirania. Os franceses já descobriram que a cor preta da pele não constitui motivo algum pelo qual o ser humano possa ser entregue, sem recuperação, ao capricho do verdugo. Pode chegar o dia em que se reconhecerá que o número de pernas, a pele peluda, ou a extremidade de os sacrum constituem razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível à mesma sorte. Que outro fator poderia demarcar a linha divisória que distingue os homens de outros animais? Seria a faculdade de raciocinar, ou talvez a de falar? Todavia, um cavalo ou um cão adulto é incomparavelmente mais racional e mais social e educado que um bebê de um dia, ou de uma semana, ou mesmo de um mês. Entretanto, suponhamos que o caso fosse outro: mesmo nessa hipótese, que se demonstraria com isso? O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer?

A capacidade de sofrimento dos animais é uma das principais características que lhes atribuiriam direito à igual consideração (SINGER, 2006, p. 67). Nesse sentido é possível aproximar a argumentação utilitarista da ética da alteridade e da filosofia da diferença: o sofrimento de outrem não pode ser objeto da indiferença. Outra fundamentação possível para o direito animal encontra-se no movimento chamado abolicionismo. Esta doutrina pode ser sintetizada pela frase do filósofo norteamericano Tom Regan “a verdade para os direitos animais não requer jaulas mais espaçosas, e sim jaulas vazias”. Diferentemente da posição utilitarista, o abolicionismo trabalha com categorias muito próximas da filosofia da diferença, pois ao cunhar o termo “sujeito-de-uma-vida”, os abolicionistas assumem que o critério para emancipação é o reconhecimento da existência do “sujeito-de-uma-vida”, reconhecimento este da vida de um ser senciente em suas peculiaridades, ainda que nãohumano. Estaria aí implícita a idéia de alter. Para completar este entendimento, Tom Regan (2006, p. 67) afirma que

Existe uma identidade em meio às diferenças. Enquanto sujeitos-de-uma-vida, nós somos, por assim dizer, inteiramente como eles [os animais]. Se uma pessoa nos

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dissesse que estamos enganados, que gatos e cães não são, de forma alguma, conscientes do mundo, ou que eles absolutamente não se importam com o que lhes acontece, vamos achar (para usar uma conhecida expressão) que ela deve ter um parafuso a menos na cabeça.

O abolicionismo é reconhecido pela adoção do veganismo, estilo de vida que abona qualquer tipo de exploração animal, desde peles e couro até a ingestão de ovos, leite ou o uso de cosméticos testados em animais. Devido a esta posição extremista – embora possua fundamentos éticos plausíveis -, o senso comum tende a enxergá-los como utópicos. Uma dúvida que pode nascer do seio do abolicionismo seria a de quais espécies de animais não humanos devem ser protegidas e ter seus direitos garantidos, ou se todos sem exceção devem ter seus direitos respeitados. A defesa de todas as espécies é simplesmente impossível, por mais que possa ser desejada, haja vista que seria por demais formal uma conclusão absoluta de que todos os animais, de formigas à elefantes devam receber a mesma proteção jurídica. Para tanto sugere-se um limite (em inglês the line). Enquanto para os utilitaristas pautase na idéia de sofrimento, para os abolicionistas estaria instituído na posição de Regan expressa por Lori Gruen (2007, p. 346)

A visão de Regan, muito abreviada, iria no seguinte sentido: Somente seres com valor inerente tem direitos. Valor inerente é o valor que os indivíduos possuem independentemente de sua bondade ou utilidade para outros e direitos são coisas que protegem este valor. Somente sujeitos-de-uma-vida tem valor inerente. Somente seres auto-conscientes são capazes de ter crenças e desejos, somente agentes com propósitos que podem compreender o futuro e criar metas são sujeitos-de-uma-vida. (tradução nossa)

A doutrina abolicionista determina como sujeitos-de-uma-vida somente seres capazes de possuírem um valor próprio, e portanto, construírem sistemas de direitos. Apesar do reconhecimento dos argumentos destas tradições filosóficas contemporâneas, não é possível levar ao absoluto qualquer posição, sendo sempre necessária a busca pelo equilíbrio dos valores. Gary L. Francione (2004, p. 121), apesar de sua posição abolicionista, demonstra prudência, em coletânea organizada por Cass R. Sunstein e Martha C. Nussbaum, ao afirmar que:

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A sugestão de que os interesses dos animais devem receber igual consideração não é tão radical como pode aparecer à primeira vista se nós considerarmos que o tratamento humanitário dos princípios integra o princípio da igual consideração. Estamos ponderando o nosso sofrimento em não usar animais contra os interesses dos próprios animais. Se houver um conflito entre os interesses humanos e os interesses animais, então o interesse humano pesará mais, e, portanto, o sofrimento animal é justificável. (tradução nossa)

O que se quer afirmar é que a consideração dos animais como sujeitos ético-jurídicos e o reconhecimento dos seus direitos não é algo absoluto e não sucetível à ponderação, quando em conflito com outros direitos ou valores. A essa posição deve-se lembrar que o excesso de racionalização em detrimento da emoção pode criar uma falsa percepção de que animais humanos e animais não-humanos devam receber tratamentos iguais a qualquer custo, o que também foge a justificação ética razoável. A ponderação deve conviver sempre com a ética prática, pois em uma hipotética situação em que se tenha de escolher a vida de um animal humano ou de um animal não humano, as peculiaridades do caso devem ser o parâmetro. Assim, pondera Lori Gruen (in SINGER, 2007, p.352):

Nós muito raramente estamos defronte com decisões de botes salva-vidas; nossas escolhas morais não usualmente existem em fatos extremos. Não é também simplesmente o caso de se sofrer grande dor sem um casaco de pele ou sem a coxa de um cordeiro. As escolhas entre o seu bebê ou um cachorro são aquelas que virtualmente nenhum de nós seremos forçados a fazer. O reino hipotético é um em que podemos clarear e refinar nossas intuições morais e princípios, mas nossas escolhas sobre sofrimento de bilhões de animais não são hipotéticas. (tradução nossa)

O importante é considerar com Albert Schweitzer (1989), que uma ética contemporânea amplamente includente dever ser de "reverência pela vida", fundamentada no critério da vitalidade - ou na condição de ser vivo. Não somente a vitalidade, mas também a vontade de viver (retomando em alguma medida o conceito de conatus da filosofia de Spinoza) é capaz de fundamentar uma comunidade moral, em que convivam homens e animais em igualdade.

CONCLUSÕES

Não existe qualquer óbice, ético ou jurídico, para a consideração dos animais como sujeitos de direitos, havendo inclusive no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de

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serem assistidos em juízo pelo Ministério Público, em decorrência de norma legal que se encontra em pleno vigor. As resistências apresentadas pelo especismo são de duas ordens, basiicamente, sendo uma econômica e outra cultural. As resistências econômicas são decorrentes de um modelo de organização da produção e de geração de riquezas fortemente baseado na exploração animal. As resistências de ordem cultural decorrem de uma tradição, que por fundamentos filosóficos ou religiosos, pensa um mundo ordenado de forma que cada ser possui uma posição ou status ontológico definido, que denota dignidades distintas, sendo o homem aquele de maior estatura sistêmica e maior envergadura axiológica. É necessária uma ruptura epistemológica, para superação do especismo que produziu a exclusão das minorias, e também dos animais, ao considerá-los coisas, e não atribuirlhes personalidade jurídica.

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