ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS, MANIFESTAÇÕES DE RUA E “OBTENÇÃO DE VANTAGEM DE QUALQUER NATUREZA”: ATIVISMO OU GARANTISMO? George Mazza Matos* Nestor Eduardo Araruna Santiago**
RESUMO Os movimentos sociais no Brasil – dentre eles as manifestações de rua – têm como finalidade pleitear direitos considerados fundamentais, sejam de caráter individual, social, político ou econômico. De meados de 2013 até os dias atuais, esses movimentos da sociedade recrudesceram, motivados por outras questões mais complexas, como o descrédito nas instituições, a ausência de representatividade política, a leniência estatal em setores fundamentais da sociedade (educação, saúde, transportes e segurança pública), dentre outros. Verificou-se, da mesma forma, uma estruturação desses movimentos, de caráter profissional. Nesse mesmo ano de 2013 foi publicada a Lei n. 12.850, revogando a Lei n. 9.034/1995, definindo organização criminosa, bem como trazendo ao ordenamento jurídico disposições materiais e processuais sobre o tema. Diante de tal cenário social e legislativo, e fazendo-se uma vinculação dessas manifestações de rua com a nova legislação em vigor, questiona-se em que medida as manifestações sociais podem ser orquestradas por organizações criminosas. O presente trabalho aborda, em sua parte inicial, as recentes manifestações de rua no Brasil. Em seguida, disserta sobre a Lei das Organizações Criminosas. Por fim, analisa a possibilidade de coordenação e participação de organizações criminosas em manifestações de rua, com o fim precípuo de obtenção de vantagem de qualquer natureza diversa da financeira. Na parte final do trabalho se discute até que ponto essa consubstanciação jurídica – com o fim de enquadramento delitivo – entre organização criminosa, manifestações de rua e a ampliação do conceito de “vantagem de qualquer natureza” pode ser considerada como ativismo judicial e não garantismo. PALAVRAS-CHAVES: Garantismo. Ativismo judicial. Manifestações sociais. Organizações criminosas.
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Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pesquisador do Laboratório de Ciências Criminais (LACRIM) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Empregado Público do Banco do Nordeste do Brasil S/A. E-mail:
[email protected] **
Advogado Criminalista. Doutor em Direito. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD), Graduação em Direito e Especialização em Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Líder do Grupo de Pesquisa “Tutela penal e processual penal dos direitos e garantias fundamentais” - Laboratório de Ciências Criminais (LACRIM) da Unifor. E-mail:
[email protected]
CRIMINAL ORGANIZATIONS, STREET DEMONSTRATIONS AND “TAKING ADVANTAGE OF ANY NATURE”: ACTIVISM OR GUARANTEEISM? ABSTRACT The social movements in Brazil - among them the street demonstrations - has as purpose to plead rights considered fundamental, no matter if they are individual, social, political or economic. From mid 2013 until the present day, these social movements have escalated, motivated by other more complex queries, such as the discredited institutions, the absence of political representativeness, the State's failure in key sectors of society (education, health, transport and public safety), among others. It was found in the same way a structuring of these movements of professional character. In that same year of 2013 was published the Law n. 12.850, revoking the Law n. 9.034/1995, defining criminal organizations, as well as bringing the legal provisions and procedural measures on the theme. According to this scenario and social legislation, and by making a commitment of these street demonstrations with the new legislation, it is questioned in which extent the social demonstrations can be orchestrated by criminal organizations. In its inicial part, the present work deals with the recent street demonstrations in Brazil. Then, discusses about the Law of Criminal Organizations. Finally, it analyzes the possibility of coordination and involvement of criminal organizations in street demonstrations, with the easing of obtaining advantage of any nature, in addition to other indirect benefits. In the final part of the paper it is discussed to what extent this legal formulation – in order to characterize a criminal offense - between criminal organization, street demonstrations and the broadening of the concept of "advantage of any nature" can be regarded as judicial activism and not guaranteeism. KEYWORDS: Organizations.
Guaranteeism.
Judicial
Activism.
Social
Events.
Criminal
INTRODUÇÃO Há um fervilhar frenético na sociedade brasileira moderna. O desprestígio político, a ausência de representatividade social, investimentos econômicos equivocados, a ineficiência do serviço público, a corrupção, o aumento das tarifas dos transportes públicos e o descrédito com as instituições legalizadas foram os motivos, dentre tantos outros, que desencadearam os movimentos sociais mais recentes, com ápice em meados de 2013, mas que se prolongam até os dias atuais. Sabe-se que os movimentos sociais no Brasil e no mundo tornaram-se vigorosos e consistentes, como outros de passado recente, a partir do ano de 2013, quando a população brasileira se viu afrontada ante a ausência de investimentos em setores sociais básicos como saúde, educação, transportes, segurança pública, que perecem pelo ostracismo estatal, em detrimento do dispêndio de considerável montante financeiro em eventos coordenados por instituições estrangeiras, como a Copa do Mundo e a Olimpíada. Com instituições desprestigiadas, a população brasileira deparou-se com a necessidade de pleitear coletivamente direitos individuais, coletivos e difusos ora inalcançados ou incompletamente prestados pelo Estado. Os movimentos sociais, concretizados através das manifestações de rua, foram o palco encontrado para que as autoridades públicas pudessem perceber a insatisfação social coletiva. Esse era o intuito principal e onde deveriam se arvorar os manifestantes: alcançar objetivos que durante décadas foram tolhidos do seio social. No mesmo ano do auge das manifestações sociais no Brasil, foi publicada a Lei n. 12.850, que, ao revogar a legislação anterior – Lei n. 9.034/1995 – definiu o que seriam organizações criminosas, tipificou alguns delitos de possível subsunção por esses agrupamentos criminosos, bem como trouxe outros institutos processuais no que se refere às organizações criminosas. A lei também trouxe conceito determinante na definição de organização criminosa – “vantagem de qualquer natureza” – embora juridicamente de amplo alcance. Desse modo, questiona-se se existe a possibilidade de um grupo organizado, estruturado e hierarquizado em suas funções que, através do cometimento de determinados delitos, coordene violentas manifestações de rua com o fim precípuo de obtenção de vantagem diversa da vantagem financeira, como a vantagem política, por exemplo. Desta feita, este trabalho busca trazer à baila discussão sobre a possibilidade da participação de organizações criminosas nas manifestações de rua sem a finalidade precípua de
obtenção de vantagem financeira, mas com o propósito essencial de auferir vantagem política diante do status quo vigente. Ressalta-se que não se confunde a vantagem política com qualquer desvirtuamento do regime democrático, do Estado Democrático de Direito ou da forma de governo atual. Trata-se de uma vantagem imaterial destinada a alavancar proveito em face da oposição política vigente, como “influências, favoritismos, clientelismos etc.” (MENDRONI, 2014, p. 9). Isto posto, almeja-se com esse trabalho empreender esforço intelectual e jurídico em busca de um alargamento científico do termo “vantagem de qualquer natureza”, para aí enquadrar vantagens diversas que não apenas a financeira. O vínculo realizado quase exclusivamente pela doutrina brasileira entre “vantagem de qualquer natureza” e “vantagem financeira” foi um dos motivos que levaram à presente discussão, principalmente diante do cenário das atuais manifestações de rua ocorridas no Brasil. Analisa-se, em conclusão, se a ampliação do conceito “vantagem de qualquer natureza” desaguaria na existência de uma exacerbada atuação jurisdicional, isto é, se em face da extensão do conceito “vantagem de qualquer natureza” ocorreria um ativismo judicial impeditivo de concretização dos direitos fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988, ou se, ao contrário, estar-se-ia dentro do campo do garantismo jurídico, com o uso da interpretação extensiva, permitida no campo penal.
1 RECENTES MANIFESTAÇÕES SOCIAIS DE RUA NO BRASIL O homem livre, desde que abdicou de alguns de seus direitos originários em prol do Estado, vê-se em diversas situações obtendo parcela destes direitos aquém do que lhe é devida. O Estado Democrático de Direito, como provedor direto de alguns destes importantes direitos originários – liberdade, igualdade etc. – e derivados – saúde, educação, moradia, segurança pública etc. – dentro de um Estado Democrático de Direito, por vezes não os fomenta de modo mínimo e equitativo para a sociedade. O cidadão, dada a relação não equânime entre cargas tributárias excessivas e concretização mínima de serviços sociais básicos, vocifera contra essa injustiça social na distribuição de bens e direitos que lhes foram tolhidos, buscando meios que façam garantir o retorno justo do que lhe foi obstado. Distintas são as formas que os cidadãos se utilizam para a busca da garantia de restituição de direitos fundamentais não acolhidos. Pode-se destacar, entre outras, a política, por meio do voto direto em cargos eletivos majoritários ou proporcionais. Entretanto, quando aquela
já não mais atende aos anseios dos cidadãos, seja pelo eclipse na representatividade política ou pela dissonância dos interesses entre eleitos e eleitores, estes se utilizam, regra geral, de protestos, como ensejadores de uma possível contenda entre o Estado, detentor dos direitos, e a sociedade, legítima proprietária. Forma-se, então, uma massa urbana a pleitear, pela reunião de indivíduos de diferentes matizes políticos, culturais e econômicos, aqueles direitos que lhe foram negados. Os indivíduos antes “isolados e sem referenciais teriam nos movimentos sociais um chamariz” (GOHN, 2012, p. 23), um alicerce para almejar por direitos que lhes são devidos. Movimento social pode ser considerado como um processo democrático de conceituação e delineamento distante dos mais simples. Para Gohn (2012, p. 14) um movimento social pode ser considerado como a expressão coletiva decorrente de ações sociopolíticas, econômicas ou culturais. Esses movimentos têm, dentre suas características principais, aliados e adversários; lideranças e assessorias; a utilização de recursos tecnológicos para a divulgação de suas ideologias e afirmação de sua identidade; projetos que dão suporte a suas demandas, além de formas próprias para a sustentação e encaminhamento de suas reivindicações. A manifestação social como meio de conquista e manutenção de direitos fundamentais, sociais, econômicos, políticos, dentre outros, recrudesceu, especificamente no Brasil, após o contragolpe militar de 1964. Após esse período, e com a “restauração das democracias latinoamericanas, abriu-se espaço para reivindicações dessa natureza” (SALGADO; RODRIGUES, 2013, p. 255). Os movimentos urbanos, e ocasionalmente rurais, tinham como foco mudanças sociais profundas, “o que evidencia o importante papel que cabe aos movimentos sociais, e também de maneira crucial aos jovens, na consolidação e transformação de sistemas democráticos” (SALGADO; RODRIGUES, 2013, p. 255), embora estes não sejam os únicos atores principais que caracterizam as manifestações de rua nos dias atuais. Os movimentos sociais no Brasil – mormente os que vêm acontecendo desde meados de 2013 – são típicos do cenário atual. Esses movimentos se utilizaram de espaços públicos para sua realização, assim como ocorreu em outros movimentos sociais recentes pelo mundo, tais como os famosos e divulgados eventos realizados na “praça Tahrir, no Cairo, praça da Puerta del Sol, em Madri, praça Catalunha, em Barcelona, praça Syntagma, em Atenas, escadarias da igreja de Saint Paul, em Londres, parque Zuccoti, emWall Street, em Nova York, Willy-Brandt Platz, em Frankfurt etc.” (GOHN, 2013, p. 23).
Embora o local de realização dessas manifestações, ao redor do mundo, seja muito semelhante aos ocorridos no Brasil, o objetivo a ser alcançado em cada uma dessas lutas nem sempre é o mesmo. Foi o que se verificou nas mais recentes manifestações no Brasil, que embora tentando se desvincular de qualquer viés político em suas manifestações, deixou transparente para os menos leigos observadores nacionais e internacionais que o caráter político dificilmente poderia se desgarrar de um movimento da sociedade em busca de melhores condições em sua existência como coletividade, já que naturalmente há “vínculo histórico entre os movimentos sociais e os partidos políticos” (GOHN, 2012, p. 61), embora as demonstrações partidárias nem sempre fossem bem-vindas. Nesse aspecto, é interessante trazer-se à baila contexto histórico dos movimentos sociais. Consoante Gohn (2012, p. 11), nos dias atuais, os movimentos sociais são distintos dos que emergiram no final do século XIX e início do século XX, dentre eles: os movimentos operários e os revolucionários da Revolução Francesa e os movimentos da década de 1960 nos Estados Unidos da América. Para a autora, os recentes movimentos sociais no Brasil e na América Latina também não guardam semelhança com os movimentos surgidos no final da década de 1970, durante o regime militar, embora muitos dos atuais sejam herdeiros dos anos 1980. Em síntese, as manifestações de rua hodiernas, como espécie de movimentos sociais, possuem características próprias, peculiares ao atual cenário do Estado brasileiro. Constata-se que, embora transfigurados aparentemente por seus integrantes em manifestações apolíticas ou sem qualquer tipo de organização estruturada, os mais recentes movimentos sociais “não tem um agir coletivo autônomo porque são monitorados, coordenados por normas, regras e escolhas externas presentes em projetos elaborados por terceiros (pode ser uma ONG ou um grupo político-partidário).” (GOHN, 2012, p. 62). Os atuais movimentos sociais não se diferenciam ideologicamente dos diversos ocorridos nas últimas cinco décadas. Ainda que não içando bandeiras partidárias, políticoideológicas ou político-econômicos, tais agitações sociais procuram fugir do amadorismo, sendo estruturados hierárquica e funcionalmente, utilizando, para o recrutamento de seus integrantes, das “redes sociales de Internet, que son espacios de autonomia en gran medida fuera del control de gobiernos y corporaciones” (CASTELLS, 2012, p. 20). Como já informado, foi o que se viu nos mais recentes movimentos originados em junho de 2013, com amplo destaque para as manifestações lideradas pelo agrupamento que se diz
apolítico, conhecido como Movimento Passe Livre (MPL). Essa organização social se autodenomina estruturada, conforme mostra Rolnik (2013, p. 9), para quem “a ‘fagulha’ das manifestações de junho não surgiu do nada: foram anos de constituição de uma nova geração de movimentos urbanos – o MPL, a resistência urbana, os movimentos sem-teto”. Percebe-se claramente que os grupamentos sociais que protestam atualmente no Brasil estão longe de serem amadores. Hoje, a súcia provocada por alguns indivíduos com ou sem máscaras é estritamente organizada e coordenada, com fins precisos e antecipadamente divulgados na mídia e em redes sociais. Interpretar essas manifestações como um discreto, ordeiro e despretensioso conjunto de indivíduos buscando simplesmente seus direitos reprimidos, sem qualquer organização, pode não ser de todo correto. Isto posto, nos próximos itens analisar-se-á juridicamente a possibilidade de participação direta ou indireta de organizações criminosas como coordenadoras de tais agrupamentos e, consequentemente, das manifestações por estes encabeçados. A ser demonstrada tal ocorrência, verificar-se-á a existência de tipificação legal desses sujeitos organizados criminosamente e o delineamento das ações a serem auferidas pelos entes públicos responsáveis pela investigação e persecução penais nos casos concretos. Em síntese: indivíduos que, em organização criminosa, lideram, coordenam e participam de movimentos sociais deverão ser punidos com a nova legislação penal que regula o instituto da organização criminosa, bem como quanto aos crimes subjacentes.
2 ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E A LEI N. 12.850/13 Quando se remete ao termo “organização criminosa”, imaginam-se “facções criminosas dentro de presídios, com estatuto próprio, compartimentação e hierarquia, a exemplo do Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Amigos dos Amigos (ADA), Terceiro Comando (TC) e Terceiro Comando Puro (TCP).” (GOMES, 2008, p. 1). Esses são os exemplos mais comuns e conhecidos de organizações criminosas e que, dedicadas ao crime, logo se apresentam para aqueles que discutem ou analisam o tema sem maior profundidade. É oportuno destacar neste ponto que algumas “associações tiveram início a partir do século XVI como movimentos de proteção contra arbitrariedades praticadas pelos poderosos” (SILVA, 2014, p. 3). Interessante também salientar que algumas organizações criminosas praticam atividades diversas, como a “clonagem de telefones e centrais telefônicas clandestinas, pombos-correios, praticam extorsão, coordenam greves de fome (greve branca), rebeliões de
âmbito estatal e nacional, assaltos a bancos e cargas” (GOMES, 2008, p. 1-2), dentre outras atividades criminosas. Constatam-se nessas ações criminosas medidas que atingem a estrutura de uma sociedade, sendo uma “ameaça [...] ao Estado Democrático de Direito” (GOMES, 2008, p. 3) e devem ser combatidas repressivamente pelo Estado, já que “usurpa suas funções e se aproveita das situações de caos urbano e político para a instalação do seu poder paralelo” (GOMES, 2008, p. 3). O crime organizado abala as estruturas fundamentais do Estado, e sendo este afetado diretamente, deixa de prover “as necessidades da população [...], pois deixa de haver resposta estatal à demanda social” (GOMES, 2008, p. 3). Torna-se urgente, nesse esteio, que o Estado responda severamente a essas instituições criminosas, combatendo-as e livrando a sociedade desse carcinoma. Em resposta à formação e existência das organizações criminosas, publicou-se a Lei n. 9.034/1995, que “dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas” (SILVA, 2014, p. 1). Mais recentemente foi publicada a Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013 – Lei de Combate ao Crime Organizado (LCCO) –, que, revogando a legislação da década de 1990, busca “acompanhar a tendência internacional no tratamento do tema, até por força da recomendação constante da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, e ratificada no plano interno pelo Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004”. (SILVA, 2014, p. 1). A referida Lei ainda contempla ou aprimora outros aspectos penais e processuais de legítima importância, tais como: os meios de investigação e de obtenção de prova; a colaboração premiada; a ação controlada; a infiltração de agentes; e o colegiado de juízes de primeiro grau, assuntos que, contudo, não serão objeto de análise neste trabalho. O artigo 1o, § 1o, da LCCO (BRASIL, 2013) delineia abstratamente os crimes caracterizadores da definição de organização criminosa, quais sejam, as infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que tenham caráter transnacional. 1 Sendo assim, é importante neste momento listar os crimes que se enquadram nessa definição, ainda que a título de exemplo: lesão corporal de natureza grave (art. 129, § 1o ou § 2o); furto qualificado
1 “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”
(art. 155, § 4o); roubo (art. 157); incêndio (art. 250); explosão (art. 251), homicídio (art. 121, exceto por sua forma culposa); extorsão mediante sequestro, com ou sem resultado morte (art. 157) todos do Código Penal. Resta claro que o legislador não restringiu para a definição de organização criminosa a exclusiva obtenção de vantagem material, ampliando a possibilidade de obtenção de vantagem de qualquer natureza. Os requisitos estruturais e atemporais permanecem, mas o requisito finalístico – obtenção de vantagem de qualquer natureza mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos – parece estender-se à obtenção de outros benefícios diversos do financeiro. Este ponto é um dos mais interessantes da LCCO, pois a vantagem distinta da material pode dar ensejo à busca por vantagem imaterial, seja ela cultural, religiosa ou política, por exemplo. Em outras palavras, uma organização criminosa, em que seus integrantes praticam crimes com penas máximas superiores a quatro anos, pode almejar a obtenção de vantagens imateriais de modo a enfraquecer, desestabilizar e/ou desacreditar o status quo político vigente. O antigo crime de quadrilha ou bando, tipificado no art. 288 do Código Penal (CP) tem agora o nomem juris associação criminosa, com conceituação diferente em relação à definição de organização criminosa, trazida pela Lei n. 12.850/2013. O crime de associação criminosa tem como requisito a participação de 3 (três) ou mais pessoas para cometimento de qualquer crime, não se restringindo aos crimes com sanções superiores a 4 (quatro) anos exigido na Lei n. 12.850/2013. Da mesma forma é a diferenciação quanto ao número mínimo de pessoas na tipificação dos dois crimes, sendo 4 (quatro) ou mais pessoas para a caracterização de organização criminosa em face das 3 (três) ou mais pessoas no crime de associação criminosa. Desse modo, definidos os contornos trazidos pela LCCO e suas características penais principais, passa-se a analisar a possibilidade jurídica de participação destas organizações nas recentes manifestações de rua ocorridas no Brasil, com o fim precípuo de obtenção de vantagem de qualquer natureza. Analisa-se ainda a possível relação entre essa tipificação conceitual ampliada e ativismo judicial em face de alguns dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal de 1988.
3 MANIFESTAÇÕES DE RUA, PARTICIPAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E ATIVISMO JUDICIAL
Neste item abordar-se-á a relação entre as atuais manifestações de rua ocorridas no Brasil e a possibilidade de coordenação e estruturação desses eventos por organizações criminosas, com a consequente criminalização dessas de acordo com a Lei n. 12.850/2013. Do mesmo modo, será analisada a existência de ativismo judicial ante a criminalização acima referida.
3.1 Manifestações sociais de rua e organizações criminosas Consoante afirmado, o conceito de organização criminosa pode ser delineado como um conjunto de quatro ou mais indivíduos organizados e estruturados em hierarquia, função ou atividades, ainda que informalmente, que desenvolvem ações criminosas com o intuito de obter vantagem de qualquer natureza. Desse modo, é costumeiro vincular, sem maiores tergiversações, o conceito de organizações criminosas ao grupo organizado de delinquentes que praticam crimes com o desígnio de obtenção de lucro financeiro, a fim de aprovisionar materialmente seus integrantes no cometimento de outros crimes. Trata-se de um grupo planejado com o intuito de arrecadação de receitas, embora ilícitas, para pagamento de despesas ordinárias, como em uma empresa comercial legalmente registrada. É o que corrobora Eduardo Araújo Silva (2014, p. 14), para quem “a estrutura piramidal das organizações criminosas” leva a uma “divisão de tarefas”, seguindo a “estrutura empresarial, pois na sua base há um elevado número de ‘soldados’, [...] os quais são gerenciados regionalmente por integrantes de média importância que, por sua vez, são comandados e financiados por um boss, que não raras vezes utiliza de sofisticados meios tecnológicos para integrar todos os seus membros”. Assim sendo, entende-se que o crime organizado atual se distancia de qualquer esquema errático ou anarquizado, sendo modelado para os fins que buscam o lucro financeiro e patrimonial com os meios criminosos disponíveis. Entretanto, é pertinente ressaltar que não se pode restringir a atuação da organização criminosa somente a esse escopo conceitual ordinário. Numa verticalização do conceito de crime organizado, verifica-se a possibilidade de se estender a amplitude da vantagem de qualquer natureza para além da meramente materialfinanceira. A vantagem financeira vem, muitas das vezes, atrelada a um proveito paralelo de interesses, isto é, de aproveitamento múltiplo pela organização criminosa da aproximação com autoridades públicas, servidores e agentes públicos etc. Desgarra-se, assim, da ideia inicial de que uma organização criminosa apenas buscaria o ganho material, passando-se a verificar na práxis a existência de volumoso tráfico de influência enraizado no Estado, com colossal ingerência sobre os detentores do poder. Desse modo, questiona-se qual seria o impedimento para que essas
estruturas organizacionais criminosas – obviamente, com auxílio material do dinheiro auferido com o crime – pratiquem crimes direcionados para a obtenção, indireta, de outro tipo de vantagem, como a de influência política na indicação de pessoas para ocupar determinados cargos na estrutura governamental. Pedro Juan Mayor M. apud Silva (2014, p. 17) traz uma singular diferença nas possíveis finalidades de uma organização criminosa, para quem esta pode Realizar ou apoiar de alguma maneira atividades que tenham como núcleo central a ideia clara e definida de obter ou apoiar interesses de diversas índoles, atentando contra bens jurídicos da sociedade, atuando em diferentes níveis de organização, acautelando-se prioritariamente com a impunidade e o anonimato de suas condutas.
O § 1o do art. 1o da LCCO em nenhuma parte restringe a exclusiva vantagem financeira para a subsunção em organização criminosa. Ao contrário, expressa que a vantagem de qualquer natureza pode ser obtida até de forma indireta. Em outras palavras, através do cometimento de crimes (inclusive com vantagem financeira) adquire-se vantagem de outra natureza (política, religiosa, cultural, por exemplo) por meio indireto. Ademais, mesmo a divisão de tarefas, a ordenação e a hierarquização da organização criminosa pode ser efetivada informalmente, não exigindo a lei qualquer formalidade para a participação em organização desse tipo. De acordo com a LCCO, cinco são as características que definem organização criminosa: (i) associação de quatro ou mais pessoas; (ii) estrutura ordenada; (iii) divisão de tarefas, ainda que informal; (iv) obtenção de vantagem de qualquer natureza; e (v) prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos. Em síntese, verificando-se as cinco características acima para a obtenção de vantagens mediante o cometimento de crimes (com pena máxima superior a quatro anos), de forma organizada e estruturada, e por mais de quatro pessoas, tem-se a participação desses indivíduos em organização criminosa, passando a receber as penas descritas no art. 2o da Lei n. 12.850/2013. Para clarear a aplicabilidade concreta da penalização de indivíduo que promova, constitua, financie ou integre organização criminosa com o fim de obter vantagem política, por exemplo, rememore-se a problematização estampada na introdução deste trabalho: um conjunto de quatro ou mais indivíduos que, seguindo critérios funcionais hierárquicos, elabora, fomenta, estrutura e arregimenta outros indivíduos para, através de manifestações de rua violentas, desestabilizar o quadro político local, com o intuito da obtenção de vantagem em pleito eletivo
vindouro.
Para
concretizar
a
violência
nas
manifestações,
determinados
indivíduos
arregimentados praticam um ou mais dos seguintes delitos: lesão corporal de natureza grave (artigo 129, § 1o ou § 2o); furto qualificado (artigo 155, § 4o); roubo (artigo 157); incêndio (artigo 250) ou explosão (artigo 251), todos do Código Penal. O cenário acima descrito, de crimes cometidos por um conjunto de indivíduos, afora o confronto com a segurança pública, com eventuais danos ao patrimônio público, causa transtornos diretos e profundos à população, fazendo-a questionar a leniência e inércia de governante local ou estadual, mormente quando essas manifestações são corriqueiras. Do apanhado, demonstra-se que a conjuntura política situacional é confrontada diante da “aparente” insatisfação popular, que a faz ir às ruas para protestar violentamente, o que ainda mais agrava o fim buscado, pois a violência distancia os cidadãos “de bem” da participação social. Constata-se, assim, que a violência nessas manifestações é inequívoca ou premeditada, pois “qual o propósito de levar para a rua mochilas com bombas incendiárias, estiletes, barras de ferros e outros artefatos desenhados unicamente para machucar?” (GUZZO, 2014, p. 85). Há, em hodierno, uma “demanda social por proteção e segurança, facilmente detectada na sociedade moderna, que vive sob os influxos sociológicos da sociedade do risco” (LYRA, 2012, p. 242). Dentre esses riscos modernos, pode-se destacar o crime organizado. Sendo considerado como um novo risco social, “a pós-modernidade e sua inerente complexidade trouxeram ao controle penal desafios questionadores acerca da possibilidade de monitorar, de forma efetiva, os novos riscos da sociedade pós-industrial” (LYRA, 2012, p. 243). Para esse mesmo autor, “o fenômeno da expansão do Direito Penal é fato incontroverso na contemporânea sociedade do risco e do signo da pós-modernidade” (LYRA, 2012, p. 265). Prosseguindo, Lyra (2012, p. 252) enfatiza o já afirmado, expondo que “o último quarto do século XX marca a emergência de uma nova racionalidade não correcionalista do controle do crime, uma nova criminologia e novas filosofias da pena, agora focadas no combate dos novos riscos da pósmodernidade, mais centradas na pessoa da vítima e na defesa da sociedade”. De modo simplificado, indivíduos que, organizados e estruturados criminosamente, em manifestação de rua violenta lesionam gravemente cidadãos, roubam transeuntes, furtam qualificadamente, danificam carros em pátios de concessionárias, incendeiam ônibus e explodem guaritas de policiais, com o exclusivo intuito de obter vantagem imaterial, como a vantagem
política (que, por vezes, abarca outras vantagens materiais), podem ser considerados integrantes de organizações criminosas. Tem-se assim que cabe ao Direito Penal a delimitação, especificação, tipificação e punição dos integrantes, diretos e indiretos, de uma organização criminosa, sejam aqueles integrados com o intuito de retorno financeiro ou outro de qualquer natureza. De outra maneira não o poderia sê-lo:
No que concerne à luta contra a criminalidade organizada, a ampliação da intervenção penal foi a consequência da assunção pelas organizações de uma especial consistência, de uma capacidade sem precedentes de penetração no território e nas mesmas instituições. Se a isso se soma a relevantíssima força econômica do crime organizado como empreendimento, a sua capacidade de operar e desafiar o livre mercado – com imissões nos circuitos econômico-financeiros de ingentíssimas quantidade de capitais –, o quadro de uma ilegalidade disseminada faz-se completo. (MOCCIA, 2011, p. 33)
Não resta dúvida que, estruturada a organização criminosa e com fulcro na amplitude de possibilidades trazidas pela lei no que se refere às vantagens a serem auferidas pela organização, perigoso é se deixar a cargo do julgador a restrição de apenas enquadrar criminalmente composição criminosa formada com o particular intento de auferir vantagem patrimonial, quando se é costumeiro saber que a vantagem patrimonial sequencia-se posteriormente de vantagens de outro tipo, tão proveitosa quanto aquela.
3.2 Organizações criminosas, manifestações de rua e obtenção de vantagem de qualquer natureza: ativismo judicial? Assim, verificada a possibilidade de móvel distinto da vantagem financeira para efeito das ações das organizações criminosas, deve-se verificar a possível existência de ativismo judicial diante da participação de indivíduos em organizações criminosas em manifestações de rua com o intuito de buscar vantagem de qualquer natureza. Este é tema bastante controverso e que merece análise mais detalhada. Ativismo judicial “é uma atitude, é a eleição de um modo proativo de interpretar a Constituição, propagando seu sentido e extensão” (CÔRTES, 2010, p. 557). Interessante notar que essa atitude pode se estender às normas infraconstitucionais, pois da análise dessa legislação ordinária também pode surgir a necessidade de se delimitar a extensão de aplicação do direito.
Ativismo judicial pode ser considerado, também, como um “fenômeno muito mais complexo [...] quando entendido como a recusa dos tribunais de se manterem dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício do poder a eles atribuídos pela Constituição” (FERRAJOLI; STRECK; TRINDADE, 2012, p. 116). Entretanto, “não é só a atuação da Corte Constitucional que pode exercer uma posição ativista, essa maneira de agir pode ser identificada em outros Tribunais e na primeira instância” (FERNANDES, 2012). Condensando em vários autores nacionais e estrangeiros uma definição precisa do que é ativismo judicial, Fernandes (2012) expõe que
Ativismo judicial é uma atitude ou comportamento dos magistrados em realizar a prestação jurisdicional com perfil aditivo ao ordenamento jurídico – ou seja, com regulação de condutas sociais ou estatais, anteriormente não reguladas, independente de intervenção legislativa – ou com a imposição ao Estado de efetivar políticas públicas determinadas (ativismo jurisdicional); ou ainda como um comportamento expansivo fora de sua função típica, mas em razão dela (ativismo extrajurisdicional).
O termo “vantagem de qualquer natureza”, inscrito no § 1 o do art. 1o da LCCO pode ser considerado um conceito vago, indeterminado ou aberto. Segundo as palavras de Wambier (2009, p. 139), um conceito deste jaez “é considerado, em si mesmo, uma técnica extremamente operativa, porque capacita o juiz a tomar sua decisão mais rente aos casos concretos”. Mazoti (2012, p. 23) tem entendimento semelhante ao acima exposto, pois para esse autor “os enunciados abertos, como expressão de valores e princípios, não gozam de um rigorismo tal que permita sua aferição precisa e consensual de sentido”. Assim sendo, o termo “vantagem de qualquer natureza” se torna de ampla abrangência, cabendo ao magistrado, no caso concreto, sua delimitação. Claus Roxin apud Cláudio Brandão (2008, p. 57), ensina que “se a norma apresenta uma excessiva vaguiedade, o julgador estará criando, quando da aplicação da norma, a determinação da conduta incriminada”. Assim sendo, prossegue o autor, “se pela falta de determinação se permite ao juiz qualquer interpretação, permite-se a ele invadir o terreno legislativo” (BRANDÃO, 2008, p. 57), descaracterizando assim qualquer indício de ativismo judicial na delimitação e aplicação do conceito indeterminado. O juiz, durante o processo penal, deverá fundamentar sua decisão definindo se, naquele caso, a vantagem obtida pela organização criminosa (como a vantagem política, por exemplo)
enquadra-se como vantagem de qualquer natureza. Esse processo hermenêutico construtivo deve se balizar numa análise robusta dos fatos concretos, sem se esquecer o julgador de que “não é possível a total separação entre o texto e o intérprete [...] pois a aferição do sentido implica em um movimento dialético de construção entre o intérprete e o texto que não permite a existência de linhas demarcatórias rígidas” (MAZOTI, 2012, p. 25). Deve o magistrado “procurar no Direito uma resolução para o litígio jurídico à sua frente, fazendo uso de diversos métodos interpretativos que, ao fim e ao cabo, permitirão a escolha de um sentido normativo que não estava expresso à primeira vista.” (MAZOTI, 2012, p. 29). E este roteiro está previamente traçado no princípio da legalidade penal, previsto no inc. XXXIX do art. 5o da Constituição Federal, que prevê não só a previsão anterior ao fato de crime e sanção penal, mas, também, a clareza da normatização (nullum crimen sine lex stricta) (SILVA, 2004, p. 110). Veja-se que a fundamentação do julgador de modo a contemplar a vantagem política como espécie de vantagem de qualquer natureza também pode ser considerada como árdua tarefa. Esses casos mais complexos são conhecidos como hard cases, sendo atualmente cada vez mais numerosos, pois definidos como casos que demandam do juiz bastante criatividade para a solução, já que não possuem solução clara, definida ou já formulada no ordenamento jurídico (WAMBIER, 2009, p. 141). Além de princípios jurídicos para a fundamentação da decisão, há outros modos de “criação” da decisão, como a ampliação conceitual do termo “vantagem de qualquer natureza” e que, no campo estrito do direito penal, é compreendido como interpretação extensiva da lei, sem qualquer caráter de inovação legislativa, e que, portanto, não pode ser considerada como analogia in malam partem. Ocorreria ativismo judicial caso o julgador decidisse para além da lei; entretanto, o magistrado, ao analisar a vantagem auferida pelos membros da organização criminosa, estaria apenas concretizando norma de conceito indeterminado, aplicando a lei. De pronto observa-se que a aplicação do conceito de “vantagem de qualquer natureza” afasta qualquer indício de ativismo judicial. Constata-se que, na compreensão do termo, não há uma atitude do magistrado de regulação de condutas sociais, já que existe lei vigente. Muito menos se arvora o magistrado em impor ao Estado a efetivação de políticas públicas determinadas ou de inovar na leitura do princípio da legalidade penal, o que, aí sim, caracterizaria ativismo judicial. No termo “vantagem de qualquer natureza” há apenas um balizamento conceitual, cujo desvelamento é inerente ao ato de julgar.
Isto posto, não se constata um desvirtuamento aos preceitos constitucionais ou infraconstitucionais expressos, mas apenas uma sujeição, pelo juiz, com escopo em sua discricionariedade fundamentada, em considerar o termo “vantagem de qualquer natureza” como objeto mais amplo do que o genericamente utilizado pela doutrina, isto é, com novos sentido e delimitação de vantagem diversa da exclusivamente financeira. Não há também, por outro lado, uma afronta à proteção dos direitos fundamentais (liberdade de locomoção, reunião, manifestação do pensamento) em face da criminalização de integrantes de organizações criminosas que, utilizando-se de manifestações de rua, buscam auferir vantagem diversa da financeira. O “Estado Constitucional de Direito – no qual compete ao Poder Judiciário garantir os direitos fundamentais e preservar o regime democrático” (FERRAJOLI; STRECK; TRINDADE, 2012, p. 96, grifos do autor) mantém-se íntegro, já que as liberdades fundamentais de manifestação, expressão e reunião permanecem efetivas àqueles que se valham de manifestações populares ordeiras como meio de afirmação de um Estado Democrático de Direito. Na doutrina, esta proteção se insere no garantismo jurídico, o qual “baseia-se, desta feita, nos direitos individuais [...] com o escopo de articular mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano” (ROSA, 2003, p. 20-21). Para Ferrajoli (2011, p. 852), considera-se garantismo jurídico “en el plano jurídico como un sistema de vínculos impuestos a la potestad punitiva del estado en garantia de los derechos de los ciudadanos”. Esses direitos e garantias fundamentais são, em regra, protegidos em face da atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, mas conforme demonstrado por Ferrajoli, o poder de punir do Estado também sofrerá limitações, em que “prohibiciones de castigar, de privar de libertad [...] o de sancionar de alguna otra forma, si no concurrieren las condiciones estabelecidas por la ley en garantia del ciudadano frente a los abusos de poder” (FERRAJOLI, 2011, p. 861). Desta feita, partindo-se de uma análise do princípio da legalidade sob o aspecto da determinação exata do conteúdo do tipo penal e das sanções impostas, trata-se de adotar critérios de racionalidade, minimalismo e segurança jurídica na aplicação do direito penal, limitando-o e vinculando-o com a lei, pois, assim, “um direito penal mínimo, maximamente condicionado e limitado, corresponde não só ao máximo grau de tutela da liberdade dos cidadãos contra o arbítrio punitivo, como também a um ideal de racionalidade e certeza” (SILVA, 2004, p. 116), o
que afasta, por si só, a ideia de ativismo judicial e fortalece a proteção por intermédio do garantismo jurídico. Não se pode olvidar que os atos do Judiciário devem ser restringidos quando afrontam, fazem cessar ou colocam em risco a efetividade de direitos e garantias fundamentais especificados na Constituição Federal de 1988. Rosa (2003, p. 21) ensina que essa limitação se estende aos Poderes Executivo e Legislativo e, principalmente ao último, que não possui um cheque em branco, estando balizado em suas condutas, não podendo se afastar de seus preceitos definidos na Constituição. Sendo assim, os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo limitamse em sua atuação ordinária e, em relação ao primeiro, este deve controlar seus atos de modo a não restringir direitos fundamentais como a liberdade de expressão, a de locomoção e a de manifestação de pensamento.
CONCLUSÃO É notório que, afora o voto e a participação democrática direta (plebiscito e referendo), escassas são as formas de que dispõe a sociedade para pleitear legalmente a concretização positiva de seus direitos fundamentais, ou se proteger contra a investida do Estado na supressão desses direitos constitucionais. Um dos modos utilizados pela sociedade para demonstrar aos agentes públicos que há algo de inconsistente entre o que o meio social possui de benefícios e o que o Estado pode oferecer, é por meio dos movimentos sociais reivindicatórios, mais especificamente as manifestações de rua. Foi o que se verificou desde meados de 2013 e se constata na atualidade em terras brasileiras. A sociedade mobilizou-se com a finalidade de protestar contra os descalabros econômicos e políticos verificados nos últimos anos. Diante de tal perspectiva social, as ruas foram os locais mais adequados para esse tipo de manifestação. As manifestações de rua avolumaram-se nesses últimos dois anos, bem como sua estruturação, organização, captação de integrantes, convencimento de dissidentes, hierarquização de funções etc., aproximando-se em conceito a uma organização empresarial, embora, em muitos dos casos, sem o fim econômico. No ano de 2013 foi publicada a Lei n. 12.850, que definiu organização criminosa e dispôs sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal no que se refere a essas organizações.
O que se buscou foi, primordialmente, analisar-se a possibilidade de participação de organizações criminosas nos movimentos sociais modernos e, em segundo lugar, mas não menos importante, verificar a possibilidade de tipificação criminosa dos integrantes dessas organizações em face da definição de organização criminosa trazida pelo novel diploma jurídico. Por fim, também coube a este trabalho sopesar a tipificação acima descrita com os conceitos de ativismo judicial e garantismo jurídico. Pelo que foi exposto, não resta dúvida de que há possibilidade jurídica de não se restringir o conceito de vantagem de qualquer natureza somente à vantagem financeira. Assim, não haveria por que o legislador, na LCCO, prever a existência daquele tipo de vantagem. Quisesse fazer a restrição, teria mantido exclusivamente a vantagem de natureza financeira como elemento normativo do tipo penal. Nesse esteio, a interpretação do julgador no caso concreto deve vislumbrar juridicamente tal possibilidade, fundamentada em norma legal, atrelada umbilicalmente ao princípio da legalidade penal. Através da utilização de seu livre convencimento, deve o magistrado aplicar aos conceitos vagos a obtenção de vantagem diversa da financeira por organizações criminosas que atuem em manifestações de rua, sem qualquer afronta ao Estado Democrático de Direito, ao regime constitucional vigente, ou à forma de governo. Outrossim, o delineamento dos contornos do termo “vantagem de qualquer natureza” e sua ampliação de sentido não se confunde com um ativismo judicial do magistrado, já que além de existir lei tipificando a conduta, o magistrado não está impondo ao Estado a concretização de políticas públicas, nem expondo comportamento expansivo e fora de sua função típica. Muito pelo contrário, ao enquadrar comportamentos que levam à obtenção de vantagem diferente da financeira, o juiz está agindo dentro dos estritos limites legais, e, assim, fazendo valer postulados do garantismo penal, qual seja, a existência de lei prévia, escrita e estrita. Mesmo com uma aplicação estendida do conceito “vantagem de qualquer natureza”, os direitos e garantias fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988 permanecem intactos, podendo qualquer cidadão deles dispor, desde que concretizados, no que se refere às manifestações de rua, de forma pacífica e ordeira. A aplicação da Lei n. 12.850/2013 às manifestações de rua só deve ocorrer caso estas sejam efetivadas com violência e de acordo com preceitos regulados em lei. Igualmente, o Poder Judiciário, mais especificamente, deve limitar sua atuação em face da proteção dos direitos e garantias fundamentais positivados. O cidadão,
assim, se protege do arbítrio estatal, do seu poder de punir, resguardando íntegras suas liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, de reunião e de locomoção.
REFERÊNCIAS
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