JOTA – 15/12/2015 Opinião
Observatório da Legislação: Sem orçamento, mas com democracia? Por José Roberto R. Afonso Economista, professor do curso de mestrado do IDP – Instituto de Direito Público, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV e doutor em economia pela Unicamp.
Instituições precisam ser preservadas e valorizadas ainda mais tempos que coincidem crises política e econômica, em proporções enormes e sem precedentes. O orçamento público é uma instituição básica da democracia e quanto mais para o que se passou a chamar de constituição fiscal. No Brasil, não há menor dúvida de que o orçamento tem sido no mínimo mal tratado, quando muito ignorado. A sua legislação básica (a Lei 4.320 de 1964) já completou mais de meio século. A Constituição de 1988 ampliou o número de peças e detalhou muitas regras para sua elaboração, apreciação e execução. Já se passou uma geração e não há o menor sinal de aprovação da nova lei complementar para regulamentar o novo ordenamento constitucional. O Executivo Federal nunca tomou à frente do debate e suas lideranças no Congresso não deixam avançar as poucas iniciativas tomadas por Senadores. Prevalece a ideia, comungada entre autoridades econômicas e o grupo parlamentar que frequenta a comissão mista de orçamento, que, sem normas gerais e permanentes, eles mesmo podem fazer as regras e as ditar e modificar conforme os interesses de ocasião. Entre o vazio institucional e a gestão com base nas exceções pelas duas minorias antes mencionadas há sempre um risco de que a situação possa vir a fugir do controle. É o que se passa ao final de 2015, quando há um risco de paralisia total do governo nacional a partir de 1o de janeiro próximo caso não se venha a aprovar na última quinzena do ano ao menos a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) da União de 2016 – a lei orçamentária anual (LOA), em si, essa já é certo que não se aprova há tempo, mas isso não foge a prática recorrente dos últimos anos e até décadas. Já não bastasse o País está mergulhado em meio a grave crise política e econômica, é assustador que existir ou não um orçamento (sem entrar no mérito de seu conteúdo ou orientação) possa a se tornar uma peça de barganha e disputas políticas ou partidárias. Mais inacreditável é só ter a hipótese da não votação da LDO levantada, segundo jornais, por autoridades máximas do Executivo e suas lideranças no Congresso. Resta crer que ignorem especificidades do orçamento porque, em sã consciência, ninguém
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pode querer brincar com fogo , ainda mais quando o incêndio já está queimando nas cercanias. Vale delinear de forma mais clara e subjetiva o problema. Há um risco terrível de se abrir o exercício de 2016 sem que tenha sido aprovado uma regra temporária para execução excepcional do orçamento da União, uma vez que é certo que a clássica lei orçamentária anual não será mesmo votada pelo Congresso ainda neste ano. Por princípio, o projeto da LDO já deveria ter sido aprovada pelo Congresso no primeiro semestre: sem isso, a sessão legislativa não deveria ter sido “interrompida”, segundo o § 2º , do art. 58, da Constituição. Como em anos anteriores, se houve recesso, deve ter sido o chamado “branco”. Em uma leitura mais restrita, seria de esperar que não só o parlamento continuasse funcionando, como ainda fosse monopolizado para apreciar e aprovar a tal lei. Isso fica ainda mais claro considerando o cronograma e a lógica do processo orçamentário previsto na Constituição. Até quatro meses antes do final do ano, o Executivo precisa apresentar o projeto de lei do orçamento segundo disposição transitória (inciso III, § 2º , do art. 35 do ADCT). Se a LDO não estiver em vigor até essa data, significa que, no mínimo, o Congresso dispensou o Executivo de seguir qualquer diretriz quando elaborou sua proposta de orçamento, e, na prática, acabou valendo uma figura de decurso de prazo, porque a tendência é que o Executivo acabe seguindo em tal proposta o que sugeriu no projeto de LDO. As datas em que foram publicadas a LDO da União para o ano seguinte foram pesquisadas pelo economista Leonardo Cesar Ribeiro e apresentadas na tabela a seguir. No ímpeto da adoção da nova Constituição, por décadas, até 2004, foi seguida a prática de publicar tal lei ainda em julho e deixando um mês ou mais para confecção da peça orçamentária. A exceção foi o biênio que antecedeu a criação do Real mas logo retomada a rotina. Uma nova era é inaugurada a partir de 2005, em que passou a ser comum aprovar a LDO no mínimo em agosto. Em quatro ocasiões, a publicação da LDO foi posterior ao envio da proposta orçamentária – a de 2006, foi publicada em setembro, a de 2007 e 2014, em dezembro, e, no pior dos casos, a de 2015, só em janeiro do próprio ano.
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LDO
Data da publicação
1990
10 de julho de 1989
1991
31 de julho de 1990
1992
22 de julho de 1991
1993
21 de julho de 1992
1994
12 de agosto de 1993
1995
22 de setembro de 1994
1996
25 de julho de 1995
1997
15 de julho de 1996
1998
22 de julho de 1997
1999
27 de julho de 1998
2000
28 de julho de 1999
2001
25 de julho de 2000
2002
24 de julho de 2001
2003
25 de julho de 2002
2004
30 de julho de 2003
2005
11 de agosto de 2004
2006
20 de setembro de 2005
2007
29 de dezembro de 2006
2008
13 de agosto de 2007
2009
14 de agosto de 2008
2010
12 de agosto de 2009
2011
9 de agosto de 2010
2012
12 de agosto de 2011
2013
17 de agosto de 2012
2014
24 de dezembro de 2013
2015
2 de janeiro de 2015
Ao menos há uma década a LDO, na prática, perdeu sua função e eficiência em balizar a proposta orçamentária. Se o Executivo não precisou seguir uma diretriz para tal, seria esperar muito que o Congresso refizesse a proposta para adaptar às diretrizes legalizadas depois da proposta encaminhada. Nos últimos dois anos, em essência da LDO foi assegurar a adoção do orçamento tampão, uma vez aprovado nos últimos dias de um ano, e definindo o mínimo que se poderia executar (um duodécimo de gastos obrigatórios), até que a lei orçamentária anual (LOA) entrasse finalmente em vigor, meses depois do exercício financeiro já ter sido iniciado. Há que se criticar a própria fixação das metas fiscais em um corte
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temporal e estrutural tão descolado do orçamento. Não por acaso que este último se torna uma peça de ficção e muitas vezes são contingenciados dezenas de bilhões de reais e, depois, se descubra que isso não impediu o crescimento real da despesa efetiva ou paga. No sentido inverso, também não surpreende que, em meio a esse processo orçamentário sem hierarquia e sem cronologia, a meta de resultado primário perca simbolismo, passe a ser sempre revista e, o pior, com mudanças radical em sua direção e tamanho. Ainda que a falta de mínimo planejamento, consistência e coerência da política fiscal do governo federal tenha apequenado a função e a relevância da LDO, fora reforçar que o orçamento anual como uma peça de ficção que nem mais cientifica seja, é preciso aprovar urgente a LDO, incluindo um orçamento tampão, para evitar que o governo e o País parem em poucos dias. É o caminho que resta para cobrir uma lacuna que está em aberto desde a Assembleia Constituinte. Republicamos agora um texto para discussão no IBRE/FGV para resgatar as memórias da Constituição de 1988 em torno das matérias de finanças públicas e de orçamento - disponível em: http://bit.ly/1RmKpGR . A possibilidade de fechar o ano sem ter sido aprovada a LOA para o seguinte foi objeto de uma das polêmicas mais intensas em torno do orçamento durante a Assembleia Constitunte. O caso da proposta orçamentária, que, por princípio, precisa tornar-se lei antes de ser iniciado o exercício financeiro a que se refere, foi um dos aspectos da seção “Dos Orçamentos” onde mais mudou o processo constituinte. Na fase das comissões temáticas, houve divergências já na partida. No caso da comissão de finanças a proposta inicial era manter a mesma regra da Constituição de 1967 – a aprovação do projeto por decurso de prazo. Mas o relatório final manteve essa figura aplicada apenas ao projeto da LDO; no caso da proposta orçamentária, passou a prever a execução temporária, através de decreto, até a promulgação da lei. Por outro lado, a comissão de organização dos poderes aprovava outra regra para substituir a figura do decurso de prazo: a não interrupção da sessão legislativa enquanto não fosse aprovado o projeto de lei orçamentária. Na fase seguinte, dos trabalhos de sistematização da Constituinte, as posições mudaram radicalmente. Primeiro, com o apoio do relator-geral, foi retomada a figura do decurso de prazo no caso de não aprovação pelo Legislativo do projeto de lei orçamentária, prevendo-se a manutenção das reuniões apenas no caso de não aprovação do projeto de LDO. Nessa época, foi rejeitada norma da Constituição de 1946 que, no caso de o Orçamento não ser aprovado até o final do exercício, previa a repetição do Orçamento do ano anterior. A preocupação com o restabelecimento pleno das prerrogativas do Legislativo quase levou à extinção da figura do decurso de prazo nas votações do primeiro turno do plenário. Faltaram apenas cinco votos para aprovar a emenda que pretendia adaptar mecanismo que seria adotado na França: não aprovado o Orçamento, o governo poderia executá-lo temporariamente, por decreto, até que o Congresso deliberasse definitivamente sobre o projeto de lei. A matéria foi votada duas vezes no primeiro turno porque faltou quórum na primeira votação [ver Diário da ANC (21.04.88, p. 9.743-9.746, e 22.04.88, p. 9.772-9.775) ]. Aqui, as dificuldades para derrubar o decurso de prazo não podiam ser imputadas
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apenas a Bernardo Cabral: em seu relatório, ele não acatou a emenda (2P00893-3) sob o argumento de que “… sua aprovação poderia postergar a sessão legislativa de um ano para o outro…”; mas, em plenário, sem maiores justificativas, mudou seu parecer para “favorável”. O fator determinante da rejeição foi a colocação da proposta na pauta de votações do segundo dia (22.04.88) como primeiro item, quando tradicionalmente era baixo o quórum no início da sessão (no caso, votaram 382 constituintes, sendo 275 a favor; nas votações imediatamente seguintes, o quórum superou 400 parlamentares). Na defesa da proposta, Vilson de Souza usou os seguintes argumentos: “Não podemos permitir que a lei mais importante, votada anualmente pelo Parlamento, possa ser aprovada por decurso de prazo. Não faz parte da tradição do Direito Constitucional…. Não era o que estava previsto na Constituição de 1824… de 1891, com a de 1934 e com a de 1946.” A alternativa seria adotar medida semelhante à prevista nas Constituições da Espanha, da França e do Uruguai: prorrogação automática do Orçamento anterior até a aprovação do novo (p. 9.744). Já no segundo turno, caiu a figura do decurso de prazo em meio à votação de uma grande fusão de emendas sobre a matéria já mencionada. Dentre as emendas aprovadas nesse sentido, vale destacar a justificativa apresentada por Nelson Carneiro (2T01771-5): “Não é razoável que toda a construção contida no novo texto constitucional no sentido de valorização do Poder Legislativo desmorone com a preservação, neste dispositivo, do instituto do ‘decurso de prazo’, indiscutivelmente desestabilizador da harmonia. Entre os Poderes da União.” O parecer do relator Bernardo Cabral era pela rejeição dessa emenda: “A supressão alvitrada corresponderia a deixar o país sem orçamento”. Ao contrário das outras matérias, como aqui não havia maior consenso, só foi feita a supressão da disposição tratando do decurso de prazo. Uma vez que não foi acrescentada outra alternativa, ficou a redação final da Carta, sem definir quaisquer providências no caso de eventualmente o Legislativo não aprovar no prazo devido a proposta orçamentária (o mesmo do Plano e das Diretrizes). Em estudo posterior, o Constituinte José Serra alertava que essa questão era básica, ficou em aberto na Constituinte e dificilmente será solucionada no âmbito da regulamentação infraconstitucional: “… no texto final, a questão ficou em aberto, e não será fácil resolvê-la mediante a lei que deve regular o processo orçamentário. A aprovação de qualquer dispositivo sobre o assunto necessitará de acordo entre o Executivo e o Legislativo ou dos votos da maioria absoluta dos parlamentares (para derrubar um eventual veto presidencial), hipótese de difícil realização. Contudo, como a não aprovação de orçamentos em tempo hábil não interessa a nenhum dos poderes, em virtude das inconveniências e do desgaste político que provoca, a citada omissão da Constituição de 1988 acabará gerando, como contrapartida, grande empenho nas negociações e entendimentos, fixando, na prática, alguma sistemática da solução. ” Passando das memórias da Assembleia Constituinte para as incertezas do presente, não custa alertar muito que não cabe abrir orçamento por medida provisória, ainda que sob pretexto de dizer que seriam créditos extraordinários. A Constituição é muito precisa em que caso cabe medida provisória sobre a matéria e decisões recentes da Suprema Corte também confirmaram a tese de que se trata apenas de casos excepcionais: é preciso que haja uma situação atípica (de guerra, comoção interna e calamidade pública) e isso permitiria atender apenas as despesas tidas como imprevisíveis e urgentes – segundo o § 3º do art. 167 da Constituição. Ora, toda
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dotação que foi contemplada na proposta orçamentária, elaborada há meses, por princípio, é previsível, e basta esta condição para vedar a abertura do orçamento não aprovado no processo legislativo corrente. Em suma, a depender do que o Congresso for decidir no apagar das luzes de 2015, o orçamento público pode ser colocado no centro dos problemas e incertezas que marquem não só governo, como também a economia e a sociedade brasileira. É premente se aprovar a LDO, ou ao menos, a sua regra que dispões sobre a abertura excepcional dos créditos orçamentários, para permitir o mínimo funcionamento do governo federal a partir do próprio dia primeiro. É possível e aceitável até funcionar o Brasil com um meio-orçamento, uma regra tampão, mas não se pode abrir mão de um centímetro da democracia. Preceito que se observa desde o Rei João Sem Terra, o governo não pode gastar sem que antes os representantes do povo autorizem.
TÓPICOS: CONGRESSO NACIONAL, LDO, LOA, OBSERVATÓRIO DA LEGISLAÇÃO
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