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Diário Regional

SEGUNDA-FEIRA, 3 DE DEZEMBRO DE 2012

u Especial

Eduardo Albarello

O capital humano, as instituições e o futuro do Brasil

Norman Gall, jornalista e diretor executivo do Instituto Fernand Braudel, veio ao País há mais de três décadas desde os Estados Unidos e se naturalizou brasileiro. Esse veterano de 50 anos de pesquisas e reportagens na América Latina fala com exclusividade ao Diário  Fernando de Oliveira entrevista exclusiva ao Di- de suas perspectivas. Os tingências. Repórter [email protected]

S

e o Governo Federal não mudar sua estratégia de crescimento baseada no estímulo ao consumo, o Brasil corre o risco de perder seus ganhos de modernização e de estabilidade e pode voltar a ser assombrado pela inflação crônica. A avaliação é do jornalista, diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, em São Paulo, e editor do jornal Braudel Papers, Norman Gall, de 79 anos, radicado no Brasil desde 1977 e considerado um dos principais pensadores da realidade brasileira contemporânea. Sobre questões pertinentes ao País, como a queda no crescimento da economia, a má qualidade no ensino público e o présal, Gall, nascido em Nova York em 1933, fala nesta

ário, concedida por e-mail últimos 25 anos no Brade seu apartamento em São sil coincidiram com o que Paulo. Eis nossa prosa. pode ser o ponto culminante do desenvolvimento Diário Regional - O humano que se acelerou senhor trabalhou como durante as seis décadas correspondente estrangei- que se seguiram à Segunro em diversos países da da Guerra Mundial. AvanAmérica Latina. Por que ços prodigiosos ocorreram escolheu viver no Brasil? Norman Gall - Pela “O Governo Federal qualidade de seu povo, seu deve promover uma encanto e potencial. DR - Qual sua visão sobre o Brasil de hoje, decorridas mais de três décadas de sua chegada? Gall - As décadas que se seguiram as duas décadas de governos militares, a partir de 1985, assistiram à consolidação da democracia, com o controle de décadas de inflação crônica e de importantes conquistas na justiça social. A democracia, a estabilidade e o aumento do consumo proporcionaram aos brasileiros uma visão positiva

consciência de poupança e investimento”

em escala planetária em temos de longevidade, nutrição, produtividade, comunicações, logística, ciência, saúde pública, conhecimento e outras áreas da atividade humana. Os padrões de consumo da classe média vêm proliferando mundo afora. O desafio hoje consiste em manter esses avanços. O Brasil tem muito a ganhar ou perder com estas con-

DR - O Brasil enfrenta atualmente um período de baixo crescimento econômico que, segundo analistas, deve persistir em 2013. Diante disso, como o senhor analisa a política de crescimento da presidenta Dilma Rousseff baseada no estímulo ao consumo? Aliás, o ministro Guido Mantega inclusive já prometeu para esta semana novas medidas de estímulo. Gall - O Brasil sofre o perigo de perder seus ganhos de modernização e de estabilidade. A estratégia está obsoleta. O Governo Federal deve promover uma consciência de poupança e investimento, mas ele tomou o caminho mais fácil de promover o consumo e endividar maciçamente para aumentar o consumo. Quando o país vivia com inflação crônica, os salários não duravam

um mês. Agora as famílias classe C, D e E gastam 25% de sua renda pagando dívidas. Nesse ano, há empresas correndo atrás dos inadimplentes para renegociar suas dívidas a fim de sustentar as novas vendas no Natal. DR - Se o governo não mudar de estratégia, o País corre o risco de voltar a ser assombrado pela inflação? Gall - Quando esse processo se esgota, virá uma ressaca brava ou, mais provável, a volta de inflação crônica. DR - Qual sua opinião sobre reformas tão discutidas no País, como a tributaria e trabalhista, que nunca saem do papel? Gall - As reformas são difíceis. Maquiavel escreveu cinco séculos atrás que “as reformas nunca são efetuadas sem perigo, pois a maioria dos homens

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SEGUNDA-FEIRA, 3 DE DEZEMBRO DE 2012

nunca adota de bom grado qualquer nova lei que tenda a mudar a constituição do Estado, a não ser que a necessidade da mudança seja claramente demonstrada; e, como tal necessidade não pode se fazer sentir sem ser acompanhada de perigo, a república pode ser destruída antes de aperfeiçoar sua constituição”. O Brasil está aproximando esse momento de perigo.

que nosso Instituto conduz, lendo e debatendo os clássicos da literatura mundial nas escolas públicas de vários Estados, constatamos que é comum, até entre alunos mais dedicados, de cursar 11 anos de escola sem ser encomendado uma redação uma só vez, o que explica por que a linguagem escrita deles é tão ruim.

DR - Sendo defensor da educação, o que é necessário para qualificar o ensino público brasileiro, que é precário e representa um entrave para o progresso do País, apesar da pretensão do governo gastar 10% do PIB com educação? Gall - O ensino público necessita acima de tudo de padrões curriculares nos cursos de pedagogia, verificados num exame nacional para professores, que preparem o docente para trabalhar numa sala de aula. Há muita negligência e corrupção no ensino público que os 10% do PIB sozinho não vai corrigir. Falta cumprir os horários e dias letivos na sala de aula. O ensino público exige pouco esforço e produtividade dos professores e alunos. Há poucas lições de casa. Nos Círculos de Leitura

DR - Isso significa negligência em relação ao capital humano no País? Gall - Nos Círculos de Leitura, lemos sobre a infância de Abraham Lincoln, criado numa cabana primitiva no meio do mato, que com muito esforço se educou e virou presidente dos Estados Unidos. No Brasil há muitos Abraham Lincoln. Entre eles estão Marina Silva, Joaquim Barbosa, Maílson da Nóbrega, Graça Foster, para citar uns poucos. Há tantos mais, cujos talentos são negligenciados, apesar da necessidade urgente do Brasil para esse capital humano.

9 Fotos: Reprodução

O jornalista Norman Gall critica o estímulo ao consumo promovido pelo Governo Federal como meio de alavancar a economia brasileira

preparado se traduz em falta de gestão. Na década passada, o investimento público caiu para níveis irrisórios, pouco

“A falta de capital humano devidamente preparado se traduz em falta de gestão”

Nordeste, rodovias federais, aeroportos, linhas de transmissão de energia, refinarias e gasodutos da Petrobras. Os investimentos públicos desperdiçados viram mais uma forma do consumo.

DR - Desperdícios de investimentos públicos estão ocorrendo no présal, não? Gall - Na história do mais de 1% do PIB. O setor público precisa re- mundo, nunca um país cuperar sua capacidade triplicou sua produção DR - Qual o impacto de formular, gerir e fis- offshore de dois milhões da falta de investimen- calizar grandes projetos. para seis milhões de to em capital humano Há muitos projetos atra- barris diários num peno Brasil? sados ou abandonados: a ríodo curto, entre 2010 Gall - A falta de capi- Transposição do Rio São e 2020, como a Petrotal humano devidamente Francisco, as ferrovias do bras pretendia. Nenhum país ou empresa até hoje conseguiu extrair seis milhões de barris de águas profundas todos os dias. As jazidas estão lá. Mas há desafios imensos, que estavam ignorados em meio ao oba-oba. O mais grave era obrigar a Petrobras tornar-se operadora de todos os novos campos do pré-sal, com 30% de participação acionária. É uma besteira muito grande. Nenhuma empresa petroleira em todo o mundo teria condições “O ensino público exige pouco esforço e produtividade dos professores e alunos”, diz Gall de fazer tudo sozinha.

DR - A presidenta Dilma vetou na semana passada parte do projeto de lei aprovado no Congresso que prevê modificações na divisão dos royalties provenientes do pré-sal. Como o senhor vê a disputa nos altos poderes do País em torno da distribuição dos royalties? Gall - Não há ninguém no Congresso interessado em estudar ou discutir publicamente os reais desafios do pré-sal. A única coisa que interessa aos parlamentares é quem vai ficar com o dinheiro, o que ainda não existe. A capitalização da Petrobras em 2010 foi feita às vésperas de uma eleição presidencial, com dinheiro dos fundos de pensão e do BNDES, que por sua vez recebeu recursos do Tesouro para comprar as ações. Parte da capitalização da Petrobras voltou ao Tesouro para fechar as contas da União. Tudo isso aponta para a fraqueza de nossas instituições e a urgência de formular e executar um programa de longo prazo para desenvolver nosso capital humano.