A LITERATURA A PARTIR DA TIPOGRAFIA: O PESO DAS PALAVRAS EM ARMADURA, ESPADA, CAVALO E FÉ, DE CLEBER TEIXEIRA

Leila Lampe

A LITERATURA A PARTIR DA TIPOGRAFIA: O PESO DAS PALAVRAS EM ARMADURA, ESPADA, CAVALO E FÉ, DE CLEBER TEIXEIRA

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Literatura, no Centro de Comunicação e Expressão, área de concentração em Teoria Literária, linha de pesquisa Poesia e Aesthesis, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Barbosa

Florianópolis 2016

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A Tot. Aos que devoram tipos, palavras, livros.

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AGRADECIMENTOS

Por certo, sem os outros não sou ninguém. À UFSC, por ampliar meus horizontes e proporcionar encontros com o conhecimento crítico. Desde a graduação até aqui, conheci bons professores, sem exceção. E aos colegas pelas trocas, conversas e companhia. PPGLIT pelo apoio acadêmico e ao CNPQ pelo apoio financeiro. Caminhar até aqui só foi possível com a ajuda de Maria Aparecida Barbosa, querida professora e orientadora, que com sua generosidade e olhar sensível, enxergou em mim um potencial para a pesquisa e soube me equilibrar com o rigor dos prazos e a leveza da poiésis. Aos professores membros da banca por aceitarem o convite: Augusto Massi, pelo incentivo; Sérgio Medeiros, pelas valiosas contribuições na qualificação; estimada Ana Luiza Andrade, pela alegria, motivação e apoio durante a pesquisa, contribuindo de forma essencial. Cleber Teixeira, in memorian. Se o objetivo do tipógrafo é honrar o texto do escritor, como pesquisadora busquei honrar a sua história. Maria Elisabeth de Quadros Pereira Rego, por sempre me receber com o coração aberto para as conversas e pelo auxílio na pesquisa com as obras da Editora Noa Noa. Samanta Lopes Bergé e Ilka Boaventura Leite, por me apresentarem duas “printers paradises”. Minha mãe Mary Lampe, pelas palavras amorosas e por compreender os meus momentos de ausência. Meus gatos Pretoso e Pretosa, que no decorrer desse percurso me deixaram só e ensinando que estar vivo é continuar. Márcia Mathias, pela amizade, por compartilhar meus objetivos e ideias e por confiar a mim o empréstimo de obras valiosas da Editora Noa Noa. Aleph Ozuas, por tudo e para sempre. Kellyn Batistela, Lia Arouca e Cilene Rohr, pela amizade.

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Evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou, inversamente, escolher um objeto e extrair dele um estado de alma, por uma série de decifrações. MALLARMÉ, Mallarminúcias: Augusto de Campos, Editora Noa Noa

É preciso varrer o caminho ao caminhar, nem que seja por amor à arte. VIRGINIA WOOLF, Diários

Crossroads of civilization Refuge of all the arts against the ravages of time Armory of fearless truth against whispering rumour Incessant trumpet of trade From this place words may fly abroad Not to perish on waves of sound Not to vary with the writer’s hand But fixed in time having been verified in proof Friend, you stand on sacred ground This is a printing office. BEATRICE L. WARDE

Papel, tinta, máquina e tipos, esse é o meu patrimônio. O resto é esforço. CLEBER TEIXEIRA

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RESUMO O presente trabalho percebe a tipografia como forma de impressão e expressão, e como condição onde a literatura se inscreve e se constitui. Se outrora foi ofício executado somente pelos eruditos, no seu percurso histórico passou pela industrialização do trabalho operário em desvalorização às novas tecnologias gráficas, e hoje volta a ser um processo de impressão reverenciado por aficcionados nas artes, design e na literatura, destacando seu anacronismo com o contemporâneo. Os movimentos da escrita acompanham as mudanças sociais e logo, as técnicas de impressão também moldam tanto a literatura quanto os movimentos artísticos, evidenciando conexões entre as duas formas de expressão. Mergulhar no universo das antigas gráficas é também introduzir a instabilidade dos textos na pluralidade de decisões ou erros em diferentes etapas até a publicação. Os erros ou acertos dos tipógrafos e outros artífices da palavra, envolvidos no processo da criação literária, revelam a construção dos diversos textos existentes em um mesmo trabalho. E consequentemente, de que forma as práticas contemporâneas da edição e crítica literária podem se relacionar com tamanha particularidade? Pelas mãos dos impressores, a palavra se torna matéria e são figurantes ou protagonistas no processo técnico cujo objetivo é fornecer sentido aos textos que transmitem. Mas a tipografia, como um monumento reverenciado, emerge nas obras literárias como evidência histórica, como o próprio processo de sua inscrição, mas também como crítica, enredo ou cenário; ou ainda como figura de linguagem, como metáfora ou metonímia. Ademais, evidencio o valoroso ofício do tipógrafo artesão ou do artesão transfigurado em operário e esquecido pela fragmentação do trabalho industrial. Essa pesquisa aponta para a participação silenciosa de impressores anônimos e o trabalho de escritores que, sozinhos ou em colaboração com outros impressores, doaram sua individualidade para a realização material de suas obras. Trago à luz autores que, além da criação textual, buscaram imprimir manualmente, conjugando poesia e práxis. Uma relação evidenciada no corpus desse estudo com a obra do poeta, editor e tipógrafo Cleber Teixeira, que com sua editora Noa Noa, estabeleceu-se na Ilha de Santa Catarina como referência na impressão tipográfica de obras literárias. E com as palavras de chumbo nas mãos, operava também na materialidade do corpo textual, onde a práxis da tipografia e a poiésis do autor se revelam no poema Armadura, espada, cavalo e fé. PALAVRASCHAVE: Tipografia, Cleber Teixeira, poiésis, práxis.

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ABSTRACT This study analyzes typography as a printing and expression form, as a condition where literature is constituted. If it was once a craft work fulfilled only by scholars, in its historic background went through industrialization in detriment of the new graphic technologies, and nowadays returns to a print process revered by enthusiasts in arts, design and literature, emphasizing its anachronism with the contemporary. The writing movements go along with social changes and consequently, printing techniques also frame both: the literature and the artistic movements, emphasizing connections between this two ways of expression. To emerge into the world of old printing houses is like to introduce the instability of the texts in their plurality of decisions or errors at different stages until its publication. Mistakes or successes of printers and other craftsmen that are involved in the process of literary creation, reveal the construction of the various existing texts in the same operation. And consequently, how contemporary practices of publishing and literary criticism can connect such particularity? By the typographers hands, words become substance and these hands belong to a scenario where the workers can be the supporting or leading actors into the technical process whose goal is to provide meaning to the texts. But, typography, as a respected monument, emerges in literature as a historical evidence, as the very process of its registration, but also as critical, plot or scenario; or as a figure of speech such as metaphor or metonymy. Moreover, I highlighted the valuable craft of the typographer as artisan, turned into workman and forgotten by the fragmentation of industrial work. This research points out to the silent participation of anonymous printers and writers who, alone or in collaboration with other printers, donated their individuality in favor of their material realization. I bring to light some authors whose, further their textual creations, they pursue to print manually combining poiesis and praxis. This relationship composes the corpus of this study, were I look deep into the work of the poet, publisher and brasilian printer Cleber Teixeira, which printing house Noa Noa, located on Santa Catarina Island, was a reference in letterpress printing and literary works. With the metal words in his hands, Cleber Teixeira also operated in the materiality of the textual body, where the practice of typography and the poiesis of the author are unfolded in his poem Armadura, espada, cavalo e fé. KEYWORDS: Typography, , Cleber Teixeira, poiesis, praxis.

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* SUMÁRIO *

INTRODUÇÃO

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CAPÍTULO UM {OS MOVIMENTOS DA ESCRITA} Antes da Tipografia, a arte da escrita . . . . . . . . . . . . . . . . Tipografia, a arte de imprimir . . . . . . . . . . . . . . . . . A tipografia no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O fim da tipografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

p. 31 p. 50 p. 66 p. 74

CAPÍTULO DOIS {TIPOGRAFIA E LITERATURA} O discurso tipográfico incorporado na literatura . . . . . . .

p. 83

CAPÍTULO TRÊS {A PALAVRA E O ARTESÃO} Cleber Teixeira, o ideal do último cavaleiro tipográfico . . O peso das palavras em Armadura, espada, cavalo e fé . . . .

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CONSIDERAÇÕES FINAIS {PASSADO E FUTURO} O prolongamento do tempo no ofício tipográfico . . . . . . . . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . ANEXOS

p. 185

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p. 193

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p. 203

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p. 223

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GLOSSÁRIO

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p. 127 p. 167

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INTRODUÇÃO

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Por tipografia compreende-se não só o tipo, a fonte, mas também a criação e o fabricar de uma letra. É uma palavra que contempla diferentes situações, e se antes a tipografia era relacionada somente à técnica de imprimir por meio dos tipos, hoje ela alcança seu reconhecimento como expressão artística e relaciona-se com todos os tempos. A designer Ellen Lupton em Pensar com Tipos (2006, p. 63) destaca a tipografia1 como uma técnica que se assemelha à alquimia, no escolher e transpor as letras numa página e, embora o propósito da tipografia seja a melhoria da legibilidade da palavra escrita, é também sua função tornar-se invisível aos leitores. Para Roger Chartier em Os desafios da Escrita (2002, p. 75), o impressor que decide publicar uma obra desempenha um papel essencial na mediação cultural inventando as fórmulas capazes de associar repertório textual e capacidade produtiva. Citando J. Moxon2 (1958), Chartier assinala que “um bom tipógrafo ambiciona tanto tornar o pensamento do autor compreensível para o leitor, quanto tornar seu trabalho elegante ao olhar e agradável à leitura” (2002, p. 311). O impressor é, portanto, o elo entre o discurso e a matéria. A tipografia transpõe os portais da impressão e opera nas dimensões silenciosas do texto, e como exemplo disso, Lupton (2006, p. 67) afirma que a arte do tipógrafo não lida apenas com a textura positiva das letras, mas também com os espaços negativos entre elas e o seu entorno. Na impressão tipográfica, todo espaço é construído por um objeto físico, uma peça de metal como os lingotes (partes brancas do texto que se usam para montar uma rama) e as entrelinhas de chumbo, que são inseridas anonimamente entre as palavras e letras, e são tão físicas quanto os caracteres à sua volta. Para o olho do tipógrafo há matéria em tudo, até mesmo nos espaços vazios da página. Na era digital, dispomos de poucos segundos de nosso tempo para digitar e imprimir uma palavra a partir do computador, dispositivo que acelera a criação de uma palavra etérea e fragmentada. Não temos o contato com a materialidade da palavra, apenas com sua imagem fugaz que nos escapa a cada novo toque na tela. No ofício tipográfico, entretanto, a palavra é tam1 Por analogia, tipografia também passou a ser um modo de se referir à forma da letra e ao processo de criação na composição de um texto com tipos (fontes), física ou digitalmente. Assim como no design gráfico em geral, o objetivo principal da tipografia é dar ordem estrutural e forma ao texto e consequentemente à página que a contém. Desta forma, o tipógrafo pode ser tanto o operador que monta a rama com tipos móveis, como o escultor dos tipos, também chamado de designer de tipos. (LUPTON, 2006, p. 16) 2 MOXON, J. Mechanick Exercises on the Whole Art of Printing (1683-1684). Ed. Herbert Davis, Harris Carter. London: Oxford Press, 1958.

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bém objeto, sua materialidade é sacralizada, um veemente respeito que talvez hoje a digitação no teclado não nos ofereça mais. Se digitar uma palavra no teclado do computador requer mínimos instantes de segundos, tipografar uma palavra exige uma sequência de ações expandidas em um limite de tempo que pode ser indeterminado. Primeiramente abre-se uma gaveta do cavalete tipográfico3, a fim de encontrar a letra de chumbo adequada que repousa em um caixotim específico4, então coloca-se, uma a uma, as letras que formarão a palavra, de ponta-cabeça, em um componedor. Nesta peça, acrescentam-se os espaços entre as palavras e, na sequência, os elementos que estão no componedor serão transportados para uma rama, através de uma ferramenta que chamamos de bolandeira. Dentro da rama que fica sobre uma superfície plana, a palavra deve ser cercada pelo material branco, peças de preenchimento que por apresentarem alturas diferentes, não são impressas, ou seja, são os espaços em branco da página. Após este processo de preenchimento, deve-se fechar a rama com cunhas, cuja função é prender toda a composição existente na rama, a fim de que as palavras e espaços não caiam quando a rama é transportada para a máquina de impressão. Em seguida encaixase a rama na máquina, preenche-se o seu disco com uma quantidade suficiente de tinta à base de óleo e, com o movimento de prensagem, a rama que contém a composição é entintada e pressionada contra o papel, dando origem à sua reprodução. Todo este processo, dependendo da quantidade de palavras e sua complexidade, pode estender-se por dias, ou até meses. A tipografia assim como a gravura, se caracterizam pelo seu processo de reprodução e, embora fossem reverenciadas como expressão artística até o século XVIII, ambas foram marginalizadas com a industrialização, não levando em conta seu valor estético, cultural e transformador, e refiro-me, principalmente, ao ato da multiplicação com a precisão artística que só a mão do homem é capaz de moldar. Lupton (2006, p. 13) assinala que a origem das palavras está nos gestos do corpo onde as primeiras fontes foram modeladas diretamente sobre as formas da caligrafia, nos gestos corporais e em imagens manufaturadas para a repetição infinita. Para ela, a história da tipografia reflete uma tensão contínua entre a mão e a máquina, o orgânico e o geométrico, o corpo humano e o sistema abstrato, e são estas tensões 3 A fim de facilitar o entendimento técnico do processo tipográfico, disponibilizo um Glossário no final da dissertação. 4 Uma gaveta com tipos é dividida em caixotins (verificar glossário). As letras maiúsculas ficam armazenadas na parte superior da gaveta, por isso são chamadas de Caixa Alta, assim como as fontes minúsculas ficam na parte inferior da gaveta, denominando-as de Caixa Baixa. (POLK, 1948)

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que marcam o nascimento das letras impressas há mais de quinhentos anos e continuam a fortalecer o dinamismo da tipografia até hoje. Como processo de impressão5, a tipografia ganha cada vez mais visibilidade nos estudos da História e do Design, porém ainda é pouco abordada na área das Artes e da Literatura. O objetivo da presente pesquisa é evidenciar a literatura a partir da tipografia, para além de seu contexto histórico funcional (do Design) ou cultural (das Artes), mas sobretudo como uma nova dimensão a ser abordada, no ponto tangencial em que a literatura e a tipografia se aproximam, em diferentes formas. Isso porque, embora a tipografia desempenhe papel invisível dentro do texto, é na literatura que a tipografia se inscreve como processo e espaço onde torna possível sua publicação6. Robert Darnton em A Revolução Impressa (1996, p. 14) destaca que os historiadores tratam, em geral, a palavra impressa como registro do que aconteceu e não como ingrediente do acontecimento e afirma que “a prensa tipográfica ajudou a dar forma aos eventos que registrava”, como “o principal instrumento na citação de uma nova cultura política” (p. 16). Sugere que, com o exame do mundo da impressão, uma nova visão se descortinará e questiona: “o que era a própria literatura, como um sistema que envolvia tanto o mecenato e o poder quanto o talento artístico da linguagem?7 Logo, esta dissertação se concentra no processo de impressão tipográfico, na ação e operação da palavra escrita. Para buscar tal substrato, mergulho em universos invisíveis, pequenos paraísos escondidos para muitos, no lugar onde se fazem livros à moda antiga: nas oficinas de impressão. Diferentemente de uma biblioteca onde os livros estão prontos e repousados em estantes, uma oficina de impressão tem a particularidade dos movimentos, é lugar de criação e trabalho contínuo, é nela que os livros ganham vida. Embora não seja o objetivo principal desta pesquisa abordar a história do livro, no decorrer dos 5 O objetivo da presente pesquisa está na tipografia como forma de impressão (técnica de construção de texto e linguagem visual), apesar da palavra tipografia abraçar amplo espectro de abordagens em diferentes momentos da história. Optei portanto, levantar questões sobre a origem desse processo de impressão em suas bases históricas para que, futuramente, o prosseguimento do estudo se aproxime de outros períodos (século XIX em diante), a nível de doutoramento. 6 CHARTIER (2002, p. 33). 7 O foco de Darnton é a Revolução Francesa, em que a tipografia “foi uma força ativa na história, especialmente durante a década de 1789-1799, quando a luta pelo poder foi uma luta pelo domínio da opinião pública” [...] Qual o papel que a tipografia desempenhou na revolução francesa? Imaginem um mundo sem telefone, rádio, televisão, no qual a única maneira de comover a opinião numa escala nacional é o tipo móvel. [...] Qual a natureza da propriedade literária quando os direitos de propriedade em geral foram redefinidos pela legislação revolucionaria?”. (1996, p. 14-16)

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apontamentos o desenvolvimento do objeto livro caminhará organicamente com a história, fluxos e mudanças da impressão gráfica. Sob o mesmo ponto de vista, Chartier assinala8 que a produção de um texto supõe diferentes etapas e técnicas, bem como diferentes operações humanas, e entre o gênio do autor e a aptidão do leitor, há uma multiplicidade de operações definindo “o processo de publicação como um processo colaborativo, no qual a materialidade do texto e a textualidade do objeto não podem ser separadas” (2002, p. 37). Assim, expressa a dupla natureza do livro como objeto material e trabalho literário: Para Paredes9, a alma do livro não é somente o texto imaginado, escrito ou ditado pelo autor, mas é esse texto produzido em uma adequada apresentação. Se o corpo do livro é o produto do trabalho feito pelos impressores ou pelos encadernadores, a criação de sua alma não envolve apenas a invenção do autor. A alma é moldada também pelos tipógrafos, editores ou revisores, que se encarregam da pontuação, da ortografia ou do lay-out do texto. Esse processo criativo, pelo qual as imperfeitas criaturas humanas usurpam algo do específico poder de Deus, é ameaçado por uma dupla corrupção: quando um elegante livro oculta uma doutrina perversa ou quando uma alma inocente é confinada em um corpo disforme. (CHARTIER, 2002, p. 38)

Dessa maneira, para solidificar tais reflexões, o PRIMEIRO CAPÍTULO deste trabalho se apresenta com uma contextualização histórica sobre os movimentos da escrita, a linguagem e a escrita livre ou controlada – principalmente pela igreja católica na Idade Média –, e é também na Idade Média que a multiplicação da palavra se estabelece com o emprego da tipografia manual. Conservando seu ritmo e prestígio dentro de uma cultura em ascensão por gerações, a tipografia permaneceu em pleno funcionamento entre o Renascimento e o Barroco. Portanto, a partir desses períodos históricos, é possível refletir a relação do trabalho e comércio, assim como uma visão da tecnologia que se utilizava na época, associada às ideias, crenças e interesses, e que resultaram em obras literárias e artísticas que resistiram ao tempo, conservando seu grande significado cultural. Como exemplo desse período, trarei para a discussão um exemplo raro de printing-house, a Oficina Plantiniana, que em 2012 tive a oportu8 Citando J. Moxon, A. V. de Paredes e Cervantes. 9 PAREDES, A. V. de. Institución y origen del arte de la imprenta y reglas generales para los componedores. Prólogo: Jaime Moll. Madrid: El Crotalón, 1984.

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nidade de conhecer pessoalmente. Fundada por Christophe Plantin (15201589), a oficina conserva o acervo e as instalações originais, e desde o ano de 1877 é aberta à visitação como o Museu Plantin-Moretus, na cidade da Antuérpia, na Bélgica10. Entre os anos de 1520 e 1610, a Oficina Plantiniana tornou-se a maior oficina tipográfica da Europa. Logo, de 1450 até o final do século XIX, o processo manual da tipografia se manteve intacto até a sua mecanização pela linotipia11. Com o transcorrer do tempo e o crescimento da demanda gráfica, todos os processos de impressão em massa tornaram-se mecanizados, e com a industrialização em fins do século XIX, o trabalho artesanal das impressões se transformam em trabalho operário, fragmentado e anônimo, decretando seu declínio. Contudo, essa pesquisa assimila a tipografia como impressão e expressão, seguindo o conceito hegeliano de arte, que remete a uma existência e se afirma na relação com o mundo, e não apenas como percepção estética e, portanto, percebe em seu próprio fim, um desdobramento e uma transformação. Enquanto a industrialização na Europa acelerava o processo de mecanização das máquinas da impressão gráfica, somente em 1808 o processo de impressão no Brasil foi introduzido (com censura) com a Imprensa Régia pela coroa real portuguesa. Tornando mais evidente os indícios de que o Brasil foi o último país da América Latina a implementar a imprensa tipográfica. A lacuna de três séculos (1450-1808) entre a instalação da imprensa europeia e a brasileira, também terá espaço na reflexão que permeia o capítulo. Com cenário histórico definido, o discurso tipográfico incorporado na literatura será a reflexão do SEGUNDO CAPÍTULO. Abordarei aspectos sobre o vocabulário da linguagem tipográfica e sua relação com a literatura, despercebida e invisível porém repleta de significados. No mesmo capítulo, tratarei do processo tipográfico como ficção, cenário, enredo ou metonímia; e apontarei a ligação entre a tipografia e a literatura no trabalho de alguns escritores como Erasmus, Joyce, Virginia Woolf, Machado de Assis, Vicente do Rego Monteiro, João Cabral de Melo Neto, e em escritores que 10 Historicamente, Bélgica, Holanda e Luxemburgo eram conhecidos como os Países Baixos e, como feudos, estavam unidos aos Países Baixos Borgonheses dos séculos XIV e XV, onde Carlos V foi o Sacro Imperador Romano-Germânico e a partir de 1519, foi nomeado Carlos V, o Rei da Espanha. 11 Impressão com Linotipo: máquina que possibilitou a fundição instantânea das letras de chumbo em linhas inteiras, acelerando assim o processo, não havendo mais a necessidade de se compor à mão. Invenção de Ottmar Mergenthaler (1854 - 1899), em 1886, relojoeiro alemão que foi considerado por alguns como o segundo Gutenberg. Esta máquina revolucionou o modo de impressão, principalmente em jornais. (REBELLATTO, 1980)

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não foram tipógrafos mas que mantiveram uma relação de afetividade com o processo como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, e mais especificamente no romance brasileiro Avalovara de Osman Lins. Ademais: a tipografia e sua importância na literatura em diálogo com Chartier (2002, pp. 60-61), quando ressalta que não há como ignorar os efeitos das práticas da tipografia e suas particularidades sobre as formas dadas à linguagem literária. Trata-se de formas anacrônicas e categorias contemporâneas a textos que foram compostos, publicados e postos em circulação de acordo com critérios e processos muito diferentes; “são negociações permanentes entre trabalhos como criações poéticas, imateriais, e o mundo prosaico da imprensa, tinta e tipos”, assinalando que o processo que está em jogo não é somente a circulação de uma energia social, mas também a inscrição da vitalidade do texto. Em sua opinião, a questão essencial que deve ser colocada por qualquer história do livro, da edição ou da leitura é a do processo pelo qual os diferentes atores envolvidos com a publicação dão sentido aos textos que transmitem, imprimem e leem, uma vez que textos não existem fora dos suportes materiais, sejam eles quais forem. Tipografia e literatura se entrelaçam, é o que ensinou o poeta, tipógrafo e editor Cleber Teixeira, que enalteceu a tipografia com a editora Noa Noa, na preservação da impressão em seu caráter artesanal, e produziu obras literárias que já nasceram raras, e cuja história pessoal e ofício distinto norteiam esta pesquisa e definem o TERCEIRO CAPÍTULO. Natural do Rio de Janeiro, Teixeira mudou-se para Florianópolis no final dos anos setenta, e após um breve período de trabalho na rua Vidal Ramos nº 75, fixouse no bairro da Agronômica até o momento de seu falecimento, em junho de 2013. Com a editora Noa Noa fez ressurgir o ideal dos antigos livreiros, segundo o qual, o tipógrafo se envolve em todos os processos de fabricação do livro, cujo projeto era concebido e idealizado de maneira integral. Cleber foi o poeta, editor, impressor e até mesmo o mercador de seus livros, tarefa que ele mesmo dizia ser a mais árdua dentre todas as outras. Durante três anos (2007 a 2011) tive a oportunidade de presenciar seu ofício tipográfico12, cujos diálogos e reflexões conjuntos me ajudaram a compor a essência desta pesquisa de mestrado e a refletir sobre a possibilidade de estender a criação literária, unindo a poesia e a práxis. Cleber soube elevar o nível da impressão manual, mesmo com as limitações de uma técnica já ultrapas-

12 Cleber já trabalhava pouco, devido a complicações de saúde, mas era em seu escritório na tipografia, no piso inferior da casa onde morava a família, que passava a maior parte do seu dia.

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sada13, e driblando os modernos aparatos gráficos do mercado. Seus livros tem uma beleza clássica atemporal e dizia que a complexidade se encontra nas coisas mais simples. Editou obras com os cuidados gráficos que somente um editor que toma conta de todos os processos é capaz de oferecer. Com o peso das palavras nas mãos, fez da poesia seu ideal no ofício diário e absoluto, tal qual um cavaleiro medieval que se dedica às batalhas e conquistas, abdicando da vida pessoal e se colocando, todos os dias, à prova e vivendo a tensão do ofício incomum com o cotidiano avassalador das horas aceleradas da vida contemporânea. Se auto designava “aprendiz de trovador provençal que, por distração dos deuses, nasceu oito séculos atrasado e muito longe da Provença” (TEIXEIRA, 2005, s/p), e dizia que “infelizmente pouca gente sabe a diferença entre uma editora industrial e uma pequena” (In CRENI, 2013, p. 138). Preocupava-se sempre em oferecer o melhor suporte para a palavra, a fim de que a escritura surgisse de forma autônoma, escolhendo os tipos clássicos dentro de uma diagramação perfeita, o papel refinado e o formato de livro ideal para cada autor, resultando em rara beleza gráfica. Pela editora Noa Noa, Cleber publicou autores novos e autores pouco conhecidos, e foi com o poeta concretista Augusto de Campos que, (também quase desconhecido) no começo dos anos setenta, lançou Mallarmé pela primeira vez no Brasil e também outros escritores como Cummings e Gertrude Stein. “Foi uma aventura extraordinária”, relata Campos no filme Cleber e a Máquina (CACCIATORE, 2014), e confirma que o trabalho de Cleber não lhe oferecia uma compensação financeira, no qual seu empenho era, então, uma grandeza pessoal, uma generosidade para com os leitores, “era um desses autores, criadores que se preocupava mais com as obras dos outros do que com a dele próprio”. A preocupação em acertar dá lugar à imprevisibilidade do poeta tipógrafo no poema autoral Armadura, espada, cavalo e fé – que sintetiza o corpus desta pesquisa –, e que Teixeira assume seu papel de artesão da palavra, assinalando sua complexa relação com o tempo contemporâneo. Cleber descreveu esse poema como um trabalho “work in progress”. A contínua experimentação com a palavra metálica carregada em mãos ao longo do tempo lhe permitiu uma liberdade de criação que explicita sua relação com o ato de poetar (poiésis), refletindo

13 Toda técnica obsoleta exige muito mais do trabalhador. É como uma escavação arqueológica, num trabalho de pesquisa, desde a procura por manuais antigos, até a busca das possíveis peças que possam deixar de funcionar em um máquina. Por isso a tipografia é tão afinada com a bibliofilia.

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também no ofício de tipógrafo (práxis). A vantagem de ser o próprio impressor de sua obra também lhe concedeu a experiência das reescrituras. Inicialmente publicado em 1970, o autor reescreveu alguns fragmentos da obra nas edições de 1979, 1991 e 2005. Tais reescritas ressaltam ainda mais o conflito com seu ofício diário e sua resistência seja qual fosse a adversidade. O poema reflete a imagem do cavaleiro solitário em seu universo particular, o qual poucos entenderam ou souberam apreciar. “Eu sinto o peso das palavras”, é o que dizia em muitas entrevistas, referindo-se ao respeito pela materialidade da palavra. É viva em minha mente sua estima ao passar a mão sobre uma rama tipográfica que estava sobre a mesa há meses, talvez até há anos, mas que se mantinha lá, esperando o momento certo para ser entintada. O poeta protagonizando o artesanato de sua própria poesia, no contato direto com a palavra material, quando poetar (erdichten) e experimentar (erfahren) estão intimamente ligadas. A tipografia manual, letra por letra, tal como Cleber exercia, é ofício extinto. É necessário mais do que coragem e paciência para se aventurar na empreitada de tipografar um livro com mais de quarenta páginas como ele editava. É preciso um ideal cavaleiresco no sentido mais puro de um guerreiro nobre e verdadeiro – “compaixão, justiça e fidelidade” (HUIZINGA, 2010, p. 115) – , virtudes direcionadas para a tipografia e para os livros, numa entrega total ao ofício e raramente visto nas realidades sociais. Nas CONSIDERAÇÕES FINAIS convido o leitor a um mergulho no tempo dissonante do ofício tipográfico, que abre possibilidades e reflexões para o presente. Tipografar um texto de duas páginas é ofício para poucos, o tempo de gestação de um livro dentro de uma oficina tipográfica possui um prolongamento próprio, algo incompatível com a pressa do tempo presente. Hoje, a tipografia permite um contato com a materialidade da palavra e produz uma percepção de tempo dissonante, algo incomum ao momento presente. O processo carrega consigo o deslocamento entre tempos, um dos elementos que caracterizam a ideia do contemporâneo, segundo Giorgio Agamben (2009). Portanto, enfatizo a tipografia como um processo de impressão e expressão artística para além do sentido estético, mas como empreendimento cultural e transformador. Problematizo a tipografia como um conceito aberto que compreende um complexo de causas e efeitos com suas delimitações e recursos, e como uma forma de expressão em extinção cada vez mais valorizada no cenário contemporâneo, justamente pelo reconhecimento das complexidades que apresenta em sua utilização, e que sobreviveu graças à iniciativa de criadores que perceberam em seu processo algo além

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do que apenas o seu resultado estético. Vale ressaltar que esta dissertação foi escrita por uma designerartista-gráfica e aprendiz de tipógrafa que há sete anos dedica sua vida profissional aos tipos e aos trabalhos com impressões manuais, e acredita que a experiência prática juntamente com a pesquisa teórica enriquecem este trabalho. Isso porque somente depois de exercer, de fato, a arte de imprimir, tocando na materialidade da palavra e compreendendo as dificuldades e limitações do ofício, é que as conversas e entrevistas com Cleber Teixeira se ampliaram em sentidos e significações e a busca pelo discurso tipográfico na literatura tornou-se possível.

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CAPÍTULO UM OS MOVIMENTOS DA ESCRITA

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ANTES DA TIPOGRAFIA, A ARTE DA ESCRITA

No capítulo Que é a escrita? em O grau zero da escrita (2004, pp. 9-11), Barthes define a língua como “corpo de prescrições e de hábitos, elemento comum a todos os escritores de uma época”. Mais adiante definirá a língua como objeto social que, como a Natureza, passa inteiramente através da palavra do escritor, sem, no entanto, lhe dar forma. “A língua como um horizonte humano que instala ao longe certa familiaridade”, “uma linha cuja transgressão designará uma sobrenatureza da linguagem: é a área de uma ação, a definição e a espera de um possível”. Seria então, “a espera deste possível” o seu momento de inscrição? Poderíamos então considerar – como mencionado no texto – que a língua do escritor sem a sua inscrição é o “seu perder”, ou sua “forma sem destino”, ou ainda um “produto de um surto, não de uma intenção”, ou “uma dimensão vertical e solitária do pensamento”? Barthes propõe uma terceira dimensão do texto onde, entre o conteúdo e a forma individual da composição de cada autor há uma escrita em coexistência com o tempo e a história mediada por algum determinante, “um para além da linguagem”, como exemplificou nos grifos de Hébert14 (Ibidem, p. 3) para indicar uma imposição de tempo em sua obra. Logo, para além da terceira dimensão de Barthes, proponho em minha pesquisa de mestrado uma quarta dimensão aos textos, formada pelo elo entre a linguagem e a matéria, ou seja, a graphia. A escrita sem uma inscrição é fala ou pensamento, um “círculo abstrato de verdades”, de acordo com Barthes (2004, p. 11), ou ainda “transparência sem rastro”. A inscrição da palavra é portanto permanência, e se linguagem é forma etérea de ordem germinativa, a graphia é forma material (experiência da matéria) em ordem e repetição. Para Barthes, todo vestígio escrito se precipita como elemento químico inicialmente transparente, inocente e neutro, cuja simples duração faz aparecer, pouco a pouco, todo passado suspenso, toda criptografia, cada vez mais densa (Ibidem, p. 16). De fato, Barthes não menciona o texto inscrito, e sim o texto escrito. Porém, minha leitura diante de tal reflexão é um convite a uma ranhura de pensamento, oferecendo à inscrição sua devida dimensão. Barthes assinala que “a escolha do escritor é uma escolha de consciência, e não de eficiência” (Ibidem, p. 14), que “sua escrita é um jeito de pensar a Literatura, não de estendê-la”. Me arrisco a prolongar esse pensamento e assinalar que a escrita pode vir a ser uma escolha de consciên14 Ativista da Revolução Francesa que editou um folheto chamado Le Père Duchesne. (Cf: CULLER, Jonathan. As ideias de Barthes. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix. Ed. USP, 1988, p. 28)

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cia quando sua inscrição, entretanto, é uma escolha de eficiência, “numa matéria organizada” (DEBRAY, 2004, p. 270). Barthes aponta a escrita como uma realidade ambígua, que por um lado nasce incontestavelmente do confronto do escritor com a sociedade e, por outro lado, de uma finalidade social, remetendo o escritor por uma espécie de transferência trágica às fontes instrumentais de sua criação (2004, p. 15). Como terceira dimensão do texto, se estabelece sob pressão da História e da Tradição em condicionantes que energizam os movimentos da escrita no percorrer da história. Descreve a escrita como um gesto significativo do escritor, através do qual abre espaço para refletir sobre liberdade em condicionantes que não tem os mesmos limites nos diferentes momentos da história. Segundo Barthes, “como Liberdade, a escrita não é mais que um momento” (Ibidem, p. 16), e as condicionantes da terceira dimensão (liberdade, história e tradição) se configuram antes da Literatura se consagrar como sistema no século XIX. Em minha leitura, as configurações da escritura incidem nos prolongamentos da inscrição, ambas consistentes, profundas e cheias de segredos, dadas ao mesmo tempo como um sonho e ameaça em todo período histórico, e não somente no século XVIII como aponta Barthes (Ibidem, p. 05). Na inscrita/escrita ocorrem dois fenômenos: a expressão e a transmissão. Quando o homem se distinguiu dos outros animais pela sua capacidade de abstração, o fez pelo uso da linguagem, e ao fazer o contorno das mãos na caverna de Cosquer, há mais de vinte e sete mil anos, o homem deixou a sua ideia (signo pictográfico), no registro (inscrição) de um instante. À que objetivo essa ideia estaria ligada não sabemos, mas naquela mão há uma linguagem e também a história do homem15. A mão que começa a sentir todos os objetos, conferindo significados de acordo com sua vivência, quando o homem da caverna, nas primeiras tentativas de talhar a pedra, trabalhava mentalmente e exercia, na realidade, prodigioso esforço de abstração de acordo com sua experiência e manuseio. A mão trabalhando sob o comando racional e provocando o aparecimento da linguagem que representa o domínio do homem sobre as coisas. Na fonte dessa maravilhosa autonomia da mão – que não poderia existir se alguns milênios antes não se tivesse manifestado a autonomia do espírito – está o processo de libertação do homem que, com o espírito e com a mão, se liberava pouco a pouco do mundo

15 Cf: MARTINS, 1957, p. 07.

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material. E assim, como lembrava ainda Henri Focillon16, “é pelas mãos que se modelou a linguagem, a princípio vivida pelo corpo todo inteiro e minada pelas danças”. (MARTINS, 1957, p. 08)

Ellen Lupton em Pensar com Tipos (2006, p. 13) também assinala a origem das palavras contidas nos gestos do corpo, onde as primeiras fontes foram modeladas diretamente sobre formas da caligrafia em gestos corporais e imagens manufaturadas para as infinitas repetições. Para ela, a história da tipografia reflete uma tensão contínua entre mão e máquina, orgânico e geométrico, corpo humano e sistema abstrato, e são tensões que marcam o nascimento das letras impressas há mais de quinhentos anos e continuam a fortalecer o dinamismo da tipografia até hoje. Contudo, o desenvolvimento da escrita/inscrita não se cristalizou com apenas um golpe no intelecto humano, mas sim em longas e não sucessivas etapas17. A partir do momento em que o homem percebeu a possibilidade de substituir o signo pictórico pelo fonético, a linguagem “readquiria sua verdadeira natureza, a oral” (MARTINS, 1957, p. 34). Régis Debray (2004, p. 22) assinala que todos nascemos com uma língua e uma laringe, e nenhum etnólogo, no fundo da Amazônia ou da Nova Guiné, jamais encontrou culturas mudas, mas, sociedades sem escrita. Portanto, “que a escrita é uma técnica, os sumérios, seus inventores, já tinham percebido: ‘se a língua falada é um dom dos deuses’, diziam eles, ‘a escrita é criação humana’”. Quando o homem percebeu que poderia decompor os sons em unidades justapostas, independentes e diferenciáveis, surgiram os dois tipos de escrita: a silábica18 e a alfabética19. E, ao invés de escravizar a sílaba pré-existente, o homem adquiriu novo instrumento de versatilidade infinita20 e deu ao próprio pensamento uma 16 “I’esprit fait la main, la main fait l’esprit”. FOCILLON, Henri. Vie des Formes. 3ª edition. Seguido de l’Elogie de la Main. Paris: Presses Universitaires de France, 1947. 17 “Progredir é sempre abreviar”, ressalta Debray: “O homem não vai do simples ao complicado; pelo contrário. Esse deslastre recebe o nome de ‘progresso técnico’, que aparece impelido adiante pela lei do mínimo esforço, ou seja, fazer menos e obter mais. Em matéria de notação, antes de chegar ao alfabeto, o homem passou pelo sistema pictográfico ou ideográfico, depois silábico – portanto começou pelo mais complicado. Demandou mais de um milênio a decomposição de uma língua nos seus sons mais simples, seguida da (ou precedida pela) invenção de um sistema de marcas discretas e em número reduzido, com o qual se representaram visualmente os sons ou fonemas. Dos confins egípcios à Síria setentrional, houve muitas escritas alfabéticas” (DEBRAY, 2004, p. 105). 18 Com um sistema em grupos de sons representado por sinais. 19 Em que cada sinal corresponde a uma letra, representando uma maior complexidade e um progresso técnico em relação à silábica. 20 É neste momento que o sistema de escrita ideográfico se distingue do fonético com dezenas de milhares de caracteres distintos, e a palavra é representada por um sinal, referindo-

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agilidade até então incontestável. Ou seja, o homem inventou a técnica e a técnica inventou o homem. Entretanto, para que as formas de inscrita/escrita se cristalizassem no tempo, era preciso suporte e materiais: pedras e placas de argila21. Os caldeus, por exemplo, usaram cinzel para gravar em tabletas de argila, e os romanos empregaram o graphium ou stylus em tábuas enceradas. Metais como bronze, chumbo, prata e ouro eram utilizados, como também madeira, tecidos e peles de animais. Experiências em marfim, osso e até intestinos de certos animais foram testadas para o melhor uso da palavra, ou melhor, quando a matéria ditava a grafia, pelo viés dos utensílios e matérias-primas: Uma matéria para gravar, como a argila ou o mármore, não autoriza o uso de pincel. O bambu exclui o cinzel ou o buril. A cera (da qual serão feitas as tábuas romanas, de onde vem o códex, pai do livro) chama estilete de marfim, de osso ou de metal, mas exclui o cálamo ou a pena de ganso (adaptada ao permaginho). A cada substrato, seu gênero de verdade: não se escreve o diário íntimo numa casca de bétula ou numa placa de mármore. A enfiada de traços mostra que a mudança de material resulta em mudança de notação. Nossas escritas sucessivas procedem de um diálogo evolutivo entre as estruturas formais e o material. No cuneiforme, o símbolo dialoga com a terra, origem da vida. Com um caniço talhado em bisel para imprimir “cunhas” na tábula de argila fresca que o escriba segura na palma da mão (daí sua forma pequena, arredondada no rese ao conjunto da palavra e à ideia que exprime. O sistema se desenvolveu no Oriente e tem como principal raiz o sistema de escrita chinês, enquanto o sistema fonético, adotado pelo Ocidente, reproduz apenas a sucessão de sons de uma palavra, como o alfabeto latino que traduz os sons da fala em um pequeno conjunto de sinais. Um alfabeto muito apropriado à mecanização, donde a distinção de linguagens ficará evidente com a invenção da escrita mecânica: a tipografia. 21 “Era em edifícios de pedra que os maias ‘escreviam’ os seus admiráveis calendários, enquanto os gregos e romanos, mesmo depois da invenção do livro, gostavam de reproduzir em suas muralhas as narrativas de certos fatos de maior importância. […] Era no bronze que os romanos escreviam os seus tratados de paz e, acima de tudo, a sua famosa Lei das Doze Tábuas. No tempo dos macabeus, os esparciatas escreviam aos judeus em tabletas de bronze. […] Do reino vegetal, a madeira, como espécie que já se apresentava por assim dizer pronta, foi a primeira a ser empregada na escrita. Os egípcios a usavam desde tempos imemoriais, e nós a empregamos ainda hoje, é verdade que transformada em papel. […] Folhas de palmeiras ou de oliveiras, panos, papiro. Era em pedaços de pano que os romanos reproduziam os oráculos, alguns contratos particulares, e até as leis. Na Pérsia e na China a seda foi um material muito empregado na escrita: é mesmo daí que sairá a invenção do papel” (MARTINS, 1957, pp. 55-57).

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verso mais lisa do outro lado, onde são feitas as incisões dos signos). É material abundante, barato, que se conserva úmido em jarras e que permite apagar para que nele se escreva de novo e imediatamente. Mas, uma vez seco, torna-se quebradiço e pouco manejável. A estela, que recolhe os decretos oficiais ou as fórmulas votivas, impõe o cinzel e, portanto, o ângulo reto, rígido e solene. É mediante a troca do cálamo pelo cinzel e de uma matéria mole por uma dura que os grafismos se alongam ou se contraem. (DEBRAY, 2004, p. 110)

Debray salienta que a recusa das formas e dos volumes teria sido fatal se a memória interior não tivesse podido se exteriorizar em caracteres e se fazer traço, “polir, raspar, inscrever ainda é manufatura, com as técnicas correspondentes do corpo” (2004, p.96). Sem o artesanato e os materiais, assinala o filósofo, é uma operação que consiste em espacializar as emissões vocais para a atemporalidade, exemplificando com as Tábuas da Lei, que uma vez quebradas pelo seu transportador que sofria de cóleras, não teria, jamais, encontrado fac-símile e a lembrança de Moisés se perderia nas areias sem biografia e sem vestígios. O mais célebre de todos os materiais vegetais empregados na escrita foi, sem dúvida, o papiro. Planta em abundância no Egito, foi suporte fácil de transportar. Retalhado em lâminas finas, era batido e colado com a própria seiva, lixado na pedra-pomes e cortado em retângulos. Nele, escrevia-se com caniço, que comumente eram chamados de calamus (antepassado da pena), e conservados em estojos apropriados. Os “homens da escrita” carregavam-nos pendurados na cintura junto com os recipientes de tinta22. Com importância histórica pelos textos que conteve, a escrita em rolos de papiro reinou durante quatro mil anos e adquiriu valor simbólico na cultura hebraica, se desenrolando ao infinito, “em movimento contínuo, símbolo de incompletude mas também de repetição perpétua” (DEBRAY, 2004, p. 115), num sem-fim. Foi substituído apenas (em decorrência do seu alto custo) pelo pergaminho23, fabricado a partir de pele cur22 A pena de ave substitui o calamus. “A pena de pato, em particular, prestou aos calígrafos e aos escritores os mais assinalados serviços. Eram escolhidas, como se sabe, as penas da asa, chamadas remígias, o que provavelmente deveria facilitar os vôos da imaginação. Eram preparadas por meio de um mergulho em cinzas quentes; os holandeses, que aperfeiçoaram o processo, provocaram a celebridade das ‘penas holandadas’” (MARTINS, 1957, p. 66). Logo depois surgiu a pena metálica e o lápis. A tinta, outro artigo muito antigo e precioso era por sua vez, fácil de apagar porque não havia um fixador poderoso em sua composição. A tinta romana era composta pelo negro de fumo, goma e água. 23 “As histórias do livro costumam repetir que Ptolomeu Epifânio, desejando combater a

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tida de carneiro ou bezerro24. A nobreza do material, segundo Debray, acompanhava a majestade dos atos, no qual a matéria já era um signo em si mesma, indício de uma intenção ou marca de uma preeminência. “Crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer”, assinala Régis Debray (2004, p. 16), logo, deus é impensável sem a escrita e sem a roda, fatores que reduziram em vários graus a dependência do homem em relação ao espaço e ao tempo natural (Ibidem, p. 38). Lembra, entretanto, que o Egito exportou o papiro, mas não os seus hieróglifos, os quais não saíram além de suas fronteiras, impedindo os pesados deuses do Egito de viajar em razão de sua imobilidade petrificada no peso monumental das pirâmides. Contudo, a influência egípcia permitiu a Moisés superar o peso da argila ao difundir a palavra em suporte mais leve, efetuando uma “transmutação gráfica”, facilitando, assim, sua portabilidade, segundo Debray. E a palavra de Deus é transportada pelo povo hebraico, durante quarenta anos, transformando sua desgraça em valor. “A Torá como templo sem o templo”25 (Ibidem, p. 95). A escrita, portanto, como impulsionadora de movimento, e em sua transvaloração, se relacionando à dimensão dos pesos, ao que Sloterdijk assinala: O deus do monoteísmo não teria biografia digna desse nome para mostrar caso tivesse ficado em residência cativa, condenado a permanecer no lugar de sua criação ou de sua autoinvenção [...], Deus se tornou capaz de viajar e ao passar da pedra para o pergaminho. (Sloterdijk, 2009, pp. 52-4)

No registro transportável da palavra, o arquétipo da pirâmide foi

biblioteca de Pérgamo, criada por Eumênio II (197-158 a.C.), que se mostrava perigosa rival da de Alexandria, proibiu a exportação de papiro. Com isso, teria obrigado os engenhosos habitantes de Pérgamo a inventar um novo material de escrita, extraído de peles de animais, donde o nome de membrana pergamena, pergamenum, pergaminho, que se lhe deu, depois de preparado, e cuja primeira menção se encontra num édito de Diocleciano, De pretiis rerum venalium, do ano 301 (Ibidem, p. 62). 24 Debray sinaliza para o hinduísmo, cuja cultura baniu todos os textos que estivesse em suporte animal: “Os hindus, que respeitavam tanto os animais que era inconcebível comer sua carne e secar sua pele ao sol (de onde vêm os velinos e os belos pergaminhos), correram riscos sérios quanto ao futuro. Se a Europa medieval tivesse sido vegetariana, o pensamento da Antiguidade nos teria escapado em larga escala; não teria havido humanidades – talvez nem humanismo” (2004, p. 90). 25 “Êxodo 32, 16: As tábuas eram obra de Deus, e a escritura era obra de deus, gravada nas tábuas”. (DEBRAY, 2004, p. 102). “Fascinante é um deus recitado e martelado”, analisa Debray, quando “a escrita faz passar, aos poucos, da ontologia à filosofia, do salmo ao sed contra escolástico. Um deus lido e não entoado torna-se acessivel e, por isso, vulnerável à simples razão”. (Op. cit., p. 123)

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transformado, e o deus (agora minimalista) muda de mãos, “dos arquitetos para os arquivistas, de monumento para documento” (DEBRAY, 2004, p. 56). A propagação da palavra de um único deus em itinerância e pertencimento, irrestrito apenas aos santuários, mas em um rolo de pergaminho manuscrito que “não contém corpo algum, um desafio à solidez, [...] um deus acessível a qualquer hora” (Ibidem, p. 135-6). Agora o deus absoluto estaria “frente e verso”, com duas dimensões ao invés de três, uma dimensão de ganho, de acordo com Debray, “uma sacralidade plana, miraculoso como um círculo quadrado. Um metro e vinte por setenta centímetros de altura é mais do que um achado de bagageiro, é um seguro de vida” (2004, p. 141). A ideia de deus inerente à palavra, produzindo na própria escritura uma assinatura, como um troféu ou autógrafo (Ibidem, p. 102). Entretanto, o deus lido torna-se também, vulnerável. Platão já havia condenado os efeitos nocivos da cultura escrita, e à essa altura da história do monoteísmo, o que estava escrito era sacralizado em poder e autoridade. Era preciso obedecer a palavra de deus, ou então ser condenado, e nos séculos seguintes, “o monoteísmo brilha nas artes e ofícios da compactação” (Ibidem, p. 144): Esse psico-objeto nômade, obra-prima da mobília nacional, vai se transformar no imprevisível encontro, a favor de um deus mais esnobe do que predecessores, do que é sob medida com o que está pronto para usar. (DEBRAY, 2004, p. 130)

A escrita de deus alcançava diversas mãos e entra na sociedade como arma reguladora e civilizatória, e para o bom manejo, os materiais empregados na transmissão da escrita precisavam ser cada vez mais leves e delicados, uma vez que o rolo não tinha uma acessibilidade vantajosa, era preciso desenrolar com uma mão e enrolar com a outra, evitando a profanação, e aumentando seu culto. Era preciso acessar a velocidade da transmissão, e as mãos se tornaram mais acessíveis com o formato códice, quando as folhas de pergaminho foram, enfim, dobradas, e se abria o caminho para a confecção de um deus de bolso. O salto na história da escrita é indagado por Debray com a pergunta“como foi que a herança sagrada do Império Cristão pôde atravessar as invasões bárbaras e a Alta Idade Média?” Pela página e pela mão. As escolas pagãs foram fechadas, mas surgiram os mosteiros. A literatura foi negligenciada, mas os monges aprenderam a ler. No século VI, Cassiodoro, o senador cristão que trabalha para o rei dos ostrogodos, redige catálogos, recolhe

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alguns livros em grego e recompõem uma biblioteca. Os monges encarregam-se inteiramente dos códices, multiplicados pela cópia solitária executada pelos ascetas do texto monástico, aos quais, a fim de combater a ociosidade e fazer penitência, São Bento recomenda pegar um livro no armarium e “lê-lo inteiro, do começo ao fim”. O livro é raro e caro e, com frequência, na abadia do monte Cassino ou em Roma, os manuscritos26 latinos são raspados e, por cima27, copiados os Evangelhos. Todos os núcleos de oração se transformam em centros de armazenagem e oficinas de edição. Scriptoria28. Uma ordem religiosa é, de início, uma comunidade de escritores-ouvintes, na qual a leitura em voz alta acompanha todas as refeições. (DEBRAY, 2004, p. 283)

O pergaminho29 era material de preço elevado e o racionamento desse suporte da escrita contribuiu para a origem que constitui, segundo especialistas, a tortura dos paleógrafos: o sistema de abreviações da Idade Média. “Progredir é sempre abreviar”, assinala Debray, (2004, p. 107) e Le 26 Livros escritos à mão com qualquer que seja o instrumento auxiliar, um trabalho laborioso que se estende por dez séculos (ano 500 até o ano de 1500) até a invenção da tipografia. 27 Aos rastros da escrita se designa o fenômeno dos Palimpsestos, ou seja, manuscritos onde o texto primitivo era raspado a fim de servir novamente para a escrita. Palimpsesto significa raspado de novo, que pode-se entender como as ruínas do texto, “as pegadas nos campos, restos recobertos por outros restos muito diferentes” (LE GOFF, 2008, p. 38). Os estiletes com haste de metal ou ossos, materiais que inscreviam ou apagavam escritos e fontes artísticas e iconográficas riquíssimas no estudo da arqueologia medieval, curiosamente um hábito entre os monges da Idade Média. Durante muito tempo pensou-se que tal hábito resultava de intenções piedosas de monges copistas que apagavam textos pagãos para inscrever no lugar deles orações e meditações religiosas. Mas segundo Wilson Martins (1957, pp. 64-5), verificou-se posteriormente que não só palimpsestos existiam desde a mais remota Antiguidade, como também inúmeras orações e trechos religiosos tinham sido raspados em benefício da literatura profana. “Pode-se lamentar que os monges merovíngios tenham raspado os textos antigos para recuperar o papiro ou o pergaminho, neles copiando, em seguida, obras religiosas menos importantes; o número desses palimpsestos é, de resto, pouco considerável e encontram-se algumas vezes obras antigas escritas sobre os textos sagrados, mas o que não se pode deixar de dizer é que nada conheceríamos, ou quase nada, da literatura antiga sem as cópias tiradas pelos monges da Idade Média de originais hoje perdidos” (Op. cit. p. 86). 28 Nesses refúgios da civilização, “duas horas de trabalho intelectual eram previstas pela regra beneditina ao lado das horas de oração e de trabalhos manuais”, segundo Martins (1957, p. 86); e o começo da “indústria” das reproduções escritas com todas as artes a ela correspondentes – escrita, pintura, encadernação – continuaria monástica na França até o século XIII. Ainda segundo Martins, todas as grandes abadias possuíam um scriptorium, espécie de oficina de copistas onde o trabalho era distribuído aos religiosos por um monge que fazia as funções de contramestre, qualificação que permanecerá com o mesmo nome durante o tempo glorioso da tipografia. 29 Um ofício relevante acontecia nos conventos: o pergamenarius, ou seja, a preparação das folhas que serviam aos copistas.

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Goff (2008, p. 36) sinaliza que o sistema de abreviações acontece entre os séculos XII e XIII, quando a minúscula carolina30 desaparece e a escrita torna-se irregular e personalizada, ressaltando como uma prova “de que se escreve rapidamente e de que se penetra na palavra viva”, pois cresce ainda mais a interioridade e a modificação na memória. A escrita se solidifica com a caligraphia e a ela acompanha o culto e o poder. Mas a palavra não se propaga com a mesma rapidez que se multiplica por ser ofício estritamente confeccionado em mosteiros sob ordens superiores e divinas, sendo restrita apenas ao sacerdócio e à nobreza. Os mosteiros da Idade Média eram centros de confecção de livros e depósitos de obras antigas e modernas, reservados somente aos privilégios, culto e à curiosidade de clérigos letrados. Eram também, o posto de venda, troca ou empréstimo de livros, representando o novo modelo de instituição pública que viria a acontecer mais tarde na Renascença. Depois do século XI, a evolução da escrita ocidental se inscreve com o emprego de letras capitais, cursivas e minúsculas caligrafadas pelos monges, e constantemente “modernizadas” com objetivo de acelerar reproduções textuais, chegando-se à letra gótica, que consistiu na quebra dos traçados pelo desenho de letra mais contínuo de curvas harmoniosas, letra muito utilizada a partir do século XI ao XIV31. Aos copistas era destinada a reprodução dos manuscritos32 e aos iluminadores eram encarregados os desenhos com cores, fossem eles capitulares decoradas ou imagens que acompanhavam os textos. Eram profissionais que adquiriam cada vez mais importância no mercado33. Mais 30 Le Goff (2008, p. 36) aponta para uma reforma durante o reinado de Carlos Magno, por volta do ano 800, quando os escritórios dos escribas, na maioria das vezes monásticos, ressalta, impõem o domínio da pequena escrita caligráfica, a “minúscula carolina” (de Carolus = Carlos), respondendo a uma exigência religiosa e política, constituindo um novo instrumento gráfico e a base de uma civilização: textos uniformizados em latim, todos da mesma maneira. 31 “Ao lado destes tipos principais de letras, outros muitos existem”, assinala Wilson Martins (Op. Cit., p. 53). E acrescenta curiosidades que alegram a história da escrita, como a micrografia, por exemplo: “Rouveyre menciona o caso de um calígrafo que traçava versos de Homero num grão de milhete. Cícero, segundo Plínio, teria declarado ter visto a Ilíada escrita num pergaminho que cabia dentro de uma casca de noz”. 32 Todas as referências, para se chegar ao corpus desta pesquisa, são ocidentais. Os manuscritos orientais não chegaram com o devido merecimento no continente americano até fins do século XX. Cf: . Acesso em: 19.01. 2016. 33 Os desenhos tinham a intenção de decorar e não ilustrar os manuscritos, “empregando oito ou mais cores além das folhas de ouro polido em incrustações” (MARTINS, 1957, p. 112), as iluminuras e miniaturas frequentemente nada tinham em relação ao assunto do manuscrito e eram ornadas com gravuras livres. Uma arte proveniente dos vitrais que se transferiu para pergaminhos e depois converteram-se em pinturas. “Podemos dizer que a única diferença

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do que um simples trabalho de ordem material, a cópia de manuscritos era aplicada entre os primeiros deveres monásticos e assumia a competência de exercício espiritual capaz de aprimorar virtudes e realçar merecimentos sobrenaturais dos monges34. Apesar do tempo despendido pelos monges copistas, eram frequentes os erros cometidos em cópias ou ditados, por desconhecimento de outros idiomas (citações em grego) ou quando o monge ditava a vários copistas textos originais a fim de obter número maior de cópias simultâneas (MARTINS, 1957, p. 102). Do mesmo modo, Lupton assinala (2006, p. 65), que documentos manuscritos “chacoalhavam-se de erros”. Cópias eram cópias de cópias, cada qual com suas irregularidades e lacunas, uma vez que manuscritos eram laboriosamente preparados, os escribas tiveram que adotar subterfúgios inventivos para salvá-los, muitas vezes dispondo de miniaturas nas laterais de páginas para ilustrar lacunas faltantes ou substituições de textos incorretos. Se na época era particularidade apenas de correção, hoje são detalhes que os diferenciam e aumentam a cobiça de bibliófilos e pesquisadores de manuscritos, podendo até supor que determinados códigos correspondam a um copista específico, como uma marca que lhe concede um tipo de autoria, já que esses profissionais produziam objetos reais, porém faziam parte de um universo invisível. Le Goff (2008, p. 35) assinala: “diga-me como tu escreves e eu te direi quem és”, referindo-se a qual escritório pertencia determinado escriba, corte, ou grupo. Eram mentes e mãos anônimas, e quem eram, afinal, tais personagens responsáveis pela propagação da palavra escrita? Uma atividade estritamente fechada aos mosteiros, cuja escrita era ceifada de liberdade e a voz dominante que regia todas as escrituras era a palavra da Igreja35. Que

existente entre a miniatura e a iluminura é justamente o número de cores empregadas na ilustração. A iluminura é qualquer desenho colorido por um iluminador, ao passo que se reserva o nome de miniatura a qualquer desenho, letra ornada, motivo de fantasia etc. A iluminura é, se o quisermos, um aperfeiçoamento ou um enriquecimento da miniatura” (Op. Cit., p. 113). 34 “Teodorico, abade de Ouche, repetia continuamente aos seus monges: “Escrevei! Uma letra traçada neste mundo vos resgatará de um pecado no céu” [...] E contava a história de um monge culpado de numerosas infrações às regras monásticas, mas fervoroso e assíduo copista. Depois da sua morte, ao comparecer perante o tribunal do Grande Julgamento, enquanto os anjos maus expunham um a um os pecados que cometera, os anjos bons expunham uma a uma as letras que tinha escrito. Afinal, uma única letra ultrapassou em numero os pecados cometidos pelo monge, e o Supremo Juiz, absolvendo o culpado, mandou que sua alma retornasse ao corpo, concedendo-lhe de vida o tempo necessário para corrigir-se...” (DUPONT, In Op. Cit., p. 102). 35 Com os efeitos posteriores de transformar, a escrita num veículo de submissão social dos camponeses em relação aos administradores. (DEBRAY, 2004, p. 119)

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de acordo com Debray seriam duas: a visível e a invisível36 e segundo a qual, pode-se questionar sobre a ideia de que ninguém saberia dizer “de quem” seria a origem da palavra, quando o momento crucial está sempre “em branco”, “daí decorre que uma transmissão é bem-sucedida quando não se vê mais a fabricação” (2004, p. 54). Portanto, será que os escribas, os copistas da palavra eram também escritores? No prólogo de Em busca da Idade Média (LE GOFF, 2008, p. 11), Jean Maurice de Montremy sublinha que a Idade Média é um período para compreender “sensibilidades desaparecidas”, em uma “civilização que modelou a cultura ocidental”. Para ele, projetamos nossas sombras na Idade Média, sem lhe ver as luzes. O autor, Jacques Le Goff cita Verlaine para denominar uma Idade Média “enorme e delicada”, transformada muitas vezes em espetáculo medíocre (pp. 23-24), onde se sonhava com uma época artesanal e erudita numa escala simultaneamente humana e divina. Como fervoroso medievalista, Le Goff por diversas vezes deixa claro que, para ele, a Idade Média é um trampolim para o futuro (Ibidem, p. 211). A sua Idade Média é um vai e vem com o presente, formando-se “através de uma reflexão comum sobre o passado, o presente e o futuro” (p. 212) na ausência de documentos, em mapas fantasiosos e no silêncio dos textos, os historiadores tentam encontrar o lugar da Idade Média na construção da Europa. É um período que dispõe de poucos instrumentos para representar o mundo real no continente que “nada tinha de uma terra virgem” (p. 89), e segundo Le Goff, “as fraquezas ou os erros da civilização medieval são como que o negativo de sua luz” (p. 216); comenta que a paleografia o orientou definitivamente para a predileção da pesquisa sobre a Idade Média, afirmando que a ciência da leitura de escritas antigas permite a leitura em dois sentidos: decifração e interpretação. Sublinha o contato direto com a matéria da palavra em sua textura, na maioria das vezes em peles de animais (pergaminhos), matéria agradável de ser tocada, sentindo materialmente o trabalho do escriba, “sua tinta, sua pena, seus códigos, suas pequenas manias, seu trabalho”, assinala (p. 33). Continuando sua reflexão, Le Goff enfatiza que desde a Antiguidade, a escrita era realizada apenas em um dos lados do papiro (e depois com o pergaminho), e enrolados constituíam os livros então denominados de volumen37. 36 “Assim como o Cristo, de quem é esposa, a Igreja tem dupla natureza. Humana e divina. Os fiéis sabem que a Igreja eterna e invisível é o corpo místico do Cristo. Mas só veem a real, o povo de Deus em carne e osso, encarregado não de encarnar mas de preparar o retorno do Cristo e o Juízo Final” (Op. Cit., p. 204). 37 O autor sublinha a particularidade do texto neste tipo de rolo, onde as idas e vindas para

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Quando os artesãos da palavra descobriram ser possível executar a escrita nas duas faces do pergaminho38, encadernando39 entre si pelo dorso e recobrindo com uma capa, deu-se origem ao codex, de grande formato e muitas vezes pesando mais de 10 kilos, é o antepassado imediato do livro como se conhece hoje, e o seu formato revoluciona a aparência das bibliotecas. Para Le Goff, a generalização do codex marca uma passagem e um ótimo modo de situar o nascimento da Idade Média, desde o fim do século IV: “a Idade Média é inseparável dos manuscritos, ela os produziu, e também foi produzida por eles” (2008, p. 34). Assim, o livro-codex favorece a leitura pessoal e interiorizada, “mesmo que a leitura totalmente silenciosa só venha a se generalizar no século XIII” (Ibidem, p. 35). Le Goff prossegue sua reflexão enfatizando o quanto a leitura silenciosa40, ainda mais interiorizada correspondeu a um novo período da Idade Média, supondo também uma profunda modificação da memória com o códex, uma vez que o emprego de um novo elemento – as margens – permitiu ao leitor um novo jogo de localização ou remissão. Segundo ele, na Antiguidade certamente se conheciam margens e notas explicativas, mas faltava, contudo, um espaço racionalmente distribuído, elemento que surgiu com o códex, quando o indivíduo, lendo sem necessidade de auxílio, afirmou-se.

diante e para trás exigiam uma manipulação mais longa, enquanto o enquadramento das linhas e dos parágrafos dependia da superfície sobre a qual o escriba ou o leitor podiam se apoiar: “O rolo quase não favorece a leitura silenciosa. Ainda que soubessem perfeitamente ler e escrever, os poderosos e os sábios da Antiguidade tinham o hábito de dizer o texto, porque os leitores especialistas manipulam rapidamente os rolos, libertando seus donos (ou mestres) de todo constrangimento material. Assim, quase sempre os mestres preferem ditar” (LE GOFF, 2008, p. 34-35). 38 O pergaminho não se dobrava nem cortava, apresentava-se apenas em grandes folhas, no tamanho original in-folio. Folio ou ofício (do latim = folha) termo técnico que indica o tamanho de um livro. No formato in-folio, dobra-se a folha uma só vez no lado menor, constituindo-se duas folhas equivalentes a quatro páginas. Quando a folha é dobrada em quatro, fala-se de in-quarto (formando 16 páginas); se dobrada em oito partes, é in-oitavo; e assim por diante: in-16, in-32, ou in-64. 39 As técnicas de encadernação também acompanham a arte da escrita. Com influências bizantinas e árabes, as encadernações de ourivesaria e em couro se destacam na Idade Média, visando mais às intenções artísticas do que a proteção do livro. 40 “Por fim, com o progresso da leitura individual, o século XIII conheceu a difusão dos Livros de Horas. Trata-se de manuais em que a devoção é repartida segundo as horas de cada dia. Exclusivos, claro, dos que sabem, ler, destinam-se portanto a leigos poderosos e principalmente a suas mulheres. Testemunham também um certo crescimento na importância dos leigos e das mulheres na sociedade cristã, crescimento enquadrado pelo calendário. Sabe-se, de resto, que esses Livros de Horas (Book of Hours), muitas vezes ricamente ilustrados, forneceram algumas das mais belas obras-primas das miniaturas da Idade Média” (LE GOFF, 2008, p. 138).

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Desde a Antiguidade, bibliotecas surgem antes dos livros e o desenvolvimento da escrita transcorre em paralelo com seu desenvolvimento. Já na Idade Média, os mosteiros tornaram-se uma continuação de antigas bibliotecas como organismos sagrados, onde livros eram considerados elementos misteriosos41, carregados de poderes e conhecimentos maléficos escritos pelos demônios42. Somente aos iniciados era permitido acesso e apenas o homem sacerdotal teria conhecimento e permissão à leitura e à escrita. Nesse período da história, bibliotecas eram lugares onde se escondiam livros, e a arquitetura dos edifícios medievais asseguravam tal função em localizações de difícil acesso e sem saídas, eram “muralhas contra o vago e o fluido” (DEBRAY, 2004, p. 285). Os livros eram verdadeiros paralelepípedos de papel, com fecho, arestas e ângulos de metal, e permaneciam acorrentados nesses recintos enclausuradas, condição que foi favorável em relação às guerras, conservando-os como jóias e defendidos contra umidade, pragas e humanos. Um fato determinante para a Renascença, que não teria sido esplendorosa no que concerne às obras escritas se não fossem pelas bibliotecas monásticas da Idade Média e seus manuscritos que preservaram a história do livro, não somente como difusor literário, mas também como objeto de valor e culto. Entretanto, o livro acorrentado não é suficiente para aprisionar a palavra, e a partir do século XII, o monopólio monástico dá sinais de enfraquecimento e a “cultura do livro” se modifica com a fundação das universidades, que se tornam os prolongamentos das ordens eclesiásticas, e os trabalhadores do livro se multiplicavam fora dos mosteiros. Estão dentro e

41 “Certos bibliófilos chegam ao ponto de afirmar que há livros feitos com pele humana. Assim, por exemplo, o bem informado Rouveyre, que é taxativo: “as obras encadernadas em pele humana não são muito raras e existem realmente, embora já se o tenha negado”. Mesma certeza em Albert Cim que informa existirem “numerosos espécimes destas encadernações, e a pele fornece, segundo dizem, um couro sólido, espesso e granulado”. Entretanto, Marcellin Pellet esclarece que “a pele humana não é bela para encadernação; é muito difícil, senão impossível, desengordurá-la completamente”. Ao que parece, no período de terror da Revolução Francesa, curtiram-se muitas peles humanas para os mais diversos fins, como “culottes”, botas, chinelas e livros. Tanto Rouveyre como Albert Cim mencionam os nomes de livros encadernados com esse material, que o dr. António Askew (1722-1775) encadernou com esse material, “a fim, sem dúvida, de que o exterior da obra correspondesse ao interior”; e dois volumes cuja capa provem da pele duma feiticeira de Yorkshire, Mary Ratman, executada por assassinato nos primeiros anos do século XIX” (MARTINS, 1957, pp. 61-62). 42 “Acrescentemos o papel da escrita como instrumento de dominação do homem sobre o homem, e sobre as coisas. O controle desse utensílio de penhora mágica, por identidade substancial entre as coisas e suas marcas, deve suportar uma garantia de emprego. A escrita é um dom dos deuses que aparenta seu usuário com os doadores” (DEBRAY, 2004, p. 252).

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nos arredores das universidades, justamente com outro fator determinante e de enorme mudança: a laicização dos artesãos. Dessa forma, a clientela também torna-se laica e os envolvidos no sistema de trabalho envolvemse e se ramificam em outras associações, cenário que se modifica profundamente a partir do século XIII. A partir desse momento, numerosos estudantes e mestres em formação (dentro e fora dos mosteiros ou universidades) estão dispostos a atingir grande número de leitores, mesmo com as adversidades e punições impostas pela Igreja, uma vez que o avanço da palavra escrita sempre carregou consigo o medo da propagação e restrição à liberdade. Um movimento, como assinala Barthes “entre a domesticação e a repulsa diante de uma Forma-Objeto que o escritor, fatalmente encontra em seu caminho” (2004, p. 5). A Idade Média foi dinâmica e fortemente criadora, segundo Le Goff (2008, p. 67), mas não o declara; e os artesãos representaram uma força social importante43. Todavia, com tensões que existiam dentro do universo medieval (homem e Deus, razão e fé, alma e corpo, guerra e paz, dor e prazer) e afora os limites de poderes entre igreja, monarquias, senhorias e universidades (Ibidem, p. 213), fizeram com que a noção de criação se ligasse exclusivamente a uma concepção de Deus, da Natureza e do Homem. “A coerência nesse caso é mantida, pensada, ordenada e reordenada, por um organismo coerente ele próprio: a Igreja”, correspondendo a isso, “uma sociedade hierárquica, centrada em torno do dominium: a dominação da senhoria. O dominium insere – encarna – a função divina na sociedade humana” (Ibidem, p. 127). Um movimento recíproco e determinante apontado por Ginzburg (2006, p. 10), quando uma cultura é produzida pelas classes populares e outra cultura é imposta às classes populares adotando, assim, o conceito de circularidade de Bakhtin, em que o relacionamento circular entre as classes44 ocorre por influências recíprocas, movendo-se de baixo para cima, bem como de cima para baixo. Em suma, uma visão hierárquica: Deus se encarna, o homem se diviniza. “Pensava-se, portanto, que as ima-

43 Sobre a participação das mulheres na escrita: A escrita, o intermediário sexista. (Cf: In DEBRAY, 2004) 44 Onde a complexa combinação de elementos residuais oriundos desse relacionamento circular entre as classes resulta no conceito de cultura popular, onde uma área de produção cultural é mais dominante, encarando no que Raymond Williams chama de “residual e preservado”: “Uma ‘alta cultura’ mais ou menos inconteste foi deslocada quase totalmente para o tempo passado, com algumas minorias substitutas, concomitantes e concorrentes de um tipo diverso, enquanto a ‘minoria’ ativa e eficiente, dentro de uma esfera de produção cultural determinada pela classe, deslocou-se definitivamente para a área ‘majoritária’ geral” (Williams, 1992, p. 227).

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gens eram intermediárias entre o Homem e Deus” (Ibidem, p. 69). Uma questão que recai sobre a noção de arte. Uma das definições de arte45 é sublinhada por Le Goff (2008, p. 39) quando, a toda obra a que chamamos obra de arte (uma vez que a expressão não existia na Idade Média) era imitação da criação divina ou da natureza, ela própria criatura de Deus. Logo, por muito tempo o artista medieval não foi mais do que um artesão que trabalhava sob comanditários46 ou comandos: da Igreja, mercenários ou poderosos, institucionalizando sistemas, em que o primeiro destinatário (ou destino final) era sempre em deus. Eram imagens onipresentes que durante longo tempo foram interpretadas através de um ângulo artístico, mas subestimando sua contribuição documental, valor de testemunho e expressão47. Dessa forma, a reflexão sobre o significado da arte na Idade Média torna-se relevante, ainda mais se pensada sem uma autoria e sob interferência de uma força mística onipresente. E por esse aspecto, poderíamos considerar a escrita uma forma de arte? A arte está nas Iluminuras, e está também nas letras desenhadas, já que também são expressão do corpo e da mente? John Man (2004, p. 100) afirma que, após

45 Lukács definiu a arte mediante a distinção de três fases da prática humana: a “prática”, a “mágico-religiosa” e a “estética”. Em que a primeira se faz na experiência de uma necessidade humana, dentro de condições sociais e materiais historicamente determinadas; a segunda, pelo confronto com os limites humanos, com uma crença ou transcendência exigente; e a terceira fase é fechada em si mesma. (Cf: WILLIAMS, 1992, p. 127) 46 Le Goff destaca os banqueiros e os mercadores como uma das classes de comanditários na Idade Média, os mesmos que faziam as ligações entre o Ocidente e o Oriente: “permitelhes também exprimir seu gosto, suas expectativas, tanto na ordem do espiritual como na ordem do imaginário. É significativo que os parceiros dos mercadores-banqueiros na execução das encomendas tornem-se pouco a pouco artistas, pessoas que até então não se distinguiam dos outros entregando-se à “artes”, quer dizer, às atividades profissionais manuais. É, por exemplo, o caso claríssimo de Giotto (c. De 1266-1337). Os mercadores florentinos, seus “patrões”, o consideram perfeitamente um artista no sentido moderno da palavra. Utilizam-no. Ele os serve. Chiara Frugoni mostrou magistralmente, através do estudo da iconografia de São Francisco, como Giotto, manipulado por seus comanditários, torna adocicada a imagem fascinante, mas ambígua, do santo – inimigo do dinheiro, porém celebrado pelos homens de negócios” (LE GOFF, 2008, p. 103). 47 “A obra de arte, a imagem e seus temas são uma fonte para o historiador por duas razões: seu conteúdo significativo ultrapassa a sensibilidade do artista, do comanditário e daqueles que o recebem. Assim o historiador dispôs de recursos para chegar à noção de sensibilidade coletiva para dar conta do significado histórico de uma obra de arte. O historiador não deve esquecer que uma parte significativa da criação artística se endereça de modo definitivo ao conjunto do povo cristão – que essa criação constitui um elemento essencial da liturgia, força estruturante da comunidade medieval. Desse modo, o documento artístico, a imagem se concentram nos lugares, nos monumentos em que se desenvolve fortemente, mais frequentemente essa liturgia: a igreja, a praça comunal. Há certamente a imagem reservada a uns poucos, ou a Deus: as esculturas que não podem ser vistas, as pinturas de manuscrito, os tesouros da igreja” (Op. Cit., p. 40).

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o ano de 1300 os escribas tornaram-se artistas supremos, criando magníficos livros de orações (Livros das Horas) e estabeleceram novos níveis de excelência. Um escritório medieval bem organizado era um negócio de certo porte, com grupos de escribas, iluminadores, rubricadores e encadernadores que forneceriam livros para a nobreza e homens ricos que adquiriam suas bibliotecas particulares e exigiam beleza em cada obra escrita. Le Goff assinala que, com a escrita, originou-se a literatura no sentido ocidental do termo. O historiador sublinha que a palavra literatura apareceu no século XII como literatura “antes de tudo poética”, difundindo a ideologia cortesã e cavaleiresca, quando um gênero inédito se afirma e que “não está na tradição greco-romana: o romance”48 (2008, p. 72). Neste processo, o autor afirma que é difícil denominar a autoria da literatura sem a interferência da Igreja, uma vez que na Idade Média, sobretudo, se evita celebrar as novidades. Na Igreja dominante, a palavra novitas é compreendida com medo e hostilidade e dizer a um autor que ele era novo significava condená-lo ou acusá-lo de heresia. Para Le Goff (2008,p. 67), os criadores (numerosos na Idade Média) recusavam tal suspeita, e o novo era o pavor dos cleros medievais, e o futuro tão vago e próximo quanto o final dos tempos, em que a própria ideia de progresso “parece o fim da História, transfiguração e caminhada para fora do tempo” (Ibidem, p. 59). De acordo com o historiador, não se compreenderá a Idade Média se não a integrarmos à ideia de renascimentos sucessivos49, cuja própria lógica de renascimento é indissociável da história medieval, configurando-se como necessidades constantes desde o tempo de Carlos Magno e a Reforma de Lutero em longas sequências de reformas. O historiador aponta também, para a falta de documentos sobre os jovens na Idade Média em uma sociedade amplamente camponesa e analfabeta que deixou poucos traços de sua dinâmica. “Os camponeses da Idade Média não escrevem”50, ressalta, e só aparecem indiretamente em nossas 48 “Existem, claro, muitos textos narrativos, grandes textos narrativos, vindos da tradição helenística, designados depois como romances [...]” (Op. Cit., p. 72). Le Goff também aponta para Aristóteles, redescoberto no século XII e século XIII das traduções das obras latinas. 49 O ano litúrgico – se bem que fechando-se sobre si mesmo – é paradoxalmente um instrumento para impor a ideia de um tempo linear. A Igreja se serve da volta cíclica das estações e das festas para repetir, a cada novo período, que a humanidade vai de um início a um fim, e que o fim não é um reinício mas um renascimento em um outro mundo, que será um mundo definitivo, sem tempo. (LE GOFF, p. 143) 50 “Mais de 80% da Europa medieval é camponesa. Entre as mulheres, representam metade da população: elas não deixaram manuscritos, salvo raras exceções, o que não quer dizer que as mulheres e camponeses fossem mudos, inativos e sem influência durante todo esse período!” (Op. Cit., p. 50).

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fontes pelo que deles dizem os clérigos, ou documentos inquisitoriais. utilizados nos julgamentos. Ginzburg no prefácio de O queijo e os vermes51 (2006, p. 09) também aponta para a dificuldade dos historiadores na construção analítica dos sujeitos medievais, “parcialmente obscurecida de sua cultura e contexto social”: No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer conhecer somente as “gestas dos reis”. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado. “Quem construiu Tebas das sete portas?” – perguntava o “Leitor operário” de Brecht. As fontes nos contam nada daqueles anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso. (GINZBURG, 2006, p. 11)

Os historiadores, acentua Ginzburg, precisam servir-se, sobretudo, de fontes escritas e eventualmente arqueológicas, as quais são duplamente indiretas, ou seja, são escritas, mas são em geral autoria de indivíduos ligados à cultura dominante, significando ponto de extrema importância quando “pensamentos, crenças, e esperanças dos camponeses e artesãos do passado chegam até nós através de filtros e intermediários que os deformam” (Ibidem, p. 13). É o que basta para desencorajar as pesquisas, assinala. Outra determinante que Ginzburg aponta é a cultura produzida pelas classes populares e a cultura imposta à classes populares, adotando, entretanto, o conceito de circularidade de Bakhtin (Ibidem, pp. 10-12). A essa altura, ressalta Ginzburg, a discussão sobre a relação entre cultura das classes subalternas e classes dominantes começa52, e até que ponto a primeira classe está subordinada pela segunda? É, portanto, possível falar em circularidade entre esses dois níveis de cultura? Isso se deve, afirma o autor, à persistência de uma concepção aristocrática da cultura, quando com muita frequência ideias ou crenças originais são consideradas, por definição, produto das classes superiores e sua difusão entre as classes subalternas um fato simplesmente mecânico, de escasso ou nenhum interesse. E como se não bas51 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Trad.: Maria Betânia Amoroso, José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 52 Para Le Goff, o nascimento da noção de mercado e a tomada de consciência de fenômenos especificamente econômicos anunciam uma reviravolta. “Até então, a economia respondia em primeiro lugar a questões morais como pensar a riqueza e a pobreza?” “Cede progressivamente, então, lugar à revolução industrial, quando se acentua a ruptura com a economia rural”. Segundo este historiador, se considerarmos a tecnologia e a vida social, a Idade Média dura até o século XVIII, aonde encontra sua autonomia, e torna-se um instrumento. (2008, p. 78)

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tasse, se enfatiza de forma presunçosa a “deterioração” ou a “deformação” que tais ideias ou crenças sofreram durante o seu processo de transmissão53 (Ibidem, p. 12).

TIPOGRAFIA, A ARTE DE IMPRIMIR

Os paradoxos se instalam nos anos do pré-renascimento e enquanto a Igreja espalhava pavor pelo novo, escritórios de caligrafia e os multiplicadores de livros se proliferavam. Um novo mundo se instalava e a busca pelo conhecimento era impregnado nos cidadãos, cuja palavra era impulsionada com cada vez mais intensidade, fosse dentro ou fora dos mosteiros. Com as novas universidades, os materiais que envolviam o desenvolvimento de livros também se diversificavam, coincidindo assim, para o aperfeiçoamento dos livros aos milhares, a começar pelo melhoramento do papel, suporte mais utilizado para a escrita até hoje54. Com o pergaminho ou velino, eram necessários quinze animais para se produzir apenas um 53 Uma reflexão que incide diretamente sobre a discussão entre arte e artesanato. 54 “Os chineses fabricavam livros desde uns dois séculos antes de Cristo, segundo as mais recentes pesquisas (Os amantes da precisão histórica indicam o ano 213 A.C.). Mas esses livros não foram feitos nem de papel, nem de papiro, nem de pergaminho: eram feitos de seda, material que, mesmo na China, sempre foi singularmente caro. Os chineses, naturalmente inventivos, tentaram substituí-la por qualquer outro produto e passaram a fabricar o “papel de seda”, menos custoso porque permitia, na criação do processo que seria o da fabricação do papel até hoje, o aproveitamento de trapos e tecidos usados”. (MARTINS, 1957, p. 119) Essa técnica de fabricação isolava a celulose, o que se chama “pasta de papel”. E sobre a introdução do papel na Europa, Martins relata que “no ano de 751, quando diversos prisioneiros chineses, trazidos para Samarcã, cidade da Ásia Central, nela introduziram a indústria do papel” (Op. Cit., p. 123). Na direção do ocidente, em 794 encontravam-se fábricas de papel em Bagdá

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livro em formato médio, e com o papel, o peso das obras é reduzido ao essencial, num produto sem os luxos da carne, reduzindo em dez vezes os gastos de fabricação e “detonando os limites físicos da multiplicação da divina Palavra, até então aprisionada nos ciclos lentos da reprodução do gado” (DEBRAY, 2004, p. 294). As artes manuais e a mão do homem estavam ainda mais conectadas. Roger Chartier (1999, p. 9) ressalta a forte continuidade entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso, embora durante muito tempo se tenha acreditado na ruptura de uma e outra. A escrita artificial teve seu início com tipos de madeira, oriundos da técnica de xilogravura55, uma tradição que se usava nas impressões tabulares no século XV. E apesar dos tipos em madeira serem mais leves, era preciso também pensar no desgaste da repetição. E, apesar da contradição do peso (do leve para o pesado) ser inevitável, os problemas de simetria, durabilidade e alinhamento das letras seria resolvido com uma matéria mais sólida. Os materiais já existiam: prensa, tipos, tinta, papel e o formato de livro incunábulo. Faltava apenas um inventor de ajustes, alguém que tirasse ouro56 desses elementos, e nesse sentido, a tipografia representa menos uma invenção, e mais um aperfeiçoamento da reprodução rápida e ilimitada da escrita, era a invenção de uma técnica. A própria palavra tipografia era pouco empregada no século XV. Embora o livro (incunábulo57) fosse impresso, ele prolongava, artificialmente, o manuscrito em sua aparêne Damasco. “Entrava o papel na rota das caravanas: o caminho do Ocidente estava aberto. Com efeito, junto com outras preciosidades, os árabes colocaram o papel no ciclo das suas atividades comerciais com o mundo cristão. Com a parada tradicional na África, o papel passa para a Espanha, onde já o encontramos em 1154. Mais dois séculos e o ‘manuscrito em papel’ substitui o ‘manuscrito em pergaminho’” (Op. Cit., p. 123). Segundo Martins (Op. Cit., p. 121), “é nos albores da Idade Média que o papel faz a sua aparição na Europa” e até fins do século XVIII a fabricação de papel continua sendo artesanal em moinhos onde se faziam as folhas uma a uma: “O emprego do papel só se revelaria em todas as suas possibilidades quando novas condições espirituais começassem a modificar a cultura medieval. Juntamente com a pólvora, o papel é o grande aríete do mundo renascentista que se anunciava, contra o mundo medieval que sucumbia. A transformação seria feita, em grande parte, através do livro e da palavra escrita: o papel é que se ia revelar, na realidade, a grande arma, a arma mais perigosa, mais potente e de maior alcance já inventada pelo homem. Nesses dois séculos de hibernação europeia, o papel aguardava, apenas, o seu momento” (Op. Cit., p. 123) Cf: , Moinho St. Cuthberts, nas colinas de Somerset, Inglaterra. , fábrica de papeis Hayle Mill, Inglaterra. , fabricação de papeis chineses (Xuan). Acesso em 06.10.2015. 55 Xilogravura = gravura em madeira. 56 Era comum a um ourives tornar-se tipógrafo, pelo detalhamento que o trabalho de ambos exige. 57 Eram chamados Incunábulos (de cuna = berço) os livros que imitavam os manuscritos, e característicos dos primeiros anos da Imprensa. O Incunábulo foi, com o tempo, abandonando o aspecto de livro manuscrito e adotando suas particularidades próprias como é hoje.

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cia, e por isso a tipografia era conhecida como escrita artificial58, onde os primeiros caracteres eram uma imitação das letras cursivas góticas. A palavra tipograf ia provém do grego (typos = modelo, forma e graphos = escrever, gravar). É conhecida como a arte de compor e imprimir com tipos móveis, um método oficialmente concebido pelo gráfico alemão Johannes Gutenberg (1398-1468)59. Foi fundamental na história da Renascença, Reforma e Revolução Científica e fez surgir a Revolução da Imprensa, considerada o evento mais importante do período moderno. Ao contrário dos escribas que fabricavam livros e documentos à mão, a impressão com tipos possibilitou a reprodução em massa, e com a eficácia do alfabeto latino que conseguiu traduzir os sons da fala em conjuntos de sinais apropriados à mecanização, as “grandes quantidades de letras podiam ser fundidas a partir de um molde e organizar em formas” (LUPTON, 2006, p. 13)60. A ideia originária da reproducão tipográfica de Gutenberg se conecta diretamente com a pintura O retrato do casal Arnolfini, de Jan Van Eyck, de 143461. Os detalhes pictóricos do pequeno quadro nos levam em direção a uma novidade retratada na tela: um espelho convexo. Nesse mesmo ano, o início da fabricação dos espelhos deram a Gutenberg o impulso necessário para a multiplicação com tipos móveis. Os espelhos62, tão evidenciados na literatura de Jorge Luis Borges, como o germe primitivo da arte da impressão, na direta associação com a imagem invertida, tal qual são as letras cunhadas nos tipos de chumbo:

58 Ars scribendi artificialiter = arte de escrever artificialmente. 59 Embora a invenção da tipografia por Gutenberg seja uma história singular e relevante, existe vasta bibliografia sobre o assunto. Por isso, em razão do limite de páginas que disponho, optei por fazer correlações em pontos pouco explorados de sua biografia, e que se ligam diretamente ao corpus da pesquisa. 60 Ainda que os tipos móveis (em madeira, argila cozida e de cobre e chumbo) tenham sido empregados primeiramente na China, mas com pouca eficácia por consequência do sistema de escrita com suas dezenas de milhares de caracteres distintos. 61 The Arnolfini Portrait, National Gallery, Londres. Um registro do ilustre mercador de sedas e sua esposa em cena da vida cotidiana holandesa. 62 O biógrafo de Gutenberg, John Man (2004, p. 72), assinala que para entender a invenção é preciso tomar um pequeno desvio: A cidade de Aachen na Alemanha era a cidade que o venerado Carlos Magno escolheu para fazer a sede de seu império e em sua catedral foi sepultado. No ano de 1165, Carlos Magno foi santificado e os seus restos mortais, junto com uma coleção de relíquias sagradas que o rei alemão Oto III reuniu no ano mil. Tanto a coleção como os restos mortais de Magno tornou-se o foco de uma das maiores peregrinações medievais, até que no século XIV as autoridades fecharam o acesso, permitindo a peregrinação somente a cada sete anos. Mas no ano XV a pressão dos peregrinos tornou-se maior do que a catedral podia suportar e as relíquias foram postas do lado de fora da cate-

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É possível admitir que o espírito inventivo de Gutenberg se tenha encaminhado para a ideia dos caracteres móveis ao perceber as imagens sucessivas, independentes e invertidas, que passavam nos espelhos diariamente manuseados. O espelho, além de “gravar” fugazmente cada imagem invertida, fornece quase materialmente a ideia da sua mútua independência: cada face, cada objeto, é como se fosse um caráter móvel, desligado dos demais e dinâmico, ao contrário da imagem estática e maciça fornecida pelas planchas de caracteres fixos, já então vulgarmente conhecidas e que não constituíam segredo para ninguém. (MARTINS, 1957, p. 170)

Os tipos idealizados teriam que ser resistentes e duráveis para aguentar a pressão da impressora e a quantidade de repetições. O chumbo, sozinho, não seria suficiente e foi preciso que Gutenberg (em segredo) se aventurasse na alquimia dos metais. E de acordo com registros encontrados, houve uma disputa judicial entre seus sócios na cidade de Lichtenau, em que atestam, por testemunho, que o inventor trabalhava num projeto onde eram autorizadas apenas as palavras “aventura e arte”(MAN, 2004, p. 78), para se referir à futura invenção. Era preciso então, descobrir uma fórmula para o endurecimento do chumbo, calcular os riscos e pensar na condutibilidade, maleabilidade e elasticidade do metal durante o processo, uma parte do que seria a chave de toda operação tipográfica: a punção. Gutenberg encontrou sua solução unindo o chumbo a uma liga especial composta por estanho e antimônio63, no qual o estanho aumenta a corrente e dral onde, em 1432, dez mil pessoas por dia disputavam o melhor lugar para avistar as relíquias, já que era impossível tocá-las. Como prova da visita, adquiriam pequenas insígnias de metal, decorados com santos, considerados amuletos, verdadeiras conquistas para o peregrino que lá estivesse, por acreditarem que deles saíssem correntes curativas pelos raios solares que incindiam sobre eles no local.”No início do século XV a ideia era de que a tecnologia poderia trazer a solução. As pessoas estavam começando a usar óculos”, sendo que as lentes não eram de vidro, mas de cristais claros. Os espelhos de vidro eram fabricados em Nuremberg no final do século XIV e havia um bom mercado entre os ricos. Em 1432 um boato se espalhou, com a notícia de que um espelho convexo, ao capturar um ângulo de visão mais amplo, poderia absorver a radiação das relíquias sagradas e de repente, todos queriam o objeto que se configurava em doze milímetros com moldura de cobre polido. O espelho era a garantia da satisfação e os ourives de Aachen não conseguiam atender à tamanha demanda de pedidos (dez mil pessoas por dias, durante duas semanas). “Os registros mostram que em 1466, cento e trinta mil peças haviam sido vendidas”. Foi então, que Gutenberg decidiu produzir espelhos em massa, uma vez que já havia trabalhado com punção em moedas, teria experiência como ourives. 63 “O antomônio merece respeito. O minério prateado era muito usado na Antiguidade para a pintura e como um meio de purificação química. Dizia-se que os monges, impressionados por seus efeitos químicos, o engoliam para purificar seus corpos. Infelizmente o

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a velocidade de esfriamento, enquanto que o antimônio servia para endurecer o metal e depois manter os detalhes da letra. Por conseguinte, era preciso aplicar outro ofício em sua descoberta, uma vez que aprendeu a cunhar moedas a partir de moldes de metal provenientes de matrizes. Uma operação que se realiza quando um padrão em alto relevo é martelado num pedaço de aço gravado, corretamente posicionado sobre o metal mais macio e batido com martelo, deixando uma imagem espelhada. Segundo Man, fabricar punções já era uma arte antiga no início do século XV e a precisão de um bom punçador era assombrosa (Ibidem, p. 57), uma satisfação com o trabalho tão real quanto a de um escultor. As ideias fragmentadas de Gutenberg teriam que se unir em conjunto, e o ápice do processo foi o funcionamento, após a punção, de um molde manual (de metal) com duas partes, que presos por uma junta de parafusos, torna-se o recipiente para abrigar a liga metálica e derretida (composta por chumbo, antimônio e estanho) a ser preenchida no molde, para formar (moldar) a peça de tipo. E após o esfriamento da liga, o molde é aberto e o tipo, pronto, é removido. Uma ação64 simples, mas difícil de descrever em palavras65, que se tornou “uma peça modelo no equipamento dos fabricantes de tipos nos quinhentos anos seguintes até que foi substituída pela fundição de tipos mecânica no final do século XIX” (MAN, 2004, p. 136). O molde manual provê a ferramenta essencial para o processo de impressão. Aqui está o mecanismo, facilmente utilizado, que poderia produzir toda a quantidade de tipos necessários para um livro com uma única coleção de punções. Mais tarde, fundidores de tipos experientes puderam fazer quatro

antimônio é um veneno mortal, e a única coisa que eles purificavam, se é que o faziam, eram suas almas. Quase certamente isso é um absurdo baseado em uma falsa etimologia que faz o nome do metal derivar de anti-monos – ‘antimonge’. Na linguagem popular era ‘veneno de monge’. Na verdade, no início da época medieval, o ‘antimônio’ foi provavelmente baseado no arábico ithmid, mas a história faz recordar que Gutenberg e seus sucessores estiveram engajados em experiências arriscadas. ( Joseph) Moxon avisa aos fundidores de tipos para construir suas ‘fornalhas’ perto das janelas, ‘de forma que os vapores do antimônio (que são ofensivos) façam menos mal àqueles que trabalham na fabricação do metal’” (MAN, 2004, p.139). 64 As esculturas em bronze são feitas com processo similar, com moldes de gesso. 65 John Man (2004) sublinha que o tipógrafo Robert Hartmann, responsável pelo Museu Gutenberg em Mainz na Alemanha, exerce verdadeira performance ao demonstrar o passo-apasso da punção criada por Gutenberg. O tipógrafo inglês Joseph Moxon escreveu em 1683, um manual explicando como fazer tais punções, porém, Man assinala que é quase ensinar alguém, teoricamente, a andar de bicicleta, uma leitura incompreensível, “diabolicamente impossível” (Op. Cit., p. 137).

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“tipos” por minuto – várias centenas por dia (o recorde alegado, mas não comprovado, é de três mil). A grande vantagem desse sistema era o próprio tipo ser efêmero. Em uma vasta tiragem de livros, o tipo seria gasto. Mas isso não importava. Podia-se sempre fazer mais letras e, se necessário, fundir-se as velhas para reutilizá-las. Se existissem as matrizes, mais letras poderiam ser fundidas; e se as punções estivessem intactas, mais matrizes poderiam ser feitas. Fossem quais fossem os mecanismos primitivos de Gutenberg, o princípio seria o mesmo: punção (ou patriz), matriz, molde manual, tipo – esta era a base para a revolução de Gutenberg. (Ibidem, p. 140)

Mas o desenvolvimento da ideia teve um progresso lento. Era preciso outras engenhosidades, como pensar na altura correta para os tipos tocarem o papel; como prendê-los na fôrma (ou galé); os seus intervalos, espaços e todos os detalhes que, até hoje, só os impressores operam, e os quais são invisíveis no livro impresso. Gutenberg teve, segundo John Man, que redefinir dúzias de outras subtecMolde manual no Museu Plantin-Moretus. nologias envolvidas no processo, como o armazenamento dos tipos; o modo de compor (também em páginas múltiplas); o ajuste da prensa; o papel e tinta apropriados para receber a pressão dos tipos; a melhor tinta, um conjunto de fatores para o bom resultado da publicação, abrindo caminho para um universo especializado66, digno de enciclopédias e termos técnicos (Ibidem, p. 142). Os problemas se acumulavam a cada tentativa, mas a “aventura e arte” se concretizou na impressão de um bestseller, a Bíblia. Em sua primeira tentativa em velino, calcula-se que, das doze cópias existentes, 66 Era preciso do inventor uma série de aptidões, desde as engenhosidades metálicas e mecânicas, até a sutileza no manejo com o papel e tinta, que descobriu ser muito complexa. Não poderia ser nem muito líquida nem muito espessa, para não grudar no papel. Para fazer a tinta, usou óleo de linhaça, fuligem e âmbar como ingredientes básicos para formar o verniz, porém era preciso ter a consistência correta. E para competir com os escribas, precisaria utilizar tintas coloridas e para isso, buscou o conhecimento com artistas para aprender a misturar os pigmentos, como o vermelho cristal, denominado cinábrio, e o azul lápis-lazúli, derivado de raro mineral, ambos misturados ao verniz. (Cf: MAN, 2004, p. 143)

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trinta e cinco foram impressas. A segunda tentativa, em papel trazido da Itália, estima-se em cento e cinquenta cópias, das quais hoje sobrevivem trinta e nove, cujos exames rigorosos revelam “seis diferentes mãos no trabalho, cada uma com seus próprios hábitos de composição” (Ibidem, p. 173). As pesquisas que revelam um trabalho em equipe, também sugerem que cada compositor operava, ao mesmo tempo, em três páginas, compondo uma, imprimindo a segunda e desmontando a terceira. Um trabalho de meses, na concepção de cada etapa, um trabalho insano e sem erros, no emprego de mais de quarenta e seis mil tipos, e no qual Gutenberg concebeu uma inovação quanto ao design: margens justificadas à direita, o que não era possível aos escribas. Mais tarde, com seis compositores e três prensas, Gutenberg produziria a Bíblia de 42 linhas, com cento e oitenta cópias. Foram duzentas e trinta mil páginas de impressão num trabalho que duraria aproximadamente dois anos, e considerada a fusão única de tecnologia e arte renascentista, no que os bibliófilos consideram como uma obra suprema pela beleza e brilho da tinta e regularidade da tiragem, um monumento admirável, digno de perfeição. Fruto de um gênio estético, com visão arrojada, capacidade de organização e maestria na técnica, que lhe atribui o paradoxo de não levar o seu nome em nenhuma das publicações que produziu, deixando que o tempo lhe retornasse a devida autenticidade pelas mãos dos historiadores. Foi um homem total, que dedicou sua vida67 para o início de um processo sem volta, a arte de imprimir. Os primeiros tipógrafos, em razão do capitalismo que se instaurava no Renascimento, mantinham o novo processo de impressão sob segredo e a tipografia passou a ser vista, durante o seu início, como uma arte sobrenatural, onde os impressores trabalhavam por meios cabalísticos. Longe de serem considerados operários, eram imaginados como alquimistas soturnos e terríveis em oficinas e laboratórios profanos, onde o pecado e as relações com o diabo, atribuía à palavra a hostilidade e censura eclesiástica. O pensamento científico e objetivo só abriria caminho com a reprodução de livros facilmente reproduzidos. Com os humanistas, o formato do livro tornou-se ainda menor, até chegar à forma de libellus, um livro que se podia levar no bolso e muito utilizado como “livro de preces”, empregado até os dias de hoje68. Uma mudança que possibilitou uma irrefreável liber67 Faleceu endividado e quase sem reconhecimento. 68 “Uma nova ordem, uma nova regulamentação, chega com os humanistas dos séculos XV e XVI, especialmente com Erasmo. Prova de que há uma mudança de época, não de civilização. A impressão começa, de fato, a expandir um novo tipo de texto” (LE GOFF, 2008, p. 37).

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dade de pensamento, embora que, para publicar, era obrigatório aos impressores uma permissão legal concedida pela Igreja ou pelo rei, muitas vezes outorgada como privilégio. Por isso, a impressão tipográfica torna-se uma arte hermética para iniciados que exercem o ofício sob juramento. “Em 1517, o tipo metálico móvel já tinha setenta anos e saindo da infância”, assinala Debray (2004, p. 287), e à medida que crescia a pressão demográfica, aumentava a pressão tipográfica (Ibidem, 289), um mecanismo intrincado, no qual a máquina de reproduzir detona a máquina de controlar (Ibidem, p. 292): Com o tipo de chumbo, o Uno começa a partir-se em pedaços, em virtude da proliferação das seitas – legítimas a partir de então – e da degradação do latim unificador. Mas também em face das novas relações de proximidade entre a Palavra e seus tradutores69, cujo eco suplanta o dos pregadores. (DEBRAY, 2004, p. 296)

Segundo Chartier (1999, p. 09), de modo geral persistia uma forte suspeita diante do impresso que supostamente romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores70 e corromperia a correção dos textos, colocando-os em mãos “mecânicas” e nas práticas do comércio. Fato é, que depois da multiplicação do tipo móvel através da invenção do molde manual por Gutenberg, o livro repercutiu em milhões de leitores ao mesmo tempo, transformando-se em um instrumento, tal qual Borges assinala: “a extensão da memória e da imaginação humana” em um “acervo indeciso de rascunhos contraditórios”, onde “cada ponto é o ponto de partida para outras bifurcações” (BORGES, 2007, p. 90). A leitura intensiva insuflou um conflito de autoridades entre a Igreja e a Escritura, tendo no livro como inimigo e o erudito como agitador, e “involuntariamente um líder guerreiro, ao conferir ao pensamento ‘um poder incomparável de penetração’, a imprensa não produzia mais doutrinas, e sim conturbações. Abriu portanto, a era das campanhas de imprensa e das perseguições pessoais” (DEBRAY, 2004, p. 298), como também, amplia o culto da personalidade entre os autores, artistas e novos grandes homens, ressalta Debray. Os primeiros tipógrafos do século XV e XVI71 eram aqueles que 69 Cf: Na Reforma, quando Martinho Lutero traduziu a Bíblia do latim para o alemão. 70 Wilson Martins aponta para o sensualismo de que toda a Renascença está impregnada, onde os “prazeres espirituais da leitura conhecem um rival no prazer físico de manusear o volume, de encará-lo como obra de arte” (1957, p. 223). 71 O leitor perceberá mais adiante no CAPÍTULO TRÊS, que a grande referência do poeta tipógrafo Cleber Teixeira era Aldo Manúcio, ou Aldus Manutius. Sem dúvida, uma impor-

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faziam todo o trabalho do começo ao fim, desde a escolha da tinta e papel, até o acabamento final. Eram eruditos e poliglotas, geralmente, autores ou tradutores, e também se incumbiam de revisar as cópias que imprimiam. Contratavam os serviços de iluminadores e também aos encadernadores era destinada a atividade final da confecção do livro. Em pouco tempo, as prensas tipográficas passaram a funcionar nos principais centros culturais da Europa, em países como a França, Itália e Países Baixos. Após os séculos XIII e XIV, a cidade da Antuérpia firmou-se como uma das mais importantes redes de comercialização, muito pela sua localização geográfica no principal centro comercial do noroeste da Europa. Produtos e pessoas circulavam pela Espanha e suas colônias por intermédio do mercado internacional que unia o porto de Antuérpia ao porto de Sevilha. Era lugar de encontro de artistas e intelectuais e centro de intercâmbio cultural europeu, com a importação de matérias-primas essenciais da Renascença italiana, necessários para inspirar o Renascimento Flamengo, um cenário propício para um “esboço do processo de globalização” (THOMAS, 2014, p. 26). A Antuérpia, portanto, se transformou em ambiente propício para o desenvolvimento da impressão, e na metade do século XVI, 140 imprensas, editores e livreiros estavam trabalhando na cidade, onde o mercado do livro assumia uma dimensão internacional cada vez maior. A cidade, tornou-se o centro da tipografia (juntamente com Veneza e Paris), principalmente, pelo empreendedorismo de Christophe Plantin (1520-1589), entre os anos de 1555 e 1589. Plantin montou sua imprensa e editora, a Oficina Plantiniana com um complexo de oficinas adjacentes à sua residência. Primeiramente fundada com copistas e ilustradores, a oficina tornouse rapidamente a maior empresa de tipografia da Europa, e em frente ao seu estabelecimento estampa a frase de sua gloriosa ascenção: impressor do rei da Espanha e rei dos impressores. Entre 1500 e 1610, a indústria tipográfica antuerpiana era de extrema importância para a Espanha e seus territórios de ultramar, e a produção plantiniana destinada ao comércio ibérico e ibero-americano sempre foi de extrema importância para os negócios da oficina. (DE NAVE, in THOMAS, 2014, p. 43) De origem francesa, Plantin era um encadernador e vendedor de livros que, após fugir de Paris em 1549 (onde os impressores eram queimatante referência como tipógrafo e humanista da renascença italiana, que imprimiu grandes obras da literatura mundial. Entretanto, o tipógrafo Christophe Plantin foi um homem “além das fronteiras da Europa”, e por ser o impressor do rei da Espanha, sua obra teve importante repercussão no continente latino americano, tornando-se uma importante razão no percurso de minha reflexão.

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dos na fogueira por heresias), se estabeleceu na cidade de Antuérpia. Em 1555, quando a cidade já era um importante centro de impressão de xilogravuras e gravuras, Plantin abriu sua própria imprensa e logo se tornou um líder no comércio de livros. Publicou muitas obras em francês e latim, e logo foi reconhecido como o melhor impressor de seu tempo72. Suas edições da bíblia em hebraico, latim e holandês, clássicos latinos e gregos, e muitas outras obras produzidas neste período são famosas pela bela precisão na impressão. Porém, sua obra de maior prestígio foi a Biblia Poliglota, que viria a corrigir os textos originais do Antigo e Novo Testamento com bases científicas, apesar da oposição clerical. Contudo, obteve o apoio do rei Filipe II da Espanha, que lhe enviou o aprendiz Benito Arias Montano para liderar a produção. Com a ajuda de Montano, o trabalho foi concluído em cinco anos (15691573), e embora o trabalho tenha lhe rendido pouco lucro, resultou na concessão do rei Filipe (junto ao papado) em lhe conferir o privilégio para imprimir todos os livros litúrgicos católicos73 (missal, breviários, etc) para os estados governados por ele, um monopólio que se estenderia por mais de duzentos anos: A edição da Bíblia Poliglota marcou a associação da Oficina Plantiana com a coroa espanhola. Como resultado dessa colaboração, em 1571, foi outorgado a Plantin por Filipe II o privilégio do monopólio sobre a venda no império espanhol de certas obras litúrgicas, como breviários e missais, que se tornaram outra grande especialidade da casa. No contexto da União Ibérica (1580-1640), esse privilégio estendeu-se a Portugal e suas colônias, inclusive o Brasil. A partir de então, a Plantin-Moretus esteve permanentemente em contato com o mundo luso-espanhol, não só porque nessa tipografia foram

72 Contudo, não foi uma trajetória somente com vitórias. Em 1562, enquanto Plantin estava em viagem a Paris, seus funcionários imprimiram um panfleto herético, resultando em seus bens confiscados e vendidos. Conseguiu, no entanto, recuperar alguns bens e obteve a ajuda de amigos, dentre eles, os dois netos sobrinhos do tipógrafo italiano Daniel Bomberg, que forneceu-lhe finos caracteres tipográficos hebraicos provenientes de renomadas imprensas venezianas. Outro episódio dramático ocorreu em novembro de 1576, quando os espanhóis saquearam e parcialmente queimaram a Antuérpia, fato que motivou Plantin a estabelecer uma filial de sua empresa em Paris e em Leiden, na Holanda, onde procurou por tipógrafos na recém construída Universidade. 73 Além da Bíblia Poliglota, Plantin publicou muitas outras obras, como as edições de Santo Agostinho e São Jerônimo, as obras botânicas de Dodonaeus, Clusius e Lobelius, e a descrição dos Países Baixos por Guicciardini. Embora fosse um membro fiel da igreja católica, Plantin era um defensor de outras crenças e muitos dos livros heréticos publicados na época vieram de suas prensas.

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publicadas muitas obras de autores oriundos dos territórios sob domínio das monarquias ibéricas, muitas delas inclusive se beneficiando do mecenato régio, mas também porque os impressos produzidos na casa encontram ampla circulação no mundo ibérico. Por um lado essas publicações refletiam o conhecimento que era produzido nos impérios lusoespanhóis, especialmente sobre os novos mundos recém-descobertos sob suas banderias, e, por outro, contribuíam para a difusão de novos saberes, gostos es estilos. (FURTADO; KANTOR in THOMAS, 2014, pp. 10-11).

Em 1575, a Oficina Plantiniana possuía mais de vinte prensas e empregava mais de setenta e três operários, além dos colaboradores, dentre eles o famoso humanista científico Justus Lipsius e o pintor Pieter Brueghel, e assim como o impressor francês Robert Estienne, Plantin colocava provas de impressão em frente ao seu estabelecimento e prometia recompensas a quem conseguisse encontrar falhas em seus trabalhos. Uma prática obrigatória entre os impressores humanistas, a fim de limpar os textos: É o caso da Bíblia perversa de Barker74, de 1631, cujo sétimo mandamento foi transformado em versículo satânico: “Thou shalt commit adultery”, tu cometerás adultério – esqueceu-se o not. Para prevenir a padronização do erro e a degenerescência que ameaça as cópias multiplicadas, para matar na origem o contágio do falso, é preciso estabelecer o texto. Esse foi o papel crucial, para ficarmos só no Reino da França, dos humanistas impressores, Lefebvre d’Étaples e Robert Estienne: afrouxar os comentários, secar as variantes. (DEBRAY, 2004, p. 291)

A próspera empresa de Plantin já havia produzido mais de 2.450 obras, até o ano de seu falecimento, em 1589. O lema da casa e oficina é estampado em ouro: Labore et Constantia, cuja figura da mão riscando com o compasso apontam para o compromisso de Plantin-Moretus com a excelência tipográfica e editorial, que se estendeu por quatro séculos. Contudo, Renate Pieper destaca que, dez anos antes de sua morte, Plantin viria a publicar o que a autora registra como “um marco na representação europeia do Novo Mundo”, a primeira edição de Theatrum Orbis Terrarum, obra-prima de Abraham Ortelius:

74 Robert Barker foi o impressor do rei Jaime VI da Escócia e I de Inglaterra.

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Mediante mais de cem mapas impressos com seus comentários, a obra difundia os conceitos geográficos de um dos humanistas e antiquários mais reconhecidos da época. Tratava-se dos mapas do cosmógrafo-mor de Filipe II, rei de Castela e das Índias Ocidentais, que, em 1579, estava a ponto de herdar o trono de Portugal e a soberania sobre os assentamentos portugueses nas Índias Orientais e Ocidentais. A colaboração entre Abraham Ortelius, servidor do monarca castelhano, e Christophe Plantin, que se mostra crítico da política de Filipe II em Flandres, foi, portanto, complexa do ponto de vista histórico e político. (Pieper in THOMAS, 2014, p. 303)

A produção da casa era diversa, abrangendo livros, missais, catecismos, partituras musicais, mapas, decretos, panfletos e estampas gravadas a partir de placas de cobre” (FURTADO; KANTOR in THOMAS, 2014, p. 10). A continuidade ficou a cargo de seu genro, Jan I Moretus (15431610), que manteve a excelência gráfica e fez os melhores trabalhos de impressão com os melhores equipamentos da época; seu filho Balthasar Moretus I (1574-1641) consolidou a reputação da empresa, com a ajuda de sua amizade com Peter Paul Rubens, o artista famoso e criador de desenhos e obras excepcionais do estilo Barroco: Estampas avulsas também foram fartamente publicadas e comercializadas, entre as quais se destacam as gravadas por Rubens, que, entre 1613 e 1637, trabalhou como ilustrador para Moretus. Produzidas com técnica apurada, em um total de 650 exemplares realizados pela Plantin-Moretus, a circulação dessas gravuras contribuiu para a difusão de diversos estilos de imagens para muito além dos Países Baixos meridionais – como então se denominava a Bélgica (FURTADO; KANTOR in THOMAS, 2014, p. 10).

Os impressos antuerpianos não se destacaram apenas por seu conteúdo, mas por sua apresentação, que correspondia à transformação de uma indústria que visava aos objetos artísticos de luxo, já nos anos de Jan I Moretus, a oficina especializou-se na produção de livros preciosos. Uma tendência que, segundo Francine de Nave (In Ibibem, 2014, p. 46) alcançou seu ponto mais alto com Balthasar I Moretus, que dedicava maior importância à qualidade tipográfica dos impressos e à apresentação dos textos com as gravuras. A autora destaca que, entre os anos de 1613 a 1637, Rubens desenhou os esboços para os frontispícios e gravuras das edições

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da oficina e a colaboração entre Balthasar Moretus e o artista assentaram as bases do livro barroco, copiado por toda a Europa por suas ilustrações, impressão refinada, formato monumental e acabamento luxuoso, fazendo jus ao símbolo da empresa com o compasso de ouro. A reputação internacional da oficina e sua incomparável qualidade na produção de livros era reconhecida com visitas de poderosas figuras, como Marie de Medicis em 1631, a rainha Cristina da Suécia em 1654 e um número de príncipes e princesas italianos e poloneses. Contudo, a segunda metade do século XVII marcou o início de um período de declínio para a impressão na Antuérpia, no entanto, a oficina de Moretus manteve sua posição como a maior de Flandres. Seus livros, principalmente religiosos, foram produzidos para o mercado espanhol e também exportados para lugares tão distantes como a China, consolidando o comércio internacional de exportação dos livros, principalmente para as colônias espanholas do Novo Mundo. Ao lado do compasso estava a bússola, e “o esboço da globalização” das mercadorias viria a ser também, principalmente, a “globalização das mentes”. A feroz colonização dos continentes Americano, Asiático, Africano e Índico era camuflado pela dinâmica de intercâmbio intelectual que aconteceria entre o Velho e o Novo Mundo. Segundo Renate Pieper (In THOMAS, 2014, p. 309), o ano de 1522 marcou uma mudança profunda na participação dos impressores flamengos no processo de difusão de notícias relacionadas às “colonizações”. No ensaio A América nos impressos europeus, a autora ressalta que a partir desse ano, começaram a ser editados vários escritos por ano que guardavam relação com as Américas: Em 1519, o duque de Borgonha, Carlos I da Espanha, foi escolhido imperador do Sacro Império com o nome de Carlos V. A isso se somava a conquista do império asteca realizada por Hernán Cortés entre 1519 e 1521. No final do verão de 1520, foram exibidos publicamente na cidade de Bruxelas os ricos presentes que Hernán Cortés havia destinado ao rei. Tudo isso conduziu a um aumento da atividade tipográfica flamenga de textos relacionados à Américas. (PIEPER, in THOMAS, 2014, p. 309)

Pieper aponta que, no mesmo ano de 1522, foi reimpresso Mundus Novus, um relato de viagem realizada havia vinte anos pelo navegante florentino Américo Vespúcio, cuja carta de oito páginas e sem ilustrações contava a expedição de reconhecimento da costa brasileira em 1502, endereçada a Gonçalo Coelho, como pedido do rei de Portugal. A partir de 1434, no momento em que os navegantes haviam entendido que não cairiam no

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“abismo do fim do mundo” e nem iriam ser “queimados vivos pelo calor da linha do Equador”75, os aspectos da vida do novo continente estavam em todos os debates políticos europeus da época, assim como também nos impressos flamengos que incluíam referências ao Novo Mundo. As impressões sobre o novo atendiam a uma demanda de interesses religiosos e políticos, onde a América era a notícia (expedições de Colombo, Vespúcio, Cortés). No entanto, nem todas as descobertas dos navegadores tinham como objetivo a divulgação. Pelo contrário, Iris Kantor (In THOMAS, 2014, p. 442) assinala que as coroas ibéricas procuravam restringir a impressão dos mapas, considerando que as imagens cartográficas, como instrumento da política imperial, constituíam um segredo de Estado. Se por um lado, destinar às prensas a divulgação de informações era arriscado, pelo lado dos tipógrafos, era importante despertar o interesse do público para assegurar as vendas e manter os níveis de produção, analisa Renate Pieper: Entre 1570 e 1585, a produção de impressos flamengos que incluía referências ao Novo Mundo alcançou seu ponto mais alto. Desde 1544, quando as guerras civis peruanas terminaram, as oficinas flamengas ofereceram um quarto de todas as crônicas americanas. A Oficina de Plantin aproveitou a conjuntura e se converteu em uma das principais editoras no que se refere à difusão de impressos com referências americanas. Junto com os trabalho cartográficos, editava as obras dos insignes botânicos Carolo Clusius e Nicolás Monardes. (PIEPER, in THOMAS, 2014, p. 312)

Assim, os livros e as gravuras divulgavam as “novas” civilizações, onde até então só haviam chegado exploradores, colonizadores e missionários. Um mundo exótico repleto de “descrições geográficas, crônicas de viagem, estudos antropológicos, livros de roupas e herbários” que gozavam de um prestígio especial na Europa e permitiam aos eruditos descobrir as explorações dos territórios ultramar sem a necessidade de trocar suas confortáveis mesas de trabalho pelos porões de caravelas, “e às famílias e seus criados reunir-se nas longas noites de inverno, iluminados só pelas brasas da fogueira, para ‘viajar sobre papel’ e seguir o rastro dos aventureiros” (THOMAS; NAVE; STOLS, 2014, p. 15). A escrita ultrapassa as fronteiras geográficas continentais para impor ideias imperiais e a escravização de habitantes nativos, onde as prensas flamengas forneciam os livros para sustentar a força do Império e da Igreja 75 HALLEWELL, 2012, p. 33.

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Católica. A evangelização das colônias em missões religiosas, sob comando real, se tornava uma realidade sólida na consolidação dos novos impérios. Não obstante, a Oficina Plantiniana obtinha o monopólio de impressão e venda de obras litúrgicas a serem exportadas para a Espanha em suas novas colônias, enviando milhares de obras religiosas para o mercado ibero-americano a partir de 1572 (THOMAS; NAVE; STOLS, 2014, p. 17). Ao mesmo tempo em que as obras da casa Plantin-Moretus eram intercambiadas, as coroas assumiam os gastos com a implantação de novas tipografias nas colônias recém-exploradas. Desse modo, materiais e as técnicas flamengas foram exportadas para as colônias e a Oficina Plantiniana converteu-se na principal referência para as tipografias americanas, constituindo um magnífico exemplo a edição paraguaia de 1705 do livro De la Diferencia entre lo Temporal y lo Eterno, de Joannes Eusebius Nieremberg, que seguiu a edição antuerpiana de 1684, ricamente ilustrada por Gaspar Bouttats. As gravuras da edição americana foram realizadas pelo pintor indígena Joan Yapari, que copiou as lâminas originais do mestre flamengo. Essas relações foram mantidas para além da contenda sucessória espanhola: até bem avançado o século XVIII, existiram “prensas plantinianas” na capital mexicana e em Puebla e, no início do século XVIII, Carlos Habré, originário de Gante, criou a primeira oficina tipográfica em Cuba. (THOMAS; NAVE; STOLS, 2014, pp. 19-20)

Segundo Francine de Nave (In Ibidem, p. 41), a qualidade da produção plantiniana encontrou muitos seguidores na Península Ibérica, “de modo que o selo da Oficina Plantiniana converte-se num distintivo de qualidade”, na qual “encontramos referências no dramaturgo espanhol Félix Lope de Vega quando exalta as virtudes do ‘excelente Plantin’ em seu El Verdadero Amante”. Outra possível influência plantiniana é sugerida por Werner Thomas (2014, p. 115), quando nos anos de 1721 a 1735, Ignacio de Luna y Bohórquez e seus herdeiros dirigiram em Lima76 uma tipografia, cujas caixas de tipos possivelmente foram adquiridas em Antuérpia, e da mesma forma, na ocasião do monge agostiniano Matías de Escobar procurar, em sua Americana Thebaida (1729) – inédita até 1890 – um ponto de referência para as imitações dos tipos fabricados com pena indígena, e escolheu a cidade de Antuérpia, em vez de Lyon, Veneza ou Paris: “Desde que os índios aprenderam a escrever, fazem com as próprias 76 Implantação das tipografias no México, Lima e Peru. Cf: GRAVIER, Marina Garone.

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penas letras tão redondas, que não os supera a celebrada Antuérpia em suas louvadas tipografias”. Arquivados na Biblioteca Nacional Brasileira, alguns exemplares dos valiosos impressos de Plantin foram trazidos pela Real Biblioteca Portuguesa, e ao analisá-las, a documentarista Ana Virginia Pinheiro (In THOMAS, 2014) destaca a repetida aparição da alegoria da Inveja nas folhas de rosto ou em vinhetas dos impressos, no que constitui um desafio de interpretação para o leitor mais dedicado. Para ela, essa retórica, talvez explique a solidez do negócio da tipografia em pleno século XVI, numa época conturbada onde a arte era marcada pela introspecção. Em seu olhar apurado, ressalta a primazia pelos registros imagéticos e imagens textuais, ao oferecer um discurso não tão evidente quanto ao livro que ilustra. Segundo Ana Virginia, há uma retórica para além da simbólica na imagem e no texto imagético da tipografia plantiniana, que emerge com a análise bibliológica, com o exame da materialidade do impresso. O resgate de sinais77 que não deixaram memória expressa que foram lançados, talvez, na expectativa de que o sensível levasse ao inteligível e à consideração de verdades possíveis.

Uma expectativa que levou a produção tipográfica a impulsionar a perspectiva da colonização do imaginário78, onde os súditos da monarquia hispânica que se aproveitavam dos ritos e da ciência pré-colombianos (botânica e a herbologia) e nutriam-se de antigos textos indígenas medicinais, eram os mesmos que ilustravam as tradições, regiões e paisagens indígenas latino americanas, inspirando-se nos tratados históricos-políticos da Antiguidade para destacar determinados marcos do passado pré-colombiano e compará-los à história clássica europeia79.

77 Sinais que se evidenciam nas pesquisas de Alex Bohrer e Camila Fernanda Guimarães Santiago sobre a influência das representações iconográficas na obra Rubens, na circulação e uso dos missais e gravuras religiosas da Oficina Plantiniana no Barroco Mineiro. (In THOMAS, 2014) 78 GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 79 Cf: THOMAS; NAVE; STOLS, 2014, p 16.

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A TIPOGRAFIA NO BRASIL

A tipografia no Brasil inicia juntamente com sua proibição. Ana Virginia Pinheiro sublinha que a instalação da Inquisição em Portugal e a organização do primeiro catálogo de livros proibidos pelo cardeal infante d. Henrique (nunca publicado), coincide com a implantação da Oficina Plantiniana, na Antuérpia no ano de 1547 (In THOMAS, 2014, p. 369). A escrita sempre foi sinônimo de ameaça, uma vez que a expressão e o transporte de ideias semeia o novo, e quanto maior a produtividade e o alcance da produção tipográfica, maior é a sua desconfiança. Em 1501, no primeiro ano do novo século, as autoridades despertavam para o perigo desse novo meio mecânico, com a restrição e difusão das heresias protestantes, mas em Portugal, de forma mais lenta, começaria a restrição somente em 1540. Ademais, haviam boas razões para que o governo não quisesse revelar aos estrangeiros a riqueza de suas novas explorações, e era preciso, portanto, assegurar o controle político. Desse modo, o Brasil, enquanto colônia de Portugal, foi um dos últimos países americanos a utilizar a prensa com tipos móveis, impedido de toda e qualquer atividade impressa em território brasileiro, facilitando a circulação e comércio de livros provenientes da Europa, muitos deles da Oficina Plantiniana, ou então de outros impressores flamengos que acabaram instalando-se na Península Ibérica ou em suas colônias. Dentre eles estava Pieter van Craesbeeck, antigo discípulo de Plantin, que criou a Oficina Craesbeeckiana em Lisboa, em 1590. A introdução dos livros tipográficos no Brasil se deve muito ao processo de evangelização jesuíta, uma vez que os portugueses tinham pressa em colonizar as terras brasileiras contra as invasões francesas, holandesas e inglesas, apelando à cooperações

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italianas e, principalmente, flamengas. Segundo Eddy Stols (In THOMAS, p. 93), os jesuítas portugueses, implantaram muito cedo suas missões no Brasil e aceitaram vários recrutas flamengos, como Jacobo Rolandus “um protestante holandês que fugiu da família para tornar-se jesuíta em Antuérpia”, que incorporou-se à missão entre os índios. Stols ressalta que desde o início da missão brasileira, os jesuítas procuravam prover-se de livros em Flandres pela via de Lisboa, muito em decorrência de “alguns jesuítas portugueses que, cativos dos holandeses na Bahia em 1624, ou em Pernambuco nos anos de 1630, acabam libertados e na volta aproveitam a passagem por Antuérpia para adquirir livros ou estampas” (Ibidem, p. 89). Laurence Hallewell (2012, p. 49) assinala que, em lugares onde os povos indígenas não se encontravam em grandes grupos étnicos80, a aculturação europeia não precisava de sofisticados equipamentos, e esperavase dos missionários o ensinamento oral. E foi o que aconteceu no Brasil, uma vez que os missionários usavam a língua escrita somente para si mesmos, cujo livro A Doutrina Cristã na Lingoa Brasilica, um catecismo em tupi do século XVI, foi o primeiro manuscrito latino-americano a ser exposto numa biblioteca inglesa (Biblioteca Bodleiana da Universidade de Oxford), em 1610. 80 “Quando os espanhóis chegaram ao Novo Mundo, a civilização mais avançada que encontraram foi a dos astecas. Eram alfabetizados e tinham uma história e uma literatura registradas em seus próprios códices nahuátl. Tenochtitlán era uma gigantesca metrópole, cujo tamanho e arquitetura surpreenderam os conquistadores. Com 250 mil habitantes, era um pouco mais populosa do que a Paris da época. As doenças europeias e a exploração espanhola dizimaram os indígenas, e hoje o local é ocupado pela Cidade do México. Tenochtitlán começou a encolher de forma drástica [...] Cortez tomou a cidade em 1521 e depois de apenas doze anos vamos encontrar seu novo bispo Juan de Zumárraga sugerindo ao imperador Carlos V que seria muito útil e conveniente para o México ter um prelo e uma fábrica de papel e os trabalhadores necessários. Conseguiu o impressor mas não a fábrica. Em maio de 1538 escreveria queixando-se de que “poco se adelanta en lo de la imprenta por carestía de papel, que esto dificulta muchas obras que acá están aparejadas”. José Toribio Medina, bibliógrafo chileno do século XIX, defende que o impressor era Estebán Marín e que imprimiu a Escala Espiritual de São João Clímaco, e em 1533 a Doctrina de Turíbio de Motolina e o catecismo mexicano de Juan de Ribas, ambos em 1537. A opinião é contestada, uma vez que a maioria dos livros latino-americanos da época colonial foram impreessos para uso, e não para a posteridade” (HALLEWELL, 2012, p. 50) Juan Cromberger, em Sevilha imprimiu um catecismo em nahuátl e, em 1522, missionários franciscanos lhe haviam feito uma encomenda de duas mil cartilhas de ensenãr a ler. Juan concordou em fazer a impressão, mas decidiu que seria melhor que o livro fosse composto e impresso no México, onde se falava a língua. Assim, conseguiu da coroa o monopólio para sua empresa e enviou para lá seu assistente Juan Pablos, que imprimiu para os Crombergers de 1539 até 1547. Pablos se tornou mestre e imprimiu 37 títulos que, antes de falecer, passou o negócio para seu cunhado, o francês Pierre Charte, hispanizado como Pedro Ocharte. Em 1551 a Universidade do México cria a própria demanda de livros de medicina e ciências, e a partir de 1559 a Cidade do México já tinha dois prelos, e o fundidor de tipos de Ocharte, Antonio de Espinosa, recebia a permissão para também imprimir por conta pópria. “Qua-

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No Paraguai foi diferente. Lá, em 1700 os jesuítas organizaram os aldeamentos indígenas de forma teocrática separada, em economia e governo quase autossuficientes, administrados diretamente pela Companhia de Jesus. Formavam trinta vilas indígenas cuidadosamente planejadas (Missões), com escolas frequentadas por todas as crianças. Contudo, o Paraguai não teve seu sistema de impressão porque os padres, embora viessem procurando um impressor desde 1633, não conseguiram encontrar alguém que quisesse se “enterrar” na selva81. Se um prelo foi instalado não se sabe com precisão, mas Hallewell sublinha que há registros de que os padres desejavam seu próprio prelo, desde 1633: Na obra Printing in Colonial Spanish America82, Lawrence Thompson sugere que, por não terem conseguido recrutar um impressor, os padres ensinaram seus índios a fazer livros por xilogravura, método muito utilizado no século XV na Europa, e empregado para textos populares simples. Imaginamos que os padres brasileiros tenham feito o mesmo: a tradição das ilustrações em xilograura na chamada “literatura de cordel”, no Nordeste brasileiro, poderia, assim, ser uma herança da habi-

tro prelos e uma loja de livros mostram, em 1570, quanto a Cidade do México era incomum em comparação com o restante das Américas” (Op. Cit., p. 51). Por volta de 1560, o piemontês Antonio Ricciardi (Antonio Ricardo) chega ao México para trabalhar com Ocharte. Mais tarde em 1581, a convite da Companhia de Jesus, muda-se mais para o sul, em Lima. “Nessa cidade ficava a corte vice-real, a partir da qual a Espanha administrava as terras de outra grande civilização, a dos Incas. O quíchua não era escrito, mas as mensagens necessárias para governar o império dos incas, um território de mais de três mil quilômetros, eram transmitidas por um elaborado sistema de nós mnemônicos numa corda, os quipos, enquanto seu minucioso registro histórico residia nas memórias dos bardos muito bem treinados e estimados. Com o decreto em 1551 para aculturar os filhos da elite quíchua na Universidade de San Marcos, instituída Universiade do México, o primeiro livro impresso por Ricardo no Peru foi A Doctrina Christiana y Catecismo para Instrucción de los Indios, em 1584. O qual teve que interromper a impressão que já estava no prelo para publicar às pressas outro decreto: Pragmático sobre los Diez Días del Año, que devia informar ao público a mudança para o calendário gregoriano”. A parte meridional do Império Inca não falava o quíchua, e sim o aimará. Em 1610, os jesuítas instalaram um prelo temporário em seu posto missionário de Juli, na margem oriental do lago Titicaca. Funcionando por apenas dois anos, imprimiu livros em aimará que foram usados na catequização dos indígenas. Juli estava localizada dentro da arquidiocese de La Paz, a região que mais tarde seria a República da Bolívia, se a fronteira com o Peru tivesse sido traçada mais para o oeste, a apenas vinte quilômetros da região. Na Guatelamala, o primeiro prelo e impressor foram levados pelo arcebispo Payo Enríques de Rivera da cidade do México, em 1660. (Op. Cit., p. 52) 81 Mais tarde, os territórios das missões jesuíticas no Paraguai foram incorporados à Argentina e ao Brasil. 82 Woodbridge, Hensley Charles; Thompson, Lawrence S. Printing in colonial Spanish Americ. Troy, N.Y.: Whitston Pub. Co., 1976.

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lidade ensinada aos índios locais pelos missionários da Companhia. (HALLEWELL, 2012, p. 78)

No Império português, os jesuítas tiveram vasta atuação na educação até mais do que fizeram nos domínios da Espanha, e além disso, tiveram importante papel na libertação do domínio espanhol em 1640, mas como eram oposicionistas à escravidão dos indígenas, também geravam hostilidade dos colonos e dos políticos que suspeitavam do seu enriquecimento. O prestígio conquistado nas obras missionárias se evaporava no começo do século XVII, segundo Hallewell (Ibidem, p. 79). Por terem origem espanhola, as suspeitas cresceram assim como a hostilidade, até que a administração do Marquês de Pombal, contra a Companhias, acabou por destruir o movimento, expulsando todas as Companhias em 1759, em todos os territórios portugueses. Em 1767, os jesuítas missionários foram expulsos, inclusive do Paraguai e em toda a América Espanhola (Ibidem, p. 80)83. Para os estadistas, as colônias deveriam apenas suprir as necessidades materiais da Europa e com as riquezas brasileiras sendo extraídas, a cobiça em prol da prosperidade econômica tomava a prioridade da evangelização. Uma vez colonizado, agora era preciso possuir e explorar. Quando os franceses, em nada constrangidos pelo Tratado de Tordesilhas, ameaçaram romper o monopólio tão lucrativo, Portugal precisou impor sua presença pemanente por todo o imenso litoral de sua colônia. Para estimular a rápida colonização, desenvolveu-se uma economia agrícola, primeiramente do açucar, artigo de luxo trazido dos Açores, e depois do tabaco e do algodão. Nesse primeiro século e meio de colônia, a administração do Brasil era tão rudimentar e a poupulação tão pequena e espalhada por uma área tão vasta que a indústria da impressão não era necessária. (HALLEWELL, 2012, p. 74)

De acordo com Eddy Stols (In THOMAS, 2014, p. 93), à parte das instituições religiosas, o Brasil colonial tinha a fama de mostrar pouco interesse em livros. Segundo um relatório da Companhia Holandesa das Ín83 Os jesuítas foram responsáveis pela instalação de prelos em Nova Granada, atual Colômbia; Bogotá em 1738, Santiago no Chile, em 1748; no Río de la Plata (atual Argentina) e em Córdoba em 1758. Todas as cidades tinham uma universidade. De acordo com Laurence Hallewell (2014, p. 78), os colégios dos jesuítas no Brasil foram renomados por suas excelentes buibliotecas e, segundo a História da Companhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite, a biblioteca do Colégio de Santo Inácio, no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, possuía “alguns trabalhos impressos na própria casa por volta de 1724”.

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dias Ocidentais de 1638, “os portugueses levariam lá uma vida muito sóbria em matéria de decoração da casa. Entretanto, encontram-se muitas indicações da posse de livros por leigos, até mesmo de uma boa biblioteca valorada em 200 mil réis [...]”84. Segundo a cronologia histórica evidenciada na pesquisa de Hallewell (2012, p. 81), a primeira tentativa de introduzir a impressão no Brasil com provas documentadas não foi implementada pelos portugueses, e sim pelos holandeses no período entre 1630 a 1655, quando ocuparam o Nordeste brasileiro. E o motivo primordial para tal exigência não era a literária, e sim a burocrática85. Hallewell descreve que após diversas negociações entre Pernambuco e Holanda, um tipógrafo holandês chamado Pieter Janszoon foi escolhido para encarregar-se da impressão no Recife. No entanto, o impressor teve a infelicidade de falecer antes de iniciar seu trabalho no dia três de agosto de 1643. Ainda segundo Hallewell, os registros desse fato indicam que o impressor aportou na colônia, porém morreu logo em seguida, não havendo registros da causa nem indicações de alguma doença tropical. Por isso, permanece-se a pergunta: o que aconteceu com seu prelo? Ninguém o teria feito funcionar? Dois anos mais tarde, a Companhia das Índias informou que ainda estava à procura de novo impressor, mas que até aquela data, não havia encontrado quem se dispusesse a empreender tal aventura. Seria (imagina-se) por causa do clima, da precariedade da posição holandesa no Brasil, ou simplesmente da falta de efetivo interesse comercial? Nessa altura, a pessoa que, segundo parece, mais se empenhou para instalar um prelo na colônia foi o então administrador da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, Johan Maurits (Maurício de Nassau), mas que, em maio de 1643 partiu e os holandeses sofreram tão severas pressões militares que não tinham tempo para se preocupar com outros problemas senão as outras invasões europeias em terras 84 Um registro que vai de encontro à pesquisa de Hallewell (2014, pp. 74-75), segundo o qual “os colonos investiam seus capitais em escravos e nas aventuras do comércio e não em móveis, pinturas ou em livros!” Ademais, as mulheres viviam em condição de servidão servis e analfabetas, mesmo nas classes superiores, e só aprendiam a ler quando se tornavam freiras. 85 De acordo com Hallewell, em 1640 os holandeses possuíam um sistema administrativo suficientemente sofisticado que precisava ser aplicado na então “Colônia Sul Americana”, e uma carta do Supremo Conselho holandês do Brasil com data de 28 de fevereiro de 1642 dirigia-se aos responsáveis pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais solicitando o envio de um prelo para que as ordens oficiais recebessem uma “maior consideração”. Assim o conselho seria poupado do estafante trabalho de copiar tudo o que fosse emitido em papel.

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brasileiras (HALLEWELL, 2012, p. 82).

Evidências da administração do Brasil por Portugal mostram uma situação de morosidade e de paranoia com o risco dos funcionários locais adquirirem algum grau de independência e “quando o governador de Pernambuco em 1703 e do Rio de Janeiro em 1747 ousaram instalar uma oficina de impressão, os dois receberam ordens expressas de fechá-las, assim que Lisboa tomou conhecimento de sua existência”, assinala Hallewell (Ibidem, p. 55). Em busca de ouro e diamantes em Minas Geais na década de 1690, a imigração portuguesa se multiplicara e a população da então colônia do século XVIII chegava a três milhões de habitantes86. E durante todo esse tempo, o leitor dependia dos livros importados e do mesmo modo, o autor do Novo Mundo tinha que ser editado em Lisboa, uma situação que se mantinha por motivos de controle, mas também pelos custos mais baixos da matéria-prima, e da mão-de-obra especializada. A própria comunicação entre as colônias e a Europa era melhor do que entre as colônias entre si. A rigidez de controle era constante com o aumento dos intelectuais lendo obras políticas e lançando bases para uma Revolução. As autoridades tentavam impedir a contaminação, mesmo na alfândega, e no comércio oficial saía o açucar e entravam livros, a circulação de obras no mercado clandestino também era alta, “eram muitas vezes, publicações baratas nas mãos de ambulantes, como folhetos de feira, ou chapbooks ingleses, ou livre de colportage francês, a literatura de cordel espanhola e o livro cego e o folheto de feira portugueses, todos derivam dos métodos de distribuição”87. Outros livros chegavam ilegalmente através dos jovens estudantes enviados à Europa para estudarem em cursos superiores que, no retorno à pátria, traziam muitos desses itens nas bagagens pessoais. Contudo, há de fato registros em bibliografias contemporâneas da existência de uma oficina de impressão clandestina no Rio de Janeiro em 1747. O corajoso homem que arriscou driblar as ordens de Portugal foi Isidoro da Fonseca, um dos principais tipógrafos de Lisboa. Nascido no Rio de Janeiro em 170588, foi para Lisboa ainda menino e lá estudou e se 86 “Afogando o guarani num dilúvio de portugueses monoglotas. Cresceu tanto a riqueza que o governo se dispõs a enfretar uma onerosa guerra com a Espanha nas colônias que acabou por estender o Brasil até a Prata e abriu caminho para o povoamento de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Aumento da população, crescimento das cidades, criação e um estilo de vida urbano” (HALLEWELL, 2012, p. 84). 87 (HALLEWELL, 2012, p. 47). Chapbooks de entretenimento em versões para os pobres de contos criados originalmente para a elite.

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profissionalizou como tipógrafo. Em Lisboa, imprimiu obras importantes como a Bibliotheca Lusitana, de Barbosa Machado, tida como a primeira grande obra de referência bibliográfica editada em Portugal, e imprimiu três obras do dramaturgo Antônio José da Silva, conhecido como “o Judeu” e fôra queimado pelo Santo Ofício em Portugal. Há indícios de que esse fato suscitou a vinda do tipógrafo ao Brasil, e quando chegou, livre de perseguições, esperou ter sorte melhor, porém encontrou uma colônia atrasada, com escassez de materiais, população dispersa, transporte precário, artigos importados custosos, escassez de trabalhadores qualificados e analfabetos, e constatou que jamais um trabalho impresso naquele local poderia competir com os preços da Europa. Por isso, é “difícil de compreender por que um impressor tão importante e capaz como Isidoro tivesse desejado se fixar numa colônia com perspectivas tão reduzidas para o comércio”, analisa Hallewell (2012, p. 87), num lugar que até pouco tempo era um posto de defesa pequeno e pouco significativo culturalmente. Segundo o pesquisador, na metade do século, o único centro de cultura urbana era Vila Rica (atual Outo Preto), onde os registros de seu teatro são testemunhas da força de seus contatos culturais com a Europa, com alto grau de maturidade intelectual e política, revelados posteriormente em movimentos de libertação. Ademais, o Rio de Janeiro89 era uma cidade pouco atraente para um tipógrafo, se comparado às outras cidades do território, como Salvador e Recife. Porém, acredita-se que a opção pelo litoral se deu em virtude da dificuldade de transporte no interior. O convite de sua vinda veio do então governador do Rio e de Minas, Gomes Freire de Andrade90, um estimulador da vida intelectual na cidade, incentivando as artes. No Brasil, Isidoro imprimiu livros sobre artilharia, e com plena consciência de que as autoridades de Lisboa não aprovariam suas publicações, produzia livros com colofons falsos, constituindo um exercício para os bibliófilos. De sua oficina no Rio, nos dois anos de duração, saíram duas obras que não fizeram questão de disfarçar a origem. São oito exemplares exis-

88 Nasceu numa família de judeus convertidos do Recife holandês e foi para Lisboa em 1713 acompanhando a mãe e parentes que foram levados a fim de responderem acusações de renúncia religiosa. 89 A cidade do Rio de Janeiro se tornou o principal porto de exportação de minerais e importava mercadorias em troca, e com a crescente importância econômica, se tornou sede administrativa somente em 1763. 90 “Ajudou o jovem José Basílio da Gama, mineiro que fôra ao Rio estudar no colégio dos Jesuítas e teve o auxílio para ir a Lisboa, onde publicou seu poema épico O Uraguay, que narra a repressão pelo governo da rebelião indígena, instigada pelos jesuítas, na Colônia do Sacramento” (HALLEWELL, 2012, p. 89).

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tentes da primeira publicação91 de 1747, cujo colofon está impresso como: Rio de Janeiro, Na segunda Officina de Antônio Isidoro da Fonseca. Anno de M.DCC.XLVII. Com essa publicação, contava certamente com a permissão do Bispo. Outro trabalho, com certeza feito por ele no Rio de Janeiro é um volume de grande formato 80 x 70cm: Hocesta Conclusiones Metaphysicae de ente Reali, Praeside R. G. M. Francisco de Faria... Flumine Januarii. Ex Secunda Typographia Antonii Isidori Da Fonseca Anno Domini MDCCXLVII. Cum Facultate Superiore. Trata-se do resumo de tese defendida no Colégio dos Jesuítas (Morro do Castelo), onde Faria era professor de filosofia. O trabalho foi impresso em seda, e não revela “apenas a habilidade do tipógrafo em cuidar de uma intrincada diagramação tipográfica, mas também a variedade de corpos e famílias de tipos que trouxera de Lisboa”, segundo Hallewell (2012, p. 91). Contudo, assim que a notícia de sua oficina de impressão chegou a Lisboa, as autoridades ordenaram seu fechamento (e derretimento), e que o tipógrafo fosse enviado de volta a Lisboa. De volta à capital portuguesa, Isidoro requereu, em 1750, sua volta para o Brasil a fim de instalar uma tipografia de modo oficial. Mas o desfecho foi lacônico, segundo Rubens Borba de Moraes (2005, p. 155): “Excusado. A licença não lhe seria dada”92. Nenhuma outra tipografia existiu no Brasil até a mudança do governo português para o Rio de Janeiro, assegura Borba de Moraes (Ibidem), e tudo começou, assinala Hallewell, dois anos e meio após Trafalgar, quando navios da armada do general britânico Horatio Nelson escoltaram a primeira tipografia oficial do Brasil pelo Atlântico até o Rio de Janeiro, e “sem uma armada vitoriosa para escoltá-los, os Braganças dificilmente teriam pensado em partir para o Brasil, transformando, com isso, a colônia em metrópole e dando-lhe tanto a verdadeira independência como a unidade política” (2012, p. 29). E essa mudança política exigia a instalação de uma imprensa para a publicação de todos os atos oficiais impostos pela família real portuguesa. Fundou-se então, em 13 de maio de 1808, a Im91 Relação da Entrada que Fez o Excellentíssimo e Reverendissimo Senhor D. F. Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro, em o Primeiro Dia Deste Presente Anno de 1747, Havendo Sido Seis Annos Bispo do Reyno de Angola, donde por Nomiação de Sua Magestade, e Bulla Pontificia, Foy Promovido para esta Diocese. Sua primeira oficina foi, possivelmente, em Lisboa. Contudo, as pesquisas não revelam de que maneira ele trouxe seu maquinário tipográfico para o Brasil. 92 O destino de Isidoro da Fonseca é incerto. De acordo com Rubens Borba de Moraes, não se soube mais do tipógrafo depois de 1750, porém na pesquisa de Laurence Hallewell, o impressor teria sido acusado do mesmo crime de sua mãe em 1737, e “após prolongada investigação foi garroteado e seu corpo queimado em praça pública num dos últimos autos de fé, em 19 de outubro de 1739” (2012, p. 86).

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prensa Régia: a tipografia manual sendo introduzida oficialmente no país, com um atraso tecnológico de trezentos anos em relação à Europa, onde o Brasil foi um dos últimos países americanos a utilizar a prensa com tipos móveis, impedido enquanto colônia de Portugal. Mesmo após a sua implementação, tudo o que se publicava era submetido à censura prévia. A Bahia, contudo, continuava a ser importante centro de desenvolvimento na região Norte do país, e lugar estratégico e de apoio ao rei. Manuel da Silva Serva, um comerciante em Lisboa que emigrou para Salvador em 1797, passara a trabalhar como vendedor de móveis, cristais, lustres e livros que importava da Europa. Em 1809, pediu permissão a D. João para ir à Inglaterra comprar um prelo para a Bahia, e em 1810 apresentou um pedido formal para começar a imprimir com o auxílio de artesãos contratados em Lisboa. Então, em 1811, D. João autoriza Silva Serva a estabelecer a primeira tipografia na Bahia, sendo essas duas oficinas as únicas que funcionaram no país até as vésperas da Independência em 1822, e “dali em diante, a imprensa espalhou-se pelo país inteiro” (MORAES, 2005, p. 155). Enquanto os tipos e os prelos começavam a atravessar o Oceano Atlântico em condição legalizada, a Europa se preparava para uma nova fase onde as máquinas de impressão se tornariam elétricas e cada vez mais mecânicas, rumo a uma nova Revolução.

O FIM DA TIPOGRAFIA

Apesar da renovação incipiente no primeiro trimestre do século XIX, a situação dos Moretus se deteriorava. A família não conseguiu acompanhar a modernização das novas técnicas de impressão, em especial o de-

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senvolvimento da prensas mecânicas e rotativas, e Edward Moretus (18041880) o último descendente editor da família, decidiu fechar as portas da oficina em 1866, após a última publicação de Horae diurnae S. Francisci. Em 1871, ele se tornou o curador e colecionador do patrimônio familiar e a lenda Plantin-Moretus se encerra em 1873, quando negocia a venda do imóvel com todo o seu conteúdo para o governo belga e a cidade de Antuérpia ganha, em 1876, o Museu Plantin-Moretus93. Com o intenso aumento da demanda no mercado livreiro a partir do século XVIII, aos tipógrafos caberia, com frequência cada vez maior, somente o ofício de gerenciar, destinando o ofício para diferentes mãos e, consequentemente, às máquinas. Logo, a fragmentação do trabalho se concretizaria, de fato, em fins do século XIX. Desse modo, de 1450 até final do século XIX, o processo manual de impressão tipográfica se manteve intacto até sua mecanização pelo processo de impressão em Linotipia, em 1886. Após essa data, a tipografia manual foi desaparecendo e as máquinas manuais foram substituídas por máquinas mecânicas, um movimento que

93 Considerado Patrimônio Mundial da UNESCO a partir de 2005 pela sua importância educacional, científica e cultural, o Museu Tipográfico da família Plantin-Moretus é uma joia rara no coração da Antuérpia. O museu abriga uma enorme coleção de pinturas e tesouros históricos do século XVI, incluindo a oficina tipográfica mais antiga em condições de funcionamento, em boas condições de preservação. Prensas fabricadas em madeira no século XVI, sujeitas à decadência pela sua fragilidade, de modo que, encontrar uma prensa ainda em condições de funcionamento, é um tesouro raro fornecido pelo Museu Plantin-Moretus. Ao todo, o edifício histórico compreende a mansão e gráfica fundada por Plantin e, em seu estado atual compreende 35 ambientes, que vão desde o quarto dos proprietários, escritório de contabilidade, recinto dos copistas, dos ilustradores; uma biblioteca com mais de trinta mil volumes, até a oficina de fundição (no sótão do edifício) e a gráfica com tipos (alguns intocados), além das máquinas tipográficas. Pela homogeneidade da planta do edifício, é possível ter uma visão real das atividades da época. O visitante tem o privilégio de conhecer ambientes desde a sala de fundição de tipos, a sala de leitura de prova (onde os eruditos religiosos se sentavam na extremidade dos bancos de uma grande mesa de carvalho), até a sala de impressão. Todos, sem exceção, reproduzindo a precária iluminação de velas. Há também uma coleção de livros e gravuras; quartos luxuosos dos proprietários, paredes das salas decoradas em couro dourado (técnica utilizada com uma fina camada de ouro, onde se pode ver a textura de pele), pratarias e porcelanas. A mansão Plantin, construída em torno de um jardim central, explica por si só a sua importância na história da impressão, desde a data da construção do primeiro conjunto de oficinas gráficas até 1871, quando o último da linhagem de impressores. São tesouros acumulados ao longo de séculos, (Renascimento, Barroco e o Classicismo), que nos auxiliam a compreender a relação do trabalho com o comércio nestes períodos da história, além da perspectiva tecnológica à época, associando ideias e crenças, cujo reflexo está diretamente associado às obras literárias e artísticas de significado universal, provenientes desse paraíso da impressão, e confeccionadas pelas mãos dos homens que lá estiveram. Cf: ; . Acesso em 21.01.2016.

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decretava, assim, o fim da tipografia manual com fontes de chumbo94. Até então, a história da tipografia tinha uma percepção voltada apenas para o futuro. No século XIX, contudo, chegara a hora de refletir sobre o passado. O impressor norte-americano Theodore Low De Vinne95 foi um importante fomentador da impressão em fins do século XIX, e como autor acadêmico sobre a tipografia, é referência mundial em publicações consideradas as mais importantes de sua época. Em 1888, publicou em Nova Iorque, A printer's paradise, the Plantin-Moretus Museum at Antwerp, cuja obra é uma narração autobiográfica de sua visita ao referido Museu. O autor e tipógrafo descreve, com precisão de detalhes, sua experiência como visitante contemplativo da memória tipográfica secular ao mesmo tempo em que reflete o peso melancólico do homem industrial do século XIX: The Modern printing-office is not at all picturesque. Whether it be old, with grimy handpresses and dingy types, or new, with huge iron machines and long lanes of cases and stones, it does not invite the artistic pencil. Without doubt the cradle of books, but can one see any poetry about the cradle? The eye is confused with strange sights; the ear is jarred with harsh noise; the air itself is heavy with odors of ink and oil and wet paper. Nor does the imagination expand in the office of the manager, in which the prominent objects are always chairs and desks, and a litter of ragged papers and well-thumbed books – all prosaic and factory-like. Was it always so? No one knows of the interior of Gutenberg's office in the Zum Jungen house at Mayence, for no artist in his day or ours has found in it any beauty to be preserved; but we do know that this birthplace of a great art is now a beer-shop, in which for a few pfennigs one may get a refreshment for the body not to be had for the mind. The fate that fell on Gutenberg's office has fallen on the offices of Aldus and the Stephens and the Elzevirs. Not a vestige of office fittings or working material remains.

94 Os tipos de chumbo eram (e ainda são) vendidos por quilo, e uma vez derretidos, os metais são separados, tornando-se matéria-prima lucrativa para outros mercados. 95 Theodore Low De Vinne (1828 - 1914). Autor de The Invention of Printing (1876); Historic Printing Types (1886); A printer's paradise, the Plantin-Moretus Museum at Antwerp (1888); Plain Types (1890); The Practice of Typography (1900); Correct Composition (1901); Title-Pages (1902); Modern Methods of Book Composition (1904); Notable Printers of Italy during the Fifteenth Century (1910). Imprimiu também a Century Magazine e o Century Dictionary, ambos considerados excelentes exemplos da tipografia da época. Também imprimiu os livros da editora Grolier Club.

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The Plantin-Moretus Museum at Antwerp is the only printing-house that has been left intact as the monument of a great departed business. […] How well it is worth seeing is proved by the steady tide of visitors that pass through it every day. Here is a printing-house that is not a factory – a house that has been as much the home of art and education as a place for work and trade. It is not an imposing structure. No public building in Antwerp is more unpretentious as to its exterior. Its dull front on the Marché du Vendredi gives but one indication of the treasures behind the walls. To him who can read it, the little tablet over the door is enough to tell the story; for it is the devoid of Christopher Plantin, “first printer to the king, and the king of printer's”. Here is the hand emerging from the clouds, holding a pair of compasses, one leg at rest and one describing a circle; here is the encircling legend of Labore et Constantia. Heraldry is overfull of devices that are as arrogant as they are absurd, but no one dare say that Plantin did not fairly earn the right to use the motto of labor and patience. (DE VINNE, 1888, pp. 225-226)

Theodore exalta o lugar como “um monumento intacto de um grande negócio que partiu”, ressaltando: “aqui não é uma fábrica, mas a casa da arte e educação, assim como um lugar para o trabalho e comércio”. O contraste com o seu universo tipográfico moderno em fins do século XIX é confrontado com a natureza mítica (e até mesmo surreal) do museu, numa espécie de” dialética do despertar”96. Descreve as tipografias modernas como “huge iron machines and long lanes of cases and stones”, e por isso, um local desprovido de sensibilidade artística, “can one see any poetry about the cradle?”, indaga o tipógrafo sobre qual seria o “berço dos livros”, cujo lugar definitivamente não era o de sua época, na qual a sua visão de gerente era alcançada somente por uma sala com objetos sem relevância com cadeiras, mesas, papeis e livros amontoados. Era uma fábrica de produção, e provavelmente imponente, em contraste visível com a fachada despretenciosa da Oficina Plantiniana. Quando o tipógrafo encerra sua narrativa, ao sair do museu se depara com o barulho da rua e a confusão da cidade do seu tempo:

96 BUCK-MORSS, Susan. O mundo de sonho da cultura de massa. In: Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Trad.: Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p. 312.

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The evening bell sounds its warning: it is time to go. At our request the obliging concierge gives us a few leaves from the grapevine, and we take our places in the outgoing procession. Out once more, in the steaming streets – out in the confused roar and clatter of modern city life. But the memory of the Museum is like that of the chimes of Antwerp's great cathedral – never to be forgotten. (DE VINNE, 1888, p. 245)

O ressoar do sino é a lembrança, para o moderno tipógrafo, de que o tempo é implacável. E quando compara o som entoando na igreja com a memória do museu, escreve sua última sensação: “para nunca ser esquecido”, numa espécie de compadecimento com o tempo, assim como na comparação de Benjamin, quando em viagem de trem, constata que “os trens envelhecem” (BENJAMIN, 1994, p. 25). A aura contida no processo que dantes era artístico, transforma-se em padronagem contínua e repetitiva, executada pelos operários das fábricas de impressão. Ou seja, a expressão individual vinculada ao gesto da palavra, cunhada desde o seu surgimento, cede lugar às exigências do mercado competitivo. O monumento transformado em sucata: Saídos do romantismo, ou hostis ao romantismo (ousaria dizer que nesse domínio os dois partidos se parecem), os historiadores nem sempre souberam ver que a obra de arte, ou de artesanato, não se resumia à bela invenção feita por um autor artista. Não se via que ela também reflete regras, códigos, costumes, encomendas. Em resumo, que o indivíduo – noção cara aos séculos XIX e XX, que pouco tem a ver com o espírito medieval – da época se exprimia certamente com sua sensibilidade pessoal, mas também e em primeiro lugar em função de um certo número de convenções próprias da época. E isto era significativo. A tradição romântica está ligada à beleza. O que se procura nesse caso é o homem, o gênio, sob regras impostas. Acaba-se, de saída, por diminuir a importância dessas regras, tomadas como tal. A imagem é um outro jeito de ser de um texto. (LE GOFF, 2008, p. 40)

O futuro de agora em diante se inscreve dentro de uma única perspectiva: a do progresso. História e progresso se confundirão, segundo Le Goff (Ibidem, p, 40), e esse seria o risco do século XIX, “um grande público a ser convencido pela vulgarização de produções em massa – tudo isso é uma ideia moderna. A questão não se situava assim na Idade Média”. O ob-

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jetivo de progresso aniquila a experiência do artesão. O significado de arte97 assume novos postulados a partir do século XVIII, onde as atividades manuais, ora ligadas a manifestações de ordem estética, eram feitas por artistas a partir da percepção, emoções e ideias (mantendo o mesmo conceito desde a Idade Média), são agora deslocadas à uma arte ligada à estética e a um sistema conectado aos salões de arte, fazendo com que o público se elitize ainda mais, e considerada uma faculdade para poucos. A dificuldade em definir a arte está em sua direta relação e dependência com a conjuntura histórica e cultural que a fazem surgir, subvertendo a sistemas e códigos estabelecidos. Arte e técnica se separam com as mudanças provenientes das condições de produção. Na era da reprodutibilidade técnica, segundo Benjamin, o que se atrofia na obra de arte é a sua aura (1993, p. 168), mesmo que, a imprensa represente apenas um caso especial, “embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo” (p. 166). Com a perda da experiência individual e a repetição contínua da produção, a aura da escrita, bem como suas formas e técnicas desconectam-se das artes. A presença da aura na repetição, é evidenciada por Benjamin no conceito de perda da experiência em Erfahrung (experiência coletiva), quando apresenta a problemática frente ao mundo capitalista moderno e seu fracasso; e a Erlebnis (experiência isolada) no conceito de experiência vivida dentro de uma reflexão sobre a necessidade de reconstrução do indivíduo, cujas condições de realização já não existem na sociedade moderna capitalista. No prefácio de Magia e Técnica, arte e politica (BENJAMIN, 97 Arte, termo proveniente do latim, que tem como significado técnica e habilidade. Como assinalado anteriormente, nas sociedades pré-industriais não havia um termo para designar arte. Por isso, deve-se ter em mente que a própria definição de arte é construção cultural variável e sem significados constantes. Até numa mesma época e numa mesma cultura podem haver múltiplas acepções do que é arte. Também é preciso lembrar que muito do que hoje chamamos de arte não era ou não é considerado como tal por outras culturas, e o inverso também é verdadeiro. A definição de arte variou muito de acordo com a época e a cultura: arte rupestre, artesanato, arte da ciência, da religião ou da tecnologia. Para os gregos, havia arte em se fazer esculturas, pinturas, sapatos ou navios. A arte é uma criação humana com valores estéticos, como beleza, equilíbrio, harmonia, que representam um conjunto de procedimentos utilizados para realizar um objeto. Para os povos primitivos, a arte, a religião e a ciência andavam juntas, e originalmente a arte poderia ser entendida como produto ou processo em que o conhecimento era usado para realizar determinadas habilidades. Hoje, o sistema das artes no Brasil, ainda abraça uma arte para poucos e infelizmente a isto se deve ao limitado acesso e incentivo à cultura no país. Em outros paises mais desenvolvidos, a cultura do artesanato está muito mais ligada às artes do que no Brasil. É comum a existência de museus onde o Craft and Arts estão conectados. As universidades também disponibilizam cursos de graduação e pós-graduação sem distinção em “craft and arts”. No Brasil, o artesanato ligou-se mais às tradições regionais de cada Estado.

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1994, p. 11), Jeanne Marie Gagnebin indica que, para a transmissão de uma experiência no sentido pleno em Walter Benjamin, uma das três condições para esta realização se faria na atividade artesanal, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial em seu caráter totalizante, contrapondo ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia serial. Gagnebin assinala que, segundo Benjamin, o ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, onde os movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria que transforma, tem uma relação profunda com a atividade narradora: já que esta também é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra. Em Notas sobre o gesto (2008, p. 11), Giorgio Agamben anuncia que no fim do século XIX, a burguesia ocidental perdera definitivamente os seus gestos, o distanciamento do gesto mais quotidiano cedera lugar à proliferação de tiques e maneirismos e, assim, o homem perderia sua musculatura e a finalidade motora. A partir do cinema, o filósofo exemplifica uma sociedade que perdeu seus gestos, mas que procura reapropriar-se do que perdeu. Ao mesmo tempo em que se registra a perda, o gesto se torna um destino. Em Agamben, os gestos perderam sua desenvoltura sob a ação de potências invisíveis. E quanto, afinal, podemos saber sobre uma oficina (ou fábrica) tipográfica no final do século XVIII? Robert Darnton em A Revolução Impressa (1996, p. 160) conjuga nesta obra todas as condições gráficas na Paris dos momentos que antecedem a Revolução Francesa. Assinala que “longe de ser um espaço ideal previsto nos tratados do ramo ou a utopia funcional ilustrada na Encyclopédie”, a gráfica em fins do século XVIII é toda apertada, barulhenta e encardida como os homens que nela trabalham, “cheira a tinta e mesmo a urina, às vezes usada para amaciar o couro dos entintadores. O ar é úmido. Nesse espaço de trabalho, a máquina não impõe seu ritmo aos homens, são cinco, dez, quinze ou vinte trabalhadores labutando, comendo, fazendo piadas, em seu próprio ritmo”. As gráficas eram instaladas em moradias mal adaptadas aos imperativos técnicos da produção: Junto com os prelos, um depósito para o papel, um tanque para umedecer o papel, um cubículo para o mestre, possivelmente uma sala de secagem (o papel era impresso úmido) e uma loja, porque os impressores eram em sua maioria também livreiros. Como a loja tinha que ser ao nível da rua, as prensas ficavam no andar superior. O espaço era disputadíssimo e o todo pouca semelhança tinha com a oficina ideal descrita nos manuais. (Darnton, 1996, p. 158)

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Segundo Darnton, a Corporação de Mestres Impressores – até então a única entidade que representava a profissão na França – cessara de funcionar em julho de 1790 e os mestres da arte de imprimir se encolheram em refúgios, observando gráficas que apareciam em cada esquina, quando homens sem qualidade resolvem ser impressores e trabalhadores sem condições se tornam os mestres. Um cenário entristecedor cuja prática generalizada era “usar aprendizes e trabalhadores não-qualificados como um modo de expandir a força de trabalho a um custo baixo, logrando assim reduzir o piso e a média dos salários” (Ibidem, p 172). O fim da tipografia manual coincide com o fim do romantismo europeu, movimento que migrou para o Realismo. Não há semelhança estética entre a atividade tipográfica manual e o movimento romântico, porém, ambos se coincidem no período de tempo cronológico de suas dissoluções (final do século XIX), apresentando assim, semelhanças históricas e conceituais. E portanto, na abordagem do filósofo Marco Aurélio Werle, sobre a questão do fim da arte em Hegel, tomo emprestado suas reflexões que se aplicam ao caso do fim da tipografia, uma vez que, segundo ele, a dialética é um caminho de ida e ao mesmo tempo um caminho de volta, não se restringindo a um dos pólos do movimento, mas no envolvimento em sua totalidade e, principalmente, “na negatividade interna que a impulsiona” (2011, p. 15). Werle ressalta que o tempo em Hegel não é linear e cronológico, mas dialético, “um légein que se transmite por meio de um outro, atravessando-o” (Ibidem, p. 49), e uma vez que nos apropriamos tanto do presente quanto do passado, numa relação dialética de forma e conteúdo (Ibidem, p. 42), o processo histórico permite a potencialidade do presente mediante uma abertura histórica para a arte de outras épocas98, gerando novas práticas artísticas relacionadas a um “uso” do passado, sem, 98 Um retorno do trabalho artesanal se configura em fins do século XIX. Em 1880 surge na Inglaterra o movimento Arts & Crafts, o qual exerceu uma profunda influência sobre uma nova geração de artistas/artesãos que se opuseram à produção em massa. Seu principal agente de mudança foi William Morris, que alicerçou muito de sua filosofia no ideal medieval e procurou colocar um fim às diferenças entre arte e artesanato. Com espírito colaborativo, tentou destacar o trabalho dos artesãos em meio aos milhares de trabalhadores e travou uma batalha contra o declínio da qualidade dos trabalhos banalizados resultantes da industrialização, e lutou contra a marginalização dos artesãos. Estabeleceu a Kelmscott Press, em 1889, e tomou como inspiração os livros publicados no século XVI. Segundo Anna Sigrídur Arnar (2011, p. 212), as reflexões gráficas de Morris sobre a forma do livro, em fins do século XIX, chegaram ao território francês e interferiram diretamente nas opiniões de Mallarmé, que buscava o formato gráfico ideal para o seu poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, publicado em 1897. O movimento Arts & Crafts atingiu forte expressão na Europa no começo do século XX e a impressão tipográfica como arte e técnica foi reafirmada pelo movimento, chegando a influenciar, posteriormente, o surgimento da Escola Bauhaus, na Alemanha.

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no entanto, recair em mera cópia de formas estranhas e ultrapassadas. Um processo dialético circular, segundo ele, de auto-referência, passando do em-si (an sich – potência) ao para-si (für sich – ato), de modo que o problema do fim somente existe porque há o probema do início e vice-versa, não havendo ato sem potência, “dito em termos hegelianos e não apenas em termos aristotélicos: não há substância sem sujeito e vice-versa”. “A progressão da história é como um ‘fluxo sagrado’, citando Herder, um fluxo contínuo de retomadas e de aprofundamentos do ponto inicial” (Ibidem, p. 50), quando o fim é o desdobramento do início e o início coincide com o fim numa relação de dependência recíproca.

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CAPÍTULO DOIS {TIPOGRAFIA E LITERATURA}

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O DISCURSO TIPOGRÁFICO INCORPORADO NA LITERATURA

Em S/Z (1992, p. 45) Barthes anuncia a pluralidade do texto quando tudo significa sem cessar a um grande conjunto final, no qual o texto único não é acesso (indutivo) a um modelo, mas entrada de uma rede de mil entradas: Penetrar por esta entrada é visar, ao longe, não uma estrutura legal de normas e desvios, uma Lei narrativa ou poética, mas uma perspectiva (de fragmentos, de vozes vindas de outros textos, de outros códigos), cujo ponto de fuga é sempre transladado, misteriosamente aberto: cada texto (único) é a própria teoria (e não o simples exemplo) dessa fuga, dessa diferença que, sem se conformar, volta indefinidamente. (Ibidem, p. 46)

Barthes lança o poder de esquadrinhar o texto em suas “venículas do sentido”, não deixando nenhum espaço do significante sem pressentir um código que pode vir a ser um ponto de partida ou chegada. Ao substituir modelos representativos, sugere uma decomposição no sentido cinematográfico no sentido da leitura, renovando as entradas do texto ou melhor, estrelando o texto ao invés de compactá-lo: O texto, em sua totalidade, é comparável a um céu, plano e profundo ao mesmo tempo, liso, sem bordos e sem referências; tal como o áugure, recortando com a ponta do bastão um ângulo fictício no céu para aí interrogar, segundo certos princípios, o voo dos pássaros, o comentador traça ao longo do texto zonas de leitura para nelas observar a migração dos sentidos, o afloramento dos códigos, a passagem das citações. (BARTHES, 1992, p. 47)

O texto estrelado de Barthes complementa minha argumentação (no capítulo anterior, também alicerçada por ele), sobre uma quarta dimensão nas obras literárias. E influenciada por tal reflexão, proponho um modo distinto de abordar o texto literário, através do elo entre a matéria e o tipo de suporte da palavra, que retoma seu processo de transmissão e o aplica às técnicas, máquinas e pessoas envolvidas em sua própria produção. Um raciocínio em consonância com Chartier (2002, p. 60), quando criações poéticas e imateriais são negociações permanentes com o mundo prosaico da imprensa, tinta e tipos, em que nesse processo, o que está em jogo não é somente a circulação da energia social, mas também a inscrição da vitalidade do texto. O texto estrelado que, em sua produção supõe diferentes etapas, técnicas e operações humanas, quando “entre o gênio do autor e a aptidão do leitor, como es-

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creveu Moxon99, uma multiplicidade de operações define o processo de publicação como um trabalho colaborativo, no qual a materialidade do texto e a textualidade do objeto não podem ser separadas” (CHARTIER, p. 37). Logo, existe tensão entre o texto original e sua publicação, e segundo Chartier, cada variante, até mesmo a mais estranha e mais inconsistente, deve ser compreendida, respeitada e possivelmente editada de modo a transmitir o texto em suas múltiplas modalidades de escrita e leitura. Para ele, o conceito de ideal texto “original”, visto como uma abstrata entidade lingüística presente atrás das diferentes instâncias de um trabalho, é considerado uma completa ilusão. Assim, editar um trabalho não deve significar a recuperação desse texto inexistente, mas sim tornar explícito tanto a preferência dada a uma das diversas “formas registradas” do trabalho quanto as escolhas concernentes à “materialidade do texto” (Ibidem, p. 40): Há alguns anos, Margreta De Grazia & Peter Stallybrass (1993, p. 256) lembraram que o descuido com os objetos textuais leva a crítica literária (mas também, gostaria de acrescentar, a história cultural) a um metodológico beco sem saída, seja por ignorar os efeitos das práticas da tipografia sobre as formas dadas à linguagem literária seja por impor, de maneira anacrônica, categorias contemporâneas a textos que foram compostos, publicados e postos em circulação de acordo com critérios e processos muito diferentes. (Ibidem, p. 40)

A tipografia incorporada na literatura se apresenta em diferentes formas. Como método de impressão, ela é a protagonista na materialização do texto de autores interessados no processo do fazer, escolhendo a tipografia pelo seu caráter manual e autônomo; ou ainda, como método, na participação da feitura da obra, mantendo suas particularidades como ação restrita ao universo invisível das oficinas; ou quando o processo é revelado na obra, fazendo parte do enredo, ou quando ela surge como uma associação de ideias, semelhança ou comparação; ou ainda como ideia de substituição. Ou seja, são variáveis, condicionantes e características presentes na ação e operação da palavra escrita, revelando as diferentes etapas e operações humanas envolvidas no processo de publicação, no qual “a materialidade do texto e a textualidade do objeto não podem ser separadas” (CHARTIER, 2002, p. 37). Portanto, a relevância desta pesquisa se faz na 99 Chartier, assim como John Man cita repetidas vezes o tipógrafo inglês Joseph Moxon (1627-1691). Tipografou e publicou trabalhos autorais sobre instrumentos matemáticos, astronomia, geografia e tipografia: Mechanick Exercises: or, the Doctrine of Handy-Works, 1693.

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reflexão de que o texto, uma vez impresso e materializado, passa pelas mãos de sujeitos (protagonistas ou coadjuvantes) que produzem ações e gestos, e no ato do fazer imprimem também uma passagem (rastro), onde o objeto resultante dessa operação reflete a história desse percurso de criação e materialização, com todas as imprevisilidades e limitações técnicas que, ao longo do processo, essas práticas podem ocasionar. Reinvindico, então, uma luz para esse universo invisível. No século XVI, o humanista Erasmus viajou pessoalmente até Veneza para imprimir Adagia com o renomado tipógrafo Aldus Manutius, cujo legado foi a invenção do tipo itálico, estabelecendo nova aparência para o ponto e vírgula, e a introdução de livros baratos em pequenos formatos (brochuras), encadernados em pergaminho. No capítulo VIII de Erasmus and the Age of Reformation, Johan Huizinga (2007, p. 64) descreve este encontro: From Bologna, in October 1507, Erasmus addressed a letter to the famous Venetian printer, Aldus Manutius, in which he requested him to publish, anew, the two translated dramas of Euripides, as the edition of Badius was out of print and too defective for his taste. What made Aldus attractive in his eyes was, no doubt, besides the fame of the business, though it was languishing at the time, the printer’s beautiful type— ‘those most magnificent letters, especially those very small ones’. Erasmus was one of those true book-lovers who pledge their heart to a type or a size of a book, not because of any artistic preference, but because of readableness and handiness, which to them are of the very greatest importance. What he asked of Aldus was a small book at a low price. Towards the end of the year their relations had gone so far that Erasmus gave up his projected journey to Rome, for the time, to remove to Venice, there personally to superintend the publication of his works. Now there was no longer merely the question of a little book of translations, but Aldus had declared himself willing to print the enormously increased collection of the Adagia. Beatus Rhenanus tells a story which, no doubt, he had heard from Erasmus himself: how Erasmus on his arrival at Venice had gone straight to the printing-office and was kept waiting there for a long time. Aldus was correcting proofs and thought his visitor was one of those inquisitive people by whom he used to be pestered. When he turned out to be Erasmus, he welcomed him cordially and procured

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him board and lodging in the house of his fatherin-law, Andrea Asolani. Fully eight months did Erasmus live there, in the environment which, in future, was to be his true element: the printing-office. He was in a fever of hurried work, about which he would often sigh, but which, after all, was congenial to him. The augmented collection of the Adagia had not yet been made ready for the press at Bologna. ‘With great temerity on my part’, Erasmus himself testifies, ‘we began to work at the same time, I to write, Aldus to print’. Meanwhile the literary friends of the New Academy whom he got to know at Venice, Johannes Lascaris, Baptista Egnatius, Marcus Musurus and the young Jerome Aleander, with whom, at Asolani’s, he shared room and bed, brought him new Greek authors, unprinted as yet, furnishing fresh material for augmenting the Adagia. These were no inconsiderable additions: Plato in the original, Plutarch’s Lives and Moralia, Pindar, Pausanias, and others. Even people whom he did not know and who took an interest in his work, brought new material to him. Amid the noise of the press-room, Erasmus, to the surprise of his publisher, sat and wrote, usually from memory, so busily occupied that, as he picturesquely expressed it, he had no time to scratch his ears. He was lord and master of the printing-office. A special corrector had been assigned to him; he made his textual changes in the last impression. Aldus also read the proofs. ‘Why?’ asked Erasmus. ‘Because I am studying at the same time’, was the reply. Meanwhile Erasmus suffered from the first attack of his tormenting nephrolithic malady; he ascribed it to the food he got at Asolani’s and later took revenge by painting that boarding-house and its landlord in very spiteful colours in the Colloquies. When in September 1508, the edition of the Adagia was ready, Aldus wanted Erasmus to remain in order to write more for him. Till December he continued to work at Venice on editions of Plautus, Terence, and Seneca’s tragedies. Visions of joint labour to publish all that classic antiquity still held in the way of hidden treasures, together with Hebrew and Chaldean stores, floated before his mind. Erasmus belonged to the generation which had grown up together with the youthful art of printing. To the world of those days it was still like a newly acquired organ; people felt rich, powerful, happy in the possession of this ‘almost divine im-

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plement’. The figure of Erasmus and his [oe]uvre were only rendered possible by the art of printing. He was its glorious triumph and, equally, in a sense, its victim. What would Erasmus have been without the printing-press? To broadcast the ancient documents, to purify and restore them was his life’s passion. The certainty that the printed book places exactly the same text in the hands of thousands of readers, was to him a consolation that former generations had lacked.

Enquanto Erasmus procurava a forma perfeita para sua obra, Miguel de Cervantes, no século XVII, apresenta uma tipografia no romance Dom Quixote e introduz o leitor na divisão e na multiplicidade de tarefas que caracterizam o processo de impressão” (CHARTIER, 2002, p. 33). No capítulo LXII, quando Dom Quixote e Sancho saíram para passear nas ruas de Barcelona: “Aconteceu então que, indo por uma rua, Dom Quixote levantou os olhos e viu escrito sobre uma porta, com letras muitos grandes: 'Aqui se imprimem livros', o que muito o satisfez porque até então não vira nenhuma tipografia e desejava saber como era”100. Por certo, a intenção de Cervantes teria algum objetivo. Para Chartier, no romance de Cervantes a presença da tipografia é mais do que um simples cenário para o enredo, “ela inscreve no próprio livro o lugar e o processo que torna possível sua publicação, introduzindo o leitor na divisão e na multiplicidade de tarefas que caracterizam o processo de impressão. Segundo o historiador, o livro de Cervantes nos introduz na instabilidade dos textos (em suas variantes e estranhezas), e resultam da pluralidade de ações (decisões ou erros) nos diferentes estágios de suas publicações. São instabilidades como os descuidos do autor, os erros dos tipógrafos, as inadvertências dos revisores que, somados ao conjunto da obra contribuem para a construção dos sucessivos textos do “mesmo” trabalho (Ibidem, p. 38): Se o trabalho executado dentro de uma tipografia verdadeira é uma condição para dar realidade às ilusões da narrativa, no romance de Cervantes os termos viraram de ponta-cabeça, já que o mundo prosaico da oficina se tornou um lugar fictício em que a narrativa imaginária une, como escreveu Borges (1952), “o objetivo e o subjetivo, o mundo do leitor e o mundo do livro”. Nesse sentido, a visita de Dom Quixote à tipografia, em Barcelona, é uma

100 CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha.Trad.: Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 2003, p. 633.

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dessas “magias parciales” que inquietam profundamente o leitor do romance, eliminando a evidente, empírica distinção entre esses dois mundos. (CHARTIER, 2002, p. 33)

No século XIX, Victor Hugo em O Corcunda de Notre Dame no capítulo II (Isto vai matar aquilo) expõe o processo tipográfico no enredo do romance: “Em nossa percepção, esse pensamento tinha duas faces. Era, a princípio, um pensamento de padre. Era a apreensão do sacerdote diante de um agente novo, a tipografia. Era o pavor e o espanto deslumbrado do homem do santuário diante da prensa luminosa de Gutenberg” (HUGO, 2008, p. 28). Com a técnica de impressão, o escritor francês introduz a desconfiança perante o novo, cuja indicação de Régis Debray indica o período da Reforma, com os revolucionários Gutenberg e Lutero: O duo deu lugar a tantas fórmulas simplistas que os historiadores estão sempre a explicar que Ceci tuera cela [Isto vai matar aquilo], de Victor Hugo, é uma simplificação grosseira e que múltiplas foram as causas da Reforma – a ascensão da burguesia, a afirmação das línguas nacionais, o declínio da escolástica, a urbanização da Europa etc. O chumbo é um metal vulgar demais para que dele saia o ouro fino de uma teologia nova. Ao Senhor, toda a honra. Aos reformados, e somente a eles, cabem os méritos da Reforma, e não a um ourives obscuro e cúpido. Aonde chegaríamos se...? Que papel sobraria para o Santíssimo, para a graça, para os humanistas? De fato, só um materialismo bem ingênuo poderia presumir que um meio mecânico tem a faculdade de criar sozinho uma cultura, sem acoplar-se com uma dinâmica global que ele traduz e desvia para a própria direção, assim como faz uma plataforma giratória numa rede ferroviária. Podemos aplicar à tipografia a mesma causalidade característica da escrita: ela autoriza mas não comanda. Isso não mata nem gera aquilo, mas, sem aquilo, não há nada disso. Tirem Gutenberg de cena e Lutero se torna um profeta tecnicamente desempregado. (DEBRAY, 2004, p. 286-287)

Na América do Norte do século XVIII, o novo processo de impressão significava o prenúncio de pioneirismo das letras, arte e também na política. Com o objetivo de propagar suas ideias, Benjamim Franklin interessou-se pelas artes gráficas e destacou-se como tipógrafo. Aos 17 anos, Franklin trabalhou em várias oficinas de impressão e depois de alguns meses foi convencido, pelo governador da Pensilvânia Sir William Keith,

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a ir para Londres a fim de adquirir equipamento tipográfico para a fundação de seu próprio jornal. Em Londres, Franklin trabalhou como tipógrafo e, meses depois, retornou para a Filadélfia e em 1726, trabalhou também como livreiro e editor. A fonte Franklin Gothic foi criada em sua homenagem, em 1892, pela American Type Founders. Nos arredores de Londres (Richmond) no começo do século XX, uma pequena editora tornou-se conhecida por sua proprietária. A Hogarth Press, pertencente ao casal Leonard e Virginia Woolf, foi fundada em 1917 e nos primeiros anos a impressão manual era um passatempo do casal e funcionou como um alívio emocional para Virginia enquanto a escrita se tornava muito estressante: Como passatempo, a Hogarth Press é realmente demasiado animada e vigorosa para continuar a ser uma editora privada. Para além do mais, a parte comercial da editora não pode ser partilhada, dada a minha incompetência. É preciso, portanto, ponderar o futuro. (WOOLF, 1985, p. 213)

Inicialmente instalada na sala de jantar, a editora publicou Jacob's Room (1922), além de publicar livros do Grupo Bloomsbury, e foi a primeira editora a publicar The Waste Land (1922), de T.S. Eliot. Foi também, pioneira na publicação de trabalhos sobre psicanálise, no qual entre os autores estava Sigmund Freud. Publicou 527 títulos entre os anos de 1917 a 1946, ano em que foi vendida e permaneceu em funcionamento com o mesmo nome até 1969. A tipografia se encontra também, nos casos em que o livro acha o seu editor, como o exemplo de Ulisses, de James Joyce. Nos anos vinte do século XX, Sylvia Beach (2004) relata, em seu livro biográfico sobre a lendária livraria Shakespeare & Company em Paris, sua aventura editorial, juntamente Joyce, em publicar Ulisses. O relato é repleto em detalhes narrados pela própria Sylvia, responsável pela primeira edição do escritor irlandês. “Toda esperança de publicação nos países de língua inglesa, pelo menos por um bom tempo, se fôra. E ali, na minha pequena livraria estava James Joyce, sentado entre suspiros profundos” (BEACH, p. 69): Então me ocorreu que algo poderia ser feito, e perguntei: Você permitiria que a Shakespeare and Company tivesse a honra de publicar o seu Ulisses? Ele aceitou a oferta sem titubear, e em júbilo. Achei temerário de sua parte confiar seu grande Ulisses a uma editora tão pequena e inusitada. Ele parecia, entretanto, encantado, e eu também. (Ibidem, p. 69)

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E a biografia de uma das mais famosas livrarias do mundo é ofuscada pela aventura editorial de Ulisses em Paris. O impressor de Adrienne Monnier, Monsieur Maurice Darantière, veio ver-me. Ele (e sei pai antes dele) era “mestre gráfico”. As obras de Huysmans, bem como a de muitos outros escritores da mesma época, haviam sido impressas por Darantière em Dijon. (Ibidem, p. 70)

E mesmo exposto por uma situação financeira precária, comum a qualquer editora pequena, o impressor concordou em assumir a impressão de Ulisses. Os pagamentos da primeira edição só ocorreriam de acordo com a entrada do dinheiro das reservas, e tão logo o livro foi anunciado, as reservas se iniciaram e também a impressão, um assunto que Sylvia se considerava totalmente ignorante: “Monsieur Darantière trouxe-me amostras de seu melhor papel e um espécime de seu famoso tipo; assim, comecei a aprender as regras que governam as edições de luxo” (Ibidem, p. 71), até então, ela se considerava uma aprendiz de livreira. E o que se segue é o relato do envolvimento intenso de todas as mãos que participam do processo gráfico, o entre a obra Ulisses e o criador Joyce: Ulisses, nesse ínterim, estava sendo tipografado. Os impressores, como todos os demais que estavam de alguma forma ligados à grande obra, tinham havia muito percebido como ela se insinuava em suas vidas, e não só se resignaram com o fato como mergulharam cada vez mais em seu espírito. Seguiram minhas ordens de fornecer a Joyce todas as provas que desejasse – e ele era insaciável. Todas acabavam cobertas de textos adicionais, como podem constatar os amantes de Joyce na biblioteca da Universidade de Yale – que conta, entre seus pertences, com a série de provas corrigidas de Ulisses pertencente à minha amiga Marian Willard Johnson. Eram todas adornadas com as setas joycianas e miríades de asteriscos que guiavam os impressores pelas palavras e frases que pululavam pelas margens. Joyce me disse que um terço do Ulisses foi escrito nas provas. (BEACH, p. 81)

O zelo pela beleza gráfica da obra de Joyce foi consumada de acordo com o desejo do autor, e as dificuldades encontradas no percurso são relatadas, desde a falta do papel para a capa, até o trabalho interrompido pelos impressores com a falta de textos para finalizar o trabalho. Uma das minhas dificuldades foi com o papel da capa do livro. O desejo natural de Joyce de ver o livro

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encadernado em azul grego foi a causa de um dos nossos maiores problemas. Quem poderia sonhar que aquele adorável azul da bandeira grega não seria encontrado em parte alguma? Darantière subiu seguidas vezes para Paris a fim de compararmos os azuis, só para chegarmos à conclusão de que a nova amostra não correspondia ao tom da flâmula, que tremulava na Shakespeare and Company em homenagem a Odisseu. Ai de mim! Só de olhar para aquela bandeira eu já ficava com dor de cabeça. A busca de Darantière levou-o à Alemanha, onde chegou ao fim com a descoberta do azul certo – mas dessa vez no papel errado. Ele resolveu a questão mandando litografar a cor em cartão branco, o que explica por que as contracapas eram brancas. Na deliciosa gráfica coberta de videiras de Darantière, em Dijon, a velocidade foi acelerada e as luzes, mantidas acesas a noite toda. Dijon, na Côte D’Or, região de vinhos célebres, tesouros artísticos e boa comida, daquelas groselhas caramelizadas no licor e, claro, da sua especialidade, a mostarda, aos quais vinha agora somar-se o “apimentado” Ulisses. Monsieu Darantière, que tanto gostava de preparar pratos epeciais e degustar os bons vinhos que os acompanhavam, não tinha mais tempo de demorar-se à mesa com seu jovem amigo gráfico com quem dividia a casa, nem de admirar sua coleção de cerâmica antiga ou sua valiosa biblioteca. Ulisses o possuíra. Por fim, M. Darantière informou-me de que a impressão estava parada por falta de texto. Era o episódio de Circe que nos detinha; a feiticeira resistia. [...] Joyce vinha tentando havia algum tempo, em vão, que alguém datilografasse aquela passagem. Nove datilógrafas haviam fracassado na tentativa. A oitava, contou-me Joyce, ameaçara, em seu desespero, atirar-se da janela. (BEACH, pp. 85-86)

No segundo dia de fevereiro de 1922, a obra estava pronta e seria entregue, das mãos do condutor da locomotiva que a trouxera de Dijon a Paris, nas mãos de Sylvia Beach. “Com o coração batendo como a locomotiva” (BEACH, p. 109), descreve a editora, e minutos depois, ela tocaria a campainha dos Joyce, entregando-lhe o primeiro exemplar de Ulisses: Ali, finalmente, estava Ulisses, em sua capa azulgrego, com o título e o nome do autor em letras brancas. Ali estavam as 732 páginas, com o “texto integral” e uma média de um a seis erros tipográficos por página – a editora desculpou-se por eles num pequeno volante inserido em cada cópia.

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Em 2009, um exemplar da primeira edição de Ulisses, publicada pela Shakespeare and Company, foi arrematado em antiquário por 275 mil libras. (Cf: theguardian.com)

O período que se seguiu imediatamente à publicação do livro foi tão excitante que Joyce não conseguia ficar longe de sua editora, por receio de perder algo. Dedicou-se a nos ajudar (?) com os pacotes; chegou até a descobrir que os livros pesavam um quilo, 550 gramas cada.Também já havíamos notado isso, quando começamos a levar os embrulhos até a agência de correio depois da esquina. (Ibidem, p. 111)

No Brasil em fins do século XIX, jovens escritores conheceram o vocabulário tipográfico e encontravam seu sustento na prática diária do ofício, beneficiando-se com o progresso da imprensa no país. É o caso de Francisco de Paula Brito101. Segundo Hallewell, em O Livro no Brasil (2012, p. 169), no ano de 1824, Paula Brito iniciou-se no ofício da tipografia como aprendiz na Typographia Nacional e seu primeiro emprego, depois de terminar o aprendizado, foi com o livreiro e impressor René Ogier, na rua da Cadeira, nº 142, que Rubens Borba de Moraes (2005, p. 101 Paula Brito foi ativista político e o primeiro a inserir no debate político a questão racial. Editou O Homem de Cor, o primeiro jornal brasileiro dedicado à luta contra o preconceito racial, colocando-o como precursor da imprensa negra. Como grande mestre da imprensa, escolheu seus protegidos e empregou o poeta Casimiro de Abreu e o jovem Machado de Assis como revisor de provas em sua editora. Paula Brito foi o primeiro editor de Machado de Assis, e em sua tipografia foi impresso O Mulato. Machado, que também frenquentou a Sociedade Petalógica, iniciou sua carreira literária como colaborador em A Marmota Fluminense, revista bimensal criada e impressa por Paula de Brito e sua principal publicação, de onde recebia auxílio financeiro de dom Pedro II. Na turbulência dos negócios, logo após o ápice, sua firma se viu reduzida à Typographia de Paula de Brito num único endereço situado na praça da Constituição (hoje Tiradentes), e sua produção caiu “para onze títulos em 1857, doze em 1858 e dez em 1859, mesmo que tenha voltado a crescer para quinze em 1860”, (HALLEWELL, 2012, p. 178), 1861 foi o ano de sua morte. Paula Brito foi o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós”. Machado de Assis in O Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 03 de janeiro, 1865.

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192) considera “talvez o melhor tipógrafo que o Brasil teve”. Em seguida tornou-se compositor na equipe do Jornal do Commercio, onde progrediu até chegar a chefe de departamento de impressão e depois, diretor responsável. “Era o livreiro preferido da elite intelectual do Rio de Janeiro, bem como o sucessor de Plancher como principal editor da época” (HALLEWELL, 2012, p. 168). Pierre René François Plancher de La Noé, foi um imigrante francês, de ascendência nobre e bonapartista, que escolheu o Brasil (em recente declaração de independência) pelos fortes laços culturais com a França, e em 1824 na Rua do Ouvidor começou a publicar em português, destacando a primeira novela brasileira Statira e Zoroastes, de Lucas José de Alvarenga. Chegou ao Brasil com moderno maquinário francês de impressão e Machado de Assis faz referência ao tipógrafo francês em Brás Cubas, onde “no dia seguinte, estando na rua do Ouvidor, à porta da tipografia de Plancher, vi assomar, a distância, uma mulher esplêndida”102. Até então, “todos os livreiros e impressores eram imigrantes ou filhos de imigrantes” e Brito “ilustra o paradoxo de que ser negro (no sentido norteamericano corrente do termo) constituía uma desvantagem muito menor sob um Império servil do que viria a ser numa República positivista ‘livre’”, assinala Hallewell (Ibidem, p. 168). Na época, as livrarias eram pontos literários e na loja de Francisco de Paula Brito na praça Tiradentes nº 64 consolidou-se os encontros da Sociedade Petalógica, nome imaginado por Brito, referindo-se à rédeas soltas que seus membros davam à imaginação (uma peta = um mentira), reunindo o movimento romântico de 1840 a 1860103. No período de 1831, sua loja era uma papelaria e oficina de encadernação, onde também se vendia chá, “daí a referência ao estabelecimento de Paula Brito como ‘a loja de chá, do melhor que há’” (Ibidem, p. 170). O negócio prosperou e, em 1848, era descrito como o “maior do Brasil” (Ibidem, p. 171), com seis prelos manuais e um mecânico. Em 1850, criou extensões paralelas e ampliou o negócio para os fundos, e comprando as lojas ao lado, nas ruas Gonçalves Ledo e rua Lampadosa. Criou filiais em sociedade com Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa na rua dos Ourives nº 102 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1992, p. 80 103 Antônio Gonçalves Dias a Laurindo Rabelo; Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida ou Teixeira de Sousa; compositores como Francisco Manuel da SIlva; artistas como Manuel de Araújo Porto Alegre e atores como João Caetano dos Santos. Líderes da sociedade como Antônio Peregrino Maciel Monteiro, ministros do governo, entre eles José Maria da Silva Paranhos (visconde do Rio Branco e pai do barão) e Eusébio de Queiroz (respo nsável pelo término do tráfico de escravos), e senadores como Francisco Otaviano de Almeida Rosa, jornalistas como Joaquim de Saldanha Marinho e Firmino Rodrigues da Silva, e um número surpreendente de médicos: Francisco de Menezes Dias da Cruz, Henrique César Mussio, Rodrigues Martins. (HALLEWELL, 2012, p. 167)

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21, e com Cândido Lopes formou a Tipografia e Loja de Lopes e Cia, em Niterói. Lopes viria a ser, em 1853, o primeiro tipógrafo impressor na nova província do Paraná. Em 1856, o jovem Machado, com então dezessete anos, foi contratado como aprendiz de tipógrafo e revisor da Imprensa Nacional (Typographia Nacional), sob a proteção de outro escritor, Manuel Antônio de Almeida, então diretor, e que anos antes publicara sua obra Memórias de um Sargento de Milícias, incentivando Machado de Assis a seguir carreira literária. Machado trabalhou na Imprensa Nacional de 1856 a 1858, e no fim deste período, a convite do poeta Francisco Otaviano, passou a colaborar para no Correio Mercantil, importante jornal da época, escrevendo crônicas e revisando textos. Nos anos que trabalhou na Imprensa Nacional, Machado adquiriu profundo conhecimento de tipografia e, a partir de 1879, publicou na revista A Estacão104 muitas de suas Histórias sem Data e a seriação do romance Quincas Borba “que foi produzido sob a atenta supervisão do autor” (HALLEWELL, 2012, p. 252). Os livros que passaram pelas mãos de Machado de Assis constituem verdadeiras relíquias entre os bibliófilos: Não é somente o texto de uma obra que a torna valiosa. Muitas vezes um livro é procurado porque foi impresso por um tipógrafo célebre, porque contém ilustrações feitas por um ilustrador conhecido, porque está revestido de uma encadernação feita por um encadernador famoso e, muitas vezes, até porque contém um erro de impressão divertido. (MORAES, 2005, p. 68)

Hallewell cita o caso de Machado imprimindo, no Rio de Janeiro pela Tipografia Franco-americana do famoso tipógrafo francês Baptiste Louis Garnier: “no caso de Machado de Assis, há provas de que o próprio autor, sendo um tipógrafo experiente, encarou prazerosamente a oportunidade de acompanhar a impressão de suas obras”, citando Histórias da Meia-Noite, em 1873, e Helena em 1876 (HALLEWELL, 2012, p. 230). Rubens Borba de Moraes (2005) cita outro exemplo, de 1902, da Livraria Garnier sobre a segunda edição das Poesias Completas de Machado de Assis: Nessa época, quase todos os livros dessa editora eram impressos na França e, apesar do cuidado com que era feita a revisão, escapavam erros. Mas nenhum tão 104 A Estação foi uma importação da revista francesa La Saison, impressa pelos Lombaerts, pai e filho belgas que se instalaram no Rio de Janeiro e abriram uma importante encadernadora e como livreiros, trabalharam com revistas e jornais importados, na rua do Ourives, nº 17. (HALLEWELL, 2012, p. 251)

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grave quanto o que apareceu nesse livro. No prefácio (página IV), Machado escreveu “...cegara o juízo...”. O tipógrafo francês trocou o e por um a! Imaginese a cara que deve ter feito o pudibundo autor vendo esse erro borrando sua obra! O pior é que só percebeu o engano quando já estavam vendidos alguns exemplares. No meio da consternação geral, Everardo Lemos, empregado da livraria, propôs raspar com todo o cuidado a fatídica letra a e escrever no lugarzinho a letra e à nanquim. Assim foi feito para sossego de todos. Mais tarde, Garnier mandou reimprimir a folha contendo o fatal engano e substituíla em todos os exemplares. Existem, portanto, três estados dessa edição das Poesias Completas de Machado de Assis. O primeiro com a “palavra feia”, o segundo com a correção feita à mão e o terceiro sem “palavra feia”. Inútil dizer que os exemplares mais raros e procurados são os que trazem a palavra muito feia. (MORAES, 2005, p. 104)105

Cleber Teixeira, em entrevista a Henrique Nardi (2006)106 relata o episódio dizendo “o que é esse mundo dos bibliófilos? O ( José) Mindlin tem a edição com “a”, com uma revisão que o Machado fez, e a edição tipograficamente correta. Isso vale uma fortuna no mercado”, uma constatação que Rubens Borba de Moraes sublinha em O bibliófilo aprendiz: Quando um manuscrito é enviado à tipografia, a primeira operação que sofre é ser copiado em letras tipográficas. Depois de estar composto, isto é, copiado e paginado, é impresso. O editor determina quantos exemplares quer. Todos os exemplares, impressos pela primeira vez, compõem o que se chama a primeira edição. Acontece frequentemente que o editor encomenda somente, digamos, quinhentos exemplares do livro, mas, ou porque acredita que, uma vez vendidos os primeiros, a obra terá ainda procura ou, por outra razão, ele pede à tipografia que 105 Moraes descreve, em página anterior, um erro tipográfico descoberto por Mário de Andrade em obra de Barleus sobre os feitos de Maurício de Nassau no Brasil, e também no romance clássico de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, que teve muitas edições: “A primeira compõe-se de dois volumezinhos banalmente impressos na tipografia de Maximiano Gomes Ribeiro, no Rio, em 1854. Contém o texto revisto pelo autor, enquanto que as outras foram publicadas depois de sua morte trágica num naufrágio. Todas as edições posteriores contêm erros, ou melhor, não estão conforme o texto que o autor aprovou. Não é, portanto, só por uma questão sentimental que essa primeira edição é preciosa. Não é somente porque existem apenas alguns exemplares no mundo que ela é procurada pelos bibliófilos”. (2005, p. 102) 106 Registro em vídeo. Cf: Acervo Editora Noa Noa.

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não desmanche a composição, que aguarde até ele precisar de mais. Posteriormente ele encomenda uma nova quantidade. A tipografia que guardou a composição imprime de novo o livro. Imprime com a composição guardada. Essa nova fabricação é chamada tiragem. Não há, portanto, nenhuma diferença entre a primeira e a segunda tiragem, senão uma diferença cronológica. Mas, se forem feitas muitas tiragens, os tipos sofrem um desgaste, devido à pressão do prelo. Portanto, os exemplares da primeira tiragem são mais nítidos. Daí os bibliófilos preferirem sempre os exemplares das primeiras tiragens. (MORAES, 2005, pp. 102-103)

A linguagem tipográfica na obra de Machado de Assis é analisada no ensaio A letra espelhada, a folha solta (1999, p. 165)107 por Ana Luíza Andrade, no qual a autora aponta para o “olhar cruzado (ou dialético)” do escritor em entendimento com seu conhecimento de tipógrafo, “em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado se refere ao homem como ‘uma errata pensante’, resgatando os princípios de correção dos erros do tipógrafo, retornando à origem orgânica de uma impressão industrial errada” (Ibidem, p. 167). Ana Luíza relaciona o olhar dialético e observador de Machado a um resgate orgânico onde, de um lado há o tipógrafo que se redime de seus erros, e de outro o escritor arrebatado pelo moderno, frente às mudanças da imprensa. Outra indicação tipográfica ressaltada por Ana Luísa está no conto O Espelho, no qual o escritor brinca com o espelhamento das letras, “invocando Longfellow, inspirador de Poe: Never, for ever!” (Ibidem, p. 168). Não por acaso, “Machado traduziu O Corvo de Edgar Allan Poe, em que o never e o raven, são, exatamente as letras invertidas à maneira tipográfica”, assinala. É provável que Poe tenha se aventurado no universo tipográfico com a intenção de publicar suas próprias obras108 e Machado, inspirado em Poe e na linguagem tipográfica, tenha invocado em sua literatura o terror dos tipógrafos: os quatro demônios, que são as letras b-d-p-q. É visível, portanto, os detalhismo tipográfico percebido para o bom entendedor, se valendo também um conhecedor da linguagem e dos métodos tipográficos. Publicado pela primeira vez em 1965, em O bibliófilo 107 In: ANDRADE, Ana Luiza. Transportes pelo olhar de Machado de Assis: passagens entre o livro e o jornal. Chapecó: Grifos, 1999. 108 Seu biógrafo descreve que, em 1840, Poe publicou um prospecto anunciando suas intenções de iniciar um jornal autoral, The Stylus, na Filadélfia. Meyers, Jeffrey. Edgar Allan Poe: His Life and Legacy. New York: Cooper Square Press, 1992.

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Os quatro demônios da tipografia: letras confusas que são consideradas transtorno, b-d-p-q. (POLK, 1948, p. 49).

Parágrafo tipográfico (POLK, 1948, p. 48). Na montagem da rama, as letras são espelhadas.

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aprendiz, Moraes comenta que, com a introdução da composição à máquina e a impressão mecânica, a tipografia sofreu uma revolução, onde “hoje em dia, praticamente, não se compõe mais à mão, não se imprime diretamente sobre a composição” (2005, p. 105), tudo pela necessidade de produzirem edições baratas. Ou seja, a magia dos erros tipográficos que encantam os bibliófilos acaba quando a tipografia é substituída. No exemplo acima, guardar um livro inteiro ou até mesmo uma só página de composição é quase impossível em se tratando de uma pequena editora. Quando são poucos os tipos (porque é preciso ter espaço para guardá-los), um editor imprime uma só página e a desfaz após a impressão para poder reutilizar os mesmos tipos em outra página. Um outro exemplo (mais recente) que alcança o universo dos bibliófilos e dos tipógrafos é referente ao grupo concretista Noigrandes. Na edição da revista de número dois, em 1955, João Bandeira e Lenora de Barros (2002, p. 17) mencionam que a tiragem foi menor que a revista anterior, com cerca de 100 exemplares “em função do custo de impressão de poetamenos, que exigiu do tipógrafo uma complicada técnica de máscaras para isolar cada uma das cores”. Portanto, até onde a tipografia sobrevive, há ainda, muito a descobrir. O ofício da tipografia é, na maioria das vezes, invisível, e a sua linguagem, repleta de significados. O vocabulário referente à formatação de textos nas plataformas digitais, por exemplo, provém dessa profissão, e é utilizado desde o século XV. Os termos caixa baixa e caixa alta, designados para as fontes maiúsculas e minúsculas no teclado, são oriundas, literalmente, de caixas físicas. Na tipografia, todas as letras de chumbo, de uma mesma fôrma, pertencem a uma família, e ficam guardadas em cavaletes de madeira, divididas em duas caixas principais. Essas caixas são divididas em pequenos caixotins, que são compartimentos onde a família de fontes se distribui de acordo com as letras de uma mesma vogal ou consoante. Nesses cavaletes tipográficos, letras maiúsculas se encontram na parte alta da caixa, e as letras minúsculas na parte baixa, um sistema criado (de tradição francesa), para o tipógrafo trabalhar com o objetivo de obter a prática para alcançar a rapidez. Na velocidade do progresso tecnológico, e com a modernização das máquinas automáticas a partir do século XX, o cenário da impressão no Brasil é catalisado pela necessidade de se multiplicarem livros e jornais aos milhões para alcançar as massas. A palavra impressa ampliou-se com a invenção de novas máquinas e a mão do homem não se fazia mais necessária. É nesse cenário que o poeta tipógrafo Cleber Teixeira – com o orgulho de sua impressora inglesa movida à pedal e idêntica à usada na editora de Virginia Woolf –, e outros

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poucos escritores brasileiros se aventuraram pela busca do artesanal, ignorando os avanços da indústria gráfica e optando pelo lento processo tipográfico no acabamento de suas obras, interessando-se também pelo processo de impressão em seu resgate e revalorização cultural. Contrapondo-se à fragmentação do trabalho em escala de produção, e contestando a tecnologia oferecida, mantiveram o ofício da tipografia manual como um alicerce. Através dessas obras, revalorizaram a tipografia como arte, conjugando questionamentos tanto em relação com o mundo moderno e o tempo industrial, quanto ao tempo reflexivo da poesia, sem a confrontação com os avanços tecnológicos, mas no enaltecimento do tempo poético e filosófico impregnado ao ofício. Em artigo publicado na revista Sopro (CERA, 2012), Cleber Teixeira apontou para o que comove os poetas: “se o poeta é alguém, ele é alguém para quem as coisas feitas importam muito pouco, é alguém que é obcecado pelo fazer”. Dentre alguns dos poetas obcecados pelo fazer está João Cabral de Melo Neto e sua editora O Livro Inconsútil109, durante os três anos de sua estadia como diplomata em Barcelona (e Londres) nos anos de 1947 a 1953, quando João Cabral teve como prescrição médica “exercícios físicos” em razão de uma cefaléia acumulada. Como remédio, conjugou o gosto pelos livros com a necessidade do exercício, e tornou-se um praticante obstinado do que ele mesmo mais tarde definiu como uma “ginástica poética”. Tipografou seus livros artesanais com intensidade e a cadência de seu progresso como impressor é relatada nas cartas ao amigo Manuel Bandeira, a partir do ano de 1947: Agora, o mais importante. Estou com negociações fechadas para a compra de todo o material necessário à impressão de pequenas plaquettes110 de luxo. Isso é um pouco mania, um pouco coisa de pernambucano (exemplo de José Maria), um pouco 109 O nome O Livro Inconsútil foi sugerido por Manuel Bandeira, para render homenagem aos livretos de cadernos não costurados, obras de arte que, segundo ele, se relacionavam com a própria poética de João Cabral na forma de compor, na tipografia moderna e na qualidade do papel. Além de seus próprios poemas entre os anos de 1947 e 1953, João Cabral lançou pela O Livro Inconsútil treze publicações, dentre as quais destacam-se o poema Pátria Minha (s.d), de Vinicius de Morais, e Sonets de Caruixa per Joan Brossa (s.d), quando o artista catalão teve, pela primeira vez, a experiência de presenciar o processo de sua letra impressa: “Cabral era um impressor bastante talentoso” (ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CENTRO CULTURAL UFMG. In: Livros impressos por João Cabral de Melo Neto compõem exposição no Centro Cultural. . Acesso em: 04.11.2013. Antes de criar a sua própria editora, o poeta transitou por editoras artesanais, entre elas, O Gráfico Amador (Recife). 110 Plaquetes são livros pouco extensos, e de aspecto gráfico apurado. (Cf: Novo Aurélio século XXI)

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de falta do que fazer e algum tanto de recomendação médica: preocupar-me e ocupar-me com coisas mais “físicas”, etc. Pois bem: se importaria v. de me ceder, para publicação, aqueles “poemas onomásticos” que há tempos vem organizando? Embora seja principiante no ofício, procurarei que o negócio saia digno de v. [...] Que pensa disso? Também aqui, não faça cerimônia, porque o papel é barato e a tipografia está comprada. [...] Por mais incrível que pareça, essa “editora” de poesia não pode começar por falta de textos. Não é quase inacreditável? [...] (Melo Neto, 2001, pp. 32-33)

As cartas seguem, entre uma sequência de trocas de livros e assuntos literários, com as dúvidas, perguntas e apontamentos do poeta aprendiz de tipógrafo (“muito obrigado pela confiança que v. depositou no tipógrafo”), e envia juntamente com a carta, uma prova de Mafuá do malungo para Bandeira analisar e fazer os devidos apontamentos: Da maneira por que a compus, coloquei os dois títulos apontados por você e um outro, o que mais me agrada [...] Isso que fiz permite que a portada fique com certo ar antigo, que se sente nas portadas dos grandes tipógrafos: Ibarra, Bodoni, Baskerville, etc E tem a meu ver a importância de salientar, desde o exterior, o fato de serem estes versos de circuntância. [...] Sou contra livros e capas ilustrados e, tanto quanto possível, pelo “livro puro” [...]. Esse tipo que lhe mando é um Bernhard fino, que escolhi para títulos, isto é, para portadas dos livros de títulos longos. O texto entretanto será impresso num Mercedes que possuo e que me parece muito bom. Não lhe mando uma prova porque os calhordas da fundição me demoram a entrega da prensa apropriada para isso. Esta prova da portada que lhe mando está um pouco borrada e suja justamente por isso: tirei-a calcando os tipos com um livro. Coisa pré-gutenberguiana. Espero que, apesar de tudo, sirva para lhe dar uma ideia do corte da letra. Hoje mesmo começarei a compor o texto. Passei para trás o meu livro, já meio composto, porque quero inaugurar com v. essa coleção artesanal. Aliás, tenho um escrúpulo que me faz hesitar em incluir meu livro nesta edição: não será muito pretensioso colocar-me junto com v., Clarice Lispector (que me prometeu seus poemas) e outros? Por me sair mais barato, eu mesmo publicarei meu livro, mas o darei como se fosse obra de outro impressor. (MELO NETO, 2001, pp. 44-45)

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O livro que Cabral se refere é Psicologia da Composição e foi o primeiro que imprimiu com tiragem de apenas 15 exemplares. Por ser o primeiro livro que Cabral imprimiu sozinho e manualmente, poderíamos afirmar que o título faz referência ao seu experimentalismo de compor com tipos. Na carta endereçada à Bandeira, é clara sua relação como iniciante na nova profissão, com medo de arriscar, se apegando a um estilo de diagramação tradicional. Estão presentes o reconhecimento da técnica e as fontes tipográficas, com menção aos mestres do ofício, na preocupação com a capa perfeita e a revelação de suas preferências clássicas: Depois que lhe escrevi minha última carta comecei o trabalho de “impressão”, propriamente para mim o mais difícil, dado o rudimentar de minha prensa. Devo dizer que comecei apanhando, e tanto, que pensei em desistir. Estraguei não sei quantas folhas sem obter a perfeição desejada. Retirei, assim, suas páginas da prensa e compus, às pressas, as primeiras da minha Psicologia da Composição, poemas que não queria publicar já. A explicação é a seguinte: este livro meu será feito em papel corrente e o estrago inevitável deste período de aprendizado custará mais barato. Porque o seu será feito num papel de linho especial que descobri aqui. Tudo bem? Creio que a demora que isso provocará não irá a mais de uns dez dias. (Ibidem, 2001, p. 52)

Na próxima carta com intervalo de dois meses, Cabral ainda está imprimindo Mafuá. Ou seja, o poeta impressor teve que prolongar o seu tempo de experimentação tipográfica e amadurecer sua aprendizagem, tarefa árdua que se verifica na correspondência posterior. Se antes o poeta trabalhara no pequeno prelo tira-provas, agora, entrega-se aos movimentos ritmados da recém adquirida impressora modelo Minerva: Aqui vão mais 24 páginas do seu Mafuá. Você verá que umas estão com a impressão melhor do que outras. Razão: a máquina, verdadeira e não de brinquedo, que comprei e que, infelizmente, me chegou já seu livro bem adiantado. A princípio hesitei: deveria ou não tornar a fazer as primeiras páginas? Essa duvidazinha porém desapareceu ao continuar meu exercício com a máquina. Na verdade, se esta é capaz de dar a impressão perfeita, exige, em compensação, pleno domínio de seus mistérios. O resultado é que estou num período de aprendizagem – agora da máquina – e o que é mais triste: essa aprendizagem se verifica tendo o seu livro de cobaia, coisa que não quis evitar para impedir adi-

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amento. Em resumo, a coisa é essa: a impressão de seu livro, embora infinitamente melhor do que a da Psicologia da Composição, não está, nem de longe, parecida com o que eu gostarei de fazer em tipografia. Falo da impressão, porque o que diz respeito ao lado plástico da coisa não me desagrada de todo (falo da paginação, da cortada, etc.; coisas que até agradaram francamente ao Joan Miró. Aliás, o Miró está entusiasmado com o que se pode fazer em tipografia, e, quando volte da França, onde foi por um mês, realizaremos alguns trabalhos juntos). [...] Uma das coisas que tem atrapalhado – ou melhor, a principal coisa que me tem feito apanhar da máquina, tem sido o papel. Este é inegavelmente um papel formidável, como talvez se encontre em poucas partes do mundo. Mas é um papel muito duro, por ter muita cola, e difícil de se trabalhr com. Esteve aqui um impressor alemão, um sujeito fabuloso, aliás, que me criticou haver começado por uma natureza tão difícil como a desse papel. Mas que fazer? O livro estava começado e não compensava voltar. (MELO NETO, 2001, pp. 59-60)

Esta carta revela um Cabral mais experiente e preocupado com o suporte do texto, o papel. A dificuldade em manejar a máquina se somava à dificuldade de empregar a matéria prima em seu manuseio. Sua convivência com artistas catalões por certo o ajudaram a refinar o talento artístico, ingrediente necessário para exercer o ofício de editor. Em Barcelona o poeta se conectou com Antoni Tàpies, Joan Brossa, assim como fez amizade com o mestre e designer de tipos Enric Tormo, também impressor das litografias de Miró, além de artista gráfico, a quem Cabral recorria toda vez que surgia alguma dúvida sobre como operar sua prensa tipográfica no atelier em Barcelona. Mas sem dúvida, foi com Miró que estabeleu maior contato e dividiram o ideal pela valorização do fazer, trocando conhecimento e experiências nas pesquisas com a matéria e as técnicas gráficas. Em ensaio sobre Miró (1997), Cabral faz apontamentos sobre arte que parecem descrever o próprio percurso como impressor artesão. Do escritor que põe as mãos na “exigência de uma substância cristalizada, deixando transpirar o espírito artesanal da obra em oposição à atitude renascentista”, indicando “uma atitude de vigilância e lucidez no fazer, e, ao mesmo tempo, de contrário ao deixar-se fazer e ao saber fazer, ou por outra, ao espontâneo e ao acadêmico espírito artesanal” (Ibidem, p. 40). Ressalta em Miró a valorização do fazer, de colocar o trabalho em si mesmo, onde a luta se realiza entre

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“a mão fabricadora e a matéria dura e irredutível”. Ao comentar a composição pictórica de Miró, Cabral apresenta sua visão de tipógrafo, ao afirmar que: A composição não existe para ser analisada. Teoricamente, a composição só deve propor-se ao espectador através de seus defeitos: quando esteja imperfeitamente realizada. Porque nesse trabalho não é uma fórmula teórica que dirige o pintor integrado na tradição. (MELO NETO, 1997, p. 39)

Em carta datada de 29.02.48, Manuel Bandeira acusa recebimento de Psicologia da Composição, e até brinca, falando de um erro tipográfico nas primeiras provas de Mafuá: Meu caro João, Acuso recebimento de sua carta de 17 e da Psicologia da Composição. Estou encantado, encantado. Com o poeta e com o impressor. Você sabe bem o que quer e realiza bem o que quer: riguroso horizonte! O Vinícius escreveu-me de Hollywood; “Acabei de receber o livrinho do João Cabral, que achei de primeira. Está de longe o melhor de todos esses novos.” O impressor ainda não chegou ao riguroso horizonte. Não importa: lá chegará um dia e muito breve. A mim as pequeninas imperfeições deste opus 1 não desagradam, antes aumentam meu prazer: dão ao trabalho da matéria aquele calor da mão humana, não sei que estremecimento de emoção, aquela delícia das coisas imperfeitas de que falou Eça. Está comovedoramente lindo. E gostarei que o meu Mafuá saia com esta inefável perfeição, que é a mesma do brilho vacilante do Setestrelo. Como vê, estou até ficando lírico... (BANDEIRA in MELO NETO, 2001, p. 63)

Ao que Cabral responde em carta sem data: Meu caro Manuel, Muito obrigada pelas suas palavras sobre o meu livro. E pelas de Vinícius, transcritas por você. [...] lhe mando mais folhas do exemplar aéreo do Mafuá. [...] Não repare muito, quando o tenha em suas mãos, nos defeitos. Pensei que fosse fácil imprimir e, só agora, que o estou fazendo aceitavelmente, compreendo que fiz mal em lhe pedir, tão cedo, o livro. À custa dele (e v. poderá ver o que digo no curso das páginas) é que aprendi a imprimir – o que não está direito nem é decente. Espero, contudo, que v. não

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rompa relações com o editor. (MELO NETO, 2001, p. 69)

A exigência exacerbada que Cabral impõe a si mesmo é igualmente revelada quando discursa sobre o trabalho de Miró, em Prosa, (1997, p. 40): “ao artista, o exercício de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mínimo resultado a que seu trabalho vai chegando”. Suas frustações e imprevisibilidades na atividade de impressor ressaltam em resposta à Manuel, numa clara preocupação em atender às expectativas do amigo poeta: Mais uma vez me desculpe v. a má qualidade da impressão. Na verdade, andei meio irresponsável pedindo um livro seu antes de ter o pleno domínio do maquinismo... Mas estou disposto, desde logo, a compensar o prejuízo, imprimindo o que v. me queira, algum dia, mandar. [...] O impressor continuará, logo mais, sua atividade, com um poema de Teodomiro Tostes. Com as traduções do chefe... etc., ect. Sempre à espera de um poema que o Vinícius não manda. Fico por aqui. Mais uma vez me desculpe os defeitos e a demora. E se vai oferecer algum exemplar aos homens que no Brasil conhecem a técnica do livro – Santa Rosa, Luís Jardim, Joaquim Cardoso – peço esclarecer que as páginas onde se nota o brilho do Setestrelo foram impressas, como todo o meu livro, numa prensa de tirar provas. (Ibidem, 2001, p. 72)

A experiência com as palavras materiais de João Cabral inspira outros tipógrafos amadores, dentre eles Manuel Segalá também poeta e tipógrafo importante no cenário literário brasileiro. Catalão radicado no Brasil, bem como gravador e artista gráfico, publicou manualmente com sua editora Philobiblion obras de Carlos Drummond de Andrade; Manuel Bandeira; Cecília Meireles; entre outros, em máquina tipográfica batizada com o nome “Verônica”. Confeccionou livros para bibliófilos, alguns deles ilustrados e escritos à mão com caracteres românicos medievais do século XIII. Em 1955, em sua revista A Sereia111 de número dois, havia uma fotografia de sua máquina tipográfica com o seguinte texto de Drummond: “A Verônica é mais ou menos uma pessoa: é uma prensa manual que faz poesia” (In CRENI, 2013, p. 38). Neste mesmo número, Manuel Segalá publicou o poema Es111 Também edita Soneto da Buquinagem (1955), de Carlos Drummond de Andrade; Espelho Cego (1955) e Giroflê Giroflá (1956), de Cecília Meireles; e O melhor Soneto (1955), de Manuel Bandeira. A Sereia era uma revista dirigida, ilustrada e impressa na prensa manual A Verônica.

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pelho cego de Cecília Meireles, a cujo colofon112 da obra foi adicionada uma errata com o título “Quase sátira ao ‘espelho cego’ dedicada ao editor sem culpa”, na qual a autora livra o editor da culpa do acento circunflexo que colocara na palavra “Espelho”. A editora publicou mais de 30 títulos entre os anos de 1954 a 1957, num acervo considerado raríssimo e disponível apenas para bibliófilos. A Segalá, o artista plástico Celso Cunha se refere como um “artesão no século da indústria”, onde trabalhava a ‘arte negra’ com “aquele carinho religioso de quem busca, através das formas exteriores e visíveis, penetrar nas verdades ideais e interiores, as verdades de Deus” (In CRENI, 2013, p. 42). A “arte negra”, como é chamada a técnica de reprodução gráfica, atraiu, do mesmo modo, o médico, poeta, romancista e artista Jorge de Lima, se aventurando na impressão tipográfica. De natureza intelectual prodigiosa, descrito pelo amigo Murilo Mendes (In LIMA, 2013, p 522), se desdobrou em vários planos, e imerso no mundo das artes, escolheu a fotomontagem como “recorte e cruzamento de ideias, palavras, imagens, alegorias, sensações, operando-se ainda a redução ou o aumento superlativo das categorias de tempo e espaço” (MENDES in Ibidem, p. 524). Transformou em ateliê o seu consultório da Cinelândia, no Rio de Janeiro na década de 30, e lá havia uma prensa manual com a qual praticava a arte da tipografia, experimentando o espaço da página unindo poesia e imagens. Como editor artesanal, publicou aproximadamente dez livros, mas transitou também por outras editoras artesanais como a editora Hipocampo de Thiago de Mello e Geir Campos, em Niterói, publicando 116 exemplares de As ilhas, numerados e autenticados pelo próprio autor no ano de 1952. Seu consultório atelier serviu como ponto de encontro de amigos e intelectuais como os escritores Murilo Mendes e Graciliano Ramos, bem como o poeta e artista José Lins do Rego, também um entusiasta da impressão manual e editor das primeiras Foto-Plásticas de Jorge de Lima na revista Renovação, em Recife no ano de 1941. Vicente do Rego Monteiro113 não foi só o genial artista plástico 112 O colofon ou colofão designa a nota final de um manuscrito ou de um livro impresso, principalmente dos incunábulos, onde estão descritos o nome do autor do livro; o título da obra; o nome do impressor e/ou do editor; o lugar e a data da impressão. 113 (1899-1970). Autor de 19 obras literárias, “uma de criação inesgotável”, segundo Paulo Bruscky (2004, p. 22). Foi administrador da revista Montparnasse, em Paris, no ano de 1930; diretor da Imprensa Oficial de Pernambuco em 1939, editando primorosas edições; realiza em 1941 o primeiro Congresso de Poesia do Recife com Cabral, Willy Lewin e José Guimarães de Araújo; publica, pela editora Renovação, cinco volumes do Caderno de Poesia, no Recife em 1944 e permanece com as atividades nessa editora até o ano de 1945, quando segue para Paris. Até o começo dos anos sessenta mantém em pleno funcionamento sua editora artesanal Presse à Bras. Em 1948 organiza o primeiro Mur de la poésie do Salon di Mai, de Paris

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conhecido e consagrado, mas também uma figura multifacetada: cenógrafo, fabricante de águardente, fotógrafo, jornalista, professor e cineasta, e também o “brilhante poeta, tipógrafo e tradutor tão desconhecido pelo público brasileiro e pernambucano, apesar de ser consagrado na França” (BRUSCKY, 2004, p. 22), com três prêmios distintos, lhe rendendo os méritos como editor de importantes poetas franceses e possuidor de verbete no Dictionaire de la Poésie Française Contemporaire – Larousse, Paris, 1968. Nos anos de mil novecentos e trinta e quarenta, o Recife fervilhava intelectualidade, um diferencial que se destava dos pólos culturais de São Paulo e Rio de Janeiro114. Organizador de congressos de poesia, foi em Fortaleza no ano de 1942, no Congresso de Poesia do Ceará, que ao lado de Mário de Andrade enviou uma proposta intitulada União dos Poetas contra a Velocidade, opondo-se à velocidade como símbolo do progresso, buscando criar uma associação de pequenos tipógrafos para edições de livros, folhetos e revistas de confraternização: Não será admitido nenhum profissional tipógrafo, a não ser que seja poeta. Não nos referimos a profissionais remunerados visto que o espírito de ajuda mútua deve presidir esses trabalhos. Será aconselhável o processo de impressão primitivo. Prelos de madeira. Os prelos a pedal são por demias velozes e contrários à nossa luta pela “lentidão clemente das coisas naturais”. (REGO MONTEIRO, in: ZANINI, 1997, pp. 390-391)

Boa parte dos poetas não puderam aceitar tamanha lentidão, e o desejo editorial iria se confirmar em Paris. Artista compulsivo, Vicente do Rego Monteiro publicou vários livros artesanais, conjugando seu talento de artista e designer115. Nos anos que antecederam sua morada em território e realiza o primeiro Congresso Internacional de Poesia em 1951, imprimindo obras de Mário de Andrade e Vinícius de Moraes. Realizou também programas de rádios e gravações de discos de poesia, hoje verdadeiras raridades. É citado por Gaston Bachelard em La Poétique de L’Espace. (Cf: BRUSCKY, 2004, pp. 22-23) 114 Os seus congressos de poesia são um capítulo dos mais interessantes na história da literatura brasileira no século passado. Tanto pela qualidade do pessoal que reuniu (incluindo autores do nível de João Cabral, que estréia como autor lendo uma “tese” intitulada Considerações Sobre o Poeta Dormindo – inicialmente o título era Os Estranhosos Suicídios Pelos Instrumentos de Ótica) quanto pela originalidade dos títulos escolhidos para cada palestrante, primando por uma lógica de senho e pura associação abstrata, quem sabe na linha preconizada por Mallarmé. Para se ter uma ideia do anacronismo – não de Vicente, mas dos pernambucanos – deve-se dizer que tanto os seus poemas quanto os congressos foram rechaçados na imprensa local. (Hélio, Mário. In: BRUSCKY, 2004, p. 37) 115 Era um exímio criador de vinhetas e ilustrador gráfico, com destaque para os gráficos criados a partir de monumentos parisienses e aplicados em cerâmicas Marajoaras. Foi pre-

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francês, Vicente foi “a antecipação do Gráfico Amador e influência para João Cabral de Melo Nelo no gosto da tipografia”, assinala Mário Hélio (In BRUSCKY, p. 37). Sua primeira editora artesanal (Renovação) funcionou no endereço da Av. Visconde de Suassuna, número 323, lugar que também residia; na rua da Amizade, 46; e na rua do Bom Jesus, 207 no segundo andar, todas em Recife. Segundo Edson Nery da Fonseca (In Ibidem, 2004, p. 82), de 1942 a 1946, Vicente publicou, por esta editora, a revista Renovação, cujo conteúdo mensal era inovador, tanto na literatura como nas artes gráficas.O Poema 100% Nacional foi talvez, segundo Bruscky (2004, p. 24), o primeiro poema tipográfico do Brasil, “em 1952 lançou o livro Concrétion, antecipando-se ao Concretismo”. Em Paris, sua Presse à Bras juntamente com a esposa Marcelle, tinha o endereço da residência do casal à Rue Didot, 117. Mário Hélio ressalta sua condição de pintor e tipógrafo como “inseparável de sua condição de poeta”, além de sua importância de tradutor preocupado mais em “fazer os brasileiros lidos na França” (In BRUSCKY, p. 37). Com Presse à Bras, Vicente contou com o apoio do poeta francês Géo-Charles, que também era amigo do pintor Foujita. Antes de sair do Brasil em 1946, Vicente trocou carta com o poeta francês, onde mencioara sua preocupação em fixar-se com a tipografia: “Será que eu devo expedir para Paris os meus poucos tipos metálicos ‘Garamond’? Existe alguma proibição? Os impostos da alfândega para material usado são muito elevados?” (In BRUSCKY, 2004, p. 94), e em correspodência seguinte se decidira em não levar os tipos e improvisar sua oficina tipográfica “com os recursos do lugar” (OITICICA-FILHO, Francisco in Ibidem, p. 95). Oiticica-Filho ressalta também a generosidade do poeta, baseada na absorção da diferença, muito mais do que da promoção pessoal e que sua excentricidade no meio artístico brasileiro dificultou o trânsito internacional de sua obra. Tinha a aptidão de inventor, construindo aparelhos e máquinas, que vão desde as adaptações de sua pequena impressora na Presse à Bras, até um planador116. Em relação à Presse à Bras, segundo Walter Zanini, o prelo117 foi levado de Recife para Paris, mas a “máquina” tipográfica, responsável pela impressão de suas edições, foi construída por ele. Em fotografia da prensa estampada em exemplar do Les Cahiers Luxembourgeois cursor também da Arte Postal, publicando em Paris, na sua Presse à Bras, uma série de poemas-postais no período entre 1952 a 1968. 116 Também modelou, no barro, um alambique para a produção de uma aguardente de raro sabor. (Cf: ZANINI, 1997, p. 27) 117 Prelo é também um ‘tirador’ de provas plano. Com ele se imprimem poucas cópias para verificar os erros e testar as cores.

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(nº 2, em 1953), o casal está entregue à tarefa da impressão no equipamento que parece ser muito rudimentar, sem a utilização de luz ou pedal. O casal trabalhava no minúsculo apartamento da rue Didot, em que Robert Schneider oferece uma ideia de como era o lugar: No meio do quarto, ergue-se essa pequena máquina que Monteiro construiu usando uma centena de pranchas e madeira, polias, cordéis, impressora de letras, guidão de bicicleta... Em sua Presse à Bras Monteiro imprime, além de sua revista, algumas raras brochuras de pequena tiragem. É necessária a paixão de um espírito criador e a constância desse mestre para obter essas pranchas delicadas. A mecânica é engenhosa e simples. Só a inteligência e a sensibilidade de Monteiro explicam a qualidade e a perfeição dessas magníficas realizações que ultrapassam às vezes até os resultados alcançados pelas impressoras modernas com suas máquinas automáticas. (In ZANINI, 1997, pp. 395-396)

Sua obra poética era também plástica, e sua interação de palavrasimagens é observada por Zanini como um poeta da modernidade antecipando-se à “economia concreta” (1997, p. 362), ressaltando a importância do lançamento de Poemas de Bolso em 1941, contendo sua “poesia pictórica”118, onde o interesse pelo ofício artesanal é também explorado em seus poemas. Nos Cantos de Ferro, por exemplo, publicado pela Presse à Bras em 1950, o poeta concede atenção à mão versus a máquina. O poema Le Chant de Fer ecova o ofício do trabalhador, “quando as máquinas orientam para um novo tipo de trabalho e de trabalhador aos quais se assemelha ou se assimila o poeta [...], Le Chant de la Machine reconduz à dialética do título: canto versus ferro, canto versus máquina” ( JOACHIM, Sebastien in BRUSCKY, p. 107). Na obra Chiromancie de 1961, o poeta trabalha com o tema das mãos. A mão rápida, a mão imprória, a segunda e a terceira mãos, e num dos poemas há a mão tipográfica, representada pelos punhos, um símbolo muito comum utilizado em vinhetas gráficas, em forma de clichê119. Vicente era o artista do fazer. Em posfácio da obra Le petit cirque (Presse à Bras, 1948), Henri Perruchot descreve Vicente como “a recusa e desdém em nosso século”: Artesão no sentido mais alto do termo [...] tecendo lentamente a sua obra, múltipla e amadurecida como 118 Referência de Nilo Pereira in ZANINI, 1997, p. 364. 119 Clichê, vide GLOSSÁRIO.

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um dia de agosto, contando com o tempo, conhecendo as estações e seus lentos amadurecimentos, amorosamente trabalhando sem preocupações como nossos anos frouxos e sórdidos, com o make money, com galés providos de acorrentamentos, achando contentamento em si mesmo, cuidadosamente colocando na tela, toque após toque, no papel ou na sua imprensa letra após letra, tendo como objetivo fazer bem e ser feliz de ter bem feito? Vicente Monteiro é uma dessas luzes, perdidas, mas tão vivas na noite que, erguidas e fixas, ardem na expectativa da epifania do Homem. (In BRUSCKY, p. 249)

Segundo Ypiranga Filho (seu aluno depois de retornar de Paris), “nos deixou como marca, a paixão pela técnica, a paciência do fazer” (In Ibidem, p. 56): Pintar, para ele, não tinha nada a ver com abrir um pote de tinta industrial, mergulhar o pincel e levá-lo a uma tela adquirida no comércio. Muito ao contrário, Vicente transmitia, , com um imenso prazer, o gosto pelas técnicas de preparar sua própria matéria. Sobretudo a tinta, que ele guardava em tubos de pasta dental recuperados, mas também a tela, sempre de seda ou linho belga (posteriormente admitiu-se a lona-de-cama), chassis em cedro de tachas de cobre (para não estragar as bordas da tela). Lembro-me de quanto ficou encantado, quando fiz para ele um esticador de tela. Uma tarde, sentados da escadaria da Escola de Belas-Artes, discutimos gostosamente uma outra das suas ideias: ele propôs sairmos os dois, em uma kombi, devidamente adaptada, vendendo quadros pelo Brasil afora, até São Paulo. Eu estava concluindo o Curso de Artes Gráficas, com Gastão de Holanda, quando Vicente completou a idade da aposentadoria compulsória e foi para a UnB, Brasília, convidado por frei Binder, diretor do Instituto de Artes/UnB, para montar ali uma Gráfica Piloto. Levou consigo Fernando Barreto e mais tarde nos chamou, Baldini e eu – ainda aluno das Belas Artes – para compartilhar a rica experiência. Vivi por quatro meses o entusiasmo com que discutia e me transmitia a tarefa de preparar o material para as suas aulas de Artes Gráficas. Mas eram tempos difíceis, o Brasil pós-64. (FILHO in BRUSCKY, 2004, pp. 56-57)

Para João Câmara, Vicente foi o mais original dentre os protagonistas da Semana de 22, o que mais soube perpetuar e atualizar a sua marça

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e visão de mundo, por ter em sua obra uma base permanente, uma disposição de certeza em sua brasilidade no saber traçar a universalidade de uma visão orgânica dos trópicos, sem o subsídio burlesco do antropofagismo, mas com a vitalização de uma memória ativa do mundo, de formas particulares que lhe instruíram o estágio litúrgico de nossa cultura; a transformação da fruição no fazer, no artesanato da sobreviência. (Câmara, João in BRUSCKY, p. 66)

Vicente é, segundo Câmara, “livre no seu próprio tempo e livre com seus instrumentos”, um artesão-inventor sem a efêmera condição de ser moderno, livre da industrialização e cotação do mercado. Na opinião de Edson Nery da Fonseca, a obra-prima de Vicente “no arduo honor de la tipografia”120, a que se refere Jorge Luis Borges, são os nove caligramas para o belíssimo poema de Edson Regis, Lisboa: 1956121, uma edição de apenas 12 exemplares, com posfácio de J. Gonçalves de Oliveira. [...] É, sem exagero, o mais bonito livro impresso no Brasil” (In BRUSCKY, p. 83). Trata-se de uma edição em que Vicente caligrafou os poemas de Regis, formando figuras com a própria escrita, um poema visual. Contudo, Nery da Fonseca recorda os piores anos de Vicente, quando lecionou em Brasília: Duramente atingida pela Revolução de 1964, a UnB estava em crise. Grupos de extrema-esquerda insuflavam os alunos contra professores contratados para substituir os duzentos e tantos que abandonaram o barco, em solidariedade aos atingidos pelo AI-5. Era esta a situação funcional de Vicente. Mas seu passado glorioso de artista brasileiro consagrado em Paris deveria ter sido considerado. Não foi, porque os epígonos da extrema-esquerda sempre seguiram o politique d’abord da direita maurrasiana. Em vez de festejarem com carinho e as honras que merecia, insultaram-no e chegaram a empastelar suas experiências na Gráfica Piloto da Universidade, onde ainda chegou a imprimir o poema de Cassiano Nunes em homehagem a Braque. Por trás das hostilidades a Vicente do Rego Monteiro também havia a inveja de alguns professores do Instituto Central de Artes. Amargurado, Vicente do Rego Moneiro voltou para o Recife onde morreria pouco tempo depois. (CÂMARA in BRUSCKY, 2004, p. 83)

120 Borges, Jorge Luis. La Luna. In: Poesía completa. Barcelona: Lumen, 2011. 121 Em ANEXOS nesta pesquisa.

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Vicente do Rego Monteiro não se deixava abalar pelas intempéries da vida. Quando surgiu um problema de enfarte em 1955, ficou impossibilitado de manejar seu equipamento gráfico e partiu então para o campo sonoro, gravando versos em vários discos, que compuseram a coleção Vox Poética, e hoje consideradas peças raras. Como personalidade bem relacionada, na França foi amigo de pintores como Braque, Matisse, Lothe, Picasso; de intelectuais como Pierre Seghers e Pietro Maria Bardi; vizinho e amigo de Maurice Utrillo, do poeta Tristan Tzara e do escultor catalão Pablo Gargallo, além dos modernistas brasileiros que lá moravam como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. No Brasil, são incontáveis os amigos, dentre eles Jorge Amado, João Cabral, Ariano Suassuna e Gilberto Freyre. Muito próximo a Vicente, Freyre havia recém chegado dos Estados Unidos, e começou um movimento de articulação pós Semana de 22, com tendências modernistas, mas sobretudo regionais. Como intelectual, atuou em diversas áreas, entre elas na impressão de livros. Se interessava deveras pelo livro artesanal. Sem ser tipógrafo, foi um aficcionado pelas artes gráficas e teve experiência como editor, junto com José Maria de Albuquerque e Melo122 na Revista do Norte e Livro do Nordeste, no Recife. Junto com Vicente do Rego Monteiro e João Cabral de Melo Neto, frequentou a editora O Gráfico Amador, da qual era sócio oficial, juntamente como Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Gilberto Botelho, José Mindlin, Osman Lins entre outros. No primeiro boletim veiculado para os sócios (datado de julho de 1955) o grupo se afirmava: O Gráfico Amador reúne um grupo de pessoas interessadas na arte do livro. Fundado em maio de 1954, tem a finalidade de editar, sob cuidadosa forma gráfica, textos literários cuja extensão não ultrapasse as limitações de uma oficina de amadores. Os trabalhos são projetados e realizados por Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda, José Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira123 (O Gráfico Amador, 1955). (LIMA, 1997, p. 85)

Com trinta membros no primeiro ano, todos eles intelectuais, muitos

122 Com apelido de Zé Maria Cavalão, tinha paixão por tipos e era, antes de tudo, um contemplador. (Cf: CRENI, 2013, p. 100) 123 Orlando se graduou em Biblioteconomia com especialização em História do Livro. Aloísio e Gastão haviam acabado de voltar de Paris. Aloísio estudara Gravura e Pintura, e mais tarde se tornou o pioneiro na introdução do design moderno no Brasil, considerado pela crítica um dos mais importantes designers gráficos brasileiros do século XX. Gastão de Holanda estudou Literatura na Sorbonne e tornou-se professor universitário.

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dos quais alcançaram destaque no contexto cultural brasileiro. Segundo Guilherme Cunha Lima (1997, p. 87), O Gráfico Amador foi fundado porque o grupo desejava publicar seus próprios escritos e o circuito editorial comercial não lhes era possível por não haver editoras em Pernambuco. No Recife, João Cabral já tinha alguma experiência como tipógrafo e com ele o grupo aprendeu a compor e imprimir. A editora funcionou na década de 1950 na casa da rua Amélia, número 415, em uma sala da frente, “exposto à curiosidade pública” (CRENI, 2013, p. 100). Os sócios se cotizaram na aquisição da primeira prensa manual do tipo platina124, e mais tarde já contabilizavam outra máquina elétrica de modelo Minerva, doada pelo sócio Odilon Ribeiro Coutinho, e Aloísio Magalhães contribuiu com sua prensa litográfica alemã (Leipzig) da década de 1880. Na casa da rua Amélia se tinha a habilidade para fazer tudo125, e “as reuniões entre os sócios se realizavam às segundas e quintas-feiras, começavam depois do jantar e só terminavam na manhã seguinte, depois de memoráveis discussões filosóficas e estéticas ou de uma simples comemoração mundana” (LIMA, 1997, p. 88). A lista oficial de sócios aumentara na segunda lista oficial, de trinta membros para cinquenta e um, apesar da baixa de seis nomes. Nota-se, contudo, a presença de somente duas mulheres (Germana Vilar Suassuna e Maria de Lourdes Guimarães Ribeiro), o que segundo Lima (Ibidem, p. 96), caracterizava o caráter machista dos membros, divididos em categorias: os que eram escritores, poetas e ilustradores e que participavam diretamente no processo editorial, e os que davam suporte financeiro, pagando mensalidade e eram colecionadores. Eram designados como os “mãos sujas” e os “mãos limpas” respectivamente. A experiência do grupo resumia-se com as seguintes palavras: Nós éramos os mãos sujas (aqueles que pegavam na tinta de imprimir). Mais tarde, depois das tarefas executadas e depois de ter deixado as folhas impressas espalhadas sobre os “insetos”, subíamos para o sótão. Os mãos limpas chegavam depois do compromisso tipográfico da noite, e todo o resto era literatura. (HOLANDA in CRENI, 2013, p. 103)

124 Modelo igual à máquina que pertenceu ao pai de Rosana Cacciatore no documentário Cleber e a Máquina (2014). 125 No que seria um quarto contíguo, uma grande prensa litográfica que pertencia a Aloísio Magalhães, O sótão fora transformado no atelier de Aloísio, na sala de jantar ficavam os arquitetos Glauco Campelo, Jorge Martins e Artur Lício Pontual e na cozinha morava o arquiteto Abel Carnaúba.

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Ariano Suassuna126 em entrevista a Guilherme Cunha Lima (Ibidem, p. 96) definiu outras duas categorias: “os que conversavam” e “os que trabalhavam”. O reconhecimento do grupo era nacional e internacionalmente divulgado em notas, comentários ou artigos distribuídos em boletins, revistas e jornais, como em Drummond no Correio da Manhã de 29 de maio de 1955: No Recife, terra de mestres impressores V. do Rego Monteiro e João Cabral de Melo Neto, os rapazes de O Gráfico Amador enviam nada menos de três volumes [...] o primeiro [As Conversações Noturnas] [...] chega a ser um desperdício de beleza: é o livro mais festivo e cantante de cores que já vi, sem embargo da grave e meditativa poesia de Laurenio127. (In LIMA, 1997, p. 91)

As atividades da editora findaram no ano de 1961 e “durante toda a sua existência O Gráfico Amador tentou por mais de uma vez se tornar profissional. Quis a história, no entanto, que morresse amador” (LIMA, 1997, p. 103). A ansiedade de renovação do grupo se ofuscou em função dos acontecimentos sinistros que se instauraram, e os membros não podiam ignorar o que estava acontecendo, “a liberdade dos anos Kubitschek (1956-1960) havia terminado, e com ela terminava um período de paz e harmonia entre pessoas de opiniões políticas opostas” (Ibidem, p. 102), o que Lima denominaria como um “interlúdio democrático”. José Laurenio de Melo sintetizou, em artigo de despedida no Estado de S. Paulo, a experiência e o louvor à tipografia n’O Gráfico Amador na frase de Oliver Simon128: printing is a way of life. As atividades em grupo no Brasil da década de sessenta tornavamse cada vez mais difíceis à medida que se estabelecia uma ditadura de silêncios. Enquanto o país adotava uma política de crescimento das indústrias e bens de consumo, investindo na importação de maquinário gráfico, a liberdade de propagação das ideias do livro e das letras, assim como toda a ideologia, estava constantemente ameaçada. Os escritores eram visados e era preciso ter cautela com “novos conceitos”, e ideias teriam de ser transfiguradas como figuras de linguagem, substituindo significados e sentidos. 126 O quintal se transformara em uma misteriosa galeria noturna e de vez em sempre Ariano Suassuna compartilhava, em sua rede, de todo o projeto. 127 “Inegável é a influência de João Cabral na produção desse primeiro trabalho de O Gráfico Amador: As Coversações Noturnas é também um livro inconsútil” (Cf: LIMA, 1997, p. 91) 128 Autor do lendário livro sobre tipografia e uma das únicas fonte de orientação àquela época. OLIVER, Simon. Introduction to typography. Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1954.

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Um dos membros d’O Gráfico Amador, o escritor recifense Osman Lins, era um conhecedor do ofício das letras. Ana Luiza Andrade (1987, p. 14) indica que Lins lutou por toda a vida pelo amor espiritual aos livros e contra um mundo cada vez mais utilitário, ressaltando que tinha, inclusive, “o dom especial de procurar o eterno nas coisas passageiras”, evidenciando sua fidelidade à causa literária (Ibidem, p. 25). Nos ensaios que compõem Guerra sem Testemunhas (1974), Lins relata a empreitada do escritor em seu caminho muitas vezes solitário no ato de escrever em confronto com a vocação, e em confronto com a máquina editorial. Segundo Lins, o prazer do percurso da impressão de um livro está na arte de imprimir129. Na primeira edição de 1973 e publicada pela editora Melhoramentos, o romance Avalovara teve, segundo Ana Luiza Andrade, a impressão supervisionada pelo autor. Levando em consideração o período de sua publicação, com os poucos recursos da indústria gráfica na época, o romance se destaca pelo caráter primoroso do processo gráfico, não se preocupando apenas com a capa, mas desde a escolha das fontes (tipos), até sua minuciosa diagramação, na preocupação com a quebra dos capítulos em relação ao livro total, inteiro. É visível como o autor se preocupou com a percepção cognitiva e sensorial do leitor, através do tato com a textura das páginas, no relevo das letras impressas com os tipos de chumbo. São detalhes que evidenciam a marca de uma época quando ainda não se imprimia digitalmente, tampouco se fazia uso de fotolitos130. Em Guerra sem Testemunhas (1974, p. 146), Lins revela o conhecimento sobre o significado do próprio ofício131. Era bom entendedor da arte de impressão de livros e compreendia sua natureza como um obstinado a 129 No ensaio O Escritor e o Livro, Lins reforça a necessidade de assegurar ao Livro sua condição de espaço privilegiado, reivindicando no seu esplendor de objeto material a sua permanência em oposição ao efêmero; o livro como instrumento de prazer, fonte de sabedoria, caminho de edificação, mas nunca como objeto de consumo. Sua multiplicação se manifesta, segundo Lins, com o respeito ao zelo que este oferece ao conquistar seu lugar nas estantes, onde seu prestígio espiritual se dá em seu ingresso no tempo. Para Osman Lins, a apreensão da realidade e sua interpretação sempre caberá à obra escrita, ao livro como veículo perfeito. O bom Livro, portanto, honra o texto (1974, p. 147). 130 Fotolito é um papel de acetato que viabilizava “uma ponte” entre o analógico e o digital no processo gráfico. Hoje a impressão se dá diretamente no digital. 131 A figura do artesão é de extrema importância na obra de Osman Lins, e segundo Ana Luiza Andrade, os traços para a compreensão de sua carreira literária se revelam em sua biografia (1987, p. 27). Andrade assinala que em sua infância solitária, as figuras do pai alfaiate, do tio navegador e do amigo professor de literatura proporcionaram-lhe a admiração pela atividade criativa do artesão, no estímulo e a fantasia necessários à sua profissão: “A fascinação que a artesania exerceu sobre o escritor tem uma marca definitiva em sua obra. O precoce contato com a artesania, não só faz com que se interesse, à maneira do alfaiate e do barbeiro,

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desvendar enigmas da história e evolução dessa arte/ofício, embora lamentasse quão poucos escritores igualmente o fizessem132. No mesmo livro, Lins assinala que Maurice Blanchot, em O Livro por Vir, percebe no silêncio da literatura um convite à lucidez: “uma obra literária, para quem sabe penetrá-la, é uma rica estação de silêncio, uma defesa firme e uma alta muralha contra essa imensidade falante que se dirige a nós desviando-nos de nós”. E Osman Lins destaca ainda o que para Blanchot é claro: “no grande silêncio onde se processa a obra literária, residem a lealdade e a grandeza da literatura” (In Ibidem, p. 146). Ao escrever sobre a solidão do escritor, tão evidente nos ensaios de Guerras sem Testemunhas, Lins critica os meios de registro direto, a imprensa ou a “literatura industrial”133. Vivendo o poeta em São Paulo nos anos 70, onde as circunstâncias de impressão eram análogas às de Mallarmé na Paris do final do século XIX (apesar dos momentos diferentes), os conflitos entre a mão-de-obra barata e a força operária assalariada eram os mesmos em ambas as sociedades recém-industrializadas liberais, e a analogia, pretensamente, torna-se tentadora neste ponto da dissertação. No caso do poeta francês, Mallarmé propôs uma crítica à exploração do modelo industrial reprodutivo no poema Un coup de dés, no qual trabalhou com diferentes tipos, explorando possibilidades das dobras nos espaços em branco e com isso, sugeriu a leitura como apreensão de estrupelos “segredos” ou pela aquisição das técnicas necessárias à maestria na profissão que tomou por uma escolha deliberada, mas leva-o a uma preocupação marcante, e que inclusive é transmitida em cada uma de suas obras, com a literatura como a arte de criação por excelência. E, se a visão crítica de sua profissão faz com que admira uma postura por vezes até reacionária perante à imprensa, em artigos jornalísticos e ensaios, expressando sua indignação por uma sociedade indiferente ao seu ato solitário, esta indignação transfere-se à ficção, a este próprio ato solitário e ensimesmado, idêntico ao exercício que tanto havia praticado em sua infância. A ficção é, portanto, uma herança que o escritor procura liberar no diálogo consigo mesmo, na prática de uma atividade criativa auto-referencial à busca de um aperfeiçoamento que maximize suas possibilidades de criação e que acaba por ser um ato crítico da criação em si mesma” (ANDRADE, 1987, p. 28). 132 Em Avalovara, o escritor pernambucano construiu sua crítica ao regime político brasileiro em diferentes formas, e uma delas foi através do processo gráfico. Contudo, a inserção de um signo visual no capítulo Nascida e Nascida é um recurso diferenciado no processo de impressão, já que o signo escolhido não é uma letra e sua presença dentro da obra deve ter sido algo complicado desde sua aceitação pelo editor até sua produção na máquina de impressão. O romance Avalovara e seu processo de impressão são uma importante medida no que se refere à política e economia no Brasil do regime militar. Lins não deixa transparências em sua construção literária, pelo contrário, a visão turva só dá lugar à limpidez quando nos aprofundamos em sua obra, no mergulho literário onde se pode retirar a origem de sua construção intelectual. Para Osman, tudo é mistério, “o mundo é insondável. Mundo e obra só nos oferecem algumas de suas faces inumeráveis” (ANDRADE, 1987, p. 27). 133 MEYER apud. ANDRADE, 2005, p. 109.

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turas visuais: o branco da página seria também um elemento significante e de pausa. Em oposição ao jornal de leitura rápida e instantânea, o poeta francês previu no livro o seu manuseio como objeto idolatrado, na matéria esculpida pelas letras, compreendido não somente como uma superfície (página), mas em sua tridimensionalidade134. Pensou no livro como algo mais do que um receptáculo neutro para receber a escrita: prenunciou objetos de estudo recorrentes na arte contemporânea e rompeu limites com o texto para a literatura. Iluminou a dobra, segundo Deleuze: “sem dúvida o mais importante em Mallarmé, a noção da operação, sobretudo o ato operatório que fez dele um grande poeta barroco, ou melhor, na dobra como gesto” (1991, p. 59). A Mallarmé, o tipógrafo francês Jacques Damase, atribuiu o início da tipografia moderna. Segundo ele, “o estranho poema que apareceu em maio de 1897 em Londres na revista Cosmopolis, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard pode ser considerado historicamente o primeiro tiro de canhão que despertou o espírito do livro moderno” (In LIMA, 1997, p. 18). Os escritos de Mallarmé contribuíram para a compreensão da palavra como objeto a ser trabalhado poeticamente. Segundo Mallarmé, a letra seria o elemento básico de um livro e deveria encontrar sua mobilidade e expansão. Para fazer o experimento, usou a metáfora da composição musical como inspiração na tipografia135, e para exemplificar a relação do tipógrafo com a palavra, o gráfico francês J. R. Thomé confere o experimento de Mallarmé: Quando o tipógrafo seleciona e arranja seus caracteres, quando organiza o diálogo entre o silêncio eloquente das margens e as vozes das linhas impressas, ele se propõe uma perfeição. Não se atreve a dizer “perfeição”, porque sabe-se que nada do que é humano pode atingir o absoluto. Uma aspiração infinita e sempre insatisfeita perpetua o tormento da arte, e a arte do tipógrafo não é menos nobre que as outras, porque veicula a inteligência e o coração

134 No livro The Book as Instrument: Stéphane Mallarmé, The Artist’s Book, and the Transformation of Print Culture (Chicagopress, 2011) Anna Sigrídur Arnar sustenta que a obra de Mallarmé tem sido amplamente mal interpretada pela crítica em seu próprio tempo até os estudos mais recentes, como um produtor intencional e elitista de textos para um público culto. Sigrídur argumenta que Mallarmé estava bem informado sobre a transformação da impressão em massa da época e demonstra as aspirações progressistas do poeta, vinculado com os processos de impressão. A autora também revela o compromisso de Mallarmé em imprimir nos livros um instrumento social capaz de decretar um engajamento produtivo com o público. 135 Ao tipógrafo é concedida também a designação de compositor. Ele “compõem” os textos com tipos, como na música, quando o regente da orquestra compõe sons com os instrumentos.

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dos homens e serve ao intercâmbio dos valores intelectuais. No poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, Mallarmé sonhara obter a equivalência de uma orquestra através da paginação e da diversidade dos corpos. (THOMÉ, 1961)

No caso do brasileiro Osman Lins, em um dos capítulos que tecem a narrativa de Avalovara (1973), a imaginação ficcional do escritor construiu um relógio que metonimicamente se apresenta como uma máquina tipográfica: o Relógio de Julius Heckethorn. Dentro da ficção, o criador do relógio é, conforme o título, Julius Heckethorn, nascido em 1908, matemático, cravista e descendente em linha indireta de Charles William Heckethorn, que publica em Londres o livro The Printers of Basle in the XV and XVIth centuries, their biographies, printed books and devises. O pai de Julius abre no país onde vivem (Alemanha), uma oficina para a confecção de jóias. Desde menino, Julius lança-se ao desígnio secreto de sua vida: o desejo de adquirir uma oficina especializada em mecanismos de som para relógios na região da Floresta Negra. Lugar conhecido pela evidência como centro relojoeiro, graças a um industrial de nome Junghaus que revolucionara o lugar com a instalação de uma fábrica, “onde a contribuição artesanal fora reduzida a praticamente zero”, assim, “os primeiros anos de Julius Heckethorn passam-se entre carrilhões que soavam dia e noite” (LINS, 1973, p. 244). Os sonhos do menino Julius são atravessados por um contínuo bater de horas. Com o imprevisto da guerra de 1914, o silêncio dos dias o abate. Enfermo, ele anseia pela presença dos sonhados carrilhões. Um silêncio que se quebra quando o avô contrata um professor de cravo para o menino. Nesse pequeno trecho do Relógio de Julius Heckethorn é possível identificar a construção de um enigma no mínimo complexo e ambíguo136. Ora, qual seria a relação entre uma oficina relojoeira com a música sonora de carrilhões que embalam o sonho do menino, dia e noite? O carrilhão é um instrumento musical de percussão acionado por um teclado que, quando tocado, movimenta um conjunto de sinos de tamanhos variados. Os carrilhões, normalmente alojados em torres de igrejas, são os maiores instrumentos musicais do mundo. Portanto, compreendo o carrilhão como 136 Sobre o “interesse por um engenho raro e a narrativa de certas vicissitudes humanas com eles relacionadas”, Lins escreve: “Não obstante a modernidade das linhas e o que aproveita da técnica moderna, o relógio de J. H., tão distanciado dos que instigam a curiosidade de Platão ou dos que assinalam no Egito a marcha vencedora dos persas, situa-se no centro de uma teia de relações mais complexa e ambígua que a existente em torno de um relógio de sol ou da que justifica os relógios astronômicos”. (LINS, 1973, pp. 202-03) Grifo meu.

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a jóia de Julius Heckethorn, que projetava na oficina do pai a chave que lhe permitiria produzir os sons de seus sonhos, materializados na fabricação do um relógio incomum, uma única réplica neste mundo. O preceito de desordem de tal carrilhão se realiza com a variação de temperatura e na dilatação de uma delgada barra de zinco, supondo que é ativado pelas notas tocadas e soadas da invenção: Fabrica de maneira imperfeita um dispositivo complementar, atingido – e portanto desregulado – sempre que a temperatura sobe, pela dilatação de uma delgada barra de zinco, posta de maneira apropriada. Assim, há momentos em que o penúltimo grupo de notas, chegando a hora de soar, não soa [...] com tal imperfeição, o relógio de Julius alcança a perfeição. E como no projeto a que alude o incunábulo impresso em Basiléia, agora uma vida inteira pode decorrer sem que o mecanismo venha a repetir, da primeira à última nota [...] o que ele denominaria de a Sonata de Heckethorn. (LINS, 1973, p. 359)

O escritor Lins não conecta diretamente os carrilhões aos sons do relógio de Julius, nem deixa claro o funcionamento da invenção de seu personagem137. Porém, a maneira imperfeita do dispositivo complementar fabricado por Julius, que funciona pela dilatação de uma delgada barra de zinco posta de maneira apropriada, assemelha-se ao processo de fundição instantânea das letras de chumbo em linhas inteiras numa máquina de impressão Linotipo. Essa, que consistiu na última máquina de impressão que ainda utilizava a mão do homem no ato de compor as linhas que conti-

137 Jacques Le Goff (2008, p. 135) observa que a Antiguidade tardia e a Alta Idade Média introduziram outras invenções importantes no domínio da medida do tempo e do tempo vivido: “Nessa época em que o modelo monástico exercia influência forte, os monges adotaram uma divisão do tempo cotidiano em horas canônicas, desde o despertar matinal muito precoce (matinas) até o momento de se deitar.” “Além disso, para enquadrar a atividade da sociedade rural que os rodeava, inventaram no século VII um calendário sonoro, os sinos, o que levou à construção de numerosos campanários integrados ou não (avulsos) às igrejas. O ângelus da manhã e o ângelus do fim da tarde enquadraram a partir daí a vida cotidiana dos homens e das mulheres da Idade Média. Com esse tempo da Igreja entra em conflito frequentemente a partir do século XIII um tempo leigo, tempo das cidades (toque de alarme, chamado toque a rebate), a que chamei tempo dos comerciantes, porque esse toque destinava-se sobretudo a marcar o tempo do trabalho.” “Finalmente, aparece no fim desde mesmo século XIII o relógio mecânico, marcando, apesar de um funcionamento muitas vezes defeituoso, a repartição do tempo em horas iguais. O relógio individual, coisa rara até o século XIX (o tempo individual não é um fenômeno medieval), só foi criado no fim do século XV, em Milão. No século XV é que nasce, paralelamente com o emprego monástico do tempo, a partir daí tornado arcaico, um emprego do tempo leigo, e do mercador.”

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nham as palavras. Tal máquina substitui a prensa manual, e por isso renunciava à composição manual. A invenção da Linotipo em 1886 por Ottmar Mergenthaler, o tornou conhecido como o segundo Gutenberg. A bela e engenhosa máquina funciona com um carrilhão equipado com sistema de matrizes de chaves e ativado por um teclado semelhante ao da máquina de escrever. Cada molde de letra, após acionada pelo teclado, percorre um trilho diferente, na qual as matrizes de chaves tem encaixes únicos. Os moldes de letras caem em linhas (linotype) em um compartimento da máquina e, ao escorregarem em um caminho específico, ganham um banho de chumbo, zinco e estanho derretidos e vindos de um lingote, uma espécie de barra que é derretida no caldeirão da máquina. Ou seja, o carrilhão do relógio no romance de Lins, com sons vibrando e ecoando no maior instrumento do mundo é também a máquina de impressão Linotipo, cujo som do cair das chaves é tão magnífico quanto o de um instrumento musical. Somente quem teve a oportunidade de presenciar o funcionamento dessa máquina lhe atribuirá o devido e merecido valor espiritual, cultural e histórico. Infelizmente hoje, existem poucas máquinas Linotipo remanescentes no mundo138. Não obstante, Osman Lins como bom entendedor do ofício e da importância desse mistério da impressão para a literatura, descreve nos ensaios de Guerra sem Testemunhas a complexidade da máquina de Mergenthaler, segundo ele um processo onde “o livro atinge a plenitude de sua evolução”: A maioria das pessoas – e entre elas muitos escritores – jamais acompanhou a fabricação de um livro e nem sequer entrou numa oficina gráfica. Tem-se, em geral, a ideia de que as novas máquinas, encampando tarefas antes exaustivas, transformaram a produção do livro num ato de magia. Seja-nos então permitido esboçar a descrição, sempre suscinta, de como se fabrica uma brochura simples, sem cores nem clichês, com o auxílio da linotipo, uma vez que a monotipo139 (a qual funde isoladamente os caracteres) não é difundida entre nós. 138 O funcionamento da máquina é lembrança marcante e inesquecível. Em 2009 tive a oportunidade de presenciar o funcionamento de uma máquina de Linotipo na Oficina Tipográfica São Paulo (OTSP-Senac), sob coordenação do pesquisador e tipógrafo Marcos Melo, durante um curso sobre impressão tipográfica. Além do diploma em mãos, saí do curso com duas linhas: meu nome e email fundidos em metal. Nessa ocasião, Melo assinalou a dificuldade em encontrar uma arroba – @ – para fundir junto com as letras da máquina, por isso resalto que o signo visual no capítulo de Avalovara (Nascida e Nascida) foi um desafio no processo de impressão. 139 A máquina Monotipo funde letra a letra.

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Letra por letra, manejando com grande delicadeza um teclado semelhante ao das máquinas de escrever e cujas teclas, acionadas, vão liberar a matriz correspondente, o linotipista, tendo diante de si o original – às vezes coberto de rasuras e emendas em má caligrafia, uma vez que muitos escritores, sem ao menos pensar nos que imprimem livros, encaminham ao editor originais ilegíveis – compõem o texto, linha por linha. Cada uma destas, de per si, é levada pela máquina à posição de fundir, no disco de moldes, frente a um crisol, contendo chumbo derretido. O pequeno lingote assim formado, a linha-bloco, ato contínuo é resfriado e toma seu lugar no granel, enquanto as matrizes, graças a um sistema de ranhuras140, voltam para novo uso aos canais que lhes correspondem e o linotipista, com os mesmos gestos leves, prepara a linha seguinte. Esta, fundida, vem a cair sobre a anterior; outras se lhes acrescentam; atingem o número correspondente a uma página do futuro livro. O volume de chumbo, razoavelmente pesado, constituído por essas trinta ou quarenta linhas-bloco com a espessura aproximada de dois centímetros, é então retirado e preso com barbante, formando o paquê. A operação, simples na aparência, exige grande prática, sendo indispensável que fiquem ajustadas ao máximo as linhas-blocos. De cada página é tirada uma prova para revisão, incumbência a cargo da editora e frequentemente negligenciada por nós. (LINS, 1974, p. 129)

Osman Lins insere na literatura, através da invenção do personagem Julius Heckethorn, não só um relógio desordenadamente harmonioso, mas também algo em geral velado, que se situa no hiato entre a imaginação do escritor e o livro, no encontro com o leitor: o universo recôndito e modesto dos paraísos de impressão manual. O tempo nesses lugares é singular e em constante conflito com os avanços tecnológicos, tendo em vista que o toque e a montagem do texto com as palavras de chumbo na matriz que virá a ser impressa se prolonga e se relaciona também com o gesto tipográfico e respectivos experimentalismos.

140 As “ranhuras” a que Osman se refere é o entalhe que forma o código de uma chave. A máquina de Linotipo é composta por um carrilhão de chaves, todas com ranhuras diferentes. Estas chaves são as matrizes ou moldes das letras.

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Com os gestos que dilatam o tempo, os escritores proporcionam amplitude às suas criações literárias, ao adotar um ritmo particular, no qual a coreografia da composição e os rastros da palavra permitem aberturas e dissonâncias entretempos. Eis, pois, o imprevisto e o calculado que Antonio Candido no prefácio no romance Avalovara entrevê na construção do relógio de Julius. Esse relógio, afinal, é a metonímia da construção do próprio livro de Osman Lins, cujos “desenhos e os cálculos, na maioria das vezes, distanciam-se do projeto inicial, muito embora todo relojoeiro deva ambicionar a exatidão” (LINS, 1973, p. 334), e “por menos que as ouçam ouvidos, nunca podemos ignorá-las mãos e imaginação” (Ibidem. p. 316). A partir de então, o relógio passa a ser também o livro que pressente o tempo de sua industrialização, pois na construção do relógio, Julius aponta para a contradição “sobre o quase impossível equilíbrio de processos modernos e de elementos arcaicos que exige para a futura invenção” (Ibidem, p. 315). Quando o relógio de Julius consegue, enfim, se adaptar às mudanças de temperatura, eis que surge um novo obstáculo: as defesas contra as alterações da pressão atmosférica, que “só são resolvidas graças ao principal utensílio responsável pelo novo resultado, a delicadeza e a exatidão da paciência de um artesão” (LINS, 1973, p. 335). O artesão, em Avalovara, é representado não somente pelo relojoeiro, mas também pelo impressor e pelo “fazedor” de livros. No romance, Julius compartilha o interesse pela arte da relojoaria com a paixão “pelos livros pouco divulgados” (Ibidem, p. 278). O interesse pela origem dos livros tem lugar quando Lins cria uma descendência indireta para o personagem Julius, por intermédio da personalidade que de fato existiu, o escritor e tipógrafo Charles William Heckethorn, autor do livro Os impressores de Basileia nos séculos XV e XVI, suas biografias, e o legado dos livros impressos141. O personagem/inventor cita repetidas vezes a leitura de “Incunábulos”, mais especificamente quando introduz a inexatidão na “ordem, um preceito de desordem” (Ibidem, p. 359) no dispositivo do mecanismo do relógio que, por sua vez, remete à máquina de impressão em linotipos. Imbuído da imperfeição, o relógio de Julius alcança a perfeição “como no projeto a que alude o incunábulo142 impresso em Basiléia” (Ibidem, p. 359).

141 Tradução minha. O original deste livro está disponível para leitura online no portal Openlibrary.org no endereço: . Acesso em: 17.01.2016. 142 Para Osman Lins, o livro é fruto do mesmo impulso humano que originou monumentos como o das pirâmides, dos obeliscos e das esculturas renascentistas; e quanto à sua difusão, encontra na técnica moderna sua expansão em todos os sentidos, inserindo o livro, por outro lado, no fluxo devorador do tempo (LINS, 1974, p. 121). Em Guerras sem Testemunhas,

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No ensaio O escritor e o livro, contido em Guerras sem Testemunhas (1974, p. 130) Lins critica a falta das qualidades que antes eram exigidas pelos antigos impressores e editores, como o senso de equilíbrio, a honestidade e os bons conhecimentos da língua e das artes gráficas. Cita como exemplo disso, um revisor com predicados incomuns que se instala na casa do impressor J. Amerbach, em 1510, com quem trabalha igualmente o humanista Beatus Rhenanus. Ali “registram as crônicas que este último desiste de uma viagem à Itália, optando pelo ensejo de revisar algumas obras impressas nas oficinas de Amerbach” (Ibidem, p. 130). A narrativa dada como ficcional em Guerra sem Testemunhas se confirma e coincide com o registro histórico-gráfico, uma vez que o impressor J. Amerbach aparece, de fato, como impressor tipográfico alemão no livro The Printers of Basle in the XV and XVIth centuries, their biographies, printed books and devises, livro realmente publicado por Charles William Heckethorn em 1898. E tudo isso ressurge ficcionalmente em Avalovara. Consta na biografia de Heckethorn, que em 1511 o humanista Beatus Rhenanus se mudou para a Basiléia e nessa cidade fez amizade com Desiderius Erasmus, desempenhando papel ativo nas publicações desse amigo e famoso filósofo. Rhenanus supervisionou a impressão de muitas das mais importantes obras de Erasmus143, não na tipografia de Amerbach, mas sim na oficina do gráfico Johann Froben, também citado no livro The Printers of Basle (HECKETHORN, 1898, p. 90). A intenção de todas essas instigantes imbricações entre fábula e fato da ficção anacrônica em Avalovara se aliam ao que Lins inscreve em Guerra sem Testemunhas: “escritores que assumam o ônus de enfrentar seus enigmas, senão para os desvendar, para lembrar que existem” (1974, p. 137). Portanto, não seria precipitado assinalar que Avalovara inscreve no próprio livro o lugar e o processo que torna possível sua publicação, e assiOsman Lins sacraliza o livro como uma instituição inabalável em sua origem e estrutura. Enquanto assegura a condição do livro como espaço privilegiado, Lins também critica o aspecto temporário do jornal e sua natureza ligada ao dia a dia, expressão de consumo prestes a ser esquecido e “reflexo do transitório” (Ibidem, p. 126). Osman reflete sobre a reprodução do livro, que mesmo com o benefício da máquina, não necessita perder a sua “imponderável nobreza dos objetos tratados pela mão humana, como os produtos de marcenaria e o mecanismo dos relógios” ( Ibidem, p. 134). O escritor visa à obra rara, em seu sentido de permanecer, e nunca em sua multiplicação por centenas de milhares. 143 Como citado em páginas anteriores, consta na biografa por escrita por Johan Huizinga, que Erasmus foi a Veneza em 1508 para imprimir sua Adagia, com o famoso tipógrafo Aldus Manutius. A editora de Manutius era a mais famosa no Renascimento europeu, e Aldus criou a primeira fonte itálica. Introduziu no mercado a impressão de pequenas e acessíveis edições dos clássicos em formato de bolso (Octavos), aplicando novas técnicas tipográficas. As fontes Garamond, Aldus e Bembo usadas em nossos teclados de computador, foram desenhadas por Francesco Griffo em homenagem à Manutius.

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nalado por Roger Chartier no livro Os desafios da Escrita (2002, p. 45), no qual Cervantes, no capítulo em que Dom Quixote visita uma tipografia em Barcelona, apresenta ao leitor a divisão e a multiplicidade de tarefas características do processo de impressão. Cervantes evidentemente dominava as regras e as restrições da tipografia e as usava em benefício da criação de detalhes preciosos na literatura. Ao passo que em Avalovara, Osman Lins mostra a vivência do artesão na oficina de impressão de maneira quase arqueológica, num complexo e misterioso jogo literário de coincidências. O relógio de Julius Heckethorn no romance Avalovara não atua somente no descontínuo tiquetaquear dos segundos e no bater das horas. Também na multiplicidade de operações que envolvem o processo da proliferação dos livros, processo no qual o autor, ao nos apresentar um relógio análogo à máquina multiplicadora dos livros, desconstrói o tempo contínuo e nos apresenta uma abertura de tempo entre o escritor e o livro, interstício justo onde se encontra a mão do artesão invisível que opera o milagre da proliferação. Em Avalovara, é no universo ficcional da fabricação do relógio de Julius Heckethorn que Osman revela um universo oculto, o lugar onde se fazem os livros à moda antiga: a oficina tipográfica.

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CAPÍTULO TRÊS {A PALAVRA E O ARTESÃO}

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CLEBER TEIXEIRA, O IDEAL DO ÚLTIMO CAVALEIRO TIPOGRÁFICO

MANDAMENTOS DO TIPÓGRAFO A caixa onde comporás sempre limpa a conservarás; Do original não levantarás os olhos distraidamente; Nenhum erro cometerás se trabalhares atentamente; Do autor não modificarás nem palavras, nem vírgula, absolutamente; O mesmo espaço colocarás entre as palavras, exatamente; E sobretudo cuidarás de justificar corretamente; Cada forma amarrarás com cuidado, solidamente; As provas tirarás sempre legivelmente; As correções não deixarás de fazer exatamente; Todo original guardarás em tua mesa cuidadosamente; Os pasteis evitarás distribuindo atentamente; À oficina chegarás no horário, regularmente; Dos trabalhos guardarás o segredo escrupulosamente; Do teu chefe escutarás os conselhos atentamente.144 144 REBELLATTO, 1980, p. 15.

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Apaixonado pela impressão virtuosa e demorada com tipos móveis, Carlos Drummond de Andrade louvou o processo tipográfico em crônica publicada no jornal Correio da Manhã, em 1955: Podem alguns enjoados resmungar que o livro de tiragem mínima é fruto de uma cultura decadente, a demitir-se de sua função social; que é luxo de mandarins, e ofende o povo. Não ofende nada, e, se repararmos bem, contribui para reintegrar o homem em sua dignidade, valorizando o artesanato na era da fabricação em milhões. Ele concilia excelentemente a criação mental com o esforço físico, e nos oferece produtos que trazem a dupla marca de nossa condição. O orgulho dos colofões está em assinalar que a composição se fez “à mão”, que a máquina impressora também foi impelida por esse motor impadronizável, que toda a elaboração gráfica participa da natureza nervosa e muscular de quem a executou. Compreende-se, a esse propósito, o interesse com que alguns poetas se põem a imprimir seus versos: prolongam desse modo a criação, e como que materializam o “ato das musas”. Louvados sejam os tipógrafos e impressores da pequena tiragem. São maníacos suaves, que restauram uma tradição, ilustre, servindo ao progresso das letras. Trabalham nos domingos, feriados e dias santos, ignoram o futebol, o cinema e o Jóquei, não se sabe como arranjaram aquela velha prensa manual, e como a localizaram no porão, no sótão ou no apartamento exíguo, não tem nódoas de tinta nas calças, não se fazem notar por nenhuma originalidade exterior, cumprem seus deveres no século com a habitual

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cotidianidade. Ninguém me tira da cabeça, entretanto, que são monges de nova espécie, defroqués e sigilosos. O leigo não lhes presta atenção, mas o sentimento religioso da arte gráfica, o amor aos papéis de qualidade, o culto à letra e à vinheta (“honra o papel que contém letras, e tende piedade dele”, recomendava, segundo conta Eduardo Frieiro, uma autoridade chinesa), a unção e pertinácia que põem no seu trabalho meio secreto (anti-trabalho, pois é fundamentalmente uma perda de tempo-cruzeiros), esses traços a mim não me iludem, como outras tantas marcas de sensualismo místico.145

É provável que essa e outras crônicas sobre a arte da impressão manual tenham influenciado o jovem poeta carioca Cleber Teixeira146, então com 17 anos, a montar a própria editora e oficina tipográfica. É mister lembrar que ele colaborou como cronista para alguns jornais no Rio de Janeiro e dividira expediente com Drummond no Jornal do Brasil, e o mesmo “chá de cadeira” que os cronistas colaboradores do jornal costumavam levar. No documentário Só tenho um Norte (VERAS, 2007)147, Cleber relata que o jornal custava a pagar seus colaboradores e, um dia quando chegou para pegar seu dinheiro, “quem estava lá tomando chá de cadeira? Drummond, e eu pensei, vou colocar minha viola no saco porque se Drummond fica aqui esperando eu não reclamo nunca mais do chá de cadeira”. Cleber iniciou suas atividades como editor de livros quando fundou a editora Noa Noa em 1965 e buscou, no processo de produção artesanal, a forte presença do editor em cada etapa na produção do livro. Filho de pai jornalista formado dentro de redações, cresceu frequentando a redação de jornais da efervescente Rio de Janeiro dos anos cinquenta. Foi ainda em terras cariocas na década de sessenta que adquiriu sua primeira prensa tipográfica, maquinário que per145 Drummond escreve outra crônica no Jornal do Brasil, referindo-se à tipografia como a “arte da imprimissão”: “Alumbramento [...] Proponho uma quarta acepção para esta linda palavra: “Editora de livros de pequena tiragem e extremo apuro gráfico, existente há 10 anos no Rio de Janeiro, sob a responsabilidade de dois loucos mansos, Salvador Monteiro e Leonel Kaz, que remando contra a maré cultivam e incentivam a sensualidade e a espiritualidade da “arte da imprimissão” tal como se praticava há séculos, na melhor tradição de ofício. [...] Não falta o que dizer dessa editora única no Brasil, que em 10 anos de atividade publicou... oito livros. São então uns preguiçosos aqueles dois? Uns boas-vidas? O contrário disto. São antes auto-exigentes e levam o zelo de perfeição à fronteira do absoluto[...]” (Rio de Janeiro, 1978). 146 O poeta-tipógrafo-editor Cleber Teixeira nasceu em 20 de setembro de 1938, em Jacarepaguá, zona norte do Rio de Janeiro. Com hábitos bastante reclusos, passava dias sem sair de casa e não gostava de estar em lugares que não tivessem livros. Faleceu no dia 23 de junho de 2013, aos 74 anos de idade, em sua casa-oficina no bairro da Agronômica, em Florianópolis. 147 VERAS, Alexandre; PANAROTTO, Demétrio; STUDART, Júlia; DE LIMA, Manoel Ricardo, 2007.

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tencia a uma viúva desejosa em encontrar alguém que cuidasse com apreço dos pertences do falecido marido. Adquiriu em generosas prestações a prensa (de mesma marca de Virgínia Woolf ), e se sentiu bem acompanhado quando “começou a fazer umas coisinhas” (TEIXEIRA in VERAS, 2007). Foi com a ajuda da impressora e de um Manual do Tipógrafo que, em 1967, no Rio de Janeiro, publicou uma seleção de poemas intitulada Poemas Estrangeiros, numa tiragem de 150 exemplares. O livro em pequeno formato continha poemas do uruguaio Jules Laforgue, do norte-americano William Carlos Williams e de outros que lhe agradavam. Sobre a edição deste livro, relata que vivia em um Brasil muito mais interessante naqueles anos e começou “indo atrás das coisas”. Descrevia o fascínio e a vantagem de morar no Rio numa época em que as relações eram mais civilizadas. Ele, então, era um adolescente que lia vorazmente e nutria o sonho de tornar-se poeta e o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil era o lugar almejado para essa formação, como também a de editor. Foi ao local e pediu para ir à redação. Lá, viu Ferreira Gullar, Mário Faustino e José Lino Grünewald, figura que lhe recorda os primeiros anos da Noa Noa, quando aprendeu a mexer com os tipos selecionando Poemas Estrangeiros. Nessa época, fez a seleção com Jules Laforgue, William Carlos Williams e no Jornal soube que tinha um poema de Dylan Thomas traduzido por Grünewald, uma figura fantástica, segundo o tipógrafo: “fui falar com ele no Correio da Manhã e estavam naquele momento na redação o (Otto Maria) Carpeaux, o Zé Lino, o Paulo Francis, o (Antônio) Callado, e aquilo me parecia normal. E agora, anos depois, não era nada de normal, aquilo era uma oportunidade fantástica” (TEIXEIRA in VERAS, 2007). Nas entrevistas que concedeu, Cleber assinala o sonho de ser escritor e fazedor de livros, objeto de culto presente em todas as suas conversas. O sonho lhe acalentava desde os oito anos de idade, quando ganhou do pai uma coleção Tesouro da Juventude, bem como a obra de Monteiro Lobato. A partir dali buscou a literatura estudando na Faculdade de Letras e frequentando a escola de Belas Artes no centro do Rio de Janeiro, durante as décadas de 1960 e 1970. Foi revisor da Editora Civilização Brasileira, em 1974 e trabalhou no Instituto Nacional do Livro de 1971 a 1973, como também na extinta Editora Bloch de 1974 a 1977. Paralelamente à atividade diurna de redator, desejava ser editor, no entanto não tinha dinheiro para investir. Foi então que em 1965 (antes de editar Poemas Estrangeiros) publicou seu primeiro livro intitulado 10 Poemas na tiragem de 50 exemplares e com detalhe curioso: publicou a obra copiando à mão e esculpiu as xilogravuras que ilustram cada edição,

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LAFORGUE, JULES & OUTROS - POEMAS ESTRANGEIROS. Seleção de Cleber Teixeira. Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Capa de Cleber Teixeira (utilizando gravura em linóleo de Simone Ribeiro). Tiragem: 150 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1967.

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Imagens: LAFORGUE, JULES & OUTROS POEMAS ESTRANGEIROS. Tiragem: 150 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1967.

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DEZ POEMAS. Edição manuscrita, ilustrada com xilogravuras de Cleber Teixeira. Capa de Hélio Lobianco. Tiragem: 50 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1965. Detalhe do colofon.

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Imagens: DEZ POEMAS. Edição manuscrita, ilustrada com xilogravuras de Cleber Teixeira. Tiragem: 50 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1965.

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Detalhe: TEIXEIRA, Cleber. DEZ POEMAS. Edição manuscrita.

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absorvendo o “conhecimento adquirido com o amigo Adir Botelho (artista plástico e professor da Escola de Belas Artes da UFRJ), que o convidara para assistir às aulas que mais lhe interessavam” (CERA, 2012). A intuição e a motivação o acompanhavam com uma pergunta em mente: “se antes de Gutenberg as pessoas faziam livros, porque eu não posso fazer um livro também?” (In VERAS, 2007). O seu começo lhe parecia semelhante ao da primeira tiragem caligrafada em 1897, do poema Un coup de dés. A primeira publicação do poema de Mallarmé aconteceu em maio daquele ano, através do periódico Cosmopolis, em Londres, mas esse periódico inglês não tinha grande alcance no território francês148. Diante dessa problemática Mallarmé, por intermédio do amigo Valère Gille, contratou um calígrafo para reproduzir o poema e alcançar seus leitores franceses: Muitos dos leitores de Mallarmé nunca viram o poema original impresso no periódico inglês, contudo, receberam cópias do poema, cuidadosamente manuscritas, cópias que por sua vez, recircularam entre outros admiradores e copistas. Tais práticas remontam à era pré-industrial, quando os textos circulavam em uma rede relativamente circunscrita de leitores, a diferença é que Mallarmé e seus leitores estavam operando sob circunstâncias muito diferentes, onde a impressão era abundante e acessível, mas a audiência para poesia e arte era restrita a “poucos afortunados”. O pequeno número de livros que Mallarmé publicou em pequenas edições, eram muitas vezes com preços bem acima do que a maioria dos leitores poderiam pagar. Assim, apesar de alguns de seus esforços para atingir novas redes de produção e distribuição, seus livros não conseguiram vender. (ARNAR, 2011, p. 04-05)

Era sobretudo em Mallarmé, um nome sempre presente em conversas e entrevistas, que Cleber encontrava fecundas referências para seu próprio trabalho e, assim, ainda no Rio de Janeiro, começou a fazer edições de pequena circulação, ao mesmo tempo em que decidiu fazer voos mais altos. Foi quando resolveu escrever para o poeta Augusto de Campos, que lhe ofereceu a tradução de Mallarmé para publicar, e assim aceitou o primeiro grande desafio:

148 Segundo Anna Sigrídur Arnar (2011) nota-se, porém, que nesta época a máquina de Linotipo já havia sido implementada nos jornais da Europa.

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Fizemos Mallarmé e aí começou uma relação de trabalho e amizade, e na época eu morava no Rio e jovem ainda. Então quantas vezes eu pegava um ônibus e ia a São Paulo, passava o dia e voltava de noite. E sempre jantava com ele e começou uma relação de trabalho e fizemos uma porção de coisas. Poesia provençal, Keats, John Donne, poesia alemã… e o Augusto era uma figura que na época não tinha as portas abertas. Eles pagavam as edições. Na verdade e apesar de ser tudo bastante precário aqui, eu fui mais profissional com ele do que as editoras grandes. Eu arrisquei. (TEIXEIRA in VERAS, 2007)

Publicado pela primeira vez em 1970 pela editora Noa Noa149, Mallarmargem é considerado um marco na história da poesia no Brasil. Em entrevista à historiadora Gisela Creni (2013, p. 139), Augusto de Campos150 reverenciou Cleber Teixeira como “um poeta da edição”, cujo mérito foi conferir ao livro o mesmo tratamento que um poeta dá a um poema. Campos lembrou quando o jovem Cleber o procurou para editar Mallarmé, num momento em que pouquíssimos ousariam imprimir tais textos, “ainda hoje problemáticos para editar” (In Ibidem, p. 159). Segundo ele, Teixeira manteria a aura da ética e a recusa à banalização do fácil. À experiência e atitude de Cleber, Augusto de Campos aproxima da etimologia de palavras caras como Noa Noa: “termo tahitiano usado para sensação de aroma, e a

149 Noa Noa é o título de um relato em que o pintor pós-impressionista Paul Gauguin descreveu suas experiências em uma viagem ao Taiti, onde o pintor designa a palavra como terra perfumada. Foi a partir do final dos anos 70, na Ilha de Santa Catarina, no bairro da Agronômica que a editora Noa Noa funcionou até o início de 2013. Espaço fértil de encontros e criação literária, “um lugar afetivo, profundo de importância para a formação de uma geração de poetas que começou a escrever nos anos 1970 e 80” (CERA, 2012). Sem distinção entre literatura e artes visuais, Cleber Teixeira influenciou pelo menos duas gerações de artistas visuais, desde estudantes de gravura até novos tipógrafos e editores. Foi na pequena sala cercada também por cavaletes de tipos móveis, papéis e retratos ao lado de amigos como os críticos literários Davi Arrigucci e Boris Schneiderman, que “a poesia de e. e. cummings e Stéphane Mallarmé se materializaram pela primeira vez no Brasil, através do paciente e primoroso trabalho de sua impressão manual”. (DA ROSA, Victor. Cavaleiro sem cavalo. In: Blog do Instituto Moreira Salles, 2013: http://bit.ly/1aMVutJ Acesso em: 13.11.2013). Cleber dedicou-se também à tradução, composição e edição de obras cujos autores influenciaram seu repertório pessoal, dentre eles: John Donne, Emily Dickinson, John Keats, Gertrude Stein, Katherine Mansfield, Paul Valéry, Octavio Paz e W. H. Auden. 150 Augusto de Campos manteve parceria com Cleber Teixeira até 1998. Além de Mallarmargem, publicaram pela Noa Noa: John Donne: O dom e a danação (1978); 20 Poemas (1979) de e.e. cummings; Porta-retratos (1989), em prosa de Gertrude Stein, e o último Mallarmargem 2, publicado em 1998, que fechou uma série de obras, entre outras traduções de John Keats e G. M. Hopkins.

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MALLARMÉ, Stéphane. MALLARMARGEM. Tradução, introdução e título da coletânea de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Capa de Raquel Feferbaum. Tiragem; 225 exemplares (25 ilustrados com uma gravura em metal de Raquel Feferbaum). Rio de Janeiro, RJ, 1970.

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palavra provençal Noigandres151, que teria como significado mais próximo o sentido de aroma que livra do tédio” (In CERA, 2012). Nas palavras do crítico e professor de literatura brasileira Raúl Antelo152, em artigo publicado na revista Sopro de 2012, o trabalho de editor de Cleber Teixeira era também trabalho poético. Em referência à Mallarmargem, em colaboração com os irmãos Campos, Antelo assinala que as intervenções gráficas de Cleber “nos permitem circular por mais de um tempo, no tempo em que o Augusto de Campos traduz e também o tempo do século XIX da impressora tipográfica com que ele trabalha”. Ainda segundo Antelo, a dimensão do anacronismo é um dos elementos mais ricos e densos no trabalho de Teixeira, na associação complexa entre o velho e o novo. Sobre esta edição de Mallarmargem, Cleber idealiza um diálogo com o poeta francês: Uma editora comercial não se daria ao trabalho de fazer tal empreendimento gráfico, porque em se tratando de Mallarmé, como fazer um objeto que tem uma relação direta com o tipo de trabalho que faz esse poeta? Então… fazer uma capa mallarmaica. Vamos imaginar que Mallarmé teria que aprovar, ele gostaria dessa capa? (In VERAS, 2007)

De fato, a capa com relevo tipográfico e sem tinta é um recurso pouco comum em gráficas que imprimem grandes tiragens, porque a corrida pelas 151 O termo Noigandres aparece de forma misteriosa em um verso do poeta provençal Arnaut Daniel, (autor admirado por Cleber Teixeira e muitas vezes inserido em sua poesia) na canção Er vei vermeils. “Ezra Pound, atraído pela criação poética dos trovadores occitânicos, verificou a dificuldade de significado na palavra e deixou em seus Cantares, um relato da conversa com o provençalista alemão Emil Lévi: Noigandres, eh, noigandres” (PRYOR, Sean. W.B. Yeats. Ezra Pound, and the Poetry of Paradise. Burlington: Ashgate Publishing Company, 2011, p. 77, tradução minha). “Extraída de The Cantos, de Ezra Pound, a palavra noigandres faz parte de um poema-canção do trovador provençal do século XII Arnaut Daniel. Mas seu significado exato se perdeu, desafiando gerações de filólogos. No Canto XX narra-se uma conversa com o romancista alemão Emil Lévy, que, ao ser consultado, confessa nunca ter conseguido decifrar o enigma, exclamando: Noigandres! NOIgandres! Faz seis meses já Toda noite, qvando fou dormir, digo para mim mesmo: Noigandres, eh, noigandres, Mas que DIABO querr dizer iso!” (Tradução conjunta de Augusto, Haroldo e Décio, que reproduz a estilização fonético-gráfica do texto de Pound. Em Ezra Pound – Poesia). (BANDEIRA; BARROS. Grupo Noigandres. São Paulo: Cosac Naify, Centro Universitário Maria Antonia, USP, 2002, pp. 14-15) 152 Com quem editou pela Noa Noa, juntamente com Walter Carlos Costa, Encontro com Boris Shnaiderman (1986).

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vendas se sobrepõem aos custos da ideia e ao engrandecimento visual que um texto de tal relevância merece. A oficina artesanal que vinha operando se adequava a um ofício dessa natureza. O tipógrafo ponderou literalmente entre o valor substancial da obra e a materialidade das palavras, e seu cuidado gráfico se alinhou com aquele da poesia de Mallarmé, “de elevar enfim uma página à potência do céu estrelado” (DEBRAY, 2004, p. 100). Ele igualmente objetivava fazer livros de folhas soltas, para bibliófilos: Eu persigo como artista gráfico uma linhagem clássica. E sempre privilegiando o leitor. Eu não faço nenhuma capa que exija do leitor, por exemplo, onde o título ou qualquer informação esteja na vertical quando a nossa leitura é horizontal. Eu não fico tentando descobrir a roda. (TEIXEIRA in VERAS, 2007)

Uma atitude editorial afinada também com a de João Cabral de Melo Neto e o seu modelo editorial artesanal O Livro Inconsútil. Não bastasse a ousadia e a criatividade de sua poesia, João Cabral primava por edições, cuja beleza, segundo ele próprio estava “na relação dos tipos impressos com os espaços não impressos, em branco” (In CRENI, 2013, p. 115). Um vínculo intrínseco que a tipografia, como processo de impressão, tem com as palavras e os espaços físicos encaixados na rama, quando no imprimir, o corpo matérico (negativo e positivo) constitui uma única unidade. Ou seja, para imprimir as palavras de metal, é preciso que a matéria invisível do texto também exista, ou o material branco, termo designado na linguagem tipográfica. Ramas tipográficas que ilustram a relação das palavras com os espaços em branco, quando o material branco é tão importante quanto as letras contidas no texto.

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Cleber Teixeira apontou o poeta norte-americado E. E. Cummings como um de seus poetas preferidos e, concernente à tipografia, assinalou o trabalho 20 Poem(a)s como o mais difícil em sua construção material, “um trabalho de convívio material, uma decomposição e recomposição do universo do poeta” (In CERA, 2012), presente no gesto e no manuseio direto da substância da palavra que materializa a criação literária: “no caso do Cummings que é um poeta tipográfico, você faz uma capa que à primeira vista tenha alguma semelhança e uso do signo tipográfico e uma semelhança com a poesia do Cummings” (In VERAS, 2007). Para a versão brasileira, Cleber dispôs uma letra “a” entre parêntesis na palavra inglesa “poems”, incorporando ambos os idiomas, e conjugando a simplicidade gráfica, onde “o menos é mais”153 e funcional ao poema, no diálogo sem rodeios com a poética de Cummings. Quando Teixeira decidiu entrar em contato com Campos, a fim de conversar sobre a edição de 10 Poemas de Cummings (que fora editado pelo Ministério da Educação na década de 50), ele relata em Só tenho um Norte (VERAS, 2007), que o serviço de documentação do MEC era dirigido por um homem chamado José Simeão Leal, no qual assumiu, em 1946, o cargo de diretor do serviço de documentação, no então Ministério de Educação e Saúde até o ano de 1955: Simeão Leal era um apaixonado por livros e editou coisas fantásticas que eram praticamente dadas. Se você quisesse era só ir lá no MEC e pedir, não havia porteiro, não precisava de documento, o Simeão te dava. E quando era vendido atrás da Biblioteca Nacional era a preço de jornal. Ele editou Cummings, Os Cantos de Ezra Pound e um mundo de coisas que 153 Uma máxima dos designers: “Acredito na cultura da edição, o que nos permite compartilhar com outros muitos aspectos de nossa cultura mais ampla através do processo da escrita, da impressão e da leitura. Se tenho uma filosofia com relação ao design de livros, é a de que seu design deveria ser feito para os leitores. Minha preocupação principal é sempre apresentar o texto da maneira mais clara possível, para que o leitor possa ter acesso direto ao texto do autor sem ser inibido ou interrompido por uma intervenção. Quando faço o design de um livro, objetivo apoiar a estrutura do texto usando o repertório tipográfico de que disponho, mas nenhum elemento além daqueles necessários. Ao mesmo tempo, tento dar a devida atenção aos aspectos estéticos e práticos de escala, proporção e materiais. Não me envergonho de ser minimalista e, se tenho um lema, é o de que ‘menos é mais’”. COSTLEY, Ron, In: MARTINS, Plínio. A arte invisível, ou, A arte do livro. Trad.: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. Outras máximas contidas nesta pequena bíblia dos designers se faz relevante nesta pesquisa: “Está provado, um livro muito difícil de ler é inútil. Mas achar que a impressão deve servir apenas à função da legibilidade é o mesmo que dizer que a única função da roupa é cobrir a nudez, ou que o único uso da arquitetura é fornecer abrigo...”. (ARMITAGE, Marle, In Ibidem); “Se a impressão é negra, o design do livro pode ser a arte invisível” (HENDEL, Richard, In Ibidem).

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ditou anos. Editou também algo popular que se chamava Caderno de Cultura onde publicaram pela primeira vez os contos da Clarice Lispector, dentre outras coisas. Era uma preciosidade. Até que um dia um idiota ciumento denunciou para o órgão competente que o serviço de documentação não tinha estatutariamente a competência para editar. E aí acabou. Esses 10 Poemas do Augusto eram super procurados e eu escrevi para o Augusto perguntando se ele toparia reeditar aquilo. E ele disse que estava traduzindo mais 10 Poemas. (TEIXEIRA in VERAS, 2007)

O resultado do trabalho, que alia a poesia de Cummings, a tradução de Augusto de Campos e a impressão manual de Cleber, é a pura descrição dos livros Noa Noa: já nascem raros. Os poemas de Cummings, com distribuição tipográfica não-linear, associadas às palavras corpóreas da impressão tipográfica e com a tradução do poeta concreto fazem dessa obra um encontro notável. Realizada sem o auxílio de computadores digitais, a construção métrica da poesia de Cummings se revela ainda mais perceptível, com base nos espaçamentos da impressão de um processo analógico. Um elemento determinante em seus poemas, provenientes da máquina de escrever ou quiçá de alguma experimentação com tipos em gráfica, na época em que foi cronista da revista Vanity Fair entre os anos de 1924 a 1927154. Contudo, a edição de 20 Poem(a)s (Noa Noa, 1979) traduzido por Augusto de Campos e tipografado por Cleber Teixeira apresenta a peculiaridade na publicação de um fac-símile da carta do próprio Cummings (1956) para o tradutor brasileiro: 154 Uma investigação que talvez possa determinar seu caminho pelo universo gráfico, assim como Mallarmé que antes de publicar o poema Un coup de dés, publicou artigos em oito exemplares da revista feminina La Dernière Mode no ano de 1874, assim como assinala Anna Sigrídur Arnar: “Well before Mallarmé explored the creative combinatorial potential in Un coup de dés, he championed the constructive pleasures of consumption in a series of articles published in La Dernière Mode (The Latest Fashion). As the sole contributor and editor for eight of its issues in 1874, Mallarmé gained valuable insight to the inner workings and structures of a newspaper. Although this fashion bimontly was not a major daily newspaper, it had a similar organizational framework. The paper opened with a “leader” or editorial (the premierParis), followed by various chroniques covering cultural life in Paris and selected départements. Next came the feature articles devoted to specialized endeavors: cooking, decorating, entertaining, gardening, and health tips. Every issue also included excerpts from contemporary literature, from Alfred, Lord Tennyson to Théodore de Banville. Like many editors of the grands quotidiens, Mallarmé had to negotiate the practical exigencies of publishing a newspaper with the challenges of balancing multiple topics and multiple voices. To meet these challenges, he fabricated a range of fictional characters with distinct personalities, ranging from “Marguerite de Ponty,” dispensing advice on the “latest fashion,” to “Ix,” the reporter of cultural events, to “Marliani,” the decorator” (2011, p. 229).

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20 POEM(A)S. Edição bilíngue. Florianópolis, 1979. Fac-símile da carta de Cummings a Augusto de Campos, no fim da publicação.

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20 POEM(A)S. Edição bilíngue. Florianópolis, 1979. Fac-símile da carta de Cummings a Augusto de Campos, no fim da publicação.

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CUMMINGS, E. E. (e. e. cummings) (1894-1962 ) 20 POEM(A)S. Tradução e introdução de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Edição ilustrada com retrato de Cummings (serigrafia). Capa de Cleber Teixeira. Tiragem: 600 exemplares. Florianópolis, SC, 1979.

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Páginas de 20 POEM(A)S. Cummings, 1979, Noa Noa.

E principalmente para os pesquisadores da tipografia, outro facsímile com anotações tipográficas, uma joia rara no que concerne ao rastro do processo de impressão, na sua instabilidade enquanto ideia ainda não publicada, mostrando a dificuldade do tipógrafo em seus erros e acertos no texto literário. 20 Poem(a)s é um exemplo dos diversos textos em um mesmo trabalho, o elo entre o escritor e o leitor, ou a quarta dimensão do texto de Barthes. Pelas mãos do impressor, o texto se transforma na palavra objeto com o propósito de fornecer sentido ao texto que transmite, e diferente de um anônimo impressor numa fábrica de impressão do século XX, Cleber foi também o protagonista das obras que editou porque percebeu na tipografia a nobreza da impressão e buscou a pureza dos primeiros tipógrafos, tendo como referência as primeiras editoras e as primeiras gráficas do início da imprensa, quando o editor fazia ademais as vezes do artista que opera na genialidade e na materialidade da palavra.

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Com forte referência do tipógrafo italiano Aldus Manutius, Cleber Teixeira iniciou a Noa Noa seguindo um modelo de editora artesanal e publicou obras que são referência quando o assunto é impressão de obras literárias de pequenas tiragens com extremo cuidado gráfico155. Manteve a tradição do livro artesanal, cujo projeto é concebido e idealizado de maneira integral, e definiu o livro como aquele em que a participação manual do homem é decisiva quando, no modus operandi, há algo que nem o livro nos oferece, algo especial e além. O livro ideal se materializa honrando o texto no cuidado com a escolha do papel, desde a cor, gramatura e textura; na escolha da fonte (letra) para cada autor, no planejamento do melhor formato, nos milímetros da mancha (margem) na página, na composição do texto e entre outros elementos que, segundo Cleber, validam o peso final da obra. Um ofício completo podendo até se manifestar como eloquente, contudo, se inserido no contexto fragmentado dos serviços e produtos do século XX, refletir como um tipógrafo do século XV, não é reduzir a um modelo ultrapassado, mas a uma referência anacrônica com um ideal de coragem, sensibilidade e dedicação. O extremo apuro gráfico do tipógrafo editor é exposto no documentário Só tenho um Norte (VERAS, 2007), quando na entrevista, caminha em direção ao Mercado Público de Florianópolis, a fim de mostrar sua loja preferida de materiais artísticos156: Quando você vê um mostruário de papel, você vê um pedacinho de papel, uma folha. Quando você faz o livro depois que escolheu o papel, aí você percebe que no conjunto, com uma porção de folhas, eles produzem um objeto mais pesado do que você previa. Quem entender bem que poeta é aquele e que papel é adequado àquele universo. Vamos pegar o Murilo (Mendes) por exemplo. O Murilo, ainda que ele não seja um poeta, que o catolicismo dele não seja tão exagerado a ponto de você levar isso em consideração mais que tudo, eu gostaria por exemplo, de fazer um livro do Murilo com um papel que fosse levemente, um branco não muito luminoso mas que entre uma folha e outra tivesse um papel transparente (fino) que ficasse entre as folhas. Que ao chegar ali você teria 155 Cf: entrevista para o Portal Literal em ANEXOS nesta pesquisa. 156 Visivelmente constrangido, Cleber caminha dentro do mercado e sussura no ouvido de sua amiga e dona da loja: “estou pagando um mico, mas aproveitei para fazer propaganda da sua loja. Aqui está a melhor lojinha de material de pintura, desenho, de material para o universo gráfico”. (TEIXEIRA in VERAS, 2007). Infelizmente a loja “da Japa”, como era conhecida no Mercado Público, fechou em 2013, assim como também o único produtor de clichês da região e fornecedor de Cleber, o “seo João” da Gravura Gráfica no centro da cidade, que migrou para a impressão em Offset.

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uma leitura do poema e esse branquinho transparente filtraria esse encontro mais brutal porque o papel fino já lembra a bíblia, e são coisas sutis que você induziria o leitor a ter uma discreta sensação de que ele está lidando com alguma coisa que tenha o clima da religião, do solene, do misterioso. Esse é um (poeta) que eu gostaria (de editar). O Cabral por exemplo é outra tentação. O Cabral eu gostaria de encontrar um papel que tivesse a cara do papel jornal porque remete à literatura de Cordel que é um tipo de trabalho (sic) aí é uma audácia minha, mas eu acho que arrisco, que influenciou o Cabral e é inevitável a influência do Cordel no Cabral. Essas tiragens fantásticas da literatura de Cordel, elas se dão porque até os analfabetos compram os livros e esperam que um dia alguém alfabetizado leia para eles. O Cabral fazia isso. Eu vi uma entrevista com ele, onde ele dizia que quando chegava à fazendo do avô, os empregados depois do trabalho se reuniam e pediam pra ele ler o Cordel. Então o Cordel é forte e remete a um universo mágico. É terra seca, é dificuldade, é trabalho, é luta e é uma poesia marcada por isso. Então é uma coisa importante que você escolha bem o papel, mas não pode ser muito óbvio na escolha. Eu optaria por um papel parecido com o jornal, evidentemente mais resistente e eu gostaria de fazer um Cabral parecido com Cordel. (TEIXEIRA in VERAS, 2007)

Em outro momento do mesmo documentário, Cleber relata sua preocupação com o material artesanal e o cuidado com o papel feito à mão, no qual se refere a “um risco na impressão”, quando o bater do tipo no papel arrisca descolar um pedaço da fibra, “como se fosse uma pele queimada pelo sol e leva um pedaço do papel157 além de imprimir e borrar. Você tem que ter uma super atenção” (In VERAS, 2007), assinala o editor, demonstrando claro comprometimento e respeito pela materialidade dos objetos que manuseava. Afirmava que a paixão pelos livros o levaram a aprender o ofício, contudo, quando adquiriu um exemplar do Manual do Tipógrafo, percebeu que nem sempre os livros lhe ensinariam tudo, e que o pulo do gato nem sempre estaria escrito158.

157 O papel de sua predileção era o nobre e caro Fabriano, cuja escolha de Cleber se afirmava pela tradição da fábrica existente há mais de setecentos anos. 158 “Quebrei a cara diversas vezes, mas tudo é muito simples, e tudo o que é simples, é complicado”. Cleber cometia os mesmos erros e foi falar com um tipógrafo experiente em uma

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STEIN, Gertrude (1874-1946) - PORTA-RETRATOS. Prosa. Introdução, tradução e título da coletânea de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Capa de Augusto de Campos. Impresso na oficina da Noa Noa. Tiragem: 700 exemplares. Florianópolis, SC, 1989.

Cleber preocupava-se em oferecer o melhor suporte para a palavra, a fim de fazer surgir a escritura de forma autônoma. Um livro de vinte páginas, muitas vezes, ficaria imprimindo por mais de um ano, assim como algumas ramas tipográficas que ficavam sobre a mesa há meses, talvez há anos, mas que se mantinham lá, esperando o momento certo. Sua relação com o tempo também era autônoma e transcorreria de maneira desigual. Quando um livro nascia por inteiro na editora Noa Noa, a inscrição no colofon avisava: composto e impresso manualmente, e quando a inscrição avisa somente impresso na oficina da Noa Noa, é porque naquele livro houve a colaboração de outro tipógrafo, um desconhecido, que operava uma máquina de Linotipo e, dizem, funcionava embaixo da Ponte Hercílio Luz159. Sua relação estreita com as artes gráficas se apresenta em toda a sua gráfica comercial. Explicou os erros que repetia e o tipógrafo lhe perguntou: “você bate direitinho nos tipos? Ao juntar as letras, botou a composição ali, apertou as cunhas, você aperta um pouquinho e bate com uma madeira para nivelar os tipos porque os tipos de chumbo são frágeis, mas se você bate com ele em pé ele resiste muito bem, então nivelou, apertou e acabou o problema” (TEIXEIRA in VERAS, 2007). 159 Uma história que se confirma também de acordo com “seo João”, antigo fornecedor de clichês da Gravura Gráfica, estabelecido no centro de Florianópolis.

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obra. Estar diante do conjunto de livros e cartazes que imprimiu160 é ter a certeza da presença do editor e tipógrafo e de suas escolhas e estilo161. Nenhum dos livros é impessoal, todos carregam as características inerentes à personalidade de Cleber Teixeira, sua erudição e obstinação pela obra perfeita. Exemplos que se consolidam na escolha dos antigos e novos autores e na busca pelos bons tradutores, elementos essenciais para compor o alicerce de cada obra. Cleber tinha convicção ao dizer que não era um poeta concreto, mas que a efervescência cultural do Rio de Janeiro e São Paulo nos anos sessenta e setenta o impressionaram. A admiração pelos concretistas lhe abriu os caminhos para a poesia provençal e inglesa, editou e imprimiu os trabalhos com os quais se afinava. Os prefácios que escreveu para compor as edições denotam espírito aguçado e sensível, exemplificados nos livros com as cartas de Katherine Mansfield e Emily Dickinson. No caso de Dickinson, ele explica que o livro se tornou uma raridade. Isso porque a própria autora era conhecida por leitores muito sofisticados no Brasil, desde que seus poemas tinham sido trazidos e traduzidos por Manuel Bandeira na década de quarenta. EMILY DICKINSON (1830-1886). ALGUMAS CARTAS. Tradução de Rosaura Eichenberg. Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Capa de Cleber Teixeira (retrato de Emily Dickinson por Pedro Pires). Tiragem: 600 exemplares. Florianópolis, SC, 1982. Detalhe da capa.

160 Meu zeloso agradecimento à companheira de Cleber, Maria Elisabeth de Quadros Pereira Rego e à amiga Márcia Mathias que me receberam, como sempre, carinhosamente para pesquisar as obras da editora Noa Noa. 161 Um sentimento que se assemelha quando de minha visita ao Museu Plantin Moretus e seus livros impressos no século XVI, publicações que apresentam visivelmente o gosto pessoal dos tipógrafos Plantin e Moretus.

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EMILY DICKINSON (1830-1886). ALGUMAS CARTAS. Tradução de Rosaura Eichenberg. Detalhe do prefácio por Cleber Teixeira.

No prefácio do livro Encontro com Boris Schnaiderman (1986), cujo conteúdo é uma entrevista de Schnaiderman (realizada na editora Noa Noa) concedida a Walter Costa, Raúl Antelo e Cleber Teixeira, fica evidente a relação de afetividade do editor com os companheiros de caminhada literária, e foram vários os encontros e amigos cultivados por Cleber. Quando ainda no Rio de Janeiro, manteve amizade de longos anos com o artista plástico Iberê Camargo, que contribuiu graficamente nos primeiros livros com gravuras e desenhos, e quando o poeta se intalou numa sala na rua Vidal Ramos número 75, em Florianópolis (entre os anos de 1978 e 1979), se tornou ponto de encontro e referência de escritores residentes na Ilha. Entretanto, foi quando se mudou, definitivamente, para a Rua Visconde de Taunay, no bairro da Agronômica, que formou, no subsolo da

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residência familiar, um espaço aberto para os amigos, interessados em literatura, artes visuais e gráficas, sobretudo aficcionados por tipografia e bibliófilos, como os amigos Aníbal Bragança e José Mindlin: Eu sou o Cleber Teixeira e estamos na oficina da minha editora Noa Noa e é um lugar de trabalho, de culto ao livro, culto às artes gráficas e culto ao afeto aos amigos. Aqui eu trabalho e pretendo trabalhar sempre porque este tipo de trabalho me revigora continuamente. Então aqui eu pretendo, e se os amigos quiserem escrever, compor e ler livros, aqui é o lugar do livro162. (In VERAS, 2007)

Quem teve a fortuna de conhecer sua editora ou printing-house163 percebeu naquele lugar a sensação de que ali o tempo transcorreria em ENCONTRO COM BORIS SCHNAIDERMAN Impresso na oficina da Noa Noa. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Chagal). Tiragem: 420 exemplares. Florianópolis, SC, 1986.

162 “Ali recebia estudantes de diversos níveis, turmas de pré-escola, universitários e pós-graduandos, fazendo palestras sobre a história do Livro e o processo de criação e produção dos títulos que editava, oferecendo também oficinas de iniciação à tipografia e outros temas culturais. Em paralelo com o trabalho editorial, foi ao longo dos anos constituindo uma Biblioteca com cerca de oito mil volumes, abrangendo diversas temáticas, com ênfase nas artes plásticas, literatura nacional e estrangeira e livros sobre livros. Também reuniu obras de importantes artistas plásticos, nacionais e estrangeiros, gravações com depoimentos de escritores e de artistas e músicas em diversos suportes” (QUADROS PEREIRA REGO, Maria Elisabeth de, in acervo pessoal, 2014). 163 Chamavam-se de printing-houses o espaço aonde o tipógrafo trabalhava e residia junto com a família. Um exemplo raro de printing-house é a Oficina Plantiniana, hoje Museu Plantin-Moretus, na cidade da Antuérpia, Bélgica, descrita com detalhes no primeiro capítulo.

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ENCONTRO COM BORIS SCHNAIDERMAN (1986) Prefácio de Cleber Teixeira.

compasso diferente. Após descer as escadas que levavam à oficina tipográfica, o visitante era, de antemão, alertado sobre o novo universo que adentrava. Colado à porta, um pequeno papel anunciava: “Aquí se imprimen libros”164. A partir do portal, o tempo se transformaria e o visitante seria guiado pelos livros de uma biblioteca que circundava o pequeno paraíso de impressão manual. Embora fosse aquele espaço um habitáculo de livros, 164 Frase retirada de Dom Quixote. No capítulo LXII, segunda parte do romance, quando Dom Quixote e Sancho saíram para passear nas ruas de Barcelona: “Aconteceu então que, indo por uma rua, Dom Quixote levantou os olhos e viu escrito sobre uma porta, com letras muitos grandes: 'Aqui se imprimem livros', o que muito o satisfez porque até então não vira nenhuma tipografia e desejava saber como era” (CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha.Trad.: Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 2003, p. 633). “Ao entrar na oficina, Dom Quixote vê ‘todo aquele maquinário que nas imprensas grandes se mostra’. Cervantes introduz o leitor na divisão e na multiplicidade de tarefas que caracterizam o processo de impressão” (CHARTIER, 2002, p. 33).

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lá também nasciam os livros. Por ali passaram muitos visitantes, ora curiosos, ora entendidos da palavra. Com respeito e reconhecimento pelos encontros que sua editora lhe proporcionara, Cleber enalteceu os tantos visitantes, assim como fizera Borges a quem reverenciava, que uma das maravilhas do livro é “a capacidade de se multiplicar” (TEIXEIRA in CRENI, 2013, p. 133). Sua biblioteca se estende165 por todos os cômodos da casa-oficina e uma de suas últimas predileções foi uma coleção de livros sobre o objeto livro, desde a história até sua forma gráfica. No total, a editora reúne um acervo com mais de oito mil livros (ainda não catalogados) sobre arte, poesia, literatura e história, muitos dos quais são livros raros. Hoje, quase três anos após o seu falecimento, os livros editados pela Noa Noa são vendidos em loja online166, e muitos deles se encontram esgotados no catálogo composto com obras de escritores como Affonso Ávila, Edson Negromonte, Raul De Leoni, Hugo Mund Jr., José Paulo Paes, Jayro Schmidt, Cabral Scliar, Francis Ponge, Octavio Paz entre outros. Cleber Teixeira deixou um importante legado cultural e abrangente obra poética e literária. Segundo sua companheira Maria Elisabeth de Quadros Pereira Rego, a trajetória de Cleber foi, ao longo dos anos documentada nas várias entrevistas que concedeu, nas matérias sobre ele publicadas em livros, jornais e revistas, bem como nos documentários e filmes sobre ele: Sendo uma pessoa respeitada e admirada como editor, poeta e tipógrafo, e principalmente como ser humano afável e receptivo às trocas culturais, recebeu inúmeras visitas de intelectuais da cidade ou que passavam por Florianópolis. Muitas dessas visitas foram registradas em fotografias e resultaram em importante troca de correspondências que se encontram arquivadas na editora. (QUADROS PEREIRA REGO, 2014, acervo Noa Noa)

Em 2014, um projeto coordenado por Maria Elisabeth foi contemplado com o Edital Estadual Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, cujas correspondências, registros fotográficos e material impresso estão sendo catalogados e posteriormente estarão disponíveis para consulta local de estudantes e todos os interessados na vida e obra de Cleber Teixeira167. 165 A Editora não foi modificada após seu falecimento. Todos os livros e acervo pessoal permanecem lá. 166 Cf: . Acesso em 07.01.2016. 167 Uma caminhada pelo universo literário, descrito por Maria Elisabeth Quadros Pereira Rego (acervo editora Noa Noa, 2014): “Promoveu ou apoiou, juntamente com outros intelec-

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No âmbito social, Cleber Teixeira experimentou um intenso convívio com amigos e familiares. No trabalho de editor, tipógrafo e poeta, as obras refletem o estilo de vida pessoal, onde a escolha do ofício solitário o agradava e lhe trazia “uma capacidade de só se sentir à vontade no seu canto” (In VERAS, 2007), onde papel, tinta, máquina e tipos compunham o seu patrimônio. O resto, dizia ele, era esforço pessoal, juntamente com a solidão que lhe trazia o poder da escolha, assinalando por conseguinte: “faço isso ou faço aquilo, sou uma pessoa que faz um esforço pra acertar. Só” (In Ibidem, 2007). Para ele, tipografar livros não se resumia a uma disputa olímpica ou de mercado, mas consistia em dilatação do percurso numa eterna experiência de formação, onde suas fortes referências clássicas e a erudição dos livros lhe permitiram transitar desde a arte medieval até o movimento minimalista. Cleber Teixeira era um “cavaleiro sem cavalo e tipógrafo”, assim como em sua obra publicada no ano de 1969, que perseguiu o cumprimento do tuais residentes em Florianópolis, eventos que contribuíram com a movimentação cultural da cidade, entre eles: Exposição de obras de artistas visuais e de livros de arte na Biblioteca Pública de Florianópolis em 1980; Semana Julio Cortazar no Centro Integrado de Cultura em 1984 (promovida pela UFSC, com apoio da Editora Noa Noa e do jornal O Estado); Seminário Em torno do Livro (com as editoras Paraula e Mulheres) no Palácio Cruz e Sousa, Florianópolis, em 1997; Oficina sobre Iniciação à tipografia com tipos móveis promovida pela Sociedade Amantes da Leitura, da qual foi um dos sócios fundadores, em 2004. Foi membro da Comissão Julgadora do Concurso Nacional de Contos: Prêmio Paraná 1992 promovido pela Secretaria de Estado da Cultura/PR; membro da Comissão Julgadora do Concurso de Poesia promovido pelo Sindicato dos Eletricitários de Santa Catarina em 2002; membro da Comissão Consultiva para avaliação de exposições na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina e no Centro Integrado de Cultura em 2003; sugeriu e incentivou a criação da Biblioteca de Arte no Centro Integrado de Cultura, participando da comissão que conceituou e definiu suas características; contribuiu para a conceituação e disponibilização do acervo para exposição da obra de Osman Lins no Centro Integrado de Cultura; participou da indicação de livros para premiação de autores de língua portuguesa no concurso promovido pela Portugal Telecom em 2004 e foi membro do Conselho Editorial da Revista da Biblioteca Nacional em 2012. Participou do PoemaRio: poetas do Rio de Janeiro no Café Bexiga em São Paulo em 1979 e foi palestrante nos seguintes eventos: Seminário Letra e Imagem no Rio de Janeiro em 1981; Seminário sobre poesia promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo em 1991; Colóquio Conversa sobre livros promovido pela Secretaria de Cultura do Estado do Paraná em 1992; Colóquio Poesia: passagens e impasses no NELIC, da UFSC em 2001; Colóquio Leitores da BICA na Biblioteca Infantil Carlos Alberto, no Méier, Rio de Janeiro em 2002; Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial promovido pela Fundação Casa Rui Barbosa no Rio de Janeiro em 2004; II Colóquio de Literatura Traduzida, promovido pela UFSC em 2005; Depoimentos de poetas Terça com Poesia, promovido pela Fundação Franklin Cascaes no teatro da UBRO, Florianópolis em 2006; Feira do Livro Primavera dos Livros, no Rio de Janeiro em 2009 (entrevista para produção de vídeo); Mesa redonda sobre poesia na Casa da Poesia de Arraial do Cabo RJ em 2010. Foi agraciado com a Medalha do Mérito Cultural Cruz e Sousa oferecida pelo Conselho Estadual de Cultura de S.C, em 2011, e pelo Prêmio Franklin Cascaes de Cultura da Prefeitura Municipal de Florianópolis em 2012”.

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dever, e o equilíbrio entre a disciplina e a sensibilidade. Johan, Huizinga em O outono da Idade Média (2010), analisa as formas de vida e pensamento dos séculos XIV e XV, e propõe o cavaleiro medieval como aquele que segue um ritual de sagração, inserido num ambiente de guerras e crises políticas, no qual, em seu juramento cavaleiresco, despreza as riquezas em sacrifício pessoal. É sobretudo, um cavaleiro cortês e letrado, um sobrevivente genuíno. Me aventuro a assimilar o retrato do cavaleiro de Huizinga a Cleber Teixeira, em quem a tipografia se espelha como um ritual sagrado, no juramento fiel à profissão esquecida e obsoleta: um “ofício para loucos”. No confronto pessoal de retirar-se do presente e adentrar na “aventura e arte” de Gutenberg, editando autores desconhecidos pela devoção à escrita, e convivendo constantemente com os paradoxos da profissão de poeta, editor e tipógrafo, assim como nas reflexões pessoais sobre o tempo e espaço. A pressão da implementação gráfica, tecnológica e mercadológica em relação aos livros, a partir dos anos setenta, não fez com que Cleber desistisse de seu ofício. É raro o ideal do tipógrafo, de registrar a sensibilidade perdida.

TREZE POEMAS DO POETA, CAVALEIRO SEM CAVALO E TIPÓGRAFO. Cleber Teixeira. Composto e impresso manualmente na oficina Noa Noa. Capa de Roberto Magalhães. Rio de Janeiro, RJ, 1969.

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A Editora Noa Noa, instalada em Florianópolis desde 1977, trabalha com tipos móveis e máquina tipográfica de alimentação manual. Luta-se em sua oficina pela preservação da mais nobre e bela maneira de multiplicar um texto: a tipografia. Na oficina da Noa Noa o texto é montado letra por letra. Dos bem organizados compartimentos das gavetas os tipos são levados ao componedor num trabalho exaustivo mas gratificante que tenta resgatar e divulgar o melhor da poesia universal e tornar público o novo ainda desconhecido. (TEIXEIRA, 2013)168

Designar Cleber Teixeira com o ideal do último cavaleiro tipográfico certamente faz sentido para os pesquisadores da tipografia que compreendem a dificuldade de fazer respirar esse ofício nos dias de hoje. No mundo do instantâneo, onde tudo é tão rápido quanto a velocidade em que um objeto surge e desaparece, em que as profissões são a cada ano mais virtuais, e onde a plataforma mais lida no mundo é a tela do computador, descrever o trabalho tipográfico é coisa de outro mundo ou de outra época. A imagem idílica do cavaleiro, segundo Huizinga (2010, p. 207) é uma ficção repleta de ideias de beleza e virtudes, porém, a imagem do cavaleiro que prevalece não é no seu modo de viver, mas a sua busca por aspirações, deixando a vida exaustivamente inflada, como aponta Huizinga, e buscar a segurança na simplicidade e na paz, preservando o ideal com espírito moderno da investigação e praticar o desapego do mundo. Assim era Cleber Teixeira. E se o ideal cavaleiresco é uma ficção, como aponta Huizinga (Ibidem, 2010, p. 99), entre o cavaleiro e o tipógrafo, o que importa, não é o modo de vida, mas um ideal proposto na ética e na perseverança, conferindo a nobreza em vincular piedade e virtude nas atitudes da vida. O processo tipográfico artesanal como profissão é uma escolha de privação do tempo, um ideal monástico que se assemelha ao ideal cavaleiresco e, assim como um cavaleiro, do tipógrafo se exige uma silenciosa sabedoria, uma vida que não se baseia na busca da arte em si, mas na sua contemplação solitária, na arte aplicada para intensificar o esplendor da própria vida e em seu propósito. A obra de Cleber Teixeira transpira sua própria vida, na completa fidelidade aos livros, à literatura e à tipografia. A imagem idílica de um cavaleiro, segundo Huizinga. Cleber esteve aqui até 2013, resistindo as intempéries da vida, sobrevivendo solitariamente no mercado editorial, e mostrou ser possível editar livros de modo lento e manual, oferecendo aos leitores os clássicos literários. Se até mesmo no 168 In Catálogo da Noa Noa. Cf: .

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século XXI a editora Noa Noa de Cleber Teixeira tornou-se possível, isso sucedeu em razão de um número suficiente de escritores, poetas e artistas, assim como também leitores interessados e afinados com o ofício contemplativo e manual. Um fato que se caracteriza não apenas pela relevância na confrontação com os avanços tecnológicos, mas pela valorização do tempo poético e filosófico do ofício tipográfico. Cleber fez crescer uma tendência que há alguns anos surgiu na Europa, onde pequenas editoras manuais publicam um ou dois livros por ano, num mercado genuinamente reconhecido com espaços oficiais nos corredores da Feira de livros de Frankfurt, na Alemanha, há mais de cinco edições. No percurso dessa pesquisa apresentei o vasto campo da tipografia desde o surgimento, seu período áureo na Europa até encontrar a obra do poeta carioca com o desejo incontrolável em editar nos anos setenta, que atingiu o ápice de sua produção nos anos oitenta, inserido num mercado voltado exclusivamente para o industrial, e não para o artesanal. A tipografia é uma atividade que exige, além da sensibilidade, o exercício da técnica que objetiva a perfeição. Um ofício arqueológico e extinto, segundo me parece, imbuído do ideal de cavaleiro tipográfico livre de ligações terrenas e do homem absolutamente desprendido, “possuindo nada mais que sua vida nua e decidido a jogar cara ou coroa quando a causa assim o exige, ele é o representante da liberdade desembaraçada frente a objetivos ideais” ( JAMES in Huinzinga, 2010, p. 115), assim como Gutenberg, Plantin, Aldus, João Cabral, Vicente... A montagem de textos letra a letra, quando o tipógrafo ainda utiliza lupa e pinças para ajustar as entrelinhas entre as letras, certamente está fadada à extinção nos próximos anos. Assim como talvez, a profissão de relojoeiro, cuja mesma ferramenta é utilizada para ajustar os mecanismos do tempo.

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Oficina Noa Noa.

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Prensa movida à pedal de modelo igual à de Virginia Woolf. Cleber Teixeira na oficina Noa Noa com Márcia Mathias. Miniaturas de cavaleiros que ficam junto à mesa da cozinha e a vista para o mar.

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Oficina Noa Noa. Cleber mostrando os tipos gregos que sua filha lhe enviou da Grécia, em 2009.

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Cleber com rama tipográfica. Ex-Libris de Cleber com desenho de Iberê Camargo, um retrato do poeta tipógrafo. Impressão em 2009. Sua máquina de escrever modelo Olivetti Lettera. Tipos amarrados com cordão: técnica que se utiliza para levar a composição à rama.

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O PESO DAS PALAVRAS EM ARMADURA, ESPADA, CAVALO E FÉ

Com a paciência e o ritmo que lhe eram característicos, Cleber dizia que “trabalhar compondo é sentir, literalmente, o peso de cada palavra” (In CERA, 2012). Aficionado pela materialidade da palavra, Cleber poderia permanecer horas ou até dias contemplando a matriz de uma composição com espaços e tipos de chumbo antes da impressão da página que viria a se transformar em livro, como um escultor admira sua obra de arte. Enquanto a composição permanecia presa na rama, o poeta desejava reverenciar também o (transitório) rastro da palavra etérea, que após a impressão se desmancharia (para sempre) e se transformaria em outras palavras, outros textos, outros livros. Segundo Cleber, tipografar livros não se resumia a uma disputa olímpica, mas na dilatação de uma viagem em eterna formação, como quando realizamos um percurso de bicicleta, e não de carro. Ambos os modos são distintos, cada um a seu tempo, e na tentativa de driblar os pequenos contratempos que o ofício da composição da palavra lhe impôs, o poeta tipógrafo descreveu sua experiência da seguinte maneira: Na medida em que você trabalha nos processos de composição gráfica, principalmente os manuais, você penetra intimamente na poesia, você está sempre com o conteúdo da composição na cabeça. [...] Ainda mais que no processo manual de composição, se comparado ao do computador. Tudo isso fazia parte de um processo de formação, de educação do poeta, e eu estava no ponto. (In CRENI, 2013, p. 130)

Em entrevista para o site Portal Literal (ANEXOS, p. 143), Cleber ressalta sua conexão como tipógrafo e editor de Mallarmé:

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À medida que eu trabalhava com Mallarmé, por exemplo que eu editei traduzido pelo Augusto de Campos, eu estava fazendo um livro como eu queria fazer, estava estabelecendo uma relação de cumplicidade poética com Augusto de Campos e estava, talvez, mais do que tudo atendendo a um desejo meu que era de pegar Mallarmé “à unha”, mexer verso por verso de tal modo que eu passava o dia mexendo com Mallarmé, e sonhava com aquilo. (TEIXEIRA, 2005)

“À unha” é ter a palavra física nas mãos e o peso de sua gravidade, o corpo massivo e encaixável como um quebra-cabeça organizado e constituído por letras e formas. O contato sensorial com a palavra de chumbo nas mãos é uma (oper)ação semelhante ao amassar a argila que devirá cerâmica. Na diferença que a argila será a cerâmica e na tipografia as letras permanecem intactas após a impressão, até a hora em que o tipógrafo decide dissolvê-las e guardá-las novamente na gaveta de tipos. Do tipógrafo é exigida a exatidão, o trabalho de triunfar ou desagradar “e perecer por mérito ou por culpa da sua feição tipográfica” (POLK, 1948, p. 05). Ao final dos encaixes das letras com os espaços e entrelinhas, toda a massa metálica (diferente da argila maleável), é um bloco de chumbo pronto para receber mais peso com o material branco dos espaços (parte branca do texto) que formarão as margens da página. Fisicamente, o trabalho tipográfico se inicia com um corpo metálico – o tipo –, que na sua origem, é uma mistura ajustada de metais. E que ao esfriar, não enferruja, corroi, ou trinca. É um corpo de chumbo que só ganha consistência com a dureza do antimônio e com a tenacidade do estanho. Como um corpo (na linguagem técnica é medido em corpos) o tipo é, na maioria das vezes, minúsculo e escapa das mãos, onde pinça e lupa são utensílios necessários para reconhecê-los. Por isso, do olho do tipógrafo se exige a destreza e até os microscópicos tipos são compostos por partes: olho, relevo do olho, pescoço ou talude, ombro ou escavado, espaço de alinhamento, rebarbas e furo de Configurações de um Tipo.

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guia169. Os tipos são configurados em fontes e vendidos por peso. Em vídeo de acervo pessoal do designer Henrique Nardi (acervo Noa Noa), Cleber comenta um “caso” tipográfico em relação ao peso e à compra de tipos: Comprei muito tipo usado. O que era possível na época e hoje não tem mais […] era um sacrifício. E você tem que ter muito cuidado porque se você compra uma letra, e não tem o o por exemplo, mesmo o w que se usa pouco, você tem que conferir tudo. Eu comprava o que era possível, [...] e vinha uma coisa sem vergonha da fábrica. Eles faziam um corpo “20” de base mas o olho, que é o que interessa e vai ser impresso, é de “16”. Então, eu estou pagando pelo peso e uma coisa curiosa, que o “16” ainda é maior que o tipo vendido em tamanho “20”. E eu não preciso, nem eu e nem os outros que compravam, desse chumbo vazio. (Teixeira, 2006)

Portanto, uma letra possui corpo seis, oito, dez, doze ...; e a composição do texto tipográfico é feita de forma invertida, nos quais os tipos devem ser lidos da direita para a esquerda e com os caracteres de cabeça para baixo, resultando uma árdua tarefa ao compositor, além de espacejar e justificar o texto, manualmente. Depois de compor a pesada massa metálica do texto, o tipógrafo deve retirá-la do componedor e colocá-la em uma bolandeira (amarrado com um barbante), a fim de que todo o texto esteja completo com as cunhas e guarnições apropriadas, para enfim, apertar o texto composto e seguir, montado na rama, em direção à máquina tipográfica. Dessa forma, o peso de uma rama montada com todos os elementos tipográficos pode conter mais de vinte quilos. Ao final, a somatória dos pesos configura-se, portanto, na ideia do “esforço físico” de Drummond e na “ginástica tipográfica” de Cabral. No breve texto que abre o catálogo da Editora Noa Noa, Cleber Teixeira chama a atenção para cada etapa do processo, onde o peso não se mensura apenas nos quilos dos materiais empregados na tipografia, mas metaforicamente em tempo e história: 169 O olho é o desenho da letra em relevo na extremidade superior, e dividido em elementos grossos, finos ou serifas; e entre o olho e a face do tipo ainda existe uma chanfradura de metal denominada relevo do olho, pescoço ou talude. Há também o ombro ou escavado, que é uma depressão entre os elementos das letras e espaço de alinhamento, que é a parte do tipo que se estende além da sua base. As rebarbas do tipo são partes desprovidas de superfície, e o furo de guia é uma identificação do tipo na hora da fundição, que indica o tamanho do tipo. Os seus pés são duas saliências sobre as quais se apoia o corpo do tipo. Com um olhar microscópico que o tipógrafo deve ter, entre os pés do tipo há uma rachadura ou um corte, que tem duas funções, indicar a posição correta do tipo na composição ou de auxiliar o tipógrafo a identificar o tipo quanto ao estilo particular ou à caixa a qual pertence.

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O texto tipográfico procura resgatar uma prática quase desaparecida: a estreita convivência da gravura com a tipografia, prática bastante comum até as últimas décadas do século XX, quando os processos de composição e impressão se tornaram mais acessíveis e criaram a falsa ideia que a tipografia e a gravura eram processos obsoletos, arquivados. Se a tipografia e a gravura são vistos apenas como processos multiplicadores de originais é natural considerálos arquivados. Mas sabem todos que se interessam pelas artes gráficas, os leitores, os bibliófilos e os colecionadores de arte que eles são mais do que isso. A arte da tipografia, com tudo que precede a composição e a impressão (desenho, fundição dos tipos, projeto gráfico, etc.) tem vida longa e cabe a cada um que sabe disso resistir e ajudar a promover uma estreita convivência com os designers gráficos de hoje (Teixeira, 2012).

No texto, o editor e tipógrafo elucida a importância do que precede o processo tipográfico, no conjunto de ações, para se chegar na impressão. Portanto, ter uma obra de Cleber Teixeira em mãos é também (além do texto e forma contidos nos livros) imaginar e vislumbrar todo o peso inserido naquele produto, no caminho percorrido até aquele resultado final. O peso (histórico) como possível analogia de acesso a um retorno eterno da origem do processo da escrita “artificial” onde, ao final de todos os estágios da técnica resultam nos livros Noa Noa, objetos que não contêm corpo algum, mas ao mesmo tempo tudo está lá. Um desafio à solidez e uma relação entre massa e potência.

Componedores tipográficos no estúdio da Corrupiola.

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Pinça, ferramenta tipográfica. Exemplo de espacejamento. Rama tipográfica montada na mesa com o material branco. Rama tipográfica descansando na Editora Noa Noa.

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Os livros impressos na oficina Noa Noa surtem o efeito do encantamento, o desejo de aproximação e de compreensão a respeito do processo de impressão, e guardadas as proporções, é possível pensar numa síntese equivalente a Gutenberg imprimindo a Bíblia de 42 linhas, Plantin tipografando Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius e Aldus Manutius refletindo sobre a melhor forma para a Adagia de Erasmus. A admiração provém do vínculo que amalgama poesia e experiência em espaço e tempo (entre)ligados no ofício. Um ofício contemplativo e manual, que não se caracteriza pela relevância na confrontação com os avanços tecnológicos, mas na valorização do tempo poético e filosófico de um processo que compreende, para além do seu resultado estético, um complexo de causas e efeitos em sua imprevisibilidade e delimitações e recursos, fatores que estão contidos nas mãos do tipógrafo artesão. Uma reflexão que se faz contraditória em nosso século, uma vez que a industrialização turva a percepção em consequência da fragmentação do espaço, provocando uma ideia (virtual) de aceleração do tempo. Uma triste equação também alinhavada por Osman Lins, quando assinala que “os tempos mostram-se desdenhosos para com os ofícios delicados, cujo sentido não está em produzir muito e sim em produzir serenamente” (LINS apud. ANDRADE, 1987, p. 30). Do mesmo modo, Osman registra que as únicas certezas do escritor quanto à elaboração de sua obra são as certezas do artesão, porque ele sabe qual o

Rama tipográfica com a altura dos tipos e da placa em clichê (Estúdio Corrupiola).

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peso e o valor dessas soluções no processo de evolução e um conhecimento muito íntimo de seu ofício em suas experimentações. Logo, em Guerra sem Testemunhas o escritor convida o leitor a contemplar a impressão artesanal dos livros, muitas vezes menosprezada: O ritmo da fabricação do livro [...] tudo isto demanda semanas de trabalho e não exageramos em afirmar que o fabrico do livro nunca deixou de ser um artesanato. Dos artesãos, conservam os operários do livro certo desdém em relação ao tempo, o uso intenso dos olhos e o sábio manejo das mãos, o amor ao trabalho que executam e o respeito – hoje tão raro – ao produto desse trabalho. Curvados sobre letras, manipulando letras, substituindo-as, contando espaços, pontos, cíceros, quadrados, quadratins, entrelinhamento, apertando as linhas da composição, desfazendo canais, transpondo ou recorrendo, para que à página impressa não faltem o equilíbrio e a pureza sugeridos pela sua forma, vemos então esses trabalhadores, cujos nomes jamais são registrados nos livros que imprimem, herdeiros de uma tradição cujas leis transmitem, à espera de que, desaparecidos os livros mal executados, feitos para atender a necessidades imediatas e pouco exigentes, sobrevenha o ciclo no qual readquira importância, entre os belos ofícios, a qualidade de seu trabalho. (LINS, 1974, p. 133)

Segundo Ana Luiza Andrade (1987, p. 30), Osman Lins vê a fabricação dos artesãos como metáforas para a própria criação literária, num “parentesco que adquire importância temática” e que o escritor aplica tanto à sua vida como à sua ficção. Uma reflexão também existente em Cleber Teixeira, quando a sua atividade de impressor e editor se aplica à sua poética, assim como Augusto de Campos traduz o poeta tipógrafo como um “todo” (In CACCIATORE, 2014). Desse modo, percebo que a autonomia da tipografia lhe permitiu, como poeta, o contato direto com o artesanato da sua própria poesia, no manipular as palavras matéricas numa vontade entendida como apetite no desejo e conflito (Aristóteles) e retirando delas o caráter essencial da poésis, entendida como des-velamento, no sentido de verdade, segundo reflexão assinalada por Agamben (2013, p. 118), no qual fundamenta as raízes de práxis e poiésis: Aquilo que os gregos quiseram significar com a distinção entre poiésis e práxis era precisamente que a essência da poiésis não tem nada a ver com a expressão de uma vontade (em relação à qual a arte

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não é de modo algum necessária); ela reside, ao contrário, na produção da verdade e na abertura, que resulta dela, de um mundo para a existência e a ação do homem. (Agamben, 2013, p. 122)

Como um obstinado pela palavra, Cleber Teixeira tornou a poesia seu ofício diário e absoluto, e nos versos de Armadura, espada, cavalo e fé, definido por ele como um poema work in progress, o poeta reflete sobre a sua existência e o ato de poetar. Retirou da práxis da tipografia a liberdade de, continuamente, estar fazendo e mudar o formato, as letras e inclusive seu conteúdo, prologando os fragmentos ou até mesmo alterando quando achasse necessário. Na experiência temporal em sua permanente instabilidade, os fragmentos do poema apresentam o estado provisório da natureza do autor conjugado com o eterno da matéria. Nesse poema, me parece que Cleber procurou “passear à volta com as palavras”170, e procurou nelas a sua essência, onde a leveza é o valor a ser buscado na carpintaria da literatura, como aponta Edson Cruz (2012), “na busca pela leveza como uma reação ao peso de viver”, assim como “na poiésis diária que subtrai com afinco o peso do que é pesado, seja de figuras humanas, corpos celestes, cidades, estruturas da narrativa, ou da própria linguagem”, e retirando da literatura sua função existencial (apud. Calvino). O poema Armadura, espada, cavalo e fé foi publicado pela primeira vez, em 1970 no Rio de Janeiro, com os primeiros oito fragmentos. Em 1979, em Florianópolis, Teixeira reeditou os mesmos fragmentos da obra em versão ampliada até o fragmento 21. Na reedição, após o oitavo fragmento, o autor explica (no prólogo da publicação), que não cogitou editar os oito primeiros fragmentos a fim de completar um livro fechado, e que ainda era vaga sua intenção de considerar aqueles dois volumes como um livro em andamento. Essa intenção, todavia, é novamente manifestada na edição seguinte de 1991: Armadura, espada, cavalo e fé é uma modesta “Work in progress”, para recorrer à matriz joyceana, ou uma “Opera aperta”, para, mais uma vez abrigá-la sob as asas protetoras das matrizes eruditas. Os 21 fragmentos anteriores estão espalhados em outros pequenos volumes também editados pela Noa Noa. Quando a “indesejável dos homens” chegar, estes textos comporão um texto único, o “Cahier de 170 A ramble round Words, termo designado por Virginia Woolf (2015) e traduzido como passeio à volta das palavras, em ensaio intitulado Craftsmanship, que foi ao ar pela rádio da BBC no dia 29 de abril de 1937. Virginia leu um excerto do ensaio e este é o único registro da voz da autora.

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Primeira edição de Armadura, espada, eavalo e fé (Fragmentos 1 a 8). Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Capa de Raquel Feferbaum. Tiragem: 150 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1970. 12,5x18,5 cm, 16 páginas. Abaixo, as três edições seguintes de Armadura, espada, cavalo e fé: Esquerda: 3ª edição. Fragmentos 22 a 24. Formato plaquete. Impresso manualmente em papel Fabriano. Capa do autor (utilizando desenho de Segonzac). Ilustrado com retrato do autor por Iberê Camargo. Tiragem: 50 exemplares. Florianópolis, SC, 1991. 12,5x17 cm, 18 páginas. Meio: 2ª edição. Fragmentos de 1 a 21. Capa de Jayro Schmidt. 350 exemplares. Florianópolis, SC, 1979. 17x24 cm, 32 páginas. Direita: 4ª edição. Fragmentos 22 a 41. Capa do autor. Ilustração do autor com a colaboração de Marta Dischinger. 100 exemplares. Florianópolis, SC, 2005. 13x18 cm, 36 páginas.

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notes” de um trovador provençal que, por erro de cálculo dos deuses, nasceu 8 séculos depois [...]. (TEIXEIRA, 1991, s/p)171

Se na edição de 1991 o poeta publicou os fragmentos 22, 23 e 24 numa obra de aspecto físico diferente à edição de 1979 (tipos, formato, composição, papéis), na edição posterior e última de 2005, Cleber não se limitou a reformatar a obra física, como também reescreveu os fragmentos 22, 23 e 24 e ampliou a publicação até o fragmento 41. É portanto, relevante levar em consideração que o working progress, no estar fazendo, lhe permitiu dialogar com os mesmos fragmentos, porém em tempos distintos numa espécie de viagem anacrônica, no qual a temática dos mesmos fragmentos se manteve, porém o sentido foi reavaliado. Enquanto que no fragmento 22 da edição de 1991, o poeta versa “Sobre o chão movediço desta minha Provença reinventada”, no equivalente fragmento 22 da edição de 2005 a palavra movediça está ausente, versando “Nesta minha Provença reinventada...”, ou seja, “o poema é a coisa feita do próprio fazer” (NANCY, 2013, p. 420),e ambos os fragmentos seguem percursos diferentes. A terceira edição de Armadura, espada, cavalo e fé publicada em 1991, é um pequeno volume composto apenas pelos fragmentos 22, 23 e 24: 22 Sobre o chão movediço desta minha Provença reinventada, onde Arnaut Daniel fala o português claro e belo de Augusto de Campos, me interrogo se não é vão, tarefa inútil feita por inúteis este ofício ou arte severa (no português Grunewaldiano) de que fala Dylan Thomas 171 Segundo Augusto de Campos (In CACCIATORE, 2014), “era um desses autores, criadores, que se preocupava mais com a obras dos outros do que a dele próprio”. Sempre muito reservado em relação à sua própria produção poética, Cleber revela no documentário Só tenho um Norte (VERAS, 2007), que “Armadura, é um trabalhando que eu tenho, que eu venho publicando há algum tempo. E à medida que eu tenho alguma coisa pra contar, está ali e se está pelo menos para o meu gosto, eu publico”.

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(que morreu de tanto beber e enquanto vivo atormentou a mulher e os amigos e explorou o quanto pôde o historiador J. P. Taylor (Dylan provavelmente cobrava de Taylor a redescoberta, estimulada por ele, da172 libido da senhora Taylor). 23 Severo ofício é a vida e seus deveres Nesta vida morrer não é difícil o difícil é a vida e seu ofício como disse Maiakóvski a Iessiênin quando este já optara pelo que Maiakóvski considerava menos difícil (não sem antes escrever o último poema com o próprio sangue. Duro ofício é morrer como poeta). A posteridade guardou o poema E não discutiu o que é mais Ou menos difícil. O próprio Maiakóvski, sempre de peito aberto, trocou, cinco anos após Iessiênin, a vida e seu difícil ofício pela morte.

3ª edição. Fragmentos 22 a 24. Formato plaquete. Impresso manualmente em papel Fabriano. Capa do autor (utilizando desenho de Segonzac). Ilustrado com retrato do autor por Iberê Camargo. Tiragem: 50 exemplares. Florianópolis, SC, 1991. 12,5x17 cm, 18 páginas.

172 No original, um pequeno erro tipográfico se encontra nesta palavra, devidamente corrigida pelo autor, que acrescentou (à mão), uma perna no o para tornar-se a.

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24 A poesia é talvez um refúgio de fracos dos que não sabem para onde ir e fazem do não saber seu ofício e arte. Ofício e arte de dolorisa feitura. Mas essa dor sempre fingida mesmo quando verdadeira de que fala Fernando Pessoa não é prova suficiente de que poetar é ofício insano? E este poetar sobre a poesia não é da insana arte a insanidade maior Desenho de um cavaleiro por Iberê Camargo (1971) travestida de cura? para a 3ª edição de Armadura, espada, cavalo e fé, editora Noa Noa, 1991. E quem outorga ao insano o direito de poetar ? E quem sabe neste cristal invisível separar o falso do verdadeiro ? (é boa poesia o sapo de bashô e nem chega a sê-lo tantos entardeceres, luares e lágrimas incontidas sob um céu estrelado). Na última e 4ª edição de Armadura, espada, cavalo e fé, (2005), os mesmos fragmentos 22 a 24 foram reescritos e diluídos nos fragmentos seguintes, no qual o poeta tipógrafo dialoga com os fragmentos da edição anterior. Em conversa consigo e com o tempo, subtrai com insistência “o peso do que é pesado” da existência humana. Ademais, nota-se nesta edição, o refinamento gráfico do tipógrafo, que utilizou a técnica para atingir a delicadeza da simplicidade, revelando o cuidado até mesmo no corte das páginas, de forma manual.

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22 Nesta minha Provença reinventada onde Arnaut Daniel > assume ora a persona de Augusto de Campos, ora a de Segismundo Spina, cultivo, como os poetas da verdadeira, o gosto pelo trobar e pelo melhor dos combates: o que se dá entre lençóis, cavidades e volumes bem torneados e levemente resistentes ao toque. 23 Umas poucas vezes, por imposição das circunstâncias, troquei o bom pelo mau combate. Insensatez passageira. Passou.

24 Das guerras amorosas, aquelas que muitas vezes ferem sem deixar cicatrizes, saí ferido algumas vezes mas o tempo curou o que devia e já não me dói nem mesmo lembrar. Agrada-me lembrar. Como tudo existe para acabar num livro, os combates de outrora são agora um livro guardado na prateleira mais ata, lido mais avidamente quanto mais avidamente passam os anos.

25 Hoje agrada-me mais falar de poesia e de poetas do que de amores mal sucedidos e livros apenas sonhados (não por ter o que dizer, mas para tentar entender o que é poesia e para que servem os poetas).

4ª edição. Fragmentos 22 a 41. Capa do autor. Ilustração do autor com a colaboração de Marta Dischinger. 100 exemplares. Florianópolis, SC, 2006. 13x18 cm, 36 páginas.

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No fragmento 26, Cleber retoma o fragmento 22 da edição anterior, retirando e acrescentando alguns versos, e faz uma auto-ironia ao acrescentar um ponto de interrogação e dois parêntesis onde, na versão anterior, deixara um parêntesis aberto. No fragmento 27, o poeta repete o fragmento 23 da versão anterior, porém, do mesmo modo revisada, e o que se segue nos fragmentos seguintes é uma reelaboração de escrita, onde os fragmentos anteriores revisitam os da nova publicação, formatando uma leitura em dois sentidos: decifração e interpretação, tanto da intenção do autor, como da própria existência da poesia. 26 Não é tarefa sem fim previsto, ocupação de inúteis, este ofício ou arte severa (na versão Joselinogrunewaldiana) de que fala Dylan Thomas (que morreu de tanto beber e enquanto vivo atormentou a mulher e os amigos e explorou o quanto pôde o historiador J. P. Taylor (Dylan provavelmente cobrava de Taylor a redescoberta, estimulada por ele, Dylan, da libido da Sra. Taylor)) ? Dylan não chama de inúteis os que se atrevem a exercer este ofício ou arte severa. A irreverência é minha.

27 Severo ofício é a vida e seus deveres Nesta vida morrer não é difícil O difícil é a vida e seu ofício como disse Maiakóvski (quando poetou em português pelas mãos de Boris, Augusto e Haroldo) no poema/homenagem/censura a Iessiênin quando este já optara pelo que o poeta de Incompreensível para as massas considerava menos difícil (não sem antes escrever o último poema com o próprio sangue, poética de gosto duvidoso mas de efeito duradouro).

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31 Muito pelo contrário, as dores do mundo é peso demais mesmo para o melhor dos poetas. Não foram poucas as vezes que estive perto de considerar a poesia refúgio de fracos, de homens inúteis (que são lidos por outros inúteis). De homens que por não saberem onde fica a entrada de entrada e menos ainda a de saída fazem do não saber seu ofício e arte de dolorosa feitura. Continuo bem perto de achar tudo isso, mas não se pode dizer que não dói este eterno fazer e desfazer, construir e desconstruir, que se impõem os poetas quando perseguem , a forma intocável como o ostinato rigore.

37 Não tenho muitas respostas e as que tenho estão carregadas de incertezas. E não tenho obra que faça com que levem a sério o que digo sobre poesia. O que fiz até hoje foi dar corda ao desejo de brincar com as palavras (não é o que fazem os poetas, segundo Auden?). 38 Duas palavrinhas sobre a busca incansável do novo: o novo envelheceu. 39 Mas que direito tenho eu de dizer o que se deve e o que não se deve: dizer em poesia? Temos todos o direito qe173 juntar palavras (ou o que desejar se for Joan Brossa) assina, virgular e escrever: poesia.

34 E este poetar sobre poesia e poetas não é da insana arte a insanidade maior?

173 A troca de letras (q pelo d) não é confirmada como proposital.

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40 E eu que ano após ano poetei, guardei um pouco do que fiz, encaminhei para o lixo muito do que escrevi (não tudo o que deveria, parte apenas, sou um crítico rigoroso do meu trabalho mas crítico benevolente; o rigor excessivo me levaria ao silêncio).

41 Se o silêncio for a opção, preciso antes entender o que me leva a ocupar o meu tempo com literatura. Não. Melhor me ocupar primeiro da correção das provas do meu texto/vida.

Cleber Teixeira é o personagem de sua própria escritura, no confronto do poeta com a poesia, uma vez que as reescrituras dos fragmentos transcritos acima, são relevantes nessa pesquisa para apontar a leveza em capturar as palavras em movimento, no estado working progress de sua poesia em contraste com o rigor da correção e da escrita, na referência aos mestres poetas. São ações em constante contínuo, onde a busca incansável pelo novo continua envelhecendo a cada reescrita. Embora o poeta tipógrafo tenha, por imposição da vida, deixado a publicação do ano de 2005 como a sua última referência, acredito que, se possível fosse, ele continuaria insistindo na mesma proposição, no continuum caminhar em liberdade da palavra, mesmo que severa, ao escolhê-las apropriadas ao momento. E percebo que, mesmo após o poeta escrever à mão ou na máquina o rascunho dos seus fragmentos, no instante que tinha as palavras em mãos, elas se conjugavam entre si e o poeta, por imposição da matéria, redefiniria a trajetória de sua escrita. Imagino que o poeta se deixava levar pela densidade das palavras, no working progress da própria composição da poesia, no sentido do fazer assinalado por Jean-Luc Nancy em Fazer, a poesia (2013, p. 420), quando o acesso é desfeito como passagem, como processo, como encaminhamento, abordagem e aproximação, disposto como exatidão, cujo fim é em si mesmo: O que é fazer? É dispor no ser. O fazer exaure-se tanto na disposição como em seu fim. Esse fim que ele estabeleceu como meta, eis que ele é tanto seu fim quanto sua negação, pois o fazer se desfaz em sua perfeição. Mas o que é desfeito é identicamente o que é disposto, perfeito e mais que perfeito. O fazer acaba, a cada vez, alguma coisa e a si mesmo. Seu fim é sua finição: nisso, ele se dispõe infinito, a

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cada vez infinitamente mais além de sua obra. (NANCY, 2013, p. 420)

A reflexão de Nancy sobre o fazer, se pensarmos também como uma inscrição, muito se assemelha aos palimpsestos praticados na Idade Média pelos monges escribas que raspavam os textos e os recobriam com novas escritas. Em Armadura, espada, cavalo e fé, (TEIXEIRA, 2005), a tipografia lhe permitia recompor as ramas com novas palavras e elaborar as antigas, onde somente com a comparação das quatro publicações work in progress, é possível delinaer o rastro da escrita do poeta, em que a retirada dos pesos, visa a leveza da poesia. No final do fragmento 37 da publicação de 2005, Cleber versa sobre o poetar: “o que fiz até hoje/foi dar corda ao/desejo de brincar/com as palavras/(não é o que fazem/os poetas, segundo Auden?)”. Percebo, nestes versos, que o poeta permite à matéria dura e irredutível da palavra se soltar, e se apega ao contrapeso de sua efemeridade, conjugando no mesmo compasso da continuidade do poema. Tal reflexão pode ser alinhavada com a reflexão de Virginia Woolf, quando em Craftsmanship (2015), a escritora argumenta que as palavras não nascem para ser úteis, não no sentido de expressar uma afirmação, todavia em sua abertura a mil possibilidades. No percurso desse capítulo, procurei entrelaçar minha reflexão com a materialidade da palavra na escritura de Cleber Teixeira. E me arrisco a considerar, embora o poeta não o tenha documentado de forma cristalina, que o processo tipográfico interferiu em sua escritura na coexistência entre tempo e história da técnica e no diálogo permanente com os grandes mestres poetas e tipógrafos. Sua escrita foi mediada por algo determinante para além da sua linguagem. Penso que esse algo está contido no dever ao respeito (peso) da palavra, onde Cleber, seguindo os rastro dos impressores humanistas, procurou conceder à palavra sua liberdade (leveza). No continuum do tempo, as palavras se misturam, transformam, escapam. Em Armadura, espada, cavalo e fé a dificuldade em manipular a própria palavra emerge uma vez que, como editor, era também o rigoroso guardião das palavras de outros poetas, e cumpriria o dever de honrá-los com uma autoseveridade redobrada na sua escritura. E na linha tênue entre o peso e a leveza da poética não desejava, sobretudo, que suas palavras fossem rotuladas, porque como poeta e tipógrafo sabia, assim como Virginia Woolf (2015, p 07), que quando rotuladas, as palavras dobram as suas asas e morrem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS {PASSADO E FUTURO}

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O PROLONGAMENTO DO TEMPO NO OFÍCIO TIPOGRÁFICO

Se faz importante sublinhar que essa pesquisa não é um trabalho de vanguarda, tampouco tem por objetivo o apontamento de algo novo. Tratase do estudo de um processo de impressão clássico e limitado, que em seu decorrer tecnológico se converteu em outros processos, e sua função se estagnou no tempo. Contudo, é um processo que se ressignifica com o mesmo objetivo de inscrever a palavra em sua expressão e transmissão. Procurei, no volume destas páginas, delinear o percurso da escrita (desde a caligrafia, ação que permitiu ao homem registrar suas ideias através da repetição), precipitando o processo tipográfico, tema central da pesquisa. A tipografia como processo de impressão possibilitou a multiplicação da palavra por Gutenberg, atravessou fronteiras e como toda tecnologia, foi substituída por outras técnicas. O homem pressionou o tempo e a tipografia é um processo de lentidão e, com as máquinas, a ação humana perdeu seu espaço de importância. Instaurou-se então, o ato sem potência, a substância sem sujeito. No mundo moderno, a reflexão da desvalorização da ação humana deixou de ser necessário, de “possuir um telos de significação”, o fazer perdeu o seu sentido (WERLE, 2011, p. 77). E mesmo com os empreendedores gráficos injetando capital na capacitação de homens e mulheres no trabalho tipográfico em fins do século XIX, o que antes era uma técnica humanista, se transforma em técnica de fragmentação refletida “na exoneração do humanismo, eliminação das nossas tendências místicas e contemplativas, no apelo à única força telúrica fecunda para se criar, através de monstruosos métodos científicos”, assinalada pelo poeta Murilo Mendes174 como a “solidão estéril e desumana”. Dos novos tempos surge um novo “espécime” de homem mecânico e sozinho, dentro de um universo hostil, em permanente estado de sítio. Quando a tipografia cede lugar ao dinamismo do novo, a ela lhe resta o arquivamento. Todavia, os apaixonados pelo fazer do trabalho artesanal e pela liberdade de expressão iluminam o processo tipográfico de modo despretensioso, porém persistente. Seu brilho reacendeu nas mãos de escritores e artistas que souberam valorizar seu encanto e hoje, século XXI. E o processo tipográfico sobrevive. A tipografia como assunto, tema ou inspiração na obra de escritores como metonímia, admiração ou obstinação. Todos os caminhos destas páginas apontam para a tipografia como um todo 174 Mendes, Murilo in LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu: Jorge de Lima. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 528. Publicado também no suplemento “Letras e Artes” de A Manhã, Rio de Janeiro, 24 de junho de 1952.

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na obra do poeta, editor e tipógrafo Cleber Teixeira, cujo respeito pela arte de imprimir foi honrado em sua utilização e conservação, no culto à tipografia clássica dos grandes mestres. Cleber também foi um grande mestre. E se tinha como objetivo oferecer luz à tipografia, sem dúvida sua memória ilumina as artes literárias e gráficas, em sua devoção concedida à tipografia sem limites. O limite foi o próprio ofício que lhe impôs. Viveu e respirou livros, poesia e tipografia e era assim que gostaria de permanecer175. Foi um poeta que não se “corrompeu” pela tecnologia e se conservou fiel à tipografia até a morte. Essa fidelidade se conjuga em novos movimentos que sinalizam luzes para a história gráfica brasileira. Novas editoras artesanais e cursos que contemplam a tipografia como método artístico, no resgate da efemeridade dos gestos, das pesadas máquinas da indústria e a pluralidade dos estilos propostos pela literatura, como apontado por Ana Utsch (2015, p. 25), sobretudo na criação de museus tipográficos176 no Brasil, com o apoio de instituições públicas e privadas. Iniciativas que tem o papel principal de proporcionar o diálogo entre a memória e a história tipográfica como patrimônio gráfico e cultural: A história imaterial das técnicas, ainda mais difícil de ser apreendida. Neste sentido, trata-se, também, do cotidiano das práticas, do gesto do tipógrafo, dos dedos do linotipista, do movimento da folha de papel em uma máquina impressora, do balé ágil e ritmado do impressor, do som sequencial da montagem da rama, do segredo do encadernador e de muitos outros gestos [...] Trata-se, ainda, da transmissão dos saberes tradicionais constituídos no interior de uma determinada cultura, das reinvenções das tradições e das suas táticas desviantes de apropriação, do léxico próprio de uma tipografia, das anedotas profissionais; enfim, de toda a vida que se constitui ao redor das máquinas e das letras. (UTSCH, 2015, p. 28)

175 Quando não podia mais trabalhar pelo cansaço do corpo (porque a tipografia exige força dos músculos), preferiu parar e se dedicar ao amor tipográfico. Para ele, bastava que os visitantes conhecessem o processo pelas suas histórias. Sua força física, nos anos antecedentes ao seu falecimento, não lhe ajudavam no ofício diário. Tinha dificuldades para apertar a prensa, mas mantinha a energia para subir e descer as escadas que levam à sua oficina. Se dedicou a receber os amigos e sempre com olhar doce, esticava os pés para avistar o visitante por cima do portão verde em frente à casa, compondo uma visão emoldurada pelo Flamboyant mutante e colorido a cada estação. 176 Como o Museu Tipografia Pão de Santo Antônio, em Diamantina, Minas Gerais e o Museu da Memória Gráfica na UFMG.

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Um patrimônio gráfico, segundo Ana Utsch (Ibidem, p. 11), compreendido na sua dimensão do fazer, contemplado também nas máquinas e nas ferramentas do passado, juntamente com as técnicas em exercício vinculadas aos diferentes contextos históricos, culturais e sociais. Uma narrativa de preservação que confunde, de acordo com a pesquisadora, “continuamente com a destruição e perda material e imemorial de objetos tratados como lixo ou sucata, submetidos ao comércio, muitas vezes ilícito da reciclagem”, quando milhares de tipos móveis transformam-se em chumbo fundido pela negligência do patrimônio cultural, determinando assim, seu apagamento na memória da cultura escrita. Enfim, a problemática dessa pesquisa conjugou simultaneidades e tangencialidades temporais que emergem do caráter da tipografia artesanal e industrial, e do tempo reflexivo e flexivo da poesia. Procurei analisar o tempo da tradição intrínseco ao ofício tipográfico onde, nessa operação, a experiência do tempo é calcado, sem explicitá-lo, na descontinuidade e na relação com a ideia cíclica entre passado e futuro, uma vez que o fazer tipográfico carrega em si o deslocamento de tempos. Logo, para compreender a tipografia em seu momento presente é mister também, analisar a percepção de seu tempo dissonante. Numa proposta instigante de Giorgio Agamben (2009): A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere antes através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (2009, p. 59)

No ensaio Tempo e história crítica do instante e do contínuo (2005), o filósofo faz um diagnóstico das concepções de tempo no Ocidente, estabelecendo a necessidade de uma reflexão, que funciona como dimensão necessária para a produção de narrativas históricas. Agamben abre o ensaio evidenciando essa relação quando “toda concepção da história é sempre acompanhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita, que a condiciona e que é preciso portanto, trazer à luz” (Ibidem, p. 111). Nessa pesquisa, procurei alcançar a experiência desse tempo intrínseco no ofício artesanal da escrita, na construção da literatura e seus processos artesanais, em seus anacronismos e na coragem dos mestres

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artesão da palavra PROCESSO

palavra matéria materiais

ofício artístico ou trabalho manual ou trabalho operário

gesto manual ou máquina

individual ou coletivo PROLONGAMENTO DO TEMPO

artesãos em sua permanência e significado cultural. Em Tempo e História, Agamben nos oferece uma imagem circular contínua através da relação que os antigos estabeleciam com a história177. Nesse sentido, o traço do círculo é contínuo e ininterrupto e volta-se sempre sobre os mesmos pontos assegurados por uma incessante repetição, assim como a tipografia que retorna em um tempo dissonante ao que foi o século XV. Uma reflexão em acordo, também, com sua capacidade de transmissão: Transmitir não é sair procurando, na gaveta de um arquivo chamado de patrimônio ou de memória coletiva, esse ou aquele documento que há muito tempo está acumulando poeira. É misturar o novo com o antigo de modo a dar um pouco de verniz ao inventado e conferir algum atrativo àquilo que se herda. (DEBRAY, 2004, p. 54)

Um novo cenário que se apresenta: a tipografia em sua constante reinvenção, onde todos os caminhos convergem para a relevância do tempo, não apenas em sua reconciliação entre passado, presente e futuro, mas no elo entre o ato de imprimir e seu processo, uma dialética que se conjuga mediada pelo prolongamento do tempo. No processo tipográfico do mundo moderno, o tempo é opositor ao gesto manual e não obstante, o relógio 177 Enquanto o ano litúrgico – fechando-se sobre si mesmo – é paradoxalmente um instrumento para impor a ideia de um tempo linear.

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ficcional de Osman Lins em Avalovara evidencia as analogias do tempo intrínseco aos processos manuais, assim como Borges, no conto O jardim de veredas que se bifurcam (2007, p. 91) confirma que a única palavra não pronunciada em toda a obra do enxadrista, poeta e calígrafo Ts’ui Pên é tempo. “O novo envelheceu” (Cleber Teixeira).

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ANEXOS

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ENTREVISTA PARA O PORTAL LITERAL: PRIMAVERA DOS LIVROS, 2005 (ACERVO EDITORA NOA NOA).

Cleber Teixeira, Editora Noa Noa A história da Noa Noa é uma história que começa com a paixão pelo livro, pela leitura e consequentemente pela arte gráfica. E eu sempre tive o desejo desde criança de ler livros, escrever livros, editar livros e no meu caso com a paixão pela tipografia literalmente “fazer livro”. Outra coisa que me levou a montar a Noa Noa foi um desejo de criar um acervo de autores fundamentais para a história da poesia e para a formação de poetas. Então, eu fui atrás dos autores, e no caso de autores internacionais, atrás de bons tradutores porque eu sou de uma geração que, ainda que, acho, não me deixei influenciar pelo Concretismo, tive o bom senso de tirar do Concretismo, do convívio com poetas concretros, teóricos e textos deles, aquilo que eu acho que era importante. Então, à medida que eu trabalhava com Mallarmé, por exemplo que eu editei traduzido pelo Augusto de Campos, eu estava fazendo um livro como eu queria fazer, estava estabelecendo uma relação de cumplicidade poética com Augusto de Campos e estava, talvez, mais do que tudo atendendo a um desejo meu que era de pegar Mallarmé “à unha”, mexer verso por verso de tal modo que eu passava o dia mexendo com Mallarmé, sonhava com aquilo. É um processo que não tem nada de científico, é quase espiritismo, mas no meu caso, é claro que essa abordagem “Mallarmé” é uma das abordagens. Evidentemente a leitura não precisa desse complemento. No meu caso eu juntei as coisas porque elas me davam um prazer a mais, e por aí pude: Mallarmé, Cummings com Augusto de Campos também, John Donne, Keats, poesia

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Provençal e por aí vai. Paralelo a isso, eu acho que, mesmo que a paixão seja muito grande, você não pode esquecer o seu compromisso social, você como editor não pode só trabalhar fazendo aquilo que lhe dá grande prazer, então o compromisso que eu acho que tinha, como qualquer editor tem, é ir ao encontro do autor novo, daquilo que você acredita, eu contribuo, esse é um autor pouco lido, pouco visto, praticamente invisível e o que eu posso fazer? Eu não sou um editor de produção industrial mas tenho uma produção que pode tornar menos invisível esse autor. É claro que isso sempre dá prejuízo porque o autor novo é um problema que talvez não caiba aqui. Poeta novo não vende mesmo. Mas de qualquer maneira, tendo feito paralelo aos autores e poetas estrangeiros em número até maior de jovens poetas brasileiros, nem todos jovens porque editei José Paulo Paes, editei Afonso Ávila, então todos esses tinham muito a ver com o meu projeto e a minha formação como poeta, e vamos tentando. Lamentavelmente, isso não pode ser feito sem que você, de algum modo seja obrigado a fazer a complementação desse trabalho de laboratório que é vender o produto. Aí que eu, (eu acho que) se eu escrevesse um pequeno manual do pequeno editor, eu poderia contribuir de algum modo porque sei exatamente onde falhei. Por exemplo, você sabe que está fazendo um produto que precisa ser vendido e uma empresa, por menor que seja, precisa ser administrada. Então vá aprender a administrar, vá aprender a negociar, vá aprender a cobrar dos livreiros e quando ele não puder pagar, ele tem que encontrar, de algum modo, uma solução para o problema, porque é um problema dos dois, mas não. Ter inibição de falar em dinheiro é mau negócio, a não ser que tenha alguém que faça isso por ele. Mas quando você tem que fazer tudo, até mesmo limpar o atelier, você tem que aprender a varrer. Eu lamento, na verdade eu tive um pouco de sorte porque apesar dessa incompetência como ad-

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ministrador, deu certo a editora, o que me faz lembrar uma frase famosa do Millôr que diz que “até relógio parado acerta duas vezes por dia”, quer dizer, eu acertei porque eu acho que foi uma espécie de prêmio por uma coerência, uma dedicação, por não desistir nunca, aliás eu não sei se não desisto por tenacidade ou por preguiça. É que eu não saberia fazer outra coisa, não saberia viver longe daquilo. Hoje mesmo, quando eu passo horas e horas compondo, imprimindo, eu chego ao fim do dia e estou cansado mas estou tão feliz que eu acho que não precisa dar certo, tudo dá certo. Seria um privilégio que eu acho que eu não mereço, ninguém merece que tudo dê certo. Acho que o que deu certo já está de bom tamanho. Eu já tentei encontrar, eu tive muita sorte como te falei, eu desde criança gostava de jogar futebol mas não sonhava em ser jogador (até cinema eu gostava), o que eu queria era ler livros, mexer com livros e conversar com pessoas que gostam da mesma coisa, então eu fiz disso um projeto de vida, que guardadas as diferenças e escola de vida, modéstia, é como se eu construísse um monastério onde ali habita o monge que seria eu e as pessoas que tem o interesse em conviver porque uma coisa que eu faço com frequência, com insistência é abrir as portas para quem gosta daquilo. Se alguém diz “eu gosto de livros” eu já abro os braços, se ele é um canalha, se abandonou a mulher e os filhos não me interessa, gostou de livros eu já gosto dele. Eu tenho filhos (que é outra história maravilhosa), e muitas vezes estão falando muito do mesmo assunto e quando eu vou tentar mexer no papo, eles falam “pai, você já notou que você e seus amigos só falam de livros?” Eu vi aquilo como um elogio, que era só falar de livro, mexer no livro e se eu pudesse morrer com uma estante desabando sobre mim eu acho que seria um bom ponto final. Como o trabalho que eu faço, pra quem não sabe,

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uma rápida explicação: eu componho à maneira do Gutenberg e você é de uma geração que pegou as coisas muito próximas de como são hoje. De fazer um livro como Gutenberg, de juntar letra por letra, escolher, de projetar o livro, além do texto do qual já falamos, de projetar o livro, você compor daquela maneira, com recursos mínimos, mas nós sabemos que Gutenberg tinha recursos muito inferiores ao meu e pôde imprimir infinitamente melhor. Então, montamos aquilo, projetou o livro e segue assim e assado, a mancha é assim…tá… então (sic), então o livro, na verdade o que você está fazendo é um livro que já nasce raro. E aí ele é destinado não porque você quer assim, mas porque as coisas levam a ser assim, a bibliófilos, àqueles outros loucos que comem, bebem, dormem e amam livros e são muitos. E são pessoas que quase sempre, na sua totalidade, bibliófilos igual a “rico”. Porque os livros raros custam caro, então eu direcionei um pouco a produção pra isso e às vezes que eu quis fazer diferente pra produzir mais, pra que o povo tivesse acesso, fiz tudo errado porque você, pra chegar ao povo, precisa ter uma infra-estrutura fantástica, com a ajuda do Estado, para que você faça um livro que possa ser vendido a um real. Você faz o meio caminho, usa papel nacional, mas usa cliché e o seu livro vai chegar com uma cara indefinida para o leitor. Por exemplo, durante todo o tempo que eu trabalho com livro, eu fiz livros com capa não plastificada e isso pro leitor comum que vê na livraria, acha que capa não plastificada é pobre. Bom é plastificar. Não sabe que é uma máquina que plastifica e quando você não plastifica você está rendendo homenagens ao papel nobre. Então, só pra ficar um pouco em torno do bibliófilo, são pessoas especialíssimas, né? E o maior deles no Brasil é o ( José) Mindlin, então com ele nós temos um diálogo maior e não só isso, eu tenho acesso a livros que de outro modo eu não conseguiria ter. Pegar um livro feito pelo Aldus Manutius e você tocar nele. O Mindlin é muito generoso, ele

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sempre mostra as aquisições e tudo o mais, mas eles pertencem a uma tribo especialíssima e maravilhosa. Eu sou um aprendiz de bibliófilo porque tudo o que eu consegui de raro foi na base da sorte e da generosidade de amigos. Então, você depois de algum tempo, você é conhecido como uma pessoa que vai dar abrigo àquele livro que alguém vai jogar fora. Agora essa semana eu recebi uma pilha de livros do Carl Mayer, que é um autor lendário, austríaco, o original de uma mãe de uma amiga nossa que estava jogando fora e ela disse “não, o Cleber quer!” Não leio alemão, mas o dia em que aparecer alguém que leia alemão e goste de livros, do Carl Mayer e lê alemão, eu dou de presente. Porque uma coisa que eu faço é corresponder à generosidade dos amigos que me dão presente. Eu guardo alguma coisa, e quando alguém fala “sou leitor do Carl Mayer”, eu falo, “está lá!”. Se o sujeito tem um interesse grande por um livro que eu tenho, sem ter cópia, e é um verdadeiro apaixonado, eu dou. E o Mindlin é um exemplo de generosidade, de paixão pelos livros que é uma coisa fantástica, então ele, sempre que vai a Florianópolis onde eu moro, ele nos visita, e conversamos, evidentemente sempre sobre livros, que é a grande paixão. E isso antes já era, vinte anos atrás, dez anos atrás, já era uma coisa cheia de curiosidades, vamos chamar de exotismo. Hoje está muito mais difícil porque não estão fabricando mais os tipos. Então, você pode encontrar em algum lugar, onde tenha tipos usados, mas sempre arriscado porque uma família de tipos tem tantos caracteres, o “e”, as vogais, as consoantes menos… mas falta uma letra, acabou. Ultimamente eu fiz um livro com poemas do Mallarmé traduzido pelo Augusto. É a segunda coletânea de poemas traduzido por ele, fiz um poeta simbolista Raul de Leoni, e esta semana estou terminando um livro meu, que afinal de contas, eu como editor, tenho o descaramento de me aceitar muito bem como autor. E isso sempre me traz, em alguns momentos eu falo

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disso, procurando levar pro lado do humor, mas já chega hoje, eu já editei uns sete livros meus, eu digo que me aceito muito bem, mas agora estou querendo que um editor que não tenha comigo nenhum afeto especial, aceite. Eu não tinha dúvidas, eu editava com tranquilidade e às vezes eu até brincava, “pois eu sou um editor que editou tanta gente boa e tem as portas abertas pro meu lado poeta, por que eu vou procurar outro? Não é?” Mas claro que tudo isso tem que ser levado com humor, eu penso desse modo, eu quero realmente, no próximo livro, me submeter como qualquer pessoa ao crivo do editor. Eu, quando falo que me aceito, faço questão de dizer que estou fazendo graça. Só pra tornar um pouco menos formal.

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RELAÇÃO DE OBRAS PUBLICADAS NA OFICINA NOA NOA AUTORES ESTRANGEIROS 1. AUDEN, W. H. (Inglaterra, 1907-1973) Saber, Fazer e Julgar. Ensaio sobre poesia. Tradução de Angela Melim. Composto e impresso manualmente. Tiragem: 600 exemplares. Capa de Cleber Teixeira (utilizando retrato de Auden). Florianópolis, SC, 1981. 16x23 cm, 58 páginas. 2. AUDEN, W. H. Calma Mesmo na Catástrofe. Ensaio. Tradução de Rosaura Eichenberg. Composto e impresso manualmente. 180 exemplares. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Van Gogh), 1986. 16,5x24 cm, 20 páginas. 3. BALLESTER, Daniel (Argentina) & SCHMIDT, Jayro (Brasil). Antonin Nalpas. Poesia (Ballester) e desenho (Schmidt). Impresso na oficina. Tiragem: 50 exemplares. Capa de Jayro Schmidt. Florianópolis, SC, 1981. 30x30 cm, 4 páginas. 4. BALLESTER, Daniel. Aracnídeo. Poesia. Composto e impresso manualmente. Ilustrado com gravura em linóleo de Sérgio Bonson. Capa de Ballester e Bonson. Impresso na oficina. 100 exemplares, 1983. 21x21 cm, 4 páginas. 5. BALLESTER, Daniel. Nada Tan Pesado Como el Mar. Poesia. Textos de Raúl Antelo e Cleber Teixeira. Ilustrado com originais de gravuras em linóleo de Sérgio Bonson. Capa de Cleber Teixeira e Sérgio Bonson. Impresso na oficina. 60 exemplares. Florianópolis, SC, 1983. 18x25 cm, 12 páginas. 6. BALLESTER, Daniel. Três Poemas. Plaquete. Tradução de Jayro Schmidt. Capa de Jayro Schmidt. Impresso na oficina. 80 exemplares, 1989. 17x25 cm, 4 páginas.

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7. BUTOR, Michel (França, 1926- ) As Montanhas Rochosas. Poesia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Edição bilíngue. Capa de Cleber Teixeira (com desenho de Marta Dischinger). Impresso na oficina. 350 exemplares. Florianópolis, SC, 1990. 15,5x22 cm, 44 páginas. 8. COROT, Jean-Baptiste (França, 1796-1875). 20 Gravuras. Texto crítico de Paul Valéry (França, 18711945) e texto técnico de Jean Laran. Tradução de Ronaldo Menegaz. Capa de Cleber Teixeira (utilizando gravura de Corot). Impresso na oficina. 450 exemplares. Florianópolis, SC, 1988. 20x27,5 cm, 48 páginas. 9. CUMMINGS, E. E. / e. e. cummings (EUA, 1894-1962). 20 Poem(a)s. Tradução e introdução de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente. Edição ilustrada com retrato de Cummings (serigrafia). Capa de Cleber Teixeira. 600 exemplares. Florianópolis, SC, 1979. 17x24 cm, 74 páginas. 10. CUMMINGS, E. E. / e. e. cummings. Somewhere I have never travelled gladly beyond /Algum lugar aonde nunca fui, alegremente além. Plaquete. Tradução de Rosaura Eichenberg e Isis Alves. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira. Florianópolis, SC, 1987. 17,5x25 cm, 4 páginas. 11. DANIEL, Arnaut & D’AURENGA, Rimbaut (Provença, século XII). Mais Provençais. Poesia provençal traduzida por Augusto de Campos. Edição bilíngue. Introdução e título da coletânea pelo tradutor. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Pedro Pires). 800 exemplares. Florianópolis, SC, 1982. 23,5x33cm, 40 páginas. 12. DICKINSON, Emily (EUA, 1830-1886) Algumas Cartas. Tradução de Rosaura Eichenberg. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (retrato de Emily Dickinson por Pedro Pires). 600 exemplares, 1982. 16x24cm, 32 páginas.

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13. DONNE, John (Inglaterra, 1572-1631) John Donne: O Dom e a Danação. Poesia. Tradução e introdução de Augusto de Campos. Título dado pelo tradutor. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente. Capa de Jayro Schmidt. Tiragem: 410 exemplares. Florianópolis, SC, 1978. Segunda edição em 1980. Tiragem: 530 exemplares. 17x24 cm, 40 páginas. 14. GAUGUIN, Paul (França, 1848-1903) Uma Entrevista. Tradução de Rosaura Eichenberg. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (utilizando auto-retrato de Gauguin). Primeira edição: 350 exemplares. Florianópolis, SC, 1979. 17x24 cm, 16 páginas. Segunda edição de Uma Entrevista com primeira edição de Carta a Monfreid: Uma Entrevista e Carta a Monfreid. Florianópolis, SC, 1990. Tiragem: 300 exemplares. 17x23,5 cm, 18 páginas.

15. HOPKINS, Gerard Manley (Inglaterra, 18441889). Hopkins: Cristal Terrível. Poesia de G. M. Hopkins. Tradução, introdução e título da coletânea de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Impresso na oficina. Capa de Cleber Teixeira (utilizando retrato de Hopkins por Marta Dischinger). 450 exemplares, 1991. 19x24,5 cm, 52 páginas. 16. ISSA & Outros ( Japão). Dez Hai-Kais. Tradução do inglês de Alice Ruiz. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira. 180 exemplares. Florianópolis, SC, 1981. 16,5x15,5 cm, 28 páginas. 17. LAFORGUE, Jules & Outros - Poemas Estrangeiros. Seleção de Cleber Teixeira. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (utilizando gravura em linóleo de Simone Ribeiro). Tiragem: 150 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1967. 7x10 cm, 14 páginas. 18. KEATS, John (Inglaterra, 1795-1821). Ode a Uma Urna Grega & Ode a Um Rouxinol. Edição bilíngue. Tradução e introdução de Augusto de Campos. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Tei-

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xeira (utilizando retrato de Keats por B.R. Haydon). Florianópolis, SC, 1984. Tiragens: 105 exemplares em papel Fabriano. 18x25 cm, 26 páginas. 450 exemplares em papel off-set, 14x21 cm, 28 páginas.

19. MALLARMÉ, Stéphane (França, 1842-1898). Mallarmargem. Poesia. Tradução, introdução e título da coletânea de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente. Capa de Raquel Feferbaum. Tiragem: 225 exemplares (25 ilustrados com uma gravura em metal de Raquel Feferbaum). Rio de Janeiro, RJ, 1970. 13x18 cm, 28 páginas. 20. MALLARMÉ, Stéphane. Mallarmargem2. Poesia. Tradução, introdução e título da coletânea de Augusto de Campos. Edição bilíngüe. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira, 1998. 17x24 cm, 28 páginas. Tiragens: •25 exemplares em papel feito à mão. Cada exemplar é acompanhado de uma cópia de um retrato de Mallarmé tirada diretamente da matriz de linóleo gravada por Pedro Pires. •150 exemplares em papel Tiziano.

21. MANSFIELD, Katherine (Inglaterra, 18881923). Algumas Cartas e Trechos do Diário. Tradução de Rosaura Eichenberg. Impresso na oficina. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Pedro Pires). 400 exemplares, 1988. 12x16 cm, 56 páginas. 22. MEZQUITA, Juan (Argentina, 1948-) Estilhaços / Esquirlas. Poesia. Tradução de Raúl Antelo. Edição bilíngue. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de autor não identificado). Ilustrado com desenhos de Alberto Cedron. 300 exemplares, 1984. 14x25 cm, 32 páginas. 23. PAZ, Octavio (México, 1914-1998) Pleno Vôo. Poesia. Tradução de Walter Costa e Cleber Teixeira. Introdução de Walter Costa. Edição bilíngue. Título dos tradutores. Composto e impresso manualmente. 210 exemplares, 1989. 16,5x11,5 cm, 18 páginas.

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24. PONGE, Francis (França, 1899-1988) 13 Escritos. Tradução e introdução de Júlio Castañon Guimarães. Edição bilíngue. Ilustrado com gravura original em linóleo de Jayro Schmidt. Capa de Pedro Pires. Composto e impresso manualmente. 300 exemplares, 1980. 17x24 cm, 32 páginas. 25. RILKE, Rainer Maria & Outros (Alemanha). Irmãos Germanos. Poesia. Tradução, introdução e título da cole-tânea de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Impresso na oficina. Capa de Augusto de Campos. 320 exemplares, 1992. 16,5x24 cm, 48 páginas. 26. SAFO (Grécia,VII-VI a.C.). Fragmentos dos Fragmentos de Safo. Tradução de Joaquim Brasil. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de vaso grego). 100 exemplares, 1990. 16x23,5 cm, 36 páginas. 27. STEIN, Gertrude (EUA, 1874-1946) Porta-Retratos. Prosa. Introdução, tradução e título da coletânea de Augusto de Campos. Edição bilíngue. Capa de Augusto de Campos. Impresso na oficina. 700 exemplares, 1989. 18x24,5 cm, 28 páginas. 28. VAKALÓ & Outros. Poetas Gregos Contemporâneos. Tradução e introdução de José Paulo Paes. Impresso. Capa de Cleber Teixeira. 470 exemplares, 1991. 16,5x23cm, 74 páginas. 29. WOOD, James Playesed (EUA). O Senhor Thoreau Escreve um Livro. Ensaio. Tradução de Angela Melim. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Harpignies). Impresso na oficina. 100 exemplares. Florianópolis, SC, 1986. 13x18,5 cm, 24 páginas. AUTORES BRASILEIROS 30. ÁVILA, Affonso (1928- ). O Belo e o Velho. Poesia. Composto e impresso manualmente. Capa de

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Cleber Teixeira. 350 exemplares, 1987. 21x29,5 cm, 52 páginas. 31. BUENO, Wilson. Manual de Zoofilia. Prosa. Impresso na oficina. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho da Marta Dischinger). 350 exemplares, 1991. 12x16 cm, 40 páginas. 32. DISCHINGER, Marta (1956- ). A Nuvenzinha. Prosa para crianças. Capa e ilustrações da autora. Impresso na oficina. 450 exemplares, 1987. 19x13 cm, 24 páginas. 33. FILOMENO, Onor (1962- ). Lucas Van Der Leida. Prosa. Impresso na oficina. Capa do autor. 100 exemplares, 1987. 18x25 cm, 20 páginas. 34. FREITAS FILHO, Armando (1940- ). Mademoiselle Furta-Cor. Poesia. Composto e impresso manualmente. Ilustrado com litografias originais de Rubens Gerchman, também autor da capa. 200 exemplares, 1977. 12,5x17,5 cm, 24 páginas. Outra tiragem em edição fac-similar do livro, em off set sobre papel jornal. Contém poema inédito. Tiragem: 1.000 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1977. 12x17,5 cm, 32 páginas.

35. GARCIA, Pedro (1938- ). Sobre a Carne do Poema. Poesia. Ilustrações e capa de Rodrigo de Haro. Impresso na oficina. 550 exemplares, 1984. 14,5x21 cm, 40 páginas. 36. LEONI, Raul de (1895-1926). Ode a um Poeta Morto. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira. Impresso sobre papel feito à mão. Ilustrado com uma xilogravura de Marta Dischinger. 75 exemplares, 2001. 18,5x25,5 cm, 24 páginas. 37. MELIM, Angela (1952- ). Poemas. Composto e impresso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Goethe). 250 exemplares, 1987. 16x23 cm, 20 páginas. 38. MELIM, Angela. As Mulheres Gostam Muito. Prosa. Composto e impresso manualmente. Capa de

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Jayro Schmidt. 500 exemplares, 1979. 11,5x15,5 cm, 16 páginas. 39. MELIM, Angela. Os Caminhos do Conhecer. Prosa. Composto e impresso manualmente. Capa e desenho de Nelson Augusto. 500 exemplares, 1981. 12x16,5 cm, 24 páginas. 40. MUND JR., Hugo (1933- ). As Vozes do Juramento. Poesia. Impresso na oficina. Capa e ilustrações de Rodrigo de Haro. 500 exemplares, 1987. 16,5x24 cm, 44 páginas. 41. NEGROMONTE, Edson (1954-i). Haikais. Composto e impresso manualmente. Capa do autor. 150 exemplares, 1984. 10,5x15,5 cm 76 páginas. 42. PAES, José Paulo (1926-1998). A Meu Esmo. Poesia. Composto e im-presso manualmente. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Pedro Ubirajara dos Santos). 220 exemplares, 1995. 16,5x24 cm, 48 páginas. 43. PIRES, Pedro (1946- ). Três Gravuras. Texto composto e impresso manualmente na oficina. Capa do autor. 50 exemplares, 1981. 25x25 cm, 6 páginas. 44. PORT, Pedro (1941- ). Vento Sul. Poesia. Composto e impresso manualmente. Capa de Pedro Pires. 350 exemplares, 1979. 10,5x15 cm, 36 páginas. 45. SCHMIDT, Jayro (1947- ). Dez Gravuras. Texto composto e impresso manualmente. Capa do autor. Tiragem: 50 exemplares. Florianópolis, SC, 1979. 46. SCHMIDT, Jayro. Gravuras. Linoleo-gravura. 45 exemplares. Florianópolis, SC, 1981. 16,5x18 cm, 24 páginas. 47. SCHNAIDERMAN, Boris (1917-). Encontro com Boris Schnaiderman. Entrevista feita por Walter Costa, Raúl Antelo e Cleber Teixeira. Impresso na oficina. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de ChagalI). 420 exemplares. Florianópolis, SC, 1986. 16,5x23,5 cm, 40 páginas.

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48. SCLIARCABRAL, Leonor (1929- ). Sonetos. Impresso na oficina. Ilustrações de Rodrigo de Haro. Capa de Cleber Teixeira. Tiragem: 500 exemplares. Florianópolis, SC, 1987. 16x22 cm, 76 páginas. 49. SOARES, Iaponan (1936- ). Narrativas do Real e do Imaginário. Prosa. Composto e impresso manualmente. Capa e ilustrações de Jayro Schmidt. 350 exemplares. Florianópolis, SC, 1989. 14x21 cm, 52 páginas. 50. TEIXEIRA, Cleber (1938- ). Dez Poemas. Edição manuscrita e ilustrada com xilogravuras do autor. Capa de Hélio Lobianco. 50 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1965. 24x34 cm, 30 páginas. 51. TEIXEIRA, Cleber. Treze Poemas do Poeta, Cavaleiro Sem Cavalo e Tipógrafo Cleber Teixeira. Composto e impresso manualmente. Capa de Roberto Magalhães. Rio de Janeiro, RJ, 1969. 13x17,5 cm. 52. TEIXEIRA, Cleber. Armadura, Espada, Cavalo e Fé (Fragmentos 1 a 8). Poesia. Composto e impresso manualmente. Capa de Raquel Feferbaum. 150 exemplares. Rio de Janeiro, RJ, 1970. 12,5x18,5 cm, 16 páginas. 53. TEIXEIRA, Cleber. Edgar Poe, The Ancient Raven et Moi e Outros Poemas. Composto e impresso na oficina. Capa de Cleber Teixeira. Acompanha o livro um poster com o poema Edgar Poe, the ancient raven et moi, 40x60 cm. 250 exemplares. Florianópolis, SC, 1977. 12x17 cm, 20 páginas. 54. TEIXEIRA, Cleber. Armadura, Espada, Cavalo e Fé (Segunda edição dos fragmentos de 1 a 8 e primeira dos de 9 a 21). Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Capa de Jayro Schmidt. 350 exemplares. Florianópolis, SC, 1979. 17x24 cm, 32 páginas. 55. TEIXEIRA, Cleber. Poemas. Composto e impresso manualmente. Capa do autor (utilizando de-

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senho de Gauguin). 250 exemplares, 1980. 13x20 cm, 20 páginas. 56. TEIXEIRA, Cleber. Oito Poemas. Composto, gravado e impresso na oficina. Deste livro foram feitas quatro edições. Capa de Maria Elisabeth Pereira Rego. Primeira edição: álbum com poemas e ilustrações gravadas em linóleo por Jayro Schmidt. Tiragem: 50 exemplares. Florianópolis, SC, 1980. 26,5x36 cm, 22 páginas. Segunda edição: tipográfica. Tiragem: 65 exemplares. Florianópolis, SC, 1980. 13x18,5 cm, 22 páginas. Terceira edição: impressão tipográfica em pequeno formato. Tiragem: 90 exemplares. Florianópolis, SC, 1981. 9x9 cm, 20 páginas. Quarta edição: impressão tipográfica. Tiragem: 110 exemplares. Florianópolis, SC, 1982. 17x24 cm, 20 páginas.

57. Teixeira, Cleber. Três Poemas. Composto e impresso na oficina, ilustrado com gravura em linóleo de Pedro Pires. Capa do autor. 65 exemplares, 1986. 9,5x7,5 cm, 20 páginas. 58. TEIXEIRA, Cleber. Velhos e Novos Poemas. Composto e impresso manualmente. Capa do autor, utilizando desenho de Newton Rezende. 1987. Tiragens: 110 exemplares em papel Fabriano, 17x12 cm, 26 páginas. 240 exemplares em papel couchê fosco, 16x16 cm, 32 páginas.

59. TEIXEIRA, Cleber. Armadura, Espada, Cavalo e Fé (Fragmentos 22 a 24). Plaquete. Impresso manualmente em papel Fabriano. Capa do autor (utilizando desenho de Segonzac). Ilustrado com retrato do autor por Iberê Camargo. 50 exemplares, 1991. 12,5x17 cm, 18 páginas. 60. TEIXEIRA, Cleber. Armadura, Espada, Cavalo e Fé (Fragmentos 22 a 41). Impresso manualmente. Capa do autor. Ilustração do autor com a colaboração de Marta Dischinger. Tiragem: 100 exemplares. Florianópolis, SC, 2006. 13x18 cm, 36 páginas.61. Varella, Alex. Em Ítaca. Poesia. Composto e impresso manualmente. Capa do autor. 510 exemplares, 1985. 21x13 cm, 92 páginas.

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CARTAZES

62. TEIXEIRA, Cleber. Edgar Poe. Poster com poema Edgar Poe, the ancient raven et moi. Cartaz impresso em serigrafia. 100 exemplares, 1977. 40x60 cm. 63. TEIXEIRA, Cleber. Moscou, Anos Vinte, Desterro, Anos Oitenta. Cartaz impresso em serigrafia na oficina. 100 exemplares, 1982. 35x50 cm. 64. TEIXEIRA, Cleber. Noite Negra. Cartaz /Poema com gravura em linóleo de Sérgio Bonson. Impresso em serigrafia na oficina. 100 exemplares, 1982. 20x42 cm. 65. TEIXEIRA, Cleber. Amor. O poema AMOR, de Bartrihari (séc. VII), na tradução de Octavio Paz e o exercício poético de Cleber Teixeira com gravura assinada e numerada por Pedro Ubirajara dos Santos. Composto e impresso manualmente. 97 exemplares, 2004. 27x38 cm.

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Poster de Cleber Teixeira. AMOR. O poema AMOR, de Bartrihari (séc. VII), tem a tradução de Octavio Paz e o exercício poético do tipógrafo editor com gravura assinada e numerada por Pedro Ubirajara dos Santos. Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Tiragem: 97 exemplares. Florianópolis, SC, 2004. 27x38 cm.

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GLOSSÁRIO* BOLANDEIRA: bandeja plana e retangular de aço, que recebe os tipos ao saírem do componedor e usada para transportar as chapas. CAIXA: ou gaveta, onde estão os tipos. CAIXOTINS: compartimentos das caixas que separam os tipos. CAVALETE TIPOGRÁFICO: móvel de madeira com o plano superior inclinado, onde o tipógrafo monta a caixa para trabalhar. Separado por gavetas, estas divididas em compartimentos ou caixotins com vários tamanhos, nos quais são colocados os diferentes caracteres de uma fonte de tipos. CHAPA: composição tipográfica ou conjunto de tipos, espaços, entrelinhas e clichés. CLICHÊ: Placa de metal ou plástico, com imagens ou dizeres em relevo negativo, destinada à impressão em máquina tipográfica. COMPONEDOR: utensílio no qual o tipógrafo vai dispondo, um a um, os caracteres tirados da caixa, para formar a linha. Com ajuste de parafuso, segura-se inclinado com uma das mãos, usando o polegar, a fim de evitar que os tipos caiam ao serem colocados em posição. COMPOSIÇÃO: a que é feita sem a ajuda de máquinas, apanhando o tipógrafo, as letras ou outro material da caixa, e alinhando-o no componedor ou galé. CUNHA: cunhas de aço, denteadas, usadas para apertar a composição na rama. DISCO DE TINTAGEM: peça giratória da máquina de impressão, onde a tinta é espalhada e por ela passam os rolos que distribuem uniformemente a tinta sobre a rama. FORMA: composição tipográfica, encerrada na rama e apertada com cunhas, para a máquina impressora. LETRA DE CHUMBO: ou tipo, é fundido numa liga de chumbo, antimônio e estanho. O chumbo, que sozinho seria muito mole, forma o corpo metálico do tipo, o antimónio lhe dá a dureza e o estanho a tenacidade. MATERIAL EM BRANCO: é o nome que se dá a blocos de metal usados para preencher espaços em branco numa composição. São feitos em chumbo, ferro ou aço e colecionados em tamanhos sortidos, com medidas precisas em furos, no comprimento e na largura. PASTEL (EMPASTELAR): tipos misturados ou mal arrumados numa fôrma. PONTOS, CÍCEROS, QUADRADOS E QUADRATINS: medidas tipográficas. PRELO: prensa manual e horizontal, hoje mais usada para tirar provas e para imprimir gravuras. RAMA: é uma guarnição de metal removível, na qual a forma tipográfica é apertada e fixada com cunhas para encaixar na prensa. * Fonte: POLK, Ralph. Manual do tipógrafo. Trad.: Martim Märtz. São Paulo: Editora Lep S.A, 1948. REBELLATTO, Germano. Curso de artes gráficas. Canoas: Editora La Salle, 1980.

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CRÉDITOS: Fotos das capas de livros da Noa Noa: Laura Pereira. Demais fotos: Leila Lampe e Aleph Ozuas (Corrupiola, experiências manuais) Agradecimento especial: Márcia Mathias (revisão) e Aleph Ozuas (abstract)

Tipos utilizados: Adobe Caslon Pro e Bodoni

Diagramado e encadernado manualmente pela autora em abril de 2016 [email protected]