IMAGENS DAS RUAS E DAS REDES: análise das jornadas de junho a partir da hashtag #VemPraRua 1 STREET AND NETWORK IMAGES: analyzing Brazil's june protests hashtag #VemPraRua Fábio Gomes Goveia2 Patrick Marques Ciarelli3 Lia Scarton Carreira4 Gabriel Herkenhoff5
Resumo: O ano de 2013 foi marcado por uma série de manifestações sociais em todo o Brasil. Este artigo busca apresentar apontamentos possíveis sobre essa mobilização social a partir das imagens publicadas em rede e coletadas por meio da hashtag #VemPraRua. Para esta análise, foram coletadas 85.595 imagens do site Twitter, entre os dias 15 de junho e 18 de julho de 2013, agrupados e apresentados através de quatro tipos diferentes de visualização de grandes dados. Cada visualização pode contribuir, a partir dos atributos visuais e numéricos das imagens, para uma melhor compreensão das manifestações do período, assim como dos modos contemporâneos de produção e compartilhamento de imagens. A metodologia de pesquisa aqui empregada visa, ainda, contribuir para o desenvolvimento de análises do campo da Comunicação e da Cibercultura, dentro do que vem a se chamar de estudos de Big Data. Palavras-Chave:Imagens, #VemPraRua, Big Data.
Abstract: The year 2013 was marked by a series of social events throughout the country. This article seeks to present possible notes on these protests by collecting images published online through the hashtag #VemPraRua. For this analysis, 85,595 images were collected from Twitter, between the 15 th of June and the 17th of July 2013. They are arranged and presented here in four different types of visualization. Each visualization can contribute, while using visual and numeric attributes from the images, to a better understanding of the events of the period as well as of the contemporary modes of image production and sharing. The research methodology employed here is also intended to contribute to the development of
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic). Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email:
[email protected] 3 Professor Adjunto do Departamento de Engenharia Elétrica e coordenador do curso de Manutenção Industrial, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor em Engenharia Elétrica pela mesma instituição. Email:
[email protected] 4 Pesquisadora associada do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email:
[email protected] 5 Pesquisador associada do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestrando em Filosofia pela mesma instituição. Email:
[email protected]
1
Communication and Cyberculture analysis, within what has been called Big Data studies.
Keywords: Images, #VemPraRua, Big Data.
1. Introdução O ano de 2013 foi marcado por uma série de manifestações sociais que mobilizaram todo o país. A chamada “jornada de junho”, que logo se estendeu aos meses seguintes e a diversas regiões brasileiras, trouxe não apenas a necessidade de uma reflexão profunda de suas reivindicações, mas igualmente a necessidade de compreensão de seus vestígios. Os rastros deixados pelas manifestações de junho e julho, mais precisamente, podem ser vistos nos muros das cidades, com seus grafites e “pixações”, mas também espalhados pela rede na qual textos, imagens e outros conteúdos digitais circul(ar)am e se transform(ar)am a cada compartilhamento.
Tratou-se, portanto, de um movimento que tomou as ruas e as redes. Ambas tornaram-se palco de intensas mobilizações, multifacetadas e descentralizadas. Os muros, as faixas e as bandeiras levantadas passaram a constituir a rua como um complexo palimpsesto, no qual as mais variadas reivindicações e descontentamentos da multidão foram misturados uns aos outros. Nas redes, essa multiplicidade pode ser vista no uso das inúmeras palavras-chave – ou hashtags – para expressar e compartilhar uma diversidade de conteúdos. Desde as primeiras grandes manifestações em São Paulo, ainda que articuladas em grande parte em torno do Movimento Passe Livre, pode-se perceber essa pluralidade de discursos e reivindicações, como explicitado em “A Batalha do Vinagre” (MALINI, 2013).
O início do século XXI tem sido marcado por esses movimentos políticos caracterizados pela multiplicidade de atores, pela organização a-centrada, pela crítica difusa aos sistemas políticos e econômicos e pelo uso das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) para o desenvolvimento de formas de articulação, mobilização e ação. Especialmente nos últimos cinco anos, acompanhamos um processo de recrudescimento dessas manifestações, como as ocupações que se espalharam pelos EUA e pela Europa no rastro da crise financeira
2
de 2008 e os levantes no Oriente Médio e no Norte da África, conhecidos como Primavera Árabe.
Assim, os primeiros sinais de uma mudança no modo de expressão desses movimentos apareceram já na virada do século, primeiramente nas manifestações contra o encontro da Organização Mundial do Coméricio em Seattle, em 1999, e em seguida nas manifestações em Gênova, em 2001, por ocasião da reunião do G8 (grupo dos países mais ricos do mundo). Além desses dois casos apontados pelo filósofo político Antonio Negri como marcas do aparecimento de um novo sujeito político – que ele denomina multidão –, outro emblemático é o das manifestações convocadas por celular na Filipinas em 2002, que serviram como exemplo ao que o pesquisador Howard Rheingold (2002) chamou de “multitudes inteligentes”.
Nesse contexto, o crescente acesso aos dispositivos móveis e a disseminação do uso das redes sociais têm contribuído amplamente para a constituição de tal quadro, na medida em que tornaram-se importantes instrumentos para essas lutas. O emergente paradigma comunicacional provocado em parte pela difusão das novas tecnologias de informação e comunicação tem gerado uma tônica de produção e difusão de informação, fomentando a participação dos indivíduos em um processo de conversação e criação de ambiências de relacionamento marcados pela lógica da colaboração em rede. Assim, assistimos à potencialização de novas formas de “organização e de expressão da inteligência comum” (LAZZARATO, 2006, p. 183) que servem de base para a amplificação dos movimentos políticos contemporâneos.
De forma similar, as manifestações de junho e julho no Brasil envolveram uma intensa produção e compartilhamento de conteúdos, os quais exerceram papel fundamental tanto para sua amplificação e desenvolvimento, quanto para a construção de suas múltiplas narrativas. Embora os meses que antecederam as manifestações de junho tenham sido marcados por protestos ocasionais em algumas cidades brasileiras – como foram os casos de Porto Alegre e Goiânia –, foram os acontecimentos do Rio de Janeiro e, principalmente, de São Paulo que alavancaram as manifestações por todo o país. A repressão policial aos protestos na capital paulista vinha ocorrendo regularmente, entretanto, seu ápice foi no dia 13 de junho, quando
3
mais de 300 pessoas foram presas – cerca de 60 pelo fato de portarem vinagre para combater os efeitos do gás lacrimogênio – e diversos jornalistas feridos por balas de borracha e estilhaços de bombas de efeito moral.
Em decorrência disso, as manifestações que tinham como um de seus temas centrais o aumento da tarifa do transporte público tornaram-se protestos pelo próprio direito à manifestação e contra a violência policial, colocando em xeque a repressão do Estado à população. Posteriormente, um grande protesto de caráter nacional foi marcado para o dia 17 de junho pelas redes sociais, sem recorrer a qualquer liderança. Milhares de pessoas saíram às ruas por todo o país, com as mais diversas reivindicações, retomando um ciclo de manifestações de grande porte no Brasil como não se via desde pelo menos a década de 1990.
Com seus dispositivos móveis à mão, essa multidão de produtores incessantes de dados inundaram a rede com relatos de violência, de resistência e de convocação. “Vem Pra Rua!” gritava a multidão interconectada. Das ruas, publicavam diretamente em suas redes sociais mensagens, imagens e vídeos dos protestos. A transmissão ao vivo e o compartilhamento praticamente em tempo real desses conteúdos sem a intermediação das grandes corporações midiáticas contribuíram significativamente para a mobilização da população, repassando as coordenadas e os desenvolvimentos das jornadas para aqueles que estavam em suas casas, trabalho ou em localidades distintas.
De suas residências, conectados por meio de seus computadores pessoais e dispositivos móveis, milhares acompanhavam e interagiam com o movimento que se alastrava pelas ruas, compartilhando em peso relatos e imagens que recebiam. Em um processo quase que simbiótico, a rua mostrava-se presente nas redes, e as redes nas ruas. Se concordamos que “muitas reflexões dependem das experiências em primeira mão de outros” (SODRÉ, 2009, p. 183), essas interações e compartilhamentos mútuos contribuíram significativamente para que tanto a rua quanto as redes (que agora fazem parte de um só movimento) pudessem perceber, ainda que de relance, a magnitude e a complexidade das manifestações em curso.
Com o mesmo intuito, podemos traçar essas interações e compartilhamentos meses depois de seu acontecimento. Por meio de imagens e textos publicados podemos identificar as
4
narrativas construídas em rede por essa multiplicidade de atores e suas ações. A partir das hashtags atreladas a essas publicações, entre elas o #passelivre e o #VemPraRua, é possível acompanhar seus desdobramentos ao longo de um determinado período. Essas hashtags, dentro da dinâmica da folksonomia (a taxonomia da multidão interconectada), assumem o papel de concatenadoras de narrativas, desestabilizando e reestruturando a narratividade da mídia dita tradicional ao fazer “[...] da vida e da história as condutoras do tempo real, ao não paralisar o tempo, mas apropriar-se dele e reterritorializá-lo com a narrativa coordenadora da ação coletiva” (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 188).
Os recentes desenvolvimentos no campo das pesquisas de grandes dados vêm contribuir significativamente para essas análises de interações e conteúdos compartilhados em rede. O que antes era limitado às grandes corporações de análise de dados (como IBM e Google, por exemplo), devido aos altos custos tecnológicos e de infraestrutura, está hoje acessível também aos centros governamentais e acadêmicos. Há, assim, um crescente investimento por parte desses setores em mecanismos de extração, de visualização e de análise de grandes dados, de modo a desenvolverem outras ferramentas, métodos e práticas para o que se convencionou chamar de Big Data – termo amplamente popularizado que faz referência a esses conjuntos de dados de grande volume, velocidade e variedade (os chamados 3vs).
Neste artigo, apresentaremos uma das pesquisas de grandes dados realizadas no Laboratório de Estudo sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, a partir de conteúdos coletados do site de rede social Twitter atrelados à hashtag #VemPraRua. Esta pesquisa busca contribuir para o debate acerca dos recentes protestos no país ao apontar para algumas reflexões e considerações possíveis a partir de visualizações criadas com as 85.595 imagens da palavra-chave #VemPraRua coletadas no período entre 15 de junho e 18 de julho de 2013. Estas imagens, agrupadas e apresentadas aqui por meio de quatro modos de visualização diferentes, podem nos proporcionar uma melhor compreensão tanto dos movimentos sociais desse período, quanto dos modos contemporâneos de produção e compartilhamento de imagens.
2. Metodologia e desafios das pesquisas de grandes dados
5
O Labic vem desde 2012 trabalhando com grandes volumes de informações, principalmente mensagens e textos publicados em rede e de livre acesso. Recentemente, passou a trabalhar com extração e visualização de grandes volumes de imagens, coletadas em sites como Facebook, Twitter, Flickr e Instagram. Mas, enquanto os processos de extração e visualização de dados textuais contam com grandes avanços técnicos e metodológicos, sendo utilizados em diversos laboratórios de pesquisas há um tempo significativo, a análise de grandes volumes de imagens (estáticas e em movimento) ainda encontram-se em um estágio incipiente.
Ainda que sejam conteúdos de grande valor social, de uso cotidiano e largamente compartilhados, como afirma a pesquisadora Farida Vis (2013), as imagens ainda são pouco valorizadas no âmbito das pesquisas de grandes dados. Imagens são, mais do que nunca, produzidas e distribuídas incessantemente, nos mais variados meios e formatos. Há, igualmente, um crescente desenvolvimento e uso de ferramentas voltadas para o compartilhamento e produção desses dados (haja vista a crescente popularização do Instagram, Snapchat e do microblog Tumblr, entre outros). Sem falar nos mais variados usos, valores e funções dados às imagens por cada uma dessas ferramentas e sites de redes sociais, indicando uma rica variedade e complexidade de metadados disponíveis a partir de sua coleta6. A relativa ausência de investimento em pesquisa desse porte é, contudo, devido a uma variedade de questões, entre eles a necessidade de métodos e tecnologias específicas para extração e visualização desses dados.
A pesquisa de imagens, sejam elas digitalizadas de arquivos físicos ou coletadas em rede, requer equipamentos com amplas capacidades de armazenamento e de processamento, softwares específicos para extração, processamento e produção de visualizações (como gráficos, plots, mapas interativos, entre outros), assim como dispositivos de visualização capazes de dar conta de uma exibição de qualidade (e ora interativa) e que viabilize a
6
A imagem no Facebook cumpre determinadas funções e é utilizada e compartilhada de forma diferente de outras redes, como Instagram. O Instagram, por exemplo, não possibilita o compartilhamento direto de seus conteúdos (como o RT do Twitter). Isto acarreta em aspectos visuais bem diferentes quando comparados às visualizações geradas com imagens de outras redes (GOVEIA; CARREIRA, 2013).
6
observação de um grande conjunto de imagens simultaneamente7. Trata-se, portanto, de um campo de pesquisa desafiador, mas igualmente rico e com grandes oportunidades. Investir em pesquisa de imagem hoje é ainda contribuir para o desenvolvimento tecnológico, teórico e metodológico de uma ampla gama de disciplinas, uma vez que ela requer a participação e o compartilhamento de diversas áreas, tanto das Ciências Humanas, quanto das Exatas.
Para mudar esse cenário de escassez de pesquisa de grandes volumes de imagens (e de outros conteúdos para além do textual), Farida Vis (2013) sugere expandir e diversificar os modos pelos quais coletamos, visualizamos e analisamos esses dados, a fim de abarcar uma diversidade maior de conteúdos. Ampliar os processos de extração de dados não significa apenas ter mais dados diferentes, mas poder contar com uma variedade de dados para compreender melhor uma determinada questão e usá-los de forma complementar. Isto é, dados variados podem ajudar na análise de outros dados, como por exemplo, imagens podem ser analisadas por meio de textos atrelados (como uma legenda no Flickr ou Instagram, ou o texto de um tweet ou comentário de um post), e vice-versa.
As próprias imagens possuem metadados que podem não estar atrelados diretamente ao texto inicial, como dados de geolocalização por meio do formato EXIF (ainda que não tenha sido disponibilizados pelo usuário). Nesse sentido, traçar redes de interações e trocas online pode não se limitar aos textos gerados pelos perfis ou páginas da web, fazendo uso de outros dados correlacionados. Trabalhar com imagens envolve, portanto, diversificar as análises de grandes dados, contribuindo significativamente para o desenvolvimento de pesquisas da Comunicação e da Cibercultura, entre outras áreas (caso ainda seja possível distingui-las como disciplinas independentes tendo em vista esse cenário contemporâneo de pesquisa científica). E ainda contribuir para pesquisas do próprio campo da imagem, desenvolvendo e automatizando processos de leitura, categorização e análise de dados.
3. As imagens do #VemPraRua
7
Esses dispositivos são utilizados, por exemplo, para realizar comparações visuais entre elementos distintos de milhares de imagens ou de mais de um modo de visualização possível.
7
Para a análise das imagens do #VemPraRua, optou-se por trabalhar com um recorte temporal que cubra as principais manifestações ocorridas em junho e julho. Para tanto, foram coletadas a partir dessa hashtag as postagens realizadas na rede social Twitter no período entre 15 de junho e 18 de julho de 2013, incluindo assim as grandes manifestações de 17 de junho em todo o país e seus acontecimentos subsequentes. É importante, para a aplicação das teorias e métodos dos estudos de grandes dados, estabelecer um escopo amplo que forneça uma grande quantidade de imagens, de modo a identificarmos as nuances entre os dados de um determinado período. Para esta pesquisa, considerou-se importante compreendermos as variações das imagens, nos mais diversos aspectos (brilho, saturação, frequência, entre outros), ao longo de um determinado tempo. Desta forma, o conjunto das imagens podem indicar questões fundamentais a respeito dos protestos e dos modos de produção e compartilhamento de imagens em rede.
Em pesquisas iniciais do Labic, realizadas no princípio das manifestações de junho, a coleta de imagens foi feita a partir dos sites Instagram e Facebook. Como destacado anteriormente, cada site atribui um determinado uso e valor às imagens8. O Instagram tem como tema central a publicação de imagens (fotografia e vídeo), logo, estas adquirem uma maior importância dentro da dinâmica dessa rede. Já para a pesquisa atual, optou-se por trabalhar com o Twitter, pois, além da maior facilidade de acesso aos dados pela API, há uma diversidade de fontes de imagens compartilhadas. Devido a diversidade dos links de suas postagens, o Twitter agrega não somente as imagens oriundas de sua rede de usuários, mas também conteúdos que provém de outros sites de redes sociais (como Facebook, Instagram, Flickr e Youtube), assim como de portais de notícias, blogs e afins. Ele atua como um grande congregador de conteúdos online, contribuindo para um dataset diversificado, não atrelado as especificidades de uma única ferramenta (como o caso especial do Instagram).
Para o processo de coleta dessas imagens, trabalhou-se com a extração de dados da API (Application Programming Interface) a partir da plataforma YourTwapperKeeper (YTK). Com os posts relativos a uma determinada palavra-chave capturadas pela ferramenta, busca8
Isto não implica, contudo, que o usuário faça esse mesmo uso atribuído, podendo apropriar-se da ferramenta e dar outras funções às imagens
8
se em seguida a separação das publicações com links de imagens ativos (isto é, ainda em funcionamento). Posteriormente, é feito uma espécie de triagem, no qual se realiza uma ordenação e filtragem determinada, a fim de separar as imagens que não possuem as exigências estipuladas para a análise em questão. De forma geral, são filtradas imagens de tamanhos muito reduzidos que representam imagens de perfis de usuários, propagandas e chamadas de portais de notícias, por exemplo. Estas mesmas imagens, todavia, podem ser consideradas relevantes em uma outra pesquisa. Logo, a aplicação dos filtros é necessária a cada mudança de perspectiva de análise, e exige constante reavaliação (em outras ocasiões ela pode ser, inclusive, desnecessária). Mas, como o objetivo nesta pesquisa é analisar as imagens produzidas sobre os protestos, optou-se pela realização desta última etapa9.
É importante salientar, portanto, que a análise de um determinado dataset depende significativamente do modo de realização e escolhas realizadas pelos pesquisadores. A prática desse tipo de pesquisa acaba por refutar teorias que sustentam uma “imparcialidade” ou “objetividade” extrema na análise de grandes dados. Ainda que alguns pesquisadores sustentem a necessidade de abordar o “todo” em sua magnitude e diversidade, é invariavelmente necessário, em um momento ou outro, fazer escolhas e delimitar escopo. De fato, o atrativo das pesquisas de grandes dados está em seu potencial crescente em lidar com uma quantidade exorbitante e contínuo, como nos casos de dados coletados simultaneamente (isto é, ao passo em que são produzidos). Porém, para fins de análise, cabe ao pesquisador estabelecer seus pontos de interesse, de modo a destacar questões e características que venham a ser relevantes para o tema em questão. O desafio está, precisamente, em identificar esses pontos chaves, ao mesmo tempo em que evita-se limitar as potencialidades de um dataset. Em se tratando de uma pesquisa sobre as recentes manifestações no país, identificouse importante essa delimitação temporal, sem contudo restringir demais a coleta das imagens e sua diversidade inerente.
Com as imagens coletadas, passa-se então a propor e desenvolver modos de visualização, visando uma diversidade de formas de ver e de interagir com as imagens. Cada visualização criada com os datasets disponíveis pode nos apresentar ferramentas e processos de leitura e 9
Todos esses processos são possíveis a partir do desenvolvimento de scripts próprios para aplicação nos arquivos que contém os dados iniciais.
9
interpretação diferentes. No Labic, utilizou-se em um primeiro momento programas de visualização de imagens já existentes, como o ImageJ10 e sua macro ImagePlot11. A partir dessas ferramentas pode-se propor uma diversidade de plotagens, atribuindo aos eixos x e y variáveis distintas. Para esta pesquisa, optamos por realizar três tipos diferentes de plots, para assim podermos realizar uma análise comparativa de seus atributos visuais e numéricos: brilho x saturação (Imagem 01); tempo x cor média (Imagem 02); e tempo x brilho (Imagem 03)12.
Imagem 01: Plot de saturação x brilho médio do #VemPraRua, entre 15 de junho à 18 de julho.
A análise dos atributos visuais se dá, portanto, a partir de seus atributos numéricos. São os metadados próprios da imagem que possibilitam uma plotagem de elementos diversos. A cada combinação desses elementos (por exemplo, brilho x saturação) temos, portanto, um modo diferente de visualizar o conjunto de imagens. As vantagens de se fazer tal processo 10
Software de processamento e análise de imagens, desenvolvido por Wayne Rasband no National Institute of Mental Health, USA, em linguagem Java. 11 Software livre desenvolvido pela equipe do pesquisador Lev Manovich, do Centro de Pesquisa Software Studies, para visualizar coleções de imagens ou vídeos de qualquer tamanho. Ele é implementado como uma macro que trabalha com o programa de processamento de imagem ImageJ e está disponível para download em
http://lab.softwarestudies.com/p/imageplot.html 12 As imagens aqui apresentadas tem caráter ilustrativo, uma vez que exigem dispositivos mais adequados para sua visualização. Para um modo mais interativo de visualizá-las, acesse: http://www.labic.net/semcategoria/vemprarua-visualizacoes-das-pesquisas-realizadas/
1 0
são grandes. Em vez de lidarmos com os dados numéricos em si (como por exemplo, quantidade de imagens, frequencia e data de postagem, entre outros), podemos traduzi-los visualmente, facilitando o processo comparativo de dados. Da mesma forma que se cria gráficos para interpretar dados computados, cria-se imagens (ou plots, no caso) para melhor visualizar uma grande quantidade de outras imagens. A diferença está precisamente em não perder seus aspectos visuais, ou mesmo as imagens em si, do campo de visão do pesquisador. Nesse contexto, traduzir dados de um determinado conjunto de imagens em gráficos ditos tradicionais (como em “barras”), sem apresentar as imagens em si para comparação, envolve uma perda significativa do potencial analítico desse conjunto.
Os plots de imagens possibilitam, portanto, uma visualização ampla dos dados visuais, a ponto de conseguir separá-los em sub-categorias, como se pode observar na Imagem 01, referente à saturação (eixo x) e brilho médio de cada imagem (eixo y). O resultado dessa plotagem é uma representação visual de todas as 85.559 imagens extraídas do #VemPraRua em uma mesma tela. Esta plotagem possibilita não apenas uma maior familiarização com o conjunto de imagens estudadas (que dificilmente se teria por outro tipo de gráfico ou analisando dados brutos), mas também a busca por padrões.
Na Imagem 01, é possível observar um grande conjunto de imagens mais claras no quadrante superior esquerdo. Ele agrupa, em sua maioria, as convocações, infográficos, cartazes online e demais instrumentos utilizados pelos manifestantes para divulgar os eventos diretamente nas redes sociais. Esse mesmo tipo de conteúdo pode ser observado no canto superior direito, porém em menor quantidade e acrescidos de imagens de bandeiras do Brasil. Na área central desta plotagem temos grande parte das imagens conhecidas como selfies, ou auto-retratos. Esse tipo de enquadramento fotográfico é típico de fotos publicadas em redes sociais digitais, num comportamento de demarcação de atividades do usuário-fotógrafo.
É possível observar ainda, na região central esquerda, as imagens de manifestantes nas ruas, exibindo, em sua maioria, faixas e cartazes com dizeres. Já o grupo de imagens com menor brilho e baixa saturação, que ocupa a faixa equivalente à metade inferior do gráfico, mostra as imagens noturnas e a maioria das cenas de confrontos. Assim, este processo de visualização de imagens nos possibilita identificar facilmente categorias possíveis para
1 1
análise, auxiliando na delimitação das etapas seguintes, mostrando ser viável a separação automatizada pelos atributos numéricos das imagens coletadas.
As plotagens de tempo por brilho médio ou cor média podem igualmente contribuir para os processos subsequentes de categorização das imagens. Estas visualizações possibilitam, de modo similar ao plot de saturação x brilho, a separação de grupos de imagens, destacando práticas de compartilhamento e produção de imagens diferentes. A diferença está na apresentação da distribuição temporal desses conteúdos, apontando para uma série de interpretações possíveis. Dentre elas, podemos perceber em ambos as plotagens nas quais há uma queda significativa na frequência de postagens das imagens das ruas durante os protestos noturnos, que no plot tempo x cor é representado pela faixa superior (do azul escuro ao vermelho escuro) e no plot tempo x brilho pela faixa inferior (de baixo brilho). Da mesma forma, é também possível perceber neste último plot uma queda significativa dos cartazes informativos e convocatórios com o passar dos dias, enquanto que no plot tempo x cor é nítido o aumento repentino de imagens da bandeira nacional entre os dias 17 e 18 de junho, indicando a exacerbação de um certo patriotismo nos protestos.
Imagem 02: plot do Tempo x Cor Média do #VemPraRu, entre 15 de junho à 18 de julho.
1 2
Há, ainda, “picos” de postagens do #VemPraRua, correspondentes aos dias 17, 18 , 20 e 21 de junho, isto é, datas nos quais ocorreram grandes protestos no Brasil. Estes, entretanto, acabam relevando as limitações desse tipo de visualização por meio do ImagePlor: devido a grande quantidade de postagem em um único dia, muitas imagens acabam se sobrepondo, dificultando a leitura. Foi preciso então pensar em outras formas de lidar com esses conteúdos, de modo que se possa observar cada imagem, ao mesmo tempo que preserve sua relação em seu conjunto. Para tanto, o Labic desenvolveu uma espécie de “nuvem” de imagens (da mesma forma que se pode criar nuvens de palavras ou tags), chamado de ImageCloud.
Imagem 03: plot de tempo x brilho médio do #VemPraRua, entre 15 de junho à 06 de julho.
Esta ferramenta criada pelo programador Willian Lopes, sob orientação do professor Patrick Ciarelli, apresenta cada imagem de acordo com a quantidade de vezes que seu link fora postado. Com esses dados computados previamente, foi possível dimensionar cada imagem,
1 3
dentro de uma mesma visualização, a partir de sua frequência na rede analisada. Isto é, o aplicativo criado organiza cada imagem de um dataset com base na sua frequência de postagem. Na Imagem 04, podemos observar, portanto, que quanto maior for a imagem, mais ela foi reproduzida em rede (contando não apenas postagens diretas no Twitter, como também seus RTs).
A vantagem desse tipo de visualização, em relação às plotagens do ImagePlot, é a fácil leitura, uma vez que as imagens são ordenadas segundo a lógica de leitura da esquerda para a direita, e do topo para baixo. Ela ainda nos permite destacar, dentre as mais de 85 mil imagens produzidas sobre o #VemPraRua, as imagens que tiveram, de certa forma, maior repercussão na rede. As imagens localizadas no topo do ImageCloud foram aquelas que possivelmente causaram maior impacto, ainda que tenham sido compartilhadas por motivos diversos. Foram estas, dentro do contexto desta hashtag, que chamaram mais a atenção de parte dos perfis do Twitter, tornando-se dignas de seu compartilhamento.
Nessa visualização, podemos notar que são frequentes as imagens de cartazes nas ruas, com dizeres de cunho convocatório ou de indignação. Porém, são raros os cartazes digitais entre os 20 mais frequentes. Dentre essas imagens, podemos destacar as publicações feitas por perfis ditos de “celebridades”, que exercem papel de destaque na configuração da rede. Já nas primeiras dez imagens ao topo, são encontradas conteúdos inicialmente postados por pelo menos cinco desses perfis, entre eles os humoristas @rafinhabastos e @marcelotas, o ator @mrcoaurelio, a atriz @lua_blanco e a cantora @manugavassi, isto sem considerar aqueles perfis que ganharam certa notoriedade a partir de suas postagens durante as manifestações. Algumas possíveis explicações para tal fato são: esses perfis possuem muitos seguidores, em grande medida, pela reputação construída na mídia tradicional; os adolescentes continuam povoando amplamente o Twitter; e, em um momento de expansão, tais figuras são canais de difusão das manifestações para um público mais amplo, para além do círculo de ativistas ligadas ao Movimento Passe Livre ou a partidos simpáticos ao mesmo.
Esta multiplicidade de imagens compõem a rede multifacetada de publicações e atores, que expõem não somente uma disputa de direitos, mas uma disputa pela narratividade. Com suas
1 4
câmeras à mão, milhares vão às ruas fazer seus registros e construir suas próprias narrativas dos acontecimentos. Dos jovens manifestantes nas ruas às forças policiais, das
1 5
Imagem 04 - ImageCloud do #vemprarua: frequência das imagens postadas no Twitter entre os dias 15 de junho à 18 de julho de 2013.
cibercelebridades com seus blogs e perfis às personalidades e profissionais da mídia tradicional, todos disputam com suas postagens um espaço em meio a um emaranhado de publicações. As imagens, publicadas e distribuídas de forma rizomática, circulam e se metamorfoseiam, podendo pertencer, ainda que momentaneamente, a conjuntos variados e amorfos. As redes que com elas se formam, compõem, juntamente com outras práticas e conteúdos, narrativas possíveis. O ImageCloud do #VemPraRua aponta para essas narrativas, não lineares, das disputas não apenas social e política, mas igualmente por territórios, narrativas e afetos.
4. Considerações finais As pesquisas realizadas no Labic a partir da extração e da análise de grandes volumes de dados existentes nas redes sociais têm buscado refletir, por um lado, sobre a necessidade do desenvolvimento de métodos capazes de dar conta dos novos desafios emergentes para o campo da cibercultura e, por outro, de compreender a dinâmica de interação entre os múltiplos sujeitos que povoam tais redes. Nesse sentido, o desenvolvimento das análises das imagens do #VemPraRua visam contribuir para esse panorama que se abre nas pesquisas em Comunicação no Brasil. Ainda que incipiente, este campo de investigação tem se mostrado de ampla importância para a compreensão não apenas das recentes manifestações no país, mas para entender os modos contemporâneos de produção e compartilhamento de imagens em rede. Identifica-se, contudo, a contínua necessidade de expansão de métodos e tecnologias necessárias ao desenvolvimento desta pesquisa, buscando aprimorar os processos de extração e visualização, assim como de categorização e de mapeamento de rede (etapas ainda não exploradas com maior profundidade).
Além disso, ao seguir os rastros das narrativas imagéticas e textuais pode-se trazer à luz aspectos importantes de um acontecimento que enseja um grande esforço interpretativo devido à multiplicidade de atores que o compõe. Nesse sentido, o trabalho de partir dos dados
1 6
abundantemente disponíveis para a reflexão acerca de seu contexto de produção revela-se uma maneira eficaz de não reduzir o objeto de pesquisa a representações e interpretações previamente estabelecidas. Isto significa dizer que os métodos aqui apresentados primam pela imersão no processo de constituição das redes como requisito fundamental para a realização da pesquisa. A importância desse tipo de abordagem está no fato de que ela possibilita a construção de uma elaboração teórica em diálogo com os dados.
No contexto das manifestações de junho e julho de 2013, parte das dificuldades de compreensão do que se passava nas redes e nas ruas – ligado ao fato de que a profusão de pautas, algumas vezes conflitantes – foi interpretado por parte dos observadores como sinal da incapacidade dos manifestantes em chegarem a um grupo coeso de reivindicações. Entretanto, apesar das divergências, nota-se que houve uma insatisfação comum capaz de fazer com que diversos sujeitos com interesses variados interatuassem, cooperassem e disputassem os sentidos dos protestos. Se, de fato, é difícil apontar para um vocabulário final que mobilizasse a todos, isso não parece ser suficiente para afirmar uma completa impotência ou incapacidade de ação. Pelo contrário, a questão central apontada pelas análises realizadas neste trabalho é que os problemas e potencialidades dos protestos não devem estar dissociados da subjetividade de rede que os atravessam. As diferenças inalienáveis são o combustível desse acontecimento.
Em consonância com este caráter múltiplo, o artigo aponta para uma nova forma de interpretar os desdobramentos das “jornadas de junho”. Tendo as imagens como campo de análise, encontramos padrões visuais que possibilitam mapear o comportamento de tipos de imagens, assim como seus usos e apropriações. Investigar mais de 85 mil imagens atreladas a uma única palavra-chave descortinou um conjunto de relações entre os autores das fotografias e seus observadores-compartilhadores, lançando luz a um novo modo de ler imagens. Para além de uma leitura isolada de cada foto, o que nos interessa a partir de agora é a imagem como unidade de uma relação com as ruas e com as redes.
Referências bibliográficas
1 7
GOVEIA, Fábio; CARREIRA, Lia. Fotografia e Big Data: implicações metodológicas. In: XXXVI Congresso Brasileiro De Ciências Da Comunicação Intercom, 2013, Manaus. Disponível em: . Acesso em: 15 jan 2014 LAZZARATO, Maurizio. As Revoluções do Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. MALINI, Fábio. A batalha do vinagre. Labic. Publicado em: 14 de junho de 2013. Disponível em: . Acesso em: 15 jan 2014. MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais/ Fábio Malini e Henrique Antoun. – Porto Alegre: Sulina, 2013. RHEINGOLD, Howard. Multitudes Inteligentes. Barcelona: Gedisa, 2004 SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009 VIS, Farida. A critical refletion on big data: considering APIs, researchers and tools as data makers. First Monday, v. 18, n. 10, 2013.
1 8