362 SER E VIVER COMO MULHER MODERNA: A EDUCAÇÃO FEMININA SEGUNDO MANUAIS DE ETIQUETA DOS ANOS 40 A 60 DO SÉCULO XX Maria Stephanou Universidade Federal do Rio Grande do Sul RESUMO O estudo examina como se apresenta o tema educação da mulher em dois livros de etiqueta social que circularam no Brasil, nos anos 40 a 60 do século XX. Um livro intitula-se A mulher no lar, editado pela Porto Editora, da cidade do Porto, Portugal, de autoria de Emília de Sousa Costa. O outro, A mulher e o lar, também publicado na cidade do Porto, pela Editora Figueirinhas, de autoria de O.S. Marden. Embora publicados em Portugal, tais manuais tiveram uma expressiva circulação no Brasil, constando em acervos regionais e nacionais. Focalizando o tema educação, o estudo procura demonstrar como vai sendo produzido um discurso que aproxima educação da mulher e civilidade, dando conta de que não se trata apenas de instrução, de aquisição de modos de fazer, mas especialmente a prescrição da educação como modo de bem viver das mulheres. Defendendo uma educação feminina especial, diferenciada dos modelos educativos destinados aos homens, essas obras não desposam, contudo, das mesmas idéias do feminismo da época, aspecto literalmente explicitado nesses manuais. Além disso, considerando que a mulher é a base da família e, logo, da educação da mulher depende o futuro da Pátria, os discursos insistem no tom moralizante e prescritivo. Nota-se em um dos livros uma atenção especial à educação profissional das mulheres, visando acompanhar a modernidade, os progressos da sociedade. A forma como as regras de bem viver são apresentadas indicam que há uma mescla de argumentos “científicos” e argumentos de ordem moral na produção do conceito de civilidade e nas funções da educação. O exame dos manuais volta-se para a complexidade das relações entre o próprio texto, seu suporte, sua materialidade, ou seja, o objeto que comunica o texto e o ato que o apreende, sua apropriação por múltiplas leituras de distintos sujeitos. O propósito maior é situar os manuais em meio a um conjunto de práticas discursivas voltadas à preparação das mulheres em sua condição de cidadãs. Para isso, o estudo dedica-se, particularmente, em descrever o que disseram e prescreveram os autores desses manuais, bem como o conteúdo dos textos e de algumas poucas imagens que estão impressas nesses livros, almejando comunidades de leitores, competências de leitura e interdição de exercícios de autonomia na atribuição de sentidos à leitura, constituindo, então, protocolos que intentam disciplinar as leituras. Entretanto, isso não significa descuidar do fato de que “a aceitação de mensagens e modelos sempre opera através de ajustes, combinações ou resistências” (Certeau e Chartier). Aquilo que naturalizamos como “civilidade” ou “urbanidade”, constitui tão somente uma experiência histórica e contingencialmente constituída. Ao invés de natural, representa um intenso esforço de codificação e controle dos comportamentos, esforço para, justamente, conter as sensações e movimentos do corpo e da alma. Através dos manuais, instaura-se um processo de codificação informado por diferentes saberes e discursos, que assume enunciações específicas em se tratando das relações entre a educação da mulher e a civilidade. Historicizar os domínios da urbanidade implica, assim, descrever práticas que a constituíram, dispositivos que a engendraram, produzindo uma determinada experiência do que é polido, agradável, adequado, civilizado, enfim, educado. Implica também deter-se sobre os modos particulares do voltarse para si mesmo, em operações meticulosas de produção de uma visibilidade para os outros, o que aparece com destaque nos livros de etiqueta dirigidos às mulheres.
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363 TRABALHO COMPLETO O estudo examina como se apresenta o tema educação da mulher em dois livros de etiqueta social que circularam no Brasil, nos anos 40 a 60 do século XX. Um livro intitula-se A mulher no lar, o outro A mulher e o lar. Embora publicados em Portugal, tais manuais tiveram uma expressiva circulação no Brasil, constando em acervos regionais e nacionais. A análise dos manuais dirigidos às mulheres, como suas privilegiadas leitoras, se insere num projeto mais amplo que examina as relações entre educação e sociabilidade em manuais de civilidade e etiqueta dos anos 1845 a 19501, reconhecendo que nesses manuais a civilidade se assenta na elaboração, prescrição e difusão de um conjunto de comportamentos de urbanidade, procedimentos individuais e coletivos, a serem lidos, aprendidos, meditados, utilizados. A disseminação desses manuais supunha a existência de comunidades de leitores, e sua circulação, em alguma medida, estava asssegurada pela atualidade dos temas que veiculavam. “Informavam para formar” disposições, condutas, sensibilidades, direções de vida, para o que privilegiavam, como sinaliza Chartier (2004), enunciados normativos que dizem o que é ou o que deve ser a mulher bem educada, moderna, engajada em tornar seu lar, e por extensão, toda a sociedade, melhor. Já em estudo anterior (Stephanou, 1999), destacou-se que tal análise de manuais se assenta na compreensão de que o sujeito se constitui na articulação complexa de diferentes discursos, que instauram modos de conhecimento de si. A experiência de si é construída, produzida, de forma complexa, contraditória, e a verdade do sujeito não lhe é tão somente imposta de fora, pois este contribui ativamente, desde si, na produção de uma verdade sobre si mesmo. Importa, assim, pensar a inserção específica dos manuais no processo de produção da subjetividade contemporânea, uma vez que o período analisado demarca um momento importante para a história de um determinado modo de conhecimento e prática de si, em que novos saberes dos indivíduos acerca de si mesmos foram produzidos e organizados, valorizados, recomendados e/ou impostos (Foucault, 1990). A educação das mulheres, para além da escola, tem levado a observar uma crescente importância dos domínios da urbanidade e da modernidade, em especial aqueles relativos à educação, facultando às mulheres “conhecimentos práticos, regras de economia, de ordem doméstica moral e material” (Costa, 1944). Muitas possibilidades de análise se abrem ao estudo dos manuais. São provocativas e de difícil alcance investigativo as questões formuladas por Chartier (1992) relativamente à complexidade das relações que ligam os manuais a seus leitores, ou o próprio texto dos manuais, o objeto que comunica o texto e o ato que o apreende. Em outras palavras, o estudo da relação prática que liga aquele que escreve, os supostos leitores a quem escreve e os leitores efetivos, que no ato da leitura produzem as significações do texto, é de tal monta que pode ser até mesmo inatingível (Chartier, 2004, p.48). Há uma siginficação móvel das noções expressas pelos manuais, variando segundo o estado social dos leitores, seus repertórios de leitura, suas relações com outros textos, seus lugares de utilização, os gestos e usos sociais que lhes são possíveis.
A mulher, o lar, a educação O livro A mulher no lar possui como subtítulos A educação da mulher e A vida na família. Sua autora é portuguesa, Emília de Sousa Costa, e já havia escrito e publicado novelas infantis, novelas, contos e o livro Economia Doméstica, tendo em 1944, no prelo, a obra A mulher educadora, pela mesma Porto Editora, da cidade do Porto, Portugal. O exemplar examinado refere-se à 4ª edição, de 1944, cuja folha de rosto informa: “Refundida e Melhorada”. O formato livro - 13cm x 19cm – é composto por 198 páginas, índice, sumário e introdução, além de cinco capítulos intitulados: saúde e higiene; a cozinha; a educação da mulher; a vida na família; vestidos e atavios.
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O projeto, financiado pelo CNPq e coordenado pela Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC), intitula-se “Tenha Modos! Educação e Sociabilidade em Manuais de Civilidade e etiqueta (1845-1950)”.
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Nas páginas finais, junto à contracapa, o editor optou pela reprodução de comentários sobre o livro, publicados na imprensa, os quais intitulou Algumas opiniões da imprensa sobre A mulher no lar, reproduzindo-os um após o outro. Na introdução, a autora reconhece tratar-se de “obra vasta, complexa, de largo alcance moral e social, mas que não pretende ser orientadora dogmática”. Ressalta, desde o início, que o manual não se atém a conselhos de beleza ou etiqueta, como outros. Discursa sobre o ser mulher, sua função social e as definições normativas que asseguram os princípios e definições expressos. O capítulo 3 - A educação da mulher - contempla os ítens: Educação profissional; Cuidados maternos; Educação dos filhos; Cuidados em casos acidentais. Inicia com uma longa preleção, onde a autora afirma que “a base da família é a mulher. Logo, da educação da mulher depende o futuro da pátria” (Costa, 1944, p.85). Isso não consiste simplesmente em uma orientação educativa para a domesticação da mulher no lar. A própria autora condena, em seguida, aqueles homens para quem a mulher deve permanecer escravizada ao domínio e aos caprichos masculinos, ou ainda, conservar-se em atraso intelectual e moral, em situação deprimente de inferioridade perante a sociedade e as leis (Ibid., p.85-6). Para ela, a mulher é tutelada e oprimida sob o pretexto da fraqueza física, o que é um argumento irrisório, usado por aqueles que se dizem inteligências esclarecidas... Mas, além desses, outros homens, que se julgam avançados, os “futuristas sociais”, defendem que a mulher deve apresentar-se “incaracterística”, segundo a expressão da autora: um ente que perdendo a categoria de mulher, e não ganhando a de homem, se desclassifica (Ibid., p.86). Argumenta que estes desejam criar igualdade de situação, o que leva à perda fatal e irremediável da instituição basilar das sociedades civilizadas: a família. Embora as funções de homem e mulher, no lar, não possam ser comparadas, porque diversas, as de um não são inferiores nem superiores às do outro, mas inteiramente diferentes, argumento que permite à autora evocar o tema da educação. Defende que a mulher tem o incontestável direito de cultivar a sua inteligência, o seu espírito e o seu coração. A primeira, através da educação, acarreta prestígio social, desempenho integral das funções complexas; a educação dos filhos; o cumprimento de deveres e o conhecimento de direitos que lhe competem, acostumando-se a pensar, a ser serena e enérgica nas decisões, justa e equilibrada nos conceitos e opiniões (Ibid., p.87). Uma discordância é explicitada pela autora em relação ao feminismo: o exagero de certas reivindicações arrebatadas, e que nomeia como masculinistas, que equivocadamente defendem uma educação igual para ambos os sexos. A educação profissional, por sua vez, segundo o manual, sugere que a mulher tem de acompanhar a evolução e o progresso em todas as suas modalidades, o que assegurará que se torne passado o tempo em que a educação da mulher estava completa, desde que soubesse ser dona de casa. Além das mulheres que casam e das que, mesmo não casando, têm os cuidados do lar, há as solteiras,
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365 as viúvas, as abandonadas, que, não tendo o auxílio masculino, são forçadas a prover as suas necessidades. Foram educadas para serem donas de casa, não tendo alternativas ou apenas vislumbram o caminho da desonestidade. Acresce, ainda, que o desprezo por certas profissões não tem razão de ser, reportando-se a um acento moral do trabalho, uma vez que só a ociosidade é humilhante, desprezível. Por isso, é absolutamente preciso que os pais assumam a obrigação de dar uma profissão às filhas, como dão aos filhos. Finalmente, para a autora, “a educação feminina é a base por excelência, de toda a remodelação social, de todo o progresso, de toda a perfeição. A influência da educação da mulher e dos seus exemplos revela-se bem, através da vida dos filhos (Ibid., p.106), cabendo-lhe então a responsabilidade de empreender sua educação. O livro A mulher e o lar, por sua vez, traz ilustada, em sua capa singela, um desenho do perfil de seu autor, Orison Swett Marden, apresentado como filósofo e cujos livros estão traduzidos em várias línguas, alcançando maiores vendas na América. A folha de rosto registra que a tradução portuguesa é de Vítor Hugo Antunes. A contra-capa lista as outras obras de Marden, especialmente outros manuais e textos de auto-ajuda. O exemplar analisado é de uma nova edição, sem data informada, mas provavelmente da década de 40. O formato livro - 12,5cm x 16,5cm - é composto por 302 páginas, espécie de tratado sobre a mulher e o lar, dividido em índice, prefácio do autor e catorze capítulos, a saber: A mulher moderna: suas reivindicações e responsabilidades; Conceito do lar; O voto da mulher; A mulher do século XX; Educação da mulher; O futuro das nossas filhas; Vigorização da raça; A mulher e o matrimônio; A mulher casada e a casa; Noivos e maridos; A parasita; A mendiga do lar; A autonomia da esposa; Reivindicações femininas.
A educação deve ser a base da liberdade feminina, segundo Marden, que defende a tese de que a mulher não pretende alcançar preponderância social sobre o homem, mas ser uma colaboradora na vida coletiva. O feminismo é uma modalidade do magno problema cuja solução conduzirá ao equilíbrio social. Por isso, tem importância primacial: alarga os limites do lar doméstico para que coincida com os do mundo. Daí que Marden sustenta que para uma mãe o lar vai até onde chegarem os interesses de seus filhos, implicando que a mulher tem de ser educada para exercer sua atividade fora do limitado âmbito da casa. Sua educação tem de ser completamente remodelada, de maneira que a prepare para o exercício de uma profissão, assegurando independência econômica, para as funções de esposa e mãe, sob todos os aspectos. Em seu Prefácio, o autor afirma que “o objeto desta obra é concorrer para o progresso do mundo... e demonstrar como concorrer-se para esse progresso, discutindo com imparcialidade os
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366 problemas capitais do feminismo contemporâneo e as mudanças sociais e econômicas que estão transformando o velho conceito de lar doméstico. Para ele, a educação emancipa a mulher e, pela primeira vez na história, o sexo feminino em conjunto está em via de gozar a liberdade (Marden, s.d., p.18). Para Marden, se as oportunidades educativas, com a mesma variedade de pontos de aplicação com que atuaram no homem, tivessem influenciado a mulher, ninguém poderia sustentar sua inferioridade (Ibid., p.24). Defende, desse modo, a reforma das instituições sociais, sobretudo as pedagógicas, dando um caráter prático à educação feminina, proporcionando outra classe de conhecimentos, que ampliem os horizontes e revelem os “mananciais de energia que durante séculos estiveram ocultos nos cérebros femininos” (Ibid., p.30-31). No capítulo dedicado à educação da mulher, o autor defende que a nova educação deve adaptar-se à índole natural feminina, abandonando planos didáticos adequados a homens. Trata da necessidade de um programa de ensino adaptado ao integral desenvolvimento das faculdades femininas, aquelas que lhe correspondem, por direito próprio e por prerrogativa natural do seu sexo, funções sociais fundamentalmente relacionadas com o lar, a escola, mas também aquelas relativas à saúde pública, a higiene, o problema dos salários, o trabalho e todas as condições do ambicionado bem-estar social. Podemos concluir, brevemente, com o registro de que há, em ambos os manuais, a recorrência de uma mescla de preceitos práticos e preceitos morais ou doutrinários. Enquanto os preceitos práticos parecem populares, usuais, singelos, os preceitos morais se revestem de maior erudição, uma linguagem mais refinada, argumentos elaborados, recorrência a autores clássicos e à filosofia, dirigindo-se a um público feminino, mas também masculino, de outra posição social. Efetivamente, quem terão sido suas leitoras e seus leitores? Aquelas que por sua condição social tiveram, em tempos de modernização da cultura, o prosseguimento dos estudos como uma direção natural da vida? Ou, na contracorrente, aquelas que aproveitando a ampliação da oferta de escolarização, nas cidades, ousaram seguir os conselhos de persistir no prosseguimento dos estudos, como requisito da urbanidade?
Referências CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn (org.) A nova história cultural. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p.211 –238. ____. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo, UNESP, 2004. COSTA, Emília de Sousa. A mulher no lar. Porto, Portugal, Porto Editora, 1944, 4a. ed. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II : o uso dos prazeres. 6. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1990. MARDEN, Orison Swett. A mulher e o lar. Porto, Portugal, Livraria Figueirinhas, s.d. STEPHANOU, Maria.Práticas formativas da medicina: manuais de saúde e a formação para a urbanidade. In: Véritas, Porto Alegre, v.43, n. especial, p.97-102, dez. 1998. ____. Tratar e educar. Discursos médicos nas primeiras décadas do século XX. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, 1999.
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