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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA

64/CNECV/2012

CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA

PARECER SOBRE UM MODELO DE DELIBERAÇÃO PARA FINANCIAMENTO DO CUSTO DOS MEDICAMENTOS

(Setembro de 2012)

CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA A. Introdução O pedido formulado por Sua Excelência o Ministro da Saúde diz respeito à elaboração de um Parecer sobre a fundamentação ética para o financiamento de três grupos de fármacos, a saber retrovirais para doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos biológicos em doentes com artrite reumatoide. Não foram explicitados em detalhe os critérios já usados por alguns hospitais estatais (1) na aquisição de alguns destes fármacos, mas apenas indicados os grupos farmacológicos envolvidos, dos quais é conhecida a evolução dos custos (ver Anexo I *) que representa elevada fatia na fatura dos cuidados de saúde hospitalares especializados. O pedido de Parecer refere claramente que as medidas em apreço se enquadram na necessidade de sustentabilidade do SNS e aponta como essencial a garantia de acesso aos cuidados de saúde por parte de todos os cidadãos. O CNECV dedicou já particular atenção à reflexão sobre esta temática no seu seminário “Fundamentos Éticos nas Prioridades em Saúde”, realizado em 29 de novembro de 2011 na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (CNECV, 2012). Neste sentido, tem-se presente que “a restrição orçamental está claramente estabelecida ao nível da despesa pública em medicamentos, por via do Memorando de Entendimento assinado com a Comissão Tripartida Comissão Europeia — Banco Central Europeu — Fundo Monetário Internacional. Dada esta restrição clara, é importante saber qual o grau de exigência presente. A resposta é igualmente clara – é uma condição de grande exigência. Obriga a baixar em cerca de 1/3 a despesa pública em medicamentos face a outubro de 2010. Vale a pena ver com alguma atenção os números envolvidos.” (Pita Barros, 2011). Em qualquer caso, porque há uma dimensão ética no racionamento dos cuidados de saúde que importa explicitar, este racionamento – quando exista – deve ser tornado transparente aos cidadãos e profissionais de saúde, valorizando os recursos disponíveis como um inestimável bem social ao serviço da solidariedade e universalidade. Apesar de a maior parte do debate sobre gastos e prioridades em saúde se centrar nos eventuais gastos adicionais, há também que, no contexto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), reavaliar e intervir de forma transparente na eventual substituição, desinvestimento, ou suspensão de serviços ou intervenções atualmente já custeados pelo SNS. Sem embargo do desinvestimento nas despesas de saúde poder ocorrer (1) Centro Hospitalar de S. João, EPE; Centro Hospitalar de Póvoa de Varzim/Vila do Conde, EPE; Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, EPE; Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, EPE; Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE; Centro Hospitalar do Alto Ave, EPE; Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE; Centro Hospitalar do Porto, EPE; Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE; Hospital de Braga; Hospital Santa Maria Maior, EPE; Unidade Local de Saúde do Nordeste, EPE; Unidade Local de Saúde de Matosinhos, EPE; Unidade Local de Saúde do Alto Minho, EPE.

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA em qualquer momento ou em qualquer contexto, ele é mais premente em contextos de redução ou escassez de recursos. A explicitação de prioridades no planeamento e na implementação dos cuidados de saúde constitui um procedimento legítimo e necessário em qualquer política de saúde contemporânea (Williams, 2012). A questão não está na contenção de custos em si mesma, sempre inevitável por maiores que sejam os recursos, mas na responsabilidade racional da escolha de prioridades e na eficácia da luta contra a ineficiência e desperdício na área da saúde. O ponto está em que se passe do atual racionamento implícito – que muitos defendem há décadas como eticamente e politicamente inaceitável (Sulmasy, 1992) e que está ao sabor de contingências múltiplas, por vezes unilaterais, dos clínicos ou de outros decisores hospitalares – para uma escolha e racionamento explícito e transparente, em diálogo com os cidadãos que devem ser informados (porque nada substitui a participação democrática), para que assim se mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS e maximize a responsabilidade dos decisores. Para a elaboração do documento foram identificados como estruturantes os seguintes pontos: a) Modelos de justiça: as medidas adotadas (racionalização da oferta de tecnologias da saúde, agregação de processo de aquisição de medicamentos, escolha e dispensa de um número limitado de agentes terapêuticos com a mesma finalidade) parecem consubstanciar uma mudança de paradigma em relação a uma visão igualitarista do princípio da justiça (“maior bem para o maior número”); ao modelo anterior torna-se necessário introduzir outros pressupostos que assentam em modelos com caráter consequencialista e utilitarista. De acordo com Maria do Céu Patrão Neves e Walter Osswald (2007), os diversos modelos de justiça na distribuição de recursos devem ser considerados em conjunto na procura de uma resposta satisfatória às diferentes preocupações. b) A independência técnica dos prescritores: Os médicos têm o dever de participar, pela ponderação da sua atividade de prescritores, na contenção de custos (2). A integridade, a transparência, a publicidade, a consistência e a minúcia são questões que deverão estar na base dos protocolos que fundamentem as análises de custo-efetividade em que se sustentam as decisões políticas e que serão objeto de análise neste parecer. c) O direito aos melhores cuidados: O papel central de um Serviço Nacional de Saúde, com as caraterísticas constitucionais do caso português, na garantia de universalidade de acesso e na regulação na equidade da distribuição de recursos, não pode deixar de ser tido em consideração. O direito de acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde, ainda que racional e transparente, não resolve, por si só, o pro(2) Código Deontológico da Ordem dos Médicos - Regulamento n.º 14/2009, Diário da República, 2.ª série - N.º 8 13 de janeiro de 2009 - Artigo 111.º (Responsabilidade).

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA blema das potenciais injustiças geradas pela necessidade de racionamento. Qualquer medida de redução de custos deverá sempre garantir a maximização da eficácia e da segurança.

B. Enquadramento Teórico A evolução dos preços de medicamentos, das intervenções médicas e dos métodos auxiliares de diagnóstico tem colocado importantes desafios, quer ao nível dos potenciais ganhos em saúde, quer ao nível da crescente escalada dos seus custos. Deste modo, torna-se crucial envolver os profissionais de saúde e os investigadores em diretrizes que permitam determinar prioridades (Gibson et al., 2004). Esta questão, que hoje em Portugal e nalguns países europeus se viu agudizada pela crise, reveste-se de enorme importância. A dimensão desta problemática, o debate sobre os custos dos medicamentos e as restrições à prescrição, intensificou-se recentemente no seio das profissões de saúde e no debate público, tornando ainda mais urgente a necessidade de propor um modelo de decisão baseado no princípio da justiça que permita, em última análise, a salvaguarda da dignidade de quem é tratado e de quem trata. Os problemas da relação profissional de saúde/doente, assim como da relação investigador/sujeitos de investigação foram, sem qualquer dúvida, as reflexões dominantes no âmbito da Ética médica. Tais problemas resultam essencialmente do incremento do poder e concomitante responsabilidade inerentes aos novos conhecimentos e às novas tecnologias na área das ciências da vida e em particular na área da Medicina. A interação entre profissional de saúde e doente e entre investigador e sujeito de investigação constitui um campo vasto de reflexão ética, nem sempre esclarecedora pelos inúmeros dissensos improdutivos e ruído mediático. Por outro lado, nos últimos anos, especialmente com a emergência e o reconhecimento da crise financeira mundial com consequências ainda imprevisíveis, tem sido promovida uma importante reflexão sobre a saúde das populações e a justa distribuição dos recursos. Atualmente, estas questões, que se colocam quando a sustentabilidade dos recursos para a saúde começa a ser seriamente ameaçada, devem motivar uma abordagem que tenha em consideração o princípio fundamental da Justiça em dois aspetos fundamentais: a) a correção das desigualdades na saúde entre diferentes grupos sociais e os meios para redução das despesas; b) a distribuição de recursos nos cuidados ao longo do ciclo de vida no contexto do rápido envelhecimento da população. O princípio da justiça obriga à procura da equidade nas políticas de promoção da saúde e deve, em nosso entender, servir de orientação para a definição destas políticas. No entanto, antes de iniciar este debate sobre as condições de promoção da saúde neste contexto específico, teremos de, obrigatoriamente, admitir que a definição de saúde proposta pela Organização Mundial de Saúde – a saúde como “bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença” (OMS, 1948) – poderá não ser a mais ade-

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA quada para a nossa reflexão (Feytor Pinto, 2011). A conceção da OMS expande, no nosso entender de forma errada, a noção de saúde para incluir quase todo o bem-estar, impedindo o estabelecimento de fronteiras e, consequentemente, bloqueando ou dificultando a possibilidade de estabelecer limites quando estes são imperiosos. De facto, num ambiente de dificuldades económicas, um possível entendimento, de caraterísticas mais igualitaristas, sobre o objetivo da equidade em saúde é o de devermos procurar que todas as pessoas sejam saudáveis. Deste modo, perseguir a igualdade significa um “nivelamento por cima” — tentando transformar todos aqueles que não são saudáveis em pessoas saudáveis. Estas estratégias de maximização deverão, no entanto, ser concretizadas segundo critérios de justiça ou equidade. Por exemplo, quando um fármaco específico é selecionado com base numa análise custoefetividade, podemos estar a maximizar os benefícios para a saúde de determinado grupo de doentes e simultaneamente contribuir para uma injusta distribuição de recursos noutros grupos ao esgotar os recursos disponíveis. Assim, esta estratégia de maximização, não existindo recursos para dar o melhor a todos os grupos, entrará em conflito com as preocupações de equidade. A análise custo-efetividade assente no princípio da justiça obriga à procura da equidade na promoção da saúde, sendo, em nosso entender, de enorme importância uma orientação ética na definição das políticas de saúde e na concretização das suas prioridades. Perseguir obstinadamente os “melhores resultados” — por exemplo, número de anos de vida após tratamento — pode negar a oportunidade de trazer algum benefício para aqueles com resultados piores, ou seja, com uma perspetiva de tempo de vida menor após o tratamento. Como devemos então equilibrar os melhores resultados em relação à justiça na distribuição de oportunidades? Como balancear de forma justa a questão dos “melhores resultados” com a equidade de oportunidades? Temos, sem dúvida, de assumir que não dispomos de uma forma apropriada de introduzir modelos que deem resposta a questões desta sensibilidade e que têm no seu cerne a dignidade de cada ser humano. A igualdade de acesso aos serviços médicos não é, por si só, garantia de equidade. Não podemos garantir equidade em saúde simplesmente pela distribuição equitativa dos recursos, uma vez que as desigualdades neste setor têm origens mais complexas. Sobre as desigualdades, qual será o melhor pressuposto? As diferenças socioeconómicas? De facto, vivemos numa sociedade que tolera um grau significativo de desigualdade. Devemos considerar como injustas as desigualdades em saúde que resultam de outras desigualdades sociais? Ou devemos considerá-las como aceitáveis ou justificáveis? Nos argumentos de Norman Daniels, a seguir elencados, podemos, de alguma forma, encontrar fatores que deverão enquadrar esta problemática:

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA a) A maximização completa do acesso da população aos cuidados de saúde pressupõe que seja possível garantir a todas as pessoas os melhores níveis de saúde. Tornando todas as pessoas saudáveis conseguimos a completa realização do princípio da equidade. b) Não há nenhuma justiça social sem equidade em saúde. c) Não pode haver nenhuma equidade em saúde sem justiça social. Essa é uma declaração que depende sobretudo do nosso conhecimento sobre os determinantes sociais de saúde (Marmot, 2010). Assim, somente a intersecção destes determinantes com a perspetiva de distribuir os recursos de forma justa poderá, efetivamente, diminuir o nível de desigualdades. d) Assim sendo, alcançar o melhor nível de saúde da população, tornando todas as pessoas saudáveis, requer tornar o conceito de justiça muito mais abrangente. Vivemos num mundo não-imaginário, onde pode já não existir lugar para a teoria de John Rawls (Rawls, 1971). A teoria desenvolvida no contexto de uma sociedade quase utópica que preconiza a harmonia entre a racionalidade e razoabilidade não permite a aplicação integral em qualquer sociedade democrática e imperfeita. Teremos, assim, de reformular, ao nível profissional, social e político, a utopia de Rawls do “maior bem” para o maior número, por uma visão eticamente mais comprometida do “maior bem possível” para o maior número. Deste modo, o compromisso de aumentar os níveis de saúde de toda a população pode, nesta fase, resultar num aumento eticamente inaceitável das desigualdades na distribuição dos recursos existentes (Mechanic, 2002). Deste modo, só se torna eticamente admissível melhorar a saúde da população desde que essa melhoria abarque a melhoria da saúde de todos os grupos populacionais. Se a justiça social é importante para a saúde da população e para a sua distribuição equitativa, as políticas destinadas à equidade em saúde devem ser intersectoriais no âmbito da sua aplicação. Por outro lado, os fatores socialmente controláveis que afetam a distribuição da saúde devem também constituir uma preocupação ao nível da equidade em saúde. Nesta perspetiva, defender que se deve tratar a saúde como uma “esfera” separada – focando exclusivamente os potenciais benefícios para a saúde, sem pesar os custos inerentes – não é adequado à realidade atual. Tendo em conta a complexidade das questões acima descritas, a Bioética deve fornecer propostas de orientação para uma política de decisões que envolvam diferentes modalidades de negociação, sempre que a equidade não possa ser entendida nem praticada de uma forma maximalista.

Existem duas diferentes perspetivas no contexto deste Parecer.

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA A primeira, puramente normativa, que seguidamente enunciamos, poderá funcionar como uma possível metodologia para encontrar consensos quanto aos princípios orientadores das diferentes opções políticas, incluindo as resultantes do desenvolvimento de novas estratégias farmacológicas: 1) Promover a reflexão ética sobre os custos para o SNS na distribuição de fármacos; esta reflexão deverá ter lugar numa fase inicial sobre os fármacos em que existem maiores divergências e deve ser sustentada em estudos económicos baseados na evidência científica. 2) Clarificar as situações de desigualdade a nível do acesso aos medicamentos por diferentes grupos de doentes de forma a permitir identificar aquelas que constituem inaceitáveis injustiças. 3) Definir e avaliar processos que possam resultar na redução das desigualdades em saúde. 4) Testar as implicações de 1-3 no contexto das escolhas de políticas reais que visem reduzir desigualdades, incluindo aquelas que envolvem uso de novos fármacos.

A segunda perspetiva deve considerar o que a Bioética deve fazer quando não é possível atingir consensos ou compromissos sobre os princípios que resolvam as divergências nos itens referidos anteriormente. Na impossibilidade de conseguir consensos ou compromissos no que se refere aos princípios da justiça distributiva, não resta outra alternativa senão deixar para os órgãos governativos a resolução justa e legítima do desacordo moral. Deste modo, Norman Daniels desenvolveu uma abordagem denominada “responsabilidade para a razoabilidade” (“A4R – accountability for reasonableness”) (Daniels et al., 2003)(3) que tem sido usada e adaptada (p.e. Canadá, Noruega, Suécia, Nova Zelândia e Reino Unido) a diferentes contextos para avaliar a distribuição de recursos em saúde. Neste contexto, aos pontos anteriores foram acrescentados mais pontos que, na nossa opinião, enriquecem a abordagem anteriormente apresentada: 5) Desenvolver e aplicar modelos de prestação de contas, permitindo às pessoas que não concordam, ou que são afetadas pela decisão, conhecer os critérios utilizados.

Como devemos pensar os critérios de equidade intergeracional? A chave para pensar este problema poderá residir na constatação de que todos nós envelhecemos – tratar de forma diferente as pessoas ao longo do ciclo de vida, como se faz sistematicamente, cria desigualdades (Williams, 1997). Tratar as pessoas de 3

( ) Não correspondendo à tradução mais rigorosa, foi entendida ser esta a fórmula mais adequada no con-

texto do presente Parecer, não deixando de considerar que accountability implica, além de responsabilidade, estar disponível para a devida prestação de contas, para dar resposta.

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA forma diferente de acordo com a sua raça, classe social ou sexo, cria desigualdades para as quais se exige sempre justificação detalhada. No entanto, a estrutura da sociedade é baseada na premissa de que as contribuições que todos fazem ao longo da vida de trabalho serão futuramente usadas, tornando possível usufruir de benefícios durante a fase de reforma. É de salientar que este debate não pode ser escamoteado quando tratamos as desigualdades em saúde e quando pensamos num modelo para as minimizar. Assim, uma postura prudencial na distribuição dos recursos da saúde durante os diferentes estágios do ciclo de vida deve ser o guia para um tratamento justo dos diferentes grupos etários. O racionamento implícito, de acordo com a cultura dominante, pode ser discriminatório em determinada instituição ou contexto social, se se basear em factos como a idade, classe social ou género (Coast e Donovan, 1996), ao sabor da variabilidade dos clínicos ou decisores hospitalares, perpetuando a exclusão de grupos marginalizados.

Assim, pensamos incluir mais um ponto que deverá ser objeto de escrutínio ético: 6) Analisar cuidadosamente as questões de justiça distributiva referentes às diferentes faixas etárias, incluindo: a) o impacto de novos fármacos na distribuição de recursos ao longo da vida; b) a avaliação da permissibilidade de racionamento por idade; c) a avaliação dos cuidados disponíveis para tratar quem se encontra em fase de final de vida e em fase terminal.

O acima exposto permite-nos clarificar a importância da questão da justiça distributiva na saúde e a necessidade de darmos uma resposta rigorosa, prudente e ambiciosa. O primeiro desafio é, sem qualquer dúvida, a formação. Muitos dos problemas por nós levantados devem ser incluídos nos conteúdos formativos dos diferentes profissionais de saúde, permitindo-lhes tomar decisões mais justas e consequentemente ética e deontologicamente mais sustentadas. De igual modo devem ser aprofundados os conhecimentos globais de junto dos cidadãos. O segundo desafio é político. É necessário sublinhar e compreender a forma como as amplas desigualdades na distribuição de outros bens afetam as desigualdades na saúde. Não é eticamente legítimo resolver exclusivamente o problema da justiça distributiva na área da saúde, menosprezando outros determinantes da saúde (Marmot, 2010) onde esta justiça, entendida como equidade, não existe (ensino, alimentação, habitação, transporte, acesso à cultura…).

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA C. Um modelo de deliberação para financiamento dos custos dos medicamentos em contexto hospitalar Como base para a construção de um modelo de tomada de decisões justas e aceitáveis sobre o uso de medicamentos iremos recorrer a uma versão adaptada do modelo da “responsabilidade para a razoabilidade” (Mitton et al., 2006). Na atual ausência de uma ferramenta conhecida a nível nacional que inclua a dimensão ética desta problemática, sugerimos um projeto para o desenvolvimento de um modelo decisão/deliberação dentro do contexto do sistema português. O modelo de deliberação sobre produtos farmacêuticos para o financiamento público será organizado por módulos. Enquanto modelo, funciona como piloto, podendo sofrer alterações ao longo do tempo e permitir que seja, no futuro, desenvolvido e adaptado para justificar uma aplicação mais ampla e promover o seu aperfeiçoamento.

C.1. Metodologia C.1.1. Pressupostos Este modelo foi pensado para ser usado num contexto de restrições de dotação orçamental, que é uma realidade no SNS, e destina-se a auxiliar as decisões diárias sobre as restrições imperativas perante esta nova realidade. O uso deste modelo deverá assentar em métodos de avaliação económica formal que permitam uma abordagem mais abrangente e esclarecida dos custos. No entanto, como muitos destes estudos são inexistentes em Portugal e a sua realização exigiria tempo e dinheiro de que não dispomos, neste modelo os diferentes participantes, poderão ter nalguns casos, numa primeira fase, de se socorrer de análises feitas noutros países tentando adaptá-las, sempre com algum viés, ao contexto nacional.

C.1.2. Desenho do modelo O desenho do modelo foi baseado nos trabalhos desenvolvidos no âmbito do sistema de saúde canadiano (“6-STEPPPs”) (Browman et al., 2008) e australiano (Gallego et al., 2007) sendo a sua estrutura teórica fundamentada nos trabalhos de Norman Daniels (2003) através do uso dos princípios da A4R ou de “responsabilidade para a razoabilidade”: “publicidade” (ou seja, transparência do processo e das decisões); “razões” (ou seja, a decisão lógica, que poderia ser chamada de validade do conteúdo); “recurso” (ou seja, oportunidade para as decisões estarem sempre em revisão); e “imposição” (ou seja, um mecanismo para garantir todas as outras condições). Este modelo acrescenta, tal como o canadiano, a este leque de

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA quatro princípios a “consistência”, garantindo que em decisões tomadas em momentos diferentes são usados mecanismos de análise semelhantes e a “eficiência”, garantindo que as decisões são oportunas. Os princípios denominados A4R destinam-se a dar legitimidade ao financiamento da concretização das decisões realizadas, num contexto de escassez de recursos, pretendendo dar o melhor ao maior número possível. No entanto, é importante sublinhar que este modelo se encontra, à partida, eticamente imperfeito, uma vez que não é possível dar o melhor a todos, tornando, assim, imperativo que a configuração das prioridades deva ser analisada de forma justa, permitindo distribuir os recursos possíveis pelo maior número de pessoas. A secção que se segue descreve uma possível ferramenta de decisão construída a partir de uma revisão sistemática de diferentes modelos de decisão (Vuorenkoski et al., 2008; Zdybal, 2011). O modelo é esquematicamente apresentado na tabela abaixo reproduzida. O modelo proposto é composto por uma série de módulos que constituem, no essencial, uma proposta para um processo de decisão envolvendo três fases sequenciais com três distintos componentes: fase de avaliação clínica, fase de avaliação clínica e administrativa e a fase de política de decisão. Estes momentos deverão ocorrer de forma sequencial, com processos informativos muito claros na transição entre eles. A fase de avaliação clínica deverá envolver médicos, outros profissionais de saúde relevantes, investigadores da área científica mais pertinente e as comissões hospitalares de farmácia e terapêutica, as quais deverão trabalhar em rede e partilhar as respetivas decisões. Esta fase deverá, face à situação atual do país, rever as normas da Direção-Geral da Saúde (http://www.dgs.pt/) apresentadas como Normas de Orientação Clínica e propor uma lista de fármacos indicados para uma ou mais patologias, sempre com a premissa que esta lista seja revista de acordo com os progressos ao nível do estado da arte, cuja eficácia se devem basear em estudos de bioatividade e bioequivalência. Nas patologias em que ainda não existam normas, estas deverão ser produzidas, e introduzidos os critérios e os pressupostos teóricos que informam este Parecer. A fase clínico-administrativa deverá envolver o grupo da primeira fase e agora, perante uma análise do benefício e da evidência terapêutica (que decorre da primeira fase), reunir com as administrações hospitalares. Estes, perante a análise benefício/custo, poderão alterar, ou não, a ordenação dos fármacos a disponibilizar em contexto hospitalar para determinada patologia. É importante, por uma questão de princípio, que nesta fase sejam envolvidas os doentes com essa patologia específica. Dentro do contexto deste trabalho, a fase de decisão política é assegurada por responsáveis do Ministério que, depois de ouvirem um conjunto de representantes do grupo de trabalho da segunda fase, tomarão a decisão final. Deverão ser produzidas atas do modelo de decisão que deverão ser publicadas e acessíveis a todos através de plataformas eletrónicas, permitindo o envolvimento transparente da sociedade neste tipo de decisões (Gallego et al., 2011).

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2. FASE CLÍNICOADMINISTRATIVA

3. FASE DE DECISÃO PÚBLICA

Avaliar a adequação e valor clínico dos fármacos existentes para determinada patologia.

Avaliação financeira e ponderação do valor clínico dos fármacos para a sua introdução para o tratamento de determinada patologia. Análise custo/benefício dos diferentes fármacos concorrentes a financiamento. Não esquecendo as doenças altamente debilitantes ou raras.

Para garantir o processo justo na avaliação de novos fármacos. Avaliar fatores políticos e integrar as decisões baseadas nos resultados da fase anterior de forma a permitir uma tomada de decisão justa e equitativa sobre o financiamento público de fármacos em ambiente hospitalar.

PROFISSIONAIS A ENVOLVER NA DECISÃO

Médicos, investigadores das ciências da vida e da saúde da área e comissões de farmácia e terapêutica em rede. Todos os envolvidos têm que fazer a respectiva declaração de conflito de interesses, de forma clara e com acesso público.

Administrações hospitalares, associações de doentes ou doentes com essa patologia específica ou familiares de doentes e grupo representativo da primeira fase do processo.

RESPONSABILIDADES

C.2. Tabela: Fases do processo de decisão e seus diferentes atributos

Fornecer uma avaliação crítica da prova científica, e do benefício clínico relativo face aos padrões atuais. Analisar o impacto na melhoria e controlo de doentes crónicos e avaliar todas as alternativas disponíveis. Elaborar uma lista ordenada de escolhas dos x fármacos recomendados para tratar determinada patologia. Esta lista tem que ser revista com a periodicidade exigida sempre que existam desenvolvimentos do estado da arte da patologia específica.

Avaliar a implicações a nível de custos da lista elaborada na primeira fase. Desenvolver uma análise custo/benefício e ordenar a lista de acordo com essa análise. Estabelecer compromissos/consensos com os representantes do grupo da fase 1 do processo de decisão.

Pesar o valor relativo para os doentes, os custos de oportunidade para a população/sociedade e os mecanismos de financiamento.

Valorizar e priorizar indicações de uso de determinado fármaco para determinada patologia.

Recomendações baseadas em prioridades no que diz respeito a inclusão de fármacos na NOC (Norma de Orientação Clínica) perante condições de financiamento apropriadas e sustentáveis.

Decisão final respeitante às prioridades na dispensa de medicamentos em ambiente hospitalar. Sempre com a ressalva de revisão perante alterações no estado da arte.

RESULTADOS ESPERADOS

OBJETIVO

1. FASE CLÍNICA

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Tornar transparente e público o processo e colocar disponível em plataforma online os relatórios do processo.

CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA D. Conclusões 1. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) considera que existe fundamento ético para que o Serviço Nacional de Saúde promova medidas para conter custos com medicamentos. Tais medidas devem basear-se num modelo como o acima indicado, para que se assegure a mais justa e equilibrada distribuição dos recursos existentes. 2. O CNECV recomenda que, nas decisões sobre racionalização de custos, esteja patente que as opções fundamentais serão entre os “mais baratos dos melhores” (fármacos de comprovada efectividade) e não sobre os “melhores dos mais baratos”. 3. O CNECV considera indispensável que o Ministério da Saúde e os seus serviços procedam com colegialidade e transparência nos processos de decisão sobre o racionamento de custos. Neste sentido, o princípio da responsabilidade para a razoabilidade implica o envolvimento da sociedade civil e dos profissionais de saúde nos processos de decisão, devendo todos realizar a respectiva declaração de conflito de interesses, à qual há acesso público. 4. Em todos os protocolos ou normas de orientação clínica, o CNECV entende dever recordar que, sendo a independência e a responsabilidade na prescrição inseparáveis da boa prática clínica, o direito à exceção, devidamente fundamentada, deve estar contemplado (tal como a penalização da exceção não fundamentada). 5. O CNECV considera eticamente insuficiente querer resolver exclusivamente os problemas distributivos na área da saúde menosprezando importantes determinantes da saúde. As políticas destinadas à equidade em saúde devem ser intersectoriais na sua aplicação, não se restringindo apenas às intervenções no âmbito do Ministério da Saúde. 6. O CNECV recomenda que, no âmbito da respetiva formação ética, sejam introduzidos nos cursos de saúde conteúdos formativos no núcleo curricular obrigatório, a nível pré e pós-graduado, sobre esta temática, permitindo aos profissionais tomar decisão mais justas e mais responsáveis. 7. O CNECV considera urgente identificar as situações de desigualdade no acesso aos medicamentos pelos diferentes grupos de doentes, de forma a tentar impedir situações eticamente inaceitáveis. Deverão ser definidos e avaliados os processos e as situações que possam resultar na redução das desigualdades em saúde, sendo também cuidadosamente analisadas as questões de justiça distributiva referentes às diferentes faixas etárias, nomeadamente o impacto de novos fármacos e cuidados ao longo da vida tendo em atenção a equidade intergeracional.

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA 8. O CNECV recomenda que sejam desenvolvidos e aplicados modelos de prestação de contas das despesas em saúde, permitindo de forma clara que todos conheçam os critérios utilizados. 9. O CNECV não deixa de enfatizar que há também, seguramente, muito a fazer para conter despesas com fármacos de duvidosa eficácia, os quais, deverão ser reavaliados regularmente na sua efetividade e respetivos gastos pelo Estado. 10. Nos fármacos comparticipados pelo SNS, o CNECV considera premente reavaliar gastos correntes em termos de custo-oportunidade e custo-efetividade, com possíveis substituições, desinvestimentos ou suspensões. Com efeito, o debate não pode restringir-se à contenção de custos adicionais, mas à melhor utilização dos recursos já existentes e ao combate contra o desperdício e ineficiência na Saúde. 11. O CNECV considera importante enfatizar a redução dos custos de prestação em áreas como intervenções e meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, se mal justificadas e/ou desnecessárias. Estas devem ser objeto de criteriosa reflexão, sendo necessário estabelecer modelos éticos para fundamentar as decisões. 12. Em qualquer caso, o CNECV tem como essencial que tudo o que se faça não pode de modo algum pôr em causa a relação de confiança e de aliança terapêutica entre os doentes e os profissionais de saúde. 13. O CNECV recomenda que as decisões na área do uso de fármacos sejam fundadas no modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos apresentado na tabela incluída neste parecer.

Lisboa, 21 de setembro de 2012 O Presidente, Miguel Oliveira da Silva

Aprovado em reunião plenária no dia 21 de setembro de 2012, em que estiveram presentes, para além do Presidente, os seguintes Conselheiros: Ana Sofia Carvalho (relatora); Rosalvo Almeida (relator); Carolino Monteiro; Francisco Carvalho Guerra; Isabel Santos; José Germano de Sousa; Lucília Nunes; Maria de Sousa; Michel Renaud; Pedro Nunes.

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA Audições Prof. Doutor Fontes Ribeiro, Professor de Farmacologia da FMUC e consultor do INFARMED. Prof. Doutor António Vaz Carneiro, Diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE) da FMUL. Dr. Francisco Ramos, Presidente do IPO de Lisboa. Dr. João Oliveira, Diretor Clínico do IPO de Lisboa.

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CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA Referências Barros, PP, Restrição orçamental e problemas éticos na prescrição. in Fundamentos Éticos nas Prioridades em Saúde, Actas do Ciclo de Conferências CNECV 2011. Colecção Bioética 14. 2012, Ed. CNECV. 2012. Lisboa. Browman GP, Manns B, Hagen N, Chambers CR, Simon A, Sinclair S. 6-STEPPPs: A Modular Tool to Facilitate Clinician Participation in Fair Decisions for Funding New Cancer Drugs. J Oncol Pract. 2008 Jan;4(1):2-7. CNECV Fundamentos Éticos nas Prioridades em Saúde, Actas do Ciclo de Conferências CNECV 2011. Colecção Bioética 14. 2012, Ed. CNECV. 2012. Lisboa. Coast J, Donovan J, Frankel S. Priority setting: the health care debate. 1996. Chichester: John Wiley and Sons. Daniels N, Teagarden JR, Sabin JE. An ethical template for pharmacy benefits. Health Aff (Millwood). 2003 JanFeb;22(1):125-37. Daniels N. Equity and population health: toward a broader bioethics agenda. Hastings Cent Rep. 2006 JulAug;36(4):22-35. Feytor-Pinto, V. Fundamentos Éticos nas Prioridades em Saúde, Actas do Ciclo de Conferências CNECV 2011. Colecção Bioética 14. 2012, Ed. CNECV. 2012. Lisboa. Gallego G, Taylor SJ, Brien JA. Priority setting for high cost medications (HCMs) in public hospitals in Australia: A case study. Health Policy. 2007 Nov;84(1):58-66. Gallego G, Taylor SJ, Brien JA. Setting priorities for high-cost medications in public hospitals in Australia: should the public be involved? Aust Health Rev. 2011 May;35(2):191-6. Gibson JL, Martin DK, Singer PA. Setting priorities in health care organizations: criteria, processes, and parameters of success. BMC Health Serv Res. 2004 Sep 8;4(1):25. Marmot, M. Strategic review of health inequalities in England post-2010. Fair Society, Healthy Lives: The Marmot Review. In:http://webarchive.nationalarchives.gov.uk/+/www.dh.gov.uk/en/Publichealth/Healthinequalities/DH_094770 (consultado em 23.07.2012) Mechanic D. Disadvantage, inequality, and social policy. Health Aff (Millwood). 2002 Mar-Apr;21(2):48-59. Mitton CR, McMahon M, Morgan S, Gibson J. Centralized drug review processes: Are they fair? Soc Sci Med. 2006 Jul;63(1):200-11. OMS (Organização Mundial de Saúde), Conferência Internacional de Saúde, Nova Iorque, Junho 19-22, 1946; entrou em vigor em 7 de abril 7 de 1948. Patrão-Neves MC, Osswald W. Modelos de Justiça na distribuição de recursos para a saúde. In Bioética simples, Ed. Verbo. 2007:78, Lisboa. J. Rawls. A Theory of Justice, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971. Sulmasy D. Physicians, cost control, and ethics. Annals of Internal Medicine. 1992;116:920-926. Vuorenkoski L, Toiviainen H, Hemminki E. Decision-making in priority setting for medicines - A review of empirical studies. Health Policy. 2008 Apr;86(1):1-9. Williams I, Robinson S, Dickinson H. Rationing in Health Care – The theory and practice of priority setting. The Policy Press, University of Bristol, 2012 Williams A. Intergenerational equity: an exploration of the fair innings argument. Health Econ. 1997 MarApr;6(2):117-32. Zdybal D. Ethical Decision-Making in Cancer Treatment. Queen’s Policy Review. Volume 2, No. 1 (Winter 2011)  Dados INFARMED: tabela de custos de medicamentos para três grupos de fármacos, 2009-2012.

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