Nº 183

Junho de 2015

PPA 2016-2019: uma avaliação do processo de construção Por Raphael Georges, pesquisador do Inesc

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1. Introdução O Plano Plurianual 2016-2019 será o segundo sob comando da presidente Dilma, e o quarto dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Ao final deste ano, Dilma e Lula terão “planejado” 16 anos de gestão federal. Nestes processos de planejamento, a construção dos PPAs não seguiu uma lógica de expansão gradativa da participação social, e tampouco avançou em aspectos desejáveis como a conexão orçamentária e o detalhamento de iniciativas. Ao contrário, observaram-se alguns retrocessos, como a supervalorização do PAC frente ao PPA a partir de 2008, ou o fim de consultas em nível local, feito uma única vez no PPA 20042007. Na comparação entre atual Plano e o próximo, observa-se, até o momento, uma certa estagnação institucional no que diz respeito ao acesso da sociedade civil ao seu processo de construção. Para o PPA 2016-2019, a Secretaria Geral da Presidência da República sinalizou que conduziria um processo “radical” de participação social. De fato, inegáveis esforços foram feitos no sentido de estabelecer canais e um processo compreensível de participação, que envolve Fórum Interconselhos, audiências regionais e participação online. Tratam-se de ferramentas já utilizadas anteriormente, e para as quais cabe o reconhecimento do avanço institucional que representam. No entanto, elas também merecem profundas críticas acerca de seu alcance e efeito prático – críticas já feitas em ocasiões anteriores, sem que incorressem em nenhum avanço da capacidade do governo federal escutar a sociedade. Estamos tão distantes da “radical” participação social quanto há 4 ou 8 anos. Esta nota propõe uma análise crítica de duas dimensões do Plano Plurianual: 1. O método de consulta e participação; e 2. O conteúdo discutido e seu resultado final. Tal análise é feita à luz do processo de construção do PPA 2016-2019. O momento é oportuno, pois é justamente nestes meses em que a sociedade civil, sobretudo aquela que compõe conselhos de políticas públicas, direciona sua atenção ao Plano Plurianual. 2. Participação ou “sensação” de participação? A consulta à sociedade civil na definição de políticas públicas existe desde 1986, quando foi organizada a 8a Conferência Nacional de Saúde1. Apesar das Conferências já existirem desde 1941, a participação social foi inserida somente depois de 45 anos, no contexto da redemocratização brasileira2. Com o mesmo espírito, a Constituição Federal de 1988 instituiu os Conselhos de Políticas Públicas, dentro dos quais a sociedade civil teria a prerrogativa de acessar informações e ser consultada sobre execução orçamentária e implementação de políticas. Além das Conferências e Conselhos, uma outra prática de participação social se notabilizou, sobretudo nas administrações municipais do PT: o orçamento participativo3. Nele, a participação social na definição das políticas acontece de maneira bastante direta, por meio da eleição de prioridades de investimentos públicos em habitação, habitação, saúde ou educação, entre outros. Desta ampla experiência de participação social que se estende há quase trinta anos no Brasil, diversos estudiosos perceberam diferenças relevantes na capacidade da sociedade civil intervir em governos, ainda que sob arranjos institucionais parecidos. Tais diferenças são produto de ao menos três fatores4: (i) processos 1

SOUZA, C. H. L. et al. Conferências típicas e atípicas: um esforço de caracterização do fenômeno político. In: AVRITZER, L.; SOUZA, C. H. L. Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. 2 IPEA. Ampliação da Participação na Gestão Pública um estudo sobre conferências nacionais realizadas entre 2003 e 2011. Brasília, 2013 3 ABERS, R., SERAFIM, L., TATAGIBA, L. A participação na era Lula repert rios de interação em um Estado heterog neo. 35o Encontro ANPOCS. Brasília, 2011. 4 Idem. 2

pol ticos conjunturais (ii) n vel de organi ação da sociedade civil e (iii) comprometimento pol ticoideol gico dos atores responsáveis por sua criação. O Fórum Interconselhos para a discussão do PPA 20162019 parece pouco em termos de participação social quando analisado por meio destes três aspectos. Vejamos. Os (i) processos políticos conjunturais da definição deste PPA não são nada animadores. Conforme o Inesc já destacou, existe uma crise econômica e política que tende a alijar a sociedade civil da definição dos rumos das políticas federais. Do lado do governo, o ajuste fiscal tem sido usado para a retirada de direitos de milhões de brasileiras e brasileiros. No Congresso Nacional, enfrentamos o fortalecimento de uma coalizão retrógrada disposta a levar a cabo, a qualquer custo, mudanças legislativas que representam retrocessos e violações aos direitos constitucionais tão duramente conquistados. Em suma, o enfraquecimento do poder Executivo e concomitante fortalecimento de um poder Legislativo com a maior fragmentação partidária da história, somados à crise econômica que enfrentamos reduz a capacidade da sociedade influir no governo. Trata-se de cenário totalmente diferente de 2011, quando o clima era de otimismo e o atual PPA foi discutido, pela primeira vez, por meio do premiado Fórum Interconselhos. Considerando a atual conjuntura, momento em que a sociedade mais precisa de aproximação com o Estado para evitar retrocessos, a utilização de uma mesma fórmula, que a despeito dos avanços já se mostrou insuficiente, parece uma sinalização negativa em termos e participação social. No que diz respeito ao (ii) nível de organização da sociedade civil, é flagrante e preocupante o seu enfraquecimento ao longo dos últimos 10 anos. O financiamento público da sociedade civil é baixo no Brasil quando comparado a países onde a democracia também está consolidada5. Além disso, avanços sociais observados nos últimos 10 anos, e a crise econômica internacional deflagrada em 2008 rearranjaram prioridades de diversas organizações internacionais financiadoras da sociedade civil no Brasil, o que tem dificultado cada vez mais a representação social por meio de movimentos e organizações não governamentais. A aprovação do Marco Regulatório da Sociedade Civil (Lei N° 13.019/2014) representa um avanço, ainda que muito aquém do desejado. Trata-se de projeto importante para a democracia brasileira, mas que, para efeitos da influência da sociedade civil na definição de rumos do PPA, levará algum tempo para gerar frutos. Quanto ao (iii) comprometimento político-ideológico dos atores responsáveis, resta pouco espaço para a crítica à sociedade civil ou ao governo federal. O Decreto de Participação Social6 representa um pequeno avanço em termos de organização da participação, mas é, sem dúvida, um símbolo do compromisso deste governo com a democracia. Por estes motivos, nos parece preocupante os violentos ataques que sofreu por parte de setores conservadores e retrógrados da sociedade brasileira. O Inesc acredita que a manutenção de fórmulas de participação social que não superem o contexto de captura política por grandes interesses corporativos, como é o caso atual, não gera real participação, mas uma “sensação” de participação. Não é poss vel ao governo federal atestar que realmente ouviu a sociedade civil em um Fórum que teve 2 dias de reuniões, e terá, ao final do processo, poucas oportunidades de escutar a sociedade. Soma-se a isso o fato de termos hoje uma sociedade civil mais fragilizada do que há 4 anos, fato que um governo tão longevo quanto o atual deveria ter observado na proposta de participação social para o PPA 2016-2019.

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MARSAGÃO, V. Artigo publicado no Correio Braziliense, em 15/12/2012. Disponível em http://www.abong.org.br/lutas_e_acoes.php?id=49&it=5927. Acesso em 9/5/2015. 6 Decreto 8.243/14. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decret-o/D8243.htm. Acesso em 9/5/2015. 3

3. O limitado território temático da participação A reunião do Fórum Interconselhos para o próximo PPA, realizada em Brasília, em meados de abril de 2015, contou com 120 entidades da sociedade civil, componentes de 36 Conselhos de políticas que, em teoria, cobrem praticamente todas as áreas temáticas da gestão pública. O objeto que este grupo representativo da sociedade civil discutiu foram as 21 diretrizes estratégicas propostas pela Secretaria de Políticas e Investimentos Estratégicos – SPI, ligada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Além disso, foram debatidos “desafios” e propostas concretas de ações. Os participantes se dividiram em 5 grupos para discussões regionais (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul), e em 8 grupos de trabalhos temáticos, nos quais se distribuíram as 21 diretrizes, a saber:  GT1: Educação / Cultura / Esporte  GT2: Saúde  GT3: Desenvolvimento Rural  GT4: Assistência Social, Alimentação / Emprego e Renda, Previdência  GT5: Direitos Humanos e Cidadania / Segurança Pública  GT6: Cidades Sustentáveis / Desenvolvimento Regional / Recursos Naturais / Recursos Hídricos  GT7: Inclusão Digital e Acesso à informação / Gestão Pública / Defesa Nacional  GT8: Desenvolvimento produtivo / Comércio Exterior / Micro e Pequenas Empresas / Transporte / Energia Em primeiro lugar, é importante saber interpretar os limites das discussões regionais e temáticas. Os grupos tiveram metade de um dia para definirem desafios e ações, sempre com base nas diretrizes já listadas pela SPI. Pelo curto per odo de tempo, o resultado das proposições são menos “posições estruturadas” e amplamente debatidas, e mais “direcionamentos gerais” dados pelas organi ações presentes. Isto é observado com mais clareza nos grupos que debateram mais de uma diretriz. Além disso, o Fórum Interconselhos não abriu espaço algum para a discussão orçamentária. De fato, as sinalizações dadas pela SPI indicam que o PPA 2016-2019 se distanciará ainda mais do orçamento federal, cujo detalhamento ficará a cargo somente das leis anuais. Se, por um lado, as discussões conduzidas foram demasiadamente rasas, há aspectos do planejamento que não foram sequer trazidos ao Fórum. Em nenhum dos grupos de trabalho houve espaço para uma discussão aprofundada de investimentos governamentais ou da política tributária, algo especialmente desejável no contexto de ajuste das contas públicas. Por fim, existe pouca conexão entre o conteúdo do PPA e aquele construído nas Conferências Nacionais, a se realizarem nos últimos meses deste ano, quando o Plano Plurianual estará em votação no Congresso Nacional. A temporalidade cruzada praticamente impossibilita o uso dos resultados das Conferências no PPA, criando fóruns que, em boa medida, competem entre si e impedem que um avance terrenos para o outro. Em resumo, o Fórum Interconselhos debate somente políticas de maneira geral, sem discussões orçamentárias. O tempo para a discussão é curto, deixando pouco espaço para proposições de ações bem fundamentadas. Partes da maior relevância no planejamento, como os investimentos ou o financiamento do Estado, são fechadas para discussão, e não existe diálogo direto de conteúdo entre Conferências e PPA.

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4. Propostas para o futuro Compartilhamos da visão de que planejamento não é plano, é política. Ele deve ser produto de uma construção dinâmica e abrangente, tendo como horizonte a busca de um desenvolvimento que nos permita “transitar do passado e presente a futuros menos incertos e mais condi entes com as aspirações da civili ação e da coletividade na contemporaneidade”7. Além disso, entendemos que o PPA e o orçamento público dele derivado são fundamentais para a realização progressiva de direitos. São nestes instrumentos institucionais que as prioridades do governo são disputadas, e por isso é tão importante a ampla participação social na sua formulação. Com esta visão, e considerando o histórico dos últimos PPAs, listamos os seguintes aspectos do processo do PPA 2016-2019 e dos próximos a serem avançados: 1. Institucionalização da participação social: não existe obrigação legal para a inclusão da sociedade civil na construção, monitoramento, revisão e avaliação do Plano Plurianual. Em outras palavras, a participação popular na definição de diretrizes e metas programáticas para os próximos quatro anos depende da boa vontade dos poderes Executivo e Legislativo, o que deve ser revisto para garantia de consulta à sociedade. A Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político desenhou um espaço institucional de participação no ciclo orçamentário. Uma boa sinalização por parte do governo seria pegar esta proposta e cruzar com o relatório fruto do grupo de trabalho paritário que funcionou no Ministério do Planejamento em 2007/2008 2. Ampliação e regionalização da participação social: os processos de consulta devem permitir a real participação da sociedade civil. Isto implica em ampliar o número de rodadas de participação e em regionalizar as consultas para incluir quem não pode estar em Brasília. Esta regionalização precisa levar em conta não apenas a questão geográfica, mas outras dimensões: culturais, econômicas, sociais. Além disso, as revisões do PPA e a apresentação da avaliação dos Planos nos últimos anos de vigência devem contar com participação social. 3. Inclusão de investimentos e política tributária nos PPAs: os investimentos públicos e públicoprivados no âmbito do PAC também precisam ser debatidos no âmbito do PPA. E não somente para que a sociedade participe da construção das prioridades para tais investimentos mas, também, na perspectiva de debater seus impactos e as medidas de políticas públicas que devem necessariamente vir acompanhadas e se antecipar à construção de grandes obras que trazem impactos negativos irreversíveis e não mitigáveis aos territórios. Além disso, a questão do financiamento do Estado é totalmente inacessível à sociedade civil no atual formato de participação social. A política tributária tem sido um dos freios à maior redução da desigualdade, e deve ser amplamente debatida, especialmente no contexto de ajuste fiscal. 4. Incorporação das demandas sociais nas metas, não somente no discurso: organizações e movimentos sociais vêm apontando prioridades a serem incorporadas nos PPAs desde a ampliação da participação, mas isto não necessariamente tem se traduzido nos textos da lei. É fundamental que as proposições sejam razoavelmente consideradas nas definições do PPA, para além das diretrizes, e não apenas simbolicamente na mensagem presidencial. 5. Diálogo do PPA com as políticas e planos elaborados no marco da participação social no âmbito dos Conselhos, Conferências e Grupos de Trabalho: são muitos os planos e políticas já construídos que precisam ter correspondência no PPA, em termos de diretrizes e metas. Tratam-se de instrumentos de políticas públicas resultantes de processos de participação, e que podem avançar muito a formulação de um PPA realmente participativo.

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CARDOSO Jr., J.C. Princípios e Propostas para o PPA 2016-2019. Brasília: IPEA, 2015. 5