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____Análises de uma Juventude Conectada: Governança da Internet

YOUTH OBSERVATORY GRUPO ESPECIAL DE INTERESSE DA INTERNET SOCIETY EDIÇÃO EM PORTUGUÊS NOVEMBRO 2017 PATROCÍNIO:

Guilherme Alves, Adela Goberna, Sara Fratti ET AL. (Org.)

Análises de uma Juventude Conectada: Governança da Internet Edição em Português Novembro 2017 Esta obra está sob uma Licença Creative Commons AtribuiçãoCompartilhaIgual 4.0 Internacional. Mais informações: creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR O conteúdo dos artigos apresentados neste livro é de inteira responsabilidade de seus respectivos autores, que concordaram com o uso da licença Creative Commons. Exemplar gratuito - Proibida a venda Organizado por Youth Observatory Grupo Especial de Interesse da Internet Society CONTATO

COMISSÃO EDITORIAL

obdjuv.org [email protected]

Adela Goberna Carlos Guerrero Élisson Diones Esteban Calisaya Guilherme Alves Luã Fergus Sara Fratti Sarah Linke Viviane Vinagre

TRADUÇÃO

REVISÃO

Gustavo Amaral João Mino Leonardo Simões

Guilherme Alves Luã Fergus

COMISSÃO DE AVALIAÇÃO DE ARTIGOS Agustina Callegari Élisson Diones Esteban Calisaya Estefanía Román Guilherme Alves Israel Rosas Juan Pablo González Kimberly Anastacio Luã Fergus Pollyanna Rigon Sara Fratti Sarah Linke Thais Stein Viviane Vinagre ARTE DE CAPA E DIAGRAMAÇÃO Ana Seno Charles L’Astorina

PATROCÍNIO:

Para baixar este livro em formatos digitais (disponível também em Espanhol e Inglês), acesse ou utilize o QR code

_AGRADECIMENTOS À SaferNet Brasil e Internet Society, pelo patrocínio na edição deste livro; Às autores e aos autores, que acreditaram em nosso trabalho e nos confiaram suas reflexões; À Comissão de Avaliação, cujos integrantes voluntariamente nos ajudaram na seleção dos artigos.

Comissão Editorial do Youth Observatory Novembro de 2017

SUMÁRIO 7_ APRESENTAÇÃO 9_ PRÓLOGO 10_ PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET 11_

FEMINISMO DIGITAL: UMA PROPOSTA PARA UMA INTERNET INCLUSIVA Angélica Contreras

21_

ENTREVISTA: COMO TRATAR VIOLÊNCIA DE GÊNERO ONLINE NA CHAVE DA JUVENTUDE PERIFÉRICA BRASILEIRA? Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris

31_ ACESSO E DIVERSIDADE 32_

CONECTANDO O PRÓXIMO BILHÃO PARA QUEM? Hudson Lupes Ribeiro de Souza

41_

DADOS ABERTOS E O PODER DOS CIDADÃOS QUE FISCALIZAM Juliana de Freitas Gonçalves

48_ INCLUSÃO DIGITAL 49_

E-INCLUSÃO E BRECHA DIGITAL, VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO SOCIAL: UM CAMINHO PARA A REINTEGRAÇÃO SOCIAL DOS QUE TÊM OU TIVERAM UMA EXPERIÊNCIA EM INSTITUIÇÕES PENITENCIÁRIAS? Georgina A. Guercio

62_

POLÍTICAS PÚBLICAS TIC PARA A GERAÇÃO DE CAPACIDADES DIGITAIS EM JOVENS A PARTIR DA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO Maureen Merchán De las Salas

73_ CIBERSEGURANÇA 74_

NUANCES DA PRIVACIDADE NA ERA DIGITAL Arthur Emanuel Leal Abreu

81_

PESSOA ONLINE, PRIVACIDADE E PROTEÇÃO DE DADOS FRENTE AOS DIREITOS HUMANOS DE QUARTA GERAÇÃO: UM DESAFIO PARA O SISTEMA NACIONAL DE TRANSPARÊNCIA NO MÉXICO Natalia Mendoza Servín

90_ DIREITOS DIGITAIS 91_

A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NOS PROCESSOS DE REFORMA DO MARCO REGULATÓRIO DAS TECNOLOGIAS INFOCOMUNICACIONAIS NA ARGENTINA Julieta Colombo Gardey e Antonella Maia Perini

105_

A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NA ECONOMIA DIGITAL Silvana Cristina Rivero

112_

UM DIREITO PARA A GOVERNANÇA DA INTERNET Juan Daniel Macías Sierra

118_ CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET 119_

CROWDFUNDING DIGITAL COMO EXEMPLO PARA A CONSTRUÇÃO DE CAPITAL SOCIAL E O CRESCIMENTO DAS COMUNIDADES Claudia C. Arruñada Sala

131_

DIREITO À INFORMAÇÃO E DIREITOS DE AUTOR: PARADIGMAS NA ERA DIGITAL Rafael Ríos Nuño e José Benjamín González Mauricio

141_

A PROPRIEDADE INTELECTUAL NA ECONOMIA DIGITAL Silvana Cristina Rivero

150_ INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA 151_

POLÍTICAS DE INOVAÇÃO PARA APERFEIÇOAR O USO DA TECNOLOGIA POR POPULAÇÕES IMIGRANTES Martha Cisneros e Dámaris Contreras-Luzanilla

165_

RUMO AO ILUMINISMO DIGITAL: COMO CONSTRUIR PENSADORES CRÍTICOS NA ERA DIGITAL? Fernando A. Mora

178_ PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET 179_

COMO A “COLONIZAÇÃO DE MERCADO” DA INTERNET TRANSFORMOU CIDADÃOS EM MEROS CONSUMIDORES? MARKETIZAÇÃO DO ESPAÇO ONLINE Gloria J. Guerrero Martínez

189_

REDES DE POLARIZAÇÃO E ÓDIO: A TRANSFORMAÇÃO DA REDE COMO PROPAGADORA DA CULTURA DE ÓDIO PELAS BOLHAS DE FILTRO Leandro Racuia e Victor Andrês Veloso Cavadas

207_

DEFESA DA CONCORRÊNCIA E PLATAFORMAS ONLINE EM TEMPOS DE BIG DATA Paloma Szerman

APRESENTAÇÃO _O QUE AS JUVENTUDES LATINO-AMERICANAS TÊM A CONTRIBUIR NA GOVERNANÇA DA INTERNET? Essa tem sido uma provocação constante do Youth Observatory desde sua fundação, em 2015, durante o Fórum de Governança da Internet (IGF) de João Pessoa, Brasil. Surgimos com jovens que, comprometidas e comprometido nos espaços políticos de governança nacionais, regionais e globais, viram a necessidade de trabalhar em coletivo para pensar os impactos da rede em suas realidades e propor soluções para os problemas ao seu redor. Somos parte da geração que cresceu junto com expansão da rede e, como tantas outras iniciativas jovens, queremos assumir a responsabilidade de construí-la ativamente. A Governança da Internet foi a frente de atuação que escolhemos, e em nosso horizonte está o uso dessa poderosa ferramenta no enfrentamento das desigualdades sociais — especialmente na América Latina e Caribe, e ainda mais especificamente junto a outras juventudes, muitas vezes impedidas de compartilhar das transformações positivas que a rede vem possibilitando para nós. De lá para cá, temos procurado mostrar que queremos mais do que voz — mesmo que ser ouvido já seja uma importante vitória em espaços políticos muitas vezes pouco inclusivos. Queremos aprender e nos empoderar juntos, tornando-nos “atores de nossa própria realidade na construção da Governança da Internet”1. Passo a passo, em múltiplas frentes, de forma coletiva e descentralizada — não surpresa, características da própria Internet — temos nos inserido em diferentes iniciativas. Aceitos como Grupo de Interesse Especial da Internet Society, vimos nossas possibilidades de diálogo se expandirem para jovens de todo o mundo, um desafio ainda à nossa frente. Estivemos presentes, com a ousadia típica das juventudes, em fóruns nacionais, regionais e também no IGF global de Jalisco, México em 2016, levando propostas e críticas às discussões mais atuais no setor. Também desde 2016, o Youth Observatory é organizador do YouthLACIGF, primeiro espaço de diálogo e sinergia entre jovens latino-americanos sobre Governança da Internet, realizado em San José, Costa Rica, e Cidade do Panamá, Panamá, como eventos prévios à Reunião da América Latina e Caribe preparatória para o IGF, LACIGF. Além disso, lideramos a Declaração das Jovens Mulheres Latino-Americanas2, documento que propõe uma perspectiva feminista e jovem na construção da Governança da Internet. E nosso desejo por mais ações de impacto, socialmente referenciadas, só cresce.

1 Para ler a declaração “Nós, a juventude da América Latina e Caribe”, documento que desenhou os princípios da fundação do Youth Observatory, acesse (disponível em espanhol, português e inglês). 2 Para ler a declaração “Enabling access to empower young women and build a feminist Internet Governance”, acesse (disponível em inglês).

_PLURALIDADE Até aqui, temos falando sempre em “juventudes”, no plural. Não foi uma escolha ao acaso. Acreditamos que é impossível falar em juventudes — e em suas demandas, opiniões e ações — no singular. Nós abraçamos a diversidade de nossas formações, áreas de atuação, culturas e opiniões como algo que nos fortalece, e que certamente fortalece também a Governança da Internet. É neste sentido que este livro, resultado de um processo inédito e instigante para nós, surge. “Análises de uma juventude conectada” se propõe a reunir diferentes pensamentos de jovens sobre temas de interesse da Governança da Internet. Em nossa chamada, estivemos, de propósito, muito abertos quanto a formatos e abordagens, e fomos surpreendidos positivamente de muitas formas: recebemos artigos científicos e de opinião, entrevistas e ensaios, tratando sobre assuntos que dialogam entre si, com as realidades de seus autores e autoras, e com a disruptividade que marca a evolução da rede. Nossa comissão de avaliação, formada por integrantes do Youth Observatory das mais diversas áreas de atuação, finalizou seu trabalho com a seleção de 19 artigos, de 4 países diferentes (Argentina, Brasil, Colômbia e México), escritos em português, inglês ou espanhol, por jovens entre 21 e 31 anos; dos 23 autores, 15 são mulheres. Este livro busca capturar um pouco — num mar de muitos — do que tantos jovens na América Latina e no Caribe têm produzido, pensando Internet e sociedade nas suas mais diversas possibilidades. As discussões trazidas aqui mostram que esse fenômeno — a expansão das Tecnologias da Informação e Comunicação no mundo — nos reservam muitas perguntas, muitas inquietações, mas também muita sede de propor, conhecer e arriscar novos caminhos. Ainda há muito por fazer. Esperamos que esse livro seja o primeiro de tantos outros. À leitora e ao leitor, desejamos uma boa jornada. E esperamos críticas e sugestões! Por uma Internet plural, acessível, neutra, segura, inclusiva e de qualidade, Youth Observatory Novembro de 2017

PRÓLOGO “Nem sempre podemos construir o futuro para nossa juventude, mas podemos construir nossa juventude para o futuro” Franklin D. Roosevelt

Este livro materializa o sonho de um grupo de jovens, de diferentes países – com ênfase na América Latina – que integram o Observatório da Juventude, oficializado em 2016 como um dos desdobramentos do Programa Youth@IGF, lançado no ano anterior pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e Internet Society, com apoio da Google, Intel, Verizon e SaferNet Brasil. Os artigos do livro revelam a potência das ideias, inquietações e dilemas de uma juventude conectada diante de temas complexos e desafiadores, e nos apontam caminhos possíveis para discuti-los e problematizá-los de forma mais inclusiva e participativa. O programa Youth, desde a sua fase piloto – lançada pela SaferNet Brasil, em 2013 – tem provado aos mais céticos que a juventude tem muito a dizer, quer participar dos processos de Governança da Internet e ocupar espaços nos fóruns de formulação de políticas e tomada de decisões. Cabe-nos criar essas oportunidades e empoderá-los para que suas vozes sejam ouvidas e consideradas. O caminho, evidentemente, não tem sido fácil, e continuará exigindo de todos nós muita perseverança e determinação. No teatro grego, cabe ao primeiro personagem a entrar em cena a exposição do prólogo, que deve ser breve em sinal de homenagem às atrizes e atores principais da peça, aos verdadeiros protagonistas! Que se abram, então, as cortinas! Um abraço fraterno e boa leitura! Thiago Tavares Presidente da Safernet Brasil Conselheiro do CGI.br Coordenador do Programa Youth no Brasil

PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET

PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

FEMINISMO DIGITAL: UMA PROPOSTA PARA UMA INTERNET INCLUSIVA ANGÉLICA CONTRERAS Feminista e jornalista, atualmente estudante de Direito [email protected] México

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

_TEMÁTICA Problemas de gênero e juventude na Internet Direitos digitais

_RESUMO O Feminismo digital ou Feminismo 3,0, como uma proposta para poder invadir, criar, construir e apropriar-nos dos nossos direitos digitais a partir da Internet . A Internet é um espaço machista onde se reproduzem as práticas de violência das mulheres, os discursos de ódio e a perda de nossos direitos digitais, pelo fato de sermos “mulheres”. Com base no feminismo digital, propõe-se o empoderamento digital para a criação e apropriação de espaços livres de violência onde as mulheres possam se desenvolver. Palavras chave: feminismo; gênero; mulheres.

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

“PARA ELAS, AS QUE CRIARAM E DESENVOLVERAM A INTERNET E AS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO NO ANONIMATO E NO RECONHECIMENTO NULO DO SEU TRABALHO POR UMA RAZÃO: SER MULHER” A AUTORA

Passadas três ondas de feminismo, hoje estamos frente a um movimento de outra plataforma. O chamado Feminismo 3.0 ou Feminismo Digital é uma proposta para poder irromper, apropriar e criar a partir de uma plataforma que vive e sente a desigualdade de gênero. O feminismo digital tem suas virtudes, tais como a construção de espaços onde as mulheres podem criar pontos de encontro para o debate, movimentos sociais que se geram na Internet e são levados para o espaço público, o empoderamento e apropriação da ferramenta e, claro, a sororidade. Mas também há o outro lado da Internet, um que nos lembra que ela continua sendo machista, e onde habitá-la é um perigo para as mulheres. A Internet é e deve ser feminista.

1_FEMINISMO DIGITAL Quando eu mencionei nos fóruns da Internet que é necessário ter uma maior participação das feministas nos espaços de discussão, surgiram na mente dos ouvintes mulheres com cartazes, seios descobertos e a necessidade de gritar. O feminismo digital é visto a partir da perspectiva que continua buscando ofuscar o movimento desde sua origem. O feminismo é um movimento social, econômico, político, cultural e de desenvolvimento que busca a libertação das mulheres, o pleno exercício e respeito pelos seus direitos. Essa libertação levou-nos a lutar pelos nossos direitos civis, políticos, educativos, econômicos e agora sexuais, mas neste século onde as tecnologias da informação explodem de uma forma escandalosa e impressionante, sendo atualizadas e inovadas, o feminismo é uma opção para tomar espaços e formatá-los. Elena Gascón-Vera (2015, tradução nossa) indica que o feminismo do século XXI “está mudando para uma ideologia que inclui e aceita todo tipo de mulheres, apoia a inclusão de identidades distintas e a valorização do corpo e da sexualidade femininas”. Com a chegada da Internet agora torna-se mais fácil a propagação de imagens, discursos, mensagens e feminismos. O que queremos dizer com isso é que, como indica a autora, a Internet difunde essa construção diversa de “mulheres” de modo que não há apenas uma mulher, mas várias mulheres, por isso difunde também os feminismos, ou seja, as diferentes maneiras pelas quais o feminismo está sendo criado e pensado. A Internet nos disse: “ei, não estão sozinhas”, estamos nos feminismos. O movimento feminista nos ensinou a sair para a rua e nos reuniu em pontos de encontro onde marchamos juntas. Buscamos quem tem a “letra bonita” para fazer os

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

cartazes e improvisamos comparsas com latas de lixo e instrumentos diversos que encontramos em casa para armar as batucadas e acompanhar com música, palavras de ordem e marchas. O Feminismo digital, porém, nos trouxe a interação, a conexão, e nos cercou com outras expressões; o mais fácil é dizer que nos deu as ferramentas para nos organizarmos à distância e nos reunirmos. Existem outras autoras que consideram que essa nova onda do feminismo traz também um movimento mais popular em que o comando é de baixo para cima, e “sem dúvida abre uma nova onda do feminismo caracterizada por uma massividade na participação, e uma maior visibilidade em grande escala [...] mas, além disso, uma repercussão em escala global”.

2_MOVIMENTO DIGITAL A Internet é um espaço público ou privado para as mulheres? Nós, mulheres, vivemos sob uma constante busca por espaços para nos desenvolvermos, espaços que nos permitam ser “mulheres” sem termos que enfrentar o assédio, a violência, o machismo. Então, sob essa crença, buscamos o público, mas também o privado, para nosso desenvolvimento e segurança. O problema para essa pergunte sobre público e privado é que continuamos acreditando que as mulheres devem “guardar suas opiniões” e isso se replica na Internet, graças à qual somos testemunhas de massacres, crises e violências contra mulheres em todo o mundo. Isso nos levou a nos organizarmos do público ao privado em anonimato. Nos últimos anos temos testemunhado movimentos feministas que surgem, se organizam e se disseminam nas redes sociais, mas que são produto do descontentamento que é vivido no mundo offline. São movimentos como Meu Primeiro Assédio (Mi Primer Acoso), Primavera Violeta, Nem Uma A Menos (Ni Una Menos), Marcha das Mulheres (Women’s March), Negação Distribuída das Mulheres (Distributed Denial of Women), Greve Internacional de Mulheres (Paro Internacional de Mujeres), entre outros. Todos esses movimentos têm características em comum Surgem da inconformidade de eventos ou incidentes que são registrados offline e que são divulgados pelos meios de comunicação. A partir da indignação de coletivos ou de pessoas, nasce a organização online, com um slogan geral, uso de redes sociais para divulgá-lo e uma hashtag. Meios de comunicação na Internet se associam para divulgação do slogan, mulheres de vários países juntam-se e surge uma logística de mobilização em dois segmentos, offline e online. O primeiro – offline – leva as mulheres a espaços públicos para expressar um descontentamento, exercer seu direito à liberdade de reunião e expressão, e o segundo – online – junta mulheres que, por segurança, distância ou falta de acesso a esses espaços físicos, não podem estar presentes, mas que por meio de uma hashtag podem aderir à mobilização. A mobilização offline, no entanto, também serve como uma tradição para as mobilizações das mulheres, como uma revolução e crítica – tomar espaços masculinos, também como uma opção para as mulheres que não têm acesso à Internet ou são analfabetas digitais e que se informam pelos meios tradicionais.

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS “Tece uma série de alianças insólitas com outros países, realidades, latitudes e realiza uma ação sem precedentes” Florencia Alcaraz,1

3. SORORIDADE DIGITAL A feminista Marcela Lagarde e de los Ríos (2012) define sororidade como “o apoio mútuo das mulheres para alcançar o poder de todas.” A Internet oferece-nos uma ferramenta que nos permite estar juntas, ou seja, a partir da Internet se difunde um valor primordial do feminismo: a sororidade, que permite que nos identifiquemos e nos descubramos em nossas lutas. Um exemplo é quando é feita uma crítica (linchamento midiático) a uma mulher por fazer algo que “não deveria fazer por ser mulher”, e então surgem redes de apoio que defendem sua ação. Outra questão muito importante é o que nos identifica nos feminismos. Hoje em dia, falar sobre o feminismo é falar sobre suas diferentes perspectivas e a Internet permite a difusão desses movimentos e abordagens, o que nos permite aprender e construir um feminismo digital plural que mantém a mesma bandeira com diferentes enfoques: as mulheres.

4_CRIANDO A PARTIR DO FEMINISMO E DO EMPODERAMENTO DIGITAL Fomos ensinadas a ser usuárias passivas da Internet: ler, compartilhar e dar like, mas não a criar por nossa conta. No México, estudo da Associação Mexicana da Internet (2016) sobre os hábitos dos internautas diz que apenas 18% das e dos usuários da Internet são criadores de conteúdo, acessam ou mantêm seus próprios espaços, como blog ou outras plataformas. “As mulheres têm metade da probabilidade dos homens de se expressarem na rede, e menos de um terço de probabilidade de usar a Internet para procurar trabalho (de acordo com a idade e educação)” (Fundação World Wide Web, 2015, tradução nossa). A blogger mexicana Claudia Calvin (2012, tradução nossa) destaca: [...] seu silêncio resulta — sem que elas mesmas saibam — cúmplice de realidades sexistas ou que marginalizam e, na medida em que elas gradualmente vão aparecendo e se expressado sua voz... vão mudando o entorno. O silêncio nunca foi um parceiro do empoderamento [...]

Assim, empoderar as mulheres lhes dá a oportunidade de confiar e acreditar em sua voz (oral, escrita, gráfica) para que possam desenvolver propostas e projetos ou, simplesmente, para serem elas mesmas nos espaços digitais.

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Cf. Alcaraz (2017).

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Antes de continuar, entendemos por empoderamento digital a capacidade das mulheres de poder ter voz e participação nos espaços digitais. O relatório da Fundação World Wide Web (2015, tradução nossa) sobre os Direitos Digitais das mulheres, no tópico de desigualdade, apresentou os seguintes resultados: • Internet como espaço para discutir questões importantes, e dizem que a Internet tornou mais seguro para as mulheres expressarem suas opiniões, mesmo que elas ainda não a estejam usando com este fim. • A grande maioria das usuárias da Internet provenientes de áreas urbanas pobres já aproveitam as plataformas digitais como um veículo para reforçar os vínculos sociais dos quais muitas vezes depende sua sobrevivência, o que sugere que o poder da rede para melhorar o capital social devia ser um caminho eficaz para o empoderamento digital. • A educação é uma grande facilitadora para o empoderamento digital das mulheres. • As brechas de gênero na forma como os homens e as mulheres utilizam a Internet são significativas, mas não tão grandes quanto as desigualdades de gênero no acesso à Internet. A necessidade de incluir mais mulheres que participem na Internet existe também em termos de criação. Sua participação ativa visibilizaria um dos problemas de falta de conteúdo, não só em sua língua, mas também de conteúdo escrito por mulheres para mulheres. Um exemplo disso são as Editatonas, reuniões em que se edita e cria conteúdo para a Wikipédia escrito por mulheres sobre mulheres. Esse exercício ajuda a eliminar os estereótipos de gênero na Internet, como falar sobre o número de filhos de uma mulher ou de quem ela é esposa, e não de seus méritos profissionais. Por que as Editatonas são necessárias? Porque nós, mulheres, somos esquecidas e invisibilizadas. Bem diz um provérbio: “a história é escrita pelos vencedores”. Esses vencedores são homens. 13% dos editores na Wikipédia são mulheres, e a porcentagem de perfis sobre mulheres em inglês é de 17%: “o número escasso de editoras na Wikipédia, pouco solicitadas por um mundo de tecnologia dominado pelos homens, promove a desigualdade de gênero” (BBC Mundo, 2016, tradução nossa). Patricia Horrillo conclui que os medos devem ser enfrentados: o da tecnologia, causado pelo desconhecimento, e o da falta de legitimidade, que faz com que acreditemos que, enquanto mulheres, não estamos legitimadas a contar histórias em espaços digitais. O feminismo, então, apresenta-se como uma opção para tomar espaços, embora os espaços masculinos dificilmente, ou só depois de muitas lutas, incluem as mulheres sem estereótipos. A criação de espaços próprios é também uma opção para o empoderamento, como as redes comunitárias ou os servidores feministas autônomos.

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É preciso que as políticas públicas dos governos encarem a formação e preparação das mulheres como uma necessidade. Muitos governos dão acesso à Internet, mas onde elas se conectam? Elas se conectam? O que fazem? É preciso apresentar a Internet como uma ferramenta para potenciar sua voz, oportunidades e melhorar sua vida. Nossa participação na criação da Internet fortalece-nos e temos de adentrar nos espaços de poder. O feminismo procura a apropriação dos espaços públicos, por isso o feminismo digital procura que estes espaços nos permitam, principalmente, um acesso livre de violências.

5_A INTERNET É MACHISTA Claro que é! Desde os corretamente chamados Clubes do Bolinha, a discriminação, a violência, os machos-troll, os salários mais baixos, os poucos espaços em fóruns e painéis. A Internet é um espaço para os homens que censura fotos que não cumprem suas políticas, como seios das mulheres amamentando. Mas quantas feministas que defendem os direitos das mulheres são “banidas” por conteúdo violento? Relatório da Fundação World Wide Web Foundation (2015) salienta que sete em cada dez jovens mulheres (18 e 24 anos de idade) que utilizam a Internet diariamente sofreram abuso online e três em cada dez homens concordaram que a Internet deve ser um espaço controlado pelo homem. Espaços como o Fórum de Governança da Internet não excedem 40% de participação feminina: 35% de participação em 2012; 37% em 2013; 35% em 2014; 38% em 2015 e 39,6% em 2016. “Empoderar as mulheres em espaços digitais não é uma tarefa desempenhada isoladamente, é um conjunto de ações destinadas a reduzir a lacuna de gênero presente na Internet como um espaço público para o exercício de nossos direitos humanos” A autora2

Como podemos pedir que a Internet seja feminista se as mulheres não estão participando nos espaços? A perspectiva de gênero ainda é vista como um capricho para incluir as mulheres apenas por incluí-las. As mulheres não estamos seguras na Internet. Vemos como se replicam as violências offline em espaços digitais, com assédio, ameaça, violência. E nossa presença continua sendo um incômodo, estamos usando a Internet como um espaço público para fazer ouvir nossa voz. A Internet replica as práticas machistas. Uma prática muito comum é o trolling de mulheres que se expressam sobre um tema específico e são atacadas em grupo: primeiro um ataca com um comentário e, posteriormente, os outros trolls machistas repetem a mensagem de ódio. Além disso, são práticas comuns o recebimento de imagens de homens ameaçando com armas, mensagens de assédio, o mal chamado “pornô de vingança” e o repúdio social ao sexting. 2

Cf. Contreras (2017).

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

6_E AGORA? O que estamos fazendo para erradicar essas violências? Associações e organizações como Karisma, Colnodo, Sula BATSÚ, Mulheres Construindo (Mujeres Construyendo), Dominemos as TIC (Dominemos las TICs) entre muitas outras, criam ferramentas, produtos e cursos para treinar, preparar e empoderar as mulheres com relação às tecnologias de informação: suas vantagens e oportunidades, mas também suas violências. O feminismo digital é, portanto, um movimento [...] para alcançar o acesso e apropriação das tecnologias de informação para explorar as capacidades das mulheres, mas também para que passem do conforto de usuárias passivas para a criação de conteúdo, aplicações, opções e discursos de e para a Internet [...] (Contreras, 2017a, tradução nossa)

O feminismo digital, portanto, é um espaço 3.0 de resistência. Quais são os principais desafios do feminismo online?

6.1_SORORIDADE “A sororidade no acesso à Internet e no uso de tecnologias de informação deve ser definida como a irmandade entre as mulheres para o empoderamento e a apropriação digital” (Contreras, 2017b, tradução nossa), ou seja, para criar ferramentas e práticas não machistas na Internet, sendo algumas delas o não compartilhamento de violência, o apoio em casos de violência e o compartilhamento de experiências.

6.2_CONSOLIDAR OS MOVIMENTOS DIGITAIS O ano de 2016 foi de diversos movimentos digitais, mas é momento de fazermos um trabalho em equipe e vermos o ativismo digital não só como um “clique”, mas também como uma forma de incidir nos espaços físicos.

6.3_ALFABETIZAÇÃO DIGITAL Quando falamos de acesso, devemos também ter em conta que há mulheres que contam com a infraestrutura para o acesso, mas que desconhecem como fazê-lo e não exploram esses recursos porque não sabem como. As políticas públicas de acesso devem ser projetadas para dois grupos de pessoas: as que não têm o acesso-infraestrutura e as que não têm o acesso-alfabetização.

6.4_OCUPAR ESPAÇOS EM FÓRUNS DE INTERNET Trata-se de um convite para, a partir de nossos espaços, levarmos o tema das mulheres às mesas de discussão, para que se proponha, debata e procure, em equipe, formas de construir e consolidar boas práticas para o exercício dos direitos das mulheres em espaços digitais.

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

Na Marcha das Mulheres (Women’s March), um cartaz dizia que “as mulheres pertencem à resistência”, e na Internet encontramos um espaço para realizar esta bandeira de resistência, “que nos pede para gritar e ser uma voz para exigir o respeito pelos nossos direitos e é essa mesma voz que devemos levar à Internet, para exigir, mas também para participar, e construir juntas” (Contreras, 2017a, tradução nossa). Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Alcaraz, F. In De Titto, J. ¿Una nueva ola del feminismo? Recuperado de < https://notas. org.ar/2017/02/22/nueva-ola-feminismo> Associação Mexicana de Internet (Asociación Mexicana de Internet) (2016). Estudio de hábitos de los usuarios de internet. Recuperado de BBC Mundo (2016). ¿Quiénes son nuestras mujeres olvidadas? ¡Únete a nuestro “editatón” de Wikipedia y haz que sean recordadas! Recuperado de Calvin, C. (2012) In Vinas, S. Mujeres construyendo: Empoderando a las mujeres un blog a la vez. Recuperado de Contreras, A (2017a). Feminismo Digital: garantizar que nuestros derechos offline sean respetados online. GenderIT. Recuperado de Contreras, A. (2017b). Feminismos en tiempos digitales: dejando tras las prácticas machistas. GenderIT. Recuperado de Contreras, A. (2017c). ‘Hackeando’ internet por una más feminista. Federación Iberoamericana de Asociaciones de Derecho e Informática. Recuperado de De Titto, J. (2017) ¿Una nueva ola del feminismo? La Otra Voz Digital. Recuperado de Fórum de Governança da Internet (2012). IGF 2012 Baku - Attendance Statistics. Recuperado de

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

Fórum de Governança da Internet (2013). IGF 2013 Bali - Attendance Statistics. Recuperado de Fórum de Governança da Internet (2014). IGF 2014 Attendance Statistics. Recuperado de Fórum de Governança da Internet (2015). Attendance Statistics Fórum de Governança da Internet (2016). IGF 2016 Attendance & Programme Statistics. Recuperado de Fundação World Wide Web (World Wide Web Foundation) (2015). Nuevo informe: Derechos digitales de las mujeres. Recuperado de G. de la Cueva, C. (2015). Feminismo 3.0, las iniciativas digitales que debes conocer. Gonzoo. Recuperado de: Gascón-Vera, E. (2015). In Yanke, R. Feminismo 3.0, la nueva ola. El mundo. Recuperado de Lagarde y de los Ríos, M. (2012). Pacto entre mujeres: Sororidad. In El feminismo en mi vida. Hitos, claves y topías, p. 557-569. México: Instituto das Mulheres do Distrito Federal. Recuperado de Mulheres em Rede (Mujeres en Red) (2008) ¿Qué es el feminismo? Recuperado de

ANGÉLICA CONTRERAS Diretora de Relações Institucionais do Youth Observatory e membro da Internet Society - capítulo México, e da Academia Multidisciplinar de Direito e Tecnologias A. C. (AMDETIC). Escreve para GenderIT, Mulheres Construindo (Mujeres Construyendo), é blogueira e diretora da revista digital feminista Quintaesencia. Participou de diferentes projetos e campanhas feministas e de fóruns de Governança da Internet.

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

ENTREVISTA: COMO TRATAR VIOLÊNCIA DE GÊNERO ONLINE NA CHAVE DA JUVENTUDE PERIFÉRICA BRASILEIRA? MARIANA GIORGETTI VALENTE Diretora do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia e Pesquisadora da área “Internet e Gênero, Raça e Outros Marcadores Sociais” [email protected] Brasil

NATÁLIA NERIS Coordenadora da área “Internet e Gênero, Raça e Outros Marcadores Sociais” no InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia [email protected] Brasil

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

_TEMÁTICA Problemas de gênero e juventude na Internet

_RESUMO Comum em contextos escolares por todo o Brasil, o fenômeno “Top 10” foi amplamente noticiado em meados de 2015, quando foram reportados suicídios e outros problemas enfrentados por meninas em dois bairros periféricos em São Paulo: Grajaú e Parelheiros. A prática consiste em vídeos com listas das adolescentes supostamente “mais vadias” de uma escola ou comunidade. Para entender melhor os aspectos do problema, entrevistamos representantes dos projetos Coletivo Mulheres na Luta (Grajaú) e Sementeiras de Direitos (Parelheiros), cujas vozes oferecem aprofundada compreensão sobre apropriação de Tecnologias da Informação por jovens brasileiros da periferia e problemas de abordagem da mídia sobre esse tipo de violência. Palavras-chave: pornografia de vingança; periferia; violência de gênero; juventude

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PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

No fim de 2013, o suicídio de duas jovens brasileiras deu início a um intenso debate na mídia sobre a disseminação não consentida de imagens íntimas. A prática não era nova, mas com a Internet a velocidade da disseminação desses materiais dava a ela contornos todos novos. Até por isso, ganhou nome – o revenge porn, ou pornografia de vingança ou de revanche – e propostas de enfrentamento no Congresso Nacional. Revenge Porn remete a casos em que, após o fim de um relacionamento, o ex-parceiro divulga imagens por “inconformismo”. Além de o nome ser bastante inadequado – a palavra vingança não pressuporia uma ação condenável prévia? E estamos mesmo falando de pornografia? –, as nossas pesquisas dos últimos dois anos vêm indicando que o fenômeno é bem mais multifacetado que aparenta ser, e que podem em última instância ser relacionados a frustrações de expectativas por parte de homens em relação ao comportamento de mulheres, e podem ter simplesmente a finalidade de humilhação, independentemente de relação prévia. Sim, mulheres e meninas, porque estamos tratando claramente de um problema que acomete a elas, seja na frequência da prática, seja na gravidade das consequências1. Nessa linha de apreender o problema pela sua complexidade, o “Top 10” é um exemplo emblemático. A disseminada prática (embora pouco conhecida por adultos) consiste em um “ranqueamento” de meninas, em geral entre 12 e 15 anos, por grupos de meninos em uma escola ou comunidade, de acordo com sua suposta conduta sexual. São listas conhecidas também como “das mais vadias”: em vídeos, são expostas imagens das meninas com frases sobre seu comportamento, envolvendo ou não nudez, a depender, especialmente, do contexto em que são disseminados. É que algumas plataformas, como o YouTube e o Facebook, não mantêm no ar imagens de nudez. Comum em contextos escolares diversos e por todo o Brasil, o “Top 10” tornou-se conhecido fora dos espaços onde é praticado em maio de 2015, quando a mídia deu atenção a suicídios e outros problemas enfrentados por meninas em dois bairros do extremo sul da cidade de São Paulo: Grajaú e Parelheiros. Com a notoriedade que os casos ganharam, ativistas feministas atuantes nessas regiões conseguiram levar o debate à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,

EM VÍDEOS, SÃO EXPOSTAS IMAGENS DAS MENINAS COM FRASES SOBRE SEU COMPORTAMENTO, ENVOLVENDO OU NÃO NUDEZ

1 Viemos dando atenção ao problema por meio de estudos empíricos no InternetLab desde 2015. Em 2016, publicamos o livro “O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil”, em que estudamos a jurisprudência do Estado de São Paulo sobre o tema, realizamos um estudo de caso sobre o Top 10, de que trataremos adiante, e analisamos também as propostas legislativas e de política pública. Um dos dados que encontramos foi que, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mais de 90% dos casos (são processos da vítima contra o agressor, ou um provedor de aplicações) referiam-se à disseminação de imagens de meninas e mulheres. Essa absoluta predominância é também facilmente perceptível por mera observação. O livro pode ser baixado gratuitamente em . Para uma reflexão específica e mais enxuta sobre o tratamento dado pela Justiça aos casos envolvendo adolescentes, ver o artigo “Terra Com Lei”, publicado por nós na Revista E-Sesc em junho 2016: .

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onde foi realizada uma audiência pública,2 e pautaram-no nas próprias comunidades, de eventos como um Grafitaço Feminista3 a rodas de conversa com adolescentes. Nessas vozes, a denúncia sobre aspectos até então pouco abordados na esfera pública: o acesso limitado de adolescentes a equipamentos públicos do sistema de Justiça, e a pouca capacidade de controle sobre a narrativa de suas histórias de violência e violação. No estudo de caso que realizamos sobre o “Top 10” em 2015, entrevistamos e mantivemos contato com o Coletivo Mulheres na Luta, grupo feminista do bairro de Grajaú, e o projeto Sementeiras de Direitos, da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura de Parelheiros, dois bairros periféricos da Zona Sul de São Paulo. A visão das profissionais e ativistas veio guiando a nossa análise do problema,4 mas transborda-a amplamente. Suas vozes são fontes para uma aprofundada compreensão sobre uso e apropriação de Tecnologias da Informação e Comunicação por jovens brasileiros da periferia, sobre a relação entre Internet, abuso e emancipação, e sobre o papel e problemas de abordagem da mídia tradicional sobre esse tipo de violência. Assim, já a partir de contatos e análises desenvolvidas ao longo tempo, propusemos uma entrevista com representantes dos dois projetos, que lançam luz sobre questões como a criminalização da juventude periférica, a relação distante entre as comunidades em que estão inseridas com operadores do direito, o papel de iniciativas educativas e um diagnóstico sobre a necessidade de interlocução entre os campos de gênero e sexualidade (com uma visão para outros marcadores sociais) e o das políticas de Internet. A publicação desta entrevista é mais um passo nessa aproximação.5 Pesquisadoras: Em 2015, a mídia começou a reportar casos de possíveis suicídios envolvendo a prática de “Top 10”, nas escolas de São Paulo. A gente já sabe hoje que a prática vinha acontecendo fazia um tempo, antes disso, e que as consequências dramáticas na vida das afetadas também. O que vocês acham que fez com que a mídia passasse a reportar esses casos de repente? Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Acreditamos que a mídia começou a reportar os casos do “Top 10” em resposta à pressão dos movimentos sociais feministas que estão nos territórios onde ocorreram os casos. De forma espontânea, o tema possivelmente não apareceria ou seria reportado exclusivamente a partir do olhar machista e estereotipado, que culpabiliza as “meninas da periferia” pela suposta 2 Ver breve relato em “Onda de vídeos com conteúdo degradante contra adolescentes é discutida na CDH”, 3 Ver detalhes sobre a ação no vídeo hospedado na página do Coletivo Mulheres da Luta, do Grajaú, no Facebook: 4 Além do livro “O Corpo é o Código”, recomendamos também a leitura do artigo “Not revenge, not porn: analysing the exposureof teenage girls online in Brazil” (ver referências). Uma tradução dele para o português encontra-se aqui: 5

Agradecemos também a colaboração da pesquisadora Juliana Pacetta Ruiz na montagem desta entrevista.

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sexualidade exacerbada, por serem sem pudor ao deixarem-se fotografar em situações íntimas... A notícia de exposição não é dada no mesmo tom utilizado quando a vítima é uma atriz famosa. A pressão de coletivos feministas e das mídias alternativas levou o tema à grande imprensa. Coletivo Mulheres na Luta: A mídia hegemônica é oportunista, acreditamos que no caso do “Top 10” não foi diferente. Quando os coletivos, organizações e militantes da periferia do Extremo Sul de São Paulo começaram a discutir as mortes dessas adolescentes, o que a prática do “Top 10” representava na periferia, e a propor ações de grande visibilidade, foi que a grande mídia se interessou em falar sobre o assunto. As mídias hegemônicas só começaram a noticiar o “Top 10” após essa movimentação promovida por militantes e trabalhadoras(es) da periferia, que, além de saraus, grafitaços e discussões, também impulsionaram a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Investigação). Durante esse período havia muita presença da grande mídia, que em sua maioria reportava a pauta de modo nada cuidadoso, e que direta e indiretamente incentivava o acesso a esses vídeos, divulgando imagens das vítimas retirados dos vídeos de “Top 10” encontrados na Internet e apenas utilizando como modo dificultador da identificação dessas meninas uma tarja preta sob os olhos, que obviamente não impedia que a identificação por parte de vizinhos, colegas e conhecidos acontecesse. Essas ALGUNS E ALGUMAS grandes mídias também chegaram a procurar JORNALISTAS, AO os coletivos e as organizações que participavam INVÉS DE COLOCAR das discussões sobre o “Top 10” pedindo contato O DEBATE DO “TOP das adolescentes e famílias vítimas, sem se 10” RELACIONADO AO preocupar com a revitimização dessas pessoas e SEXISMO E O MACHISMO, a exposição negativa que estas poderiam ter em PREFERIA TRATAR COMO suas comunidades. Ao noticiarem os casos de SE FOSSE MAIS UMA “Top 10”, essas mídias também abriam brechas DAS TRAGÉDIAS DA para a criminalização das(os) adolescentes que PERIFERIA produziam os vídeos, desconsiderando o “Top 10” como um problema de uma estrutura patriarcal, homofóbica, normatizante e que inclui a responsabilidade do Estado para o fim dessa prática, resumindo-o (“Top 10”) a um problema de criminalidade. Com exceção das mídias periféricas e mais comprometidas com as pautas da população pobre, como o coletivo de jornalismo Periferia em Movimento e TVT (TV dos Trabalhadores), nenhuma das mídias esteve aberta ou manteve interesse em continuar discutindo a questão do “Top 10” após essas ações de maior visibilidade, mesmo que tenhamos conhecimento de que o “Top 10” continua acontecendo nas mesmas proporções e que venha ganhando novas caras, formas de divulgação e vítimas. Não vimos nenhuma reportagem ou matéria lançada pela grande mídia nos últimos meses, fato que reforça seu caráter oportunista que só trata das pautas de interesse da periferia quando lhes convêm.

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Pesquisadoras: Vocês nos contaram, em entrevista no passado, que a abordagem dos e das jornalistas, quando vinham buscar a pauta, não era necessariamente a mais respeitosa. Quais vocês acham que foram os impactos dessa midiatização para o problema do “Top 10”? Houve lados positivos também? Coletivo Mulheres na Luta: No Grajaú, os impactos foram mais negativos do que positivos. Não podemos negar que a mídia deu visibilidade à questão e, de certa forma, provocou a população para debates em espaços informais (ônibus, filas de supermercado)... Também houve a criação de uma CPI sobre o “Top 10”, mas sinceramente não sabemos muito bem como isso anda pois tivemos dificuldade em acompanhar de perto. A mídia deu um certo foco para essa questão e fez com que adultos pensassem “Isso existe?”. Negativamente podemos ver esse lado da criminalização da juventude pobre, em sua maioria preta. Há um discurso punitivista em nossa sociedade e a mídia fomentou isso com o “Top 10” também. Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Geralmente a grande mídia busca matérias que vendem. E, à época, alguns e algumas jornalistas, ao invés de colocar o debate do “Top 10” relacionado ao sexismo e o machismo, preferia tratar como se fosse mais uma das tragédias da periferia, quando é um fenômeno que também estava acontecendo em escolas particulares. Porque o que está por trás é o machismo, o sexismo, a misoginia, que são interclasses. O lado bom da mídia falar é que atinge outros públicos, coloca a discussão, mostra que há um problema. Acreditamos que quando a grande mídia traz esses tipos de reflexões ajuda a desconstruir o que está naturalizado. As gestões das escolas, por exemplo, passaram a dar um pouco mais de importância para o assunto, depois que foi abordado pela mídia. Pesquisadoras: Parece-nos, também, que a mídia deu especial atenção, naquele momento, aos casos que estavam acontecendo em Parelheiros e Grajaú, bairros da periferia de São Paulo. Mas, por conta de outras matérias pontuais, ou de casos que chegam até nós, sabemos bem que a disseminação não consentida de imagens íntimas é um problema que atinge várias classes sociais, e inclusive outras faixas etárias, para além da adolescência. Você acha que os casos no Grajaú e de Parelheiros, que vocês acompanham, têm particularidades, por conta da faixa etária e da localidade? Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Sim, acreditamos que chamou atenção que em uma região periférica predominantemente rural, como Parelheiros, o fenômeno “Top 10” estivesse acontecendo. A cidade de São Paulo conhece muito pouco ainda sobre Parelheiros; alguns paulistanos acreditam que mananciais e aldeia indígena resumem a região. Não resume. Dentre as especificidades de Parelheiros, está o de não redução da gravidez na adolescência, colocando-as entre os maiores índices da cidade. Em Parelheiros encontram-se, também, os mais baixos índices de equipamentos públicos. Tudo isso, acreditamos, surpreendeu e chamou atenção da mídia. Coletivo Mulheres na Luta: Acreditamos que as particularidades nesse caso sejam o fato de estarmos falando de adolescentes expondo adolescentes, e a responsabilização desses(as) meninos(as) deve ser voltada para o campo da reflexão sobre esse ato, ou

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seja, não somente no sentido de apontar “exposição na Internet é crime”, mas de informar os impactos que essa exposição da sexualidade das meninas gera na vida delas para sempre. Nosso coletivo acredita na reflexão e transformação, e o sistema punitivo não fomenta reflexão, ele fomenta apenas o encarceramento da juventude negra. Também pensamos que, além de responsabilizar as pessoas que criam esses vídeos, por meio de propostas socioeducativas com educação em sexualidade de verdade(!), é necessário pensar o acolhimento das dores e angústias dessas meninas expostas. Esse assunto também se refere à saúde mental.

O USO DAS TECNOLOGIAS COMO FERRAMENTA DE DENÚNCIA, DE INFORMAÇÃO, FORMAÇÃO E MOBILIZAÇÃO E NECESSÁRIO E INEVITÁVEL

Pesquisadoras: Uma questão que nos pareceu sempre muito importante foi que, quando fizemos a nossa pesquisa, entrevistamos vários agentes do sistema de Justiça que trabalhavam na periferia de São Paulo. Questionamos esses agentes, sempre, sobre o problema da disseminação de imagens íntimas não consentidas em sua área de atuação. Algumas vezes, e não foram tão poucas, recebemos uma resposta no sentido de “isso não é um problema por aqui, porque os jovens por aqui não têm celular/não têm Internet”, o que nos parecia revelar um grande desconhecimento sobre a realidade do uso da tecnologia por jovens, inclusive nas periferias urbanas. Como você responderia a uma afirmação como essa? E como você tem visto a apropriação, pelos jovens com que você trabalha, das tecnologias digitais? Existe alguma reflexão sendo construída em torno disso? Coletivo Mulheres na Luta: Antes de responder a essa pergunta, nossas exclamações foram “afffff”, “putz”... Pois é interessante perceber o quanto há uma alienação desses agentes sobre a realidade com que eles trabalham. Nós temos celulares, nós acessamos a Internet, nós estamos nesse contexto tecnológico também. Claro que passamos por diversas dificuldades para acessar o “mundo virtual”, pois em algumas regiões o sinal é ruim ou as empresas de Internet se recusam a instalá-la, mas as periferias têm celular, têm Internet e produzem conhecimento nesses meios. Essa frase é carregada de preconceito e uma visão caricata da periferia. Ficamos pensando “quem são esses agentes?” e que “tipo de Justiça esse agente deve promover?” Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Acreditamos que os agentes de justiça entrevistados por vocês estão mal informados. Apesar de ser uma região rural, distante cerca de 50 km do centro da cidade, e os equipamentos públicos e culturais não chegarem... a tecnologia chegou. Os celulares já chegaram há bom tempo, ocupado o espaço abandonado pelo Estado, de oferta de serviço público de comunicação. Em nossa percepção, o uso das tecnologias como ferramenta de denúncia, de informação, formação e mobilização e necessário e inevitável. É óbvio que precisamos sempre refletir sobre os usos. Ou seja, a tecnologia faz parte do nosso cotidiano, mas precisamos pensar em formas de utilizá-las para ampliar o acesso a direitos e à cidadania. Na Biblioteca, temos refletido sobre como

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essas ferramentas tecnológicas podem contribuir para promover reflexão e mudanças em nossa comunidade. Refletimos sobre como a tecnologia pode proporcionar aproximação ao invés de afastamento. Queremos usar as tecnologias e seus vários recursos como meios para humanizar ao invés de desumanizar. Pensando no “Top 10”, criamos uma metodologia para desconstrução de estereótipos na Internet: pegávamos frases machistas e sexistas que circulavam nas redes sociais e nos reuníamos para pensar respostas e para compartilhar na Internet. Criamos um grupo no WhatsApp para discutir e compartilhar temas relacionados a direitos das mulheres, desconstrução do machismo e do sexismo. Esse tem sido o nosso jeito de provocar a reflexão de que a tecnologia, a Internet, as redes sociais podem ser nossas aliadas e não nossa inimiga ou “arma” para destruir e humilhar os outros. Pesquisadoras: Embora o tema do uso seguro da Internet por jovens venha sendo abordado por especialistas no campo jurídico e tecnológico, questões de gênero e sexualidade dos jovens ainda parecem surgir timidamente nesses debates. Gostaríamos que nos contassem a experiência de atuação dos grupos de vocês, tendo em vista o foco dão à educação sexual, e que comentassem de que modo essa abordagem pode contribuir para políticas e ações de enfrentamento ao problema. Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: As rodas de conversa no grupo Sementeiras de Direitos têm sido um espaço de promoção de empatia e de fortalecimento de mulheres. Ao conversamos, compartilharmos nossas dores, nossas cicatrizes, nossos medos e, também, nossas conquistas, nossas estratégias, percebemos que não estamos sozinhas. E que nenhuma de nós é tão fraca que não possa apoiar uma outra para andar, deslocar-se, subir. Tem sido um rico espaço para conhecer o direito das mulheres e construir caminhos para ações coletivas e engajamento comunitário. Nesse grupo há homens em vários momentos. ESTAMOS Estamos convencidas e convencidos de que os CONVENCIDAS E homens precisam estar envolvidos nesta historia. CONVENCIDOS DE Eles precisam aprender a não violar, não ameaçar. QUE OS HOMENS Neste ano (2017), começaremos rodas exclusivas PRECISAM ESTAR com homens, meninos, adolescentes e jovens. Neste ENVOLVIDOS NESTA momento está acontecendo nova edição do “Top 10”. HISTORIA Tem até o “Top 15”, incluindo meninas grávidas, e às vezes expostas vestidas, mas desqualificadas como “vadias”, e desumanizadas publicamente nas redes sociais. Teremos rodas de conversas também com educadores (as) e outros profissionais que devem proteger e garantir os direitos das meninas e mulheres. Usamos a tecnologia, mas um recurso do qual não abrimos mão é o livro; livros informativos, históricos e literários estão sempre presentes em nossos encontros, para fortalecer nossas raízes e, também, para impulsionar nossos voos. Coletivo Mulheres na Luta: Temos pensado que nem esses especialistas abordam a sexualidade e o gênero nem nós temos abordado o uso seguro da Internet. Talvez por estarmos atuando diretamente na rua, e com dificuldade de sinal de Internet

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móvel, ou priorizarmos o contato presencial, muitas vezes não aproximamos nossa luta pela equidade de gênero das questões tecnológicas. Entre nós, discutimos que é preciso aproximar as duas reflexões, que na verdade são uma discussão só: a liberdade e segurança das meninas e mulheres, onde quer que estejam (real ou virtual). Recentemente criamos um vídeo chamado “Eu já mandei nude”, e inclusive o texto que segue esse vídeo foi elaborado por Natália Neris (uma das entrevistadoras). Estamos engatinhando na descoberta desse mundo virtual e das discussões em torno dele, mas sabemos da importância do respeito à privacidade e garantia de segurança nesse meio.

_REFERÊNCIAS Valente, M. G., Neris, N., & Bulgarelli, L. (2015). Not revenge, not porn: analysing the exposure of teenage girls online in Brazil. Global Information Society Watch: Sexual rights and the Internet. p. 74-79. Recuperado de Valente, M. G., Neris, N., Ruiz, J., & Bulgarelli, L. (2016). O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. São Paulo: InternetLab. Recuperado de Valente, M.G., & Neris, N. (2016). Terra com Lei. Revista E-SESC, 241. Recuperado de Jornal TVT (2015. Grajaú tem grafitaço feminista contra “Top 10” e machismo. Rede TVT. Recuperado de Material produzido pelos coletivos “Eu já mandei nude” pelo Coletivo Mulheres na Luta. Recuperado de “Nosso TOP 10 é feminista” pelo Coletivo Mulheres na Luta. Recuperado de “Grafitaço Feminista” pelo Coletivo Mulheres na Luta. Recuperado de “TOP 10 do Whatsapp – Grajaú vs Parelheiros – Campanha Abayomi Aba pela Juventude Negra Viva”. Recuperado de f e

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MARIANA GIORGETTI VALENTE Graduada, Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi pesquisadora visitante na UC Berkeley e é pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

NATÁLIA NERIS Graduada em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP), Mestra em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). É pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

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CONECTANDO O PRÓXIMO BILHÃO PARA QUEM? HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA Graduando em Engenharia de Computação, Universidade Federal do Espírito Santo [email protected] Brasil

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_TEMÁTICA Acesso e diversidade Inclusão digital

_RESUMO Este artigo dialoga sobre a importância da inclusão digital que atue na democratização do entendimento crítico e autônomo sobre a utilização das tecnologias de informação e comunicação. Defende-se o software livre como ferramenta de garantia da produção de conhecimento livre e compartilhável, etapa essencial na efetivação das inclusões social e digital. Reforça a responsabilidade dos governos, da iniciativa privada e da sociedade civil na manutenção de uma governança da Internet com espaços de discussão plurais e representativos, que entendam e acolham as opiniões de jovens e que trabalhem priorizando a inclusão digital na ampliação do acesso à Internet. Palavras-chave: inclusão digital; governança da Internet; software livre

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A sociedade da informação1 é caracterizada pelas trabalhadoras que usam suas habilidades na criação, geração e disseminação de novos conhecimentos. Essa sociedade tecnológica, organizada socialmente na geração, no processamento e na transmissão da informação, cria a cada dia novas fontes de produtividade demandadas pelo mercado por exigência da globalização. Ela está pautada no desenvolvimento intelectual dos indivíduos para realizar tarefas que agregam novos conhecimentos e capacidades que contribuem para a inovação tecnológica, principal motor no desenvolvimento econômico mundial (Alonso, Ferneda, & Santana, 2010). E é a partir das demandas dela ou do sistema capitalista que organiza e define o conjunto dessas trabalhadoras, que surgem questões como inclusão digital, liberdade de expressão, cibersegurança e privacidade.

1_INCLUIR PARA QUÊ? A ideia de que indivíduos e nações que não utilizam eficazmente as Tecnologias de Informação e Comunicação2 (TIC) serão “deixados para trás” avança como argumento para justificar a necessidade de proporcionar meios de acesso como estratégia de persuasão daqueles supostamente menos conscientes da centralidade da tecnologia. Transformar desinteresse em participação e pessoas off-line em usuários das TIC é obrigatório e não há opção de não querer participar (Cogo, Dutra-Brignol, & Fragoso, 2014). A Internet surge, portanto, como o principal instrumento para aumentar o poder globalizado de conexão e já alcança mais de 3 bilhões de pessoas no mundo (Internet Live Stats, 2017). A preocupação dos países com a massificação da banda larga tem um forte viés econômico. A infraestrutura é essencial para modernizar a economia, aumentar a produtividade, especialmente das pequenas e médias empresas, garantir a competitividade das economias no mundo globalizado, aumentar a qualificação de mão de obra por meio do ensino a distância, ampliar a oferta de serviços públicos por meio da Internet, sem aumento de custos (Dias, 2011). O objetivo das iniciativas de inclusão digital tem sido, via de regra, “dar acesso à rede” a grupos minoritários que, por conta própria, encontrariam enormes dificuldades em adquirir e utilizar as TIC. O desejo dos grupos visados de serem incluídos e o seu próprio entendimento sobre inclusão é um fato que tende a permanecer inquestionável.

1 A sociedade não é um elemento estático, muito pelo contrário, está em constante mutação e como tal, a sociedade contemporânea está inserida num processo de mudança em que as novas tecnologias são as principais responsáveis. Alguns autores identificam um novo paradigma de sociedade que se baseia num bem precioso, a informação, atribuindo-lhe várias designações, entre elas a Sociedade da Informação. Sociedade da Informação é um termo - também chamado de Sociedade do Conhecimento ou Nova Economia - que surgiu no fim do Século XX (Sociedade da informação, n.d.). 2 TIC é uma expressão que se refere ao papel da comunicação (seja por fios, cabos ou sem fio) na moderna tecnologia da informação. Entende-se que TICs consistem em tecnologias de informação, bem como quaisquer formas de transmissão de informações e correspondem a todas as tecnologias que interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos dos seres (Tecnologia da informação e comunicação, n.d.).

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Muitos setores estatais e da sociedade civil que elaboram projetos e políticas de inclusão social e digital costumam assumir como premissa o princípio de que todos os grupos desejariam “ser incluídos” e que compartilhariam de um mesmo entendimento sobre o que seria a “inclusão” (Cogo, Dutra-Brignol, & Fragoso, 2014).

AO INVÉS DE UMA EXPERIMENTAÇÃO DE CURIOSIDADE, PESQUISA E PRODUÇÃO, ESSES PROJETOS TRANSFORMAM A EXPERIÊNCIA DAS INTERNAUTAS EM ALGO CENTRALIZADO, AUTOMATIZADO E DIRIGIDO

Projetos de “inclusão digital”, como o Free Basics do Facebook (com aspas para garantir a interpretação de ironia), delimitam o que pode ou não ser acessado pelo usuário com o pretexto do acesso gratuito. Ao invés de uma experimentação de curiosidade, pesquisa e produção, esses projetos transformam a experiência das internautas em algo centralizado, automatizado e dirigido. Ainda assim, mesmo sem dar a capacidade de que a usuária defina o conteúdo do acesso, segundo o Facebook: “[...] os sites estão disponíveis gratuitamente sem cobranças de dados e incluem conteúdos como notícias, empregos, saúde, educação e informações locais. Ao apresentar às pessoas os benefícios da Internet por meio desses sites, esperamos incluir mais pessoas online e ajudar a melhorar suas vidas” (Internet.org, 2017). A disponibilidade de banda larga e conexão wireless, telecentros e celulares não é garantia de que o isolado terá voz, que o pobre ficará rico, que o marginalizado participará e que o desprovido poderá ser produtivo. Acesso à tecnologia não promete que os governos permitirão maiores Liberdades de Informação e Expressão ou que os direitos de comunicação serão fortalecidos ou mesmo que os cidadãos participarão quando tiverem a oportunidade (West, 2007). Silveira (2008) ressalta que [...] a emancipação digital avança em uma questão crucial, que diz respeito ao risco de a inclusão digital acabar servindo apenas para a ampliação do mercado consumidor dos produtos e serviços de tecnologia. Isso pode acontecer quando a inclusão digital se limita à alfabetização digital, ao ensino do uso mecânico dos programas de computador e de acesso à Internet, a preparar o aluno única e exclusivamente para saber digitar um texto e montar uma planilha e, assim, conseguir realizar essas tarefas no mercado de trabalho.

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2_O QUE É INCLUSÃO DIGITAL? Inclusão Digital significa hoje o acesso da população ao mundo digital, equiparando as potencialidades num mundo geográfico, social, OS PROGRAMAS DE etário e intelectual diversificado, numa tentativa de INCLUSÃO DIGITAL se garantir não apenas a capacitação/treinamento HOJE EM TODO do indivíduo ao uso de equipamento, mas estimular MUNDO MOSTRAM o exercício dos direitos garantidos a cada cidadã QUE AÇÕES DEVEM como educação, acesso à informação e participação PRIORIZAR O nas atividades do núcleo social que esta se encontra, ENVOLVIMENTO DA garantindo a construção de sua cidadania. A inclusão COMUNIDADE de uma sociedade no mundo digital deve partir da necessidade de se construir uma sociedade do conhecimento e do acesso facilitado, crítico, livre e democrático à informação. Os programas de inclusão digital hoje em todo mundo mostram que ações devem priorizar o envolvimento da comunidade, trabalhando numa linguagem acessível aos diversos segmentos, atendendo as necessidades locais (Lemos, & Costa, 2007). Por isso, é vital que se reformule os projetos e programas de inclusão digital e que esses concretizem o empoderamento, a criticidade e a aprendizagem significativa3. Para Warschauer (2002), o êxito na instauração de um projeto de inclusão digital depende de que se combinem quatro fatores distintos: 1.

Recursos Físicos: que envolvem acesso a computadores e conexões de telecomunicações;

2.

Recursos Digitais: se referem à material digital que está disponível on-line;

3.

Recursos Humanos: gira em torno de questões como alfabetização e educação (incluindo os tipos particulares de alfabetização necessários para o uso do computador e a comunicação online);

4.

Recursos Sociais: estruturas comunitárias, institucionais e sociais que dão suporte para o acesso às TIC.

Incluir é ter capacidade de livre apropriação dos meios. Trata-se de criar condições para o desenvolvimento de um pensamento crítico, autônomo e criativo em relação às novas tecnologias de comunicação e informação (Lemos, & Costa, 2007).

3 Segundo Marco Antônio Moreira, “[...] a aprendizagem significativa é um processo por meio do qual uma nova informação relaciona-se, de maneira substantiva (não-literal) e não-arbitrária, a um aspecto relevante da estrutura de conhecimento do indivíduo”. Em outras palavras, os novos conhecimentos que se adquirem relacionam-se com o conhecimento prévio que o aluno possui (Moreira apud Aprendizagem significativa, n.d.).

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3_A IMPORTÂNCIA DO SOFTWARE LIVRE O software tem o poder de condicionar completamente nossa comunicação. Seu desenho, suas funções, operações, interfaces são definidos pelos programadores, que o criaram e o mantêm atualizado. Esses códigos, em geral, são fechados e incompreensíveis para aqueles que o utilizam. Trata-se de algo obscuro, sem nenhuma transparência. O mercado principal de software se estruturou em torno de um modelo de remuneração da propriedade que se dá pela negação de acesso ao conhecimento de suas rotinas logicamente encadeadas (Silveira, 2014). Nessa perspectiva, como poderia então se tornar incluído um indivíduo que aprende a utilizar softwares mas que não pode saber como realmente estes funcionam? Além disso, como podem projetos de inclusão proporem o contato de indivíduos “marginalizados” com softwares proprietários caros o bastante para impossibilitar sua utilização? Apesar de negligenciado pelos governos e algumas vezes ignorado pelas empresas, a alternativa para uma inclusão consciente e colaborativa é a utilização de Software Livre (SL). Segundo Teixeira (2010), assumir a filosofia do software livre é “[...] aceitar o desafio de ser autor, reconhecendo-se como um nó de uma rede colaborativa que, por meio de experiências reflexivas de autorias e coautorias, se refina e se aperfeiçoa numa dinâmica de autonomia provisória”. O SL se caracteriza pela oferta de quatro liberdades básicas: (0) a liberdade de usar o programa, para qualquer propósito; (1) a liberdade de estudar como o programa trabalha, podendo adaptá-lo às necessidades próprias, acesso ao código-fonte é precondição para tanto; (2) a liberdade de redistribuir cópias, para que você possa ajudar ao seu próximo; (3) a liberdade de melhorar o programa e lançar suas melhorias para o público em geral, para que assim toda a comunidade se beneficie, acesso ao código-fonte é precondição para isto (Open Suse, 2017). O movimento do software livre é um conceito de coletividade onde se busca a garantia de que o produto dos esforços coletivos não será apropriado por alguém; será, sim, de domínio não só da própria coletividade que o produziu, mas de domínio público (Almeida, & Riccio, 2011). Além da forma cooperativa de trabalho, trata-se de buscar, adicionar, modificar o que foi dito, escrito, gravado, sem a lógica proprietária, sem a dinâmica de acumulação e do segredo (Lemos, 2004). O acesso completo ao código-fonte, uma das liberdades explícitas do SL, implica abrir mão do “poder” da propriedade em nome do coletivo (Almeida, & Riccio, 2011). É a partir desse desprendimento que surgem as possibilidades de produção e construção livres de conteúdo, do

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O MOVIMENTO DO SOFTWARE LIVRE É UM CONCEITO DE COLETIVIDADE ONDE SE BUSCA A GARANTIA DE QUE O PRODUTO DOS ESFORÇOS COLETIVOS NÃO SERÁ APROPRIADO POR ALGUÉM

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conhecimento e de programas, o que deve ser feito a partir de iniciativas que apresentem as oportunidades e possibilidades de democratização dispostas através da utilização e desenvolvimento do software livre. Portanto, somente programas de inclusão digital que efetivam seu processo de aprendizagem baseando-se em ferramentas livres, gratuitas e abertas incentivam a produção de conhecimento acessível e compartilhável.

4_DA INCLUSÃO PARA A GOVERNANÇA Sem dúvidas, a Internet desempenha papel importante no desenvolvimento e na emancipação das relações sociais. Além disso, atua como um agente de transmissão de conteúdo, informação e tecnologia que a cada dia se expande. Ao se tratar de uma rede tão grande e abrangente, vê-se necessária a participação de indivíduos e coletivos na constituição de uma ferramenta socialmente útil e propositiva. A partir disso, a Governança da Internet4 (GI) desempenha um papel fundamental: unir iniciativa privada, governos, academia e sociedade civil para pensar e efetivar ações que definam a evolução de uma Internet livre, descentralizada e acessível. Os espaços de debate sobre GI são os primeiros que devem ser inclusivos. Afinal, de que adianta debater sobre governança e inclusão de “outros” sendo que antes mesmo do debate estes já foram excluídos? Com isso, inicia-se ali mesmo nos espaços onde se almeja a horizontalização do debate sobre a Internet, o processo de exclusão das realidades sobre as quais se definem políticas. Políticas desconhecidas para pessoas rejeitadas. É necessário que os espaços de debate sobre GI se tornem mais plurais, democráticos e representativos! Segundo a Declaração “Programa Youth@IGF 2015”, assinada por jovens de toda a América Latina e Caribe (ALC) durante o Fórum de Governança da Internet (FGI) em 2015 no Brasil, o acesso às TICs deve-se efetivar “[...] garantindo, principalmente, a inclusão de todas e todos os jovens vulneráveis através de acesso irrestrito, acessível e de qualidade com a finalidade de que eles se tornem uma ferramenta eficaz para o desenvolvimento social e humano da região” (Youth Observatory, 2015). Nesse contexto, é essencial reafirmar a importância do protagonismo jovem latino-americano na elaboração das políticas públicas, tanto nos espaços legislativos dos governos quanto nos fóruns e congressos, e na efetivação dos projetos de inclusão digital. Deve-se fortalecer a visão de que as jovens não são o futuro da governança, mas, sim, o presente, e que a partir das percepções de jovens de toda a ALC poderemos criar uma Internet mais democrática e acessível. Cabe então à Governança e a todas suas atrizes o imenso e árduo dever de exigir e executar políticas para benefício dos desenvolvimentos locais e pela garantia do direito à inclusão digital. E que esse direito se realize respeitando as divergências e especificidades culturais regionais, ao passo que fomente a liberdade de expressão, a 4 Governança da Internet é o desenvolvimento e a execução pelos governos, sociedade civil e iniciativa privada, em seus respectivos papéis, de princípios, normas, regras, procedimentos decisórios e programas compartilhados que delineiam a evolução e o uso da Internet (Governança da Internet, n.d.).

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publicização de dados públicos, a transparência dos governos, a democratização da informação e a alfabetização. Se a GI não parte do pressuposto de que seus processos devem ser acessíveis e de que para isso precisa se reformular já, então nem mesmo os direitos das bilhões de pessoas já conectadas serão ampliados. Para conectar mais quaisquer outras dezenas que sejam, é indispensável pensar a Governança da Internet a partir da Inclusão Digital.

_REFERÊNCIAS Almeida, D., & Riccio, N. C. R. (2011). Autonomia, Liberdade e Software Livre: algumas reflexões. In Bonilla, M. H. S., & Pretto, N. D. L. (Orgs.) Inclusão digital: polêmica contemporânea. Salvador: EDUFBA. p. 127-144 Alonso, L. B. N., Ferneda, E., & Santana, G. P. (2010). Inclusão digital e inclusão social: contribuições teóricas e metodológicas. Barbaroi, (32). p. 154-177. Recuperado de Cogo, D., Dutra-Brignol, L., & Fragoso, S. (2014). Práticas cotidianas de acesso às TIC: outro modo de compreender a inclusão digital. Palabra Clave, 18(1), p. 156-183. Recuperado de Dias, L. R. (2011). Inclusão digital como fator de inclusão social. In Bonilla, M. H. S., & Pretto, N. D. L. (Orgs.) Inclusão digital: polêmica contemporânea. Salvador: EDUFBA. pp. 61-90 Governança da Internet (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13, 2017, de: Internet Live Stats (2017). Internet Users. Recuperado de Internet.org (2017). Free Basics By Facebook. Recuperado de Lemos, A. (2004). Cibercultura, cultura e identidade: em direção a uma “Cultura Copyleft”? Contemporânea: Revista de Comunicação e Cultura, 2(2). Lemos, A., & Costa, L. (2007). Um modelo de inclusão digital. O caso da cidade de Salvador. In Lemos, A. (Org.). Cidade Digital: portais, inclusão e redes no Brasil. Salvador: EDUFBA. pp. 35-48. Moreira, M. A. apud Aprendizagem significativa (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13, 2017, de: Open Suse. Software Livre e de Código Aberto. Recuperado de

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Silveira, S. A. (2008). A noção de exclusão digital diante das exigências de uma cibercidadania. In Hetkowski, T. M. (Org.). Políticas públicas & inclusão digital. Salvador: EDUFBA. Silveira, S. A. (2014). Para Analisar o Poder Tecnológico Como Poder Político. In Silveira, S. A., Braga, S., & Penteado, C. (Orgs.) Cultura, política e ativismo nas redes digitais. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. Sociedade da informação (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13, 2017, de: Tecnologia da informação e comunicação (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13, 2017, de: Teixeira, A. C. (2010). Inclusão digital: novas perspectivas para a informática educativa. Ijuí: Editora Unijuí. Warschauer, M. (2002). Reconceptualizing the Digital Divide. First Monday, 7(7). Recuperado de West, A. R. (2007). Technology Related Dangers: The Issue of Development and Security for Marginalized Groups in South Africa. The Journal of Community Informatics, 2(3). Recuperado de Youth Observatory (2015). Declaração Youth@IGF 2015. Recuperado de

HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA Cicloativista, blogueiro, extensionista, militante e estudante de Engenharia de Computação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Nascido em Guarapari – ES, participou do Núcleo de Cidadania Digital (NCD - Ufes), onde teve o primeiro contato com a pesquisa sobre inclusão digital e onde também conheceu, através de uma amiga do NCD, a Governança da Internet e o programa Youth@IGF, participando então, em 2016, da fundação do SIG Observatório da Juventude (Youth Observatory).

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DADOS ABERTOS E O PODER DOS CIDADÃOS QUE FISCALIZAM JULIANA DE FREITAS GONÇALVES Acadêmica de Comunicação Digital na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) [email protected] Brasil

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_TEMÁTICA Acesso e diversidade Cooperação de múltiplas partes interessadas

_RESUMO A Lei de Acesso à Informação, que está em vigor no Brasil desde 2012, permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, tenha acesso aos dados públicos. Com o aporte da lei, o avanço tecnológico e as manifestações e protestos que ocorreram no País a partir de 2013, o número de iniciativas sem fins lucrativos que reúnem voluntários interessados em participar mais ativamente do Poder Público tem aumentado. Embora esse processo dê maior poder ao cidadão, ele ainda apresenta diversas falhas e é insuficiente na busca por uma cidadania mais qualificada e participativa. Palavras-chave: dados abertos; cidadania; Poder Público

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Com o objetivo de tornar a administração pública mais transparente e eficiente, aumentar a participação e o controle social e diminuir a corrupção, foi criada no Brasil a Lei de Acesso à Informação, ou Lei no 12.527 (2011), que está em vigor desde maio de 2012 e permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, tenha acesso a dados públicos. A lei engloba os três poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) no âmbito municipal, estadual e federal, Tribunais de Conta, Ministério Público e entidades privadas sem fins lucrativos. Ela também garante ao cidadão o acesso às informações de forma gratuita e sem necessidade de motivos explícitos, ou seja, não é preciso explicar a razão de os dados estarem sendo requeridos. O conceito de dados públicos abertos baseia-se em uma definição da Organização das Nações Unidas (ONU) que coloca o acesso à informação como um direito humano fundamental, uma ideia defendida internacionalmente já na Declaração dos Direitos Humanos. A informação é ponto-chave para o desenvolvimento da cidadania, possibilitando cidadãos engajados politicamente, além de ser um requisito básico na legitimação de governos democráticos. Além disso, o avanço tecnológico é um dos grandes responsáveis pelo aumento na adoção de dados abertos através de portais de transparência, seja pelas novas possibilidades de armazenamento e organização, seja pelas novas formas de relacionamento entre cidadão e Estado, criadas por meios que possibilitam a comunicação entre as duas partes de forma bem mais rápida e dinâmica – principalmente quando pensamos nas redes sociais. O ecossistema da Internet por si só já promove ambientes mais abertos ao debate e motiva cidadãos mais participativos, dispostos a dialogar sobre diversos assuntos, uma vez que uma procura rápida em qualquer buscador leva ao usuário qualquer tipo de informação. Essas novas O CONCEITO DE possibilidades técnicas, aliadas com os recentes casos DADOS PÚBLICOS alarmantes de corrupção no Brasil – que colocaram o ABERTOS BASEIA-SE o país em 79 lugar no ranking de percepção da EM UMA DEFINIÇÃO corrupção no mundo em 2016, uma piora de três posições em relação a 2015 (Salomão, 2017) – ajudam DA ORGANIZAÇÃO a aumentar a consciência cidadã da população que DAS NAÇÕES percebe a importância e a força de seu papel como UNIDAS (ONU) QUE agente fiscalizador dos acontecimentos públicos. A Lei COLOCA O ACESSO de Acesso à Informação é mais um passo em direção à À INFORMAÇÃO motivação social.

COMO UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

Com todos esses recursos disponíveis e associado aos “[...] movimentos populares desencadeados [no Brasil] a partir de 2013 [que] trouxeram para o cenário político um ‘empoderamento’ de entidades que até então eram restritas ao público com formação mais qualificada” (Meirelles, 2017), espera-se que o número de cidadãos engajados na fiscalização dos poderes públicos aumente permanentemente, assim como as iniciativas sem fins lucrativos que reúnem interessados em participar mais ativamente no controle de gastos. No Brasil, algumas dessas iniciativas são:

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1.

Observatório Social do Brasil (OSB)1: uma rede de cerca de 3 mil voluntários existente em 19 Estados brasileiros que recebem capacitação e apoio técnico para supervisionar o uso do dinheiro público em âmbito municipal. O foco da organização é o controle fiscal de compras, contratações e outros gastos na gestão pública e, segundo dados do próprio observatório, são mais de R$300 milhões poupados por ano;

2.

Operação Política Supervisionada2: uma ONG com mais de 4 mil voluntários no País e no exterior que fiscaliza gastos principalmente da Cota para Exercício da Atividade Parlamentar – uma verba indenizatória de deputados e senadores disponível para os políticos em atividade ligada ao exercício do mandato, como despesas com alimentação e hospedagem, que é liberada após a comprovação dos gastos. Segundo o site da organização, mais de R$5,5 milhões de dinheiro público já foram poupados;

3.

Operação Serenata de Amor3: também focada em controlar os gastos com a Cota para Exercício da Atividade Parlamentar, a organização utiliza inteligência artificial em um robô chamado Rosie, programado em Python, que identifica reembolsos suspeitos para que sejam mais tarde auditados por trabalho humano. Em números, até meados de fevereiro de 2016 mais de 500 denúncias já haviam sido feitas e mais de R$3 mil já haviam sido devolvidos para os cofres públicos;

4.

Associação Contas Abertas4: uma associação que monitora os gastos da União englobando os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Também oferece assessoria e capacitação para que a sociedade em geral possa se especializar no controle orçamentário público.

Todas essas iniciativas utilizam a Lei de Acesso à Informação para contestar gastos, melhorar a gestão e frear práticas incorretas. A própria existência da lei já serve como uma dificuldade para políticos que desejam NÃO É APENAS O praticar atos ilícitos, uma vez que todos os dados estarão ACESSO AOS DADOS disponíveis ao público. Porém, só isso ainda não é QUE IMPORTA, MAS suficiente e ideal para dar conta de tudo. Com tantos SIM O ACESSO dados disponíveis é necessário que a capacidade de QUALIFICADO análise também aumente. Não só mais iniciativas sendo criadas, o que parece já ser uma tendência positiva, mas também recursos e infraestrutura compatíveis com a demanda cada vez maior de dados para serem averiguados. É fundamental que se mantenha o aumento no interesse dos cidadãos, que segue crescente impulsionado pela 1

Site do Observatório disponível no link

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Site da Operação disponível no link

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Site da Operação disponível no link

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Site da Associação disponível no link

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indignação com acontecimentos recentes – como a Operação Lava Jato5 – mas para isso algumas mudanças ainda devem ocorrer. Não é apenas o acesso aos dados que importa, mas sim o acesso qualificado. É necessário um certo nível de profissionalização para que o cidadão tenha conhecimento sobre como chegar até as informações e fazer uso adequado delas. Esse movimento também inclui linguagem mais acessível e interfaces mais amigáveis e com usabilidade otimizada nos portais de transparência. Dados que não podem ser encontrados ou trabalhados perdem a sua utilidade e prejudicam o objetivo inicial de transparência – que só existe quando os cidadãos realmente conseguem utilizar o que têm em mãos. Em reportagem da Gazeta do Povo de fevereiro de 2017 (Brembatti, & Marchiori, 2017) é demonstrada a importância do aperfeiçoamento dos cidadãos para analisar os dados públicos. Débora Sögur Hous, uma estudante da Universidade Federal do Paraná (UFPR), utilizou o Portal de Transparência do Governo Federal6 para acompanhar os pagamentos da União à universidade. Ela estranhou algumas informações, mas foi preciso conhecimento mais aprofundado sobre o assunto para que as suspeitas pudessem ser estruturadas. Débora fez dois cursos da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), dois da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e mais uma oficina com um coletivo de jornalistas chamado Livre.jor7. Segundo a reportagem, foi só então que a estudante conseguiu sistematizar toda uma rede de pagamentos suspeitos que acabou sendo comprovada depois em uma operação da Polícia Federal, chamada Operação Research, e que acabou com a prisão de 29 pessoas. Outro conhecimento que se torna cada vez mais necessário, sendo já considerado como a nova forma de alfabetização em um mundo conectado, é a programação. Iniciativas como a Serenata de Amor mostram como um algoritmo pode ser útil e eficiente para lidar com a quantidade gigantesca de dados disponíveis de uma maneira que apenas o trabalho manual não conseguiria executar. Além disso, outras formas de transparência que devem ser cobradas dos governos requerem conhecimentos técnicos para, por exemplo, auditar algoritmos usados em sorteios ou em outras decisões oficiais. O cidadão precisa reconhecer e se apoderar do seu direito de saber e isso requer também a cobrança de iniciativas públicas que tornem esses conhecimentos acessíveis a todos de forma igualitária, sem discriminação econômica, racial ou de gênero. Mais uma urgência na luta pela redução da desigualdade e por uma educação de qualidade. Além disso, mesmo com todo o progresso já obtido no que diz respeito aos dados abertos, estamos longe de um estágio satisfatório. Segundo relatório do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (2016), entre 2012 e 2015, a Lei de Acesso à Informação foi utilizada para 334.463 pedidos de acesso, dos quais 333.854 foram respondidos – uma eficiência de 99,8%, incluindo pedidos atendidos, negados e

5 Conjunto de investigações da Polícia Federal do Brasil, em curso desde 2014, com objetivo de identificar casos de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo políticos e empresas, como construtoras e a Petrobras. 6

Portal disponível no link

7

Site do coletivo disponível no link

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não atendidos. Porém mesmo com a lei, muitos dados ainda são incorretos, faltantes ou difíceis de serem compreendidos. Além da dificuldade de acesso à Internet em muitas localidades do Brasil, nem todos os dados estão disponíveis no mesmo lugar, mesmo com a existência de um site oficial do próprio governo para esta finalidade, o que dificulta a utilização dos dados e aumenta o tempo necessário para achar as informações desejadas. Outro relatório, da Web Foundation em parceria com o Transparency International, publicado em 2017, conclui que as políticas de dados abertos no Brasil ainda não estão satisfatoriamente alinhadas aos esforços contra a corrupção no País, uma vez que os dados disponíveis não foram completamente explorados nem mesmo pelos próprios funcionários do governo e ainda são vistos apenas como uma prestação de contas e não como uma importante arma na luta contra a corrupção (Transparency International, 2017). Faz-se necessário, por fim, o aumento da conscientização e engajamento do cidadão em questões políticas, que vá além de eleger candidatos de quatro em quatro anos. A busca por uma cidadania mais qualificada passa, atualmente, pela discussão de questões diretamente ligadas à Governança da Internet que têm alcançado apenas um pequeno público, insuficiente para um País que se diz democrático.

_REFERÊNCIAS Brembatti, K, & Marchiori, R. (2017). Estudante detectou sozinha desvio milionário de bolsas que a UFPR não viu. Gazeta do Povo. Vida e Cidadania. Recuperado de: Lei nº 12.527, (2011, 18 de novembro). Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Recuperado de: Meirelles, G. (2017). Engajamento de cidadãos e entidades tem efeito positivo na cobrança por eficiência no poder público. Fecomercio. Economia. Recuperado de: Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (2016). Relatório sobre a implementação da Lei nº 12.527: Lei de Acesso à Informação. Recuperado de:

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Salomão, L. (2017). Brasil está em 79º lugar entre 176 países, aponta ranking da corrupção de 2016. G1. Mundo. Recuperado de: Transparency International (2017). Open data and the fight against corruption in Brazil: report. Recuperado de:

JULIANA DE FREITAS GONÇALVES 22 anos, estudante de bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Comunicação Digital pela Unisinos/RS. Iniciou seus estudos em Governança da Internet em 2015 e seus principais tópicos de interesse são privacidade, cultura digital, gênero, diversidade e inteligência de dados.

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INCLUSÃO DIGITAL

INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

E-INCLUSÃO E BRECHA DIGITAL, VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO SOCIAL: UM CAMINHO PARA A REINTEGRAÇÃO SOCIAL DOS QUE TÊM OU TIVERAM UMA EXPERIÊNCIA EM INSTITUIÇÕES PENITENCIÁRIAS? GEORGINA A. GUERCIO Advogada, graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Cuyo, Mendoza, Argentina. [email protected] Argentina

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_TEMÁTICA Inclusão digital Direitos digitais

_RESUMO O objetivo deste artigo é tornar visíveis os preconceitos a partir dos quais habitualmente trata-se a exclusão digital, bem como a incidência desta na exclusão social. Analisam-se fatores considerados importantes para conhecer, entender e aplicar soluções eficazes para o problema atual da brecha digital, colocando o foco de atenção já não sobre o mero acesso às tecnologias, mas em sua apropriação através da educação. Especificamente a observação desta dinâmica e as propostas que surgem giram em torno da população penitenciária e suas perspectivas futuras de reintegração social. Palavras chave: brecha digital; privação da liberdade; exclusão

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1_A BRECHA DIGITAL E O NOVO PARADIGMA DA TECNOLOGIA A sociedade da informação e a sua linguagem inovadora, com o seu progresso inevitável e avassalador, tem impactado fortemente no paradigma a partir do qual os problemas sociais são abordados, tanto em sua identificação como no desenvolvimento de possíveis soluções. As TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) e especificamente seu acesso, conhecimento e melhor aproveitamento, começaram a cimentar diferenças profundas nas oportunidades de desenvolvimento e crescimento, tanto na projeção individual quanto na social, ao mesmo tempo que geraram um novo grupo de excluídos: aqueles que não acessam e/ou dominam a tecnologia e caem na chamada “brecha digital”. A Organização das Nações Unidas (ONU) já referia em sua Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação de 20031 que o que chamamos de “brecha digital” pode ser sintetizado na divisão entre aqueles que podem efetivamente usar as novas ferramentas da informação e comunicação, tais como a Internet, e aqueles que não podem. Tendo em conta esta conceitualização, e sem perder de vista reformulações posteriores sobre essas diretrizes e nuances, a sociedade, de modo geral, de acordo com Buchmueller et al. (2011), seria atomizada em dois grandes grupos: os chamados onliners e os “none-liners”. A complexidade e a riqueza da análise que levanta esta distinção não para aqui, pois existem múltiplas arestas que devem A QUESTÃO EM ser vistas se entendermos que não se trata apenas TORNO DA BRECHA de um problema quantitativo, restrito ao acesso DIGITAL ESTÁ às tecnologias da informação e à infraestrutura EFETIVAMENTE para isso, mas que o fenômeno se desenrola em CIRCUNSCRITA A um contexto de desigualdades econômicas, sociais, DUAS DIMENSÕES culturais e políticas prevalecentes nas sociedades, GERAIS: A das quais a brecha digital participa. Contrariamente a esta visão reducionista, a partir da qual geralmente é encarado o estudo de manifestações sociais e tecnológicas cada vez mais complexas, é possível redimensionar a questão em causa e adicionar outras variantes como a cultura empresarial para orientar a ação econômica para a rede, a capacidade e eficiência para o gerenciamento e manutenção de recursos em rede, a cooperação, o investimento de capital — para a criação, gestão e manutenção da rede — acompanhado de um quadro legal e planejamento adequado, treinamento

INFRAESTRUTURA (CONECTIVIDADE) E O MERO ACESSO E DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS TÉCNICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TIC (FORMAÇÃO TÉCNICA)

1 A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) foi uma cúpula organizada pelas Nações Unidas em duas fases: uma teve lugar em Genebra (2003) e outra na Tunísia (2005). Um dos seus principais objetivos foi o tratamento da brecha digital global, que separa países ricos de países pobres, através da difusão do acesso à Internet no mundo em desenvolvimento.

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profissional, conteúdo de qualidade e no próprio idioma. Por último, mas não menos importante, usuários com habilidades e competências que lhes permitam o uso eficiente da rede. Estas notas esboçadas, e sem a intenção de serem excludentes e limitativas, mostram inegavelmente que estamos enfrentando um fenômeno multidimensional em que, embora seja válido vincular diretamente a brecha digital com o acesso às TIC (infraestrutura, acessibilidade e usabilidade para vincular-se à rede de redes), sua base responde a processos sociais que requerem interpretações renovadas, dependendo da incidência e da capacidade de transformação da tecnologia. A busca de uma abordagem integral exige, portanto, não somente a contemplação do componente tecnológico, mas também do resultado sinérgico e recíproco da economia, da política e da cultura, a que é adicionada a necessária consideração de fatores como a geografia, idade, sexo, idioma, educação, empregabilidade e integridade física. Apesar de tudo isso, se examinarmos nossas realidades, não é por acaso que nos deparamos com o fato de que a questão em torno da brecha digital está efetivamente circunscrita a duas dimensões gerais: a infraestrutura (conectividade) e o mero acesso e desenvolvimento de competências técnicas para a utilização das TIC (formação técnica). Em plano secundário fica a compreensão e o exame qualitativo sobre o uso e a orientação que os usuários imprimem aos recursos fornecidos. De fato, essas preocupações são invisíveis nas mesas de debates em que se discutem a articulação das políticas que possam garantir respostas eficazes e omnicompreensivas ao problema. Logicamente, disso resulta uma etérea, mas vigente, naturalização de uma espécie de “inclusão acrítica”, em que não se pergunta “para quê” promover o acesso às TIC. As interpelações sobre essas questões e a assimilação da sua necessidade e importância permitem, entre outras coisas, descobrir e ressignificar a estreita relação entre o conhecimento e a utilização das TIC, evolução que conduz à inclusão da dimensão cognitiva na concepção e estudo da noção de brecha digital – dimensão a que, por sinal, também deveria somarse um posicionamento ético. A falta de acesso às TIC, sem dúvida, constitui mais uma causa condicionante da verdadeira igualdade de oportunidades, uma vez que marginalizar hoje os setores sociais menos favorecidos dos benefícios da Internet implica fechar-lhe a porta de entrada para o mundo da Informação e do conhecimento. Falamos então, não só de uma brecha digital com todas as suas implicações, mas também de uma brecha cognitivo. Esta última está à mercê dos vertiginosos avanços técnicos e corre o risco de se aprofundar, tornando mais grave a desintegração social que agora acrescenta outra forma de exclusão: a exclusão social digital. Esses parágrafos visam a despojar o leitor da ideia de que o mero fato de dar a uma pessoa os meios para se estar na rede provoca, por osmose, um processo de autossuperação pessoal imediato que elimina as desigualdades que estão na base da brecha digital. Vamos, portanto, tentar ponderar o papel da educação como um processo construído a partir da participação e do envolvimento de todos os atores da sociedade, cujo objetivo não é apenas alfabetizar no informacional, mas também alcançar uma massa crítica de cidadãos que possam transformar-se e transformar a sociedade. A educação é um ponto no qual a brecha digital e a brecha cognitiva convergem, e

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que permite abordar, com maior solvência e perspetivas de sucesso, as necessidades e demandas daqueles que esperam fazer parte da mudança. Estas projeções, no entanto, não estão privadas de algumas dicotomias. Por um lado, face a uma tecnologia que avança a passos gigantescos, a educação evolui lentamente e através de respostas residuais ou, no pior caso, com um impacto quase nulo. Enquanto que, por outro lado, como muito bem expresso por Rafael Capurro (2010), caminhamos em direção ao horizonte de uma ontologia digital, o que nos leva a viver um projeto existencial cujas consequências sociais são difíceis de se prever.

2_EXCLUSÃO SOCIAL, EXCLUSÃO DIGITAL Os estudos destinados a analisar em que medida as novas tecnologias podem contribuir para a inclusão dos grupos mais desfavorecidos da sociedade são frequentemente baseados em uma abordagem de exclusão social, a partir das TIC, que está exclusivamente relacionada com o risco de queda ou aprofundamento da brecha digital. Essa perspectiva tendenciosa esquece-se de aprofundar a relevância e o impacto positivo que as TIC têm quando acompanhadas de uma formação adequada que permita, às pessoas excluídas, encontrar nelas a oportunidade para gerar e/ou fortalecer os espaços de inclusão individual que certamente terão influência no contexto coletivo. Estas abordagens são complementares e têm como eixo a concepção da tecnologia como um instrumento que permite contornar obstáculos e que abre uma gama de possibilidades ilimitadas, forjando alternativas de transformação para uma sociedade mais digna e coesa. A partir dessa premissa, é útil fazer primeiro uma aproximação ao conceito de exclusão social. A noção de exclusão social surge em meados da década de 1970 como uma tentativa de superar o conceito de pobreza, e de acordo com Sen (2000), é entendida em conexão com a desigualdade e limitações no acesso a certos bens ou serviços contidos, em sua interpretação, com considerações puramente econômicas. Esta formulação reflete-se igualmente nos termos utilizados para definir a exclusão digital nos seus primórdios, e apesar das críticas e subsequentes contribuições que foram feitas a esta conceitualização, as representações que a definição transpõe para o tratamento da exclusão digital parecem prevalecer. Portanto, para superar essa análise superficial torna-se essencial considerar outros fatores, porque pode mesmo acontecer que os grupos que são excluídos digitalmente estejam conformados por pessoas que não pertençam necessariamente a grupos tradicionalmente excluídos, em uma concepção social e econômica da exclusão, embora seja verdade que o vazio tecnológico coexiste e aumenta os efeitos da exclusão social compreendida a partir de um modelo tradicional. A exclusão social é um problema muito mais complexo e que engloba a exclusão digital, que, segundo Frederick (1993), cria novos modelos de desigualdade e formas de divisão, na medida em que distancia cada vez mais aqueles que podem participar democrática e efetivamente nas dinâmicas sociais, daqueles que nem sequer têm um lugar nelas ou o fazem parcialmente. Por isso, a discussão sobre a exclusão social remete-nos para um processo em constante mudança no qual se interligam e se implicam uma dimensão econômica, social e vital. É em relação a elas que vemos, por

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exemplo, a falência ou a erosão de duas categorias nas quais assenta uma das chaves para a inclusão social: o âmbito vincular ou relacional e o ambiente econômico laboral. Aqui, ganha importância o papel que as TIC desempenham, já que sua apropriação e suas potencialidades permitem recuperar os espaços perdidos dentro da vida social. No entanto, não deve ser deduzido, sem qualquer outra consideração, que a inclusão digital implicitamente implica a dimensão da inclusão social, mas sim um grande avanço sobre ela. A Internet, especialmente, é apresentada como A EXCLUSÃO um fator de mobilidade social, e como instrumento SOCIAL É UM demonstrou sua penetração e enorme capacidade PROBLEMA MUITO de mudar o ambiente de trabalho; daí sua incidência na estruturação e no aprofundamento MAIS COMPLEXO das desigualdades. Esta é uma das razões pelas E QUE ENGLOBA A quais se deve insistir em ponderar seu valor de EXCLUSÃO DIGITAL, uso em oposição ao valor de troca ou comércio que QUE, SEGUNDO representa ou pode representar.

FREDERICK (1993), CRIA NOVOS MODELOS DE DESIGUALDADE

O binômio inclusão/exclusão pode ser reduzido, embora não de forma autossuficiente, através de uma séria reformulação da educação formal e informal. Com isso em mente, um dos primeiros passos a se dar para que a chamada brecha digital comece a diminuir é superar o preconceito de que, sobre as TIC e sua contribuição, os atores que as têm em suas mãos mantêm a possibilidade de agir e decidir. É essencial perceber que a impossibilidade de interagir com as novas tecnologias alimenta a exclusão digital e que, por sua vez, esta aumenta a exclusão social.

3_INTERNET E PRIVAÇÃO DA LIBERDADE: SÃO COMPATÍVEIS? Identificar grupos ou subgrupos de pessoas particularmente afetadas pelo processo de exclusão acima mencionado, como se fará em seguida, não pretende evitar a natureza estrutural e multifatorial da exclusão. Simplesmente busca-se circunscrever e situar a visão sobre um coletivo muitas vezes ignorado, mas muito presente e ligado ao discurso político sempre atual sobre a insegurança, a justiça e a inclusão. E hoje, mais do que nunca, está em voga em uma Argentina que discute diariamente suas regras penais e a eficácia das medidas repressivas. Inevitavelmente, o debate merece outras reflexões, que devem também acompanhar a controvérsia, como a avaliação autocrítica da figura das instituições de encarceramento em face do fracasso na prevenção e perante a deficiente ou nula inclusão social. Se empreendermos uma busca que nos leve a compreender estas conclusões desencorajadoras, vamos encontrar, talvez, mais perguntas do que respostas. Nessas pessoas, cuja vulnerabilidade social os liga constantemente ao crime, ou naquelas já sujeitas a processos criminais ou cumprindo uma condenação, onde começa e termina o fator pessoal? E o fator social? A complexa inter-relação que ocorre entre as

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circunstâncias pessoais, sociais, culturais, históricas e institucionais, em geral, torna difícil falar de recortes estritamente pessoais que tendem a um estado de exclusão e, consequentemente, delinquência. Sob esta perspectiva, e sem aspirar a esgotar a questão, uma das muitas propostas viáveis para abordar o assunto, tanto de sua causa como de suas consequências, é a avaliação das barreiras educacionais. Essas adquirem novas conotações ao ligarem-se com uma tecnologia que exige uma vasta gama de conhecimentos, habilidades e uma atitude vital em que os usuários não podem, nem devem, deter-se perante as mudanças como meros consumidores, mas como sujeitos ativos. Para contextualizar e esclarecer se diante dessas barreiras a alfabetização digital opera no contexto de privação da liberdade e, dessa forma, como ela funciona ou como poderia fazê-lo, em primeiro lugar, temos de compreender que, quando falamos de reinserção e inclusão social, o ponto de partida é a ponderação do passado, presente e futuro das trajetórias de vida dos reclusos. No entanto, embora durante sua permanência na prisão o indivíduo tenha o direito de receber instrução que o valorize e lhe permita reintegrar-se futuramente na sociedade como um membro ativo, o contexto em que habita não o favorece para isso. Prevalece uma lógica penitenciária marcada, entre outras coisas, pelas interações baseadas na hierarquia e no poder, com uma função clara de correção que, muitas vezes, se torna arbitrária, com perda progressiva da autonomia, homogeneização e dependência institucional quanto à disponibilidade do tempo e da mobilidade física. Esses fatores, apenas delineados, são claramente prejudiciais para o cumprimento de qualquer finalidade colocada e colabora com o descrédito do valor intrínseco da educação, acentuando sua concepção apenas como um meio para obter benefícios na execução da pena. A esses obstáculos, e aos que compartilham com outros grupos, também se acrescenta uma peculiaridade: a necessidade de conciliar a educação e o trabalho com a garantia de segurança. Na verdade, a população prisional é híbrida no que se refere à bagagem cultural; dentro desta mistura há uma grande maioria que possui uma formação irregular, que não tem qualificação profissional e cujas habilidades sociais foram deterioradas pelo efeito que a vida de encerramento tem em seus padrões de conduta, enquanto uma porcentagem não menor é analfabeta funcional. Este cenário, a princípio, compromete, e na maioria dos casos impossibilita, as chances de que, no futuro, aqueles que estão privados da liberdade ou sujeitos a várias medidas judiciais possam voltar para a vida social e obter um emprego. Tal cenário é agravado pela falta de objetividade da maioria da sociedade na apreensão deste coletivo. Considerando que os potenciais e os atuais detentos são objeto de vários tipos de exclusão, aqui o principal será pensar na exclusão que é gerada após a obtenção da liberdade, não só pela estigmatização social, mas como consequência de uma formação inadequada ou inexistente que dificulta a referida reintegração social e laboral. Agora, para percorrer os ambicionados caminhos da alfabetização informacional digital, compreendida como um conjunto de competências que levam a um uso adequado, reflexivo, crítico e responsável da informação e da mídia, idealmente complementadas com o conhecimento técnico para o controle e criação de linguagens

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de programação, pode começar-se por discutir o desenvolvimento fundamental de três aspectos: o acesso à tecnologia, competências e atitudes, que incidem claramente no agravamento ou redução da exclusão social e digital que implica estar na prisão. Ao discutir o possível acesso à tecnologia, e especialmente a Internet nestas áreas, a heterogeneidade das dificuldades em termos de acesso aberto à Internet é o primeiro problema que surge. A população prisional deve estar incomunicável com o exterior, salvo pelas vias oficiais, uma exigência que discorda claramente com as pretensões perseguidas. Este distanciamento tecnológico, comportado por uma permanência na prisão, implica também uma dificuldade acrescida para os internos e ex-internos, que complica ainda mais a integração social, a reabilitação e a inserção laboral, essa última diretamente relacionada com a vontade de desistir do crime, embora renunciar ao crime não implique necessariamente um processo de inclusão social. Dessa forma, é evidente a importância de superar o conflito exposto e reforçar, por outro lado, o influxo da aquisição de ferramentas necessárias para alcançar uma melhor qualidade de vida, com as TIC como uma das possíveis respostas. Em sentido genérico, e quando se trata do manejo de ferramentas informáticas e/ou de programação, uma boa linha de ação sobre elas deve não ser padronizar nem limitar o tempo, algo que parece não ter apoio na prisão se considerarmos os impedimentos tratados anteriormente. Apesar disso, surgem algumas propostas com perspectivas de efetivação e que são compatíveis, por um lado, com a necessidade de segurança e isolamento que a pena de privação da liberdade implica e, por outro, com a luta contra a exclusão digital. São elas: - Formação informática básica: ensino dos aspectos mais elementares na utilização de um computador pessoal. Essa é uma medida inicial que pode ser amplamente difundida, já que não há necessidade de comunicação com o exterior, tem baixos custos, e também tem o objetivo de atualização do conhecimento prévio que cada detento traz, mas que a passagem do tempo entre os muros torna desatualizado. - Navegação simulada ou o acesso restrito à Internet: tendo em conta os custos, respeitando as restrições do complexo penitenciário em questão, mas sem contornar o horizonte que é a busca da inclusão digital. - Uso de ferramentas específicas, programação e cursos de treinamento focados em possíveis demandas profissionais: embora ambicioso como sugestão, poderia ser uma resposta válida não só para as demandas do mercado, mas também para os propósitos de uma vida renovada. A este respeito, uma questão a ponderar, e que não é menos importante, é que apenas existe software adaptado às necessidades e perfis desta população em particular, a penetração do software livre é muito pequena, bem como o grau de conhecimento sobre ele. A viabilidade e o sucesso destas propostas está subordinada, pelo menos, a três questões. Primeiro, a solidez orçamental, que permita e garanta o crescimento que se pretende. Segundo, o reconhecimento de que a expansão generalizada da linguagem digital torna necessário ensinar competências que transcendem o conhecimento

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técnico e instrumental em que a maioria dos esforços atuais neste campo estão focados; uma verdadeira alfabetização digital não deve apenas consistir em ensinar como usar o computador e algumas aplicações, mas deve fornecer os elementos básicos para o desenvolvimento de capacidades que permitam revalorizar e questionar os usos atribuídos às ferramentas, além de permitir a compreensão e talvez o domínio das linguagens de codificação. Terceiro, a atitude com que as TIC são enfrentadas, sem perder de vista a complexidade de cada realidade individual e o componente de vontade: essa deve ter como objetivo construir espaços de liberdade e crítica vital sem se esquecer de contribuir, do lugar que ocupa, para o tecido de redes de cooperação. No entanto, e infelizmente, hoje prevalece a precariedade, a falta de financiamento e de preparação dos educadores, e a ausência de projetos que encarem seriamente a privação de liberdade e o seu efeito direto na brecha social e digital, e que compreendam o caráter fundamental da tecnologia para nossa vida diária, bem como o seu potencial para regenerar as relações e o equilíbrio social. Na Argentina, apesar de por mais de uma década a Educ.ar2 ter promovido e impulsionado uma transformação nos processos de ensino e aprendizado, tentando, por um lado, transcender os usos puramente instrumentais e, por outro, determinar que tipo de competências era necessário gerenciar para não ser um analfabeto digital, suas intenções foram parcialmente concretizadas. Ao mesmo tempo, o atual governo argentino apresentou, formalmente, sua intenção de avançar ainda mais neste terreno, anunciando programas que visam a inserção laboral, como o “111 mil programadores”3. Essas tentativas, embora meritórias, não satisfazem as necessidades reais e profundas da sociedade e mostram que há muito para ser considerado, lugares para penetrar (por exemplo, as iniciativas acima referidas não conseguiram permear as paredes das prisões), e mais a ser feito. Há mesmo quem ponha em dúvida se a brecha digital é uma área de intervenção política, ou não, e, se for, quais são as medidas apropriadas a tomar. Diante disso, se reafirma que o acesso às tecnologias é assumido, como diz Foster (2000), como “um direito civil capital”, e, portanto, não há dúvida de que a sociedade e os políticos devem se esforçar para ampliá-lo. O essencial da questão é o bom equilíbrio e a sensatez, não só do setor privado, mas também do público (já que no sucesso de sua política reside, em parte, a solução do problema, mas também seu agravamento), ao qual deve ser acrescentado o treinamento dos profissionais em termos de conteúdos teóricos relacionados com as TIC, que contemplem metodologias e estratégias de intervenção para uma verdadeira e-inclusão.

4_REFLEXÕES FINAIS A brecha digital é alimentada e fundida com as lacunas profundas que resultam do progresso desigual e insere-se em um contexto que não mostra muita preocupação com a redistribuição social. No entanto, o promissor horizonte da sociedade da informação

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levanta um certo otimismo ancorado nas potencialidades do intercâmbio equilibrado e razoável da informação, mas sobretudo do conhecimento, e na ideia de que a tecnologia é um propulsor do desenvolvimento. Nas palavras de Tejo Delarbre (2001), a famosa sociedade da informação é, portanto, realidade e possibilidade. Essa última entendida aqui como possibilidade de identificar e defender o conhecimento como um bem social indispensável, bem como a possibilidade de promover boas práticas que brotem do seio de uma cidadania ativa e comprometida para se transmutar em políticas públicas positivas e de longo alcance, que encarem a brecha de uma forma abrangente, considerando especialmente o papel da alfabetização digital bem compreendida. Naturalmente, tudo isso será viável se assimilarmos que a transformação, que implica a diminuição das distâncias da brecha, demanda proporcionalmente uma concepção das relações baseadas na cooperação, no respeito e na equidade; retroalimentação que irradia efeitos benéficos e invade o núcleo das disparidades sociais. Da sua transversalidade, as TIC, para além dos perfis da população excluída (e apesar das críticas que são concebidas e da consequente apreensão que geram), contribuem e contribuirão com soluções válidas e vantajosas. Precisamente sobre o assunto que este texto abrange, pode-se ver como as TIC poderiam contribuir claramente para a inclusão dos grupos mais desfavorecidos, operando a partir do relacional e do laboral, tornandose um meio para alcançar certos objetivos adaptativos, educativos e ressocializantes. Igualmente é adicionado o conceito de alfabetização digital, que é revolucionário na medida em que aponta para um treinamento que supera as meras competências instrumentais; no caso específico do coletivo que sofre ou tem sofrido O PROMISSOR uma pena privativa da liberdade, procura promover a HORIZONTE DA aquisição de habilidades que estejam ligadas à busca SOCIEDADE DA da autonomia, da autocrítica e da conscientização INFORMAÇÃO de responsabilidade social individual.

LEVANTA UM CERTO OTIMISMO ANCORADO NAS POTENCIALIDADES DO INTERCÂMBIO EQUILIBRADO E RAZOÁVEL DA INFORMAÇÃO, MAS SOBRETUDO DO CONHECIMENTO, E NA IDEIA DE QUE A TECNOLOGIA É UM PROPULSOR DO DESENVOLVIMENTO

Apenas com uma apropriação adequada das TIC é que isso será viável, objetivo que será alcançado se existirem recursos humanos e materiais sólidos combinados com um direcionamento correto do conhecimento e das formas que se empreguem em sua utilização. Embora as peculiaridades do contexto de reclusão estejam necessariamente presentes, para se alcançar os objetivos propostos deve-se tentar penetrar no espaço de trabalho, abordar os assuntos e, tanto quanto possível, as adversidades. Revela-se a insuficiência dos perfis puramente técnicos para esta tarefa, sendo aconselhável dar um passo em direção a um perfil de alfabetizador digital social, que assuma este desafio também a partir de uma dimensão ética, pedagógica e reconhecendo

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suas implicações políticas. Este desafio exige o aprofundamento da concepção e avaliação das metodologias aplicadas, em uma perspectiva que acolha o poder transformador destas iniciativas. Por um lado, elas abrem as portas que conduzem à realidade de uma vida livre e integrada, o que é credível se pensarmos sobre os benefícios da utilização, geração e transmissão crítica da informação compartilhada através das TIC. Por outro lado, também fecham as portas que levam à reincidência. Atualmente, se considerarmos o quadro geral, do qual fazem parte os problemas de exclusão do referido grupo, a alternativa está entre formar uma sociedade de usuários da tecnologia ou uma sociedade que incorpore uma nova forma de conceber, criar e usar esse conhecimento; que se concentre na colaboração e nos processos participativos, na qual, entre outras coisas, se anteponha, ao falar sobre acessibilidade, a sustentabilidade, o uso significativo, a apropriação social, o empoderamento e a inovação social. Propor, sem mais nada, o acesso às TIC, ignorando as necessárias conversações interdisciplinares sobre a finalidade de suas utilizações, dificilmente leva à solução da brecha digital que retroalimenta as lacunas sociais. Daí o fracasso e a ineficácia de muitas das iniciativas estatais, incluindo as relacionadas com a questão penal, que mostram que a lacuna social, como condicionante da brecha digital e vice-versa, responde a um modelo social e político cheio de decisões tomadas a partir de uma abordagem errônea e desprovido de uma participação multissetorial real e plural. Apenas democratizando o conhecimento poderemos enfrentar esta situação, permitindo-nos, assim, promover um desenvolvimento sustentável em educação, integração, igualdade de oportunidades, segurança e justiça. Artigo originalmente escrito em espanhol

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GEORGINA A. GUERCIO Bolsista de pesquisa e professora universitária adjunta. Colaboradora no Programa de Educação Universitária em Contexto de Encarceramento da Universidade Nacional de Cuyo.

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POLÍTICAS PÚBLICAS TIC PARA A GERAÇÃO DE CAPACIDADES DIGITAIS EM JOVENS A PARTIR DA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS Engenheira de Telecomunicações, especialista em Direito de Telecomunicações e candidata a Mestrado em Desenvolvimento Humano, Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais [email protected] Colômbia

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_TEMÁTICA Inclusão digital

_RESUMO O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o papel que as políticas públicas TIC têm promovendo a inclusão e a apropriação digital para melhorar a vida dos jovens. Toma como ponto de referência para a análise alguns conceitos sobre políticas públicas e o foco no desenvolvimento humano proposto pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A partir disso, evidencia o desenvolvimento de capacidades digitais para os jovens que interagem diariamente com as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), até convertê-los em agentes de mudança em suas comunidades. Palavras chave: inclusão e apropriação digital; capacidades digitais; políticas públicas

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1_DEFINIÇÕES 1.1_POLÍTICAS PÚBLICAS Definir as políticas públicas não é uma tarefa simples, variando de acordo com o momento histórico, foco e propósitos. No entanto, é importante mencionar alguns autores com objetivo de entender como as decisões governamentais impactam na vida dos cidadãos, sendo essas um “curso de atividade ou inatividade governamental em resposta a problemas públicos” (Kraft, & Furlong, 2007, tradução nossa), a O PARADIGMA DO partir das quais podem se resolver problemas sociais, DESENVOLVIMENTO econômicos, participativos, políticos etc. Planificada e HUMANO FOCADO implementada pelas instituições que fazem parte do NOS JOVENS Estado, “a política pública se apresenta sob a forma de um programa de ação, próprio de uma ou várias ESBOÇA A autoridades públicas ou governamentais” (Thoenig, NECESSIDADE 1999, tradução nossa). DE GARANTIR Seguindo essa ideia – e para a análise abordada neste artigo –, as políticas públicas são o roteiro que as entidades do Estado desenvolvem, planificam, implementam e gerenciam para resolver problemas de interesse público dos cidadãos, sendo um “processo integrador de decisões, atividades, inatividades acordos e instrumentos” (Gavilanes, 2009, tradução nossa).

OPORTUNIDADES DE DESENVOLVIMENTO PARA A GERAÇÃO E FORTALECIMENTO DE SUAS CAPACIDADES

1.2_DESENVOLVIMENTO HUMANO O Desenvolvimento Humano é um paradigma do desenvolvimento no qual as pessoas têm a possibilidade de desenvolver seu máximo potencial e ter a vida que desejam. A definição do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD] (1990, tradução nossa) menciona que é um processo no qual se ampliam as oportunidades do ser humano […] os três mais essenciais são desfrutar de uma vida longa e saudável, adquirir conhecimentos, e ter acesso aos recursos necessários para conseguir um nível de vida decente.

Contudo, o Desenvolvimento Humano expõe que existem outras oportunidades às quais devemos dar acesso a todas as pessoas – e, em nosso caso, aos jovens. Essas oportunidades são “a liberdade política, econômica e social […] ser criativo e produtivo” (ibid., tradução nossa). O objetivo de garantir que todos tenhamos as mesmas oportunidades é desenvolver capacidades. Para o PNUD, o desenvolvimento das capacidades é “um processo mediante o qual as pessoas, organizações e sociedades obtêm, fortalecem e mantêm

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as competências necessárias para estabelecer e alcançar seus próprios objetivos de desenvolvimento a longo prazo” (PNUD, 2008, tradução nossa). Para os jovens, portanto, o desenvolvimento de capacidades é um processo determinante para a tomada de decisões, por exemplo, em relação à vida que desejam levar, a participação e organização democrática, o melhoramento de suas condições de vida, a geração de emprego, entre outras questões. Em resumo, o paradigma do desenvolvimento humano focado nos jovens esboça a necessidade de garantir oportunidades de desenvolvimento para a geração e fortalecimento de suas capacidades, com o objetivo de permitir que levem a vida que desejam, tomando como ponto de referência o ser humano e não a expansão da riqueza e os lucros.

1.3_BRECHA DIGITAL A brecha digital terá diferentes definições de acordo com o espaço ou foco. Para começar, devemos mencionar que ela é a diferença de acesso às TIC existente entre pessoas, países, homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, existindo como consequência da desigualdade socioeconômica e dos problemas de distribuição de renda, investimento em infraestrutura e nível educacional da região (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe [CEPAL], 2002) A definição da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) corresponde à divisão entre indivíduos, lugares, áreas econômicas e geográficas com diferentes níveis socioeconômicos com relação tanto às suas oportunidades de acesso às tecnologias da informação e comunicação quanto ao uso da Internet para uma ampla variedade de atividades. (OCDE, 2001:5, tradução nossa).

Ainda que este não seja o único foco que nos interessa incorporar à análise, é importante citar outros conceitos relacionados com a sociedade da informação quando nos referimos à “brecha que existe entre indivíduos e sociedades que têm os recursos para participar na era da informação” (Chen, & Wellman, 2003, tradução nossa).

1.4_INCLUSÃO DIGITAL Como dito anteriormente, a brecha digital é a diferença de acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) existente entre as pessoas. Quando elas têm acesso às TIC, iniciam um processo de inclusão digital, que é como “um conjunto de políticas públicas relacionadas com a construção, administração, expansão, oferecimento de conteúdos e desenvolvimento de capacidades locais nas redes digitais” (Robinson, 2005, tradução nossa). Essa inclusão está relacionada com o crescimento pessoal quando oferece às pessoas uma perspectiva mais crítica e empreendedora para o próprio desenvolvimento e das comunidades nas quais habitam (Duarte, & Pires, 2011).

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2_OS JOVENS E AS TIC, SITUAÇÃO ATUAL 2.1_A BRECHA DIGITAL EM NÚMEROS Segundo a mais recente medição do desenvolvimento das TIC da União Internacional das Telecomunicações (UIT, 2016), no mundo há 3 bilhões e 200 milhões de pessoas (43% da população) conectadas à Internet, o que significa que mais da metade da população ainda não tem acesso à rede. Tal situação varia de acordo com o país ou a região geográfica, observando-se que a disparidade entre países ricos e pobres se reflete no crescimento de suas infraestruturas tecnológicas – por conseguinte, a Coreia do Sul é o país com maior número de conexões, enquanto que a República de Chade (na África central) é o país com menor desenvolvimento tecnológico, ocupando a posição número 167. A respeito das diferenças de acesso à Internet entre os países ricos e pobres, expõese que o preço dos serviços de telecomunicações tem papel fundamental para reduzir a brecha digital. Mesmo que os preços dos serviços de banda larga móveis tenham caído entre 20 e 30% durante 2015, as economias em desenvolvimento apresentam problemas dado que seus serviços móveis representam mais de 20% do Produto Nacional Bruto (PNB) per capita. Na América a brecha digital apresenta-se em suas diferentes economias, sendo EUA e Canadá os países com maior Índice de Desenvolvimento das Telecomunicações (IDT) e Nicarágua e Cuba os dois últimos, respectivamente. O preço que as pessoas devem pagar para ter acesso aos serviços de telecomunicações é um fator determinante para reduzir a brecha digital. Segundo o ranking do IDT da União Internacional de Telecomunicações, a Colômbia ocupa o posto 75 a nível mundial e 14 na regional, melhorando sua posição em relação à classificação de 2010, mas sem superar países como o Uruguai, que está na posição número 4. Ao comparar a porcentagem de renda mensal requerido pelos serviços TIC na Colômbia e Uruguai se confirma que, com preços menores, há menor a brecha digital. Na Colômbia, por exemplo, para que se tenha acesso a serviços TIC fixo e móvel1 em um domicílio deve-se investir 34,50% dos ganhos mensais, comparado com 24,85% no Uruguai (Katz, 2015). Adicionalmente, os serviços móveis se encarecem por causa dos impostos, afetando o acesso aos serviços TIC móveis para pessoas que se encontram na base da pirâmide, incluindo os jovens. Segundo Katz (2015, tradução nossa), isso “serve para ressaltar a importância que poderia ter para a universalização da banda larga a eliminação de encargos fiscais” Considerando, ainda, as cifras do “Mercado de Trabalho da Juventude” do Departamento Nacional de Estatística da Colômbia (DANE, 2016)2, que afirma que durante 2016 a taxa de desemprego dos jovens no país foi de 15,3%, pode-se inferir que os preços altos e a carga fiscal dos planos de Internet móvel e fixa são fortes barreiras de acesso dos jovens às TIC. 1 Inclui: dois smartphones com plano de dados e voz mais econômico, TV paga e conexão banda larga fixa. 2 O relatório traz informações com os indicadores e o comportamento do mercado de trabalho dos jovens colombianos de 14 a 28 anos.

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2.2_ACESSO DOS JOVENS À INTERNET Dando continuidade aos dados expostos no parágrafo anterior, tomo como exemplo os resultados da pesquisa “Latinobarómetro 2013”, da CEPAL (2013), que mostra que 34,6% dos jovens da região acessam a Internet todos os dias, enquanto que 26,3% o fazem ocasionalmente. Ou seja, aproximadamente 60% dos jovens entre 16 e 29 anos tinham acesso à tecnologia, superando em alguma medida a brecha digital. Porém, a distribuição de acesso às TIC dos jovens varia de acordo com a sua condição socioeconômica: “a metade dos jovens de classe alta (48%) da região usa Internet todos os dias e 28% o fazem de forma ocasional […], pouco mais de um quarto dos jovens de classe média (27%) usa Internet todos os dias e 28% ocasionalmente” (Sunkel, 2015, tradução nossa). Os números são altos em comparação com o acesso à Internet dos jovens dos setores mais pobres, dado que só “13% usam Internet todos os dias e 18% o fazem ocasionalmente” (ibid.).

3_POLÍTICAS PÚBLICAS TIC E JUVENTUDE Cabe recordar que, a partir da década de noventa, com a aparição e posterior massificação da Internet, os governos desenvolveram políticas públicas e programas que permitiram reduzir a brecha digital. Isso porque a brecha e a exclusão digital são heranças da desigualdade socioeconômica, da disparidade na distribuição de renda e do baixo nível educacional que têm marcado a região latino-americana (CEPAL, 2002). Por este motivo, não é de estranhar que tais situações afetem os jovens e limitem suas possibilidades de desenvolvimento e incorporação na sociedade da informação. As políticas públicas têm sido importantes esforços com objetivo de melhorar as taxas de acesso das pessoas à Internet, supondo que, ao alcançar o acesso universal, será possível melhorar os índices de crescimento econômico de seus respectivos países. Tal ideia se sustenta no comportamento que tiveram as economias dos países que se esforçaram em diminuir a brecha digital. Sobre isso, o Banco Mundial destaca que, em 2009, a multinacional Google gerou 19.000 empregos nos 20 países onde o principal buscador da Internet está presente, assim como o buscador mais visitado na China (Baidu.com) criou 6.000 empregos (Banco Mundial, 2010). Por sua vez, na América Latina, a redução da brecha digital apoiou a modernização de processos produtivos, industriais e comerciais: a geração de um emprego no setor

A RESPEITO DAS DIFERENÇAS DE ACESSO À INTERNET ENTRE OS PAÍSES RICOS E POBRES, EXPÕE-SE QUE O PREÇO DOS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES TEM PAPEL FUNDAMENTAL PARA REDUZIR A BRECHA DIGITAL.

TIC apoia a criação de 2,4 empregos em outras atividades econômicas. O Chile demonstrou que a redução de 10 pontos na brecha digital ajudou a diminuir em 2% a taxa de desemprego (Katz, 2009).

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É inegável que as TIC mudaram a maneira com que nos relacionamos, e seu uso reflete “as iniquidades e injustiças das sociedades nas quais se encontram inseridas”. Deve-se reconhecer que as TIC não são negativas ou positivas para a sociedade, mas sim “tomam a forma e direção da sociedade na qual são introduzidas”, dando forma às relações sociais (Gómez apud Kuttan, & Peters, 2003). A oportunidade que os jovens têm para acessar a Internet não depende apenas da desigualdade social, pobreza e nível educativo. O meio pelo qual eles iniciam o uso das TIC impactará a forma como se apropriam da tecnologia e desenvolverão com ela capacidades de participar da sociedade da informação. Por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) afirma que “as desigualdades, a estigmatização e as discriminações” são produtos das desigualdades de gênero, etnia, idioma, deficiência e lugar de residência. Elas afetam os processos de desenvolvimento e devem ser trabalhadas com cuidado nos entornos virtuais para “não contribuir para acentuar as brechas, pelo contrário, devem apoiar sua eliminação” (UNESCO, 2010, tradução nossa). Em suma, a redução da (primeira) brecha digital nos jovens segue sendo uma tarefa que exige esforços de muitos setores e agentes da sociedade. Começa pelos governos e as políticas públicas que estes desenham para garantir o acesso universal às TICs, assim como os operadores de telecomunicações (públicos e privados), empresários, escolas, universidades e os próprios jovens. Também é necessário desenvolver políticas públicas para a inclusão digital ou redução da segunda brecha, “que diz respeito às diferenças existentes entre grupos segundo suas capacidades ou habilidades para utilizar as tecnologias de forma eficaz […] onde se joga a possibilidade de que a juventude aproveite as oportunidades que as novas tecnologias oferecem” (Sunkel, 2015, tradução nossa). Incorporando à nossa análise a perspectiva do desenvolvimento humano – que dá às pessoas (e, em nosso caso, aos jovens) a possibilidade de levar a vida que desejam, com o fortalecimento de capacidades como “processo através do qual as pessoas, organizações e sociedades obtêm, fortalecem e mantêm as competências necessárias para estabelecer e alcançar seus próprios objetivos de desenvolvimento ao longo do tempo” (PNUD, 2008, p. 4, tradução nossa) – cabe revisar como as políticas públicas TIC realmente fortalecem as capacidades digitais dos jovens ou reduzem a segunda brecha digital, não só adquirindo habilidades técnicas e operativas, mas também habilidades informáticas que lhes ajudem a participar ativamente na construção de seu projeto de vida. Nas políticas públicas, a inclusão digital deveria ser encarada com o foco da Associação para o Progresso das Comunicações (APC) que, em sua carta sobre Direitos na Internet, sustenta que a Internet [...] pode ajudar a gerar sociedades mais igualitárias. Pode servir para fortalecer os serviços de educação e saúde, o desenvolvimento econômico local, a participação pública, o acesso à informação, a boa governança e a erradicação da pobreza. [...] As organizações da sociedade civil (OSC), os governos e os entes reguladores deveriam ser conscientes do potencial da internet para reforçar as desigualdades existentes. (APC, 2006).

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As políticas sobre inclusão digital deveriam gerar capacidades nos jovens para lhes ajudar a superar situações de vulnerabilidade, exclusão, pobreza, bullying etc., além de construir o caminho para que eles entrem na sociedade da informação e conhecimento. Em consonância a isso, a UNESCO, em seu relatório “Rumo às Sociedades do Conhecimento” (Towards Knowledge Societies), menciona que a redução da brecha digital não será suficiente para diminuir as brechas do conhecimento, sendo um assunto mais complexo que o desenvolvimento da infraestrutura tecnológica (UNESCO, 2005)3. Como mecanismo para facilitar a redução da AS POLÍTICAS SOBRE pobreza, o ingresso na sociedade da informação INCLUSÃO DIGITAL e, sobretudo, a mobilidade socioeconômica DEVERIAM GERAR daqueles que aprendem a fazer um uso crítico CAPACIDADES NOS das TICs, as discussões sobre a redução da JOVENS PARA LHES brecha digital devem ser mais profundas AJUDAR A SUPERAR a respeito “dos usos e seus impactos, […] SITUAÇÕES DE contar com a alfabetização digital básica para conseguir melhores processos de aprendizagem, VULNERABILIDADE, […] ter mais ferramentas no âmbito do trabalho EXCLUSÃO, POBREZA, e também exercer nossa cidadania” (UNESCO, BULLYING ETC. 2013, tradução nossa).

4_CONCLUSÕES A brecha, inclusão e apropriação digital são etapas consecutivas e diferenciadas do processo que busca introduzir as pessoas na sociedade da informação. Esses processos são aplicados na sociedade através das políticas públicas, como forma de resolver problemas como a exclusão, neste caso digital. Os jovens, como cidadãos, devem desfrutar do direito de entrar na sociedade da informação e conhecimento, e as políticas públicas devem garantir o acesso daqueles em condições de vulnerabilidade e pobreza com relação às TIC, reduzindo os preços dos serviços de Internet e os dispositivos de navegação, reduzindo os impostos progressivamente de maneira geral ou setorizada. Posteriormente, as políticas TIC devem garantir a geração de capacidades por meio da alfabetização digital. Para que os jovens superem os problemas sociais de suas comunidades, não é suficiente entregar dispositivos móveis com conexão à Internet; isso por si só não resolverá os problemas de desigualdade, exclusão, analfabetismo, desemprego, participação política, entre outros, que os jovens enfrentam diariamente. Só a geração de capacidades digitais na etapa da inclusão digital poderia transformar os dispositivos em ferramentas para começar a mudar as situações mencionadas.

3 O texto original encontra-se em inglês “Closing the digital divide will not suffice to close the knowledge divide, for access to useful, relevant knowledge is more than simply a matter of infrastructure – it depends on training, cognitive skills and regulatory frameworks geared towards access to contents”.

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INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

A apropriação digital será a etapa em que os jovens deverão fazer o uso crítico das TIC, desenvolvendo capacidades reflexivas sobre seu entorno, as necessidades sociais de suas comunidades, seu papel na democracia participativa, a organização e classificação da informação para a geração de conhecimento, convertendo-se em agentes de mudança. O principal objetivo das políticas TIC para os jovens é proporcionar a formação de agentes de mudança. Finalmente, em cada uma das etapas mencionadas e para a formulação e desenvolvimento das políticas públicas para a TIC para os jovens, é imprescindível a participação ativa deles. Seria contraditório formular uma política focada na juventude sem conhecer em primeira mão suas necessidades, problemas e perspectivas a respeito do uso da tecnologia. Para isso é urgente um diagnóstico sobre as políticas públicas TIC existentes, quais problemáticas juvenis atendem, que instituições do Estado estão encarregadas delas, os avanços alcançados, a participação civil em seu desenvolvimento e implementação etc. Da mesma maneira, não deixa de ser importante e necessário que os jovens comecem a organizar-se civilmente para participar ativamente nos processos democráticos, com perspectivas que respeitem a diversidade cultural, social, econômica, política, de gênero, por idades e níveis educacionais. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Associação para o Progresso das Comunicações (Asociación para el Progreso de las Comunicaciones) (2006). Carta de APC sobre Derechos en Internet. Recuperado de Banco Mundial (2010). Building Broadband: Strategies and Policies for the Developing World. Washington D.C. Recuperado de Chen, W., & Wellman, B. (2003). Charting and bridging digital divides: comparing socio-economic, gender, life stage, and rural-urban Internet access and use in eight countries. Toronto: Universidade de Toronto. Recuperado de Comissão Econômica para a América e o Caribe (2002). Los Caminos Hacia una Sociedad de la Información en América Latina y el Caribe. Libros de la CEPAL, 72. Punta Cana. Recuperado de Comissão Econômica para a América e o Caribe (2005). Oportunidades digitales, equidad y pobreza en América Latina: ¿Qué podemos aprender de la evidencia empírica? Estudios Estadísticos y Prospectivos. Santiago de Chile. Recuperado de

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INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

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MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS Engenheira de Telecomunicações, especialista em Direito de Telecomunicações e candidata a Mestrado em Desenvolvimento Humano, Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais

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CIBERSEGURANÇA

CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

NUANCES DA PRIVACIDADE NA ERA DIGITAL ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) [email protected] Brasil

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CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

_TEMÁTICA Cibersegurança Direitos Digitais Problemas Emergentes da Internet

_RESUMO Na atual era digital, é necessária uma releitura dos direitos fundamentais, contextualizando-os no ambiente virtual. Neste artigo, analisa-se o direito à privacidade, previsto na Constituição Federal brasileira, e que revela outras nuances no ambiente digital. Apesar da previsão do Código Civil que impede limitações voluntárias aos direitos da personalidade, demonstra-se uma forma possível de se exercer o direito à privacidade, por meio do compartilhamento de aspectos da vida privada em redes sociais. O estudo dedica-se, ainda, às particularidades das pessoas célebres, que podem usar as redes sociais para retomar o controle sobre a narrativa de sua própria história. Palavras-chave: Internet; privacidade; redes sociais

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Atualmente, vive-se em uma era digital, calcada na Internet, que instrumentaliza a conexão instantânea entre pessoas e dados, estejam eles fisicamente próximos ou distantes. Com a Internet, verifica-se a intensificação do fluxo de informações, permanentemente, o que redefiniu a forma como a sociedade se comunica, seja em seus núcleos mais restritos, seja com o público mais amplo possível. Por consequência, a revolução provocada pela Internet acaba por tocar em direitos fundamentais dos seres humanos, como a honra, a imagem e, especialmente, a privacidade. Afinal, como afirma Stefano Rodotà (2013, p. 11), “[...] hoje, o simples fato de ‘estar em sociedade’ não pode mais ser separado de um ininterrupto fluxo de informações que da pessoa se difundem em uma multiplicidade de direções”, o que permite aos receptores das informações construírem suas “verdades” acerca do objeto emissor de dados. Diante disso, é preciso repensar os direitos fundamentais, contextualizados à era digital, a qual alterou sensivelmente as relações sociais, que passaram a contar com o elemento Internet, com consequências nos ambientes físico e virtual. Em nosso ordenamento jurídico, a Constituição Federal da República do Brasil (1988) contém, em seu rol de direitos fundamentais, a seguinte previsão, no artigo 5o, inciso X: “[...] são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Apesar de não haver menção expressa à palavra “privacidade”, o texto garantiu proteção constitucional à intimidade e à vida privada das pessoas. Segundo Marcel Leonardi (2012, p. 83), essa opção legislativa: [...] tem como finalidade impedir que divisões conceituais formuladas pela doutrina pudessem fazer escapar do âmbito da proteção constitucional “fração ou terreno demarcado da vida das pessoas”, possibilitando assim a mais ampla tutela, independentemente da distinção entre os conceitos de intimidade e vida privada.

Com isso, reafirma-se a proteção constitucional de todos os aspectos da privacidade do ser humano, tanto no tocante àquilo que traz de mais íntimo em si quanto naquilo que mantém em sua vida privada, compartilhando com seus diversos núcleos sociais, dos mais restritos aos mais amplos. Diante disso, seguindo na esteira do pensamento de José Afonso da Silva (2005, p. 206), “[...] preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou”. Além da Constituição Federal, o legislador ordinário também se dedicou à proteção da privacidade, consagrando-a como direito da personalidade, no Código Civil. Se o artigo 21 reafirma a inviolabilidade da vida privada, como assegurado pela Constituição, o artigo 11 prevê que, “[...] com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (Lei no 10.406, 2002).

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A intenção da norma é proteger o próprio titular do direito, impedindo-o de renunciar a esses direitos fundamentais, aceitar restrições inadmissíveis ou de, voluntariamente, limitar seus direitos de personalidade. Para Schreiber (2013, p. 27): Exagera, contudo, o art. 11 quando veda toda e qualquer “limitação voluntária” ao exercício dos direitos da personalidade. A vedação lançaria na ilicitude não só os reality shows, mas também atos bem mais prosaicos como [...] expor informações pessoais em redes sociais, como o Twitter e o Orkut.

Em uma tentativa de esclarecer a norma em comento, o Enunciado no 4 da I Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal (2002), dispõe que “[...] o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. Sob essa perspectiva, o próprio titular pode restringir o exercício de seu direito da personalidade, de forma delimitada e não permanente, em seu próprio interesse. Assim, seria aceitável limitar sua privacidade, por exemplo, no uso de redes sociais. De fato, a exposição em redes sociais, como o Facebook e o Instagram, mais populares atualmente, pode parecer, à primeira vista, o oposto do que se visa proteger por meio da garantia constitucional assegurada à privacidade. Todavia, devemos compreender que uma das nuances do direito à privacidade na era digital é permitir que a pessoa tenha o controle sobre a porção de sua vida privada que compartilha na Internet. Por um lado, é preciso reconhecer uma tendência, retratada nas seguintes palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2011,

É PRECISO REPENSAR OS DIREITOS FUNDAMENTAIS, CONTEXTUALIZADOS À ERA DIGITAL, A QUAL ALTEROU SENSIVELMENTE AS RELAÇÕES SOCIAIS

p. 41), falecido em 2017: Nos nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade que nos assusta, mas seu oposto: fechar todas as saídas do mundo privado, fazer dele uma prisão [...]. “Ser uma celebridade” (quer dizer, estar constantemente exposto aos olhos do público, sem ter necessidade nem direito ao sigilo privado) é hoje o modelo de sucesso mais difundido e mais popular.

Ocorre que, mesmo diante da exposição nas redes virtuais, não se pode cogitar uma renúncia geral da privacidade. É preciso ter sempre em mente que se trata de uma disposição voluntária do indivíduo, que escolhe aspectos da sua vida particular para compartilhar – em pequena escala, com seus amigos mais próximos, ou em larga escala, com um público irrestrito. Contudo, a pessoa deve ter o controle sobre o que compartilha e com quem compartilha.

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Na sociedade atual, com ferramentas como o Instagram, qualquer pessoa pode ser alçada à condição de “celebridade”, no sentido já mencionado por Bauman. Todavia, ressalva-se que todas as pessoas, até as celebridades – erroneamente denominadas “pessoas públicas”, como salienta Anderson Schreiber (2013, p. 44) –, têm direito à privacidade: Se a profissão ou o sucesso de uma pessoa a expõe ao interesse do público, o direito não deve reduzir, mas assegurar, com redobrada atenção, a tutela da sua privacidade. [...] o fato de certa pessoa ser célebre – equivocadamente chamada de “pessoa pública” – não pode servir de argumento a legitimar invasões à sua privacidade, aí abrangidos não apenas o espaço doméstico de desenvolvimento da sua intimidade, mas também os mais variados aspectos do seu cotidiano e de sua vida privada.

No caso das pessoas célebres, as redes sociais tornaram-se um instrumento de comunicação direto com seu público – aqueles que acompanham sua trajetória. Com isso, revela-se a possibilidade de as celebridades retomarem o controle sobre a narrativa de sua história. Afinal, não se pode negar: [...] a crescente voracidade de fotógrafos e cinegrafistas – reflexo, obviamente, da ânsia do próprio público – por imagens que exponham a intimidade de pessoas célebres [...] Em todo o mundo, revistas especializadas revelam bem mais que as “caras” de pessoas famosas, alimentando o progressivo interesse de leitores pelo cotidiano das celebridades. (Schereiber, 2013, p. 130).

Diante do receio de invasões à sua privacidade, nada mais justo que a própria pessoa célebre tomar a iniciativa de compartilhar, nas redes sociais ligadas à Internet, os aspectos de sua vida privada que selecionar. Desse modo, assegura-se, pelo menos, o prévio controle acerca do conteúdo que será publicado, assim como da forma pela qual será recepcionado pelo público. Um exemplo notório e recente foi o anúncio feito pela cantora norte-americana Beyoncé Knowles acerca de sua segunda gravidez, de gêmeos. A artista optou por revelar a gestação, com exclusividade, por meio de sua conta no Instagram. A imagem1, publicada em 1o de fevereiro de 2017, tornou-se a foto com mais curtidas em toda a história da plataforma, ultrapassando a marca de 10,9 milhões de likes (curtidas). Essas estatísticas corroboram a lição de Anderson Schreiber acerca do interesse do público pela vida privada de celebridades, como cantores, atores, políticos, atletas e outras posições de destaque. Nos últimos anos, várias dessas pessoas famosas optaram por abrir mão de parcela de sua privacidade e divulgar fatores de suas vidas privadas, a fim de evitar perseguições por agentes da imprensa, obstinados em extrair tais informações. Já que sua vida privada será levada aos olhos do público, que seja, pelo menos, moldada pelo titular do direito. 1 Disponível em: . Acesso em: 1o maio 2017.

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CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

UMA DAS NUANCES DO DIREITO À PRIVACIDADE NA ERA DIGITAL É PERMITIR QUE A PESSOA TENHA O CONTROLE SOBRE A PORÇÃO DE SUA VIDA PRIVADA QUE COMPARTILHA NA INTERNET

Conclui-se, portanto, que a utilização das redes sociais, com a exposição de diversos aspectos da vida privada de um indivíduo, não representa uma renúncia ao seu direito à privacidade. Pelo contrário, devemos compreender tais condutas como o efetivo exercício do direito, garantindo a privacidade da pessoa, que passa a controlar sua narrativa, compartilhando determinados ângulos de sua vida que desejar e, em contrapartida, preservando dos olhos do público outros aspectos de sua intimidade. Como afirma Marcel Leonardi (2012, p. 29), “[...] estamos vivendo um momento de transição. A quase totalidade dos operadores do Direito ainda não está suficientemente familiarizada com a Internet [...]”. Assim, ainda há muito que se avançar na compreensão dos direitos fundamentais clássicos, quando insertos no ambiente virtual.

Aliada à perspectiva jurídica, é necessária uma abordagem sociocultural, de modo que as pessoas compreendam que “[...] quem possui direitos deve também possuir deveres. Tal ideia se baseia na reciprocidade, como é o caso do indivíduo que tem a sua intimidade preservada, nas redes sociais, mas igualmente respeita a intimidade de outrem no mesmo universo virtual” (Duque, Pedra, 2013, p. 68). Dessa maneira, o ambiente virtual poderá se tornar mais civilizado e a Internet será um recurso ainda mais benéfico, possibilitando o compartilhamento e o acesso a informações de forma mais salutar.

_REFERÊNCIAS Bauman, Z. (2011). 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Recuperado de Conselho da Justiça Federal (2002). Enunciados aprovados na I Jornada de Direito Civil. Recuperado de Duque, B. L., & Pedra, A. S. (2013). A harmonização entre os deveres fundamentais de solidariedade e o espaço da liberdade dos particulares no exercício da autonomia privada. In: Duque, B. L. et al. (Orgs.) (2013). Constituição de 1988: 25 anos de valores e transições. Vitória: Cognorama.

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Lei no 10.406 (2002, 10 de janeiro). Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Recuperado de Leonardi, M. (2012). Tutela e privacidade na Internet. São Paulo: Saraiva. Rodota, S. (2013). O direito à verdade. Civilistica.com, 3. Recuperado de Schreiber, A. (2013). Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas. Silva, J. A. da. (2005). Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros.

ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU Pós-graduando em Linguagem, Tecnologia e Ensino, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e em Compliance, Lei Anticorrupção e Controle da Administração Pública pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Bacharel em Direito pela FDV. Membro do Laboratório de Ensino e Aprendizagem da FDV (LEADFDV). Tem interesse em Direito Civil, privacidade e Internet. Foi monitor das disciplinas “Direito das Sucessões” (2015), “Constitucionalização do Direito de Família” (2016) e “Direito Ambiental” (2017) na FDV. Membro da equipe representante do Brasil no National Geographic World Championship, realizado na Cidade do México, México, em 2009.

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CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

PESSOA ONLINE, PRIVACIDADE E PROTEÇÃO DE DADOS FRENTE AOS DIREITOS HUMANOS DE QUARTA GERAÇÃO: UM DESAFIO PARA O SISTEMA NACIONAL DE TRANSPARÊNCIA NO MÉXICO NATALIA MENDOZA SERVÍN Assessora jurídica em matéria de proteção de dados pessoais na “Coordenação de Transparência e Arquivo Geral” e colaboradora da associação civil Artigo 12. [email protected] México

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_TEMÁTICA Cibersegurança Direitos digitais Problemas emergentes da internet

_RESUMO O Sistema Nacional de Transparência no México é responsável por promover, entre outras, políticas sobre o direito à privacidade e proteção de dados pessoais no país. No entanto, faz falta que essas mesmas políticas contemplem os desafios que as tecnologias da informação colocam na mesa a respeito da ameaça que podem representar para as informações pessoais. Palavras chave: proteção de dados pessoais; privacidade; tecnologias da informação

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CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

“A liberdade se refere basicamente a decisões privadas que não afetam a ninguém... Por esse motivo, vemos no âmbito privado o espaço mais característico da liberdade. Definir uma atividade ou uma decisão como uma questão privada significa dizer que é livre no sentido moderno da palavra: não relacionado a qualquer tipo de controle público” Fernando Escalante Gonzalbo (tradução nossa)

1_A REFORMA CONSTITUCIONAL E O SISTEMA NACIONAL DE TRANSPARÊNCIA Em 7 de fevereiro de 2014, foi publicado no Diário Oficial da Federação1 reforma constitucional em matéria de transparência, idealizada como resposta à grave problemática da corrupção no país. Rompeu-se, então, com a política abrupta do passado, que estava muito distante dos mais altos padrões de transparência conhecidos a nível global e que trouxe consigo a falta de credibilidade da cidadania para o Estado. Com a reforma, muitos benefícios chegaram ao Estado mexicano. Podemos mencionar alguns exemplos, como a total autonomia dada ao Instituto Nacional de Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI), que também está facultado de mover ações de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte de Justiça da Nação, entre outras novas atribuições. Também foram criadas novas leis sobre transparência e proteção de dados (Romero, 2014). Essa e outras ações constituem o Sistema Nacional de Transparência Mexicana. Embora isso implique um desafio abismal e extremamente complexo para as autoridades do Estado, também é correto que seu projeto e implementação não representa desvantagens nem objeções. Pelo contrário, foi complementado e perfeitamente amalgamado com outros projetos nacionais, como o “México Conectado” (Secretaria de Comunicações e Transportes, 2017) e principalmente o “Dados Abertos” (Dados Abertos do Governo da República, 2017), que constitui o primeiro passo para um governo aberto e de transparência proativa e participativa. Não obstante, é importante indicar que um dos possíveis inconvenientes, ou melhor, um dos maiores desafios do Sistema Nacional de Transparência, é garantir a privacidade e proteção de dados pessoais diante da grande ameaça que poderiam chegar a representar as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) na matéria. Mas por que se fala de privacidade e proteção de dados pessoais se o sistema é sobre transparência? Acontece que o Sistema Nacional de Transparência também deve ser entendido como Sistema Nacional de Transparência, Acesso à Informação Pública e Proteção de Dados Pessoais2. 1 Decreto pelo qual se reformam e adicionam diversas disposições da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos em matéria de transparência (2014). 2 Além disso, seria necessário adicionar o assunto dos arquivos públicos, uma vez que o bom funcionamento desses permite tornar a transparência e o direito de acesso à informação uma realidade. Não obstante, o Estado mexicano possui um Sistema Nacional de Arquivos, supervisionado pelo Arquivo Geral da Nação, que se vincula a todo momento com o INAI.

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CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

É verdade que a reforma constitucional em questão deu particular ênfase à transparência e ao direito de acesso à informação. No entanto, o Sistema Nacional de Transparência também inclui todas as questões relacionadas a esses pontos, incluindo a privacidade e proteção de dados pessoais,3 razão pela qual este texto aborda os desafios que o projeto terá sobre privacidade frente às TIC.

2_DIREITO À PRIVACIDADE, À PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E AS TIC Uma vez que este artigo pretende identificar os desafios que existem entre o direito à privacidade e a proteção dos dados frente às TIC, não entraremos em detalhes na discussão entre a ponderação deste último ponto e o direito à informação. Entretanto, é importante reconhecer que as TIC constituem fatos de substancial alcance em muitas áreas da vida humana, incluindo aqueles relacionados ao direito de acesso à informação, prestação de contas e transparência, de tal forma que esses têm sido considerados direitos humanos de quarta geração (García Mexía, 2014). Contudo, seu uso arbitrário e a regulação normativa inadequada também implicam uma série de efeitos sérios sobre outros direitos que são objeto desta análise. O chamado big data4, a computação em nuvem5, a Internet das Coisas6, os dados abertos7 e as redes sociais8, entre outros, devem ser minuciosamente regulados pelas autoridades mexicanas para que seu uso não viole a privacidade da pessoa online em relação à sua abertura, especialmente porque o comércio de dados pessoais atualmente

3

Para mais informações, consulte:

4 De acordo com o Mckinsey Global Institute (2011 apud Joyanes, 2013), o big data é o conjunto de dados cujo tamanho está além das capacidades das ferramentas típicas de software de banco de dados para capturar, armazenar, gerenciar e analisar. 5 De acordo com o artigo 3º, seção VI, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Sujeitos Obrigados (2017), a computação em nuvem é o modelo de prestação externa de serviços de computação sob demanda, que envolve a provisão de infraestrutura, plataforma ou programa informático, distribuídos de forma flexível, através de procedimentos virtuais, em recursos compartilhados de forma dinâmica. 6 Cuauhtémoc Vélez Martínez (2015), do Instituto de Engenharia da Universidade Nacional Autônoma do México, considera que a Internet das Coisas é aquela que pretende que todos os artefatos, através do uso de sensores e rede de dados, possam se conectar, a qualquer momento, com outro dispositivo ou pessoa, tudo para manter um monitoramento e controle total dos processos que cada um desses artefatos executa. 7 De acordo com o artigo 3º, seção VI, do Decreto pelo qual se expede a Lei Geral sobre Transparência e Acesso à Informação Pública (2015), os dados abertos são dados digitais de caráter público que são acessíveis online e que podem ser usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer interessado. 8 Santamaría González (2008) ressalta que uma rede social é uma estrutura social formada por nós – geralmente indivíduos ou organizações – ligados por um ou mais tipos de interdependência, como valores, pontos de vista, ideias, troca financeira, amizade, parentesco, conflito, comércio, entre outros.

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RESOLUÇÃO DE CASOS DERIVADOS DAS TIC, É POSSÍVEL QUE AS LEIS NÃO CONTENHAM RESPOSTAS CONCRETAS

constitui um importante elemento de mercado para os setores dedicados a vários ramos de negociação, inclusive para as próprias autoridades do Estado9.

Como ponto de partida para o Sistema Nacional de Transparência no assunto, a Lei Federal de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Particulares (2010), a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Sujeitos Obrigados10 (2017), e as leis estaduais não fornecem mecanismos claros de proteção da privacidade e dados pessoais. Em muitas situações, parece que essas leis vem sendo ultrapassadas pelas TIC. Inclusive o único instrumento dessa natureza que foi expressamente contemplado na norma é a computação na nuvem11, deixando no limbo as ferramentas que as TIC oferecem e que podem ser altamente prejudiciais para a privacidade das pessoas já que não existe uma regulamentação legal adequada. No momento, a legislação mexicana sobre proteção de dados pessoais oferece o necessário para que alguém possa se defender contra intromissões à sua privacidade derivadas de ações offline e até mesmo algumas online. Porém, para a resolução de casos derivados das TIC, é possível que as leis não contenham respostas concretas e, portanto, sejam fundamentais as argumentações e interpretações dos titulares de órgãos garantidores a respeito das leis de proteção de dados. Estas deverão dar norte aos problemas que as TIC acarretam, desde que não introduzam figuras jurídicas que estejam à altura dos avanços tecnológicos e ao impacto que causam à privacidade.

3_CONCLUSÕES E PROPOSTAS PARA A PROTEÇÃO DE DADOS E PRIVACIDADE NO SISTEMA NACIONAL DE TRANSPARÊNCIA Como pôde ser visto, as TIC constituem um pilar fundamental para se alcançar um estado ótimo de transparência, prestação de contas, acesso à informação e desenvolvimento integral dos indivíduos. Ou seja, beneficiam e fortalecem significativamente o Sistema Nacional de Transparência nos assuntos anteriormente mencionados. Não obstante, o desafio da proteção da privacidade e dos dados pessoais no México ainda tem questões pendentes sobre as TIC, uma vez que os ordenamentos mais altos nessa matéria apenas contemplam mecanismos jurídicos que permitem uma verdadeira proteção do direito à privacidade e proteção de dados online. 9 O exemplo mais conhecido é o caso de Edward Snowden, que acusou os Estados Unidos de violarem a privacidade e as liberdades da população mundial na Internet. No entanto, isso não deve ser um pretexto para o bloqueio das TIC, como no caso da Stop Online Piracy Act (Lei de Combate à Pirataria Online ou S.O.P.A, na sigla em inglês). 10 Nota do revisor: De acordo com o art. 1º da lei, “sujeitos obrigados” são “no âmbito federal, estadual e municipal, qualquer autoridade, entidade, órgão ou organismos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, órgãos autônomos, partidos políticos, de fidúcia e fundos públicos”. 11 Art. 64 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Sujeitos Obrigados (2017).

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Portanto, considera-se que a resposta à classe de problemas que poderiam vir a se apresentar, ou mesmo que já existem, pode ser em grande medida uma boa engenharia normativa, uma boa qualidade argumentativa e de interpretação por parte dos juízes mexicanos, assim como um sistema eficaz de sanções. Neste contexto, propõe-se que o Sistema Nacional de Transparência, na sua modalidade de proteção de privacidade e dados pessoais, contemple em sua agenda normativa os seguintes assuntos:

3.1_IDENTIDADE DIGITAL A identidade é definida pela Real Academia Espanhola como o conjunto de traços próprios de um indivíduo ou de uma coletividade que os caracterize frente aos demais. Toda pessoa tem direito a uma identidade, que pode ser composta de nome, sobrenome ou nacionalidade, entre outros dados. Todos essas informações são únicas do indivíduo, tornando-o credor de certos tipos de direitos e obrigações. Na vida offline, a todo momento devemos provar nossa identidade em situações cotidianas, como ao entrar nas instalações de trabalho, ao cobrar cheques ou mesmo ao fazer queixas que afetem a pessoa diretamente. Nesse mesmo sentido, em uma época em que é quase impossível que os seres humanos não interajam com as TIC é fundamental delimitar a identidade digital. Isso significa determinar que informações tornam um indivíduo único quando online, com fins de garantir-lhe direitos e também obrigações frente ao restante dos usuários. A proposta é que o legislador mexicano defina a identidade digital, estabelecendo características e elementos sujeitos à proteção que permitem perfilar o que deve ser resguardado de uma pessoa por fazer parte de sua esfera pessoal.

3.2_DIREITO AO ESQUECIMENTO Assim como na Europa, o México apenas começa a analisar esse tipo de questão, que é a possibilidade de as pessoas poderem eliminar da Internet informação que afete seu livre desenvolvimento. O legislador mexicano deve avaliar se é necessário implementar o direito ao esquecimento como uma figura autônoma, ou se o direito ao cancelamento de dados pessoais é um meio de defesa suficiente e adequado em tais situações.

3.3_ESPECIALIZAÇÃO DOS TITULARES DE ÓRGÃOS JUDICIAIS E ÓRGÃOS GARANTIDORES Os juízes em matéria de privacidade e proteção de dados pessoais devem conhecer e entender o funcionamento das TIC, de modo que seus argumentos e interpretações das leis sejam adequados, pertinentes e garantam os direitos dos titulares em todos os momentos.

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CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

3.4_SEGURANÇA DAS REDES As autoridades de proteção de dados pessoais do país, em suas respectivas áreas de competência, deverão promover políticas e medidas que garantam a segurança dos dados pessoais que são tratados por sujeitos obrigados12 em suas bases de dados ou, se for o caso, tratados por particulares. É verdade que as leis sobre proteção de dados pessoais do México preveem medidas de segurança para proteger informações pessoais. No entanto, é importante a promoção e estudo dessas medidas em relação às necessidades colocadas pelas TIC.

3.5_PRIVACIDADE “BY DESIGN” Incorporar a privacidade nos sistemas de informação (García Mexía, 2014). A então Comissionaria da Informação e Privacidade de Ontario, Canadá, Ann Cavoukia, vê (tradução nossa) a privacidade “by design” como

FUNDAMENTAL DELIMITAR A IDENTIDADE DIGITAL

[…] a implementação da privacidade a partir de três áreas de aplicação: sistemas de tecnologia da informação; práticas de negócio responsáveis e design físico e infra-estrutura de rede, partindo dos efeitos sempre crescentes e sistemáticos das tecnologias da informação e comunicação, e dos sistemas de dados em rede em grande escala.

Nesse sentido, as autoridades devem promover a ideia de que tudo o que se deseja implementar dentro das instituições que detêm posse sobre dados pessoais deve cumprir com as leis de proteção de dados, acrescentando que proteger a privacidade é um bom investimento para eles também13. Isso significa que tanto o titular dos dados quanto a instituição ganham protegendo a privacidade.

3.6_FORTALECER A CULTURA DA PROTEÇÃO DE DADOS As leis de proteção de dados no México delegam aos órgãos garantidores a faculdade de capacitar instituições e pessoas sobre o assunto. Entretanto, é necessário enfatizar como as TIC podem afetar a privacidade das pessoas, bem como enfatizar as soluções e meios de defesa que podem ser exercidos em caso de sofrerem algum percalço a este respeito. Nas palavras do Dr. Villarino Marzo, devemos conseguir que, em um ambiente de Internet total como padrão, a privacidade também seja oferecida por padrão. Esse é o nosso grande desafio. Artigo originalmente escrito em espanhol 12 Ver nota de rodapé nº 10. 13 Além de evitarem sanções legais, é importante apontar que titulares manifestam cada vez mais interesse por serviços que protegem sua privacidade.

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_REFERÊNCIAS Araujo Carranza, E. (2009). El derecho a la información y la protección de datos personales en México. México: Porrúa. Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos (Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos) (1917, 5 de fevereiro). Cámara de Diputados del H. Congreso de la Unión. Última reforma publicada em 24 de fevereiro de 2017. Retirado de: Dados Abertos do Governo da República (Datos Abiertos del Gobierno de la República) (2017). Datos. Retirado de: Decreto pelo qual se expede a Lei Geral de Transparência e Acesso à Informação Pública (Decreto por el que se expide la Ley General de Transparencia y Acceso a la Información Pública) (2015, 4 de maio). Diario Oficial de la Federación. Retirado de: Decreto pelo qual se reformam e adicionam diversas disposições da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos em matéria de transparência (Decreto por el que se reforman y adicionan diversas disposiciones de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, en materia de transparencia) (2014, 7 de fevereiro). Diario Oficial de la Federación. Retirado de: García Mexía, P. (2014). Derechos y libertades, internet y tics. Espanha: Tirant lo Blanch. Joyanes, L. (2013). Big data. Análisis de grandes volúmenes de datos en organizaciones. México: Alfaomega. Lei Federal de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Particulares (Ley Federal de Protección de Datos Personales en Posesión de los Particulares) (2010, 5 de julho). Cámara de Diputados del H. Congreso de la Unión. Retirado de: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Sujeitos Obrigados (Ley General de Protección de Datos Personales en Posesión de Sujetos Obligados) (2017, 26 de janeiro). Cámara de Diputados del H. Congreso de la Unión. Retirado de: Muñozcano Eternod, A. (2010). El derecho a la intimidad frente al derecho a la información. México: Porrúa. Novoa Monreal, E. (1989). Derecho a la vida privada y libertad de información – Un conflicto de derechos. México: Siglo XXI. Pérez Luño, A. (2014). Nuevas Tecnologías y derechos humanos – El tiempo de los derechos 4. México: Tirant lo Blanch.

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NATALIA MENDOZA SERVÍN Graduada de Mestrado em Transparência e Proteção de Dados Pessoais pela Universidade de Guadalajara e licenciada em Direito pela mesma universidade.

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DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NOS PROCESSOS DE REFORMA DO MARCO REGULATÓRIO DAS TECNOLOGIAS INFOCOMUNICACIONAIS NA ARGENTINA JULIETA COLOMBO GARDEY Licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais, Universidade de San Andrés [email protected] Argentina

ANTONELLA MAIA PERINI Mestre em Relações Internacionais Europa-América Latina, Universidade de Bolonha [email protected] Argentina

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_TEMÁTICA Direitos digitais Acesso e diversidade Cooperação de múltiplas partes interessadas

_RESUMO O artigo analisa as iniciativas de reforma regulatória para as tecnologias infocomunicacionais argentinas, apresentadas em 2016, em função de sua capacidade de garantir a participação cidadã, limitar a concentração do mercado, garantir a independência política e/ou econômica do ente regulador dos meios de comunicação e garantir o pleno gozo do direito à livre expressão e informação. Concluímos que a reorientação das políticas públicas, em particular o apelo à participação em processos de consulta e debate, é insuficiente para garantir a incorporação das demandas cidadãs, e que esses mecanismos contribuem para o aumento da incerteza jurídica e da concentração do mercado. Palavras chave: tecnologias infocomunicacionais; regulamentação; participação dos cidadãos

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1_ANTECEDENTES Há alguns anos, tanto em âmbito regional como internacional, vários órgãos de Direitos Humanos (incluindo a Organização dos Estados Americanos, as Nações Unidas e suas respectivas relatorias) enfatizaram a importância do direito de livre expressão e informação como um direito humano, individual e coletivo, cuja defesa constitui um dos pilares essenciais para a construção de democracias mais sólidas e inclusivas. Consequentemente, numerosos países, ecoando esses postulados, adaptaram suas normas aos padrões internacionais em termos de liberdade de expressão. No entanto, na Argentina, os princípios subjacentes a tais aspirações democráticas têm ainda de se materializar, enquanto continua o processo de definição da normativa que regulará os meios de comunicação e as tecnologias da informação; normativa que, por sua vez, vai funcionar como apoio material desse direito humano fundamental (Loreti, 2014). O caso argentino é um expoente claro de como certos aspectos históricos dos sistemas políticos podem condicionar significativamente, e a longo prazo, a forma e os padrões de funcionamento de um sistema de mídia. Desde o final do século 19 e início do século 20, com o surgimento das primeiras formas de comunicação (imprensa escrita e radiofonia), as decisões políticas relativas à regulação dos meios têm sido caracterizadas pela sua constante volatilidade em função de interesses particulares, seu afastamento dos princípios democráticos e seu caráter não inclusivo das demandas cidadãs. Esses elementos acabariam por definir a forma a ser adotada pelo sistema de mídia, permitindo, por ação ou omissão, consolidar um modelo de sistema de comunicação altamente comercial, hiperconcentrado e pouco participativo. A adoção precoce de um modelo comercial contribuiria para que o processo de tomada de decisão fosse reduzido às preferências dos grupos de interesse privado — que tinham poder econômico, de posse de empresas de mídia — e as do poder público — atores políticos com a capacidade de determinar as “regras de jogo” do espaço de midiático (Mastrini, 2009; Colombo Gardy, 2016). Essas condições, ao longo do tempo, anularam quase por completo e sistematicamente as possibilidades da cidadania de expressar seus interesses no momento de definir as regras que regulam o processo de produção e troca de informações, excluindo, dessa maneira, quem se supõe que é o titular do direito de comunicar. O estado paradoxal de marginalidade do cidadão atenta contra o que, seguindo Robert Dahl (1989), é um dos elementos fundamentais da democracia: a igualdade de oportunidades dos indivíduos para decidir e agir com liberdade, de acordo com o acesso e compreensão da informação que lhes permita configurar suas preferências. Esta situação aprofundou-se com o tempo na Argentina, a partir das concessões contínuas que os diferentes governos fizeram às empresas que, hoje em dia, se constituem como “megameios” e que dominam amplamente o mercado infocomunicacional. O equilíbrio entre os interesses econômicos e políticos foi alterado na Argentina

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em 2009, quando a conjuntura política viu enfrentados o Grupo Clarín e o governo de Cristina Fernández de Kirchner, dando origem à sanção da LSCA (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual).

2_LEI DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL, PONTO DE INFLEXÃO? O significado dessa norma assume uma dimensão enorme se considerarmos que foi, depois de numerosos projetos de reforma, decretos-lei e decretos de necessidade e urgência, a segunda lei sancionada em conformidade com os procedimentos legislativos após um processo de debate parlamentar1. Também foi a única que gerou debates no espaço público e a primeira a aspirar a regulamentação da mídia a fim de defender um direito humano. Mas o mais notável da LSCA – que substituiria, depois de 29 anos, o antigo decretolei instituído em 1980 pela ditadura militar liderada por Jorge Rafael Videla – é que ela surge em condições realmente excepcionais. Em 2009 produz-se a confluência de vários fatores, entre os quais podemos destacar brevemente o surgimento de um conflito entre os setores agroexportadores e o governo kirchnerista pela determinação desse último de aumentar os impostos oscilantes às exportações, causando a ruptura das relações — até o momento amigáveis — entre o governo e o Grupo Clarín. Essas circunstâncias abririam uma janela de oportunidade única para o ressurgimento das demandas para a “democratização das comunicações”, protagonizadas por grupos da sociedade civil que, a partir do retorno à democracia, exigiam a necessidade de reformar o decreto-lei imposto durante o último governo de facto. As exigências seriam oportunamente retomadas pelo oficialismo, a fim de promover uma nova regulação dos meios capaz de reduzir a influência que Clarín – alinhado com os interesses do campo – exercia sobre a opinião pública (Colombo Gardy, 2016). A lei é finalmente aprovada em 10 de outubro de 2009, com a composição do Congresso favorável ao oficialismo e em simultaneidade com as crescentes reivindicações regionais na América Latina sobre a democratização dos sistemas de mídia. Anos mais tarde, em dezembro de 2014, é aprovada a lei nº 27.078, conhecida como “Argentina Digital”, que substituiu a Lei Nacional de Telecomunicações, nº 19.798, que desde 1972 regulava este setor. Essa primeira tentativa de adaptação às tecnologias convergentes apresentava nuances diversas. Por um lado, estabelecia a necessidade de regulamentação e abertura do mercado das telecomunicações, bem como a inclusão do conceito de neutralidade da rede. Por outro lado, o texto abundava em indefinições e imprecisões, resultando insuficiente para a proteção da privacidade e dos dados pessoais, dando poder excessivo à autoridade de aplicação2 e validando um regime de repartição 1 O único antecedente semelhante é a Lei n º 14.241, de Regulação dos Serviços de Radiodifusão, sancionada em 1953 por Juan D. Perón. 2 Essa lei dá à autoridade de aplicação – e através dessa, ao governo – um elevado poder discricionário em matérias tais como a definição do que compreende por atores empresariais “com

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vinculado à discricionariedade do Poder Executivo. Permitia, simultaneamente, um aumento da concentração, ao mesmo tempo que autorizava as empresas de telecomunicações, bem como os operadores de meios audiovisuais e digitais, a adquirir propriedade dentro de outros setores do mercado infocomunicacional, com condições pouco exigentes. No final do mandato de Cristina Fernández, havia passado seis anos de uma aplicação deficiente da LSCA que, entre outras coisas, se deveu às ações judiciais interpostas, à fraca vontade política de perseguir os fins democráticos a partir da implementação da lei e a sanção de uma norma posterior (“Argentina Digital”) que contrariava os objetivos definidos por aquela. Diante da necessidade urgente de se adaptar aos processos de convergência tecnológica e a tendência crescente de concentração do mercado infocomunicacional, a chegada de Mauricio Macri como presidente em 10 de dezembro de 2015 colocou novos desafios que motivaram a tomada de duas decisões substanciais. Em apenas 19 dias depois de assumir funções, a primeira foi a publicação do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) nº 267. Em seguida foi criada a Comissão para a Elaboração do Projeto de Lei de Reforma, Atualização e Unificação das Leis nº 26.522 e nº 27.078 (a partir de agora a Comissão), como estabelece o art. 28 do DNU mencionado. Embora o Decreto estabeleça igualmente a apresentação de um anteprojeto no prazo de 180 dias a contar da constituição da Comissão, essa solicitou a prorrogação do prazo, mas, até a data, ainda não apresentou qualquer anteprojeto de lei. Um ano após a criação da Comissão, Mauricio Macri assinou o Decreto de Necessidade e Urgência nº 1340/16, cujo objetivo era reformar as leis nº 26.522 e nº 27.078. O governo afirmou que essas emendas procuravam superar questões como distorções na concorrência, altos custos e danos para os usuários, a fim de criar um contexto regulatório em sintonia com o desenvolvimento da indústria de mídia e telecomunicações. O atual processo de reforma regulatória reafirma as aspirações democráticas da normativa internacional a que a Argentina aderiu e demonstra também a vontade de suprir a necessidade de uma regulamentação adequada à convergência tecnológica, corrigindo as inconsistências e áreas de sobreposição das leis precedentes (LSCA e Argentina Digital). Os princípios orientadores dessa reforma, que guiarão a definição do anteprojeto de lei, estão contemplados na Resolução 9/2016. Em seguida, tomaremos três aspectos que, na nossa opinião, desempenham um papel fundamental na responsabilidade do Estado de assegurar o pleno usufruto do direito humano à liberdade de expressão e ao acesso à informação, para analisar até que ponto as iniciativas de reforma regulamentar do governo durante 2016 foram adequadas aos princípios da regulamentação internacional que a Argentina subscreve.

uma posição significativa do mercado” (expressão ambígua) a partir da qual pode tomar medidas como a regulação dos preços de mercado, solicitar desinvestimentos etc. Esse tipo de redação, que permite a discricionariedade do Estado ou dos organismos de aplicação dos regulamentos em matéria de comunicação, afasta-se das aspirações de democratização e de transparência da LSCA.

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3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS PARA GARANTIR O PLENO GOZO DO DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO E ACESSO À INFORMAÇÃO 3.1_A PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO, INCLUINDO OS PROCESSOS DE DEFINIÇÃO DO MARCO REGULATÓRIO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO, PROIBIDA QUALQUER TIPO DE DISCRIMINAÇÃO. A participação cidadã é um fator chave para o fortalecimento dos sistemas democráticos nos quais a liberdade de expressão é garantida. Permite não apenas enriquecer os processos do conhecimento, das ideias e das experiências dos cidadãos, mas também de promover o seu protagonismo nos assuntos públicos. Por conseguinte, não é possível pensar na elaboração de uma lei de liberdade de expressão sem criar as condições necessárias para um espaço de debate público que incorpore verdadeiramente todos os setores. Os princípios orientadores da Comissão que se aproximam deste objetivo referem-se ao controle público e ao monitoramento social do novo marco regulatório, bem como das garantias para a participação dos cidadãos e o respeito pelo princípio do federalismo. Esta Comissão propôs abrir o processo de reformulação do marco regulatório para as partes interessadas, contemplando uma instância de participação direta dos cidadãos. A Comissão organizou uma reunião com o relator especial para a Liberdade de Expressão da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos); realizou 20 reuniões participativas, coletando as contribuições de 76 organizações; 2 seminários internacionais com 16 peritos nacionais e internacionais reunidos em 5 painéis de debate; 5 debates acadêmicos na cidade de Buenos Aires, Cuyo, Córdoba, Jujuy e Rosario, onde 26 especialistas participaram em 8 painéis de debate; recebeu 3 contribuições adicionais; e, por último, fez uma consulta digital (#SumáTuAporte, “adicione sua contribuição”) de 22 de setembro até 15 de dezembro de 2016, a partir da qual receberam 700 opiniões, de até 300 caracteres cada um, de cidadãos registrados. Tal como afirma Bello Arellano, da Associação Interamericana de Empresas de Telecomunicações (Asiet), deve ser tomada em consideração a formulação de um quadro normativo que garanta a proteção dos consumidores, desde a qualidade dos serviços à proteção de seus dados pessoais (Entidade Nacional de Comunicações, Enacom3). É por isso – embora não exclusivamente para este fim – que a voz dos cidadãos, não só como

3 Nota do revisor: em seu site, a Enacom se descreve como uma “entidade autárquica e descentralizada que funciona no âmbito o Ministério de Modernização da Nação. Seu objetivo é conduzir o processo de convergência tecnológica e criar condições estáveis de mercado para garantir o acesso de todos os argentinos aos serviços de Internet, telefonia fixa e móvel, radio, correios e televisão. A Enacom foi criada em dezembro de 2015 através do Decreto 267, no qual se estabelece seu papel como regulador das comunicações com fim de assegurar que todos os usuários do país contem com serviços de qualidade”. Ver:

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portadores de direitos civis, mas também como usuários finais, é essencial no processo de regulação normativa. É insuficiente, portanto, criar um espaço digital de consulta limitado em caracteres, bem como as intervenções delimitadas, carecendo de consultas complementares em espaços físicos e públicos. No entanto, se levarmos em consideração os atores convocados para fazer parte das reuniões participativas, observamos que aqueles que estavam envolvidos neles eram, principalmente, câmaras comerciais (18), associações empresariais, comerciais ou cooperativas (15) e organizações sem fins lucrativos (16). Em menor medida, participaram as entidades de classe e sindicatos (8), as entidades públicas (8) e as federações e confederações (5). Entre esses atores, as áreas ou indústrias mais representadas foram as das telecomunicações e a Internet (14), transmissão de TV (9) e de radiodifusão (8). Isso não é surpreendente, na medida em que é o núcleo dinâmico com maiores externalidades positivas (Becerra, 2017). Contudo, é de salientar que os atores focados em temáticas relacionadas com a proteção dos direitos civis e o fortalecimento democrático representaram 11,8% dos atores participantes. No que diz respeito a esses últimos, as organizações que representam os interesses da igualdade de gênero colocaram especial ênfase na necessidade de incluir no marco regulatório, e de forma transversal, os setores “com menor possibilidade de participação O ESTADO DEVE e representação nos meios de comunicação”, bem TER UM PAPEL como a incorporação de uma linguagem não sexista ATIVO PARA QUE A na redação da nova lei (Enacom).

ADMINISTRAÇÃO

Por outro lado, se analisarmos as escassas DOS SERVIÇOS DE 76 organizações que participam nas reuniões COMUNICAÇÃO quinzenais, podemos observar que 3 delas têm um NÃO GERE alcance global, 5 um alcance regional, 62 um alcance SITUAÇÕES DE nacional e apenas 6 um alcance subnacional. Além ABUSO DE POSIÇÃO disso, entre as últimas, 5 representam os interesses DOMINANTE dos atores da cidade de Buenos Aires e/ou da província de Buenos Aires. Sendo assim, é possível detectar a sub-representação das províncias nas reuniões participativas. Um aspecto não menos importante, considerando que o federalismo foi tomado como um dos princípios orientadores da Comissão. O grau de representatividade provincial foi notável apenas durante os debates acadêmicos, nos quais participaram as universidades e cátedras de Jujuy, Córdoba e Santa Fe, entre outros. Por último, tendo em conta a série de reuniões mencionadas acima e considerando a publicação do Decreto 1340/16, que parece ignorar o passo deliberativo necessário no fortalecimento de um marco regulatório sobre os meios de comunicação, podemos interrogar-nos até que ponto a participação dos cidadãos no processo de elaboração do anteprojeto de lei não se reflete apenas no plano discursivo, em contradição com a prática. Tal como defende Santiago Cantón, ex-relator de Liberdade de Expressão e exsecretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a participação dos cidadãos e de outros atores interessadas deve fornecer uma troca de ideias, sem a

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qual uma lei de liberdade de expressão estaria cumprindo com as formalidades, mas no fundo estaria procurando “evitar uma participação real” (Enacom).

3.2_A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL A PARTIR DE UM PAPEL ATIVO DO ESTADO, QUE GARANTA O GOZO DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E, DE FORMA TRANSPARENTE, GARANTA A PLURALIDADE (NÚMERO DE VOZES) E O PLURALISMO (DIVERSIDADE DE VOZES), LIMITANDO A CONCENTRAÇÃO. O papel do Estado como garantidor de direitos pressupõe que este deve regular, monitorar e agir perante eventuais violações da liberdade de expressão. Na medida em que se refere a serviços essenciais para o cidadão, o Estado deve ter um papel ativo para que a administração dos serviços de comunicação não gere situações de abuso de posição dominante enquanto promove o acesso universal a esses serviços. Por outro lado, os princípios orientadores da Comissão estabelecem que é necessária a definição de critérios de licenciamento democráticos; a neutralidade, a abertura e a competitividade das redes; a pluralidade e a diversidade do conteúdo audiovisual; e as garantias de pluralismo político, religioso, social, cultural, linguístico e étnico nos meios de comunicação. No entanto, o Decreto 1340/16 apresenta uma série de medidas preocupantes, uma vez que favorecem a concentração do mercado, um fato que atua em detrimento da pluralidade e do pluralismo dentro do sistema de meios infocomunicacionais. Em primeiro lugar, o artigo 3º estabelece a proteção durante 15 anos para a última milha4. Isso é definido pela legislação europeia, por exemplo, como uma causa de concorrência desleal, uma vez que favorece o protecionismo de certos atores durante um longo período de tempo. Por outro lado, as indústrias dominantes são favorecidas por atribuições mais permissivas de acesso e exploração do espectro de radiofrequências. De fato, adia as obrigações das empresas que contraíram licenças de espectro para 4G há três anos, o que constitui um passe livre para o acesso de grandes empresas de mídia. Além disso, permite que as companhias telefônicas operem licenças de televisão por cabo e, inversamente, as operadoras de cabo operem licenças de telefone celular. Tudo isso possibilita a convergência dos mercados concentrados, onde os players que historicamente dominaram sua indústria podem acessar, com uma transferência marginal de seu mercado dominante no meio, um novo mercado com atores igualmente concentrados.

4 Nota do revisor: “última milha” (last mile) refere-se à infraestrutura de redes que permite a ligação entre infraestrutura intermediária, chamada de backhaul, e os consumidores finais de serviços de telecomunicações.

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Essas regulações não só afetam as regras de entrada para os atores menores, mas também afetam a pluralidade e o pluralismo, ignorando princípios internacionais de proteção da liberdade de expressão.5 Nesse sentido, durante as reuniões participativas foram levantadas várias posições que refletiram a necessidade de abrir o mercado e desenvolver um marco regulatório que permitisse isso, bem como garantir a manutenção e o acesso de vários atores ao mercado infocomunicacional e a geração de conteúdos com diversidade linguística, étnica e geográfica, entre outros. Cabe destacar que um grande número de atores convidados para as reuniões participativas suscitou preocupações relacionadas com a atual concentração do mercado e com as tensões existentes para garantir o pluralismo. As posições abrangeram ideias que vão desde a proteção dos meios de comunicação de baixa potência — que atualmente representam 70% das comunicações do país — e as pequenas empresas de radiodifusão em localidades com pouco acesso à Internet, até a proteção de conteúdos nas diferentes mídias. Precisamente no que diz respeito à regulação de conteúdos, é alarmante a ausência de reuniões para o tratamento do que a LSCA, no seu art. 77, denomina como “conteúdos de interesse relevante”. Essa situação merece duas observações. A primeira está relacionada com a incerteza jurídica que gera a incerteza sobre a validade desse artigo da LSCA que, em teoria, continua fazendo parte da legislação dos meios de comunicação mas que, na prática, requer a realização de reuniões – que não estão acontecendo – por meio das quais o Estado deve cumprir seu papel como garantidor do acesso universal a esses conteúdos. Ou seja, nessas reuniões é que o Estado deveria determinar que conteúdos de interesse relevante seriam transmitidos pela TV aberta por serem de interesse público nacional, como o futebol, por exemplo. Considerar este aspecto é altamente relevante uma vez que, se esse artigo não for tratado de acordo com o que a lei estipula, poderia cair em desuso ou ser eliminado no momento da elaboração de nova normativa.

3.3_A EXISTÊNCIA DE UMA ENTIDADE REGULADORA COM INDEPENDÊNCIA POLÍTICA, ECONÔMICA OU DE QUALQUER OUTRA NATUREZA CAPAZ DE VICIAR SUA AÇÃO. O DNU 267/15 estabeleceu a criação da Enacom (Entidade Nacional de Comunicações) em substituição da AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual) e da AFTIC (Autoridade Federal de Tecnologias da Informação e Comunicação). Ou seja, estabeleceu um único órgão regulador para os serviços de comunicação audiovisual e tecnologias da informação e comunicação. No que diz respeito à sua composição, quatro dos sete membros do diretório da 5 Princípio 12 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão: “Os monopólios ou oligopólios de propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antimonopólio, dado que conspiram contra a democracia, restringindo a pluralidade e diversidade que assegura o pleno exercício do direito à informação dos cidadãos. Em nenhum caso essas leis devem ser exclusivas para os meios de comunicação. As atribuições de rádio e televisão devem considerar critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades para todos os indivíduos no acesso a eles”.

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Enacom são nomeados pelo Poder Executivo Nacional, enquanto os três restantes são designados pela Comissão Bicameral de Promoção e Seguimento da Comunicação Audiovisual, das Tecnologias de Telecomunicações e da Digitalização do Congresso Nacional da Nação Argentina. A Comissão os designa sob proposta dos blocos parlamentares, correspondendo um à maioria ou primeira minoria, outro à segunda minoria e outro à terceira minoria parlamentar (o que dá ao partido do governo uma quinta possibilidade de nomeação). Os diretores têm um mandato de quatro anos e podem ser retirados pelo Poder Executivo Nacional diretamente e sem expressão de causa. Atualmente, o diretório da Enacom é formado por maioria oficialista: Miguel de Godoy (PRO), Heber Martínez (PRO), Silvana Giudici (PRO) e Alejandro Pereyra (PRO), Miguel Ángel Giubergia (UCR), Claudio Ambrosini (Frente Renovador) e Guillermo Raúl Jenefes (FpV). Da mesma forma, a Enacom é monitorada pela Sindicatura Geral da Nação e pela Auditoria Geral da Nação. Este panorama indica três aspectos irregulares sobre o processo de nomeação, a composição e as atribuições da entidade reguladora nacional como elementos que podem condicionar sua independência. Em primeiro lugar, o procedimento pelo qual se estabeleceu sua criação e a consequente fusão dos organismos de controle preexistentes, isto é, a AFSCA e a AFTIC, por meio de um decreto de necessidade e urgência que ignorou as instâncias democráticas e deliberativas de tratamento legislativo. Por outro lado, o Poder Executivo Nacional não só teve ampla ingerência sobre a criação e regulação da entidade, mas a natureza da designação do diretório viola as garantias de independência política, porque ele é formado principalmente pelo partido do Poder Executivo. Finalmente, é esse mesmo Poder que pode revogar o mandato de todos os diretores sem ter que especificar as causas, gerando um desequilíbrio claro de poder. As preocupações relativas à violação das normas internacionais, entre elas, no que se refere a autonomia, independência e pluralidade, motivaram várias organizações da sociedade civil a apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Edison Lanza, Relator Especial para a Liberdade de Expressão, afirmou que “sua composição e atribuições prima facie, como está atualmente concebida, não cumpriria estes padrões [de liberdade de expressão], porque deve estar protegido de qualquer ingerência política ou econômica” (Becerra, 2016, tradução nossa). Santiago Cantón, ex-relator de Liberdade de Expressão e ex-secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, advertiu em uma das reuniões participativas realizadas antes da assinatura do Decreto 1340/16 que “fazer com que o controle da liberdade de expressão dependa do Poder Executivo é um erro”, porque esse poder não pode controlar o órgão responsável de supervisioná-lo (Enacom). Na mesma linha, e fazendo uso do mesmo espaço, Francisco Godinez Galay, da Rede Nacional de Meios Alternativos (RNMA), argumentou que não deve ser aprovada “nenhuma legislação que dê ao Poder Executivo maioria automática e poder de decisão arbitrário sobre sua conformação” (Enacom). Entre os perigos que isso pressupõe para a liberdade de expressão, indicam-se a falta de legitimidade do órgão regulador e a falta de controle sobre os poderes da Comissão, aspectos que poderiam levar à tomada de decisões que favoreçam a atribuição de licenças dos meios de comunicação nos quais o diretório participa ou a meios que estiveram relacionados com o governo.

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O novo decreto 1340/16, além disso, atribui poderes maiores à Enacom. Embora o pacote de serviço “quadplay” (serviço de telefonia fixa, móvel, TV a cabo e serviço de Internet) esteja em vigor para Rosario, Cidade de Córdoba, Capital Federal e Grande Buenos Aires, a Enacom é que poderá ativá-lo no resto do país (art. 5). Da mesma forma, o decreto não só atribui ao órgão regulador a capacidade de ditar as regras de administração, gestão e controle do espectro de radiofrequências, mas também lhe dá o poder de atribuir e administrar frequências do espectro e autoriza-o à fixação de compensações, obrigações de implantação e cobertura (art. 4).

4_CONCLUSÕES A oscilação do marco regulatório infocomunicacional, caracterizado pela sobreposição de normas, suas constantes alterações e a prevalência de ambiguidades, imprecisões e incoerências entre seus princípios orientadores e as práticas de governo, não fez nada além de gerar maior incerteza jurídica nesta área. A legislação anterior foi desmantelada ao mesmo tempo que um mecanismo para a elaboração de uma nova lei foi incentivado, prometendo assegurar a inclusão das partes interessadas. No entanto, mesmo sem a conclusão do processo ou a apresentação do anteprojeto de lei, o decreto que delimita seus resultados já foi assinado. Como mencionamos, as reuniões participativas, os intercâmbios acadêmicos e as reuniões internacionais, entre outros mecanismos, deram à Comissão insumos valiosos e representativos dos interesses dos atores envolvidos no mercado das telecomunicações e meios de comunicação. Além disso, as consultas digitais incorporaram as demandas de 700 usuários finais. No entanto, não é apenas necessário aumentar os níveis de participação dos cidadãos como usuários, mas também é necessário garantir que as demandas apresentadas nas reuniões informativas serão realmente incorporadas no anteprojeto da nova lei, especialmente em um contexto no qual o Decreto 1340/16 estabelece normas contrárias a algumas das propostas durante as reuniões mencionadas. Além disso, como afirmado por Becerra e Mastrini (2017), o núcleo de players pequenos, médios e cooperativos das indústrias de telecomunicações, Internet e audiovisuais têm uma grande representatividade regional no país e geram externalidades positivas, tanto econômicas como sociais. Apesar disso, segundo especialistas, ao contrário dos gigantes das telecomunicações e da indústria audiovisual, “este setor não incidiu no novo decreto e sua atenção é negligenciada pelas políticas estatais”. Mesmo que exista um discurso repleto de referências à convergência, à concorrência e à consequente procura de aproximação e inclusão de várias vozes no processo participativo para gerar um marco regulatório de acordo com um mercado plural, a tendência real parece potenciar a concentração de acordo com os acordos altamente benéficos para os megameios que já possuem uma posição dominante no mercado. O governo “ignora diretamente o problema da concentração excessiva de propriedade dos recursos de comunicação (alguns deles públicos)”, e é esse núcleo dinâmico que é mais afetado pelas novas normas (Becerra, & Mastrini, 2017, tradução nossa).

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Precisamos compreender que as medidas tomadas até agora, em vez de incentivar a concorrência ou atrair os investimentos dos novos atores, favorecem a expansão das duas ou três empresas dominantes em cada setor (telefonia fixa, telefonia móvel, banda larga e televisão paga), aumentando o poder dos conglomerados e, assim, contribuindo para a acentuação da concentração. Em face do exposto, cabe assinalar a existência de uma notória mudança discursiva ao nível governamental em torno dos objetivos da política de comunicação. Embora ambos os governos, de Cristina Fernández e de Mauricio Macri, tenham proclamado critérios de participação democrática como eixos de suas políticas, o primeiro destacava — pelo menos no plano discursivo — a necessidade de ampliar o número de vozes no espaço público a partir do desinvestimento por parte das empresas dominantes do mercado, enquanto o atual governo diz estar orientado para o reforço das condições de concorrência econômica e para a adaptação adequada aos processos convergentes. A experiência nos mostrou como a vontade política do governo kirchnerista foi insuficiente para a cristalização de uma democracia comunicacional, enquanto suas ações tenderam a implementar um sistema de recompensas e punições a partir do qual favoreceram os aliados políticos — proprietários de empresas de mídia —, e tentaram silenciar vozes opositoras. Nestas circunstâncias, enfrentamos um novo problema perante o qual devemos, como cidadãos, agir oportunamente. Devemos identificar precocemente os indícios das medidas tendentes à concentração que reduzam a pluralidade e o pluralismo e monitorar as ações do governo para exigir um maior grau de segurança jurídica em todas as fases da elaboração da nova regulamentação, em relação aos princípios que conformam os padrões internacionais na matéria. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Becerra, M. (2016). Audiencia en la CIDH sobre los DNUs de Macri. Recuperado de Becerra, M. (2017). A falta de inversiones, lluvia de decretos. Recuperado de Becerra, M., & Mastrini, G. (2017). Inseguridad jurídica en comunicaciones. Recuperado de

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DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

Colombo Gardey, J. (2016). Camino a la democratización comunicacional o al perpetuo cambio normativo? (Tese de licenciatura sem publicação). Universidade de San Andrés, Buenos Aires. Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2000). Declaración de Principios sobre Libertad de Expresión. Recuperado de Dahl, R. A. (1989). Democracy and its Critics. 6th ed. New Haven: Yale University Press. Decreto nº 1340/16 (2016, 18 de janeiro). Normas básicas. Implementación sobre comunicaciones convergentes. Recuperado de Decreto nº 267/16 (2016, 4 de janeiro). Creación del Ente Nacional de Comunicaciones (ENACOM). Recuperado de Decreto nº 9/16 (2016, 1 de março). Resolución para la creación de la Comisión para la elaboración del proyecto de ley de reforma, actualización y unificación de las Leyes Nro 26.522 y Nro 27.078. Recuperado de Entidade Nacional de Comunicações (Ente Nacional de Comunicaciones) (2016). Comisión Redactora para la Nueva Ley de Comunicaciones. Recuperado de Lei Argentina Digital (Ley Argentina Digital) (2014, 19 de dezembro). Ley No. 27.078. Desarrollo de las Tecnologías de la Información y las Comunicaciones. Recuperado de Lei Nacional de Telecomunicações (Ley Nacional de Telecomunicaciones) (1972, 22 de agosto). Ley No. 19.798. Recuperado de Lei sobre Serviços de Comunicação Audiovisual (Ley sobre Servicios de Comunicación Audiovisual) (2009, 10 de outubro). Ley No. 26.522. Recuperado de Loreti, D., & Lozano, L. (2014). El derecho a comunicar. Los conflictos en torno a la libertad de expresión en las sociedades contemporáneas. 1ª ed., Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. Mastrini, G. (Ed.) (2009). Mucho ruido, pocas leyes. Economía y políticas de comunicación en la Argentina (1920-2007). 1ª ed., Buenos Aires: La Crujía.

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DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

JULIETA COLOMBO GARDEY Julieta Colombo Gardey é graduada em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade de San Andrés, Argentina. Diplomada em Defesa internacional dos Direitos Humanos pela Universidade Henry Dunant, Suíça. Atualmente trabalha na Auditoria Geral da Nação, o órgão técnico máximo para o controle externo do setor público nacional argentino. É membro do Youth Observatory.

ANTONELLA MAIA PERINI Antonella Maia Perini é graduada em Relações Internacionais pela Universidade de San Andrés, Argentina, e mestre em Relações Internacionais Europa-América Latina pela Universidade de Bolonha, Itália. É especialista em inovação política, governo aberto e governança da Internet. Trabalha como coordenadora do projeto #InnovaPolíticaLatam em Assuntos del Sur. É membro do Youth Observatory, membro do Grupo Constituinte de Usuários NãoComerciais (NCUC) da ICANN e fellow da ICANN.

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A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NA ECONOMIA DIGITAL SILVANA CRISTINA RIVERO Advogada na Universidade de Buenos Aires, mestrado em Direito Empresarial pela Universidade de San Andrés [email protected] Argentina

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_TEMÁTICA Direitos digitais Problemas emergentes da internet

_RESUMO As tecnologias da informação e da comunicação se incorporam a uma mudança estrutural existente a nível econômico. Este novo ambiente levanta o desafio de adaptar a proteção do consumidor em uma economia digital que está em ascensão. A formulação de leis, políticas e práticas uniformes que tendem a proteger eficazmente os usuários é indispensável na busca do fortalecimento da segurança e da confiança dos consumidores online e, desse modo, no desenvolvimento e no avanço da economia digital. Palavras chave: proteção do consumidor; defesa do consumidor; economia digital

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1_INTRODUÇÃO A incorporação das Tecnologias de Informação e Comunicação (daqui pra frente, as TIC) está relacionada às estruturas produtivas e pautas de comércio exterior que são mais intensivos em bens produzidos com tecnologias, ou seja, com uma mudança estrutural no nível econômico. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) considera que a economia digital é parte de uma nova visão de desenvolvimento que pode atuar como catalisador de mudanças estruturais, incentivando investimentos de longo prazo, diversificação da estrutura produtiva e maior convergência nos níveis de produtividade na economia como um todo (CEPAL, 2013). Este novo ambiente digital exige a adaptação da proteção do consumidor exercida até agora, além de incorporar as questões que são características de uma economia digital que está em ascensão. É por isso que deve existir formulação de normas, políticas e práticas uniformes que procurem efetivamente proteger os consumidores e fornecer orientações sobre as atividades comerciais justas (CEPAL, 2016), para fortalecer a segurança e a confiança dos consumidores online e, portanto, o desenvolvimento e o avanço da economia digital. Neste sentido, as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2016) sobre proteção ao consumidor no comércio eletrônico procura garantir que os países modernizem suas leis de proteção ao consumidor para enfrentarem os novos riscos presentes no comércio online, incluindo aplicações e transações entre consumidores (peer-to-peer). Neste contexto, propõe-se a necessidade de que as pessoas que compram pela Internet tenham proteção semelhante, em termos de transparência e eficácia, às praticadas em transações tradicionais. As diretrizes, nas novas recomendações publicadas pela OCDE, cobrem questões de comércio eletrônico em um esquema de Business to Consumer (B2C), bem como entre consumidores. Ao mesmo tempo, neste panorama atravessado pelas TIC, deve-se considerar a discriminação existente entre os consumidores, devido, por exemplo, à sua localização geográfica, através das práticas que vão do bloqueio geográfico até a ofertas discriminatórias em todos os setores de compras e pagamentos online. Esse último também é um problema a ser abordado ao se estabelecer as políticas e leis que devem prevalecer nesse ambiente.

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PROPÕE-SE A NECESSIDADE DE QUE AS PESSOAS QUE COMPRAM PELA INTERNET TENHAM PROTEÇÃO SEMELHANTE, EM TERMOS DE TRANSPARÊNCIA E EFICÁCIA, ÀS PRATICADAS EM TRANSAÇÕES TRADICIONAIS

DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

2_PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E OS DESAFIOS NA ECONOMIA DIGITAL O princípio da neutralidade tecnológica deve ser protegido ante um ambiente caracterizado pelo uso das TIC. Implica em exigir a interoperabilidade entre os diferentes produtos e/ou serviços oferecidos, o que é relevante ante a não interoperabilidade deliberada dos sistemas por parte dos fornecedores, limitando a escolha dos consumidores. Também se identifica a necessidade de garantir a neutralidade da rede que resulta uma medida importante para garantir que os consumidores tenham acesso aberto à Internet e que os mesmos tipos de tráfego sejam tratados por igual. Uma das formas comuns de definir o termo é a não discriminação, por provedores de acesso à Internet, de conteúdo, aplicações e serviços. De acordo com essa regra, ao navegar em um site ou outro o usuário não pode notar diferenças. Outra questão importante é procurar reduzir os obstáculos para o desenvolvimento do comércio eletrônico transfronteiriço no que diz respeito às normas para a regulação de envio de parcelas transfronteiriças e dos impostos aplicáveis sobre a venda de bens e serviços. Devido à sua fragmentação e falta de transparência, esses fatores tornam difícil o comércio eletrônico caracterizado por atravessar fronteiras (Grupo do Partido Popular Europeu, 2017). Os consumidores devem ter acesso a mecanismos de fácil utilização para resolver conflitos decorrentes de contratações nacionais e/ou transfronteiriças no comércio eletrônico. A este respeito, os mecanismos alternativos de resolução de disputas online (conhecida por suas siglas em inglês como ODR, o que significa Online Dispute Resolution), surgem como uma opção viável para resolver disputas decorrentes do comércio eletrônico. ODRs são processos que incorporam o uso da Internet ou qualquer outro tipo de TIC, para a resolução de disputas. Exemplos em países da região são: Concilianet1 no México e Sernac2 no Chile. A nível regional se encontra o Programa Regional de Resolução Eletrônica de Disputas para a Economia Digital da ILCE na América Latina3, enquanto na Europa existe a ECC-Net4. Este tipo de mecanismo pode melhorar o acesso a soluções no ambiente digital, aumentando a velocidade e a eficiência desses procedimentos e reduzindo os custos (Organização Mundial da Propriedade Intelectual, 2000). Entre os objetivos perseguidos por essas alternativas está o vinculado com a proteção de consumidores prejudicados por empresas online, particularmente quando os danos são de pouco valor econômico e a disputa é de natureza transnacional. Assim mesmo,

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também procura-se impulsionar a expansão do comércio eletrônico, especialmente em relação às pequenas e médias empresas, fornecendo mecanismos mais simples para resolver disputas (González, 2012). Outro aspecto que deve ser considerado ao tentar proteger os direitos dos consumidores online é a portabilidade da vida digital das pessoas, o que implica a possibilidade de exigir a entrega e/ou transferência de tudo que é de propriedade do consumidor – o que varia, indo desde o número de telefone celular até os dados fornecidos para uma plataforma em particular. Esse aspecto existe para que o consumidor não esteja vinculado aos serviços de um único fornecedor, podendo sempre ter a liberdade de escolher entre os diferentes produtos e/ou serviços online oferecidos por vários fornecedores. É necessário exigir práticas comerciais justas no novo ambiente digital. Entre as mencionáveis de acordo com as recomendações da OCDE estão a não distorção ou ocultação dos termos e condições contratuais que podem afetam a decisão de compra, além da tentativa de ocultar identidade ou localização. Também não devem ser realizadas práticas enganosas relacionadas à coleta ou uso de dados pessoais, como não explicitar que o serviço prestado em troca dessa contraprestação foge da tradicional compensação monetária. Deve-se ter especial cuidado nas ações de marketing destinadas a crianças ou a outros consumidores vulneráveis, como os idosos. Outro exemplo está ligado a zelar por produtos seguros na rede, já que um grande número de países contam online com aqueles que foram declarados inseguros no mercado offline. Assim, aqueles que atuam no mercado digital devem cooperar junto aos governos para impedir que essas práticas se propaguem (OECD, 2016, pp. 10-12). Novos produtos e/ou serviços acessíveis ao usuário, entre os quais pode-se mencionar os dispositivos IoT (do inglês Internet of Things5), exigem o cumprimento rigoroso do dever de informação por parte do provedor, prestando atenção à necessidade de os consumidores entenderem melhor as funcionalidades e limitações desses novos produtos. A este respeito, o Conselho de Economia da Informação do Reino Unido (United Kingdom Information Economy Council) desenvolveu um marco voluntário de recomendações orientado para o consumidor, destinado a responder às expectativas dos usuários e a fornecer informações adequadas sobre seus direitos e obrigações no ecossistema IoT (BT, 2014) (OCDE, 2015) Outro exemplo do dever de informar neste cenário é o fornecimento de informações claras sobre as condições relacionadas à aquisição e uso de conteúdos digitais, como música e filmes online, que são frequentemente vendidos com limitações de uso legais ou técnicas (Koopman, Mitchell e Thierer, 2015).

5 Internet das coisas, IdC, Internet of Things ou IoT por suas abreviaturas em inglês: compreende em coisas cotidianas que se conectam à Internet. Desta forma, os objetos podem ser previamente conectados por circuito fechado, como comunicadores, câmeras, sensores, entre outros, permitindo que se comuniquem de forma global através do uso da Internet.

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Finalmente, deve-se mencionar um modelo que capacitou o consumidor no campo do comércio eletrônico, os mecanismos de feedback reputacional (reputational feedback mechanisms), que dão ao usuário o poder de opinião. Tal é a importância desta ferramenta que muitas das empresas que atuam no ecossistema digital dependem disso para estabelecer confiança entre fornecedores e consumidores.

3_CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo atual que tem sido desenvolvido, vinculado ao fornecimento de respostas independentes à evolução das novas tecnologias, implica o risco de perder a coerência regulatória, o que pode levar a um aumento nos custos e ineficiência na conformidade regulamentar para os atores do setor. Para os consumidores, a maior complexidade e fragmentação da regulamentação pode dificultar sua atuação na economia digital. Um marco regulador com um enfoque conjunto, para abordar as leis e/ou mecanismos para proteger o consumidor e, assim, garantir a segurança e confiança do consumidor no novo esquema digital, ofereceria um ambiente mais adequado tanto para empresas quanto para os consumidores. Neste caso, é essencial o papel das agências de defesa do consumidor, que devem velar pelo usuário em sua atuação online e, ao mesmo tempo, alcançar a cooperação com agências de outros países para o intercâmbio de informações e a solução de controvérsias em operações transfronteiriças. O ecossistema fornecido através do modelo multistakeholder, preponderante nos espaços de governança da Internet, é essencial para obter consenso e cooperação entre todos os atores envolvidos na comunidade digital. A atuação dos consumidores acompanha essa ação e crescimento das empresas, tendo que alcançar seus recíprocos direitos e obrigações para um equilíbrio justo para ambos. Isso se deve ao fato de que a economia digital beneficia tanto os usuários como os fornecedores, de modo que seu desenvolvimento e sucesso dependem da conquista de um mercado digital cuja segurança e confiança entre os atores gere maiores vantagens para a Sociedade da Informação. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (2013). La Economía digital para el cambio estructural y la igualdad. p. 99. Recuperado de Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (2016). La nueva revolución digital: De la Internet del consumo a la Internet de la producción. eLAC 2018 La

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revolución digital. Santiago. p. 95. Recuperado de González, W. N. (2012). Mecanismos alternativos de resolución de controversias en línea: hacia un sistema mundial. Heurística Jurídica. p. 106 e 107. Recuperado de Grupo do Partido Popular Europeu (2017). Los consumidores en la economía digital. Recuperado de Koopman, C., Mitchell, M., & Thierer, A. (2015). The Sharing Economy and Consumer Protection Regulation: The Case for Policy Change. 8 J. Bus. Entrepreneurship & L. 529. p. 541. Recuperado de Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2000). Estudio sobre Comercio electrónico y Propiedad Intelectual. Ginebra. p. 31. Recuperado de Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2015). Perspectivas de la OCDE sobre la economía digital 2015. Paris. p. 311. Recuperado de Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2016). Consumer Protection in E-commerce: OECD Recommendation. OECD Publishing, Paris. Recuperado de

SILVANA CRISTINA RIVERO Assessora legal e de políticas públicas no Departamento de Política Nacional e Desenvolvimento da Internet do Ministério de Modernização da Nação (Argentina), é sócia na firma Maryva, especializada em direito e tecnologia. Trabalhou para Carranza Torres & Asociados, empresa especializada em propriedade intelectual; como parte dos serviços prestados, atuou no MercadoLibre S.R.L. como advogada in house. Atualmente é docente no curso de Negócios Tecnológicos da Faculdade de Direito e Ciências Sociais.

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DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

UM DIREITO PARA A GOVERNANÇA DA INTERNET JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA Licenciado em Direito pela Universidade de Guadalajara, México [email protected] México

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_TEMÁTICA Direitos digitais

_RESUMO Este artigo analisa brevemente a relevância de ter um órgão jurídico dedicado ao estudo de questões relacionadas à governança da Internet. Por um lado, é questionada a abordagem de tais tópicos do ponto de vista do Direito de Informática e, por outro lado, compromete-se com o fortalecimento de um ramo legal em construção e mais adequado para a governança da Internet: Direito da Internet. Palavras chave: governança da Internet; direito da informática; direito da Internet

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1_INTRODUÇÃO Como um jovem advogado, decidi me envolver com o Direito Informático quase no meio da minha carreira universitária. Os artigos que escrevi e as ideias que tive surgiram da perspectiva desse ramo jurídico. As questões relacionadas à Internet não foram uma exceção, já que o Direito Informático sempre pareceu atender às necessidades metodológicas da minha análise. Em termos acadêmicos, eu sou um fiel defensor de questionar tudo, mesmo que seja algo que eu muito concorde. Eu faço isso com a intenção de fortalecer o que já foi feito e, se necessário, melhorá-lo. Além disso, tento tornar meu pensamento cada vez mais crítico, a fim de contribuir nas discussões que ocorrem no campo do direito e das novas tecnologias. Desta vez, compartilho uma reflexão que vem de uma questão recente: que direito é necessário para a governança da internet?

2_O DIREITO DA INTERNET COMO RESPOSTA A nota de desafio que a Internet traz com ela não deve ser ignorada ou minimizada pela ciência do Direito. O Direito Informático não ignora esses desafios, mas os minimiza, colocando-os em uma cesta onde eles coexistem com todos os tipos de questões relacionadas à tecnologia da informação e à tecnologia em geral Como primeira ideia, eu diria que as questões pertencentes à Internet e à sua governança devem ser abordadas a partir do ponto de vista de um ramo do direito exclusivo para ela. Isso não deve ser tomado como um exagero, devido à ampla gama de desafios decorrentes da expansão e crescimento da Internet, e sua relevância como principal motor de inovação e desenvolvimento hoje. Além disso, deve notar-se que a realidade social decorrente da socialização da Internet é complexa. A partir de um enfoque de direito, seu estudo não é preenchido por meio de nenhum dos ramos do direito existentes, porque nenhum deles pode satisfazer o grau de especialização exigido pelas questões relativas à governança da Internet. O Direito Informático não possui o grau de especialização referido. Em primeiro lugar, é um ramo das ciências jurídicas que contempla a informática, e não a Internet, como instrumento e como objeto de estudo (Téllez Valdés, 2009, p. 19). Embora seja verdade que a informática tenha uma estreita relação com a Internet, também é verdade que a última

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O DIREITO INFORMÁTICO NÃO IGNORA OS DESAFIOS QUE A INTERNET TRAZ, MAS OS MINIMIZA, COLOCANDO-OS EM CONJUNTO COM TODOS OS TIPOS DE QUESTÕES RELACIONADAS À TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E À TECNOLOGIA EM GERAL.

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tecnologia dá origem a problemas específicos que não devem ser analisados a partir da perspectiva fornecida pela informática. O termo Direito Informático, por si só, evoca a informática, e essa, por sua vez, ao tratamento automático da informação. Diz respeito ao desenvolvimento e evolução da Internet não apenas a ação de um computador, mas também as decisões tomadas pelas pessoas. Neste contexto, o termo Direito Informático é impreciso, porque se refere apenas à informação processada pelos computadores, mas não ao acúmulo de ações humanas que dão forma ao desenvolvimento da Internet como a principal ferramenta tecnológica desta era. O Direito Informático, de fato, é um ramo jurídico muito geral para o estudo de assuntos relacionados à governança da Internet. Lembremos que o Direito Informático nasceu para dar uma resposta, do ponto de vista jurídico, a uma realidade social construída pela erupção de computadores. Por que não pensar que, com a erupção da Internet, é exigido um novo direito que dê respostas à realidade social acumulada até agora? Recentemente, tive a oportunidade de ler um bom artigo do Dr. Pablo García Mexía, intitulado “Direito da Internet” (“Derecho de Internet”, no original em espanhol). Nesse artigo, o Direito da Internet é chamado de muito novo, global, fotonizado, altamente especializado, expansivo, e a opção que a ciência jurídica oferece para resolver os problemas mais urgentes relacionados à Internet (García Mexía, 2016). O autor também alude a uma razão muito interessante pela qual vale a pena adotar o Direito da Internet: aqueles que a praticam devem ser altamente familiarizados, em uma perspectiva multidisciplinar, com o mundo digital, de modo que […] a regra que propõem, a defesa ou a sentença que emitem, pode chegar a ter um mínimo sentido tecnológico: em uma palavra, pode simplesmente “funcionar” (como na engenharia se exige da máquina) quando aplicada a uma realidade tecnológica de referência (um buscador, um link, um algoritmo, etc.) (García Mexía, 2016, p. 28, tradução nossa).

Pensar nos desafios que a Internet traz consigo em um ponto de vista amplo, como pode ser o Direito da Internet, poderia resultar em decisões com pouco ou nenhum “mínimo sentido tecnológico”, o que poderia prejudicar o desenvolvimento e a evolução da Internet ou, na sua falta, ser inoperantes devido à própria natureza da rede. Deste modo, vale a pena pensar em um direito de internet especializado. Embora seja verdade que o artigo do Dr. Pablo García não se refira ao valor da Direito da Internet para a governança da Internet, a verdade é que ele existe, uma vez que seu grau de especialização obriga aqueles que o exercem a conhecer as características técnicas da Internet e os aspectos do desenvolvimento social, econômico e político que a Internet mantém. De fato, as análises realizadas por advogados especializados em Direito da Internet deveriam guardar uma relação estreita com a ampla abordagem da governança da Internet.

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DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

Em suma, a governança da Internet exige um direito especializado que forneça um marco metodológico para o estudo que, desde a ciência jurídica, se faz da Internet. O Direito da Internet, recentemente adotado e ainda em construção, poderia ser esse ponto de partida para contribuir para o desenvolvimento e a evolução da Internet acompanhando as decisões tomadas no campo jurídico. Entre os tópicos abrangidos pelo Direito da Internet, de forma enunciativa mas não limitativa, estão: neutralidade da rede, comércio eletrônico, proteção de dados pessoais online, cibersegurança, responsabilidade de intermediários, liberdade de expressão online, etc. Em outras palavras, eu diria que tudo o que acontece na Internet e que tem a ver com seu desenvolvimento e evolução deve ser visto do ponto de vista do Direito da Internet.

3_CONCLUSÃO O Direito da Internet é visto como a resposta que melhor se ajusta às necessidades da governança da Internet. Outros ramos jurídicos, como no caso do Direito Informático, são imprecisos e deixam de lado a especialização exigida no estudo de tópicos relacionados à Internet. Vale a pena repensar a interseção do Direito com a Internet, e estar ciente de que o ponto de encontro deles é complexo e continuará a crescer em complexidade, já que a Internet continua a ser o principal pilar da inovação e do desenvolvimento. Além disso, os desafios decorrentes da realidade social construída pela Internet tornam clara a necessidade de um direito especializado para cuidar deles. A governança da Internet dificilmente será sustentada se aqueles que estão comprometidos com ela não tiverem essa especialização que a Internet demanda. Isso aplica-se àqueles que, como jovens e advogados, procuram contribuir para o desenvolvimento da Internet como meio de promover a inovação tecnológica e fortalecer os direitos humanos, a democracia e o estado de direito. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS García Mexía, P. (2016). El Derecho de Internet. In Bes, F. P. Derecho de Internet. Barcelona: Atelier. p. 17-37. Téllez Valdés, J. (2009). Derecho Informático. México: McGraw Hill.

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DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA Analista de Informação na Presidência da República do México e Secretário Geral da Academia Multidisciplinar de Direito e Tecnologias A.C. Membro da Internet Society México, membro do Observatório da Juventude (Youth Observatory) e da Federação Ibero-Americana de Associações de Direito e Informação.

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET

CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

CROWDFUNDING DIGITAL COMO EXEMPLO PARA A CONSTRUÇÃO DE CAPITAL SOCIAL E O CRESCIMENTO DAS COMUNIDADES CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA Acadêmica no Departamento de Comunicação da Ibero [email protected] México

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

_TEMÁTICA Conteúdos e bens culturais na Internet

_RESUMO Para a construção e consolidação das sociedades, é necessário a coesão e a participação das pessoas na construção do tecido social. A coesão social manifesta-se na participação de organizações ou redes sociais, nas normas de confiança interpessoal e na reciprocidade. Quando essas condições se reúnem, a ação coletiva é simplificada, o mesmo que a resolução comum de problemas na comunidade. Neste artigo, discute-se o impacto da Internet na construção do capital social através do aproveitamento de uma nova forma de contribuição, o crowdfunding, popularizado pelas plataformas digitais. Palavras chave: crowdfunding digital; capital social; bens culturais; Internet

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

1_INTRODUÇÃO Os países precisam de pessoas que se envolvam para crescer; as próprias pessoas devem compreender que nem toda a responsabilidade de uma nação recai sobre o governo e menos ainda se o governo não for auditado pela própria sociedade. Embora inicialmente, quando a ideia de governo e democracia nascem na Grécia, a massa fosse considerada como um elemento que pouco ou nada devia ser levado em conta, dada sua inexperiência de tomar decisões de governo e de mandato (RABOTNIKOF, 2011), hoje é necessária a sua voz e ação para fazer as coisas funcionarem, para que a ação seja provocada. E é nestes tempos que a responsabilidade governo-sociedade torna-se evidente: um depende do outro para o desenvolvimento mútuo. A participação para o crescimento das nações está na colaboração mútua que as pessoas fazem entre si (Fukuyama, 1996); você não pode demandar algo que não conhece ou não viveu. Não por acaso, a democracia é “o poder do povo”, e o povo é necessário para provocar a eficiência dos governos. Assim, “o que faz a democracia funcionar é precisamente a vida comunitária” (Instituto Nacional Eleitoral [INE], 2014, p. 84), e isso só é conseguido através da união das pessoas. O fenômeno sociológico que reúne as pessoas através da colaboração é identificado como “capital social”. Detalhadamente, “capital social” significa a variável que mede a colaboração entre indivíduos e grupos de um coletivo formado por pessoas e a derivação ou geração de oportunidades a partir dessa colaboração (Diaz, 2015). É através da interação, fundada em relações de confiança e respeito entre as pessoas, que se tecem redes sociais para a construção do capital social. “Atividades como a participação em clubes e coros promovem a eficácia das instituições democráticas” (Putnam apud INE, 2014, p. 84, tradução nossa). Agente é o cidadão que participa. Se o cidadão não é um agente, ou seja, não se aplica, não toma partido, não coloca em ação o que sabe para o benefício da comunidade, não constrói cidadania nem capital social. Dada a conexão intrínseca em rede que é feita a partir de computadores que estão ligados uns aos outros como nós, uma das formas mais lógicas que este trabalho considera para vincular as pessoas à comunidade no processo de provocar uma ação é através da Internet.

2_O CROWDFUNDING E A CIBERCONFIANÇA Há um problema na confiança que a sociedade tem nas instituições do poder. Não é algo novo ou difícil de ser percepcionado, pois a todo o momento os meios de comunicação encarregam-se de transmitir informações que as desacreditam: [...] uma maioria dos cidadãos do mundo não confia em seus governos ou seus parlamentos, e um grupo ainda maior de cidadãos despreza políticos e partidos e acredita que seu governo não representa a vontade popular (Castells, 2009, p. 376, tradução nossa).

O voto de confiança do povo dado a uma figura de poder governamental parece extinguir-se, causando impotência e frustração que resultam na busca de outras

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formas de apoio comunitário ou de procura de uma situação de vida melhor. Em um mundo com muitas necessidades e onde a maioria das pessoas vive escondida atrás de uma tela, este trabalho propõe que seja justo aí que o sentido de comunidade renasça. Lipovetsky e Serroy dizem (2009, p. 269, tradução nossa): “o indivíduo atual e de amanhã, permanentemente ligado por celular e laptop, com o conjunto das telas, está no centro de um tecido reticulado cuja amplitude determina os atos de sua vida diária”. Será que a tela que cativa os olhares pode servir como intermediária para que as comunidades voltem a constituir-se? Um exemplo disso está na rede de sustentabilidade econômica conhecida como crowdfunding1, hoje em dia em alta. No crowdfunding, pessoas ou grupos apresentam um projeto à comunidade em busca de fundos; trata-se de qualquer coisa que implique o apoio financeiro de uma multidão para um propósito específico. No mundo digital, a arrecadação maciça foi adotada pela população através da Internet. Agora, um ou muitos proprietários de um projeto ou de uma ideia (que pode ser artística, empresarial, alguma necessidade de saúde pessoal, uma patente ou um desejo que procura ser cumprido) podem manifestá-los em uma plataforma para solicitar um montante monetário específico (o qual chamam de “meta”) com argumentos para tentar convencer o público global a participar, doando alguns dos números sugeridos e recebendo em troca, na maioria das vezes, uma recompensa conforme o donativo e a mera satisfação de ter feito parte de algo. Como tudo acontece através da Internet, a operação funciona a um custo muito baixo; as plataformas que difundem o projeto só cobram uma porcentagem da “meta” monetária obtida ao fim. Se o projeto não atingir a arrecadação total do objetivo econômico, nem o beneficiário nem a plataforma recebem o dinheiro e os rendimentos são devolvidos aos doadores. Nos últimos dias, algumas delas cobram uma porcentagem mais elevada (9% vs 5% de outras) para dar ao beneficiário o dinheiro coletado, mesmo que não seja a quantidade que a meta estabelecia. A transação é segura e o interessado tem muitas chances de receber a quantidade que precisa (Steinberg, 2012). Através do crowdfunding digital é socializada uma necessidade que a comunidade na Internet decide se deve ou não ser atendida. Com isso, estabelecemos que é possível construir comunidade online porque, segundo Lipovetsky, a rede das telas transformou nossa maneira de viver, nossa relação com a informação, com o espaço-tempo, com as viagens e o consumidor: tornou-se um instrumento de comunicação e de informação, em um intermediário quase inevitável em nossas relações com o mundo e com os outros. Viver é, de uma forma crescente, estar colado à tela e conectado à rede (Lipovetsky, & Serroy, 2009, p. 271, tradução nossa).

1 Crowdfunding pode ser traduzido como “micromecenato”, “financiamento” das massas, “financiamento massivo”, “financiamento coletivo”. O conteúdo da Internet, sendo suscetível a anglicismos, usa o termo original em inglês quase todo o tempo.

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O crowdfunding tornou-se popular com as bandas de rock da cena independente britânica e americana que tinham seguidores mas não eram comerciais o suficiente para uma gravadora apostar nelas. Em 1997, o grupo britânico de rock neo-progressivo Marillion2 foi o pioneiro nessa iniciativa: quando eles se viram em uma situação econômica difícil, enviaram um e-mail ao banco de dados de fãs, perguntando se eles concordariam em pagar antecipadamente por uma cópia do seu novo álbum. A resposta foi inesperada e positiva: eles receberam 12.000 encomendas de um disco que estava apenas começando a ser planejado. Como foi pago pelas pessoas, a banda não teve que se submeter à pressão criativa de uma gravadora, nem tiveram que ceder direitos de autor ou perder pontos de utilidade pagando a um terceiro para a promoção e distribuição do material. Ao contrário do crowdfunding de Marillion, a forma como essa prática atualmente funciona, em um formato digital, é mais sofisticado e não depende necessariamente da posse de um banco de dados, mas sim de uma boa estratégia de promoção. As plataformas de financiamento digital não são mais do que páginas da web bem suportadas por grandes servidores que permitem hospedagem de informações e atuam como intermediários em uma transação econômica fechada através de serviços de pagamento online, como Paypal, e pagamentos digitais com cartão de crédito. A plataforma mais famosa é a Kickstarter. Embora a rápida e constante evolução da Internet nos faça acreditar que a rede de redes sempre existiu e evoluiu tão lentamente como os outros meios de comunicação, não é assim e a Kickstarter comprova isso. A ideia nasceu em 2002 na cabeça de Perry Chen, que estava procurando a maneira de levar shows inovadores para as cidades que não eram muito populares (e que, obviamente, não estão incluídas nas agendas dos shows), procurando que os próprios fãs pagassem com antecedência para trazer os artistas. Uma tentativa para levar um dueto de jazz famoso a Nova Orleans não funcionou. Mas o fracasso deixou uma pergunta fixa em sua cabeça: “O que aconteceria se houvesse um espaço para colocar propostas em busca de pessoas para apoiá-las?” Chen procurou Yancey Strickler (programador) e Charles Adler (Designer), e os três deram vida, em 2009, à primeira plataforma online de crowdfunding: a Kickstarter3, pela qual passaram todos os tipos de projetos, com vários delas alcançando suas metas e alguns coletando até um milhão de dólares. Um caso muito conhecido de coleta bem-sucedida na Kickstarter é o de Amanda Palmer, artista plástica, performer, compositora, roqueira, ativista e agora também escritora. A história de Amanda Palmer é peculiar, porque mistura a ideia de apoio econômico com a formação de uma comunidade próxima com pessoas de todo o mundo, graças à Internet (Palmer, 2014). Palmer, como muitos, começou como uma artista de rua, em seguida passou a fazer shows em tempo parcial em um bar e depois excursionou em torno de cidades diferentes no norte dos Estados Unidos (partindo de 2 A gravadora Virgin dedica um artigo em sua revista sobre isso; ele pode ser consultado em: “How Marillion pioneered crowdfunding in music” 3 A história é contada por Strickler no quinto aniversário da Kickstarter, aqui:

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sua cidade natal, Boston). Em cada parada e em cada concerto, ela coletava os dados dos assistentes para se “conectar” com eles através de duas formas: por e-mail e pelo seu blog, que na primeira década do novo milênio eram os meios de comunicação digital mais comuns – ler as histórias diárias de estranhos em diferentes países fortalecia laços e criava comunidades. A Internet não é para se descobrir coisas novas, simplesmente as amplia e massifica. A popularidade de Amanda Palmer e sua banda, Dresden Dolls, cresceu analógica e digitalmente, a ponto de ser “descoberta” por uma gravadora que se ofereceu para gravar e distribuir seu primeiro material comercial. O sonho terminou quase tão cedo como começou: seu contrato foi rescindido porque o material não vendeu o que era esperado, embora, segundo a banda, ganharam mais do que eles poderiam ter esperado alguma vez na vida (Palmer, 2014). Em um momento de fraqueza emocional e necessidade de empatia, ela postou a situação em seu blog e assim as redes que a seguiam souberam do problema; o apoio passou de moral a microeconômico e os fãs enviavam cheques ou davam-lhe envelopes com alguns dólares no final dos shows sem pressão ou retribuição alguma. A partir disso, Palmer decidiu pedir ajuda formalmente através de um projeto no Kickstarter, com objetivo de juntar o dinheiro necessário para um disco; ela acabou recebendo dez vezes mais do que pedia4. O que foi que motivou que um grupo emocionado de fãs doasse mais de um milhão de dólares? A relação entre as pessoas. A própria Amanda Palmer escreve: “a fama não compra confiança; apenas a conexão com o outro constrói essa confiança” (Palmer, 2014, p. 236, tradução nossa). Em termos práticos, a Internet funciona como o maior intermediário que conecta indivíduos em uma grande fonte multi-nodal5; mas, finalmente, são eles que decidem se envolvem-se com uma causa ou não. “Crowdfunding não é caridade, como alguns querem pensar. Meus ‘partidários’, finalmente, estavam comprando um produto” (Palmer, 2014, p. 237, tradução nossa). No caso EMBORA BEMde Amanda Palmer, os resultados monetários SUCEDIDO, O PROJETO coincidiam com o número de seguidores em DE AMANDA PALMER sua base de dados e redes sociais; foram eles NÃO ESTEVE ISENTO que contribuíram com o dinheiro porque havia DE DESCONFIANÇA uma relação direta com o projeto: o interesse em PÚBLICA E MILHARES apoiar o novo material da artista. Finalmente, DE TROLLS não é a rede ou a plataforma que gera confiança, QUESTIONARAM mas as pessoas.

SOBRE A UTILIZAÇÃO DO DINHEIRO.

Embora bem-sucedido, o projeto de Amanda Palmer não esteve isento de desconfiança pública e milhares de trolls questionaram sobre a

4 A história completa é narrada por Amanda Palmer em uma das Ted Talks com maior número de acessos: 5 Uso o termo “nó” como Castells designou, para nomear as pessoas que se relacionam na Internet.

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utilização do dinheiro. Suas redes sociais e blog foram inundados com queixas e insultos, questionando sobre sua forma de gerenciar o projeto, especulações sobre seu estilo de vida e outros temas. Os críticos realmente não entendiam que o dinheiro arrecadado teria pouca utilidade (econômica) para a artista: seria tudo gasto nas recompensas oferecidas e no desenvolvimento do produto que já estava pré-pago. Perante as críticas, Palmer argumenta: “O crowdfunding eficaz não se trata de confiar na bondade de estranhos, trata-se de confiar na bondade de SUA gente” (Palmer, 2014 p. 244, tradução nossa).

3_O CASO DO CROWDFUNDING MEXICANO O México se perceba, em primeira instância, como um país generoso. E sim, somos generosos, quando dar implica fazê-lo apenas uma vez e por causas muito específicas e efêmeras: catástrofes naturais, eventuais problemas econômicos de alguém próximo, coisas momentâneas com as quais se pode cooperar sem manter um compromisso. Quando ajudar envolve organização ou participação constante para alcançar um objetivo, a situação muda. Michael Layton e Alejandro Moreno (2010) dizem que os mexicanos vivem em um paradoxo de “dar”, porque são capazes de organizar várias coletas para resolver um problema, mas também de enviar e-mails exigindo um “não” ao arredondamento, classificando-o como fraude, em uma completa ambiguidade filantrópica. No México, é uma realidade que “a solidariedade e o espírito de ajuda são geralmente manifestados de forma não articulada e com um impacto limitado” (Layton, & Moreno, 2010, p. 14, tradução nossa).  Não é coincidência que isso seja assim. Desde a época da conquista até nossos dias, temos vivido com a ideia de que quem deve cuidar dos menos favorecidos são os «outros”, principalmente o governo ou a igreja. Além disso, a corrupção e a impunidade minam a confiança. Culturalmente nós confundimos “filantropia”, entendendo-a como “o amor que é demonstrado construtivamente pela raça humana na ajuda altruísta a quem precisa mais, sem esperar algo em troca” (Layton, & Moreno, 2010, p. 15, tradução nossa), com caridade, que de acordo com uma visão religiosa é a ajuda obrigatória oferecida aos órfãos, viúvas e doentes, em sua qualidade de “desamparados”, ou com assistencialismo, que é o socorro temporário para solucionar uma necessidade. A filantropia concentra-se em “propor e desenvolver atos que melhorem a qualidade de vida de uma pessoa ou grupo e promover obras de benefício para a comunidade, mais do que em ajudar indivíduos isolados” (Zúñiga, 2005, p. 7, nossa tradução). O mexicano não tem o hábito de ajudar a longo prazo; parece que a contribuição deve ser apenas ocasional e com um impacto muito óbvio, para que não diminua a sua confiança (Layton, & Moreno, 2010). No contexto de um país profundamente machucado pela corrupção, que não tem um senso cultural de doação e que não sabe a diferença entre um projeto recorrente de empoderamento social e dar uma esmola ocasional para uma pessoa, nasce em 2011 a Fondeadora, primeira plataforma digital mexicana de crowdfunding (Ramsey, 2013). A Fondeadora foi estruturada como seus semelhantes mundiais: é um espaço digital que permite que uma pessoa interessada carregue seu projeto para que as pessoas possam ver e decidir apoiá-lo ou não economicamente. A troca de dinheiro é feita através da Fondeadora, que cobra uma porcentagem pela exposição no portal, difusão entre

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suas bases de dados e operação geral. Ao contrário dos exemplos internacionais que permitem até mesmo que casais sem recursos carreguem uma iniciativa de angariação de fundos que lhes permita organizar o casamento de seus sonhos, a Fondeadora nasceu para apoiar principalmente projetos artísticos, de empoderamento social e iniciativas de cidadania (visando sobretudo a ecologia). Para apoiar projetos pessoais do tipo filantrópico (como problemas de saúde, apoio à educação de um estudante etc.), a Fondeadora criou uma subseção, “Fondeadora Gente”, que derivou a “Donadora”. A plataforma foi bem recebida, apesar de no México apenas 57.4% da população ter acesso a uma conexão à Internet (Excelsior, 2016) e haver clara resistência dos mexicanos para pagar online. Por essa razão, eles implementaram os pagamentos na loja de conveniência Oxxo, para que os interessados pudessem contribuir sem necessidade de ter um cartão de crédito ou de enfrentar o medo de registrá-lo na Internet (Ramsey, 2013). Até hoje, a Fondeadora entregou mais de 5 milhões de pesos mexicanos para aqueles que atingiram suas metas6. Mas, tal como o caso de Amanda Palmer já apresentado, alcançar o objetivo não é algo fortuito e, ao contrário do que se pensa, a difusão nem sempre ajuda a saúde social do projeto. Fazer parte da rede na convergência da comunidade com as novas tecnologias gera exposição, mas também deixa o projeto vulnerável. No entanto, como já dissemos, o funcionamento das redes digitais para a busca de fundos para projetos sociais pode resultar em ações que beneficiem a construção do tecido social, que incentivem a participação dos cidadãos e fortaleçam as sociedades através do chamado “capital social”. Nas palavras de Robert Putnam: A vida associativa é uma das características do capital social, não apenas porque através das organizações e associações são estabelecidos vínculos e redes sociais, ou se trabalha de acordo com objetivos ou interesses comuns, mas também porque, através delas, se desenvolvem normas de reciprocidade e confiança, bem como padrões de comportamento cooperativo (Putnam apud Layton, & Moreno, 2010, p. 113, tradução nossa).

A desconfiança e falta de participação no México são fenômenos que devem ser analisados de perto para serem superados e não interferirem na construção do capital social, pois ambos se complementam, evitando as mudanças destinadas ao fortalecimento do tecido social. Em outras palavras, combater os vícios sociais dos mexicanos que, nas palavras de Paz y Ramos, “são seres sociais desconfiados, pouco organizados e imersos em sua própria solidão” (Paz y Ramos apud Layton, & Moreno, 2010. p. 95, tradução nossa). Sobre isso, Craig e Cornielius, mencionados no Relatório da Qualidade da Cidadania do Instituto Nacional Eleitoral [INE], sublinharam a importância das atitudes não políticas, como a confiança e a participação social, para a fundação de um sistema político democrático. Ao analisar o caso mexicano, encontraram pontos semelhantes aos que Layton e Moreno, e Paz y Ramos já tinham estabelecido. Eles indicam que “há pouca democracia no México porque há pouca participação dos cidadãos,

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No final de 2016, a Kickstarter comprou a Fondeadora.

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uma vida comunitária fraca e cidadãos com pouca capacidade de se organizarem fora dos canais corporativistas” (INE, 2014, p. 84, tradução nossa). Neste sentido, valeria a pena salientar que, embora a falta de participação e desconfiança do mexicano seja comprovada e evidente, também deve ser considerarse que isso pode ser alterado, pois existem elementos que o demonstram, como o fato de que existem mais de 50.000 Organizações da Sociedade Civil mexicanas que estão contribuindo para a reconstrução do tecido social no país a partir de suas diferentes atividades altruístas. Layton e Moreno demonstram que a terra não é árida, uma vez que o capital social continua a operar nos setores rurais do país, restando apenas permeá-lo: […] o sentido de comunidade está amplamente mais desenvolvido nas áreas rurais do nosso país. Uma possível explicação para esse fenômeno é talvez a extensa rede social que algumas comunidades têm como resultado dos valores tradicionais que as acompanham, como a mordomia, fortes redes comunais, forte sentido de solidariedade e as relações de troca através dos chamados ‘compadres’ (Layton, & Moreno, 2010. p. 140, tradução nossa).

Assim, é claro que, embora a situação mexicana seja complicada, não é um terreno árido que não possa ser resgatado através de trabalho colaborativo e financiamento massivo como o crowdfunding propõe. A chave está em assimilar que a sociedade integrada que evolui é construída a partir dos cidadãos. Ou seja, já falámos sobre a participação como eixo fundamental para que as democracias se estabeleçam, fortaleçam e cresçam; a instituição governamental é consolidada a partir da sociedade. Nesse sentido, o que deve ser trabalhado é o impulso a ser dado para os cidadãos do México entenderem que o governo não é tudo, não é o solucionador eterno de problemas, nem deve suportar toda a responsabilidade de uma nação (é importante enfatizar que isso não o exime de sua responsabilidade e trabalhos na liderança de uma nação). O ponto é: para que se sustente, um país depende do trabalho conjunto entre o seu povo e suas instituições, da participação das pessoas que colaboram PARA as pessoas e do fortalecimento das redes de tecido social. Nas mudanças geracionais e na força da geração millennial temos a oportunidade de o capital social ser consolidado através do digital. De acordo com a Teoria Geracional de StraussHowe (1997), os chamados millennials (Geração Y), indivíduos nascidos entre 1982 e 2004, são a primeira geração de pessoas instruídas, diligentes, conscientes dos avanços e fracassos históricos com base no conhecimento do que viveram seus pais e avós, tornando-os

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NAS MUDANÇAS GERACIONAIS E NA FORÇA DA GERAÇÃO MILLENNIAL TEMOS A OPORTUNIDADE DE O CAPITAL SOCIAL SER CONSOLIDADO ATRAVÉS DO DIGITAL

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mais sensíveis e apegados a uma cultura de crescimento comunitário e sustentável. O arquétipo com o qual eles são descritos é heroico. No entanto, serem indivíduos que estão preocupados e envolvidos também os torna meticulosos e exigentes; o imediatismo digital com o qual eles cresceram também os torna pessoas com pouca paciência e muito reivindicadores. Colocando-os na esfera do crowdfunding, isso faz com que eles apoiem uma causa se a acharem valorosa, exigindo sempre contas e feedback sobre o que é feito com os fundos.

4_CONCLUSÕES “A forma como pensamos e sentimos determina a forma como agimos. E as mudanças no comportamento individual e na ação coletiva certamente influenciam e modificam gradualmente as normas e instituições que estruturam as práticas sociais” (Castells, 2009, p. 393, tradução nossa)

Ao longo deste trabalho, explicou-se a importância do capital social como um ingrediente fundamental para a construção e consolidação para o crescimento das sociedades. O capital social é desenvolvido a partir da participação das pessoas dentro e para suas comunidades, na busca de benefícios para todos. A ação social da comunidade faz ativar o interesse e o conhecimento dos problemas locais, a procura de um trabalho conjunto ou a exigência às instituições governamentais para resolvê-los. Castells aponta, em seu livro “Comunicação e Poder” (“Comunicación y Poder”), que para uma população assumir uma causa é preciso vivê-la. Da mesma forma, indicouse a análise que vários autores fazem sobre a desconfiança inerente do mexicano, dada principalmente pela corrupção que prevalece no país há vários anos, a incerteza provocada por um sistema de governo partidário, mutável e que cuida de seus próprios interesses, e o próprio vício cultural que se tem em relação ao outro, já que no México as pessoas não se consideram confiáveis. Quais seriam as soluções para esses problemas? Tomando como exemplo o crowdfunding digital, identificamos que a participação da sociedade em benefício de uma causa funciona e tem a capacidade de permanecer. Isso nos leva a concluir que uma boa maneira de provocar a participação é através de atividades em que se estabeleça a ajuda mútua. Compreendendo as necessidades, é possível solucioná-las e provocar ações que permitam erradicá-las, ou então exigir efetivamente ao governo para que sejam atendidas. Também identificamos que a transparência será um fator muito importante para que a relação de confiança cresça e permaneça. Há muito para se trabalhar. Com base na ideia de que o caminho para a construção do capital social está nas comunidades, essas têm de assumir a responsabilidade pela construção da confiança social através de suas atividades e recursos que, seguindo a lógica já analisada neste trabalho, mais cedo ou mais tarde levará à busca da sociedade por mecanismos de transparência em todos os setores. Artigo originalmente escrito em espanhol

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CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA Claudia C. Arruñada Sala é comunicóloga pela Universidade Iberoamericana, com mais de dez anos de experiência em promoção, gestão e desenvolvimento institucional, trabalhando principalmente para o governo federal mexicano em temas educativos e de segurança nacional. Atualmente colabora com diferentes projetos de análise de mídias, vinculação e filantropia.

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DIREITO À INFORMAÇÃO E DIREITOS DE AUTOR: PARADIGMAS NA ERA DIGITAL RAFAEL RÍOS NUÑO Assessor jurídico na Coordenação de Transparência e Arquivo Geral da Universidade de Guadalajara [email protected] México

JOSÉ BENJAMÍN GONZÁLEZ MAURICIO Assessor jurídico adjunto na Comissão Executiva Estatal de Atenção a Vítimas de Jalisco na área de Direitos Humanos [email protected] México

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_TEMÁTICA Conteúdos e bens culturais na Internet Problemas emergentes da Internet

_RESUMO Na atualidade, nos encontramos em um mundo moderno e globalizado. A era das Tecnologias da Informação e a Comunicação, assim como a informação que circula livremente pela web, facilitaram a aprendizagem ágil e interativa nas instituições de ensino e também favoreceram aos habitantes dos estados democráticos a tomada de decisões. Contudo, alguns desses conteúdos encontram-se protegidos por direitos de autor. A controvérsia posta à disposição do leitor não é nova. Entretanto, o artigo aborda temas que buscam dar uma solução ao problema. Palavras chave: direito à informação; direitos de autor; TIC

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1_INTRODUÇÃO “Uma sociedade que não está bem informada não é uma sociedade verdadeiramente livre”. Corte Interamericana de Direitos Humanos1

Ackerman e Sandoval (2015) evidenciam que o direito à informação evoluiu por extensão do direito de liberdade de opinião e de expressão, reconhecidos no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Do mesmo modo, Cendejas (2007, tradução nossa) afirma que […] é a liberdade de expressão que amplia seu âmbito para aperfeiçoar-se, para definir competências que realmente a façam efetiva e para incorporar a evolução científica e cultural de nossos dias e que são indispensáveis ter em conta; assim como para garantir à sociedade informação verdadeira e oportuna como elemento indispensável no Estado democrático e plural […]

Nesse sentido, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em seu trabalho mais recente de interpretar a primeira emenda, instaura que a liberdade de expressão acarreta a liberdade de escutar e a proibição do Estado de limitar a informação à qual podem recorrer o público (Ackerman, & Sandoval, 2015, p.14). É importante destacar que um país pioneiro é, sem sombra de dúvidas, a África do Sul, que marcou em sua Constituição, na seção 32, que “Todos têm direito de ter acesso a) qualquer informação em posse do Estado e b) qualquer informação em posse de outra pessoa e que seja requerida para o exercício ou a proteção de quaisquer direitos” (Ackerman, & Sandoval, 2015, p. 23, tradução nossa)

2_TENSÕES E CONFLITOS DO DIREITO À INFORMAÇÃO E DOS DIREITOS DE AUTOR NA ERA DIGITAL Com relação ao anteriormente narrado, o direito à informação, em conformidade com o princípio de interdependência, interage e se nutre de diversos direitos, tais como a educação, a cultura e o acesso à justiça. No entanto, é inquestionável manifestar as tensões que poderia ter com outros direitos, como a privacidade, a proteção dos dados pessoais, a própria imagem, a honra e, o caso que nos ocupa, os direitos de autor. Dentro da plataforma universal, vê-se no artigo 27, parágrafo 2º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o amparo aos criadores de obras originais e o incentivo aos países-membros para promover, respeitar, proteger e garantir tal prerrogativa. Desmembrando o corpus iure internacional, os autores têm reconhecimento adicional no artigo 15, inciso c, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e

1 Compulsory Membership in an Association Prescribed by Law for the Practice of Journalism (1985). In Advisory Opinion OC-5/85, 13 de novembro. Washington: Corte Interamericana de Direitos Humanos, série A, número 5.

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Culturais (PIDESC); na Convenção de Berna, no Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre Direito Autoral (WCT, na sigla em inglês) e em outros tratados internacionais administrados pela organização; assim como no Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (ADPIC), administrado pela Organização Mundial do Comércio. De conformidade com a esfera regional interamericana destacam-se o artigo 14, parágrafo 1º, inciso c, do Protocolo de San Salvador, além da Convenção Interamericana sobre os Direitos de Autor em Obras Literárias, Científicas e Artísticas. Ratificando este compromisso imperativo, se reconheceu sua justiciabilidade no caso Palamara Iribarne vs. Chile, de 2005, como torna evidente o Dr. Eduardo de la Parra Trujillo (2015), nos parágrafos 102, 103 e 107, ao aludir que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) faz uma interpretação progressiva, vinculando o direito autoral com a propriedade privada, a liberdade de pensamento e de expressão, reconhecidos no Pacto de San José. Como é bem sabido, as tensões entre os direitos que são tema deste artigo não são novas e, pela extensão do documento, não adentraremos no estudo a fundo da interminável ponderação do direito à informação e os direitos de autor. Em virtude disso, o trabalho somente pretende ser ilustrativo para o leitor. O problema nasce quando, sem a autorização do autor ou do titular, se realizam reproduções ilegítimas na web ou, pior ainda, as comercializam sem o devido pagamento aos criadores. Os titulares dos direitos de autor argumentam que esse ato de reprodução e de comunicação ao público prejudica gravemente seus interesses, sobretudo os econômicos. Por outro lado, os usuários se amparam sob a proteção do direito à informação, à cultura e à educação. Para o conflito anterior, surgiram algumas propostas para dar o devido tratamento harmonizador dos interesses em conflito. O Dr. José Manuel Magaña Rufino (2013), seguindo o artigo 9º, parágrafo 2º, da Convenção de Berna, e o artigo 13 do ADPIC, destaca a já conhecida regra dos três passos da natureza acumulativa, que dá origem a algumas exceções ao direito de autor, como a citação de textos, quando se trata de acontecimentos atuais, a cópia privada, o respaldo de segurança e a crestomatia2. Contudo, as exceções não amparam a reprodução completa da obra em todos os casos. Com a intenção de proteger as obras online, os titulares dos direitos têm de utilizar medidas tecnológicas de proteção com base no estipulado no WCT e no Tratado da OMPI sobre Interpretação ou Execução e Fonogramas (WPPT, na sigla em inglês), situação que provocou a mobilização de vários setores, sobretudo o bibliotecário e as instituições de ensino. A Fundación Conector e Open Connection tentaram conciliar, sugerindo que a informação seja entregue de forma confidencial a tais setores e que eles possam desativar a confidencialidade em caso de preservação digital, cópia privada ou quando passe para o domínio público. Igualmente, Kenneth Crews (2008) propõe que na educação virtual ou à distância as obras se outorguem com disposições que permitam a fácil manipulação

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Nota do tradutor: antologia.

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O DIREITO À INFORMAÇÃO INTERAGE E SE NUTRE DE DIVERSOS DIREITOS, TAIS COMO A EDUCAÇÃO, A CULTURA E O ACESSO À JUSTIÇA

pelos estudantes (formatos abertos), fazendolhes a advertência que tais obras não devem transcender além da comunidade acadêmica, nem devem ser objeto de nenhum tipo de distribuição ou comercialização.

Uma das propostas mais polêmicas no momento é o copyleft3. A professora Diana Arredondo Ramírez (2016) explica que a raiz do movimento do software livre iniciado por Richard S. Stallman surgiu nos anos 80, nos EUA, com a busca pela contribuição de todos para um projeto em comum. O copyleft é uma licença aberta e flexível que autoriza o uso, modificação e redistribuição de obras ou programas, de forma livre4 e exigindo que os mesmos direitos sejam preservados nas versões modificadas. Também existe a postura da Creative Commons, essa uma organização sem fins lucrativos cujos instrumentos jurídicos de caráter gratuito permitem compartilhar e utilizar a criatividade, assim como o conhecimento. A finalidade é proporcionar infraestrutura que permita maximizar a criatividade digital e a inovação através do acesso autorizado. Diferentemente dos direitos de autor, em que todos os direitos estão reservados, na Creative Commons apenas alguns direitos estão reservados. Em outro sentido, é importante a análise das políticas legais que praticam sites como o Facebook, o Twitter ou YouTube. Em um primeiro momento, o usuário é o titular dos conteúdos que são carregados na plataforma, mas no momento de fazêlo pode conceder aos sites uma licença mundial, não exclusiva, acessível e gratuita5 com direitos de sublicença, transferível para que outros possam usar os conteúdos, reproduzi-los, modificá-los ou distribuí-los, até com fins comerciais. Contudo, tais sites reconhecem e respeitam os direitos de propriedade intelectual de terceiros, portanto se reservam o direito de eliminar o conteúdo que supostamente infrinja esses direitos sem aviso prévio e sob sua total discrição, assim como sem indenização alguma a seu favor (exceto de porto seguro ou safe harbor). Antes de iniciar um procedimento para retirar um conteúdo ilícito da Internet, o professor Gerardo Muñoz de Cote (2016) sugere que se analise estrategicamente a jurisdição e a lei aplicável, o agente e o demandado, o conteúdo infringido, os custos e tempos, assim como a ação por disseminação (Streisand effect6). Feito isso, dá-se

3 O termo copyleft começou a ser utilizado nos anos 70 como uma deformação humorística do copyright, aludindo à reivindicação da liberdade frente aos direitos de autor. 4

Liberdade não necessariamente gratuita.

5

Em alguns casos até se pode entregar o conteúdo “livre de direitos de autor”.

6 Nota do revisor: o “Efeito Streisand” é um fenômeno da Internet que ocorre quando uma tentativa de censurar ou remover algum conteúdo da rede acaba tendo efeito contrário, resultando em sua vasta replicação e acesso. Foi assim nomeado por Mike Masnick em 2003, após caso

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início a um processo similar contido na DMCA (Digital Millennium Copyright Act)7: 1. O titular do conteúdo envia um aviso para o ISP (Provedor de serviço de Internet); 2. A ISP desabilita o conteúdo; 3. A ISP avisa o suposto infrator da reclamação; 4. O suposto infrator pode enviar para o ISP uma contra-notificação (counter cleaner); 5. A ISP restaura o acesso ao conteúdo; 6. O titular inicia um procedimento legal para a desativação permanente do conteúdo; 7. Envia-se uma ação legal para o ISP e este deve desabilitar permanentemente o conteúdo.

2_EPÍLOGO a.

Uma das petições mais aclamadas é, sem sombra de dúvidas, as que realizam no dia a dia o setor bibliotecário, de arquivos e as instituições de ensino. Torna-se importante destacar que tais entidades não pretendem, em nenhum momento, desconhecer os direitos de autor, menos ainda infringir a lei; mas o que buscam é uma harmonização de vontades por parte do legislador, para que se lhes reconheçam legalmente mais e melhores exceções, e assim possam cumprir com seu nobre trabalho de difundir a informação, a cultura e a educação, sobretudo virtualmente ou à distância.

b.

Outro dos temas controversos é o da responsabilidade dos ISP. O professor universitário Federico Pablo Vibes (2015) destaca que o debate está no fato de “que se o intermediário contribui com o prejuízo ocasionado, mediante a colocação à disposição da tecnologia que torna possível a infração, e além disso ganha dinheiro com o prejuízo, então deve responder como infrator secundário” (Vives, 2015, p. 459, tradução nossa).

Para ilustrar a problemática anterior, o citado catedrático em sua obra (Magaña, 2015) manifesta a resolução da Corte de Apelação do Segundo Circuito dos Estados Unidos no caso Viacom vs. YouTube. A Corte resolveu, depois das interpretações que realizou do artigo 512, inciso c, da DMCA, que o ISP não podia invocar a exceção de porto seguro, uma vez que não reagiu de maneira imediata para remover ou impedir o acesso do material; além disso, a Corte aplicou ao caso, ainda que com certas limitações, a doutrina da cegueira voluntária. c.

Um dos desafios que deverão enfrentar os titulares dos direitos é o de determinar a lei aplicável e o tribunal competente. Nessa diretiva, o Dr. Antonio Hidalgo Ballina (2013, tradução nossa) destaca que “o funcionamento descentralizado da rede de redes torna quase impossível hoje em dia aplicar e regular as ações humanas que pela própria rede se expressam”, ou seja, a dificuldade de aplicar as leis nos territórios físicos. Por sorte, o Tribunal de Justiça da União Europeia

envolvendo a atriz e cantora Barbra Streisand. Alegando questões de privacidade, ela processou um fotógrafo e um site em 50 milhões de dólares para que eles retirassem da Internet uma foto aérea em que sua mansão na costa da Califórnia era visível. A notícia fez com que a foto tivesse um aumento expressivo de acessos, logo tomando proporção contrária à que a artista pretendia. 7 Legislação dos Estados Unidos que, entre outras questões, estabelece limitações à responsabilidade dos ISP (Internet service provider, ou provedor de serviço de Internet).

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(Gran Sala), no caso Google Spain, S.L., Google Inc. Vs Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD), Mario Costeja Gonzále (Magaña, 2015), que embora seja certo que o caso é um assunto de proteção de dados e tal jurisprudência não seja vinculativa aos Estados não-membros, poderia servir como soft law, posto que outro dos temas do litígio foi precisamente resolver a competência e a jurisdição na relação com o ISP. Nesse sentido, o Tribunal resolveu (tradução nossa): O artigo 4, parágrafo 1, letra  a), da Diretiva 95/46 deve ser interpretado no sentido de que se leva a cabo um tratamento de dados pessoais no marco das atividades de um estabelecimento do responsável de tal tratamento, em território de um Estadomembro, no sentido de tal disposição, quando o gestor de um motor de busca cria no Estado-membro uma sucursal ou uma filial destinada a garantir a promoção e a venda de espaços publicitários propostos pelo mencionado motor e cuja atividade se dirige aos habitantes deste Estado-membro. (grifo nosso)

O México seguiu o exemplo com outro assunto de proteção de dados pessoais, no expediente PPD.0094/14 contra o Google México, S. de R.L. de C.V.8 (Google México), resolvido pelo então Instituto Federal de Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (IFAI)9, quando um particular queria tornar efetivo seu direito de oposição e cancelamento de dados pessoais. O Google México argumentou em sua defesa que não é a pessoa moral proprietária que presta, nem administra, a operação do serviço de motor de busca “Google”, orientando assim o titular a dirigir-se a Google International LLC e Google Inc., cujo domicílio se encontra na Califórnia, EUA. Contudo, o órgão garantidor do México não considerou como válida tal defesa ao evidenciar que do instrumento notarial nº. 38,627, Google México, S. de R.L. de C.V., está integrada pelos sócios Google International LLC e Google Inc. e que, além disso, na citada ata constitutiva se menciona seu objeto social (tradução nossa): A comercialização e venda de publicidade online e produtos e serviços de comercialização direta, no México ou no exterior, por conta própria ou de terceiros, assim como a prestação de todo tipo de serviços através de meios eletrônicos, incluindo, sem limitar, serviços de motor de busca, de mensagem instantânea, de correio eletrônico, de armazenamento, reprodução e retransmissão de dados e serviços similares anexos e conexos. (grifo nosso)

O então IFAI revogou a resposta do Google México, requisitou que se fizessem efetivos os direitos de oposição e cancelamento do titular e ordenou iniciar o procedimento de imposição de sanções, confirmando assim sua competência e jurisdição sobre o famoso motor de busca.

8 O leitor pode consultar o texto completo da resolução em 9 Depois da reforma constitucional de 2014 se outorgou plena autonomia ao órgão garantidor e se transformou no Instituto Nacional de Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI).

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Com relação ao anteriormente narrado, e parafraseando o Dr. Federico Pablo Vibes (2015), a inovação trouxe novos benefícios que contribuíram para a informação e a comunicação. No entanto, se não se respeitam os conteúdos de propriedade intelectual de terceiros, isso significa menos ganhos para os titulares dos direitos e, como consequência, menos investimento para a criação de novas obras.

TAMPOUCO OS DIREITOS À INFORMAÇÃO, A EDUCAÇÃO E A CULTURA ESTÃO NECESSARIAMENTE EM BRIGA COM OS DIREITOS DE AUTOR

Finalmente, vale a pena dizer que a tecnologia não é boa nem má, depende do uso que lhe é dada. Tampouco os direitos à informação, a educação e a cultura estão necessariamente em briga com os direitos de autor, simplesmente os primeiros, em alguns casos, estão condicionados: na hipótese de querer-se usar uma obra protegida, é necessário contar com a permissão do titular do direito, uma vez que este investe tempo, esforço e até dinheiro para criar suas obras; portanto, é justo que se reconheça seu esforço, pedindo previamente as autorizações para usar livremente a obra ou pagando-o, quando aplicável. Reitera-se que é indiscutível a necessidade de um verdadeiro equilíbrio entre a propriedade intelectual e o livre fluxo da informação. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Ackerman, J., & Sandoval, I. (2015). Leyes de Acceso a la Información en el Mundo. Cuadernos de Transparencia. Vol. 07. México: INAI. Aguilar, J. (2008). Transparencia y democracia: claves para un concierto. Cuadernos de Transparencia Vol. 10. México: INAI. Ballina, A. H. (2013). Derecho informático. México: Flores Editor y Distribuidor. Cendejas, M. (2007). Evolución histórica del derecho a la información. Revista de Derecho Comparado de la Información, 10. México: Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM. Recuperado de De la Parra, E. (2015). Libertad de expresión y acceso a la información. Colección de Textos sobre Derechos Humanos. México: CNDH. Díaz, Á. (2008). América Latina y el Caribe: La propiedad intelectual después de los tratados de libre comercio. Nações Unidas, CEPAL. Recuperado de

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Fernández, C., & Chaves, J. (2010). Excepciones al derecho de autor en beneficio de las bibliotecas: situación de América Latina y el Caribe. Chile: IFLA. Recuperado de Fundação Conector, & Open Connection (2016). Texto de observaciones del sector bibliotecario nacional al proyecto de ley por la cual se modifica la ley 23 de 1982 y se adiciona la legislación nacional en materia de derecho de autor y conexos. Recuperado de Kenneth, C. (2008). Estudio sobre las limitaciones y excepciones al derecho de autor en beneficio de bibliotecas y archivos. Genebra: Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Recuperado de Magaña, J. (2013). Curso de derechos de autor en México. México: Novum. Magaña, J. (2015). El caso Viacom vs YouTube: un nuevo paso hacia la delimitación de la responsabilidad de los intermediarios en Internet por infracciones al derecho de autor. Estudios en materia de propiedad industrial e intelectual. México: Novum. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (2010). El Derecho de Acceso a la Información en el marco jurídico americano. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Recuperado de Resolução contra Google México INAI (2014). Recuperado de Sentença do Tribunal de Justiça (Gran Sala) (2014). Recuperado de

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

RAFAEL RÍOS NUÑO Advogado pela Universidad de Guadalajara e mestrando em Transparência e Proteção de Dados Pessoais pela mesma instituição. Também é mestrando em Propriedade Industrial, Direitos de Autor e Novas Tecnologias pela Universidad Panamericana.

JOSÉ BENJAMÍN GONZÁLEZ MAURICIO Advogado pela Universidad de Guadalajara, amicus curiae da Corte Interamericana de Direitos Humanos em opinião consultiva do Panamá (2015).

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

A PROPRIEDADE INTELECTUAL NA ECONOMIA DIGITAL SILVANA CRISTINA RIVERO Advogada na Universidade de Buenos Aires, mestrado em Direito Empresarial pela Universidade de San Andrés [email protected] Argentina

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

_TEMÁTICA Conteúdo e bens culturais na Internet Problemas emergentes da internet

_RESUMO As obras amparadas pelo regime de propriedade intelectual devem ser protegidas na era digital, tanto no âmbito offline como online. Consciente das perspectivas que a economia digital gera, cabe questionável como garantir que essa observância seja efetiva e se é conveniente adotar outras medidas para facilitar o cumprimento dos direitos na rede ou, pelo contrário, ajustar ou reduzir as existentes. Nesse sentido, é vital garantir o objetivo final para qual a propriedade intelectual se propõe no campo tecnológico, que não é outro a não ser o de incentivar o desenvolvimento da inovação. Palavras chave: inovação; propriedade intelectual; economia digital

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1_INTRODUÇÃO Nesta era onde a economia digital tem uma função preponderante, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) são fundamentais para o desenvolvimento econômico. Entre os ativos que são implantados e disseminados por esses meios estão as obras de propriedade intelectual, que diante deste panorama enfrentam novos desafios. Não há dúvida sobre a aplicação da propriedade intelectual no campo das TIC em geral e na Internet, em particular. Uma vez que os trabalhos offline estão protegidos, os que são usados e disseminados online devem ser protegidos também. A questão é como garantir que a execução seja efetiva e se é desejável adotar outras medidas para facilitar o cumprimento dos direitos na rede ou, pelo contrário, ajustar ou reduzir as existentes. As empresas possuem vários mecanismos de apropriação e proteção dos resultados que seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento geram. A nível legislativo, com as variações existentes até hoje em cada nação, pode-se identificar o regime de patentes, modelos de utilidade, desenhos industriais, direitos de autor e segredo comercial. Por sua vez, cabe considerar que, a nível global, atualmente há uma assimetria em relação ao uso de mecanismos de propriedade intelectual nos países em desenvolvimento e aqueles usados nos países desenvolvidos, sendo superior neste último caso. Isso está ligado à capacidade de inovar e gerar produtos e/ou serviços tecnológicos nas diferentes regiões (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, [CEPAL], 2016). Dadas as perspectivas que a economia digital gera, também é interessante considerar em qual alcance as obras de propriedade intelectual deveriam ser protegidas no âmbito digital. Neste sentido, é vital garantir o objetivo final que a propriedade intelectual se propõe no campo tecnológico, que não é outro a não ser de incentivar o desenvolvimento da inovação. Para isso, devemos considerar os problemas envolvidos no uso das obras no novo ambiente, entre os quais podemos identificar a proteção dos direitos dentro do âmbito territorial e o uso dessas obras através das TIC, o que gera um uso fora das fronteiras de um país. Nesse sentido, é necessário contemplar o cenário fornecido pelos serviços de computação em

É VITAL GARANTIR O OBJETIVO FINAL QUE A PROPRIEDADE INTELECTUAL SE PROPÕE NO CAMPO TECNOLÓGICO, QUE NÃO É OUTRO A NÃO SER DE INCENTIVAR O DESENVOLVIMENTO DA INOVAÇÃO

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nuvem (“Cloud Computing”)1 bem como o fenômeno fornecido pelos dispositivos de Internet das Coisas (“Internet of Things”)2 e os Serviços Over The Top (OTT)3. A descrição anterior está relacionada ao dilema ainda não resolvido, em relação à jurisdição e lei aplicável na Internet, o que causa incerteza quanto à proteção e aplicação dos direitos de propriedade intelectual. Como efeito disso, o que está sendo esclarecido é o escopo dos direitos, como são definidos e quais exceções e limitações são contempladas nesta área digital, tanto quanto como os direitos devem ser administrados e exercidos neste ambiente. Outra questão a ser resolvida é o fato de o exercício dos direitos e exceções na Internet, como foi exposto até agora nos meios tradicionais, perde o sentido. Um exemplo claro é o uso e distribuição de obras de propriedade intelectual em formato digital, o que gera desafios para o que até então era considerado o direito de reprodução, bem como o direito de execução pública. Ao mesmo tempo, deve-se identificar as vantagens que a economia digital pode gerar para obras de propriedade intelectual, entre as mencionadas, a difusão e a escalabilidade do uso de intangíveis através das TIC. Ao mesmo tempo, a propriedade intelectual, exercida dentro da lei, é um novo mecanismo para incentivar o desenvolvimento e a inovação na Sociedade da Informação

2_A PROPRIEDADE INTELECTUAL E OS DESAFIOS NA ECONOMIA DIGITAL Entre os produtos e/ou serviços que podem ser protegidos pelo regime de propriedade intelectual no ambiente digital estão todos aqueles que contêm música, fotografias, programas de computador, desenhos industriais, marcas, nomes de domínio, entre outros. Esses recursos podem ser encontrados em programas, redes, sites, plataformas, aplicativos e qualquer outro meio que permita o acesso à obra.

1 Cloud Computing: O Instituto Nacional de Normas e Tecnologia dos EUA (NIST, na sigla em inglês) e seu laboratório de tecnologia da informação definiram este novo conceito da seguinte forma: “[...] é um modelo para permitir um acesso conveniente sob demanda a um conjunto compartilhado de recursos computacionais configuráveis, por exemplo, redes, servidores, armazenamento, aplicações e serviços, que podem ser rapidamente dispostos e lançados com o mínimo esforço de administração ou interação com o provedor de serviços “(Mell, & Grance, 2011, tradução nossa). 2 Internet das Coisas, IdC, Internet of Things ou IoT por suas abreviaturas em inglês: compreende coisas cotidianas que se conectam à Internet. Desta forma, os objetos podem ser previamente conectados por circuito fechado, como comunicadores, câmeras, sensores, entre outros, e permite que eles se comuniquem de forma global através do uso da Internet. 3 Serviços Over The Top (OTT): é um serviço online, potencialmente um substituto dos serviços tradicionais de telecomunicações e audiovisuais que possuem suporte na rede, como telefonia vocal, SMS e televisão, usando o Protocolo TCP/IP para o seu funcionamento.

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Atualmente, o valor desses ativos intangíveis de propriedade das empresas é tão alto que excede a de seus produtos tangíveis. Por este motivo é ainda mais importante proteger os resultados dos desenvolvimentos. No âmbito da propriedade intelectual, é possível distinguir o direito de autorcopyright, por um lado, e a propriedade industrial, por outro. No primeiro caso, estamos lidando com a proteção de expressões de trabalhos originais, enquanto no segundo caso é uma questão de proteger a invenção, logotipo, a forma ou aspecto de um produto específico, entre outras questões específicas que se pretende proteger sob este último regime. Conforme indicado na introdução deste artigo, um tópico a ser considerado ao analisar o mecanismo de proteção aplicável a um determinado intangível no ambiente digital é a determinação da territorialidade da proteção. Certos regimes são aplicáveis a nível nacional, de modo que diante da necessidade de fazê-los valer fora das fronteiras de uma determinada soberania há um ônus para o titular do direito, que envolve a realização dos procedimentos e registros necessários nas jurisdições onde procura-se fazer valer a ação. Esse é o caso de marcas e patentes, com exceção dos casos em que se aplica o Acordo de Madri relativo ao Registro Internacional de Marcas (Organização Mundial da Propriedade Intelectual [OMPI], 1989) e o PCT – o Sistema Internacional de Patentes (OMPI, 2017). Outros regimes normativos, como os direitos de autor, são protegidos globalmente além do local de registro do trabalho, desde que a Convenção de Berna se aplique ao caso. Essa circunstância está ligada ao fato de que o registro em certos casos é constitutivo de direitos, enquanto às vezes é exigido para fins de evidência. Em resumo, o problema da jurisdição e da lei aplicável gera que certos intangíveis tenham apenas proteção territorial, de modo que sua distribuição através da Internet cria a necessidade de definir regras e mecanismos ágeis para proteção em outras jurisdições. Existe normativa internacional aplicável aos países membros, como a Convenção de Berna anteriormente mencionada (OMPI, 1979), que se refere a obras de direitos de autor estrangeiros e indica que deve ser cumprido o princípio da proteção automática na qual nenhum país deve subordinar a proteção do trabalho estrangeiro ao cumprimento de qualquer formalidade. Consequentemente, a tutela deve ser concedida pela simples invocação do direito. Por sua vez, a Convenção Universal sobre o Direito de Autor adotou no art. III uma fórmula que consiste na inclusão de […] símbolo © juntamente com o nome do titular do direito de autor e a indicação do ano da primeira publicação, o símbolo, o nome e o ano devem ser colocados de forma a mostrar claramente que os direitos autorais estão reservados [...] (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 1952, tradução nossa).

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O cumprimento de tal fórmula tem o efeito de substituir qualquer formalidade exigida pela lei interna naqueles países que ratificaram a convenção. Atualmente impera o art. 50 da Convenção de Berna (OMPI, 1979), que elimina os efeitos de qualquer formalidade exigida pela lei nacional em relação às obras estrangeiras naqueles países em que as duas convenções se aplicam. Em relação à propriedade industrial, além dos mecanismos já mencionados, a nível internacional existe a Convenção de Paris (OMPI, 1883), por meio da qual não se pretende eliminar a independência dos sistemas normativos na matéria e, nesse sentido, não se procura anular a existência da territorialidade da propriedade industrial. No entanto, os princípios são estabelecidos para mitigar os efeitos da restrição espacial. Assim, o art. 2.1. da Convenção indica que […] os cidadãos de cada um dos países da União gozarão em todos os outros países da União, no que diz respeito à proteção da propriedade industrial, as vantagens que as respectivas leis concedem atualmente ou no futuro aos nacionais [...] [acrescentando que] eles devem ter a mesma proteção que essas e o mesmo recurso legal contra qualquer ataque a seus direitos, desde que preencham as condições e formalidades impostas aos nacionais. (OMPI, 1883, tradução nossa).

Embora a Convenção de Paris, como a Convenção de Berna, abranja aspectos do problema, seu objetivo é, acima de tudo, codificar leis substantivas. Por sua vez, o Acordo sobre os ADPIC (Organização Mundial do Comércio, 1994) criou um sistema abrangente para a aplicação dos direitos de propriedade intelectual. Sem prejuízo a ele, quando este acordo foi aprovado a Internet estava tendo suas primeiras manifestações no campo comercial, e o comércio eletrônico, como é conhecido hoje, não era previsto. Desde meados da década de 1990, a Internet experimentou um desenvolvimento ininterrupto, o que coloca novos desafios aos mecanismos tradicionais de aplicação de direitos de propriedade intelectual (OMPI, 2000, p. 31). A Organização Mundial do Comércio tem discutido tratados internacionais para que o uso de obras no ambiente digital seja reduzido apenas às modalidades autorizadas pelo proprietário. Entre os instrumentos atualmente em negociação estão o Acordo de Comércio Anti-Falsificação (ACTA, pelo seu nome em Inglês) e o Acordo Estratégico Transpacífico de Associação Econômica (TPP, também pelo seu nome em inglês) (Cortes 2014). Uma questão que foi levantada sobre a proteção da propriedade intelectual no nível jurisdicional é aquela vinculada ao bloqueio de conteúdo ou aplicações online. Esse tipo de bloqueio é usual quando se destina a acessar o conteúdo através das fronteiras, devido a restrições territoriais ligadas ao regime de propriedade intelectual. Com isso, as práticas de bloqueio geográfico incluem a recusa dos consumidores de um estado no acesso aos conteúdos dos sites da web baseados em outros estados. Essas práticas podem afetar o acesso ao conteúdo. A situação descrita deve ser considerada para tomar medidas para mitigar ou impedir o bloqueio geográfico de forma indevida, o que, por

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sua vez, leva ao debate sobre os efeitos gerados pela autorização territorial exclusiva e, nesse sentido, os freios que pode gerar na industria. Nesta linha se encontram os mecanismos de conformidade imediata, que incluem a geração de quadros que estipulam um rápido cumprimento por provedores de serviços de Internet. Atualmente, podemos identificar as disposições de notificação e supressão previstas no Digital Millennium Copyright Act dos Estados Unidos de 1998 (OMPI, 2000, p. 32). Este tipo de meio gerou controvérsias em relação às garantias que devem ser respeitadas e ao órgão competente que deve zelar sobre elas. Por outro lado, em relação às vantagens mencionadas na introdução deste artigo, é possível indicar o uso que as TICs permitem das marcas – entendida como aquele sinal distintivo que tem a capacidade de identificar um produto e/ou serviço específico –, o que faz com que elas assumam um papel relevante na economia digital, já que quando o contato entre fornecedor e consumidor é perdido, a marca é a que identifica o produto e/ou serviço e, nesse sentido, atrai o usuário de forma online. Por essa razão, a situação descrita provoca a difusão desses intangíveis em um mercado mais amplo e, ao mesmo tempo, gera maior relevância quanto à função que eles cumprem. Outro aspecto pensado como uma vantagem é o vinculado à distribuição online e, nesse sentido, o uso legal do conteúdo. Isso está vinculado às licenças concedidas online, eliminando muitos dos custos de transação envolvidos nas formas tradicionais de obtenção, além de processos mais ágeis e adequados às novas demandas do mercado digital. Essas ferramentas, em particular se utilizadas no âmbito de um sistema eletrônico de gerenciamento de direitos de autor (Electronic Copyright Management System, ECMS), podem contribuir significativamente para promover o respeito dos direitos de propriedade intelectual na Internet (OMPI 2000, 34). Finalmente, me deterei em outro aspecto que o comércio eletrônico introduz, como fator da economia digital, relacionado ao desenvolvimento do comércio entre usuários, bem como a suposição em que o mesmo usuário é aquele que é proprietário de ativos intangíveis. Um exemplo é o caso da provisão de serviços Cloud Computing, tanto a plataforma como serviço (PaaS) através dos quais o usuário instala e executa o software próprio ou outra informação própria (industrial, comercial, científica, etc.). Todos os pressupostos acima mencionados (e muitos outros que não foram analisados neste artigo por conta de sua brevidade), juntamente com seus problemas e vantagens, mostram a necessidade de apresentar um debate sobre o regime de propriedade intelectual que se pretende resguardar diante do espaço digital.

3_CONSIDERAÇÕES FINAIS Entre os mecanismos que podem ser promovidos para garantir o cumprimento efetivo dos deveres derivados do regime de propriedade intelectual online há aqueles que tendem a alcançar a solução de controvérsias, que podem ser efetivas para acelerar e reduzir os custos derivados desde que sejam preservadas certas garantias, como o devido processo.

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Outro instrumento que pode ser útil para alcançar uma delimitação dos direitos e deveres envolvidos na propriedade intelectual é estabelecer um limite para a responsabilidade dos intermediários por conteúdo de terceiros, cujo objetivo é garantir segurança jurídica sobre o mecanismo a ser utilizado pelos prestadores para dar lugar aos direitos reivindicados pelos proprietários das obras, mas ao mesmo tempo contemplar as garantias que devem ser protegidas, dentre as quais são mencionadas a liberdade de expressão. Ao buscar soluções ou mecanismos adequados, deve-se considerar a necessidade de proporcionar cooperação internacional na proteção da propriedade intelectual, conscientes do fato de que a Internet não distingue fronteiras. Outra maneira de facilitar o uso e o exercício adequado de obras de propriedade intelectual online é estabelecer políticas de bom comportamento ou certos padrões tanto para aqueles que são usuários quanto para aqueles que carregam e/ou tratam o conteúdo. Isso para evitar usos ilegítimos e possíveis abusos no exercício desses direitos de propriedade intelectual pelos detentores. Resta indicar que a economia digital causa um consumo tal de conteúdo que exige uma mudança nas regras do jogo até agora aplicáveis em relação à propriedade intelectual. A modernização dessas regras, em termos de exercício de direitos e cumprimento de obrigações no campo digital, é uma questão delicada; no entanto, é de vital importância tratá-la para conseguir um maior acesso a esses recursos e, conseqeentemente, o objetivo final do regime de propriedade intelectual. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (2016). Ciencia, tecnología e innovación en la economía digital: La situación de América Latina y el Caribe. Segunda reunión de la Conferencia de Ciencia, Innovación y TIC de la CEPAL. Santiago. p. 29-30. Recuperado de Cortes, C. (2014). La gobernanza de Internet: la trampa de las formas. Centro de Estudios en Libertad de Expresión y Acceso a la Información. p. 9. Recuperado de Mell, P., & Grance, T. (2011). The NIST Definition of Cloud Computing. National Institute of Standards and Technology. U.S. Department of Commerce. NIST Special Publication, 800-145.

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CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

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SILVANA CRISTINA RIVERO Assessora legal e de políticas públicas no Departamento de Política Nacional e Desenvolvimento da Internet do Ministério de Modernização da Nação (Argentina), é sócia na firma Maryva, especializada em direito e tecnologia. Trabalhou para Carranza Torres & Asociados, empresa especializada em propriedade intelectual; como parte dos serviços prestados, atuou no MercadoLibre S.R.L. como advogada in house. Atualmente é docente no curso de Negócios Tecnológicos da Faculdade de Direito e Ciências Sociais.

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INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA

INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

POLÍTICAS DE INOVAÇÃO PARA APERFEIÇOAR O USO DA TECNOLOGIA POR POPULAÇÕES IMIGRANTES MARTHA CISNEROS Mestre em Ciência da Informação e Gerenciamento de Conhecimento, ITESM 2012. [email protected] México

DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA Mestre em Sociedade, Ciência e Tecnologia, European Master’s Programme. [email protected] México

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INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

_TEMÁTICA Inclusão digital Inovação e capacitação tecnológica

_RESUMO O fenômeno da imigração está causando uma reconfiguração nas sociedades e, se não for corretamente abordado, poderá dar origem a novos tipos de desigualdades. No presente trabalho, as autoras argumentam que as políticas de inovação são importantes para aperfeiçoar o uso da tecnologia por populações de imigrantes e para reduzir as desigualdades que podem estar presentes devido à falta de oportunidades para participar de atividades que exigem conhecimento. Ainda existe uma fraca coordenação entre os programas existentes de amparo aos imigrantes e a agenda digital e os programas de treinamento oferecidos a essas comunidades ao redor do mundo. Palavras chave: políticas; imigração; tecnologia

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1_INTRODUÇÃO O uso da Internet — seja através da banda larga ou de dispositivos móveis — tornouse uma ferramenta poderosa para ampliar as oportunidades econômicas para milhões de pessoas e melhorar a qualidade de vida delas de maneiras significativas. O rápido crescimento e a crescente demanda por dispositivos móveis podem ter um grande impacto na capacidade das populações migrantes de se adaptarem à comunidade local. As tecnologias móveis podem continuar a mudar a forma como as pessoas aprendem e exercem seus direitos e responsabilidades dentro de seus governos. Educação de qualidade, desenvolvimento de cidades e comunidades sustentáveis e redução de desigualdades fazem parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas para 2030. Por essa razão, a importância da disponibilidade, a nível nacional, de estratégias como as políticas de inovação promotoras de programas sociais que incentivem a igualdade e a inclusão em diferentes níveis, e que devem ser promovidas e estimuladas aos cidadãos que vivem no exterior, também conhecidos como imigrantes. Neste artigo, discutimos a importância da inclusão social ser incluída no escopo das políticas de inovação. Exploramos o fenômeno da imigração como um exemplo de como a agenda digital dos governos pode promover a inclusão entre seus cidadãos e como o uso da tecnologia, especificamente dispositivos móveis, pode atenuar a brecha digital (digital divide), promovendo a cidadania digital.

2_AS POLÍTICAS DE INOVAÇÃO DEVEM SE PREOCUPAR COM A INCLUSÃO SOCIAL? Os legisladores (policy makers) têm um papel importante na sociedade, visto que contribuem para a formulação de algumas das regras que deverão ser seguidas por todas as pessoas a fim de viverem em paz e harmonia. As discussões políticas preocupam-se em dar prioridade às questões que a sociedade considera mais importantes. Como Bruno Latour (2013) manifesta, os políticos são os principais atores no processo de negociação para reordenar tais prioridades, concedendo a oportunidade de inclusão às entidades que foram excluídas na construção do coletivo1. Por essa razão, os legisladores possuem uma responsabilidade incontestável de concederem as mesmas oportunidades a todos os indivíduos. Certamente, em matéria de uso e acesso à tecnologia, as políticas de inovação não estão excluídas. Os Sistemas Nacionais de Inovação [SNI] (National Innovation Systems) (cf. Lundvall et al., 2009) são definidos em grande parte pelas políticas e pela agenda digital do governo para incentivar o desenvolvimento tecnológico e a pesquisa. A abordagem que as políticas

1 Bruno Latour (2013) usa a palavra “coletivo” como o conjunto de humanos e não-humanos que conformam a nossa existência. Em seu livro, ele enfatiza que as questões ambientais e a natureza em geral seriam consideradas como parte da realidade na medida em que os diferentes atores – entre os quais os políticos – usam seus poderes para incorporar, negociar e institucionalizar os novos entes no chamado coletivo.

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de inovação levam ao desenvolvimento social deve permitir que os diferentes atores OS FENÔMENOS SOCIAIS da SNI enderecem não apenas assuntos IMPULSIONADOS PELAS relacionados ao crescimento econômico DESIGUALDADES QUE e à produtividade, mas também outros CAUSAM A EXCLUSÃO problemas que poderiam afetar ou impedir DE CERTAS PARTES DA o progresso e a consolidação do próprio sistema de inovação. Alguns exemplos de SOCIEDADE RARAMENTE tais problemas são a falta de educação e o SÃO CONSIDERADOS acesso limitado à soluções e ferramentas ASSUNTOS A SEREM tecnológicas. Paradoxalmente, mesmo que DESENVOLVIDOS NA acadêmicos e organizações internacionais AGENDA DIGITAL concordem em considerar instituições sociais, sistemas financeiros, educação e regulamentação como parte dos SNI, os legisladores geralmente têm uma visão mais limitada (Edquist, 2001; Lundvall et al., 2009) e suas decisões geralmente seguem uma abordagem linear centrada principalmente no investimento e na produtividade, esquecendo a importância da construção de competências e da aprendizagem na construção de um SNI sólido (Lundvall et al., 2009). Como consequência, os fenômenos sociais impulsionados pelas desigualdades que causam a exclusão de certas partes da sociedade raramente são considerados assuntos a serem desenvolvidos na agenda digital. Em vez disso, as políticas de inovação estão mais preocupadas com os problemas que o sistema de inovação pode ter, como baixo desempenho na indústria, publicação de artigos acadêmicos, produção de alta tecnologia, entre outros (Borras & Edquist, 2013). Por outro lado, as questões sociais como a pobreza, a educação ou as disparidades de gênero são consideradas temas exclusivamente de ONGs ou outras instituições que prestam apoio e assistência comunitária. Esta falta de coordenação entre as instituições que trabalham no desenvolvimento social e as que asseguram a configuração correta para o aumento da inovação foi abordada por acadêmicos que estudam a relação entre desigualdade e capacidade inovadora.

2.1_CAPACIDADE INOVADORA DIANTE DAS DESIGUALDADES SOCIAIS A desigualdade de renda está presente principalmente nos estudos que exploram os efeitos negativos que a desigualdade tem na capacidade inovadora em determinado país ou região. Isso pode ser explicado pelo fato de que a pobreza está diretamente relacionada à educação de má qualidade e à condições desfavoráveis,​para se conseguir um emprego bem remunerado. Nesse sentido, Arocena e Sutz (2009) falam sobre os círculos viciosos que estão presentes nessas condições de disparidades sociais. Eles ressaltam que a desigualdade afeta não apenas a capacidade de inovar, mas também o nível de uso e consumo de produtos de alta tecnologia. Quando o acesso à tecnologia não é assegurado para todos, apenas algumas pessoas desfrutam dos benefícios das soluções inovadoras em termos de produtividade e qualidade de vida. Apenas alguns podem consumir e participar do desenvolvimento de novos recursos. Assim, o acesso

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desigual à tecnologia é um obstáculo que precisa ser abordado para garantir o desejado progresso na capacidade inovadora. Segundo Cozzens e Kaplinsky (2009), existem dois tipos diferentes de desigualdades: desigualdade vertical e desigualdade horizontal. A primeira é caracterizada por uma distribuição desproporcional de um bem valorizado entre a população (distribuição de renda geral para uma nação, por exemplo). A segunda também é uma distribuição desigual, mas entre subgrupos culturalmente definidos. A desigualdade horizontal segrega a sociedade por sexo, etnia, nacionalidade, religião etc. Diante desses tipos de desigualdades sociais, as políticas de inovação precisam estar cientes do desenvolvimento de capacidades ao longo dos setores mais vulneráveis da sociedade para garantir que os benefícios da inovação sejam experimentados igualmente por todos. Quanto maior a população que usa e consome tecnologia, maiores as possibilidades de ter pessoas que inovam no futuro. Arocena e Sutz (2003) expõem a existência de brechas de aprendizagem (learning divides) na economia global baseada no conhecimento. Essas brechas acentuam as diferenças entre países e indivíduos e dificultam as oportunidades para participar em tarefas que demandam conhecimento. Para os autores, as sociedades do conhecimento são caracterizadas pela participação de uma proporção razoável da população em atividades onde o “conhecimento é compartilhado, trocado e criado” (Arocena & Sutz, 2003, tradução nossa). No entanto, para participar dessas atividades, são necessárias certas habilidades. É aí que a necessidade de treinamento tecnológico surge e coloca em evidência a divisão entre certos grupos de indivíduos que têm acesso à tecnologia e outros que não.

2.2_IMIGRAÇÃO: OUTRO TIPO DE SEGREGAÇÃO O fenômeno da imigração, que está causando uma reconfiguração de populações inteiras em todo o mundo, está tendo lugar no debate público. Apesar das regras e proibições que alguns governos estão tentando implementar como tentativa de parar a imigração, o número de migrantes internacionais aumentou nos últimos quinze anos (Organização das Nações Unidas, 2016). A migração em massa é uma questão que diz respeito a diferentes lados. De um lado está desafiando a capacidade de resposta dos governos às necessidades dos seus conterrâneos que vivem no exterior e, no caso do país de acolhimento, há uma urgência de esforços que não são necessariamente sobre o controle do afluxo de pessoas, mas principalmente sobre fornecer ajuda àqueles que chegam a se adaptarem da maneira mais fácil possível ao seu novo contexto social. Uma fraca coesão entre populações de habitantes locais e imigrantes que chegam pode resultar em uma nova forma de desigualdade no tecido social. A este respeito, as tecnologias – e as políticas e regulamentos nas quais elas são criadas, aprendidas e utilizadas – podem desempenhar um importante papel para evitar a presença dessas disparidades que podem ser prejudiciais para todos. Frente a estas condições desiguais, é importante lembrar o fato de que as políticas e regulamentos existentes, principalmente preocupados em impulsionar a capacidade inovadora de países e regiões, ajudam não só a fortalecer o crescimento econômico (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, [OCDE], 2015), mas

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também a melhorar os processos de aprendizagem tecnológica (Cimoli, Dosi, Nelson, & Stiglitz, 2009). No entanto, espera-se, na maior parte do tempo, que o desenvolvimento de habilidades essenciais para participar de uma economia baseada no conhecimento seja parte do sistema de educação formal. Por essa razão, a maioria das instituições que constituem o Sistema de Inovação falham em lidar corretamente com a falta de oportunidades que as pessoas excluídas da educação formal têm em relação ao seu treinamento tecnológico. Em resumo, é importante que as partes interessadas (stakeholders) e os legisladores reconsiderem o impacto que as políticas de inovação podem ter na construção de sociedades mais iguais. Ao fornecerem para as pessoas que vivem em condições desfavoráveis não apenas as ferramentas tecnológicas, mas também o treinamento certo para usá-las, os governos podem reduzir as desigualdades que afetam as sociedades.

3_IMIGRAÇÃO E USO DA TECNOLOGIA Cornelius (2004) afirma que os motivos da mobilidade migratória, suas causas e efeitos, acontecem em dois polos. Do polo da expulsão, as causas da emigração são o rápido crescimento demográfico, a deterioração persistente do meio ambiente, a diminuição dos níveis de bem-estar social e econômico, bem como o impacto dos fenômenos políticos como as turbulências das violentas e irregulares mudanças de governo, perseguição religiosa, entre outras. Do polo receptor, constituído principalmente por países desenvolvidos, as consequências mencionadas acima terão impacto nos mercados de trabalho, na segurança das comunicações e nos serviços sociais e educacionais. Por um lado, o polo receptor é constituído principalmente por economias desenvolvidas, como EUA, Alemanha ou França. Os desafios que a imigração representa para esses países de acolhimento são bem conhecidas e foram documentadas por muitos séculos: quantos imigrantes aceitar, quais direitos e serviços especiais fornecer e como controlar a imigração não documentada. Além disso, de acordo com Cornelius (2004), democracias modernas, como Austrália e Holanda, agora enfrentam as mesmas questões. No entanto, os Estados Unidos da América, por exemplo, um país que foi fundado por imigrantes há cerca de 300 anos, continua a prosperar e a lidar com o fenômeno da imigração de diferentes ângulos. Temas políticos, econômicos e de educação são alguns dos principais problemas que as democracias modernas têm de lidar como parte dos resultados da chegada de imigrantes de todo o mundo. A criação de um ambiente multicultural no mercado de trabalho local e nas comunidades faz parte desse fenômeno da imigração desde o seu princípio. Por outro lado, os problemas que os países do polo de expulsão enfrentam são também parte desse fenômeno da imigração. Esses países costumam ter uma economia subdesenvolvida, apesar de terem mudado ao longo dos anos devido ao surgimento de uma economia compartilhada e uma revolução da informação digital que está “capacitando o uso potencial de novas tecnologias e com o complexo conjunto de estratégias, políticas, investimentos e ações, eles podem ser capazes de criar

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REFUGIADOS SÍRIOS QUE EMIGRARAM PARA PAÍSES COM LÍNGUA E CULTURA DIFERENTES, COMO A TURQUIA E A ALEMANHA, TÊM UTILIZADO APLICATIVOS DE SMARTPHONES PARA DAREM RUMO ÀS SUAS NOVAS VIDAS EM UM NOVO SISTEMA POLÍTICO

oportunidades digitais para seus emigrantes” (G8 Information Center, 2001, tradução nossa). Embora existam programas sociais para imigrantes em suas comunidades locais dentro do novo país de residência, habilitados pelo país de origem, os programas de literacia digital estão longe de ser implementados como parte dessas iniciativas sociais. Existem programas sociais de apoio à saúde e aos componentes educacionais.

Por exemplo, o México, de acordo com o Instituto Nacional das Mulheres (2013) – INMUJERES em espanhol –, através da própria organização e de diversas agências governamentais, promove 77 programas que prestam ajuda e orientação sobre questões relacionadas à educação, emprego, financiamento e investimento, proteção de pessoas mexicanas no exterior, proteção no México, remessas de valores, saúde, tecnologias da informação e do conhecimento, entre outros. Embora o governo mexicano tenha habilitado programas de TIC por todo o Departamento de Relações Exteriores, não se pode presumir que esses programas sejam acessíveis à população alvo. Os indicadores de dados que fornecem informações sobre o uso real das plataformas ou o impacto delas em seu público-alvo são essenciais para verificar se os recursos utilizados nessas plataformas são proveitosos e se são realmente usados ​por imigrantes. Uma análise mais aprofundada da praticidade e acessibilidade desses recursos também deve ser encorajada. Outro exemplo é o número de medidas legislativas que o governo da Colômbia tomou para apoiar vários programas para incentivar os seus cidadãos que vivem no exterior. Por meio de seu Departamento de Relações Exteriores e de acordo com um relatório publicado pelo Migration Policy Institute, eles promovem o programa Colombia Nos Une, com o objetivo de “criar as condições pelas quais os cidadãos colombianos que desejam migrar possam fazê-lo de forma voluntária e ordenada, garantindo a proteção de seus direitos, mantendo as suas conexões com a Colômbia e amparando o seu eventual retorno” (Migration Policy Institute, 2015, tradução nossa). Entre as suas ofertas, o Colombia Nos Une constrói e mantém plataformas virtuais para estrangeiros no exterior para estabelecer conexões e construir relacionamentos com colegas colombianos. O programa, chamado Portal RedEsColombia, oferece redes baseadas em interesses compartilhados, incluindo comércio, prestação de serviços sociais e cultura. Talvez seu sucesso na divulgação pela web possa ser medido pela quantidade de dinheiro que os colombianos têm doado através de plataformas online que facilitam e incentivam os membros da diáspora do país a contribuir para projetos específicos de desenvolvimento na Colômbia. O país tem uma estratégia digital que fortaleceu os seus processos de governança digital e que fornece dados para a medição de impacto.

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Do outro lado do oceano, os refugiados sírios que emigraram para países com língua e cultura diferentes, como a Turquia e a Alemanha, têm utilizado aplicativos de smartphones para darem rumo às suas novas vidas em um novo sistema político. Gherbtna é um bom exemplo: trata-se de um aplicativo para smartphone criado em 2016 por um refugiado sírio que vive na Turquia, e tem sido um sucesso de acordo com as estatísticas, com mais de 40.000 downloads, 90.000 curtidas no Facebook e uma média de 3.000 visualizações de páginas diárias no site. O aplicativo tem quatro serviços, de acordo com o Mashable, portal de notícias sobre tecnologia (Lopez, O., 2016): Informações, relacionadas aos procedimentos de asilo e divulgação de infográficos e animações; Notícias; Oportunidades, que anuncia apartamentos e empregos legalmente permitidos para refugiados; e Ajuda, onde refugiados podem fazer perguntas sobre saúde, educação e outros serviços jurídicos. O rápido crescimento das tecnologias móveis e sua adoção facilitou o acesso a novas ferramentas e novas formas de comunicação entre populações vulneráveis. Os imigrantes, como parte dessas populações, baseiam a comunicação digital com seus governos e familiares através de dispositivos móveis. O acesso a um computador pode estar ao alcance de suas mãos através de programas sociais de interação com a tecnologia, tanto no polo receptor quanto no emissor, ou como produto da colaboração entre eles. O custo da educação formal ou alternativa para a alta tecnologia poderia ser um obstáculo para os governos melhorarem sua estratégia de contato digital para seus conterrâneos. Para atestar o acesso e uso de dispositivos móveis, consideramos para essa pesquisa uma estatística sobre o uso de dispositivos móveis por latinos na cidade de Nova York, nos EUA. Os dados apresentados são baseados num estudo adulto de 12 meses do Estudo de Consumo Nacional (National Consumer Study, NCS/NHCS) do verão de 2015 (final de julho de 2014 a início de setembro de 2015), reunidos através do sistema Simmons OneViewTarget2. Os resultados apontaram que 24,5% (683.356) da população latina3 que vive em Nova York usa a Internet. A maioria utiliza o telefone celular (99%) (Figura 1) e mídias sociais (75%). Eles frequentemente acessam sites de rede sociais/ compartilhamento por meio de diferentes dispositivos (91%), visitando um site de redes sociais 3 ou mais vezes por dia, com 58% usando o Facebook.

2 O sistema Simmons OneViewTarget contém dados do Estudo de Consumo Nacional, pesquisa anual sobre os hábitos de compra e mídia dos consumidores dos EUA 3

Refere-se aos latinos como qualquer pessoa de descendência latino-americana e/ou imigrantes.

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Figura 1

Alcance %: Últimos 30 dias 100

99%

98%

80 70%

60

0

51%

47%

40 20

77%

70%

34%

29%

22%

Leitor Console de eletrônico videogame

Revistas

Telefone celular

MP3

Jornais

Computador no trabalho

Rádio

Tablet

Televisão

Fonte: Produção própria, com informações da Pew Research (Lopez, M., Lopez, G., Brown, 2016).

As estatísticas anteriores estão focadas na população latina nos EUA em geral, no qual os imigrantes são uma parte importante. De acordo com a Pew Research (Lopez, M., Lopez, G., Brown, 2016), os latinos ficaram para trás em comparação com outros grupos no acesso à Internet por meio de um computador e na aquisição de serviços de banda larga em casa. Em vez disso, estavam entre os mais propensos a possuir um smartphone, a viver em uma casa sem um telefone fixo, em que apenas um telefone celular está disponível, e a acessar à Internet por meio de um dispositivo móvel. Mesmo a população imigrante se espalhando por todo o mundo, a população hispânica nos EUA é parte da Pew Research para ilustrar o impacto do uso da Internet em dispositivos móveis.

4_BRECHA DIGITAL E CIDADANIA DIGITAL Dois dos principais problemas de desenvolvimento para a adoção de soluções baseadas na Internet em populações de maioria imigrante são a brecha digital e a falta de um sistema de apoio educacional que promova a cidadania digital. Primeiro, a disparidade entre as pessoas com acesso efetivo à tecnologia digital e da informação e aquelas com acesso muito limitado ou nenhum é conhecida principalmente como brecha digital. A disparidade tanto no acesso à Internet quanto nos recursos para desenvolver a formação e as habilidades necessárias para colaborar adequadamente com a sociedade da informação como cidadão digital ativo são dois dos principais obstáculos no caminho para reduzir a brecha digital em todo o mundo. Por um lado, o acesso físico à tecnologia, incluindo a Internet, melhorou significativamente devido à capacitação de iniciativas sociais e não governamentais (cf. OCDE, 2017) através de instituições internacionais. Um exemplo específico é o Banco Mundial, que fortaleceu a conectividade de TIC na África do Sul com colaboração contínua para promover projetos que expandam as capacidades de governo eletrônico. Programas de responsabilidade corporativa que promovem o acesso de baixo custo à Internet, como a Iniciativa

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de Acesso a Preços Acessíveis da Microsoft (Microsoft Affordable Access Initiative) (cf. Microsoft, 2017), têm desempenhado papel importante na redução da disparidade na acessibilidade da Internet. No entanto, os desafios para ter acesso completo e igual à tecnologia em todo o mundo provaram-se enormes. De acordo, por exemplo, com o relatório ICT Facts and Figures, publicado pela União Internacional de Telecomunicações (2016), no final de 2016 cerca de 53% da população mundial ainda não possuía acesso à Internet. Nesse mesmo relatório também é possível ver a diferença entre as regiões: enquanto a Europa tem cerca de 79% de sua população conectada, a África tem apenas 35%. Isso prova as grandes disparidades de oportunidades que existem para as pessoas que vivem em diferentes países ao redor do globo. Segundo, há falta de políticas educacionais e de inovação que endossem a cidadania digital como parte importante do currículo e como prioridade para programas vocacionais e sociais que promovam a conscientização sobre o que significa ser um cidadão no ciberespaço. De acordo com o MIT Press (2006), a cidadania digital é a capacidade de participar da sociedade online. A cidadania digital é crucial para a inclusão social (Warschauer, 2003), pois garante o acesso, o uso, a adaptação e a produção do conhecimento. Para promover a participação da cidadania digital, Mike Ribble (2015), autor da ISTE4, propõe nove elementos principais que os estudantes devem conhecer para ajudálos a navegar na Internet: (1) Literacia, Direitos & Responsabilidades, (2) Etiqueta, (3) Acesso, (4) Comércio, (5) Segurança, (6) Comunicação, (7) Lei, (8) Saúde e (9) Bem-estar. Esses elementos principais, de uma forma ou de outra, foram implementados na educação formal dos EUA, mas a falta de políticas que promovam esse currículo e da acessibilidade a essa informação em um ambiente de aprendizagem não-formal que foque em populações vulneráveis em ​​ todo o mundo ainda é um objetivo a ser alcançado. Sem uma compreensão clara do que significa participar ativamente como cidadão em uma sociedade digital, continuaremos enfrentando problemas como cyberbullying, violação de dados, riscos de segurança etc. Neste ponto, é importante lembrar que a educação é fundamental para promoção de oportunidade e prosperidade. Por fim, as políticas de inovação que apoiam a criação de oportunidades educacionais podem ajudar a envolver os indivíduos na sociedade digital. No que diz respeito à imigração, programas de treinamento para a cidadania digital podem ajudar a endossar o processo de adaptação dos recém-chegados a um novo contexto cultural, pois a inclusão social também pode ser exercida no mundo digital.

5_CONCLUSÕES Estudos de inovação já abordam há algum tempo o dano que as desigualdades sociais podem causar na capacidade de inovação de um determinado país ou região. Conforme enfatizado neste ensaio, essas desigualdades muitas vezes se relacionam

4 A International Society for Technology in Education (Sociedade Internacional para Tecnologia em Educação) é uma ONG no campo da tecnologia da educação.

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com a distribuição de renda e a falta de oportunidades para participar em atividades que exigem conhecimento. O fenômeno da imigração está causando uma reconfiguração nas sociedades e, se não for corretamente abordado, poderá dar origem a novos tipos de desigualdades. Embora existam algumas iniciativas para ajudar as populações imigrantes a se adaptarem ao seu novo contexto social, há uma questão que permanece negligenciada: apesar de as populações imigrantes estarem aumentando o uso de tecnologia para se comunicarem e acessarem serviços governamentais através de plataformas web, elas nem sempre são capazes de aproveitar ao máximo esse uso. A tecnologia representa tanto oportunidades quanto desafios para os governos que visam fornecer ferramentas aos seus cidadãos no exterior e para aqueles que trabalham ajudando as populações imigrantes a se adaptarem a seu novo lar. A fim de garantir um uso justo das ferramentas tecnológicas para a população-alvo, encoraja-se que governos ofereçam treinamento para todos os indivíduos que possam não ter as habilidades necessárias para o uso adequado dessas tecnologias. Apesar de existirem algumas estatísticas sobre o uso da tecnologia em alguns países, reconhecemos que é necessária uma análise mais aprofundada para compreender plenamente o impacto que os dispositivos tecnológicos e o uso de plataformas online têm para fornecer serviços às populações imigrantes. Ter uma melhor apreciação do nível de acesso e uso real dos serviços online e de outras ferramentas tecnológicas poderá ajudar na elaboração de políticas e regulamentos direcionados ao apoio e fortalecimento da inclusão social. Artigo originalmente escrito em inglês

_REFERÊNCIAS Arocena, R., & Sutz, J. (2003). Inequality and innovation as seen from the South. Technology in Society, 25, 171–182. Arocena, R., & Sutz, J. (2009). Sistemas de innovación e inclusión social. Pensamiento Iberoamericano, 5, 101-120. Borras S., & Edquist, Ch. (2013). The choice of innovation policy instruments. Technological Forecasting & Social Change, 80, 1513–1522. Cimoli, M., Dosi, G., Nelson R., & Stiglitz, J. (2009). Institutions and policies in developing economies. In Lundvall, B.-A. et al .(Ed.) Handbook of Innovation Systems and Developing Countries: Building Domestic Capabilities in a Global Setting. Massachusetts: Edward Elgar Publishing Limited.

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Cornelius, W. (2004). Controlling Immigration: A Global Perspective. Stanford California: Stanford University Press. Cozzens, S., & Kaplinsky, R. (2009). Innovation, poverty and inequality: cause, coincidence, or co-evolution? In Lundvall, B.-A. et al. (Ed.) Handbook of Innovation Systems and Developing Countries: Building Domestic Capabilities in a Global Setting. Massachusetts: Edward Elgar Publishing Limited. Edquist, Ch. (2001). The Systems of Innovation Approach and Innovation Policy: An account of the state of the art. Recuperado de G8 Information Center (2001). Digital Opportunities for All: Meeting the Challenge Report of the Digital Opportunity Task Force (DOT Force) including a proposal for a Genoa Plan of Action. University of Toronto. Recuperado de Instituto Nacional das Mulheres (Instituto Nacional de las Mujeres) (2013). Directorio de programas institucionales dirigidos a la población migrante 2013. Recuperado de Latour, B. (2013). Políticas de la Naturaleza: Por una democracia de las ciencias (Tradução de Puig E.). Barcelona: RBA Libros. Lopez, M., Lopez, G., & Brown, A. (2016). Digital Divide Narrows for Latinos as More Spanish Speakers and Immigrants Go Online. Pew Research. Recuperado de Lopez, O. (2016). These are the apps refugees are using to find their way in Europe. Mashable. Recuperado de Lundvall, B.-A., et al. (2009). Handbook of Innovation Systems and Developing Countries: Building Domestic Capabilities in a Global Setting. Massachusetts: Edward Elgar Publishing Limited. Microsoft (2017). Affordable Access Initiative. Recuperado de Migration Policy Institute (2015). The Colombian Diaspora in the United States. Recuperado de MIT Press. (2016). Defining Digital Citizenship. Recuperado de Organização das Nações Unidas, Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais, Divisão da População (2016). International Migration Report 2015: Highlights.

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Recuperado de Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2015). Innovation Policies for Inclusive Development: Scaling Up Inclusive Innovations. Recuperado de Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2017). Key Issues for digital transformation in the G20. Recuperado de Ribble, M. (2015). Digital Citizenship in Schools: Nine Elements All Students Should Know. Eugene, EUA: ISTE. Recuperado de Simmons Research LLC. (2010). Summer 2015 NHCS Adult Study 12-month. [Arquivo de dados]. Recuperado da base de dados da Simmons OneView. União Internacional de Telecomunicações (2016). ICT Facts and Figures 2016. Retirado de Warschauer, M. (2003). Technology and Social Inclusion: Rethinking the Digital Divide. Massachusetts: MIT Press.

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MARTHA CISNEROS Martha Cisneros é engenheira de Tecnologia da Informação (TI) com seis anos de experiência no setor privado e público, atualmente cursando Mestrado em Administração Pública na Marxe School of Public of International Affairs - Baruch College em Nova York. Sua pesquisa se concentra em tecnologia educacional, direito da imigração e análise de políticas de Internet. Ela é uma Internet Society Next Generation Leader da turma de dezembro de 2015.

DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA Dámaris Contreras trabalhou como engenheira de software por mais de cinco anos na área de TI. Possui mestrado em História e Filosofia da Ciência pela University of Strasbourg e é credenciada pelo European Master’s Programme em Sociedade, Ciência e Tecnologia por sua especialização em Economia e Gestão da Inovação. Sua pesquisa está focada em política de inovação, inovação social, desigualdade e desenvolvimento.

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RUMO AO ILUMINISMO DIGITAL: COMO CONSTRUIR PENSADORES CRÍTICOS NA ERA DIGITAL? FERNANDO A. MORA Ph.D. em Ética, pesquisador visitante do Instituto Ibero-americano em Berlim, Alemanha. [email protected] México

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_TEMÁTICA Inovação e capacitação tecnológica Problemas de gênero e de juventude na Internet

_RESUMO As sociedades devem dedicar-se a um novo projeto educacional para formar cidadãos que façam um uso responsável da tecnologia e, especificamente, da tecnologia digital. Inspirado pela ideia de Kant de ‘se atreva a pensar por contra própria!’ e por críticos do pensamento tecnológico, como Adorno, Horkheimer, Byung-Chul e Habermas, o artigo propõe um modelo educacional não puramente baseado na tecnologia, mas também no pensamento crítico. O verdadeiro desafio educacional visa criar para a juventude de hoje e para as novas gerações, ferramentas e habilidades inseridas em um “iluminismo digital” que, com base na ideia educacional de Tony Wagner, desenvolvem capacidades e habilidades para que as pessoas possam se adaptar ao mundo digital. Palavras chave: educação; tecnologia; millennials

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INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA “Nada é tão doloroso para a mente humana quanto uma grande e repentina mudança.” Mary W. Shelley, Frankenstein, “Nós moldamos nossas construções e elas, então, nos moldam”. Winston Churchill,

O filme “Her”, vencedor do Oscar em 2014 de Melhor Roteiro Original, conta a história de um homem que se apaixona por um sistema operacional de computador (Samantha). O enredo se desenrola em um futuro próximo, em um mundo não tão ficcional, onde a sociedade está acostumada a realizar todas as suas atividades por meio da tecnologia. O filme apresenta um cenário em que as pessoas criaram tamanha simbiose com as ferramentas tecnológicas que os usuários e os gadgets começam a desenvolver relacionamentos normalmente considerados exclusivos de seres humanos, como amizade e amor. Há um momento no filme em que Samantha mostra sinais de autoconsciência: “Você sabia? Eu costumava AFINAL, A me preocupar por não ter um corpo, mas agora eu TECNOLOGIA realmente amo isso... Eu não estou amarrada ao tempo É AMORAL; É ou ao espaço da maneira que eu estaria se eu estivesse INDEPENDENTE presa em um corpo que inevitavelmente morreria”. Embora o filme levante velhas questões que preocuparam DE IDEIAS, COMO filósofos durante décadas – como, por exemplo, se O BEM E O MAL, criaturas não biológicas, como Samantha, são capazes E APENAS O USO de ter consciência, ou se algum dia poderemos enviar as QUE AS PESSOAS nossas mentes para um computador e viver para sempre FAZEM DELA –, ele também apresenta uma questão bastante profunda ESTÁ SUJEITO AO que deve ser resolvida prontamente. Já estamos em um ESCRUTÍNIO DA ponto decisivo: a tecnologia – especialmente no mundo ÉTICA. digital – está se tornando cada vez mais humanizada e, por outro lado, a humanidade tende a se tornar cada vez mais tecnológica. Um breve olhar ao relato de Joel Garreau sobre como a Agência Americana de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (American Defense Advanced Research Projects Agency [DARPA]) está trabalhando na remodelação do núcleo e da natureza dos seres humanos é uma imagem vívida do futuro quando os humanos poderão ser capazes de conectarem seus cérebros a uma rede Wi-Fi (Garreau, 2005). Enquanto alguns cientistas estão expandindo os limites da condição humana, alguns filósofos estão muito céticos sobre a simbiose homemtecnologia, indicando que ela poderá ter um alto custo: a desumanização da própria humanidade. Este artigo não tenta fazer um absurdo e malsucedido esforço para defender uma humanidade “destecnologizada”, ou chamar atenção para um lado diabólico da tecnologia. Afinal, a tecnologia é amoral; é independente de ideias, como o bem e o mal, e apenas o uso que as pessoas fazem dela está sujeito ao escrutínio da ética. A intenção reside no projeto educacional que a sociedade deve se dedicar agora, a fim

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de construir cidadãos que façam um uso responsável da tecnologia e, especificamente, da tecnologia digital. Marc Prensky, especialista em educação, chama a atenção para o fato de que os jovens de hoje são a primeira geração formada nos novos avanços tecnológicos, que os envolveu pela imersão, visto que os jovens estiveram desde sempre cercados por computadores, vídeos, videogames, música digital, telefones celulares e outros aparelhos (Prensky, 2012). Esta imersão na qual a geração Y e a pós-geração Y (millennials e pós-millennials) se tornou habituada levanta dúvidas sobre se estes jovens sabem como usar essas ferramentas de forma responsável e em benefício deles, e que isso não seja uma suposição dada como certa. Ter um tablet, smartphone, laptop ou um aparelho de ponta não significa necessariamente que um usuário possua as habilidades tecnológicas e não tecnológicas para tirar proveito de tal aparelho. Hoje em dia, existe a crença de que todos os problemas podem ser resolvidos através da simples presença da tecnologia. Existe uma obsessão em criar aplicativos para todos os tipos de problemas. Mas será que a tecnologia digital é realmente uma ferramenta para criar melhores seres humanos e, como consequência, melhores sociedades? Agora que a Internet está coabitando nossa vida cotidiana, temos uma geração de jovens que usam a tecnologia para se envolverem mais na política, para serem cidadãos mais informados ou para melhorarem as suas vidas e, por sua vez, as suas comunidades? Ou será que essas ferramentas estão sendo usadas apenas para lazer e prazer pessoal? Alessandro Baricco, famoso escritor italiano contemporâneo, chamou a atenção para a natureza disruptiva da geração Y, que respira pelas brânquias do Google e valoriza a velocidade em detrimento de profundidade (Baricco, 2008). AGORA QUE A Ele chama a geração Y de “bárbaros” porque eles INTERNET ESTÁ estão “destruindo” ou reformulando os modos COABITANDO NOSSA tradicionais e antigos de seres civilizados. De VIDA COTIDIANA, modo algum, é um grito de nostalgia onde os TEMOS UMA GERAÇÃO velhos tempos eram melhores; pelo contrário, é DE JOVENS QUE USAM uma constatação da realidade de que as novas A TECNOLOGIA PARA gerações estão mudando temerariamente SE ENVOLVEREM os valores da sociedade devido à renovação MAIS NA POLÍTICA, acelerada da tecnologia.

PARA SEREM CIDADÃOS MAIS INFORMADOS OU PARA MELHORAREM AS SUAS VIDAS E, POR SUA VEZ, AS SUAS COMUNIDADES?

É verdade que a Internet começou uma revolução da informação nunca antes vista desde a imprensa de Gutenberg: a chamada era da informação, onde as pessoas têm acesso a um vasto mundo de conteúdo e podem se conectar com a população global. No entanto, assim como no século 15, a invenção da impressão não foi, por si só, causa de uma sociedade voltada

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ao Iluminismo, mas uma enorme oportunidade para as pessoas terem acesso ao conhecimento que era exclusivo das elites. No século 21 é necessário repensar as habilidades apropriadas que nossas sociedades exigem a fim de se obter maiores benefícios proporcionados pelos avanços tecnológicos. Immanuel Kant, em seu ensaio “O que é Iluminismo?”, resume o espírito do Iluminismo na famosa locução latina sapere aude! Ou, “se atreva a pensar por contra própria!” (Kant, [1784] 1979, tradução nossa). O filósofo alemão observa a urgência das sociedades constituídas por pessoas independentes e de pensamento livre responsáveis​​ por elas próprias e pela sociedade. Ou seja, Kant enfatiza que o Iluminismo significa formar indivíduos que são capazes de produzir suas decisões, criticar sua realidade e respeitar as leis que permitem o bem comum. Desta forma, fazendo referência à ideia kantiana, o verdadeiro desafio educacional visa produzir nos jovens e nas novas gerações ferramentas e habilidades inseridas em um “iluminismo digital”. Pessoas imersas no mundo digital que são capazes de usar ferramentas tecnológicas através do pensamento crítico, cidadãos responsáveis que ​​ se concentram no pleno desenvolvimento de si mesmos e da sociedade a que pertencem. Algumas correntes educacionais estão procurando desenvolver a inovação educacional e estão enfatizando a inclusão do conhecimento tecnológico em programas acadêmicos. Nessa vertente, existem disciplinas em cursos como História, Matemática, Finanças, Psicologia, Literatura etc., em que o uso de smartphones, tablets e aplicativos tornou-se sinônimo de inovação. No entanto, a simples inclusão de tecnologia na disciplina de qualquer curso não deve ser considerada uma forma de educação inovadora. A inovação seria fazer com que as ferramentas tecnológicas abrissem novas oportunidades para que os alunos possam enriquecer, manipular, transformar e aplicar o conhecimento que cada disciplina oferece. Aristóteles, o grande filósofo grego, dividiu as virtudes práticas em dois níveis (Aristóteles, 1983). A primeira e a mais baixa refere-se à técnica (techné). Esta virtude é orientada para a produção, e dá uma resposta à pergunta: como algo pode ser produzido? Refere-se à posse de habilidades e conhecimentos que permitem que a pessoa transforme uma coisa em outra, por exemplo, a técnica de um carpinteiro de transformar madeira bruta em um bom móvel. No segundo nível, existe a virtude da prudência (frônese), que Aristóteles define como a sabedoria prática que permite ao indivíduo deliberar e escolher o que mais lhe convém em sua vida como um todo. Desta forma, a posse dessa virtude permite que uma pessoa obtenha felicidade e satisfação. Essa virtude dá uma resposta à pergunta: o que é melhor para mim? Ao contrário da técnica, a prudência transforma a própria pessoa por meio das ações individuais que ela desenvolve em sua vida. Por exemplo, essa prudência ou sabedoria prática é um equilíbrio entre o conhecimento e as habilidades que permitem que uma pessoa decida quantos chocolates deve comer para apreciá-los moderadamente sem arriscar a sua saúde. Sob este entendimento, a prudência ou a sabedoria prática têm mais peso no desenvolvimento das pessoas, porque é através do conhecimento associado a essa

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virtude que o indivíduo cresce e se aproxima de um estado de bem-estar. Ou seja, através da técnica, um sapateiro dominará a arte de produzir melhores sapatos, mas será através da sabedoria prática que o sapateiro será capaz de tomar as melhores decisões para sua vida e assim conseguir o bem-estar. Ao aplicar nos modelos educacionais, apenas uma ênfase na aquisição e formação da técnica, uma dimensão mais ampla e mais crítica da vida das pessoas é esquecida. Atualmente, temos uma geração que pensa em 140 caracteres e publica suas ideias e sentimentos em murais. O conhecimento técnico dessas ferramentas digitais é quase inerente ao seu contexto. Apesar disso, alguns modelos educacionais continuam a enfatizar o desenvolvimento dessas habilidades técnicas. Ter conhecimento tecnológico é bom; não há dúvida sobre isso. Por exemplo, hoje em dia, saber programar é uma habilidade valiosa, altamente apreciada por muitas empresas. No entanto, saber como posso usar a programação para melhorar a minha vida e a vida das pessoas é um conhecimento elevado que não está apenas relacionado à técnica, mas também à sabedoria prática. Esse último tipo de conhecimento não é adquirido através do domínio da tecnologia, mas através do pensamento crítico, que permite que as pessoas usem a tecnologia disponível para resolver problemas. Max Horkheimer e Theodor Adorno em Dialectics of Enlightenment revelaram desencantamento sobre o conceito de “progresso”, quando acompanhado de conhecimento técnico ou razão tecnológica. Eles afirmam que apostar exclusivamente em um tipo de raciocínio tecnológico levou a humanidade a um pensamento cegamente pragmatizado, que perde seu caráter de superação e preservação e, portanto, também a sua relação com a verdade. A ideia de progresso e domínio sobre a natureza é a herança do pensamento iluminista: tire o medo dos homens e os transforme em mestres (Horkheimer & Adorno, 2002). Horkheimer e Adorno indicam que a promessa de razões tecnológicas para alcançar um estado de bem-estar foi um engano de razão iluminada. A crise do projeto de Iluminismo reside na ideia de que o conhecimento deve ser mais técnico do que crítico. O medo desses filósofos alemães era que a boa vontade misteriosa das massas educadas tecnologicamente caísse sob o feitiço de qualquer despotismo, devido à ausência de pensamento crítico. O filósofo coreano Han Byung-Chul resgata essa ideia e fala da sociedade da fadiga. Ele denuncia que as pessoas, hoje, optaram pela submissão e o fizeram em troca de um modo de vida pouco interessante, quase de pura sobrevivência. Em troca desse tipo de vida, as pessoas renunciaram à sua soberania e à sua liberdade. No passado, agentes externos como escravidão ou sistemas feudais exploravam pessoas. Agora, em um modelo neoliberal, as pessoas se tornaram exploradoras de si mesmas. No neoliberalismo, o trabalho é sinônimo de realização pessoal ou otimização pessoal, até o colapso do indivíduo. A sociedade da fadiga é uma sociedade de autoexploração; o homem tornou- se “carrasco e vítima de si mesmo”, lançado em um terrível abismo: o fracasso (Byung-Chul, 2012).

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A presença constante de ferramentas digitais em nossas vidas incentiva e intensifica essa autoexploração. Smartphones, tablets e outros aparelhos a tornaram possível. Em relação a isso, é um pouco irônico que o emblemático smartphone da empresa RIM tenha optado pelo nome de Blackberry, pois, durante os tempos da escravidão nos Estados Unidos, “blackberry” era um dos nomes da bola de ferro que era acorrentada aos pés dos escravos negros. A forte ênfase e busca pelo conhecimento técnico levam a uma sociedade destinada à frustração e ao fracasso. Uma sociedade ausente de ferramentas que permite que as pessoas deem significado à vida. A sociedade torna-se um conglomerado de autômatos incorporados na vida profissional sem intenções ou sonhos a serem realizados. No final, quão gratificante é uma cultura de obsessão por mídia social? A multiplicação tão prontamente disponível é tão efêmera e insubstancial quanto as muitas ocasiões de nossas vidas que ela replica (Newberger Goldstein, 2014). A expansão do nosso universo digital – Second Life, Facebook, MySpace, Twitter – não mudou apenas a forma como gastamos nosso tempo, mas também como construímos identidade. Por isso, devemos começar a perguntar-nos: que tipo de sociedade estamos construindo se ela for fundamentada em cópias digitais de nós mesmos? Portanto, apostar apenas na inclusão do conhecimento tecnológico nos modelos educacionais gerará jovens ideais para a vida profissional, mas incapazes de se encarregarem de suas vidas. Por essa razão, a proposta é que os modelos educacionais retornem aos princípios originais do Iluminismo delineados por Kant e os adaptem à geração Y imersa no avanço tecnológico. Consequentemente, educar com inovação deve visar a construção de pessoas com habilidades e capacidades que lhes permitam usar as ferramentas tecnológicas em seu benefício e em benefício da sua sociedade. Nesse sentido, a educação pode ser entendida no conceito alemão de Bildung, que inclui uma formação holística: religiões, artes, consciência moral e os processos de produção e reprodução social. A ideia de Bildung indica um processo ativo e dinâmico voltado para a transformação da realidade. Desta forma, o filósofo Johann G. Herder a define como um processo intelectual de formação, educação e realização da plenitude humana ligada ao conceito de Aufklärung, que é o iluminismo entendido como o despertar da consciência racional (Subirats, 2013). Embora

devam

incluir

a

inovação

tecnológica, os modelos educacionais não devem perder de vista o fato de que a sua principal

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EMBORA DEVAM INCLUIR A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA, OS MODELOS EDUCACIONAIS NÃO DEVEM PERDER DE VISTA O FATO DE QUE A SUA PRINCIPAL MISSÃO É PERMITIR QUE AS PESSOAS SE DESENVOLVAM COMO INDIVÍDUOS.

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missão é permitir que as pessoas se desenvolvam como indivíduos. Desta forma, a intenção da educação é formar nos jovens as habilidades adequadas para se adaptarem às mudanças constantes. O especialista em inovação educacional Tony Wagner afirma que as sete habilidades mais importantes a serem desenvolvidas nos alunos são: o pensamento crítico e resolução de problemas, colaboração em redes e influência via liderança, agilidade e adaptabilidade, iniciativa e empreendedorismo, comunicação efetiva (tanto oral quanto escrita), acesso e análise de informação, e curiosidade e imaginação (Wagner, 2010). A primeira habilidade, pensamento crítico e resolução de problemas, referese à capacidade de ser curioso e de se questionar por que as coisas são como são e simultaneamente pensar por que algo é importante. Embora a ideia do pensamento crítico seja uma frase que recentemente se tornou moda no mundo da educação, não se deve ignorar que a intenção de desenvolver essa habilidade refere-se a indivíduos com uma compreensão mais ampla dos problemas em andamento. Ou seja, eles podem ver além do presente, pensar sobre o futuro e pensar sistematicamente para poder conectar os pontos. É uma maneira menos linear de pensar onde as pessoas podem conceituar, mas também sintetizar uma grande quantidade de informações (Wagner, 2010). A segunda habilidade de Tony Wagner refere-se à capacidade de trabalhar em colaboração. É o reconhecimento do contexto atual em que os indivíduos que podem se envolver em redes de pessoas por meio das fronteiras e culturas diferentes tornaram-se um requisito essencial para empresas multinacionais (Wagner, 2010). A habilidade ressoa com a ideia já anunciada por Manuel Castells: “As redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difusão da lógica da rede modifica substancialmente o funcionamento e os resultados de processos de produção, experiência, poder e cultura” (Castells, 2001, tradução nossa). Embora a forma de organização social por meio de redes já tenha existido em outros momentos e lugares, o novo paradigma da tecnologia fornece uma base para sua ampla expansão em qualquer estrutura social. Assim, a capacidade de colaborar em redes é uma capacidade essencial para se adaptar ao mundo contemporâneo. Paralelamente, dada a vasta velocidade das mudanças – sociais, econômicas e tecnológicas – no contexto atual, a capacidade de agilidade e adaptabilidade é fundamental. A capacidade de responder a mudanças disruptivas e a paixão em aderir a novas ideias tornaram-se essenciais. Uma quarta habilidade refere-se aos indivíduos que podem tomar iniciativa e serem empreendedores enquanto buscam por novas oportunidades, ideias e estratégias de melhoria. Devido ao rápido ritmo de mudanças, os indivíduos com as maiores oportunidades serão aqueles que são altamente adaptáveis ​​e aproveitam as novas oportunidades. As habilidades mencionadas tornam-se inválidas se não houver habilidade real de se comunicar efetivamente de forma oral ou escrita. Atualmente, muitos jovens trabalhadores têm dificuldade em serem claros e concisos; eles são incapazes de expressar os seus pensamentos efetivamente. A tecnologia tornou ainda mais complexa essa

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capacidade. Agora, além das formas tradicionais, também é necessário se comunicar efetivamente através de apresentações, videoconferências, e-mails e mensagens de texto. Então, agora, a chave para essa habilidade reside não só em poder comunicar os pensamentos de forma clara e concisa, mas também a capacidade de criar um foco, bem como transmiti-lo com energia e paixão. A sexta habilidade mencionada por Wagner referese à capacidade de encontrar e analisar informações, uma habilidade fundamental em um mundo digital. Devido à quantidade exorbitante de informações que as pessoas têm de lidar diariamente tanto em seus empregos quanto em suas vidas pessoais, hoje, ser um cidadão ativo e informado, não se limita a ser capaz de ler jornais. Agora, uma pessoa deve ser capaz de encontrar e avaliar informações de várias fontes diferentes; distinguir notícias verdadeiras e falsas, baseadas em fato ou em uma mera opinião. Uma habilidade ligada ao pensamento crítico. Por fim, ter uma capacidade de curiosidade e imaginação é essencial para o desenvolvimento nos jovens. A criatividade e a inovação são fatores-chave não só para a resolução de problemas, mas também para o desenvolvimento de produtos, serviços e ideias (Wagner, 2010). Além disso, essa habilidade dá um elemento mais humano ao mundo que tende utilizar a automação em todas as suas dimensões e vê os trabalhadores como peças substituíveis.

A PROPOSTA DO ILUMINISMO DIGITAL BASEIASE NA INTENÇÃO, POR UM LADO, DE DESENVOLVER CAPACIDADES E HABILIDADES QUE PERMITAM QUE AS PESSOAS SE ADAPTEM AO MUNDO DIGITAL. POR OUTRO LADO, TAMBÉM SIGNIFICA QUE AS PESSOAS PODERÃO REFLETIR SOBRE OS OBJETIVOS DE SUAS VIDAS, CONSCIENTES DO USO RESPONSÁVEL DA TECNOLOGIA E CAPAZES DE COLABORAR NO DESENVOLVIMENTO DE SUAS COMUNIDADES

Tempos Modernos, o filme mudo de Charlie Chaplin, é uma paródia clássica ao trabalhador desumanizado por causa da tecnologia. Atuando como um trabalhador da linha de montagem, o personagem de Chaplin sempre está metido em problemas com os chefes e acaba ficando preso nas engrenagens da máquina. Ele é simplesmente uma peça substituível. Um modelo educacional com o objetivo de treinar futuros técnicos acabará por fornecer peças humanas substituíveis para as empresas. Essas sete habilidades de sobrevivência descritas por Tony Wagner são consideradas as principais competências para as gerações presentes e futuras. Habilidades para trabalhar, aprender e gerar cidadania no século 21. No entanto, na forma como elas são exibidas, parece que continuam sendo habilidades que só respondem à lógica do trabalho. Se os sistemas educacionais se destinarem a gerar essas capacidades nos jovens, eles produzirão futuros profissionais capazes de se adaptar ao mundo do trabalho, mas ainda faltarão as ferramentas vitais que lhes permitirão responder questões humanamente essenciais, como “O que eu devo fazer com minha vida?”

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Tomando as ideias já apontadas por Theodor Adorno e Max Horkheimer em “A Dialética do Esclarecimento” (“Dialectic of Enlightenment”), Jürgen Habermas é um crítico acentuado da razão instrumental: um tipo de razão que inclui modos de ação baseados em deliberações racionais sobre a eficácia dos meios. O medo de Habermas pela razão instrumental baseia-se no fato de que o controle tecnológico sobre a natureza funciona como uma ideologia; uma tela que esconde o personagem portador de valores e que responde à manutenção do status quo capitalista. A razão instrumental torna-se palpável nas práticas do mercado, onde os anúncios de diferentes produtos existem exclusivamente para vender mais e gerar mais serviços, o que não é pernicioso em primeira instância, pois esse é o objetivo de qualquer empresa. No entanto, o perigo reside quando as práticas começam a “colonizar” – nas palavras de Habermas – outros aspectos do mundo. Por exemplo, quando as empresas dedicadas a produzir e vender bebidas refrescantes são anunciadas como empresas que geram “felicidade” e uma “vida saudável”. Habermas diz que a humanidade esqueceu a outra metade do projeto do Iluminismo. Embora a razão instrumental para o progresso tenha sido explorada, a dimensão cultural da modernidade foi esquecida. A racionalidade consiste não só em possuir um conhecimento particular, mas também em como indivíduos capazes de falar e agir adquirem e usam esse conhecimento (Habermas, 1999). Com trabalhos sendo automatizados e com o conhecimento sendo desvalorizado, os humanos precisam redescobrir o pensamento flexível. Isso começa nas escolas. Charlotte Blease explica que: No futuro próximo, os alunos das escolas precisarão de outras habilidades. Em um mundo onde a perícia técnica é cada vez mais limitada, as habilidades e a confiança para transitar entre disciplinas serão excelentes. Precisaremos de pessoas que estejam dispostas a perguntar e a responder as questões que não são respondidas pelo Google: por exemplo, quais são as ramificações éticas da automação das máquinas? Quais são as consequências políticas do desemprego em massa? Como devemos distribuir a riqueza em uma sociedade digitalizada? Como sociedade, precisamos ser mais engajados filosoficamente (Blease, 2017, tradução nossa).

A proposta do Iluminismo Digital baseia-se na intenção, por um lado, de desenvolver capacidades e habilidades que permitam que as pessoas se adaptem ao mundo digital. Por outro lado, também significa que as pessoas poderão refletir sobre os objetivos de suas vidas, conscientes do uso responsável da tecnologia e capazes de colaborar no desenvolvimento de suas comunidades; atentas ao fato de que o projeto da modernidade pode tornar-se patológico quando o dinheiro e o poder colonizam o mundo da vida (Habermas, 1999). Portanto, as universidades não devem ser governadas por estratégias de mercado, e sim proteger a si próprias e a missão original delas a fim de estimular o desenvolvimento

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integral das pessoas. Embora seja necessário proporcionar habilidades de trabalho para os jovens, também deve-se desenvolver um senso de humanidade que os permita deliberar sobre o que é desejável para a vida deles e para os outros. Sob esta premissa, o Iluminismo Digital contempla desenvolver habilidades como as mencionadas por Tony Wagner, porém orientadas a permitir que as pessoas tenham ótimas ferramentas para dar sentido às suas vidas. Além disso, ele reconhece que a busca da inovação tecnológica isoladamente pode ser perversa no desenvolvimento das gerações futuras. Embora o pensamento crítico seja vital para o ensino e o conhecimento, a abordagem dada nos últimos anos a essa habilidade levou a uma geração que admira o desprezo como sinal de inteligência. Examinando rapidamente o Twitter e as linhas de tempo do Facebook, se descobre que o cinismo e o sarcasmo são os novos símbolos da inteligência, menosprezando o valor da admiração e da ignorância que acompanham a dúvida. O cinismo distancia as pessoas da escuta e do diálogo, e da participação colaborativa. Se hoje continuarmos criando jovens cínicos, incapazes de reconhecer a autoignorância sem medo, no futuro teremos adultos desempregados incapazes de colocar-se na posição uns dos outros. Por essa razão, a inovação educacional deve incentivar a abertura, participação e oportunidade. Deve ser projetada para levar o estudante além do campus da universidade para uma vida de aprendizado contínuo e pragmático baseado em fontes inesperadas e que aumente a nossa capacidade de compreender e contribuir para o mundo (Roth, 2014); desenvolvendo uma forte bússola moral nos estudantes, ainda relevante na era digital. Não é por acaso que Damon Horowitz, o filósofo do Google, é responsável pela direção da engenharia da empresa e incita o desenvolvimento de um sistema operacional moral. Uma pista de que os monstros da tecnologia começam a perceber que o futuro não será dos técnicos capazes de manipular a tecnologia, mas das pessoas com as ferramentas e o entendimento para dar a resposta às perguntas, como “O que fazer com a tecnologia? E para onde direcioná-la?” Sherry Turkle explica a oportunidade que temos de moldar as nossas sociedades de forma positiva, em que a tecnologia é uma aliada e não uma ameaça: Relacionamentos com robôs estão aumentando; relações com as pessoas estão diminuindo. Em que caminho estamos andando? A tecnologia se apresenta como uma rua unidirecional; é provável que descartemos os descontentamentos sobre a sua direção porque os lemos como um crescimento da nostalgia ou um impulso antimáquinas ou simplesmente como algo em vão. Mas quando nos perguntamos o que nós “sentimos falta”, podemos descobrir o que realmente nos importa, o que acreditamos que vale a pena ser protegido. Nós nos preparamos não necessariamente para rejeitar a tecnologia, mas para moldá-la de maneiras que honram o que consideramos querido. Nós fazemos nossas tecnologias, e elas,

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INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA por sua vez, nos moldam. Portanto, sobre toda tecnologia nós devemos perguntar: ela atende aos nossos propósitos humanos? Uma pergunta que nos faz reconsiderar quais são esses propósitos. As tecnologias em todas as gerações apresentam oportunidades para refletir sobre nossos valores e nossa direção (Turkle, 2012, p.19, tradução nossa).

No Iluminismo Digital, o modelo educacional para a geração Y e nativos digitais deve criar pessoas e cidadãos que, além de saberem como usar as novas tecnologias, possuam um critério ético para conduzi-la na direção dos melhores propósitos. Além disso, assumir a responsabilidade de incluir jovens marginalizados da era digital. Ou seja, abraçar o compromisso de trazer aqueles que, devido a diferentes fatores, ainda não se beneficiaram dos avanços tecnológicos. E, por fim, que a frase kantiana sobre ousar usar a nossa própria razão não seja apenas orientada para a visão moderna do progresso ou para as leis do mercado, mas seja também direcionada a encontrar novas e melhores soluções para o desenvolvimento de nossas vidas pessoais, assim como das nossas comunidades. Se os avanços tecnológicos nos conduzirem a isso, estaremos mais perto de nos reconhecer como uma sociedade iluminada. Artigo originalmente escrito em inglês

_REFERÊNCIAS Aristóteles. (1983). Ética Nicomaquea (Tradução de A. G. Robledo, 2ª ed.). México: Universidad Nacional Autónoma de México. Baricco, A. (2008). Los bárbaros: ensayo sobre la mutación (Tradução de X. González Rovira). Barcelona: Anagrama. Blease, C. (2017). Philosophy can teach children what Google can’t. The Guardian. Recuperado de Byung-Chul, H. (2012). La sociedad del cansancio (Tradução de A. Saratxaga). Barcelona: Herder. Castells, M. (2001). The Internet Galaxy: Reflections on the Internet, Business, and Society. Nova York: Oxford University Press. Garreau, J. (2005). Radical Evolution. Nova York: Broadway Books. Habermas, J. (1999). Teoría de la acción comunicativa, I. Madri: Taurus.

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Horkheimer, M., & Adorno, T. (2002). Dialectic of Enlightenment (Tradução de E. Jephcott). Stanford: Stanford University Press. Kant, I. ([1784] 1979). ¿Qué es la Ilustración? (Tradução de E. Ímaz, 2ª ed.). México: FCE. Newberger Goldstein, R. (2014). What Would Plato Tweet.  Recuperado de: Prensky, M. (2012). From Digital Natives to Digital Wisdom. London, UK: Corwin. Roth, M. S. (2014). Young Minds in Critical Condition. The New York Times. Recuperado de Subirats, E. (2013). Mito y Literatura. Barcelona: Siglo XXI. Turkle, S. (2012). Alone Together: Why We Expect more from Technology and Less from Each Other. Nova York: Basic Books. Wagner, T. (2010). The Global Achievement Gap. Nova York: Basic Books.

FERNANDO A. MORA Ph.D. em Ética do Campus Tecnológico de Monterrey, Cidade do México, e agora pesquisador visitante do Instituto IberoAmericano em Berlim, na Alemanha. Implementou estratégias de tecnologias educacionais e busca preparar jovens para responder as questões que não são respondidas pelo Google. Sua experiência profissional e formação acadêmica perpassa as áreas de Ética, Educação e Democracia.

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PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET

PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

COMO A “COLONIZAÇÃO DE MERCADO” DA INTERNET TRANSFORMOU CIDADÃOS EM MEROS CONSUMIDORES? MARKETIZAÇÃO DO ESPAÇO ONLINE GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ Mestre em Políticas Públicas, Hertie School of Governance [email protected] México

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_TEMÁTICA Problemas emergentes da Internet Cooperação de múltiplas partes interessadas

_RESUMO Este artigo pretende contribuir para um debate construtivo sobre o poder crescente das cinco empresas de tecnologia que controlam as plataformas em que os usuários mais passam tempo online. Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft são as maiores companhias da Internet e lucram muito com os dados de comportamento online dos usuários. Esta “colonização de mercado” da Internet está impactando o debate público e afetando a troca de ideias. As decisões feitas por algoritmos limitam a neutralidade e o acesso à informação. Grupos interdisciplinares precisam trabalhar juntos para entenderem com o que estamos lidando e promoverem as mudanças necessárias. Palavras chave: empresas de tecnologia; colaboração; espaço digital

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A Internet, uma vez, foi considerada como um espaço neutro, perfeito, em que todas as falhas da sociedade poderiam desaparecer. John Perry Barlow capturou esse espírito na Declaração da Independência do Ciberespaço, em 1996: “Vamos criar uma civilização da Mente no Ciberespaço. Que ela seja mais humana e justa que o mundo que os seus governos criaram anteriormente”.

AS DECISÕES TOMADAS POR ALGORITMOS LIMITAM A NEUTRALIDADE E O ACESSO À INFORMAÇÃO.

Hoje, em 2017, a realidade está longe daquela utopia. Não há dúvida de que a Internet, como uma ferramenta tecnológica, cultural e econômica, transformou quase todas as práticas humanas. Ela tem sido um espaço que amplifica as capacidades humanas e que permite que as pessoas desenvolvam novos modelos econômicos, autonomia em face da mídia tradicional e capacidade de tomar decisões informadas. Mas ela também abriu a porta para novos desafios incrivelmente complexos, tais como o crime cibernético, a privacidade e a proteção de dados, as notícias falsas e o abuso online, entre muitos outros. As mesmas ferramentas funcionam para o bem ou para o mal. As plataformas que nos conectam também podem nos dividir. Esta característica enfraquece os valores que as sociedades modernas afirmam defender e proteger. Além disso, descobrimos que a tecnologia não é neutra e a comercialização em excesso do espaço online está impactando a democracia. Papacharissi (2002), Freelon (2010) e Bennett & Segerberg (2013) apoiam a premissa de que a web permite a promoção do debate público. A Internet é um espaço que serve de mediador entre o Estado e os cidadãos, um novo tipo de esfera pública sem restrições que criou novas formas de interação neutra e livre entre ambos. Mas, para o usuário em geral, o espaço virtual não é tão neutro e não tão gratuito, dado que governos e corporações monitoram nossas ações online e reúnem todos os nossos dados, medindo o nosso comportamento online. Os primeiros fazem isso por razões de segurança nacional, os segundos, por interesses comerciais. O espaço online é governado por entidades privadas que possuem as plataformas onde os usuários mais passam o tempo quando conectados. Essas empresas lucram muito com os dados sobre o comportamento online do usuário. As receitas publicitárias alteraram a dinâmica da Internet, criando corporações multinacionais de tecnologia gigantes. As decisões tomadas por algoritmos limitam a neutralidade e o acesso à informação. Esses algoritmos e os termos e condições das empresas filtram as informações que bilhões de pessoas em todo o mundo leem e compartilham diariamente. As corporações de tecnologia denominadas Big Five, Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft, são as maiores companhias da era da Internet e dominam a vida digital. Em suas plataformas e dispositivos, os usuários pesquisam, fazem compras e socializam. Cada

uma

delas

criou

várias

tecnologias

enormes

que

são fundamentais para quase tudo o que fazemos com os computadores. No jargão tecnológico, elas possuem muitas das plataformas mais valiosas do mundo – os principais blocos de construção em que dependem todos os outros negócios, até mesmo os pretensos concorrentes (Manjoo, 2016, tradução nossa).

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Essas empresas estão se tornando cada vez mais indispensáveis. Suas plataformas e dispositivos são onde todos estão e é impensável para as novas gerações imaginarem as suas vidas sem um smartphone, jogos e compras online, Facebook ou Instagram. Uma realidade “à la carte” em que tudo está sujeito a filtros (muitos filtros) e é intercambiável, até mesmo os valores. Seguindo o conceito de Bauman de Modernidade Líquida, o consumo desempenha um papel fundamental: O ato de consumo é uma forma de ter, talvez o mais importante para a opulenta sociedade industrial de hoje. O consumo tem características ambivalentes: alivia a ansiedade porque o que se tem não pode ser retomado, mas também exige que os consumidores consumam cada vez mais, já que o consumo anterior logo perde a sua peculiaridade gratificante (Bauman, 2000, tradução nossa).

A obsessão do consumo se entrelaça com o nosso comportamento online e as corporações sabem bem disso. Os lucros que elas estão tendo em torno do comportamento social online são enormes. Em 2016, as Big Five (Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft) acabaram entre as 10 maiores empresas americanas mais valiosas de qualquer tipo (Manjoo, 2016). De acordo com o Internet Trends Report, em 2015, 75 centavos de cada dólar gasto em publicidade online foram para o Google ou o para Facebook (Meeker, 2015). Pequenas empresas perderam participação de mercado e os analistas sugerem que elas estão predestinadas a permanecer excluídas do mundo das principais companhias. A essa grande concentração de poder de mercado podemos adicionar a capacidade deste “duopólio” em estabelecer as regras do setor. Eles estão transformando toda a indústria e impactando a maneira pela qual interagimos e nos comportamos online. Tudo acontece nas mesmas plataformas, em torno das mesmas pessoas, nos mesmos dispositivos. Os usuários estão se tornando consumidores passivos de informações e produtos.

PEQUENAS EMPRESAS PERDERAM PARTICIPAÇÃO DE MERCADO E OS ANALISTAS SUGEREM QUE ELAS ESTÃO PREDESTINADAS A PERMANECER EXCLUÍDAS DO MUNDO DAS PRINCIPAIS COMPANHIAS.

Essas empresas detêm uma enorme concentração de poder, dinheiro e conhecimento; elas possuem nossos dados e nossas interações online. Além disso, essas novas corporações estão explorando novas áreas, fornecendo saúde, educação, conectividade, serviços bancários e habitação, diminuindo a necessidade da provisão estadual (Morozov, 2015). Os governos agora lutam para acompanhar o ritmo delas.

A situação inteira exige mais envolvimento dos jovens. Como usuários, como cidadãos e como futuros criadores, os jovens têm algo a dizer sobre isso. Não só como consumidores, mas também como cidadãos, os jovens devem estar conscientes do que está acontecendo, precisam exigir transparência e proteger valores que não podem ser comercializados. Os cidadãos não

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devem confiar suas vidas cívicas aos mercados. A lógica do mercado está assumindo o controle de cada aspecto da vida (Sandel, 2012). Globalmente, o nível de confiança nas instituições é baixo mas, agora, que as “corporações sejam louvadas”1. Sob a ideia de Habermas, estamos vivendo uma “colonização” do “mundo da vida”, o que significa que o dinheiro e o poder tomaram o lugar dos valores de solidariedade e da troca de ideias, transformando os cidadãos em “apenas clientes”. Consequentemente, isso afeta a qualidade do debate público.  A Internet foi colonizada e um dos perigos de não possuir instituições fortes é que essa “colonização” pode atingir a democracia (Habermas, 1981). Vimos algo assim durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016. A polarização assumiu as redes sociais. Eli Pariser expôs o aspecto negativo desse novo meio, abordando o problema das bolhas de filtro que apareceram devido à alocação personalizada de conteúdo com base nas pesquisas anteriores do usuário e em seu comportamento online. Ele ressalta como as bolhas de filtro surgem como resultado de algoritmos feitos sob medida em plataformas de redes sociais, como o Facebook, e motores de busca, como o Google, para facilitar a navegação dos usuários no espaço da informação digital, oferecendo publicidade e notícias organizadas (Pariser, 2011). Essas ferramentas de personalização podem limitar nossa exposição aos pontos de vista opostos e também limitar a quantidade de informações visível aos usuários. (Papacharissi, 2002). Este filtro enfatiza nosso viés de informação e afasta dos usuários a oportunidade de ter um debate construtivo com os outros. Habermas refletiu sobre a colonização pelas burocracias, mas o desafio agora são as corporações privadas. Após a última eleição presidencial dos EUA, ficou evidente que as medidas que essas empresas tomam para regular e moderar conteúdos estão impactando o debate público. Informações falsas e publicidade dirigida no Facebook influenciaram mais o debate público do que os fatos e as propostas reais. A polarização da discussão política online tornou-se perigosa no mundo offline também. Se o país conhecido como “a democracia mais forte” foi afetado por falsas notícias e grande manipulação de dados, isso poderia acontecer em qualquer outro lugar, e pode ser ainda pior em regiões onde as instituições democráticas são mais jovens e mais fracas, como nos países da América Latina.

OS ALGORITMOS ALOCAM INFORMAÇÕES COM BASE EM CAMPANHAS PAGAS E INTERAÇÃO ORGÂNICA; SE ALGO É “FALSO”, PORÉM TEVE MUITOS CLIQUES, COMENTÁRIOS E COMPARTILHAMENTOS, OS USUÁRIOS VEEM ISSO EM SEUS FEEDS DE NOTÍCIAS.

O nível de segmentação da oferta do Facebook e do Google para as campanhas publicitárias executadas em suas plataformas é tão detalhado que qualquer pessoa que 1

Nota do tradutor: originalmente, “in corporations, we trust”.

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tenha dinheiro pode criar anúncios de campanha direcionados a grupos específicos com base na demografia, nos interesses e, em alguns países, como nos EUA, raça e religião. Em termos gerais, os algoritmos alocam informações com base em campanhas pagas e interação orgânica; se algo é “falso”, porém teve muitos cliques, comentários e compartilhamentos, os usuários veem isso em seus feeds de notícias. O conteúdo pode ser viral por métodos orgânicos ou por manipulação deliberada, quando alguém paga para colocar essa mensagem em nosso feed de notícias. No feed de notícias do Facebook, todas as ideias parecem as mesmas, mesmo que sejam mentiras. As combinações de publicidade online são infinitas; como empresa, você tem a possibilidade de atingir quase qualquer um. Por exemplo, as mulheres, em seus 20 e poucos anos, que gostam de ioga e alimentação saudável. Ao mesmo tempo, como um partido ou um grupo de advocacy, é possível selecionar homens brancos, em seus 40 anos, que apoiam a Associação Nacional de Rifles (National Rifle Association) e vivem em Wyoming (estado onde Donald Trump obteve 70% dos votos em 20162). Nos EUA, a comunicação eleitoral online tornou-se uma prática dominante (Aldrich et al., 2015). De uma perspectiva de marketing estratégico, identificar perfeitamente a pessoa “certa” pode acontecer a partir da projeção das “personas” corretas e mapeamento dos interesses delas com métodos de pesquisa de usuário baseados nas informações que o Facebook, a Amazon e o Google oferecem para executar uma campanha publicitária. É mais fácil prever quem comprará determinados produtos ou, em outros casos, apoiar determinadas políticas ou candidatos. É fundamental estar ciente de que cada escolha feita online, cada clique, torna-se uma decisão comercial. Há um processo de tomada de decisão automatizado por trás de cada anúncio ou vídeo exibido em nossos murais de acordo com nossas pesquisas anteriores e atividade online. De certa forma, essa alocação de conteúdo impacta as ideias e crenças das pessoas. Se uma mulher de 25 anos no Bangladesh pesquisar no Google o termo “liberdade”, ela verá algo completamente diferente de um homem de 50 anos, que mora em Nova York, que pesquisa no Google o mesmo termo. As bolhas de filtro (Pariser, 2011) personalizam as pesquisas e os feeds das mídias sociais para que nos seja mostrado mais daquilo que “eles” pensam que queremos ver. O Facebook e o Google, como entidades privadas, seguem uma lógica de mercado e tomam decisões estratégicas em direção à lucratividade. Como consequência, o que conduz as ações deles é um modelo de negócios que permite que os anunciantes e os editores automatizados da plataforma estabeleçam a agenda. O papel editorial dessas plataformas não deve ser mais visto meramente como “decisões de negócios”, pois elas estão fragmentando as nossas sociedades e transgredindo os valores democráticos. A realidade mudou e o papel das redes sociais, motores de busca e plataformas tecnológicas evoluiu. Assim, precisamos prestar atenção à maneira como essas empresas gerenciam as nossas vidas online.

2 “US election 2016: Trump victory in maps”. Recuperado de: http://www.bbc.com/news/electionus-2016-37889032. Acesso em 6 de junho de 2017.

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Como afirmou Castells (1996), as condições econômicas, tecnológicas e sociais contemporâneas geraram um estado de rede em que as interconexões superam a centralização do poder e a tomada de decisões. Nesta rede, é possível uma maior participação e intervenção da cidadania na vida política. Sob essa lógica, o Estado tornou-se menor, mas as corporações assumiram um papel maior, também participando do espaço dos cidadãos, colonizando nosso mundo online. Esse pode não ser o único motivo, mas certamente contribuiu para a decadência do discurso racional e crítico, provocando o declínio da esfera pública. A esfera pública é entendida como um espaço neutro onde os indivíduos discutem os assuntos atuais de maneira racional (Habermas, 1989). O fato de essas plataformas possuírem regras rígidas sobre quem pode acessar os dados delas levanta muitas questões. A quem elas prestam contas? Como os governos podem definir limites para essas corporações sem ameaçar a inovação? Os usuários são responsáveis por ​​ exigir mais transparência? Como deixamos elas chegarem tão longe? Para quem elas estão vendendo os seus serviços? Para quem elas estão vendendo nossos dados? Às vezes, os termos e condições dessas plataformas de tecnologia não são claros para os usuários. Uma maneira de desenvolver uma Internet melhor é pensar em novos modelos de colaboração e assumir um papel ativo para recuperar o espaço público online. A promessa da Internet como um espaço livre controlado pelos cidadãos ainda é um desafio. As gerações futuras têm a tarefa de modificar isso e assumir um compromisso mais forte para superá-lo. As entidades privadas e as elites não podem ser as únicas a definirem as regras. É necessária a colaboração entre os setores. As soluções são um processo em vez de uma única ação, por causa das complexidades envolvidas em cada caso. A cooperação entre governos, setor privado e organizações da sociedade civil permite a soma da sabedoria e as capacidades de cada parte interessada (stakeholder) em alcançar a melhor solução possível. Além disso, esses acordos de colaboração atuam como uma ferramenta de responsabilidade para que os participantes se supervisionem. A colaboração entre setores pode funcionar como uma solução a curto prazo, no entanto, a longo prazo, a educação digital e o pensamento crítico dos usuários serão a chave para combater os monopólios e outros complicados problemas online. As novas gerações precisam exigir mais abertura e transparência das empresas de tecnologia. Hoje, mais do que nunca, os governos estão buscando essas plataformas para resolver problemas sociais. Os usuários precisam interferir, enquanto cidadãos, na forma como as grandes empresas de tecnologia gerenciam as informações, dispõem o conteúdo e comercializam as atividades online. A tecnologia pode ser qualificante ou desqualificante, e uma maneira de garantir um modelo democrático para supervisionar o seu desenvolvimento é através da colaboração entre setores. O fortalecimento e a promoção de mais e melhores relações entre empresas de tecnologia, organizações da sociedade civil e governos, em contextos específicos, pode ser uma boa forma de garantir transparência e responsabilidade. Esse processo permite uma comunicação,

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um acompanhamento, uma troca de ideias e uma avaliação contínua (Bryson, Crosby e Stone, 2015). A participação de mais partes interessadas de diversos setores é necessária para proteger a democracia online. Há muitos exemplos de como organizações da sociedade civil, corporações e jovens estão mudando as comunidades com o uso da tecnologia; combatendo a corrupção, garantindo o acesso à informação governamental ou melhorando serviços públicos. Isso é a prova de que nem tudo está condenado. Mas os benefícios precisam ser mais amplos e garantidos para todos. Se todas as interações online estão acontecendo nas mesmas cinco plataformas, estamos colocando em risco a concorrência e alimentando monstros corporativos que poderiam encolher o governo e engolir os seus cidadãos. O Leviatã tem concorrência e, no momento, ela parece estar mais fraca do que as “novas crianças do bairro”3. Após as eleições presidenciais dos EUA, a vergonha pública e a pressão da mídia conquistaram o reconhecimento do Facebook de que empresas, políticos e a sociedade civil precisam resolver os desafios sociais juntos. Os usuários precisam resgatar os seus poderes de cidadãos e se juntarem à ação. Os consumidores passivos não mudam o mundo, os cidadãos ativos sim. No caso das grandes empresas de tecnologia, elas não vão parar a marketização do mundo digital por conta própria. Portanto, grupos interdisciplinares precisam trabalhar juntos para entender com o que estamos lidando e para promover as modificações necessárias. Quando monopólios prejudicam os valores da sociedade, devemos elevar a nossa voz a fim de o governo intervir. Como indivíduos sozinhos, talvez não tenhamos uma representação sobre isso, mas a sociedade civil como uma parte interessada pode exigir mais transparência desses gigantes tecnológicos. O governo deve estabelecer parâmetros legais, técnicos e políticos mais claros para gerir a influência dessas empresas. Sob uma abordagem multissetorial (multistakeholder), os jovens devem participar em diferentes fóruns e iniciativas para garantir que os valores democráticos sejam incorporados ao desenvolvimento da tecnologia. É importante ter um público mais informado, ativo e crítico que não negligencie o impacto dessas plataformas em nossas vidas diárias. A participação e a conscientização são essenciais para salvar a democracia da colonização de mercado. A espinha dorsal da tecnologia pode ser esse espírito de colaboração, afastando-se da exclusiva missão com fins lucrativos que acabará por “personalizar” o nosso comportamento e opiniões no ambiente online. Artigo originalmente escrito em inglês

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Nota do tradutor: no original, “new kids on the block”.

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_REFERÊNCIAS Aldrich, J. et al. (2015). Getting out the vote in the social media era: Are digital tools changing the extent, nature, and impact of party contacting in elections? Party Politics, 22(2): 165-178. Barlow, J. P. (1996). A Declaration of the Independence of Cyberspace. Recuperado de Bauman, Z. (2000). Liquid modernity. Polity, Cambridge. Bennett, W. L., & Segerberg, A. (2013). The Logic of Connective Action: Digital Media and the Personalization of Contentious Politics. Cambridge: Cambridge University Press. Bryson, J., Crosby, B., & Stone, M. (2015). Design and Implementation of Cross-Sector Collaboration Framework for Understanding Cross-Sector Collaborations. Public Administration Review, 75(5), 647-663. Castells, M. (1996). The Rise of the Network Society. 1st ed. Somerset: Wiley. Freelon, D.G. (2010). Analyzing Online Political Discussion Using Three Models of Democratic Communication. New Media & Society, 12 (7): 1172- 1190. Habermas, J. (1981). The Theory of Communicative Action, Volume 2: Lifeworld and System: A Critique of Functionalist Reason. Habermas, J. (1989). The Structural Transformation of the Public Sphere: An inquiry into a category of Bourgeois Society, Sixth Printing Edition. Manjoo, F. (2016). Tech’s ‘Frightful 5’ Will Dominate Digital Life for Foreseeable Future. The New York Times. Recuperado de Meeker, M. (2015). Internet Trends 2015. Code Conference, Kleiner Perkins Caufield & Byers. Recuperado de Morozov, E. (2015). Silicon Valley likes to promise `digital socialism´- but it is selling a fairytale. The Guardian. Recuperado de Papacharissi, Z. (2002). The virtual sphere: The internet as a public sphere. New Media & Society, 4(1): 9-27. Pariser, E. (2011). The Filter Bubble. London: Penguin. Cap. 1: Introduction. Sandel, M. J. (2012). What Money Can’t Buy: The Moral Limits of Markets. New York: Farrar, Straus and Giroux.

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GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ Gloria possui mestrado em Políticas Públicas pela Hertie School of Governance de Berlim e bacharelado (BA) em Assuntos Internacionais pelo Tecnológico de Monterrey, na Cidade do México. Como profissional, desenvolveu e executou estratégias internacionais e projetos de inovação digital na Europa e na América Latina. Durante os seus estudos de mestrado, centrou seu trabalho nas plataformas de Ética e Governança das Novas Mídias. Atualmente, é Global Policy Fellow do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Seu principal interesse é construir pontes entre o setor da tecnologia, a sociedade e o governo para melhorar a boa governança e a colaboração.

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REDES DE POLARIZAÇÃO E ÓDIO: A TRANSFORMAÇÃO DA REDE COMO PROPAGADORA DA CULTURA DE ÓDIO PELAS BOLHAS DE FILTRO LEANDRO RACUIA Estudante da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (USP) [email protected] Brasil

ANDRÊS VELOSO CAVADAS Estudante do Instituto de Relações Internacionais (USP) [email protected] Brasil

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_TEMÁTICA Problemas emergentes na Internet

_RESUMO A Internet hoje é inerente a muitos processos básicos da comunicação humana em âmbito local e global, de forma a causar significativos impactos na percepção da sociedade sobre ordenamentos culturais e sociais. Por isso, merece atenção como um meio que tem provocado a disseminação de ódio e aumentado a polarização na sociedade. Uma explicação para esses acontecimentos advém de práticas do chamado capitalismo de vigilância. Nesse artigo, analisamos as chamadas bolhas de filtro, mecanismo que personaliza a informação que os usuários recebem para potencializar o lucro das grandes empresas de tecnologia, as quais detêm oligopólio sobre a mesma rede. Palavras-chave: bolhas de filtro; polarização política; capitalismo de vigilância

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1_INTRODUÇÃO A grande revolução da informática dos anos 1980 e 1990 trouxe uma mudança essencial no paradigma da comunicação. Antes desse período, a comunicação social se dava de uma forma centralizada, de poucos para muitos, focalizada principalmente na figura dos veículos de massa como jornais, livros e canais de televisão. Hoje, a maior parte do fluxo de informações parte da Internet, possuindo um caráter teoricamente descentralizado e tendo seu conteúdo produzido também da mesma forma, de muitos para muitos. A maioria da comunidade acadêmica dos anos 1990 e 2000 tinha em mente que o modelo descentralizado de conexão fim a fim da Internet traria uma nova perspectiva no debate de ideias. Como referência, Lévy (1999) afirma que três princípios formariam essa nova forma de relação, a qual ele chama de cibercultura, sendo eles: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva. A interconexão é o princípio que descreve a estrutura da Internet, como descentralizada e formada sobre uma lógica acessível de fim-a-fim, ou seja, com qualquer ponto da rede podendo alcançar outro ponto sem a influência de um intermediário. Já as comunidades virtuais, como ainda afirma Lévy (1999, p.127), “[...] são construídas sobre afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos, em um processo mútuo de cooperação e troca”. Por fim, a inteligência coletiva descreve um tipo de inteligência compartilhada que surge da colaboração de indivíduos de todos os pontos da rede, imersos em seus conhecimentos e suas diversidades. Como descreve o autor (1999, p. 212), “É uma inteligência distribuída por toda parte, na qual todo o saber está na humanidade, já que, ninguém sabe tudo, porém todos sabem alguma coisa”. Seguindo o mesmo raciocínio, Benkler (2006) afirma que a rede cria novas modalidades de economia da informação, a qual o autor intitula Economia Interconectada. Esta nova modalidade traria a possibilidade do surgimento de comunidades auto-organizadas, de hierarquia fraca e descentralizada, no qual a lógica de mercado fica em segundo plano. A partir desta configuração, cria-se uma produção social de conhecimento baseada no compartilhamento e na cooperação. Um dos exemplos de produção social são ações políticas coordenadas, comandadas pela comunidade de forma espontânea e individual. Observam-se duas palavras-chaves no pensamento desses dois autores: compartilhamento e cooperação. Somadas, ambas trariam novas formas de organização política, abririam um maior espaço para o debate político e para formação de consenso entre os atores da rede. Tal fenômeno apenas seria possível com uma estrutura descentralizada da rede, na qual cada ator pode se expressar e ouvir diferentes vozes. Entretanto, o cenário que se apresenta hoje na Internet parece conter uma realidade diferente do que estes autores propõem existir. Dentro dessa contradição, surgem algumas perguntas: como foi possível chegar até esse ponto? Por que os cenários descritos por Lévy (1999) e Benkler (2006) de construção coletiva de saber aliada à cooperação entre diferentes visões não se aplica às redes que utilizamos hoje? Qual o impacto cognitivo e educacional que essas redes podem carregar consigo? O objetivo principal deste artigo é responder a estas perguntas através

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O MAIS DETERMINANTE PARA FORMAÇÃO DE BOLHAS DE FILTRO É O PODER DE INFLUÊNCIA QUE PODE SER EXERCIDO SOBRE MECANISMOS DE BUSCA E REDES SOCIAIS

de uma revisão literária de trabalhos acadêmicos relacionados ao tema. Primeiramente, será analisado de que forma o oligopólio das empresas de tecnologia se apoderou da estrutura funcional da rede, tirando parte do caráter descentralizado que ela possuía antes. Depois, serão observadas as técnicas que essas empresas utilizam para obter lucro em troca de seus serviços, examinando a teoria das bolhas de filtro e como essas bolhas acabam construindo câmaras de eco. Seguindo por essa linha, será analisado de que forma o conteúdo viraliza dentro dessas redes por meio da análise de quais emoções estão conectadas ao conteúdo que é mais compartilhado.

Após essa análise, será descrito pela teoria de Castells (2013) como os novos movimentos sociais se formam e qual o papel da rede nesse novo modo de mobilização social. Por fim, será comentado quais os possíveis impactos que essas redes causam, analisando a Internet como um elemento educador, que tem influência sobre a cognição e ação do indivíduo.

2_A CONCENTRAÇÃO DE PODER NA REDE O intuito de avaliar a concentração de poder na rede é favorecer o entendimento de como a circulação de informações dentro dela atualmente está em grande parte atrelada às grandes empresas de tecnologia. Afinal, estas empresas controlam uma parte significativa do fluxo da Internet com objetivo de criarem benefícios econômicos para si próprias. Com isso, estas empresas acabam por comprometer o caráter descentralizador da rede, e, através de algoritmos altamente complexos feitos para identificação de comportamentos, essas empresas têm em mãos inputs poderosos para criação de ambientes artificialmente produzidos para maior comodidade dos usuários. Esta é uma característica das chamadas bolhas de filtro, que serão tratadas em detalhe na próxima sessão. O mais determinante para formação de bolhas de filtro é o poder de influência que pode ser exercido sobre mecanismos de busca e redes sociais, pois estas duas ferramentas constituem o núcleo das atividades realizadas por usuários na rede hoje. Assim, chama atenção o fato de que grande parcela da população mundial tem acesso a estes dois serviços por meio da oferta de poucas gigantes da Internet. Para ilustrar esse cenário, expomos alguns dados do portal Statista (2016a). Para mecanismos de busca, O Google concentra uma fatia de mercado equivalente a 89,72%, enquanto o segundo maior rival, o Bing 4,2%, e Yahoo! 3,37% (Statista, (2016e). Não é de se surpreender que hoje seja inimaginável o mundo sem o Google, ou melhor, sem o Chrome para pesquisas online.

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Quanto às redes sociais, reina a supremacia do Facebook. No Reino Unido, por exemplo, o Facebook representa 78% do mercado das mídias sociais (Statista, 2016b). Fatia que deve ser semelhante em boa parte dos outros países. Além disso, o número de usuários ativos mensais do Facebook em 2015 atingiu a casa de 1,654 bilhões de usuários enquanto o número total de usuários de mídias sociais no mundo era 2,34 bilhões de usuários (Statista, 2016c). Globalmente, em 2016, o Facebook é a líder em número de usuários ativos disparadamente, com 1,7 bilhões, seguida pelo WhatsApp com 1 bilhão de usuários, QQ Chat 899 milhões e várias posições abaixo Instagram (500 milhões), Twitter (313 milhões) e Snapchat (200 milhões) (Statista, 2016d). Por último, para enfatizar a situação no Brasil, a taxa de penetração do Facebook é praticamente o dobro de qualquer outra mídia social no País. Para ilustrar como é importante economicamente para as empresas de tecnologia exercerem influência sobre o conteúdo disponível a cada usuário, será ilustrado o caso do Facebook ainda como um projeto de estudantes no campus universitário de Harvard. Ries (2011) expõe que o modelo de negócios a princípio era bastante modesto e sem certeza da fonte de receitas. As únicas premissas importantes eram o que o autor classifica como hipótese de valor e de crescimento, respectivamente: quanto mais atenção dos usuários for possível reter, mais as agências de publicidade estarão interessadas em anunciar na plataforma; e quantos clientes visitavam a plataforma mais de uma vez ao dia. Portanto, Zuckerberg sabia apenas que quanto mais atenção (buzz) tivesse na plataforma, mais as agências de publicidade estariam interessadas em fazer propaganda na plataforma, mas não sabia ao certo quanto estariam dispostas a pagar por um anúncio. Ao somar estas duas premissas, que seria buzz em torno da plataforma e número de mais de duas visitas por dia, há um quadro interessante quanto à necessidade do Facebook de criar um ambiente virtual agradável ao usuário e que o deixasse entretido pelo maior tempo possível dentro da plataforma. Afinal, Wolton (UnBTV, 2014) já coloca a Internet como uma mídia de demanda, ou seja, uma mídia na qual o usuário busca o conteúdo e assuntos de interesse conforme a própria necessidade, criando um sistema de participação que caracteriza uma mídia comunitária – dividem os mesmos interesses, mas não necessariamente se compreendem. Assim, o Facebook como uma rede social que está vinculada à Internet deveria estar alinhado com a questão de demanda do meio e para cumprir esta lógica, fazia sentido programar um ambiente que atenda aos desejos dos usuários. Portanto, a teoria da bolha de filtro tinha nexo tanto economicamente por manter as pessoas mais tempo na plataforma e chamar mais atenção de agências publicitárias quanto ideologicamente por atender o quesito de demanda da Internet. O Facebook então se tornou uma usina de publicidade dirigida. Sobrepondo filtros em cima de filtros, o Facebook cria um circuito fechado o qual é acessível basicamente a um nicho de pessoas entendidas como “amigas”, que em geral compartilham das mesmas opiniões. A consequência é o desconhecimento de opiniões e pontos de vista divergentes, não sendo eficaz no fornecimento da complexidade das informações. É o caso da jornalista londrina que às vésperas do referendo do Brexit não tinha o menor

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conhecimento da onda favorável à saída da união Europeia, pois o feed do Facebook não trazia nada a respeito. Afinal, ela tinha feito parte de um documento em favor dos pró-europeus. Um olhar crítico sobre a campanha presidencial nos EUA pode esclarecer o papel nefasto das bolhas de filtros das mídias sociais para regimes democráticos. Uma série de notícias e reportagens falsas inundou as redes sociais na campanha presidencial de 2016. O compartilhamento de artigos da web aparentemente sérios, mas incorretos, foi uma realidade nesta eleição. E o Facebook como um importante veículo de comunicação teve grande participação na difusão deste tipo de notícia. O candidato Donald Trump se apoio em uma hipereconomia de nonsense (“sem sentido algum”) e instigou informações tendenciosas com base em preceitos racistas, xenófobos, entre outros para reforçar sua imagem aos pró-Trump. O problema é que o Facebook foi incapaz de conter informações deste cunho e mesmo a propagação de HÁ INDÍCIOS DE UM falsidades, compartilhadas – e difundidas – pelas EFEITO DE FILTRO próprias pessoas. Por essas razões, o Facebook é uma ferramenta precária de compartilhamento DE BOLHA QUE de informações, o que é particularmente sério por TENDE A POLARIZAR fomentar uma cultura de incerteza até para questões OPINIÕES básicas. A questão a se fazer então é: qual o perigo DIVERGENTES E a democracia que as redes sociais oferecem quando TRANSFORMAR se somam bolhas de filtro – ignoradas pela grande AS REDES SOCIAIS massa dos usuários – às falácias do meio?

PELAS QUAIS NOS INFORMAMOS EM CÂMARAS DE ECO

De fato, as grandes empresas da Internet têm ganhado uma participação expressiva nos rumos da sociedade – como evidenciado anteriormente no caso do Facebook para a campanha presidencial americana. Porém, é obscuro como estas empresas conseguiram se tornar tão poderosas. Zuboff (2015) começa uma discussão sobre Capitalismo de Vigilância para abordar esta situação. Segundo a autora, Capitalismo de Vigilância é uma nova empreitada mercantil das empresas da Internet com foco na coleta “obsessiva” de dados para cumprir objetivo último de expansão dos próprios serviços gratuitos. Através da coleta de dados – quaisquer disponíveis, desde afinidades a finanças pessoais –, a organização monta um verdadeiro dossiê de cada usuário. Embora estes dados não sejam tratados discriminatoriamente, o que significa não personalizando as informações, os algoritmos são capazes de identificar cada usuário para a criação de anúncios específicos. Ou seja, empresas da Internet estão usando o método do Big Data a nível generalizado e faturando sobre a compra e venda de dados. O escopo deste artigo não se aprofundará em problemas éticos com a forma de obtenção de dados, novas formas de contratos, personalização e customização, e experimentos contínuos, mas vale ressaltar a recorrente transgressão da lei frente à busca pelo lucro, sendo que os eventuais gastos jurídicos serão meros detalhes para conquista de retornos exorbitantes. Constroem-se

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assim os ativos de vigilância, fonte de generosas análises econômicas. O ponto crítico é que a grande massa de usuários não tem a menor consciência dessa prática. Surge, dessa maneira, uma nova ordem de poder que cresce sem ser abertamente conhecida pela opinião pública. É sob esta sombra que impérios como o Facebook são erguidos e somente agora estão começando a ser confrontados em uma disputa por poder com outras grandes mídias como Washington Post e Le Monde. De qualquer modo, o Facebook, por exemplo, faz uso desta coleta abusiva de dados em benefício próprio, não economicamente de forma direta, mas como construção do algoritmo da rede social. Com o algoritmo mais preciso, é possível então entender as particularidades de cada usuário e tornar a rede mais agradável de acordo com as preferências individuais. Pois, quanto mais conveniente a plataforma for, maiores as chances de entreter o usuário por tempo prolongado, o que por fim resulta em aumento nos lucros. Isto significa que a lógica do Capitalismo de Vigilância dá substância às bolhas de filtro, o que faz desse modelo economicamente interessante por alimentar o algoritmo responsável por criar as bolhas de filtro com uma quantidade enorme de dados, melhorando tanto o ambiente das bolhas de filtro – ainda mais agradável – quanto a precisão de anúncios para o Facebook. Porém, a análise é válida para outras empresas de tecnologia. Quanto mais convenientes as plataformas forem no sentido de atenderem uma demanda específica e em torno das preferências do usuário, mais provável é a satisfação dele. A partir de então, estarão eles mais dispostos a cederem dados ao mesmo tempo em que estarão menos dispostos a procurarem por outras alternativas, haja visto o alto nível de conveniência. Ora, neste cenário, faz sentido pensar as duas correntes da comunicação: ideólogos que confundem a comunicação com performance técnica e os mercados; e os adversários que usufruem da comunicação em pró da radicalidade elitista e da lógica de venda, pois as empresas de tecnologia utilizam de uma perspectiva bastante instrumental da comunicação, característico do universo destas duas correntes que denigrem o papel de coabitação e diálogo da comunicação (Wolton, 2006). Ainda pela concepção de Wolton (2006), sem os laços sociais promovidos pelos meios de comunicação para o grande público – tevê, rádio etc. –, a sociedade corre o risco de negligenciar a discussão de temas de interesse público, o que eventualmente pode levar ao esfacelamento da própria sociedade em guetos culturais e/ou religiosos. Em outras palavras, a total liberdade de escolha de conteúdo oferecida pela Internet – como mídia de demanda – favorece a criação de comunidades fechadas, produzindo a incomunicação, a desconfiança e a violência. Quando, na verdade, o cerne da comunicação é a problemática do outro. Por esta razão, é imperativo repensar o conceito de comunicação como revolução da coabitação e do diálogo (Wolton, 2006). E para esta meta é necessário pensar a comunicação por meio da rede. Na primeira Revolução Industrial, com o avanço da tecnologia, as máquinas passaram por uma profunda transformação porque a partir de então as máquinas iriam substituir o trabalho do homem em sua parte física e mecânica, sendo capazes

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de acelerar movimentos e intensificar a realização de tarefas – o que permitiria lhes chamar de máquinas musculares. Em seguida, começaram a surgir máquinas que funcionavam como prolongamentos dos sentidos humanos, por isso chamadas de máquinas sensoriais. As máquinas musculares tinham a função de produzir objetos, enquanto as máquinas sensoriais de produzir e reproduzir signos (imagens e sons). Cada uma dessas máquinas teve e tem um papel vital para o desenvolvimento humano. As máquinas musculares até hoje estão presentes em atividades corriqueiras/essenciais do dia a dia como o elevador e o automóvel, já as máquinas sensoriais como máquinas de registro e reprodução ou gravação (Santaella, 2000). Estes dois tipos de máquinas então tornaram-se máquinas cruciais à vida humana no sentido de nossas atividades cotidianas serem permeadas por ela, muitas vezes, sem que ao menos sejam notadas. Do mesmo modo, surgiram as máquinas cerebrais que têm por princípio amplificar habilidades mentais, em especial as habilidades processadoras e de memória. São os computadores, máquinas nas quais quaisquer signos podem ser absorvidos, traduzidos, manipulados e transformados. Isso permitiu as informações circularem em um âmbito global, promovendo uma cultura telemática multidirecional. O meio mais conhecido para essa difusão é Internet, uma rede que liga milhões de pessoas ao redor do mundo em torno dos mais diversos assuntos, desde negócios a arte e entretenimento (Santaella, 2000). Por fim, assim como as máquinas musculares e sensoriais são inerentes à vida humana, as máquinas cerebrais também são à medida que se tornam uma expansão do nosso universo cognitivo. Logo, há pouco espaço para coexistir no mundo contemporâneo sem a presença das máquinas cerebrais por estarem cada vez mais intrínsecas aos nossos afazeres. Assim, todos usufruem em algum grau das máquinas cerebrais. Todos “têm” de usá-las. Esta perspectiva da obrigatoriedade do uso de máquinas cerebrais somada ao oligopólio das empresas de Internet cria então uma lâmina de análise relevante porque os usuários para navegar na rede podem depender dessas empresas que controlam a maior parte do fluxo de dados, como o Google e o Facebook. Ou seja, os usuários são induzidos a trafegarem pelas bolhas de filtro e estarem submetidos ao Capitalismo de Vigilância. A política novamente é um bom exemplo. No Brasil, de janeiro a junho, 51% dos eleitores brasileiros afirmam ter recebido ou lido informações sobre política no Facebook, no Twitter ou no WhatsApp. Hábito que é mais forte para as pessoas mais jovens, visto que destes, 55% tinham abaixo de 34 anos de idade. Além disso, para 56% dos respondentes, as informações recebidas pioraram a imagem dos candidatos (Ibope Inteligência, 2016). Mais surpreendente ainda é o Brasil ser o país mais ativo na web quando o assunto é política. Cerca de 87% dos brasileiros leram sobre temas políticos ou sociais em redes sociais de outubro de 2014 a agosto de 2015, e cerca de 58% chegaram a postar comentários sobre temas políticos ou sociais em redes sociais (Ibope Inteligência, 2016). Por toda a questão da concentração de poder na rede, do impacto civil que a rede demonstra poder ter e a necessidade de uso das máquinas cerebrais, torna-se fundamental aprofundar a discussão das bolhas de filtro da Internet. Afinal, esferas humanas de conhecimento como a política e a comunicação estão neste jogo da lógica capitalista.

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3_AS BOLHAS DE FILTRO Como descrito anteriormente por Zuboff (2015), o ecossistema da Internet é composto principalmente por empresas que apenas conseguem manter e expandir seus serviços gratuitos através de um modelo chamado capitalismo de vigilância. O princípio fundamental desse modelo é a coleta de dados dos usuários da plataforma. Ao serem tratados, esses dados revelam preferências, desejos, afinidades e também as aversões que cada usuário possuí, criando um perfil personalizado de tudo que esse usuário prefere e odeia. Além da compra e venda livre desses dados, esse tratamento permite a criação de serviços de anúncios direcionados na plataforma, sendo essa uma das principais fontes de ativos das grandes corporações da Internet. A forma mais comum dos grandes serviços criarem a sensação de interesse e entretenimento é através das chamadas bolhas de filtro, termo cunhado pelo ativista Eli Parisier (2011). O autor chama a atenção para a estratégia de personalização dos conteúdos que são exibidos nas plataformas das grandes corporações da rede, nas quais apenas é demonstrado um conteúdo referente às preferências previamente mapeadas pela coleta de dados do usuário. Isso faria com que os usuários se mantivessem por mais tempo na plataforma, gerando mais dados e melhorando cada vez mais esse mecanismo. A ideia de personalização de conteúdo é benéfica se pensarmos em interações sociais e mecanismos de busca. O algoritmo, em tese, aproximaria pessoas com gostos similares, além de demonstrar conteúdos novos que provavelmente o usuário também gostaria. Da mesma forma, otimizando os mecanismos de busca, se economiza tempo e a chance de se encontrar exatamente o que está sendo procurado é maior. Entretanto, o termo “bolha de filtro” remete não apenas à demonstração de conteúdo que supostamente o usuário deseja, mas também ao isolamento de outros materiais que o usuário supostamente não deseja ver. Um dos problemas da construção dessa bolha é justamente a não clareza de como esse processo é conduzido. Afinal, o algoritmo é mantido como segredo empresarial, uma vez que a presença dessa personalização é o diferencial no direcionamento de anúncios feitos por essas plataformas. Esta falta de transparência algorítmica é vista como perigosa pelo autor, uma vez que se coloca na mão das empresas a seleção das informações que serão demonstradas ao usuário, filtrando de forma sutil o que o usuário verá ou não. Além disso, o autor classifica as bolhas de filtro como responsáveis por catalisar o processo de polarização política na rede. Esse processo teria início com as plataformas das grandes empresas sendo a principal fonte de informação sobre política por parte dos usuários, pois apenas notícias e opiniões que o algoritmo considera agradáveis aos usuários são exibidas, tendo como base as interações do próprio usuário com a plataforma. Logo, se cria o que o autor chama de câmaras de eco, ou seja, um ambiente virtual no qual são somente demonstradas informações que reverberam uma opinião já construída, ao mesmo tempo em que se isola o usuário de opiniões contrárias ou diferentes das que estão sendo mostradas. Em um estudo divulgado por pesquisadores do próprio Facebook (Adamic, Bakshy, & Messing, 2015) revelou alguns dados que comprovam a tendência da formação das

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câmaras de eco pelos mecanismos de bolha de filtro. O estudo foi conduzido com 10 milhões de pessoas dos Estados Unidos que abertamente se declaravam conservadores ou liberais, as quais as noticiais compartilhadas foram monitoradas por cerca de seis meses (de julho de 2014 até janeiro de 2015). Os autores consideraram conteúdo denominado liberal aquele que era compartilhado em larga escala por usuários autodenominados liberais, realizando um processo análogo com o conteúdo considerado conservador. No gráfico seguinte (Figura 2), demonstra-se uma das conclusões do estudo. Nele se mostra a porcentagem de cross-cuting content (traduzido livremente como “conteúdo de teor político oposto ao informado pelo usuário”) acessado por liberais e conservadores, colocando quatro canais pelos quais esse acesso ocorreu. É importante entender esses canais pela metodologia da pesquisa e pelo serviço que o Facebook oferece. O primeiro, Random, corresponderia a uma exposição de uma amostra aleatória de todas notícias relacionadas a temas de relevância para democracia (chamadas pelos pesquisadores de hard news), em um cenário em que todos pudessem observar o conteúdo compartilhado por todos. Observa-se que Liberais veriam, em média, apenas 45% de conteúdo de viés conservador, enquanto conservadores veriam apenas 40% de conteúdo liberal. No segundo canal, Potential from network, se leva em consideração a rede a qual o usuário faz parte. Nesse caso, a porcentagem considera o quanto de conteúdo contrário à visão política declarada poderia ser visto potencialmente por meio do compartilhamento de amizades do usuário. Nesse caso, conservadores poderiam acabar observando 35% de conteúdo de viés liberal, enquanto os liberais poderiam ver em torno de 23%. A terceira via, Exposed, é a de mais relevância no estudo, pois nela aparece o conteúdo que realmente foi exibido no feed de notícias dos usuários, sendo a real medida da bolha de filtro a diferença entre o que potencialmente seria demonstrado por meio da rede que fazem parte e o que é de fato é mostrado. Como os próprios pesquisadores explicitam, essa diferença é de 5% nos que se declaram conservadores, enquanto ela é de 8% nos que se declaram liberais. Figura 2

Percent cross-cutting content

50%

Viewer affiliation

45%

Conservatives

40%

Liberal

35% 30% 25% 20% 15% 10% Random

Potential from network

Exposed

Selected

Fonte: Adamic, Bakshy, & Messing, 2015

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A conclusão final dos pesquisadores é de que não existe uma diferença significativa entre o conteúdo que seria exibido pelos amigos e o que realmente é exposto para o usuário, fazendo com que o efeito da bolha de filtro seja bem mais fruto de escolhas individuais que realmente do algoritmo. Entretanto, é necessário colocar duas críticas em relação a essa conclusão. Como o próprio Parisier (2015) afirma, primeiramente precisamos destacar que esse cenário foi observado por um curto período de tempo e que a tendência é que essa polarização apenas crescesse em uma série temporal, uma vez que nossas redes aumentam com o passar do tempo e tendemos a fechar cada vez mais nosso ciclo em pessoas que pensam da mesma forma que nós. Além disso, não é possível estabelecer uma correlação entre ações individuais e a ação do algoritmo, uma vez que ambas se influenciam mutuamente através de cada interação específica dos usuários. Portanto, o que se observa através destes estudos é que há indícios de um efeito de filtro de bolha que tende a polarizar opiniões divergentes e transformar as redes sociais pelas quais nos informamos em câmaras de eco. O resultado desse processo é péssimo para pluralidade de opiniões e abre brechas para extremismos que possam ameaçar a liberdade de expressão e opinião, um dos pilares fundamentais para o exercício da democracia.

4_OS MOVIMENTOS EM REDE E A VIRALIZAÇÃO DO ÓDIO Os malefícios trazidos pelas câmaras de eco apenas se agravam quando analisamos a tendência de como os movimentos sociais se organizam na era digital. Com uma maior velocidade e acessibilidade por um preço relativamente barato, cada cidadão adquiriu o poder de acessar e de comunicar qualquer informação através da rede mundial de computadores, quebrando em parte o monopólio da informação que os veículos de comunicação em massa historicamente tiveram. Dessa forma, cada indivíduo adquiriu uma maior liberdade para expressar e construir consensos diferentes do status quo, dando-lhe também a possibilidade de encontrar e juntar outros indivíduos com pensamento semelhante (Assange, 2013). Esse processo tornou os Estados mais suscetíveis a protestos e dissidências, já que existe uma maior facilidade de organização dos mesmos via redes sociais (Garret, 2006). Castells (2013) analisa de forma mais específica, afirmando que essa mudança gerou uma organização diferente dos movimentos sociais feitos até então, o que o autor denomina como “movimentos em rede” (Castells, 2013, p. 129). Uma das principais características desse novo arranjo é sua forma descentralizada de ação, não possuindo lideranças permanentes, mas sim guiando-se pelos debates, coordenação e deliberações formados nas redes em que os movimentos sociais se inserem. Ainda que sua força principal de pressão e luta esteja na ocupação de espaços públicos físicos, sua existência e construção contínua apenas tem como principal plataforma as tecnologias contemporâneas como a Internet e os smartphones, que garantem acesso a ela em praticamente qualquer localização (Castells, 2013, p. 129). Essa fusão entre espaço cibernético e espaço urbano dá origem a um terceiro espaço, denominado por Castells como “espaço da autonomia”, o qual forneceria, segundo o autor, a “[...] capacidade de um ator social tornar-se sujeito ao definir sua ação em torno de projetos elaborados independentemente das instituições da sociedade, segundo seus próprios valores e interesses” (Castells, 2013, p. 135).

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Além disso, um dos preceitos de uma rede disposta de forma distribuída é sua resiliência, ou seja, sua capacidade de resistir a ataques sem que ela deixe de existir. Pelo fato desses movimentos não possuírem uma liderança, a repressão individual, como a prisão ou tortura de um líder, por exemplo, não é suficiente para que o movimento seja extinto, já que “[...] a rede pode se reconstruir enquanto houver um número mínimo de participantes, frouxamente conectados por seus objetivos e valores em comum” (Castells, 2013, p. 129). A burocratização e cooptação por outros movimentos da chamada “velha política” também é prevenida dessa forma, novamente pelo argumento de que não há lideranças pontuais a serem cooptadas. Após essa breve contextualização dos chamados movimentos em rede, é importante analisar a dinâmica apresentada pelo autor de como funciona esse novo modelo de organização. O autor dá destaque ao papel que as emoções têm na agência dos indivíduos, afirmando que as “[...] mais relevantes para a mobilização social e o comportamento político são o medo (um afeto negativo) e o entusiasmo (um afeto positivo)” (Castells, 2013, p. 24). O medo agiria como um agente paralisante, gerado a partir da ansiedade construída como uma reação a ameaça externa sobre a qual a pessoa ameaçada não tem controle. Assim, a ansiedade leva ao medo e neutraliza a ação desses agentes. Ao demonstrar sua indignação e enxergarem que ela é compartilhada pela rede, o medo é superado e “emoções positivas assumem o controle, à medida que o entusiasmo ativa a ação, e a esperança antecipa as recompensas por uma ação arriscada” (Castells, 2013, p. 25). Analisando tudo o que foi considerado, vemos que as redes sociais e novas formas de comunicação possuem uma influência direta nessa nova forma de organização dos movimentos sociais. Como afirma o próprio autor: Em nossa época, as redes digitais, multimodais, de comunicação horizontal, são os veículos mais rápidos e mais autônomos, interativos, reprogramáveis e amplificadores de toda a história. As características dos processos de comunicação entre indivíduos engajados em movimentos sociais determinam as características organizacionais do próprio movimento: quanto mais interativa e autoconfigurável for a comunicação, menos hierárquica será a organização e mais participativo o movimento. É por isso que os movimentos sociais em rede da era digital representam uma nova espécie em seu gênero. (Castells, 2013, p. 26).

É importante destacar especificamente que “[...] as características do processo de comunicação entre os indivíduos” são determinantes nas características do próprio movimento. Levando em consideração que a maior parte dessas redes são feitas por meio das grandes corporações da Internet, podemos entender que esses movimentos são construídos juntamente com a lógica das bolhas de filtro: de polarização e não pluralidade de ideias. Conjuntamente, não apenas os processos de comunicação são relevantes na análise de como os novos movimentos se formam, mas também o teor do conteúdo que é compartilhado. Na pesquisa feita pelo Facebook, demonstrada no capítulo anterior, o teor do

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que era considerada uma notícia liberal ou conservadora foi apenas definido com base em uma correlação do que usuários que se autodeclaravam parte de alguma das duas posições políticas compartilhavam, sendo apenas considerados as chamadas hard news, ou seja, notícias que tinham palavras-chaves relacionadas à economia ou política. Entretanto, não se analisava semanticamente quais emoções essas notícias despertavam nos usuários, sendo essa uma das variáveis que os levariam a compartilha-la. Como descrevem Berger e Milkman (2012), as emoções possuem um papel fundamental na transmissão de ideias. Tendo como referência estudos de psicologia comportamental (Smith, & Ellsworth, 1985; Barrett, & Russel, 1998), os pesquisadores afirmam que as emoções possuem um papel estimulante e desestimulante, ou seja, estimulando ou desestimulando que um pensamento, uma ação ou uma ideia seja realizada ou transmitida. Emoções com altas nível de ativação, tanto positivas (como admiração) ou negativas (ódio e ansiedade), teriam uma capacidade maior de provocarem um estímulo que levaria a ação do indivíduo, enquanto emoções com baixo nível de ativação (como tristeza ou medo) seriam desestimulantes para a ação. Com base nessa lógica, Berger e Milkman (2012) analisaram o teor das notícias do jornal The New York Times por um período de um ano, observando os níveis de engajamento, cliques e compartilhamento que elas possuíam. Com base nesses dados, o jornal sempre avaliava as notícias mais relevantes da semana, enviando-as no newsletter do jornal para seus assinantes. Analisando o teor das notícias, verificouse que as que continham ideias expressando alguma forma de ódio tinham a maior probabilidade (34%) de estarem dentro do newsletter, sendo seguida pelo sentimento de admiração (29%). Confirmando os estudos de psicologia citados, o ódio e a admiração acabaram por causar um maior engajamento e, dessa forma, uma maior probabilidade de serem visualizados. A partir destes dois estudos, podemos chegar à conclusão de que a viralização do ódio é excepcional comparada aos outros sentimentos. Primeiro, por ser uma emoção que possuí um alto nível de ativação da transmissão social, levando o indivíduo que sente a responder a esse estimulo. Por essa característica, a viralização do ódio se torna maior probabilisticamente, uma vez que o usuário que lê a notícia responde ao estímulo de ódio.

5_A REDE É O MEIO “O meio é a mensagem” (McLuhan, 1969). De acordo com Mcluhan (1969), o impacto causado pelo meio em si é muito maior que o “conteúdo” que por ele transita. O “conteúdo” propriamente dito, como um programa de tevê, na opinião de McLuhan tem um efeito secundário sobre os usuários. Não que as informações que circulam pelo meio sejam irrelevantes. Na verdade, o “conteúdo” tem um papel essencial no compartilhamento de informações de interesse comum. No entanto, a real mudança social e cognitiva é fruto do meio. O meio cria uma ferramenta cognitiva responsável por moldar tanto nossa cultura quanto nossas experiências de modo a alterar nossa percepção. Por isso, McLuhan jogou com The medium is the massage. Duas vertentes foram exploradas, a primeira de que o meio massageia o cérebro fazendo-o sentir de uma nova forma, perceber estímulos diferenciados e a segunda de que o meio agora era para a grande massa (Mass Age).

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McLuhan (1969) critica o fato que a maioria das pessoas entendia o “conteúdo” como a mensagem “THE MEDIUM IS THE quando o meio que, de fato, introduz uma ruptura MASSAGE.” independentemente da época ou espaço. O meio muda a “escala, a cadência ou padrões” (McLuhan, 1969) de uma sociedade como um todo provocando fortes efeitos sociais e psicológicos. Inclusive, a dimensão deste efeito só pode ser observada em parte quando comparada a grupos que não foram expostos aos meios em questão. De qualquer maneira, há uma aceitação passiva e subliminar de novos meios, negligenciando o impacto deles sobre a liberdade, sobre a percepção de outros grupos e sobre a interação com outros meios. Os meios são considerados recursos naturais a serem usados e, assim, configuram uma sociedade. Tal como a seda determinou traços típicos nas culturas orientais e nas trocas com o ocidente ou o petróleo motivou indústrias inteiras, os meios também induzem e refletem ordenamentos culturais. Segundo McLuhan (1969), “Cada produto que molda uma sociedade acaba por transpirar em todos e por os seus sentidos”. As máquinas cerebrais em si são um meio de impacto gigantesco nos padrões da nossa sociedade e cujos indivíduos sentem a necessidade de usá-las como recursos. É realmente um produto que alterou concepções da sociedade. Principalmente, como o meio possibilitou a criação de outro meio, a rede. A rede do ponto de vista de sua construção e arquitetura constitui um novo meio em si própria. A forma como a rede se tornou base para nossa sociedade e transformou completamente o fluxo de informações e a percepção das pessoas – enquanto indivíduos e grupo – caracteriza uma ruptura paradigmática para a sociedade contemporânea, adentrando o paradigma da complexidade. Não há mais espaço para ideias solitárias. Um olhar sistêmico, subjetivo e de observação participativa se faz imperativo no cenário de acessibilidade e fluidez da rede. O próprio pensamento de Castells (2013) revela o tom de meio da rede ao evidenciar o potencial que ela toma no rumo da civilização, por exemplo, na mobilização social através da rede que culminaria na Primavera Árabe. A indignação compartilhada seguida pela esperança e luta só se tornou viável graças à existência da rede. Logo, as interações entre coisas e sujeitos, a nova percepção da realidade, a escala, a cadência e os padrões, todos juntos assumiram um novo patamar o qual esculpi a cultura da sociedade contemporânea. Constata-se então: a rede é o meio. Em si própria constitui um novo modus operandi para a civilização. Agora, as questões que envolvem a rede como meio se fazem extremamente necessárias. Quais são os pressupostos impostos pela rede como meio? Como permanecer à margem dessa estrutura? Quais as linhas de força a serem percebidas e quem são os mestres do meio? Seja como for, o feitiço pelo meio é instantâneo e a maioria da população está submissa aos seus pressupostos. Atualmente no turbilhão de mudanças há pouca compreensão do que está acontecendo e a grande massa está dentro do meio, não tendo discernimento das linhas de força que a envolve. Porém, qual a relação entre os pressupostos do meio e a disseminação de ódio e onda crescente de polarização entre grupos de opiniões contrárias ou diferentes? Qual a

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participação das bolhas de filtro neste contexto? A postura que a bolha de filtro algoritmicamente impõe aos usuários é, em resumo, “ame os semelhantes e odeie os opostos”. O usuário terá suas opiniões reverberadas e será induzido a rejeitar opiniões diferentes. Assim, ao serem complacentes com esta predisposição da educação atual, cumprem por consequência os interesses monetários das empresas da Internet, que fazem os jovens se sentirem mais dispostos a usarem as redes devido ao ambiente artificialmente produzido para lhes criar sensações positivas e de pertencimento a partir das bolhas de filtro. Por isso a rede é o meio e tão logo formadora. Assim, é importante buscar alternativas às bolhas de filtro que os usuários estão expostos. O Wikipédia e o Linux, por exemplo, oferecem uma outra concepção lógica, a de cooperação. Mas uma restrição deste artigo é oferecer opções aos usuários. Há de fato opções, como o próprio usuário adotar posturas para confundir o algoritmo, como curtir páginas que não tenham nenhuma relação com o perfil dele, por exemplo. Mas isso só possível a medida que se crie a consciência da situação dentro da bolha de filtro. O que traz à tona a necessidade de fomento de uma cultura de tolerância e diversidade para a sociedade. Não apenas aceitar/entender, como também ressaltar as melhorias advindas de diferentes perspectivas. Para tanto, o primeiro passo é a conscientização dos usuários. Somente assim é possível dar o segundo passo no caminho da criação de uma nova cultura. Este artigo, no entanto, limita-se a alertar sobre a lógica nefasta das bolhas de filtro que cumprem ideias capitalistas e da parcialidade que isso cria na rede. Portanto, ainda são necessários estudos de como conscientizar os usuários – e este artigo é um incentivo para tal –, além de outros sobre como fomentar uma cultura de tolerância a diversidade e análise de alternativas que rompam com as bolhas de filtro.

6_CONCLUSÕES Pelo conjunto mencionado, é possível notar que a rede imaginada por Lévy (1999) e Benkler (2006) como meio de compartilhamento e cooperação ainda está presente no caráter descentralizador e de muitos para muitos da rede, mas está ameaçada pela lógica do capitalismo de vigilância. A necessidade de aumento de lucro e ambição por poder das empresas de tecnologia acaba por criar um cenário nefasto para os ideais de compartilhamento e cooperação. Isso porque o caminho escolhido por essas empresas para alcançar seus objetivos econômicos e atingir um patamar de influência mundial não só se baseou no capitalismo de vigilância, o qual visa primeiramente a coleta intensiva de dados dos usuários – de forma inclusive abusiva –, mas também na criação de ambientes artificialmente produzidos por algoritmos sensíveis à interação dos próprios usuários na plataforma, as chamadas bolhas de filtro. Embora as bolhas de filtro apresentem benefícios como a conveniência e facilidade de acesso a temas de interesse, ela mascara um lado perverso de enclausuramento dos usuários em torno das próprias convicções, as quais são reverberadas de duas maneiras: reforço

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positivo nos próprios posts; e criação de sensações negativas para opiniões contrárias. Assim, o usuário acaba por não interagir a receber a complexidade das informações, colocando em questão a validade da plataforma em questão. É o caso exposto do Washington Post diante do Facebook para as eleições presidenciais americanas deste ano. A razão para esse viés é justamente propiciar experiências mais agradáveis aos usuários e mantê-los por mais tempo entretidos, pois isso significa diretamente chance de aumentos nos lucros. Agora isso é particularmente grave do ponto de vista que hoje poucas empresas de tecnologia monopolizam a rede e, portanto, boa parte do fluxo de informações. O que levanta a dúvida dos perigos que isso pode oferecer aos próprios usuários e mesmo a regimes democráticos. Por último, foi abordada a rede como meio porque ela em si própria produz consequências drásticas à vida em sociedade. E sendo um meio isso torna a rede educadora. Portanto, é importante conscientizar os usuários sobre a polarização, as bolhas de filtro e interesses comerciais, já que isso tem grande impacto em decisões de interesse comum. Para tanto é necessário dar esse primeiro passo de conscientização e só assim será possível fomentar uma cultura de tolerância e diversidade.

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UnBTV (2014, 25 de setembro). Palestra: Dominique Wolton [Arquivo de vídeo]. Recuperado de: Wolton, D. (2006). É preciso salvar a comunicação. Tradução Vanise Pereira. Paulus, 2. ed. São Paulo. Zuboff, S. (2015). Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Journal of Information Technology. 30, 75-89.

LEANDRO RACUIA Estudante de Administração da USP e fascinado pelos temas de empreendedorismo, inovação e impacto social. Trabalhou para a Força Tarefa Brasileira de Finanças Sociais e construiu conhecimento no campo social através da contribuição para o estudo Mapeamento dos recursos disponíveis no campo social. Possui forte inclinação para desenvolvimento de conteúdos ligados à criação de novos negócios de cunho social, capacitação em desenvolvimento de processos criativos grupais e clima/cultura no universo de startups.

VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS Estudante de Relações Internacionais da USP e pesquisador em diferentes temas referentes à tecnologia e sociedade. Sua pesquisa envolve principalmente temas como Vigilantismo, Liberdade de Expressão na Internet, Cyberwar e Cybersegurança. Foi representante da juventude brasileira no IGF 2016 e atualmente é estagiário na área de Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Também é cofundadores e coordenador do Núcleo de Estudos em Tecnologia e Sociedade da USP, instituição estudantil que tem como objetivo difundir e estimular o debate sobre temas ligados a tecnologia.temas ligados a la tecnología.

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DEFESA DA CONCORRÊNCIA E PLATAFORMAS ONLINE EM TEMPOS DE BIG DATA PALOMA SZERMAN Advogada especialista em direito e políticas das Tecnologias da Informação e Comunicação [email protected] Argentina

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_TEMÁTICA Problemas emergentes da Internet

_RESUMO Como resultado de la actual revolución productiva basada Como resultado da atual revolução produtiva baseada no uso e coleta de dados, cada vez mais empresas desenvolvem seus modelos de negócios baseando-se no uso do big data. E embora isso lhes permita melhorar seus produtos e serviços, a partir da defesa da concorrência há cada vez mais perguntas sobre a relevância dos bancos de dados e como seu uso pode levar a práticas abusivas ou gerar efeitos anticompetitivos. Este artigo explora como as agências da concorrência começaram a envolver-se em assuntos relacionados com o big data e os dados pessoais. Palavras chave: competência; big data; proteção de dados; privacidade

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1_INTRODUÇÃO Em agosto de 2016, o Facebook anunciou uma mudança nos termos de serviço do WhatsApp – do qual é proprietário – informando que agora seria possível o tratamento cruzado, com o aplicativo de mensagens, de dados pessoais dos usuários em mãos da rede social1. O fato gerou uma cascata de reações adversas por parte de advogados, policy advocates, ativistas do direito à privacidade e usuários em todo o mundo, irritados pela possibilidade de que o gigante das redes sociais pudesse dispor discricionariamente de seus dados a fim de maximizar seus ganhos. Apenas dois anos antes, a Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Commission) dos EUA AGORA O USO, (2014) e a Comissão Europeia (2014) – os órgãos COLETA E competentes em questões de defesa da concorrência TRATAMENTO em tais jurisdições – haviam dado luz verde à MASSIVO DE DADOS aquisição do WhatsApp por parte do Facebook, SÃO CHAVES PARA apesar da oposição por parte de alguns agentes REALIZAR NEGÓCIOS relevantes. Para aqueles que estavam contra, era claro que o Facebook buscava ter acesso aos dados dos usuários do WhatsApp para refinar ainda mais seus serviços de publicidade online (Medina, 2015; Oreskovic, 2014; Westerholm, 2014). Embora a enorme pressão pública tenha conseguido que – ao menos por enquanto, e na Europa (Hern, 2016) – o processamento cruzado de dados fosse suspenso, muitos agentes do ecossistema digital ressaltaram que isso havia sido advertido por eles no momento de se realizar a transação. O que aconteceu com o Facebook/WhatsApp não é um fenômeno isolado, e sim parte de um panorama maior que evidencia uma nova era em termos econômicos. De fato, é cada vez mais evidente que nos encontramos frente a uma mudança crucial nas bases de nosso sistema econômico: agora o uso, coleta e tratamento massivo de dados são chaves para realizar negócios. Vemos isso todos os dias quando cada vez mais empresas – operadoras de telecomunicações, bancos, provedores de serviços de Internet, motores de busca web, redes sociais, cartões de crédito etc. – coletam enormes quantidades de dados pessoais para melhorar seus negócios. O fato se evidencia ainda mais no crescimento do que chamamos de big data. Nesse sentido, diversos estudos demonstram que o que foi denominado “inovação impulsionada por dados” permite às empresas melhorar a qualidade de seus produtos e serviços, assim como criar novos, ao entender e direcionar-se melhor a seus consumidores e usuários (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2016). As empresas coletam, organizam e sistematizam conjuntos de dados –geralmente chamados data-sets – que integram bancos de informações para seu uso. Assim, na busca de otimizar processos e maximizar ganhos, as empresas adaptam seus modelos de negócios à aquisição e tratamento de grandes volumes de dados pessoais 1 Pode-se acessar a versão dos termos de serviço do Whatsapp do dia 25 de agosto de 2016 em . Acesso em 27/02/2017.

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de seus usuários. Isso lhes permite oferecer produtos e/ou serviços cada vez mais personalizados, o que os torna mais atrativos para os usuários, bem como serviços de business intelligence e anúncios publicitários para públicos específicos de forma cada vez mais refinada (OCDE, 2016). Como podemos imaginar, esse fenômeno tem efeitos em múltiplas esferas de nossas vidas. É por isso que reguladores nacionais e órgãos transnacionais começam a investigar a possível aplicação das normas e princípios de defesa da concorrência em assuntos relacionados ao big data e ao uso de dados pessoais. Aqui, particularmente, vamos observar de que modo poderiam-se analisar os possíveis efeitos do tratamento massivo de dados na concorrência econômica. A seguir, sem esgotar o universo de possibilidades, algumas avaliações.

1.1_ENTENDER A NOVA LÓGICA DO MERCADO No que diz respeito à análise dos data-sets como um insumo, o Supervisor Europeu de Proteção de Dados (2014) considerou que os dados pessoais se tornaram o método de pagamento invisível para o que denominou “serviços online gratuitos”, que incluem as redes sociais, serviços de e-mail etc. Como consequência, a coleta massiva de dados pessoais deve ver-se refletida nas novas definições do que, no direito da concorrência, se chama “o mercado relevante”2. Por exemplo, uma análise de mercado relevante nos dias de hoje deve examinar novos modelos de negócios e avaliar o valor dos data-sets como um ativo intangível dentro do “mercado de serviços gratuitos online”. Enquanto que redes sociais, motores de busca e demais serviços gratuitos podem ter uma enorme porção do mercado em relação às suas limitadas ofertas de serviços, os mercados em si são, no mínimo, bilaterais – e o lado que mais ganha geralmente é o publicitário. Esse se caracteriza por uma concorrência feroz, contrapartidas poderosas e uma avaliação constante da performance dos distintos vendedores publicitários. É por isso que, para esses casos, as preocupações tradicionais relativas às condutas abusivas, tais como os preços abaixo do custo marginal ou a venda em pacotes de diferentes produtos, não são aplicáveis, e inclusive podem beneficiar a concorrência e os consumidores. Não obstante, as companhias possuidoras de grandes quantidades de dados, como toda empresa, podem ter condutas anticompetitivas, assim como usar fusões e/ou aquisições para acumular poder de mercado suficiente para manipular preços e espremer os negócios de seus concorrentes. Quando isso acontece, as agências da concorrência devem intervir e as leis vigentes devem considerar estas questões (Kennedy, 2017).

2 “Mercado relevante” é o conceito utilizado na defesa da concorrência para delimitar os produtos e empresas em que existe uma concorrência próxima. Usualmente, para fazê-lo, costuma-se analisar a substituibilidade de produtos ou serviços, tanto a partir do ponto de vista dos consumidores como das empresas que os oferecem. Para isso, costuma-se aplicar o “teste do monopolista hipotético”, segundo o qual se um monopolista hipotético fizer um pequeno, mas significativo e não transitório, aumento dos preços (entre 5% a 10%) e como resultado disso os consumidores escolherem outros produtos, são aqueles os que definem o mercado relevante. Não obstante, a aplicabilidade desse teste em relação aos serviços ligados ao ecossistema digital é discutida.

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1.2_O VALOR DOS DATA-SETS E O CONTROLE DE CONCENTRAÇÕES Tal como aconteceu nas fusões Google/DoubleClick3 e Facebook/WhatsApp4, as agências de defesa da concorrência podem avaliar até que ponto uma transação desse tipo pode levar à acumulação de dados em mãos de um só agente de tal modo que pudesse restringir a concorrência. Especialmente caso os concorrentes não tenham capacidade para replicar ou adicionar livremente, por seus próprios meios, tais informações, ou se não puderem contar com os meios necessários para fazer uso delas – esse foi o maior argumento utilizado pelos opositores às fusões mencionadas5. Além disso, a Comissão Europeia acaba de aprovar a aquisição do LinkedIn por parte da Microsoft6, apesar da forte oposição de seus competidores, especialmente Salesforce – uma empresa que compete com a Microsoft no mercado da computação em nuvem. Os rivais da Microsoft tornaram públicas suas preocupações pelo acesso aos dados em posse do LinkedIn e sua futura exploração comercial. Para acelerar a aprovação da operação, a Microsoft ofereceu concessões de todo tipo: que os desenvolvedores de empresas rivais tenham acesso a certas ferramentas do Outlook – um software de gestão de e-mail, calendário, contatos, entre outros –, resultando que perfis das redes sociais rivais possam aparecer no Outlook (Motta, 2016). A Comissão definiu suas exigências: assegurar-se que os fabricantes de computadores tenham a opção de não instalar o LinkedIn no Windows; permitir níveis de interoperabilidade entre os produtos da Microsoft e as redes sociais profissionais que competem com o LinkedIn; e outorgar às redes sociais profissionais da concorrência acesso a dados de usuários armazenados na nuvem da Microsoft com prévio outorgamento de consentimento por parte dos usuários (Comissão Europeia, 2016). A novidade no estabelecido pela Comissão foi que, pela primeira vez, analisou-se a potencial concentração de dados como resultado da fusão e seu impacto na concorrência. Embora tenha deixado claro que não é o objetivo do direito da concorrência europeu lidar com assuntos relacionados à privacidade dos usuários, entendeu que sim, podese ter isso em conta se os usuários veem a privacidade como um fator significativo de qualidade, além de haver competição nesse fator entre as partes que se fundem. No caso, a Comissão concluiu que a privacidade é um parâmetro importante de concorrência entre redes sociais profissionais no mercado, o que poderia ter afetado negativamente a transação mesmo que não fosse o caso concreto na aquisição (Comissão Europeia, 2016).

3 Ver Caso COMP/M.4731 Google/DoubleClick Regulation (EC) No 139/2004 Merger Procedure (“Google/DoubleClick case”, 2008). 4 Ver Caso No COMP/M.7217 Facebook/Whatsapp Regulation (EC) No 139/2004 Merger Procedure (“Facebook/WhatsApp case”, 2014). 5 Competition Law and Data, Informe da Bundeskartellamt e da Autoridade da Concorrência (Autorité de la concurrence), 10 de maio de 2016, p. 24. 6

Nota do tradutor: em dezembro de 2016.

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COMISSÃO CONCLUIU QUE A PRIVACIDADE É UM PARÂMETRO IMPORTANTE DE CONCORRÊNCIA ENTRE REDES SOCIAIS PROFISSIONAIS NO MERCADO

Apesar do dito anteriormente, a Salesforce destacou que é impossível para qualquer entidade externa acessar ilimitadamente e/ou reproduzir as informações nas mãos do LinkedIn (Motta, 2016). Ao mesmo tempo, a Microsoft argumenta que grande parte dos dados estão disponíveis no Facebook, que deveria ser considerado parte do mesmo mercado. O certo é que no centro da discussão encontra-se uma questão de oportunidade de negócios, na qual tanto a Microsoft como muitos outros agentes de peso, entendendo a direção que está tomando a nova “economia de dados”, estão dispostos a investir muito dinheiro.

1.3_DANOS AO CONSUMIDOR POR MEIO DOS ABUSOS DE POSIÇÃO DOMINANTE Alguns órgãos públicos começaram a investigar se quando um agente dominante se aproveita dessa posição para negar aos usuários acesso a informação pessoal ou para implementar termos de serviço enganosos não só está incorrendo em descumprimentos às normas de proteção dos dados pessoais mas também em práticas anticompetitivas que geram danos diretos ao consumidor. Esta é a base para a pesquisa que começaram as agências de defesa da concorrência na Alemanha (Bundeskartellamt [BKA], 2016) e Itália (Sisto, & Binnie, 2016) contra o Facebook. Tomando de algum modo as reações negativas provocadas pela mudança abrupta nos termos de serviço do WhatsApp, as agências consideram que o possível uso ilegítimo dos termos e condições por parte do Facebook poderia implicar uma imposição abusiva para seus usuários. Elas têm um enorme desafio: provar se de fato existe uma conexão entre o possível abuso de posição dominante da empresa e o uso de cláusulas contratuais e termos de privacidade abusivos.

2_CONCLUSÕES Com base no exposto anteriormente, pode-se concluir que há um consenso crescente na Europa de que, enquanto avançamos até uma economia digital baseada em dados e informação, o direito da concorrência terá um papel crescente em prevenir que atividades conectadas à coleta e uso de dados restrinjam ou evitem a concorrência em qualquer mercado. Nesse sentido, e levando-se em conta os diferentes temas identificados ao longo deste artigo, podem-se ressaltar algumas considerações principais que devem consideradas por agências reguladoras, empresas e usuários ao tratar de assuntos relativos a dados pessoais sob a ótica da defesa da concorrência:

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2.1_OS BENEFÍCIOS PRÓ-COMPETITIVOS E DE QUALIDADE DE SERVIÇO QUE SURGEM DA COLETA E TRATAMENTOS DE DADOS PARA O USUÁRIO A coleta de dados gera benefícios para a concorrência e os usuários, dado que os provedores de serviços online utilizam esses dados para melhorar seus serviços e monetizá-los efetivamente, gerando serviços que são oferecidos a preços subsidiados, inclusive gratuitos em termos monetários. Como consequência, os provedores de serviços online estão em uma melhor posição para competir entre si e prover melhor qualidade de serviços. No entanto, as empresas que coletam dados precisam levar em conta como os usarão, considerando os riscos regulatórios de defesa da concorrência que podem ser implicados.

2.2_AUTORIDADES EUROPEIAS E REGULADORES NACIONAIS Parece que as agências nacionais na Europa estão tomando a dianteira para entender os efeitos da coleta de dados e o big data na concorrência em geral, enquanto que a Comissão Europeia se focou na revisão de fusões. Nada indica que a Comissão abrirá uma nova frente em relação à coleta de dados e o uso do big data e as possíveis condutas anticompetitivas. No entanto, com exceção das ações iniciadas pela Alemanha e Itália contra o Facebook, as agências nacionais não realizaram nenhum procedimento específico relativo aos abusos de posições dominante por meio do uso de dados pessoais. Ainda assim, se a tendência de coletar dados para acelerar os negócios continuar – e tudo parece indicar que assim o será – é só uma questão de tempo para que as autoridades de defesa da concorrência se vejam obrigadas a envolver-se no assunto e inclusive exigir o cumprimento de certas questões regulatórias.

2.3_EQUILIBRAR AS ANÁLISES DE PODER DE MERCADO COM O USO COMPETITIVO DE DADOS As autoridades europeias e as agências nacionais devem encontrar um equilíbrio justo, discernindo quando um agente dominante está utilizando seu poder de mercado até mercados adjacentes de quando há ganhos em eficiência que surgem da especificação (“targetização”) das transações. Em outras palavras, a coleta e uso de dados, quando é analisada sob a ótica da concorrência, deve prevenir não só os efeitos restritivos à concorrência, mas também estimular seus benefícios pró-competitivos e pró-consumidor.

2.4_OLHAR ALÉM DOS MOTORES DE BUSCA E OS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS O uso e coleta de dados têm implicações em um espectro de indústrias e mercados muito mais amplo que o dos motores de buscas, a publicidade online e as redes sociais, especialmente com a chegada e avanço da Internet das Coisas. Num futuro não tão distante, todos os setores da indústria elaborarão seus modelos de negócios com base na coleta e inteligência de dados e, portanto, deverão considerar tal modelo não só a

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partir da perspectiva da proteção, mas também a partir dos riscos e o compliance7 com o direito da concorrência.

2.5_COLETA E USO DE DADOS NÃO NECESSARIAMENTE IMPLICAM QUE A DEFESA DA CONCORRÊNCIA DEVE INTERVIR PARA PROTEGER A PRIVACIDADE DOS USUÁRIOS Há um consenso generalizado de que, de modo geral, a proteção da privacidade está fora do alcance do direito da concorrência. Assim, deve ter-se em conta que a defesa da concorrência é uma disciplina cujo objetivo serve aos fins de defender a concorrência, não proteger a privacidade. Contudo, algumas agências identificaram termos e políticas, além de privacidade de alguns serviços, que poderiam ser considerados abusivas se infringem o regulamento de proteção de dados pessoais e afetam a concorrência, especialmente quando são praticados por agentes dominantes. As críticas recebidas pelo Facebook quando alterou os termos e condições do WhatsApp e a pesquisa da BKA sobre a empresa se baseiam nisso. Ainda assim, duas questões devem ser consideradas a respeito: (i) a BKA tem a difícil tarefa de provar um vínculo causal entre o descumprimento da legislação de proteção de dados pessoais, a dominância e a prática de condutas abusivas de acordo com o direito da concorrência; (ii) inclusive se a BKA conseguir provar esse vínculo causal, e inclusive se as empresas de fato abusam de sua posição dominante por meio de políticas de privacidade pouco transparentes, não significa que o direito da concorrência deva incluir dentro de seus objetivos a proteção da privacidade. Por outro lado, a BKA e qualquer outra agência de defesa da concorrência devem gradualmente reavaliar suas interações institucionais com as agências de proteção de dados para evitar a superposição jurisdicional e melhorar a proteção dos usuários. Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS Bundeskartellamt (2016). Bundeskartellamt initiates proceeding against Facebook on suspicion of having abused its market power by infringing data protection rules. Recuperado de Comissão Europeia (2014). Mergers: Commission approves acquisition of WhatsApp by Facebook. [Release de imprensa]. Recuperado de Comissão Europeia (2016). Mergers: Commission approves acquisition of LinkedIn by Microsoft, subject to conditions. [Release de imprensa]. Recuperado de 7

Nota do tradutor: do inglês to comply, que significa agir de acordo com as regras.

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Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Comission) (2014). FTC Notifies Facebook, WhatsApp of Privacy Obligations in Light of Proposed Acquisition. News & Events. Recuperado de Hern, A. (2016). Facebook ‘pauses’ WhatsApp data sharing after ICO intervention. The Guardian. Recuperado de Kennedy, J (2017). Should Antitrust Regulators Stop Companies from Collecting So Much Data? Harvard Business Review. Recuperado de Medina, E. (2015). Facebook/Whatsapp: Competition analysis in the new Digital Economy. Public Policy Blog de Telefónica. Recuperado de Motta, C. (2016). An American duel in Brussels: Salesforce against Microsoft over Linkedin deal. The European Sting. Recuperado de Oreskovic, A. (2014). Privacy groups ask regulators to halt Facebook’s $19 billion WhatsApp deal. Reuters Technology News. Recuperado de Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2016). Big Data: Bringing Competition Policy to the Digital Era. p. 7-8. Recuperado de Sisto, A., & Binnie, I. (2016). Italy antitrust agency probes WhatsApp messaging service. Reuters Canada. Recuperado de Supervisor Europeu de Dados Pessoais (2014). Preliminary Opinion on Privacy and Competitiveness in the Age of Big Data: The Interplay between Data Protection, Competition Law and Consumer Protection in the Digital Economy. p. 57. Westerholm, R. (2014). Facebook’s WhatsApp Purchase Challenged: Privacy Advocates Ask FTC to Put Deal on Hold, University Herald. Recuperado de

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PALOMA SZERMAN Paloma Szerman é advogada, graduada na Universidade de Buenos Aires com orientação em Direito Público. Depois de cursar um semestre na Universidade de Nova York, se formou em Direito da Internet e Tecnologias das Comunicações na Universidade de San Andrés, e atualmente está fazendo mestrado em Direito e Economia na Universidade Torcuato Di Tella. Tem mais de seis anos de experiência como assessora em direito, regulação e políticas públicas de Tecnologias da Informação e Comunicação, tanto no setor público como no privado, assessorando empresas, órgãos públicos e organizações internacionais. Além disso, participa em diversas iniciativas acadêmicas e grupos de pesquisa sobre a temática.

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