O renascimento de São Luiz do Paraitinga - guerrafelipe

Felipe Guerra O renascimento de São Luiz do Paraitinga Capa/foto: Felipe Guerra - 6 fev. 2010 Produção gráfica e diagramação: Lincoln Santiago Fot...
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Felipe Guerra

O renascimento de São Luiz do Paraitinga

Capa/foto: Felipe Guerra - 6 fev. 2010 Produção gráfica e diagramação: Lincoln Santiago Fotografias: Felipe Guerra, Paula Guerra, Roseli Bernardo Texto: Felipe Guerra Revisão jornalística, ortográfica e final: Lincoln Santiago e Robson Bastos da Silva Orientação: Robson Bastos da Silva

Ficha catalográfica elaborada pelo SIBi – Sistema Integrado de Bibliotecas / UNITAU

C824r

Correa, Felipe de Carvalho Guerra O Renascimento de São Luiz do Paraitinga / Felipe de Carvalho Guerra Correa - 2010. 144 f.:, il. Projeto Experimental (Graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo) – Universidade de Taubaté, Departamento de Comunicação Social, 2010. Orientação: Prof. Dr. Robson Bastos da Silva, Departamento de Comunicação Social. 1. Enchente. 2. Reconstrução. 3. História. 4. Tragédia. 5. São Luiz do Paraitinga. I. Título.

Felipe Guerra

O renascimento de São Luiz do Paraitinga

Agradecimentos Agradeço a toda minha família, tanto Guerra como Corrêa, que sempre acreditou no meu potencial como jornalista e como alguém que pode fazer algo relevante pelo mundo. À minha mãe Paula Guerra, meu maior exemplo de vida, que sem saber me incentivou a escolher esse tema para o trabalho. Ao meu pai, Fernando Corrêa, que ensinou de maneira firme os filhos a correrem atrás de suas pretensões desde cedo, e à minha madrasta, Ivete Migliani, que sempre tratou os enteados como se fossem seus filhos. Ao meu irmão mais velho, Rafael, e ao mais novo, Victor, que sempre cuidaram de mim como se eu fosse o caçula. Ao meu tio Henrique Guerra, que se desdobrou para me abrigar em sua pousada diversas vezes para que eu realizasse o trabalho. E, de maneira muito especial, aos meus tios-padrinhos Wilson e Carola, que me deram a grata oportunidade de estudar em minha área pretendida arcando com as mensalidades do curso. Ao amigo Marcelo Moreira e sua família, que me abrigaram e aguentaram durante o mês de janeiro. Ao amigo de curso Jaime Lemes e demais padres e seminaristas do Instituto Missionário São José, que me acolheram pelo resto do ano como verdadeiros irmãos. Aos amigos de estágio na Câmara Municipal de Taubaté, com quem convivi nos últimos dois anos, dentre eles o professor Luiz Carlos Batista, um dos responsáveis pelo meu crescimento profissional na área, Lincoln Santiago, amigo que, além de cumprir suas tarefas diárias como marido e pai, se dispôs a diagramar, revisar e dar sugestões para o trabalho, e Fernanda Maria Ribeiro, que acreditou na minha competência e me ajudou a calcar o primeiro passo na profissão além do estágio. Ao orientador Robson Bastos, que pacientemente lidou com minhas ideias e atrasos; ao professor Judas Tadeu de Campos, por suas colaborações preciosas sobre a história da cidade, e aos demais colegas que participaram intensamente da minha vida nos últimos anos, dentre eles os irmãos de consideração de São Paulo, Laranjal Paulista e do Vale do Paraíba.

A todos os luizenses, de sangue ou de coração, que sofreram mudanças após a tragédia e trabalham intensamente para reconstruir suas vidas.

Índice Introdução ..................................................................................... 11 A história ........................................................................................ 17 A enchente ..................................................................................... 39 Janeiro ........................................................................................... 67 Fevereiro ........................................................................................ 73 Março ............................................................................................ 81 Abril ............................................................................................... 91 Maio .............................................................................................. 99 Junho ........................................................................................... 111 Julho ............................................................................................ 115 Agosto ......................................................................................... 121 Setembro ..................................................................................... 125 Epílogo ......................................................................................... 131 Índice fotográfico .......................................................................... 135 Bibliografia ................................................................................... 141

Introdução

*Há grande confusão quanto à grafia do nome da cidade, que é escrito com “Luiz” ou “Luís”. No próprio município as placas de comércios e dos carros apontam essa dúvida. O autor optou pela grafia utilizada pela prefeitura.

Este livro pretende mostrar o município de São Luiz do Paraitinga* em três momentos: o primeiro é a história da cidade, desde a chegada dos colonizadores à região, além de tópicos que falarão da cultura local; o segundo abordará constatações técnicas e testemunhos das pessoas que estavam no município no momento da enchente ocorrida no início de 2010 e nos dias seguintes, quando as primeiras providências foram tomadas; a terceira e última parte do livro, mais extensa, relatará diversas ações tomadas pelo governo, instituições privadas e públicas, voluntários e pelos próprios luizenses no decorrer do ano, época em que foi feito o maior número de anúncios, promessas e obras da história da cidade. É importante ressaltar que, apesar da tentativa, o livro não será capaz de apontar todas as ações realizadas nesses meses. O trabalho também dará atenção ao que os próprios luizenses viram mudar em sua cidade nesse tempo. Certamente, nem todos os relatos serão agradáveis.

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A cidade São Luiz do Paraitinga é uma cidade situada no Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo. Fica a aproximadamente 45 quilômetros de Taubaté, também no Vale do Paraíba, a 50 km de Ubatuba, no litoral norte do Estado, e a 180 km da capital. É uma cidade pequena, com estimativa de 11 mil habitantes, sendo aproximadamente metade no centro urbano e a outra metade na área rural. Apesar do pequeno número de moradores e de um centro e bairros adjacentes pequenos, a cidade tem uma área territorial muito extensa. Por exemplo, Taubaté, com aproximadamente 300 mil habitantes, tem uma área de 625 mil km². São Luiz, por sua vez, tem 617 mil km². O município possui 550 km de estradas rurais mapeadas, e estima-se que haja outros 150 km não reconhecidos. Após aprovação de uma lei em 5 de maio de 2002, o município se tornou uma das estâncias turísticas do Estado, que hoje conta com 29 cidades com esse título. São Luiz possui o maior conjunto de prédios tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) no Estado - 436 imóveis. Desses, 89 foram afetados pela enchente. Como estância turística, os maiores negócios da cidade - tirando os comércios que oferecem serviços básicos - são destinados ao turismo. Eventos como o carnaval, que atraiu 180 mil pessoas em 2009, a festa do Divino Espírito Santo e a Semana da Canção Brasileira são responsáveis pela aparição de milhares de visitantes anualmente. No carnaval, exclusivamente, era usual os moradores da cidade alugarem suas próprias casas para dezenas de pessoas, por um preço que lhes garantiria tranquilidade no orçamento pelo resto do ano. Esse mesmo evento, em outro ano, alcançou tamanho reconhecimento a ponto de ser mencionado pelo jornal "New York Times" em 2008 em uma matéria especial sobre carnavais famosos em cidades não tão conhecidas do Brasil. São Luiz é conhecida também como o lar dos músicos, pelo grande número de luizenses que aderem a essa arte - seja fazendo parte da fanfarra, da banda municipal ou tocando sentado em um banco na praça. O ícone da música na cidade é o maestro Elpídio dos Santos, que viveu entre 1909 e 1970, e cujo nome se tornou também o nome do coreto central da cidade. Ele foi responsável por diversas trilhas sonoras dos filmes de Amácio Mazzaropi, ator e dire12

tor de filmes que fez grande sucesso décadas atrás falando da imagem do homem caipira. Duas outras figuras ilustres nasceram em São Luiz do Paraitinga: o geógrafo Aziz Nacib Ab'Saber e o médico sanitarista Oswaldo Cruz. Aziz nasceu em 1924 e é considerado referência em assuntos relacionados ao meio ambiente e impactos ambientais. Mesmo debilitado pela idade, ele foi ao município em maio de 2010 ministrar a palestra de abertura do Encontro de Geografia da Universidade de Taubaté, onde ele falou saudosistamente da história de sua família. Oswaldo Cruz, que viveu entre 1872 e 1917, foi o pioneiro nos estudos e combate à febre amarela, varíola e peste bubônica em épocas nas quais foi contrariado por grande parte da população brasileira até que suas ações surtissem efeitos positivos na saúde de seus compatriotas.

A tragédia O excesso de visitantes no carnaval de 2009 causou diversos problemas estruturais ao município, sendo um deles a falta de água em diversas casas. Planejavam-se medidas para conter o grande número de turistas nos carnavais seguintes. A ideia era fazer com que, a partir de 2010, o público da festividade fosse mais seleto, reduzindo o número de visitantes e mantendo ou até aumentando o giro monetário. No entanto, a enchente que atingiu o município nos primeiros dias de janeiro de 2010 dispensou qualquer providência para evitar problemas consequentes do carnaval. A enchente varreu parte do patrimônio histórico e cultural da cidade, destruiu propriedades, deixou os luizenses de sangue ou consideração em pânico, despertou a solidariedade de muitos e a ganância de poucos e obrigou os poderosos a olharem mais atentamente à cidade, que cresceu envolta a uma forte e perigosa natureza - os rios e os morros. Uma única morte foi registrada na cidade, e ela não ocorreu diretamente pela enchente. A vítima foi atingida por um deslizamento de terra enquanto trabalhava no desbloqueio de uma das várias estradas rurais da cidade atingidas pelo excesso de chuva. Poucos dias depois a cidade estava repleta de doações, voluntários, ideias para um recomeço e também se tornara um dos compromissos na agenda de vários políticos. Com o passar dos meses, voltou a ter parte das cores que tivera outrora, porém ainda parecia um palco de 13

obras. Os munícipes já não estavam tão aflitos quanto no início do ano, mas provavelmente nunca mais sentirão a mesma tranquilidade de viver nas pacatas terras luizenses.

Atualmente A aparência de São Luiz mudou notavelmente em 2010, tendo em vista a emergência na realização de obras que previnam outros acidentes e a urgência em restabelecer o cotidiano dos luizenses. Apesar da ênfase no patrimônio cultural e histórico da cidade, grande parte da população que vivia em pontos distantes, como a Várzea dos Passarinhos e o Alto do Cruzeiro - o primeiro foi parcialmente destruído pela água, e o segundo pela terra -, foi severamente afetada pelas consequências da enchente. Apesar das medidas tomadas para ajudar esses munícipes, como a construção de um conjunto habitacional, o auxílio do governo a famílias desamparadas e a doação monetária feita por milhares de pessoas em uma conta de banco criada para arrecadar verba destinada ao apoio à população, nem todos voltaram a viver em condições dignas tão cedo. Alegando a necessidade de preservar a segurança dos trabalhadores e moradores no local de trabalho, o terreno no qual foi construído o conjunto habitacional só foi liberado para as famílias após a conclusão integral dos lotes, com 151 casas, no final de setembro. Até essas residências serem liberadas, aproximadamente 20 famílias viveram sob o título de desabrigadas - pessoas que não puderam recorrer a parentes ou amigos para se alojarem - e ficaram improvisadamente em uma pousada e uma casa alugadas pela prefeitura. O auxílio-aluguel de 300 reais oferecido pelo Governo do Estado às famílias desalojadas e desabrigadas foi bloqueado a 178 das 308 famílias inscritas para receber o benefício no meio do ano por supostos pagamentos indevidos a pessoas que não estariam passando por carências causadas pela enchente. Em setembro, 130 famílias tornaram a receber o auxílio. A conta aberta para doações ao município recebeu quase 540 mil reais até o início do segundo semestre. Desses, 96 mil reais foram utilizados para a reforma do prédio da prefeitura - segundo a administração pública, o dinheiro foi doado por um banco, que permitiu à prefeitura usá-lo segundo suas prioridades -, o que gerou uma ação pública por uso indevido da verba, que deveria ser utilizada prioritariamente na reestruturação social dos munícipes. Outros 55 mil reais 14

teriam sido gastos com medicamentos, e o restante, quase 390 mil reais, estaria parado, segundo a prefeitura, enquanto a administração aguardava um levantamento das prioridades do município. Pouco tempo após a publicação da ação, a prefeitura publicou uma nota de esclarecimento afirmando que as acusações eram inverídicas e que tinham cunho político e ideológico. Outras situações negativas foram constatadas no decorrer do ano: o tradicional carnaval da cidade, que atraiu um número recorde de visitantes em 2009 e representa a maior circulação monetária do ano, foi cancelado pelo estado crítico da cidade; o desabamento parcial da casa Oswaldo Cruz, que teria ocorrido por descuido dos órgãos responsáveis pela preservação do local; o roubo de dois quadros que estavam no prédio do Ceresta (Centro de Reconstrução e Desenvolvimento Sustentável), que seriam leiloados para angariar fundos para a cidade (os quadros foram recuperados em seguida, enquanto tentavam comercializá-los); a queda de um morro, localizado na via de acesso João Roman, onde estava sendo feito trabalho de contenção; a necessidade de alguns moradores retornarem a suas casas - escoradas e rachadas também devido ao bloqueio do auxílio do Estado. Em certos casos, apesar da disposição para reformarem as residências, os munícipes foram prejudicados pela demora na aprovação de projetos de reparo nas casas históricas por parte do Condephaat. Apesar dos problemas e polêmicas gerados no decorrer do ano, há pontos positivos a se destacar: a maior parte dos munícipes conseguiu voltar para casa e retomar as atividades no comércio, mesmo que tenha sido a um alto custo. O calendário festivo foi retomado aos poucos, tendo excluído somente o carnaval (realizado de maneira singela pela população) e atraído um número satisfatório de visitantes a partir da festa do Divino Espírito Santo - que nesta edição, além de fiéis, fotógrafos e amantes da festa mais tradicional do município, contou com a presença de visitantes interessados em ver como a cidade se portava quatro meses após a tragédia; o turismo voltou a ganhar forças quando os visitantes constataram que a cidade já possuía estrutura mínima para hospedá-los; determinados setores comerciais viramse reanimados com a volta dos visitantes, enquanto outros (principalmente o alimentício) já contabilizavam uma movimentação acima do normal com a presença de empresas que prestavam serviços ao município.

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A história São Luiz do Paraitinga completou oficialmente 241 anos em 2010, época marcada por uma tragédia que poderia ter varrido a cidade. Pensando em seu caráter histórico e cultural, lamentou-se a perda de milhares de documentos, como cartas e fotos de famílias tradicionais da cidade. Cinira Pereira dos Santos, viúva do compositor Elpídio dos Santos, é o exemplo mais destacado das pessoas que amargaram a perda de documentos familiares. Felizmente, há quem tenha conseguido salvar as lembranças familiares da água. Além disso, parte dos documentos da cidade – históricos ou não – foi recuperada graças a entidades especializadas na preservação de materiais antigos danificados e à digitalização do que foi recuperado. Há grande dificuldade em se conseguir acesso a documentos históricos que falem do passado de São Luiz. Além dos documentos em mãos de particulares, a história da cidade antes da década de 1930 quase desapareceu com os conflitos da Revolução Constitucionalista, e a história posterior foi prejudicada pela enchente. Em ambas as situações diversas casas e prédios públicos foram destruídos. O jornalista Judas Tadeu de Campos, que escreveu “São Luis: História, Cultura e Educação”1 (obra mimeografada), em parceria com a prefeitura, cedeu o livro 1 CAMPOS, 2009 para guiar as próximas páginas, que relatam a história de São Luiz do Paraitinga desde a vinda dos bandeirantes à região, no século XVII.

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Os bandeirantes O século XVII no Brasil foi marcado por empreitadas realizadas pelos bandeirantes – homens de São Paulo que tinham a tarefa de explorar terras distantes dos centros urbanos do país – a fim de descobrirem fontes de riquezas, além de buscarem nativos para serem escravizados. Essas empreitadas foram responsáveis por grande parte da instalação de povoados em locais antes desconhecidos por eles – e eventualmente habitados por índios, que eram expulsos, escravizados ou mortos. O povoado de Taubaté, no interior de São Paulo, foi o núcleo regional dos colonizadores nesta época. É de lá que vieram os primeiros homens que se instalaram nas terras da atual São Luiz do Paraitinga – que em pouco tempo havia sido habitada pelos agressivos índios Muiramomis, pelos Tamoios, que dizimaram aqueles e posteriormente se dirigiram ao litoral sul, e por último os Puris – considerados índios de boa índole e medrosos. Taubaté foi fundada pelo bandeirante Jacques Félix, que recebeu terras no Vale do Paraíba em 1628. Nesta época, São Luiz, que no princípio da história do Brasil era quase totalmente isolada por sua densa vegetação característica da Mata Atlântica, era um bairro do povoado de Taubaté. Em 1641, o capitão Domingos Dias Félix, filho do fundador de Taubaté, seu filho, também Jacques Félix, e o escrivão Paulo Fernandes receberam sesmarias – terras doadas pelo rei de Portugal ou pelo capitão-general (equivalente a governador do Estado) da capitania a quem pretendesse cultivar o local. Uma sesmaria media 1.800 hectares, ou 743,80 alqueires paulistas. O povoado que se instalou no bairro não prosperou nos 45 anos seguintes à primeira ocupação feita por bandeirantes e só começou a crescer em 1686, quando os bandeirantes taubateanos capitão Mateus Vieira da Cunha e João Sobrinho de Morais receberam uma sesmaria no local onde São Luiz do Paraitinga se situa atualmente. Em 1707 os moradores construíram uma capela de pau-a-pique em louvor a Nossa Senhora do Rosário – representando a segunda fundação de São Luiz, que sinalizou finalmente a prosperidade daquelas terras. A descoberta das jazidas de ouro em Minas Gerais nesta época foi um dos fatores que contribuiu para o povoamento de São Luiz, que era uma das paradas para reabastecimento de provisões na trilha criada pelos bandeirantes para fazer o transporte dos minérios até o litoral norte. O ouro vindo do outro Estado era cunhado em Taubaté, onde fora instalada a primeira fundição desse metal no país, e seguia por essa estrada até Ubatuba, onde embarcava para Portugal. 18

Fundação Apesar do povoamento na região, a fundação de São Luiz do Paraitinga nunca havia sido oficializada até então devido às regras de reconhecimento existentes em Portugal. Para que uma terra fosse reconhecida era necessário que o seu fundador recebesse uma carta de autorização enviada pelo rei ou governador. Isso só aconteceu em 8 de maio de 1769, depois de o sargento-mor Manoel Antônio de Carvalho “descobrir” São Luiz durante uma viagem a barco. O povoado continha aproximadamente 50 residências, além da igreja construída com taipa de pilão em 1707. Após pedido do sargento-mor, o capitão-general Luís Antônio de Souza Botelho Mourão autorizou a fundação do povoado, que foi nomeado Vila Nova de São Luís do Paraitinga. Manoel Antônio de Carvalho foi apontado como fundador e dirigente do povoado. Ele se mudou para o local e viveu na rua que levaria o seu nome posteriormente – rua do Carvalho. São Luiz foi elevada à categoria de vila em 31 de março de 1773, o que lhe garantiu o direito de ter uma câmara e uma paróquia. No mesmo dia foi erguido um pelourinho na vila, simbolizando a presença de autoridade real. O pelourinho – uma coluna de pedra fincada no logradouro mais importante do lugar – servia também para atar criminosos e para o açoite e o enforcamento. Parte do pelourinho ainda era visível no centro de São Luiz até a época da enchente, apesar de ter sido parcialmente quebrada no dia 13 de maio de 1917 durante as comemorações da abolição da escravidão. Em 30 de abril de 1857 São Luiz deixou de ter os termos “Vila Nova” no nome, sendo nomeada apenas São Luiz do Paraitinga após ser elevada à categoria de comarca e ser considerada cidade.

*As unidades administrativas do Brasil se dividiam, da maior para menor, em: capitanias, comarcas, termos, freguesias e bairros.

São Paulo e o caipira A capitania* de São Paulo cresceu de maneira peculiar na época colonial devido ao seu isolamento comparado a outras capitanias do Brasil. Até a repentina valorização do café, a produção 19

agrícola e comercial paulista possuía características de uma cultura de subsistência, o que impedia o crescimento econômico local, diferente de outras capitanias, fortemente afetadas pela extração de ouro e produção de cana-de-açúcar. As propriedades paulistas – a princípio, pertencentes a famílias independentes de sitiantes ou posseiros, responsáveis pelo estabelecimento populacional nas regiões – não possuíam extensões tão significantes, e mesmo as famílias ricas moravam em sítios pequenos e médios. As principais plantações cultivadas nessas terras eram milho, mandioca, arroz, feijão, dentre outros cereais, e frutas. Com relação ao gado, os produtores não costumavam ter mais de 400 cabeças. A evolução da região paulista foi significantemente mais lenta que outros polos do país, e suas principais mudanças eram as adaptações necessárias a que os moradores de determinadas regiões precisavam se habituar perante o clima e geografia local. Dois fatores contribuíam para o isolamento costumeiro dos moradores dessas terras: o recrutamento para o serviço militar e as cobranças de impostos e do dízimo. No caso de haver recrutamento militar, os temerosos se refugiavam no mato para não serem convocados. Para tornar a morada na Vila Nova de São Luís do Paraitinga atrativa, o fundador oficial do povoado, sargento-mor Manoel Antônio de Carvalho obteve em 1769 uma licença especial das autoridades portuguesas: os moradores daquelas terras estariam isentos de convocações a cargos que não lhe fossem do interesse durante dez anos. Nos três primeiros séculos de colonização os paulistas eram, em geral, mamelucos – mestiços filhos de colonizadores portugueses com mulheres indígenas. Os costumes dos dois povos também se misturaram. A língua usada por eles era uma variante dos índios tupis com palavras portuguesas; as técnicas de caça, pesca e coleta de frutos dos índios, tanto quanto o uso de roupas simples, a culinária, a posse de instrumentos de metal e armas de fogo e o uso de lamparinas a óleo de mamona dos portugueses são algumas das características assimiladas pelos paulistas. A mistura dessas características da região paulista resultou no que hoje é chamado “cultura caipira”: costumes simples somados à aparente, porém irreal, desunião dos moradores de residências isoladas. A cultura caipira é considerada a forma mais antiga de cultura rural do país e predominou em São Paulo por séculos, tornando comuns as mesmas práticas culturais – como festividades e literatura oral – em toda a região. 20

*Bairro, nessa época, era um termo utilizado exclusivamente em São Paulo e significava um meio termo entre a natureza e a vila ou cidade que emergia naquele local, sinalizando a instalação de um povoado em regiões ainda não modificadas pelo homem.

Apesar de dubitável para moradores de outras regiões, os paulistas tinham modos que demonstravam tamanha união a ponto de colaborarem para o bem comum do bairro* no qual viviam. Essa participação comunitária, que podia mobilizar poucas pessoas – como um casal para batizar uma criança – ou muitas – para a construção de uma residência ou a organização de festas tradicionais – já estava consolidada na época da colonização das terras luizenses.

Ciclo do café A capitania de São Paulo passou por significantes transformações no século XIX, caracterizadas principalmente pelo ciclo do café. Em 1821, quando se iniciara o processo de Independência do Brasil (que viria a ocorrer no ano seguinte), a capitania se tornou província. Nesse mesmo século São Paulo perdeu território com a anexação de Lages à capitania de Santa Catarina e com a criação da província do Paraná, desmembrada das terras paulistas. A instalação da Corte Real portuguesa na cidade do Rio de Janeiro em 1808 estimulou a produção de alimentos na capitania paulista, em especial no Vale do Paraíba, levando a região a ter uma cultura de produção agrícola excedente, permitindo maior acúmulo de capitais pelos proprietários com mais terras. Em 1817 foi fundada a primeira fazenda cafeeira da região. Após a Independência, o cultivo de café na região ganhou forças, e cidades como Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Bananal e Lorena se enriqueceram rapidamente – o Vale do Paraíba foi a região mais importante no ciclo do café. A partir de 1830 se constatara uma monocultura cafeeira, que influenciou mudanças na economia e nos costumes da sociedade com a singela introdução do capitalismo e consumismo à região. A repentina e elevada produção e exportação do produto transformou o sudeste no polo econômico do Brasil e garantiu a São Paulo poder econômico e político desconhecido outrora. A população do Vale do Paraíba cresceu concomitantemente com a produção cafeeira, e São Luiz do Paraitinga chegou a ter uma população quase três vezes maior que a registrada atualmente na cidade (10.404, segundo o censo do IBGE de 2010). Em 1836, época em que o café começou a ganhar importância, São Luiz tinha 5.296 habitantes. Em 1900, esse número chegou a 29.535. Como usual em parte do ciclo do café, parte da população no município era composta por 21

escravos. Em 1854 o maior número de escravos na cidade foi registrado: de 10.393 habitantes, 2.392 viviam em absoluta sujeição a um senhor, sendo que este número decaiu posteriormente antes mesmo da abolição. A época do café tornou São Luiz atrativa também para imigrantes. Em 1886 registrou-se a presença de 255 estrangeiros, principalmente italianos e portugueses, número nunca mais atingido nos anos seguintes. Apesar do enriquecimento nacional devido ao café, ao contrário de ser inserido nos moldes capitalistas vigentes, o homem caipira foi rejeitado pelo novo sistema econômico do país. A Lei nº 601, sancionada em 18 de setembro de 1850 e apelidada Lei da Terra, acabou com o regime de posses, permitindo o reconhecimento de propriedades rurais somente perante comprovante de compra e venda ou sucessão. Os caipiras, que eram analfabetos, desconhecedores de procedimentos burocráticos legais e acostumados com o reconhecimento de propriedades por sucessão familiar, passaram a depender principalmente de terras improdutivas doadas pelos grandes proprietários. Ainda no auge da monocultura do café, D. Pedro II homenageou centenas de fazendeiros, políticos e personalidades do Segundo Império com títulos de barão. Dos 900 homenageados, um era de São Luiz do Paraitinga. O fazendeiro e político Manoel Domingues de Castro, que nasceu e viveu no município, recebeu o título de Barão do Paraitinga em 1871. Ele viveu entre 1810 e 1887, se casou duas vezes e teve quinze filhos. O barão foi considerado um dos chefes políticos mais respeitados de São Paulo, pela influência que tinha em boa parte da região norte da província. Ele morou em um dos sobrados do centro histórico do município – o único que continha uma flor-de-lis, símbolo da nobreza imperial, esculpida acima da porta principal da propriedade.

O crescimento de São Luiz Com o enriquecimento de São Paulo, as cidades mudaram significantemente. A partir de 1850 as ruas das cidades foram calçadas e iluminadas, os mercados municipais, teatros e colégios foram construídos; surgiram os primeiros jornais, as santas casas de misericórdia e asilos começaram a aparecer, e as igrejas passaram a ser construídas por arquitetos; durante as missas, havia corais e orquestras entoando os cânticos religiosos. 22

Apesar da contribuição do café para o crescimento da região, São Luiz do Paraitinga não aderiu à monocultura desse fruto. Pelo contrário, a produção agrícola se concentrou em uma cultura de alimentos diversificados para abastecimento do mercado e distribuição em cidades da região, visto que grandes partes delas estavam tomadas pelas plantações de café. A economia diferenciada luizense permitiu que, com os anos, a nobreza no município construísse sobrados, casarões senhoriais e igrejas, que posteriormente foram tombados e considerados o maior núcleo arquitetônico antigo do Estado de São Paulo. O município já possuía, em 1845, um colégio mantido pelo padre doutor Joaquim Domingues de Lameda, no qual estudavam filhos de fazendeiros da região. Em 1852 uma lei provincial criada pela Inspetoria Geral de Instrução Pública (equivalente à Secretaria de Estado da Educação) instituiu o ensino público em São Paulo, e periódicos que circulavam na província registravam, em 1856, a existência de professores de escolas públicas na cidade. Em três décadas o município já possuía duas escolares particulares e classes espalhadas pela região central e bairros rurais. Em 11 de junho de 1873, Sua Majestade Imperial agraciou o município com um título real, este que passou a se chamar Imperial Cidade de São Luiz do Paraitinga. Naquele mesmo ano, o vigário da cidade, cônego Benjamin de Toledo Mello, enviou uma carta ao Conselho Municipal denunciando o tumulto causado ao lado da Igreja Matriz no período da missa, visto que o comércio de feira era feito ao redor da igreja, e exigindo o encerramento da movimentação que atrapalhava os cultos. Como providência, o Mercado Municipal da cidade foi construído em 1875 em um terreno próximo ao rio. Além de ponto de escoamento da produção agrícola da região, o mercado era, a princípio, o local onde os proprietários vendiam e trocavam seus escravos. O prédio, que foi construído com arcadas e no formato de um largo quadrado descoberto circundado por um corredor, passou por uma reforma em 1902. Durante décadas as tradições do município – seja na produção alimentícia e artesanal ou nos costumes comerciais e de lazer – levaram grande parte dos moradores para o mercado. A partir da década de 1940, os costumes e produtos tradicionais começaram a desaparecer, restando quase somente vendedores de carne, verdura, fruta e cereais. Em 2005 outra reforma foi concluída no mercado, e dentre outras ações um dos acessos ao local foi reaberto após quatro décadas, deixando o prédio mais semelhante ao projeto original. 23

Na década de 1890 o capitão Francisco Estevam Gomes de Godoi e sua esposa doaram um alqueire de terra à paróquia de São Luiz do Paraitinga, onde foram construídos uma igreja e um cemitério. O terreno, localizado a quase 20 quilômetros da cidade, começou a ser povoado nos anos seguintes, e após diversas nomeações passou a se chamar Vila de Catuçaba, distrito de São Luiz do Paraitinga. A vila, que cresceu com o desenvolvimento da pecuária leiteira da cidade, chegou a ser um dos principais produtores de cebola e arroz no Estado na década de 1950. Atualmente há aproximadamente 800 moradores nessas terras, que contam com serviços básicos de estrutura, incluindo uma estação de tratamento de esgoto e estrada pavimentada. No âmbito cultural, Catuçaba possui a única cavalhada do município, que anualmente se apresenta na festa Divino do Espírito Santo.

A fábrica de São Luiz Na segunda metade do século XIX, São Luiz assistiu à instalação de um tipo de comércio inédito na cidade até então: uma fábrica de tecidos, que apontou o passo que o município deu em direção à industrialização após o crescimento baseado em uma estrutura agrária. A Fábrica de Tecidos Santo Antônio foi uma das primeiras indústrias instaladas no Vale do Paraíba e se situava na área rural do município, no local conhecido atualmente como Bairro da Fábrica, a sete quilômetros do centro da cidade. Indícios apontam que o coronel José Domingues de Castro, irmão do Barão do Paraitinga, aproveitou a queda da produção de itens baseados em algodão nos Estados Unidos da América durante a Guerra da Secessão para instalar a fábrica, que chegou a produzir 1.500 metros de tecidos por dia em seu apogeu. No auge da produção, a fábrica possuía uma turbina de 50 cavalos de força movida a água, 25 teares para o trabalho em tecidos finos e trançados e 35 operários assalariados, indício de que os trabalhadores eram homens livres ou camaradas, sendo possivelmente antigos trabalhadores rurais que precisaram se adaptar a um sistema diferenciado de produção. A estimativa é de que a produção da fábrica tenha ficado em alta por aproximadamente uma década, até a morte do coronel José Domingues de Castro, em 1881. A má administração realizada 24

pelos herdeiros do local, junto ao fim da Guerra Civil nos Estados Unidos, que consequentemente permitiu a alta da indústria algodoeira naquele país, levaram a fábrica à falência e ao fechamento em 1882. O que restou da fábrica nos dias de hoje é o sobrado da fazenda Cantagalo – onde a fábrica funcionou –, paredes de taipa e o compartimento que represava as águas levadas para as turbinas. O sobrado, bem conservado no estilo original, se situa no quilômetro 48 da rodovia Oswaldo Cruz, no trecho da estrada que liga São Luiz do Paraitinga a Ubatuba.

A decadência do café Apesar de não ter investido exclusivamente na produção do café, São Luiz do Paraitinga sofreu com a decadência do fruto na região, iniciada na década de 1870. De sua parte, o mau aproveitamento do solo junto à acidentada topografia do município iniciaram a crise luizense. Na região, a rota costumeira percorrida pelas tropas que transportavam o produto de Taubaté a Ubatuba, que passava por São Luiz do Paraitinga, tornou-se desimportante para esse propósito após a abertura da estrada de ferro D. Pedro II no Vale do Paraíba, em 1877, que dispensou as longas e demoradas viagens com direito a pausas na pequena cidade entre o ponto de partida e o destino. A estrada de ferro, que entrou em funcionamento em 1858 ligando duas estações no Estado do Rio de Janeiro, tomou maiores proporções nas décadas seguintes, permitindo que a maior parte do café fosse transportada rapidamente ao porto de Santos, no litoral de São Paulo2. 2 DNIT (site). Acesso Na década de 1890 empresários e fazendeiros da região de Taubaté planejaram reativar o em 23 jul. 2010 escoamento do café pelo porto de Ubatuba através da instalação de uma estrada de ferro que partiria daquela cidade. Após construção parcial da estrada e das estações, a ferrovia teve sua concessão suspensa pelo governo federal. Em 1905 o projeto foi abandonado definitivamente, após diversas tentativas de retomada das obras. Além do prolongamento da estrada de ferro D. Pedro II, o esgotamento progressivo das terras, o maior endividamento dos proprietários rurais, a concorrência das novas áreas produtoras do café no chamado Oeste Paulista, as leis abolicionistas e a mentalidade conservadora dos fazendeiros agravaram a decadência do cultivo do fruto na região. No ano da Abolição da Escravatura, 1888, 25

75% da mão-de-obra escrava existente no Império – aproximadamente 150.000 escravos – residiam nas fazendas de café do Vale do Paraíba fluminense e paulista. Diferente do restante do Vale do Paraíba, onde o café resistiu até a década de 1920, a produção em São Luiz do Paraitinga foi afetada gravemente em 1918 por uma geada que destruiu grande parte dos cafezais, deixando o cultivo abaixo do que era costumeiro nos últimos anos. No primeiro quartel do século XX, a produção cafeeira no município era a quarta maior, com 134 toneladas, abaixo do feijão, com 408, do milho, com 3.100, e da canade-açúcar, produzida em quantidade expressivamente maior, com 20.979 toneladas. Os animais criados no município tinham as principais finalidades de serem utilizados na cozinha e no transporte. Nos primeiros 25 anos do século XX a criação de porcos contabilizou quase 11 mil cabeças – atividade bem maior do que com os bovinos, segundo animal mais criado no município, com pouco menos de quatro mil cabeças – com a principal finalidade da criação do animal para a obtenção de banha para uso culinário. As principais frutas cultivadas no município nessa mesma época eram laranja, em menor quantidade, abacate, manga, pera, e banana, com o maior número de pés – 300 mil.

A modernização Nas últimas décadas do século XIX o perfil da zona rural sofreu mais alterações que no início do século, quando o homem caipira começara a perder espaço na sociedade. Acontecimentos políticos e econômicos no país levaram os empresários, que antes investiam nas lavouras, a destinarem suas verbas em atividades típicas do centro urbano. Nessa época, a taxa de urbanização de um município é o que apontava o seu crescimento, e a sociedade brasileira, considerada “atrasada” por países mais desenvolvidos, buscou implementar costumes da alta sociedade às atividades da população. Em São Paulo, essa mudança fez surgir um preconceito cultural com o caipira, vista a sua simplicidade, e tornou o termo um estereótipo de pessoas primitivas e preguiçosas – como apontado por Monteiro Lobato na figura do Jeca Tatu. As atuais diferenças estruturais entre escolas rurais e urbanas são o reflexo dessa tendência aos novos costumes e do agravamento do preconceito com os moradores da roça. No início do século XX, pregava-se a importância de, enquanto se construía escolas de alto nível na área urbana, 26

investir na “regeneração moral” do caipira, que estaria se sentindo sem espaço na sociedade da época. No entanto, nessa mesma época São Luiz tinha apenas 250 alunos – de 16 mil habitantes – matriculados nas escolas do município, dada a falta de apoio governamental e consequente precariedade das escolas, que muitas vezes funcionavam em cômodos residenciais. Apesar dos preconceitos típicos da área urbana, os caipiras tinham gosto pelo trabalho nas propriedades rurais e sabiam dividir o horário entre o trabalho e o lazer. Mesmo dando atenção a suas tarefas diárias, eles conseguiam passar bastante tempo realizando atividades que lhe agradassem – característica confrontada pela modernização do sistema de trabalho, que exigia longas horas de trabalho e obediência a uma hierarquia trabalhista.

Usina hidrelétrica Com a boa renda adquirida a partir da produção agrícola em São Luiz do Paraitinga, fazendeiros e comerciantes – e a prefeitura em menor grau – resolveram investir na instalação de uma usina hidrelétrica no município, que começou a ser construída em 1923. O local escolhido beirava o Rio Chapéu e ficava a cinco quilômetros da cidade, em uma área de aproximadamente três alqueires. Parte da aparelhagem da usina tinha procedência alemã, e a energia gerada por ela era suficiente para o município nessa época. As preparações mínimas para o funcionamento esperado – conclusão das obras na usina e instalação de postes – levaram aproximadamente dois anos. Após experimentos durante o dia, a luz foi ligada definitivamente na noite de 6 de janeiro de 1925, acontecimento comemorado com retreta na praça central e baile no sobrado de um coletor de impostos da cidade. Para evitar sobrecarga na usina, a energia era ativada apenas durante a noite e madrugada, funcionando entre dez e doze horas diariamente. Em menos de duas décadas a energia gerada pela usina já não era mais suficiente para abastecer o município eficientemente, e as sobrecargas, seguidas de desligamentos do sistema e apagões, se tornaram constantes. Mediante protesto dos munícipes, a prefeitura resolveu comprar a energia elétrica vinda da Usina Félix Guisard, situada em Redenção da Serra, propriedade da Companhia Taubaté Industrial. Além de gerar energia para Redenção da Serra e Taubaté, ela abastecia Natividade da Serra, Ubatuba e, posteriormente, São Luiz do Paraitinga. 27

Nas décadas seguintes, o que restou da Usina do Chapéu se tornou sucata. Em 1970 a estatal Cesp (Companhia Elétrica - depois Energética - de São Paulo) se tornou proprietária do local e a concessionária de energia elétrica do município. Na década seguinte ela destruiu a casa de máquinas e levou as peças que restaram para um lugar desconhecido. Atualmente podem-se ver restos da represa, totalmente abandonados, da ponte do Rio Chapéu, na altura do quilômetro 46 da rodovia Oswaldo Cruz.

O Vale do Paraíba em guerra O Vale do Paraíba paulista foi considerado o principal palco de combates da Revolução Constitucionalista de 1932, iniciada após a revolta dos paulistas com o golpe militar que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930, por ser um ponto de acesso estratégico entre São Paulo e o Rio de Janeiro. Cidades como Lorena e Cruzeiro chegaram a ser ocupadas pela tropa federal, e de Cunha saiu um dos heróis do conflito: o agricultor Paulo Virgínio, que não revelou a localização das tropas paulistas, mesmo sob tortura. Sua morte pelas tropas ditatoriais foi considerada a mais bárbara – por se recusar a revelar a posição de seus aliados, ele foi obrigado a cavar a própria sepultura3. 3 Os munícipes de São Luiz do Paraitinga também estiveram perto do conflito. Na cidade Revolução Constitucionalista de foram montados quartel e hospital de campanha, que entraram em funcionamento com a che1932 (site). Acesso em gada das tropas paulistas ao município no dia 10 de junho. Nesse mês de estadia antes do 30 jul. 2010. início da guerra, que eclodiu oficialmente no dia 9 de julho, os soldados constitucionalistas viveram o cotidiano do município e se tornaram amigos da juventude luizense. Voluntários da cidade formaram o Batalhão Oswaldo Cruz. Nos primeiros meses do conflito São Luiz do Paraitinga não passou por dificuldades, porém em setembro a situação se agravou a ponto de os soldados aconselharem os moradores a saírem da cidade. A fim de evitarem as tropas federais que avançavam pelo leste, vindas de Paraty e Cunha, quase todos os munícipes – dentre eles o padre Ignácio Gióia – foram para sítios e fazendas distantes localizadas no sul e oeste do município. A principal batalha entre as tropas paulistas e as de Getúlio Vargas ocorreu em um campo no bairro rural do Rio Acima, situado a seis quilômetros ao leste da cidade e distante dos refugiados. 28

No mês seguinte os moradores começaram a retornar à cidade e se depararam com um cenário deplorável: as casas haviam sido invadidas, saqueadas e vandalizadas, e havia frases humilhantes escritas nas paredes. A maioria dos documentos guardados em uma escola que serviu como hospital foi queimada, e isso dificulta até hoje a obtenção de informações a respeito do sistema educacional na cidade antes da década de 1930. O cabo José Benedito Salinas, que vivia em São Luiz do Paraitinga, foi morto em combate na Serra da Mantiqueira e se tornou o herói da cidade. O evento marcou o município tanto em questões históricas e culturais quanto estruturais e econômicas – as duas últimas impactadas negativamente apenas –, porém se tornou um dos maiores orgulhos de sua história.

O crescimento pela pecuária No início do século XX o Vale do Paraíba passou a dar mais atenção à pecuária leiteira após a decadência da cultura do café e da produção agrícola. Entre as décadas de 1930 e 1940 a região recebeu migrantes de Minas Gerais, que levaram consigo criações de gado leiteiro – a produção leiteira marcou a economia de São Luiz do Paraitinga posteriormente. O principal fator que atraiu os mineiros para a região foi o baixíssimo preço das propriedades rurais. Em Minas Gerais, um hectare de terra chegava a ser 20 vezes mais caro que um sítio ou fazenda no Vale do Paraíba. A alimentação do gado era garantida pelo capim-gordura, que nascia nas colinas limpas dos cafezais mortos. Essas condições permitiram que as propriedades voltassem a ser tão extensas quanto na época do café, após divisões ocorridas com a decadência da monocultura do fruto. A produção leiteira na região, que serviu para abastecer tanto o Vale do Paraíba quanto São Paulo, teve impacto positivo em São Luiz do Paraitinga. Os caipiras se adaptaram facilmente a essa atividade, tornando-a um novo modo de sustento; os proprietários de terrenos derrubaram as últimas plantações de café, diminuíram suas lavouras de feijão e milho e transformaram as montanhas em pastos. As exigências técnicas de manipulação e transporte do leite acarretaram em melhores condições das estradas e a viagem diária de caminhões leiteiros. Os motoristas desses veículos acabaram sendo responsáveis pelo aumento no contato entre o caipira e a cidade, já que eles se respon29

sabilizavam pela compra de itens de consumo e faziam o transporte gratuito de moradores da área rural. Essa característica facilitou, até metade da década de 1990, a eleição de carreteiros a vereadores. Os produtores de São Luiz do Paraitinga forneciam leite para três companhias de beneficiamento, sendo que uma delas – a Usina Vigor – se localizava no município. Estima-se que o município chegou a produzir mais de um terço do leite do Vale do Paraíba, que de quatro mil litros de leite diários em 1920 passou a produzir quase 140 mil litros por dia em 1960, durante o auge da cultura leiteira da região. Com a decadência do cultivo alimentício e o crescimento da produção leiteira, que exigia menos mão-de-obra, a população do município caiu drasticamente entre as décadas de 1910 e 1940: na primeira o município tinha mais de 25 mil moradores; na segunda o número caiu para pouco mais de 11 mil. Outro destaque dessa época é a construção da Vila de São Vicente de Paulo, destinada a amparar pessoas idosas necessitadas, em 1938. O idealizador do projeto foi o comerciante e pirotécnico Idalício dos Santos, que apesar de não ter nascido em São Luiz do Paraitinga morou no município desde a infância. A vila, cujo espaço – fruto de doação em 1936 – se situa na rua Coronel Domingues Castro, foi ampliada em 1958 com a construção de mais casas e uma capela em devoção a São Vicente. O fundador do local, no entanto, faleceu em 1939, logo após o início das atividades no local.

As últimas mudanças econômicas (até a enchente) A vida no município mudou consideravelmente nos últimos 40 anos, desde o início da decadência da pecuária leiteira, ocorrida também pelo empobrecimento dos terrenos onde nascia o alimento dos rebanhos. Os caipiras foram bastante afetados, visto que grande parte deles se viu obrigada a viver na zona urbana devido à recorrente venda de posses rurais a moradores de cidades grandes. Os compradores costumavam deixar somente um pequeno grupo de ruralistas como responsáveis pelas terras, que não necessitavam de tanta mão-de-obra. A maioria dos proprietários passou a utilizar as propriedades para lazer ou para plantar eucalipto – que corresponde à atual monocultura no município. Mesmo com a queda na comercialização do leite, a sua produção diária atual passa dos 20 mil litros. Com relação à plantação de eucalipto, 30

estima-se que a área destinada ao seu cultivo seja de aproximadamente quatro mil hectares, e que 80% dos 350 empregados para a sua produção residam na cidade. As plantações são destinadas principalmente a duas companhias produtoras de papel e celulose: a Suzano Papel e Celulose e a Votorantim Celulose e Papel. A produção alimentícia, que em 1940 ocupava quase quatro mil hectares no município, atualmente ocupa 450. A estrutura econômica urbana do município ainda pode ser considerada pré-capitalista devido a sua baixa densidade demográfica e ao pequeno número de empregos gerados por cada empresa. Não há qualquer estabelecimento industrial que empregue mais de 20 pessoas, e o maior empregador é o setor público – há cerca de 850 servidores na prefeitura.

A cidade histórica O Estado passou a reparar na riqueza do acervo cultural de São Luiz do Paraitinga em 1969, durante a comemoração do segundo centenário da fundação do município. No evento foram expostos diversos documentos e objetos antigos da cidade, após aprovação do professor Luiz Pola Baptista ao pedido de um grupo de jovens que adornavam o município. Notando a importância do município na história regional, o Condephaat nomeou São Luiz do Paraitinga “a mais brasileira das cidades paulistas” no início da década de 1970. Em 1982, o órgão promoveu o tombamento de dezenas de casas, sobrados e igrejas, além de seu entorno paisagístico, após levantamento do patrimônio arquitetônico da cidade. Com o tombamento, os munícipes entenderam que São Luiz poderia se tornar um lugar atraente, o que eventualmente acarretaria em uma economia baseada no turismo e serviria como alternativa para os problemáticos modelos econômicos anteriores. Na década de 1970 o município começara a receber diversas melhorias na infraestrutura, incluindo a vinda das estatais Cesp e Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), que cuidavam da distribuição de eletricidade e água respectivamente. A instalação do Núcleo Santa Virgínia, no Parque Estadual da Serra do Mar, foi um dos incentivos ao desenvolvimento do turismo no município pela extensão do território e a riqueza da fauna e flora preservada no local. O turismo ecológico, incluindo a recente chegada do rafting – passeios em grupos utilizando botes infláveis em corredeiras – é um dos grandes atrativos da 31

cidade. Apesar do desejo dos munícipes em transformar o município em uma das estâncias turísticas do Estado existir, no mínimo, desde o final da década de 1960, São Luiz do Paraitinga só recebeu esse título em 5 de maio de 2002, pela Lei nº 11.197. Com isso o município dispõe, além de uma nomeação mais atraente, de uma verba maior do governo estadual para a promoção do turismo regional. No início do século XXI os munícipes já percebiam um dinamismo maior na indústria turística da cidade, que conta com diversos restaurantes, hotéis e pousadas, além de um farto calendário festivo tradicional ou não. Pelo menos nas datas festivas mais culturais, como a festa do Divino Espírito Santo, vários artigos tradicionais da cidade são expostos. Durante esses eventos variados grupos de danças, como a congada, o moçambique e o maracatu se apresentam espontaneamente, sem aviso prévio aos turistas, sinalizando que suas tradições são preservadas principalmente pela devoção dos participantes. Confusos e fascinados, os turistas acabam se encantando pelo que veem, ou ingenuamente considerando o evento mal organizado. Com a enchente no início de 2010 e, mesmo com um cenário diferenciado, a retomada do turismo nos meses seguintes, as discussões no município passaram a ser não só a necessidade de se atrair mais turistas, mas também a de haver uma economia alternativa no município, tão ou mais forte que o turismo. Na opinião dos comerciantes, isso colaboraria para evitar que o modo de economia ascendente fosse tão prejudicado quanto no início do ano, quando a tragédia acarretou o cancelamento de parte do calendário festivo do município – o carnaval, que não ocorreu como previsto, atraiu mais de 180 mil turistas em 2009 – e, consequentemente, em um lucro muito menor do que o esperado nos primeiros meses de 2010.

As igrejas luizenses Até o início de 2010, os moradores de São Luiz do Paraitinga e seus visitantes encontravam facilmente as três principais igrejas da cidade: a Igreja Matriz, a Igreja das Mercês e a Igreja do Rosário. As duas primeiras ruíram com a tragédia, e a última, que já carecia de manutenções, foi interditada para restauro. Essa igreja se situa no local em que foi construído o primeiro templo da 32

cidade, em 1707, e posteriormente uma igreja em taipa e pilão, em 1767. O templo foi demolido em 1915, e a atual igreja construída no local foi inaugurada em 1921, sempre em louvor a Nossa Senhora do Rosário. O cemitério mais antigo da cidade, de 1844, fica aos fundos dessa igreja. A Igreja Matriz foi construída em 1840, dez anos após o início das obras, pela necessidade de haver um templo maior que a capela do Rosário para acolher os fiéis da cidade. A estrutura original tinha apenas uma torre, na qual um relógio foi instalado em 1875. A segunda torre da igreja foi construída em 1894. A igreja passou por duas grandes reformas – em 1925 e 1945 – sob o apoio do vigário padre Ignácio Gióia. Em 1972 o pintor Álvaro Pereira, de Taubaté, executou os afrescos existentes na igreja até sua queda. A Igreja das Mercês, construída em 1814, era a mais antiga construção ainda de pé no município e o único edifício que restava do período colonial. A imagem de Nossa Senhora das Mercês foi trazida por Maria Antônia dos Prazeres no início do século XIX em sua mudança de Guaratinguetá a São Luiz do Paraitinga. Até ruir, quase tudo o que havia na igreja, como os sinos e o altar, era da época colonial. A igreja, também conhecida como Capela das Mercês, foi o primeiro edifício da cidade a ser tombado pelo Condephaat, em 1982.

Eventos religiosos Diversos eventos religiosos costumavam ser realizados grandiosamente em São Luiz do Paraitinga até anos atrás, como a festa de São Sebastião, um dos santos nomeados protetores dos portugueses na época da colonização do Brasil, e a festa do padroeiro da cidade, São Luís de Tolosa. Atualmente, a festa do Divino Espírito Santo é a festa religiosa mais conhecida da cidade e atrai milhares de turistas anualmente. O costume desse evento surgiu na Alemanha medieval e chegou ao Brasil através da França e Portugal. Registros indicam que a festa é realizada no município desde o início do século XIX, porém estudiosos acreditam que ela tenha começado a ser realizada ainda no século XVIII. A cada ano um festeiro é escolhido para ser o responsável pela organização do evento, preparado com centenas de voluntários. Os devotos participantes costumam portar bandeiras vermelhas com fitas coloridas e imagens de membros de suas respectivas famílias a fim de pedir proteção e saúde a elas. A festa dura dez dias, começando na noite de uma sexta-feira com uma 33

novena e bênção às bandeiras. Os principais acontecimentos são realizados nos finais de semana, incluindo o encontro das bandeiras, que termina no Império – casa ornamentada que se torna o centro das devoções populares durante a festa –, a distribuição do afogado – comida tradicional da festa – na tarde e noite de diferentes dias, e a Procissão do Divino, na qual os devotos são acompanhados pela banda musical do município durante as orações e a caminhada, que termina no centro da cidade. Até 2009, a procissão era encerrada dentro da Igreja Matriz, na qual era iniciada uma missa logo após a caminhada. Em 2010 a procissão terminou na praça central da cidade (em frente ao local da caída igreja) em um espaço preparado para a realização das novenas e missas. Diversas apresentações culturais são realizadas durante a festa: congadas, moçambiques, dança-de-fitas, pau-de-sebo, o casal de bonecões João Paulino e Maria Angu – que correm pela cidade atrás dos munícipes e visitantes –, e a tradicional cavalhada de Catuçaba, cuja performance retrata a luta entre mouros e cristãos difundida desde a Idade Média por Carlos Magno e os 12 pares da França. Outro evento religioso tradicional é a visita de pastorinhas – grupo de meninas que mantém uma tradição secular na cidade – entre o Natal e o Dia de Reis (6 de janeiro) às residências nas quais foram colocados presépios. Elas entoam um cântico, tão antigo quanto o costume, acompanhadas por um grupo de instrumentistas da banda musical de São Luiz. Não se sabe quando começou o costume das pastorinhas na cidade, e é comum que diversas gerações de cada família atualmente já tenham participado do grupo.

Os grupos musicais São Luiz do Paraitinga possui atualmente dois conjuntos musicais clássicos: a Corporação Musical São Luís de Tolosa e a Famig (Fanfarra Monsenhor Ignácio Gióia). A primeira foi criada no meio da década de 1950 após a separação das três bandas que se apresentavam no município e disputavam o reconhecimento. Quando criada, a corporação continha músicos e instrumentos das findadas bandas. A Famig foi criada no final da década de 1980 como parte da escola com o mesmo nome. 34

Dentre diversos títulos conquistados pelo grupo está o de tricampeã brasileira. Pela sua qualidade, foi convidada a se apresentar em eventos importantes da região, como o lançamento do avião Tucano, da Embraer, e as visitas de governadores do Estado e presidente da República. Boa parte dos membros da fanfarra também são músicos da Corporação Musical São Luís de Tolosa. O gosto pela música atrai a juventude luizense a ponto de não ser raro os músicos iniciados no município se mudarem para se tornar maestros ou fazerem parte de orquestras.

O cinema Segundo antigos moradores da cidade, a primeira sala de cinema de São Luiz do Paraitinga foi instalada no centro em 1915, antes mesmo da chegada da luz elétrica à cidade, por Sebastião Procópio, que dava funcionamento ao projetor utilizando uma manivela. Em 1925, já com a eletricidade instalada, foi criado o Cine Éden, na rua Coronel Domingues de Castro, próximo à Capela das Mercês. Os filmes silenciosos apresentados no Cine Éden eram acompanhados de um conjunto musical com piano, flauta, violino e saxofone. Em 1936 o cinema passou para outro prédio, na rua Trinta e Um de Março, onde se situa o “calçadão” do município. O novo cinema, que tinha cerca de 300 lugares, também era palco de apresentações teatrais e, por isso, foi denominado Cine Theatro São Luís. Nas décadas seguintes o cinema se tornou a principal diversão da cidade, e era comum haver grandes filas para a compra de ingressos. No final da década de 1960, com a chegada de um aparelho repetidor de sinais de televisão os moradores começaram a deixar de frequentar o cinema, que entrou em decadência e fechou em 1975. Em 1977 ele foi reaberto por uma empresa de Taubaté que possuía diversas salas de exibição pelo Vale do Paraíba, e após duas trocas de dono o cinema encerrou suas atividades definitivamente em 1981. Seis filmes cinematográficos usaram São Luiz do Paraitinga como cenário: O Jeca e a Freira (1967) e No Paraíso das Solteironas (1969), ambos de Amacio Mazzaropi; O Profeta da Fome (1969), de Maurício Capovilla; A Marvada Carne (1985), de André Klotzel; Divino 96 (1996), de Ugo Giorgetti, e The Flying Virus (O vírus voador, em tradução livre, EUA, 2001) 35

O carnaval Há registros da realização do carnaval em São Luiz do Paraitinga desde 1880, época em que o evento durava três dias, se chamava “entrudo”, e a principal diversão consistia em jogar água, farinha e até dejetos uns nos outros. Era costumeiro iniciar os festejos com um banquete composto principalmente pelo afogado, prato típico da região, que ricos da cidade ofereciam aos foliões. No final do século XIX o nome do evento mudou para carnaval, e sua realização seguia o modelo do carnaval de Veneza, na Itália. Os objetos arremessados entre os foliões eram limpos e cheirosos, havia apresentações musicais, teatrais e desfiles de blocos montados a cavalos. O novo vigário de São Luiz do Paraitinga no início do século XX, o padre italiano Ignácio Gióia, que procurava substituir o catolicismo de origem colonial e caipira pelos costumes ditados pela Cúria Romana, usou do prestígio que a Igreja Católica tinha na época para proibir a realização do carnaval no município na década de 1920. A proibição durou aproximadamente quatro décadas. Em 1962, após a morte de Ignácio Gióia, o Clube Imperial Luisense promoveu o primeiro baile após a proibição. Os bailes na época eram esporádicos, e o carnaval de rua não voltara a ser realizado até 1981, quando o clube promoveu um desfile pela cidade com a colaboração da prefeitura, que promoveu um concurso com premiação e contratou uma bateria que dava ritmo aos blocos que passavam. Em 1982 o carnaval de rua ganhou autonomia em relação às realizações do clube e ao desfile organizado pela prefeitura com a criação de um bloco cuja saída às ruas conflitava com o horário dos outros eventos. Nos anos seguintes as marchinhas, já costumeiras nas apresentações musicais durante o evento, passaram a ser dominante nos festejos. Em 1984 foi realizado o primeiro Festival de Marchinhas Carnavalescas promovido pelo Clube Recreativo Paraitinga, no qual foram selecionadas doze músicas. Em 1985 foi criado o bloco Juca Teles, que se tornou o principal bloco a desfilar na cidade até os dias de hoje. A cultura popular do evento começou a ser perdida a partir de 1989, com a divulgação das festividades pela TV Globo do Vale do Paraíba, que havia se instalado na região. O festival passou a se constituir em uma manifestação própria de cultura de massa, e a cada ano o número de visitantes crescia consideravelmente. Com os visitantes, os problemas estruturais da cidade – principalmente falta de água e mobilidade, e excesso de lixo espalhado –, que recebeu aproximadamente 180 mil pessoas em 2009 (quase 40 vezes o número de habitantes da zona urbana da cidade), se tornaram cada vez mais prejudiciais à vida dos luizenses. 36

A natureza São Luiz do Paraitinga possui 73.700 hectares, sendo que 15.946 (21,6%) são recobertos por uma flora pertencente à Mata Atlântica. Dessa cobertura florestal, 7.700 hectares (10,5%), encontram-se no interior do Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo Santa Virgínia, sob proteção legal. Somando a área do núcleo à área encontrada na zona de amortecimento – ao redor do local –, 22.100 hectares (30%) do município possuem cobertura florestal nativa – número considerado irregular pelo Código Florestal Brasileiro. O Núcleo Santa Virgínia, criado em 1989, possui áreas florestais de São Luiz do Paraitinga, Natividade da Serra, Cunha e Ubatuba, e abrange 70% da Mata Atlântica das duas primeiras cidades. Em sua vasta área pesquisadores catalogaram 39 espécies de mamíferos, 41 espécies de anfíbios e 36 espécies de cobras, além de espécies em extinção (o parque estadual abriga 276 espécies de mamíferos, 567 espécies de répteis e anfíbios e pelo menos 700 espécies de aves). As nascentes provenientes das cachoeiras do núcleo são as principais formadoras do rio Paraíba do Sul e abastecem nove milhões de pessoas que vivem no Vale do Paraíba Paulista e Fluminense. As estradas e trilhas encontradas no interior do local foram construídas pelos escravos no século XVIII, comandados por engenheiros do exército português, e demonstram a importância da travessia da Serra do Mar pelas tropas de burros como parte da rota comercial entre o porto de Ubatuba e o Vale do Paraíba. O núcleo recebe aproximadamente cinco mil visitantes por ano, e o seu relevo tem altitudes que variam entre 860 e 1.650 metros.

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A enchente O Estado de São Paulo registrou índices de chuva acima do normal no final de 2009, época em que centenas de famílias, principalmente da capital, tiveram de deixar suas casas devido às consequências trazidas pelo fenômeno meteorológico. Os institutos responsáveis pela previsão do tempo não esperavam por melhorias nessa época, e tornou-se corriqueiro enviar alertas às cidades que poderiam ter chuvas fortes. As cidades do Vale do Paraíba e litoral norte também foram afetadas nos últimos meses do ano. Em novembro uma enchente atingiu 500 casas em Guaratinguetá, e em dezembro uma criança morreu soterrada após fortes chuvas em Ubatuba. Em São Luiz do Paraitinga, a chuva alcançou nos três primeiros dias de dezembro a média esperada para um mês inteiro no verão. O nível do rio ficou dois metros acima do normal, alcançando algumas ruas e residências da cidade – o que se tornou frequente nos últimos anos se comparado a décadas anteriores –; a intensidade da chuva prejudicou a estrutura de residências, e deslizamentos dificultaram o tráfego em diversos pontos das estradas rurais e isolaram centenas de moradores da região. Nos dias seguintes, o acesso ao distrito de Catuçaba ficou interditado pela elevação do rio Chapéu, e os deslizamentos no município nessa época começaram a acontecer no bairro do Cruzeiro, levando a Defesa Civil do município a alertar os moradores da área quanto à possibilidade de agravamento da situação, visto que eles residiam em uma área de risco. Ainda na primeira quinzena de dezembro algumas famílias ficaram desabrigadas, e o município teve problemas com o fornecimento de eletricidade e água.

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Ano novo O município não passou por novos transtornos durante duas semanas, porém a chuva voltou a trazer graves problemas durante a passagem para o ano novo. No dia 31 de dezembro duas famílias se viram obrigadas a deixar suas residências. Na manhã do dia 1° de janeiro a mídia já informava que mil moradores teriam deixado suas casas devido aos problemas trazidos pelo rio Paraitinga, que estava 3,5 metros mais alto que o normal. O principal acesso à cidade foi interditado, e o município ficou sem água e telefone. No final da tarde, quando a água passou dos 4 metros de altura, a prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle decretou estado de calamidade pública. Desde o início da tarde os munícipes já discutiam a possibilidade de a água subir um pouco acima do esperado. O luthier (fabricante de instrumentos musicais) Silvio Oryn, que dá aulas e produz instrumentos musicais no centro da cidade, possui uma residência na Várzea dos Passarinhos, bairro muito afetado pelas águas. Ele explicou que estava no centro com amigos na manhã do dia 1° e que só ficou sabendo dos problemas em sua residência após um telefonema. “Uma amiga de Ubatuba me ligou próximo das 10 horas da manhã para dizer que minha casa estava sendo atingida pela água. Demos uma grande volta pelo pasto para contornar um trecho alagado e, quando chegamos (ele e a esposa), vimos quase 2 metros de água em casa. Felizmente alguém arrombou a porta para salvar nossos cachorros. Nessa hora o meu carro já estava coberto.” Ele afirmou que os moradores da Várzea estavam se concentrando em uma capela, situada em um ponto elevado do bairro, e que se surpreendeu ao voltar para o centro. “Chegamos ao local e encontramos nossos cachorros na capelinha, junto a vários moradores. O rio continuava subindo, e em uma hora estávamos ilhados no local. Algum tempo depois os rapazes do rafting vieram até nós para saber se alguém estava precisando de alguma coisa, mas como eu e a Adriana (esposa) estávamos bem, resolvemos voltar à loja contornando o bairro pelo pasto, sob chuva fina. Chegando ao centro, minha loja tinha 30 centímetros de água, algo que nunca tinha acontecido. Levamos alguns móveis e instrumentos para cima, mas não mexemos nas peças que estavam em pontos mais altos, pois não achamos necessário. Quando voltamos para o andar de baixo, 40 minutos depois, a água já tinha passado de um metro. A porta estava aberta, e dois amigos instrutores de rafting estavam passando em um bote. Eles nos levaram para um lugar seco. Restou a nós ajudar quem estava precisando”, contou. Silvio falou tam40

bém do desespero de alguns turistas. “Alguns deles chegaram ao ponto de querer processar as pousadas por ter perdido o carro na enchente. Como se os comerciantes fossem São Pedro para decidir se chovia ou não”, ironizou. No caso da balconista Claudinéia dos Santos, ela desacreditou nos alertas, visto que residia no bairro Verde Perto. Apesar de ficar ao lado do rio, parte do Verde Perto é elevada, dificultando a entrada da água nas casas. “Os rapazes do rafting passaram em casa pouco depois do almoço dizendo que a água chegaria perto de casa, mas eu não acreditei, imaginando o prejuízo que a cidade teria se a água elevasse ao ponto de atingir minha residência. No final da tarde eles pediram novamente que saíssemos lá, pois a água estava a um metro do portão. Meus pais quiseram ficar, e não podia deixá-los sozinhos. Continuamos em casa pelas horas seguintes, acreditando que a água pararia de subir.” Com a desaceleração na subida das águas, os munícipes do centro elevaram como possível os objetos em suas residências e comércios, acreditando que o rio não subiria mais. No entanto, passadas algumas horas desde o decreto da prefeita, o rio voltou a subir violentamente – sem que houvesse chuva na cidade. O comerciante Edvaldo dos Santos “Pipoca”, que morava ao lado do rio e tem um restaurante e uma locadora de filmes próximos ao local em que residia, contextualizou a situação explicando que até a pausa da enchente sua casa e a locadora haviam sido parcialmente atingidas. O restaurante, no andar de cima do edifício, teria sido atingido somente após a retomada da subida do rio Paraitinga, no final da noite do dia 1°. “A primeira parte da enchente não alcançou o restaurante – parou nos degraus. No entanto, a água voltou a subir rápida e inesperadamente, e tivemos que pegar uma carona de barco saindo pela janela do lugar. Se soubéssemos que a enchente não pararia por ali teríamos tirado tudo de casa e levado para nossa outra propriedade, no São Benedito (bairro elevado que não foi atingido). Tivemos que deixar tudo para trás, tanto em casa quanto no restaurante e na locadora.”

O resgate Mesmo os moradores que se precaveram levando seus pertences a pontos mais altos da 41

residência tiveram o mesmo destino de Edvaldo nas horas seguintes. Conforme o rio subia, os munícipes tiveram que se preparar fisicamente para saírem de suas residências. A principal maneira para isso foi o resgate: apesar de o Corpo de Bombeiros navegar em botes motorizados, os luizenses afirmam que os principais responsáveis pelo resgate da maioria da população foram os praticantes de rafting que residem na cidade. Desde o início da tragédia eles teriam saído às ruas em seus botes buscando dar suporte à população, trabalho que teriam realizado até não haver mais munícipes necessitando de resgate. Durante todo esse tempo o trabalho foi intenso e repetitivo para mais de 40 voluntários, que utilizaram cerca de dez botes. Os praticantes de rafting teriam passado mais de 24 horas remando pela cidade e fazendo todo o esforço necessário para salvar as pessoas: ao resgatarem idosos em locais complicados (muitas pessoas tiveram que sair pela janela de casa), por exemplo, eles deviam carregá-los e colocá-los cuidadosamente nos barcos. Conforme as horas passavam e o resgate continuava, casas em diversos pontos da cidade iam submergindo – algumas delas começaram a ruir ainda de madrugada. Apesar de o problema ganhar destaque somente ao atingir o centro histórico, as águas já haviam atingido parte do município na manhã do dia 1°. O instrutor de rafting Hélio Alexandre, conhecido no município como “Helinho Dindon”, conta que os resgates começaram poucas horas depois de os luizenses dormirem após o réveillon. “Recebi uma ligação às sete horas da manhã com um pedido de ajuda para levantar móveis das residências que já estavam sendo atingidas pelas águas. Às nove e 20, indo tomar o café da manhã, as pessoas estavam desesperadas, pois havia um senhor preso na Várzea dos Passarinhos, bairro mais baixo da cidade. Uma hora depois pediram ajuda para o segundo resgate, e assim foi sucessivamente. De madrugada mal conseguíamos remar, já que o peso dos botes dobrava quando colocávamos quatro ou cinco resgatados nele, e puxávamos fios da rede telefônica para chegarmos ao destino.” Os três principais pontos aos quais os resgatados podiam ser levados eram os bairros São Benedito, Santa Terezinha e Benfica – os dois primeiros não tiveram agravos nem pela enchente nem por deslizamentos, e o último foi parcialmente atingido. O São Benedito fica no trecho entre o centro histórico e a saída da rodovia Nelson Ferreira Pinto, que liga o município à rodovia Oswaldo Cruz em um sentido, e à Lagoinha no outro. O Santa Terezinha fica próximo à entrada principal da cidade, popularmente conhecida como “trevo de Ubatuba”. A Igreja 42

do Rosário, no Benfica, virou uma das bases de distribuição de suprimentos básicos nos dias seguintes. Outros pontos, como o Alto do Cruzeiro, Verde Perto e Várzea dos Passarinhos, tiveram mais problemas por pelo menos uma das consequências do excesso de chuva.

O triste alvorecer

Vista da enchente no bairro Verde Perto. Ao fundo, homem com prancha resgata cachorro

Na manhã do dia 2 a água havia parado de subir – dados da Defesa Civil Estadual apontam que o nível do rio subiu aproximadamente 15 metros. Grande parte da cidade estava submersa. Do Mercado Municipal só se via os pontos mais altos do telhado, reconhecíveis pelo formato quadrado do prédio, e a ausência da ponta da Capela das Mercês denunciava sua queda. Estima-se que mais de nove mil moradores (cerca de 90% da população) tenham deixado suas casas. A rodovia Oswaldo Cruz estava interditada no quilômetro 44 também devido à enchente. Segundo os moradores, o momento mais crítico de elevação da água ocorreu durante a madrugada, mas os resgates só encerraram no final da manhã. Havia todo um esquema tático para o trabalho: em certos pontos da cidade, os munícipes eram levados até locais nos quais poderiam ser puxados. Próximo à entrada do “trevo de Ubatuba”, os munícipes eram levados até um barranco, por onde eram puxados com 43

Momento em que apenas uma das torres da Igreja Matriz havia caído

uma corda de rapel até a estrada. Claudinéia e seus pais, que insistiram em ficar em casa crentes de que a água não a atingiria, foram levados de canoa a outra residência em um ponto mais alto durante a noite. Com a retomada da subida da água, eles ficaram ilhados no local até o amanhecer. “Até tirarem a última pessoa de nossa casa, a água estava atingindo nossa cintura. Em meia hora parte da residência para qual 44

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GUERRA (site). Acesso em 6 fev. 2010

Dentre observadores no “trevo” de Ubatuba, havia viajantes e pessoas resgatadas

fomos também alagou e ficamos presos lá. Não tínhamos como pedir ajuda dali e achamos que só sairíamos de helicóptero. Os homens do rafting passaram perto de lá em um barco às 9 horas da manhã, quando a água nos cercava. Gritamos por ajuda, e felizmente eles nos viram. Quando vieram a nós, explicaram que todos pensavam que não havia mais moradores presos naquela área.” Aproximadamente às 11 horas da manhã, enquanto os munícipes ainda não tinham ideia de qual seria o destino de cada um – pois portavam apenas poucos pertences fundamentais –, aconteceu o evento mais exibido pela mídia em rede nacional: a queda da Igreja Matriz, cujo desmoronamento contribuiu com a devastação de grande parte do centro histórico com a queda da segunda torre do edifício. No blog Diários do Retiro4 a artesã Paula Guerra fez um relato minucioso do seu testemunho na enchente, no qual ela também apontou o momento da queda. “Quando cheguei lá em cima, assim que consegui aprumar o corpo, olhei para a cidade lá embaixo e tomei a igreja matriz como ponto de referência... só que ela desabou naquele exato instante diante dos meus olhos, e fez uma enorme onda de água na praça, que derrubou os casarões históricos como um dominó... cara, a gente simplesmente não acredita, fica todo mundo em silêncio, de boca aberta, olhar fixo, pensando que se enganou. Daí eu entendi o que eram os barulhos horríveis que escutava durante a madrugada, pensei que eram transformadores elétricos estourando, mas eram desabamentos, seguidos dos gritos de pessoas apavoradas, que estavam na água fria e no escuro.”

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Fotos da Igreja Matriz tiradas em 2006; à direita, suas ruínas no início de 2010

Abrigo e comida Os munícipes, desolados com a cena, não tinham outra opção senão começar a pensar no que fazer. Os principais comércios da cidade foram atingidos, e aos problemas anteriores – falta de água e luz – foram adicionadas as preocupações com abrigo e comida – esta que se tornou escassa. Diversos moradores da cidade ofereceram solidariamente suas residências como abrigo aos flagelados. Um dos exemplos de abrigo fica no bairro do Orrs (conhecido também como Rio Acima, pela estrada que o acompanha). A chácara Nossa Senhora das Brotas, propriedade do casal de produtores Hélio Ozório e Benedita Pereira, foi atingida em todo o trecho de acesso à residência, porém a casa ficou intacta. O local abrigou 56 pessoas, sendo que algumas delas ficaram duas semanas na chácara. Hélio explicou que doava parte do leite que produzia e recebia mantimentos diariamente. “Na medida em que os bombeiros e os rapazes do rafting nos traziam mantimentos, 46

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separávamos 10 litros de nosso leite para consumo do grupo e entregávamos os outros 40 litros que produzíamos diariamente para que fossem distribuídos na cidade. Não tínhamos o que fazer com tanto leite”. O casal chegou a cozinhar cinco pacotes de macarrão ou arroz a cada refeição. As pousadas próximas ao centro que não foram atingidas também fizeram o possível para abrigar os munícipes, mesmo estando totalmente lotadas pelas reservas do réveillon. Os locais públicos amplos e cobertos que não foram atingidos tornaram-se imediatamente abrigos e centros de distribuição de itens de consumo. A prefeitura e Defesa Civil emitiram notas ainda na manhã do dia 2 pedindo doações, dentre elas alimentos, que estariam escassos na cidade. Imediatamente a Polícia Militar e a Câmara Municipal de Taubaté, além da Defesa Civil Estadual e inúmeros grupos e instituições de São Paulo e outros Estados, se mobilizaram para arrecadar os itens básicos dos quais os luizenses necessitavam – água, comida, roupas colchões e produtos de limpeza, que começaram a chegar no dia seguinte. A princípio, as doações que chegavam ao município eram depositadas em locais improvisados, visto que os pontos mais apropriados para isso estavam submersos. Junto aos primeiros caminhões vindos de Taubaté, as primeiras doações foram feitas principalmente por moradores que não foram afetados, mas nem todos os testemunhos são tão agradáveis: os luizenses contam que alguns comerciantes das partes altas da cidade, que não foram prejudicadas por enchente ou deslizamento, supervalorizaram os itens de consumo que vendiam para aproveitarem-se do excesso de demanda. Segundo Silvio Oryn, parte dos comércios reduziu o valor de venda dos itens de consumo devido à desvalorização do dinheiro, porém outros comerciantes teriam se aproveitado da situação. “A princípio conseguíamos comprar um ou outro produto mesmo com pouco dinheiro no bolso, porém, nos dias seguintes, alguns comerciantes elevaram drasticamente o valor deles. Um ovo chegou a custar dois reais, um pacote de arroz chegou a 25 reais, e um litro de leite passou dos oito reais. O comerciante acabou sendo preso por isso. Independente disso, o dinheiro perdeu o valor e uniu grande parte da população.”

Noite sem casa Sem qualquer alternativa, a maior parte dos munícipes precisou recorrer a residências de amigos ou estabelecimentos aos quais frequentavam para ter um lugar fechado para dormir. A escola esta48

dual Monsenhor Ignacio Gioia – a única da zona urbana que não foi atingida – virou abrigo para dezenas de pessoas nos primeiros meses. Claudinéia, que se juntou ao resto da família na noite do dia 2, optou por ficar em uma casa própria em Taubaté até a entrada de sua residência ser liberada. Edvaldo, que teve a casa, o restaurante e a locadora de filmes atingidos, revezou sua estadia entre a casa de parentes e o abrigo na escola estadual. Silvio Oryn passou as primeiras noites em residências de amigos no município. “Nos primeiros dias recebemos uma cesta básica para dividir com todos, até conseguirmos comprar algo”, explicou. A funcionária pública Maria Aparecida Cabral, que vivia em uma casa na rua Barão do Piratininga, a poucos metros do centro histórico, tombada como patrimônio e que desmoronou, passou os primeiros dias na igreja evangélica que frequentava. Ela ficou em três lugares nesses nove meses, nem sempre junto a uma boa vizinhança. “Quando cheguei do réveillon, a cidade estava embaixo d’água e não tive o que fazer. Consegui um lugar na igreja e fiquei por lá uns 20 dias, recebendo doações, mas a convivência era difícil, pois outros moradores pegavam o que era nosso. Resolvi ir para o [Monsenhor] Ignacio Gioia, abrigo organizado onde passei dois meses, e desde o final de março estou vivendo no local improvisado pela prefeitura – a pousada Caravela. A vida piorou nesses seis meses ali, pois o desrespeito cresceu. Já roubaram dois celulares meus, além de roupas minhas e do meu filho. Atualmente alguns moradores fazem festa a qualquer hora, e há pessoas que acordam de madrugada e ligam o rádio na cozinha, ao lado do meu quarto.”

A dificuldade nas doações O terceiro dia do ano amanheceu com a chegada de carros e caminhões com doações vindas de outros municípios. A água ainda estava começando a descer, e a prefeitura não tinha um local adequado para depositar os produtos doados, pois a cidade continuava quase inteiramente alagada. Os munícipes se ofereceram a estocar os produtos trazidos de fora, e centenas de voluntários – luizenses ou não – apareceram para ajudar a administrar e distribuir os itens. Naquela amanhã se constatara a grande probabilidade de o município ter um grande estoque de doações. A TV Vanguarda, afiliada regional da Rede Globo de Televisão, gravou uma 5 FEREZIM e PEREIRA. reportagem5 em frente a uma delegacia que estava recebendo doações em Taubaté. Segundo o (site). Acesso em jornal, dez carros com doações pararam em frente ao local em apenas 15 minutos que a equipe da 8 fev. 2010

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emissora ficou no local. A coordenadora das doações nessa delegacia, Elisângela Oliveira, explicou que o problema com as doações era o transporte até São Luiz do Paraitinga. Quatro caminhões da equipe teriam ido ao município no dia anterior, mas pela dificuldade de transportar as doações no centro, através de barcos, eles ainda não haviam voltado. “Chegou muita doação aqui na delegacia da JK (a delegacia se situa na avenida Juscelino Kubitschek), mas o problema é o transporte para levarmos tudo isso até São Luiz. Reabastecer uma cidade inteira com apenas quatro caminhões é muito pouco. Eles estão lá, ilhados, sem água, luz, comida, nada. Por isso é importante cada um ajudar de alguma forma”, explicou. Apesar da dificuldade no transporte, um grande número de veículos levou doações ao município. Até o final do dia a água havia descido aproximadamente 5 metros. Ainda no domingo o então governador José Serra passou o dia no Vale do Paraíba, região em que várias cidades tiveram problemas com enchentes e deslizamentos. Durante visita a São Luiz, ele ofereceu à prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle apoio do Estado e pediu que o calendário festivo fosse mantido, pensando na proximidade do carnaval. A prefeita afirmou que o município não estava em condições para receber o evento, e que ele deveria ser cancelado.

Perdas na região Além de São Luiz do Paraitinga, municípios como Natividade da Serra, Cunha, São José dos Campos, Caçapava e Guaratinguetá tiveram problemas com enchentes e deslizamentos. Nessa última cidade, cerca de 200 famílias ficaram desalojadas, sendo que 70 não puderam retornar às suas casas. Em Cunha, houve queda de ao menos 600 barreiras e de 300 pontes. Nessa mesma cidade a chuva causou o deslizamento que soterrou sete pessoas de uma mesma família no dia 1°. Seis delas morreram. Em São Luiz do Paraitinga, quatro pessoas foram atingidas por um deslizamento na estrada rural do bairro Bom Retiro. Três delas foram resgatadas, porém o quarto homem só foi encontrado soterrado dez dias depois. A Associação Luizense Protetora dos Animais, a oito quilômetros da cidade, também foi atingida pela enchente. Os 80 gatos que viviam no local morreram afogados, pois o gatil era totalmente fechado, diferente do canil, que tinha uma abertura 50

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CARUSO (site). Acesso em 10 fev. 2010.

na parte de cima, por onde os cachorros puderam escapar. Apesar da fatalidade, a presidente da associação, Eva Vilma Siqueira, assegurou a intenção de retomar as atividades no local. “Mais do que nunca precisamos continuar com o nosso trabalho. As pessoas foram embora da cidade e deixaram seus animais abandonados.”6

Solidariedade O município chegou a registrar furtos em algumas residências durante a queda do nível da água, porém as mais de duas toneladas de doações feitas até o dia 4 para o município é que chamaram a atenção da mídia. Os coordenadores de grupos voluntários continuaram pedindo a outras pessoas que colaborassem com serviços braçais, visto o estrago que a água tinha causado. A estudante universitária Darly Gonçalves, que trabalhava na biblioteca da cidade e tentara salvar bens do local antes de a água levá-los embora à noite, passou a madrugada na rua, em choque, para começar a ajudar os outros ao amanhecer. “Não sei como, nem em que sequência, mas comecei a me envolver na ajuda às pessoas, carregando objetos, descendo e subindo morros. Depois de uma noite e manhã difíceis descansei algumas horas, mas logo em seguida comecei a ajudar na distribuição de alimentos, pão, suco e comida na Igreja do Rosário, ponto de referência para quem buscava alimentos. Era tanta coisa a fazer que não conseguia parar para pensar. Depois desse momento emergencial trabalhei na área social da prefeitura, distribuindo produtos de limpeza, higiene pessoal e roupas. Lá as pessoas viram que o que mais vale é ajudar, fazer o máximo que se pode nas condições disponíveis, e ver a gratidão nos olhos de pessoas simples que, perdendo tudo que haviam conquistado, não perderam a esperança.” Helinho Dindon foi um dos protagonistas no trabalho voluntário na cidade. Ele é um dos homens que utilizaram botes por aproximadamente 24 horas para fazer resgates, e estima-se que ele tenha salvado 350 pessoas. Sem imaginar a consequência de sua afirmação à reportagem da rede Vanguarda, sua entrevista foi exibida em rede nacional no horário nobre. Emocionado com a situação delicada da cidade, falou: “A gente tem força pra se reerguer. A gente vai colocar grão por grão, tijolo por tijolo, telha por telha, coração por coração. E vamos reerguer a cidade, deixá-la mais bonita ainda pra que os turistas possam vir e vamos mostrar para o Brasil 51

inteiro, pro mundo inteiro, que São Luiz é forte como todo brasileiro”7.

Problemas na zona rural As consequências na área rural do município também foram grandes, apesar de a mídia não ter dado muita atenção ao assunto. Diversas pontes quebraram, dificultando o acesso às residências, e dezenas de famílias ficaram ilhadas por vários dias. O diretor de Agricultura e Abastecimento da cidade, Donizete José Galhardo, explicou que os prejuízos nessa região vinham ocorrendo desde o final do ano passado. “Nessa época contabilizamos aproximadamente 30 pontes quebradas. Foram mais de 50 deslizamentos, e também mais de 50 residências inundaram. Mas os problemas já vinham se agravando desde antes da virada do ano. Os bairros Santa Cruz e Bom Retiro passaram por três enchentes nos últimos meses de 2009, e a chuva incessante dificultava até mesmo o reparo emergencial das pontes da área. Muitas das famílias atingidas não puderam voltar tão cedo aos seus lares.” Segundo Donizete, o prejuízo dos moradores da zona rural só não foi agravante com relação à perda de gado. “Quem criava gado não perdeu os animais, pois eles foram aos pontos mais altos das propriedades e sobreviveram. No mais, os produtores de leite não tinham para onde levar o que produziram, restando descartar o produto estragado, e as lavouras ficaram embaixo d’água, tornando-se improdutíveis por algum tempo.” Mesmo com a descida da água, dezenas de moradores da área rural continuaram ilhadas. Em matéria apresentada pela Vanguarda sobre o número otimista de doações, o coordenador de um grupo voluntário, Luís André de Carvalho, pediu apoio aos moradores da zona rural. “Precisamos dos barcos para retirar as pessoas ilhadas das residências. Temos gente doente, passando mal, e outras que precisam receber alimento e água, pois estão isoladas desde o início da enchente.”8

Cenário de guerra O nível da água caiu consideravelmente no dia 4, permitindo uma visão geral do que havia 52

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Solidariedade aos desabrigados de São Luiz (site). Acesso em 10 fev. 2010

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Doações não param de chegar à São Luiz. (site). Acesso em 10 fev. 2010

Dentro de casa, móveis e eletrodomésticos foram revirados. Na cozinha, o mau cheiro denunciava a perda total dos alimentos. Na última foto, Paula Guerra separa bens a serem reaproveitados 53

acontecido na cidade antes do previsto. As diversas cores chamativas nas fachadas das casas, antes uma marca de São Luiz do Paraitinga, deram lugar ao marrom monótono da lama que tomou conta da cidade. Apesar de grande parte das casas estar interditada pela Defesa Civil Estadual, os munícipes começaram a retornar ao centro para ver de perto o que havia acontecido. Desolados, não sabiam se iam checar primeiro o que sobrara de suas residências ou as ruínas das duas igrejas que caíram durante a enchente. Várias casas históricas desapareceram, enquanto outras, mesmo com avarias consideráveis, resistiram à força das águas. De qualquer modo, a avaria de cada propriedade era incalculável a princípio, e os luizenses partilhavam a dor de verem a cidade antes colorida e pacata agora destruída e caótica. Antes vizinhas da Igreja Matriz, diversas propriedades tombadas, incluindo o casarão no qual funcionava a escola municipal Waldemar Rodrigues, tiveram suas estruturas misturadas às do local sacrossanto. Visando preservar os símbolos cristãos na cidade, munícipes trataram de procurar as imagens religiosas – ou o que havia sobrado delas – das igrejas caídas. Em meio aos escombros, as primeiras peças encontradas foram as imagens de São Luís de Tolosa e de São Tarcísio do Bom Jesus, além do sino da Igreja Matriz.

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Nesta página e nas anteriores, casarões históricos que não ruíram sofreram graves danos. Nas ruas, trechos foram interditados pelo descarte de imóveis das residências

Outros pontos da cidade, mesmo os que não possuíam casarões, estavam tomados por entulhos. Dezenas de veículos, móveis, eletrodomésticos, além de itens inusitados ficaram espalhados pelas ruas, telhados ou rio. Havia carros empilhados ou pendurados em árvores, caixões boiando nas águas, e uma geladeira passou os primeiros dias do ano no telhado do Mercado Municipal. Segundo estimativas da Defesa Civil, na primeira semana do ano, caminhões carregando entulhos precisariam fazer pelo menos duas mil viagens para limpar o município, que continha também uma quantidade considerável de restos de grandes propriedades. Segundo o engenheiro Jairo Bonielo, a maioria dos casarões históricos foi gravemente afetada. “De 15 a 20 dos quase 90 casarões tombados devem se salvar. São os que passaram por restauração recentemente. Os demais caíram ou estão condenados.”9 9 MANSO (site). A maior parte dos munícipes continuara com as ações solidárias no meio da cidade durante o Acesso em 10 fev. 2010 dia, enquanto a luz natural permitia a contemplação e a ação no território afetado. À noite, o ritmo das pessoas desacelerava, segundo Silvio Oryn. “A noite era mais triste, pois todos se recolhiam para os seus abrigos. Eu levava o violão à 57

escadaria da igreja do Rosário para tocar com os amigos. Chegamos a ser filmados por pessoas que queriam mostrar o luizense, em meio à tragédia, tentando animar o local.”

Somando prejuízos No dia seguinte a Defesa Civil começou a vistoriar as propriedades do município. Cerca de 200 residências foram liberadas no primeiro dia de análises. Ao final do dia, o balanço do órgão indicou que 2.400 moradores ainda estavam desalojados, e que 50 estavam em abrigos da prefeitura. O bairro Verde Perto, por ser elevado, além do trecho que entorna a rodoviária, estava mais seco que os demais pontos da cidade. A prefeitura escolheu o ginásio poliesportivo, próximo à rodoviária, para se tornar o depósito definitivo das doações enviadas aos luizenses. Em pouco tempo o local começava a receber os primeiros itens doados. A primeira impressão de Claudinéia dos Santos, que foi resgatada com os pais, ao entrar em casa, como de se esperar, foi chocante. “Havia pelo menos três palmos de lodo por todos os lugares, nas ruas e nas residências, e era difícil caminhar por isso. Fomos basicamente patinando até nossa casa e, chegando ao local, vimos nossos carros embaixo do lodo, a cozinha ar58

Em poucos dias o espaço chegou à capacidade máxima de doações. Prefeita cogitou fazer doações ao Haiti, mas descartou ideia por altos custos para transportar roupas

rombada e tudo fora do lugar. Não tínhamos como começar a limpar o lugar decentemente, já que o abastecimento de água cessava a quase todo instante.” No centro, era óbvio que os comerciantes perderiam tudo o que havia para ser vendido. O proprietário do único posto de gasolina da cidade, Odiney Graça Pezoto, calculou suas perdas em 700 mil reais. O comerciante Edson Anacleto, que teve casa e três comércios atingidos pela enchente, estimou os prejuízos em 400 mil reais. Outro problema constatado pelos comerciantes foi a perda de produtos estocados para o carnaval, época em que se estima a circulação de pelo menos 25 milhões de reais na cidade. Muitos dos comerciantes garantem dinheiro suficiente para aguentar, no mínimo, o orçamento da maioria dos meses do ano, até o próximo carnaval, em um processo cíclico. Washington Rodrigues da Silva, dono de um restaurante, tinha recebido produtos pouco antes da tragédia. “O estoque que eu encomendei chegou na quarta-feira que antecedeu a tragédia na passagem de ano. Além dos milhares de reais que serão usados na reforma do restaurante, contabilizei essa perda considerável devido aos investimentos geralmente feitos para a alta temporada.”

Eles não deveriam estar ali Como previsto, a cidade não demoraria a ter uma sobrecarga de doações. Apesar do grande volume de itens doados, muitas pessoas de fora da cidade, além de grupos pertencentes a variadas instituições, mostraram-se dispostas a fazer o possível para ajudar os munícipes. Comerciantes de produtos de limpeza passaram o dia rodeando a cidade e distribuindo gratuitamente o que antes era destinado à venda. Cozinheiros fizeram o possível para bater de porta em porta e entregar uma refeição decente a cada luizense recoberto pela lama de sua residência. Qualquer pessoa com disposição e espaço no veículo enchia-o de água e itens que dessem maior proteção aos munícipes durante a limpeza, evitando ferimentos, infecções e desidratação. O trabalho ficou longe de se limitar a pessoas solidárias das classes baixa e média. Os ricos, além de enviarem itens ao município, decidiram participar fisicamente do recomeço da cidade. Passados quase nove meses da tragédia, Paula Guerra contou, aos prantos, a memória dessa imagem de solidariedade. “A cidade estava inteira suja, e de repente apareceu um homem dirigindo um carro importado, distribuindo itens de consumo a todos os moradores daquela rua sem se 59

Asilo passou por diversas reformas durante o ano enquanto moradores ficaram em Taubaté

preocupar com o veículo. Aquele homem vive em outra realidade, totalmente diferente da nossa, principalmente naquele momento. Ele não precisava – e não deveria – estar ali, parando de porta em porta, e mesmo assim foi nos ajudar. Esse é um dos exemplos de solidariedade que me fascina até hoje.”

A dor da saudade Aos poucos, os luizenses faziam o possível para se acomodar na casa de parentes ou amigos, ou então nos abrigos preparados pela prefeitura. No entanto, nem todos passaram por esse desafio de buscar um novo local para morar provisoriamente – em nome da saúde. Os 16 moradores do Lar São Vicente de São Luiz do Paraitinga viram a água invadir o asilo rapidamente no dia 1° de janeiro e mal tiveram tempo para retirar seus pertences de casa. Recebendo o apoio dos munícipes após deixarem a residência apenas com os itens do corpo, eles passaram dois dias em alojamentos. No dia seguinte, os luizenses foram acolhidos pelas Casas Pias de Taubaté, onde já viviam outros 38 idosos. Imediatamente a instituição começou a receber doações de roupas e alimentos principalmente para os novos moradores. Mas não era exatamente esse tipo de doação que eles queriam. Segundo o diretor do Lar São Vicente, Alexandre Mendes, a única doação da qual os novos moradores careciam era a atenção dos visitantes. Ele explicou que a visita de parentes e amigos sempre foi um fator essencial no tratamento dos idosos, sendo que nem todos têm família, e 60

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Lar São Vicente de São Luiz do Paraitinga necessita de ajuda. (site). Acesso em 10 fev. 2010

que eles teriam maior chance de ficar deprimidos por viverem em um local bastante diferente da cidade em que moraram por décadas. “O que falta mesmo é o povo vir visitá-los, conhecer a casa, vir conversar com eles, porque é a falta do povo de São Luiz e dos familiares; é o que eles mais sentem falta.”10 Há dois detalhes na história recente do Lar São Vicente: o primeiro é que antes da enchente o asilo estava passando por uma reforma, que estava próxima de ser concluída. Com a tragédia, a maior parte do trabalho foi perdida, e levaria meses para o local receber os antigos moradores novamente. O segundo detalhe é que o diretor Alexandre Mendes foi denunciado pelo Ministério Público em 2009 por tentativa de venda do imóvel onde o asilo funciona desde a sua fundação, em 1939. Segundo a denúncia, a intenção de Alexandre era fechar os asilos que administra na região e levar todos os idosos para as Casas Pias. O processo está tramitando na Justiça para julgamento.

Prédios públicos Vários prédios públicos da cidade foram danificados. A prefeitura, ligada por dois prédios – sendo um casarão histórico do centro e uma propriedade atual que margeia o rio – sofreu abalos na parte da frente do prédio. Nos fundos, a estrutura não sofreu abalos, e o prejuízo ficou em torno dos bens materiais, como computadores e documentos que estavam no local. O Poder Executivo precisou se sediar improvisadamente em outra propriedade pelas semanas seguintes. A biblioteca municipal, também no centro histórico, ruiu, e com ela todos os livros foram perdidos. Além da escola Waldemar Rodrigues, que desabou, duas escolas na entrada do centro foram severamente atingidas. A única escola da área urbana que ficou a salvo foi a Monsenhor Ignácio Gióia, situada em um ponto fora de risco por enchente ou deslizamentos. Dois postos de saúde foram atingidos, sendo que um deles foi destruído. Os cartórios da cidade também foram atingidos, mas parte dos documentos foi recuperada e digitalizada nos meses seguintes. A casa Oswaldo Cruz, que não foi atingida pela enchente, viria a mostrar as consequências das chuvas e da falta de cuidado nos meses seguintes, quando uma parte do prédio desabou. A prefeitura estimou os prejuízos da cidade em 50 milhões de reais, valor duas vezes maior que o orçamento da cidade para 2010, 21 milhões de reais, não incluindo os prejuízos ao patrimônio histórico – como a queda das igrejas e dos prédios da prefeitura. 61

As causas O nível incomum das chuvas registrado desde o inverno de 2009 é considerado por especialistas uma das razões de a água ter subido tanto no município ainda no final do ano. Com isso, no último dia de dezembro foi registrada queda d’água em um nível esperado para todo o mês em São Luiz. O solo da cidade, ficando encharcado, não conseguia mais reter água e despejava-a no rio Paraitinga. O diretor do Núcleo Santa Virgínia do Parque Estadual da Serra do Mar, João Paulo Villani, explicou que é comum a passagem de nuvens carregadas vindas da região Norte do país sobre o Vale do Paraíba e a Serra da Bocaina, onde nasce o rio Paraitinga. No entanto, a formação de um ciclone no Estado do Rio de Janeiro teria impedido a passagem dessas nuvens para o mar, prendendo-as entre São Luiz do Paraitinga e Cunha, cidades mais afetadas pelas águas em São Paulo. “Com isso, se formou uma área de baixa pressão sobre esse bloco de nuvens, provocando a sua condensação, ou seja, o grande volume de chuvas que prejudicaram também aquelas cidades fluminenses. A maior intensidade caiu nos rios Jacuí e Jacuizinho, em Cunha, que fazem parte da bacia do Paraitinga. Foi tanta a precipitação de água que na cidade de São Luiz o rio subiu cerca de 12 metros, provocando a maior tragédia da nossa história.”11 11 Como tudo João Paulo também acredita que a compactação do solo, decorrente das pastagens que se aconteceu. Jornal da formaram no município nas últimas décadas, também contribuíram com a tragédia, visto que Reconstrução. dificultaram ainda mais a absorção de água. 13 mar. 2010 Para o geógrafo Aziz Nacib Ab´Saber, nascido em São Luiz do Paraitinga, o excesso de plantações de eucalipto no município também facilita a elevação de água, uma vez que as margens dos rios ficam cada vez menores devido ao plantio. Ele desacredita que o problema tenha sido proporcionado pelo aquecimento global, e, segundo seus estudos, São Luiz passou pelo reinício de um evento cíclico propício para a tragédia. “Isso é bobagem [a ideia do aquecimento global]. Este é um período anômalo, de grandes interferências na climatologia da América do Sul, provocadas por um aquecimento relacionado ao [fenômeno climático] El Niño. Primeiro foi no nordeste de Santa Catarina, depois no Rio e no Espírito Santo, depois em São Paulo, depois em Minas, depois no sul do Mato Grosso. A coisa foi se ampliando por espaços do tropical atlântico e por outras áreas do planalto brasileiro. Na época da enchente catarinense, fiz uma listagem da periodicidade climática de exemplos bastante prejudi62

Acesso entre rodoviária e centro histórico passou o ano inteiro bloqueado para cortes de terra e obras de reparo

cais para cidades e campos. Esse trabalho mostra que, de 12 em 12, ou de 13 em 13, ou de 26 em 26 anos, desde 1924 até dezembro de 2008 e dependendo do lugar, houve essa periodicidade. Quando passei a visitar de novo o município para conhecer melhor minha terrinha, não senti a possibilidade de invasão de águas pegando a Praça da Matriz. Tanto que insisti muito em trazer a biblioteca de ciências, que estava na ex-casa de Oswaldo Cruz, para um lugar mais baixo e frequentado por crianças. A gente não sabia que ia chegar o dia dos 13 em 13 e dos 26 em 26.”12

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MANIR (site). Acesso em 10 fev. 2010

Retomada Até o dia 6 de janeiro, 250 das 400 propriedades vistoriadas pela Defesa Civil haviam sido liberadas. Os proprietários dos comércios e residências não perderam tempo para acessar e limpar as respectivas propriedades, e logo as ruas, principalmente do centro, haviam sido tomadas por toneladas de entulhos. A cidade, desacostumada 63

Homenagem póstuma a vítima de acidente que passava pelo acesso também foi afetada

com o acesso de caminhões ao centro histórico devido a restrições que visavam facilitar o tráfego e preservar o ambiente, chegou a receber mais de dez caminhões ao mesmo tempo para retirar entulhos e móveis espalhados. Na mesma semana, a maior parte das propriedades voltou a receber fornecimento de água e luz, e os locais sem os serviços estavam sob os cuidados de técnicos da área. A Elektro, que administra a distribuição de energia elétrica no município, enviou mais de 70 profissionais para atenderem ocorrências. Mesmo com o fornecimento de água quase normalizado no centro, caminhões pipas percorreram a cidade para ajudar em casos mais urgentes. Os munícipes reclamaram do excesso de curiosos que entravam na cidade somente para observar a situação. Paula Guerra definiu-os como “turistas de tragédia”. No dia 7, a Defesa Civil do Estado obteve um diagnóstico da cidade: 80 edificações foram destruídas, 125 interditadas, 20 pontes caíram e 15 estradas estavam interditadas. Cerca de 100 pessoas 64

estavam desabrigadas, e 600 desalojadas. Apesar da queda no nível da água, o rio Paraitinga ainda estava a 2,5 metros da altura normal. A Aeronáutica e o Exército, além de trabalharem na distribuição de donativos, ainda realizavam resgates na área rural. A prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle passou a maior parte de janeiro atendendo os munícipes na praça Oswaldo Cruz, até uma casa ser liberada pela Defesa Civil e preparada por técnicos para funcionar provisoriamente como prefeitura. A princípio, as centenas de atendimentos sob o sol não tinham assunto certo: as pessoas estavam confusas e precisavam desabafar com uma autoridade. “As pessoas vinham a nós para falar sobre tudo, e só de estarmos perto já podíamos ajudá-las resolvendo alguma coisa”, explica. A prefeitura improvisada foi utilizada por aproximadamente três meses, até que o prédio oficial fosse liberado, no final de abril.

A primeira missa Desnorteados com a ausência de duas das três igrejas da cidade, os munícipes realizaram emocionadamente a primeira missa do ano na manhã do dia 7, em frente à Igreja do Rosário, que serviu de base para estocar e distribuir doações nos primeiros dias do ano. Os munícipes aproveitaram a ocasião para fazer agradecimentos aos conterrâneos e aos voluntários. Eles ressaltaram o valor da união no momento delicado pelo qual passavam. Findado o primeiro evento marcante desde o começo do recomeço, a maior parte dos munícipes dividia o tempo entre limpar as casas, ir atrás de alimentos, conseguir o básico da higiene pessoal e improvisar um local para dormir nas primeiras semanas. Órgãos públicos, instituições, organizações não-governamentais, além de grupos voluntários tiveram forte presença desde os primeiros dias do ano, e as campanhas de arrecadação monetária, doação de itens de consumo e mobílias perdurariam grande parte do ano. Aos poucos, a vida dos luizenses voltaria ao normal – na medida do possível.

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Janeiro O início do ano foi marcado por catástrofes nacionais e internacionais. No Brasil, além da enchente em São Luiz do Paraitinga e cidades da região, como Cunha, onde centenas de casas alagaram e seis pessoas de uma mesma família morreram, houve deslizamentos de terra em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, que mataram 52 pessoas. No dia 12, um terremoto de magnitude 7 devastou o Haiti, matando 200 mil pessoas, ferindo 300 mil e desabrigando mais de um milhão (esses números representam cerca de 20% da população do país). Além de militares brasileiros em missão de paz e de um diplomata, a fundadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns, foi soterrada em uma igreja. Em São Luiz, o desastre que prejudicou quase toda a população despertou atenção nacional e resultou em matérias curtas internacionais, sempre associando o município à cultura carnavalesca. O suporte à cidade foi imediato, e as teorias a respeito do evento foram várias. A população imediatamente mostrou-se deprimida, mesmo com o amparo recebido por voluntários, e não previa uma retomada em suas vidas, visto que a economia dependente do turismo fora visivelmente abalada. Mesmo sem saber para onde ir ou o que fazer, eles não se deram ao luxo de ficar parados e fizeram o possível para restabelecer suas vidas ainda no começo do ano.

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Política no município O então governador José Serra foi ao Vale do Paraíba no dia 3 conferir a situação dos municípios que tiveram problemas com a chuva. Ele passou a tarde em São Luiz do Paraitinga, quando o nível do rio tinha abaixado cerca de quatro metros, sobrevoando-a em um helicóptero e andando de bote. Na ocasião, ele afirmou que um levantamento dos prejuízos deveria ser feito e assegurou que o Estado colaboraria com o município. “Agora, estamos dando assistência em saúde, alimentação e água potável. O importante é resolver a situação a curto prazo. Mais adiante, o Estado vai ajudar na reconstrução do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, que é um patrimônio não só do município, mas do Estado e também do Brasil.” O governador pediu à prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle que mantivesse o calendário festivo do município, levando em consideração a proximidade do carnaval. A prefeita estimou a reconstrução da cidade, sem incluir a reconstrução do centro histórico, em 100 milhões de reais, valor reduzido posteriormente a 50 milhões, e afirmou que o momento não era favorável para a realização da festividade, que logo foi cancelada. “Vai ter de construir tudo de novo. Os prédios que não caíram estão condenados. Não vai ter jeito de receber turistas.”13 Em sua segunda visita, José Serra anunciou a liberação de 1.500.000 reais pela Secretaria 13 PAGNAN e de Saúde do Estado para a retomada de funcionamento das unidades de saúde da cidade, CARAZZAI (site). Acesso em como a UBS (Unidade Básica de Saúde). Na área da habitação, o governador informou que 100 casas populares seriam construídas, 10 fev. 2010 e que uma linha de crédito seria disponibilizada para financiar a reforma de casas de famílias que ganhavam até dez salários mínimos. Máquinas da Codasp (Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo) chegaram à cidade em janeiro para desobstruir estradas e liberar pontes. O governador anunciou a liberação de dois milhões de reais para pavimentação e 1.500.000 reais para outras ações de recuperação. Ele cobrou agilidade aos órgãos patrimoniais no processo de restauração das casas tombadas, visto que o trabalho só poderia ser permitido perante apresentação de projeto aprovado pelo Condephaat e Iphan. A população passou os primeiros meses do ano isentas de tarifas de água e impostos. No dia 8, a prefeitura criou uma conta para receber doações (no semestre seguinte a administração da verba doada se tornaria alvo de uma polêmica). O senador Eduardo Suplicy também visitou a cidade nos primeiros dias de janeiro e enviou 68

uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pedindo uma visita junto a uma comitiva de ministros. No dia 12, o ministro interino da Cultura, Alfredo Manevy, foi a São Luiz e anunciou a liberação de dez milhões de reais para a recuperação do patrimônio histórico da cidade. No dia 15, a então primeira-dama do Estado, Mônica Serra, visitou o município e doou cem computadores às escolas.

Campanhas A OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) solicitou ao Tribunal de Justiça de São Paulo a suspensão dos processos tramitando no município, visto que o fórum da cidade ficou embaixo d’água, e não se sabia quando ou quais documentos poderiam ser salvos posteriormente. A ordem suspendeu por 90 dias o pagamento da anuidade de 2010 para os 55 advogados inscritos no município, cuja maioria teve os escritórios atingidos pela enchente, e organizou uma campanha para arrecadar provisões aos desabrigados. Quartéis da Polícia Militar de todo o Estado também fizeram campanhas para ajudar os munícipes, e na semana seguinte encerraram-nas por ter alcançado a meta: foram arrecadados 295 colchões, 340 mil peças de roupas, 2.500 litros de leite e 54.800 litros de água potável, entre outros produtos. Também em uma semana de arrecadações, a Sabesp enviou ao município 21,3 toneladas de alimentos nãoperecíveis e mais de 11 mil itens de limpeza e higiene. No final de janeiro a prefeitura anunciou que receberia doações por mais 45 dias, tempo estimado da duração dos itens que chegaram à cidade: mais de 100 toneladas de alimentos e 66 toneladas de roupas. A Secretaria Estadual de Saúde enviou nos primeiros dias de janeiro 345 mil unidades de medicamentos variados ao município, além de equipes das vigilâncias Epidemiológica e Sanitária para auxiliar no controle de possíveis doenças trazidas pelas águas da chuva, como a leptospirose. Diversas ONGs, além de grupos militares e humanitários, como o Exército e a Cruz Vermelha, fizeram mutirões de limpeza nas ruas e residências da cidade e colaboraram com a distribuição de mantimentos aos munícipes. ONGs de cuidados aos animais também articularam campanhas para materiais de construção e doação de alimentos para ajudar os cães e gatos sobreviventes e reconstruir o canil e gatil municipal. Artistas de diversas regiões, como 69

Renato Teixeira e Arnaldo Antunes, que já tocaram na cidade, se dispuseram a realizar eventos para angariar fundos. Diversos grupos culturais independentes realizaram apresentações cobrando alimentos e roupas como ingresso. As equipes de futebol Corinthians e Palmeiras iniciaram no final de janeiro leilão de duas camisas, uma de cada equipe, com autógrafos de estrelas no uniforme do rival. O leilão, encerrado no dia seguinte à partida entre os times, arrecadou 29 mil reais para São Luiz.

Ações para o recomeço Os comerciantes não receberam tanto suporte dos bancos quanto esperado. No dia 13, cem comerciantes participaram de uma reunião com representantes da prefeitura e da Nossa Caixa Desenvolvimento e assinaram documento pedindo uma linha de financiamento com juros subsidiados e carência de dois anos. Segundo o presidente da Associação Comercial da cidade, José Roberto da Silva, os juros apresentados pela agência estadual de financiamento eram desfavoráveis à situação dos comerciantes, que tiveram prejuízo estimado em 18 milhões de reais. A Caixa Econômica Federal liberou os recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) dos moradores de São Luiz do Paraitinga, Cunha, Guaratinguetá e Lagoinha que foram prejudicados pelas chuvas, visando apoiá-los no recomeço de suas vidas. O valor máximo de saque era 4.600 reais.

Visitas técnicas, prevenção e preservação Técnicos do Iphan e do Condephaat foram ao município realizar um diagnóstico dos prejuízos da cidade. Pelas previsões, os quase 70 casarões tombados que ruíram ou foram abalados deveriam ser reerguidos usando concreto armado e alvenaria nas estruturas, diferentes dos materiais usados na época da construção dessas casas – a taipa de pilão e pau-a-pique. A estimativa dada para a reconstrução de cada residência com as técnicas atuais é de um milhão de reais. Apesar das novas técnicas para a reconstrução das casas, técnicos da prefeitura 70

foram instruídos a resgatar peças antigas que poderiam ser reutilizadas nas residências ou na modelação de réplicas. Aproveitando a semelhança na tragédia patrimonial, o Iphan decidiu utilizar em São Luiz do Paraitinga a experiência adquirida na reconstrução do município de Goiás Velho, em Goiás, cujo centro histórico foi destruído em uma enchente em 2001. Três profissionais que atuaram na reconstrução daquela cidade foram a São Luiz atuar em conjunto com o Condephaat, o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) e a prefeitura. Psicólogos também foram enviados ao município devido à constatação, em Goiás Velho, de que pessoas que passam por tragédias ficam deprimidas e tendem a desprezar objetos remanescentes. O órgão nacional resolveu acelerar o processo de tombamento nacional da cidade, como estratégia para ter maior facilidade na destinação de ferramentas para a reconstrução da cidade. Dentre as possibilidades estão o financiamento para a reconstrução de imóveis privados a juros zero e a promoção de atividades econômicas ligadas à cultura da cidade. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul anunciou a destinação de 462 mil reais para a instalação de estações de medição e sinalizadores na bacia do rio Paraitinga e propôs a construção de barragens de contenção de suas águas, visando evitar novas catástrofes no município.

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Fevereiro O segundo mês de 2010 representou, principalmente, o início da retomada da vida dos luizenses. A cidade ainda carregava boa parte da tonalidade marrom que veio junto à enchente, mas a mentalidade das pessoas já havia mudado. Os munícipes notaram que nem tudo estava perdido, como parecia ter acontecido no início do ano, e, apesar da dificuldade, tentaram se habituar à ideia de trabalhar excessivamente para reconstruir suas casas e negócios. Nenhum morador deixou de ser amparado, independente de a ajuda ter vindo do poder público, de organizações, de voluntários ou de amigos. O apreço pelos luizenses foi um dos fatores que os incentivaram a seguir em frente. O cancelamento do carnaval não os impediu de sair às ruas na época da festividade para gritar e mostrar que a cidade ainda estava viva. O mundo registrou outro terremoto de alta escala nesse mês: no dia 27, um tremor de magnitude 8,8 (o quinto maior da história) atingiu o Chile, e mais de dois milhões de pessoas foram afetadas pelos sismos e tsunamis. A tragédia deixou mais de 800 mortos e 500 feridos, além de milhões de desabrigados.

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O reinício da economia Quase todos os comércios da cidade foram severamente afetados pela enchente, e, além de tempo para limpar os estabelecimentos, os comerciantes precisariam investir consideravelmente para reabrir os seus negócios, que invariavelmente perderam todos os produtos que outrora estavam à venda. Acima da placa do supermercado Cursino, localizado no centro histórico, foi estendida uma placa onde se podia ler: “Vamos juntos construir uma cidade ainda melhor”. Os proprietários do local estimaram os prejuízos em 1.200.000 reais. O comerciante Edson “Anacleto” Pires dos Santos (o apelido Anacleto provém dos seus ascendentes, tradicionais agricultores da cidade) foi o primeiro a reabrir um ponto de vendas de produtos de consumo. Além de ter a casa atingida, seus três pontos comerciais também foram afetados pelas águas. Ele fez o possível para reabrir um dos comércios – uma mercearia – em um mês, o que lhe garantiu uma renda semelhante à de antes da enchente. “Somando os prejuízos materiais às vendas que deixei de fazer, a perda deve ter chegado a 400 mil reais. Quando reabri a mercearia o movimento era quase igual ao de antes, mesmo com as doações de cestas básicas, pois as pessoas não tinham onde comprar pão, não tinham onde comprar nada.” Os Anacletos – Edson, seu irmão e o seu pai, Benedito Pires dos Santos, ou “Dito Anacleto” – possuem propriedades rurais no bairro Bom Retiro e tiveram dificuldades no início do ano pelos problemas causados nas estradas pelas chuvas. Em fevereiro, a situação ainda não havia melhorado muito, e Dito, que produz leite, tinha dificuldades para transportar o produto. “Eu produzo de 80 a 100 litros de leite diariamente, e um caminhão vem buscar o produto. Na época da enchente ficamos isolados (além das estradas obstruídas, as pontes de acesso à propriedade de Dito ruíram), e tivemos que improvisar para transportar o leite. Perdemos muito.” Edvaldo “Pipoca” contabilizou menos prejuízos e também conseguiu reabrir o comércio no meio de fevereiro. Igual a todos os atingidos pela enchente, parte dos investimentos foi feita para adquirir novos equipamentos, reparar e pintar a propriedade. Washington Rodrigues da Silva, dono de um restaurante no centro, precisou improvisar na reabertura do comércio, que ocorreu no final de fevereiro. “O andar de baixo do casarão continuava impróprio para ser utilizado, então reabri o restaurante no andar de cima, até pensando em manter o comércio 74

nos dois andares.”

Benefícios do governo José Serra foi ao município no dia 12 de fevereiro assinar um convênio que beneficiaria famílias prejudicadas pelas chuvas em todo o Estado. Cada família recebeu mil reais, além dos 300 reais mensais do auxílio-moradia que o governo começara a pagar em fevereiro (Serra entregou cheques de 900 reais às famílias referentes a três mensalidades do benefício). A condição para receber os mil reais, pertencentes ao programa Novo Começo, era a família prejudicada residir em uma cidade em estado de calamidade pública, dentre as quais São Luiz do Paraitinga. No mesmo dia, o então governador criticou a “tentativa de politização” das enchentes que atingiram o Estado no início do ano. “Tem muita gente jogando e se deliciando com ‘o quanto pior, melhor’. Mas eu não presto atenção nisso. O importante é trabalhar. A politização, inclusive eleitoral, é natural. Eu encaro isso, não com agrado, mas com certa naturalidade e frieza, porque não tem remédio”, afirmou14. A entrega dos cheques aos luizenses não foi considerada 14 AMORIM (site). ilegal, visto que ele não pediu votos nem falou de sua possível candidatura à presidência. Acesso em 15 fev. 2010

Carnaval à moda antiga Depois de receber centenas de milhares de turistas nos últimos anos, São Luiz não esperava por visitas em 2010. Antes mesmo de os foliões chegarem, ela já estava suja o suficiente para dispensá-los, e desde o cancelamento da festividade anunciado pela prefeita no início do ano não se esperava manifestações em meio às ruínas. Especialistas alertavam que as caixas de som instaladas nos arredores da cidade nos anos anteriores, para reproduzirem em alto e bom som as marchinhas tocadas, poderiam danificar gravemente os casarões históricos, facilitando um desmoronamento. Dessa vez não houve caixas de som, e mesmo assim havia casas caídas. E, mais importante, sem caminhões nem turistas, houve carnaval. Pelo menos nesse ano, a festividade voltou a ser como era décadas atrás: um evento reali75

zado pelos luizenses para os luizenses, sem a preocupação de os comerciantes estocarem milhares de produtos, nem de os munícipes se depararem com uma cidade emporcalhada ao final da festa. Os instrumentos só eram ouvidos das proximidades, como se quem chegasse perto pudesse sentir um coração batendo cada vez mais forte. O coração de todos ali realmente batia forte, e essa folia foi uma mistura de diversão com demonstração da esperança com que cada morador contava para superar as dificuldades impostas pela tragédia. Para Darly Gonçalves, o carnaval de 2010 foi o melhor que já presenciou. “Apesar de se ver, por onde quer que passasse, destruição e tristeza, o carnaval foi um momento de união entre todos da cidade. Foram momentos em que se demonstrou e comprovou que, independentemente de termos perdido valiosos tesouros para todos, além de coisas pessoais e familiares, o que é essencial continua intacto. Mostrou a força de nossa cultura, dos nossos músicos e do povo luizense. Fez-se perceber que somos fortes e amamos a cidade na qual vivemos, nascemos ou fomos criados. Foi um carnaval só para quem é daqui, e diferente daqueles feitos para ganhar dinheiro, o que valia era a simplicidade, como o fato de cantarmos junto a outros luizenses no meio da rua, acompanhados de batuques e violeiros. Foi uma felicidade única depois de tanta tristeza. Era a maneira de nos desligarmos daquilo tudo e percebermos quão maravilhosa e rica é São Luiz. Que enchentes podem levar tudo, menos a cultura única existente ali. Era magnífico ver cores onde predominava o marrom do barro da enchente e ouvir música local.” Fora da cidade, os blocos mais tradicionais – Juca Teles, Barbosa, Maricota e Pé na Cova – foram chamados para se apresentar em diversos municípios, como Taubaté, Pindamonhangaba, Caçapava, Caraguatatuba, Bertioga, Serra Negra, Amparo e Campinas, geralmente acompanhados das bandas luizenses Estrambelhados e Confrete.

Câmara de Desenvolvimento Sustentável e Ceresta Uma comissão de profissionais de diversas áreas importantes no processo de reconstrução do município passou a se reunir em fevereiro para discutir alternativas que pudessem reanimar a cidade mais rapidamente. O grupo, denominado Câmara de Desenvolvimento Socioeconômico, contava com profissionais da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Unitau (Univer76

sidade de Taubaté) e USP (Universidade de São Paulo), e foi criado com o intuito de apontar possíveis saídas para o restabelecimento estrutural, econômico e educacional da cidade. Um dos coordenadores do projeto, arquiteto José Xaides de Sampaio Alves, professor da Unesp de Bauru, apresentou um mapeamento completo do município durante uma das reuniões da Câmara e acrescentou aos poucos ideias inovadoras para a cidade – talvez mirabolantes e inconvenientes para quem estivesse acostumado com o cenário clássico de São Luiz –, como a instalação de um teleférico e de um acesso que ligasse o “trevo de Ubatuba” ao centro histórico. “O teleférico atrairia o turista tanto para a área urbana quanto para a rural, o que é fundamental. Uma maneira de fazer isso é promover um circuito turístico com a construção de um teleférico ligando o Alto do Cruzeiro às margens do rio Paraitinga. Dali, o turista poderia ir de barco até a zona rural e voltar à cidade utilizando uma charrete.” O engenheiro da Unitau Edson Wanderley Alves, que também coordena o projeto, afirmou que o grupo conhecia a situação da cidade no início do ano, pensamento confirmado após reunião com empresários do município. Ele ressaltou que o momento emocional da tragédia havia passado, e que a empregabilidade deveria ganhar foco. “No começo, num momento de comoção, havia a preocupação com doações de alimentos e remédios, mas agora devemos pensar nos empregos. Se não houver estímulo para novos postos de trabalho, como traremos as pessoas que saíram da cidade e estão ganhando mais em outros lugares?” Outro projeto realizado para facilitar a comunicação entre órgãos e população é o Centro de Reconstrução Sustentável de São Luiz do Paraitinga, ou Ceresta, uma alusão à seresta, antiga tradição de cantoria popular. A ideia começou a ser debatida em fevereiro, e em maio foi inaugurada uma sede que reúne as instituições e órgãos públicos envolvidos no processo de reconstrução da cidade. Dentre elas, estão as assessorias de Planejamento, Obras, Cultura e Turismo da prefeitura, a Defesa Civil municipal e estadual, o IPT, a Casa Civil do Estado, o Programa Cidade Legal, o Acessa São Paulo, o Condephaat e a coordenação da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, responsável pela construção de casas populares e financiamento de manutenções em residências).

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Jornal da Reconstrução Apesar de composta por profissionais de fora de São Luiz do Paraitinga, a Câmara de Desenvolvimento Socioeconômico fez questão de ressaltar a importância da contribuição dos luizenses na elaboração dos projetos. Pensando em acolher assuntos diversos relacionados ao cotidiano e à cultura luizenses, contando com o retorno da população, a Câmara determinou a criação do Jornal da Reconstrução, veículo feito com o intuito de facilitar à comunidade o entendimento do que se passava na cidade. O início do projeto foi possível graças à colaboração entre prefeitura (que cedeu espaço provisoriamente à equipe de redação), Câmara Municipal de Taubaté (que cedeu veículos para levar os estagiários de jornalismo a São Luiz), Unitau, Unesp, Câmara de Desenvolvimento Socioeconômico e Imprensa Oficial, que fechou um acordo para imprimir nove edições quinzenais do informativo, a partir da primeira quinzena de março (pelas regras do órgão, o contrato em 2010 dificilmente se estenderia por ser ano eleitoral). Edson explica a importância do projeto, ressaltando o envolvimento dos luizenses na reconstrução da cidade. “Um passo importante era cuidar da comunicação na cidade, e o Jornal da Reconstrução é um instrumento que serve a todos, população e poder público, pois a partir dele podemos entender como ajustar as ações que planejamos. A criação do jornal, cuja intenção é ser fonte de entendimento da comunidade sobre o que se passa no município, serve também para reiterar que a Câmara de Desenvolvimento depende da comunidade para formular e executar os seus planos.”

Volta às aulas Os estudantes da cidade tiveram um começo de ano confuso com relação ao reinício do ano letivo: a escola municipal Waldemar Rodrigues caiu, e as escolas municipais Coronel Domingues de Castro e João Batista Cardoso foram atingidas. A única escola que não foi atingida, a estadual Monsenhor Ignácio Gióia, tinha tornado-se abrigo. Em fevereiro a situação já estava mais esclarecida: duas salas emergenciais foram construídas para acolher os 441 alunos da Waldemar Rodrigues na escola estadual, que já não era 78

Bens das escolas foram trocados com urgência para retorno às aulas dentro do cronograma letivo

mais abrigo no final do mês. As vizinhas Coronel Domingues de Castro e João Batista Cardoso foram reformadas rapidamente para receber os alunos, de diversas idades, na data certa de início do ano letivo municipal. A coordenadora da escola Monsenhor Ignácio Gióia, Solange Aparecida de Oliveira, explicou que a volta às aulas não teve prejuízos no calendário letivo. “As aulas voltaram no dia 22 de fevereiro para os quase 600 alunos, dois dias após o início do calendário letivo da rede estadual de ensino, e a reposição dos dias perdidos será feita ainda neste semestre.” Quanto às aulas na escola de ensino infantil João Batista Cardoso, a coordenadora Cilene Aparecida Freitas explicou que as obras para a reabertura do prédio foram realizadas até o final de fevereiro, sendo concluídas no final de semana anterior ao início das aulas. “Estivemos trabalhando na limpeza da escola desde o início de fevereiro para que pudéssemos oferecer o necessário às crianças logo que as aulas voltassem. Nas semanas seguintes pudemos limpar o parque, que não pudemos aproveitar, e instalar um novo.”

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Março O terceiro mês de 2010 já indicava uma notável mudança na rotina dos luizenses. Grande parte dos comércios atingidos estava funcionando normalmente, e um dos maiores símbolos remanescentes da cidade, o Mercado Municipal, foi finalmente reaberto. A primeira audiência pública para debater as consequências da enchente foi realizada por um defensor público de Taubaté, que solicitava esclarecimentos do poder público. A maioria dos documentos de registro de pessoas e imóveis foi recuperada pelas associações responsáveis pelas respectivas áreas, e, no meio de escombros, uma cápsula do tempo foi encontrada na área da Igreja Matriz. Para sinalizar a retomada do calendário cultural, munícipes realizaram a encenação da Paixão de Cristo, evento que se tentava realizar havia oito anos. A pior tragédia registrada nesse mês, longe de ter as proporções dos abalos sísmicos no início do ano, foi um terremoto de magnitude 6 no leste da Turquia, que matou 57 pessoas e deixou mais de 100 feridas. As casas do vilarejo destruído eram feitas de tijolos de argila de baixa qualidade.

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Canteiro Aberto, cores e cápsula do tempo na Matriz A Igreja Matriz tornou-se palco de visitações a partir de março, quando interessados e curiosos começaram a acompanhar o processo de resgate de cada peça do local. O projeto Canteiro Aberto, realizado em parceria entre a prefeitura, Iphan, Unitau e Unesp, abriu as novas portas da igreja para o público em geral, mas principalmente acadêmicos de variados cursos e instituições, que puderam ver, sendo aplicado naquele local, muito do que lhes foi dito nas salas de aula. Em troca, o denominado “turismo acadêmico” colaboraria com o giro monetário na cidade, visto que principalmente pousadas e restaurantes teriam um público para atender. Nos arredores da igreja, os tapumes ficaram coloridos com os desenhos feitos por alunos da escola municipal Waldemar Rodrigues (apesar de estudarem nas salas improvisadas da escola estadual Monsenhor Ignácio Gióia, em seus cadastros consta que estudam na escola que perdeu o prédio). Não improvisadas, as artes foram definidas pelos grupos de alunos responsáveis por cada peça em fevereiro. No final do mês, técnicos responsáveis pela separação das peças colhidas na Igreja Matriz 82

Peças encontradas em diversas condições foram encaminhadas ao reparo; estrutura de uma das cruzes resistiu em seu suporte

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se surpreenderam ao encontrar uma cápsula do tempo, datada de 1927. Na velha caixa de madeira havia diversos documentos, entre eles um cartaz anunciando um sorteio acumulado em 500 contos de réis, um exemplar do jornal O Luizense, de 18 de dezembro, a programação do Cine Éden Paulista e do Teatro Santinha, e o anúncio para a contratação de dez professores com segundo grau para trabalhar na escola rural da cidade. A caixa foi colocada no meio da estrutura pelo coletor de impostos Romillo Guimarães durante uma das grandes reformas no prédio. A caixa foi aberta na presença do filho de Romillo, Ary Guimarães. O documento contendo a autorização para a inserção da cápsula na igreja foi reproduzido no Jornal da Reconstrução15: “Acta de encerramento deste livro. Aos seis dias do mêz de fevereiro do anno do Nasci- 15 O tempo não para. mento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil novecentos e vinte oito pelas doze horas na Jornal da igreja Matriz desta cidade de São Luiz do Parahytinga presente o Rev. mo padre Ignacio Gioia Reconstrução, vigário desta Parochia e por sua ordem autoriza que nessa igreja ficasse archivado para que os 24 abr. 2010 futuros encontrasse este calendário da atualidade do corrente anno constatando de tudo que nela contem pedindo a quem esse encontrar fazer público tudo o que aqui existe para engrandecimento desta terra natal. Nesse mesmo, vai assignado por mim encarregado e o Rev.mo padre o empreiteiro e seus auxiliares aqui presentes. Nada mais havendo a desejar encerro, pedindo a este encontrado uma missa pelas almas deste aqui presentes, digo desses nomes aqui transcriptos. São Luiz 6 de fevereiro de 1928. [O documento é concluído com as assinaturas do vigário, do encarregado, do empreiteiro, pedreiros, serventes, e demais pessoas presentes no momento]”.

Não são anônimos Se por uma parte registros históricos foram perdidos, empenhos de diversas partes procuraram resolver o problema dos luizenses com a documentação básica pessoal e de suas propriedades. Quanto aos documentos pessoais, os munícipes tiveram o primeiro mês do ano para obter a segunda via das carteiras de identidade e de trabalho através do serviço estadual Poupatempo, que realizou atendimento itinerante no município. Desde o início de 2010 os documentos de cartórios – registros pessoais e de imóveis – 84

À direita, estudantes coloriram e escreveram frases motivacionais aos moradores da cidade nos tapumes que cercam ruínas

receberam tratamentos dos órgãos responsáveis por cada uma das áreas. A Arisp (Associação dos Registradores de Imóveis de São Paulo), que se responsabilizou pela recuperação do acervo dos registros de locação, matrícula e transcrição de imóveis do município, além de documentos históricos do século XIX e do poder judiciário, entregou 135 registros recuperados ao município no dia 15 de março. O investimento para o trabalho foi de aproximadamente 200 mil reais. A Arpen (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo), responsável pela recuperação das certidões de nascimento, casamento e óbito do município, entregou totalmente recuperados 167 dos 188 livros de registros civis que outrora ficaram cobertos de lama (todos os livros que a associação conseguiu pegar).

Reabrindo as portas do Mercadão Mesmo carecendo de diversas reformas, o Mercado Municipal da cidade foi reaberto em março, após intenso serviço de limpeza para permitir a 85

venda de produtos alimentícios no local. As obras – novo revestimento nas paredes, pintura, recolocação de telhas e reparo nos banheiros –, foram orçadas em 612 mil reais e tinham início previsto para abril. Independentemente do que passou, o Mercadão voltou a ser o que era antes da tragédia: ponto de conversas, música, venda de alimentos e jogos. Para os luizenses mais tradicionais, a reabertura do local aliviou a dor da ausência de pontos de frequência recorrentes desde suas infâncias. Tereza Mota, que aos 70 anos vende verduras no local, considera na verdade a fofoca seu principal ofício no Mercadão. “Eu não aguentava esperar o Mercadão abrir. Sempre vim aqui bater papo, trabalhar, tomar um café com leite e fazer fofoca. Enquanto o local não Mercadão passou maior abria, eu vinha fiscalizar a limparte do tempo das peza para contar aos outros reformas com as portas como estava o trabalho aqui.” abertas Silvio Oryn, que não tem o costume de infância de frequentar o local, considera-o o ponto mais importante da cidade. “O Mercadão é o coração da cidade. Moro aqui há cinco anos, mas frequento o local desde que conheci a cidade, há 86

27 anos. É lá que você pode sentar em uma roda de viola, prosear e obter informações, além de escolher carnes e verduras para comprar ou até ganhar os produtos dos vendedores, que te tratam como amigo.” Além de alimentos tradicionais e prosas, jogos como baralhos, palitos e adivinhações são costumeiros no Mercadão. Antonio Lobo, que mora na zona rural, frequenta o local aos fins de semana para fazer compras e aproveita a passagem para conversar e jogar. Aos gritos e blefes, ele e os amigos se divertem tentando adivinhar quantas pedras cada jogador tem em mãos a cada rodada. “Esse jogo não tem nome. Pode chamar de ‘diversão de véio’. É o que fazemos aqui. Compramos alguma coisa, brincamos e vamos embora”, explica, mostrando como a sobrevivência do Mercadão permitiu que os luizenses continuassem praticando seus antigos costumes.

Tombamento nacional O Iphan, que desde 2007 realiza estudos para realizar o tombamento nacional de São Luiz do Paraitinga (eles até então foram feitos somente pelo Condephaat, em caráter estadual), tombou provisoriamente 400 imóveis do centro histórico da cidade no final de março. Dessa maneira, qualquer processo de reconstrução e reparo das residências com esse título precisaria também do aval do Iphan, além da permissão da prefeitura e do Condephaat. A superintendente do Iphan em São Paulo, Anna Beatriz Galvão, afirmou em uma audiência pública em abril que os munícipes não teriam maiores dificuldades para reformar as propriedades por haver mais um órgão para analisar os projetos. “Na atual situação da cidade, não poderia haver mais dificuldades para os munícipes. O Iphan, o Condephaat e a prefeitura farão um trabalho conjunto para que os projetos sejam aprovados uma única vez, e ofereceremos suporte para a elaboração deles”. Nos meses seguintes munícipes estariam voltando para suas casas quebradas, sem poderem reformá-las, devido à demora na aprovação dos órgãos.

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Primeira audiência pública O defensor público de Taubaté, Wagner Giron de La Torre (que no segundo semestre entrou com ação cobrando esclarecimentos da prefeitura quanto ao uso da verba doada em conta pública), organizou a primeira audiência pública do município, a fim de esclarecer medidas que órgãos públicos poderiam tomar para evitar novos prejuízos aos munícipes. Na ocasião, a prefeita esclareceu dúvidas relacionadas ao auxílio-moradia, loteamentos irregulares, problemas de munícipes que receberam casarões como herança, construção do conjunto habitacional, isenção temporária de impostos e despejo das terras cortadas. Conforme ela e representantes de outras empresas que prestam serviço ao município esclareciam dúvidas, Wagner contrapunha as afirmações com sugestões – em alguns casos mirabolantes, como a isenção das contas de eletricidade de todos os munícipes atingidos durante um ano, que por minutos iludiu alguns munícipes crentes de que isso seria possível. O consultor da Elektro, empresa fornecedora de energia elétrica para a cidade, presente na audiência, Márcio Ribeiro, explicou a impossibilidade de realizar tal ação pelos prejuízos que a empresa teria. “Não temos como isentar a população das contas, pois, se o fizermos, a empresa terá problemas. O que poderemos fazer é parcelar as primeiras contas do ano, para que os munícipes paguem valores menores no começo do ano.”

Comércio aguardando turistas O calendário cultural da cidade voltou à ativa com a encenação da Paixão de Cristo, que foi retomada após oito anos de tentativas. Apesar da bela e emocionante apresentação, o município ainda carecia de atrativos que convidassem os turistas a permanecerem no município. Cerca de 80% do comércio já havia reaberto, e os pontos focados no turismo tiveram dificuldades para manter as portas dos negócios abertas. O secretário da AHP-SLP (Associação de Hotéis e Pousadas de São Luiz do Paraitinga), Henrique Guerra, manteve as portas de sua pousada fechadas durante a Semana Santa, afirmando que a cidade estava apta a receber visitantes, mas que ainda não tinha uma aparência convidativa. “Até o início da Semana Santa eu havia recebido apenas uma reserva, e não valia a pena 88

abrir as portas. Apesar dos prejuízos, aproveitei o momento para realizar melhorias no local. As pousadas que têm algum movimento atualmente estão atendendo gente daqui, com diárias reduzidas. O comércio básico da cidade já voltou a funcionar. É importante que haja o embelezamento da cidade, como a pintura das residências, deixando tudo alegre novamente.” Ressaltando a importância da estética do município, ele criticou a colocação de tapumes em espaços além das residências danificadas, o que, além de prejudicar o visual da cidade, estaria dificultando a passagem de pedestres e veículos. O assessor de Turismo da prefeitura, Eduardo Coelho, explicou que os tapumes colocados além das residências visam trazer segurança aos pedestres, distanciando-o de ruínas que podem quebrar e feri-los durante a sua passagem. Para reviver o turismo, ambos sugeriram investimentos no turismo ecológico, como o rafting e o arborismo. Quanto às festividades, Eduardo afirmou que em março a prefeitura já fazia o possível para divulgar a festa do Divino Espírito Santo, realizada em maio. “Tivemos mais de quatro mil cartazes e folders para divulgar o evento, além da internet. Tomamos todos os cuidados com a cidade, pensando nos acessos, por exemplo, e os empresários previam melhorias no turismo nos meses seguintes.” O presidente da Associação Comercial do município, José Roberto Filho, concordou com essa previsão. “Em março não havia atrativos para os turistas passarem a noite aqui, mas acreditamos que até a Festa do Divino a situação melhoraria, com mais eventos disponíveis, e esperávamos uma retomada no turismo ainda no primeiro semestre.” Contextualizando as dificuldades de se manter os comércios focados no turismo, Henrique explicou que até setembro dez pousadas (da área urbana e rural) fecharam as portas definitivamente ou desativaram o comércio aguardando a retomada das visitas à cidade. “A economia focada no turismo deve se apoiar em um tripé: hospedagem, alimentação e entretenimento. Se a cidade carece de uma delas, as duas outras terão problemas, e, consequentemente, o município também terá.”

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Abril O quarto mês de 2010 começou a gerar certa expectativa nos luizenses, que aguardavam a retomada do turismo na cidade com a chegada da festa do Divino Espírito Santo. O festeiro já providenciava as doações para a preparação da festa, que inclui a distribuição de alimentos a centenas de pessoas em dois dias de evento, enquanto os moradores da cidade e o poder público faziam sua parte divulgando o calendário festivo a pessoas de outras regiões. A rotina, com as devidas adaptações, voltou a se estabilizar para boa parte dos munícipes. A única igreja do centro que ainda funcionava foi interditada para reparos, e os heróis do rafting receberam uma homenagem na capital do Estado. Passados três meses da tragédia, os proprietários de residências tombadas ainda amargavam a dificuldade de obter aprovação para realizar manutenções nas casas. No Brasil, a enchente ocorrida no Estado do Rio de Janeiro em abril matou mais de 120 pessoas, sendo considerada a quarta tragédia desse tipo que mais matou pessoas nos últimos 12 meses. Em Santa Catarina, uma forte chuva deixou uma dezena de cidades em estado de emergência. Aproximadamente 3.500 pessoas ficaram desalojadas, 400 desabrigadas, e quase 800 casas foram destruídas. Na China, um terremoto de magnitude 6,9 atingiu uma região remota e montanhosa matando quase três mil pessoas, a maioria tibetana.

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Igreja do Rosário fechada e desrespeito à cultura No início do mês a Prefeitura de São Luiz do Paraitinga decidiu interditar a Igreja do Rosário, que vinha apresentado deficiências estruturais que poderiam comprometer a integridade física dos fiéis e turistas que a visitavam. O prédio foi interditado parcialmente em 2003, tendo sido o seu uso reduzido a eventos mais importantes e visitações, e um laudo atual do IPT indicou aumento nas chances de o local ruir, causado principalmente pelo excesso de chuva do início do ano. A arquiteta Lívia Vierno, da Diocese de Taubaté, considerou o laudo do IPT exagerado, servindo apenas para chamar atenção para a precariedade do prédio. Ela, que também é responsável pelo projeto de reconstrução da Igreja Matriz, elaborou há dois anos um estudo para a restauração do templo interditado, orçado em um milhão e 450 mil reais, mas não conseguiu parceria com empresas que se dispusessem a financiar a obra. O novo projeto elaborado para a reforma do local terá o custo de aproximadamente três milhões de reais. “O [primeiro] projeto chegou a ser liberado para captação de recursos por meio do Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura), do Ministério da Cultura, mas o prazo venceu em novembro de 2009, e não conseguimos o dinheiro, apesar de termos batido em muitas portas. É difícil captar recursos numa situação dessas, quando não há interesse do patrocinador, já que muitas empresas alegam que a igreja não tem visibilidade.”16 O historiador Marcelo Toledo, que cobrou atenção do poder público, afirmando que “tam- 16 FARIA (site). Acesso bém deveria se responsabilizar pelas obras das igrejas, já que se trata de um patrimônio impor- em 20 abr. 2010 tante para a cidade e o Estado”, se queixou de um problema trazido por grandes empresas que se instalaram no município: os bancos Santander-Banespa e do Brasil. Marcelo, que foi vereador por dois mandatos, criou um projeto – rejeitado pela Câmara Municipal em 1998 – que proibia, dentre outras ações, a instalação de placas luminosas e acrílicas no trecho histórico da cidade. O projeto entrou em vigor posteriormente, quando a Promotoria Pública entrou com o pedido. No entanto, após a enchente os bancos do centro da cidade se preparavam para utilizar definitivamente placas luminosas – um deles chegou a deixá-la ligada durante as noites. “Os comerciantes acataram ao pedido e mudaram o modelo de suas sinalizações, utilizando placas de madeira e ferro, que além de tudo geram trabalho na cidade, já que temos pessoas que 92

trabalham na produção desses itens. O que os bancos fizeram é lamentável, deram um péssimo exemplo. É ruim fazer uma representação contra bancos, mas eles devem obedecer às leis vigentes no município e utilizar placas discretas. Afinal, para que deixar placas grandes e luminosas, se todos sabem onde funciona cada banco, padaria e farmácia da cidade? O turista que não souber só precisa perguntar a um morador.” O comerciante Antonio Augusto de Souza “Peixinho”, proprietário de uma papelaria na praça central, é responsável pela instituição de normas e critérios semelhantes para a limitação nos tipos e tamanhos de sinalizações dos comércios na área central. Vereador na década passada, ele inseriu as normas no Código de Obras da cidade seguindo modelos de outros municípios. “Fiz o projeto a partir de trabalhos semelhantes em Taubaté e Redenção da Serra, que havia inundado. Nos meses seguintes a lei entrou em vigor, e anos depois os bancos internacionais desrespeitam as normas. O que deve chamar atenção é o prédio tombado, e não a placa. Eles só querem lucro na cidade. Se não ganharem, vão embora. Será que em seus países de origem fariam algo assim?” A questão foi tratada em uma reunião do Conselho Gestor do Patrimônio Cultural em abril, levando o Condephaat a entrar em contato com os bancos solicitando a adequação das placas. A prefeitura baixou um decreto inspirado nas normas vigentes em Ouro Preto, no Estado de Minas Gerais, e posteriormente os bancos trocaram a sinalização dos prédios.

Dificuldade nos reparos Apesar de os reparos no Mercado Municipal terem iniciado em abril, os proprietários de casas tombadas ainda tinham dificuldades em obter aprovação para a restauração dos prédios. Passados mais de três meses desde a tragédia, o Condephaat e Iphan ainda não haviam aprovado um projeto sequer de reforma em casarões e sobrados afetados pela enchente. Além da pressa em iniciar a manutenção para poder voltar a morar em casa, alguns munícipes se preocuparam com a pior das consequências possíveis causadas pela burocracia para o restauro: a deterioração dos prédios, que poderia levá-los a ruir. Marcelo Toledo, que enviou aos órgãos um projeto de restauro no início de março, foi um dos temerosos a essa burocracia. “Faz mais de 30 dias que entreguei meu projeto para o Condephaat, e até agora não obtive uma 93

resposta. O prédio está cheio de infiltrações e pode tombar. Quem vai pagar esse prejuízo e resgatar o valor histórico de minha casa? Além de tudo, minha mãe está sendo obrigada a ficar fora de casa esse tempo todo. Não é justo. Essa burocracia e essa falta de bom senso não podem atrapalhar nossa cidade.”17 17 O tempo de espera destacado por Marcelo é exatamente o período de análise apontado CALIXTO (site). pelo arquiteto do Condephaat Vinícius de Oliveira, que alegou o trabalho minucioso realizado Acesso em 20 abr. 2010 pelo órgão para justificar o tempo para liberação dos projetos. “O Condephaat está analisando mais de 40 pedidos para reformas das casas tombadas, mas não é tão simples assim. Depois de o proprietário formalizar o pedido de restauro, o grupo analisará detalhadamente o projeto, levando mais de 30 dias para dar uma resposta.”18 18 A casa Oswaldo Cruz, que abrigou os técnicos do Condephaat e Iphan antes da inaugura- idem ção do Ceresta, ironicamente ou não, ruiu parcialmente enquanto eles estavam lá. Partes de uma parede e do telhado caíram devido à deterioração do imóvel, prejudicado ainda mais com as chuvas recorrentes dos últimos meses. O arquiteto do Condephaat Paulo Sérgio Galeão afirmou que os problemas da casa são antigos. “Não podem jogar a culpa na gente ou no Iphan. É uma culpa conjunta. Esse prédio não deteriorou apenas nos últimos dois meses”19, 19 explicou. O prédio, tombado pelo Iphan em 1956 e em 1973 pelo Condephaat, não foi atingi- Estragos também no casarão de Oswaldo do pela enchente. Cruz (site). Acesso em 20 abr. 2010

Homenagem aos heróis A Defesa Civil de São Paulo realizou no dia 20 de abril evento comemorativo dos 34 anos da criação do órgão. Na solenidade, como de costume, houve uma homenagem a pessoas físicas e jurídicas que ajudaram significativamente alguma comunidade em tempos difíceis. Em 2010, parte dos homenageados foi responsável por ações em municípios fortemente atingidos pelas chuvas no início do ano: Cunha, São Luiz do Paraitinga e Jardim Pantanal. Os agraciados de São Luiz, que receberam a Medalha de Defesa Civil representando os demais parceiros da cidade, foram: representantes das três companhias de rafting da cidade – Hélio Alexandre de Souza, Diogo Custódio e Cleiton Benetati –, a prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle, a assessora de Educação Nilde Cristine Pola Batista, o coordenador municipal da Defesa 94

À direita, crianças da cidade homenagearam heróis com pinturas nos tapumes da Igreja Matriz

Civil José Carlos Luzia Rodrigues, Valdir Tobias Rocha, representando a família Rocha, o engenheiro civil voluntário Jairo Sebastião Barreto Barcelo, e o 1º sargento da Polícia Militar Luiz Sergio Eleutério. Apesar da homenagem, Helinho Dindon afirmou em outubro que a medalha não corresponde ao reconhecimento dado aos heróis no decorrer do ano. Afirmou: “Sinceramente? Se a medalha fosse de ouro eu a derreteria para conseguir algum dinheiro para poder investir no meu crescimento pessoal. O Estado não deu reembolso algum às empresas, que tiveram uma perda muito grande. No nosso caso, passamos mais de um dia fazendo resgates, e os materiais utilizados nesse tempo foram bastante prejudicados. Sem uma restituição financeira por esse trabalho, nós basicamente pagamos para salvar as pessoas. Nossa estimativa é que, sem o rafting, 400 pessoas morreriam na cidade. Quebramos muitos paradigmas com esses resgates (a profissão era marginalizada até então) e agora estamos à deriva aguardando alguma ajuda.” Para Dindon, a profissão tem pas95

sado por uma crise no município, visto que os passeios turísticos caíram abruptamente. “O rafting não pode nem mais ser considerado trabalho prioritário dos instrutores, pois não rendeu durante nove meses. Antes fazíamos aproximadamente 15 passeios por mês e agora mal chegamos a 15 durante todo o ano. Só em outubro nossa expectativa começou a melhorar. O Estado podia, no mínimo, colaborar conosco na compra de novos equipamentos, pois além de tudo isso faria nossos clientes se sentirem mais seguros.” Helinho ressaltou que os luizenses o param até hoje para falar do heroísmo desses homens. Ele contou que receberam diversas homenagens no decorrer do ano, e que sua aparição em rede nacional no início do ano, falando do empenho dos luizenses em reconstruir a cidade, rendeu o contato de amigos distantes. “Eu recebi e-mails de amigos que vivem na Austrália, Nova Zelândia, França e Argentina pelo que falei à repórter. Agi como um torcedor esportivo fanático naquele momento, pois a repórter perguntou o que eu achava de ver a minha cidade destruída, e não aceitei aquela colocação. Não concordei em ser julgado como um morador de uma cidade destruída, e falei que a reconstruiríamos, deixando-a mais bonita ainda.”

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Maio No mês de aniversário da cidade, os luizenses finalmente voltaram a ver um grande número de turistas, com a realização da festa do Divino Espírito Santo. Diferente das outras edições da festa, muitos curiosos foram ao município ver, além das dezenas de manifestações culturais, a maneira como se portavam os moradores de uma cidade ainda renascendo. Os tapumes – e as ruínas mal escondidas por eles – não eram obstáculos para que cada grupo que foi ao município realizasse seus agradecimentos pelo ano que tiveram. Muitas adaptações foram feitas, como a mudança do local da distribuição do afogado e da realização das missas e novenas. O Ceresta foi inaugurado nesse mês, concentrando diversos grupos de trabalho no município. Em São Paulo, obras foram leiloadas para arrecadar fundos à cidade, e músicos de variados estilos de São Luiz tocaram em diversos eventos, como a Virada Cultural e o Paraitinga Corpo e Alma, realizado no Memorial da América Latina. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) fechou acordo para doar um milhão de reais ao Instituto Elpídio dos Santos, com objetivo de recuperar a sede do instituto, a Igreja do Rosário e a Casa Oswaldo Cruz. Apesar da emergência em vários pontos do país, como São Luiz do Paraitinga e outras cidades do interior de São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina, o Governo Federal anunciou o fornecimento do equivalente a 526 milhões de reais ao FMI (Fundo Monetário Internacional) para colaborar com a contenção da crise financeira pela qual a Grécia passava após acúmulo de dívidas exorbitantes.

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A festa do Divino São Luiz do Paraitinga é uma das poucas cidades brasileiras que ainda realizam todas as manifestações tradicionais – folclóricas, religiosas e profanas – da festa do Divino Espírito Santo, proveniente da Portugal medieval do século XIV, quando havia distribuição de alimentos e esmolas aos pobres como agradecimento pelo que foi colhido e pela esperança de um futuro melhor. A festa tem traços pagãos (assimilados pela Igreja Católica no século XIV), da época em que festas eram realizadas durante os solstícios* para comemorar, dentre outras coisas, a colheita realizada naquele ano e o otimismo em uma boa produtividade no ano seguinte. Em São Luiz do Paraitinga, registros indicam a realização da festa desde o início do século XIX. No entanto, estudiosos acreditam em sua existência desde os últimos anos do século XVIII, visto que há provas documentais de uma casa localizada na praça central construída para ser o Império – centro das devoções populares durante a festa. A festa na cidade deixou de ser realizada durante três décadas no início do século XX, porém voltou integralmente em 1940. A folia do Divino – homens que percorrem toda a cidade tocando, cantando e carregando a bandeira do Divino – inicia o trabalho poucos meses depois do encerramento da festa daquele ano. Eles visitam todas as residências do município como parte do ritual da festa do ano seguinte, para que cada casa e seus moradores sejam abençoados. Geralmente, cada família porta uma bandeira, na qual anexa fitas e fotos de parentes. A festa, iniciada 50 dias após a Páscoa, tem a duração exata de nove dias, a partir de uma sexta-feira à noite, quando os fiéis saem do Império em procissão até o ponto de realização da novena, onde também são abençoadas as bandeiras (até 2009, as novenas eram realizadas na Igreja Matriz). O encerramento religioso da festa se dá com a realização de uma procissão seguida de missa na tarde do domingo da outra semana. Para o povo, no entanto, a festa só acaba na última hora do dia, com a queima de fogos de artifício, geralmente realizada após alguma apresentação cultural no centro da cidade. No dia seguinte ocorre o encontro das bandeiras, quando a bandeira que percorreu a cidade durante dez meses se encontra com as bandeiras dos fiéis. Todas elas costumam ficar guardadas no Império – que a cada ano é preparado delicadamente em uma propriedade diferente –, sendo retiradas somente no momento das novenas realizadas em cada noite. A distribuição do afogado, realizada duas vezes em cada festa, sendo uma delas em um sábado 100

*Os solstícios ocorrem duas vezes por ano: em dezembro e em junho. Quando ocorre no verão significa que a duração do dia é a mais longa do ano. No caso do inverno, a noite mais longa do ano. Essas datas eram simbolicamente importantes para as pessoas daquela época e representavam o início de novos ciclos.

à noite, e a outra no sábado seguinte de manhã, é realizada a partir de voluntários que passaram meses arrecadando alimentos – que se tornam um ensopado de carne com diversos ingredientes – e é responsável por filas imensas que surgem horas antes da distribuição. Uma das últimas apresentações religiosas do evento é a cavalhada, realizada pela Cavalhada São Pedro de Catuçaba, na qual se encena a luta entre cavaleiros mouros e cristãos, difundida pelo imperador Carlos Magno na era medieval. Esse evento é realizado há mais de cem anos nas festas do Divino de São Luiz do Paraitinga. Dezenas de grupos de dança, como moçambique, congada e maracatu se espalham pela cidade durante a festa para realizar suas manifestações de agradecimento ao Divino. Segundo Paula Guerra, a festa, com teor principalmente religioso, desagrada turistas acostumados com grandes eventos, acompanhados de uma organização responsável pelo aviso de cada etapa da festa. Seu texto, de 2009, retrata um desses casos: “Hoje tive o desprazer de me sentar perto de uma senhora que veio ver a festa e achou tudo muito ‘pobrinho’... ‘a comida distribuída é ruim (ela acha que nos pousos de tropeiros serviam caviar?), as congadas são cafonas e a festa é em si desorganizada’. Pergunto, o que ela veio fazer aqui? Ela veio ver uma festa antiga, popular, da época do Brasil colônia e império, onde os pobres agradecem o pouco que recebem, e achou pobre? Não me lembro exatamente quando, mas num ano em que eu ainda tinha uma loja uma mulher encostou no café e começou a desfiar o rosário: ‘é um desorganização, eles dançam e tocam todos ao mesmo tempo.... devia anunciar o nome do grupo que vai se apresentar e dar 30 minutos para cada um’.... aquilo me subiu na garganta e eu disse ‘MAS AQUI NÃO É A SAPUCAÍ !!! Senhora, esta música e dança é a forma de oração deles! Ninguém veio aqui desfilar para turista, eles vieram por devoção! Obviamente na hora que antecede ao culto principal eles todos querem também fazer sua orações em forma de canção e dança....’”20 20 GUERRA (site). Nesse ano, a festa foi realizada com as devidas adaptações pós-tragédia. A distribuição do Acesso em 3 mai. 2010 afogado, que nos últimos anos aconteceu no recinto de exposições da cidade, próximo ao terminal rodoviário, ocorreu no Mercado Municipal, a exemplo das épocas tradicionais da cidade. As missas e novenas, antes realizadas na Igreja Matriz, aconteceram em um espaço coberto preparado pela prefeitura na praça central, em frente às ruínas da igreja. No mais, a cidade contou, como sempre, com as cores vibrantes dos trajes dos grupos que visitaram a cidade. As brincadeiras foram as mesmas, os bonecões João Paulino e Maria Angu saíram às ruas corren101

do atrás das crianças – e turistas que não esperavam ser alvos dos bonecos –, as jovens luizenses praticaram a famosa dança de fitas, e a cavalhada foi apresentada no mesmo local dos últimos anos. A estudante universitária Ana Luiza Dolabella, que está produzindo um fotodocumentário sobre a cidade e seus moradores como trabalho de conclusão do curso de jornalismo na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Campinas, afirma que conheceu São Luiz depois de sua repetitiva aparição nos noticiários após a tragédia. Pensamento coincidente com o de grande parte dos turistas, Ana Luiza afirma que esperava encontrar uma cidade sem forças para a retomada. “Desde que pisei na cidade fui cativada pelos seus moradores. Todos foram simpáticos e solícitos. Eu acreditava que ia chegar e encontrar a cidade destruída, com uma população revoltada com o que aconteceu e com suas perdas, mas felizmente não foi o que vi. A felicidade, a alegria e a fé estão presentes a todo o momento em São Luiz, e admiro a população local por isso.” Josiane Portela, parceira de Ana Luiza no trabalho, conta que ainda nota nos moradores o sentimento de perda de parte da história da cidade. “Parece que aos poucos os luizenses foram retomando o ritmo e o cotidiano normais. Ainda sentem um pouco as consequências que a enchente trouxe, principalmente a perda da [Igreja] Matriz, mas estão seguindo em frente, pensando no futuro e tentando manter a cidade como era anteriormente. A fé e a religião continuam forte na cidade. Mesmo com as perdas, os luizenses mantiveram suas tradições, como a festa do Divino.”

À direita, adorno do Divino Espírito Santo colocado no coreto 102

Preparação do afogado, no Mercado Municipal. Abaixo, Novena realizada em frente às ruínas da Igreja Matriz

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Acima, encontro das Bandeiras. Ao lado, Império repleto da cor vermelha, igual às bandeiras dos fiéis, e enfeite em bandeira 105

Procissão do Mastro

Bonecões João Paulino e Maria Angu 106

Mobilização da cidade durante a última procissão da festa e crianças se divertindo em apresentação cultural

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Prêmio aos que conseguirem alcançar o topo do pau-de-sebo

À direita, apresentação teatral e musical na praça central

Junho A Unesp de Guaratinguetá divulgou em junho o resultado de uma pesquisa realizada com turistas durante a festa do Divino Espírito Santo. A ideia era identificar os tipos de visitantes que foram ao município e questionar se cada um deles aprovou a festividade. Apesar do resultado otimista, os luizenses sabiam que a grande aprovação do evento não necessariamente seria sinal de uma forte retomada do turismo ainda esse ano. Por isso, voluntários passaram a organizar aulas ensinando estratégias a interessados em colaborar atraindo turistas à cidade. Nesse mês São Luiz foi incluída no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) das Cidades Históricas, ação de investimentos voltada a municípios tombados nacionalmente, disponibilizando recursos para diversas áreas. No país, uma enchente muito maior do que a que atingiu São Luiz deixou 30 municípios em Pernambuco e Alagoas em estado de emergência. Algumas cidades foram quase totalmente destruídas. A tragédia deixou mais de 50 mortos e 80.000 desabrigados. O presidente Lula visitou locais atingidos pela tragédia e anunciou a disponibilização de 550 milhões de reais para a recuperação dos danos.

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Cidade pronta para o turismo? A Unesp conduziu uma pesquisa para a qual foram entrevistados 374 turistas que visitaram São Luiz durante a festa do Divino Espírito Santo. Segundo os resultados, o município estaria apresentando infraestrutura suficiente para voltar a receber os turistas. Satisfeitos, 99% dos entrevistados, com idades entre 20 e 70 anos, afirmaram que pretendem retornar à cidade. A média de valores gastos diariamente na festa foi de 50 reais por pessoa, e subiu para 100 reais por pessoa hospedada em pousadas e hotéis locais. Quase dois terços dos entrevistados aprovaram a velocidade da reconstrução de São Luiz, contrariando a imagem de que ainda estaria destruída.21 Apesar do bom resultado, que mostra a aptidão da cidade a receber visitas a partir da visão dos próprios turistas, os comerciantes reconhecem que muito deverá ser feito para que o turismo volte a ser expressivo em outras épocas do ano, quando não há eventos tão renomados como a festa do Divino Espírito Santo. Por isso, a Unitau, a prefeitura e o Comtur (Conselho Municipal de Turismo) fecharam uma parceria em junho para a realização de um curso gratuito de planejamento estratégico voltado para o turismo, aplicado pelo professor da Unitau José Felício Goussain Murade. As aulas, iniciadas sem prazo para término, visavam ensinar aos proprietários de hotéis e pousadas, além de interessados, estratégias de marketing direcionadas ao turismo, como a identificação do público-alvo e a maneira correta de se fazer propaganda da cidade. O vice-presidente do Comtur, Sérgio Costa, ressaltou que, apesar das boas iniciativas, o retorno não será imediato. “Estamos em uma situação emergencial, todos querem resultados imediatos, mas não é bem assim. A resposta ao nosso trabalho virá no médio prazo, precisamos ser pacientes. Mas ter um diagnóstico do turismo do município, algo que não tínhamos antes, já é uma conquista.”22

Projetos para a reconstrução São Luiz do Paraitinga foi incluída no PAC das Cidades Históricas em caráter emergencial devido à gravidade da situação da cidade após a tragédia. O plano, lançado pelo Ministério da Cultura em outubro de 2009, é voltado aos municípios tombados ou em processo de tombamento no âmbito federal, além das cidades dotadas de bens materiais e imateriais (como tradições e 112

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Pesquisa revela que São Luiz do Paraitinga está ‘pronta’ após trágica enchente (site). Acesso em 26 jun. 2010

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Ideias para arrumar o turismo. Jornal da Reconstrução. 19 jun. 2010

festividades) considerados Patrimônio Cultural do Brasil. O plano, no qual São Luiz está incluída desde março, prevê o investimento de 222 milhões de reais nos próximos quatro anos para 11 cidades do Estado de São Paulo. Um dos principais objetivos do PAC das Cidades Históricas é o desenvolvimento da infraestrutura dessas localidades, como ações nas áreas da educação e saneamento básico, requalificação de espaços públicos e aterramento de fiação elétrica. Como divulgado no Diário Oficial da União no dia 26 de março de 2010, a principal área do município que receberá atenção do plano integra o centro histórico e o entorno delimitado pelas cumeeiras dos morros que cercam a zona urbana, pontos tombados como patrimônio nacional. O projeto de reconstrução da Igreja Matriz foi concluído na primeira quinzena de junho pelo Condephaat e pela Diocese de Taubaté – proprietária legal do local. O governo estadual destinou 15 milhões de reais para as obras no local, consideradas prioridade no processo de renascimento da cidade. O novo prédio deverá conter bastantes características semelhantes à igreja antiga, porém oferecerá mais conforto e facilidade aos fiéis, visitantes e párocos, como o uso de sistema de vídeo e áudio, a instalação de um sistema de ar condicionado e mudanças da posição dos altares, facilitando o trânsito nos corredores. Apesar do trauma causado pela queda de vários prédios construídos com a taipa de pilão, cogitou-se reconstruir a Igreja Matriz com essa técnica, porém com métodos mais recentes. A ideia foi descartada também pelo prazo da construção nesse estilo, previsto em seis anos, contra dois anos estimados para a reconstrução do local com técnicas mais atuais.

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Julho O sétimo mês do ano apresentou complicações para muitos luizenses, que aguardavam melhorias notáveis no segundo semestre. A entrega das primeiras casas do conjunto habitacional nomeado Residencial Casinha Branca, que estava prevista para esse mês, foi adiada por decisão das empresas responsáveis pela construção das residências. Na área da saúde, os luizenses, principalmente da zona rural, amargavam um semestre da falta de médicos, precisando recorrer a profissionais de outras cidades. Quanto à verba destinada ao município, o Ministério Público local instaurou inquérito para investigar o possível pagamento indevido do auxílio-moradia a famílias que não se encontravam nas condições exigidas pelo poder público. O Fórum de São Luiz do Paraitinga, cujos documentos passaram por um longo processo de limpeza e recuperação, teve os dois mil processos digitalizados pelo Tribunal de Justiça. O fórum se tornou a 12ª unidade do Estado a ser completamente digitalizada. O pároco do município, Monsenhor Tarcísio de Castro Moura, faleceu aos 94 anos na manhã do dia 9.

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Falta de médicos Certos pontos da cidade passaram grande parte do ano sem clínicos gerais ou especialistas, principalmente no bairro São Sebastião, onde os moradores não contavam com um médico desde a época da enchente. Visando amenizar o problema, profissionais do Programa Saúde Família – um enfermeiro, dois auxiliares e seis agentes – percorreram a área oferecendo atendimento aos munícipes. Para os que ainda assim necessitavam de uma consulta ou procedimento mais complexo, a solução encontrada foi se dirigir à área urbana, a mais de dez quilômetros do bairro, e sem garantia de atendimento. Os munícipes fizeram um abaixo-assinado reivindicando melhorias no atendimento médico na área, cujas dificuldades foram confirmadas pela prefeitura. A diretora do Centro de Saúde municipal, Lidia Faria, explicou que novos médicos seriam contratados. “O pediatra ficou 15 dias afastado do serviço por questões de saúde. O ginecologista e o clínico geral pediram demissão. Ficamos abertos à contratação e logo tivemos um médico interessado em atender no Centro de Saúde. No ano que vem queremos abrir um concurso com novos salários.”23 Apesar de a Santa Casa, na área urbana do município, contar com uma equipe médica de seis plantonistas – entre eles ginecologista e pediatra –, São Luiz passou a maior parte do ano sem assistir ao nascimento de uma criança no local. A falta de obstetras, registrada desde os últimos meses de 2009, é um dos problemas apresentados pela entidade filantrópica, custeada pela prefeitura e pelo SUS (Sistema de Único de Saúde). A Santa Casa dispõe de 30 leitos, duas ambulâncias e uma sala radiológica com equipamentos ultrapassados, e enfrenta – como costumeiro nos hospitais brasileiros – problemas com a disposição de verbas. A entidade, onde trabalham 45 funcionários, além do provedor Alfredo Nocera Filho, não contou com o plano de ajuda emergencial oferecido pelo Governo do Estado. Diferente dos casos simples, que podem ser atendidos no local, os médicos indicam que os pacientes carentes de atendimentos mais complexos se encaminhem a hospitais de cidades próximas.

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Moradores de São Luiz do Paraitinga sofrem com a falta de médicos (site). Acesso em 12 jul. 2010

Casas adiadas Os desabrigados que aguardavam ansiosamente a entrega do primeiro lote das casas do conjunto Casinha Branca, que estava prevista para julho, receberam uma má notícia no decorrer do mês. Preocupados se seriam contemplados com a propriedade, tiveram que aguardar mais alguns meses para saberem o resultado da decisão da prefeitura devido ao adiamento da entrega das residências. As empresas atuantes no local da construção, Terracom e Royal do Brasil Technologies – responsáveis pela adaptação do terreno e pela construção das residências em PVC –, optaram por aguardar a conclusão integral do conjunto ao invés de liberar 45 das 150 casas inicialmente. A assessora de Serviço e Desenvolvimento Social no município, Cristina de Toledo, explicou que a alternativa escolhida pelas empresas visava manter a integridade física das pessoas no local. “Os responsáveis pelo serviço temem a movimentação de crianças e idosos em um espaço cheio de máquinas que podem trazer risco de vida a elas. Não há uma previsão para a conclusão de todo o conjunto, mas enquanto a obra segue estamos garantindo a estadia dos munícipes sem casa em seus abrigos.” Ela explicou que em julho o Serviço Social já havia definido os fatores prioritários para o benefício dos flagelados, mas a lista de contemplados ainda não havia sido concluída. “Fazemos uma análise geral de cada família que se inscreve, levando em consideração fatores como o número de pessoas, a renda familiar mensal, e se elas são proprietárias ou inquilinos das residências atingidas. O processo de avaliação das casas ainda está ocorrendo, não temos a soma de todas as casas condenadas e, consequentemente, a relação de famílias passíveis de receber o benefício. O número de pessoas aptas a receber o benefício até o momento passa dos 70.” Enquanto isso, moradores do abrigo principal mantido pela prefeitura – a pousada Caravela – continuaram sonhando com a retomada de suas vidas, sabendo que não seria fácil pela perda de todos os bens de suas antigas residências. Cassilda dos Santos, que morava na Várzea dos Passarinhos, teve a casa completamente atingida e, apesar de ter tirado os móveis da propriedade, não sabe em que condições os itens foram preservados e nem se poderão ser aproveitados. “A enchente pegou minha casa inteira, e perdi praticamente tudo, inclusive meu animal de estimação. Depois da enchente ainda tentei salvar a televisão, mas, como todos os outros, estamos 117

enrolados com essa situação, e torço para que tenhamos logo um lugar para morar. Pudemos tirar algumas coisas, mas a mudança quebrou os objetos. O que sobrou está no centro pastoral, mas não sabemos que cuidados estão sendo tomados com objetos, e nem em que condições os encontraremos.” Outra desabrigada, Joana Maria dos Santos, que vivia no Alto do Cruzeiro, começou a viver na pousada com sua família em março, visto que sua propriedade foi interditada pelo risco de deslizamentos no bairro. Apesar de sua residência não ter sido atingida pela enchente, ela também estava crente de que seu nome estaria entre os 45 escolhidos para o primeiro lote, sem saber que, independente da decisão, deveria aguardar pelo menos mais três meses pelo resultado. “Acho que saio na primeira lista, pois estou fora de casa desde o início do ano, mesmo com ela não tendo sido atingida pela enchente. Acredito também que a prioridade será ajudar as pessoas que não têm um lugar tão confortável para ficar, como nós, que estamos com nossas famílias em pequenos quartos, sem espaço para muita coisa. Nossas roupas estão embolorando aqui.”

Auxílio indevido O Ministério Público do município instaurou inquérito para avaliar o suposto pagamento indevido do auxílio de 300 reais que parte dos munícipes recebeu. Em fevereiro, 306 famílias se cadastraram e começaram a receber o auxílio do Governo do Estado. Apesar de o número ter caído para 178 em junho, a Justiça suspeitou de famílias não inseridas nas exigências para receber o suporte, e o benefício foi bloqueado provisoriamente durante as investigações. Segundo o Ministério Público, as famílias irregularmente cadastradas deveriam devolver a verba concedida pelo governo e, caso fosse identificada má-fé das pessoas, elas responderiam criminalmente pelo recebimento do recurso. Cristina de Toledo explicou que, no início do cadastramento das famílias, a prefeitura não tinha recursos para identificar as condições de cada uma delas. “O que ocorreu é que no primeiro momento, de atendimento emergencial, não tínhamos estrutura, nem para fazer a checagem de cada situação. Naquele momento valeu a palavra das pessoas que iam até a prefeitura alegando estarem desabrigadas.”24 118

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FERNANDES (site). Acesso em 12 jul. 2010

A prefeitura interveio na ação a fim de evitar o bloqueio do auxílio, alegando que apesar da relevância da investigação, famílias – principalmente vivendo no abrigo – dependiam do auxílio para pagar a estadia fora de casa. O suporte voltou a ser concedido em setembro a 130 das 178 famílias cadastradas até maio, após análise feita pela prefeitura a pedido do Ministério Público. No entanto, foi a vez de a Defensoria Pública de Taubaté entrar com uma ação contra o governo municipal e estadual alegando que as 48 famílias que deixaram de receber o auxílio necessitavam dele. Após decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, o apoio às famílias que seriam excluídas da lista foi mantido.

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Agosto A Prefeitura de São Luiz do Paraitinga foi alvo de uma polêmica gerada pela Defensoria Pública de Taubaté em agosto, que viu irregularidades na utilização da verba doada no decorrer do ano – no segundo semestre aproximadamente 540 mil reais haviam sido doados. Na ação movida pela Defensoria constavam outros questionamentos, dentre eles um relacionado ao desassoreamento do rio, que passou o ano em um nível acima do normal, haja vista a quantidade de entulho acumulada no leito após a tragédia. A Igreja Matriz e a Capela das Mercês começaram a ganhar estruturas metálicas com o formato dos templos. Na primeira, a previsão era de que o local voltasse a ser palco de missas, aos finais de semana, quando os trabalhadores no local estivessem de folga. Dois quadros destinados a uma exposição para levantar fundos ao município foram roubados do Ceresta e encontrados no dia 17 pela polícia, que flagrou dois homens tentando comercializá-los. No Paquistão, enchentes ocorridas durante agosto deixaram mais de seis milhões de desabrigados e matou 1.600 pessoas. Nos primeiros dias da tragédia foram registrados mais de 40 mil casos de diarreia aguda, potencialmente fatal, devido ao contato dos paquistaneses com a água.

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Ação pública A Defensoria Pública de Taubaté entrou com uma ação contra a prefeitura e o governo estadual, alegando omissão dos poderes com relação ao uso das verbas doadas em contas públicas no decorrer do ano. Dentre as denúncias, estaria o restauro de parte do prédio da prefeitura com verba doada (que, segundo a ação, deveria ser usada no atendimento à população) e o descaso com os desabrigados da cidade. A Defensoria solicitou o bloqueio dos 388 mil reais restantes nas contas (pedido acatado pela Justiça nos dias seguintes), o pagamento de multa para indenização dos moradores no valor de 66 milhões de reais e a elaboração urgente de um projeto para o desassoreamento do rio Paraitinga. Como resposta, a prefeitura publicou uma nota de esclarecimento, nas quais conta a legalidade das ações realizadas pela prefeitura. Com relação à reconstrução da sede, os 96 mil utilizados na obra teriam sido doados por um banco privado (na nota consta a doação de 100 mil reais) para que o Executivo utilizasse segundo prioridades definidas pela própria prefeitura. Outros 55 mil utilizados pelo Executivo reais teriam sido doados pela CAF (Corporação Andina de Fomento), destinados exclusivamente à aquisição de medicamentos. Toda a verba restante, segundo a nota, estaria depositada em contas bancárias abertas especificamente para doações. O restante da verba da conta estaria aguardando uma relação com as prioridades do município. Quanto às condições de vida dos desabrigados, a prefeitura esclareceu que os flagelados estavam recebendo auxílio-moradia e alimentação, e que a prefeitura contratou uma cozinheira e um guarda municipal para cuidarem das pessoas. O jornal Valeparaibano relatou que moradores desalojados estariam voltando para suas residências situadas em áreas de risco, porém a prefeita negou tal situação25. Com relação às alegações da Defensoria de que o município teria recebido oito alertas 25 Auxílio sob suspeita meteorológicos antes da enchente, que poderia resultar em ações planejadas para a retirada de em São Luís (site). pessoas e móveis das casas, a prefeitura afirmou que nenhum aviso de catástrofe chegou ao Acesso em 12 ago. 2010 município. O final da nota aponta a ação da Defensoria Pública como sensacionalista e irresponsável. A prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle contou em outubro, enquanto falava da situação da cidade, ter sentido medo de o município cair em descrédito após a polêmica. “Felizmente 122

tivemos três projetos do FID (Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos) relacionados ao atendimento de interesses da área urbana e rural aprovados. Eles foram elaborados não só por funcionários da prefeitura, como por voluntários de outros lugares – a Unesp é um exemplo. Essa polêmica podia ter atrapalhado a aprovação dos projetos, e consequentemente o município sairia perdendo por conta dessas ações mal intencionadas.” Quanto à lista de prioridades, que até agosto não foi apresentada, a prefeita explicou que o mantimento da verba das doações paradas não implicou o desatendimento à população. "Não houve demora em gastar essa verba com situações emergenciais, pois em nenhum momento deixamos de atender quem precisava. Os governos já estavam colaborando com o que faltava no município, e pudemos guardar as verbas para outra ocasião."

Novas igrejas A Igreja Matriz e a Capela das Mercês começaram a receber em agosto uma estrutura metálica com formato semelhante aos templos originais. As peças, produzidas em São Paulo, ficarão nos locais até que as obras de reconstrução sejam concluídas. Além do eventual sentimento de que a igreja ainda existe, mesmo que de forma diferente, a estrutura ajudará a proteger o canteiro de obras e as peças recuperadas nos escombros das intempéries. O coordenador da ação do Iphan no município, Leonardo Falangola, ressaltou a utilidade psicológica das estruturas. “As igrejas, principalmente a Matriz, são marcos históricos e culturais do município. Com a colocação dessas estruturas, a sensação de vazio deixada desde a destruição dos dois patrimônios deve diminuir, até que a reconstrução das igrejas seja finalizada.”26 26 LEIMING (site). Apesar do formato semelhante, as estruturas são um pouco mais largas que os prédios originais. Acesso em 5 ago. 2010 Por isso, os técnicos poderão trabalhar na reconstrução das igrejas sem dependerem da retirada das peças metálicas. A previsão dos órgãos patrimoniais é que as obras nas igrejas comecem ainda no final do ano. O projeto de reconstrução da Igreja Matriz foi concluído em junho pela Diocese de Taubaté e pelo Condephaat, e a estimativa era que o projeto da Capela das Mercês fosse concluído até outubro.

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Setembro O nono mês do ano apresentou diversas mudanças no município, indicando finalmente uma proximidade maior da independência da cidade perante as grandes festividades. A previsão para a conclusão das obras em dois dos três acessos à cidade, que ficaram interditados durante todo o ano, era dezembro. Com a finalidade de atrair turistas em todos e quaisquer finais de semana, uma feira de artesanato foi instalada no calçadão da cidade. Uma má notícia para o turismo, no entanto, foi registrada no mês seguinte: a 4ª Semana da Canção Brasileira, que havia sido adiada de setembro para novembro, foi cancelada por falta de recursos. O município recebeu uma réplica da imagem do Menino Jesus de Praga, doada pela Igreja Nossa Senhora Vitoriosa da República Checa, como motivo para a retomada da cidade, e o Governo do Estado entregou as 151 casas do Residencial Casinha Branca ao município. Na ocasião, representantes estaduais também assinaram a autorização para o início das obras de desassoreamento do rio Paraitinga. O Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica), também responsável pelo desassoreamento, instalou dois medidores – um pluviômetro e um fluviômetro – no município para acompanhar o nível das águas.

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Limpando o rio O Daee abriu no dia 8 de setembro concorrência para contratar uma empresa que se responsabilizasse pela limpeza do rio Paraitinga. No dia 24, representantes do Estado assinaram em São Luiz a autorização para o início das obras com a empresa vencedora da licitação, a FBS Construções. A empresa deverá também desassorear (tirar obstáculos que permitam o fluxo da água) e derrocar (retirar rochas) do rio. Pelas estimativas do Governo do Estado, deverão ser investidos 17 milhões de reais nos serviços realizados no rio Paraitinga e seus afluentes, de onde deverão ser retirados 300 mil metros cúbicos de sedimentos em um espaço de oito quilômetros. A empresa realizará também o alargamento da calha e a instalação de contenções. Segundo a diretora do Daee para assuntos ligados à bacia do Paraíba do Sul e Litoral Norte, Marli Reis Leite, as obras evitarão as pequenas enchentes, recorrentes no município. “As obras deverão minimizar as cheias na cidade, com a melhoria da calha do rio, mas elas vão conter as enchentes frequentes na cidade, e não o evento crítico que ocorreu no início do ano. Neste caso, terá que ser feito um estudo amplo em separado.”27 Além da limpeza no rio, o Estado anunciou a contratação do Plano Diretor de Macrodre- 27GONÇALVES (site). nagem da Bacia do Rio Paraitinga, no qual serão definidas as obras necessárias para controle Acesso em 8 set. 2010 de enchentes, como a canalização, a retificação e a criação de “piscinões”. A empresa responsável pelo serviço realizará o estudo em uma área de 2.500 quilômetros quadrados, onde vivem 58 mil pessoas espalhadas por dez municípios. Mais de 100 cursos de água serão estudados, incluindo os do rio Paraitinga, Ribeirão do Chapéu, Jacui, Turvo, do Peixe e do Ribeirão dos Macacos.28 28 São Paulo (site). Acesso em 26 set. 2010

Novo lar Representantes do Governo do Estado entregaram no dia 24 o conjunto de 151 casas do Residencial Casinha Branca, que custou 17.400.000 reais aos cofres do CDHU. Dois tipos de residências foram construídos: 45 delas são isoladas e térreas, com 65,90 metros quadrados, e 106 foram feitas em sobrados divididos em quatro, com 54,86 metros quadrados por casa. 126

Construções feitas com PVC deram mais agilidade à construção do conjunto

Nem todas as residências ganharam donos com a liberação do residencial, tendo em vista que o Serviço Social do município identificou parte das famílias cadastradas como aptas a retomarem suas vidas, alugando uma propriedade tradicional. Para preencher as casas restantes, a prefeitura realizou um sorteio no mês seguinte, visto o número excedente de famílias aguardando o benefício comparado ao de casas remanescentes. A prefeita Ana Lúcia Bilard explicou que, em alguns casos, 127

os munícipes não contemplados com a casa também deixarão de receber o auxílio-moradia devido ao fim do estado de emergência da cidade. “Passados nove meses da tragédia na cidade, que já não estava mais em estado de emergência, entendeu-se que parte das famílias já tinha condições de viver normalmente. Por isso, o auxílio-moradia continuaria sendo destinado somente aos munícipes que ainda precisavam realizar obras nos casarões até que eles tivessem condições para o trabalho.” No dia da entrega das casas a Secretaria de Estado da Cultura e a CDHU assinaram um convênio de 8.400.000 reais para concessão de crédito a proprietários de moradias atingidas pelas inundações no centro histórico. No entanto, Ana Lúcia destacou a importância de haver mudanças nos requisitos para o benefício, que deverá ser utilizado para reformas e serviços de recuperação dos imóveis. “Um dos requisitos para o financiamento é que os beneficiados sejam donos de apenas uma propriedade. Se além da casa eles tiverem outra construção, não poderão recorrer ao benefício da CDHU, que entenderá que eles poderiam vender a segunda propriedade para realizar as reformas na primeira.” Os beneficiados com as casas assinaram um termo de permissão de uso oneroso (contrato que permite um particular utilizar um bem público para os fins predestinados, gratuitamente ou não) válido por 12 meses, com opção de compra e venda, e pagaram uma taxa de ocupação de 76,50 reais. Após o encerramento desse período, os moradores do conjunto assinarão contratos de financiamento para pagar prestações subsidiadas pelo governo calculadas de acordo com a renda familiar. O valor da menor prestação é o mesmo da taxa de ocupação que eles pagarão no primeiro ano na casa. Apesar do aparente bom momento, munícipes acionaram a Defensoria Pública do Estado de São Paulo por se sentirem pressionados a acatarem as exigências para tomar posse das novas moradias. A prefeitura exigia que os antigos moradores de áreas de risco assinassem um termo se comprometendo a não realizar novas construções no espaço de suas antigas moradias. A exigência foi feita a fim de evitar que os munícipes novamente construíssem residências em áreas de risco. Segundo a administração municipal, o valor da residência da CDHU seria uma indenização pelo valor do terreno.29

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Grupo se recusa a deixar terrenos em São Luís do Paraitinga (site). Acesso em 26 set. 2010

Epílogo As eleições de 2010, cujo primeiro turno foi realizado no dia 3 de outubro, coincidiram com os nove meses passados desde a tragédia que assolou São Luiz do Paraitinga e, por um instante, fez desaparecer qualquer sinal de esperança que os luizenses tinham em conquistar suas singelas aspirações ou de que eles voltariam a viver a rotina do passado. Desesperados, os moradores do centro histórico passaram as primeiras semanas do ano desnorteados, sem imaginar como recomeçar suas vidas do zero. Por outro lado, moradores de ruas à beira do rio Paraitinga sabiam que, no fundo, a enchente poderia levar e destruir tudo, menos a fé na possibilidade do recomeço. Afinal, eles se acostumaram nos últimos anos a saírem de suas casas, deixando tudo para trás, para dar lugar às águas que mais e mais vezes lhes fizeram importunas visitas. A princípio, a decisão de acompanhar nove meses da reconstrução da cidade, além de relatar a sua história e testemunhos dos primeiros dias do ano, foi tomada pelo caráter simbólico do nascimento de um ser humano, e, no caso da cidade, do seu renascimento. Completado esse prazo, nota-se que o renascimento foi muito além da simbologia, visto que a cidade mudou significantemente. Seria ingenuidade afirmar que a reconstrução da cidade está próxima de ser concluída – não só no âmbito material, mas também no psicológico de sua comunidade –, mas é sabível que o município aparecerá muito mais que o normal na mídia nos próximos anos – sinal de uma intensa realização de inúmeros projetos que ainda aparecerão em São Luiz –, diferente do costumeiro nos anos passados, quando o município ganhava destaque somente durante o carnaval e a festa do Divino Espírito Santo. Os munícipes, por sua vez, já sorriem e aparentam viver uma vida normal, omitindo involuntariamente o fato de que muitas testemunhas da tragédia têm pesadelos relacionados à água e lama até hoje, e muitas vezes optam por realizar tratamentos psicológicos como meio para superar o trauma e a depressão. Os novos olhares e suportes dados ao município nesse tempo indicam que a situação poderia ter sido pior – as principais tragédias do ano foram relatadas neste livro a fim de indicar 131

que, apesar da catástrofe ocorrida na humilde cidade, nenhum governo poderia dar toda a atenção requerida (e talvez merecida) pela população. No Brasil, e na mesma semana do ocorrido na cidade histórica, uma tragédia no Rio de Janeiro contabilizou algo que a enchente em São Luiz não registrou: mortes. Meses depois, cidades de Alagoas e Pernambuco foram devastadas pela força das águas, também contabilizando mortes, enquanto o maior prejuízo dos luizenses foi a perda parcial do patrimônio cultural da cidade, tão valorizado por moradores, turistas e estudiosos. Mesmo com as discussões relacionadas à reconstrução aos moldes das antigas estruturas, a fim de a cidade voltar a ter a mesma aparência de antes, todos sabem, no fundo, que uma réplica nunca será o original. No caso da Igreja Matriz, nos próximos anos as missas, batizados e casamentos tornarão a ser realizados em meio a um espaço adornado segundo os preceitos da Igreja Católica, como era até o fim de 2009. Apesar da cautela na reconstrução à imagem e semelhança do que até pouco tempo atrás existiu, basta perguntar no futuro aos velhos e experientes luizenses se eles sentem ao pisar na nova igreja o mesmo que sentiam ao adentrar na secular. Esse é o sinal de que a cidade vai muito além de um conjunto de casarões antigos e coloridos: há pessoas. E, junto às pessoas, há memórias e sentimentos. Sempre dispostos a contar os causos de suas vidas aos risos, mesmo que com a dor da saudade – afinal, quem é que não tem? –, os luizenses mostram que a nova estrutura da cidade não apagou sua história e que, como qualquer época de nossas vidas, as novas linhas a serem escritas serão acompanhadas, muitas vezes, por lágrimas e risos. Mas sempre de maneira viva. Afinal, São Luiz do Paraitinga renasceu.

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Índice fotográfico

P. 43 Paula Guerra 2/1/2010

P. 44 Paula Guerra 2/1/2010

P. 45 Paula Guerra 2/1/2010

P. 46 Paula Guerra 22/4/2006

P. 46 Paula Guerra 22/4/2006

P. 47 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 53 Felipe Guerra 5/1/2010

P. 53 Felipe Guerra 5/1/2010

P. 53 Felipe Guerra 5/1/2010

P. 53 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 54 Felipe Guerra 26/2/2010

P. 54 Felipe Guerra 6/2/2010

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P. 55 Felipe Guerra 5/9/2010

P. 56 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 60 Felipe Guerra 5/3/2010

P. 55 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 55 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 55 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 57 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 57 Roseli Bernardo 7/1/2010

P. 58 Felipe Guerra 6/2/2010

P. 63 Felipe Guerra 6/2/2010

P. 63 Felipe Guerra 5/9/2010

P. 64 Felipe Guerra 17/2/2010

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P. 64 Felipe Guerra 20/5/2010

P. 83 Felipe Guerra 20/5/2010

P. 86 Felipe Guerra 19/3/2010

P. 79 Felipe Guerra 17/2/2010

P. 83 Felipe Guerra 20/5/2010

P. 95 Felipe Guerra 9/4/2010

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P. 82 Felipe Guerra 20/5/2010

P. 83 Felipe Guerra 20/5/2010

P. 85 Felipe Guerra 9/4/2010

P. 85 Felipe Guerra 9/4/2010

P. 103 Felipe Guerra 15/5/2010

P. 104 Felipe Guerra 15/5/2010

P. 104 Felipe Guerra 15/5/2010

P. 106 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 108 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 105 Felipe Guerra 15/5/2010

P. 106 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 109 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 105 Felipe Guerra 15/5/2010

P. 105 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 107 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 107 Felipe Guerra 22/5/2010

P. 127 Felipe Guerra 10/10/2010

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Felipe Guerra Estudante de jornalismo, músico e fotógrafo, mudou-se no final de 2006 para São Luiz do Paraitinga, onde morou até o início de 2010. Atingido pela enchente como a maioria dos moradores da cidade, decidiu mudar o tema previamente escolhido de seu Trabalho de Conclusão de Curso para preservar a memória de uma cidade que marcou sua vida.