o embrião excedentário e os direitos fundamentais - PUCRS

1 O EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS INTRODUÇÃO A atual Carta Magna é a primeira na história pátria a prever um título próprio dedica...
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O EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS INTRODUÇÃO

A atual Carta Magna é a primeira na história pátria a prever um título próprio dedicado aos princípios fundamentais. Também tivemos, pela primeira vez no âmbito do direito constitucional positivo, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento do nosso Estado democrático de direito. A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental contido na Constituição da Republica Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, inciso III. Ela se estabelece como um dos pilares do ordenamento jurídico, servindo como fundamento para todo o sistema constitucional positivado e, assim, como última estrutura de proteção aos direitos individuais. Desta forma, o primeiro capítulo do presente trabalho tratará do tema dignidade da pessoa humana, trazendo alguns conceitos e acepções, contextualizando o princípio dentro do ordenamento jurídico brasileiro e o correlacionando com outros direitos fundamentais. Por outro lado, a cada dia surgem novas descobertas no campo da ciência, e o direito, muito embora tente, não consegue acompanhar essas mudanças com a agilidade que seria necessária. Mais especificamente: com a compreensão do genoma humano e as constantes inovações no âmbito da pesquisa científica, o poder legislativo brasileiro viu-se por obrigado a editar a nova Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) com o intuito de padronizar uma série de procedimentos. O que era para surgir como uma solução acabou por criar mais discórdia. Ocorre que a lei vem recebendo inúmeras críticas, que partem tanto de médicos, biólogos e pesquisadores, como também de juristas. Assim sendo, o segundo capítulo buscará analisar tanto essas inovações científicas como os seus reflexos legais. O ponto principal de discordância a ser tratado aqui será o artigo 5º da referida lei, que prevê a possibilidade de que embriões excedentários sejam utilizados para pesquisa e terapia. O capitulo terceiro, por sua vez, tratará do cerne da questão, qual seja, o status jurídico do embrião humano e a dignidade do embrião excedentário. Fazendo apontamentos, buscarse-á proporcionar uma reflexão para que o leitor possa chegar a um posicionamento sobre o tema. A questão não é somente discutida no Brasil. Ao redor do mundo, diversos países hoje buscam constituir uma lei para regular essas pesquisas (seja para proibi-las, seja para criar

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regramentos) e nem mesmo nos países que já possuem tal lei existe unanimidade sobre o assunto. O tema não só é atual como também de extrema relevância, haja vista que se enxerga, através das pesquisas com essas células-tronco, uma possível cura para diversas doenças, principalmente aquelas de cunho degenerativo. Ou seja, a liberação, das pesquisas pode fazer com que milhões de pessoas tenham uma melhora em relação ao padrão de vida, isso sem contar na possibilidade de cura. Nesse sentido, o presente trabalho visa fazer uma análise de todos estes aspectos (a dignidade da pessoa humana, as novas descobertas científicas e a legislação sobre o tema) para, por fim, concluir se seria aceitável a utilização das células-tronco destes embriões excedentários para tentar achar uma possível cura para algumas doenças. 1. CONCEITO E ACEPÇÕES DA DIGNIDADE HUMANA 1.1 CONCEITO E NOÇÕES

Primeiramente, antes de iniciar a abordagem específica deste trabalho, cabe fazer uma série de considerações. Inicialmente cabe expor uma breve explicitação sobre a dignidade da pessoa humana, princípio constante em diversas constituições ao redor do mundo, em muitas delas como preceito norteador do ordenamento jurídico. Nesse sentido, relativo à Lei Fundamental da Alemanha, cabe citar o que diz Edilson Pereira Nobre Júnior: “A iniciativa pioneira nesse manifestar é admitida como pertencente à Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, responsável por solenizar, no seu art. 1.1., incisiva declaração: ‘A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la’. O preceito recolhe sua inspiração na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948, sem olvidar o respeito aos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, propugnados pelos revolucionários franceses através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789”.1 A Constituição da Espanha prega no seu artigo 10º, em referência aos direitos da pessoa, que: “1. La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el

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NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade humana. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2007.

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libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la Ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social”.2 A Constituição da República Portuguesa, promulgada em 1976, define, em seu artigo 1º, no que tange aos princípios fundamentais, que: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.3 No Brasil, a dignidade da pessoa humana, está consagrada no inciso III, do artigo 1º, da Constituição Federal. Como se pode perceber pela sua classificação, no título dedicados aos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana tem papel fundante na estruturação da República Federativa do Brasil. Ela confere unidade aos direito e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. A dignidade é um valor moral e espiritual inerente à pessoa, algo que se constitui como um mínimo existencial que todo estatuto jurídico deve garantir, considerando que, apenas de forma excepcional, admitam-se limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas de forma alguma desconsiderando a necessária importância que merecem todas as pessoas.4 A dignidade serve como fundamento para todo o sistema constitucional positivado e, assim, como última estrutura de proteção aos direitos individuais. Assim, tal princípio é um norte no sistema jurídico, o que faz com que ele não possa “ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas”.5 Cabe dizer que inicialmente a idéia do valor intrínseco da pessoa humana se enraíza no pensamento clássico e no ideário cristão - ainda que faltem dados para se fazer uma afirmação peremptória acerca do tema -, haja vista que tanto no Antigo como no Novo Testamento podem ser encontradas referências no sentido de que o ser humano foi criado a imagem e semelhança de Deus e, desta forma, seria dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.6

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Constituição Espanhola. “1. A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à Lei e aos direitos dos demais são fundamento da ordem política e da paz social”. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2007. 3 Constituição Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2007. 4 MORAES, Alexandre de. Op cit., p. 52. 5 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 45 e 51. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001. p. 30.

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Ao seguir dos séculos, de suma importância foi a contribuição do espanhol Francisco de Vitória, que em pleno século XVI, no auge da expansão colonial espanhola, defendeu que não se poderia escravizar, explorar e aniquilar os índios, devido a sua própria natureza humana. Ou seja, eram indivíduos em princípio livres e iguais que deveriam ser respeitados como sujeitos de direito, mas não pelo fato de pertencerem ou deixarem de pertencer a alguma religião.7 Sarlet8 afirma que, ainda nos dias de hoje, a maioria da doutrina identifica em Kant as bases de uma fundamentação e conceituação da dignidade da pessoa humana. Porém questiona até que ponto a concepção pode ser adotada sem ressalvas ou ajustes na atual situação social, econômica e jurídica. Por fim assevera que a pessoa deve sempre ser considerada como fim e não como meio. De outra maneira, muitos são os que defendem que a dignidade da pessoa humana não é algo somente inerente à natureza do ser humano, haveria também todo um aspecto cultural derivado de diversos séculos de convivência. A interação de várias gerações e o fruto do trabalho destas (tanto intelectual quanto manual), culminariam no presente entendimento de dignidade humana, de tal forma que a compreensão existente hoje não é a mesma que a de um século atrás, e nem será a mesma que teremos no futuro. Assim, é possível se dizer que a dignidade sempre surge contextualizada no âmbito histórico-cultural de uma sociedade, de tal maneira que muitos atos que por algumas culturas são considerados atentatórios da dignidade humana, em outros recebem total respaldo tanto da comunidade como da ordem jurídica.9 Nessa esteira parece residir o pensamento de Dworkin: ”As pessoas têm direito a não sofrer a indignidade, a não serem tratadas de uma forma que em suas culturas, ou comunidade, se entende como uma mostra de falta de respeito. Qualquer sociedade civilizada tem padrões e convenções que definem esta classe de indignidade, e ela difere de lugar para lugar e de época em época”.10 Como encerramento, cabe citar conclusão do professor Sarlet: “O que se percebe, em última analise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do 7

KRIELE, Martin. Einführung in die staatslehre, 5ª ed. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1994, p. 212. Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 31/32. 8 SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 34/35. 9 SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 55. 10 DWORKIN, Ronald. El domínio de la vida : Una discusión acerca Del aborto, la eutanasia y la libertad individual. Barcelona: Ariel, 1998, p. 305. Tradução livre de: “Las personas tienen derecho a no sufrir la indignidad, a no ser tratadas de manera que en sus culturas o comunidades se entiende como una muestra de carencia de respeto. Cualquier sociedad civilizada tienen estándares y convenciones que definen esta clase de indignidad, y que difieren de lugar a lugar y de época en época”.

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ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças”.11

1.2 A DIGNIDADE HUMANA POSITIVADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A dignidade da pessoa humana foi alçada a partir da metade do século ao centro dos sistemas jurídicos contemporâneos. As guerras ao longo da primeira metade do século XX e a constatação, sobretudo após as experiências do fascismo e do nazismo, de que a legalidade formal poderia encobrir a barbárie levaram à superação do positivismo estrito e ao desenvolvimento de uma dogmática principialista. Nesse novo pensamento, dá-se a reaproximação entre o Direito e a Ética, resgatam-se os valores civilizatórios, reconhece-se normatividade aos princípios e cultivam-se os direitos fundamentais.12 Afirma Barroso: “O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. Aliás, o reconhecimento dos direitos da personalidade como direitos autônomos, de que todo indivíduo é titular, generalizou-se também após a Segunda Guerra Mundial e a doutrina descreve-os hoje como emanações da própria dignidade, funcionando como ‘atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano’. Tais direitos, reconhecidos a todo ser humano e consagrados pelos textos constitucionais modernos em geral, são oponíveis a toda a coletividade e também ao Estado”.13 A atual Constituição Brasileira, datada de 1988, foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio dedicado aos princípios fundamentais. O legislador constituinte apontou de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional. 11

SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 59. BARROSO, Luís Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (Coords). Direitos Fundamentais: Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 681/682. 13 BARROSO, Luís Roberto. Op cit., p. 682. A citação existente no texto é referida à: TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas de direito civil, 2001, p. 33. 12

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No mesmo sentido, tivemos o reconhecimento no âmbito do direito constitucional positivo, sem precedentes no país, da dignidade da pessoa humana como fundamento do nosso Estado democrático de direito (artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988).14 Mesmo que a inclusão pareça ser tardia, ela não destoa muito de outras nações, pois, como já foi dito, somente após a Segunda Guerra Mundial, e especialmente após a Declaração Universal da ONU, de 1948, a dignidade humana passou a ser referida expressamente pelas Constituições dos Estados (ressalvada uma ou outra exceção).15 Em linhas gerais, atualmente um grande número de países positiva em sua Lei Maior a dignidade da pessoa humana, principalmente no que se refere à países europeus e americanos.16 De tal modo, reconheceu-se de forma categórica que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.17

1.3 A DIGNIDADE HUMANA E OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Como já dito anteriormente, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana exerce diversas funções. Nesse sentido, afirma Miranda18 que a Constituição atribui uma unicidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, assenta-se na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do estado. Martinez19 assevera que, muito embora a dignidade preexista ao direito, o seu reconhecimento e defesa por parte da ordem jurídica vigente compõem requisito imprescindível para que esta possa ser tida como legítima. Assim sendo, pode-se dizer que 14

SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 62. O autor considera importante assinalar que a dignidade da pessoa humana também é referida expressamente em outros capítulos constituição, “seja quando estabelece que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), seja quando, na esfera da ordem social, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 227, caput)”. 15 SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 63. Como exceção a essa regra o autor aponta a Constituição Alemã de 1919, de Weimar, em seu artigo 151, inciso I, a Constituição Portuguesa de 1933, em seu artigo 6º, nº 3, e a Constituição da Irlanda de 1937, no seu Preâmbulo. 16 SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 63/65. O autor faz um apanhado e cita uma série de países que tem a dignidade da pessoa humana referida de forma expressa em sua Lei Fundamental, trazendo inclusive exemplos asiáticos e africanos, porém em menor número. 17 BLECKMANN, Albert. Staatsrecht II – Die Grundrechte, 4ª ed. Köln-Berlin-Bonn-München: Carl Heymanns, 1997, p. 539. Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 66. 18 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3.ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2000, tomo IV, p.180. 19 MARTINEZ, Miguel Angel Alegre. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de León, 1996, p. 29. Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 80/81.

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todos os direitos e garantias fundamentais estão relacionados com o princípio referido,20 muito embora os graus de vinculação sejam diversos. Viera de Andrade diz que existem direitos que constituem explicitações em primeiro graus da idéia de dignidade e outros que destes são decorrentes.21 Do mesmo modo, o direito geral de igualdade tem fundamento direto na dignidade da pessoa humana, como pode se perceber na Declaração Universal da ONU que consagra que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. A isonomia entre todos os seres humanos é pressuposto essencial para que a dignidade humana seja respeitada e, portanto, “não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivo de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material”.22 Consoante à isso, o Tribunal Constitucional da Espanha afirmou ser o direito à intimidade derivado da dignidade da pessoa, definindo que a existência de um âmbito próprio e reservado, em face de atuação e conhecimento dos demais é indispensável para a manutenção de uma qualidade mínima de vida humana.23 Do mesmo jeito, os direitos sociais, econômicos e culturais, seja na sua condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional (atuando como direitos positivos), constituem exigência e concretização da dignidade humana. Nesse sentido, não há duvidas de que todos os órgãos e atividades estatais estão vinculados à dignidade da pessoa, seja no sentido da abstenção de ingerências na esfera individual (contrárias à dignidade pessoal), ou no dever de protegê-la contra agressões provenientes de terceiros.24 Finalizando essa exposição sobre a dignidade da pessoa humana, cabe discutir até que ponto essa dignidade tem caráter absoluto, ou ainda, haveria possibilidade de sua eventual relativização. Por um lado, os que defendem a possibilidade de relativização, afirmam que – sob pena de restarem sem solução boa parte dos casos concreto – deve se considerar o 20

Muito embora se questione se todos os direitos fundamentais constitucionais podem ser reconduzidos diretamente ao princípio da dignidade, não há dúvida de que todos devem ser interpretados à luz daquele princípio fundamental. 21 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 101/102. Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 82. 22 SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 89. O autor afirma que diversos outros autores também sustentam a íntima ligação entre o princípio isonômico e a dignidade da pessoa, dentre eles Nobre Júnior, O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 23 STC nº 98/2000. Disponível em: . Acesso em: 16 out. 2007. “O direito a intimidade, como este Tribunal já teve a oportunidade de advertir, enquanto derivação da dignidade da pessoa reconhecida pelo art. 10 C.E., implica ‘a existência de um âmbito próprio e reservado frente à ação e o conhecimento dos demais, necessário, segundo as regras da nossa cultura, para manter uma qualidade mínima da vida humana’ (SSTC 209/1988, de 27 de outubro, (…) e 207/1996, de 16 de dezembro, entre outras).” 24 SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 108.

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princípio isonômico (tratando os desiguais de forma desigual) quando for necessário se proteger a dignidade de terceiros, principalmente quando se trata de resguardar a dignidade de todos os integrantes de uma determinada comunidade. Em sentido fortemente contrário, a doutrina majoritária se opõe de forma veemente a qualquer tipo de restrição à dignidade pessoal, inclusive afirmando que a restrição à dignidade (mesmo que fundada na preservação de direitos fundamentais ou proteção da dignidade de terceiros) encontra-se vedada no ordenamento jurídico, por importar na sua violação.25 Conjuntamente com esse dissídio, vale dizer que nem mesmo existe consenso sobre o conteúdo jurídico da noção de dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, há desacordo principalmente quando se trata de examinar quais condutas (e em que medida) são, de fato, violadoras desta dignidade. Assim, sendo este conceito aberto, sempre se irá depender da vontade do intérprete e de uma construção de sentido cultural e socialmente vinculada.26 Contudo, ao final, se houver “confronto” de diferentes “direitos à dignidade”, ficaremos na dependência do caso concreto e do enquadramento feito pelo intérprete para que possamos definir se ele é passível de relativização ou não.

2. A COMPREENSÃO DO GENOMA HUMANO E A LEI DE BIOSSEGURANÇA 2.1 AS NOVAS DESCOBERTAS ACERCA DO GENOMA HUMANO

Nos últimos anos têm surgido inúmeras descobertas na área da genética. Merecem especial atenção as pesquisas de biotecnologia, haja vista que muitas vezes se tratam de pesquisas com genes humanos e, desta forma, existem questionamento éticos, sociais e jurídicos a respeito do que seria aceitável e do que seria considerado um possível abuso. A genética estuda a transmissão hereditária e o seu âmbito investigativo, se estendendo desde microorganismos, vegetais e animais até o homem.27 Na mesma linha de pesquisa, já existem experimentos que atestam a possibilidade de utilizar em humanos genes de outros seres vivos para curar doenças, tornar-nos imunes a elas ou ainda estender a expectativa de vida. Todas essas questões não encontram correspondência imediata em nossa

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SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 130/133. SARLET, Ingo Wolfgang. Op cit., p. 134. 27 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2004, p. 164. 26

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legislação, fazendo assim com que bastantes experimentos, muito embora eticamente duvidosos,28 não sejam proibidos na esfera legal. Souza, aponta alguns dos benefícios que a genética pode trazer para a medicina: “A genética pode ajudar, portanto, de várias formas a medicina: a) pelo diagnóstico preditivo, com a análise e investigação de trechos de ADN que permitem identificar e diagnosticar anomalias cromossômicas e genes defeituosos a assim prevenir e melhor tratar predisposições patológicas e patologias genéticas; b) pela terapia gênica, ou seja, corrigindo genes defeituosos nas células humanas; e c) pela produção de novos remédios, em que indústrias farmacêuticas têm feito investimentos milionários na leitura do ADN humano com o objetivo de conseguir produtos biotecnológicos (antibióticos, hormônios, proteínas sintéticas etc.) que possam prevenir e tratar as diversas enfermidades existentes.” 29 Cabe dizer que uma das principais expressões empregadas para se referir às tecnologias genéticas que visam manipular o genoma humano é o termo “engenharia genética”. Não obstante tal consideração, podemos subdividir a engenharia genética em terapêutica e não terapêutica. Quanto à terapia gênica, ensina Casabona que por meio dela são tratados defeitos genéticos de diversas índoles: hereditários, quando são transmitidos pelos genes dos pais; não hereditários, quando se produzem anomalias por erros imprevistos durante a formação das células sexuais; e congênitos, quando ocorrem no desenvolvimento embrionário devido a diversas mutações.30 Desta forma, o autor propõe, antes de qualquer coisa, os princípios básicos que devem ser utilizados em relação às provas diagnósticas e às ações terapêuticas genéticas: “a) o princípio da proporcionalidade, que deve se manter entre o resultado benéfico esperado e os riscos previsíveis para os afetados, tendo em conta, ainda, que a mãe também pode ter complicações decorrentes das intervenções diagnósticas e terapêuticas realizadas sobre o embrião ou sobre o feto durante a gravidez, e b) mais especificamente aplicável à terapia gênica – e, em certa medida, também à terapia pré-natal – é o princípio da precaução, o qual pode oferecer, neste âmbito, orientações muito valiosas, mesmo que geralmente não sejam aplicáveis”. 31

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Usa-se o termo “duvidosos” tendo em vista que a relatividade da ética, e se refere a procedimentos de pesquisa que são considerados por grande parte dos estudiosos como errados e atentatórios a ética em seu ponto de vista. 29 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Op cit. p. 177. 30 CASABONA, Carlos María Romeo. Op cit., p. 110. 31 CASABONA, Carlos María Romeo. Op cit.. p. 95. Tradução livre de: “a) el principio de proporcionalidad, que debe mantenerse entre el resultado beneficioso esperado y los riesgos previsibles para los afectados, teniendo en cuenta, además, que la madre también puede verse implicada por las intervenciones diagnósticas y terapéuticas realizadas sobre el embrión o el feto durante el embarazo, y b) más específicamente aplicable a la

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Essa terapia gênica pode ser feita tanto em células que não têm a capacidade de transmitir seu material genético à descendência do indivíduo (quando incide sobre células somáticas), como em células que, por interferir no material genético reprodutivo do ser humano, trarão conseqüências e efeitos também na sua estipe (quando incide sobre células germinativas, ou seja, reprodutivas).32 Desta forma, tem se considerado a terapia gênica somática aceitável, porém a terapia gênica germinal, por ter os seus efeitos ainda desconhecidos nas gerações futuras, tem sido repudiada. Contudo, a engenharia genética humana não terapêutica não se difere da terapêutica pelo método empregado (como regra), mas sim da finalidade a que se propõe. Ou seja, a manipulação genética dada pela transferência gênica somática e, principalmente, pela transferência gênica germinal passa a ser não terapêutica quando deixa somente de se preocupar em prever, tratar e eliminar enfermidades genéticas para buscar outros objetivos e as suas conseqüências decorrentes. Essa manipulação não terapêutica pode ser utilizada para fins reprováveis como, por exemplo, produzir seres híbridos ou anômalos ou para selecionar certas características genéticas consideradas “ótimas” das gerações futuras.33 De outra banda, é possível também através da engenharia genética (porém, teratológica) a criação de seres híbridos e de aberrações humanas. Explicitadas essas novas técnicas de engenharia genética humana, é de fácil percepção que as conseqüências resultantes dos procedimentos biomédicos adotados, especialmente em relação ao nascituro, podem ser nefastas. Fala-se dos nascituros, pois os componentes biológicos humanos obtidos naturalmente ou in vitro nesta fase (embriões e fetos) constituem um excelente material de trabalho e de acesso um tanto quanto simplificado para o emprego da engenharia genética quaisquer que forem os seus fins (terapêuticos ou não terapêuticos).34 A grande maioria dos Estados protege o nascituro somente por meio do delito de aborto, sendo que a punibilidade se dá somente ao fim da nidação (fixação do óvulo nas paredes uterinas). Desta forma o óvulo ex utero não tem proteção jurídica alguma e não terá até que seja introduzido e fixado no organismo materno e, assim, é grande a possibilidade de que seja feita uma seleção genética nestes óvulos, fato este que deveria ser regulado pelo direito. terapia génica – en cierta medida, también a la terapia prenatal – es el principio de precaución, el cual puede ofrecer en este ámbito orientaciones muy valiosas, aunque por lo general no sean aplicables”. 32 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana : contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. p. 180/181. 33 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Op cit., p. 184. 34 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Op cit., p. 202.

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Por fim vale transcrever passagem de Barroso,35 no que diz respeito à inexistência de proteção ao embrião ex utero no nosso ordenamento jurídico: “O embrião resultante da fertilização in vitro, conservado em laboratório: a) não é uma pessoa, haja vista não ter nascido; b) não é tampouco um nascituro, em razão de não haver sido transferido para o útero materno. As normas e categorias tradicionais do direito civil não se aplicam à fecundação extracorporal. Vale dizer: até o advento da Lei nº 11.105/2005, não havia qualquer disciplina jurídica específica para esta entidade: embrião produzido em laboratório, mediante processo de reprodução assistida. Foi precisamente a lei aqui impugnada (Lei de Biossegurança) que instituiu normas limitadoras das pesquisas genéticas e protetivas do embrião”.

2.2 A NOVA LEI DE BIOSSEGURANÇA, ASPECTOS RELEVANTES

A intervenção jurídica no campo da genética vem crescendo a cada dia, e já é realidade em muitos países, principalmente na Europa (tomemos como exemplo: Reino Unido, Alemanha, Espanha, França, Itália, Noruega etc.).36 Com o crescente número de pesquisas, tratou o Poder Legislativo pátrio de criar um diploma legal que melhor se adequasse a atual situação do tema. Fazendo um breve retrospecto legal, no Brasil podemos dar destaque para a Lei 8.974/1995, modificada pela Medida Provisória 2.191-9/2001 (ambas revogadas pela Lei nº 11.105/2007) e regulamentada pelo Decreto 1.752/1995.37 Desta forma, o Congresso Brasileiro aprovou recentemente a Lei nº 11.105/2005 – que revogou a Lei nº 8.974/1995 e regulamentou os incisos II, IV e V do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal – com o objetivo de normatizar algumas destas inúmeras inovações no âmbito da pesquisa genética que não estavam abrangidas pela lei anterior, bem como modificar conceitos e posições nela existente. Dentre outros temas, ela trata de assuntos relativos à genética humana, tais como a utilização de embriões, engenharia genética germinal, clonagem humana e reprodução assistida, e à genética não humana, como os regramentos para o uso de organismos geneticamente modificados (OGMs), proibições e permissões (como dos tão falados, porém pouco conhecidos, alimentos transgênicos). 35

BARROSO, Luís Roberto. Op cit., p. 690. SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Direito Penal Genérico e a Lei de Biossegurança. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 12. 37 SARTORI, Ivan Ricardo Garisio. Célula-tronco. O direito. Breves considerações. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007.

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Um dos pontos de crítica é a miscelânea de temas a serem tratados. Criada em tese para regulamentar o artigo 225, parágrafo 1º, incisos II, IV e V da Constituição Federal, a Lei de Biossegurança congrega quatro relevantes matérias diversas: a) a pesquisa e a fiscalização dos organismos geneticamente modificados (OGMs); b) a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia; c) o papel, a estrutura, as competências e o poder da CTNBio; e d) a formação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) e sua organização, através de normas ora dispersas pelo texto integral da Lei, ora concentradas no capítulo II.38 Controvérsia essa que pode ser confirmada pelo fato de que o próprio ProcuradorGeral da República ingressou no Supremo Tribunal Federal com Ação Direta de Inconstitucionalidade do artigo 5º, tendo em vista os preceitos constitucionais existentes no artigo 1º, inciso III (dignidade da pessoa humana) e no artigo 5º "caput" (que protege o direito à vida, dentre outros). Vale dizer que até a conclusão deste trabalho a ação direta de inconstitucionalidade ainda não havia sido julgada.39 O artigo 5º da referida lei trata especificamente sobre a possibilidade de utilização células-tronco embrionárias em pesquisas e terapia quando obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento: “Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. parágrafo 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. parágrafo 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. parágrafo 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997“.

Há opiniões, como a de Martins-Costa, que discordam do tempo estipulado pelo inciso II, dizendo que não existe qualquer critério científico que embase o estabelecimento do período de três anos. Ademais, haveria ausência de critérios relativos à coleta dos embriões, deixando em aberto a questão contida no inciso I, qual seja, o reconhecimento do que são

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MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Lei de Biossegurança - Medusa Legislativa? Jornal da ADUFRGS, Porto Alegre, maio 2005. Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2007 39 ADIn nº 3.510, relator Ministro Carlos Ayres Britto, sem liminar e sem julgamento até o dia 18 de outubro de 2007. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007.

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“embriões inviáveis”.40 Relativamente ao parágrafo primeiro do mesmo artigo, a autora percebe o descuido e o modo tecnicamente impreciso de tratar questões sérias que permeia toda a lei. Diz o artigo que “é necessário o consentimento dos genitores” para a pesquisa com células-tronco embrionárias, supondo-se que os embriões têm genitores. Desta forma, poderia se ingressar num espinhoso campo jurídico, que é o de estabelecer se os embriões são ou não “pessoas”, tendo, por conseguinte, ascendentes (pai e mãe). No mesmo sentido surgem complexas questões práticas: se não se souber quem são os genitores do embrião (como ocorre nos casos de doação de gametas), ou mesmo se estes tiverem desaparecido, dissolvido o vínculo conjugal ou simplesmente abandonado os embriões, como se resolverá a questão do consentimento? Deverá ser criada uma presunção de consentimento?41 Outros autores têm, inclusive, posição mais extremada em relação à Lei de Biossegurança, chegando até mesmo a chamá-la de “Lei do Biocrime”.42 Desta forma, dizem que, no atual estágio das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, não existe nenhuma comprovação de cura com a sua utilização, como afirma Ferreira: “Ao invés, os estudos disponíveis demonstram claramente que a implantação de células-tronco embrionárias humanas gera teratomas, ou seja, tumores, podendo levar à morte. São tantos os problemas graves e não solucionados com as pesquisas de células-tronco embrionárias humanas, que elas se restringem a ratos e roedores e estão muitíssimos estágios atrás das pesquisas com células-tronco adultas, não tendo, mesmo em experiências com ratos e camundongos, alcançado qualquer resultado relatado e comprovado que aponte para efetividade de cura”.43 Em sentido oposto, existem os que defendem as pesquisas com células-tronco embrionárias (anote-se que a utilização de células-tronco adultas não geram tanta polêmica), confiando que a nova lei proporcionará um avanço considerável nas pesquisas. Defendem a posição dizendo que a lei permitirá o uso de células-tronco de embriões congelados excedentes nas clínicas de fertilização assistida, pois não serão colocados em útero, ou inviáveis, que não teriam a capacidade de se desenvolver em um feto. A chance de que um embrião excedentário se transforme em uma pessoa é ínfima, como afirmam Pereira, Pranke, e Mendez-Otero, em reportagem veiculada no jornal “O Estado de São Paulo”: “A chance de um blastócito se transformar em bebê normal é de 30% 40

MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Op cit. MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Op cit. 42 LEMES, Ana Maria Nogueira, e CREOALDI, Joaquim Donizete. Lei do Biocrime : Lei nº 11.105/2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7243. Acesso em: 4 out. 2007. 43 FERREIRA, Alice Teixeira. Células tronco: verdadeiras e falsas esperanças. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007.

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os outros 70% se perdem naturalmente. Quando ele é criado por técnicas de reprodução assistida, a possibilidade cai para menos de 1%.Não há nenhuma definição científica formal para quando começa a vida. Alguns cientistas defendem o mesmo critério para a morte, quando a atividade cerebral cessa, para definir a partir de quando um embrião deve ser visto como mais do que um punhado de células”. 44 As cientistas ajudam a amparar outros pontos da legislação. Alegam que no Brasil – na época da aprovação da lei – existiam cerca de 30 mil embriões congelados nas clínicas de fertilização assistida que não poderiam ser descartados em hipótese alguma. Opõem também a tese de que as pesquisas teriam a simples função de “exterminar” os embriões sem que haja maior apelo popular: “É errada a idéia de que cada pesquisa exigirá um ou mais embriões. Os pesquisadores usam linhagens de células-tronco embrionárias, que podem se manter indefinidamente se tratadas de forma correta. A primeira, de células-tronco embrionárias de camundongo, foi criada em 1989 e ainda existem pesquisadores que a utilizam. A primeira linhagem de células-tronco embrionárias humanas foi criada é de 1998 e também gera material para pesquisa até hoje”.45 Por fim, cabe breve comentário ao artigo 24 da Lei de Biossegurança, que prevê pena de detenção de um a três anos e multa para quem utilizar embrião humano em desacordo com o disposto no artigo 5º. Souza46 observa que a figura delitiva prevista no artigo 24 não era prevista na revogada Lei nº 8.974/1995. Contudo, esta lei incriminava “a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível” (artigo 13, III), com a exacerbada pena de reclusão de seis a vinte anos. Tendo em vista que nem mesmo os procedimentos contidos na lei têm aprovação unânime no meio jurídico e cientifico, e sansão penal visa evitar que se utilizem os embriões de outras formas que não as legalmente previstas. Ademais, o parágrafo terceiro do artigo 5º proíbe a comercialização de embriões, e diz que a sua prática implica o crime tipificado no artigo 15 da Lei nº 9.434/1997 (Lei dos Transplantes).47 Tais tipificações buscam evitar a

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PEREIRA, Lygia da Veiga; PRANKE, Patrícia Helena Lucas; MENDES-OTERO, Rosalia. Presente e Futuro das Células-tronco. O Estado de São Paulo, São Paulo, 4 mar. 2005. Lygia da Veiga Pereira é geneticista do Instituto de Biologia da Universidade de SP (USP), Patricia Helena Lucas Pranke é professora da UFRGS e da PUC/RS e presidente do Instituto de Pesquisa com Célula-tronco e Rosalia Mendez-Otero é pesquisadora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ. 45 PEREIRA, Lygia da Veiga; PRANKE, Patrícia Helena Lucas; MENDES-OTERO, Rosalia. Op cit. 46 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Direito Penal Genérico e a Lei de Biossegurança. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 21. 47 Diz o referido artigo: Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.

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“coisificação” dessas entidades biológicas humanas, bem como o assinalado pela Constituição Brasileira que veda expressamente a comercialização de “substâncias humanas para fins de transplantes, pesquisa e tratamento”.

3. O DIREITO FUNDAMENTAL DO EMBRIÃO 3.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA

Ao iniciar a análise acerca do direito fundamental à identidade genética, convém, fazer considerações acerca da existência, prima facie, ou não, de tal direito na Constituição Federal de 1988. Para tanto, toma-se como parâmetro, em primeira análise, o parágrafo 2º do seu artigo 5º: “parágrafo 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Por disposição expressa se conclui que o catalogo de direitos fundamentais contidos no artigo 5º não é exaustivo, havendo, desta forma, a possibilidade de serem identificadas e estabelecidas novas posições jurídicas fundamentais que não as positivadas, tudo por meio da denominada cláusula aberta já referida.48 Analisando posicionamentos doutrinários, Sarlet assevera que existem, além dos direitos fundamentais consagrados na carta constitucional – seja no seu catalogo de direitos fundamentais, seja em outras partes da Constituição – ou mesmo dos previstos em tratados internacionais, outros direitos fundamentais, aqueles não positivados, trata-se do sistema aberto dos direitos fundamentais.49 Na mesma seara, refere Miranda50 que há abertura na constituição51 para estes novos direitos fundamentais. O sentido material dos direitos fundamentais demonstra que o rol elencado não é taxativo, mas sim, inversamente, tem enumeração aberta que deve ser preenchida através de novas faculdades para além daquelas que se encontrem definidas ou especificadas num certo momento.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação. 48 PETTERLE, Selma Rodrigues. O Direito Fundamental à Identidade Genética na Constituição Brasileira. Porto Alegra: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 89. 49 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed.rev.atual.ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 101. 50 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3.ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2000, tomo IV, p. 162. 51 Vale dizer que a referência é em relação à Constituição Portuguesa, porém a mesma consideração é válida para Lei Maior pátria.

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Desta forma, é de fácil aferição que o sistema de direitos fundamentais está aberto. Seria no mínimo irreal imaginar que um rol previsto pelo legislador pudesse prever todos os direitos que merecem proteção constitucional, ou ainda, que a atualização deste rol pudesse ser feita de forma rápida o bastante para proteger os indivíduos. No tocante a essa abertura material, referindo especificamente sobre as novas tecnologias biomédicas, vale citar Benda: “Ao utilizar, pela primeira vez, métodos de fecundação artificial recentemente desenvolvidos e as possibilidades obtidas pela genética humana, nós enfrentamos, sem dúvida, novas idéias cuja problemática era desconhecia à época da redação da Lei Fundamental. Mesmo assim, não é possível inferir que a decisão a respeito delas não foi cogitada pelo constituinte. O mandamento de respeitar e proteger a dignidade humana se refere a qualquer forma de ameaça, independentemente se tal risco existia em 1949 ou se vislumbrava como tal. O mandamento incondicional do artigo 1.1 GG restaria enfraquecido se unicamente fosse interpretado limitadamente às ameaças perceptíveis na experiência nacional-socialista. Em uma democracia com liberdade, e sobre as égides Direito, não é concebível que sejam produzidos processos abertamente atentatórios à dignidade.” 52 Diante ao exposto, percebe-se que é necessário identificar qual o ponto de relação existente entre a dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à vida e o tema específico em questão, qual seja, a possibilidade de utilizar os embriões excedentários como material para pesquisas cientificas.53 Tendo isso explicitado, fica evidente que existem bens jurídicos fundamentais a proteger, haja vista a sua extrema relevância quando se fala no aspecto do conteúdo principalmente.54 Por outro lado, não há como negar a conjuntura fática atual: as diversas possibilidades no âmbito da manipulação genética podem facilmente configurar violação aos direitos 52

BENDA, Ernesto. Dignidad Humana y Derechos de la Personalidad, In: BENDA, Ernest; MAIHOFER, Werner; VOGEL, Hans-Jochen; HESSE, Honrad; HEYDE, Wolfgang (orgs.). Manual de Derecho Constitucional. 2.ed. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 135-136. apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op cit., p. 91. Tradução livre de: “Al utilizar métodos de fecundación artificial recientemente desarrollados por primera vez y las posibilidades logradas por la genética humana nos enfrentamos, sin duda, a nuevos planteamientos cuya problemática se desconocía al redactarse la Ley Fundamental. Pero ello no cabe inferir que la decisión al respecto no constara al constituyente. El mandato de respetar y proteger la dignidad humana se refiere a cualquier forma de amenaza, con independencia de si tal riesgo existía en 1949 o se vislumbraba como tal. El mandato incondicional del art. 1.1 GG quedaría empequeñecido, si únicamente fuera interpretable como limitado a las amenazas percibibles de la experiencia nacional-socialista. En una democracia en liberdad y bajo el Derecho no es concebible que vayan a producirse unos procesos tan abiertamente atentatorios contra la dignidad”. 53 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 91. Anote-se que a autora faz essa comparação relativa à dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à vida e o impacto das novas tecnologias genéticas sobre as pessoas. No caso, este trabalho versa especificamente sobre a problemática dos embriões excedentários. 54 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 91/92.

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fundamentais55 aqui explicitados.56 Seguinte a isso, passa a existir a necessidade de que o direito trate dessas novas problemáticas e, deste modo, deve ser viabilizada uma efetiva proteção a esses direitos agora ameaçados. De tal modo, esse questionamento faz surgir um outro problema, como aponta Petterle:57 “o embrião humano pode estar ao abrigo da clausula geral implícita que tutela todas as manifestações essenciais da personalidade humana?” Casabona58 aponta para a criação de um estatuto jurídico próprio para os embriões, de modo que possa ser preenchida a lacuna legal criada com os avanços científicos: “Diga-se: é preciso garantir ao nascituro uma proteção jurídica maior em relação a vários bens jurídicos, sobre tudo a vida e a integridade física. Isto não significa que essa proteção deva ser absoluta, sem admitir exceções, posto que estas são reconhecidas inclusive a respeito dos já nascidos. Este enfoque global e de maior proteção adota a resposta normativa que se denomina estatuto jurídico do embrião e do feto”. Continua dizendo que os exemplos existentes no direito comparado, ainda que escassos, mostram uma necessidade de mudança de perspectiva: ou eles têm “insuficiência normativa”, ou, de forma inversa, utilizam-se excessivamente do direito penal. Em síntese, estamos longe de ter critérios definidos para que a proteção jurídica do nascituro se dê de forma integral, e de abordar de forma global o tratamento jurídico do embrião in vitro perante as diversas situações em que ele pode se encontrar.59 Por fim, diz que “o direito não reconhece ao nascituro nem ao embrião in vitro a condição de pessoa nem a de sujeito de direitos e obrigações, o que ocorre depois do nascimento”.60 Afirma que se trata de uma convenção que poderia ser modificada, porém essa alteração teria um difícil encaixe tanto em relação à concepção jurídica vigente, como em relação a sua própria operatividade. Destarte, é necessário que o direito se ajuste a essas novas realidades, quais sejam, as inovações tecnológicas. De tal modo, no caso especifico, é inegável que o Brasil precisa

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PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 92. Principalmente em relação à dignidade da pessoa humana e ao direito à vida. 57 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 93. 58 CASABONA, Carlos María Romeo. Genética y derecho. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 188. Tradução livre de: “Es decir, es preciso garantizar al naciturus una protección jurídica mayor en relación con varios bienes jurídicos, sobre todo la vida y la integridad física. Esto no significa que esa protección deba ser absoluta, sin admitir excepciones, puesto que éstas son reconocidas incluso respecto de los nacidos. Este enfoque global y de mayor protección adopta la respuesta normativa que se denomina estatuto jurídico del embrión y del feto”. 59 CASABONA, Carlos María Romeo. Op cit., p. 189. 60 CASABONA, Carlos María Romeo. Op cit., p. 189. Tradução livre de: “El derecho no reconoce al nasciturus ni al embrión in vitro la condición de persona ni la de sujeto de derechos y obligaciones, lo cual ocurre después del nacimiento”. 56

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definir qual a proteção jurídica que dará a esses embriões, bem como, dizer se permitirá que sejam realizadas pesquisas e até que ponto estas podem ser feitas.61 Vale fazer breve citação da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, na qual se discute a legitimidade, ou não, da interrupção da gestação na hipótese de fetos anencefálicos. “O pedido veiculado é a interpretação conforme a Constituição das normas do Código Penal referentes a aborto, para que seja declarada sua não incidência às hipóteses de antecipação terapêutica de parto em casos de gravidez de fato anencefálico”.62 Houve um célebre caso onde uma jovem, que previamente conseguira autorização judiciária (no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) para abortar a sua filha anencéfala, teve a autorização cassada (pelo Superior Tribunal de Justiça) por meio de Habeas Corpus impetrado por terceiro em favor do nascituro. Quando a questão chegou ao plenário do Pretório Excelso, para julgamento, a criança já havia nascido à cerca de uma semana, e tinha sobrevivido aproximadamente sete minutos. No caso, o voto do Ministro Joaquim Barbosa ia de encontro ao pedido da grávida: “Ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta escolher aquilo que melhor representa os seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.” 63 Porém, devido ao falecimento da criança logo após o seu nascimento, julgou-se prejudicada a ordem, decorrente à perda de objeto. Desta forma, a ADPF nº 54 surgiu como modo de o Supremo Tribunal Federal se posicionar em relação ao tema, posicionamento este que ainda não foi tomado. Ambas as discussões, fetos anencefálicos e embriões excedentários, são totalmente independentes. Nada obstante isto, além de terem sido levadas ao Supremo Tribunal Federal em época contemporânea, existem diversas questões éticas e jurídicas que lhes são comuns, justificando que possa haver um tratamento conjunto.

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Tal definição foi a princípio dada pela nova Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), principalmente pelo seu art. 5º - vide capítulo 2.2 -, porém é prudente aguardar as analises jurisprudenciais e, mormente, o julgamento da ADIn nº 3.510. 62 BARROSO, Luís Roberto. Op cit., p. 669. Vale referir que o autor é o procurador da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde na ADPF nº 54. 63 Habeas Corpus nº 84025. A íntegra do voto está disponível em: . Acesso em: 18 out. 2007.

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Assim sendo, o próximo ponto a ser exposto será justamente a delimitação de qual seria o status jurídico do embrião.

3.2 O STATUS JURÍDICO DO EMBRIÃO HUMANO

Há de se definir quando começa a proteção jurídica da vida humana. Se levarmos em conta o posicionamento religioso, podemos nos valer da doutrina da igreja católica que afirma que a vida humana merece proteção absoluta desde o momento da concepção, havendo o repúdio de qualquer manipulação em embriões humanos.64 Analisando o ponto de vista biológico, podemos dividir as mais diversas teorias sobre o inicio da vida humana basicamente em: teoria da concepção,65 teoria da nidação66 (implantação) e teoria da formação rudimentar do sistema nervoso central.67 68 Nessa esteira, principalmente dentro do meio científico existe divergência sobre quando o fruto da concepção começa a ser considerado pessoa. Em uma ponta temos os que propugnam que desde a concepção deve se dar plena proteção jurídica ao embrião, na outra, temos quem defenda que o embrião não é pessoa e, por não ser sujeito de direitos, teria somente meros interesses a serem protegidos.69 Todos estes posicionamentos dificultam a obtenção de um parâmetro para analisar até onde as pesquisas seriam permitidas. E, se nem mesmo cientificamente temos um mínimo consenso, mais difícil seria para o direito convergir estas diferentes idéias e criar uma nova legislação que pudesse resolver a pendência.

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Diga-se aqui que todas as acepções jurídicas sobre aspectos científicos devem ser desprovidas de caráter religioso, sempre dentro da idéia que o Brasil, mesmo tendo a maioria da sua população católica, não é um estado católico. 65 Teoria por meio da qual o surgimento da vida humana se dá com a penetração do espermatozóide no óvulo. Dentro dessa teoria há quem sustente que bastaria somente a fertilização do óvulo para o começo da vida, enquanto outros afirmam que o inicio se dá apenas após a fusão dos pronúcleos do óvulo e do espermatozóide, ou seja, quando há a formação do genótipo. 66 É a teoria aceita pela “maioria das escolas médicas e jurídicas, mesmo contemporâneas, a gravidez inicia-se com a nidação, que é a implantação do zigoto (ou ovo) no útero da mulher”. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A Vida Humana Embrionária e sua Proteção Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 64. apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., P. 94, em nota de rodapé nº 268. A teoria se baseia no salto qualitativo de desenvolvimento do zigoto quando este se fixa ao útero materno. 67 Teoria que sustenta que o elemento que realmente diferencia é o surgimento dos rudimentos que serão o córtex cerebral. Diferenciação essa que se inicia por volta do 15º dia e vai até o 40º dia após a fecundação, sendo que as modificações mais significativas acontecem nos primeiros dez dias desse período. Dentro dessa teoria existem diversas correntes, que discordam quanto ao momento exato em que se dá o inicio da vida. 68 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 93/94. 69 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 94. Embora a autora não refira, existe ainda a diferenciação entre os embriões in utero e os embriões ex utero, sendo que parte da doutrina diz que os segundos não seriam merecedores da dignidade humana por lhes faltar real expectativa de nascimento.

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Em estudo comparado, podemos analisar o caso da Alemanha. O país é um dos precursores no trato dos assuntos relacionados a embriões e engenharia genética, mas nem por isso, a legislação deixa de ter pontos controversos. É o caso da contradição entre a Lei de Proteção ao Embrião (1990) e a Lei de CélulasTronco (2002). Se uma proíbe a geração de embriões, no território alemão, para fins de pesquisa, a outra permite a importação de células-tronco embrionárias para pesquisa cientifica, como afirma Silva: “Vale a pena discorrer um pouco mais sobre a contradição legislativa no caso da Alemanha, tendo em vista a recente aprovação da Lei de célulastronco, em 28 de junho de 2002, doze anos após a aprovação da Lei de proteção dos embriões. Aludida legislação, composta de dezesseis parágrafos, inicia-se com as seguintes advertências: ‘tendo presente a obrigação do Estado de respeitar e proteger a dignidade humana e o direito à vida, assim como de garantir a liberdade de investigação, a finalidade da lei é: 1. proibir, como princípio geral, a importação e a utilização de células-tronco embrionárias; 2. evitar que se dê origem a embriões para obter dos mesmos células-tronco; 3. fixar os requisitos mediante os quais se permitirá, de forma excepcional, a importação e a utilização de células-tronco embrionárias para fins investigativos’. Em outras palavras, a Lei de células-tronco nem precisa ser confrontada com a Lei de proteção dos embriões, de 1990, para evidenciar as suas contradições. Seus parágrafos 1º e 4º, ao mesmo tempo que proíbem a importação e a utilização de células-tronco embrionárias, autorizam, em caráter excepcional, a importação e a utilização de células-tronco embrionárias. E o dito caráter excepcional nada mais é do que o interesse investigativo, conforme se infere do seu parágrafo 5º”. 70 Discute-se também a condição jurídica do nascituro, havendo destaque de três correntes acerca do tema:71 (a) para a doutrina natalista, embora o nascituro esteja sobre proteção legal, ele não é pessoa, visto que a personalidade só tem início após o nascimento com vida, ou seja, a personalidade está a sob condição suspensiva de nascer com vida; (b) a doutrina da personalidade condicional defende que a personalidade se inicia com a concepção, entretanto, com a condição, resolutiva, do nascimento com vida; e (c) a doutrina concepcionalista, que sustenta que a personalidade se inicia a partir da concepção e, desta forma, o simples fato de o nascituro ter sido concebido e estar em desenvolvimento no ventre materno já basta para que ele seja considerado pessoa. 70

SILVA, Reinaldo Pereira e. Biodireito: a Nova Fronteira do Direitos Humanos. São Paulo: LTr, 2003, p. 49. Apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 96. 71 MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A Vida Humana Embrionária e sua Proteção Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 52 e 59. apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 97

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Se já não bastasse essa diferença doutrinaria, o surgimento da fecundação extra-uterina fez com que se acrescentasse a discussão a questão do status jurídico dos embriões in vitro, haja vista, que num enfoque civilista clássico, não é possível encontrar um enquadramento legal aos mesmos.72 Sendo assim, veja-se o que diz Petterle em relação à posição de Meirelles: “Nesse sentido, Meirelles aponta que o embrião in vitro não é prole eventual (prole não concebida), não é nascituro (ser concebido no ventre materno) e não é pessoa natural, exatamente porque sua realidade é outra: já está concebido, tem vida, tem seus elementos genéticos próprios, e, se não for implantado no útero, restará a deriva, aguardando a decisão de um terceiro quanto a sua sorte. O novo fenômeno da concepção extra-uterina, portanto, está a merecer tratamento de legislação específica.” 73 Relativo a este tema, tramitam no Congresso Nacional três propostas de Emenda à Constituição e dois projetos de lei: a PEC 571/2002, a PEC 62/2005, a PEC 408/2005, o PL 6150/2005, que dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências, e o PL 6465/2005, Projeto de Lei de Declaração dos Direitos do Nascituro.74 75 Souza76 se refere ao Conselho da Europa, que em sua Recomendação 1.046, de 1986, considera que o embrião e o feto humanos devem beneficiar-se em todas as circunstâncias do respeito devido à dignidade humana (artigo 10). Reconhece também o órgão, expressamente: “a necessidade de estabelecer um equilíbrio entre o princípio da liberdade de investigação e o respeito à dignidade humana inerente a toda vida, assim como os restantes aspectos da proteção dos direito humanos” (artigo 15). Por fim, Souza77 utiliza-se da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (UNESCO, 1997).78 Em seu artigo 15,79 ela visa incentivar os Estados a

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PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 97. PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 97. A autora refere a idéia à: MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A Vida Humana Embrionária e sua Proteção Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 56 e 84. 74 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 99/100. A autora faz um apanhado dessas legislações, explicita o que cada uma delas prevê e as situa (demonstrando como está processo legislativo de cada uma). 75 Mais detalhes sobre o tramite e a atual situação das proposições legais podem ser obtidos no site da Câmara dos Deputados: http://www2.camara.gov.br/proposicoes. 76 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2004, p. 240. 77 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Op cit., p. 242. 78 A Declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos está disponível em: . Acesso em: 10 set. 2007. 79 Não somente o artigo 15 como também os artigos 13, 14 e 16, que compõe o mesmo capítulo: “CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DE ATIVIDADES CIENTÍFICAS”. 73

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promover legislações que regulem as pesquisas no âmbito da pesquisa genética, para que está não seja feita de forma a atentar contra os princípios antes citados.80 Nessa esteira, Andorno81 diz que o debate quanto ao status jurídico do embrião é interminável, mas deve o direito determinar como o embrião deve ser tratado, ou seja, não pode mais ficar discutindo o que o embrião é ou não é. Por fim, fazendo uso do princípio do in dúbio pro vita, diz que, no que refere aos embriões, “enquanto não se prova que ele é uma coisa (o embrião), devemos presumir que ele é uma pessoa”.82 Oposto é o posicionamento de Merkel.83 Ele não vê motivos morais para que se reconheça ao embrião o direito à vida e uma dignidade humana, dizendo que o simples fato de pertencer à espécie homo sapiens não protege a vida do embrião, o que afirma ser uma falácia naturalista. Petterle segue explicitando o pensamento de Merkel, no que tange a possível dignidade dos embriões: “Ademais, (Merkel) acrescenta que não é possível observar autonomia e auto-determinação no embrião. Rechaça o argumento da continuidade do processo de desenvolvimento humano, que não admitiria cortes bruscos. Afirma que tal argumento é inválido porque não significa que não possamos realizar cortes necessários, e desejáveis, em determinadas situações. Que razão existiria para proteger qualidades futuras de um ser ainda inexistente? Seu último argumento: a identidade do embrião não se confunde com a identidade do ser humano nascido. Conclui que os embriões não são sujeitos de direitos, que podem e devem ser produzidos e utilizados em pesquisas, eis que os fins são nobres e plenamente aceitáveis, não havendo nada de condenável, argumentos que valem também para a clonagem terapêutica, especialmente porque será a forma de solucionar problemas nos transplantes.” 84 A tese de Merkel é de que há uma série de ações que não são condenáveis, são, inclusive, justificáveis em função dos interesses e necessidades da coletividade, o que é moralmente razoável, e não utilitarista. Há, portanto, um dever de ajudar milhões de pessoas e, desta forma, as pesquisas devem não só ser permitidas, como também devem realmente ser feitas.85

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Refere-se aos princípios elencados no artigo 10. ANDORNO, Roberto. La Bioéthique et la Dignité de la Personne. Collection Médecine et Société. Paris: Presse Universitaires de France, 1997, p. 74. Apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 100. 82 Tradução livre de: “(...) tant qu’on ne prouve pas qu’il est une chose, on doit présumer qu’il est une personne”. 83 MERKEL, Reinhard. Recht für Embryonen: In: GEYER, Christian (Org.). Biopolitik. Die Positionen. Frankfurt am Main: Edition Suhrkamp, 2001. Tradução não publicada de Rita Dostal Zanini, Mestranda em Instituições de Direito do Estado, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 101. 84 PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 101. 85 MERKEL, Reinhard. Recht für Embryonen: In: GEYER, Christian (Org.). Biopolitik. Die Positionen. Frankfurt am Main: Edition Suhrkamp, 2001. Tradução não publicada de Rita Dostal Zanini, Mestranda em 81

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Casabona86 afirma que existem diversos níveis de proteção que podem ser dados ao embrião. Podemos identificar como momento que merece a máxima proteção o da viabilidade extra-uterina, a partir do qual, o feto é capaz de continuar o seu processo vital sem a ajuda da mãe. Por conseguinte, o momento da nidação representa também um ponto decisivo nas primeiras fases, desde que confirmada a concepção. Em um terceiro nível valorativo, o autor situa o embrião viável, aquele que se encontra no útero materno – logo tem condições de continuar o processo de desenvolvimento biológico de forma natural –, porém ainda não se fixou nele. Dentro do quarto patamar, Casabona87 insere os embriões viáveis produzidos in vitro: “A continuação se situa no embrião obtido com o concurso de técnicas humanas, ou seja, o embrião in vitro viável antes de ser transferido a uma mulher, pois somente este ato de transferência, que requer a utilização de determinados procedimentos técnicos, poderá permitir a esse embrião que dê início ao seu desenvolvimento vital. Não obstante, já se indicou como também o embrião in vitro supõe uma forma de vida humana e, sobretudo, pode dar lugar ao nascimento de um ser humano, motivo pela qual estas propriedades não devem ser abandonadas”. Em um plano inferior, o autor diz que deve se situar o embrião não viável, ou seja, o que é incapaz de se desenvolver por apresentar anomalias incompatíveis com a vida. Em ordem decrescente seriam: o embrião in utero, o embrião (ou feto) ex utero e o embrião (ou zigoto) in vitro. Por último, não são suscetíveis de projetar um valor digno de proteção jurídica o embrião e o feto morto.88 Desta feita, excluindo os embriões já mortos, que nem sequer mereceriam proteção jurídica, os embriões in vitro inviáveis89 são aqueles que deveriam ter menor grau de proteção jurídica quando comparados com embriões em outras fases de desenvolvimento.

Instituições de Direito do Estado, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Apud PETTERLE, Selma Rodrigues. Op. cit., p. 101. 86 CASABONA, Carlos María Romeo. Genética y derecho. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 192/193. 87 CASABONA, Carlos María Romeo. Op cit., p. 193. Tradução livre de: “A continuación se sitúa el embrión obtenido con el concurso de técnicas humanas, es decir, el embrión in vitro viable antes de ser transferido a una mujer, pues sólo este acto de transferencia, que requiere asimismo la utilización de determinados procedimientos técnicos, podrá permitir a ese embrión que dé inicio a su desarrollo vital. No obstante, ya se indicó cómo también el embrión in vitro supone una forma de vida humana y, sobre todo, puede dar lugar al nacimiento de un ser humano, por lo que estas propiedades no deben ser desatendidas”. 88 CASABONA, Carlos María Romeo. Op cit., p. 193. 89 Utilizando-se aqui o termo referido pelo inciso I, do artigo 5º, da Lei de Biossegurança, que vem ao encontro da classificação proposta por Casabona.

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Tomemos, por fim, as conclusões observadas por Velazquez90 após analisar as célulastronco embrionárias: “(1) É necessário desvincular a investigação com células-tronco embrionárias da reprodução assistida, e a examinar à luz do que se tem chamado de ‘medicina regenerativa’. (2) A aceitação ou a negação da experimentação com embriões tem que estar baseada em razoes apoiadas nos acontecimentos concretos, e não em dogmas religiosos, buscando determinar as condições de sua realização. (3) A importância da investigação com células-tronco se consolida em dois pontos. Por um lado, no valor para desenvolver novas técnicas terapêuticas a partir do isolamento, cultivo e transferência. E por outro lado, no valor que terão para progredir o conhecimento científico. (4) Uma normatização legal restritiva, como a que existe na Espanha, ou ainda, como a que avaliza a União Européia, põe em perigo o desenvolvimento das pesquisas e lesiona os interesses de muitas pessoas existentes que sofrem de doenças graves.”

3.3 A DIGNIDADE DO EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO

No campo fático, temos no Brasil o seguinte dilema: o artigo 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11,105/2005) permitiu as pesquisas com células-tronco embrionárias advindas dos embriões produzidos por fertilização in vitro.91 Contra o artigo, foi impetrada ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria Geral da República.92 Para que não se tenha dúvida da complexidade do assunto, vale referir o que disse o relator da ação, o Ministro do STF, Carlos Ayres Britto: “Temos pontos de vista bem fundamentados, nem sempre você decide entre o gritantemente certo e o salientemente errado. As opções não são assim. Às vezes você tem que decidir entre o certo e o certo; em outras vezes, você tem que decidir entre o certo aparente e o certo aparente”.93 90

VELÁZQUEZ, José Luis. Del homo al embrión : Ética y biología para el siglo XXI. Barcelona: Gedisa Editorial, 2003, p. 111. Tradução livre de: “1. Es necesario desvincular la investigación con células troncales embrionarias de la reproducción asistida y examinarla a la luz de lo que se ha llamado la ‘medicina regenerativa’. 2. La aceptación o el rechazo de la experimentación con embriones tiene que estar basado en razones apoyadas en los hechos, y no en dogmas religiosos, con el fin de determinar las condiciones de realización. 3. La importancia de la investigación con células troncales radica en dos puntos. Por un lado, en el valor para desarrollar nuevas técnicas terapéuticas a partir del aislamiento, cultivo y transferencia. Y por otro lado, en el valor que tendrán para progresar en el conocimiento científico. 4. Una normativa legal restrictiva como la que existe en España o como la que avala la Unión Europea pone en peligro el desarrollo de la investigación y lesiona los intereses de muchas personas existentes que sufren graves enfermedades”. 91 Ver capítulo 2, item 2.2, no que diz respeito à nova Lei de Biossegurança. 92 ADIn nº 3510. Vale lembrar que a referida ADIn ainda não foi julgada. 93 Audiência pública realizada no auditório do STF no dia 20/04/2007, onde por mais de dez horas foram ouvidos especialistas favoráveis e contrários às pesquisas.

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Levando a questão à vista da filosofia, cabe citar o que diz Alexy94 sobre o método de ponderação e valoração de princípios, não apenas de forma abstrata, mas sim objetivando a concretização dos preceitos constitucionais por meio da proporcionalidade: “Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Uma das teses fundamentais expostas na Teoria dos direitos fundamentais, é que essa definição implica no princípio da proporcionalidade com seus três subprincípios: idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, e vice-versa: que o caráter de princípios dos direitos fundamentais é seguido, logicamente, pelo princípio da personalidade”. Desta forma, no caso concreto temos a ponderação entre dois diferentes direitos à vida: o potencial direito à vida que tem o embrião, e o direito dos pacientes em tratamento de tentar preservar sua vida. Assim, a ofensa a “vida” do embrião só poderia ser legitimada quando comparada com outro direito à vida. Cabe tecer um paralelo com o caso da legítima defesa,95 razão que pode ponderar o direito à vida, porém, dentro da proporcionalidade, sempre respeitando as suas peculiaridades.96 97 Haja vista a remota chance de sobrevivência destes embriões (os tratados pelo artigo 5º da Lei de Biossegurança), não parece ser ilegítima a possibilidade do uso das suas célulastronco, ainda mais quando colocada a serviço do tratamento de diversos tipos de doenças.98 O ponto nevrálgico da discussão não parece, então, ser a definição de quando começa a vida, se na fecundação – até certo ponto banalizada pela indústria da fecundação in vitro –,ou se no nascimento, ao respirar,99 mas sim até que ponto vale preservar a ínfima probabilidade de vida

94

ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Colegio de Registradores de la Propriedad, Mercantiles y Bienes Muebles de España, 2004, p. 38. Tradução livre de: “Los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, de acuerdo con las posibilidades fácticas y jurídicas. Una de las tesis fundamentales expuestas en la Teoría de los derechos fundamentales, es que esa definición implica el principio de proporcionalidad con sus tres subprincipios: idoneidad, necesidad y proporcionalidad en sentido estricto, y viceversa: que el carácter de principios de los derechos fundamentales se sigue lógicamente del principio de personalidad”. 95 Artigo 23, inciso II, do Código Penal Brasileiro. 96 BORGONOVI, Frederico Poles. Quando começa a vida? Biossegurança e a vida dos embriões humanos. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007. 97 Poderia aqui se referir também às permissões ao aborto contidas no artigo 128, incisos I e II, do Código Penal, porém cabe dizer que alguns autores propugnam que tais concessões não teriam sido recepcionadas pela nova ordem constitucional brasileira. 98 BARROSO, Luís Roberto. Op cit., p. 674. O autor refere: “Dentre as patologias cuja cura pode resultar das pesquisas com células embrionárias, podem ser citadas, por exemplo: as atrofias espinhais progressivas, as distrofias musculares, as ataxias, a esclerose lateral amiotrófica, a esclerose múltipla, as neuropatias e as doenças de neurônio motor, o diabetes, o mal de Parkinson, síndromes diversas (como as mucopolisacaridoses ou outros erros inatos do metabolismo etc.)”. 99 Referindo aqui apenas as duas teorias que retratam os dois extremos das posições sobre quando começa a vida humana.

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deste embrião in vitro, sacrificando uma possibilidade de cura para milhares, senão milhões, de vidas já formadas.100 De outro modo, pode-se também ser feita analogia entre a artigo 5º da Lei de Biossegurança e a Lei de Transplantes de Órgãos (Lei nº 9.434/1997). Tal Lei, no seu artigo 3º estabelece as condições necessárias para que possa ser feito um transplante de órgão de pessoa morta: “Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”. Assim, a Lei de Transplantes entende por pessoa morta aquela que tenha sido vítima de morte encefálica, cuja caracterização, segundo o Conselho Federal de Medicina, é a presença de coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal, apnéia e falta de atividade metabólica, elétrica e perfusão sanguínea no cérebro.101 Desta

forma,

cabe

expor

a

posição

de

Marques102

sobre

a

possível

inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança: “Ora, se não há vida quando a pessoa é considerada morta, e se esta condição ocorre uma vez existentes as circunstâncias apontadas na Resolução nº 1.480/97, então é forçoso concluir que, para haver vida é necessária a reunião das condições apontadas na Resolução nº 1.480/97, a saber: atividade motora supra-espinal, movimentos respiratórios, atividade metabólica, elétrica e perfusão sanguínea no cérebro. Se ausentes tais condições, “verbi gratia” como no caso dos embriões excedentes, inviáveis, e congelados há pelo menos 3 anos, concluímos não haver vida nessa hipótese. E se não há vida, do ponto de vista da Lei nº 9.434/97 porque haveria em se tratando da Lei nº 11.105/05? Afinal, vida é vida, seja ela prevista na Lei de Transplantes seja na Lei de Biossegurança. Por conseguinte, se não há vida no embrião objeto das pesquisas com células-tronco, pergunta-se onde estaria a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança?” A mesma opinião compartilha Barroso: “A equiparação do embrião a um ser humano, em sua totalidade corporal e espiritual, não é compatível com o direito brasileiro que já se encontrava em vigor antes mesmo da Lei de Biossegurança. A Lei de Transplante de Órgãos, 100

BORGONOVI, Frederico Poles. Op cit. Parâmetros estabelecidos pelos artigos 4º e 6º da Resolução nº 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina. 102 MARQUES, Erickson Gavazza. É constitucional pesquisar células-tronco a partir de embriões? Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007. Marques é advogado especialista em Bioética e Biodireito e Presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/SP. 101

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por exemplo, somente autoriza o procedimento respectivo após o diagnóstico de morte encefálica, momento a partir do qual cessa a atividade nervosa. Se a vida humana se extingue, para a legislação vigente, quando o sistema nervoso pára de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se formasse, ou, pelo menos, começasse a se formar. E isso ocorre por volta do 14º dia após a fecundação, com a formação da chamada placa neural”. 103 Em última análise, em praticamente todos os processos de fertilização in vitro existem embriões que não são inseminados e estes embriões excedentários ficam em estado de criogenia em alguma clínica médica por tempo indeterminado. Somado a isso, temos a pequena probabilidade de que um embrião congelado possa se fixar no útero e se desenvolva de forma sadia.104 Não seria melhor que esses embriões excedentários fossem utilizados em pesquisas? Diante da atual circunstância, onde existem embriões congelados sem destinação alguma, seria preferível, inclusive do ponto de vista ético, que fossem realizadas pesquisas ao invés de serem descartados pura e simplesmente.105 Com esse procedimento, estaríamos dando uma destinação mais nobre a esses embriões do que se os mesmos fossem descartados.106

CONCLUSÃO

A dignidade da pessoa humana tem sido positivada em diversas Constituições ao redor do mundo. O movimento surgido no período posterior a Segunda Guerra Mundial, e visto em maior grau nas últimas décadas, busca resgatar valores reconhecendo normatividade aos princípios e proliferando os direitos fundamentais. Tal princípio foi elevado à posição de princípio fundamental na nossa Constituição e, por tal razão, serve como fundamento para todo o sistema constitucional positivado. Nesse sentido, ele é a derradeira estrutura de proteção aos direitos individuais, devendo sempre ser considerado nos atos de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas. Outra questão importante a ser tratar são as inovações tecnológicas. Elas têm trazido, aqui se trata do campo biomédico, possibilidades nunca antes imaginadas pelo direito e, em razão disso, desprovidas de proteção legal. Assim sendo, o direito deve tentar se adequar às novas proposições, buscando sempre encampar as possíveis conseqüências. 103

BARROSO, Luís Roberto. Op cit., p. 691/692. Vide capítulo 2.2. 105 MARQUES, Erickson Gavazza. Op cit. 106 BARROSO, Luís Roberto. Op cit., p. 696. 104

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Nessa esteira, a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) admite, em seu artigo 5º, a utilização de células-tronco embrionárias, para fins de pesquisa e terapia, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e que não foram transferidos para o organismo materno, desde que atendidas algumas condições. Essa técnica, nominada de fertilização in vitro, é um método de reprodução assistida, que visa superar a dificuldade ou impossibilidade de certos casais de gerar descendentes pelo método natural. O procedimento consiste na retirada de diversos óvulos simultaneamente, evitando, assim, a necessidade de submeter a paciente a um procedimento de estimulação da ovulação e aspiração folicular a cada tentativa de fecundação e desenvolvimento do embrião. Para que o método atinja o seu fim, é necessário, na maioria das vezes, que mais de um embrião seja inseminado, haja vista que a probabilidade de sucesso é proporcional ao número de embriões transferidos.107 Na continuidade do processo, os embriões excedentes são congelados. Discute-se, deste modo, se deve se permitir a utilização das células-tronco destes embriões para fins de experimentação científica, tema que o presente trabalho tentou abordar. O principal argumento contrário à utilização de células-tronco funda-se no pressuposto de que a vida teria início na fecundação e, assim, a destruição desses embriões, mesmo que para a realização de pesquisas e para o tratamento de outras pessoas, representaria uma violação da vida. Em contrapartida, muitos autores analisam que este embrião in vitro, inclusive, não é nem pessoa nem nascituro. Partem do argumento que nunca o direito brasileiro (antes do advento da nova Lei de Biossegurança) sequer havia previsto a possibilidade de um embrião, antes da gravidez, restar ex utero, e que não seria compatível comparar esse embrião à um sujeito merecedor da dignidade humana (não havendo pessoa, não há dignidade humana). A contra-senso, pode ser utilizada a Lei nº 9.434/1997, que somente autoriza o transplante de órgãos após o diagnóstico de morte encefálica, momento a partir do qual cessa a atividade nervosa. Ora, se a vida humana se extingue quando o sistema nervoso pára de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se formasse, ou, pelo menos, começasse a se formar, fato que ocorre por volta do 14º dia após a fecundação. Desta forma, as pessoas que vêem como inconstitucional o artigo 5º da Lei de Biossegurança deveriam discutir, em primeiro plano, a legalidade da fertilização in vitro, haja vista que as pesquisas só são permitidas com os embriões que “sobram” desses

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Vale dizer que a Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina considerou que o numero ideal de pré-embriões a serem transferidos não deve ser superior a quatro (inciso I, 6), e, na prática, tem se recomendado a transferência de apenas dois embriões. Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2007.

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procedimentos. Ou seja, enquanto não se chegar a uma máxima tecnologia neste âmbito, continuarão a existir embriões excedentários. Desta maneira, por fim, é possível afirmar que é mais nobre utilizar os embriões excedentários para promover a vida e a saúde de outras pessoas, do que simplesmente descartá-los. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios - Colegio de Registradores de la Propriedad, Mercantiles y Bienes Muebles de España, 2004. BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil: anotada. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 2003. ______. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (Coords). Direitos Fundamentais: Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ______. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed.atual. São Paulo: Malheiros, 2005. BORGONOVI, Frederico Poles. Quando começa a vida? Biossegurança e a vida dos embriões humanos. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos Sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 2004. CASABONA, Carlos María Romeo. Genética y derecho. Buenos Aires: Astrea, 2003. DWORKIN, Ronald. El domínio de la vida : Una discusión acerca Del aborto, la eutanasia y la libertad individual. Barcelona: Ariel, 1998. FERREIRA, Alice Teixeira. Células tronco : verdadeiras e falsas esperanças. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007. LEMES, Ana Maria Nogueira, e CREOALDI, Joaquim Donizete. Lei do Biocrime : Lei nº 11.105/2005. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007. LIMA NETO, Francisco Vieira. Responsabilidade civil das empresas de engenharia genética : em busca de um paradigma bioético no direito civil. Leme : LED, 1997. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na constituição federal de 1988. São Paulo : Método, 2004. MARQUES, Erickson Gavazza. É constitucional pesquisar células-tronco a partir de embriões? Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2007. MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Lei de Biossegurança Medusa Legislativa? Jornal da ADUFRGS, Porto Alegre, maio 2005. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3.ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2000, tomo IV. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2004. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade humana. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2007. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. PEREIRA, Lygia da Veiga; PRANKE, Patrícia Helena Lucas; MENDES-OTERO, Rosalia. Presente e Futuro das Células-tronco. O Estado de São Paulo, São Paulo, 4 mar. 2005. PETTERLE, Selma Rodrigues. O Direito Fundamental à Identidade Genética na Constituição Brasileira. Porto Alegra: Livraria do Advogado Editora, 2007. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (coord.). O direito a vida digna. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed.rev.atual.ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

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