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À PROMOTORIA DE DIREITOS HUMANOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DE SÃO PAULO
Ref. IC 14.725.597/2016
ARTIGO 19 BRASIL, associação civil sem fins lucrativos, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas/MF sob o nº 10.435.847/0001-52, com sede na Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – CEP: 01050-020 – Centro – São Paulo – SP, vem apresentar NOTA TÉCNICA sobre atividade policial frente a comunicadores em contexto de manifestações sociais.
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A. A ORGANIZAÇÃO A ARTIGO 19 é uma organização de direitos humanos, fundada em Londres em 1987, e especializada em liberdade de expressão e acesso à informação pública. No Brasil, a ARTIGO 19 atua desde 2007 e desde então vem se destacando por impulsionar diferentes pautas relacionadas à liberdade de expressão, dentre as quais estão o combate às violações ao direito de protesto e aos direitos dos comunicadores e defensores de direitos humanos, a implementação da Lei de Acesso à Informação, a construção e defesa do Marco Civil da Internet, entre outros temas.1
B. INTRODUÇÃO A iniciativa da presente nota técnica tem como objetivo a apresentação de um panorama das violações cometidas contra comunicadores no contexto de protestos sociais no país, bem como a sugestão fundamentada de uma série de parâmetros da atuação policial neste contexto, com base em padrões internacionais sobre o tema. O trabalho dos comunicadores, grupo que inclui jornalistas, radialistas, blogueiros, midiativistas2, etc. é essencial para a consolidação de regimes democráticos, na medida em que contribui para o livre fluxo de informações e ideias, o que permite que cidadãos e cidadãs tomem decisões fundamentadas e posicionem-se sobre os rumos de suas comunidades. Uma face perversa dessa importância revela-se no alto número de graves violações de direitos humanos contra comunicadores, geralmente perpetradas por indivíduos ou grupos que não têm interesse na divulgação de denúncias ou críticas de interesse público. Entre 2012 e 2015, a ARTIGO 19 contabilizou 121 casos de graves violações contra comunicadores, incluindo homicídios, tentativas de assassinato, ameaças de morte e sequestro. Apenas em 2016 já foram reportados 5 casos de assassinato que estão sendo apurados.
1
Mais informações podem ser acessadas no site da organização: http://artigo19.org/
2 Esta categoria inclui ''repórteres e analistas profissionais, bem como blogueiros e quaisquer outros envolvidos em formas de autopublicação na imprensa ou internet'', segundo definição do ''Comentário geral nº 34 do Artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos'' (http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrc/docs/gc34.pdf). Os Indicadores de Segurança de Jornalistas, da UNESCO, contam, ainda, com a categoria de ''jornalistas cidadãos'', isto é, usuários de mídias sociais e veículos digitais que produzem, selecionam ou distribuem volumes significativos de conteúdo de interesse público. __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 2 de 13
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Para além deste cenário emblemático, um dos contextos em que os comunicadores atuam e no qual também são vítimas é o de manifestações sociais, em que cobrem o conteúdo das reivindicações populares e registram a ocorrência de violações de uma série de direitos. 3 Como bem se sabe, o cenário geral de protestos nos últimos anos tem se revelado extremamente violento e marcado, por exemplo, pelo uso indiscriminado de armas menos letais, responsável por uma larga escala de ferimentos. Não só os comunicadores presentes em protestos não estão livres destas violações, como muitas vezes são alvos diretos delas. Nesse sentido, há relatos e registros que atestam a recorrência de agressões contra jornalistas, fotógrafos e midiativistas motivadas por sua atividade de cobertura dos protestos. Também se tem notícia de diversas detenções arbitrárias, apreensão e quebra de equipamentos, dentre outras violações. Em levantamento recente4, a ARTIGO 19 identificou um total de 93 violações contra comunicadores em protestos entre julho de 2015 e agosto de 2016, dentre agressões físicas (62), apreensão/dano a equipamentos (8), e detenções (12). Diante deste contexto de perigosas ameaças à liberdade de expressão e direito à informação e da especificidade do papel social exercido pelos comunicadores, impõe-se a criação de medidas específicas de proteção, em especial no que concerne à prática policial em protestos. Uma mudança necessária, como apontam diversos documentos internacionais5, é a existência de normas de atuação que balizem as práticas policiais e imponham a elas limites claros6. A presente Nota Técnica apresenta entendimentos internacionais sobre a necessidade de padrões de conduta policial em protestos, principalmente quanto ao uso da força, com os parâmetros existentes acerca da proteção especial designada a comunicadores em contextos considerados perigosos.
3 Para informações mais detalhadas, ver a seção ''Comunicadores'' do relatório ''As Ruas Sob Ataque – Protestos 2014 e 2015'' da ARTIGO 19 Brasil, disponível no link:
4
Os dados são provenientes de monitoramento não-exaustivo que dará base a relatório da ARTIGO 19 a ser lançado em fevereiro de
2017.
5
Em relação ao uso da força, o Informe Geral da Comissão Interamericana de Direitos Humanos dita: ''Os princípios gerais sobre o uso da força, aplicados ao contexto de protestos e manifestações, requer que a gestão das operações de segurança seja planejada de forma cuidadosa e minuciosa por pessoas com experiência e capacitação específicas para este tipo de situação e a partir de protocolos de atuação claros''. Disponível no link:http://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2015/doc-es/InformeAnual2015-cap4A-fuerza-ES.pdf; http://www.amnesty.nl/sites/default/files/public/amnesty_use_of_force_final_web_0.pdf
6 Trata-se de decorrência da exigência, presente, por exemplo, no art 21 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, segundo a qual quaisquer restrições ao direito de livre manifestação devem responder aos princípios da legalidade e necessidade. Disponível no link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 3 de 13
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C. RECOMENDAÇÕES Como anteriormente defendido, os comunicadores exercem um papel essencial nos regimes democráticos e na promoção dos direitos humanos, de forma que é consolidado que merecem atenção especial do Estado e de outros atores para que possam exercer suas atividades de forma segura. Tal necessidade decorre também do fato de que os comunicadores estão constantemente sujeitos a violações que, embora frequentes contra manifestantes, em geral, têm motivações específicas ligadas ao exercício de sua atividade. Nesse sentido, quanto à atividade de comunicadores em manifestações, ONU e OEA emitiram um Comunicado Conjunto em que afirmam que ''o Estado tem o dever de garantir que jornalistas e comunicadores que se encontrem realizando seu trabalho informativo no marco de uma manifestação pública não sejam detidos, ameaçados, agredidos ou limitados de qualquer forma em seus direitos por estarem exercendo sua profissão''.7 Para além dos tipos de abusos corriqueiros em manifestações a que estão sujeitos os comunicadores, há um rol específico de violações que dizem respeito diretamente ao exercício da atividade informacional. Trata-se, por exemplo, da inviabilização, por vários meios, de que se coletem imagens e informações em protestos, ou que os registros realizados sejam preservados e, eventualmente, divulgados ao público. Um outro elemento relevante que alimenta o contexto de violações a comunicadores em protestos é a ausência de responsabilização e de transparência quanto aos dados relativos a estas violações. O Comunicado Conjunto sobre violência contra jornalistas e comunicadores no marco das manifestações enfatiza que ''é fundamental que as autoridades condenem energicamente agressões contra jornalistas e comunicadores e atuem com a devida diligência e celeridade no esclarecimento dos ocorridos e futura responsabilização''.8 Em relação ao segundo aspecto mencionado pelo Comunicado Conjunto, da accountability, a Anistia Internacional, em documento acerca dos Princípios sobre Uso da Força, afirma que ''um sistema efetivo de accountability deve basear uma abordagem de ''lição aprendida'' que permita a melhoria de todo o funcionamento da estrutura de segurança pública, assim como suas políticas e regulações.''9
7
Disponível no link: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=931&lID=2
8
Disponível no link: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=931&lID=2
9
Disponível no link: http://www.amnestyusa.org/sites/default/files/amnesty_international_guidelines_on_use_of_force-2.pdf __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 4 de 13
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A partir disso, é importante reafirmar a imprescindibilidade de que todos os mecanismos de investigação e responsabilização existentes sejam abertos e efetivos para os comunicadores, bem como que se criem novos instrumentos de promoção de transparência nesse contexto. Percorrido o breve percurso de constatação acerca da persistência dos problemas enfrentados pelos comunicadores dentro do complexo cenário de manifestações, ARTIGO 19 defende a existência de medidas concretas de atuação que devem ser tomadas pelas forças policiais para interromper este grave ciclo de violações.
1. Medidas contra agressões. Deve-se garantir, a todo tempo, a integridade física e psicológica dos comunicadores durante a cobertura de manifestações. Comunicadores têm sido vítimas de diversos tipos de agressões em protestos, provenientes de contato direto (socos, pontapés, golpes de cassetete) e também uso indiscriminado de armamento menos letal (balas de borracha, gás lacrimogêneo, spray de pimenta)10. Considerando as graves consequências deste cenário para o exercício de direitos fundamentais, assim como sua ocorrência reiterada em diversos países, o uso da força em manifestações tornou-se matéria amplamente discutida em âmbito internacional e gerou uma série de entendimentos, já consolidados. A premissa geral é de que o uso da força só pode ser empreendido se em plena conformidade com os direitos humanos, e sempre como último recurso, a partir de uma análise rigorosa de legalidade, necessidade e proporcionalidade.
11
Além disso, é pacífico que uma manifestação jamais pode ser dispersada devido à
10
Exemplos podem ser conferidos nos links: http://www.ebc.com.br/esportes/copa/2014/07/copa-teve-media-de-um-jornalista-agredidopor-dia-pela-policia-militar;http://www.valor.com.br/politica/3425272/mais-de-cem-jornalistas-foram-agredidos-em-protestos-em-2013
11 Tal entendimento pode ser encontrado no documento da ONU ''Basic Principles on the Use of Force and Firearms by Law Enforcement Officials'' e divide-se em três aspectos: legalidade (o poder de usar a força deve ser previsto em lei), necessidade (a situação exige o uso mínimo da força pois outras medidas menos gravosas já foram esgotadas) e proporcionalidade (proibição de dano excessivo). Disponível no link: http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/UseOfForceAndFirearms.aspx __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 5 de 13
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existência de ''focos de violência'' e que, mesmo que haja violência considerada generalizada, o uso da força deve sempre ser proporcional.12 Disso decorre que, em se tratando de comunicadores, que exercem um direito fundamental próprio e facilitam o exercício do direito à informação da sociedade, em geral, não se vislumbra hipótese em que o uso da força, e em especial de armamento menos letal, seja justificado, uma vez que não se perfazem os requisitos exigidos (legítima defesa das forças policiais e terceiros ou violência generalizada e esgotamento de todas as medidas alternativas). Ainda, mesmo na hipótese última de legitimidade em relação ao uso de armas menos letais (como munição de borracha e gás lacrimogêneo, por exemplo), os padrões internacionais apontam a necessidade de estrita regulação e, inclusive, proibições em determinados casos. O Informe Anual de 2015 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no capítulo de uso da força13, traz como exemplos a vedação de emprego de gás lacrimogêneo em espaços fechados ou contra pessoas que não tenham meios adequados de evacuação14.
12
Documento da Anistia Internacional, Diretivas para Implementação dos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Agentes das Forças de Segurança, da ONU: 13. Na dispersão de reuniões que sejam irregulares, mas não violentas, o uso da força deve ser evitado e, quando isso não for possível, restrito à mínima extensão necessária. 14. Na dispersão d ereuniões violentas, agentes das forças de segurança apenas podem utilizar armas quando meios menos gravosos já tiverem sido descartados e, ainda assim, de forma restrita. Não devem utilizar armas a não ser sob as condições estipuladas pelo princípio 9. Disponível no link:http://www.amnestyusa.org/sites/default/files/amnesty_international_guidelines_on_use_of_force-2.pdf
13
Disponível no link: http://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2015/doc-es/InformeAnual2015-cap4A-fuerza-ES.pdf
14 Ver ONU, Informe do Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Nota do Secretário Geral, A/69/265, 6 de agosto de 2014, párr. 71. e ICRC. Statement: ICRC position on the use of toxic chemicals as weapons for law enforcement. 2 June 2013. Disponível no link: https://www.icrc.org/eng/resources/documents/legal-fact-sheet/2013-02-06-toxic-chemicals-weapons-lawenforcement.htm. Há, também, recomendações técnicas de manuseio de instrumentos como ''balas de borracha'', que não devem ser disparadas a uma distância inferior a 20 metros do alvo. Disponível no link: http://www.menosletais.org/bala-de-borracha/ __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 6 de 13
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2. Vedação a detenções arbitrárias Comunicadores não devem estar sujeitos a qualquer tipo de detenção sem que exista expressa determinação legal ou judicial para condução à delegacia. O Comitê de Direitos Humanos da ONU, no Comentário Geral nº3415 destaca que ''a prisão ou detenção como punição pelo exercício legítimo de direitos garantidos pelo Acordo, incluindo liberdade de opinião e expressão, de reunião e de associação, será considerada arbitrária.'' No contexto de manifestações em que se baseia a presente nota, há um extenso número de detenções, inclusive de comunicadores, sem nenhuma base legal concreta. Ainda, nos termos do Comentário mencionado, muitas vezes as detenções se dão justamente pelo exercício de um direito garantido, qual seja, o de registrar as ocorrências de determinada manifestação, como se verá oportunamente. A respeito de detenções arbitrárias, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH afirma que “policiais não podem prender manifestantes quando os mesmos estão agindo de forma pacífica e legal'' e assinala que ''a mera desordem não é suficiente para justificar detenções”.16
2.1 Vedação à prática ou ameaça de condução coercitiva de comunicadores para delegacias na qualidade de testemunhas. Comunicadores não devem ser conduzidos a delegacias durante protestos sob o pretexto de ''depôr'' a respeito de situações ocorridas nas manifestações. Relatos recorrentes de comunicadores demonstram a ocorrência de pressão ou mesmo encaminhamento de comunicadores à delegacia para que ''deponham'' após presenciarem fatos ocorridos nas manifestações. Importante ressaltar que, não raro, estas conduções transformam-se em verdadeiras detenções sem base legal, pois os comunicadores não são informados dos motivos que justificariam a necessidade de permanecerem por períodos prolongados em delegacias. Como já amplamente demonstrado, a garantia das melhores condições para o trabalho dos comunicadores em situações de exercício de direitos fundamentais deve ser uma prioridade institucional. Assim, a condução destes indivíduos a delegacias na qualidade de
15
Disponível no link: http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CCPR/Pages/GC35-Article9LibertyandSecurityofperson.aspx
16
Disponível no link: http://www.oas.org/en/iachr/expression/showarticle.asp?artID=662&lID=1
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''testemunhas'' sobre acusações que comumente sequer lhes são informadas, além de inviabilizar a continuidade da participação em determinado ato, funciona como forma de intimidação e desencorajamento geral à cobertura dos protestos. Organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos atentos à essa pressão específica a que estão sujeitos comunicadores, são enfático: ''Em situações de conflitividade social especial, a percepção de que possam ser forçados a depôr não apenas limita a possibilidade de o jornalista acessar fontes de informação, como também aumenta o risco de que venham a se converter em um alvo para grupos violentos. Além disso, as autoridades não devem exigir de jornalistas que demonstrem que os testemunhos divulgados sobre os fatos são exatos ou que provem frente a um juiz a veracidade das denúncias reportadas.''17 3. Vedação à apreensão e quebra de equipamentos, bem como perda de registros em geral Assim como a integridade física dos comunicadores, a integridade dos equipamentos e arquivos, físicos e eletrônicos, de sua propriedade ou porte deve ser respeitada, antes, durante e após as manifestações. A apreensão e/ou danificação de equipamentos de fotografia e filmagem utilizados em protestos é outra prática considerada um efetivo obstáculo ao trabalho dos comunicadores e, consequentemente, à concretização dos direitos à liberdade de expressão e informação. Nesse sentido, o Comunicado Conjunto18 referido acima, assim como outros documentos19, é explícito ao afirmar que os materiais e ferramentas de trabalho dos comunicadores não podem ser apreendidas por autoridades públicas.20 Câmeras, celulares, computadores e cartões de memória são equipamentos essenciais para que os comunicadores possam registrar os acontecimentos de um protesto e informar a sociedade de suas pautas, bem como de eventuais violações que nele ocorram21.
17
Disponível no link: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=931&lID=2
18
Disponível no link: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=931&lID=2
19 O Relatório Conjunto sobre correto manejo de manifestações, por exemplo, diz: ''Confisco, e/ou destruição de anotações ou equipamentos de registros visuais e auditivos sem o devido processo legal devem ser proibidos e punidos.'' Disponível no link: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G12/137/87/PDF/G1213787.pdf?OpenElement.
20
Disponível no link: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=931&lID=2
21 Em relação a este aspecto específico, do Relatório Anual da Relatório Especial da ONU para Liberdade de Reunião Pacífica e Associação de 2012:“o monitoramento de reuniões pode proporcionar uma visão imparcial e objetivo dos acontecimentos, inclusive com registro fático das condutas dos participantes e das forças de segurança. Trata-se de uma contribuição valiosa para o exercício efetivo do direito de reunião pacífica. A mera presença de observadores de direitos humanos durante demonstrações pode impedir a violação de direitos __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 8 de 13
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Assim, a inutilização destes instrumentos, ou a eliminação do conteúdo registrado (seja por exclusão manual, seja por confisco de cartões de memória), representa uma perda não só para o comunicador a quem eventualmente pertençam, mas para o próprio livre fluxo de ideias e informações. Em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, em especial quanto ao Direito Constitucional e Direito Processual Penal, algumas premissas básicas apontam a impossibilidade de se apreender qualquer bem de forma arbitrária. A apreensão seria legítima em hipóteses como a constatação de ocorrência de uma prática delitiva e relação direta do bem apreendido com esta prática (art. 6º, CPP)22 e/ou no curso da investigação ou processo, por ordem judicial, para fim de produção de provas. Verifica-se, portanto, a inexistência de qualquer hipótese que permita a apreensão extraoficial pela Polícia Militar ou Civil, sem justificativa, de equipamentos de trabalho dos comunicadores, e muito menos sua danificação proposital, pois isso indica o ímpeto de inviabilizar a transmissão das imagens capturadas e afeta diretamente o direito de acesso à informação. 4.
Vedação
à
proibição
ou
qualquer
impedimento
de
filmagem.
Aos comunicadores, bem como a quaisquer cidadãos interessados, deve ser garantido o direito de observar e monitorar manifestações e atuação de forças de segurança, inclusive por meio de registros de imagem, vídeo e aúdio. O impedimento de filmagem ou outro tipo de registro dos acontecimentos de um protesto é verificado, por exemplo, quando se formam cordões de isolamento em torno dos comunicadores. Diferente do ponto acima, trata-se de uma restrição prévia ao exercício da comunicação e compartilhamento de informações. As Relatorias Especiais da ONU para a Liberdade de Reunião Pacífica e de Associação e sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias e Arbitrárias, em relatório conjunto de 201623, afirmam que um dos elementos essenciais para o correto manejo de protestos é a garantia de que ''toda pessoa tenha o direito de observar, monitorar e registrar manifestações.'' Esta restrição é, de acordo com o documento, uma violação ao direito fundamental de buscar e receber informação, garantido pelo artigo 19 (2) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
humanos.''(A/62/225, para. 91) Disponível em: http://freeassembly.net/wpcontent/uploads/2013/10/A-HRC-20-27_en-annual-report-May2012.pdf 22
Art.6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;
23
Disponível no link: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G16/018/13/PDF/G1601813.pdf?OpenElement __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 9 de 13
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Afirma-se, ainda, que ''qualquer um – seja participante ou observador – tem
o direito de registrar uma
manifestação, o que inclui o direito de registrar a atividade policial.'' O ordenamento brasileiro, que consagra os referidos direitos fundamentais, privilegia a publicidade como princípio geral, de forma que não há justificativa, também pela lei brasileira, para proibições de registro de protestos a priori. 5. Resguardo das fontes dos comunicadores que atuam em protestos. A proteção constitucional da fonte jornalística deve se estender a todos os comunicadores no contexto de cobertura de protestos e manifestações sociais. Ainda no tema da plena garantia do direito à informação, de interesse comum a toda a sociedade, cumpre ressaltar mais um ponto peculiar à atividade de comunicadores, que é a potencial existência de fontes, isto é, pessoas que portam determinadas informações, e a consequente proteção, de índole constitucional, que recai sobre elas. Dado o contexto apresentado de violência em protestos, há a possibilidade de que pessoas ou grupos desejem utilizar-se dos instrumentos fornecidos pelos comunicadores para expressar ou potencializar suas vozes e mensagens de forma resguardada. Diante disso, não se pode jamais obrigar, por quaisquer meios, um comunicador a revelar suas fontes sobre a cobertura de manifestações sociais. Sobre o sigilo da fonte e sua relação com o direito à informação, o Ministro Celso de Mello, no julgamento do Inq. 870-02/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJU de 15 de abril de 1996: ''prerrogativa concernente ao sigilo da fonte, longe de qualificar-se como mero privilégio de ordem pessoal ou estamental, configura, na realidade, meio essencial de concretização do direito constitucional de informar, revelando-se oponível, em consequência, a quaisquer órgãos ou autoridades do Poder Público, não importando a esfera em que se situe a atuação institucional dos agentes estatais interessado”.
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6.
Garantia do pleno acesso de comunicadores vítimas de violações às vias oficiais de denúncia e
investigação. Os comunicadores que, no contexto de manifestações, sejam vitimados por qualquer tipo de abuso ou violação sujeito à responsabilização não devem enfrentar quaisquer obstáculos no acesso aos meios adequados de denúncia. Muitos comunicadores têm relatado que, após sofrerem violações como agressões físicas ou perda de equipamentos de trabalho, enfrentam dificuldades para formalizar ''denúncias'' a este respeito, por exemplo, por meio de lavratura de Boletim de Ocorrência. O B.O é um dos meios pelos quais o cidadão pode alertar as autoridades de que foi vítima de um ato ilícito, o que, de sua vez, pode dar origem a investigações e providências, seja no âmbito administrativo, seja judicial. Nesse sentido, em última análise, esse tipo de impedimento representa uma violação geral ao acesso ao judiciário frente a lesão ou ameaça de lesão de direito.24 O relatório supracitado da Anistia Internacional declara que ''medidas adequadas de supervisão, controle e relatoria devem ser tomadas para viabilizar investigações efetivas e de acordo com padrões de direitos humanos'' e ainda que disso decorre uma obrigação dos oficiais de reportarem às autoridades competentes para que decidam se determinada investigação deve ser aberta ou não. 7. Direito de obtenção de informações sobre protestos em tempo real. Comunicadores têm o direito de obter informações oficiais sobre as circunstâncias de manifestações em tempo real para que possam informar adequadamente a sociedade. Um problema frequente enfrentado por comunicadores durante protestos, em especial quando há pessoas feridas e detidas, é o acesso a números precisos, que possam ser divulgados ao público em geral. Dessa forma, outro mecanismo importante que, por um lado facilita o exercício pleno da atividade do comunicador e sua prestação de informações à sociedade e, por outro garante a transparência para futuros processos de avaliação e responsabilização é o registro oficial dos protestos e seus desdobramentos, em tempo real.
24
O artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito''. Disponível em: __________________________________________________________________________________________________________ ARTIGO 19 – Rua João Adolfo, 118 – conjunto 802 – Centro – CEP: 01050-020 - São Paulo – SP www.artigo19.org – +55 11 3057 0042 +55 11 3057 0071 Página 11 de 13
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Esta medida representa o outro lado da moeda da garantia, também consagrada, de que comunicadores e outros cidadãos tenham o direito de monitorar e registrar manifestações. Dessa forma, ao mesmo tempo em que deve ser assegurada a possibilidade de que as pessoas filmem, por exemplo, o que acontece durante em um protesto, também é necessário que os próprios órgãos oficiais de segurança pública mantenham registros atualizados, seja em termos de imagens, seja em relação a informações oficiais (números de feridos e detidos, por exemplo), e que os disponibilizem aos comunicadores.25 É o que se depreende de uma das recomendações oficiais do já citado Documento Conjunto de relatorias da ONU sobre o manejo correto de protestos: ''Autoridades devem se engajar proativamente com grupos de monitoramento antes, durante e depois de uma manifestação; proporcionando acesso à informação aos membros da mídia e outros observadores; e respondendo aos relatórios realizados por estes grupos após os acontecimentos.''26 8. Prestação de contas a partir de compilação de dados de violações. Comunicadores e outros cidadãos devem ter acesso a dados compilados sobre violações de direitos humanos no contexto de protestos, que também devem ser compartilhadas com os órgãos oficiais de controle externo da atividade policial. No mesmo sentido, para além de manter os canais de diálogo abertos e prestar informações importantes durante a cobertura de protestos, mantendo a sociedade informada em tempo real, é essencial que os órgãos oficiais realizem registros e compilações dos dados referentes a violações em protestos, para que possam ser utilizados por comunicadores, mas também compartilhados com órgãos responsáveis pelo controle externo da polícia, em especial o Ministério Público Estadual.27
25 A importância desta colaboração e prestação de informações é endereçada em um capítulo específico do relatório ''Liberdade de expressão e ordem pública: manual de treinamento; 2015'', da UNESCO, disponível no link: http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002313/231305e.pdf
26
Disponível no link: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G16/018/13/PDF/G1601813.pdf?OpenElement
27
Conforme o artigo 129, VII da Constituição Federal: ''São funções institucionais do Ministério Público: VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;''
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D. CONCLUSÃO Complementando um cenário geral devastador de violações contra comunicadores, desenha-se no país uma intensa hostilidade contra estes indivíduos quando seu objetivo é divulgar as reivindicações alheias e a reação negativa do Estado diante delas. A presente compilação de recomendações compreende alguns dos pontos mais sensíveis referentes a violações reiteradamente cometidas contra comunicadores que exercem a importante função de cobrir manifestações sociais. As variadas medidas aqui sugeridas buscam orientar as forças de segurança que lidam com manifestações sociais a se alinharem aos princípios básicos necessários à garantia de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade de manifestação, bem como o direito à informação, todos direitos personificados nos comunicadores que, ao exercerem seus direitos na cobertura de protestos, também garantem o exercício de direitos e liberdades à sociedade como um todo. Dessa forma, a presente nota técnica busca evidenciar que a cobertura de manifestações sociais como um direito a ser salvaguardado pelos Estados é um tema amplamente reconhecido pelos organismos internacionais voltados a defesa dos direitos humanos e que, em decorrência desse reconhecimento, já existe uma série de recomendações que almejam nortear a atuação das forças de segurança para garantir o exercício desse direito fundamental.
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