Machado e a Propriedade Intelectual - Denis Borges Barbosa

Machado e a Propriedade Intelectual Denis Borges Barbosa (2009) O mais gordo dos meus livros começa com um prefácio, e ele com uma citação de Machado ...
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Machado e a Propriedade Intelectual Denis Borges Barbosa (2009) O mais gordo dos meus livros começa com um prefácio, e ele com uma citação de Machado de Assis: Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos. —Ouvi agora alguns ensaios! —Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor. Machado de Assis, Dom Casmurro.

Assim, não seria eu a rejeitar um ensaio sobre o papel do velho Machado na Propriedade Intelectual. Aliás, essa ligação entre o escritor e a Propriedade Intelectual já atraiu muito interesse acadêmico, como o de Breno Martins Zeferino, em sua tese A Inventiva Brasileira: Modernidade, Saúde e Ciência na virada do século XIX para o XX, no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, e de Luciana da Silva Castro, em sua dissertação de mestrado na UFV. Que se saiba, Machado não era tão descrente das marcas como- se verá - das patentes. Mesmo assim, Lucas Frazão Silva, em sua tese de doutorado na UNICAMP, de 2000 (O Gosto da Embalagem) consegue trazer o autor para o meio do furacão da economia de mercado: O modo de produção capitalista tem muito de um personagem de Machado de Assis, a Capitu, que tinha “um olhar oblíquo e dissimulado”. Diante da sua própria verdade fica sempre algo de maroto e disfarçado no ar neste sistema de trocas. Uma ponta do mistério sobre a real intenção do processo. Uma contínua desconfiança. Enfim, expõe, mesmo que se procure negar através de revoluções e guerras, a fragilidade do sistema geral de trocas.

Não se sabe qual a reação do escritor ao se ver nomeado, de 1892 a 1898, como funcionário da Secretaria de Estado da Indústria, Viação e Obras Públicas encarregado de rever pedidos de patentes e de expedir as respectivas cartas. Em época anterior, desde 28 de março de 1880, Machado de Assis foi oficial de gabinete do Ministro da Agricultura, e nessa condição recebeu os relatórios do Visconde de Villeneuve sobre a Convenção de Paris de 1883. Como examinador de patentes, deve ter sido descrente e severo. Seus juízos sobre novidade e atividade inventiva o revelam: O nosso erro é crer que inventamos, simplesmente copiamos. (...) Onde falta imitação sobre. (...) A novidade aqui está por algarismos; mas não haverá nisso

quando continuamos, ou invenção, é natural que a na substituição do desenho tão somente afetação de

originalidade, um modo de fazer crer que se inventa, quando apenas se copia, pois a idéia fundamental é a mesma? (A semana, vários textos)

Mas, acompanhando sua obra, percebe-se que não fazia mesmo muito bom juízo das invenções e dos inventores. Falar mesmo de patentes, ele só o fez ostensivamente uma vez, em Braz Cubas, numa citação famosa: Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis; "...e eu era hábil." Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: -- amor da glória.

Como teoria econômica dos fundamentos da inovação, é tão boa quanto a doutrina de Nordhaus, de Kitch ou de Scotchmer. Tanto os royalties quanto fama seriam incentivos à inovação, pelo menos na atmosfera do Rio de Janeiro nos fins do séc. XIX: (...) virá alguém que, por haver inventado um chapéu elástico, uma barbatana espiritual ou finalmente outro jataí que ajude a limpar os brônquios e as algibeiras, - tenha ocasião de ver pintado o seu nome na esquina da rua em que mora, e, se morar longe, em outra qualquer. (A semana)

O inventor, para Machado, era um ser um tanto cômico e - muito - empulhador. No texto O Segredo do Bonzo, constante de seus Papéis Avulsos, fala de uma invenção biotecnológica desse gênero: Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar.

E, em nota a esses seus escritos, explica o autor: O bonzo do meu escrito chama-se Pomada, e pomadistas os seus sectários. Pomada e pomadista são locuções familiares da nossa terra: é o nome local do charlatão e do charlatanismo.

O momento mais acerbo de suas críticas é o período em que passou como cronista do Rio e do mundo na imprensa carioca: Um destes, creio que americano, trazia um de excelente remédio para não sei que perturbações gástricas; recomendava porém, às senhoras que o não tomassem, em estado de gravidez, poio risco que corriam de abortar... O remédio não tinha outro fim senão justamente este mas a

policia ficava sem haver por onde pegar do invento e do inventor. Era assim, por meios astutos e grande dissimulação, que o remédio se oferecia às senhoras cansadas de aturar crianças.

Os sentimentos são dúbios. Há boas e más invenções, honestos e enganadores, uns e outros, porém, tendo que se haver com a natureza e a morte: Com efeito, eu assisti ao nascimento do xarope ... Perdão; vamos atrás. Eu ainda mamava, quando apareceu um médico que "restituía a vista a quem a houvesse perdido". Chamava-se o autor Antônio Gomes, que o vendia em sua própria casa, Rua dos Barbonos n.º 26. A Rua dos Barbonos era a que hoje se chama do Evaristo da Veiga. Muitas pessoas colheram o benefício inestimável que o remédio prometia. Saíram da noite para a luz, para os espetáculos da natureza, dispensaram a muleta de terceiro, puderam ler, escrever, contar. Um dia, Antônio Gomes morreu. Era natural; morreu como os soldados de Xerxes. O inventor da pólvora, quem quer que ele fosse, também morreu. Mas por que não sobreviveu o colírio de Antônio Gomes, como a pólvora? Que razão houve para acabar com o autor uma invenção tão útil à humanidade? (A semana) Assim passam os trabalhos desse mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma cousa neste final de século. Requiescat in pace. (A semana)

Nos Papéis Avulsos, Machado fala de outro inventor, agora cômico em sua loucura mansa: uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara (Papéis Avulsos , O Anel de Polícrates).

Se não expressão de loucura, à prova de todos alienistas, o ato de invenção parecia a Machado um sinal de impaciência e açodamento perante o tempo natural das coisas: Quem inventou a pólvora? Quem inventou a imprensa, descontando Gutenberg, porque os chins a conheciam? Quem inventou o bocejo, excluindo naturalmente o Criador, que, em verdade, não há de ter visto sem algum tédio as impaciências de Eva? Como esta espécie corresponde já à sua índole! diria Deus consigo. Há de ser assim sempre, impaciente, incapaz de esperar a hora própria. Nunca os relógios, que há de inventar, andarão todos certos.

O homem que assinava as nossas patentes de invenção, falando na verdade do encilhamento, descria das falsas inovações, engendradas só para captar investimento no mercado: "Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de concessões, rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis" (Esaú e Jacó).

E, deixando de lado a lei de patentes de 1882, que teria negado a patente para métodos de jogo e aposta: Olhem, não fui eu que ideei esta outra loteria, mais modesta, do Jardim Zoológico; mas, se o houvesse feito, não daria a minha idéia por menos de cem contos de réis; podia fazer algum abate, cinco porcento,

digamos dez. Relativamente não se pode dizer que fosse caro. Há invenções mais caras. (A semana)

Brasileiro, tropicalista avant la lettre, Machado já se apercebia da divisão norte-sul e do descompasso entre países desenvolvidos e o Brasil: Sim; não é à toa que estes americanos são ingleses de origem. Têm o gosto da antiguidade; e, como inventam telefone e outros milagres, podem pagar caro essas relíquias. (A semana)

E a tecnologia da informação vai chegando e globalizando o nosso mundinho: O telégrafo é uma invenção econômica, deve ser conciso e até obscuro. (...) Toda Esta Semana foi feita pelo telégrafo. Sem essa invenção, que põe o nosso século tão longe daqueles em que as notícias tinham de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo anda para os curiosos, sem essa invenção esta semana viveria do que lhe desse a cidade. (A Semana)

Globalizar, porém, não seria uma solução, mas a de fazer tecnologia local, rica e adequada ao modo brasileiro de ser: Fora com obras de modistas; mandai tecer a simples arazóia, feita de finas plumas, atai-a à cintura e vinde passear cá fora. Podeis trazer um colar de cocos, um cocar de penas e mais nada. Escusai leques, luvas, rendas, brincos, chapéus, tafularia inútil e custosíssima. A dúvida única é o calçado. Não podeis ferir nem macular os pés acostumados à meia e à botina, nem nós podemos calçar-vos, como João de Deus queria fazer à descalça dos seus versos: Ah! não ser eu o mármore em que pisas... Calçava-te de beijos. Não seria decente nem útil; para essa dificuldade creio que o remédio seria inventar uma alpercata nacional, feita de alguma casca brasileira, flexível e sólida. E estáveis prontas.

Eterno, Machado profetizava a política de medicamentos do Ministério da Saúde: Dizem que a vida em São Paulo é muito cara. Mas São Paulo, se quiser, terá a saúde barata; basta meter-se-lhe na cabeça ir adiante de todos como tem ido. Inventará novos medicamentos e vendê-los-á por preço cômodo.