HIPERATIVIDADE, COMPORTAMENTO OPOSITOR E DÉFICIT DE ...

1 HIPERATIVIDADE, COMPORTAMENTO OPOSITOR E DÉFICIT DE ATENÇÃO: MAL-ESTAR DA CRIANÇA OU MAL-ESTAR DO ADULTO AO INFANTIL. Cristina Keiko Inafuku de Mer...
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HIPERATIVIDADE, COMPORTAMENTO OPOSITOR E DÉFICIT DE ATENÇÃO: MAL-ESTAR DA CRIANÇA OU MAL-ESTAR DO ADULTO AO INFANTIL. Cristina Keiko Inafuku de Merletti Apresentaremos algumas questões levantadas a partir do trabalho com o dispositivo Grupo de Pais de crianças em atendimento no Lugar de Vida, instituição que promove a prática da EducaçãoTerapêutica para tratar e educar crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento, entre eles o autismo e a psicose, com dificuldades em seu processo de escolarização e de laço social. A análise psicanalítica de discurso dos pais propiciou problematizarmos as queixas e demandas atuais sobre as crianças. Queixas portadas não somente pelas famílias em questão, mas verificadas no discurso de educadores e de profissionais da saúde que trabalham com crianças de um modo geral, o que nos leva a pensar sobre um mal-estar social do adulto em relação, não somente às crianças supostamente com problemas, mas em relação ao lugar do infantil na contemporaneidade. Notamos que as queixas em torno das crianças se referem especialmente e, com frequência, aos problemas de seu mau comportamento em casa e na escola, a não aceitação dos limites, posturas de oposição, de agressividade, impulsividade, dependência de objetos, hiperatividade e o déficit de atenção. Estas falas recorrentes de pais, de educadores e de profissionais da saúde, mesmo fora do campo de um tratamento, nos faz considerá-las, ainda, como um fenômeno discursivo social atual sobre a infância. Queixas que com frequência são transformadas em sintomas patológicos, os quais outrora se restringiam, na maioria dos casos, à clínica específica dos Transtornos Globais do Desenvolvimento. Pretendemos ressaltar a importância de se recuperar o caráter contextual e histórico das mudanças de ideários sociais sobre a noção de criança e de família, como bem apresentou Ariès (1981) há algum tempo. Legnani e Almeida (2004) por sua vez, discutiram a construção da infância pelos saberes científicos e sua influência nas práticas

sociais,

abordando

os

determinantes

históricos

e

os

fundamentos

epistemológicos que delinearam a noção de “criança normal”, seja do ponto de vista de sua saúde, seja do ponto de vista de sua cognição, advinda do discurso científico da

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modernidade. Estes analisaram os efeitos dessa concepção quando incorporada às práticas educacionais, sobretudo por meio das teorias psicológicas, e destacaram a própria construção dos testes de QI que corroboraram esta relação entre o saber científico e os instrumentos e técnicas que influenciaram as ações educativas. Concluem que os princípios da mensuração, da padronização e da classificação trouxeram não somente marcas de diferenciação na capacidade de aprendizagem e na tentativa de quantificar a inteligência entre os sujeitos, mas consequentemente marcas de valoração e de normatização, gerando também categorizações, rotulações e estigmas sobre a criança no discurso social. Acompanhamos, ao longo da história, e especialmente na modernidade, o surgimento das novas ciências que se ocuparão dos indivíduos em suas especificidades, fracionando-o, bem como a crescente preocupação com a criança, pequeno indivíduo que deverá desenvolver todas as suas potencialidades e competências para o sucesso individual. Com o surgimento da Pediatria, da Psicologia, da Psiquiatria Infantil e da Pedagogia, Legnani e Almeida apontam que se consagram concomitantemente os supostos “problemas” da infância, suas “incompetências”, seus “fracassos”, seus “sintomas”. Diante dos discursos contemporâneos sobre a infância, pautados por saberes disciplinares, não podemos deixar de nos perguntar: qual seria então a função da família contemporânea nos cuidados e na educação das crianças e quais seriam as relações possíveis entre o saber parental inconsciente e o conhecimento científico, assim como suas repercussões no campo escolar e no campo do tratamento? Escutamos pais dizerem com frequência que seus filhos são muito agitados e que por isso se supõe ou então que já receberam o diagnóstico médico de que são “hiperativos”, e que têm o TDHA. Os profissionais da saúde, por sua vez, prescrevem métodos e orientam os pais na direção de controlar a agitação das crianças e adequá-las, seja pela via medicamentosa, seja pela via do treinamento educativo, compondo técnicas sistemáticas, chamadas, no geral, de TCC – Treinamentos CognitivoComportamentais. Essas técnicas são, em um primeiro momento, aplicadas pelos profissionais sobre as crianças e, em um segundo momento, ensinadas aos pais para que esses, por sua vez, aprendam e treinem seus filhos em casa. Assumir diante dos pais uma posição que não encarne um saber obturador, totalizador, com o peso de uma “verdade” e, por isso mesmo, absoluto e poderoso, é

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tarefa trabalhosa, pois, geralmente o primeiro pedido que eles nos endereçam, enquanto especialistas da infância, é o de ensiná-los e orientá-los sobre o cuidar, tratar e educar a criança. O discurso científico tende a construir seus objetos de saber e, no que se refere ao saber sobre a infância, tende a produzir um saber sobre A Criança, desconsiderando o que representaria uma criança para cada pai e para cada mãe. Nesse sentido, supomos que o discurso científico sobre a infância tende a tomar a criança como um objeto, descritível, previsível e controlável, desconsiderando justamente o que a tornaria singular - sua subjetividade e sua história tecida na relação com seus pais. Referimonos aqui a um fenômeno que denominamos de objetalização da criança no discurso tecno-científico. Diante de demandas tão contundentes de muitos pais a respeito de seus filhos, sobre como controlá-los ou como adequá-los a determinados contextos, a maioria dos profissionais sente-se tentada a responder prontamente, orientando-os por meio de informações, técnicas ou métodos e tamponando uma falta fundamental na direção da promoção da construção ou do resgate dos saberes parentais sobre a infância: o ato de educar sustentado pela inscrição da história de uma filiação e de valores que dizem respeito à cultura dos próprios pais. Essa posição diante das demandas das famílias implica abrir espaço para o surgimento das dúvidas, de uma falta, para que elas próprias construam ou resgatem suas suposições, suas hipóteses e seus desejos sobre seus filhos, o que também sabemos não ser tarefa fácil e diante da qual a emergência da angústia é inevitável. No trabalho que desenvolvemos junto aos pais, buscamos promover um espaço de fala entre eles, incluindo e considerando fundamental o seu saber inconsciente sobre o infantil. Ao destacarmos o aspecto discursivo em sua amplitude histórica e contextual, apontamos, ainda, um conjunto de discursos sociais sobre a criança que denominamos de discursividade contemporânea sobre a infância que influencia sobremaneira a relação dos pais com seus filhos. Expressam constantemente posições e falas adesivas e reprodutoras desses discursos sociais sobre as problemáticas das crianças, descrevendoas, classificando-as, normatizando-as e patologizando-as. Esses cruzamentos de discursos podem colocar a criança em uma posição de objeto, próxima da posição estrutura a que se referiu Soller (1983/2007) em relação às crianças autistas e psicóticas, denominando-as crianças-objeto, posição a partir da qual a função do sujeito encontra dificuldades para operar. Assim, podemos supor que o discurso contemporâneo sobre a

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infância tem uma incidência similar sobre as crianças de um modo geral, obstaculizando sua singularização no desejo do Outro e fixando-as em determinados lugares nos discursos sociais e na relação com seus pais, o que dificulta sua empreitada subjetiva. Acreditamos que a compreensão dessa discursividade social sobre a criança, articulada à escuta das falas dos pais sobre a educação e sobre os cuidados com seus filhos, possibilitará ao profissional que trabalha com crianças no âmbito institucional adotar uma escuta e intervenções fundamentadas em uma ética de respeito à singularidade psíquica dos pais, em seu saber inconsciente, e em sua produção de fala, bem como a consideração de que suas posições discursivas também são afetadas pelos discursos sociais de uma época, problematizando as questões tão recorrentes sobre a culpabilização dos pais pelas supostas “falhas”, pelos “problemas” e “fracassos” nas crianças. Para ilustrar o que discorremos até o momento, faremos o recorte de uma vinheta clinica de nosso trabalho de escuta e intervenção no Grupo de Pais do Lugar de Vida. Ao discutirem com frequência sobre as brincadeiras de seus filhos, localizamos uma queixa geral, da qual a maioria dos pais compartilhava - a de que seus filhos eram “agitados”, “impulsivos”, “sem parada” e “hiperativos”. O termo “hiperatividade” destacou-se na fala dos pais a partir do momento em que fizeram os mais diversos comentários sobre matérias recentes lidas em revistas, jornais e sites, assim como sobre programas de rádio e de televisão com temas sobre a infância. Em um encontro certa mãe comenta que um neurologista, em depoimento sobre saúde da infância em uma rádio, afirmou que a hiperatividade é uma doença, que está ligada a uma disfunção em determinada região cerebral e à alteração da dosagem de uma substância química no corpo da criança. Outra mãe reitera essa informação comentando que leu, em uma matéria de revista feminina, que a hiperatividade é uma síndrome chamada de TDHA – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade e que não somente os médicos estão diagnosticando esta doença, mas as escolas também, pois já incluem este distúrbio nos relatórios e falam sobre ele nas reuniões com os pais. Uma mãe comenta posteriormente, fora do grupo, que a professora de seu filho, em reunião com a coordenadora pedagógica, havia sugerido que ela levasse seu filho para realizar um exame neuropsicológico específico para o diagnóstico de TDHA, pois, apesar de saber que a criança era inteligente, sua dificuldade para prestar atenção e se concentrar nas aulas estava prejudicando sua aprendizagem. Já a terceira mãe comenta que nunca havia

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ouvido falar sobre essa doença, mas lembrou-se de que em uma última reunião com a coordenadora e a professora da escola estas haviam comentado que seu filho estava muito agitado e não prestava atenção na aula, dizendo que ele ficava o tempo todo conversando e brincando e, mesmo que elas não tivessem aventado a hipótese de TDHA, “com certeza” seria o caso de seu filho, pois tudo o que estão falando sobre essa doença ela já havia “percebido” nele. Ela diz: “Quando elas me chamaram para conversar, em um primeiro momento pensei, puxa, o que será que o meu filho aprontou dessa vez - pois sei que ele é muito levado, arteiro. Pensei ainda que levaria uma bronca, dizendo que eu não estou dando uma educação correta para ele ou que eu estou trabalhando muito e não estou cuidando das tarefas e dando mais atenção para ele, por isso ele ficaria chamando a atenção dos outros e não prestando atenção na aula. Mas, quando elas começaram a me perguntar se eu estava levando ele ao pediatra, e se o pediatra tinha comentado algo sobre o comportamento do meu filho, se algum dia ele já tinha feito algum exame neurológico, aí eu percebi que elas estavam falando desse problema. Agora sei que ele é hiperativo”. A mesma mãe que havia destacado o termo TDHA comenta que foi pesquisar na internet e encontrou vários estudos sobre esta síndrome, associada “a uma tal de serotonina”. “Não me lembro ao certo se o problema era a falta ou o excesso dessa substância no cérebro, que atrapalha as conexões dos neurônios, mas muitos estudos dizem que o tratamento mais eficaz e mais rápido seria com medicação”. Outra mãe complementa essa informação dizendo que o nome do remédio é Ritalina, mas que já ela havia ouvido falar de outro mais moderno, mais duradouro e com menos efeitos colaterais, mas deste não se lembrava o nome. Esta mesma mãe explica então que soube da Ritalina por experiência própria, pois há poucos meses, por indicação da escola, ela havia consultado um neurologista de seu convênio médico e, já na primeira consulta, ele havia diagnosticado o TDHA no seu filho, entregando-lhe uma espécie de kit informativo sobre a doença, com um folhetinho explicando para os pais e para a escola como detectá-la e com um CD, que ela ainda não tinha visto, mas que provavelmente tinha algumas imagens para “facilitar” a explicação e “mostrar” como eram os comportamentos hiperativos das crianças. O referido kit é trazido pela mãe para mostrá-lo, posteriormente, em reunião individual pedida por ela com a profissional, fora do grupo de pais. Tratava-se de um kit produzido e divulgado por um laboratório farmacêutico, distribuído aos médicos e

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destinado à orientação dos pais e educadores de crianças para o diagnóstico da síndrome do TDHA. Nessa reunião individual, a mãe diz: “O médico até deu umas amostras grátis e indicou o remédio com receituário, mas eu fiquei preocupada, não gosto de dar muito remédio para meus filhos, ainda mais de tarja preta, e além disso a consulta nem foi tão aprofundada, ele quase não conversou com meu filho, só ficou me perguntando sobre o comportamento dele, até perguntou se eu já tinha consultado algum psiquiatra infantil antes. Eu percebi que, como o doutor ficava só conversando comigo, o N. começou a ficar mais inquieto, incomodado, a mexer nas coisas, a interromper a conversa e eu fui ficando mais irritada também. Quando saímos da consulta, meu filho logo me falou, irritado, e ao mesmo tempo preocupado, que não iria nunca a um psiquiatra, porque ele não era louco. Por isso, quis te mostrar o kit antes e, talvez, consultar um segundo médico”. Notamos que quando a maioria dos pais uniformiza sua fala em conformidade com um saber, a saber - o saber médico – “Agora eu sei o que meu filho tem, é hiperatividade”, baseada nos saberes científicos sustentados pelos profissionais e pelas mídias que os atestam, instaura-se, segundo a teoria lacaniana, o discurso do universitário. O lugar de agente é ocupado pelo saber sobre o diagnóstico e representado pelo DSM; o outro, seus filhos, passam a ocupar o lugar de objeto desse saber: são crianças hiperativas. Esta perspectiva de leitura discursiva adotada em nosso trabalho institucional com pais permite intervenções que poderão incidir, ainda, em uma dimensão política sobre os cuidados e a educação na infância, na medida em que, ao invés de classificar e patologizar o sujeito infantil, busca, por meio de apontamentos e de reflexões sustentadas nas trocas entre os pais em encontro grupal, localizar seus determinantes na ordem do Outro e na ordem de um determinado discurso que os engendram. Chemama & Vandermersch (2007) referindo-se à teoria lacaniana dos discursos afirmam “... devese destacar que a teoria dos discursos,... continua a ser, atualmente, um dos instrumentos mais ativos para a psicanálise, pois ela se interessa pelo que produz o sujeito e produz, com ele, a ordem social na qual ele se inscreve” (p.105). O trabalho com o Grupo de Pais, fundamentado nesta proposta, caminha na direção da subjetivação das crianças, de sua educação e de seu desenvolvimento geral. Nesse sentido, o trabalho com pais opera como uma estratégia institucional fundamental

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auxiliar na promoção da constituição subjetiva, compondo um conjunto de trabalhos junto à criança e sua família, visando uma parceria institucional e uma coresponsabilização social simbólica nos cuidados destinados à infância.

REFERÊNCIAS Ariès, P. (1981). História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar. Birman, J. M. (2001). Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Chemama, R., & Vandermersch, B. (2007). Dicionário de Psicanálise (F. Settineri, & M. Fleig, trad.) São Leopoldo, RS, Universidade do Vale do Rio dos Sinos: Unisinos. Costa, J. F. (1983). Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal. DSM-IV-TR. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4 ed. (rev.). Porto Alegre: Artmed, 2002. Guarido, R. (2010). A biologização da vida e algumas implicações do discurso médico sobre a educação. In: Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos. Casa do psicólogo (pp. 2755). São Paulo: Casa do Psicólogo. Gusmão,

M.M.G. Comportamento

infantil

conhecido

como

hiperatividade: consequência do mundo contemporâneo ou TDAH? 2009. 129p. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. Disponível em: . Acesso em: 07 de mar. 2011. Kupfer, M. C., M. (2010). O Sujeito na Psicanálise e na Educação: bases para a educação terapêutica. Revista Educação e Realidade, 35(1): 265-81, jan/abr 2010. Legnani, V. N., & Almeida, S. F. C. (2004). A construção da infância: entre os saberes científicos e as práticas sociais. Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com Problemas. IX (nº 16), 102-121 Mano, M.D.S. A criança hiperativa, a família, o discurso científico e a psicanálise. 2009. 83f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Assis: Universidade Estadual

Paulista,

Faculdade

de

Ciências

e

Letras,

em: . Acesso em: 07 de mar. 2011.

2009.

Disponível

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Soler, C. (1983/2007). O inconsciente a céu aberto da psicose (V. Ribeiro. Trad. M.A.C. Jorge. consultoria) Rio de Janeiro: Jorge Zahar.