Desafios e prioridades dos ODS-ONU

Observatório Político Sul-Americano Instituto de Estudos Sociais e Políticos Universidade do Estado do Rio de Janeiro IESP/UERJ http://www.opsa.com.br...
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Observatório Político Sul-Americano Instituto de Estudos Sociais e Políticos Universidade do Estado do Rio de Janeiro IESP/UERJ http://www.opsa.com.br

Qual nova agenda para o desenvolvimento? Desafios e prioridades dos ODS-ONU [Agosto, 2015] Por Daniel Angelim*1 e Tatiana Oliveira**2

Introdução A agenda política da ONU terá em 2015 um momento crucial, e não apenas porque estamos a comemorar o septuagésimo aniversário desta organização. Este ano deverá tornar-se um marco para o debate sobre o desenvolvimento e a cooperação internacional nessa área, que sofrerá uma inflexão para a inclusão da sustentabilidade como pauta, não apenas transversal, mas fundante, da concepção internacional sobre esses temas. Em razão disso, estão em curso uma série de encontros

e

reuniões

para

a

definição

do

novo

modelo

de

desenvolvimento e cooperação, sendo três momentos de importância singular: A terceira Conferência Internacional sobre financiamento para o desenvolvimento (FFD), realizada entre os dias 13 e 16 de julho, em Adis Abeba, Etiópia; a definição dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), que acontece em setembro, e o novo acordo sobre o clima, que deverá ser decidido em dezembro, durante a Conferência das Partes (COP 21), em Paris. Dada a relevância do momento, os vários atores envolvidos nessa discussão estão mobilizados para influenciar os rumos do “futuro que queremos”. Neste texto, enfocaremos as discussões sobre a agenda pós-2015 e os ODS, deixando o novo acordo do clima para outra ocasião. Na sequência, a

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Daniel Angelim é Assessor de Política e Incidência da OXFAM-Brasil. Tatiana Oliveira é Assistente de Coordenação no OPSA.

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discussão está assim dividida: Começaremos pela delimitação dos termos políticos do debate, passaremos à descrição do marco geral das discussões, e apresentaremos, por fim, críticas ao processo e a alguns dos consensos que já são conhecidos, e devem ser incorporados à declaração final do grupo de trabalho em setembro.

A negociação até setembro de 2015 A agenda pós-2015 constitui um plano de trabalho cujo objetivo é estabelecer os ODS. Estes, por sua vez, deverão substituir e dar continuidade ao conjunto de metas conhecido como Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM ou MDG, na sigla em inglês), fixados pela Declaração do Milênio, em 2000. Da mesma forma como

aconteceu

Desenvolvimento

com

os

ODM,

Sustentável

busca-se, (ODS),

a

partir

determinar

dos

algumas

Objetivos linhas

do

gerais

orientadoras de uma série de políticas públicas de execução nacional, além de estabelecer as fontes de recursos destinadas à cooperação internacional para o desenvolvimento nos próximos anos.

OS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO (ODM) DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) ODM 1 ODM 2 ODM 3 ODM 4 ODM 5 ODM 6 ODM 7 ODM 8 BÔNUS

Acabar com a fome e a miséria Educação básica de qualidade para todos Igualdade entre sexos e valorização da mulher Reduzir a mortalidade infantil Reduzir a mortalidade infantil Melhorar a saúde das gestantes Combater a AIDS a Malária e outras doenças Qualidade de vida e respeito ao meio ambiente Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento

O que já caminhamos... As negociações em torno dos ODS correm, de acordo com o jargão diplomático, sobre dois trilhos (tracks, em inglês): O primeiro trilho corresponde, mais propriamente, ao que chamamos de a agenda pós-2015 do desenvolvimento sustentável. Essa discussão foi motivada pela aproximação do fim do ciclo de implementação dos ODM, em 2013. O segundo, se dedica ao tema do financiamento para o desenvolvimento.

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As discussões relativas a este segundo trilho foram iniciadas em um processo independente do primeiro, sendo mesmo anterior a ele, com início na Conferência de Monterrey (2002). Os dois trilhos são, portanto, negociados separadamente, embora as questões tratadas em cada um deles estejam profundamente interligadas. Isso significa que o sucesso de qualquer novo modelo de desenvolvimento vai depender das negociações ocorridas nesses dois eixos de discussões. O principal resultado por ora alcançado é fruto dos debates levados a cabo no primeiro trilho. Foram acordadas linhas gerais para os objetivos que aparecem enunciados nas últimas versões do Draft Zero, documento cujo objetivo é consolidar os encaminhamentos retirados das reuniões dos grupos de trabalho que se debruçam sobre a construção da Agenda. No total, são 17 objetivos e 169 metas, sendo 16 objetivos temáticos e 1 objetivo sobre financiamento (ver tabela abaixo). De acordo com o documento síntese apresentado pelo Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, os objetivos temáticos procuram aumentar a ambição dos ODM, promover a “sustentabilidade econômica” (através de um crescimento econômico inclusivo, empregos e investimento em infraestrutura) e a sustentabilidade ambiental (combate à mudança do clima e seus impactos nos mares, oceanos, ecossistemas e biodiversidade, aliada a novas práticas de consumo e produção).

OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS) DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) ODS 1 ODS 2 ODS 3 ODS 4 ODS 5 ODS 6 ODS 7 ODS 8 ODS 9 ODS 10 ODS 11 ODS 12 ODS 13

Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura familiar. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para tod@s, em todas as idades. Garantir educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizado ao longo da vida para todos. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas. Garantir a disponibilidade e o manejo sustentável da água, além do saneamento básico para todo@s. Garantir o acesso a energia barata, confiável, sustentável e moderna para tod@s. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, com emprego pleno e produtivo, e trabalho digno para todos. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável, e fomentar a inovação. Reduzir a desigualdade entre os países e dentro deles. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis. Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos. 3

ODS 14 ODS 15

ODS 16

ODS 17

Conservar e promover o uso sustentável dos oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, bem como deter e reverter a degradação do solo e a perda de biodiversidade. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à Justiça para tod@s e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. Fortalecer os mecanismos de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

Outro desdobramento importante das negociações foi o estabelecimento de uma estrutura (framework) básica que deverá servir como referência para definição do acordo final. Além dos objetivos de desenvolvimento sustentável e suas metas (SDGs and targets), acima mencionados, também constituem objeto de debate os chamados meios de implementação (means of implementation); as formas de cooperação ou a parceria global para o desenvolvimento (the global partnership for development); o acompanhamento e avaliação do processo (follow–up and review); e os “primeiros passos para a declaração final”.

ODS 17 Objetivos Meios de

Parceria Global p/

Implementação

Desenvolvimento

Acompanhamento e Avaliação

Declaração Final

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Algumas diferenças entre os ODS e os ODM merecerem destaque. A primeira delas é

que

os

ODM

estavam

orientados

exclusivamente

para

os

países

em

desenvolvimento, enquanto a agenda pós-2015 foi ampliada para englobar todos os países que são reconhecidos pelo sistema ONU. Tal decisão sinaliza claramente que nenhum país do mundo, desenvolvido ou não, é verdadeiramente sustentável. Além disso, a ênfase no combate à pobreza e à fome foi substituída, embora não tenha sido eliminada – como, aliás, sinaliza a opção por colocar o combate à pobreza e à fome antes de todos os outros na lista de metas –, pela preocupação com a sustentabilidade nos marcos do que havia sido definido em 1992, a partir da Agenda 21: a integralidade e equivalência de três objetivos gerais, a saber, a promoção do crescimento econômico de forma sustentável e socialmente justo. Por fim, as formas de financiamento. No caso dos ODM, a principal forma para captar recursos eram os cofres públicos, isso é, os próprios Estados, seja por meio do estímulo do investimento governamental, seja pela cooperação internacional interestatal. Até então a iniciativa privada incidia marginalmente sobre o financiamento da sustentabilidade. No caso dos ODS, se prevê uma maior participação da iniciativa privada através da adoção de mecanismos financeiros e monetários como resposta para a crise climática. Isto tem implicado a criação de novos modelos de negócios para a promoção da sustentabilidade, abrindo-se todo um nicho de possibilidades para investimentos em um contexto de crise econômica e financeira global. Em geral, estes atribuem grande ênfase sobre as responsabilidades individuais e locais, por exemplo, no que se refere ao consumo “consciente” de bens e serviços ou a diversas tentativas de regulação contratual do modo de vida de povos e povoados localizados em territórios do Sul global, como no caso de agricultorxs familiares, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros. Nesse sentido, operam dois mecanismos bastante interessantes, ambos relacionados à transferência de responsabilidades dos maiores poluidores para agentes menos poluidores, cujas ações apresentem baixo impacto relativo no meio ambiente ou sejam mesmo facilmente revertidas em processos de mitigação e adaptação no que tange a temas sensíveis ao problema das mudanças climáticas e da preservação de biodiversidade. ... novos passos As futuras sessões estão programadas para avançar sobre estes temas definidos na estrutura básica, com foco particular na declaração final e no acompanhamento e revisão do processo. Haverá alguns debates importantes relativos aos futuros indicadores dos ODS, além de sessões conjuntas sobre o financiamento para o

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desenvolvimento, sobre os meios de implementação e sobre a parceria global para o desenvolvimento. Como se nota, as negociações internacionais que giram em torno do tema de mudanças climáticas são bastante complexas; pois elas incidem sobre diferentes aspectos da vida, desde o cotidiano até a política nacional e as disputas internacionais. Existem, contudo, alguns consensos sobre essa agenda política que estão em negociação e esperam o fechamento dessas questões. São eles: 

Flexibilizar as bases legais que servirão aos ODS, inclusive no sentido de prever atualizações das normas fiscais internacionais para financiar os Objetivos;



Estabelecer, como parâmetro basilar, o compromisso com os direitos humanos em todos os acordos de investimento (investment agreements) entre Estados, Organização Internacionais e mesmo os de ordem privada, da mesma forma que a elaboração de normas ambientais e sociais vinculantes em todos os contratos provenientes desse tipo de acordo;



Estabelecer salvaguardas para legislações nacionais relativas a saúde, meio ambiente, segurança nacional e estabilidade financeira;



Mesa de debates permanente para definição de um quadro multilateral para a reestruturação da dívida soberana.

Os principais desafios Para além dos consensos acima mencionados existem grandes divergências por resolver. Estas deverão ser enfrentados até setembro de 2015. O bloco de países desenvolvidos, em sua maior parte, empurra uma agenda que não quer deixar “ninguém para trás” (“leave no one behind”). No entanto, surge a dúvida: Ninguém quem? Para trás do quê? Do modelo atual desenvolvimento comprovadamente insustentável? O que significa financiar os países em desenvolvimento para que estes possam entrar na economia de mercado sem que haja um questionamento profundo sobre os padrões de produção e consumo atualmente vigentes, que têm servido como obstáculo à confluência real, concreta, das preocupações relativas a produção e a distribuição das riquezas e a sustentabilidade? Existem também divisões políticas importantes em torno da noção de parceria global. A maioria dos países em desenvolvimento argumenta que os acordos de parceria devem obedecer ao princípio da soberania dos povos que rege a interação das unidades políticas no sistema internacional. Isto significa (re)afirmar que os Estados nacionais são – e, sob esta perspectiva, devem continuar a ser – os principais

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responsáveis pela proteção dos direitos humanos, pela cobrança e recolhimento de impostos, pela formulação de políticas públicas etc. No entanto, os países desenvolvidos defendem um modelo de parceria “multistakeholder”, que deve envolver todos os atores capazes de contribuírem financeiramente para a implementação a agenda dos ODS. Esta abordagem abre um espaço considerável ao protagonismo

das

grandes

corporações

internacionais,

concedendo-lhes

um

importante benefício no que se refere à condução do processo. Diante disso, o bloco dos países em desenvolvimento tem indagado sobre quais seriam as implicações desta via: Será positivo diluir as responsabilidades dos Estados? Em que espaços serão tomadas as decisões? Quem serão os reais benificiários deste modelo? E, mais importante, como se dará a accountability de todo o processo? Se o papel dos Estados diminui, quem ocupará esse espaço do ponto de vista da mobilização de recursos, da legitimidade para representar a soberania popular e dos incentivos para combater as desigualdades e a crise ambiental? Por outro lado, os países que defendem o modelo de “multistakeholder” têm apontado justamente os mesmos atores que nos levaram a este padrão de desenvolvimento injusto e insustentável como novos protagonistas da ação global pela sustentabilidade. O tema do financiamento e o papel do setor privado é um dos mais intensos e controversos em debate. Diante deste impasse, os Estados em desenvolvimento, em parceria com outros atores envolvidos processo, têm indicado alguns caminhos: 

Mobilização de recursos através da criação de algum tipo de tributação internacional, que possam, ao mesmo tempo financiar a agenda do desenvolvimento sustentável e “equilibrar” o sistema tributário internacional. Muitos dos países em desenvolvimento argumentam que eles ainda enfrentam importantes gaps na sua capacidade de arrecadar através de impostos internos, ao mesmo tempo que a falta de uma regulamentação fiscal coerente a nível global permite que enormes somas de dinheiro circulem pelo mundo contribuindo muito pouco para o erário público e para a solução de problemas coletivos.



Em relação ao papel que o setor privado teria no processo de financiamento para o desenvolvimento o principal entrave é sobre qual metodologia deveria ser utilizada para o uso destes (volumosos) recursos. A opção apresentada como a mais viável até o momento é a via das parcerias público-privadas. No entanto, organizações como a OCDE e o Banco Mundial (BM) têm apontado importantes limites desta escolha, principalmente no que diz respeito a

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barreiras legislativas nacionais que não sejam favoráveis a este tipo de solução. 

Outra opção é através dos mercados de carbono, que enfrentam, todavia, grande ceticismo devido à decepção, para dizer o mínimo, que eles produziram nos investidores depois da crise de 2008.



Ainda existem referências a ações de filantropia. Estas, contudo, também enfrentam problemas relacionados à transparência destas operações e falta de “operadores globais” para viabiliza-las.

Outro desafio que deverá ser solucionado refere-se a que fórum recorrerão os Estados para dirimir suas diferenças e definir suas disputas. Mais uma vez, repetese o dualismo de posições entre os países economicamente mais ricos e os mais pobres. Os países em desenvolvimento querem que as decisões sejam tomadas no âmbito das Nações Unidas, fórum multilateral vinculando as questões relativas à sustentabilidade às normas e aos padrões internacionais, sobretudo àquelas relativas aos direitos humanos. Os países ricos indicam que o processo de definição tenha como endereço os fóruns do FMI e da OCDE, destacando as possibilidades e capacidade dos diferentes corpos técnicos das instituições. Concorre contra esta proposta a falta de universalidade e de um mandato mais abrangente para promover o desenvolvimento sustentável e os direitos humanos das referidas organizações.

Uma nova agenda para o desenvolvimento? Existem várias maneiras de se localizar e descrever o desenvolvimento do capitalismo no mundo moderno. É possível, por exemplo, citar algumas abordagens que partem dos paradigmas estabelecidos pela teoria econômica, aquelas que enfatizam a relação entre instituições e desenvolvimento, as que enfocam o papel dos intelectuais e das elites nacionais, ou, ainda, uma perspectiva que vamos chamar de cíclicoevolucionista, baseada nos ciclos econômicos nacionais e no movimento de superação continuada do, por assim dizer, espírito, ou motor, do desenvolvimento mundial – espírito ou motor, estes, que se confundem com as etapas de desenvolvimento das grandes potências internacionais, seus interesses econômicos e as relações de poder e exploração estabelecidas entre os países “desenvolvidos” e “não desenvolvidos” em cada fase. Trate-se da angulação que for em relação ao debate do desenvolvimento econômico é sempre importante iniciar a análise pelos projetos de sociedade colocados em disputa, a fim de não reificar, de forma simplista, os posicionamentos adotados,

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sobretudo se eles se esconderem por detrás do véu do cientificismo. Todas as perspectivas acima mencionadas evidenciam preocupações relativas processo civilizatório tal como se deu na modernidade, assim como com as modernas formas de produção da riqueza e (re)produção da pobreza e da desigualdade. No entanto, de maneira geral, ignoram a contemporaneidade de modos de vida forjados a partir de distintas elaborações sobre temas como comunidade, sociedade, povo ou nação. Esse é o primeiro, talvez mais fundamental, aspecto do atual debate sobre o desenvolvimento aliado à problemática da sustentabilidade ambiental. A ideologia do progresso, na maneira como constrói social e cognitivamente a relação humana, e desta com a natureza, na sua qualidade materialista e burguesa, urbana e industrialista, obliterou as experiências dos outros que historicamente se colocaram fora ou nas margens da linha de corte da cultura moderna de matriz eurocêntrica. A crise climática contribuiu, nesse sentido, de uma maneira que talvez nenhuma outra ameaça antes percebida fizera, para colocar essas visões de mundo coexistentes, porém desconectadas, uma diante da outra. Isto gerou um embate direto e aberto entre elas, no entanto, com óbvia desvantagem de uma em relação a outra. A crise climática e seus efeitos impuseram o diálogo com outras culturas, senão mais porque ela traz a expectativa do “fim”, da “morte”; enfim, da extinção do gênero humano, para o centro das discussões sobre o futuro dos homens (sic) e do planeta. Os povos pejorativamente chamados “atrasados” acabaram por tornar-se elementos-chave na formulação de soluções para a crise. Suas criações têm sido, no entanto, apropriadas de forma conveniente ao capitalismo e a mercantilização desse saber-viver. O reconhecimento das identidades próprias a essas que, vivendo na era moderna, não são propriamente forjadas enquanto modernidade, servem justamente como reservatórios de um tempo original, que a nostalgia faz parecer melhor. Seja como for, este processo é interessante, porque ele promove o encontro entre esses dois mundos, não raro, representados pela falsa dicotomia entre campo e cidade ou, nos termos do debate de hoje, entre a floresta e a urbes. A floresta, no entanto, nunca se mostrou tão rentável aos investimentos do capitalismo internacional. Tal é a força desse novo horizonte mercantil, que em um contexto político de legitimidade irrestrita a quase tudo que reivindica para si o combate à “pobreza” e a defesa da “sustentabilidade”, a argumentação dos investidores tem se pautado pelo discurso dos incentivos econômicos positivos para o enfrentamento às mudanças climáticas na forma da geração de recursos provenientes da contabilização (precificação) de carbono, entre outros “serviços ambientais”, transformando-os em mais um produto negociável nas bolsas de valores internacionais.

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Na prática, a introdução dos mecanismos de mercado no combate às mudanças do clima implica a gestão de mecanismos de compensação (offset) por meio dos quais é possível transferir a responsabilidade do cuidado com a natureza para zonas que ofereçam maiores “vantagens comparativas” em relação à mitigação e à adaptação. Em outras palavras, permite que os países ricos e as empresas neles sediadas comprem créditos de carbono dos países pobres, mascarando, através de uma operação contábil, os verdadeiros índices de poluição provocados. Nesse ciclo de negociações, com efeito, o objetivo de “não deixar ninguém para trás” na caminhada rumo ao futuro que queremos, precocemente definido como o mundo onde opera a economia verde, não desafina o tom das mudanças comandadas pelos grandes centros do capitalismo mundial em seu esforço de reorganização e revitalização no pós-crise do financismo global. O que está em jogo no novo modelo de desenvolvimento do capitalismo é que se abre diante de nós um momento de recodificação do capitalismo por meio capital financeiro e cognitivo. Se, por um lado, tem-se uma ambientação cultural e cenográfica da cidade para as questões da sustentabilidade negociadas no mercado financeiro, por outro lado, a criação de marcos regulatórios que têm por base a compra e a venda dos serviços da natureza introduzem uma lógica de proletarização de povos e comunidades que forjaram seus modos de vida a partir da convivência, por definição sustentável, com a natureza. Embora os principais embates nesse sentido se deem no âmbito da formulação de um novo acordo sobre o clima, é possível ver de que maneira os ODS preparam o terreno para a adesão mundial a essas controversas formas de financiamento e aos mecanismos de implementação das mudanças necessárias à proteção do meio ambiente. Sob nosso ponto de vista, os ODS, desde seu processo de constituição até a sua implementação, abrem a oportunidade para que Estados e outros setores da sociedade civil envolvidos no processo consolidem uma agenda política fundada na justiça socioambiental. Esta deve levar a um acordo que deve proteger o meio ambiente, os direitos humanos e a democracia construídos sobre uma sólida base e traduzidos em metas e indicadores adaptados a cada país e com capacidade de governança global. O que se conclui, no entanto, da condução do processo para definição dos ODS é o reforço de uma estratégia de setorização da economia mundial, que permitirá o investimento de empresas transnacionais em cada área através da garantia da segurança jurídica para os investimentos, contra a experiência dos povos, territórios e culturas.

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