Arquivos da repressão e da resistência - Arquivo Nacional

INEZ TEREZINHA STAMPA - RODRIGO DE SÁ NETTO Organizadores ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA Comunicações do I Seminário Internacional Documenta...
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INEZ TEREZINHA STAMPA - RODRIGO DE SÁ NETTO Organizadores

ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

Arquivo Nacional Rio de Janeiro 2013

Copyright 2013 Arquivo Nacional – Centro de Referência Memórias Reveladas

Arquivo Nacional Praça da República, 173 - 20211-350, Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefone: (21) 2179-1273 Fax: (21) 2179-1297 E-mail: [email protected]

Catalogação na fonte: Janaina Ruivo dos Santos CRB-7/5120 A772

Arquivos da repressão e da resistência: comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura [livro eletrônico] / Inez Terezinha Stampa e Rodrigo de Sá Netto (orgs.). - Rio de Janeiro: Arquivo Nacional – Centro de Referência Memórias Reveladas, 2013. 323 p.: il. Inclui bibliografia. Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web: ISBN 978-85-60207-58-9 1. Brasil – História - 1964-1985. 2. Ditadura – Brasil. I. Stampa, Inez Terezinha, 1962-. II. Sá Netto, Rodrigo, 1979-. III. Título. CDD – 981.08

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil – História : Ditadura – Brasil 981.08

Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro de Estado da Justiça José Eduardo Cardozo Diretor-Geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes da Silva Coordenação do Centro de Referência Memórias Reveladas Inez Terezinha Stampa Vicente Arruda Câmara Rodrigues

Organização Inez Terezinha Stampa, Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas, Arquivo Nacional (MR/AN) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) Rodrigo de Sá Netto, Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas, Arquivo Nacional (MR/AN) Revisão Inez Terezinha Stampa Ricardo Medeiros Pimenta Rodrigo de Sá Netto Projeto Gráfico e Diagramação Rodrigo de Sá Netto

Realização do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (AMORJ/IFCS/UFRJ) Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas, Arquivo Nacional (MR/AN) Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (PPGCI/IBICT) Programa de Pós-graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira (PPGH/Universo) Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UNIRIO) Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PPGSS/PUC-Rio)

Comitê Científico: João Marcus Figueiredo Assis (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Marcelo Timotheo da Costa (Universidade Salgado de Oliveira) Luciana Heymman (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas) Maria Paula Araújo (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Georgete Medleg Rodrigues (Universidade de Brasília) Lucia Grinberg (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Benito Schimidt (Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Associação Nacional de História) Vladmir Oliveira da Silveira (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade Nove de Julho) Paulo Knauss (Universidade Federal Fluminense e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro) Bruno Groppo (Centre d’Histoire Sociale du XX Siècle / Université de Paris 1)

Comitê Organizador Angélica Müller (Universidade Salgado de Oliveira) Icléia Thiesen (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Inez Stampa (Centro de Referência Memórias Reveladas/ Arquivo Nacional e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) Marco Aurélio Santana (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro) Ricardo Medeiros Pimenta (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia) Vicente Rodrigues (Centro de Referência Memórias Reveladas / Arquivo Nacional)

Apoio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

Sumário

Documentar a Ditadura, uma reflexão coletiva sobre uma história que não pode se repetir 10 Inez Terezinha Stampa e Rodrigo de Sá Netto

Sessão de Comunicações 1 CONSTITUIÇÃO DE ACERVOS A preservação de cartazes do movimento estudantil: a construção da memória da atuação secundarista durante a ditadura militar 22 Ivy Souza da Silva Abrindo os arquivos do Deops/SP: a experiência da livre disponibilização na internet dos acervos da repressão 32 Monique Félix Borin e Sheila Aparecida Rodrigues Soares A sobrevivência dos arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia: a noção de ramificação dos documentos 40 Shirley Carvalhêdo Franco A importância da elaboração de instrumentos de pesquisa para o resgate da memória: a experiência do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul na confecção de um catálogo seletivo da documentação da Comissão Especial de Indenização 57 Renata Pacheco de Vasconcellos e Vanessa Tavares Menezes

Sessão de Comunicações 2 ARQUIVOS E HISTÓRIA ORAL Marcas da Memória: a construção de um acervo de história oral da ditadura e anistia no Brasil 70 Desirree dos Reis Santos e Izabel Pimentel da Silva A fonte oral como arquivo vivo da ditadura

86

Silvania Rubert

Sessão de Comunicações 3 INFORMAÇÃO O Projeto Clamor: documentação e memória de um comitê pelos direitos humanos no cone sul e o acesso à informação 104 Ana Célia Navarro de Andrade Ditadura, direitos humanos, arquivos e educação a partir do patrimônio: documentar a ditadura para que(m)? 120 Clarissa de Lourdes Sommer Alves e Nôva Brando A produção de informações sobre os exilados brasileiros na França durante o regime militar (1964-1979) 138 Paulo César Gomes Bezerra Os documentos da comunidade de informações e segurança nos anos ditatoriais (19641985): uma análise crítica 146 Vitor Garcia

Sessão de Comunicações 4 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA O MDB no acervo do Dops-ES: controle ideológico e resistência política no Espírito Santo 155 Amarildo Mendes Lemos Documentando a luta e a resistência à ditadura militar

173

Solange de Souza

Sessão de Comunicações 5 MEMÓRIA A arte como documento-testemunho: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio e Sérgio Ferro durante a ditadura militar 193 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti Quem tem medo de lembrar? Da Lei de Anistia à Comissão da Verdade

207

Cleidson Carlos Santos Vieira O Memorial das Ligas Camponesas na contramão da ditadura

222

Janicleide Martins de Morais Alves O Arquivo da Direccion de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA): entre a memória histórica e a verdade judicial 240 Marcos Oliveira Amorim Tolentino

Sessão de Comunicações 6 ARQUIVOS DA REPRESSÃO O Ministério do Trabalho e o trabalhador: a atuação de Arnaldo Sussekind

258

Heliene Nagasava Nos arquivos da polícia política: reflexões sobre uma experiência de pesquisa entre os papéis do Dops do Rio de Janeiro 267 Luciana Lombardo Costa Pereira “Comunicar acto controlado”. Un análisis del Partido Comunista según el Servicio de Inteligencia Policial de la Argentina, en la Provincia de Buenos Aires 285 María Eugenia Marengo Hecker Os arquivos do aparato repressivo do Rio Grande do Sul e o monitoramento da fronteira Brasil-Uruguai 306 Marla Barbosa Assumpção

Programa do Seminário

322

Documentar a Ditadura, uma reflexão coletiva sobre uma história que não pode se repetir

Inez Stampa1 Rodrigo de Sá Netto2

Os arquivos, por intermédio de seus conjuntos documentais, podem contribuir decisivamente para que se conheça o passado e, também, para embasar o planejamento de políticas do futuro. São, por outro lado, fundamentais para determinar, no presente, as responsabilidades por injustiças e crimes, principalmente quando cometidos em períodos de exceção por agentes do Estado ou a seu mando. Dessa forma, os documentos devem ser reconhecidos como um bem público, que, direta ou indiretamente, contribuem para a escrita da história, para o desenvolvimento nacional e para a promoção do direito à memória e à verdade. Mais do que registros imparciais do tempo, os documentos são uma seleção, nada aleatória, de vestígios do passado (LE GOFF, p. 535). Critérios subjetivos norteiam não apenas a sua produção, acumulação e preservação, mas também a sua relevância no presente, seus usos científicos e sociais. Assim, mais do que mero suporte para a produção acadêmica, a documentação originada no contexto das lutas políticas no Brasil entre 1964 e 1985, tanto a que ostenta o timbre estatal, como aquela outra, muitas vezes clandestina, saída dos mimeógrafos da resistência, aparece como requisito para a recuperação de parte da memória coletiva que se pretendeu censurar, desaparecer, isto é, se apagar da história. Conforme apontam Abrão e Torelly (2010), a memória é um meio de significação social e temporal de grupos e instituições, o que implica em reconhecer sua importância para a geração do senso comum, ou seja, para a compreensão coletiva da sociedade sobre determinados eventos do passado. Dessa forma, a memória joga papel fundamental no processo de auto-reconhecimento de um povo, ao embasar o processo de construção de sua identidade: ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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[...] lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro, uma vez que o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. Mais ainda: nossas lembranças são determinantes para a orientação de nosso agir [...] (ABRÃO e TORELLY, 2010, p. 107). Dessa forma, a adoção de políticas de memória específicas para enfrentar o legado histórico de violações sistemáticas dos direitos humanos, como as que ocorreram entre 1964 a 1985, tem por objetivo não somente garantir a compreensão do que ocorreu, mas, também, reforçar o entendimento coletivo de que são necessárias estratégias para combater, no presente, essas violações, que teimam em persistir como parte da realidade social brasileira. Por outro lado, cabe apontar que a memória pode ser construída e reconstruída a partir de fontes diversas, como, por exemplo, os documentos textuais recolhidos aos arquivos brasileiros, os livros de uma determinada biblioteca pública, os registros audiovisuais de um colecionador particular ou, ainda, os relatos orais de pessoas que viveram ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, modos de vida etc. Referindose expressamente aos arquivos, Coimbra (2010, p. 94), afirma que: [...] nas sociedades democráticas, e a propósito da história recente, a todos cabe o dever cívico de promover a discussão crítica do passado, de forma serena e sem revanchismos, buscando a verdade e a justiça e, sobretudo, exigindo responsabilidade aos poderes públicos pela preservação do legado documental histórico, criando e apoiando os “repositórios das memórias nacionais”.

Esse “dever cívico”, como lhe chama a autora, ganha urgência no que se refere à memória de períodos nos quais ocorreram violações maciças dos direitos humanos, seja porque se trata de uma memória disputada entre vítimas e perpetradores de graves violações dos direitos humanos, seja porque se trata de uma memória em risco, pelo

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interesse que determinados grupos têm no aniquilamento dos registros históricos da época. Isso somente é reforçado pela constatação de que o Brasil é detentor do maior conjunto documental de origem pública sobre a repressão política na região sulamericana (SILVA, 2008). Esse papel de destaque é garantido pelo volume de documentos públicos produzidos e acumulados pelos órgãos e entidades integrantes do extinto Sistema Nacional de Informações e Contrainformação (Sisni), que tinha por órgão central o, também hoje extinto, Serviço Nacional de Informações (SNI). De acordo com dados de 2013 do Arquivo Nacional, apenas o acervo deste órgão sobre o período do regime civilmilitar é composto por aproximadamente 18.000.000 (dezoito milhões) de páginas de documentos textuais, além de outros tipos documentais3. Contudo, se a recente ditadura brasileira deixou-nos, como sombrio legado, o maior acervo documental entre suas congêneres no Cone Sul, é verdade, também, que a abertura e divulgação destes documentos deram-se de maneira relativamente tardia, principalmente a partir da entrada em vigor, em 2012, da Lei de Acesso a Informações4. Diante desse quadro, torna-se urgente promover o contato da sociedade com esse material, facilitando o acesso às fontes, estimulando a sua divulgação e apoiando iniciativas voltadas para a reflexão e análise das informações nelas contidas. Com esse propósito, o I Seminário Internacional Documentar a Ditadura, realizado de 4 a 6 de junho de 2013, na sede do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, procurou promover um debate plural e interdisciplinar sobre os atos de documentar o regime, envolvendo os documentos e arquivos criados pelas instituições militares e civis que serviam ao governo autoritário e, por outro lado, pelos grupos e indivíduos que a ele resistiram. Foram três dias de intenso diálogo, com a participação ativa do público presente, que teve a oportunidade de debater com alguns dos maiores especialistas nacionais e estrangeiros na temática dos arquivos da repressão. Lugar de memória por excelência, os arquivos são, também, objeto da história. Percebê-los enquanto campo a ser investigado foi, enfim, o ponto de inflexão conjunta entre pesquisadores, estudantes e acadêmicos de diferentes áreas presentes ao evento.

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Por outro lado, ficou claro que estudar o processo de produção da informação documental, seu circuito infocomunicacional, bem como sua natureza e práxis de controle, além dos meios e dinâmicas políticas responsáveis pelas suas formas de preservação ou destruição requeria compreender a especificidade de cada tipo de arquivo. Assim, a partir dessa percepção, optou-se por se lançar luz tanto sobre os arquivos da repressão como sobre aqueles produzidos e/ou acumulados pelos movimentos de oposição. No caso dos arquivos da repressão, aqueles produzidos e/ou custodiados pelo Estado, as experiências nacionais dos diferentes arquivos públicos que contém documentação de regimes autoritários, bem como as políticas públicas para a área implementadas após regimes repressivos, foram colocadas em pauta com o objetivo de estabelecer comparações seja com os países latino-americanos, seja com países da Europa oriental do pós 1989, quando se desfez o bloco soviético. Já o debate sobre arquivos dos movimentos sociais propiciou não apenas a troca de informações sobre a realidade atual de tais arquivos e seus procedimentos para acesso à documentação como, também, estimulou a reflexão sobre os significados e papéis desta rede de informações e os desafios da preservação da memória destes mesmos movimentos, de partidos e outras organizações de resistência. De forma geral, o Seminário teve como objetivo criar canais para trocas de experiências, além de incentivar a discussão sobre os arquivos das forças da situação e da oposição no contexto dos “anos de chumbo”, acervos fundamentais para o conhecimento da história e para o amplo acesso à verdade e à justiça. Buscou-se, enfim, aprofundar esse debate através de um processo de reflexão coletiva e multidisciplinar, levando em consideração a complexidade e riqueza do patrimônio documental brasileiro e sua articulação com as experiências de outros países, notadamente de acervos referente às lutas políticas ocorridas na segunda metade do século XX. Nesse sentido, esta coletânea reúne artigos resultantes das comunicações apresentadas durante o Seminário Documentar a Ditadura, divididas em seis sessões ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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temáticas, articuladas pela temática dos arquivos da repressão e da resistência, conforme resumiremos a seguir: A primeira sessão, denominada “Constituição de Acervos”, buscou reunir experiências voltadas para a recuperação de acervos documentais emblemáticos do período da ditadura militar, bem como da constituição de novos acervos, reunidos a partir de experiências no campo da justiça de transição. Dessa forma, o artigo “A preservação de cartazes do movimento estudantil: a construção da memória da atuação secundarista durante a ditadura militar”, de Ivy Souza da Silva (Aperj e PPGMS/Unirio), traz o caso de dois cartazes do período da ditadura militar, contidos no acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), e que contêm, além de palavras de ordem escritas por estudantes, marcas de sapatos. A partir desse caso, a autora discute questões relativas à preservação da documentação e da memória da atuação dos estudantes secundaristas e suas formas de resistência à ditadura militar. Por seu turno, “Abrindo os arquivos do Deops/SP: a experiência da livre disponibilização na internet dos acervos da repressão”, de Monique Felix Borin (Apesp) e Sheila Soares (Apesp), narra a experiência do Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp), um dos primeiros a abrir a documentação do período da ditadura militar no Brasil, e a recente disponibilização de parte dessa documentação pela Internet. Já Shirley Franco (UnB), com o artigo “A sobrevivência dos arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia: a noção de ramificação dos documentos”, investiga o caso da publicação de fotos, em 2004, supostamente do jornalista e preso político Vladimir Herzog, que acabou por suscitar discussões na mídia sobre os arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia (1972-1975). A autora também aborda a noção de ramificação, buscando demonstrar a impossibilidade de destruição, de maneira completa e absoluta, de todos os documentos arquivísticos relacionados a um evento histórico – neste caso, os documentos arquivísticos relativos à Guerrilha do Araguaia. Encerrando a primeira sessão, o artigo “A importância da elaboração de instrumentos de pesquisa para o resgate da memória: a experiência do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul na confecção de um catálogo seletivo da documentação

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da Comissão Especial de Indenização”, de Vanessa Menezes (Apers) e Renata Pacheco de Vasconcellos (Apers), que ressalta a importância das fontes arquivísticas, e dos instrumentos de pesquisa elaborados a partir delas, para a construção de conhecimento histórico e o resgate da memória da história recente brasileira, mais especificamente acerca dos fatos ocorridos no período de 1964 a 1985 durante a ditadura civil-militar. Por seu turno, a segunda sessão, “Arquivos e história oral”, teve por objetivo qualificar o debate sobre a importância das iniciativas de história oral, compreendidas como fundamentais para recontar a história de um período em que os arquivos oficiais estavam a serviço da ditadura. Inicia a sessão o artigo “Marcas da Memória: A Construção de um Acervo de História Oral da Ditadura e Anistia no Brasil” de Desirree dos Reis Santos (PPGHIS/PUC-RJ) e Izabel Pimentel da Silva (PPGH/UFF). O texto apresenta a iniciativa Marcas da Memória, uma parceria do Ministério da Justiça com a UFRJ, destacando a riqueza do seu acervo documental, constituído predominantemente por depoimentos de pessoas atingidas pela repressão estatal entre 1964 e 1985. A partir da seleção e análise de um conjunto de depoimentos, o trabalho introduz o leitor ao universo psicológico dessas pessoas, suas impressões e dilemas diante de questões do passado e do presente, como a atual política de reparação empreendida pelo Estado brasileiro. A sessão encerra com o artigo de Silvania Rubert (PPGH/UFRGS) que, em “A fonte oral como arquivo vivo da ditadura”, parte de depoimentos de familiares de desaparecidos políticos para abordar a vivência do luto nos casos em que inexistem provas materiais da morte de um ente querido. Além de reforçar a importância das fontes orais para a compreensão da história recente, a análise dos depoimentos mostra como a experiência do luto se torna mais árdua diante da ausência de restos mortais, podendo mesmo adquirir traços patológicos. Quanto à terceira sessão, denominada simplesmente de “Informação”, esta teve por objetivo discutir questões relativas ao acesso a informações, bem como sobre as próprias ações de recuperação de informações sobre o período ditatorial. Ana Célia Navarro de Andrade (Cedic/PUC-SP), no artigo “O projeto Clamor: documentação e memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul e o acesso à informação”, apresenta o Centro de Documentação e Informação Científica da Pontifícia Universidade ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Católica de São Paulo, relatando suas práticas voltadas para a preservação e divulgação do acervo. Entre os documentos custodiados pelo Cedic/PUC-SP, Navarro se detém, especialmente, na descrição do arquivo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, importante organização humanitária ativa entre 1978 e 1991. O texto “Ditadura, Direitos Humanos, Arquivos e Educação a partir do patrimônio: documentar a ditadura para que(m)?”, de Clarissa de Lourdes Sommer Alves (Apers) e Nôva Brando (Apers) ao indagar sobre a função social do ato de se documentar os anos ditatoriais, aborda a recente experiência do Apers que busca ampliar e direcionar a divulgação do seu acervo através de um Programa de Educação Patrimonial voltado para estudantes do Ensino Médio, iniciativa que visa estimular a apropriação do tema ditadura e direitos humanos pela sociedade, condição para o pleno acesso à justiça e à memória. Já Paulo César Gomes Bezerra (PPGHIS/UFRJ), em seu artigo “A produção de informações sobre os exilados brasileiros na França durante o regime militar (19641979)”, analisa a atividade do Centro de Informações do Exterior, Ciex, voltada para os exilados brasileiros na França. Seu texto busca entender o olhar do Ciex sobre as inúmeras levas de exilados que, sob diferentes circunstâncias, precisaram deixar o país dirigindo-se, em grande parte, para a capital francesa, cidade que se apresentava como um espaço privilegiado para a oposição a partir do exílio. Por outro lado, o trabalho de Vitor Garcia (PPGH/Unirio), “Os documentos da comunidade de informações e segurança nos anos ditatoriais (1964-1985): uma análise crítica”, também aborda a comunidade de informações e segurança do regime ditatorial mas, sem se deter num órgão específico, busca entender as características gerais dos documentos produzidos pela comunidade. Sua análise atenta para aspectos externos desses textos, como a sua forma de produção e circulação, procurando, assim, compreender a estruturação e rotina de trabalho dos organismos que os produziram. Por sua vez, a quarta sessão temática, “Arquivos da resistência” chama a atenção para os acervos de grupos e pessoas que resistiriam às políticas repressivas da ditadura estabelecida em 1964. Amarildo Mendes Lemos (PPGHIS/UFES), autor de “O MDB no acervo do Dops-ES: controle ideológico e resistência política no ES” aborda a dinâmica

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política do Movimento Democrático Brasileiro – MDB, partido único de oposição à ditadura, concentrando-se na atuação de Max de Freitas Mauro, liderança do partido no estado do Espírito Santo. O método por ele utilizado é a pesquisa em documentos produzidos pelo Dops-ES que revelam inúmeros aspectos cotidianos do partido, como suas divisões ideológicas e conflitos internos, bem como o grau de vigilância e repressão exercido sobre a agremiação pela polícia política. Solange Souza (Cedem/Unesp), em “Documentando a luta e a resistência à ditadura militar”, prossegue apresentando o Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano – Asmob, acervo, formado nos anos 1970 por exilados brasileiros na Itália dispostos a preservar o legado documental dos movimentos sociais no Brasil. Propriedade do Instituto Astrojildo Pereira – IAP, o acervo se encontra, atualmente, custodiado pelo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Cedem – Unesp. Souza descreve, ainda, o trabalho de organização e divulgação desse acervo, empreendido pelo Cedem. A quinta sessão, “Memória”, discute a memória do período repressivo a partir das mais variadas expressões de sua construção. Exemplo dessa abordagem é o artigo de Andrea Forti (PPGH/Unirio), intitulado “A arte como documento-testemunho: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio e Sérgio Ferro durante a ditadura militar”, que tem como objetivo analisar as trajetórias de dois artistas plásticos e militantes políticos da década de 1960, discutindo temas como a relação entre produção artística e engajamento político. Com outro enfoque, o artigo “Quem tem medo de lembrar? Da Lei de Anistia à Comissão da Verdade”, de Cleidson Carlos Santos Vieira (PPGH/Ufal), contribui para o debate a partir da análise do processo de transição da ditadura civil-militar para a democracia representativa, enfocando as estratégias utilizadas pela elite dirigente frente às atrocidades cometidas pelo regime autoritário, bem como o papel de vítimas e de organizações de familiares de desaparecidos políticos no enfrentamento dessas questões. Já o artigo “O memorial das ligas camponesas na contramão da ditadura”, de Janicleide Martins de Morais Alves (PPGDH/UFPB), discute a questão da memória da

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repressão no campo e, em especial, a atuação do Memorial das Ligas Camponesas para preservar o legado desse movimento social que marcou a história da Paraíba e do Brasil, lutando por direitos sociais no campo e pela Reforma Agrária. Encerrando esta sessão temática, o artigo “O arquivo da Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA): entre a memória histórica e a verdade judicial”, de autoria de Marcos Oliveira Amorim Tolentino (PPGH/Unicamp), analisa as relações que se estabelecem na Argentina entre os arquivos e a aplicação da justiça a partir dos usos que são feitos dos arquivos em questão. Bem como a relação entre memória histórica e justiça. Para tanto, traz o exemplo dos arquivos da DIPBA órgão de repressão que, entre 1956 e 1998, dedicou-se à espionagem, ao registro à análise da informação para a perseguição política e ideológica em Buenos Aires. Por fim, a sexta sessão temática foca nos arquivos da repressão, isto é, nos acervos que foram constituídos para ocultar informações e negar direitos, e que hoje, em sentido inverso, tornaram-se uma poderosa ferramenta de conhecimento e de garantia de direitos. Esta sessão é aberta com um artigo em Espanhol de Maria Eugenia Marengo Hecker (CECSO/FaHCE/UNLP), denominado “Comunicar acto controlado. Un análisis del Partido Comunista según el servicio de inteligencia policial de la Argentina, en la Provincia de Buenos Aires”, que busca analisar a vigilância dos agentes de inteligência da polícia de Buenos Aires sobre membros do Partido Comunista. A análise é feita a partir da documentação da “Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires” (DIPBA), entre os anos de 1949 a 1959. Já o artigo de Heliene Nagasava (Arquivo Nacional e Cpdoc/FGV), intitulado “O Ministério do Trabalho e o trabalhador: a atuação de Arnaldo Sussekind”, discute a atuação desse ex-ministro do trabalho (1964-1965), destacando a promoção de ações voltadas para os trabalhadores durante o contexto de disputa de interesses com os outros ministérios, especialmente aqueles da área econômica. Por outro lado, analisa a visão governamental sobre os trabalhadores durante a ditadura civil-militar, abordando temas como os expurgos sindicais, a lei antigreve e o arrocho salarial.

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De outra forma, Luciana Lombardo (PUC-Rio) apresentou o artigo “Nos arquivos da polícia política: reflexões sobre uma experiência de pesquisa entre os papéis do Dops do Rio de Janeiro”, que procura refletir sobre as possibilidades de pesquisa abertas com os arquivos do Dops do Rio de Janeiro, utilizando como exemplo o Fundo “Polícias Políticas” do Aperj. De acordo com a autora, a documentação investigada revela práticas similares de acompanhamento policial sobre o cotidiano dos sindicatos de trabalhadores e das editoras de oposição. Encerra a sessão temática o artigo “Os arquivos do aparato repressivo do Rio Grande do Sul e o monitoramento da fronteira Brasil-Uruguai”, de Marla Barbosa Assumpção, que revela algumas das políticas de controle e monitoramento, por parte do aparato repressivo brasileiro, que tinham como foco a fronteira do Rio Grande do Sul durante a ditadura civil-militar. Esse monitoramento foi analisado a partir da documentação das Seções de Ordem Política e Social (Sops), braços municipais do Dops/RS. Conforme dito anteriormente, os arquivos são fundamentais para determinar as responsabilidades pelos crimes e injustiças cometidas pelo Estado em períodos repressivos. Nesses casos, também contribuem diretamente para a escrita da história. Com essa visão, o evento cumpriu com o objetivo de favorecer a reflexão a respeito dos documentos concernentes ao período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) e na América Latina. Durante o Seminário, estiveram reunidos profissionais, pesquisadores e estudantes de diferentes nacionalidades, inseridos nos campos da história, das ciências sociais e política, do direito, do serviço social, da ciência da informação, da arquivologia, e outras áreas, com variadas experiências e pontos de vista sobre o tema. O ponto de convergência das diversas experiências e pesquisas apresentadas foi marcado pelo debate em torno dos atos de documentar o regime ditatorial, isto é, sobre os documentos e arquivos criados pelas instituições militares e civis que serviam ao regime, bem como pelos movimentos sociais, grupos e indivíduos que resistiram naquele

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mesmo período - – tudo para que as políticas do esquecimento não triunfem, e para que a história não se repita, seja como tragédia ou como farsa.

Referências ABRÃO, P. e TORELLY M. D. Justiça de transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS, B. de S. et. al. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto IberoBrasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça/Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra/Centro de Estudos Sociais, 2010. COIMBRA, M. N. O dever de não esquecer como dever de preservar o legado histórico. In: SANTOS, B. de S. et. al. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto IberoBrasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça/Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra/Centro de Estudos Sociais, 2010. LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1990. SILVA, J. A. O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985): Memórias Reveladas. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, dossiê Arquivos do regime militar, vol. 21, nº 02, jul/dez 2008.

Notas

1

Graduada em Ciências Sociais e em Serviço Social pela UERJ, é doutora em Serviço Social pela PUC-Rio, onde é professora do Departamento de Serviço Social com inserção na graduação e na pós-graduação. É servidora do Arquivo Nacional, atuando na coordenação do Centro de Referências das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas. 2

Graduado em Comunicação Social, pela UFF, e História, Pela UNIRIO, é mestre em História Pela UNIRIO. Técnico em Assuntos Culturais no Arquivo Nacional, atua no Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas. 3

Segundo dados do Relatório Anual 2013 do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) Memórias Reveladas. A referência a outros tipos de documentos compreende documentos microfilmados, audiovisuais e iconográficos (fotos, cartazes, gravuras etc.). 4

Embora promulgada em 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso a Informações (Lei 12.527/2011) somente entrou em vigor em 16 de maio de 2012, em virtude da necessidade de preparar adequadamente os órgãos da administração pública a seguir seus ditames.

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Sessão 1 CONSTITUIÇÃO DE ACERVOS

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A preservação de cartazes do movimento estudantil: a construção da memória da atuação secundarista durante a ditadura militar Ivy Souza da Silva5

Resumo: Em meio a documentos produzidos pela polícia política no ano de 1968, dois cartazes chamam atenção. São cartolinas com palavras de ordem escritas por estudantes que traz impresso em suas superfícies marcas de sapatos. O que teria acontecido a esses cartazes? Como preservar essas marcas? Essas são algumas das questões enfrentadas pela equipe de preservação de documentos do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e que se desdobraram em uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e que pretende contribuir com a construção da memória da atuação dos estudantes secundaristas no Movimento Estudantil, em concomitância com a construção da memória das Polícias Políticas através da difusão de suas práticas de investigação e da política repressora vigente no período da ditadura militar. Palavras-chave: cartazes; movimento estudantil; memória, ditadura. Abstract: Among the documents produced by the political police in 1968, two posters draw attention. These cardboards with slogans written by students bring in their surfaces shoe brands. What would have happened to these posters? How to preserve these traces? These are some of the issues faced by the Public Archives of the State of Rio de Janeiro’s documents preservation team, and opened in a research conducted in the Post Graduate Program in Social Memory of the Federal University of the State of Rio de Janeiro. This research has purpose to contribute with the construction of the memory performance of high school students in the Student Movement, in tandem with the construction of the Police policies memories through the dissemination of their investigation practices and political force in repressive period of the dictatorship. Keywords: posters; student movement; memory; dictatorship.

Introdução A preservação de bens culturais é uma atividade multidisciplinar que requer do profissional que atua na área, ainda na sua formação, o contato com diversos saberes similares ou distintos entre si, mas que se completam na rede do conhecimento necessário para o exercício do ofício. O documento arquivístico tem o que Cesare Brandi ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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chama de prevalência da instância histórica6, o que a distingui da obra de arte, cuja instância estética muitas vezes é sobreposta ao valor histórico da peça. As teorias sobre conservação e restauração são muitas, mas quando se trata de um tipo de acervo específico como o documento de arquivo, o conservador se vê diante do exercício de adaptação. As teorias que abordam questões relevantes a manutenção da historicidade são bem vindas ao laboratório de conservação de arquivo. E quando um documento arquivístico, além das informações nele grafadas, apresenta danos que ajudam a compor memórias? E quando essas memórias se opõem ao que foi relatado pelo discurso oficial? Essas questões sugiram durante o tratamento de documentos referentes ao Movimento Estudantil, reunidos pela Polícia Política do então Estado da Guanabara, hoje custodiados pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). O trabalho da equipe técnica de conservação do Aperj nos cartazes do Movimento Estudantil se deu no início do ano de 2010, quando a Divisão de Preservação de Documentos do Aperj propôs como atividade anual o tratamento dos dossiês do Setor Estudantil do Fundo Polícias Políticas do acervo da instituição. Neste conjunto documental há uma grande quantidade e variedade de cartazes na sua maioria apresentando algum tipo de dano que restringe o tipo de tratamento de conservação a ser realizado. Um exemplo é o grupo de cartazes eleito para análise nesse artigo, nos quais não é possível fazer sequer uma higienização mecânica7, procedimento básico para qualquer tipo de documento que neste caso, significaria um apagamento parcial da memória desses objetos. Contudo, não foi essa a primeira situação na qual a equipe do laboratório de conservação do Aperj se viu frente a uma situação como essa. No ano anterior o laboratório recebeu da Divisão de Documentos Permanentes uma toalha que pertencia ao prontuário de uma presa política, Genny Gleizer8. A toalha de rosto apresentava marcas de tipos diferentes de dobras e apresentava uma área com acúmulo excessivo de poeira. Como não foi possível remover toda a sujidade mecanicamente, optou-se por um tratamento químico simples, uma limpeza com água. Mas, ao ser molhada, a toalha apresentou manchas que não eram vistas com o tecido seco. Por acreditarmos que aquelas marcas poderiam contar algo a mais sobre o tempo em que Genny permaneceu ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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encarcerada, o tratamento foi interrompido sob o risco de termos esses vestígios apagados ou alterados. No caso dos cartazes, a higienização padrão realizada com a trincha e pó de borracha para a limpeza de sujidades superficiais, removeria grande parte das marcas encontradas no cartaz, ou seja, provocaria a perda de informação sobre a biografia da peça, apagamento de elementos da memória do cartaz e de seu uso em um determinado momento de sua história.

O Fundo Polícias Políticas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro Em 25 de agosto de 1931, por meio do Decreto nº 2.638, do Interventor Federal 9 no Estado do Rio de Janeiro Adolfo Bergamini, foi criado o Arquivo Geral do Estado. O arquivo era subordinado a Diretoria de Interior e Justiça e trazia como uma de suas competências “receber, classificar, guardar e conservar os papéis e livros findos, pertencentes às Secretarias de Estado, os quais serão relacionados e classificados segundo a natureza dos assuntos e o plano adotado” (Art 2o, I). Ao longo do tempo, o Arquivo Geral do Estado passou por diversas secretarias até ser incorporado a Secretaria da Casa Civil, já com o nome de Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. No ano de 1961 o arquivo passa a guardar a documentação referente à Presidência da Província e a Presidência do Estado do Rio de Janeiro. Em 1990 recebe o Fundo Casa de Detenção do Rio de Janeiro, com documentos produzidos entre 1860 a 1969 e em 1992 o Fundo Polícias Políticas. O Corpo de Investigações e Segurança Pública da Polícia Civil, datada do início do século XX, foi o primeiro órgão de repressão a crimes de competência política utilizado pelo governo. A Inspetoria de Investigações e Segurança Pública, criada em 1920 para manter a segurança interna da República foi extinta em 1922, quando da criação da 4ª Delegacia Auxiliar e da Seção de Ordem Política e Social com intuito de controlar as recém surgidas associações anarquistas e comunistas. Com o início da Era Vargas o controle passou a ser maior, e o Estado se preocupava ainda mais com as organizações camponesas, operárias e comunistas, que cresciam amplamente, agregando cada vez mais simpatizantes. A Seção de Ordem Política e Social foi transformada em Delegacia ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Especial de Segurança Política e Social (DESPS), no ano de 1933, e cinco anos mais tarde, chegou a possuir uma Seção de Arquivo Geral, demonstrando a importância da Delegacia e de suas ações, que agora iria reprimir e investigar de forma mais completa. A extinção da DESPS se deu em 1944 quando a criação de um novo órgão foi instituída: a Divisão de Polícia Política e Social (DPS). Vinculada ao novo Departamento Federal de Segurança Pública que, por sua vez, era subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Com a Segunda Guerra Mundial, a DPS passou a se ocupar, além das organizações nacionais, também com os estrangeiros que chegavam ao Brasil. Com a mudança da capital federal para Brasília, na década de 1960, toda a documentação produzida pelos órgãos Desps e DPS não foi transferida, permanecendo no novo Estado da Guanabara. Foi criado em 1962 o Departamento de Ordem Polícia Política e Social (Dops), que atuava na investigação e repressão dos sindicatos, intelectuais e estudantes. O Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), situado no novo Estado do Rio de Janeiro, em 1975, teve suas funções de Polícias Políticas extintas em 1983. Toda a produção documental deste departamento passou para a custódia da Polícia Federal, sendo recolhida em 1992, de acordo com a Lei n.º 2.027 (de 29 de julho de 1992, Rio de Janeiro), para ser salvaguardada pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e são esses os documentos que hoje compõem o Fundo Polícias Políticas do Aperj. São contabilizados mais de 600 metros lineares de documentos, que reúnem dossiês, prontuários, pastas, fichas de identificação e códices, datados desde a década de 1920. O fundo encontra-se ainda organizado da mesma maneira como a Polícia o fez no período de sua constituição. Os grupos documentais textuais estão organizados em pastas que, por sua vez estão agrupadas por setores. São 58 setores no total, dentre os quais se destacam: Aliança Nacional Libertadora, Partido Comunista, Ação Integralista Brasileira, Organizações da Esquerda Armada, Partidos Políticos, Sindicatos, Estudantil, Eleições, Greves, etc. Esta documentação tem seu acesso irrestrito de acordo com Decreto Estadual nº 44.131, de 21 de março de 2013.

Os secundaristas no movimento estudantil

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A atuação dos secundaristas no Movimento estudantil já foi abordada por alguns pesquisadores, mas não com tanta abrangência quanto a participação dos universitários. Embora o tempo dedicado ao movimento durante o ano fosse menor do que os universitários devido aos exames bimestrais aos quais os secundaristas eram subordinados10, a contribuição desse seguimento estudantil vem de longa data. Em 1950 é criada a União Nacional dos Estudantes Secundaristas (Unes), treze anos após da criação da União Nacional dos Estudantes - Une. Durante os seis primeiros anos, a organização dos secundaristas viveu uma crise, ora com mudanças de nomes, ora com a convivência de duas entidades de âmbito nacional reivindicando a representação dos secundaristas. Em 1956, Unes e Ubes foram unificadas e passaram a dividir o mesmo edifício sede com a Une na cidade do Rio de Janeiro.

Os cartazes Os objetos destacados do conjunto para análise neste trabalho são dois cartazes manuscritos atribuídos ao movimento estudantil, mais especificamente a estudantes secundaristas da cidade do Rio de Janeiro. São cartolinas (originalmente brancas e atualmente amareladas pelo tempo) escritas provavelmente com giz de cera 11 em apenas um lado. Foram confeccionados para transmitir uma informação simples e objetiva, em frases curtas com palavras de ordem, que no contexto para o qual foram criadas, desempenharam com eficiência sua função. A documentação que acompanha o cartaz no dossiê da polícia nos mostra dados sobre sua origem: foram produzidos pelos alunos do Colégio Estadual Camilo Castelo Branco, em data próxima (pela documentação não há como precisar a data de produção) a greve estudantil de 1968. Segundo documento datado do dia 29 de maio de 1968, um dia após um grupo de policiais ter destacado para averiguar sobre uma greve dos estudantes desta escola, a polícia retorna a escola e apreende dois cartazes e encaminhou ao Dops “um elemento que, em trajes de passeio, parlamentava em atitudes suspeita a um grupo de estudantes”12. Os documentos que fazem menção direta aos

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eventos citados são relatos sucintos de incursões e dão conta ainda dos nomes dos detidos e da descrição das mensagens dos cartazes. Contudo, o estado em que se encontram nos estimula a pensar sobre as possibilidades de acontecimentos que tenham ocorrido com esses cartazes em sua trajetória. Há marcas de pequenos furos nos quatro cantos de cada um dos cartazes, de pegadas e de abrasões que proporcionaram aos cartazes impressões nítidas de solados diversos e de marcas das pedras portuguesas comumente usadas no revestimento das calçadas da cidade do Rio de Janeiro. Há ainda marcas de dobras e de perfurações para inserção do documento em dossiê para arquivamento na polícia. Outro dado que desperta atenção é o fato desses documentos que relatam a entrada dos cartazes ao arquivo da polícia possuir ao menos seis assinaturas com vistos e encaminhamentos, três carimbos de protocolo com datas iguais, e que se distanciam, posteriormente, dois dias da data de produção. Algumas destas marcas são claras e nos mostram com exatidão parte dessa trajetória. Outras nos colocam frente a algumas questões. O que teria ocorrido a esses cartazes e a seus portadores? Como eles foram apreendidos? É nesse exercício que se encontra o ponto de partida para a pesquisa vem sendo desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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Figuras 1 e 2 - Dois dos três cartazes apreendidos no Colégio Estadual Camilo Castelo Branco manuscritos a giz de cera de cor vermelha, em papel tipo cartolina, medindo 50 x 60 cm cada um deles. Fotos: Rene Leal, 2013.

Após ter tratado os cartazes, tratamento este limitado ao acondicionamento em pasta de papel alcalino, recebemos no laboratório a visita de um grupo de professores. Na oportunidade, apresentamos aos visitantes três cartazes, que havíamos separado do conjunto documental para apreciação. Como estávamos no laboratório de conservação e já havíamos feito apresentação de todos os procedimentos de conservação aos que passam um documento, no final do circuito, mostramos os cartazes selecionados e explicamos que a decisão pela separação desses documentos de seu conjunto foi em razão de estes estarem armazenados em caixas com dimensões menores que as deles e que, mantendo-os da forma como se encontravam, corriam risco de deterioração. Esclarecemos ainda, que o ato sistemático de desdobrar e dobrar novamente um documento todas as vezes que este tiver de ser consultado, fragiliza as fibras de papel das áreas de vinco levando o à ruptura do suporte. Ao abrir a embalagem de papel alcalino para exibir um dos referidos cartazes aos visitantes, deixamos que fossem observados antes de comentar sobre o mesmo. A partir

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deste momento foi possível observar duas reações distintas dos visitantes. A primeira das reações foi a de um visitante que falou entre risos, que se não tivéssemos informado que os documentos já estavam “prontos”, ele nunca saberia que aquele documento havia sido tratado, possivelmente surpresa com a permanência de tantas sujidades no suporte do documento. Após contextualizar sobre as circunstâncias as quais imaginávamos ter passado aqueles cartazes, foi observada a reação de outro visitante que se afastou do grupo, visivelmente emocionado. Essas reações causaram um impacto sobre o trabalho que desenvolvemos, pois ficou claro que a decisão pela manutenção das marcas provocadas pelo contexto histórico desses documentos conduziu aos observadores à memória de outras experiências.

Considerações parciais A pesquisa tem buscado embasamentos teóricos nos historiadores Jaques Le Goff para tratar do documento como monumento e Michel Foucault para abordar os mecanismos de vigilância e disciplina. Para tratar das memórias de episódios traumáticos, Michael Pollak e Andreas Huyssen. No que tange a preservação na contemporaneidade, o conservador Salvador Muñoz Viñas. Até agora a pesquisa conseguiu conferir a estreita vigilância aos secundaristas através de documentos do Setor Estudantil do Fundo Polícias Políticas, com listas de nomes de estudantes, relatórios de incursões a escolas e material apreendido nestas, principalmente cartazes. Continuarão sendo analisados os documentos do Fundo Polícias Políticas, tanto do Setor Estudantil quanto do Departamento de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara Dops-GB com a intenção de cruzar dados dos dois conjuntos e assim, traçar um panorama dos métodos investigativos da polícia sobre os estudantes secundaristas.

Referências ARAÚJO, Maria Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relumé Dumará. 2007. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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ARRUDA, Cláudia Maria Calmon. Memórias num bordado: Traços de Genny Gleizer no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Arquivo, Documento e Memória, 2010, vol.23, nº 1. BALLESTREM, Agnes. El Conservador-restaurador: Una definición de la profesión In: Consejo Internacional de Museos (ICOM), Copenhague, 1984. BOITO, Camilo. Os Restauradores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. CASSARES, Norma Cianflone. Como fazer conservação preventiva em arquivos e bibliotecas. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2000. CHAGAS, Mário. Memória política e política de memória. In: ABREU, Regina. CHAGAS, Mário. Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. CONWAY, Paul. Preservação no universo digital. In: BECK, Ingrid. (coord.) Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. trad. José Luiz Pedersoli Júnior e Luiz Antonio Cruz Souza. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. 24 p. il. (n. 52: reformatação). HALBWAKCHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. HEYMANN, Luciana Quillet. De arquivo pessoal a patrimônio nacional: reflexões sobre a construção social do legado’ de Darcy Ribeiro. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. 2009. LE GOFF, Jaques. Memória e história. São Paulo: Unicamp, 1990. MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A História, cativa da memória? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 1992, nº 34, p. 9-24. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p.3–15. SPINELLI, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos e documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. de Processos Técnicos, 1997. VIÑAS, Salvador Muñoz. Teoria Contemporanea de la Restauracion. Madri: Sintesis 2003. SILVEIRA, Flávio Eduardo. A luta do movimento estudantil secundarista. São Paulo: Ed. Movimento, 1979.

Notas 5

Especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis pelo CECOR-UFMG , Mestranda em Memória Social do Programa de Pós Graduação em Memória Social de UNIRIO, Diretora da Divisão de Preservação do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro 6

Cesari Brandi escreveu sobre teoria da restauração de obras de arte e monumentos. O que faz aproximar sua teoria aos objetos aqui citados é o capítulo que “A restauração segundo a instância da historicidade” que trata de ruínas como testemunhos da história do homem e expõe uma discussão de como seria a melhor forma de restaurar uma ruína.

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7

Entende-se por higienização mecânica ou limpeza mecânica o procedimento realizado em documentos, cujo objetivo é reduzir ou eliminar a presença de poeiras, partículas sólidas, incrustações e outros depósitos na superfície. A limpeza da superfície de documentos em papel é feita inicialmente com trincha macia e posteriormente com pó de borracha (CASSARES, 2000). 8

Artigo sobre este trabalho, ver ARRUDA, Claudia Maria Calmon. Memórias num bordado: Traços de Genny Gleizer no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. 9

Interventor geral foi o cargo correspondente ao Governador de Estado no Brasil, durante a Era Vargas, de 1930 a 1947. 10

Araújo, 2007, p. 72.

11

Não foram feitas análises do material de pictórico, que possui aspecto visual de inscrição a giz de cera.

12

Fundo Polícias Políticas, Setor Estudantil, pastas 23 e 24, notação 53.

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Abrindo os arquivos do Deops/SP: a experiência da livre disponibilização na internet dos acervos da repressão

Monique Félix Borin13 Sheila Aparecida Rodrigues Soares14

Resumo: Em 1º de abril de 2013, o Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp) disponibilizou para livre consulta na internet cerca de 1 milhão de imagens do acervo Deops/SP. Apoiado na Lei de Acesso e na regulamentação estadual da lei, o Apesp então disponibilizou na internet uma parte da documentação que antes só podia ser consultada em seus salões de consulta, sem mais ter a necessidade da assinatura do termo de responsabilidade. A ação dá continuidade à política do Estado de São Paulo de optar pela disponibilização pública para consulta de arquivos relacionados a violações de direitos humanos, que se iniciou com a Regulamentação Estadual do Decreto Federal nº 8.159 – que autorizava a liberação à consulta do acervo Deops/SP mediante a assinatura de um termo de responsabilidade, no qual o consulente se responsabilizava por qualquer uso indevido da documentação. Tal medida foi tomada após a transferência do acervo do Deops/SP da Polícia Federal ao Apesp, em 1991, fruto de reivindicações da população civil organizada, que lutava para que o acervo fosse salvaguardado dos antigos agentes da repressão. A presente comunicação busca apresentar como a instituição elaborou o projeto de disponibilização virtual do acervo Deops/SP– sintetizado no site “Memória Política e Resistência” –, assim como a repercussão que a medida teve na mídia e na opinião pública, problematizando as questões relativas à abertura de arquivos e a promoção direitos humanos em nosso tempo. O artigo se centrará, ainda, em apresentar um balanço do primeiro mês de existência do site, tanto em dados estatísticos de consultas como das questões que a liberação do acesso virtual ao acervo Deops/SP engendrou para a instituição. Palavras chave: Deops/SP, digitalização, difusão, lei de acesso.

Em 1º de abril de 2013, o Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp) disponibilizou para livre consulta na internet cerca de um milhão de imagens do acervo Deops/SP. Neste texto apresentamos como a instituição elaborou o projeto de disponibilização virtual do acervo Deops/SP – sintetizado no site “Memória Política e Resistência” –, assim como a repercussão dessa medida na mídia e na opinião pública,

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problematizando as questões relativas à abertura de arquivos e a promoção direitos humanos em nosso tempo. Trataremos primeiramente de apresentar o acervo Deops/SP e do seu histórico de políticas de acesso; em seguida, será discutido o processo de permitiu a digitalização da documentação e sua disponibilização na internet; seguiremos então com a estrutura do site em si, a avaliação da repercussão da medida e da experiência dos usuários, fechando com os apontamentos que essa analise traz para a instituição.

O acervo Faremos uma breve apresentação dos três acervos que compõe a documentação apresentada no site Memória Política e Resistência. O Deops/SP, denominado Delegacia de Ordem Política e Social em sua origem e, posteriormente, como última denominação, Departamento Estadual de Ordem Política e Social, foi criado em 30 de dezembro de 1924, através da Lei nº 2.034/24, que visava reorganizar a polícia do Estado. Esse órgão tinha como objetivo prevenir e reprimir delitos considerados de ordem política e social contra a segurança do Estado. Para isso, desenvolveu um grande aparato para monitoramento das atividades de pessoas e grupos considerados potencialmente perigosos à ordem vigente. O contexto de instalação do Deops remete a uma época em que ocorreram agitações e mobilizações políticas no país, como greves trabalhistas, a formação do Partido Comunista do Brasil (PCB) e o movimento tenentista. O Deops/SP permaneceu em atividade até 1983, atravessando distintas conjunturas políticas e econômicas. Mesmo em períodos ditos democráticos, como no da República Liberal de 1945-1964, ele se manteve em operação. Nesses caminhos da repressão, foi constituído o acervo Deops/SP: um conjunto documental formado por 1.173 metros lineares de documentação, com 150 mil Prontuários (Nominais e Temáticos), 13 mil pastas de dossiês e aproximadamente 2 milhões de fichas. A documentação foi transferida para o Apesp em 1991, e aberta à consulta aos experseguidos políticos e seus familiares em 1992. Em 1994, através de resolução estadual, permitu-se o acesso irrestrito a essa documentação por qualquer cidadão, desde que

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fosse preenchido termo declarando estar ciente da responsabilidade do consulente do uso feito dessa documentação. Já a documentação conhecida como Dops/Santos compunha o arquivo da sucursal da repressão na baixada santista, e tem a mesma forma organizativa que o Deops/SP. A única diferente dessa documentação, fundamental, é que houve um duplo descumprimento de determinações legais por parte dos gestores dessa documentação: essa documentação deveria ter sido recolhida em 1991 ao Apesp, por ser parte do acervo Deops/SP. No entanto, essa documentação não só foi mantida em um prédio da policia em Santos, quanto continuou a ser manipulada e acrescida de informações e documentos até os anos 2000. Assim, se descumpriu não só a resolução de destinar a documentação da policia política para um espaço em que se promovesse sua consulta pública, mas também se manteve as funções de vigilância política do órgão extinto em 1983. Esse acervo é composto por 45 mil fichas remissivas — nominais ou temáticas e 11.600 prontuários. Nessa linha também está o acervo do Departamento de Comunicação Social (DCS), parte da organização interna da Polícia Civil, criado em 1983. Organizado como um órgão de apoio da Delegacia Geral de Polícia, com nível de Departamento Policial, tinha como atribuição básica planejar, controlar, coordenar e executar a “coleta, processamento e difusão de informação social, e o relacionamento interno e externo da Polícia Civil na capital e nos outros municípios do estado”. Constituiu-se, de fato, como a continuidade do papel exercido pelo Deops de vigilância e formação de base material sobre as atividades políticas de cidadãos, já no período democrático. Por denuncias da sociedade civil, da incompatibilidade de um órgão desse tipo com a vida democrática, o DCS foi extinto em 1999 e seu acervo transferido para o Apesp. Como já apontado, São Paulo já tinha a documentação das policiais políticas abertas para consulta ampla da sociedade desde 1994: através da regulamentação estadual do Decreto nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, se abriu irrestritamente o acesso a documentação, desde que um termo fosse assinado pelo consulente, responsabilizando legalmente pelo uso da documentação. A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527 sancionada pela Presidenta da República em 18 de novembro de 2011), em conjunto com ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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o Decreto Estadual n° 58.052, de 16 de maio de 2012, que regulamenta a Lei mencionada, fortaleceu essa medida tomada pelo Apesp desde a década de 1990, já que em seu art. 21 aponta que documentação que verse sobre violação de direitos humanos por parte do Estado não pode ter qualquer tipo de limitação de acesso. Assim, a leitura realizada pelo Governo Paulista é de que a Lei de Acesso elimina até mesmo a necessidade da assinatura do termo, permitindo assim a disponibilização livre dessa documentação na internet.

Projetos que viabilizaram a digitalização A política de digitalização e disponibilização de acervos é a principal tônica da atuação do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, por cumprir, simultaneamente, as suas duas principais atribuições no trato com a documentação permanente sob a guarda do Apesp. O acervo do Deops/SP, no entanto, nunca pode ser contemplado por essa política por conta de sua especificidade de consulta. Com as novas atribuições legais, a instituição se empenhou em um esforço coletivo para promover a digitalização e disponibilização dos acervos da repressão na internet, por entender ser esse um passo fundamental para publicizar as ações de preservação, de memória e de reparação do Estado, especialmente do executivo paulista, nos temas ligados a repressão política. Esse trabalho foi desenvolvido principalmente a partir de projetos, sendo o mais destacado o Projeto edital “Marcas da Memória” – Prontuários Deops, em parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O projeto de digitalização, conservação e disponibilização online da série Prontuários, do Fundo Deops/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), foi o primeiro colocado na chamada pública do edital “Marcas da Memória”, realizado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Tinha como objetivo tratar cerca de sete mil prontuários e 170 mil fichas remissivas pertencentes ao acervo Deops do Apesp de forma a ampliar o acesso aos prontuários e preservar os originais. Por razões de conservação e ineditismo da documentação, decidiu-se, com consentimento do Ministério da Justiça, redirecionar o trabalho para um conjunto ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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documental similar, priorizando a digitalização e a inserção em banco de dados da documentação do Dops Santos Na efetivação do projeto, foram realizadas a digitalização e a alimentação em banco de dados de 11.666 Prontuários e 36 mil fichas remissivas produzidas pela Delegacia de Ordem Política e Social de Santos – Dops Santos, documentação organizada como um Grupo do Fundo Deops; e a digitalização de 170 mil fichas remissivas das diferentes delegacias especializadas do Deops/SP. Outros dois projetos foram importantes para a formação das bases de dados e para a digitalização da documentação. O Memórias Reveladas, assim como o Projeto IntegradoUSP (Proin), permitiram a construção de bases de dados para disponibilizar prontuários e fichas para consulta e o Projeto Preservação e difusão da Memória Pública: modernização e ampliação dos laboratórios do Arquivo Público do Estado de São Paulo, aprovado pela Fapesp, permitiu a aquisição de equipamentos de digitalização imprescindíveis, como scanner especifico para fichas.

Site Memória Política e Resistência A partir do trabalho desenvolvido pelas equipes de digitalização, elaboração de banco de dados e seu preenchimento, faltava um espaço para disponibilizar essa documentação. Assim nasceu o site temático Memória Política e Resistência, que tem uma dupla função: tem uma parte fixa em que apresenta os vários bancos de dados que permitem ter acesso a consulta do acervo digitalizado do Deops/SP, mas tem também uma segunda parte, periódica, que é um edição trimestral com matérias relacionadas a temáticas desse acervo. Em 1º de abril de 2013 o Arquivo Público do Estado de São Paulo publicou oficialmente na Internet o site Memória Política e Resistência, que continha cerca de 10% (dez por cento) do acervo pertencente ao acervo do Deops. Os documentos publicados referem-se a 274.105 fichas digitalizadas e 12.874 prontuários, produzidos pela Delegacia Estadual de Ordem Política e Social, Deops-SP (1923- 1983); pelo Departamento de Comunicação Social (1983-1999); e pelo Dops de Santos. O lançamento do site foi realizado em um evento que contou com a presença do Governador Geraldo Alckmin, o Ex-Governador José Serra, além da presença de dois senadores, o presidente

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da Assembleia Legislativa de São Paulo, e o Secretário Nacional de Justiça e Presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão. Além da grande presença de autoridades, que referendam a importância política da medida da livre disponibilização desse acervo na internet, a mídia repercutiu o apelo dessa temática junto a população: todos os grandes órgãos de imprensa estiveram presentes ao evento e deram destaque ao site do acervo do Deops em seus veículos. Após o gigantismo do evento de lançamento do site, o aumento de acessos ao site do Arquivo Público do Estado de São Paulo foi um dos primeiros impactos sentidos. O número total de acessos pulou de 98.926, em março, a 159.220, em abril. Só em abril, o Fundo Deops recebeu 58 e-mails desses novos consulentes, elogiando a iniciativa e/ou pedindo esclarecimentos. Há um aspecto curioso na lógica das procura a documentação do Deops/SP online: mais de metade das mensagens recebidas em abril sobre esse tema – 35 e-mails – vinha de pessoas perseguidas pela ditadura, ou de seus parentes. O Fundo Deops está aberto à consulta desse público desde 1992. Entretanto, a divulgação maciça do lançamento das páginas do Deops parece ter causado um aumento da procura, inclusive no público que já poderia ter consultado este acervo desde 1991. Daí vem nossa primeira conclusão: o lançamento do site Memória Política e Resistência apresentou uma demanda reprimida, já que apesar da documentação estar aberta a consulta desde a década de 1990, a facilidade de acesso pela internet e, sobretudo, a imensa cobertura da mídia informando a população sobre a possibilidade de acesso trouxe uma enorme massa de pessoas que não sabiam que podiam ter acesso a essa documentação antes dessa medida. Assim, a instituição avalia que a estratégia de digitalizar o maior número possível de fichas foi correta. As fichas remetem a prontuários, documentação temática que pode ser consultada pessoalmente no Arquivo – se ainda não estiver no site. Não por acaso, em abril, a procura pelo Fundo Deops em atendimento presencial também aumentou muito. Em março, 567 prontuários tinham sido consultados; em abril, este número pulou para 912 prontuários. Assim, a estratégia de disponibilizar as fichas atrai a atenção dos consulentes, fazendo com que eles busquem acessar o restante da documentação a que aquela ficha remete, promovendo a difusão do acervo. A partir dessas constatações a

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instituição entende que o processo de publicação do acervo na Internet deve continuar nos próximos anos. Atualmente, o Arquivo está fazendo a digitalização da totalidade das fichas da Delegacia Especializada de Ordem Social, e de parte dos dossiês do órgão. O projeto faz parte do edital Marcas da Memória III do Ministério da Justiça. Além de continuar esse esforço, o Arquivo também busca atrair o público com instrumentos de pesquisa que facilitem cada vez mais a consulta, principalmente por parte do público que não tem tanta familiaridade com a Internet. Esse é um dos principais desafios colocados pela análise da experiência dos usuários, já que as criticas ao site tinham polos opostos: de um lado, uma maioria de usuários não acostumados a lidar com a documentação e com os recursos de busca na internet; de outro, uma minoria, especialmente de pesquisadores, que demandam instrumentos mais precisos e específicos de consulta. Avançar em instrumentos de pesquisa que contemplem os diferentes tipos de público, atendendo as necessidades dos usuários de nosso site, é uma das principais tarefas para o próximo período, ao lado de promover cada vez mais a política de digitalização e difusão do acervo na internet. O balanço global é positivo: ao colocar na Internet este acervo, a instituição deu um passo decisivo para difundir a informação sobre um importante período da história brasileira. Ao mesmo tempo, cumpriu o seu papel de garantir os direitos do cidadão, preservando e dando acesso à documentação pública sob sua guarda. Ser um dos percussores da disponibilização desse tipo de acervo na internet faz com que o Apesp se mantenha na mesma linha histórica de apoiar ações de promoção dos direitos humanos em todos os níveis, dando sustentação a ações de reparação e a difusão da memória pública.

Referências AQUINO, M. A. de; et al. (Org.). No coração das trevas: o Deops/SP visto por dentro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001. 207 p.

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SILVA, Haike R. Kleber da. (Org.) A luta pela anistia. São Paulo: Editora Unesp: Arquivo Público, 2009. SORJ, Bernardo e ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. (orgs) Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1984. TELES, Janaína. (org) Mortos de desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP, 2001.

Notas

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Mestranda em História Social/USP. Assistente Técnico I/Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa/Arquivo Público do Estado de São Paulo. 14

Mestre em Ciências Sociais/UNESP. Executiva Pública/Centro de Acervo Permanente/Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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A sobrevivência dos arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia: a noção de ramificação dos documentos Shirley Carvalhêdo Franco15

Resumo: A publicação de fotos, em 2004, supostamente do jornalista e preso político Vladimir Herzog, suscitou discussões na mídia sobre os arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia (1972-1975), movimento armado promovido pelo Partido Comunista do Brasil contra o Regime Militar (1964-1985), bem como sobre a tese oficial, segundo a qual todos os documentos desse evento histórico teriam sido destruídos. O exame dessa tese, especialmente no que concerne à sua sustentabilidade ou invalidez, propiciou a descoberta de noção arquivística: “a ramificação”, cuja definição preliminar será proposta ao longo do artigo. A noção de ramificação, por sua vez, serviu de apoio para demonstrar a impossibilidade de destruição, de maneira completa e absoluta, de todos os documentos arquivísticos relacionados a um evento histórico – neste caso, os documentos arquivísticos relativos à Guerrilha do Araguaia. Palavras chave: Ramificação; Guerrilha do Araguaia; Documentos; Arquivos; Eliminação.

Abstract: In 2004, the publication of pictures that were allegedly from the journalist and political prisoner Vladimir Herzog, triggered discussions in the media about the documents related to the Araguaia Guerrilla (1972-1975) an armed movement promoted by the Communist Party of Brazil against the Military Regime (1964-1985), as well as about the official thesis, according to which all documents of this historic event would have been destroyed. The examination of this thesis, especially in relation to its sustainability or disability, provided the discovery of archival notion: "ramification", proposed along this article. This theoretical instrument was used as support in order to demonstrate the impossibility of the complete and absolute destruction of all the archival documents related to a historical event – in this case, the Araguaia Guerrilla. Keywords: Ramification; Araguaia Guerrilla; Files; Archives; Destruction.

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Introdução É possível destruir todos os documentos relacionados a um evento histórico? Como parte integrante de pesquisa16 de doutorado, o presente artigo tem como objetivo demonstrar, por meio da noção arquivística denominada ramificação, a insustentabilidade da "destruição total", segundo a qual seria factível destruírem-se, completamente, todos os documentos arquivísticos relacionados a determinado evento histórico. A seguinte metodologia foi utilizada para alcançar o referido objetivo: a) mapeamento das instituições que participaram da eliminação do movimento, mediante a análise das obras de Gaspari (2002), Carvalho (2004), Morais e Silva (2005) e Studart (2006); b) visitas a 28 instituições no estado do Pará (em São João do Araguaia, São Domingos do Araguaia, Marabá e Belém), realizadas entre janeiro e abril de 2010, com o objetivo de examinar os documentos arquivísticos constantes de seus respectivos fundos, realizar entrevistas, e distribuir questionários (mais de 20) aos funcionários responsáveis. A pesquisa elucidou a existência de uma rede complexa de relações inter e transinstitucionais, constituída com o objetivo de desmantelar a Guerrilha. Com início oficial em 1972, a Guerrilha do Araguaia foi um movimento do partido de esquerda, PC do B, contra o Regime Militar brasileiro (1964-1985). Os guerrilheiros instalados no Bico do Papagaio17 distribuíram-se em três unidades. “O destacamento A localizava-se próximo a Marabá, numa localidade chamada Faveira; o destacamento B no sítio de Gameleira; e o destacamento C na base de Caianos, no Baixo Araguaia em São Geraldo do Araguaia” (NASCIMENTO, 1999, p. 116). Após diversas operações18, em 1975, o procedimento de ocultar a verdadeira identidade de militares e introduzi-los em meio aos civis, utilizado, sobretudo, nas duas últimas operações, revelou-se decisivo para o término da Guerrilha do Araguaia. Sob a égide dessa missão, os fundos das instituições do Estado comunicavam-se entre si, sem, no entanto, misturarem-se, estabelecendo elo que aqui se denomina de ramificação. A noção de ramificação ora apresentada, portanto, contraria as afirmações segundo as quais inexistem, nos dias de hoje, documentos arquivísticos relacionados àquele evento histórico.

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A noção de ramificação do documento arquivístico: uma proposta Antes de examinar e descrever a noção de ramificação, no entanto, deve-se atentar para os limites inerentes ao próprio termo noção, e diferenciá-lo das definições de teoria e conceito. Para tanto, as reflexões de Minayo (1999) poderão ser úteis: - teoria: conjunto inter-relacionado de princípios que servem para dar organização lógica a aspectos selecionados da realidade empírica; - conceito: unidade de significado que define a forma e o conteúdo de uma teoria; e - noção: elemento de uma teoria que ainda não apresenta clareza suficiente e é usado como imagem na explicação do real. Não se pretende, portanto, no âmbito do presente trabalho, apresentar definição "fechada", cuja redação segue a seguinte fórmula: "a ramificação é...". Ao contrário, enfatiza-se que a proposta em pauta se enquadra, de forma inequívoca, sob a referida rubrica de noção, porquanto carece, até o presente momento, de “clareza suficiente”. Apenas após muitas pesquisas adicionais, cujos resultados enriqueceriam e aportariam lastro à noção ora discutida, poder-se-ia vislumbrar seu desenvolvimento pleno e sua transformação em conceito. O próprio fato de a ramificação ainda configurar-se apenas como noção, no entanto, poderá estimular a realização de pesquisas ulteriores, com o objetivo de aprimorá-la e conferir-lhe status mais elevado. Não obstante as observações supracitadas, nada impede que se busque a mais clara noção possível, desde já, mesmo dispondo apenas dos dados obtidos por meio da pesquisa realizada para o presente estudo. A ramificação poderia ser descrita, de forma preliminar, como a intercomunicação implícita entre os conjuntos documentais, ou fundos, de instituições distintas, estas últimas envolvidas no cumprimento de um objetivo superior, cuja consecução extrapola a missão e as funções de cada instituição em si, enfocada separadamente. Essa missão superior, ou única, que conduz a produção desses documentos, não é, necessariamente, explícita ou publicada oficialmente. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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As figuras 1 a 2 poderão servir de exemplo. Dentre os documentos do fundo Incra em Marabá, referentes ao período de 1972, encontra-se um atestado de bons antecedentes produzido (proveniência) pelo fundo Delegacia de Polícia de Marabá (figura 2). A existência de um documento do fundo A constante do fundo B não seria inesperada, caso ambos compartilhassem, oficialmente, a mesma missão. Entretanto, o caso em pauta não apresentava essa condição. De fato, Incra e Delegacia de Polícia não compartilhavam a mesma missão oficial. O documento referenciado era exigido dos cidadãos que solicitavam terras do governo, naquela região. Neste caso, tratava-se de Lenira, município de Araguaína, em Goiás, uma das regiões envolvidas na Guerrilha. Produzido pela Delegacia de Polícia de Marabá, o documento não só comprovava a inexistência de registro de delitos cometidos pelo cidadão solicitante, mas também facilitava o trabalho das Forças Armadas, responsáveis por identificar os comunistas residentes na região e por impedir o envolvimento dos moradores locais com a Guerrilha. Vislumbra-se, desse modo, a formação de um “fundo imaginário”, revestido de legitimidade própria.

Foto: Shirley Carvalhêdo Franco, 2010. Figura 1 – Fundo Incra: Processo.

Foto: Shirley Carvalhêdo Franco, 2010. Figura 2 – Fundo Incra: Atestado de bons antecedentes.

Da mesma forma, os documentos que se seguem, produzidos tanto pelo fundo Delegacia de Polícia de São João do Araguaia, no Pará (Figuras 3 e 5), como pelo fundo Ministério do Exército (Figura 4), serviam para atestar a idoneidade de um mesmo indivíduo ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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residente nas localidades de atuação da Guerrilha. Aos moradores da região possuidores de documento de “boa conduta”, era facultada a liberdade de ir e vir, mas não àqueles desprovidos de tal documento, considerados suspeitos e postos sob os cuidados da vigilância do Estado. Essa situação pode ser considerada, portanto, como mais um exemplo da existência da ramificação.

Foto: Shirley Carvalhêdo Franco, 2010. Figura 3 – Fundo privado: Atestado de conduta.

Foto: Shirley Carvalhêdo Franco, 2010. Figura 4 – Fundo privado: Atestado.

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Foto: Shirley Carvalhêdo Franco, 2010. Figura 5 – Fundo privado: Atestado de vida e residência.

O combate à Guerrilha tornou-se, na prática, missão para outras instituições, como delegacias, cartórios, escolas, igrejas e diversos ministérios, além das próprias Forças Armadas. Surge, a partir do envolvimento dessas instituições em uma "missão maior", uma complexa rede de inter-relações, cuja característica emblemática seria a seguinte: os seus respectivos fundos passaram a comunicar-se entre si. Embora não compartilhassem missão "oficial", as instituições envolvidas naquele objetivo superior colaboravam para aprimorar a eficácia do sistema tecnoburocrático do regime militar. O referido aprimoramento facilitou e impulsionou fenômeno que já vinha sendo observado ao longo do período sob análise: a expansão do papel do Estado na sociedade. Portanto, a existência da ramificação corrobora o argumento, portanto, segundo o qual a destruição completa e absoluta de todos os arquivos referentes a determinado evento histórico seria praticamente impossível: documentos arquivísticos tendem a “escapar” de tentativas de sua destruição, tornando-se quase imunes à “queima total”. Não é possível prever ou controlar o destino da totalidade dos documentos de arquivo, especialmente aqueles comprometedores ou “sensíveis”, segundo a expressão francesa. A intercomunicação entre fundos de instituições diferentes – a ramificação – ditará que a

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destruição completa de todos os documentos relacionados a um evento histórico seja, na prática, empreitada inexequível. No entanto, abundam exemplos históricos de governos que tentaram executar semelhante tarefa. O caso sob estudo é um deles: “ao final do mandato de Figueiredo, último presidente da ditadura militar, os chefes dos serviços secretos das Forças Armadas ordenaram a destruição dos arquivos referentes ao confronto no Pará” (MORAIS; SILVA, 2005, p. 540). Ocorre que instituições como o Incra, cujas missões e leis diferiam daquelas que regiam o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, não acataram a ordem, razão pela qual sobrevivem, até hoje, vários documentos arquivísticos relacionados àquele evento, como o atestado de bons antecedentes encontrado em seu acervo. Contribui para a sobrevivência de documentos arquivísticos, igualmente, uma característica que lhes é inerente: seu poder de comprovação, que inclui a presença de assinaturas, nomes do fundo, etc. O documento em si passa a ter, dessa forma, alto valor de troca e pode ser utilizado às escondidas, como parte de uma barganha, para salvaguardar a si ou a outrem; ou para ameaçar e revelar a ação de um outro; ou para fins monetários; ou para a obtenção de poder, mormente poder político. É provável, portanto, que os funcionários participantes do acontecimento histórico sob análise tenham mantido cópias de documentos para salvaguardarem a si mesmos, ou a outrem, e para utilizá-las como instrumento de chantagem. Não se descarta a possibilidade, tampouco, de as terem guardado simplesmente para preservar a memória daquele acontecimento. Além de contribuir para explicar a sobrevivência dos documentos arquivísticos, a noção de ramificação poderá auxiliar na obtenção de respostas a várias questões relacionadas a um documento específico: onde, por quem, por quê, quando e como foi criado. O pesquisador que aplicar essa noção terá a seu dispor instrumento mais eficaz que aquele cuja análise se restrinja ao exame de documentos pertencentes a um único fundo. Ao lançar mão da noção de ramificação, esse pesquisador aumentará a sua capacidade de visualizar o contexto da criação dos documentos arquivísticos e de entender, de modo mais completo e abrangente, o acontecimento histórico objeto de sua

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pesquisa. Poderá determinar o significado do documento, igualmente, a partir do escrutínio de toda a rede circunstancial em que o documento está inserido. Com o objetivo de se certificar de que a noção de ramificação não caberia na definição de outros conceitos ou noções arquivísticos, foi realizada análise das seguintes expressões: dispersão de documentos, fundo complexo, dossiê, fontes relacionadas, múltipla proveniência e proveniência paralela. Segundo um pesquisador da área, contactado para opinar sobre o assunto, a ramificação seria equivalente à dispersão documental. A definição de dispersão, no entanto, é a seguinte: “1. Ato ou efeito de dispersar-se; 2. Separação de pessoas ou de coisas em diferentes sentidos; e 3. Debandada, desbarato” (FERREIRA, 1975). Do ponto de vista arquivístico, a dispersão se refere a documentos, pertencentes a fundo específico, que acabam incluídos em fundo distinto, em consequência de uma desordem, perda ou lapso, e não em consequência da intercomunicação entre fundos distintos. A definição de dispersão não pode, portanto, ser aplicado à "ramificação". Quanto aos documentos encontrados no acervo do Incra, são oriundos de outro fundo. Não se encontram naquele local porque estariam perdidos, mas porque fazem parte de uma lógica de diálogo entre instituições envolvidas em missão ulterior – no caso, a cessão de terras pelo governo. Um documento que exemplifica esse caso é aquele produzido pela Delegacia de Polícia de Marabá: pode se tratar do original, ou seja, “a primeira versão perfeita de um documento”; ou pode ser um “original múltiplo”, produzido no caso de “obrigação recíproca”, “destinatário múltiplo” ou “programa de segurança”; ou ainda, como esclarece Duranti, pode se tratar de cópia do documento original, “uma transcrição ou reprodução do original, porque essa cópia não pode existir se não proceder de um original” (DURANTI, 1997, p. 20-21, tradução nossa).19 O fato de tratar-se de um original, seja este único ou “múltiplo”, que tem como propósito dar conhecimento do assunto às instituições ou aos indivíduos envolvidos em uma missão específica, afasta a possibilidade de justificar a sua presença naquele fundo por lapso ou desordem. A obra de Carucci e Guercio inclui a proposta do conceito de fundo complexo,

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assim definido: Fundo complexo é um fundo constituído de uma pluradidade de fundos por tratar-se de: a) fundo constituído de uma pluradidade de fundos hierarquicamente organizados no âmbito de uma estrutura institucional própria do ente produtor; b) fundo constituído de uma pluradidade de fundos hierarquicamente estruturados no âmbito de uma organização documental derivada do processo de sedimentação ou de reordenamento de documento; c) fundo constituído de uma pluradidade de fundos, os quais, por apresentarem uma reciprocidade institucional, convergem no arquivo de um determinado ente (sujeito coletor). Não há uma conexão hierárquica entre o arquivo do sujeito coletor e aquele arquivo agregado, o qual permanece com a sua configuração autônoma e distinta (CARUCCI; GUERCIO, 2008, p. 83, tradução nossa)20.

Segundo as autoras, a importância do fundo complexo provém do fato de se tratar de conceito arquivístico capaz de abarcar a própria história da instituição, cuja formação pode ter sido resultado de estrutura orgânica, dotada de conexões hierárquicas ou paralelas com outras instituições. Gera-se, nesses casos, arquivo que reflete a complexidade daquelas conexões, como arquivos de ministérios ou entes públicos, ou de sociedades privadas de grande dimensão, ou até mesmo de uma família. Um exemplo seria o fundo do Ministério das Relações Exteriores, que engloba o fundo Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), o fundo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) e o fundo Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD). O conceito de fundo complexo também importa, de acordo com Carucci e Guercio, porquanto supre lacuna da Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística – Isad(G), cuja solução para os casos supracitados é “meramente descritiva” e “geral”: a eles se aplica, simplesmente, o rótulo de “fundo” ou de “subfundo”, extirpando-lhes, dessa forma, a particularidade de suas estruturas hierárquicas (CARUCCI; GUERCIO, 2008, p. 83). O presente estudo, no entanto, demonstra que a ramificação não é apenas a reunião de fundos distintos, hierarquicamente ordenados, como é o fundo complexo. A ramificação ocorre, de fato, quando documentos de um fundo são incluídos em fundo distinto, como consequência da existência de rede trans e intrainstitucional de produção, recepção e compartilhamento documental. Essa rede, por sua vez, surge em decorrência do cumprimento de missão ulterior por parte de todas as instituições participantes, não ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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importando o fato de que a missão tenha sido cumprida apenas temporariamente ou mesmo que não tenha sido publicada, oficialmente. É importante, ao buscar os indícios da ramificação, levar em consideração também o contexto político, e não apenas questões relativas aos documentos em si. Consultou-se a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística – Isad(G) para proceder à análise das expressões dossiê e fontes relacionadas. Criada em 1994 pela Comissão de Normas de Descrição do Conselho Internacional de Arquivos, essa norma estabelece diretrizes gerais para a preparação de descrições arquivísticas. Apresenta-se, a seguir, trecho pertinente da norma: [...] identificar e explicar o contexto e o conteúdo de documentos de arquivo a fim de promover o acesso aos mesmos. Isto é alcançado pela criação de representações precisas e adequadas e pela organização dessas representações de acordo com mode-los predeterminados. Processos relacionados à descrição podem começar na ou antes da produção dos documentos e continuam durante sua vida. Esses processos permitem instituir controles intelectuais necessários para tornar confiáveis, autênticas, significativas e acessíveis descrições que serão mantidas ao longo do tempo (Isad(G), 1999, p. 11, grifos nossos).

Seria possível, portanto, enquadrar a ramificação na definição de dossiê/ processo? No glossário das normas de descrição, dossiê/processo é definido como “unidade organizada de documentos agrupados, quer para uso corrente por seu produtor, quer no decurso da organização arquivística, porque se referem a um mesmo assunto, atividade ou transação” (Isad(G), 1999, p. 15). O dossiê é um agrupamento de documentos sobre um determinado tema, realizado de forma intencional, com planejamento. Não é possível, no entanto, aplicar essa definição à caixa de arquivo pesquisada em Marabá, onde foi encontrado o atestado de bons antecedentes, porquanto aquele documento foi disposto naturalmente: uma das funções do Incra era controlar a cessão de terras doadas pelo governo, quando aquele órgão exercia as suas atividades. Seria possível aplicar à ramificação a definição correspondente à expressão arquivística fontes relacionadas?

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A área de fontes relacionadas é um dos campos da Isad(G) (1999, p. 41, 42 e 43) que prevê o registro de: a) a existência, a localização, a disponibilidade e, ou, a destruição dos originais, quando a unidade de descrição consiste de cópias, b) existência e localização e disponibilidade de cópias da unidade de descrição; c) existência de unidades de descrição relacionadas e d) notas sobre publicações que sejam sobre ou baseadas no uso, estudo ou análise da unidade de descrição. No caso das fontes relacionadas, o arquivista, ao fazer a descrição, baseia-se concretamente nas relações que o fundo descrito estabelece com outros fundos, oriundas das semelhanças das missões/unções/ atividades/biografias, etc. O arquivista pode estar seguro de que essas relações existem porquanto são relações de caráter oficial. A noção de ramificação, em contrapartida, é instrumento analítico a ser utilizado pelo arquivista para auxiliá-lo no discernimento das relações existentes entre fundos distintos -- mas que não se misturam. Por essa razão, o arquivista deve basear-se apenas em hipóteses oriundas da própria noção de ramificação. Tendo em conta que novos conceitos arquivísticos têm sido elaborados por arquivistas australianos, que também contribuíram para aperfeiçoar o conceito de fundo e o significado de proveniência, examina-se a possibilidade de a noção de ramificação enquadrar-se em algum dos referidos conceitos novos. O conceito de proveniência paralela, por exemplo, foi formulado pelo arquivista australiano Chris Hurley, tendo em conta sua insatisfação com a definição de proveniência constante da Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística (Isad(G)). Esta lhe pareceu limitada, incapaz de descrever, de maneira completa, a formação e as funções dos documentos e dos processos dos quais fazem parte: A norma de descrição que temos não ajuda muito, pois foi desen-volvida para implementar não uma visão de integração, e sim de separação e de perpetuação de métodos invalidados pelos atuais desenvolvimentos tecnológicos. Criar métodos inteligentes para si-mular no ciberespaço o que nós já fizemos no espaço físico é um desperdício de tempo e esforço. […] Esta é a arte de escrever obi-tuários e não a arte de gerenciar os arquivos. As normas não são suficientemente amplas para abranger ambas as visões: tradicio-nal e integrativa. Elas se concentram na criação e gestão de des-crição dos arquivos em vez de se concentrarem na gestão dos próprios arquivos. Outra limitação que se quer evitar é aquela que exclui uma análise de entidades contextuais que “produzem” do-cumentos descritos indireta e não diretamente. Trata-se de ambience ou de contexto ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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de proveniência. A formação verdadeira é realizada pelo autor ou quem arquiva um documento, pelo recordkeeper de uma organização, família ou grupo, pelo agente encarregado de agir em nome de uma empresa, ou pela própria empresa (ou um de seus componentes). Qualquer um desses pode ser considerado como o único “criador” de registros (HURLEY, 2005, p. 7-8, tradução nossa) 21.

O autor explica que não criou o conceito para abandonar completamente a perspectiva da proveniência estabelecida e sim para abrir caminhos para visão mais rica diante das limitações da definição tradicional de proveniência. Para ele, a proveniência “é uma visão legítima, mas não é a única visão legítima” (HURLEY, 2005, p. 24, tradução nossa). O termo ambience refere-se tanto ao contexto de proveniência como ao de criação dos documentos, enquanto a proveniência paralela “descreve uma situação na qual duas ou mais entidades são identificadas como estabelecedoras da proveniência dos documentos, cada uma delas pertencendo a uma ambience diferente” (HURLEY, 2005, p. 39, tradução nossa) 22. Ao propor o conceito, o autor pretendeu ir além do conceito de proveniência múltipla, adotado na Austrália desde 1960 e cuja definição inclui o seguinte procedimento: “os documentos reunidos em um arquivo podem passar pelas mãos de sucessivos e diversos criadores ao longo do tempo” (HURLEY, 2005, p. 39, tradução nossa). 23 Dentro de sua visão crítica da Norma, Hurley justifica a necessidade da proveniência paralela, porquanto esta seria dotada da capacidade de auxiliar na descrição dos documentos: Os objetos de descrição existem em camadas irradiantes de estrutura e significado – existem documentos dentro de pastas dentro de arquivos que compõem uma série. Muitos agentes de formação estão envolvidos em todas as funções, com exceção das mais simples, e em cada camada de compreensão, dentro da qual o documento está encapsulado. O autor do documento (indiscutivelmente seu criador em pelo menos um sentido) pode ser alguém diferente dos agentes responsáveis pela formação daquela pasta ou arquivo ou série em que o documento será depositado. Outros agentes (para não falar de funções) estão envolvidos por meio de seu relacionamento com os agentes de formação – a matriz de uma unidade da empresa responsável pela formação da série, por exemplo, ou a família da qual faz parte um correspondente particular. Essas entidades no ambiente circundante contextualizam documentos de forma vicária. Não podemos descrever todas as possibilidades. Uma seleção deve ser feita. Tendo realizado essa tarefa, os arquivistas deram um passo fatal ao convencer-se de que a seleção que ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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preferem como a melhor, quando preservam evidências, é a única válida. Estão errados (HURLEY, 2005, p. 8, tradução nossa)24.

Hurley demonstra que a aplicação do conceito de proveniência paralela, no caso da Australia’s Stolen Generation, pode auxiliar no entendimento do seu contexto e também na localização dos documentos pertencentes às igrejas e às agências de assistência que participaram do movimento. Dessa forma, poderão ser contactados tanto as pessoas como os grupos assistidos durante aquele episódio (lembra o autor que aos aborígenes foram estendidos diferentes tipos de auxílio, como seguro saúde, educação, negócios, etc.). A proveniência paralela de Hurley centra-se, conforme a descrição acima, na relação entre o documento e seus diversos criadores. A proposta de ramificação do presente trabalho, em contrapartida, focaliza a existência da comunicação entre fundos de diferentes instituições, em um dado momento e com objetivos pontuais. O conceito de proveniência paralela pressupõe a identificação de todas as instituições participantes, mesmo que tenham colaborado em diferentes fases, no processo de criação dos documentos, bem como de suas respectivas funções e atividades. Determina-se, dessa forma, a existência de um arquivo legítimo (legitimate archival whole, na expressão em inglês). A noção de ramificação, em contraposição, depende da identificação das instituições que participaram de uma missão superior (no caso em pauta, o desmantelamento da guerrilha do Araguaia). Segundo McKemmish (2001), as tentativas de modificar conceitos arquivísticos tradicionais, como demonstra o exemplo da proveniência paralela de Hurley, estão inseridas no movimento australiano chamado continuum model. Formalmente adotado em 1990, esse modelo busca reconceituar a teoria tradicional e reinventar a prática arquivística a partir da perspectiva de que a dimensão da vida dos documentos vai além daquela estipulada pelo ciclo de vida, prática dominante da disciplina na segunda metade do século XIX: [...] os documentos “sempre estão em um processo de ser” [...] Os documentos podem ter várias vidas no espaço-tempo, assim como os contextos que os envolvem, o quais ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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alteram o controle e abrem novos tópicos de ação, acarretando a reelaboração e a renovação dos ciclos de criação e disposição (UPWARD apud McKEMMISH, 2001, p. 33536, tradução nossa)25.

No âmbito do continuum model, os australianos consideram que a proveniência dos documentos não deve relacionar-se, de modo estanque, a apenas um criador e, sim, situar-se em um complexo contexto de criação, envolvendo diversas instituições. Apesar de os referidos conceitos arquivísticos apresentarem relação indireta com a ramificação, eles não a definem de maneira completa. A presente proposta não tem a pretensão de desabonar a Isad(G) ou qualquer outro conceito ou teoria estabelecidos. Ao contrário, a noção de ramificação busca contribuir para os diálogos, na arquivologia, sobretudo àqueles relacionados a seus fundamentos. Portanto, faz-se mister analisar os documentos arquivísticos, levando em conta as incertezas, as confusões, as ambiguidades que fizeram parte do seu contexto de criação; o pesquisador não deve esquecer que o dinamismo da sociedade está refletido nos próprios fundamentos arquivísticos; deve conduzir as operações metodológicas da arquivologia, como a avaliação, a descrição e o apoio à pesquisa, ciente de que a ramificação pode auxiliar na “compreensão do passado tanto imediato quanto histórico” (DURANTI, 1994, p. 52).

Conclusão A proposta em pauta foi desenvolvida a partir da identificação dos fundos das instituições de Estado envolvidas em uma missão superior, ainda que essa missão tenha sido temporária e ocultada dos comunicados oficiais, e que tenha sido diferente da missão específica atribuída a cada uma dessas instituições. Os fundos identificados, embora não se misturessem, mantinham intercomunicação entre si, fato que implica, necessariamente, a existência de um elo entre eles. Esse elo, por sua vez, surge em razão de existir rede trans e intrainstitucional de produção, recepção e compartilhamento ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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documental, aqui denominado de ramificação, noção que reforça o papel do contexto documental e político dos documentos, sobretudo no que diz respeito aos conceitos de fundo e proveniência. Como descrito anteriormente, a noção de ramificação não se confunde com dispersão documental; não se trata, tampouco, de fundo complexo, e nem mesmo de dossiê; e não se resume a fontes relacionadas ou a proveniência paralela. Ao propor a noção de ramificação, pretende contribuir para a construção de instrumento analítico, elaborado formalmente como noção arquivística, que poderá ser útil para outros pesquisadores, especialmente aqueles que se deparam com alegações infundadas de que todos os documentos arquivísticos relacionados a determinado evento histórico - neste caso, o da Guerrilha do Araguaia -- foram destruídos, de forma total e absoluta.

Referências CANTANHÊDE, Eliane. Ecos do regime. Disponível em: .Acesso em: 20 fev. 2012. CARUCCI, Paola; GUERCIO, Maria. Manuale di archivistica. Roma: Carocci Editore, 2008. CARVALHO, Luiz Maklouf. O coronel rompe o silêncio: Lício Augusto Ribeiro, que matou e levou tiros na caçada aos guerrilheiros do Araguaia, conta a sua história. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD(G): Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2000. DURANTI, Luciana. I documenti archivistici: La gestione dell’archivio da parte dell’ente produttore. Roma: Ministero per i Beni Culturali e Ambientali, 1997. ____. Registros documentais contemporâneos como provas de ação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 49-64, 1994. EASTWOOD, Terry. A contested realm: The nature of archives and the orientation of archival science. In: EASTWOOD, Terry; MACNEIL, Heather (Org.). Currents of archival thinking. Libraries Unlimited, 2010. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada: As ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GLASER, Barney G.; STRAUSS, Anselm L. The discovery of grounded theory: Strategies for ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Notas

15

Doutora em Ciência da [email protected].

informação.

Universidade

de

Brasília.

Endereço

eletrônico:

16

Descritiva, explorátória e com base na Grounded Theory, realizada no Programa de Pós Graduação da Universidade de Brasília (UnB). 17

Região que abriga as cidades de Tocantins, no Estado de Goiás; Araguaína, Imperatriz e Porto Franco, no Maranhão; Marabá e Redenção, no Pará. 18

A sequência cronológica das operações militares detalhada por Morais e Silva (2005) teria sido Operação Peixe I; Operação Peixe II; Operação Peixe III; Operação Cigana; Operação Peixe IV; Operação Sucuri; e Operação Marajoara. 19

Un originale è la prima versione perfetta di un documento. [...] Esistono originali multipli dello stesso documento nei casi di obblighi reciproci (es. contratti, trattati, etc.), di destinatari multipli ( es. circolari, inviti, memoranda), o di programmi di sicurezza ( es. piani de protezione di documenti vitali per mezzo di dispersione di originali multipli in luoghi diversi). [...] Una copia è una transcrizioni o riproduzione di un’originali, perciò essa non può esistere se non è stata preceduta da un originali. 20

Il fondo complesso è un fondo costituito da una pluralità di fondi. Può trattarsi di: a) fondo costituito da una pluralità di fondi gerarchicamente organizzati nell’ambito di una strutura istituzionale propria del soggetto produttore; b) fondo costituito da una pluralità di fondi gerarchicamente struttturati nell’ambito di una organizazione delle carte derivante del processo di sedimentazione o di riordinamento delle carte; c) fondo costituito da una pluralità di fondi che, presentando un reciproco legame istituzionale, confluiscono nell’archivio di un determinato ente (soggetto collettore). No vi è collegamento gerarchico tra l’archivio del soggetto colletore e gli archivi in esso confluiti che hanno una configurazione autonoma e distinta.

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21

[...] the descriptive standardization we have is not very helpful because it has been developed to implement a vision not of integration but of separation and the perpetuation of methods invalidated by current technological developments. Clever methods to emulate in cyberspace what we once did in physical space are a waste of time and effort. [...] This is the art of writing obituaries, not managing records. The standards are not broad enough to encompass both traditional and integrative views. They focus on the creation and management of descriptions of records, not the management of the records themselves. Another limitation one wants to avoid is one that precludes an analysis of contextual entities that produce documents being described vicariously rather than directly. This is ambience, or the context of provenance. The actual formation is undertaken by the author of filer of a document, by the record-keeper within an organization, family or group, by the agent mandated to act on behalf of an enterprise, or by the enterprise itself (or one of its component parts). Any of these may be nominated as the sole creator or records. 22

Parallel provenance describes a situation where two or more entities are identified as establishing the provenance of records, where each resides in a different ambience. (HURLEY, 2005, p. 39) 23

[...] documents assembled as records can pass through the hands of several successive creators over time […] 24

The objects of description exist in radiating layers of structure and meaning - documents within dockets exist within files that are part of a series. Many different agents of formation are involved in all but the most simplistic of functions - at each layer of understanding within which the documents are cocooned. The author of a document (indisputably its creator in at least one sense) may be very different from the agents responsible for formation of the docket, file, or series in which it is placed. Other agents (to say nothing of functions) are involved via their relationship with agents of formation - the parent corporation of the business unit responsible for forming the series, for example, or the family to which a personal correspondent belongs. These ambient entities contextualize documents vicariously. We cannot describe all of the possibilities. A selection must be made. Having done so, archivists took the fatal step of convincing themselves that the selection they prefer as the best one is the only valid one when preserving evidence. They are wrong. 25

[...] records is “always in a process of becoming” [...] Records can even have multiple lives in space-time as the contexts that surround their use and control alter and open up new threads of action, involving reshaping and renewing the cycles of creation and disposition.

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A importância da elaboração de instrumentos de pesquisa para o resgate da memória: a experiência do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul na confecção de um catálogo seletivo da documentação da Comissão Especial de Indenização Renata Pacheco de Vasconcellos26 Vanessa Tavares Menezes27

Resumo: Este artigo tem por objetivo ressaltar a importância das fontes arquivísticas e dos instrumentos de pesquisa elaborados a partir delas, para a construção de conhecimento histórico e o resgate da memória da história recente brasileira, mais especificamente, acerca dos fatos ocorridos no período de 1964 a 1985 durante a ditadura civil-militar. Para tanto, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul trabalha na confecção de um catálogo baseado no acervo da Comissão Especial de Indenização que atuou no Estado no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Palavras-chave: ditadura; direitos humanos; memória; instrumento de pesquisa; arquivo.

Abstract: This article aims to highlight the importance of archival sources and research tools made from them, for the construction of historical knowledge and the retrieval of the memory of recent Brazilian history, more specifically, about the events in the period from 1964 to 1985 during the civil-military dictatorship. To this end, the Public Archives of the State of Rio Grande do Sul works in making a catalog based on the Commission of the Special Indemnity who served in the State in the late 1990s and early 2000s. Keywords: dictatorship; human rights; memory; research instrument; file.

Introdução O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – Apers, enquanto patrimônio documental e arquitetônico, foi instituído pelo Decreto Estadual nº 876 de 08 de março

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de 1906, durante o segundo governo de Antônio Augusto Borges de Medeiros e neste período era subordinado à Secretaria do Interior e Exterior. Seu acervo é constituído por documentos oriundos dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, Registro Civil e Tabelionatos. A instituição, além de implementar a gestão documental no Estado, através do Sistema de Arquivos do Estado - Siarq, preserva e disponibiliza aos pesquisadores e cidadãos a documentação produzida no âmbito da Administração Pública Estadual. O Apers desenvolve ainda ações, projetos e programas de incentivo à pesquisa, eventos, ações culturais e educativas e elabora meios de busca que facilitem o trabalho do pesquisador. O Apers é uma instituição reconhecida pelo suporte que oferece à pesquisa em determinadas áreas como, por exemplo, escravidão, genealogia, história do Rio Grande do Sul. Nosso acervo possui uma documentação com vasto potencial para pesquisas que se proponham a escrever a história do nosso país. Dentre esta documentação encontramos processos administrativos oriundos do trabalho da Comissão Especial de Indenização, instituída pela Lei Estadual nº 11.042/97, que guardam inúmeras informações sobre o período da ditadura civil - militar no Brasil e especialmente no Rio Grande do Sul. E para que cumpramos nosso dever institucional, a equipe do Apers trabalha na construção de verbetes individualizados que originarão um catálogo seletivo dos processos administrativos produzidos pela Comissão Especial de Indenização, que contribuirá para a construção da cidadania em nosso Estado e País que somente será plenamente conquistada quando garantidos os direitos à memória, à verdade e à justiça.

A importância de conservação e difusão de fontes arquivísticas para o resgate da memória Os arquivos públicos, em sua maioria, foram criados com uma única função, armazenar a documentação produzida pelo Estado para uma possível reutilização. Esta perspectiva mudou nas últimas décadas quando as fontes arquivísticas tornaram-se subsídios para produção de pesquisas científicas e construção de conhecimento histórico. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Reconhecer a importância da preservação das fontes salvaguardadas nos arquivos públicos sejam eles, municipais, estaduais ou federais, é reconhecer que estas instituições são responsáveis por preservar uma documentação que auxiliará também, na construção da cidadania, contribuindo assim, para o resgate da memória brasileira. A preservação de fontes arquivísticas perpassa as técnicas de conservação de documentos

como

a

microfilmagem,

digitalização,

climatização,

higienização,

desinfestação e o acondicionamento correto do acervo. A preservação dos documentos de arquivo está diretamente ligada ao olhar daquele responsável pela gestão documental, visto que, considerando o contexto de falta de recursos humanos e financeiros destas instituições, em alguns momentos é necessário escolher o que preservar primeiro. Como mencionamos anteriormente, as fontes de arquivo são documentos oficiais produzidos pelo Estado e desta forma o pesquisador deve ter cuidado ao utilizá-las. Se olhar atentamente os documentos oficiais e avaliar seu conteúdo, pesquisador terá a capacidade de julgar e escolher utilizar a “verdade” ali contida. Se considerarmos as fontes que tratam do período repressivo da ditadura militar brasileira, esse cuidado deve ser redobrado. Neste caso, especificamente, o pesquisador tem a obrigação de considerar outras fontes e uma das possibilidades é utilização de depoimentos ou testemunhos prestados pelas vítimas deste regime. Trabalhar com fontes arquivísticas que retomam a história da ditadura civil-militar brasileira é uma tarefa que exige cautela, já que, estas trazem informações delicadas sobre aqueles aos quais os documentos versam. Devemos levar em consideração a veracidade das informações contidas nestes documentos oficiais, visto que, estes foram produzidas a partir do tratamento desumano empreendido às vítimas e elaborados por agentes públicos ligados ao regime ditatorial, impondo sobre estes documentos seu parecer particular. Desde sua instituição até o presente momento notamos uma alteração na função deste documento, que foi criado, por exemplo, com o propósito de registrar as prisões daqueles que o Estado considerou ameaça para segurança nacional. Hoje esta documentação cumpre um papel oposto ao de sua criação, tornando-se dado ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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comprobatório das violações aos direitos humanos cometidos por agentes públicos a mando do Estado. Segundo Enrique Padrós, esta mesma documentação pode ser utilizada para outros fins e a abertura destes arquivos está conectada a quatro dimensões do exercício da cidadania: histórica, política, pedagógica e administrativa. Em termos históricos, implica na possibilidade de desenvolver a pesquisa sobre os acontecimentos na produção de conhecimento histórico e na sua socialização. Em termos políticos, possibilita que a sociedade, de posse do conhecimento, se posicione sobre tais acontecimentos e, se assim entender, responsabilize os culpados e apele à justiça. Em termos pedagógicos, o conhecimento deste passado pode gerar “ações” (pedagógicas) que reforcem o caráter democrático e a necessidade de não esquecer. Por último, em termos administrativos, as pessoas que se sentem prejudicadas individualmente pelas ditaduras podem exigir, junto à justiça, direitos de reparação, restituição de empregos ou bens, fim de punições e expurgos, etc., o que significa a possibilidade de reconstruir memórias “lastimadas” pela tortura, pela perseguição política e pelo exílio (PADRÓS, 2009, p. 42).

Os argumentos para a preservação de documentos arquivísticos são muitos. Além de ressaltar sua importância para a preservação dos direitos civis, a documentação que trata da temática da ditadura civil - militar, pode ser utilizada para garantir às vítimas os direitos de anistia, indenização e pensão. Nesta mesma perspectiva, a preservação de divulgação desta documentação possibilita conhecer a realidade da repressão brasileira durante 1964 a 1985, bem como a compreensão do nosso passado recente.

O processo de confecção do catálogo do acervo da Comissão Especial de Indenização É prerrogativa das instituições arquivísticas elaborar instrumentos de pesquisa que, se bem planejados, oferecem condições ao pesquisador de melhor orientar sua pesquisa e reduzir a quantidade de documentos a serem consultados, visto que a documentação salvaguardada em arquivos é fundamental para produção de trabalhos acadêmicos, monografias, dissertações e teses. Neste sentido o Apers vem, ao longo de sua história, elaborando meios de busca e, desde o advento das normas internacionais e nacionais, produzindo descrições28 baseadas na Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística - Isad(G), Norma Internacional de Descrição de Instituições com Acervo Arquivístico – Isdiah, Norma Brasileira de Descrição Arquivística - Nobrade. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Como foi mencionado anteriormente, a confecção de instrumentos é uma rotina nas atividades do Apers e, considerando o contexto atual de criação das Comissões Nacional e Estadual da Verdade e da instituição da Lei de Acesso às Informações, a equipe optou por elaborar um catálogo tendo como base os processos administrativos oriundos da Comissão Especial de Indenização, instituída pela Lei Estadual nº 11.042, de 18 de novembro de 1997. Esta Lei reconhece a responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul por danos físicos e psicológicos causados às pessoas detidas, por motivos políticos, no período de 02 de agosto de 1961 a 15 de agosto de 1979, e estabelece normas para que sejam indenizadas. A Lei de criação foi alterada pela Lei Estadual nº 11.815, de 26 de junho de 2002 que fixa novo prazo para encaminhamento. A Comissão funcionou junto a Secretaria da Justiça e da Segurança do Estado do Rio Grande do Sul e foi composta por representantes do Poder Executivo Estadual, da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Ministério Público Estadual, da Associação Riograndense de Imprensa, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Regional de Medicina e um representante do Movimento de Ex-presos e Perseguidos Políticos. Cabia a Comissão avaliar as solicitações de indenização feitas por pessoas detidas por motivos políticos em órgãos públicos geridos pelo Estado. Do trabalho da Comissão foram produzidos 1.705 processos administrativos de indenização, 231 processos administrativos de antecedentes políticos e documentos administrativos que tratam do funcionamento da Comissão, tais como atas, relatórios, portarias, ofícios e memorandos. Esta documentação foi recolhida ao Apers, oriunda da Secretaria da Segurança Pública, através de termo de recolhimento em 05 de agosto de 2009. Os processos administrativos possuem informações relativas a dados pessoais do requerente como nome, qualificação profissional, domicílio, relatos acerca do período e local de prisão. Nestes processos encontramos também o depoimento da vítima que relata, em detalhes, as sevícias e maus tratos sofridos durante a detenção e, em alguns casos, descreve as torturas sofridas, bem como o nome dos torturadores. Além disso, tais processos possuem diferentes documentos oficiais como, por exemplo, certidões de ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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órgãos públicos estaduais e federais inquéritos policiais e militares. Completam os processos administrativos imagens, recortes de jornal, pareceres psiquiátricos e outros. Para elaboração deste catálogo foi formada uma equipe multidisciplinar, composta por historiadores e arquivistas, possibilitando assim, um intercâmbio de conhecimento entre as duas áreas e que consequentemente, trouxe olhares diferenciados a este processo. Em seguida, após levantamento documental, estudo e análise dos processos administrativos, a equipe buscou informações que considerou relevantes. Os processos administrativos de antecedentes políticos não foram descritos, visto que, estes processos são compostos por uma série de documentos, oriundos de diversos órgãos públicos, que não geram um processo de indenização. Concluída esta etapa, a equipe definiu as informações que comporiam o verbete. Além da identificação no verbete do Fundo29, que neste caso é Comissão Especial de Indenização, e do número do acondicionador, caixa onde a documentação é armazenada, a escolha dos demais campos que constituiriam o verbete foi motivo de grande debate entre os componentes da equipe. Concluiu-se que o verbete deveria ser composto pelas seguintes informações: número do processo, assunto, nome da parte envolvida, codinome/pseudônimo/alcunha, naturalidade, profissão/ocupação, vinculação partidária e/ou organização, prisões, companheiros de prisão, torturadores, rol de testemunhas, sevícias e maus tratos sofridos, processo deferido ou não, valor da indenização paga e por fim, o campo denominado observações. Os processos que compõem este fundo estão cadastrados no Sistema de Protocolo Integrado – SPI, sistema utilizado em órgãos públicos do Estado do Rio Grande do Sul para registro de processos através de um número e de um assunto prédeterminado. Através deste número é possível identificar em qual órgão ou Secretaria de Estado ele foi produzido. Este número de processo e assunto, localizados na capa do processo são dados inseridos no verbete. O nome da parte envolvida, titular do processo, é destacado no verbete através dos recursos negrito e caps lock. Em caso de falecimento da vítima, esta informação deverá ser adicionada ao verbete, facilitando assim, o trabalho do pesquisador na

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identificação de solicitações de indenização feitas por parentes. Ao analisar a documentação percebeu-se que em alguns processos era possível identificar a alcunha, pseudônimo ou codinome do requerente e quando esta informação é evidente, também será mencionada. A data de nascimento, bem como, a naturalidade são informações imprescindíveis para esclarecer a origem do requerente e, eventualmente, determinar a área de atuação. Durante a escolha dos campos que comporiam o verbete optou-se por ressaltar ocupação ou vinculação partidária da parte envolvida no momento de sua prisão, e não a da época de solicitação de indenização, visto que, a vítima pode ter modificado sua escolha profissional, por diversos motivos, inclusive por ter sofrido perseguição política durante o período ditatorial. Com relação às prisões, elas aparecem no verbete de maneiras variadas, desde cárcere em órgãos geridos pelo Estado e pelo exército, até casos de prisão domiciliar, onde o requerente deveria comparecer periodicamente para prestar esclarecimentos acerca de suas atividades. No verbete, são inseridos dados que correspondem ao local e período de detenção. É comum encontrarmos nos processos o local onde a parte envolvida foi detida, por mais de uma vez e em alguns casos transferida de uma prisão para outra, sendo obrigada a permanecer em diversas instituições. Nestes casos todas as prisões e períodos são descritos. Como já foi dito, alguns depoimentos prestados pelas vítimas impressionam pelos detalhes acerca da prisão e suas consequências e neste mesmo documento são explicitados os nomes dos companheiros de prisão que vivenciaram os horrores do cárcere naquele período. É possível identificar na documentação o rol de testemunhas e/ou declarações. Este campo é composto por aqueles que foram arrolados ou indicados como testemunhas pela Comissão ou pela parte envolvida. O campo companheiros de prisão difere do rol de testemunhas, mas, em muitos casos, os nomes coincidem, O cruzamento dos nomes citados nos processos possibilita ao

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pesquisador, por exemplo, reconhecer os grupos e organizações, bem como, possíveis laços de amizade formados durante e após a detenção. Caso a vítima cite os torturadores ou agentes penitenciários, militares ou civis, executores ou comandantes dos maus-tratos físicos e psicológicos, seus nomes serão descritos no verbete e no que se refere aos maus-tratos ou sevícias, é declarado somente a ocorrência ou não destes, sem descrever em minúcia o tipo de tortura sofrida pelo requerente, respeitando assim, a intimidade e vida privada da vítima. O processo pode ter dois desfechos, onde o processo pode ser deferido ou não deferido. Quando a indenização foi concedida, esta não ultrapassou o montante de R$ 30.000,00 e nem foi ser inferior à R$ 5.000,00. Em caso de morte da vítima, o direito de solicitação de indenização era extendido aos descendentes, ascendentes ou cônjuges. Para a abertura do processo de indenização a vítima deveria anexar, além dos exigidos pela Comissão, o maior número de documentos que comprovassem sua prisão e maus-tratos sofridos. Desta forma, os processos possuem uma variedade de documentos e estes compõem o campo observações. Segue o modelo fictício de verbete: Fundo: Comissão Especial de Indenização Acondicionador: 004.002 Processo: 5853-1200/98-3 Assunto do SPI: Indenização PEDRO SILVA (Falecido) Vulgo/Codinome “Beija-Flor”; Nascido em 31/12/1914 em Bagé - RS, Professor; pertenceu ao Partido Trabalhista Brasileiro e ao Grupo dos Onze em Erexim; preso de 07/06/1964 a 25/10/1964 na Prisão de Erexim, preso em prisão domiciliar de novembro de 1964 a 23/12/1964,

apresentando-se

semanalmente

para

averiguações;

citou

como

companheiros de prisão: Jofre Lorau, Artemio Moccelin, Amândio José Dabrovolski, Helmuth Pedro Nottar, Olímpio Faganello, Orestes Devensi; Indicou como testemunhas: ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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José Antônio Lupe Duarte, César Augusto Tejera de Ré, Jorge Sobrosa de Sousa, José Claiton Vanive, Carlos Roberto Borges, José Angeli Sobrinho; alegou ter sofrido torturas físicas e psicológicas praticadas por policiais sob o comando do Coronel Gonçalino Cúrio De Carvalho; concedida indenização de R$ 5.000,00/processo indeferido por carência de provas. Observações: cópia do jornal Zero Hora de 10/05/1964, pág. 05, parecer psiquiátrico de 18/12/1972.

Do acesso à documentação No momento em que esta documentação foi recolhida ao Arquivo Público, foram estabelecidas regras que definiam as condições de acesso e uso. A documentação administrativa produzida pela Comissão Especial de Indenização, não tinha restrição de acesso, já os processos administrativos de indenização, só poderiam ser acessados pelo indenizado e por terceiro indicado por procuração. No caso do indenizado já ter falecido, era necessário apresentar certidão de óbito e comprovar parentesco, possibilitando assim, o livre acesso. Para construção de pesquisa história, o acesso era permitido mediante apresentação de projeto de pesquisa amparado por uma instituição de ensino, perante assinatura de termo de compromisso. Após o advento da Lei nº 12.527, em 18 de novembro de 2011, Lei de Acesso às Informações, regulamentada pelo Decreto Federal nº 7.724, de 16 de maio de 2012, a restrição de acesso passou a ser exceção. Porém, segundo o inciso I do artigo 31 desta Lei, as informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem, terão seu acesso restrito, independentemente de sigilo e pelo prazo máximo de cem anos a contar da data da sua produção. Neste mesmo artigo, em seu § 4, a assertiva fica desconsiderada quando prejudicar o processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido e estas estiveram voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância. O artigo 21, em seu parágrafo único, ressalta que informações ou documentos que versem sobre condutas que implique nas violações dos

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direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso. Diante deste impasse a equipe do Arquivo Público procurou orientação da Sub Chefia de Ética da Casa Civil do Estado do Rio grande do Sul, a fim de regulamentar o uso e o acesso da documentação. Neste encontro foi sugerida a solicitação de um parecer à Procuradoria Geral do Estado, sugestão esta, acatada pela diretoria do Apers que buscou subsídios para formular este requerimento. Paralelo a isso, foi solicitado a profissionais da área de história, com experiência em estudos na área de ditadura, e ao núcleo do Rio Grande do Sul da Associação Nacional dos Professores de História a elaboração de pareceres historiográficos que justificassem a liberação de acesso. Os pareceres historiográficos foram favoráveis a liberação do acesso aos documentos. O parecer da Procuradoria Geral do Estado retornou ao Apers com a recomendação da elaboração de um edital, nos mesmos moldes dos editais publicados pelo Arquivo Nacional, onde o titular do processo deverá manifestar-se, no prazo de 30 dias, requerendo a manutenção da restrição de acesso ao seu dossiê pessoal. Conforme a orientação da Procuradoria Geral do Estado, a equipe do Apers, em parceria com a Assessoria Jurídica da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos, publicizará, na forma de edital, os nomes dos titulares das informações pessoais contidas no conjunto documental. Caso os requerentes não se manifestam no prazo determinado, solicitando a manutenção da restrição de acesso, a documentação se tornará pública.

Considerações finais Os acervos salvaguardados nos Arquivos Públicos são um patrimônio de todos e se bem utilizados, contribuem para a construção de conhecimento científico e histórico e, consequentemente, para o exercício da democracia. O processo de confecção do catálogo iniciou em agosto de 2012 e desde então foram mapeados cerca de 75% dos processos que compõe o acervo. Com base nesta ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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produção realizou-se um estudo que apontou, por exemplo, uma representação considerável de agricultores do norte e noroeste do Rio Grande do Sul, simpatizantes de Brizola e do Grupo dos Onze, que foram vítimas do regime ditatorial instaurado no Rio Grande do Sul no ano de 1964. Outro ponto a ser destacado é a participação das mulheres nos grupos de resistência, armada ou não. Se considerarmos somente os processos de indenização, este número é de 10%, número este que certamente não reflete a história. É provável que a documentação não retrate fielmente o contexto da ditadura no Estado. Devemos considerar que nem todos aqueles que sofreram perseguições, prisões e torturas durante o regime de exceção solicitaram a indenização. Consideramos que o acervo da Comissão Especial de Indenização, além de contribuir para a identificação de agentes e instituições públicas que serviram ao regime ditatorial, é indispensável para a recuperação de fatos históricos relacionados ás graves violações dos direitos humanos que foram cometidas no Rio Grande do Sul.

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Notas

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Arquivista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Graduada pela Universidade Federal de Santa Maria. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Historiadora do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Graduada pela Universidade Luterana do Brasil e Especialista em História da África e Afro- brasileira pela Faculdade Porto Alegrense. 28

Conjunto de procedimentos que leva em conta os elementos formais e de conteúdo dos documentos para elaboração de instrumentos de pesquisa (ARQUIVO NACIONAL, BRASIL, 1999, p. 67). 29

Conjunto de documentos produzidos e/ou acumulados por determinada entidade pública ou privada, pessoa ou família no exercício de suas funções e atividades, guardando entre si relações orgânicas e que são preservados como prova ou testemunho legal e/ou cultural, não devendo ser mesclados a documentos de outro conjunto gerado por outra instituição, mesmo que este, por quaisquer razões, lhe seja afim. (BELLOTTO, 1991, p. 79)

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Sessão 2 ARQUIVOS E HISTÓRIA ORAL

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Marcas da Memória: a construção de um acervo de história oral da ditadura e anistia no Brasil Desirree dos Reis Santos1 Izabel Pimentel da Silva2

Resumo: O presente trabalho é fruto das reflexões elaboradas a partir do acervo de História Oral produzido pelo projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”, realizado no âmbito de uma parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e a Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo principal deste projeto foi construir um acervo de fontes orais e audiovisuais a partir da realização de entrevistas com pessoas cujas histórias de vida são atreladas à perseguição política durante a última ditadura militar no Brasil. Este acervo de história oral suscita questionamentos acerca do potencial histórico do testemunho e das temáticas referentes às subjetividades e trajetórias de vida. Nesse sentido, pode servir como fonte e objeto de estudo para os historiadores, constituindo-se, portanto, em um rico manancial para os estudos históricos do Brasil contemporâneo. Palavras-Chave: Memória; História Oral; Ditadura; Acervo.

Memory Marks: The Construction of the Oral History archive of Dictatorship and Amnesty in Brazil Abstract: This work is a result of reflections developed from the archive of oral history produced by the project "Memory Marks: Oral History of Amnesty in Brazil", a partnership between Amnesty Commission of the Ministry of Justice and the Federal University of Rio de Janeiro. The main objective of this project was to build an archive of oral and audio-visual sources from the interviews with people whose life stories are related to political persecutions during the last military dictatorship in Brazil. This archive of oral history raises questions about the historical potential of the testimony and the issues related to subjectivity and life trajectories. Accordingly, it can serve as a source and object of study for historians, constituting, therefore, a rich possibility for historical studies of contemporary Brazil. Key Words: Memory; Oral History; Dictatorship; Archive.

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Introdução O acervo de história oral analisado no presente trabalho foi produzido através da iniciativa da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro entre os anos de 2011 e 2012. Esse projeto, coordenado pela professora Dra. Maria Paula Araujo (História/UFRJ), insere-se na perspectiva de que, cada vez mais, são valorizados os registros de memória para a escrita da história recente, principalmente no que concerne aos momentos históricos de violência e repressão, como os vividos na América Latina durante a segunda metade do século XX. Essa pesquisa contou com pesquisadores e bolsistas de graduação e pósgraduação e esteve atrelada a uma das propostas da Comissão de Anistia no que diz respeito a promover diálogos com universitários e grupos em geral que se interessam pelo debate acerca da defesa dos direitos humanos e do direito à memória e à verdade quando se fala do legado autoritário da recente ditadura brasileira. Intitulado “Marcas da Memória”, o projeto criado pela Comissão, do qual nossa equipe faz parte, visa “permitir que a sociedade acesse a uma pluralidade de narrativas de um passado comum” (ABRÃO; TORELLY, 2011). Para isso, as ações desse projeto dividem-se em quatro campos: publicação de livros (distribuídos gratuitamente) sobre anistia política, justiça de transição e memórias de ex-perseguidos políticos; audiências públicas com relatos dessas memórias; chamadas públicas via editais, onde são selecionadas iniciativas da sociedade civil para esse debate, através de variados meios, tais como a produção de peças de teatro, exposições artísticas ou digitalização de acervos; e pesquisas de história oral. A busca por esses esclarecimentos e valorização da ideia de publicizar essas memórias está na chave do que se denomina ser dever de memória. Buscando compreender esse conceito, Luciana Heymann aponta para a ideia de que “memórias de sofrimento e opressão geram obrigações, por parte do Estado e da sociedade, em relação às comunidades portadoras dessas memórias”3 e que, nos dias atuais, essa noção está ligada tanto às questões de identidade como às lutas por reconhecimento e reparação (HEYMANN, 2007, p.4).

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As memórias que se impõem como dever estão intimamente vinculadas a experiências traumáticas. Os que devem ser lembrados são, sobretudo, aqueles eventos que produzem vítimas. Por essa razão, defender o dever de memória, hoje, é verificar e obrigar um país a reconhecer os danos causados a certas camadas da população, principalmente quando o próprio Estado tem responsabilidade nesse sofrimento, sendo uma obrigação socialmente compartilhada, nas análises da pesquisadora Luciana Heymann (HEYMANN, 2007). Entendemos que as políticas públicas da Comissão de Anistia a partir de 2007 estão voltadas para essas memórias que não “devem” ser silenciadas, tendo, assim, os critérios teóricos e metodológicos da história oral grande importância dentro desse contexto. Durante a primeira etapa do projeto de história oral realizado pela UFRJ 4 , denominada “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”, foram realizadas 44 entrevistas no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, Juiz de Fora, Volta Redonda e São Paulo. Todas as entrevistas foram filmadas, gravadas em áudio e transcritas 5. O arquivo é composto por 44 capas duplas de DVD/CD, organizado em ordem alfabética – cada capa referente a um entrevistado – onde constam os vídeos em DVD e, no CD, as transcrições, áudios e roteiros das entrevistas. Cada transcrição contém uma ficha técnica, com informações como o nome do entrevistado, data e local da entrevista, pesquisadores presentes e um resumo sobre a trajetória do entrevistado, que facilita a pesquisa do consulente. As cartas de cessões de direitos sobre os depoimentos orais, assinadas pelos entrevistados, estão sob a guarda da UFRJ. O objetivo desse projeto foi possibilitar a criação de um acervo, voltado principalmente para a pesquisa, a partir de vozes plurais da luta contra a ditadura, principalmente daqueles contemplados pela legislação 10.559/02, que declara as condições e os direitos dos anistiados políticos e regulamenta a reparação econômica concedida pelo Estado. Esses depoimentos contemplam uma pluralidade de histórias de vida atreladas à resistência ao governo militar, incluindo trajetórias de sindicalistas, militantes de várias organizações armadas, artistas, clérigos, familiares de mortos e desaparecidos políticos, integrantes do movimento estudantil, participantes da campanha pela Anistia no final dos anos 1970, operários, militares cassados, ativistas de direitos humanos, entre outros. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Os nomes dos entrevistados foram sendo escolhidos no decorrer do projeto através de sugestões de professores, das pesquisas realizadas pela equipe – que se reunia semanalmente para discutir textos sobre memória, história oral, ditadura e anistia – e por indicações dos próprios depoentes, durante e após as entrevistas. Depois de escolhido o entrevistado e confirmada a concessão da entrevista, iniciava-se a pesquisa para a criação do roteiro e a preparação dos pesquisadores para aquela sessão de depoimento. Os roteiros com as perguntas que serviam como guias para as entrevistas foram elaborados tendo em vista as histórias de vida de cada entrevistado. Dessa maneira, valemo-nos dos apontamentos do sociólogo francês Pierre Bourdieu no que tange a suas análises sobre biografia. Segundo o autor, faz-se necessário um estudo de trajetória relacionada a seu espaço social e das variáveis posições ocupadas pelo agente nesse espaço em que é ele próprio um devir, ao contrário da ideia de um relato coerente e orientado de uma biografia, de uma “ilusão biográfica” (BOURDIEU, 2002). Interessa-nos essa relação entre a trajetória individual e o social. As questões do roteiro são formuladas nesse sentido. Algumas perguntas são gerais e são introduzidas em (quase) todas as entrevistas. Indagações como as lembranças que têm do golpe de 1964, o engajamento na campanha pela Anistia e como encaram a lei de Anistia de 1979 são retomadas em praticamente todos os depoimentos – exceto aqueles que as perguntas não cabem como, por exemplo, os casos de filhos de militantes que não eram nascidos na época do golpe civil-militar. As demais questões que compõem o roteiro são feitas a partir das pesquisas sobre as organizações, partidos ou grupos em que os entrevistados estiveram vinculados durante os anos de ditadura. Além disso, levantamos informações sobre suas próprias vivências: se esteve exilado, quando começou a militância, se escreveu autobiografia, livros (quais temas), se tem atuação política atualmente, entre outras. O roteiro é um guia, mas não uma amarra, e pode ser readaptado a partir de algumas questões levantadas no momento da entrevista. A decisão por inserir os roteiros como parte do acervo teve como pressuposto a noção de que pode ser encarado como mais um instrumento de pesquisa para o consulente que, ao lê-lo, toma ciência de quais questões foram, de alguma forma, desenvolvidas no decorrer da entrevista.

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Marcas da Memória: um acervo de histórias plurais Neste artigo, utilizaremos alguns dos depoimentos colhidos pela equipe carioca do projeto Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil. A partir destes depoimentos, buscaremos revelar como alguns ex-militantes de organizações revolucionárias que atuaram no Brasil ao longo das décadas de 1960 e 1970 relembram sua militância política e a experiência da prisão e/ou da clandestinidade. Os trechos dos depoimentos aqui analisados foram divididos a partir de alguns eixos temáticos. Memórias da tortura Ivan Seixas ingressou, aos 15 anos, no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), organização na qual seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, era um dos dirigentes. Em abril de 1971, Ivan (então com 16 anos) e Joaquim foram presos juntos em São Paulo e levados para a Operação Bandeirantes (Oban). Cada um foi encaminhado para uma sala de tortura. Para Ivan, era importante demonstrar para seu pai que ele estava enfrentando com coragem a tortura e a prisão. Uma das estratégias usadas por ele para enfraquecer e confundir os torturadores foi entregar um “ponto” de encontro falso com outro companheiro. Através dessa estratégia, Ivan também tentava se comunicar com o pai e fortalecê-lo: Eles voltaram espumando [...] e eu aproveitei a fúria deles para passar um recado para o companheiro que estava ali, que era o meu pai. Porque ali não era pai e filho, eram dois militantes. E quando você tem uma situação dessa, o militante que fraquejar ou vacilar enfraquece o outro. [...] Eu precisava dizer ao meu pai que estava tudo bem, que eu não “abri” ninguém. [...] E quando os caras chegaram rasgando a minha roupa, eu falei pro meu pai ouvir: “Claro que era ponto frio, seus babacas! Vocês acham que eu ia entregar um companheiro pra vocês matarem?” [...] Foi um modo que eu arrumei de eu dominar os caras (SEIXAS, 2012).

Ivan Seixas também expõe a postura que adotou diante da tortura: [...] na tortura, uma coisa muito importante de dizer, não tem valente, não tem covarde. Tem o bom e o mau administrador do medo, porque o medo todo mundo sente. Ninguém está preparado pra ser torturado, ninguém tem controle absoluto. O que tem é controle do medo, então se eu tenho um bom controle do medo, eu percebo que eu tenho a informação [...]. Eles podem me matar, mas se eles me matarem eles perdem a fonte que, possivelmente, vá fornecer informação. É um jogo que você tem que, minimamente, dominar. Você tem que entender que isso daí é o seu capital (SEIXAS, 2012).

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Joaquim Seixas foi morto em 17 de abril de 1971. Ivan ficou preso por seis anos, sem nunca ter sido oficialmente condenado, em razão de ter sido detido quando era menor de idade. Foi liberado em agosto de 1976, durante o processo de “abertura” implementado pelo governo Geisel. O corpo de seu pai somente foi encontrado em 4 de setembro de 1990, em uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo, onde estavam depositadas mais de mil ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas de esquadrões da morte. Atualmente, Ivan Seixas é editor e presidente do Núcleo de Preservação da Memória Política em São Paulo. A violência vivenciada na prisão também foi relatada pela jornalista Rose Nogueira. Ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Rose foi presa em sua casa em São Paulo (juntamente com seu marido) em novembro de 1969, aos 23 anos de idade. Ela tinha acabado de dar à luz: seu filho tinha apenas um mês de vida e, com a prisão dos pais, foi deixado na casa de uma das avós. Rose ficou presa por quase um ano e durante este tempo foi submetida a diversas modalidades de tortura, entre elas a violência sexual, como nos revelou em seu depoimento: [...] Eu era moça, era bonitinha, como todas, e eles me chamavam de “Miss Brasil”. Lá tinha um sujeito, que era um tarado, que não podia me ver. Quando ele me via, fazia assim [gesto esfregando as mãos]. O nome dele era Tralli, o sobrenome, chamavam de Tralli. [...] E aí eu tinha que tirar a roupa. Então era sempre a mesma história, nem faziam perguntas. [...] Eu tinha leite, e ele dizia que o leite atrapalhava o desejo dele. Então mandou me dar uma injeção para cortar o leite. [...] Tinha um tal de Nelsinho também. E era tudo “inho”, Nelsinho, Rubinho, Luizinho, Toninho, era tudo “inho”, todos no diminutivo, porque eles eram menores mesmo! Eles sabiam que eram menores! [...] E foi um horror! (NOGUEIRA, 2012).

Rose Nogueira foi libertada em julho de 1970. Seu marido passou um ano e oito meses na prisão. A partir de então, ela iniciou um longo e doloroso processo de reinserção na sociedade, batalhando para conseguir emprego e sustentar seu filho. Desde então, dedica-se à defesa dos direitos humanos no Brasil. “A tortura é a coisa mais degradante, a pior coisa que pode acontecer ao ser humano!” (NOGUEIRA, 2012), afirma Rose Nogueira. Atualmente, Rose é presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.

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Memórias da clandestinidade A prisão foi o destino de praticamente todos os membros das organizações da esquerda armada brasileira que não partiram antes para o exílio ou para a morte. Mas para além da vivência na prisão, o cotidiano da clandestinidade também marcou de forma indelével a trajetória destes ex-militantes de organizações revolucionárias brasileiras. Cair na clandestinidade era, acima de tudo, uma tentativa de sobrevivência para estes militantes políticos. Ao ingressar em uma organização da esquerda armada e/ou ao tornar-se clandestino, o militante rompia de forma radical com toda sua vida anterior. Identidades falsas, “aparelhos”, “pontos” e regras de segurança tornavam-se parte da rotina. O guerrilheiro habitava um mundo com linguagem, leis e códigos próprios – uma existência paralela. Em muitos sentidos, cair na clandestinidade significava tornar-se um exilado dentro de seu próprio país. Victória Grabois passou mais de uma década na clandestinidade. Filha de Maurício Grabois, histórico dirigente comunista, Victória e sua família eram militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Após o golpe de 1964, ela foi expulsa do curso de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia (pertencente à atual UFRJ). A partir daí, com a perseguição política aos seus pais, toda a família se transferiu para São Paulo e caiu na clandestinidade. Em São Paulo, Victória conheceu Gilberto Olímpio Maria, também militante do PCdoB, com quem se casou. Desde 1966, diversos militantes do PCdoB foram deslocados para a região do Araguaia (no sul do Pará e parte do Maranhão e Goiás, atual Tocantins), a fim de deflagrar a guerrilha rural. Entre 1966 e 1969, o pai, o irmão e o marido de Victória também se transferiram para aquela região. Victória só não foi pro Araguaia, porque pouco antes decidiu engravidar. De certa forma, seu filho salvou a sua vida. A presença do PCdoB, na área, foi descoberta pelos órgãos repressivos e, após três campanhas militares, desencadeadas entre 1972 e 1973, a guerrilha foi liquidada. Maurício Grabois, André Grabois e Gilberto Olímpio são até hoje desaparecidos políticos. Enquanto sua família estava no Araguaia, Victória Grabois, que já vivia na clandestinidade, permaneceu em São Paulo, adotou uma nova identidade (passou a se

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chamar “Teresa”), batalhou para conseguir emprego, teve de registrar seu filho Igor com outro nome (com medo de que pudessem descobrir que ele era neto de Maurício Grabois), mudava constantemente de casa, por questões de segurança e, junto com sua mãe, enfrentou grandes dificuldades em seu cotidiano clandestino: Eu vivia com a minha mãe e o meu filho. Eu não tinha marido, eu não tinha amiga, eu não tinha ninguém (...) eu caí na clandestinidade com 20 anos de idade e fui até os 36 (...) Viver na clandestinidade é algo inominável (...) no meu caso em particular, você viver com filho pequeno, com nome falso, uma criança que não tem parente (...) eu tive que inventar para ele que o pai era separado. Porque ele era muito pequeno e não sabia o que acontecia. Quer dizer, esse pai ausente que nunca aparece [...] Todas as crianças tinham família, ele não tinha família. Era uma coisa muito dura! (GRABOIS, 2011).

Após o decreto da lei da anistia em 1979, Victória voltou para o Rio de Janeiro, procurou um advogado que defendia presos políticos, tirou novos documentos, desta vez com seu nome verdadeiro e, finalmente, ela e sua mãe saíram da clandestinidade. Atualmente, é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.

Reparação: múltiplos olhares Conforme já mencionamos, os roteiros, que guiam as entrevistas realizadas pela equipe, são compostos por algumas questões gerais, feitas com praticamente todos os entrevistados. A ideia de reparação ligada à operação da lei 10.559/02 pela Comissão de Anistia é uma delas. Essa legislação prevê as concessões em forma de reparação econômica, de caráter indenizatório, a anistiados políticos, sobretudo, a partir do critério trabalhista. Sendo assim, a lei postula formas de indenizações para aqueles que não comprovem vínculo laboral (em prestação única não superior a cem mil Reais) – como nos casos de estudantes – e para aqueles que conseguem comprovar vínculo empregatício no momento em que sofreram perseguições políticas. De todo modo, qualquer que seja a categoria, é necessário que a pessoa entre com um requerimento na Comissão de Anistia para que seu processo seja julgado. O próprio requerente pode realizar esse pedido; não é obrigatória a atuação de um advogado. Durante as entrevistas do “Marcas da Memória” (equipe da UFRJ), duas ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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questões giram em torno dessa temática. A primeira é se o entrevistado ou alguém de sua família fez esse requerimento na Comissão e, em seguida, indaga-se sobre sua opinião acerca da atuação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Percebemos que, dentre outras explicações, críticas e elogios, algumas respostas direcionam para toda uma conjuntura em que se problematiza o aspecto indenizatório da lei 10.559/02 quando se trata da busca por reparações a perseguidos políticos e seus familiares. Questionamento esse que não só foi feito por ex-perseguidos políticos, mas, de maneiras divergentes, por grupos de direitos humanos, pela própria Comissão de Anistia6 e que também foi massivamente utilizado pelos meios midiáticos, tentando desqualificar o trabalho da Comissão. Alguns entrevistados assimilam que a concessão da indenização feita pelo Estado não é digna de uma reparação pelos danos sofridos durante suas vidas nos anos de ditadura. Outros entendem que a decisão pelo engajamento na resistência ao governo dos militares naquele período também não estaria de acordo com uma posterior indenização. Essa última resposta pode ser exemplificada pelo depoimento de Ferreira Gullar, poeta e jornalista que nos anos 1960 ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi um dos presidentes do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da Une) e que teve grande participação no Grupo Opinião, buscando questionar a realidade brasileira e, principalmente, o governo recém-instaurado através dos meios artísticos. Gullar comenta: Me neguei a aceitar qualquer indenização, porque ninguém me pediu para brigar, eu briguei porque quis. Não posso ser indenizado. Por quê? O povo me chamou para brigar? Telefonaram para mim? A população pediu para mim para eu ir brigar contra a ditadura? Não, eu briguei porque eu quis. Por que o povo tem que pagar por isso? Por quê? Fui eu que escolhi fazer (GULLAR, 2011).

Ferreira Gullar partiu para o exílio em 1971. Os anos fora do Brasil são marcados em sua memória como momentos de grandes obstáculos e perdas, inclusive com relação à dificuldade de continuar a trabalhar com as artes. A volta foi em 1977, pois “já estava cheio até o último tampo de tanto exílio” (GULLAR, 2011) e com os problemas de saúde

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na família. O retorno foi uma atitude pensada e totalmente planejada pelo poeta que tinha receio de ser capturado ao chegar em solo brasileiro. O questionamento de Gullar no que diz respeito ao pagamento de indenizações pela Comissão de Anistia é recorrente. Alguns esforços desse órgão após 2007, quando Tarso Genro ocupava o cargo de ministro da Justiça (2007-2010) e nomeou Paulo Abrão como presidente da Comissão de Anistia (2007 até os dias atuais), tentam ampliar sua atuação para além do cumprimento da lei 10.559/02 no que concerne às reparações econômicas. Um exemplo disso é a promoção de sessões de julgamentos itinerantes (“Caravanas da Anistia”) que, além das apreciações, homenageiam alguns ex-perseguidos políticos que estão com processos sendo julgados naquela cerimônia e, no final, tendo o requerimento sido deferido, o Estado pede perdão pelos danos ocorridos ao anistiado. A experiência narrada pela pesquisadora e professora universitária Dulce Pandolfi elucida alguns efeitos na trajetória de ex-perseguidos políticos que entraram com pedidos de reparação na nova gestão da Comissão. Nascida em uma família tradicional de Pernambuco, Dulce já participava de manifestações de apoio a propostas da esquerda política desde a vivência em sua cidade natal. Lembra que foi lá que optou por ingressar na Ação Libertadora Nacional no final da década de 1960, tendo passado em 1970 a viver no Rio de Janeiro. Presa no mesmo ano, foi levada para o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) da rua Barão de Mesquita, onde ficou por aproximadamente três meses e foi barbaramente torturada, inclusive, segundo ela, sendo cobaia de uma aula para formação de torturadores, que estudavam os procedimentos mais e menos eficazes para que o preso entregasse as informações que eles queriam. Passados os anos de ditadura, Dulce hesitava em falar publicamente sobre essas memórias da prisão e da tortura. Essa – e também por se incomodar com o pagamento de indenizações – era uma das razões pela qual afirmou ter demorado a entrar com o pedido de reparação na Comissão de Anistia. Seu requerimento foi julgado numa sessão especial do dia de combate à tortura, com os suportes similares às mencionadas etapas das cerimônias das Caravanas da Anistia. Ainda que realizado dentro dos muros da

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Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a proposta de reparações simbólica e moral, além de econômica, já estava em pauta no órgão responsável pela concessão de anistia. O Estado está agora diante de mim se curvando e me tratando desse jeito, que coisa linda! [...] foi quando eu desabei, eu me senti muito recompensada, foi uma coisa muito bonita! Mesmo que a gente saiba que, claro, não apagou as coisas do passado, mas você sente que finalmente a cidadania chegou nesse país. Acho mesmo que todo mundo deveria entrar [com o pedido]. Foi um momento muito lindo da minha trajetória (DULCE, 2011).

Os depoimentos de Ferreira Gullar e Dulce Pandolfi são exemplos de opiniões sobre as formas de como o governo tem lidado com o passado autoritário da recente ditadura brasileira. Essas e outras entrevistas do acervo possibilitam, dentre diversas questões, estudos que contemplam a recepção e a eficácia das políticas públicas da Comissão de Anistia, a partir do ponto de vista de seu principal foco: os ex-perseguidos políticos da ditadura. As experiências de vida relatadas nos depoimentos utilizados neste artigo nos permitem vislumbrar o horizonte de possibilidades, das dores às alegrias, dos projetos às utopias, de uma geração e de uma época. Nesse sentido, o uso da História Oral como metodologia tem contribuído muito para o trabalho do historiador do tempo presente. Estas entrevistas não só apontam para as inúmeras possibilidades de atuação durante o período da ditadura militar brasileira, mas também revelam uma pluralidade de memórias, que podem servir como fonte e objeto de estudo para os historiadores.

História oral: memórias, testemunho e subjetividade Um acervo de história oral que enfoca múltiplas trajetórias de vida ao longo da última ditadura no Brasil traz à tona as complexas relações entre História e Memória. Em relação à ditadura militar brasileira – e a qualquer outro período histórico – é impossível encontrar uma memória, uma única interpretação do passado, compartilhada por toda a sociedade. Sempre haverá memórias e interpretações, no plural, que estabelecem, entre si, lutas e rivalidades políticas.

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A memória encontra-se intimamente vinculada ao sentido de identidade, que, por sua vez, está relacionado à construção da imagem de si, para si e para os outros. Portanto, podemos dizer que a memória é um fenômeno construído. Segundo Michael Pollak, a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio de negociação direta com outros, onde ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros (POLLAK, 1992, p. 204).

Inseridas nos conflitos sociais que opõem grupos políticos diversos, memória e identidade não são, portanto, valores estáticos: sofrem um constante processo de desconstrução e reconstrução, moldado segundo os paradigmas de nossa sociedade. Além disso, como destacou Henry Rousso, essa representação seletiva do passado não é prerrogativa apenas do indivíduo, mas “de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO, 2002, p. 94). É nesse sentido que se pode falar em memória coletiva, como analisou Maurice Halbwachs (HALBWACHS, 1990). Esta reconstrução – individual e coletiva – do passado é sempre marcada pelo caráter de seletividade: “Toda narrativa del pasado implica uma selección. La memoria es seletiva; la memoria total es imposible. Esto implica un primer tipo de olvido 'necesario' para la sobrevivencia y el funcionamiento del sujeto individual y de los grupos y comunidades” (JELIN, 2002, p. 29). Desta forma, na medida em que é impossível lembrar todo o passado, recordações e esquecimentos tornam-se as duas faces de um mesmo processo – a construção da memória. O olhar retrospectivo elege o que deve ser lembrado, em detrimento de outros fatos que permanecerão submersos no esquecimento, ainda que esses possam, frente a novos contextos e demandas, emergir ao palco da memória. E mais, esse incessante trabalho de reinterpretação do passado está intrinsecamente ligado aos embates do presente. Assim, podemos dizer que a “memória é o presente do passado” (RICOEUR, 1999, p. 16).

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No Brasil, a construção da memória acerca dos tempos de ditadura tem sido fundamentada, sobretudo, nos depoimentos de ex-militantes políticos. Nesse sentido, as pesquisas que trabalham com a metodologia da história oral representam importantes instrumentos para a compreensão da construção das estratégias de ação e das representações de grupos ou indivíduos nas diferentes sociedades. Beatriz Sarlo alerta para os limites e perigos da proeminência destas memórias, narradas na primeira pessoa, que supervalorizam o caráter de subjetividade. Segundo a autora, nas últimas décadas, o testemunho alcançou ampla repercussão e foi transformado em um ícone da verdade, que não se sujeita a críticas e/ou desconfianças, sobretudo quando se trata de vítimas de uma experiência traumática (como as prisões e torturas durante os regimes ditatoriais), cujo relato de sofrimento seria impenetrável aos questionamentos. Para Sarlo, o testemunho (...) é composto daquilo que um sujeito permite ou pode lembrar, daquilo que ele esquece, cala intencionalmente, modifica, inventa, transfere de um tom ou gênero a outro, daquilo que seus instrumentos culturais lhe permitem captar do passado, que suas idéias atuais lhe indicam que deve ser enfatizado em função de uma ação política ou moral no presente, daquilo que ele utiliza como dispositivo retórico para argumentar, atacar ou defender-se, daquilo que conhece por experiência e pelos meios de comunicação, e que se confunde, depois de um tempo, com sua experiência (SARLO, 2007, p. 58-59).

Contudo, como destacou Marieta Ferreira, os testemunhos podem servir como matéria-prima para a compreensão dos usos políticos do passado. Quando o historiador adota uma perspectiva que privilegia as relações entre história e memória, é possível [...] neutralizar as tradicionais críticas e reconhecer que a subjetividade, as distorções dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, não como uma desqualificação, mas como uma fonte adicional para a pesquisa (FERREIRA, 2002, p. 321)

A análise do papel do testemunho de catástrofes e/ou experiências traumáticas tem ganhado cada vez mais espaço na produção acadêmica contemporânea. Segundo Márcio Seligmann-Silva, “o testemunho é uma modalidade da memória” (SELIGMANNSILVA, 2008, p. 73). Nesse sentido, a memória traumática representa um amálgama entre

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a memória individual e coletiva e um compromisso com o passado e seus mortos. Dentro dessa perspectiva, pode-se afirmar que “o testemunho em geral narra a construção de subjetividades coletivas” (PENNA, 2003, p. 311). Na concepção da filósofa Jeanne Marie Gagnebin, a figura da testemunha não se restringe à pessoa que narra a experiência traumática, mas incorpora também aquele que ouve. Para ela, a testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2005, p. 93).

Dentro dessa perspectiva, o historiador que trabalha com história oral e que utiliza os testemunhos como fonte e/ou objeto de suas pesquisas converte-se também em uma testemunha secundária, para usar a expressão cunhada por Dominick LaCapra (LACAPRA, 2005, p. 115), ou seja, aquele que se dispõe a ouvir a narrativa daqueles que sentem a necessidade de narrar suas experiências traumáticas. Nesse sentido, a carga emocional dos depoimentos não deve ser encarada “como um ‘empecilho’, como algo que ‘desvirtua’ ou ‘contamina’ a fonte, prejudicando e enfraquecendo sua historicidade; ao contrário, a subjetividade é constitutiva da fonte oral” (ARAUJO & SILVA, 2012, p. 270). Assim sendo, como destacou a historiadora Maria Paula Araujo, o desafio do historiador que trabalha com história oral “não é excluir da entrevista esta carga emocional, mas transformá-la numa chave de entendimento histórico no qual esta vida se encaixa” (ARAUJO, 2012, p. 183). Portanto, ao construir um acervo de história oral com pessoas cujas trajetórias de vida estão atreladas à repressão política durante a ditadura militar brasileira, a equipe do projeto “Marcas da Memória” partiu da premissa de valorização dos testemunhos, tendo como base a noção de que a história oral nos permite tornar a subjetividade intrínseca destes depoimentos um objeto de pesquisa histórica. Este acervo constitui-se, portanto, em um rico manancial para os estudos históricos do Brasil contemporâneo. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Fontes Orais: GRABOIS, Victória. Depoimento concedido ao projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil” (Equipe do Rio de Janeiro – UFRJ). Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2011. GULLAR, Ferreira. Depoimento concedido ao projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil” (Equipe do Rio de Janeiro – UFRJ). Rio de Janeiro, 9 de maio de 2011. NOGUEIRA, Rose. Depoimento concedido ao projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil” (Equipe do Rio de Janeiro – UFRJ). São Paulo, 27 de janeiro de 2012. PANDOLFI, Dulce. Depoimento concedido ao projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil” (Equipe do Rio de Janeiro – UFRJ). Rio de Janeiro, 25 de maio de 2011. SEIXAS, Ivan Akselrud. Depoimento concedido ao projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil” (Equipe do Rio de Janeiro – UFRJ). São Paulo, 27 de janeiro de 2012.

Referências ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo. O programa de reparações como eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: Manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011. ARAUJO, Maria Paula. Sentimento e subjetividade na história: a contribuição da história oral In: MAIA, Andréa Casa Nova & MORAES, Marieta de (orgs.). Outras histórias: Ensaios em História Social. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. ARAUJO, Maria Paula & SILVA, Izabel Pimentel da. Construindo um acervo de história oral sobre o Brasil recente: algumas questões metodológicas. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos & GRIN, Mônica (orgs.). Violência na História: Memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, nº 5, Rio de Janeiro, 2002. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2005. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HEYMANN, Luciana Quillet. O “devoir de mémoire” na França contemporânea: entre memória, história, legislação e direitos. In: Gomes, Ângela de Castro (coord.). Direitos e Cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2007. JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Colección Memorias de la Represión. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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LACAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005. PENNA, João Camillo. Este corpo, esta dor, esta fome: Notas sobre o testemunho hispano-americano. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. (org.). História, memória, literatura: O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, nº 10, 1992. RICOEUR, Paul. La lectura del tiempo pasado: memoria y olvido. Madri: ArrecifeUniversidad Autónoma de Madrid, 1999. ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. 5ª edição. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 20, nº 1, 2008.

Notas 1

Mestranda em História Social da Cultura no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; pesquisadora do projeto “Marcas da Memória: História, Imagem e Testemunho da Anistia no Brasil” (Comissão de Anistia-UFRJ); Bolsista CAPES. Contato: [email protected] 2 Doutoranda em História Social no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH); pesquisadora do projeto “Marcas da Memória: História, Imagem e Testemunho da Anistia no Brasil” (Comissão de Anistia-UFRJ); Bolsista CNPq; Professora de História da América da Universidade Castelo Branco (UCB). Contato: [email protected] 3 Para um estudo sobre a historicidade do conceito “dever de memória”, valemo-nos dos apontamentos de Luciana Heymann em “O ‘devoir de mémoire’ na França contemporânea”. A origem do termo pode ser remetida à ressignificação do discurso da memória ligada ao holocausto de milhares de judeus que viviam na França. (HEYMANN, 2007) 4 Esse projeto encontra-se numa segunda etapa de realização pela equipe da UFRJ, em que além das entrevistas, buscamos um debate com professores de colégios sobre o tema do ensino de ditadura nas escolas e objetiva também a produção de uma exposição montada a partir das pesquisas do grupo, utilizando os depoimentos do acervo e documentos em demais arquivos públicos e privados. A primeira etapa do projeto contou com a parceria com outras universidades federais, a UFPE e a UFRGS. 5

Este acervo está disponível para consulta no Núcleo de História Oral do Laboratório do Tempo Presente da UFRJ mediante agendamento prévio através do e-mail: [email protected] 6 Sobre os questionamentos feitos por membros da própria Comissão de Anistia, v. ROSITO, João Baptista Alvares. O Estado pede perdão: a reparação por perseguição política e os sentidos da anistia no Brasil. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2010. Nesse trabalho, Rosito entrevistou alguns funcionários desse órgão e verifica as alternativas criadas por eles para que a Comissão atuasse para além da concessão de indenizações, promovendo políticas como as “Caravanas da Anistia”, julgamentos itinerantes de requerimentos que buscam debates e valorização das memórias dos anistiados.

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A fonte oral como arquivo vivo da ditadura Silvania Rubert1

Resumo: O presente artigo relata algumas considerações construídas a partir de entrevistas realizadas com familiares de desaparecidos políticos, com o objetivo de abordar o tema do luto sem a presença do corpo; bem como a importância da fonte oral para a construção da referida temática. A utilização do depoimento e relatos como fonte de pesquisas possibilita a construção de visões diferenciadas, a partir da ampliação da ideia de documento histórico, contribuindo para ricos e necessários estudos acerca do tempo presente. Com relação aos depoimentos coletados pôde-se observar que, para os familiares, a ausência de informações sobre o corpo ou mesmo sobre as especificidades das mortes atrapalha e/ou impede a vivência de um processo saudável de luto. Palavras-chaves: história oral; desaparecidos políticos; luto; ditadura civil-militar no Brasil.

Abstract: This article reports some considerations constructed from interviews with relatives of political disappeareds, in order to address the issue of mourning without the presence of the body, as well as the importance of oral source for the construction of this theme. The use of the testimony and reports as a source of research allows the construction of different views, from the expansion of the idea of historical document, contributing to rich and necessaries studies on the present time. Regarding the testimonies collected it was observed that for the family, the lack of information about the body or even on the specifics of the deaths hinder and / or prevent the experience of a healthy process of grieving. Keywords: oral history, political disappearances; mourning; Civil-military Dictatorship in Brazil.

Introdução O uso da fonte oral tem sido reconhecido e amplamente utilizado no que diz respeito aos temas desenvolvidos acerca da Ditadura Civil-militar no Brasil, que ainda produz muitas inquirições sobre suas características, especificidades e sequelas. Neste sentido, a fonte oral representa um arquivo vivo a ser utilizado na elucidação do referido período. Determinados temas nem poderiam ser pensados e trabalhados não fosse a ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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disponibilidade dos depoentes em falar sobre acontecimentos vividos, permitindo que se amplie a noção das temáticas possíveis e, consequentemente, que se possa edificar uma construção mais fidedigna da história recente do Brasil. Sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e desaparecimentos foram alguns dos crimes cometidos pela Ditadura Civil-militar de Segurança Nacional no Brasil. Porém, alguns crimes perduram até os dias atuais e ainda aguardam solução. É o caso da busca dos familiares dos desaparecidos políticos pelos restos mortais de seus entes queridos e também pelas informações sobre as suas respectivas mortes. Segue a pergunta: onde estão? E segue a disputa pela construção da memória. Esquecer, ou mesmo interpretar mal a história, é um fator essencial na formação de uma nação, motivo pelo qual o progresso dos estudos históricos muitas vezes é um risco para a nacionalidade [...] Se não há nenhuma distinção clara entre o que é verdadeiro e o que sentimos ser verdadeiro, então minha própria construção da realidade é tão boa quanto a sua ou a de outrem, pois “o discurso é produtor desse mundo, não o espelho” (HOBSBAWN, 1998, p.285-286).

Aqui se pretende construir algumas reflexões sobre como se dá o processo de luto dos familiares dos desaparecidos políticos - a partir da análise dos depoimentos coletados -, e permeado pela especificidade de não fazer parte deste processo a presença do corpo e dos milenares rituais ligados à morte. É preciso entender que a ação do Estado de Segurança Nacional é muito mais abrangente e atinge um espaço temporal mais amplo do que o período que vai de 1964 a 1985. Fato comprovado ao se constatar, através das entrevistas, que muitos familiares de desaparecidos políticos seguem sendo torturados pelas forças repressoras da Ditadura, que lhes nega o direito de enterrar seus entes. A condição de desaparecido corresponde ao estágio maior do grau de repressão política em um dado país. Isso porque impede, desde logo, a aplicação dos dispositivos legais estabelecidos em defesa da liberdade pessoal, da integridade física, da dignidade e da própria vida humana, o que constitui um confortável recurso, cada vez mais utilizado pela repressão (BRASIL: NUNCA MAIS, 1985, p.260).

Muitas informações sobre as mortes ou situação dos desaparecimentos foi passada e repassada através da oralidade. Quando algum preso político era liberado os demais gritavam seus nomes para que a informação pudesse ultrapassar os muros das ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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prisões e as famílias pudessem saber que, pelo menos até aquele momento, o seu familiar estava vivo. O acesso à documentação oficial ainda não se deu de forma plena e irrestrita. Para este estudo foram feitas dez entrevistas na cidade de São Paulo, no mês de março de 2013, com familiares de desaparecidos políticos brasileiros. As entrevistas foram temáticas e o tema abordado foi o processo de luto, acrescido da especificidade da ausência do corpo, a fim de elucidar como vivem ou viveram este processo. Para o presente artigo serão selecionados alguns trechos dos depoimentos coletados.

O uso da fonte oral A geração que viveu mais intensamente os horrores das torturas, das prisões, dos sequestros, está viva e precisa ser ouvida, pois eles são portadores de uma riqueza histórica de valor simbólico imensurável. Muitos familiares de desaparecidos e mesmo integrantes dos movimentos contestatórios já faleceram sem ser ouvidos. Mas, para que eles sejam ouvidos, é preciso que alguém queira contar suas histórias, e aí entram os historiadores, cientistas sociais, pesquisadores e organizações civis que se empenham na construção da memória do período. Mais recentemente a Comissão Nacional da Verdade passou a representar uma esfera institucional de coleta de depoimentos e informações. Quando o entrevistado se propõe a dividir com o historiador ou mesmo o cientista social parte de suas vivências, ele transmite, também, emoções. Estas podem ser traumáticas, ou mesmo um misto de positivas e negativas. Mas mesmo esta subjetividade que aflora na entrevista insere-se em um contexto mais complexo, pois o sujeito entrevistado faz parte de um nicho social e de um espectro amplo que engloba muitos espaços. Neste sentido, a relação constante e interminável entre o um e o todo permite que se observe, nos menores espaços possíveis, a atuação do Estado autoritário, o Terrorismo de Estado propriamente dito. Em cada destas microesferas pode-se perceber novas ou as mesmas nuances das ações de um Estado terrorista. O sujeito ‘daquele tempo’ carrega as marcas de um tempo cheio de inquietações. Ele é fruto e sujeito da correlação de forças, das instituições e das ideologias que se chocavam naquela demanda histórica.

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Dentro da temática das ditaduras do Cone Sul, regimes recentes, boa parte das documentações foi perdida, muitas vezes propositadamente, ou seu acesso não está disponível aos pesquisadores. Os atores/testemunhas acrescentam cores difíceis de serem percebidas em um documento escrito institucional. Neste sentido, resgatar a memória e/ou vivências de pessoas envolvidas diretamente com o período em questão, é de suma importância para que lacunas historiográficas sejam preenchidas, a fim de se aproximar da gama de complexidades do tempo presente, que possui justamente a especificidade de relacionar-se com testemunhos vivos. [...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992, p. 17).

A subjetividade presente na história oral, outrora tão criticada, também se estende ao documento escrito, guardadas as diferentes proporções. Pode-se inferir, inclusive, que não exista produção humana que não seja dotada de uma dose de subjetividade. No livro A voz do passado, Thompson salienta que “a evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história” (1992, p.137), pois os depoentes passam de objetos a sujeitos do processo de construção historiográfica. Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas da memória, cavar fundo em suas sombras, na perspectiva de atingir a verdade oculta. Se assim é, por que não aproveitar essa oportunidade que só nós temos entre os historiadores, e fazer nossos informantes se acomodarem relaxados sobre o divã, e, como psicanalistas, sorver em seus inconscientes, extrair o mais profundo de seus segredos? (THOMPON, 1992, p. 197).

A questão da necessidade de cruzamento das fontes também deve ser observada. Porém, em determinadas pesquisas, como a aqui exposta, por exemplo, a fonte oral, acrescida obviamente da bibliográfica, é suficiente para a construção do estudo. São fontes que contemplam muitas das especificidades do sistema autoritário nos campos mais privados em que o Estado agiu. A história do tempo presente, perspectiva temporal por excelência da história oral, é legitimada como objeto da pesquisa e da reflexão históricas; na história oral, o objeto de ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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estudo do historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes, e a instância da memória passa, necessariamente, a nortear as reflexões históricas, acarretando desdobramentos teóricos e metodológicos importantes; a narrativa, a forma de construção e organização do discurso são valorizadas pelo historiador [...] (CARDOSO & VAINFAS, 2012, p.172).

A produção da história oral exige muitos cuidados e dedicação por parte do historiador. É uma fonte que não está disponível em horário comercial, em um lugar fixo. O historiador precisa selecionar o público que mais pode colaborar para a elucidação do tema, deve fazer os contatos, o que demanda tempo e disponibilidade para até o entrevistado, que pode morar em outra cidade, estado ou país. O historiador deve estar preparado para ouvir além da fala, saber identificar os silêncios, reticências, bloqueios, a fim de que tenha uma visão mais ampla do sujeito que ali está. É um diálogo de sujeitos, dotados de suas subjetividades, e sem neutralidades. O sujeito-historiador ouve o sujeitofonte, transcreve sua entrevista e a transforma em história, numa relação dinâmica e viva, assim como a própria história o é. Os historiadores não ficam nem podem ficar do lado de fora de seu objeto como observadores objetivos. Todos nós estamos mergulhados nas suposições de nosso tempo e lugar, mesmo quando praticamos algo tão apartado das paixões públicas atuais quanto à edição de textos antigos (HOBSBAWN, 1998, p.291).

A riqueza dos encontros que se dão pessoalmente entre pesquisador e entrevistado é imensurável. Ser recebido na casa, no trabalho ou mesmo em um local público, partilhar de momentos de convivência e sentir, mesmo que por poucos instantes, que adentramos na vida daquele que é colaborador das nossas pesquisas é algo extremamente valoroso. Sentir a emoção vivenciada durante os relatos e poder, inclusive, inserir esta emoção no trabalho, entender os momentos em que o entrevistado se emociona e tentar entender os porquês é algo que não ocorre em uma entrevista escrita feita via e-mail, por exemplo. Quando estamos diante do entrevistado podemos alterar o plano inicial de perguntas, podemos criar novos caminhos de raciocínio que nos aproximem das temáticas que objetivam o trabalho. Tanto o entrevistado quanto o entrevistador ganham um rosto e daí se inicia uma proximidade necessária ao relato, uma proximidade que pode colocar o relator em situação suficientemente confortável para

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abordar questões traumáticas. Quem trabalha com temas sensíveis, com feridas abertas, precisa estar sempre atento a isto. E o que a entrevista documenta enquanto resíduo de ação? Em primeiro lugar, ela é um resíduo de uma ação interativa: a comunicação entre entrevistado e entrevistador. Tanto um quanto o outro tem determinadas ideias sobre seu interlocutor e tentam desencadear determinadas ações: seja fazer com que o outro fale sobre sua experiência (o caso do entrevistador), seja fazer com que o outro entenda o relato de tal forma que modifique suas próprias convicções enquanto pesquisador (o caso do entrevistado) (ALBERTI, 2004, p. 35).

Outra questão importante é oferecer um retorno ao entrevistado, manter contato constante – sempre que possível, bem como

divulgar o resultado parcial ou final das

pesquisas, a fim de que o entrevistado não funcione apenas como um instrumento de pesquisa, como uma fonte infinita de materiais. Antes de ser uma fonte infinita é uma pessoa que merece consideração, ainda mais, tendo em vista que sem a disposição destas pessoas em cederem seus relatos muitas pesquisas nem poderiam ser projetadas. A transformação do relato em conteúdo historiográfico satisfaz anseios tanto do pesquisador quanto do entrevistado, pois o mesmo também deseja, a partir do seu discurso, transmitir um conteúdo permeado de conotações e sentidos que são, também, políticos. A questão da memória não é alheia à dinâmica política e aos jogos de poder. Tendo em vista que fazem parte da memória a construção de uma visão de sociedade, de si mesmo e de nação, ela carrega em si o jogo dialético travado pelos diversos setores sociais, e é permeada por fatores pessoais e psíquicos.

Alguns relatos sobre as ações do Estado autoritário no Brasil e o processo de luto dos familiares A relação público-privado toma formas muito específicas em tempos autoritários. O individual e o coletivo, mais precisamente a inter-relação entre ambos, constituem um universo comum, dinâmico e rico. Nesta mesma linha está a história oral, que possui uma conexão muito estreita com o presente enquanto memória viva do mesmo. E ao se ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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pensar em memória viva destacam-se os inúmeros trabalhos que vêm sendo produzidos sobre a Ditadura Civil-militar no Brasil, com objetivos comuns, dentre eles reduzir os silêncios e as lacunas na produção da memória do tempo presente. A lógica do esquecimento sofre um grande golpe cada vez que os depoimentos permitem desvendar os crimes cometidos, nomear os algozes, e dar resposta às famílias. Contrapondo-se à lógica do esquecimento vem a da construção da memória – mas não qualquer memória -, pois Para esquecer é necessário conhecer; se conhecemos, lembramos e se lembramos, exercendo o direito de opção, podemos esquecer. Só que este é o grande desafio dos familiares dos desaparecidos. Não se trata do que fazer para lembrar, mas de como agir se os fatos que conformaram o desaparecimento continuam sendo desconhecidos. Neste sentido, o esquecimento, a imposição de memórias recicladas ou o apagamento são parte do problema. Mas permanece uma questão anterior: como esquecer, reciclar ou apagar o que não se conhece? Os relatos pulverizados e os fragmentos da sobrevivência esboçam um cenário que ainda é um grande quebra-cabeça e onde faltam, ainda, muitas peças. Como foram desaparecidos? Quem decidiu pelo desaparecimento? Quem os desapareceu? Quem decidiu onde e quando? Quem viu? Quem sabe? Quem participou?2

A luta dos familiares dos desaparecidos políticos nunca chegou a ser uma demanda da agenda política do Estado brasileiro. O trabalho de desmemória orquestrado pelas instituições e setores apoiadores do golpe é combatido por aqueles que, mesmo após cerca de quatro décadas, ainda seguem a busca por informações que esclareçam as circunstâncias dos desaparecimentos. O processo de luto é um processo de assimilação de uma perda. A perda pode ser um ente, uma situação social, uma fase da vida, um emprego, etc. Como todo processo psíquico envolve fatores internos e externos. O processo de luto vivido pelos familiares dos desaparecidos políticos tem alguns fatores externos que são permeados por muitas especificidades que lhe conferem uma tônica patológica, tendo em vista questões como a ausência do corpo, a ação repressiva e totalmente desproporcional do Estado sobre uma única pessoa ou um grupo de pessoas, a falta de informações sobre os desaparecimentos e as mortes, o ônus colocado sobre os familiares que são os responsáveis por comprovar que o familiar desapareceu em instituições públicas ou por ação estatal, a luta por um atestado de óbito. Com relação aos fatores internos, Judith Viorst salienta que

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Como lamentamos e como, ou se, nossa lamentação vai terminar depende do modo como sentimos nossa perda, depende da nossa idade e da idade de quem perdemos, depende de o quanto estamos preparados para isso, depende de como a pessoa sucumbiu à mortalidade, depende das nossas forças interiores e do apoio externo, e, sem dúvida, depende da nossa história – nossa história ao lado da pessoa que morreu e nossa história individual de amor e de perda. (VIORST, 1988, p.246)

A soma dos fatores externos e internos, inseridos no contexto de horror e violência, traz ainda mais dor ao processo da perda, até pela desproporcional relação de forças estabelecidas entre o torturador e o torturado. Muitos choraram em silêncio por anos, sem poder dividir sua história com quem conviviam. Até a dor da perda e o processo de luto eram clandestinos.

Depoimentos O primeiro relato é fruto de uma entrevista realizada em 5 de março de 2013, com Crimeia Alice Schmidt de Almeida, da Comissão de Familiares, e ex-companheira de André Grabois, assassinado na Guerrilha do Araguaia. Sobre os desaparecidos e o luto assim coloca: Essa questão do desaparecido ela é muito traumática, porque não é o habitual, quer dizer se a morte de um jovem choca, a morte sem o corpo é uma coisa muito mais chocante, porque ela cria uma expectativa de que pode não ser a morte, e eu acho que a Ditadura ao esconder, ao desaparecer com as pessoas ela buscou exatamente isso, tanto que a resposta do ministro Armando Falcão para os familiares era de que eles estavam foragidos, quer dizer, ao mesmo tempo em que alimentava essa esperança de vida também dava uma conotação depreciativa, quer dizer foragido, abandonou a família. Isso aumentou muito o sofrimento dos familiares, é uma coisa que não só na época teve esse efeito como persiste esse efeito, quer dizer, embora com o tempo a esperança de vida, de que estas pessoas estejam vivas se reduz muito, por outro lado, a sensação de falta, a falta de informação, como morreu isso aumentou com o tempo, por outro lado a gente tem algumas pessoas, jornalistas, que eu acho que falando a pedido dos agentes da repressão, eu só entendo dessa forma, [...] que diz que teriam guerrilheiros vivos, então isso é um eterno alimentar a expectativa e cada vez que essa expectativa é alimentada ela é alimentada com esse tom cada vez mais depreciativo. [...] Isso é uma bola de neve e que o Estado não faz nada para coibir, para colocar um fim nisso, eu não sei se isso é luto, eu para mim, isso é tortura, você perguntou como que a gente elabora o luto, a gente nunca, da forma como as notícias nos chegam e da forma como o Estado hoje democrático entre aspas, trata a questão, para mim é tortura, uma permanente tortura.

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O filho de Crimeia Alice Schmidt de Almeida e André Grabois - João Carlos Schmidt de Almeida Grabois - não conheceu pessoalmente o pai, situação que vai além do tema do luto, como também demonstra outra dificuldade vivida pelos filhos que com poucos anos ou meses de vida perderam seus pais assassinados pela Ditadura: como construir a figura de alguém com quem pouco se conviveu ou mesmo não se conheceu? Como se repara a um filho a ausência de convivência com o pai Como se constrói a figura paterna Em entrevista concedida em 11 de março de 2013, quando perguntado sobre como é não ter conhecido o pai, João Carlos diz: “eu tenho duas fotos. [...] As outras fotos a minha avó queimou”, por estar na clandestinidade. Como mensurar o tamanho do trauma de um filho que conhece o pai através de duas fotos, como é o caso de João Carlos Muitas fotos foram queimadas a fim de não se deixar vestígios que pudessem implicar em repressão. Mas fotos também representam boas lembranças ou mesmo a construção da ideia de tempo passado, de vida vivida. Hoje João Carlos tem mais idade do que seu pai tinha quando faleceu, ele comenta na entrevista que nas fotos o pai dele é mais novo do que ele agora, e que fica mais difícil ainda construir essa imagem: “é o rosto que eu imagino”, diz ele. Com relação ao luto, João Carlos diz: É um tema que realmente é complicado, [...] porque como meu pai é desaparecido político eu não penso muito no luto, eu penso mais na questão do resgate, na questão de resgatar o corpo, então eu acho que não está na fase do luto. É complicado. Eu sempre enxerguei ele como um desaparecido político, não como uma pessoa morta. Eu sei que ele está morto, mas eu acho que essa fase do luto a gente ainda não chegou. [...] o luto é você se despedir, você ter certeza de que a pessoa está tendo o seu descanso, então eu acho que para isso é preciso realmente finalizar essa etapa.

A fala demonstra uma situação comum entre os familiares de desaparecidos políticos: a dificuldade de se enquadrarem em um processo de luto pela incerteza sobre onde está o corpo, ou mesmo sobre a situação do desaparecimento e da morte. Existe a morte, mas ainda não se iniciou o luto, é um luto em suspenso, muitas vezes não simbolizado, e que não se acopla à esperada continuidade da vida. É como um hiato obscuro, fruto direto do Terrorismo de Estado. Já o entrevistado Dimas Dias de Oliveira, irmão da desaparecida política Ísis Dias de Oliveira, coloca dois aspectos: o legal e o sentimental. No âmbito legal, o primeiro

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desafio foi conseguir o atestado de óbito para fins burocráticos. Já no quesito sentimental, o depoente salientou bastante a luta de sua mãe, Felícia Mardini de Oliveira, pela busca de respostas. Ficou visível a vontade de mostrar que a mãe, enquanto viva, não mediu esforços para encontrar notícias sobre o ocorrido com sua filha, como se além de manter viva a memória da irmã, o depoente quisesse manter viva a memória da luta da mãe. Dimas, com relação ao aspecto sentimental, diz que “não tem como falar de tudo”, como se quisesse dizer que não existem palavras para nomear o tamanho da dor gerada pelo desaparecimento de sua irmã. A dor é tamanha que não pode ser simbolizada, traduzida em palavras. Dimas relata em entrevista realizada dia 19 de março: A morte é uma coisa certa na nossa vida, das poucas coisas certas que a gente tem, mas quando morre uma pessoa querida, na nossa cultura, na nossa tradição, nos nossos usos e costumes, o que se faz? Então há algo, há um simbolismo todo de enterrar a pessoa, de saber que aquilo que era o nosso ente querido está ali, que o que resta deles está ali, foi o que aconteceu com todos os parentes nossos falecidos, menos a Ísis. Então há um sentimento de ausência terrível, terrível, o que é muito difícil a gente transmitir. Então, há a falta do corpo. Em termos práticos, em termos racionais, mas não é assim que a gente raciocina. Em certos assuntos, em muitos assuntos, esse assunto é sempre tratado de forma emotiva. Então há a falta do corpo da Ísis que, durante todos esses anos, foi uma incoerência, a falta do corpo, no entanto, foi sempre uma presença na mente de todos nós, principalmente da minha mãe.

No escritório onde foi realizada a entrevista, escritório do outro irmão de Ísis, José Carlos Dias de Oliveira, existe uma foto de Ísis e sua mãe que eles fizeram questão de me mostrar. O depoimento de Dimas permite perceber a dificuldade de falar sobre o seu próprio processo de luto, pois ressalta a dor e a busca de sua mãe, mas a sua dor pessoal quase não aparece. Aí se pode perceber mais uma forma de trauma: o filho acompanhar o sofrimento da mãe enquanto tem que digerir o seu próprio sofrimento. É como se o filho não se sentisse autorizado a sofrer diante do sofrimento de sua mãe, normalmente tido como maior, pois um pai enterrar um filho quebra a lógica natural da vida. No caso em questão, a mãe faleceu sem enterrar sua filha. Essa presença da ausência, relatada como uma incongruência demonstra como a ausência do corpo se transforma em algo traumático, pois o processo de luto fica deficitário e, em seu lugar, fica a presença da dor, a presença de algo muito difícil para alguns familiares nomearem. Novamente sobre o seu próprio luto, o depoente diz que “é ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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um luto vazio, é um luto sempre presente [...] muito complicado para a gente equacionar. Fica sendo quase um tabu a gente falar da Ísis”. A cada relato ouvido, novas frentes de análise se criam e permitem perceber que as ações empreendidas pelo Estado ditatorial no Brasil ocuparam violentamente mais espaços do que se poderia mensurar há poucos anos. A brutalidade e o Terrorismo de Estado afetaram a vida de um número muito maior de pessoas, e ainda o fazem até hoje. É um trauma transgeracional, que afetou pais, irmãos, cônjuges e filhos, mas que segue afetando sobrinhos, netos e as diversas ramificações familiares, e até amigos. Não bastasse a ausência de informações verdadeiras ainda existiam informações distorcidas, com o objetivo de distanciar os familiares das verdades dos fatos e das violências cometidas, o que aumentou o sofrimento dos familiares que foram atrás de pistas. Exemplo disto é o que relatou José Carlos Dias de Oliveira, ao dizer que um amigo da família disse que tinha quase certeza que Ísis estava trabalhando como guia turística na Inglaterra. A família se deslocou até lá e verificou a não veracidade da informação. José Carlos reitera: Tem aquele primeiro momento da procura, da expectativa de encontrá-la viva, ou presa. Depois teve o segundo momento que a gente quer saber o que aconteceu. Enfim, o tema é o luto sem um corpo. Esse luto não tem fim, ele começa, é uma novela sem fim, porque já faz quarenta e um anos, e a coisa é como se tivesse sido ontem, é um assunto que toda hora, toda semana, a gente por algum motivo participa. É um luto sem fim, é o resumo. A nossa expectativa é realmente que a gente saiba de uma fonte confiável o que aconteceu com ela, para a gente ir, se for o caso, até a revisão da lei de Anistia. Enfim, essa é a nossa expectativa.

Já Helenalda Rezende de Souza Nazareth, entrevistada em 20 de março de 2013, irmã de Helenira Rezende de Souza Nazareth, começou seu depoimento comparando o processo de luto vivido pela morte do seu pai - que classifica como “real” por ter visto o corpo - e pelo desaparecimento da irmã. O pai ela viu morto, foi ao enterro. Assim diz: “O luto nunca termina na realidade, mas o da Helenira não começou. [...] e no caso da Helenira a gente não teve esse impacto de saber o momento da morte, no momento da morte a gente não soube. Nós fomos saber seis anos depois”. E segue:

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E o luto dela, na realidade, sabe quando parece que não aconteceu! Ele aconteceu no momento em que Genoíno falou que ela morreu, a gente teve aquele baque e tal, mas cadê o corpo e começou essa procura pelo corpo. Então, na procura você acaba não tendo aquele momento de falar: poxa, olha morreu mesmo! [...] Então cada vez que fala: “encontramos um indício”... Então, você tem aquele baque: “nossa a minha irmã morreu mesmo”. [...] Se bem que seu sei que ela faleceu, mas... sabe aquele sentimento de, não sei como explicar isso, não existe um sentimento de dizer eu vi o corpo, é diferente dos outros pelos quais eu passei.

Helenalda diz que quando recebeu uma ligação de Crimeia Alice Schmidt de Almeida, em 1993, sobre uma ossada encontrada que poderia ser de sua irmã, foi como se tivessem telefonado e dito que a irmã tinha morrido naquele momento, mesmo este fato tendo acontecido mais de duas décadas após o desaparecimento de Helenira. Max Aniz Thomaz, irmão da desaparecida política Maria Augusta Thomaz, em entrevista realizada em 12 de março de 2013, salienta a importância de que as pessoas conheçam a história da sua irmã. Hoje ele [o luto] é menos impactante, porque hoje a história dela é conhecida, hoje o país conhece a história dela. Mas até antes de conhecer era um luto muito difícil. Eu tentei resgatar os ossos, não foi possível, mas hoje nem tanto porque hoje só o reconhecimento pela história dela já nos dá um alívio, eu também lutei muito para que a história dela fosse reconhecida, eu acho que isso é o mais importante.

Com relação ao resgate dos restos mortais Max diz que o mais importante é resgatar a memória e não os restos mortais, embora reconheça a importância desse ato. A família criou uma lápide para Maria Augusta Thomaz, na cidade de Leme, o que trouxe algum conforto. Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio Gomes da Silva, falecido em 29/09/1969, foi presa, separada de seus quatro filhos e exilou-se em Cuba por muitos anos. Indagada sobre o luto diz, em entrevista realizada em 11 de março de 2013: Esse luto é uma coisa que não termina, é luto permanente. A gente está lutando para ver se encontra o corpo, os restos dele, os ossos. Já fizemos buscas com a Polícia Federal, já fez a busca no cemitério de Vila Formosa, que dizem que é lá que ele está enterrado, mas estamos esperando o resultado do DNA. Então quando der o resultado é que a gente vai ver se achou alguma coisa dele ou não. E agora a gente está na luta aqui com essa Comissão da Verdade [a do estado de São Paulo], que a Comissão da Verdade agora vamos ver se leva isso em frente e encontra não só ele, porque eu digo ele, mas são ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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muitos desaparecidos, eu torço para que encontrem todos, porque são muitos desaparecidos. E a minha torcida é para encontrar ele e encontrar todos os que foram e lutaram e caíram pela luta e até hoje estão desaparecidos. E o luto é uma coisa que é eterna, isso nunca acaba. Sempre que tem uma homenagem dessas aí ou qualquer ato que tenha, é uma emoção muito grande, meus filhos choram, eu choro, é uma coisa que não tem jeito. A emoção é grande. E a tristeza mais.

A homenagem a que Dona Ilda se refere é o Prêmio Bete Lobo, entregue a mulheres que se destacaram na luta contra a Ditadura, no dia 11 de março de 2013, na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo, onde ela foi uma das homenageadas. Indagada sobre a esperança de encontrar os restos mortais comenta que devido ao longo tempo e alto nível de deterioração dos ossos a avisaram que será muito difícil que isso aconteça. Sobre o que alteraria no processo de luto encontrar os restos mortais comenta que: Mudar não muda nada. O luto continua a mesma coisa, porque encontra os ossos dele e não encontra ele. Ele desapareceu mesmo, é a mesma coisa, mas a gente pelo menos tem o lugarzinho dele, onde a gente pode ir lá fazer uma homenagem a ele, ter um lugarzinho certo da gente ir levar uma flor para ele, qualquer uma coisa. Ter um lugarzinho certo dele que hoje a gente não sabe onde que ele está. Isso daí é uma coisa que alivia um pouco, sabendo: Bom ele está enterrado aqui! A gente enterrou ele aqui, a gente fez o enterro dele e ele está aqui, não é como a gente não saber onde ele está e não foi a gente que enterrou. Foram eles que enterraram e a gente não sabe como que enterraram ele, como que foi a sepultura dele, não sabe nada. Então é uma coisa que muda de certo ponto, de certo ponto é a mesma coisa.

Como se pode perceber para alguns familiares encontrar os restos mortais não representaria substancial alteração do processo de luto. Isto pode se explicar a partir do entendimento de que o luto é um processo muito particular e singular. Para alguns, o processo já começou, mas não tem fim. Para outros nem começou, ainda está em suspenso. Jocimar Souza Carvalho, filho de Joel José de Carvalho e sobrinho de Daniel José de Carvalho, que são desaparecidos na fronteira do Brasil com a Argentina, em julho de 1974, e também sobrinho de Devanir José de Carvalho, assassinado pela ditadura em São Paulo, salienta o aspecto da espera, acrescida da dúvida gerada pela não confirmação da

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morte como o pior de todo o processo, muito além do não saber onde seu pai e tio estão enterrados. Assim diz, em entrevista realizada em 16 de março de 2013: O mais complicado de não apenas não se ter um pai, dele morrer quando você é criança, mas na circunstância disso ocorrer em função de uma ditadura, que cria uma pressão social, uma repressão sobre a família em geral dessa pessoa que morreu. A minha mãe, por exemplo, não sabia até que ponto ela corria risco ou não, ou eu que tinha um ano corria risco ou não por eu ser filho dele e de ser da família dos tios. Mas assim, o pior da ausência e da forma como ocorreu essa ausência e não se ter o paradeiro dele é principalmente pelas primeiras décadas, como no caso de uma criança, que era o meu caso na época, você conhecer o seu pai e fica para toda a família a expectativa de que a qualquer momento, apesar de passar cinco, dez, quinze anos ele pudesse aparecer. Então assim, a maior tortura é essa, não é necessariamente porque não se sabe onde foi enterrado, poderia estar vivo ainda. Mas a pior tortura é a expectativa de que você não sabe o que aconteceu exatamente e da ausência em si, você não tem a pessoa no seu diaa-dia, eu não tive o meu pai e a minha mãe não teve o marido dela. Eles eram recémcasados. Então assim, a maior tortura é essa que se prorroga por anos. Se você sabe que a pessoa morreu logo de cara, você vai ter que seguir a sua vida com essa informação, agora quando você não tem essa informação lá no fundo sempre fica uma esperança.

Comenta, também, sobre o sofrimento dos avós que esperaram por muitos anos a volta dos filhos, ancorando suas esperanças na incerteza das mortes. E com relação aos restos mortais, diz que Encontrar os restos mortais só serviria mesmo como prova do crime, porque particularmente se de repente alguém dissesse: não, ele está vivo em algum lugar, eles estão vivos em algum lugar! Não, é diferente, a gente vai atrás ver onde estão, como estão e o que pode ser feito. Já em termos de procurar os restos mortais para você poder fazer um enterro, isso é uma coisa para a gente até simbólica que não simboliza quase nada perto do exemplo que eles são, eu acho que isso é que tem que ser seguido.

Com relação às homenagens que podem ser feitas, salienta a importância de preservar a memória e os feitos dos desaparecidos, posição comungada por outros familiares. Eu acho que em termos de fazer homenagem, a maior homenagem que você presta para essas pessoas é a memória que se preserva delas, seja em trabalhos que se fale do que elas foram, o que elas fizeram, e de que o exemplo delas sirva para alguma coisa para cada pessoa, para a formação de caráter de cada pessoa, ou seja, dos filhos que ficaram, ou dos outros parentes que permaneceram. Isso é para mim a maior homenagem.

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Laura Petit da Silva teve três irmãos desaparecidos: Maria Lúcia Petit da Silva, Jaime Petit da Silva e Lúcio Petit da Silva. O corpo de Maria Lúcia foi encontrado vinte e quatro anos após sua morte. Sobre o processo de luto, coloca em 20 de março de 2013: O luto foi, eu acho que é uma coisa comum porque muito se tem falado sobre o processo de luto para os familiares dos desaparecidos políticos que é um luto incompleto porque a gente não tem o corpo, a gente não tem concretizado a morte, quer dizer fica uma coisa incompleta, que a gente fica na memória fica eternamente a imagem da pessoa vida, aquele sentimento da volta, eu acho que durante muitos anos a gente esperou que eles voltassem e depois com o passar do tempo esse sentimento foi assim sendo frustrado porque a gente viu que não havia retorno e a gente pode dizer assim que quase que a certeza da morte, mas é uma coisa muito difícil.

“Quase a certeza da morte” não tem o mesmo significado que a certeza da morte. As pessoas não ficam quase mortas por quatro décadas. Esse conjunto de incertezas como morreu, em que data morreu, onde está o corpo, quem o matou - traz uma conotação única ao processo de luto do familiar de desaparecido. E em muitos casos, como o de Laura Petit da Silva, são três mortes para serem processadas.

Considerações finais A coisificação do outro, empreendida pela brutalização institucionalizada, deve ser lembrada e relembrada. O resgate da presença do outro implica em resgatar, também, sua história, seu protagonismo, sua forma de inserção em determinado contexto. Logo, tal ação deve fazer parte da construção da memória coletiva da história do país enquanto construção da identidade nacional - e pode constituir um fator positivo para um melhor entendimento da história recente e da democracia resultante desse processo histórico. Como esquecer, ressignificar ou simbolizar o que não é conhecido? Como viver o luto sem a presença do corpo que é o símbolo da certeza da morte? Um atestado de óbito resolve questões legais e burocráticas, mas não dá a certeza da morte, pois não há corpo. Um atestado de óbito é simbólico, mas nem sempre esclarece aos familiares às situações, lugares e datas das corretas das mortes. Oferece algumas respostas, mas sonega outras inúmeras, inclusive os nomes dos torturadores e assassinos. A morte por si ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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só já é traumática. Perder um familiar mexe com a estrutura psíquica e relacional das pessoas. Uma morte sem data, sem corpo e sem uma ‘causa certa’ piora imensamente a complexidade do trauma. Dimas Dias de Oliveira salienta que “o luto sem fim não é normal para a grande maioria das pessoas parece que quando você tem o corpo a coisa normalmente vai se encerrando”. Se o luto não se encerra, a dor não pode ser ressignificada e a pessoa fica impossibilitada de viver um processo de luto saudável. A ausência de informações, ou mesmo a criação de falsas informações sobre o paradeiro dos desaparecidos, a não abertura dos arquivos, bem como a não criminalização dos torturadores e demais envolvidos com as atrocidades cometidas pela Ditadura Civil-militar - inclusive civis que patrocinaram ações e esquadrões da morte contribuem imensamente para a construção da desmemória, ou seja, um tipo de memória que não conhece os próprios fatos que a constituem. No lugar das informações fica o silêncio e o estigma de revanchista para os que buscam por seus direitos. Dentre as conclusões, viu-se que os familiares dos desaparecidos políticos vivem em um luto que não cessa, e que representa a extensão das torturas empreendidas pela Ditadura Civil-militar, fato que excede o marco temporal do período e demonstra que enormes sequelas podem ser visualizadas na atualidade. O esquecimento tem um sentido político, visível a partir do questionamento sobre o que se esqueceu ou o que deve ser esquecido. O relato do sobrevivente ajuda a quebrar os pactos de silêncio estabelecidos e reificados socialmente. Tendo em vista que cerca de 60% da atual população brasileira não viveu os tempos de Ditadura Civil-militar, tem-se aí mais um motivo para que se fale sobre, que se produzam estudos sobre o período, bem como exista uma tomada de posição da parte dos educadores de História, que em suas práticas didáticas podem contribuir positivamente para a construção de novas memórias, menos amedrontadas e mais fidedignas.

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Referências ALBERTI, Verena. Ouvir contar. Textos em história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. DOSSIÊ DITADURA: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil 1964-1985. São Paulo: Imprensa Oficial, IEVE, 2009. FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. PADRÓS, Enrique Serra. Memória e esquecimento das ditaduras de segurança nacional: os desaparecidos políticos. História em Revista (UFPel). Pelotas, v.10, dez. 2004. Disponível em http://www.ufpel.edu.br/ich/ndh/downloads/historia_em_revista_10_enrique_padros.p df - Acesso em 20 mai. 2013. RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 1997. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. VIORST, Judith. Perdas necessárias. São Paulo: Melhoramentos, 1988. Notas 1

Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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PADRÓS, Enrique Serra. Memória e esquecimento das ditaduras de segurança nacional: os desaparecidos políticos. História em Revista (UFPel). Pelotas, v.10, dez. 2004. Disponível em . -Acesso em 20 mai. 2013, página 5.

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Sessão 3

INFORMAÇÃO

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O projeto Clamor: documentação e memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul e o acesso à informação Ana Célia Navarro de Andrade1 E-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho visa apresentar, não apenas as ações de preservação e de difusão de acervo desenvolvidas pelo Cedic/PUC-SP, mas principalmente o arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, que atuou entre 1978 e 1991, reconhecido como uma das mais importantes entidades de solidariedade com refugiados, presos e perseguidos políticos das ditaduras do Cone Sul, e de informação e denúncia sobre crimes contra os direitos humanos cometidos pelas mesmas. O projeto se articula em torno de dois objetivos centrais: a) complementação do Fundo Clamor e construção de histórico mais amplo da trajetória do Comitê em suas articulações com entidades e organismos de defesa dos Direitos Humanos no Brasil, Américas Latina e do Norte, e Europa; b) tratamento e organização física do arquivo, culminando com sua digitalização. Palavras-chave: América Latina; Clamor; direitos humanos; ditaduras no Cone Sul; preservação.

Abstract: This work aims to present, not just the actions of preservation and dissemination of the archives developed by Cedic/PUC-SP, but especially the archive of the Committee for the Defense of Human Rights for the Southern Cone Countries, which existed between 1978 and 1991, recognized as one of the most important organizations that offered solidarity to refugees, prisoners and the politically persecuted by the dictatorships in the Southern Cone of South America, providing information on and denouncing the human rights violations committed by those dictatorships. The project has two main objectives: a) the completion of the Archive and the construction of a more complex history of the trajectory of the Committee in its relations with other entities and agencies for the defense of human rights in Brazil, Latin America, North America and Europe; b) the treatment and physical organization of the Clamor Archive, culminating with its digitalization. Keywords: Latin America; Clamor, human rights; dictatorships in the Southern Cone; preservation.

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Introdução Antes da apresentação das ações de preservação e de difusão de acervo desenvolvidas pelo Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis Filho” (Cedic) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por meio do projeto Clamor: Documentação e Memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, é necessário conhecer um pouco da história dessa organização cristã, ecumênica, sem filiação partidária e com objetivos humanitários, que atuou entre os anos de 1978 e 1991, tendo como sede uma sala no prédio da Arquidiocese de São Paulo – o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, ou simplesmente Clamor.

Sobre o Clamor O Clamor foi criado no início de 1978 por iniciativa de um grupo de leigos cristãos preocupados em proporcionar proteção e assistência aos refugiados políticos dos países do Cone Sul - Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai -, não reconhecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas - ACNUR, vítimas de violações dos direitos humanos e vivendo no exílio em consequência das arbitrariedades do autoritarismo vigente nesses países, durante o período de 1970 a 1980, aproximadamente. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e a jornalista inglesa Jan Rocha, juntamente com o Reverendo Presbiteriano Jaime Wright, que vivenciou a experiência de ter seu irmão sequestrado pelos órgãos de repressão da ditadura brasileira, procuraram Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, para apresentar a ideia de constituição de um Comitê com a finalidade de ajudar os refugiados e, ao mesmo tempo, denunciar a conjuntura vigente nas democracias da América Latina. Dom Paulo apoiou prontamente a ideia e, sob sua proteção, o Clamor foi criado vinculado à Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo, estabelecendo-se em uma sala localizada no prédio da Cúria Metropolitana. Apesar desse vínculo com a Arquidiocese, o Comitê mantinha um caráter ecumênico, reunindo católicos e protestantes que militavam por uma mesma causa: a defesa dos Direitos Humanos e o compromisso com a solidariedade aos povos do Cone Sul. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Clamor não era a sigla do Comitê. Era o nome de seu boletim, que foi inspirado no Salmo 88,2: “Ó Senhor, Deus da minha salvação, diante de ti clamo, de dia e de noite. Chegue a minha oração perante a tua face; inclina os teus ouvidos ao meu clamor”. O Comitê marcou sua imagem através de um desenho de uma chama que brilha através das grades de uma prisão - criação do então preso político Manoel Cirilo de Oliveira Neto, libertado em 1979. Além da chama - que indicava a esperança dos refugiados dos países vizinhos e dos familiares e amigos daqueles que estavam presos e/ou desaparecidos -, o Comitê também possuía um slogan: Solidariedade não tem fronteiras. Com esse slogan, aos poucos o Clamor foi ampliando seus contatos com a Igreja Protestante, com o Conselho Mundial de Igrejas e com a Anistia Internacional, bem como os contatos com outras entidades internacionais e nacionais afins. Com atuação de destaque na defesa dos direitos de presos e perseguidos pelos regimes ditatoriais no Cone Sul, entre o final dos anos 1970 e os anos 1980, e buscando divulgar as denúncias colhidas no contato com os refugiados e familiares de desaparecidos para o maior número possível de pessoas e instituições, o Comitê iniciou, em junho de 1978, a publicação do Boletim Clamor. Para cumprir seus objetivos, o boletim foi editado em três línguas: português (voltado aos brasileiros e à imprensa nacional), espanhol (direcionado às entidades de Direitos Humanos latino-americanas, familiares e amigos dos refugiados) e inglês (para as entidades europeias e da América do Norte). Não havia assinaturas. Todas as edições do boletim e de outras publicações, bem como as atividades do grupo foram financiadas por organismos internacionais como o Conselho Mundial de Igrejas, a Anistia Internacional e o Banco Mundial. O Boletim Clamor serviu de intercâmbio com entidades congêneres para estabelecer uma rede de solidariedade em prol das vítimas da opressão militar. Além dessa publicação, o Comitê realizou conferências de imprensa, nas quais se denunciavam violações de direitos humanos; seminários de caráter internacional referentes à situação dos países do Cone Sul; e campanhas pelas crianças desaparecidas,

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em conjunto com o grupo argentino Abuelas de Plaza de Mayo (sua colaboração foi de vital importância para que as Abuelas localizassem não apenas crianças, mas adultos também). Outra atividade do Clamor foi a elaboração de informes gerais sobre a violação de direitos humanos que ocorria no Cone Sul, cartilhas e folhetos críticos da Doutrina de Segurança Nacional e divulgadores dos valores democráticos. Durante sua existência, o Comitê manteve intercâmbio constante com muitas organizações similares, tanto do Brasil, quanto das Américas Latina e do Norte, e da Europa, formando uma rede de defesa de Direitos Humanos, dentre as quais podemos citar Abuelas de Plaza de Mayo, Asemblea Permanente por los Derechos Humanos – APDH, Familiares de Detenidos y Desaparecidos por Razones Políticas, Madres de Plaza de Mayo, Servicio Paz y Justicia – SERPAJ, Vicaría de Solidaridad, Fundación de Ayuda Social de las Iglesias Cristianas – FASIC, Asociación de Familiares de Presos Políticos, United Nations Human Rights Council, Conselho Mundial de Igrejas, Organização dos Estados Americanos – OEA, Paraguay – Human Rights Watch, Comité Inter-Mouvements Auprès Des Evacués – CIMADE e Anistia Internacional. Uma das principais atividades do Clamor era exercer pressão sobre os governos do Cone Sul para libertação de presos políticos. Publicou na imprensa argentina matérias pagas solicitando informações sobre crianças desaparecidas. Enviou seus membros em missões às vezes arriscadas a países mantidos por regimes militares para visitar presos, descobrir informações sobre o paradeiro de desaparecidos, fazer contato com perseguidos e prestar solidariedade in loco às vítimas de perseguições políticas e a suas famílias. Organizou com outras entidades de Direitos Humanos reuniões vitais no contexto da luta contra as ditaduras militares. Um dos trabalhos mais importantes realizados pelo Comitê foi a elaboração da Lista de Desaparecidos da Argentina, com o objetivo de mostrar que cada um dos mais de 7.000 desaparecidos listados era uma pessoa com identidade, e não apenas um número ou uma abstração. Depois da volta do governo civil, em 1983, esta lista se tornou uma das principais fontes de informação para os trabalhos da Comisión Nacional sobre la

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Desaparición de Personas (Conadep). A produção e publicação dessa lista permitiu que o grupo aprofundasse uma pesquisa que havia iniciado a partir de sérias denúncias a respeito de crianças desaparecidas. Foi nesse momento que o Comitê entrou em contato com as Abuelas de Plaza de Mayo. A relação entre as duas entidades tornou-se cada vez mais forte e constante, resultando em inúmeras publicações e ações conjuntas, principalmente em relação às crianças desaparecidas. O Comitê, contando com a ajuda e a rede de informações administrada pelas Abuelas, atuou ativamente na busca e reintegração de crianças sequestradas, que foram levadas para fora de seus países e, em muitos casos, adotadas por famílias de militares. Essa atuação conjunta resultou na localização e reintegração a suas famílias de origem de dezenas de crianças. O Clamor também organizou o Primeiro Encontro de Sobreviventes de um Campo Clandestino de Detenção, ocorrido em São Paulo, em 1985. Mas o Clamor também atuou no Brasil, denunciando sequestros e a situação deplorável dos brasiguaios expulsos ou foragidos do Paraguai. Conseguiu ajuda financeira junto à entidade Christian Aid para a jornalista Maria Cácia Cortez Ferreira (Campo Grande/MS) desenvolver o projeto Brasiguaios: os refugiados que desconhecemos, durante os anos de 1988 e 1989. Os membros do Comitê participaram ativamente de eventos nacionais e internacionais sobre Direitos Humanos, sendo o Clamor corresponsável pela promoção de Cursos nessa área, entre os quais o Curso de Direitos Humanos realizado na PUC-SP (1986), em promoção conjunta com o Instituto de Estudos Especiais (IEE), e o Curso de Formação Fé e Política, realizado em conjunto com o Centro Santo Dias e a Comissão Arquidiocesana de Pastoral de Direitos Humanos e Marginalizados, com o objetivo de aprofundar o papel da ação pastoral da Igreja no processo político-econômico-social do Brasil. Diante dessa ativa atuação, chegou-se a comentar que o Clamor era constituído por um batalhão de funcionários e possuía um aparato ultrassofisticado para conseguir esse resultado palpável e eficaz. No entanto, esse comentário se opunha totalmente à realidade do grupo, conforme o Reverendo Jaime Wright enfatizara em pequena biografia

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do Comitê, escrita em 1982. Segundo ele, os três elementos essenciais para a eficácia do trabalho desenvolvido pelo Comitê eram “atos concretos, sem teorizações ideológicas ou partidárias; orientação ecumênica, sem preocupações sectárias; e o mínimo de estrutura institucional, a fim de que a equipe permanecesse ágil, flexível e despreocupada com interesses administrativos”. A importância do Clamor nessa época pode ser medida pelo fato de que foi a primeira organização a denunciar a existência de campos de detenção clandestinos na Argentina; foi uma das primeiras a alertar para a cooperação entre forças de segurança dos países da região no sequestro, tortura e desaparecimento de pessoas (mais tarde conhecido como Operação Condor), e foi a primeira a descobrir o paradeiro de algumas das crianças desaparecidas na Argentina. Após muita reflexão e troca de ideias sobre a conjuntura social e política do Cone Sul no início dos anos 1990, o grupo chegou à conclusão de que os objetivos iniciais que provocaram sua fundação haviam sido atingidos. Ainda havia milhares de pessoas desaparecidas, quase todos os responsáveis pela repressão continuavam livres; a verdade sobre esse período sombrio ainda precisava ser recuperada. No entanto, as entidades de Direitos Humanos em cada país do Cone Sul recuperaram o espaço até então ocupado pelo Clamor, demonstrando que já não era mais preciso um porta-voz para seus apelos. Essas entidades adquiriram força e confiança a partir das sementes plantadas pelas ações do Comitê, sementes essas que possibilitaram mudanças efetivas nas relações sociais e na cultura dessas sociedades. Frente a essa conjuntura e com a sensação de alívio por ter alcançado seus objetivos, o Clamor, que sempre se colocou a serviço daqueles que não tinham voz, nem vez, encerrou suas atividades em 1991. Após o encerramento das atividades do Comitê, parte de seus documentos foi entregue à guarda da Dra. Michael Nolan, que o doou ao Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular - Cesep. A outra parte, composta pelo arquivo propriamente dito da organização, foi guardada, inicialmente, em uma sala cedida pelo

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Colégio Marista Arquidiocesano. Em seguida, essa documentação foi transferida para o Arquivo Dom Duarte Leopoldo e Silva, o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Em 1993, reconhecendo o trabalho arquivístico realizado pelo Cedic, bem como a importância da temática direitos humanos em seu acervo, o próprio Cesep doou os documentos que estavam sob sua guarda para o Centro de Documentação da PUC-SP. O trabalho de identificação preliminar desse material despertou tanto o meu interesse que, dois anos após o recebimento do arquivo, ingressei no Mestrado em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, na linha de pesquisa Historiografia e Documentação. Meu trabalho teve duas frentes de atuação: 1) localizar os documentos dispersos do arquivo do Comitê, reunindoos definitivamente no Centro de Documentação da PUC-SP; e 2) organizar e descrever o Fundo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, elaborando seu inventário. Em 1999, após passar alguns meses no escritório dos advogados Michael Nolan e Luiz Eduardo Greenhalgh, antigos membros do Comitê, o material que se encontrava no Arquivo da Cúria foi finalmente transferido para o Centro de Documentação da PUC-SP. A partir dessa data outros membros e colaboradores do Comitê encaminharam ao Cedic documentos que estavam guardados em seus arquivos pessoais, sendo os mesmos incorporados ao Fundo Clamor. A última grande incorporação de documentos ocorreu em fevereiro de 2001, quando dez caixas arquivo foram entregues pela jornalista Jan Rocha.

Informações sobre o Fundo Clamor O arquivo do Clamor traz dimensões fundamentais das lutas pelos direitos de presos e exilados políticos e pelos direitos das famílias dos desaparecidos durante o regime militar. Revela modos de enfrentamento da Lei de Segurança Nacional e ativo intercâmbio entre organizações afins, no Brasil e na América Latina, em defesa dos direitos humanos - atuando na contramão da conhecida Operação Condor, bem como assistência aos refugiados no país, oriundos da Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. A ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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documentação preservada neste fundo, ao mesmo tempo em que reforça denúncias e resistências à ditadura militar, sendo instrumento para possíveis reparações e para o exercício da justiça de transição, revela, também, outros sujeitos firmando presença e reivindicando direitos, desnudando as tensões sociais geradas nas múltiplas dimensões da vida social, alargando o campo da prática política e modificando os termos em que ela se faz. Atualmente, o fundo encontra-se distribuído em 106 caixas arquivo, 28 pastas para periódicos (formato A3) e uma pasta para cartazes (formato A2), totalizando aproximadamente 14 metros lineares de documentos, armazenados horizontalmente, com empilhamento máximo de duas caixas, em arquivo deslizante instalado na área de depósito climatizado, cujo acesso é restrito aos funcionários e estagiários do Centro de Documentação. O arquivo é composto por agendas, boletins internos, cartazes, comunicados à imprensa, correspondência, depoimentos de refugiados e de parentes e amigos de desaparecidos e presos políticos, dossiês de crianças desaparecidas, fichas de desaparecidos e de torturadores argentinos, fotografias de desaparecidos, informes, livros, publicações periódicas e relatórios de atividades. O acervo contém milhares de cartas e documentos referentes ao período entre 1978 e 1990, enviados por familiares e por membros de organizações de direitos humanos, sindicatos e igrejas dos países do Cone Sul. Há também depoimentos de sobreviventes dos campos de detenção, de ex-presos e de militares que abandonaram as forças armadas de seus respectivos países para denunciar os abusos que testemunharam. O arquivo também contém correspondência e informes de agências das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos (OEA), e de embaixadas estrangeiras e entidades não governamentais de vários países para além da América Latina. Todas as publicações do Clamor estão presentes no arquivo: exemplares dos boletins em português, espanhol e inglês, cópias dos comunicados e press releases; os calendários sobre crianças desaparecidas; cópias de telegramas enviados às autoridades de vários países e da correspondência interna, além de relatórios das viagens realizadas por membros do Comitê. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Devido à natureza de seu acervo, e por questões de segurança e preservação, somente após a realização de cadastro junto ao atendimento do Cedic é liberada ao pesquisador a consulta ao acervo, sendo disponibilizada apenas uma unidade de arquivamento (pasta ou caixa) de cada vez. Quando o pesquisador solicita a reprodução de documentos, são oferecidas duas opções de reformatação: microfilmagem ou digitalização, ambas realizadas nas dependências do Cedic, por funcionários capacitados para a execução desses procedimentos. Cabe ressaltar que, mesmo com o Fundo Clamor em processamento técnico para revisão do arranjo, higienização e reacondicionamento dos documentos, e atualização de sua descrição (revisão do inventário do arquivo), atividades necessárias para a total disponibilização pública do acervo, o Cedic continua atendendo às demandas de pesquisadores interessados nessa documentação, por meio da intermediação de funcionários do Centro e bolsistas do projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo - FApesp.

Ações realizadas com o fundo Clamor Consciente da importância do Fundo Clamor para a história recente, não só do Brasil, mas de outros países da América do Sul, o Cedic tem investido fortemente em ações para o tratamento e divulgação dessa documentação, desde a apresentação de comunicações em encontros, congressos e seminários, nacionais e internacionais, até a promoção de exposições virtuais (http://www4.pucsp.br/cedic/mostra/)2, bem como a elaboração de projetos para o reacondicionamento do acervo com materiais de qualidade arquivística, visando sua preservação. Destacam-se a nominação do Fundo Clamor no Registro Nacional do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco, obtida em 2007, por seu "valor excepcional e o interesse nacional de um acervo documental que deve ser protegido para beneficio da humanidade”, e a integração do Cedic como instituição

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parceira do Arquivo Nacional (2008) na constituição do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas, para o qual foram disponibilizadas informações sobre o arquivo do Comitê. Em meados de 2010, o Centro de Documentação da PUC-SP apresentou ao Programa Adai - Ayuda para el Desarrollo de Archivos Iberoamericanos do Ministério de Cultura da Espanha o projeto Reacondicionamento dos Fundos e Coleções sobre Direitos Humanos no Brasil e na América Latina pertencentes ao acervo do Cedic/PUC-SP, contemplado em 2011 e executado em 2012. Ainda nesse ano destaca-se a nominação do Fundo Clamor no Registro do Comitê Regional para América Latina e Caribe do Programa Memória do Mundo da Unesco (MOWLAC 2012). Importante também ressaltar que durante esta última década, o Cedic tem mantido contatos estreitos com ativistas e entidades que atuaram naquele período, visando não só o adensamento do histórico do Clamor como a própria complementação do fundo. Dentre estes contatos o com a pesquisadora e jornalista Jan Rocha tem sido de grande valia.

O projeto O projeto Clamor: Documentação e Memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, coordenado pela Profª Dra. Heloísa de Faria Cruz3, tem como meta a disponibilização pública do arquivo desse Comitê, que atuou no Brasil entre os anos de 1978 e 1991, reconhecido como uma das mais importantes entidades de proteção a refugiados, presos e perseguidos políticos das ditaduras da América do Sul. Articula-se em torno de dois objetivos centrais: a) a complementação do Fundo e a construção de um histórico mais complexo da trajetória do Comitê em suas articulações com entidades e outros organismos de defesa dos Direitos Humanos no Brasil, na América Latina e na Europa; b) o tratamento e a organização do arquivo, bem como sua digitalização para ampliar o acesso público.

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Por sua importância em nossa história recente, constituindo-se em espaço fundamental da preservação, não só da memória daquelas ações de solidariedade e resistência, mas também em elemento de prova para a reivindicação de reparação e outras ações da justiça de transição, para as quais nos remetem muitas das discussões atuais4, o Fundo Clamor é consultado por um público bastante diversificado, dentre os quais se destacam advogados, representantes legais ou familiares de presos políticos e/ou desaparecidos de países vizinhos, além de pesquisadores, nacionais e estrangeiros, de diferentes áreas acadêmicas, bem como a Igreja Católica e os representantes do governo de países do Cone Sul. Da mesma forma, a importância e amplitude de sua atuação, com incidência em vários países da América Latina, propõem um trabalho de complementação e reconstrução de seu histórico que abarque também estas múltiplas relações internacionais. Mais ainda, avaliamos que a atual conjuntura de aprovação da Comissão Nacional da Verdade e da Lei Geral de Acesso à Informação5, vem reforçar a importância de projetos que visem à recuperação, organização e disponibilização dos arquivos referentes à atuação dos diversos órgãos e serviços de segurança nacional e repressão e dos movimentos de resistência em atuação naquele período. Inserindo-se em circuitos mais amplos de preservação documental que, em tempos recentes, buscam aproximar a preservação do patrimônio documental às experiências de grupos sociais diversos e da questão da cidadania, o Cedic tem participado de forma ativa de algumas redes pela afirmação do Direito à Memória em nossa sociedade. O projeto Clamor: Documentação e Memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul está sendo desenvolvido por meio de ações que visam: Localizar, reproduzir, organizar e preservar a documentação complementar ao Fundo relativa às suas relações com outras entidades de defesa dos Direitos Humanos no período de sua existência. Realizar ações de reformatação e descrição dos documentos em formato eletrônico e de acordo com a Norma Brasileira de Descrição Arquivística Nobrade, que preservem e ampliem o acesso do público em geral ao Fundo.

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Atualizar o histórico e o inventário do Fundo Clamor e disponibilizá-los para consulta on-line no site do Cedic (http://www.pucsp.br/cedic/), facilitando o acesso inicial à informação e, por consequência, tornando mais ágil o acesso aos documentos.

Procedimentos e metodologia A realização de ações que visam à disponibilização pública do arquivo do Clamor teve início efetivo em 2007, quando o Fundo foi nominado Memória do Mundo, seguida da integração do Cedic como instituição parceira do Arquivo Nacional na constituição do Centro de Referência Memórias Reveladas. A divulgação da nominação e a disponibilização de informações sobre o Fundo no portal do Memórias Reveladas fizeram com que o interesse por esse arquivo crescesse, refletindo-se diretamente no aumento de consultas ao acervo, apesar de o mesmo não se encontrar fisicamente organizado. Consequentemente, aumentaram também o manuseio do material e as solicitações de cópias de documentos, tanto para fins acadêmicos, quanto para comprovação de direitos junto à Justiça principalmente da Argentina. Com a aprovação do projeto encaminhado ao Programa Adai, foi iniciada a revisão da organização física dos documentos do Fundo Clamor, a fim de otimizar as futuras pesquisas ao acervo. Em um primeiro momento, foi constatada a falta de documentos relevantes para o arquivo como, por exemplo, alguns exemplares do Boletim Clamor em inglês e em espanhol. Apenas a coleção em português encontra-se completa. O mesmo ocorre com os informes produzidos pelo Comitê, além do material de apoio recebido de instituições com as quais o Clamor se correspondia. Muitas dessas falhas no arquivo podem ser corrigidas por meio de intercâmbio de informações e de documentos, tanto com antigos integrantes do Grupo, quanto com entidades de defesa dos Direitos Humanos do Brasil e dos demais países com os quais o Comitê se relacionava. Para tanto, foram previstas viagens a alguns Estados brasileiros e a países da América Latina, com a finalidade de pesquisar nos arquivos dessas entidades e de entrevistar os atuais e antigos integrantes dessas organizações. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Neste sentido, a realização do projeto Clamor: Documentação e Memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul possui duas frentes de trabalho simultâneo. A primeira está inteiramente voltada para a documentação que compõe o Fundo, incluindo atividades de revisão da organização física dos documentos (conferência do conteúdo das caixas e das pastas que compõem o Fundo com listagens previamente elaboradas, além do remanejamento das séries); preparo e digitalização dos documentos do arquivo, bem como de outros que, por ventura, venham a ser incorporados ao acervo posteriormente, com o objetivo de preservar e ampliar o acesso do público em geral ao Fundo Clamor; revisão e atualização do Inventário do Fundo Clamor segundo a Norma Brasileira de Descrição Arquivística - Nobrade; diagramação do Inventário para o formato eletrônico e sua disponibilização no portal do Cedic e do Memórias Reveladas. Essas atividades contam com a minha coordenação enquanto historiógrafa responsável pelo Setor de Conservação e Reprografia do Cedic e pesquisadora associada do projeto, e pelo fato de ter elaborado o Inventário do Fundo Clamor como dissertação de mestrado. Essas atividades estão sendo realizadas integralmente na sede do Centro de Documentação da PUC-SP, e conta com o reforço de duas bolsistas6 de Treinamento Técnico (TT3) da Fapesp. Uma bolsista participa das atividades de tratamento e processamento técnico do acervo, enquanto a outra, das atividades de digitalização dos documentos e tratamento das imagens digitais produzidas. A segunda frente de trabalho é constituída de viagens ao Brasil e ao exterior, tendo como objetivos: 1) Complementação do Fundo Clamor, por meio da localização e reformatação de documentos que o Comitê produziu e encaminhou para entidades da América Latina, América do Norte e Europa durante a sua trajetória, cujas cópias serão tratadas, organizadas e incorporadas ao Fundo; 2) Complementação de informações sobre a atuação do Comitê na defesa dos Direitos Humanos, especialmente na Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, por meio de levantamento de dados junto aos arquivos das entidades que mantinham contato com o Clamor e também por meio de entrevistas realizadas com antigos integrantes do Comitê e de outras entidades de defesa dos Direitos Humanos, tanto da América ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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Latina e do Norte, quanto da Europa. Essas informações serão fundamentais para a elaboração de um histórico mais complexo e de caráter oficial sobre o Clamor. Além disso, essas informações também serão muito importantes para a revisão do quadro de arranjo do Fundo e, por consequência, para a descrição dos verbetes que compõem o Inventário. 3) Formação da Coleção de Depoimentos Orais sobre o Clamor, abrangendo antigos integrantes do Comitê e de outras entidades de Direitos Humanos tanto do Brasil, quanto das Américas Latina e do Norte, e Europa, que mantinham relações com o Comitê durante sua existência. Para a realização das viagens, contamos com a colaboração de Jan Rocha, cofundadora e ex-integrante do Comitê, que participa do projeto na qualidade de pesquisadora associada, responsável pelo resgate da história do Clamor e pela tomada de depoimentos de personagens relevantes tanto para a história do Grupo, quanto para a história das lutas políticas e sociais ocorridas no Brasil e nos países da América Latina, no período de 1978 a 1990. Os resultados finais que esperamos obter deste projeto são os seguintes: Organização física do Fundo Clamor. Elaboração e publicação eletrônica do Histórico do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul. Elaboração e publicação eletrônica do Inventário do Fundo Clamor no site do Cedic e no Portal do Memórias Reveladas. Digitalização integral dos documentos do Fundo Clamor. Disponibilização parcial do arquivo digital produzido - séries mais importantes do Fundo7. Criação da Coleção de Depoimentos sobre o Comitê e sua Atuação. Realização de Seminário Internacional sobre o Comitê, o Fundo e sua importância para a pesquisa em Direitos Humanos na América Latina. Publicação de folder impresso para divulgação do Fundo Clamor.

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Conclusão A realização de um projeto específico como este é fundamental para agilizar o acesso à informação e aos documentos, além de possibilitar a preservação do acervo por meio de sua reformação. As ações propostas no projeto Clamor: Documentação e Memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, em consonância com várias iniciativas correlatas que hoje se desenvolvem em nosso país, visam contribuir para a afirmação dos direitos à memória e à verdade reclamados nas discussões políticas correntes em nosso país.

Referências ANDRADE, Ana Célia Navarro. Descrição do Fundo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul - Clamor. São Paulo, 2000, 233pp. Dissertação de Mestrado em História Social defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. CARRARA, Sergio. Do Direito de Saber: O acesso à informação privada nos arquivos da ditadura militar brasileira. Acervo, Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v. 24, n. 1 (2011), pp. 195-204. CRUZ, Heloisa. F. Do sigilo à memória? Comissão da Verdade e as fontes históricas da Ditadura. In MARQUEZ, Márcia. (org.). Pesquisa e Fontes Históricas. Natal: Editora da UFRN, 2012, 18 pp. LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2003. http://www.pucsp.br/cedic/fundos/comite_de_defesa.html http://www.an.gov.br/mr/Multinivel/Exibe_Pesquisa_Reduzida.asp?v_CodReferencia_ID=206

Notas 1

Mestre em História Social pela USP e historiógrafa do Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis Filho” (Cedic) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2

Mostra Virtual Anistia e Direitos Humanos (2009).

3

Coordenadora do Cedic/PUC-SP e docente do Departamento e Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. 4

Como exemplo das várias e múltiplas discussões sobre a questão na área ver o dossiê Acesso a Informação e Direitos Humanos publicado pela Revista Acervo, 24, de jan/jun de 2011. Ver também CRUZ, Heloisa de

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Faria. “Do sigilo à memória? Comissão da Verdade e as fontes históricas da ditadura”. In MARQUEZ, Márcia. (org.). Pesquisa e Fontes Históricas. Natal, Editora da UFRN, 2012, 18 p. 5

Lei Nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do o o o o art. 5 , no inciso II do § 3 do art. 37 e no § 2 do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei n 8.112, de o o 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei n 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei n 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. 6

Adriane Zerillo Natacci e Camila Yuriko Matumoto.

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Devido a questões técnicas do site desenvolvido pela Universidade não é possível, em um primeiro momento, a criação de um banco de imagens com capacidade para a disponibilização de todos os documentos que compõem o Fundo Clamor.

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Ditadura, direitos humanos, arquivos e educação a partir do patrimônio: documentar a ditadura para que(m)? Clarissa de Lourdes Sommer Alves1 Nôva Brando2

Resumo: Os arquivos públicos, em tempo de discussões sobre memória, verdade e justiça, possuem um compromisso institucional de promover discussões acerca da identificação, da preservação, da difusão e do acesso aos arquivos produzidos pela repressão e pela resistência durante a Ditadura Civil-militar no Brasil. Desde essa perspectiva, propomos algumas reflexões com base nas experiências do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul na difusão de seus acervos por meio de seu Programa de Educação Patrimonial que, a partir do segundo semestre de 2013, oferecerá uma nova oficina para estudantes do Ensino Médio cuja temática Ditadura e Direitos Humanos será abordada por meio do acervo da Comissão Especial de Indenização aos ex-presos políticos. Nesse processo de criação, defendemos a perspectiva de que a apropriação dessa temática, por parte da sociedade, torna-se um elemento chave na disputa pelo passado e pela justiça. Palavras-chave: Educação Patrimonial; Difusão; Arquivos; Ditadura.

Abstract: Public archives at time discussions about memory, truth and justice, have an institutional commitment to promote discussions about the identification, preservation, dissemination and access to files produced by repression and resistance during the CivilMilitary Dictatorship in Brazil. From this perspective, we propose some reflections on the experiences of the Public Archive of the State of Rio Grande do Sul in the dissemination of their collections through its Heritage Education Program that, in the second half of 2013, will offer a new workshop for high school students whose theme Dictatorship and Human Rights will be broach from the documentation of the Special comission of Indemnity for former political prisoners. In this process of creation, we advocate the view that the appropriation of this theme, by society, becomes a key element in the dispute for the past and for justice. Keywords: Heritage Education; Archives; Dictatorship.

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Documentar a ditadura – algumas possibilidades

A memória, onde cresce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva à libertação e não para a servidão dos homens (Jacques Le Goff)

Vivenciamos intensas discussões a respeito da identificação, preservação e acesso aos arquivos produzidos pela repressão e pela resistência à Ditadura Civil-militar brasileira. Dessa forma, ampliam-se os espaços de debate sobre os usos destes documentos na busca por memória e verdade, resgatando a história do período. Neste trabalho refletimos, a partir das experiências do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Apers), sobre o papel de instituições arquivísticas e de seus acervos neste processo, compreendendo que ele pode extrapolar a viabilização de pesquisas históricas e a garantia de direitos às vítimas e seus familiares, fomentando a ampliação do acesso a tais documentos, especialmente no processo de ensino e aprendizagem na Educação Básica. Neste sentido, o Apers desenvolve um Programa de Educação Patrimonial, oferecendo atividades de formação para professores, capacitação de estudantes de graduação em História e áreas afins, e oficinas voltadas às séries finais do Ensino Fundamental, produzidas a partir dos acervos da instituição. Uma delas debate a escravidão e a luta por liberdade, e a outra discute o ofício do historiador e a produção do conhecimento histórico. Percebendo o potencial dessas ações para sensibilização quanto à valorização e crítica ao patrimônio, e levando em conta o acervo da Comissão Especial de Indenização aos Ex-presos Políticos do RS salvaguardado pelo Apers, em 2013 estamos construindo, já em fase final de produção de materiais, uma nova oficina, voltada ao Ensino Médio, com enfoque na temática Ditaduras e Direitos Humanos. Essa oficina objetiva oportunizar discussões a respeito do período a partir de documentos de arquivo, amparadas pelo conceito da alfabetização patrimonial como ferramenta de leitura do mundo, ampliando a compreensão da trajetória histórico-temporal em que estamos inseridos, promovendo e fortalecendo instrumentos para o exercício da cidadania. Propomos, portanto, nesse

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trabalho, apresentarmos reflexões feitas nesse processo de criação, defendendo a ideia de que somente com a apropriação dessa temática por parte da sociedade poderemos estender o caminho, até então percorrido na luta por memória e verdade, à luta por justiça.

Ditadura e direitos humanos – a documentação Com o advento da Lei de Acesso à Informação3 e a criação da Comissão Nacional da Verdade4, as discussões sobre a identificação, a preservação, a difusão e o acesso à documentação de valor histórico cujos conteúdos remetem a violações dos Direitos Humanos, a atuação do regime de exceção e dos movimentos de resistência, puseram os trabalhos dos arquivos públicos na agenda do Estado e da sociedade civil. Sobre uma ampla documentação caracterizada pelo registro de evidentes violações dos Direitos Humanos por agentes do Estado, encontramos os documentos produzidos pela repressão e pela resistência à Ditadura Civil-militar brasileira, que somente vêm recebendo atenção especial e políticas sistemáticas para sua identificação e normatização do acesso nos últimos anos, na sequência de um longo processo de transição política no qual o silêncio institucional imposto pelos militares se efetivou. Conforme Padrós (2009, p.31-32), […] as primeiras tentativas de armar tal “quebra-cabeça” se defrontam com inúmeras lacunas resultantes de “proibições oficiais” e de silêncios cúmplices dos primeiros governos pós-ditaduras. Tal situação foi o fruto de negociações que encaminharam processos de transição política e redemocratização em um quadro de relações de forças onde os militares impuseram, como condição essencial, o silêncio institucional e a impunidade presente e futura dos seus atos passados. Como consequência disso, os arquivos oficiais foram interditados ou removidos, reduzindo a possibilidade de conhecer aquele passado traumático somente através da única informação disponível, a dos sobreviventes e das vítimas.

Não podemos esquecer que antes do Estado se propor a enfrentar essa situação, organizações como a Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos5, formada na década de 1980, largou-se a procura de documentação que respondesse às famílias sobre o destino dos desaparecidos políticos. Nesse sentido, podemos considerar ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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que a implementação de uma política estatal de busca por memória e verdade foi resultado de muita pressão e de árduo trabalho realizado por esses familiares e militantes de oposição ao regime. A partir daí, essa demanda construída foi alargada como tarefa estatal conduzida pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos6, pela Comissão da Anistia7 e pela recém-criada Comissão Nacional da Verdade. Portanto, hoje percebemos que os trabalhos dessa Comissão expressam uma transição continuada, na qual as tentativas de rompimento com o silêncio institucional se expressam, dentre outras tarefas, por meio dos trabalhos de mapeamento da documentação referente ao período, conforme divulgação do Balanço de Atividades de 1 ano da CNV8. As dificuldades do trabalho de identificação são fortemente referidas e deságuam na imensa batalha pela ampliação do acesso às informações contidas nesses documentos. A disputa pela abertura está contaminada pelo tema do revanchismo, acusação feita por setores vinculados ou simpatizantes do antigo establishment autoritário aos setores que exigem conhecer a verdade sobre aqueles fatos do passado recente. É o medo de que apareçam os nomes dos responsáveis pela aplicação da tortura, nomes de delatores, o uso de métodos criminosos, a confirmação de apropriação de bens, posturas ignóbeis, etc. (PADRÓS, 2009, p.4).

Nesse sentido, os trabalhos estão ocorrendo em diversas frontes, pois ao mesmo tempo em que ocorre a tarefa ainda árdua de identificação, também se realizam discussões sobre a preservação, a difusão e o acesso a tais documentos em meio a esse cenário de alargamento de uma cultura democrática, que transcende das reparações particulares às demandas por verdade como um Dever de Estado. Nesse cenário insere-se o debate em torno da difusão e acesso à documentação da Comissão Especial de Indenização custodiada pelo Apers.

Ditadura, direitos humanos e o Apers – difusão documental e viabilização do acesso Antes de prosseguirmos com as considerações referentes à difusão e ao acesso ao Acervo da Comissão Especial de Indenização, ressaltamos sua especificidade no que tange seu processo de produção e as suas características tipológicas. Esse Acervo resultou da ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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denominada Comissão criada pela Lei 11.042 de 1997

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, que reconheceu a

responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul por danos físicos e psicológicos causados às pessoas presas por motivos políticos em instituições e órgãos públicos estaduais, ou com ajuda de seus agentes, entre 1961 e 1979, normatizando a concessão de indenizações a ex-presos ou seus familiares. A Comissão foi instaurada com o objetivo de operacionalizar as solicitações e a concessão de indenizações propostas pela legislação. Desse trabalho, resultaram 1704 processos administrativos que compõem o Acervo 10 , de origem da Secretaria de Segurança Pública, recolhido e salvaguardado pelo Apers desde 2009. Tais processos são formados por variados documentos, compondo aquilo que poderíamos chamar de um dossiê, construído pelo próprio requerente. Neles encontramos, além da documentação padrão solicitada pela Comissão, certidões expedidas por órgãos públicos, cópias de inquéritos policiais e militares, documentos produzidos pelos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops), jornais, revistas, fotografias, correspondências, cópias de livros memorialísticos, laudos médicos, pareceres psiquiátricos, declarações de testemunhas e memorial escrito pelo requerente11. Portanto, ainda que esses dossiês pessoais não sejam produções da repressão ou da resistência12, julgamos neles estarem contidos documentos e materiais produzidos por ambos. Sendo reivindicações de particulares junto ao Estado, tal documentação encontrase sob acesso restrito às partes envolvidas e a pesquisadores que possuam projeto respaldado por instituição de ensino e assumam a responsabilidade pelas informações divulgadas. Disso podemos depreender o papel que tais documentos cumpriram quanto à garantia de direitos às vítimas ou aos seus familiares. Entretanto, se considerarmos suas possibilidades enquanto fontes históricas e fontes pedagógicas para a construção de conhecimentos acerca da Ditadura e dos Direitos Humanos, compreendemos as limitações que lhes foram impostas pela impossibilidade de difusão e de acesso amplo à documentação, sobretudo, pelo fato de guardarem consigo informações de caráter pessoal e de cunho íntimo. Tornar público o acesso a essas informações, conforme sugere Enrique, é matéria complexa, já que a documentação é considerada material sensível, ou ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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seja, “documentos que podem ser portadores de informação delicada em função da possibilidade da exposição das vítimas […]” (PADRÓS, 2009, p.41). O Arquivo Público, nesse sentido, reconhecendo tais características na documentação por ele custodiada, na intenção de viabilizar a pesquisa histórica13 e de desenvolver, por meio de seu Programa de Educação Patrimonial, ações pedagógicas voltadas ao debate sobre Ditadura e Direitos Humanos, está construindo um edital público de reconhecimento de conjunto documental14. Por meio desse edital, ainda em fase de avaliação jurídica pela Secretaria de Administração e Recursos Humanos, órgão ao qual se subordina o Apers, a instituição fará publicamente o reconhecimento, por um lado, de que tal Acervo contém informações necessárias à recuperação de fatos históricos de maior relevância e de fatos que implicam em violação de direitos humanos15 e, por outro, abrirá a possibilidade de que o requerente se manifeste pela manutenção da restrição do acesso a seu processo. Finalizados os prazos estipulados pelo edital, o Apers tornará tal Acervo de acesso público. Ainda que não tenhamos prazos definidos para publicização do Acervo, os trabalhos de pesquisa histórica e de construção de ações pedagógicas têm ganhado forma a partir de processos cujas autorizações para uso estão sendo concedidas ao Apers pelos próprios indenizados.

Arquivos como espaços não-formais de educação: experiências em educação patrimonial no Apers O Programa de Educação Patrimonial do Apers foi idealizado e desenvolvido a partir de um longo processo de contato e troca de conhecimentos e experiências entre educadores e estudantes de ensino superior, funcionários e gestores do Arquivo Público. Seu embrião foi semeado na instituição em 2002, quando foi construída a primeira oficina para estudantes do Ensino Fundamental, dentro do Projeto “Por dentro do Arquivo”. Ainda que tal atividade tenha sido aplicada apenas naquele ano, foi uma importante iniciativa para reconhecer o grande potencial do Apers enquanto espaço de educação e cultura. Após este período seguiram sendo oferecidas visitas guiadas, mas sem foco nos estudantes da Educação Básica.

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No final do ano de 2008, nasceu a parceria entre o Apers e a UFRGS. A direção do Arquivo foi procurada pela Universidade no intuito de criar campo de estágio para estudantes de graduação em História matriculados na então recente disciplina de Estágio em Educação Patrimonial. A ideia foi abraçada, e logo em seguida, passou-se a elaborar a oficina Os Tesouros da Família Arquivo, voltada aos estudantes das 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental, que aborda a escravidão e a luta por liberdade no Brasil a partir de documentos do acervo que registram a vida de sujeitos outrora escravizados, sendo um inventário, um testamento, uma carta de compra e venda de escravos, uma carta de alforria e um processo crime, e passou a ser oferecida em abril de 2009.16 O bom andamento do projeto em 2009 e a reflexão a respeito da prática abriram espaço para que fosse elaborada uma nova oficina, pensada especificamente para as 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental, de forma a atender todas as séries finais desta etapa do ensino. Nasceu, então, a oficina Desvendando o Arquivo Público: Historiador por um dia, disponibilizada desde abril de 2010. Esta oficina discute o ofício do historiador e a produção do conhecimento histórico a partir de diferentes tipos de documentos do acervo (processo crime, certidão de nascimento, processo de medição de terras, inventário e habilitação para o casamento). Em 2011 passou-se a oferecer também o curso de formação continuada para professores Educação Patrimonial e Cidadania, destinado aos educadores da rede pública de ensino. O curso vem sendo reeditado, em 2012 no mesmo formato, e em 2013 com nova roupagem, debatendo o patrimônio a partir da temática ditaduras e direitos humanos, como mais um eixo de ação para aprofundar o debate sobre tema que nos parece central na agenda brasileira atual. A realização do curso para professores veio para suprir uma demanda que se evidenciou desde 2009, já que a continuidade e a qualidade do trabalho desenvolvido no Apers somente são possíveis a partir da parceria e da sensibilização dos educadores e dos futuros professores

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. Para esses,

semestralmente, o Programa realiza um novo período de capacitação de oficineiros, oportunizando o contato com a metodologia da Educação Patrimonial, com o debate de conceitos como patrimônio, memória, identidade e cidadania, e com a prática pedagógica nas oficinas. Busca-se incentivar que os novos profissionais trabalhem com a Educação

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Patrimonial como metodologia que contribui para a formação dos educandos, ampliando seu repertório cultural, aguçando sua apreensão crítica do mundo, e trabalhando a noção de pertencimento em relação aos patrimônios culturais. De 2009 até o presente momento foram realizadas 301 oficinas, atendendo cerca de 6.200 estudantes, e foram capacitados 94 oficineiros. Para o primeiro semestre de 2013, optamos por dedicar a equipe à formulação da nova oficina sobre Ditaduras e Direitos Humanos e à reedição do curso para professores com este enfoque, deixando de atender ao público externo por um curto período. Porém, a trajetória percorrida até então evidencia o reconhecimento, por parte dos professores, do Apers como um espaço educativo e cultural de referência, assim como demonstra uma boa aceitação e compreensão, entre os pares na área de arquivos, de que ações educativas realizadas no campo da difusão contribuem para o estreitamento das relações entre arquivos e sociedade, para a valorização do patrimônio documental. Acreditamos que dia após dia nosso trabalho contribui para aproximar cidadãos e agentes sociais de diferentes áreas e para consolidar os arquivos como potenciais espaços não formais de educação 18. Assim, sendo o Apers um espaço de memória que salvaguarda patrimônios documentais, compreendidos como fontes primárias de pesquisa histórica e fontes de informações que auxiliam a administração pública e a garantia de direitos aos cidadãos, além de estar localizado em prédios que são patrimônios arquitetônicos tombados pelo estado do RS, o cerne do referencial que instrumentaliza este Programa é a compreensão de que como resultado do trabalho humano o documento se constitui em fruto da satisfação de alguma necessidade historicamente determinada. As coisas mais banais do cotidiano, todas as coisas que o homem constrói, são expressões da presença humana e, portanto, vestígios ou fontes documentais a serem consideradas […] A compreensão sobre a importância do uso escolar do documento histórico é essencial, porque enquanto testemunho da memória coletiva e da História, não pode ser entendido apenas como resto, como sobrevivente de um passado próximo ou remoto, mas, deve ser utilizado como algo que foi selecionado para ser alvo de indagação, análise, reflexão e compreensão de determinado contexto espaço-temporal (LUPORINI, 2002, p.326).

Nesta perspectiva, para trabalhar com documentos históricos – sejam eles documentos escritos ou edificações – nos processos educacionais, é necessário o

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“tratamento didático” (LUPORINI, 2002) de tais fontes, de maneira que estas possam servir de estímulo para que os educandos apreendam e (re)signifiquem o conhecimento histórico, transformando-o em ferramenta de crítica para a vida e de leitura do mundo e da sociedade em que estão inseridos. Isso se torna possível com a aplicação da metodologia da Educação Patrimonial, pensada como “o ensino centrado nos bens culturais, como a metodologia que toma estes bens como ponto de partida para desenvolver a tarefa pedagógica; que considera os bens culturais como fonte primária de ensino” (LUPORINI, 2002, p.327) e aprendizagem. Comumente define-se essa metodologia como o trabalho desenvolvido com base na problematização dos bens culturais conforme as etapas de observação, registro, exploração e apropriação (SOARES, 2009). Acreditamos, entretanto, que além do método empregado para a análise dos bens culturais, torna-se fundamental amparar todas as ações de educação a partir do patrimônio em sólidos conhecimentos históricos, em referenciais teóricos adequados aos objetivos que se deseja alcançar em cada ação, e em uma prática pedagógica focada no incentivo a uma compreensão questionadora da realidade, evitando assim que sejam reproduzidas as valorações excludentes ou elitizadas dos bens culturais. Nesse sentido, a partir da difusão cultural e do trabalho educativo no Apers, problematizamos e encaramos as tarefas inerentes à responsabilidade dos arquivos enquanto instituições que salvaguardam parte significativa da produção histórico-cultural de nossa sociedade, acreditando, como coloca Oriá, que todo cidadão tem direito à cultura, na sua acepção ampla e, por conseguinte, à memória coletiva e ao passado histórico. A memória social ou coletiva, evidenciada através dos registros, vestígios e fragmentos do passado – os chamados bens culturais de uma dada coletividade –, constitui-se em referencial de nossa identidade cultural e instrumento possibilitador do exercício da plena cidadania. (FERNANDES, 1993, p. 266)

Ditadura, direitos humanos e educação patrimonial O Programa de Educação Patrimonial do Apers chegou ao ano de 2013 com o objetivo central de expandir suas ações para alcançar as turmas do Ensino Médio, e

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optamos por fazê-lo de maneira conectada com os debates que vem sendo travados no país em torno de nossa tardia Justiça de Transição, do resgate da memória, da história e da verdade relativas ao período da Ditadura Civil-militar no Brasil. Esta escolha explicita nossa compreensão da educação – seja em espaços formais ou não-formais – como um processo intencional, repleto de opções metodológicas, teóricas e políticas. Assim, a escolha de elaborar uma nova oficina com base no acervo produzido pela Comissão Especial de Indenização, relaciona-se à conjuntura histórica vivida neste momento, à intenção de contribuir para ampliar as discussões a respeito das marcas deixadas pela Ditadura

em nossa democracia ainda

recente, e

ao nosso

comprometimento e reconhecimento de que “a Educação não é neutra, ao contrário, é o campo privilegiado do enfrentamento político-ideológico, lugar onde se confronta também um modelo de sociedade e o papel do Estado” (SCIFONI, 2012, p. 32). Neste sentido, vemos a educação como parte de um projeto de transformação social, no qual os arquivos podem, ou devem, incidir. A partir de março de 2013 passamos à elaboração dessa oficina, que conta com os membros orgânicos da equipe de Educação Patrimonial do Apers e da UFRGS, assim como com a colaboração de professores da Educação Básica, pós-graduandos e agentes públicos ou da sociedade civil organizada atuantes na área de Direitos Humanos, que foram convidados a participar de nosso Planejamento Participativo, espaço pensado para ampliar as relações do Programa com a sociedade e orientar nossas ações pelo que é por ela pautado. As reuniões e estudos para a elaboração da oficina vêm sendo desenvolvidos desde março de 2013, tendo como primeira etapa a escolha dos processos administrativos que serão nela trabalhados, tarefa que se desenvolveu em parceria com a equipe de descrição que está elaborando o catálogo seletivo desse acervo. Durante a leitura de cada processo, tal equipe destacou aqueles que poderiam ser interessantes à atividade, a partir de critérios debatidos pelo grupo, como: (a) diversidade de organizações políticas representadas entre os processos selecionados; (b) diversidade de esferas de atuação política na resistência contra a ditadura como, movimento sindical, estudantil, profissionais da comunicação e da cultura, grupos de resistência armada, ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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militares legalistas e servidores públicos; (c) riqueza do conteúdo informacional e variedade de documentos anexados19; (d) riqueza dos relatos expressos nos memoriais, parte do documento que melhor dá voz aos requerentes. Ao final dessa etapa de trabalho foram escolhidos nove processos, sendo que dois deles serão abordados em conjunto em um mesmo grupo, e três serão utilizados para atividades posteriores, em sala de aula. Paralelamente a escolha dos processos foi-se desenhando a metodologia de trabalho durante a oficina com as turmas, e preparando-se os materiais de apoio que auxiliarão na compreensão do contexto histórico e da história de vida dos personagens. Aproveitando experiências metodológicas bem sucedidas nas oficinas anteriores, optouse por montá-la de maneira que as turmas permaneçam no Arquivo por um turno, tendo um intervalo no meio da manhã ou da tarde para o lanche, e por trabalhar com cinco oficineiros (membros da equipe) que dividirão a turma em cinco pequenos grupos, cada um trabalhando com um processo, que abordará conceitos distintos. Também teremos espaços comuns, onde trabalharemos com o grande grupo, como o momento de recepção da turma para apresentação do Apers e aproximação com a temática, o próprio intervalo, pensado como momento de interação em que os estudantes confraternizam no jardim da instituição, e o fechamento, momento em que cada grupo deverá compartilhar com os demais as experiências de pesquisa e reflexões feitas a partir do processo, pensado enquanto fonte primária arquivística de conhecimento. Alguns aspectos da metodologia ainda estão em aberto, em processo de construção, mas, em linhas gerais, levando-se em consideração a densidade e centralidade do tema abordado, as etapas serão as seguintes, buscando extrapolar o trabalho dentro do espaço do Apers: (a) preparação prévia à oficina, realizada em sala de aula com mediação do professor, a partir da leitura de um texto introdutório desenvolvido pela equipe e do trabalho com tirinhas/quadrinhos que auxiliam a organizar o conhecimento apresentado. Esse texto trará informações preliminares sobre a história de vida dos personagens que serão conhecidos pelos estudantes no Apers, trazendo alguns trechos tarjados, para aguçar a curiosidade e introduzir o conceito de censura; (b) recepção dos estudantes, onde todos assistirão a um pequeno vídeo montado pela equipe a partir de imagens, tomadas de cena no Apers e audiovisuais já disponíveis na Internet para ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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contextualizá-los em relação à temática e à realidade vivida no Brasil e no mundo do início dos anos 1960, auxiliando na compreensão das causas que levaram ao golpe militar de 1964; (c) breve visita pela instituição no momento de deslocamento até a sala onde ocorre a maior parte das atividades pedagógicas, momento em que os estudantes poderão conhecer a estrutura dos prédios onde são salvaguardados os acervos e compreender um pouco mais a respeito de trabalho arquivístico de organização, preservação e disponibilização do acervo para acesso público; (d) contato inicial com os processos em versão digitalizada, reproduzidos na íntegra, quando os estudantes deverão identificar o personagem com o qual trabalharão, reconhecendo-o em relação ao texto lido anteriormente em sala de aula, conhecer a estrutura do documento em análise, entender como ele é tratado arquivisticamente, porque foi recolhido ao Apers, entre outras informações gerais; (e) intervalo para o lanche, como um espaço a mais em que as turmas podem apropriar-se do Arquivo; (f) análise do processo com apoio de textos, verbetes de conceitos, imagens, poemas, reportagens de jornal e outros materiais de apoio, de acordo com o conteúdo de cada documento. Neste momento os grupos deverão aprofundar as discussões, compreender a história do personagem em questão, e apropriarem-se dela (re)significando o conhecimento adquirido em relação aos saberes que traziam anteriormente; (g) fechamento, momento importante da atividade em que todos os grupos deverão encontrar-se para compartilhar as experiências de pesquisa ao longo da oficina, relatando aos demais o que produziram, quais as relações feitas, quais as conexões a história do Brasil atual, etc.

Já os conceitos que serão abordados ao longo da oficina, seja nos espaços de atividades coletivas, seja nos pequenos grupos, mas de maneira que sejam apresentados no fechamento para toda a turma, serão: Ditadura, Direitos Humanos, violência, tortura, estigma, história, memória, verdade histórica, justiça, cidadania, clandestinidade e exílio, assim como tentaremos elucidar a atuação do Estado ditatorial a partir da compreensão dos conceitos de Terrorismo de Estado e de inimigo interno, pensando que a Ditadura no Brasil está inserida no contexto da Guerra Fria e de inúmeros golpes de Estado na América Latina, que utilizaram a violência de forma sistemática, e articularam a atuação e

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a doutrina das Forças Armadas para conter a “ameaça comunista”, deixando de localizar as ameaças à Segurança Nacional em outros países ou grupos externos – como em geral é identificado o papel das Forças Armadas – e passando a localizá-las entre os próprios cidadãos do país. Nesses casos, Esses regimes que se formaram através do controle absoluto do governo e do aparato coercitivo do Estado, através da destituição das autoridades e corpos representativos e submissão do Poder Judiciário; da desarticulação da sociedade política e civil, através da supressão das liberdades públicas, dissolução dos partidos e organizações políticas; da intervenção nos sindicatos e controle absoluto das universidades; do controle e manipulação dos meios de comunicação escritos, orais e visuais, tiveram como conseqüência deliberada a geração do terror ou, como alguns autores preconizam, de uma “cultura do medo”, fruto da “trivialização do horror” [...] O uso generalizado e institucionalizado do clima de suspeição, dos seqüestros, da tortura, dos desaparecimentos, das mortes criou nessas sociedades um “efeito demonstrativo”, que atingia não somente aqueles que eram vítimas diretas dessas práticas, mas também todo seu entorno social e familiar [...] [No Brasil] As práticas de repressão caracterizam-se, principalmente, pela prática da detenção-desaparição como metodologia central; o sequestro como forma de detenção; técnicas psicofísicas de destruição dos prisioneiros; a tortura como método institucional; técnicas destruidoras como a presença da morte, a ruptura com o mundo exterior, a perda da noção de tempo, a coisificação, os vexames psicofísicos, a tensão constante; a manipulação psicológica dos prisioneiros; o aniquilamento físico, mascarado pelos “enfrentamentos”, “suicídios”, “justiçamentos”, “acidentes” e “atropelamentos”; o efeito multiplicador do terror, através da família da vítima, etc. (BAUER, 2005, p.5-6).

Percebemos que os processos administrativos em questão são fontes riquíssimas para a compreensão desse contexto, expressando claramente tais formas de atuação do Estado ditatorial, assim como identificamos a necessidade de que esses conceitos sejam abordados e problematizados ao longo do processo educacional, pois auxiliam de maneira efetiva a entender a história recente do país, as marcas deixadas por esse passado ditatorial, as inúmeras formas de posicionamento em relação à Ditadura hoje, e a importância de trabalhos de resgate da história e da memória como o que vem sendo desenvolvido pela Comissão Nacional da Verdade. Nessa perspectiva, a oficina trabalhará com o direito à memória e à verdade como um Direito Humano, conforme apontado pelo Plano Nacional de Direitos Humanos – 3 (PNH3, de 2009). Por fim, cabe ressaltar que o uso dos processos escolhidos somente será efetivado a partir da permissão dada pelos próprios indenizados, que estão sendo contatados pela direção do Apers não apenas no sentido de autorizar o uso, mas também de valorizar suas ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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histórias e abrir espaço para que contribuam no processo de construção dos materiais de apoio da oficina.

Documentar a ditadura para que(m)? Considerações finais Como apresentamos até aqui, a nova oficina que estamos elaborando no Apers e que será disponibilizada a partir do segundo semestre de 2013 objetiva oportunizar a discussão a respeito do período da Ditadura Civil-militar no Brasil a partir dos documentos de arquivo, buscando ampliar as ferramentas de leitura do mundo e a compreensão da trajetória histórico-temporal em que estamos inseridos, promovendo e fortalecendo instrumentos para o exercício da cidadania, pensando que a expressão cidadania deve ser tomada a partir de uma perspectiva política e, portanto, mais ampla, não circunscrita ao universo jurídico […] Devemos, portanto, tomar o significante cidadão em sua dimensão dialética, para identificarmos o sujeito histórico, aquele ser responsável pela história que o envolve. Sujeito ativo na cena política, sujeito reivindicante ou provocador da mutação, da transformação social. Homem envolto nas relações de força que comandam a historicidade e a natureza da política. Enfim, queremos tomar o cidadão como ser, homem e sujeito a um só tempo (FERNANDES, 1993, p. 271).

Nesse sentido, o fomento ao acesso aos documentos de arquivo a partir de ações educativas intencionais, especialmente construídas e divulgadas de forma a atrair mais e mais participantes, contribui para que se alcance um novo público, extrapolando o atendimento aos usuários comumente frequentadores dos arquivos. Esse acesso amplo estará vinculado a quatro dimensões do exercício da cidadania (individual ou coletiva): histórica, política, pedagógica e administrativa. Em termos históricos, implica na possibilidade de desenvolver a pesquisa sobre os acontecimentos na produção de conhecimento histórico e na sua socialização. Em termos políticos, possibilita que a sociedade, de posse desse conhecimento, se posicione sobre tais acontecimentos e, se assim entender, responsabilize os culpados e apele à justiça. Em termos pedagógicos, o conhecimento desse passado pode gerar “ações” (pedagógicas) que reforcem o caráter democrático e a necessidade de não esquecer. Por último, em termos administrativos, as pessoas que se sentem prejudicadas individualmente pelas ditaduras podem exigir, junto à justiça, direitos de reparação, restituição de empregos ou de bens, fim de punições e expurgos, etc. (PADRÓS, 2009, p.42).

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Acreditamos que, além de contribuir para o debate e compreensão de nossa história de forma crítica, e de oportunizar esse espaço qualificado para aprofundar o exercício da cidadania, ao promover tais ações em arquivos estamos contribuindo para que a sociedade compreenda o papel e a importância dos arquivos e possa deles apropriar-se. Como afirma Bellotto, as atividades de difusão cultural e de ação educativa em instituições arquivísticas tem trazido bons resultados indiscutíveis, seja no sentido da consolidação da noção de cidadania aos estudantes de primeiro e segundo grau, seja no de um maior entendimento, junto às autoridades e à população, do real papel que devem ter os arquivos públicos, ademais de serem os custodiadores e organizadores da documentação produzida/acumulada como prova, testemunho ou informação em questões que envolvam direitos e deveres nas relações entre governo e os cidadãos (BELLOTTO, 2000, p. 152).

Desta forma, o Programa de Educação Patrimonial desenvolvido no Apers amplia as possibilidades pedagógicas para o resgate da memória, e coloca-se como um espaço propício para ampliar na realidade brasileira a preocupação com a preservação de seus bens culturais. A partir das reflexões feitas nesse processo de criação da nova oficina e ampliação das ações do Programa, defendemos a ideia de que somente com a apropriação dessa temática por parte da sociedade poderemos estender o caminho, até então percorrido na luta por memória e verdade, à luta por justiça.

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BRASIL. Lei n° 9.140 de 04/12/1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação em atividades políticas, no período de 02/09/1961 a 15/08/1979. DF, 1995. ____. Lei nº 12.527 de 18/11/2011, que regula o acesso à informação. DF, 2011. ____. Lei n° 12.528 de 18/11/2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade. DF, 2011. Comissão Nacional da Verdade. Balanço de Atividades de 1 ano da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: . Acesso em 18/junho/2013. COMISSÃO DE 24/junho/2013.

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SOARES, André. Dr. Jeckyl and Mister Hide ou “A Educação Patrimonial serve a quem”? In: ZANON, Elisa Roberta, et all (orgs). A construção de políticas patrimoniais: ações preservacionistas de Londrina, Região Norte do Paraná e Sul do país. Londrina: EdUniFil, 2009. Notas 1

Historiadora do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Graduada em Licenciatura em História pela UFRGS. Graduanda do curso Bacharelado em História pela UFRGS e especializanda do curso História Africana e Afro-Brasileira pelas Faculdades Porto-Alegrense (FAPA). 2

Historiadora do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Graduada em História pela UFRGS. Graduanda do Cursando de Pedagogia pela UFRGS e especializanda do curso O Ensino da Geografia e da História: Saberes e Fazeres na Contemporaneidade pela UFRGS. 3

Criada pela Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em 24/junho/2013. 4

A Comissão Nacional da Verdade foi criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, pela Lei n° 12.528 de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2011/Lei/L12528.htm. Acesso em 24/junho/2013. 5

Um breve histórico da formação da Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos está no site do Centro de Documentação Eremias Delizoicov. Disponível em: http://www.desaparecidos politicos.org.br/quem_somos_comissao.php?m=2. Acesso em 24/junho/2012. Podemos também encontrar uma boa parte do trabalho produzido pela Comissão na publicação da obra Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos e Instituto de Estudos sobre a violência do Estado. IEVE/Imprensa Oficial: São Paulo, 2009. 6

Criada pela Lei n° 9.140 de 04 de dezembro de 1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas durante a Ditadura Militar, e regulamentada pelo Decreto nº 18, de dezembro de 1995 que a vincula ao Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9140compilada.htm. Acesso em 24/junho/2013. 7

A Comissão de Anistia foi instalada pelo Ministério da Justiça, no dia 28 de agosto de 2001. Criada pela Medida Provisória n.º 2.151, a Comissão analisa os pedidos de indenização formulados por pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até cinco de outubro de 1988. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/. Acesso em 24/junho/2013. 8

A Pesquisa Documental é elencada como um dos trabalhos iniciais, também fundamental, da CNV. Ver mais em Balanço de Atividades de 1 ano da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/balanco_1ano.pdf. Acesso em 18/junho/2013. 9

Lei nº 11.042, de 18 novembro de 1997. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/legis/. Acesso em 24/junho/2013. 10

Além dos processos de indenização que somam 1704, o Acervo é composto também por 231 processos administrativos de solicitação de antecedentes políticos e pelos documentos administrativos produzidos dos trabalhos da Comissão. 11

Cabe ressaltar que há uma multiplicidade bastante grande de documentos anexados a esses processos. No preocupamos em citar os mais recorrentes, no sentido de fornecer uma ideia acerca da composição do Acervo. 12

Sobre Arquivos da Repressão e Arquivos da Resistência ver PADRÓS, Enrique Serra. História do Tempo Presente, Ditaduras de Segurança nacional e Arquivos Repressivos. In: Tempo e Argumento. Revista do Programa de Pós-Graduação em história da UDESC. Florianópolis, v.1, n.1. p.30-45, jan/jun 2009. Disponível em: . Acesso em 15/abril/2013; SILVA CATELA, Ludmila da. El mundo de los archivos. In: ____; JELÍN, Elisabeth (comps.). Los archivos de la

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represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 195-221; GONZÁLEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regímenes represivos. Paris: UNESCO, [1995?]. Disponível em: . Acesso em: 24/junho/2013. 13

Com o propósito de viabilizar a pesquisa histórica, umas das ações de difusão do Acervo é a construção de um catálogo seletivo composto de verbetes de cada processo administrativo de indenização avaliado pela Comissão Especial. Para saber mais, sugerimos a leitura do artigo A importância da elaboração de instrumentos de pesquisa para o resgate da memória: a experiência do Arquivo Público do Estado do rio Grande do Sul na confecção de um catálogo seletivo da documentação da Comissão Especial de Indenização, de autoria de Vanessa Menezes e Renata Pacheco de Vasconcellos, também apresentado no I Seminário Internacional Documentar a Ditadura do Arquivo Nacional. 14

Esse edital está sendo construído e será aplicado nos moldes dos editais lançados pelo Arquivo Nacional em Atos Normativos de Acesso. Disponíveis em: . Acessado em 25/junho/2013. 15

Conforme sugerem o § 4° do artigo 41 da Lei de Acesso à Informação e o artigo 41 e inciso II do artigo 58 do Decreto de Regulamentação da Lei (Decreto n° 7.724 de 2012), não são passíveis de restrição documentos necessários à defesa dos direitos humanos, que impliquem violações dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas, bem como documentação necessária à recuperação de fatos históricos de relevância. Todavia, ainda que a instituição seja respaldada pela legislação para tornar público o Acervo, ela adere as recomendações das organizações envolvidas no debate que sugerem o atrelamento do acesso público da documentação ao consentimento dos envolvidos nas evidentes violações de direitos humanos. 16

Ainda naquele ano o projeto foi transformado em ação de extensão universitária junto ao Departamento de História da UFRGS, e a parceria foi consolidada em 2010 através da assinatura de convênio entre as instituições, trazendo, além de aporte teórico e qualificação às ações desenvolvidas, a possibilidade de captação de recursos via universidade. Em diferente momento já fomos contemplados com recursos dos editais Proext Cultura, dos Ministérios da Cultura e da Educação, e Novos Talentos, da CAPES, viabilizando o oferecimento de transporte gratuito às turmas, além da contratação de bolsistas e outros subsídios necessários. 17

Além do curso de formação mencionado, realizou-se também o Seminário Aplicando a Lei 10.639: Patrimônio, História e Cultura Africana e Afro-brasileira, em 2012, com planos para sua reedição no segundo semestre de 2013, respondendo a outra demanda dos educadores, que encontram pouco espaço para debate e formação acerca do tema. 18

Bianconi e Caruso classificam as diferentes formas educacionais, de uma maneira geral, como: “(…) educação formal, educação não-formal e educação informal. A educação formal pode ser resumida como aquela que está presente no ensino escolar institucionalizado, cronologicamente gradual e hierarquicamente estruturado, e a informal como aquela na qual qualquer pessoa adquire e acumula conhecimentos, através de experiência diária em casa, no trabalho e no lazer. A educação não-formal, porém, define-se como qualquer tentativa educacional organizada e sistemática que, normalmente, se realiza fora dos quadros do sistema formal de ensino” (MEC, 2009, p.18). Além de desenvolver-se fora do espaço escolar institucionalizado, a educação não-formal está fortemente marcada pela intencionalidade, ou seja, é caracterizada pelo desejo dos envolvidos em contribuir para os processos de ensino e aprendizagem, de maneira comprometida com o exercício crítico da cidadania. 19

Importante lembrar que o ônus da prova, neste caso, pesou sobre os requerentes de indenização, que precisaram recorrer a órgãos públicos, testemunhas e outras fontes de informações possíveis para provar que realmente sofreram danos físicos e psicológicos por parte de agentes do Estado no período em questão.

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A produção de informações sobre os exilados brasileiros na França durante o regime militar (1964-1979) Paulo César Gomes Bezerra1

Resumo: O artigo trata da atuação da comunidade de informações do regime militar, mais especificamente o Centro de Informações do Exterior, sobre as atividades dos exilados brasileiros na França. A primeira onda de exilados brasileiros em direção à França, logo após o golpe, foi composta sobretudo por figuras políticas de esquerda excluídas do poder. Após o AI 5, em 1968, outro grupo de brasileiros, composto majoritariamente por jovens do movimento estudantil, começou a partir para o exílio. Os principais países de destino foram Cuba e Chile. O golpe de Estado chileno em 1973, que pôs fim à experiência socialista vivida pelo país, provocou a ida de uma segunda leva de brasileiros para a Europa, em especial Paris. O objetivo principal é investigar de que maneira o Ciex via os brasileiros que viviam na França, ou por não concordarem com a conjuntura política de seu país ou por terem sido expulsos. Palavras-chave: Ciex; comunidade de informações; ditadura militar; repressão; exílio.

Abstract: The paper discusses the performance of the intelligence community of the military dictatorship, specifically the Centro de Informações do Exterior, on the activities of Brazilian exiles in France. The first wave of Brazilian exiles toward France, shortly after the coup, was mainly composed of leftist political figures excluded from power. After AI 5, in 1968, another group of Brazilians, mostly composed of young people from student movement began to go into exile. The main destination countries were Cuba and Chile. The Chilean coup in 1973, which ended the socialist experience lived by the country, led the way for a second wave of Brazilians to Europe, especially Paris. The main objective is to investigate how the CIEX saw Brazilians living in France, because they did not agree with the political situation of their country or because they were expelled. Keywords: CIEX, intelligence community; military dictatorship; repression; exile.

A preocupação com a imagem do Brasil no exterior sempre foi uma tópica entre determinados setores das elites brasileiras ao longo da história. Os militares alimentavam essa ideia e defendiam a necessidade de promover e preservar a imagem do país como uma grande potência democrática (FICO, 1997, p. 45-52). Considerando a recente

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liberação de documentos sigilosos da repressão, o objetivo deste artigo é examinar de que maneira o Ciex (Centro de Informações no Exterior), órgão especializado em assuntos estrangeiros, via os brasileiros que viviam na França, por não concordarem com a conjuntura política do Brasil, por terem sido expulsos, por terem ido morar lá por outras razões que não políticas ou mesmo por irem acompanhar o cônjuge ou os pais diretamente perseguidos (ROLLEMBERG, 1999, p. 52). O principal motivo que fazia essas pessoas virarem alvo do serviço de informações era o seu envolvimento com denúncias de ações repressivas do regime militar cuja repercussão tanto constrangia os militares. A primeira onda de brasileiros rumo ao exílio, que ocorreu logo após o golpe, foi composta, sobretudo, por algumas figuras políticas de esquerda, jornalistas e intelectuais, que tinham em comum a proximidade com o poder destituído. Nesse momento inicial, embora alguns exilados tenham ido diretamente para a França, Montevidéu concentrou a maior parte deles, transformando-se na capital do exílio dessa primeira fase. A ideia de exilar-se estava muito ligada à possibilidade de continuar a militância e articular a volta. Após a outorga do Ato Institucional n. 5, em 1968, e a consequente consolidação do aparato repressivo, outro grupo de brasileiros começou a partir para o exílio. Era composto majoritariamente por jovens militantes originários do movimento estudantil, do qual saíram para integrar a luta armada. O exílio foi vivido por eles como um momento fundamental de sua formação como indivíduos e profissionais. A experiência socialista no Chile, a partir de 1970, fez com que Santiago passasse a exercer grande atração sobre os exilados. O golpe de Estado chileno, em 1973, provocou a ida de uma segunda leva de brasileiros para a Europa, em especial Paris. A expulsão do continente representou uma nova fase do exílio. A ideia da volta distanciou-se e as dificuldades com a cultura e o idioma evidenciaram-se, tornando a inserção nas sociedades europeias bastante penosa para a maior parte dos exilados. Em suma, era pouco frequente que eles ficassem em apenas um país, em grande medida, pelas dificuldades de adaptação social e profissional. Cabe acrescentar que o exílio brasileiro não foi um fenômeno de massas, mas se concentrou especialmente em grupos intelectualizados da classe média. O exílio representava uma punição, as garantias constitucionais eram totalmente perdidas e viviase o chamado “desenraizamento”, isto é, o rompimento forçado com a pátria, a família e ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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a língua (RONIGER, 2009, p. 10). Ao mesmo tempo, surgia uma oportunidade de recomeçar a própria vida e também de criar novas estratégias para poder continuar a defender um projeto nacional e a lutar contra o regime. Criou-se uma tensão entre o pertencimento a uma nação e o princípio da cidadania. A partir de meados da década de 1970, as ideias de revolução, que haviam fundamentado grande parte do pensamento e das ações das esquerdas até então, foram perdendo espaço. O fortalecimento e a internacionalização dos temas relacionados aos direitos humanos proporcionaram uma importante sensibilização da opinião pública mundial para o tema do exílio, que passou a ter grande relevância. Desenvolveu-se uma espécie de ativismo transnacional que permitia aos exilados ressoar suas denúncias com um largo alcance (RONIGER, 2010, p. 104). A França foi um dos países que realizou uma das maiores políticas de recepção de exilados. Determinados grupos progressistas da sociedade francesa, já bastante sensibilizados pela problemática dos direitos humanos, capitanearam uma grande campanha de solidariedade em defesa do acolhimento de latino-americanos, sobretudo após a derrubada de Salvador Allende. A chegada deles ao país contribuiu para modificar a percepção dos franceses sobre aquela região. Somando-se a isso o fato de a França se reconhecer como uma “terra de asilo”,2 foi possível que os emigrados políticos fossem acolhidos pelo poder público francês e reconhecidos como refugiados. Assim, puderam gozar de determinados benefícios legais e materiais conferidos tanto pelo sistema estatal francês de proteção social como pelas redes associativas de solidariedade (FRANCO, 2007, p. 291). Observa-se que se constituiu, principalmente entre os exilados, uma memória bastante consolidada da França como um país onde prevaleciam os valores democráticos, a tolerância e, igualmente, o caráter pouco repressivo de sua força policial. Essa imagem já era bastante presente na década de 1970 e funcionou como um estímulo para que os exilados, ao menos os que podiam escolher o seu destino, fossem para aquele país. E mesmo que tenha havido um controle policial dos estrangeiros que viviam no território francês, isso nunca foi largamente divulgado. A partir dos depoimentos dos exilados, apenas suspeitava-se de uma possível troca de informações entre as polícias dos dois Estados (ROLLEMBERG, 1999, p. 144). No entanto, exilar-se não significou sair da esfera ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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de controle do aparato repressivo, tampouco figurou a possibilidade do exercício pleno das liberdades políticas nos países de acolhimento. Para investigar as representações que o Ciex construiu sobre os exilados a partir da vigilância de seu cotidiano na França, é necessário analisar como esse órgão se estruturava e o papel que exercia no complexo aparato repressivo da ditadura militar. O Sistema Nacional de Informações (Sisni) começou a ser montado em 1964 com a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI). O órgão, estruturado a partir de um projeto de Golbery do Couto e Silva, surgiu para atender à necessidade de consolidar o novo regime. Em pouco tempo, o SNI passou a ter muitos privilégios na esfera governamental e se tornou o órgão central do sistema. Seu primeiro chefe foi o próprio Golbery, que ganhou o status de ministro de Estado. Além de dispor de fartos recursos, todos os atos do SNI poderiam ser feitos sem a necessidade de publicação, ao contrário do que acontecia com os outros órgãos do poder público. O Serviço não sofria nenhum tipo de controle externo (FICO, 2001). Nos anos seguintes, o SNI começou a se ramificar, inserindo-se em todas as áreas da administração pública. Dentro dessa lógica, o Ciex foi criado em 1966, por meio de uma portaria secreta assinada pelo secretário-geral do Itamaraty, Manoel Pio Corrêa. Esse órgão, que não constava no organograma oficial do MRE, estava vinculado a este ministério, mas era subordinado ao SNI. Tinha a função especializada de produzir informações sobre assuntos estrangeiros e tinha como funcionários diplomatas de vários escalões radicados em diversos países (PENNA FILHO, 2004).3 Sob o comando do presidente Médici, o SNI passou a ser não apenas um órgão voltado para busca e análise de informações, mas, do mesmo modo, tinha a incumbência de estudar os problemas do país nas áreas política, econômica e social. Não tardou para que o serviço se convertesse em uma referência para o presidente em quase todos os assuntos (FIGUEIREDO, 2005, p. 177). Uma característica do SISNI foi que, além de invadir a vida privada de supostos “subversivos” no Brasil e, muitas vezes, no exterior, manteve íntimas relações com outras instâncias da repressão, como é o caso da polícia política e da censura (MARCELINO, 2006; LONGHI, 2005). O Ciex monitorava diariamente o que acontecia com os exilados no exterior e informava as autoridades brasileiras. Ao mesmo tempo, recolhia informações estratégicas ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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relacionadas à política, à economia e às questões militares de países que interessavam ao Brasil. Também era usual que acompanhasse a imprensa estrangeira e as publicações dos próprios exilados. Todavia, a produção de informações relativas a brasileiros que se dedicavam a denunciar no exterior a tortura e as demais práticas repressivas destacavase. Nesse sentido, a importância das observações do Ciex sobre determinado país era diretamente proporcional à presença de brasileiros naquela localidade. Isso se evidencia, por exemplo, no aumento da produção de informações sobre países europeus à medida que os brasileiros chegavam ao continente, principalmente após o golpe do Chile. Nota-se que, paulatinamente, esse órgão foi desenvolvendo um sofisticado aparelho de coleta, análise e distribuição de informações referentes a atividades políticas, intimidades e relações pessoais de exilados (PENNA FILHO, 2004, p. 166). Os estrangeiros que se empenhavam em atividades de oposição ao regime no exterior também foram vigiados e uma das formas de controle utilizadas pelo Itamaraty com relação a eles é observada em uma rígida política de concessão de vistos (SETEMY, 2013, p. 120). Contudo, mesmo antes da criação do Ciex, o Itamaraty e os diplomatas já tinham um tradicional e consolidado envolvimento com a produção de informações para monitorar brasileiros que viviam no exterior. A partir da década de 1930, já se observa o esforço do Poder Executivo brasileiro em criar um serviço de informações que ultrapassasse as fronteiras do país. E, desde então, a diplomacia brasileira começou a servir como mediadora dessas trocas de informações (SETEMY, 2013). Essa visão se contrapõe à perspectiva de que o Itamaraty servia apenas a interesses atemporais e suprapartidários. Na ditadura militar, as trocas de informações diplomáticas passaram a servir como um instrumento do aparato repressivo em seu objetivo de combate ao comunismo internacional. Os diplomatas colaboravam com o sistema exercendo atividades rotineiras, como a redação de informes sigilosos sobre o dia-a-dia de brasileiros exilados no exterior. Além disso, advogavam em foros internacionais a necessidade de ações repressivas conjuntas contra o suposto “perigo comunista”. O Itamaraty passou a integrar a comunidade de informações da ditadura militar. A comunidade de informações, da qual também faziam parte grupos de militares que ansiavam por um maior rigor punitivo – a chamada “linha dura”, mobilizava as ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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orientações de uma “utopia autoritária” de modo específico (FICO, 2001, p. 40-42). A defesa de valores de ordem moral e comportamental presente nas acusações formuladas por ela não se reduz a um mero subterfúgio para encobrir o que seria o seu verdadeiro objetivo: combater inimigos políticos. Pelo contrário, essa mescla faz parte da construção de seu discursivo de inculpação dos adversários do regime. Ademais, havia um contínuo esforço por parte dos órgãos de informações para influenciar, com uma narrativa que se supunha universal, as percepções e as ações dos outros setores do governo, tendo em vista que as informações eram distribuídas entre eles. O fato de os integrantes da comunidade de informações passarem por uma formação comum, na Escola Nacional de Informações (Esni) ou na ESG, o exercício profissional e, ao mesmo tempo, o convívio com seus pares provavelmente constrangia os agentes de falarem algo que destoasse das regras implícitas às suas atividades (ANTUNES, 2002, p. 57-59). Todos esses fatores contribuem para a percepção de uma homogeneidade nas práticas desse grupo. Por isso, a comunidade de informações pode ser entendida como um “corpo de especialistas”, já que o sistema de espionagem funcionava como um espaço de produção ideológica do Estado autoritário, uma espécie de “voz autorizada” dentro do regime, e o seu trabalho, indubitavelmente, contribuía para justificar o funcionamento do aparato repressivo como um todo. Os documentos do Ciex – fruto do trabalho de profissionais especializados – tinham caráter sigiloso e são, em sua maioria, relatórios sintéticos e analíticos, sem autoria definida, que visavam, principalmente, informar sobre a situação dos opositores ao regime militar. Ao ler esses documentos, deparamo-nos com o resultado de uma prática realmente metódica de indivíduos que faziam funcionar um complexo sistema cuja função era não apenas recolher informações, mas também produzir convicções que justificassem a perseguição aos seus adversários. O fundo do Ciex, localizado na Coordenação Regional do Arquivo Nacional em Brasília, está totalmente digitalizado e é organizado de maneira cronológica. Com relação ao tema do exílio brasileiro na França, observa-se que o tema era muito raro do momento da criação do órgão, em 1966, até aproximadamente 1973. Daquele ano em diante, vê-se proliferar informações sobre o cotidiano dos exilados no território francês. Há dados sobre a participação nas campanhas de defesa aos direitos humanos, na luta pela anistia, ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura

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além de observações sobre as viagens de brasileiros àquele país e, igualmente, análises sobre aspectos políticos, sociais e econômicos da França. Os relatórios, em sua maior parte, iniciam-se com um cabeçalho padrão do qual constam o grau de sigilo, a data, o assunto, os órgãos para onde seriam distribuídos e, ainda, a avaliação do grau de confiabilidade da informação ali veiculada. 4 A circulação desses documentos por vários órgãos que compunham o Sisni e até mesmo por outras instâncias da repressão dá sentido à expressão “comunidade de informações”, com a qual os próprios agentes se identificavam. O que a análise desses documentos permite entender não são os movimentos de oposição dos exilados na França tampouco a experiência do exílio. Por meio deles, abre-se a possibilidade de compreender como esses órgãos captavam as estratégias de ação dos exilados naquela configuração histórica e, assim, acessar a “lógica da suspeição” que impulsionava o funcionamento do sistema de informações (MAGALHÃES, 1997). A situação dos exilados era sempre muito delicada e ambígua. Ao mesmo tempo em que eles se encontravam em um país livre, a sua condição jurídica e social era muito frágil. Havia sempre o medo de perder o status de refugiado ou mesmo de ser expulso da França. A liberdade de que dispunham era condicionada a uma série de negociações. Todavia, revisar a construção memorialística da França como uma terra de refugiados, considerando esses obstáculos impostos pelas autoridades francesas às manifestações políticas dos exilados, não significa menosprezar o fato de que o país foi efetivamente um lugar privilegiado e estratégico para o exercício de oposição à ditadura militar brasileira.

Referências ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI e ABIN: uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2002. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. ____. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005.

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FRANCO, Marina. Exilio. Argentinos en Francia durante la dictadura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007. LONGHI, Carla Reis. Ideias e práticas do aparato repressivo: um olhar sobre o acervo do Deops/SP - a produção do SNI em comunicação com o Deops/SP. 2005. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo. MAGALHÃES, Marionilde Dias Brephol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 17, n. 34, p. 203-220, 1997. MARCELINO, Douglas Attila. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livro e de diversões públicas nos anos 1970. 2006. 300 p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty e a repressão além-fronteiras: o Centro de Informações do Exterior – CIEX (1966-1986). In: FICO, C. (Org.). 1964-2004 - 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p. 163-172. ROLLEMBERG, Denise. Exílio. Entre raízes e radares. Record: Rio de Janeiro, 1999. RONIGER, Luís. Exilio y política en América Latina: nuevos estudios y avances teóricos. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, 19:2, 2009. ____. Exílio massivo, inclusão e exclusão política no século XX. Dados, Rio de Janeiro, n. 53, n. 1, p. 91-123, 2010. SETEMY, Adrianna Lopes. Sentinelas das fronteiras: o Itamaraty e a diplomacia brasileira na produção de informações para o combate ao inimigo comunista (1935-1966). 2013. 341 p. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Notas 1

Doutorando PPGHIS/UFRJ

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France Terre d’Asile é também o nome de uma das associações mais importantes de auxílio a refugiados.

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O CIEX ainda não foi objeto de estudos mais aprofundados. O mistério e a desinformação em torno do órgão são ainda bastante grandes que, em publicações e mesmo em trabalhos acadêmicos, a sigla é erroneamente identificada como Centro de Informações do Exército, que vem a ser o CIE. 4

Com relação ao sigilo, os documentos eram classificados em reservados, confidenciais, secretos e ultrassecretos e, no que se refere ao grau de avaliação, recebiam notações tais como: A-1, A-2, A-3, que representavam alta confiabilidade nas informações, indo até C-3, que indicava o menor nível de certeza. A atribuição desse grau estava relacionada à fonte que havia fornecido a informação.

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Os documentos da comunidade de informações e segurança nos anos ditatoriais (19641985): uma análise crítica Vitor Garcia1

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar algumas das características gerais dos documentos produzidos pela comunidade de informações e segurança no decorrer da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Essa análise permite compreender que, apesar do texto principal contido em cada um desses documentos ser de notável relevância, mostra-se necessário buscar relacioná-lo com os demais aspectos desses documentos, que dizem respeito à forma com que foram produzidos e disseminados. Trata-se de um exercício importante para entender mais profundamente não só a lógica de produção e disseminação de informações no interior e entre cada um desses órgãos, assim como sua estrutura e funcionamento. Palavras-chave: comunidade de informações e segurança; ditadura civil-militar.

Abstract: This article aims to examine some of the general characteristics of the documents produced by the “information and security community” during the Brazilian civil-military dictatorship (1964-1985). This analysis allows us to understand that, despite the main text contained in each one of these documents are of considerable importance, it is necessary to seek relate it with the other aspects of these documents, which relate to the way they were produced and disseminated. It is an important exercise to understand more deeply not only the logic of production and dissemination of information within and between each of these components, as well as its structure and functioning. Keywords: “information and security community”; civil-military dictatorship.

Os arquivos secretos da ditadura em tempos democráticos Com o fim da ditadura e o restabelecimento da democracia, começaram a ser implementadas uma série de políticas públicas visando o esclarecimento dos casos de violações de direitos humanos perpetrados nos anos ditatoriais. Uma das linhas de atuação desenvolvidas por essas políticas públicas foi o desarquivamento e desclassificação de milhares de páginas de documentos produzidos por órgãos de informações e polícia política durante esse período. Justamente porque, quando se faz

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referência à questão da violência na última experiência autoritária brasileira, é bastante comum a associação com as atividades desempenhadas pela chamada comunidade de informações e segurança. Comunidade de informações e segurança é uma expressão criada na época pelos seus próprios integrantes, sendo mencionada em vários documentos produzidos por esses órgãos. Essa expressão faz referência a um dos mais importantes pilares para a construção e consolidação da ditadura brasileira, que foi a política de criação, ampliação, desenvolvimento e sofisticação de órgãos da administração pública, em âmbitos federal e estadual, com o objetivo de espionar milhares de brasileiros que poderiam de alguma forma ser considerados contestadores do regime vigente, e, em alguns casos, aplicá-los punições, que variavam entre demissões, exonerações, prisões, torturas e, até mesmo, assassinatos. O Serviço Nacional de Informações (SNI), criado ainda em 1964, era o órgão central desse sistema que, em poucos anos, deixou um rastro de centenas de mortos e desaparecidos políticos. Não se tratava, porém, de uma comunidade tão harmônica quanto o termo parece sugerir, mas sim permeada por conflitos, disputas, tensões e rivalidades entre os órgãos e no próprio interior de cada um deles. Constituía-se de dezenas de órgãos com competências muitas vezes bastante distintas. Tinha ramificações em universidades de todo o país, no interior de vários ministérios, em empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias, unidades do Exército, Marinha e Aeronáutica, além de nas demais forças policiais como Polícias Civil e Militar dos respectivos estados, além da própria Polícia Federal e do SNI. Esses órgãos, portanto, exerciam funções muito diferenciadas. Alguns deles estavam mais direcionados para o desempenho de atividades voltadas para a burocracia do próprio ambiente no qual estavam instalados (Assessorias de Segurança e Informações – ASI – instaladas em empresas públicas e universidades, por exemplo); outros, para atividades de inteligências mais amplas, direcionadas para diversos setores da vida política nacional (é o caso do SNI); ainda outros, além das próprias atividades de inteligência, desempenhavam ações de repressão política, lançando mão de métodos extremamente violentos para calar as vozes dissidentes (como é o caso dos Destacamentos de Operações de Informações – DOI-Codi).

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Portanto, existiam muitos agentes de informações nos quadros da administração pública, trabalhando em órgãos com lógicas de funcionamento distintas, exercendo atividades diferentes. Mesmo com todas essas particularidades, esses agentes apresentavam formas de interpretar o passado, assim como leituras do presente e projeções sobre o futuro muitas vezes bastante semelhantes, conferindo certo caráter de identidade ao grupo (MOTTA, 2010, p.45)2. Essa identidade era forjada a partir de diversos instrumentos, dentre eles: o processo de seleção de pessoal, a formação técnica e a própria experiência profissional. O processo de seleção de pessoal para integrar esses órgãos tinha como pré-requisito básico a orientação político-ideológica, pautada na época pela lógica do anticomunismo. Muitos dos agentes frequentaram ambientes de especialização profissional, seja fazendo cursos de informações em instituições nacionais - como a Escola Superior de Guerra (ESG), a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), a Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme) e a Escola Nacional de Informações (EsNI) – seja em instituições internacionais – como a Escola de Guerra de Paris e a Escola das Américas, sediada no Panamá – além de participarem de palestras e conferências (QUADRAT, 2012, p.22). Por fim, a imersão que o próprio cotidiano de trabalho exige é também um fator de coesão e identidade, visto que as práticas e objetivos desses agentes muitas vezes eram semelhantes, inclusive sendo frequente a cooperação entre esses órgãos, tanto na troca de informações, como na orquestração de ações conjuntas, além de se reunirem periodicamente para discutir assuntos referentes às suas respectivas áreas de atuação. Importante destacar que, como já dito, não se tratava de uma comunidade tão harmônica quanto o termo parece sugerir. Segundo uma análise da época, esses órgãos “vivem um intenso processo competitivo que em certas ocasiões, raia à antagonização” (LAGÔA, 1983, p. 60). Portanto, as agências de informações, juntamente com seus integrantes, tornaram-se, ao longo dos anos ditatoriais, atores políticos importantes no cenário nacional que, se em determinados momentos entravam em disputas e conflitos entre si, noutros souberam agir em conjunto, a partir de métodos e ações bastante semelhantes, inclusive no que se refere à produção de documentos. Compreender sua atuação é um desafio fundamental para analisar as chamadas violações dos direitos humanos nessa

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época e a própria ditadura em si, desafio esse que vem sendo encarado por vários estudiosos nas últimas décadas. Durante os anos de 1980 e 1990 documentos desses órgãos vinham a público, principalmente por meio de iniciativas esparsas e descontínuas. Destacaram-se, nesse momento, a produção de jornalistas que, por meio de esforços pessoais, conseguiram ter acesso a arquivos privados, sobretudo de militares que haviam levado documentos dos órgãos que atuaram para seu próprio domicílio e decidiram, em determinado momento, torná-los públicos. Duas publicações se destacaram especialmente nesse período: a primeira delas foi o livro publicado pela jornalista Ana Lagôa, que a partir da documentação que dispunha produziu uma importante análise sobre a estrutura e funcionamento da comunidade de informações e segurança, dando especial atenção ao SNI (LAGÔA, 1981). O outro, publicado pelo jornalista Ayrton Baffa também foca especialmente no SNI, dando detalhes minuciosos acerca do seu funcionamento (BAFFA, 1989). Essas publicações, que utilizaram de documentos secretos, juntamente com outras baseadas em entrevistas com militares, ajudaram bastante a compreender a lógica de funcionamento da chamada comunidade de informações e segurança nos anos ditatoriais. Mas, foi somente a partir dos anos 2000 que esse tipo de documentação, por meio de políticas públicas específicas, passou a ser disponibilizado de forma sistemática aos pesquisadores e demais interessados. No ano de 2005, foi recolhida uma série de fundos documentais que estavam sob a guarda da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), sucessora do extinto SNI nas atividades de inteligência de âmbito nacional, e colocada sob a responsabilidade do Arquivo Nacional, para digitalização e disponibilização para consulta. Além de documentos do SNI, também havia documentação do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e da Comissão Geral de Investigações (CGI). Alguns anos depois, em 2009, é lançado oficialmente pelo governo federal o projeto Memórias Reveladas, “que interliga digitalmente o acervo recolhido ao Arquivo Nacional, após dezembro de 2005, com vários outros arquivos federais sobre a repressão política e com arquivos estaduais de 15 unidades da federação, superando 5 milhões de páginas de documentos”, como relatado no site do próprio Arquivo Nacional. Uma interessante

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conquista para os estudiosos do período, familiares de ex-presos políticos e demais interessados na história recente do país. E é basicamente sobre essa documentação que foi disponibilizada que serão formuladas as próximas considerações.

Os documentos da comunidade de informações e segurança: apontamentos gerais Os documentos que circularam na comunidade de informações e segurança são de grande importância para se pensar de que maneira se estruturavam e funcionavam esses órgãos. O conteúdo da documentação, mais especificamente seu texto principal, é fundamental para refletir sobre as ideias, impressões, sentimentos e convicções compartilhadas nesse momento específico da história do país por servidores do Estado que, ao longo dos anos, se transformaram em importantes atores políticos na dinâmica político-militar governamental: os agentes de informações. Mas além do texto principal, a própria estrutura, ou seja, a forma do documento, é de especial relevância para se realizar uma análise crítica mais aprofundada sobre essa documentação. Essa é justamente a proposta deste artigo, que visa apontar algumas características gerais desses documentos, para além do próprio texto principal. Esses documentos apresentam uma relativa padronização comumente adotada pelos órgãos de informações na época ditatorial, como se é possível constatar pela observação de outros papéis do mesmo tipo produzidos nesse período. Essa padronização se refere a um cabeçalho que contém, frequentemente, os seguintes pontos: assunto, origem, classificação, difusão, difusão anterior, anexos e referências (QUADRAT, 2012, p. 30). Trata-se de uma forma de padronização semelhante, mas não necessariamente idêntica, visto que alguns desses pontos podem ser omitidos ou mesmo apresentar variações sutis de nomenclatura de órgão para órgão, ou ainda de documento para documento. No caso do SNI, são utilizados, freqüentemente: data, assunto, referência, avaliação, difusão, origem e anexo. Já no Cisa, são adotados: data, assunto, origem, órgão informante, difusão, difusão anterior, referência, anexo. Mesmo com essas variações, as formas de apresentação dos documentos permanecem bastante parecidas. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 150

Essas informações contidas no cabeçalho são valiosas para a análise historiográfica. Com elas, o historiador pode acompanhar a trajetória desses papéis – pela apresentação da difusão anterior e da difusão -, assim como a confiabilidade dada pelo órgão ao seu conteúdo – pela classificação/avaliação através do sistema letra-número, que consiste na qualificação da idoneidade das informações apresentadas através da variação das letras de A a F e da veracidade com a utilização de uma numeração de 1 à 63 – além de analisar, através dos níveis de sigilo – ultra-secreto, secreto/sigiloso, confidencial e reservado – a própria importância que era dada pelos agentes ao conteúdo das informações ali contidas, assim como sua natureza. De acordo com Ayrton Baffa, o regulamento para salvaguarda de assuntos sigilosos, criado em 1967, no governo Castelo Branco, estabelecia as seguintes definições para os documentos: Sigilosos – de conhecimento restrito, requeriam medidas especiais de salvaguarda para sua custódia e divulgação. Confidenciais – sigilo mantido por interesse do governo e das partes. Reservados – sigilo vedado ao público em geral. Ultra-secretos – somente assim classificados pelo presidente e vice-presidente da República, pelos ministros de Estado, secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, chefe do EMFA, SNI, do Estado Maior das Forças Armadas e de cada uma das Armas (BAFFA, 1989, p. 14).

Outro aspecto importante presente é a classificação formal dada aos próprios documentos. Havia uma distinção marcante entre um Informe e uma Informação, por exemplo. Um Informe era o resultado de determinada coleta de dados feitas pelo agente que o produziu. A obtenção de Informes é o subsídio fundamental para a produção de uma Informação que, por sua vez, teoricamente, apresenta dados mais precisos e fundamentados sobre o assunto que se está discorrendo. Atentar para o fato de se estar lendo um Informe ou uma Informação, portanto, não é um mero detalhe, mas sim mais um aspecto importante para se entender qual o nível de credibilidade dado aquele documento pelo próprio órgão que o expediu. Essa padronização permite a consecução, portanto, de um exercício importante para que se possa fazer uma consistente análise crítica das fontes, que se baseia na

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tentativa de identificar a dinâmica de circulação dos papéis em questão. De uma maneira geral, esses documentos tinham duas formas de circulação diferentes. Havia os que ficavam restritos à burocracia do próprio órgão e outros, como era bastante comum, eram disseminados para além do próprio órgão que os produziu, circulando seja entre outras agências de informação, seja entre ministérios civis e militares. Durante a ditadura, existiam os ministérios da Marinha, Aeronáutica e Exército, além do próprio SNI, que tinha status de ministério. Os órgãos de informações e de polícia política estabeleciam ligações mais ou menos diretas com esses ministérios; e estes, por sua vez, com a Presidência da República. É de extrema importância assinalar que a produção desses documentos envolvia, portanto, um duplo aspecto: se por um lado, são resultado de ações políticas – escritos apresentando os desdobramentos de prisões, interrogatórios, ou mesmo, o trabalho de agentes infiltrados em passeatas e reuniões de grupos de oposição ao regime constituído – por outro, são instrumentos de ações políticas – a partir das impressões, interpretações, experiências e investigações desses agentes, formulavam-se desde operações no âmbito dos próprios órgãos, como até mesmo ações conjuntas e transformações mais amplas na política de segurança nacional. Portanto, esses documentos estão intimamente ligados à ideia de ação política. São causa e consequência dessas ações, refletindo uma experiência profissional de sujeitos que exerciam funções onde muitas vezes se misturavam a coleta de informações com o exercício da ação política direta. Essa constatação exige uma constante reflexão na análise desses papéis. Uma leitura atenta indica que eles não refletem somente os sentimentos e impressões dos agentes que os escrevem, mas também uma maneira de servir de instrumento de ação política a fim de concretizar determinados anseios e objetivos. É importante, portanto, considerar que o conteúdo presente nesses documentos gerava “efeitos extradiscursivos” (FICO, 2001, p. 21) que, de forma alguma, podem ser desconsiderados no momento de análise das fontes.

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Referências BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI: o retrato do monstro de cabeça oca. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1989. FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. LAGOA, Ana. SNI: como nasceu, como funciona. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. MAIA, Edson Carlos. Os serviços de inteligência: origem, organização e métodos de atuação. Rio de Janeiro: ESG, 1992. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Incômoda Memória: os arquivos das ASI universitárias. Acervo, revista do Arquivo Nacional. V. 21. n. 2. (jul/dez 2008). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. QUADRAT, Samantha Viz. A preparação dos agentes de informação e a ditadura civilmilitar no Brasil (1964-1985). Varia História, Belo Horizonte, v. 28, n° 47, p. 19-41: jan/jun 2012.

Notas 1

Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Bolsista Reuni. 2

O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, ao analisar a atuação dos agentes que serviam nas Assessorias de Segurança e Informações (ASI) de universidades públicas e particulares de todo o país, assinala a “influência exercida por valores da cultura conservadora sobre os integrantes da comunidade de informações e segurança”, complementando que esses agentes “apresentavam disposição anticomunista típica das forças de segurança e repressão brasileiras, mantendo-se vigilantes, mesmo num quadro de evidente declínio dos partidos comunistas”. A interpretação de Motta reforça a ideia de que esses agentes apresentavam elementos comuns na forma de se pensar a sociedade, contribuindo para a formação de uma identidade própria dos agentes que compunham esses órgãos. 3

A classificação das fontes a partir do sistema letra-número se dava da seguinte maneira: “A Fonte absolutamente idônea; B Fonte usualmente idônea; C Fonte razoavelmente idônea; D Fonte sempre idônea; E Fonte inidônea; F Não pode ser julgada a idoneidade da fonte”. No que diz respeito aos números: “1 Informe confirmado por outras fontes; 2 Informe provavelmente verdadeiro; 3 Informe possivelmente verdadeiro; 4 Informe duvidoso; 5 Informe provável; 6 A veracidade do informe não pode ser julgada” (MAIA, 1992, p. 21).

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Sessão 4

ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA

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O MDB no acervo do Dops-ES: controle ideológico e resistência política no Espírito Santo Amarildo Mendes Lemos1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo verificar elementos da prática política dos integrantes do Movimento Democrático Brasileiro, em especial de Max de Freitas Mauro. Por meio da análise dos documentos dessa instituição disponíveis no Arquivo Público Estadual do Espírito Santo foram verificados elementos presentes da prática política dos emedebistas, conflitos internos do partido, bem como os equívocos cometidos por parte de agentes da repressão. Os estudos sobre aparato repressivo e controle político realizados por Carlos Fico (2001) e por Pedro Ernesto Fagundes (2011) subsidiaram a leitura dos documentos da polícia política capixaba. Assim, vislumbramos além da estrutura repressiva montada com a Comunidade de Informações os diversos matizes ideológicos que se fizeram presentes nessa agremiação política. Palavras-chave: Max Mauro; história; política; autoritarismo; MDB.

Abstract: This study aims to determine elements of political practice of the members of the Brazilian Democratic Movement, in particular Max de Freitas Mauro. Through analysis of the documents of the institution available in the Public Archives State of Espírito Santo were checked elements present political practice of emedebistas, internal party conflicts, as well as the mistakes committed by agents of repression. Studies on the repressive political control and performed by Carlos Fico (2001) and Pedro Ernesto Fagundes (2011) supported the reading of the documents of the political police capixaba. Thus, we glimpse beyond the repressive structure assembled with the Community Information various ideological hues that were present at that party on. Keywords: Max Mauro; history, politics; authoritarianism; MDB.

Introdução O presente trabalho tem como objetivo verificar elementos da prática política dos integrantes do Movimento Democrático Brasileiro, em especial de Max de Freitas Mauro que foi uma importante liderança que constituiu o grupo dos chamados históricos e chegou ao Governo do Estado após a Ditadura Militar nas eleições de 1986. A partir dos ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 155

documentos da Delegacia de Ordem Política e Social do Espírito Santo podemos identificar a trajetória política de personalidades que ocuparam importantes postos nos poderes públicos capixabas. Ao mesmo tempo essas fontes nos permitem apontar aspectos da forma de controle ideológico e político exercido pelos agentes policiais do Dops do Espírito Santo sobre a população. Por meio da análise dos documentos dessa instituição disponíveis no Arquivo Público Estadual do Espírito Santo foram verificados elementos presentes da prática política dos emedebistas, os conflitos internos do partido, bem como os equívocos cometidos por parte dos agentes da repressão. Os estudos do aparato repressivo e do controle político realizados recentemente têm procurado desvendar o modus operandi da polícia política durante a Ditadura Militar e nos trouxe importantes reflexões para a análise das fontes consultadas. Apontamentos específicos sobre o Espírito Santo, realizados por Pedro Ernesto Fagundes (2011), subsidiaram a leitura dos documentos da polícia política capixaba. Assim, vislumbramos além da estrutura repressiva montada com a Comunidade de Informações os diversos matizes ideológicos que se fizeram presentes nessa agremiação política. Junto com a resistência política exercida junto à sociedade capixaba em defesa dos trabalhadores e no sentido de por fim ao regime instaurado com o golpe militar de 1964 destacamos a forma com que alguns emedebistas capixabas se articularam com importantes políticos do Brasil e tentaram isolar outros grupos internos. A produção sobre a história política capixaba do período da ditadura militar ainda é incipiente. O professor Dr. Pedro Ernesto Fagundes da Universidade Federal do Espírito Santo tem pesquisado e incentivado a pesquisa nos arquivos da repressão política do Espírito Santo. Sua iniciativa apresenta como marco teórico a obra de Carlos Fico que procurou desvendar o modus operandi da polícia política durante a Ditadura Militar. Outro pesquisador que tem se destacado nessa universidade pesquisando e orientando estudantes no estudo desse período da história recente é o professor Dr. Valter Pires Pereira.

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A partir desses mesmos marcos teóricos traçamos uma trajetória que evidencia alguns aspectos da história política capixaba. A pesquisa nos acervos da Delegacia de Ordem Política e Social se faz importante para desvelarmos as formas de dominação realizadas a partir do controle político e ideológico. O monitoramento deixa transparecer equívocos cometidos pelos agentes e também um pouco da dinâmica interna do partido de oposição ao regime, o MDB.

Max Mauro e as Associações Pró-Melhoramentos: organização comunitária como trama contra o regime militar Max de Freitas Mauro participou de atividades políticas desde os dez anos de idade. Nessa época ele atuava nas campanhas do seu pai, Saturnino Rangel Mauro, um dos fundadores do Partido Trabalhista Brasileiro no Espírito Santo em 1947. De 1947 a 1950 Saturnino foi presidente do PTB no ES e teve sua trajetória política ligada ao getulismo desde a Revolução de 1930 quando tocava o instrumento musical bombardino na banda de música do Exército. Saturnino participou do sindicato dos ferroviários e depois do sindicato da cooperativa de consumo dos ferroviários quando foi presidente do sindicato dos comerciários. Em 1947 foi eleito deputado estadual pelo PTB e Max o acompanhava na vida política. O getulismo foi parte da formação política de Max Mauro que saiu do Espírito Santo para estudar Medicina na Universidade Federal da Bahia. Formado em 1962 retornou ao estado atuando como médico do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários e Empregados em Serviços Públicos (Iapfesp) e posteriormente do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB). Junto com seu pai atuou na fundação do partido do Movimento Democrático do Brasil, após o Ato Institucional número 2 que extinguiu os partidos criados entre 1945 e 1964. Consta no processo instaurado para investigar a atuação de policiais no Esquadrão da Morte no Espírito Santo o relato de um morador do município de Vila Velha que foi preso pelo Dops por colher assinaturas para o MDB. João Mariano, membro da Igreja Adventista em Vila Velha, percorria as casas dos moradores com um livro de assinaturas ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 157

que seria entregue a Max Mauro e a Saturnino Rangel Mauro. Por esse motivo João ficou detido, sendo acusado de subversivo. Nenhum dos familiares dele foram informados e a polícia recusava-se a reconhecer sua prisão. Após reivindicação dos membros da Igreja em prol de Mariano ele foi solto. João Mariano chegou a escrever um livro intitulado Uma noite no inferno para narrar os fatos que presenciou. Tortura e mortes realizadas pelos membros da força pública deixaram esse cristão, que desconhecia essa realidade vivida nas delegacias e cadeias, perplexo (GUIMARÃES, 1978, p. 240; 247). Em 1970 Max Mauro foi eleito como prefeito do município de Vila Velha. Sua administração se pautou pela proximidade com o movimento social. Fernando João Pignaton aponta que essa aproximação foi caracterizada pelo “peso do estatismo populista herdado de seu pai” (2005, p.37). A crítica de Pignaton deve ser contextualizada com o fato dele não ser simplesmente um cientista político como se vê em sua qualificação. Ele foi um ator político, membro do Partido Comunista Brasileiro que vivenciou o debate sobre o orçamento paricipativo na década de 1980 em grupo político que fez oposição ao de Max no município de Vila Velha, naquele momento. Nesse sentido, o conceito de populismo por ele adotado aparece de forma vaga, sem uma definição precisa. Além disso, durante o período em que Saturnino atuava politicamente, os comunistas apoiavam seu partido e segundo o comunista Benjamim Campos, diante da certeza de rejeição de um projeto legislativo, ele o fez por meio de Saturnino Rangel Mauro. Dessa forma vemos que existia afinidade de Saturnino com o comunista Benjamim Campos, que se destacou por sua atividade política em defesa dos trabalhadores.2 Saturnino e Max Mauro atuaram diretamente na organização dos movimentos comunitários que culminou na fundação Associação Pró-Melhoramentos (APM) de Jardim Marilândia em 1967 (KROHLING, 1997; PIRES, 1993). Segundo relato do Sr. Almir Agostine essa associação, que levava essa nomenclatura para afastar reações do aparato repressivo, foi resultado da irradiação do movimento da Associação de Moradores de São Torquato que havia sido organizada pelo PCB que naquele momento divergia de Saturnino Rangel Mauro (PIRES, 1993, p. 121)

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A partir da iniciativa do Sr. José Silvério Machado, antigo líder sindical aposentado conhecido como Corró, de Saturnino e de Max outras APM’s foram fundadas nos bairros Santa Rita e Alto Cobi. A tradição oposicionista do município e a atuação de Max Mauro junto aos movimentos sociais atuaram positivamente em sua eleição como prefeito em 1970. Max procurou administrar a prefeitura com respaldo das lideranças populares. As APM constituíram-se, em sua gestão, em interlocutoras privilegiadas. Max realizava periodicamente reuniões com a diretoria das APM no sentido de discutir as obras reivindicadas pelas comunidades. Essa experiência constitui-se como precursora do que mais tarde veio a se chamar de Orçamento Participativo, quando as comunidades passam a influenciar no direcionamento do orçamento público (PIRES, 1993, p.121). A organização dos movimentos populares foi abortada pelo autoritarismo estatal que passou a atrelar as APM’s ao Estado com a intervenção da Secretaria de Trabalho e Promoção Social, no governo de Arthur Carlos Gerhardt Santos, que inseriu nos estatutos dessas associações no artigo terceiro o seguinte: “O Movimento Comunitário de cada bairro não tem fim político-partidário, nem sectário, não excluindo de sua organização e benefícios, pessoas ou grupos, em função de raça, [...] religião ou ideologia, desde que esta última não seja nociva ao regime” (PIRES, 1993, p. 122). Nesse contexto, o aumento da repressão representado pelo Ato Institucional número 5 comprometeu essa iniciativa. Max e Corró foram intimados a prestar esclarecimentos, eles foram acusados de tramar contra o regime militar (FERRI, 2009, p. 153).

Arquivos da repressão e da resistência: controle ideológico e prática política A política em defesa dos interesses populares levou à criação de uma ficha de Max Mauro na Delegacia de Ordem e Política Social. Vale ressaltar que tanto os políticos da Arena quanto os políticos da oposição eram igualmente monitorados. Havia um controle ideológico e social amplo e organizado por meio da Comunidade de Informações. O sistema repressivo integrava polícias estaduais, Marinha, Aeronáutica e a centralização e comando das ações de controle político concentravam-se no Exército (FICO, 2001).

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Nos arquivos do Dops vê-se que a ideologia política do MDB era, em linhas gerais, pautada na defesa da democracia liberal com desenvolvimento e justiça social. A defesa de uma sociedade mais justa também fazia parte do projeto de organizações que não participavam da luta política nos mesmos moldes do MDB. Parte da esquerda adotou a luta armada como opção para se alcançar esse caminho. Esses grupos que pretendiam a revolução já haviam assumido essa posição antes mesmo do golpe de 1964 e queriam suprimir a democracia liberal e instaurar a ditadura do proletariado. Nesse sentido, Denise Rollemberg mostra que o isolamento da esquerda revolucionária foi fruto da recusa da sociedade que não se identificou com seu projeto. Rollemberg contesta o discurso apregoado na redemocratização que os revolucionários lutaram pela democracia. Pelo contrário, para a esquerda armada a “democracia era burguesa, liberal, parte de um sistema que se queria derrubar. Após a revolução, o socialismo seria o caminho para se chegar à verdadeira democracia, da maioria, do proletariado” (ROLLEMBERG, 2003, p. 48). Os emedebistas atuavam na legalidade, na oposição consentida, era como se dizia o “partido do sim” e a Arena o “partido do sim, senhor”. Nas eleições de 1974 o MDB publica um livreto formulado com vistas a explicar ao eleitor o programa do partido e sua organização institucional. Os problemas vividos pela população são abordados em tópicos que incluem a questão da mulher, da juventude, dos sindicatos, da reforma agrária, do menor abandonado, da habitação, do nacionalismo, do INPS, entre outras temáticas. O caráter popular e progressista permanece como a marca do partido, que foi o grande vitorioso das eleições de 1974. Esse ano marcou o início da derrocada da Arena na política eleitoral e o crescimento do MDB com uma plataforma política que incluía a justiça social.3 Ao articular o ideal de desenvolvimento econômico e justiça social os emedebistas refletiam as heranças trabalhistas de muitos políticos vinculados ao extinto PTB, alvo principal dos militares golpistas em 1964. Dessa forma pertencer ao MDB, e em especial a alas que defendiam os direitos políticos e sociais dos trabalhadores, significava não estar em condições de participar da

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sociedade, ou seja, havia restrições como aquisição de porte de arma e emprego como segurança patrimonial para essas pessoas.4 Existia o Atestado de Ideologia Política que era expedido após investigação realizada pelos agentes do Dops. O interessado pagava uma taxa na Secretaria da Fazenda e depois fazia o requerimento do documento ao delegado que decidia pela expedição ou não do mesmo (ver imagens abaixo). O critério era portanto a ideologia política da pessoa, ela não podia entrar no rol dos oposicionistas do regime militar para estar apta a receber sua certificação. Esta era requerida para diversos fins como porte de arma e conseguir emprego de vigilante em empresas como Samarco ou Minas Forte, conforme consta no pedido de busca feito pelo delegado da Dops para expedição dessa modalidade de documento expedido naquele contexto em que as liberdades políticas se encontravam cerceadas pelo Estado.5

Porém, a vigilância realizada denuncia outros matizes ideológicos. Vemos em outros documentos consultados que o clientelismo político também se fez presente na

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prática política de atores que participavam do MDB, alguns dos quais inclusive postulavam inclinação para a ideologia comunista. Num documento da Polícia Militar de Cachoeiro de Itapemirim, o candidato do MDB-3, o Coronel da Reserva da Polícia Militar Higino Bernardes dos Santos, acusou que os membros do MDB-1, “elementos conhecidíssimos nesta cidade e mesmo por autoridades federais, como de esquerda e que professam ideologia contrária ao Regime Brasileiro, que vêm liderando a Campanha Política de Gilson Carone, procuram tumultuar o processo político”.6 O documento escrito pelo referido coronel ensejou a investigação dos atos do MDB-1. Isto resultou em observações cujo conteúdo reflete tanto a pregação contra o regime militar feita em comícios dirigidos às massas quanto a incorporação do clientelismo político na estratégia para a eleição de Gilson Carone. Os militares dão conta que numa reunião ocorrida em 25 de outubro de 1972 na residência do médico João Madureira estiveram presentes Demistoclides Batista (Batistinha apontado como “o agitador comunista”), Deusdedth Batista, Gilson Carone, Roberto Valadão Almokdice (vice-prefeito à época e que teve um irmão morto por ocasião da Guerrilha do Araguaia em 1973), Paulo Domingues, Hélio Carlos Manhães, Gelson Moura, Galdino Theodoro da Silva, Abgard Torres Paraíso, sendo colocado para fora o estudante Sancler. Nessa reunião teria sido traçada uma estratégia de provocação ao regime e dada a resistência de alguns participantes em proceder de tal forma Paulo e Roberto teriam se irritado exclamando que “não arredariam os pés quanto às provocações, pois era um desejo do partido e do líder, pois passariam como vítimas e provocariam uma intervenção Federal na área”.7 No mesmo relatório a prática clientelista fica caracterizada nos seguintes pontos: 5- Consta ainda que está havendo por parte do MDB-1 (pró-candidatura Gilson Carone), a compra pelo dinheiro, que ofereceram ao Sr. Alberto Ferraço (em Jaciguá) a quantia de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros), ao Sr. Joanito Rosseto (em Burarama) a quantia de Cr$ 7.500,00 (sete mil e quinhentos cruzeiros), ao Sr. Leandro Bazoni foi oferecido Cr$ 1.000,00 (hum mil cruzeiros e um emprego a partir daquele momento, ao Sr. Luiz Miranda (Bairro do Amaral) Cr$ 3.000,00 (três mil cruzeiros); 6- Consta ainda que mais de 200 (duzentas) pessoas foram colocadas na Prefeitura, constando nas folhas de serviços de obras, todavia, sem lugar definido para o trabalho; ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 162

7- Que elementos do MDB-1, estão usando medicamentos fornecidos pela Sec de Saúde do Estado, para fazer propaganda política, usando para tanto, envelopes com o timbre externo do comitê de propaganda daquela agremiação partidária, conforme xeroques anexo; 8- Foi sabedor esta agência que os vereadores Luiz Gonzaga, Astor Dilsn dos Santos e Alencar Beiriz Aarão, foram comprados pela cúpula do MDB para votar crédito de suplementação, o qual viria acobertar dívidas efetuadas fora do orçamento;8

A veracidade desses documentos não pode ser verificada com o material disponível, mas não está longe das práticas recorrentes na política eleitoral brasileira. Ao mesmo tempo em que o MDB de Cachoeiro de Itapemirim era investigado pelo clientelismo político, ele também se caracterizava por se opor ao regime político. São contradições presentes na realidade política, parte da experiência apontada nessas fontes. A fiscalização dos gastos públicos era, pelo visto, algo que não chegava a atingir eficazmente os militares e seu partido de apoio, nem a oposição consentida, representada pelo MDB, já que esses apontamentos não geraram nenhuma punição pelos supostos desvios administrativos. Isso não significa, todavia, que as práticas democráticas defendidas pelos integrantes do MDB não fizessem parte daquela instituição ou que a corrupção fosse uma constante no partido, não dá pra medir isto nem é objetivo desse texto. Mas fica registrado que a tutela sobre o eleitorado era parte da estratégia da cúpula cachoeirense que reproduziu aquela forma de aliciamento do eleitorado. Em 1974 no plano nacional, a vitória do MDB sobre a Arena não foi, contudo, obra simplesmente do clientelismo político. O partido representava um anseio presente na sociedade brasileira. A sociedade queria o retorno do sistema democrático e o fim do autoritarismo dos governos militares. No Espírito Santo o MDB não obteve os mesmos resultados que no resto do país, mas conseguiu assinalar um crescimento na quantidade de eleitores adeptos.9 Nesse sentido, há que se ressaltar a identificação do eleitorado com o discurso e com práticas democráticas. Pois se o discurso não representasse em nenhum momento uma postura que interessasse ao povo este continuaria votando na Arena como tinha

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acontecido nas eleições anteriores. Max Mauro foi um político que conseguiu se identificar com esses anseios populares. O documento mais antigo encontrado no Arquivo Público Estadual do ES que trata da atuação de Max Mauro no MDB remonta a 1974. Trata-se de um ofício do delegado do sétimo para o do quinto distrito policial onde informa o roteiro da caravana de Max Mauro e pede providências para a “devida segurança policial nos Comícios”.10 Max foi eleito deputado estadual pelo MDB nas eleições de 1974 para a legislatura de 1975-1979 com 11.439 votos, sendo o quarto colocado. Em documento de 1975, do Regimento de Infantaria do Exército encontrado no Arquivo Público do Rio de Janeiro, copiado e publicado pela Câmara dos Deputados, Max chama atenção dos militares pelo fato de estar “promovendo junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais animosidades contra o Governo Estadual, procurando sobressair-se, politicamente, através de críticas e acusações às autoridades” (MAURO, 2002, p. 89). Chama atenção ainda que em 1968 participou das agitações estudantis, em Salvador-Bahia, como acadêmico de Medicina. Ex-prefeito de Vila Velha-ES, onde não realizou boa administração mas conseguiu criar no eleitorado uma imagem de líder popular, o que lhe valeu grande votação para a eleição a Deputado Estadual. Elemento de tendência esquerdista com atuação junto às classes menos favorecidas de seu reduto eleitoral (Ibidem).

Percebe-se que a atuação de Mauro é pautada pela estratégia de ataque às forças políticas conservadoras locais. Naquele contexto, um ataque incisivo ao regime significaria o fim de sua carreira política. Assim a atuação junto aos sindicatos rurais visa o ataque às autoridades sem que o mesmo redundasse em enquadramento na Lei de Segurança Nacional. O MDB abrigou políticos de diversos partidos existentes antes do golpe, desde os petebistas, que foram o principal alvo dos militares, a udenistas. Além disso, muitas migrações ocorreram da Arena para o MDB. Estar filiado à oposição não era certificado de ideologia política. Devido a essa heterogeneidade que se constata no documento citado anteriormente sobre Cachoeiro de Itapemirim a presença de sublegendas. Nessa acusação nota-se a disputa do MDB-1 com o MDB-3. Essa era uma forma de abrigar ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 164

adversários políticos dentro do mesmo partido e permitir que as forças em conflito participassem das eleições sem que houvesse a necessidade de outro partido. As divergências internas eram observadas atentamente pelos agentes da repressão. Explorar os conflitos internos é uma estratégia utilizada para facilitar a dominação. Nesse sentido, na pesquisa realizada foram encontrados dois recortes de jornais que diziam respeito a Max Mauro. A reportagem do Jorna A Gazeta de 1975 destaca o conflito no MDB em Vila Velha e a intervenção de Max no sentido da pacificação de representantes do legislativo municipal que permaneciam em constante acusação. A reunião seria então organizada pelo então deputado estadual, o que demonstra seu papel de liderança para traçar normas comuns e unificar o grupo em torno de consensos mínimos. Em outro recorte o jornalista Edmar Lucas do Amaral empreende críticas à postura de Max Mauro diante da divergência deste com Carlos Alberto Cunha. Nessa coluna do jornal Diário de novembro de 1975, Amaral fez a defesa de Cunha. Este articulou uma reunião dos emedebistas com Élcio Álvares (Arena) que governava o estado na época. A postura colaboracionista foi vista por Max Mauro como uma submissão aos interesses do Palácio Anchieta por parte do então líder da bancada emedebista na Assembléia Legislativa do Espírito Santo. Segundo esse jornalista Max também teria feito articulações no sentido de retirar Argilano Dario da presidência do diretório do MDB, o que teria provocado, na ala conservadora desse partido, “uma reação em cadeia”.11 A tentativa de impedimento feita por Max ao mandato do prefeito de Vitória Carlos Alberto Von Shilgen, da Arena, também teria tido repercussões negativas entre os emedebistas (Idem, p.268). Apesar disso, as estratégias maxistas estavam na direção correta. Sua oposição ao Executivo estadual lhe conferiu o mandato de deputado federal pelo MDB/ES para a legislatura 1979-1983. Max passou a representar uma das maiores lideranças do partido no estado. Na Ales travou “violento debate” com Walter de Prá (líder da Arena na Ales e presidente regional do partido) por conta da proliferação da malária e da esquitossomose no norte do estado.12 Sinalizava para a sociedade a expectativa registrada nas palavras do jornalista do Diário em sua crítica ao “pragmatismo letárgico da vida partidária no Espírito Santo”, quando diz que “faltou ao MDB, como continua faltando agora, uma linguagem e ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 165

um comportamento vivos e agressivos que, (...), representava as aspirações imediatas do povo”.13 Entre os dias 17 e 21 de maio de 1978 aconteceu o 1º Seminário de Atualidades Políticas no Colégio do Carmo no Centro de Vitória. Foi organizado pelo Setor Jovem MDB/ES sob a presidência de Rosilda de Freitas, que depois veio a se chamar Rose de Freitas, e pelo Instituto Pedroso Horta - MDB/ES presidido por Dilton Lírio Neto. A programação apresentou uma temática que procurou evidenciar os principais temas em questão no país naquele momento. Foram convidados para ministrar conferências: Eduardo Suplicy sobre a Situação Econômica do País; Dep. Federal Alceu Colares sobre Política Salarial; Dep. Federal Ruy Brito sobre Liberdade Sindical; Enir Moreira sobre Anistia; Hélio Bicudo e Modesto da Silveira sobre Direitos Humanos; Senador Paulo Brossard e Marcos Freire sobre Constituinte, Democracia e Estado de Direito; Paulo Ziucoski e Antônio Carlos Carvalho sobre Jovens na Política. Hélio Bicudo foi substituído no dia 19 pelo capixaba Ferdinand Berredo de Menezes, Paulo Ziucoski presidente do setor jovem do MDB/RS foi representado pelo sociólogo André Foster MDB/RS. O evento também contou com a presença do General Peri Bevilacqua que enalteceu Leonel Brizola, o qual se encontrava no exílio. O advogado da Arquidiocese de Vitória Ewerton Montenegro falou sobre o Esquadrão da Morte no Espírito Santo e o Arcebispo metropolitano de Vitória D. João Batista da Motta e Albuquerque fez a defesa dos trabalhadores e criticou o autoritarismo estatal. Entre os emedebistas capixabas que foram destaque no evento além dos dois organizadores, incluiu-se no relatório dos agentes de polícia do Dops Argilano Dario, Dirceu Cardoso, Kleber Frizzeira, sempre na companhia de Rose de Freitas, e Robson Moreira Fagundes, estudante da Universidade Federal do Espírito Santo. Segundo consta nos registros e nos anexos que incluem material de divulgação o evento teve ampla divulgação nos jornais da cidade e por meio de outras mídias.14 Apesar da satisfação que os organizadores sentiram com a promoção do seminário, como relatam os agentes, outros setores do MDB capixaba sentiram-se desprezados. Num dos relatórios consta o registro que os deputados estaduais Nider

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Barbosa, Max Freitas Mauro e Luiz Batista não ficaram satisfeitos com a atitude do diretório emedebista jovem e do deputado federal Argilano Dario que não chegou em “nenhuma das palestras, a convidá-los para comporem a mesa, ou mesmo fazer uma citação sobre a presença dos mesmos”15 Luiz Batista teria se pronunciado inclusive na tribuna da Ales sobre essa questão. Na convenão do MDB de 14 de junho de 1978, como não poderia deixar de ser, parafraseando o agente de polícia, também foram enviados elementos infiltrados para acompanhar o evento. O espião explica que “como a única preocupação de todos era lutar por suas candidaturas, não existiu ataques ao governo, nem ao regime”. 16 Max recebe apoios dos setores de esquerda e sai da convenção como candidato a deputado federal. Esse foi um ano em que, segundo Fernando Pignaton, ocorreu ao mesmo tempo a organização dos diretórios [da UFES]. [...] o movimento para a greve de 78, a primeira greve após dez anos; o ressurgimento do DCE; manifestações pela anistia, em 78; participação na eleição de Max Mauro; aí houve uma passeata do movimento estudantil pela anistia, contra a ditadura, que foi reprimida ali no Centro de Vitória (MOREIRA, 2008, p.124).

Apesar das questões internas, o discurso da unidade faz coro nas hostes do MDB. Max passa a se inserir nesse contexto urbano, nos conflitos sociais forjados com a chamada “modernização violenta” (FILHO, 1990) que trouxe para o Espírito Santo centros de poder que retiraram a hegemonia do capital comercial no Espírito Santo. Companhia Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Tubarão e Aracruz Celulose, empresas que são fruto dos grandes projetos implementados pelos militares, e que se tornaram alvo da sociedade organizada devido à forma com que concentrava renda e propriedade e agravava os conflitos sociais e a miséria no Espírito Santo. A pretexto de gerar empregos o Grande Capital (SIQUEIRA, 2010) se reproduziu com o potencial logístico representado por esse estado no contexto do capitalismo mundial. No mês de 27 de junho de 1978 Max, já na condição de candidato a deputado federal, realiza reunião na sua base eleitoral, no bairro de Alvorada em Vila Velha. Participaram da mesma seu irmão, o vereador Francisco de Freitas Mauro, os candidatos a deputados estaduais Erasto de Aquino e Souza (ex-vereador cassado) e Nilson Bittencourt, além do agente aposentado da Polícia Federal, Edson Viana dos Santos. Cada ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 167

um teve cinco minutos de fala enquanto que Max falou por quarenta minutos. Interessante ressaltar a narrativa do agente ao se referir à fala de Max: “Como não poderia deixar de ocorrer, foram feitas críticas ao partido governamental, discutindo-se a volta do Estado de Direito e o Direito de Greve para os sindicatos”.17 Nota-se que a defesa da liberdade política e dos direitos trabalhistas estava na ordem do dia. O xadrez político do MDB nesse período da abertura política reflete posições individualistas e a heterogeneidade interna do MDB. Nas eleições do Diretório Municipal de Vitória, Dario, à revelia dos outros grupos representados por Batista, Gastão e Max, queria “às escondidas, tentar escorregar uma chapa feita de acordo com seus interesses”.18 Apesar dessas divergências internas foi estabelecido um consenso com a troca de alguns nomes o MDB registrou chapa única nas eleições do Diretório com o nome “Chapa de Conciliação e Unidade”. Apesar de todo esse quadro marcado por divergências, a esquerda manteve-se unida por interesses comuns e também por força da lei, pois a exinção do bipartidarismo só se deu em 20 de dezembro de 1979. Neste contexto, outro evento foi organizado em solo espiritossantense e aglutinou a esquerda brasileira. Intitulado Perspectiva da Oposição Brasileira foram convidados: Senador Pedro Simon, Dep. Federal Modesto da Silveira, Dep. Federal Alceu Colares, Dep. Est. Raimundo Teodoro Carvalho de Oliveira, Luiz Ignácio da Silva, o Lula, o antropólogo criador do socialismo moreno Darci Ribeiro e Almino Afonso. Novamente o Instituto de Estudos Políticos Pedroso Horta esteve à frente de tal empreitada. Outro evento que aglutinou a esquerda capixaba foi realizado em 1984 foi o seminário Paz e Democracia promovido com o objetivo de legalizar os partidos comunistas. Durante o evento algumas personalidades foram premiadas. Entre elas o deputado federal pelo PMDB, Max de Freitas Mauro, pela sua atuação política nacional. À frente do seu nome encontra-se entre parênteses a sigla PC do B.19 Obviamente eles sabiam que Max era do PMDB, pois estava registrado assim, mas a sigla do Partido Comunista do Brasil aparece erroneamente identificando-o como um membro da célula desse partido que ao longo do século XX utilizou o PTB, o MDB e outros

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partidos como legenda para a disputa eleitoral. Em outro documento podemos observar que Max era classificado como “elemento infiltrado de tendência anarquista”(MAURO, 2002, p.91). Por identificações equivocadas como essas que os próprios militares costumavam chamar os policiais das delegacias de ordem e política social de “corruptos, incompetentes, desonestos e preguiçosos” (RAMOS, 2010, p. 128). Os arquivos da repressão que também refletem a resistência ainda não foram exaustivamente pesquisados. Muito do modus operandi do aparato repressivo e das dificuldades e facilidades encontradas por eles ainda está por ser revelado.

Considerações finais A resistência ao regime militar no Espírito Santo incluiu elementos que não se dedicaram à luta armada mas conseguiram articular a oposição nacional numa luta conjunta em defesa do Estado Democrático de Direito. A luta em prol de uma legislação trabalhista também uniu políticos e sindicalistas num momento em que a única legenda disponível para essa prática política era o MDB. Nesse partido, Max Mauro se forjou como uma grande liderança articulando os interesses do seu reduto eleitoral com a defesa de questões mais amplas como o direito de greve dos sindicatos. Essa postura aliada à firme oposição aos políticos arenistas contribuiu para fomentar a luta contra o arbítrio, como se falava na época e para que Max despontasse como liderança histórica ligada à esquerda do MDB. Essa luta se deu ao lado de outras personalidades de destaque e a disputa eleitoral e pelo comando de diretório demarcou divisões entre grupos internos do MDB. Essas divergências, contudo, eram abafadas tendo em vista que a união dos arenistas e a perspectiva de derrota dos emedebistas. Nesse sentido, observamos a chapa do diretório municipal sedo intitulada com os termos: conciliação e unidade. A documentação está impregnada do caráter ideológico imposto pelos militares no regime político instaurado com o golpe de 1964. Nela se vislumbra símbolos e formas ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 169

discursivas diversas que demonstram o perfil da ideologia dos militares. Essa identificava a defesa de direitos políticos e sociais como um crime contra a nação, contra a segurança nacional. Dessa forma procedia-se ao alinhamento da política econômica com os interesses do agronegócio, dos empresários e dos Estados Unidos da América. A elite brasileira e norte-americana necessitava de um aparato repressivo que corroborasse a exploração capitalista que era realizada no campo e na cidade. Apesar da análise dos documentos não permitir afirmar que havia alguma estratégia do aparato repressivo no sentido de explorar os conflitos internos, podemos inferir que a repressão enxergava essas dissenções no seio da oposição. Ou seja, o primeiro passo no sentido de articular a desorganização e desestabilização dos adversários foi dado, agora os outros passos ainda estão por serem desvelados.

Fontes ARQUIVO Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/coleção: Delegacia de Ordem Social e Política do Espírito Santo. Caixa 17: Partidos Políticos

Referências FAGUNDES, Pedro Ernesto (org.). Arquivos da repressão política no Estado do Espírito Santo (1930-1985). Vitória: PPGHIS-UFES, GM Editora, 2011. (Coleção Rumos da História) FERRI, Mônica Freitas. A disputa entre diferentes projetos políticos no orçamento participativo do município de Vila Velha, E. Santo: radicalização da democracia ou elitismo democrático? 2009. 348 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) – Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009. FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. SOUZA FILHO, Hildo Meirelles de; KAGEYAMA, Angela Antonia. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. INSTITUTO DE ECONOMIA. A modernização violenta: principais transformações na agropecuária capixaba. 1990. 201f. Dissertação (Mestrado em Economia) - Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a DitaduraPágina 170

GUIMARAES, Ewerton Montenegro. A chancela do crime. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 1978. MAURO, Max de F. A luta de um democrata contada pelo arbítrio: pronunciamento sobre o uso político do serviço secreto brasileiro. Brasília: Coordenação de Publicações da Câmara dos Deputados, 2002. MOREIRA, Renato Heitor Santoro Moreira. O movimento estudantil na Universidade Federal do Espírito Santo: a trajetória de um grupo ao poder (1976-1981). 2008. 238f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas do Centro de Ciências Humanas e Naturais da UFES, Vitória, 2008. PIRES, Marlene de Fátima Cararo; PINHEIRO, João Eudes Rodrigues. Educação popular e caráter educativo dos movimentos populares urbanos: um estudo do processo de participação popular no orçamento municipal de Vila Velha. 1993. 167f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1993. RAMOS, Luiz Fernando. Nossa vigilância é a sua segurança: a cooperação CENIMAR e Dops/MG. SINAIS – Revista Eletrônica. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.07, v.1, Junho. 2010. pp. 123-144. SIQUEIRA, Penha. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória, 1950-1980. Vitória: EDUFES, 2001.

Notas

1

O autor é estudante do mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS-UFES) e professor de História e Filosofia no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). 2

Trata-se do projeto de emancipação política de Vila Velha. Ver mais detalhes em entrevista cedida pelo . Acesso em 27/07/2012. 3

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.324.

4

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.491.

5

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.487.

6

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p. 19.

7

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p. 19.

8

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p. 20.

9

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.274, recorte do Jornal Posição de 12/11/1976.

10

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.315.

11

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p. 268.

12

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p. 262, recorte do Jornal Diário de 22/10/1975.

13

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.274, recorte do Jornal Posição de 12/11/1976.

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14

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.108.

15

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.109.

16

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.157.

17

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.160.

18

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.207, recorte do jornal O Diário de 27/07/1979, p.3.

19

BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.184.

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Documentando a luta e a resistência à ditadura militar Solange de Souza1

Resumo: Criado em 1987, na Unesp, por iniciativa de docentes da área de humanidades, a partir de 1994 o Centro de Documentação e Memória firmou compromissos de custódia de acervos valiosos para o estudo da realidade contemporânea. Desde então, seguiu-se o recebimento de arquivos acumulados por várias instituições, e o Cedem formou assim, sua linha de acervo – os registros da luta e da presença dos movimentos sociais e políticos contemporâneos. O acervo encontra-se organizado, contando com significativa quantidade de documentos catalogados em banco de dados e já digitalizados. Encontrase em fase de elaboração o Inventário Sumário dos Fundos e Coleções do Instituto Astrojildo Pereira – IAP. Esse instrumento, produzido conforme a Nobrade, além dos verbetes descritivos contará com tabelas que registram o conteúdo dos conjuntos documentais. As tabelas resultam da sistematização das atividades já realizadas com o acervo e serão o instrumento para a catalogação dos documentos no Sistema de Gestão de Acervos Permanentes da Unesp. Palavras-chave: direitos humanos; anistia; memória; arquivos, resistência.

Documenting the fight and the resistance against military dictatorship

Abstract:created in 1987, at Unesp, trough initiative of docents of the humanity area, starting on 1994 the Documentation and Memory Center had signed commitments of value collection’s custody to study the present-day reality. Since then, followed the receipt and accumulation of files from several institutions and this way, Cedem has formed your collection line – the registers of fight and presence of contemporary social movements and politics. The collection is organized considering significant amount of documents cataloged in databases and already digitalized. The collection is in a phase of elaboration of the Summary Inventory of the Astrojildo Pereira’s Funds and Collections – IAP. This tool, produced according to Nobrade, besides the descriptive entries, will count with charts that will register the content of the documental sets. The charts result from the systematization of the activities already done with the collection and will serve as an instrument to the documents tabulation in the Management of Permanent Collections Archive from Unesp. Keywords: human rights; amnesty; memory; archives, resistance.

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Apresentação O Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano – Asmob nasceu da ação de brasileiros exilados na Itália na década de 1970. Preocupados em salvar da dispersão e do esquecimento uma parcela importante da memória dos movimentos sociais e democráticos organizados em nosso país desde o início do século XX, tal documentação estava preservada em coleções particulares de militantes do PCB, que as retiraram do Brasil, em 1977, e era formada basicamente pelos arquivos de Astrojildo Pereira; a este acrescentaram outro, o arquivo de Roberto Morena, após seu falecimento. Transferidas para a Itália por iniciativa de José Luiz Del Roio, essas coleções foram abrigadas pela Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão, que assumiu sua custódia. Durante 17 anos o Asmob coletou sistematicamente vasta documentação sobre a ação dos exilados em vários países. O acervo pertence ao Instituto Astrojildo Pereira – IAP e está custodiado no Cedem. O objetivo desta comunicação é relatar a história deste acervo e de sua organização, assim ela está baseada em nove entrevistas realizadas no ano de 2010 no Cedem, sob a coordenação de Anna Maria Martinez Corrêa. Os depoimentos de José Luiz Del Roio, Marly Vianna, José Ênio Casalecchi, foram coletados em projeto sobre Memória Política, conforme concepção de história de vida, tendo como entrevistadores Dainis Karepovs, Marcelo Ridenti e Paulo Cunha, além de integrantes da equipe do Centro. Baseia-se ainda na longa experiência de quase 20 anos de trabalho de organização deste acervo realizado pela equipe do Cedem, que objetivou sua ampla divulgação, numa tentativa de trazer à tona momentos que, embora façam parte da história recente de nosso país e da América Latina, foram silenciados, tornando-se praticamente desconhecidos pelas novas gerações.

O Arquivo Clandestino - de São Paulo ao Rio de Janeiro No início da década de 1970 a ditadura militar após ter exterminado várias organizações de resistência armada, passa a reprimir mais duramente as organizações

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mais tradicionais e duradouras do movimento comunista brasileiro: o Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil. Inúmeros dirigentes e militantes dos dois partidos em todo o país são perseguidos, presos, torturados e mortos, outros conseguem sair para o exterior, os que sobrevivem no país são obrigados a mais dura clandestinidade. As estruturas partidárias são desmanteladas, os militantes perdem seus contatos, as gráficas dos partidos são completamente destruídas. O Arquivo de Astrojildo Pereira estava na gráfica do PCB em São Paulo e foi entregue à Marly Vianna por Antonio Bonfim, responsável pela edição da Voz Operária, jornal do PCB, para garantir sua integridade e preservar a memória do partido. Esse arquivo, cuja existência eu não conhecia, ele me foi entregue no final de 1971 ou 1972 pelo Antônio Bonfim Junior, que é um dos desaparecidos da Ditadura. Ele era responsável pelo jornal do partido e eu tenho a impressão – não posso garantir – que esse arquivo estava no local onde era editada a Voz Operária. Combinamos que ele iria me entregar esse material [...] Eram 47 caixotes de 1,60m [...]. Só sabiam desse arquivo o Bonfim e o Salles. O arquivo ficou lá até primeiro de setembro de 1974 (Depoimento Marly Vianna – Entrevista nº 9).

O arquivo ficou durante esses anos em uma casa na cidade de São Paulo aonde Marly Vianna ia regularmente organizá-lo. Em um dia de março de 1974 vários dirigentes do PCB entre eles José Salles que iriam tentar se reunir com outros membros do Comitê Central perceberam que estavam sendo perseguidos. Eles estavam em um carro legalizado do partido, em nome dos proprietários da casa onde estava o arquivo. Marly Vianna então percebeu que o “arquivo iria cair” e enfim no dia 01 de setembro de 1974 a polícia chega na casa, mas não consegue entrar. Nesse mesmo dia, ela e José Salles realizam uma verdadeira operação para salvar o arquivo colocando os documentos em malas e os levando para a casa de Marly Vianna. A partir daí inicia-se outra operação de transferência do arquivo para o Rio de Janeiro na casa de Zuleide Faria de Melo. Marly, Zuleide e os filhos de Salomão Malina durante uma semana vão e voltam de São Paulo ao Rio de Janeiro transportando os documentos de Astrojildo Pereira. Saímos daqui no fusca, com a mala do fusca cheio do material do arquivo do Astrojildo. Íamos de noite para o Rio de Janeiro e largávamos lá. O Mateus (Malina) dormia umas

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duas horas na casa da Zuleide, que morava no Grajaú, e voltávamos para São Paulo. Fizemos isso durante uma semana. Transportamos para o Rio de Janeiro, para a casa da Zuleide, todo o material político. O material que não era político, revistas, materiais literários e essa coisa toda – uma moça que já morreu; era uma enfermeira chamada Neuza Zaqueta, levou para a casa – eu fui com ela – do (Bernardo) Kucinski... Isso foi na primeira quinzena de setembro de 1974. Em novembro, eu fui embora para Moscou [...] E esse arquivo ficou sobre a responsabilidade da Zuleide, que conseguiu um lugar para colocar, na garagem da casa de uma amiga dela... Depois eu soube, inclusive, que ela tinha tirado dessa garagem e posto em outra casa (Depoimento Marly Vianna – Entrevista nº 9).

Devido aos transportes precários e as condições de armazenamento o arquivo estava em péssima condição de conservação, entregue à umidade e à ação de insetos. Todos estavam muito preocupados com o futuro dos documentos do fundador do Partido e até mesmo no exterior muitos dirigentes, entre eles Luis Carlos Prestes, em conversas discutiam o que fazer com o arquivo.

O arquivo em Milão Eu estava em Moscou em mil novecentos e setenta e cinco, setenta e seis... Era um momento de preocupação [...] que tinham sido destruídas as gráficas do Partido Comunista Brasileiro. A polícia chegou e lá em Moscou eu soube que... Eu não me recordo bem quem falou, se foi Anita Prestes ou se foi o próprio Luís Carlos Prestes ou se foi a Marly Vianna, de que a preocupação se acrescentava ainda, à parte massacre, tortura, prisão, se acrescentava ainda porque os arquivos de Astrojildo se encontravam, pelo menos em parte, nessa gráfica. Mas que não tinham sido levados embora pela polícia, tinha-se conseguido recuperar. Embora tivesse sido estragado, despedaçado... Fiquei preocupado também como todo mundo (Depoimento José Luiz Del Roio – Entrevista nº 5).

José Luiz Del Roio nasceu na cidade de São Paulo. Sua família de descendência italiana imigrou para o Brasil no início de 1900 e logo se estabelece na região de Bragança Paulista no interior do Estado de São Paulo. Em 1957 participa da Organização dos Estudantes Secundaristas do Estado. No início da década de 1960 vai trabalhar em São Paulo e lá inicia sua militância. Em 1963 entra para o curso de História. É eleito secretário do Comitê Universitário do Estado e membro da Seção Juvenil Nacional do PCB. A partir desse momento, passa a ter contato com dirigentes do partido como Joaquim Câmara

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Ferreira e Carlos Marighela. Casa em 1967 com Isis Dias de Oliveira, desaparecida política desde 1972. Vai para Cuba em 1969 para organizar a ida de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) para aquele país. Devido a forte repressão no Brasil e as quedas de militantes e dirigentes acaba ficando em Cuba com uma espécie de relações pública da ALN, o que possibilitava o contato com várias delegações de outras organizações brasileiras. Quando sai de Cuba vai para Alemanha, França, Itália, sempre realizando uma ação organizadora e de articulação para a ALN. A militância de José Luiz Del Roio é essencialmente organizar e garantir a sobrevivência de exilados na exterior. Para tanto viaja para vários países da Europa e América Latina, vai ao Peru, está no Chile quando do golpe que matou e destituiu Salvador Allende. Retorna ao PCB em 1974. Devido as quedas no Brasil e a desarticulação do partido seus dirigentes decidem que devem rearticular o partido no exterior e esta passa a ser a ação militante de José Luiz. Mantém intenso contato com os partidos comunistas e social-democratas europeus. Organiza o Tribunal Bertrand Russell II para a América Latina denunciando a tortura e a violação dos direitos humanos no continente. Inicia a campanha pela anistia no Brasil. Vai para a URSS em 1975 por um curto período e volta à Itália se estabelecendo em Milão, continua com seu trabalho junto aos exilados brasileiros e na organização de campanhas de denúncia contra a ditadura militar brasileira e cria o Asmob para receber os arquivos de Roberto Morena vindos de Praga após a morte deste e de Astrojildo Pereira vindo do Brasil. O Asmob tem acolhida junto a Fundação Feltrinelli onde durante vários anos José Luiz se ocupa da preservação destes acervos. Em 1985, quando os militantes começam a voltar para o Brasil, fica para cuidar do arquivo. Passa a vir ao Brasil com regularidade para a organização de importantes eventos como os seminários 500 anos de resistência índia, negra e popular e o Fórum Internacional Mundial, já na década de 1990. Voltei, fui à Milão, de lá, onde eu tinha conhecido um companheiro, que era o Maurício Martins de Melo... Maurício acabou, depois de muita perseguição, se exilando, e ele trabalhava na Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão. [...] E nós tínhamos um personagem, que era muito simpático, que era amigo de Maurício, que era Roberto Morena, que morava naquele momento em Praga. Era representante do Brasil na ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 177

Federação Sindical Mundial. Roberto Morena foi um dos mais extraordinários líderes sindicais desse país, desde 1917, tinha entrado no Partido Comunista em 1923, depois tinha sido deputado, combateu na Espanha, foi o responsável pela Internacional Comunista do Fronte de Alicante, na Espanha, uma vida extraordinária. [...] Em uma conversa, enquanto a gente tinha preocupação em Moscou com os arquivos de Astrojildo, Roberto Morena também tinha suas preocupações. Ele falou “parte dos meus arquivos está em Praga, que é que eu faço com isso? Se eu morrer é tudo de vocês, por favor, tirem de lá, porque em Praga vai sumir tudo, naqueles imensos arquivos da Federação Sindical Mundial”. Maurício começa a gerir a idéia de tentar trazer para a Fundação Feltrinell6 [...] É nesse momento que morre Morena. Morena estava em Paris, caiu no metrô, ele tinha bastante idade, mas ainda assim foi uma coisa bastante absurda, ele caiu, bateu o joelho, poucos dias depois teve câncer, câncer violentíssimo [...]. Ele morreu em Praga. Então, nesse momento, Lindolfo Silva, que tinha sido fundador da CONTAG, nos manda todo o arquivo de Morena... Chegou lá uma enormidade de coisas, tivemos que por em ordem aquilo, mas já tínhamos com o que trabalhar (Depoimento José Luiz Del Roio – Entrevista nº 5).

Nesse ínterim foi decidida e organizada a saída do arquivo do Astrojildo Pereira do Brasil para Milão. Dora Henrique da Costa, militante do partido, simula uma mudança e envia os caixotes de documentos como fossem sua biblioteca. [...] Do Rio veio para Santos, foi uma operação complicada e daí trazer para Gênova... A polícia do porto de Santos resolveu que aquela papelada não servia pra nada mesmo, deixaram partir. Mas quem quase morreu do coração fui eu e Maurício [...] O navio não chegou, não chegou uma semana, não chegou duas, não chegou três, não chegou cinco, não chegou dez, não chegou vinte. Na época não existiam computadores e a gente não conseguia saber onde estava o navio [...] Não conseguiam nos informar, até que descobrimos que ele estava na Ásia [...] Sete meses pra chegar. Foi realmente dramático [...] Ficou sete, oito meses no navio, então tinha já sido pisoteado pela polícia, rasgado pela polícia, guardado em porões, ele chegou em péssimas condições. Me recordo de termos perdido algumas coisas, nós não tínhamos tecnologia ainda... Tivemos que tirar jornais úmidos, embolorados, grudados. Perdemos coisas, mesmo com o apoio técnico da Feltrinelli, tinha coisas totalmente borradas, cartas desaparecidas [...] Foi um sofrimento bastante grande (Depoimento José Luiz Del Roio – Entrevista nº 5).

Apesar do apoio da Fundação Feltrinelli em receber os acervos de Roberto Morena, de Astrojildo Pereira e demais organizações e pessoas que Del Roio passa a coletar, eles não desejam que estes documentos ficassem incorporados ao acervo da Fundação, para tanto resolveram criar uma entidade que seria a proprietária dos documentos. Então nós tivemos que criar uma entidade registrada, civil, na Itália. Por isso que nós criamos o Asmob, o Archivio Storico Del Movimento Operaio Brasiliano. Era uma entidade registrada em cartório com os seguintes sócios fundadores, eu, Teresa Isenburg, ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 178

professora da Universidade de Milão, Maurício Martins de Melo, Virgílio Baccalini, estupendo jornalista do jornal Avanti, que era o jornal do Partido Socialista [...] O Augusto Castagna, secretário do Partido Comunista Italiano na Lombardia, Giuseppe Del Bo, presidente da Fundação Feltrinelli que tinha assumido no lugar do Giangiacomo, era um professor também, grande historiador. Estava também, depois do conselho de administração, à parte da Teresa, Maurício, eu, o Elio Celino, que era o diretor da biblioteca e o Ivan Ribeiro [...] E tinha o Luiz Alberto Sanz, que era diretor de cinema [...] E tem alguém, pouco conhecido, que era Ângela Maria Ribeiro Galvão... Na verdade, quem organizou tudo isso foi ela (Depoimento José Luiz Del Roio – Entrevista nº 5).

Uma vez os arquivos instalados na Fundação Feltrinelli e os trabalhos iniciados, o acervo do Asmob começou a receber outros materiais, até mesmo vindos do Brasil e outros coletados em vários países da Europa, documentos que registravam a ação dos exilados brasileiros em inúmeras atividades e campanhas pelos direitos humanos no Brasil. Depois nós começamos, ao mesmo tempo [...] O Maurício tinha um certo bloco de documentos que ele tinha trazido quando ele saiu do Brasil [...], Eu tinha representado, em anos anteriores, poucos anos anteriores, eu tinha sido porta-voz, na Europa, em certo momento para a ALN, não só a ALN, eu fui porta-voz de cinco organizações armadas quando fizeram uma reunião e tentaram se unificar, então eu tinha recebido os poucos arquivos, muito poucos, arquivos da VPR, da ALN, do MRT, Val Palmares [...] Eu tinha recebido um pouco desse material de luta armada, que eu considero, particularmente, preciosíssimo, o arquivo não é grande, é precioso por que não tem em muitos lugares, nós temos coisas originais... Conseguimos um arquivo de um antropólogo, que tinha trabalhado muito no Brasil, no PCB, nos anos cinqüenta, que era Tullio Seppilli, antropólogo da Universidade Perugia. Recebemos também um material de Ettore Biocca, grande cientista, grande cientista que tinha sido expulso do Brasil em sessenta e quatro. E assim a gente ia trabalhando com esse material, já tinha bastante material pra trabalhar, Jorge Amado nos mandou alguma coisa que ele tinha [...] Niemeyer também [...] Depois estava também já chegando perto da anistia e nós fizemos um apelo que funcionou bastante, que o pessoal nos mandasse os jornais que eram publicados no exílio [...] Fizemos um apelo final para que o material nos fosse enviado, realmente nos enviaram bastante material, que eram cartazes, discos, adesivos, então nós pudemos criar o Arquivo do Exílio, que eu creio não me enganar, é o único arquivo sobre o exílio que existe no Brasil (Depoimento José Luiz Del Roio – entrevista nº 5).

Retornando ao Brasil

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Com a conquista da anistia, por meio da Lei nº 6.683, promulgada pelo presidente Figueiredo em 28 de agosto de 1979, ainda em plena ditadura militar, os exilados, militantes e dirigentes de vários partidos começam a voltar para o Brasil. Mas então todo mundo voltou e ficou um problema sério para mim e para o Maurício. E agora? Voltamos todos, mas ficou um problema, e o material? O material não se perderia, porque a Feltrinelli guardaria, mas voltava o problema, nós tínhamos nos empenhado nos estatutos e em divulgação que esse arquivo viria para o Brasil, não seria um arquivo que ficaria no exterior, mas como trazer pro Brasil? [...] Particularmente eu teria que tomar uma decisão. Ou eu volto pra cá definitivamente ou deixamos com a Feltrinelli ou alguém tem que ficar responsável por aquilo. Mas a coisa se complicou um pouco mais porque enquanto existia certo relacionamento com o PCB, nós podíamos dizer que o PCB seria o responsável de arrumar os locais onde pôr. Mas em abril de 1980, Prestes faz uma carta duríssima rompendo com o PCB... Ou seja, o movimento comunista não sai bem do início da redemocratização, sai dividido, aos pedaços e todos os comunistas, seja PC do B, PCB, Prestes, Niemeyer, Freire, todo mundo reivindica esse arquivo, até o PCB trotskista [...] O Astrojildo era o pai de todos, o próprio Morena era de vinte e três, era justo que todos os mil afluentes desse movimento tivesse acesso, tivesse certa reivindicação, era difícil pertencer a um partido naquele momento, então a gente decide ficar na Itália. A única forma que eu tenho de criar garantias e divulgar uma parte disso, porque senão eu sento em cima, fecho lá a porta e ninguém mais ver, era microfilmar, então em 1982, decido microfilmar (Depoimento José Luiz Del Roio – entrevista nº5).

Os microfilmes eram vendidos para várias instituições internacionais com o objetivo de financiar a custódia dos documentos, mas em determinado momento Del Roio teria que decidir sobre o destino dos arquivos. “... quando nós criamos o Asmob, em 1977, nos seus estatutos estava especificado que os arquivos que nós estávamos construindo tinham como meta final voltar para um Brasil democratizado, com condições de poder ser aberto à consulta pública, era esse o nosso objetivo”. Então, todo aquele período, todos aqueles anos nós recebemos várias propostas para que o arquivo ficasse em locais do exterior [...] Nós sempre resistimos. Algumas vezes, saíram nos jornais brasileiros que ele estava para ir para um lado, para o outro. Mas, nunca existiu minimamente esta possibilidade. A grande dificuldade era onde e como? Foi uma batalha muito grande. Eu já tinha acenado, desde o governo Quércia, com o Fernando Moraes, que lutou muito para trazê-lo, o Dória, que foi diretor do Arquivo de Estado e fez de tudo para trazê-lo. Mas, o Arquivo de Estado estava numa péssima situação econômica, não estava agüentando seus arquivos. O professor Sebastião Witter, da USP, batalhou muito também para ver se achava locais na USP; não conseguiu [...] Ou seja, muita gente trabalhou para trazer esse arquivo (Depoimento José Luiz Del Roio – entrevista nº 6).

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O Instituto Astrojildo Pereira (IAP) foi fundado em 1985 por iniciativa de intelectuais vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, que traziam a intenção de debater e difundir a cultura marxista às novas gerações que saíam da noite da ditadura militar. Mas, seu principal objetivo era custodiar o arquivo do Asmob. Por isso nós resolvemos criar o Instituto Astrojildo Pereira [...] Até porque o Instituto ainda tinha uma parte de arquivos do PCB mais recentes [...] Então foi por isso que foi criado o Instituto, pra ficar claro que era independente. Desculpe a pretensão, eu vou dizer com muita humildade, a pretensão era preservar para todos que lutaram pelo socialismo e pelo movimento comunista no Brasil, que esses arquivos pertencessem a todos eles, independente das posições que foram sendo tomadas [...] (Depoimento José Luiz Del Roio – entrevista nº 5).

No início da década de 1990, os arquivos ainda estavam na Itália e a situação se complica, pois a Fundação Feltrinelli começa a ter problemas financeiros e opta por aumentar as publicações e ampliar suas livrarias. Mais uma vez os arquivos têm que ser mudados, desta vez para uma casa no interior da Itália em condições não muito adequadas. No Brasil, várias pessoas tentavam conseguir apoio e recursos para trazer o arquivo. Entre elas o Professor Edgar Carone, que já tinha pesquisado nos arquivos e durante certo tempo contribuiu para o seu sustento. Carone conversa com o então Diretor do Arquivo do Estado, José Ênio Casalecchi. A minha participação foi muito pequena. Da Feltrinelli eu tinha informações há muito tempo, por vários motivos, inclusive, pelo Carone que era um freqüentador. E foi o Carone que, pela primeira vez, me falou que a Fundação tinha algum problema. O Carone falou “olha, a Fundação Feltrinelli está passando por alguns problemas” [...] E, por coincidência, em 1994 eu fui ser diretor do Arquivo do Estado. Então, resolvi “vamos trazer para o Brasil, nós vamos brigar para trazer para o Brasil” [...] Não só para trazer para o Brasil, mas para preservar o acervo. Em nossa opinião, tinha que ficar em São Paulo. Mas, como diretor do Arquivo, eu tinha que convidar as três Universidades para receber o acervo [...] O primeiro reitor que falou “traga; se for preciso eu alugo uma casa para colocar todo o material” foi o Arthur (Roquete de Macedo) da UNESP ele disse “Traga. A Unesp aceita junto ao centro aqui (Cedem) [...] Então, não tive dúvida (Depoimento José Ênio Casalecchi – Entrevista nº 6).

A decisão da UNESP foi fundamental e definitiva para a retirada e o transporte do arquivo da Europa para o Brasil. Quando o arquivo saiu da Itália, através da Holanda, ele já vinha com o endereço da Universidade. Isto era fundamental, pois nós sabíamos das dificuldades. Mas foi uma ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 181

dificuldade sair da Itália, por que para você sair legalmente com coisas velhas da Itália é um problema. Nós tínhamos que ter uma autorização da Superintendência das Artes e também, quer dizer, dos livros, dos documentos; eles controlaram aquilo, não foi fácil. Ficou bloqueado, também, na fronteira outra vez em Controle. E você ter um endereço de uma Universidade como referimento ajudava muito, porque sei lá; se eu mandasse para meu irmão podia dizer “não, você está tirando documentos que nós consideramos importantes historicamente da Itália e não pode”. Quer dizer, a universidade ajudava. Porque, então, sabia–se que era uma operação claramente cultural e não comercial. Porque, se não, seria complicado sair da Itália. (Depoimento José Luiz Del Roio – Entrevista nº 6)

Quando chegou, o arquivo ainda ficou longo tempo no porto na cidade de Santos, os documentos todos em containeres. Foram inúmeras tratativas da Universidade para retirá-lo, quando sai é transferido ainda para o depósito do arquivo intermediário do Arquivo do Estado no bairro da Mooca antes de finalmente chegar ao Cedem em 1994.

O Cedem Em 1994, o Cedem firmou um compromisso que resultou na custódia de acervos valiosos para o estudo da realidade contemporânea: o Archivio Storico Del Movimento Operaio Brasiliano - Asmob e o Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa - Cemap. Em seguida juntou-se a eles a documentação do Partido Comunista Brasileiro - PCB e em 1995, recebeu o acervo do Centro de Estudos da Cidade de São Paulo – Cedesp contendo a coleção de documentos da gestão da ex-prefeita Luiza Erundina. Estava formada, assim, sua linha de acervo - os movimentos sociais e políticos contemporâneos. O Centro recebeu, ao longo dos últimos anos, arquivos acumulados por várias instituições, responsabilizando-se por sua preservação e disponibilização: Movimento dos Sem Terra; Oboré Editora; Jornal Em Tempo; Instituto Cultural Roberto Morena; Clube de Mães da Zona Sul; Associação Democrática Nacionalista de Militares ADNAM; os fundos pessoais do metalúrgico Santo Dias e do professor Clóvis Moura, entre outros. O Cedem possui atualmente 45 fundos e coleções pessoais e institucionais em seu acervo. Juntamente com os documentos de natureza arquivística (correspondência, resoluções, manifestos, panfletos, textos, fotografias, audiovisuais e demais tipos e ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 182

espécies documentais), também, foram entregues ao Cedem, coleções de periódicos (jornais, revistas, bolb, informativos) que faziam parte dos acervos das entidades ou das pessoas físicas titulares dos arquivos, formando assim, uma coleção dos mais importantes periódicos da imprensa alternativa do país, produzidos por movimentos e organizações independentes ou clandestinas. Enriquecido com novas doações, a Coleção de Periódicos, tem cerca de 8.700 títulos e aproximadamente 80 mil exemplares. Todos os fundos e coleções custodiados pelo Cedem são integrados por uma quantidade significativa de cartazes, em torno de 1.600 unidades, e de outros documentos iconográficos, que expressam e registram uma forma de comunicação bastante peculiar das organizações, partidos políticos e sindicatos na divulgação de suas ações. Destaca-se a Coleção Asmob, que registra as ações dos exilados, nos diversos países em que se encontravam, na continuidade da luta contra a ditadura militar, nas décadas de 1960 e 1970. Ações essas que estão expressas, por exemplo, nas inúmeras campanhas internacionais pela anistia, contra a tortura e pelos direitos humanos no Brasil. A Coleção Fotográfica também é formada por diversas procedências, somando 9.876 (ampliações), 9.574 (negativos), 1.971 (diapositivos) e 2.817(provas contato). A Coleção Bibliográfica é formada por publicações pertencentes aos titulares dos fundos ou coleções, integrada por aproximadamente 15.000 títulos. A ela soma-se o acervo da Biblioteca do Cedem, formada por aproximadamente 2.500 obras, concentra-se nas publicações que abordam a história política e social do Brasil, além dos trabalhos históricos, teóricos e metodológicos, relativos à memória social, patrimônio cultural, e aos campos da arquivologia, documentação e história oral. O Cedem tornou-se, assim, um centro aglutinador de arquivos e coleções, de informações, referências, estudos e pesquisas sobre a história política do Brasil contemporâneo, privilegiando a memória da esquerda e dos movimentos sociais.

Organização do acervo A preservação da memória e das diversas formas de testemunho da atividade humana, que constituem o patrimônio histórico-cultural, tem sido objeto de atenção cada vez maior. Não apenas do poder público, a quem cabe o fomento e a criação de entidades ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 183

especialmente voltadas para esta finalidade, mas de toda a sociedade civil, que se conscientiza e tem se mobilizado, com freqüência, no sentido de desencadear ações de caráter preservacionista, envolvendo principalmente as áreas do meio-ambiente e da memória social. Nesse quadro estão as entidades do movimento social que acumularam fundos de arquivo, coleções e conjuntos fragmentados de documentos, sempre na intenção de preservar os registros de movimentos, partidos políticos, associações, além da documentação pessoal de dirigentes ou militantes, cujas informações e memória se encontravam sob ameaça de destruição, por conta dos tempos de exceção que caracterizaram grande parte do cenário político brasileiro do século XX, especialmente as décadas de 1960 a 1980. De acordo com o Conselho Internacional de Arquivos, os documentos históricos que mais se perderam, durante o século XX, foram os arquivos de empresas e, de outro lado, os de organizações e partidos políticos, ligados à luta e ao movimento social. Essas fontes, em geral dispersas, sem tratamento específico, constituídas por documentos mal acondicionados, sem instrumentos de pesquisa para facilitar o seu acesso, dificultando o trabalho dos pesquisadores e impedindo assim a sua divulgação para a sociedade. Na década de 1990, após a anistia e a volta ao regime democrático, essas entidades, gradativamente, passaram a entregar seus acervos compostos de fundos de arquivo, coleções e conjuntos fragmentados de documentos, coleções de periódicos e de fotografias, além de documentação pessoal de diversos de seus dirigentes ou militantes, às instituições especializadas na preservação do patrimônio histórico para viabilizar organização adequada e condições de acesso, necessárias à consulta de um público amplo de pesquisadores. No entanto, a maior parte desses documentos foi entregue, muitas vezes, em condições de organização precárias, seja pelo fato de terem sido realizadas intervenções técnicas anteriores - quando foram adotadas soluções distantes dos procedimentos arquivísticos recomendados -, seja pelas condições inadequadas de conservação dos documentos ou ainda pela precariedade física desses documentos, produzidos em suportes de má qualidade.

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Procedimentos metodológicos para o tratamento do acervo A metodologia empregada nas atividades de organização dos acervos iniciou-se com os trabalhos de recuperação do processo de acumulação dos fundos e coleções, efetuado anteriormente pelas entidades acumuladoras. O primeiro produto foi um diagnóstico que fundamentou e orientou as atividades de classificação, ordenação física dos documentos e descrição documental para atender às necessidades de acesso à informação, possibilitando a determinação dos fundos e coleções, a quantificação de todo o acervo e a indicação dos gêneros e tipos documentais. A partir desse trabalho, foram definidas as atividades para o tratamento documental, a saber: Separação e agrupamento dos documentos por critério de gênero documental Essa etapa consistiu na separação e reagrupamento físico do acervo em livros, periódicos, documentação iconográfica, documentação audiovisual, documentação textual. Em todos os documentos foi registrada sua procedência a determinada Entidade Acumuladora e a qual Fundo ou Coleção pertenciam, dessa maneira, o agrupamento por gênero documental não perdeu a referência da procedência arquivística. Identificação Identificação sumária dos documentos contidos nas pastas, caixas e outros invólucros, indicando a procedência, o tipo documental, o suporte, as datas, as autorias etc., como primeira definição dos conjuntos documentais ou unidades documentais para posterior recomposição das séries documentais, visando à classificação arquivística. O produto desta fase foi chamado de Planta Baixa do Acervo, em formato de base de dados, possibilitando o pronto atendimento às pesquisas. Higienização Realizou-se uma limpeza manual, com escovas e trinchas, a retirada de material oxidante e colas e a separação de documentos contaminados por insetos e fungos. Diagnóstico do estado de conservação dos documentos

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Como os documentos permaneceram muito tempo sem acondicionamento adequado, vários deles necessitavam de interferência técnica, ou seja, de restauro ou reparos. Nessa etapa, foram separados os documentos contaminados por fungos e insetos, para serem identificados aqueles que necessitavam de intervenções imediatas ou de médio prazo. Classificação Para centros de documentação que apresentam um perfil de acervo como o do Cedem, considerou-se recomendável a elaboração de um Plano de Classificação Geral para o acervo, que precede a classificação específica adotada para cada um dos fundos e coleções. O Plano de Classificação Geral tem como primeira categoria a Entidade Acumuladora do acervo, pois essas entidades foram as que transferiram os documentos para o Cedem, por meio da assinatura de convênios e termos de cooperação. Ordenamento Realizou-se o agrupamento dos conjuntos documentais de acordo com o Plano de Classificação Geral. Nesta fase, formaram-se a Coleção de Periódicos, com o agrupamento dos títulos e seus respectivos exemplares, a Coleção de Acervo Bibliográfico, a Coleção de Fotografias e a Coleção de Cartazes, guardando suas procedências arquivísticas. Para aqueles fundos ou coleções com planos de classificação específicos, o ordenamento de seus documentos seguiu a ordem ditada pela classificação, em grupos, subgrupos, séries e subséries. Acondicionamento Os documentos foram acondicionados em invólucros apropriados, segundo seu gênero e suporte documentais. Descrição e elaboração de instrumentos de pesquisa Atualmente o Cedem dispõe dos seguintes instrumentos de pesquisa: Guia do Acervo. Publicação eletrônica e em papel; Planta Baixa do Acervo. Banco de dados que mapeia todos os arquivos e coleções, indicando localização física, quantificação,

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classificação (mesmo que preliminar), dados fundamentais obtidos no processo de identificação e agrupamento; Sistema Informatizado de Registro e Consulta; Listagens de conteúdo de caixas/pastas/outros invólucros; Tabelas eletrônicas de unidades documentais.

Informatização O Cedem desenvolveu um sistema informatizado com banco de dados para a atividade de descrição arquivística, que disponibiliza as informações sobre seu acervo em rede interna e na WEB em sítio próprio, por meio de um catálogo on line para todos os fundos e coleções do acervo. O sistema foi programado para agrupar os gêneros e suportes documentais do acervo, por meio de campos e tabelas comuns, denominadas de Tabelas Auxiliares, que possibilitam a pesquisa simples e combinada em todo o acervo, são elas: Autorias; Títulos; Descritores; Editoras; Idiomas; Localidades; e Plano de Classificação. A arquitetura das informações internas do aplicativo foi elaborada e desenvolvida pela equipe técnica do Cedem, tendo como fundamentação a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade) e a Norma Internacional de Descrição Arquivística (IsadG). As planilhas descritivas (fichas catalográficas) do acervo contêm campos que expressam as particularidades dos documentos pertencentes a determinados gêneros e espécies documentais, a saber: Audiovisuais; Sonoros; Cartazes; Fotografias; Documentos textuais; Dossiês temáticos; Livros; Periódicos; Clippings e Objetos. O módulo de Pesquisa no sítio do Cedem permite: a consulta simples por títulos, autorias e descritores; a consulta combinada por títulos, autorias, locais, editoras, notas, descritores e instituições; e, ainda, outro tipo de pesquisa filtrada por fundo ou coleção documental e período.

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Mudança de suporte Cumpridas as etapas anteriores, quando então já se tinha uma idéia precisa das demandas de consulta, do estado de conservação dos documentos, do ineditismo de certos conjuntos documentais, das lacunas de pesquisa, das demandas por apoio didático, entre os fatores mais importantes, foi possível dar início a um processo de digitalização seletiva do acervo. Recentemente, por meio, de recursos financiados pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo - FApesp e recursos próprios da Universidade em seu Programa de Preservação da Memória Social foram digitalizados importantes conjuntos documentais, entre eles: Coleção Opúsculos do Asmob: 1017 documentos digitalizados - 33.000 páginas. Coleção de Panfletos do Fundo Astrojildo Pereira e da Coleção Asmob: 300 documentos digitalizados - 590 páginas. Coleção de Documentos sobre o Movimento Estudantil: 2.434 documentos digitalizados - 17.880 páginas. Série Correspondência: 2.400 documentos digitalizados - 10.000 páginas. Documentos Iconográficos: Diapositivos (1.971 unidades); Ampliações fotográficas (1.156 unidades); Cartões Postais (2.078 unidades); Material de Propaganda (40 unidades) e Cartazes (1600 unidades). Coleção de microfilmes da Internacional Comunista: 1589 documentos Coleção de periódicos de diversos fundos e coleções: Aproximadamente 700 títulos Coleção de obras bibliográficas raras: Principalmente do Fundo Lívio Xavier disponibilizadas na Biblioteca Digital da Unesp (379 livros)

O inventário dos fundos e coleções do IAP No segundo semestre de 1994, o Instituto Astrojildo Pereira passou a ser o proprietário oficial e o responsável pelo acervo do Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano – Asmob, transferindo para o Cedem a responsabilidade técnica de sua

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organização, preservação e acesso. O acervo do Asmob é composto pelos fundos e coleções: Fundo Astrojildo Pereira: 53 caixas e 02 pastas A3 de documentos textuais; 160 ampliações fotográficas; 12 cartões postais; 25 cartazes; 643 títulos de periódicos. Fundo Roberto Morena: 129 caixas e 03 pastas A3 de documentos textuais; 227 ampliações fotográficas; 376 cartões postais; 04 cartazes; 347 títulos de periódicos. Fundo José Luis Del Roio: contém documentos produzidos durante sua atividade parlamentar e como co-organizador dos Fóruns Sociais Mundiais, além de uma interessante coleção de 70 exemplares do jornal ilustrado italiano Pasquino, produzido em Turim; 80 exemplares das edições Chilena, Argelina, Italiana, Belga, Francesa e Americana do Front Brasileiro de Informações, sendo 22 destes inéditos. Outro núcleo documental é a coleção de 91 exemplares de Literatura Soviética, produzidos em Moscou, de novembro de 1947 a dezembro de 1966; e uma coleção de 19 exemplares da revista Casa de Las Américas, de Havana, entre abril de 1966 e janeiro de 1976, contem também uma série de correspondência. Coleção Asmob: 135 caixas de documentos textuais, com 1160 documentos; 1084 ampliações fotográficas; 548 negativos; 158 cartazes; 709 títulos de periódicos; 1626 títulos de opúsculos; 1167 títulos de livros; 05 fitas de VHS; 70 fitas cassete; 142 rolos de microfilmes e 25 objetos tridimensionais. Coleção Nestor Veras: 09 caixas de documentos textuais. Além destes, o IAP também transferiu para o Cedem os seguintes conjuntos documentais: Fundo do Partido Comunista Brasileiro – PCB (décadas de 1980 e 1990): 98 caixas de documentos textuais; 525 ampliações fotográficas; 282 negativos; 15 cartazes; 961 títulos de livros; 359 títulos de periódicos; 46 fitas 35 mm; 47 fitas VHS; 47 fitas cassete. Fundo Instituto Cultural Roberto Morena: 94 caixas de documentos textuais; 195 ampliações fotográficas; 139 títulos de periódicos.

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Fundo Associação Democrática Nacionalista de Militares: 17 caixas de documentos textuais Coleção Microfilmes da Internacional Comunista: 10 rolos de microfilmes contendo 1589 documentos. Coleção Catulo Branco: 02 caixas de documentos textuais; 43 ampliações fotográficas; 134 cartões postais. Coleção Antonio Resk: 03 caixas de documentos textuais. O instrumento produzido conforme a Nobrade além dos verbetes descritivos contará com tabelas que registram o conteúdo dos conjuntos documentais. As tabelas dos documentos iconográficos e dos periódicos estão organizadas por título, data, autoria, local de edição, já para os documentos textuais será produzido um registro de cada caixa informando datas-limite, arranjo e conteúdo. As tabelas resultam da sistematização das atividades já realizadas com o acervo e serão o instrumento para a catalogação dos documentos no Sistema de Gestão de Acervos Permanentes da Unesp. O Inventário sumário dos fundos e coleções do IAP será uma publicação impressa e também disponibilizada em formato digital no site do Cedem.

Referências CAMARGO, Célia Reis (org). Guia de Acervo do Centro de Documentação e Memória da UNESP. São Paulo, 2008.

Entrevista nº 1 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Anna Maria Martinez Corrêa, Dainis Karepovs, Paulo Cunha, Marcelo Ridenti Data: 27/07/2010 Entrevista nº 2 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Anna Maria Martinez Corrêa, Dainis Karepovs, Paulo Cunha, Marcelo Ridenti e Lincoln Secco. Data: 28/07/2010 Entrevista nº 3 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Anna Maria Martinez Corrêa, Dainis Karepovs, Paulo Cunha, Marcelo Ridenti Data: 02/08/2010

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Entrevista nº 4 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Dainis Karepovs, Paulo Cunha, Marcelo Ridenti, Maria Lúcia Torres Data: 06/08/2010 Entrevista nº 5 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Anna Maria Martinez Corrêa, Jacy Machado Barletta, Luís Zimbarg, Irani Menezes. Data: 09/08/2010 Entrevista nº 6 - Entrevistados: José Enio Casalecchi, José Luiz Del Roio Entrevistadores: Anna Maria Martinez Corrêa, Jacy Machado Barletta, Sandra Moraes e Luís Zimbarg Data: 17/08/2010 Entrevista nº 7 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Paulo Cunha e Dainis Karepovs Data: 27/08/2010 Entrevista nº 8 - Entrevistado: José Luiz Del Roio Entrevistadores: Anna Maria Martinez Corrêa, Dainis Karepovs, Paulo Cunha Data: 13/09/2010 Entrevista nº 9 - Entrevistados: Marly Vianna, José Luiz Del Roio Data: 01/10/2010 Entrevistadores: Dainis Karepovs, Paulo Cunha.

Notas 1

Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

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Sessão 5

MEMÓRIA

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A arte como documento-testemunho: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio e Sérgio Ferro durante a ditadura militar Andrea Siqueira D’Alessandri Forti1

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as trajetórias de dois artistas plásticos da década de 1960 que se tornaram militantes políticos. A investigação visa, ainda, problematizar as relações entre as opções ligadas à produção artística e ao engajamento político, a partir da análise de objetos artísticos produzidos entre os anos de 1965 e 1976. Esta produção está sendo analisada sob o aspecto histórico, como documento iconográfico da ditadura militar brasileira. A análise crítica e reflexiva deste tipo de fonte é fundamental para se traçar as trajetórias dos dois artistas, principalmente no que se refere ao período da cadeia. Palavras chave: arte prisional; artes plásticas; ditadura militar; documento.

Art as document-testimony: one analysis of Carlos Zilio and Sergio Ferro’s trajectories during the military dictatorship

Abstract: This article aims to analyses Carlos Zilio and Sergio Ferro’s trajectories during the sixties. The purpose of it is to investigate the connection between their left-wing politics path and their visual arts career. It was analyzed works that were produced during the period from 1965 to 1976. It is important to mention that this research observers their art production from a historical perspective, as iconography document from military dictatorship period. The critical and reflexive analysis of this kind of source is necessary to understand both artists’ trajectories, mainly during the arrested period. Keywords: prison art; visual arts; military dictatorship; document.

Introdução O objetivo do presente trabalho é analisar as trajetórias de dois artistas plásticos – Carlos Zilio e Sérgio Ferro – que, durante a década de 1960, tornaram-se militantes

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políticos filiados ao MR-8 (DI-GB)2 e à ALN3, respectivamente. A pesquisa visa, ainda, problematizar as relações entre as opções ligadas à produção artística e ao engajamento político. As fontes principais a serem analisadas nesta investigação são os objetos artísticos produzidos pelos dois artistas entre os anos de 19654 e 19765. Esta produção artística não é analisada do ponto de vista estético. Os objetos em questão estão sendo analisados como documentos iconográficos da ditadura militar no Brasil. Entrevistas de História Oral complementam a análise das demais fontes utilizadas, sendo elas: artigos e entrevistas de jornais/revistas, exposições recentes e catálogos de exposições antigas.

Anos 1960: As trajetórias de Carlos Zilio e Sérgio Ferro A produção artística com caráter político, a filiação a uma organização de esquerda armada e o exílio foram características comuns aos dois artistas cujas trajetórias estão sendo analisadas. Mas as diferentes redes de relações em que cada um estava inserido, as possibilidades existentes e as escolhas pessoais os direcionaram a decisões diversas, tornando suas trajetórias singulares.

Esta obra, por exemplo, propõe uma reflexão sobre o anonimato da força de trabalho e seu controle social.

Figura 1 - Massificação (João), 1966. Tinta vinílica, sobre eucatex, acrílico. Original perdido, 2ª versão 1988. Fonte: ZILIO, 1996.

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O carioca Carlos Augusto da Silva Zilio iniciou seus estudos artísticos em 1962. Zilio queria ser artista plástico, mas, por exigência da família, teve que cursar uma faculdade. Em 1966, era então estudante de Psicologia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Continuando sua carreira artística, Zilio participou da importante exposição Opinião 66 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de outras mostras coletivas, apresentando trabalhos com caráter político. No ano seguinte, entrou para o diretório acadêmico do seu curso. O artista não se sentia comprometido com a política inteiramente, era uma responsabilidade que tinha como cidadão (ZILIO, 1996, p. 15). Por isso, ao mesmo tempo em que cursava a faculdade e era membro do DA, Zilio frequentava o MAM e as rodas de amizade artística. Participou da mostra Nova Objetividade Brasileira em abril de 1967, também no MAM do Rio de Janeiro, e da IX Bienal de São Paulo. Em determinado momento, a atuação política do artista fez com que ele não acreditasse mais no projeto artístico do movimento o qual fazia parte como algo eficaz para mudar a realidade. A tentativa de conciliar arte e política, e não mais de estetizar a política, se deu com a obra-panfleto LUTE (a marmita) no final de 1967, sendo uma confluência dessa dicotomia da sua atuação como artista e da política estudantil (IDEM). No lugar do alimento para o trabalhador, a máscara sem rosto representa seus milhões de usuários. A ordem LUTE aparece em destaque em vermelho na boca.

Figura 2 - Lute (marmita), 1967. Alumínio, plástico, papier maché. Objeto/múltiplo. Tiragem 2/2. Coleção Vanda Mangia Klabin. Fonte: ZILIO, 1996.

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Em 1968, Zilio entrou para o Diretório Central de Estudantes e “abandonou” a arte em função do diretório. Neste ano, assumiu a presidência do último DCE antes do AI-5. Já em 1969, se filiou ao MR-8 (DI-GB). Em março de 1970 foi ferido durante uma ação e preso. O curitibano Sérgio Ferro Pereira se filiou ao Partido Comunista no final dos anos 50, quando cursava a Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Após o golpe, a posição do arquiteto, professor e artista plástico Sérgio Ferro foi se radicalizando, o que fez com que ele participasse desde o início da dissidência paulista do PCB, embrião da ALN. Ferro explica que sua divergência com o PCB se deu mais no campo da teoria do que em relação à luta armada: “O Partidão dava muita importância nesse período a evolução dos meios de produção [...]”. Enquanto ele fazia a crítica das relações de produção, o que o levou a criticar as relações de produção no meio da arquitetura, no canteiro de obras6.

Figura 3 - Revolução, 1964. Óleo e acrílica sobre tela. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

Ferro foi um guerrilheiro urbano, responsável por várias ações armadas entre 1968 e 1970. Foi um dos autores do atentado à bomba ao consulado dos EUA em São ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 196

Paulo no dia 19 de março de 1968, uma das primeiras ações da época. Ao contrário de muitos militantes, ele e outros arquitetos jamais viveram na clandestinidade, facilitando a relação da organização com o mundo exterior: foi um dos principais articuladores da guerrilha com o meio artístico e intelectual (RIDENTI, 2000, p. 181). Sérgio Ferro nunca deixou de ser professor e de fazer pintura - o artista se refere a elas como as suas “duas armas” -, tendo participado das principais discussões estéticas do período. Participou das exposições Propostas 65 e Propostas 66 em São Paulo, além de ter exposto na mostra Nova Objetividade Brasileira no ano de 1967. Em relação a seu trabalho artístico, Ferro queria transformar a pintura em arma, “aproveitar dessa área que a censura entendia pouco para falar o que tínhamos que falar”. Aproveitando elementos da arte americana - uma pintura acrítica na visão do artista - produzir uma “pintura de raiva, de participação, de hostilidade à violência”.7 O artista foi preso em dezembro de 1970.

Em homenagem a Carlos Marighella. O líder da ALN morreu como um mártir na concepção do artista, por isso a referência a São Sebastião.

Figura 4 - São Sebastião (Marighella), 1969/1970. Acrílico, parafuso, metal, imagem de gesso, acrílica e látex sobre tecido sobre madeira. Fonte: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC).

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Carlos Zilio e Sérgio Ferro estavam no centro dos dois polos artísticos mais importantes do país: Rio de Janeiro e São Paulo. Analisar a trajetória deles permite conhecer um pouco do campo das artes plásticas durante a ditadura militar, tanto em relação à produção artística, quanto ao posicionamento dos artistas perante aos acontecimentos.

Arte Prisional O objeto artístico é uma rica fonte histórica. Mas, na presente investigação, ele se mostrou mais do que isso. A arte se apresentou como um instrumento para a narração do choque, este impossível de ser assimilado pela narração tradicional. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, o trauma separa do sujeito o acesso ao simbólico, particularmente à linguagem (GAGNEBIN, 2005, p. 85). De acordo com Peter Burke, os testemunhos sobre o passado oferecidos pelas imagens – no caso, a própria obra de arte produzida pelo artista, fonte e objeto da minha reflexão - suplementam as evidências dos documentos escritos. Para o autor, as imagens oferecem acesso a determinados aspectos do passado que outros tipos de fontes não alcançam. “Seu testemunho é particularmente valioso em casos em que os textos disponíveis são poucos e ralos” (BURKE, 2005, p. 233) como, por exemplo, no que se refere à vida dos militantes políticos na cadeia. Resultados parciais indicam que os desenhos e pinturas produzidos por Carlos Zilio e Sérgio Ferro (FREIRE et al, 1997, p. 47) no cárcere constituem em si uma narrativa sobre a experiência da prisão, complementar aos outros tipos de documentos. Os dois artistas produziram uma arte prisional. Carlos Zilio elaborou seus trabalhos individualmente. Já Sérgio Ferro, embora tenha realizado uma produção individual, elaborou também coletivamente algumas obras. Carlos Zilio passou um período sem produzir. Em março de 1970, quando foi ferido num tiroteio em uma das ações do MR-8, foi preso e levado, primeiramente, para o Hospital Souza Aguiar e, depois, para o Hospital Central do Exército. Ficou quinze dias

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entre a vida e a morte. Quando já estava no quarto do hospital, pediu à família para mandar material de desenho: um bloco de desenho de papelaria e caneta de feutro. O material de desenho nunca foi retirado, nem mesmo na prisão (ZILIO, 1996, p. 16 apud FORTI, 2011, p. 24). Eu me lembro que quando entrei na PE (Polícia do Exército), eu entrei de pijama vindo do HCE. Você é revistado de cima abaixo e os pertences que eu tinha, sei lá, escova de dentes, tudo isso era verificado. Aí, quando pegaram o meu material de desenho eu disse espontaneamente: “Por favor isso não!” “Como não?”, disse o cara. Do lado, tinha uma sala onde ficavam os oficiais, as equipes de busca. “Ele quer ficar com isso aqui”. Eles devem ter achado tão inusitado que deixaram. Então fui para a cela de isolamento, ao lado da sala de tortura, com aquele material na mão. (ZILIO, 1996, p. 17).

Zilio documentou o momento no qual estava no hospital, depois de ter sido ferido e preso em uma ação.

Figura 5 - Auto Retrato aos 26 anos, 1970. Caneta hidrográfica sobre papel. Fonte: ZILIO, 1996

No início, o desenhar foi apenas uma ocupação, mas logo passou a ter um caráter documental, retratando sua experiência no cárcere. É interessante apontar que sua arte prisional tem uma ordem. Ele foi retratando (nos desenhos) os fatos aos poucos, na sequência em que eles aconteceram, como se estivesse tentando reconstruir o raciocínio, a sua própria memória (FORTI, 2011, p. 25).

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Posteriormente, trocou os desenhos feitos em bloco de papel com pilot pelas pinturas. As pinturas eram feitas nos pratos de comida com tinta Revell. A ideia surgiu quando o carcereiro esqueceu-se de recuperar o prato. O artista estava no isolamento em um dos quartéis na Vila Militar. [...] um dia, na troca de pratos de comida – era o único momento da minha relação oficial com o mundo – abre a cela, entra o prato de comida, come, fecha a cela, abre a cela [...] sai o prato de comida. Não sei por que, ficou um prato lá. Tinha, então, um prato e as tintas Revell. “Vou pintar!” Pintei o primeiro prato e disse: “Isso é interessante. Posso explorar isso.” Pedi para Carminha trazer pratos nas próximas visitas. Aí começou a ser, ao invés do pilot e do bloco, o prato. Fiz vários pratos que foram, assim, a minha derradeira produção na prisão (ZILIO, 1996, p. 18).

A morte é representada neste prato e também a pergunta de quem será o próximo.

Figura 6 - Prato, 1971. Pintura sobre porcelana branca (24 cm de diâmetro) com tinta industrial “Revell”. Fonte: ZILIO, 1996.

É interessante apontar que a companheira de Zilio, Maria del Carmen, saía das visitas com alguns dos desenhos e dos pratos pintados dentro do presídio, sem que houvesse qualquer tipo de impedimento (FORTI, 2011, p. 25). O artista foi posto em liberdade em julho de 1972. Sérgio Ferro e outros arquitetos da ALN foram presos em 1970. Dentro da prisão já havia alguns pintores, como Alípio Freire, Sérgio Sister e Carlos Takaoka. Mas foi com a

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chegada deste grupo de arquitetos “que o trabalho artístico passou a pretender uma ligação maior com o mundo da arte” (SISTER, 1997, p. 211). A partir deste momento foi fundado um ateliê no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Discutíamos, fazíamos muita pintura na cadeia, depois da fase da tortura, já no fim. Muita pintura e era ótima porque era discutida, era fabricada e ainda como meio de expressão quando não se pode falar. Era através da pintura, por exemplo, que a gente podia, às vezes, se manifestar. Me lembro até hoje, do dia em que fiz um quadro da morte do Lamarca e de uma certa maneira foi aquele silêncio, aquela coisa toda, foi a nossa maneira de manifestar-nos, de dizer a nossa raiva.8

Em homenagem ao ex-capitão Carlos Lamarca da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), assassinado em 17 de setembro de 1971. Novamente a referência a São Sebastião.

Figura 7 - São Sebastião, 1971. Nanquim, tinta acrílica e ecoline sobre papel e sobre tecido com metal. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

Em relação aos trabalhos artísticos coletivos, Sérgio Ferro aponta duas consequências positivas: uma no sentido educativo, apresentando uma “pintura, uma atividade manual simples quando se quer fazer”, e outra no sentido da integração dos presos, quando os grupos em determinadas horas ficavam hostis, a atividade artística reunia as pessoas.9

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Presente dado ao amigo Alípio Freire dentro da prisão. A figura humana é uma referência aos zengakuren (federação estudantil de esquerda, Japão).

Figura 8 - Sem título. Presídio Tiradentes, 01/10/1971. Nanquim, tinta acrílica e ecoline sobre papel. Coleção Alípio Freire-Rita Sipahi. Fonte: Memorial da Resistência de São Paulo, 2013

Sobre a sua produção individual, o artista afirmou que “escoava ali ataques de raiva ou desabafo”. Ele pintava, “literalmente, como um condenado”. Ferro apontou também o interesse dos outros presos, “nem sempre letrados em arte”, pelo seu trabalho.10 “O que mais esperavam – acho – era que pusesse lá fora o que trazíamos por dentro: carinho recolhido, revolta calada, desamparo, espera teimosa de um outro amanhã” (FREIRE, 1997, p. 215). Esta produção de Sérgio Ferro não documentou apenas a repressão e a prisão, mas também a solidariedade entre os presos, artistas ou não, e o desejo de justiça. Ferro foi condenado a dois anos, mas ficou apenas um ano preso. A convite do Ministério da Cultura francês, foi dar aula na Europa, onde vive até hoje.

Considerações Finais A arte prisional teve primeiramente um caráter ocupacional e terapêutico para Carlos Zilio e Sérgio Ferro e, posteriormente, documental. Ela contribuiu na elaboração de uma narrativa sobre a experiência na prisão. Sobre esse momento, nenhum dos dois

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artistas consegue ainda construir uma narrativa clara, é uma narrativa fragmentada e cheia de reticências. Sem a análise desta fonte – a produção artística do período da cadeia, uma narrativa que inclui o trauma -, seria difícil ou até mesmo impossível analisar este momento da trajetória deles.

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Notas 1

Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É, atualmente, mestranda da Linha de Pesquisa Poder, Cultura e Representações do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 205

Estado do Rio de Janeiro (PPGH/UNIRIO), sob orientação da professora Icléia Thiesen. É também pósgraduanda da Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 2

Uma das primeiras organizações voltadas especificamente para a luta armada, criada em 1966. Primeiramente, chamada de Dissidência Comunista da Guanabara e, mais tarde, de Movimento Revolucionário 8 de Outubro, MR-8, em homenagem a Che Guevara. Duas dissidências estudantis do Partido Comunista Brasileiro se denominaram MR-8: a do Estado do Rio de Janeiro (DI-RJ) e a do Estado da Guanabara (DI-GB). Elas não tinham nada em comum, exceto serem dissidências do “Partidão”, explica Ridenti (2010, p. 115). A DI-RJ já havia sido desbaratada pela polícia quando a segunda resolveu assumir o nome MR-8 “para desmoralizar o governo que anunciava o fim do MR-8 (DI-RJ)”. Cabe ressaltar que a experiência da luta armada no Brasil foi curta e trágica. Entre 1969 e 1972, a maioria das organizações foi desbaratada e os militantes punidos de diversas maneiras (ARAUJO, 2008, p. 270). 3

A Aliança Libertadora Nacional foi a organização guerrilheira mais destacada na década de 60, encontrando apoio em diferentes setores sociais, principalmente por causa da liderança de Carlos Marighella. Ao deixar o PCB, levou consigo boa parte da seção do partido em São Paulo pela qual ele era responsável. Encontrou adesões em todo o território nacional, onde seu nome era popular pela combatividade e liderança exercida no período que pertencia ao PCB. No decorrer do processo armado, a ALN passou a atrair, sobretudo, estudantes e trabalhadores intelectuais (RIDENTI, 2010, p. 62). “A ALN baseava-se no ‘princípio de que a ação faz a vanguarda’, ação revolucionária entendida como aquela ‘desencadeada por pequenos grupos de homens armados’ (in Marighella, 1974, p. 23), que constituiriam a vanguarda guerrilheira do povo”. A estratégia dos militantes da ALN era partir diretamente para a luta armada, colocando a teoria revolucionária em segundo plano (RIDENTI, 2000, p. 166). 4

Identificados com o show Opinião em sua resistência à ditadura, 29 artistas plásticos organizaram no Rio de Janeiro a exposição Opinião 65 (RIDENTI, 2000, p. 126) e, no ano seguinte, Opinião 66. Em São Paulo, foi organizada a mostra Propostas 65 e Propostas 66 com o mesmo objetivo. Nestes dois eventos do ano de 1965 foram expostos os primeiros objetos artísticos com caráter político. 5

No ano de 1976, Carlos Zilio parte para o exílio na França. O período de exílio dos dois artistas não será analisado nesta pesquisa. 6

Entrevista de Sérgio Ferro a Marcelo Ridenti, 1997.

7

Entrevista de Sérgio Ferro a Marcelo Ridenti, 1997.

8

Entrevista de Sérgio Ferro a Marcelo Ridenti (Unicamp), 1997 (Grignan, França).

9

Entrevista de Sérgio Ferro a Marcelo Ridenti (Unicamp), 1997 (Grignan, França).

10

Presos políticos que não eram ligados às artes também produziram a partir de 1970. O pintor japonês Yoshia Takaoka visitava seus filhos, Carlos e Luiz, na prisão semanalmente. O apoio à produção dos presos políticos, dado através de orientações durante as visitas, foi fundamental para o trabalho desenvolvido por eles. (Exposição Insurreições – expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo, 2013).

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Quem tem medo de lembrar? Da Lei de Anistia à Comissão da Verdade

Cleidson Carlos Santos Vieira1

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o processo de transição da ditadura civilmilitar, assim como as relações estabelecidas pela elite dirigente em utilizar-se desse processo para impor uma democracia representativa frente às atrocidades cometidas pelo regime autoritário. Nesse sentido, pretende-se recorrer à anistia de 1979, para compreender as limitações desse processo de transição tanto nos marcos institucionais e jurídicos a exemplo da constituição de 1988, quanto nas políticas públicas de “reparação” às vítimas da ditadura, a exemplo das leis de reparação às vítimas do Araguaia, das políticas do acesso aos documentos da época, da caravana da anistia e por fim da formação da comissão da verdade . Cabe ainda, debater o papel dos familiares na luta por justiça, assim como a função social do historiador no trabalho de recuperação da memória sobre o período, frente às dificuldades impostas pelos articuladores do regime em determinar, no processo de transição, uma conciliação forçada que tenta encobrir os conflitos anteriores e contemporâneos. A defesa dos direitos humanos e a luta contra a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais se relacionam a essa temática e são pautas importantes de instituições como a Federação do Movimento Estudantil de História (Femeh), o Grupo Tortura Nunca Mais e a OAB. Nesse sentido, a elaboração dessas reflexões iniciais contribuirá com as organizações e movimentos sociais que lutam pela reconstrução da memória, pela defesa dos direitos humanos, e pela justiça de reparação. Palavras-chave: memória; reparação; anistia; justiça.

Introdução As dificuldades de se preservar a memória do período da ditadura civil-militar se esbarra nos interesses daqueles que articularam a transição política, estando convencidos de que a mesma viria provida da política do esquecimento. Os marcos que nortearam esse período, como a Lei da Anistia, as eleições diretas em todos os níveis e a promulgação de uma nova constituição em 1988, não significaram a dissolução de uma

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ditadura nos aspectos socioeconômicos, pois quem esteve a frente do Estado autoritário não apontava para uma alternativa que desse fim a exploração do capitalismo. A anistia representa um ato político, pelo qual se extingue as punições expressas em momentos de tensões sociais resultante de guerras civis, insurreições, revoluções etc. A Lei nº 6.683, promulgada no Brasil em agosto de 1979, tinha como ideia central, conceder anistia aqueles que interviram contra a ditadura e cometeram segundo o regime os chamados “crimes políticos ou conexos”. Esta lei representou o projeto político conservador de esquecimento, apaziguamento e o perdão do Estado, tendo como elemento fundamental a conciliação proposta por setores dominantes da sociedade civil capazes de influenciar no processo político em defesa do esquecimento, na medida em que permitiu, por meio da interpretação dos chamados “crimes conexos”, que fossem beneficiados os perseguidores e torturadores de militantes políticos. Ela possibilitou uma condição de que não seria possível falar de criminosos num momento em que ambos os lados, tanto os militantes políticos quanto os torturadores, teriam cometidos “equívocos”. Este caráter conservador da Lei da Anistia tornou-se um pilar para entendermos que o processo de transição política possibilitou uma democracia forte no sentido da permanência das estruturas autoritárias que influenciam direta ou indiretamente na atual democracia (FERNANDES, 1982, p.10). Isso reflete as limitações e os descasos frente as políticas de reparação as vitimas do regime, na medida em que essas políticas se vinculam a própria lei da anistia. Para isso é necessário delinearmos um panorama que permita o entendimento do processo de transição da ditadura civil-militar a uma democracia, que não rompeu com as estruturas de exploração e autoritarismo. Nesse sentido é importante analisar as medidas de reparação inseridas nas políticas públicas de governos, do período de transição aos dias atuais, Cabe ainda, debater o papel dos familiares na luta pela justiça assim como a função social do historiador no trabalho de recuperação da memória desse período.

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Transição pactuada: acordos entre grupos políticos autoritários e oposição moderada A democracia burguesa que se constituiu no período pós-ditadura civil-militar se baseou nos acordos entre grupos mais reacionários, representado por militares e civis, que detém o poder hegemônico dentro da sociedade. Quando Paulo Eduardo Arantes (2010, p.177) ousa questionar esse período com a pergunta “o que resta da ditadura”? O seu objetivo reflete a necessidade de analisar os acordos estabelecidos no processo de transição para responder que resta “tudo, menos a ditadura”. O ponto que fundamenta esta análise é que a conciliação assegurada pela Lei da Anistia, por exemplo, permitiu uma ideia de que a “guerra acabou”, os “excessos” se encerraram. O Superior Tribunal Federal (STF) se transformou no principal órgão de gestão do capitalismo brasileiro, ao considerar como completamente anistiados as duas partes argumentando sobre a necessidade de se manter a paz com a lei. Essa discussão veio à tona nos dias atuais no momento em que os membros da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) solicitaram ao STF (Supremo Tribunal Federal) uma revisão da Lei de Anistia, no sentido de que houvesse a anulação do perdão aos militares que torturaram no período da ditadura. O pedido foi julgado improcedente e o argumento vitorioso, colocado pelo ministro Eros Grau, também relator do processo foi de que: As circunstâncias que levaram à edição da Lei da Anistia e ressaltou que não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia, resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos e conexos a eles no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 19792.

Dessa forma, a ditadura abriu um cenário onde se constituísse uma democracia representativa burguesa, limitada, anulando qualquer atuação que comprometa as estruturas do Estado. Florestan Fernandes analisa essas questões argumentando que: Os estratos sociais burgueses que têm peso e voz na sociedade civil promovem esse enlace trágico, pelo qual logram manter, pela via política, as bases sociais de uma dominação de classe tão intolerante quão intolerável e de uma democracia restrita artificial, que se atrita com a própria expansão interna do capitalismo e com os requisitos históricos de qualquer modalidade de ‘paz social’ com a classe operária (FERNANDES, 1982, p. 145). ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 209

Ainda Segundo Florestan Fernandes (1982, p. 105), a “transição lenta, gradual e segura” assegurou uma conciliação entre burguesia nacional e capital externo após a crise do Milagre Econômico. A institucionalidade democrática sob o Estado burguês demonstrou flexibilidade dos grupos autoritários diante das contradições provocadas pela crise do modelo econômico desenvolvimentista. A Constituição promulgada em 1988 foi forjada de um pacto entre democratas e ditadores no sentido de garantir um Estado de Direito, que justificasse o fim de quaisquer resquícios da ditadura. Dessa forma, o Estado consolidava essas instituições, defendendo os interesses da burguesia e da propriedade privada. Em detrimento disso, criam-se mecanismos de repressão que mantém em voga a violação dos direitos humanos para com as comunidades pobres. Esses mecanismos se caracterizam pela militarização da segurança pública evidenciada na ideia de que o bloco civil-militar de 1964 não se desfez com o processo de transição (ARANTES, 2010, p.216). Partindo do pressuposto de que o Estado brasileiro organiza as suas instituições de poder para exercer e perpetuar a lógica excludente do capitalismo, foram criadas no ano de 2008 sessões simbólicas do Tribunal Popular. Esses tribunais tinham o objetivo de difundir a maneira na qual o Estado brasileiro se organiza para perpetuar a violência e a violação de direitos humanos contra a população pobre, essas sessões ficaram conhecidas como “Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus”. 3 O Tribunal Popular aglutina uma rede de coletivos, sindicatos, movimentos sociais e agrega diversas lutas e bandeiras que denunciam, e questionam as ações criminalizantes desse Estado democrático de direito. Iniciativas como esta demonstram que a transição pactuada permitiu a perpetuação de uma lógica que reconstituiu, após o golpe de 1964, uma nova situação estruturada sob a égide do neoliberalismo. Colocar o Estado brasileiro no banco dos réus significa reconhecer que essas práticas são recorrentes na história do nosso país. Paulo Eduardo Arantes (2010, p. 222) atribui as ações do Estado democrático de direito ao colapso da “modernização desenvolvimentista” e argumenta que: O regime militar nada mais foi do que o derradeiro espasmo autoritário de um ciclo histórico que se encerraria de qualquer modo mais adiante, e não um tratamento de ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 210

choque que partiu ao meio o tempo social brasileiro, contaminado pela raiz o que viria depois (ARANTES 2010, p. 222).

Podemos com isso afirmar que o “estado de emergência” se materializa nos dias de hoje travestido de democracia, e isto é “vendido como a melhor arma na guerra contra o terror” sem saber que “é ela mesma um produto do terror” (ARANTES, 2010, p. 220). Por mais que não tenhamos a institucionalização da repressão como nos anos de ditadura, o estado de emergência econômico permanece latente, principalmente em momentos de crises financeiras, onde os riscos dos negócios recaem sobre a parcela vulnerável da população.

História e memória na luta pela anistia, um acerto de contas com o passado Devemos inicialmente estabelecer um referencial básico que delimita as fronteiras existentes entre a história e a memória. Essa última ao ser tratada como objeto do historiador, se caracteriza como um mecanismo de registros de conhecimentos, informações e experiências vividas no passado. Possui a função de fornecer elementos para confrontos e reivindicações de gerações sucessoras. Enquanto a memória trabalha com o vivido, a história constrói uma interpretação dos fatos com base no conhecimento do historiador (BEZERRA, 1992, p. 22). O trabalho de preservação da memória deve servir como um mecanismo necessário para a constituição de uma unidade coletiva. Ulpiano T. Bezerra (1992, p. 10) compara esse fenômeno a uma “criança que caiu num poço e não consegue subir à superfície sem o auxílio providencial dos bombeiros”. A memória enquanto fenômeno vivo difere da história, pois o trabalho do historiador exige uma operação intelectual com a tarefa de constituir uma interpretação sobre o passado. Esse debate se torna crucial para o período retratado, pois há muitas verdades a serem reveladas e há muitos torturadores assassinos que estão impunes nessa sociedade dita democrática, que tenta de todas as formas se utilizar das estruturas de poder para “ocultar a sujeira da memória” (GALEANO, 2002, p. 10).

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Francisco Carlos Teixeira da Silva também ressalta a importância da memória do período da crise da ditadura militar: Construir o lugar da violência e do arbítrio na história recente dos povos latinoamericanos (...) assegurar a multiplicidade dos lugares de fala, dos diversos atores qualificados como enunciadores de uma memória chamados anos de chumbo; devemos ter claro que boa parte do que nos próximos anos será denominado de história terá agora a delimitação de sua legitimidade como objeto histórico, o que nos exige, por fim – como historiadores – um claro engajamento em direção à salvação de acervos, depoimentos, arquivos e lugares de memória – atingidos claramente como alvos a serem destruídos em nome da unidade nacional (SILVA, 2007, p 246).

Ações que contribuem para a preservação da memória e a justiça desse período se expressam por medidas como a da família Almeida Teles. Esta lançou uma ação judicial contra o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra4, para reivindicar “o direito de presenciar e ouvir, publicamente e com a garantia de justiça, as narrativas doloridas de quem esteve nos cárceres da ditadura e de seus algozes” (TELES, 2009, p. 296). Essa ação representa um significativo passo para o acerto de contas com o passado. É impossível esquecer os traumas vividos por militantes, diante das torturas e assassinatos. As famílias de mortos e desaparecidos políticos cumprem com um papel importante, pois: Provocam, perturbam, interrogam e redimensionam o presente. Como sobreviventes de um tempo difícil de rememorar, ao colecionarem os fragmentos que fazem lembrar os seus, assumem-se como os herdeiros da dor (TELES, 2009, p. 298).

Tanto a Lei da Anistia quanto a legislação que se estabeleceu pós ditadura fez questão de perpetuar a memória do esquecimento, a partir do momento que a discussão travada em torno da anistia se pautava pela ideia de esquecimento, apaziguamento e pacificação da sociedade. Ao aprofundar o estudo da Lei de Anistia fez-se necessário tê-la como instrumento de preservação à memória histórica recente do nosso país, pois impor o esquecimento significa impor paradoxalmente uma única maneira de lembrar (GAGNEBIN, 2010, p. 179). Como que a anistia se propõe a ser um obstáculo na busca da verdade, da justiça e da memória? A anistia deveria restaurar as mínimas condições de retomada da vida comum após momento de tensões sociais. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 212

Ao se auto-anistiar, o Estado assina um atestado que acaba perpetuando a impunidade e a injustiça. Ao propor a revisão desta Lei, questiona-se o papel que esse mesmo Estado cumpre para a constituição da justiça balizada na memória coletiva. Tratar a anistia numa perspectiva de reminiscência significa repensarmos a memória nacional, sendo ela “também um instrumento e um objeto de poder” (LE GOFF, 2003, p. 470), pois ela representou a limitação do processo de transição e a afirmação de uma ideologia que hegemonizava e hegemoniza o poderio político. Neste sentido as violências cometidas pelo Estado têm que ser esquecidas a fim de que não haja comprometimento às instituições do próprio Estado e a unidade nacional. O esquecimento imposto pela Lei da Anistia se relaciona a falta de preservação da memória acerca das violações dos direitos humanos. A decisão do TSF em não se posicionar a favor da revisão da Lei da Anistia possibilitou o distanciamento do Estado de Direito com a justiça de reparação. Defender que a anistia não beneficie os torturadores, significa ampliar as informações sobre os problemas relacionados a violação dos direitos humanos e denunciar as atrocidades cometidas aos milhares de brasileiros atingidos pela ditadura. A memória oficial, fruto do pacto entre a burguesia, provoca a reação contrária de resistir aos elementos militares presentes nessa democracia. Por fim, atribuir o esquecimento a esse projeto histórico perpetuado durante a ditadura, significa negar a importância das experiências históricas para a existência humana.

Estado brasileiro e política de reparação às vítimas da ditadura Muitas das vítimas e familiares de desaparecidos e mortos durante a ditadura civilmilitar permaneceram empenhadas na luta por seus direitos socioeconômicos, civis e políticos, pressionando, dessa forma, o Estado brasileiro a promulgar a Lei 9.140 de 1995, que reconhece como mortas, as pessoas desaparecidas em razão do seu envolvimento com atividades políticas. Esta Lei formalizou o reconhecimento e a responsabilidade do Estado pelas violações e atrocidades cometidas durante a ditadura civil-militar, estabelecendo o direito dos familiares dos desaparecidos de requerer atestados de óbito ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 213

e indenizações. Porém, “essa lei impôs as vítimas o ônus da prova”, Janaina de Almeida Teles analisa que: Não foi possível testemunhar em juízo os responsáveis por crimes tão violentos como as torturas e o desaparecimento forçado. As leis e os decretos que continuam impedindo amplo acesso às informações públicas tornam ainda mais candentes e relevantes a necessidade de se ouvir os testemunhos de sobreviventes da violência do Estado ditatorial (TELES, 2010, p. 254).

Isso significa que os familiares deveriam apontar os indícios sobre as circunstâncias das mortes e mostrar que os desaparecidos foram vítimas de arbítrio do Estado Autoritário. Ora, naquele momento, nem o Estado muito menos as Forças Armadas se interessaram em investigar tais crimes. As Cortes Interamericanas diz que, em caso de violação dos direitos humanos, o Estado tem a obrigação de investigar e punir os responsáveis. No Brasil, em nome de uma reconciliação forçada, conforme o que significou a Lei da Anistia, essa obrigação fora deixada de lado (ARANTES, 2010, p. 211). Outro elemento a ser levado em conta é que por mais que o Estado reconheça as ações de violação dos direitos humanos, as indenizações pagas representam uma parcela pequena das obrigações para com os familiares dos mortos e desaparecidos. O incômodo do Estado passa pela garantia ao direito a verdade e ao julgamento dos envolvidos com os atos de arbitrariedade, sendo assim, o governo se recusa a investigar o paradeiro das vitimas. No inicio de 1982, 22 familiares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia lançaram uma ação comunitária para solicitar a indicação das sepulturas, visando a localização dos restos mortais desses desaparecidos, além de um relatório do Ministério do Exército sobre a operação do Araguaia. Segundo Janaina de Almeida Teles, (2010.p.284) somente em 2003, a justiça considerou procedente o pedido dos familiares, porém o governo se contrapôs intervindo com o argumento de que a decisão da justiça estava além da petição inicial solicitada pelos familiares. Dessa forma, o governo criou uma Comissão Interministerial, por meio do Decreto 4.850 de 2 de outubro de 2003, que tinha como objetivo obter informações sobre os

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desaparecidos e localizar os restos mortais daqueles que lutaram na Guerrilha do Araguaia. Art. 1o Fica constituída Comissão Interministerial, com a finalidade de obter informações que levem à localização dos restos mortais de participantes da Guerrilha do Araguaia, para que se proceda à sua identificação, traslado e sepultamento, bem como à lavratura das respectivas certidões de óbito5.

Em 2009, o ministro da Justiça, Nelson Jobim, junto com as forças armadas e a comissão interministerial iniciaram o processo de averiguação e localização dos corpos por meio de um grupo de trabalho. Os familiares participariam desse grupo apenas como observadores ativos. Como é possível instituir uma comissão, responsável por investigar os crimes cometidos, sem a participação dos familiares? Em resposta a essa medida do governo, esses familiares escreveram uma carta ao Governo Federal expressando a sua indignação perante a medida: Que somente agora a ação ora orquestrada pelo Governo Federal responde à sentença judicial da ação interposta pelos familiares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, já pronunciada há mais de seis anos e transitada e julgada em dezembro de 2007 e o faz de maneira inepta e inaceitável; que o Exército, que ora coordena as buscas, levou anos para reconhecer oficialmente a existência da Guerrilha do Araguaia e a participação de seus integrantes nos combates, sem nunca ter assumido as prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos que o Exército e muitas das instituições vinculadas à União sempre afirmaram que a guerrilha não existiu e negam até hoje a existência de arquivos, sem ter a decência e qualquer sentimento de humanidade para apontar onde foram parar as informações de que dispunham as três forças em 1993, conforme atestaram Exército, Marinha e Aeronáutica em relatórios militares referentes aos nossos desaparecidos, encaminhados à Câmara Federal e ao então Ministro da Justiça, Maurício Correa6.

Resta apenas uma conclusão para medidas como esta: o Estado receia de que a participação desses familiares possibilitasse o revisionismo daquilo que havia sido acordado com a Lei da Anistia. As medidas de reparação do governo vêm demonstrando cada vez mais a falta de prioridade no processo de julgamento dos crimes cometidos pelo Estado, por mais que determinadas medidas pareçam progressistas, elas não dão conta de fazer o enfrentamento com os agentes da repressão. A Lei nº 10.559, de 2002, deu ao anistiado o direito à reparação econômica com base no tempo em que esteve afastado de suas ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 215

atividades, assim como a sua reintegração aos cargos, além de garantir o direito a conclusão de cursos. Dentro desta lógica, desde 2008, fora criada a Caravana da Anistia, com intuito de percorrer os estados brasileiros para julgar os processos de pessoas que foram presas e torturadas durante a ditadura. Em Sergipe, essa caravana julgou 34 processos e homenageou figuras como Wellington Mangueira, Seixas Dória, Viana de Assis. (Controladoria Geral do Estado de Sergipe, 2009, p. 3). Outro aspecto importante para o entendimento das políticas de reparação é a “Lei dos Arquivos”, elaborada e aprovada em 1991, a Lei nº 8.159 tem como principal objetivo definir as regras de acesso aos arquivos públicos e privados, inclusive todos os que foram produzidos no período da ditadura civil-militar. Por mais que essa Lei permita o acesso aos documentos públicos 7, para todos aqueles que envolver risco a segurança e a integridade do Estado, prevê o limite ao acesso de 100 anos sem prorrogação (BRASIL, 1991). Por mais que uma pequena parcela dos documentos esteja disponível ao acesso público, principalmente os que foram produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), estes não mostram a fundo as atrocidades cometidas pelo regime, diferentemente dos que se encontram trancafiados nas Forças Armadas. As novas Leis que foram elaboradas demonstram cada vez mais as limitações estabelecidas no acesso aos documentos do período. Ao baixar o Decreto nº 4.553, Fernando Henrique Cardoso determinou que o prazo para o acesso aos documentos sigilosos é de 50 anos podendo ser prorrogado em tempo indeterminado. Dois anos depois, Luis Inácio Lula da Silva modifica esse artigo estipulando o prazo de 30 anos, sendo prorrogado por mais uma vez. Porém o governo Lula fez ecoar a voz dos militares ao criar a Lei nº 11.111 que retomava os prazos estabelecidos pela Lei nº 8.159. Definiu uma comissão de averiguação composta apenas por órgãos do Estado (Chefe da Casa Civil, Ministro da Justiça, Ministro da Defesa, Ministro das Relações Exteriores, Secretário dos Direitos Humanos) excluindo

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a possibilidade de participação de instituições e movimento sociais que lutam contra a violação dos direitos humanos e pelo direito a verdade. Apesar de hoje haver um acesso restrito aos documentos dos arquivos da ditadura civil-militar, há ainda muitos desafios pela frente. A luta pela abertura dos arquivos da ditadura delineia algo que vai para além das demandas especificas do historiador. Isso significa contrapor-se a uma concepção hegemônica de democracia burguesa que estabeleceu um pacto escondendo as atrocidades cometidas durante a ditadura, justificada pela conciliação. Recentemente fora apresentada uma nova proposta do Plano Nacional de Direitos Humanos - PNDH 3. O intuito é criar orientações que debatam a fundo as violações de direitos humanos presentes na sociedade de hoje. O Eixo Orientador IV vem trazer a discussão sobre o direito à memória e à verdade, para isso surgiu a proposta de criação de uma Comissão da Verdade. Transformado em PL nº 7.376/2010, e posteriormente na lei 12.518/2011, essa Comissão trouxe uma discussão sobre a necessidade de trazer à justiça os crimes cometidos pelos militares e seus financiadores. O Grupo Tortura Nunca Mais lançou uma nota analisando a aprovação da lei: Se a proposta apresentada pelo governo federal já se caracterizava por sua timidez, as emendas apresentadas pelo DEM — e aceitas em um grande acordão pela Presidente da República — piorou ainda mais o projeto. Antes, o texto do projeto estreitava a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes, negando-lhe orçamento próprio; desviando o foco de sua atuação ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988!), extrapolando assim em duas décadas a já extensa duração da Ditadura Militar. Além disso, impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes, para que estas promovam a justiça8.

A Comissão Nacional da verdade é formada por apenas sete membros escolhidos diretamente pela presidente Dilma, dando-lhes poderes legais, e desviando o foco central, na medida em que amplia em 42 anos o período a ser investigado (1946-1988), reduzindo da história do Brasil os anos de ditadura civil-militar (1964-1985). Além disso, existe o fato da mesma não ter o poder de responsabilizar e punir ninguém. Os próprios integrantes fazem questão de deixar claro que o objetivo é a reconstrução da memória sem nenhum tipo de revanchismo ou perseguição. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 217

O Brasil é o país que mais está atrasado no processo de julgamento aos crimes do período da ditadura. Isso significa que a luta não se encerra com as meras migalhas travestidas de políticas públicas. Precisamos mobilizar a sociedade para garantir o direito à memória e à verdade para estabelecer parâmetros que trace uma perspectiva de transformação social.

Conclusão A ditadura civil-militar deixou marcas profundas na sociedade brasileira, a transição pactuada tentou impor, uma conciliação que tenta apagar da memória coletiva todas as atrocidades cometidas pelos governos autoritários. A luta travada em torno das vitimas e das obrigações do Estado, está distante de se encerrar. Isso porque as políticas de reparação do Estado brasileiro não são condizentes com os reais interesses de familiares que lutam por justiça. Infelizmente, a ideia de conciliação imposta pela Lei 6.683, fez com que a luta pela reparação e justiça não conseguisse envolver de maneira efetiva a sociedade civil como um todo. Discutir o processo de transição é trazer para a realidade os aspectos que tentam ser ocultados por medidas de segurança nacional que impedem o acesso a arquivos, que beneficiam os torturadores e legitimam determinadas atrocidades ainda existentes em nossa sociedade. As agitações existentes em torno da redemocratização trouxeram uma necessidade de mobilização que pusesse fim a dominação do capitalismo monopolista e que traçasse um novo projeto de sociedade para o país. Porém, o que se constituiu foi um acordo entre os grupos políticos autoritários e a oposição moderada, permitindo dessa forma um novo cenário que mantém determinadas práticas autoritárias em nome dos negócios de grandes empresários incentivando a fragmentação e a individualidade.

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Notas 1

Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

2

Tribunal Superior Federal, Disponível em . Acesso em 20 de novembro de 2011. 3

O tribunal popular se constituiu a partir de 2008. Grupos de trabalhos foram organizados em três estados do país: Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. O objetivo é difundir as sessões para todo o Brasil, colocando que as violações praticadas pelo Estado não é uma falha pontual, e sim uma concepção de Estado. Ler: Tribunal Popular, o Estado Brasileiro no banco dos réus, Instituto Rosa Luxemburgo. 4

Foi comandante do DOI/CODI – SP durante o período de 1970 – 1977. Esse militar é responsável por várias mortes e torturas aos presos políticos. (BRAGA, 2008. Disponível em . Acesso em 02 de dezembro de 2011) 5

BRASIL, Decreto 4.850, de 2 de outubro de 2003. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2011. 6

Disponível em . Acesso em 30 de novembro de 2011.

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7

A Lei determina como prazo de sigilo o período de trinta anos, a contar da data de sua produção, podendo ser prorrogado por uma única vez pelo mesmo período. Disponível em . Acesso em 02 de dezembro de 2011. 8

Grupo Tortura Nunca Mais. Disponível em . Acesso em 30 de novembro de 2011.

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O Memorial das Ligas Camponesas na contramão da ditadura

Janicleide Martins de Morais Alves1

Resumo: O trabalho destaca a atuação do Memorial das Ligas Camponesas para preservar o legado de um movimento social – Ligas Camponesas – que estremeceu a Paraíba, lutando por direitos sociais no campo e pela Reforma Agrária. Diante do descaso do governo brasileiro com a preservação da memória, faz-se necessário enfatizar a iniciativa do Memorial das Ligas para que não sejam esquecidas as atrocidades da Ditadura Militar sobre a vida de muitos líderes camponeses, a exemplo de Elizabeth Teixeira e de Pedro Fazendeiro, um dos primeiros desaparecidos políticos reconhecidos com a Lei nº 9.140/95. Foram utilizadas fontes bibliográfica e documental, além de recortes de entrevistas realizadas com a família de Pedro Fazendeiro, em pesquisa anterior. Concluise que por suas ações o Memorial se constitui num espaço de resistência para o nunca mais. Palavras-chave: Memorial das Ligas Camponesas; conflitos sociais; ditadura militar.

Memorial of the peasant leagues against the dictatorship

Abstract: This article highlights the role of the Memorial of the Peasant Leagues to preserve the legacy of a social movement - Peasant Leagues - that shook the Paraíba by fighting for social rights in the field and Agrarian Reform. Given the neglect of the Brazilian government with the preservation of memory, it is necessary to emphasize the initiative of the League Memorial not to be forgotten the atrocities imposed by the military dictatorship over the many peasants’ lives, like Elizabeth Teixeira and Pedro Fazendeiro, one of the first political disappeared acknowledged by the Law 9.140/95. Were used bibliographical and documental references, and clippings of interviews with the family of Pedro Fazendeiro conducted in a previous research. We conclude that, by their actions, the Memorial constitutes a space of resistance for the never again. Keywords: Memorial of the Peasant Leagues; Social Conflicts; Military Dictatorship.

Introdução

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Nas décadas de 1950-1960 o Nordeste passou por uma modernização no campo com o aumento das usinas e a consequente expulsão dos camponeses por parte dos proprietários de terras. Na Paraíba, a região da várzea paraibana destacava-se no cenário nacional pelos conflitos por terra e pela violência que os latifundiários impunham na vida dos camponeses, sob o olhar conivente do Estado. Nesse contexto, nasce, no ano de 1958, a Liga Camponesa de Sapé/PB que, seguindo o modelo da Liga do Engenho Galiléia, de Pernambuco – a primeira do Nordeste – foi criada para combater as injustiças sociais que assolavam o campo naquelas décadas, reivindicando também a Reforma Agrária. Enquanto no Nordeste os camponeses começavam a tomar consciência de sua exclusão social e da falta de direitos trabalhistas que só alcançavam a zona urbana, o Brasil vivenciava uma batalha entre as forças da direita conservadora, com os militares almejando o poder, e da esquerda, que vinha tomando espaço no cenário político. Essa batalha resultou num Golpe Civil-Militar que teve início no dia 1º de Abril de 1964, com a derrubada de João Goulart, presidente que ousou proclamar as Reformas de Base, tão temidas pela classe dominante. Sob o pretexto de uma Segurança Nacional, por longos vinte e um anos o Estado brasileiro cassou, prendeu, torturou e matou não só os líderes das Ligas Camponesas, como também os representantes de sindicatos, políticos oposicionistas, estudantes ou qualquer pessoa ou organização que resistisse ao novo regime. Na Paraíba, os momentos que antecederam o Golpe Civil-Militar foram marcados pelo fim do populismo que caracterizou o governo de Pedro Gondim, colocando-o em favor das forças políticas conservadoras. Este artigo analisa o Memorial das Ligas Camponesas como monumento compromissado em reavivar a memória dos camponeses que lutaram por direitos trabalhistas, por dignidade e por terra para plantar e viver. Também destaca o Memorial como um espaço que se ergue para evitar que as violações aos direitos humanos e as barbáries cometidas antes e depois da Ditadura Militar sobre os camponeses caiam no esquecimento ou voltem a ocorrer.

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Dos camponeses ou apoiadores que foram presos, torturados ou mortos, destacamos as trajetórias de Elizabeth Teixeira e de Pedro Fazendeiro, líderes da Liga Camponesa de Sapé e vítimas da aliança entre os latifundiários e as Forças Armadas. Sobre Pedro Fazendeiro, reconhecido pelo Estado como um dos primeiros desaparecidos políticos do Regime Militar, algumas questões se fazem presente: as investigações da atual Comissão Nacional da Verdade conseguirão esclarecer o que foi enterrado com a Lei de Anistia? Após quarenta e nove anos, será descoberto para quem o Exército entregou Pedro Fazendeiro? Os restos mortais desse líder que, no ano de 1995 não foram localizados com os trabalhos precários da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP, ainda poderão ser encontrados? O trabalho contém fragmentos de uma pesquisa que estamos realizando sobre o Memorial das Ligas Camponesas no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH), do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Além de fontes bibliográficas, utilizamos partes de entrevistas que realizamos no nosso Trabalho de Conclusão de Curso em História, pela UFPB.

A Liga Camponesa de Sapé No ano de 1958, foi criada, no Grupo Escolar Gentil Lins em Sapé, Paraíba, a Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Sapé, que passou a ser chamada de Liga Camponesa. Fundada por João Pedro Teixeira, essa Associação tinha como objetivo auxiliar os camponeses que viviam à margem dos direitos sociais, sob a exploração e a violência dos latifundiários do Grupo da Várzea2. Influenciada pelo modelo da Liga do Engenho Galiléia, de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, a Liga de Sapé se destacou nacionalmente como a mais importante na luta por direitos trabalhistas, bem como pela posse da terra e por cidadania, chegando a um total de 13.000 membros. A sua atuação, que priorizava assistência médica e jurídica aos camponeses, auxiliando-os nos casos de expulsão da terra, transformou-a em um modelo de luta para outros movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que se considera herdeiro das Ligas.

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Na várzea paraibana prevaleciam os contratos de meação e parceria, onde os camponeses habitavam num casebre e plantavam culturas de subsistência, sendo obrigados a cultivar a terra e a dividir a colheita com o proprietário, não podendo iniciá-la sem aviso prévio. Eles eram obrigados a dar alguns dias de trabalho gratuito na propriedade como pagamento da terra que utilizavam, era o cambão. Além disso, o salário que recebiam era em forma de vales, trocados por alimentos ou mantimentos de primeira necessidade no barracão, armazém controlado pelos latifundiários, num processo que os mantinha presos à propriedade, pois estavam sempre devendo. Insatisfeitos, eles passaram a reivindicar o fim do cambão e o pagamento do aluguel da terra (foro) em dinheiro, pois haviam tomado conhecimento de que um dia de cambão que pagavam pelo sítio onde moravam equivalia a 52 dias anuais, que transformados em dinheiro daria para comprar, em dois anos, a terra que lavravam (BENEVIDES, 1985)3. Assim, por não aceitarem as reivindicações dos camponeses, consideradas uma petulância, e pelo aumento das usinas devido à modernização por que passava o campo naquele período, os proprietários passaram a expulsá-los de suas terras sem direito à indenização, com o uso da violência. A organização dos camponeses rendeu conquistas sociais e econômicas nos municípios paraibanos em que atuaram. O cambão teve fim e foram instalados vários postos do Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência – SAMDU, demonstrando que o movimento se consolidava mesmo em meio ao descontentamento e à violência dos proprietários rurais. Estes, visando aterrorizar os camponeses, mandavam derrubar os seus casebres utilizando a força da Polícia Militar e dos jagunços para intimidá-los e expulsá-los de suas fazendas. Assim, foi eliminado por bala de fuzil, no Engenho Miriri, em Sapé, o primeiro líder camponês na Paraíba, Alfredo Nascimento. Pouco depois, na cidade de Mari, houve confronto violento entre camponeses, vigias e policiais, onde morreram onze pessoas. Nesse contexto, sob o governo ambíguo de Pedro Gondim, que tentava agradar tanto a massa camponesa quanto o bloco agroindustrial, o Grupo da Várzea declarou guerra ao movimento camponês. A paz agrária, que só existiu enquanto os camponeses se submetiam às vontades dos coronéis havia chegado ao fim, pois estes, além de ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 225

conscientes de sua exclusão política e social, estavam cansados da violência até então disfarçada dos senhores de terra (BENEVIDES, 1985). O terror se espalhava por todo o Estado e, no dia 02 de abril de 1962, João Pedro Teixeira, presidente da Liga de Sapé, foi assassinado a mando do usineiro Aguinaldo Veloso Borges que, por representar o poderio do bloco agroindustrial, não foi preso. Os camponeses e a Paraíba ficaram impactados com o assassinato de João Pedro Teixeira, que logo se tornou um mártir da luta camponesa. Mas mesmo sentindo a ofensiva, o movimento não retrocedeu e, ao contrário do que esperavam os latifundiários, as Ligas se fortaleceram com o aumento do número de associados. Sobre esta efervescência social, Benevides (1985, p. 90) assegura: “Enganavam-se os proprietários na sua lógica. Mal desaparecia um líder camponês, imediatamente despontava outro. Formara-se uma escola rústica de lideranças e os trabalhadores do campo entravam na história do Brasil pelo holocausto de seus mártires”.

O golpe civil-militar na Paraíba e o populismo gondinista O presidente João Goulart, popularmente conhecido por Jango, foi o último governo democrático antes do Golpe Civil-Militar de 64 e, ao contrário de Juscelino Kubitschek, que não priorizou a Reforma Agrária, o seu governo buscou alterar as estruturas econômicas e sociais, procurando implantar Reformas de Base. Simpatizante das massas populares, Jango assinou a Reforma Agrária, divulgando um decreto que sequer foi analisado pelo Congresso Nacional. Diante da efervescência social que o país vivia, as forças políticas conservadoras temiam que explodisse uma revolução capaz de transformar a nação num país socialista, como havia acontecido em Cuba. Assim, contrários à implantação da Reforma Agrária e ao avanço da participação popular, os grupos dominantes se uniram ao setor militar e deflagraram o Golpe que, em 1º de abril de 1964, acabou com as instituições democráticas no país, dando justificativas de que a ordem precisava ser mantida.

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O discurso de Jango no Comício de março de 1964 o colocou a favor das forças de esquerda, mas sua postura foi determinante para a eclosão do Golpe, como aponta Nunes: É no comício da Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, que João Goulart dá de fato uma guinada para a esquerda. [...] Nele Goulart anunciou a promulgação de dois decretos, o de nacionalização das refinarias particulares de petróleo e o da desapropriação das propriedades de terras com mais de 100 hectares que ladeavam as rodovias e ferrovias federais e os açudes públicos federais. Também prometeu enviar ao Congresso outros projetos de reformas, como a agrária, eleitoral, a universitária e a constitucional. Além disso, anunciou que nos próximos dias decretaria algumas medidas em defesa do povo e das classes populares (NUNES, 2011, p. 13).

Próximo ao Golpe Civil-Militar, o Estado da Paraíba vivia um momento de ebulição política e social, em que latifundiários e camponeses travavam uma luta desigual e a imparcialidade do governo populista de Pedro Gondim, que até então se colocava contra a repressão aos camponeses, era questionada pelo Grupo da Várzea. Gondim era tolerante com as Ligas Camponesas, que naquele momento já eram conhecidas internacionalmente. Sobre a sua postura diante daquele movimento, Nunes (2011, p. 4) destaca: Durante o período inicial de seu segundo governo (1961-1965), Pedro Gondim permaneceu fiel aos princípios populistas, pelos quais foi eleito. Frente à crescente mobilização camponesa, no início dos anos sessenta, manteve uma posição de tolerância e compreensão, sem chegar a estimular ou apoiar às ações mais radicais. Também se percebe, nos seus pronunciamentos sobre a questão agrária no Nordeste, uma identificação com as reivindicações dos trabalhadores rurais, por ele consideradas legítimas, e de condenação da estrutura agrária então vigente.

O populismo de Pedro Gondim caminha para o fim quando ele, que vinha sendo pressionado pelos proprietários rurais, começa a reprimir as ações das Ligas Camponesas e o avanço das forças esquerdistas. Como indica Cittadino, “Gondim, dentro desse pacto populista, fica contido entre duas forças antagônicas que, progressivamente, reforçam a pressão sobre ele, tornando a manutenção do pacto impossível, o que leva à sua ruptura e a uma tomada de posição favorável às forças conservadoras” (CITTADINO, 1998, p. 139).

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Três episódios contribuíram para a mudança de posição de Gondim. O primeiro envolveu a classe de estudantes que questionavam a perda do direito a um abatimento de 50% que tinham nas passagens, numa agitação que resultou na morte de um policial e na destruição de repartições públicas. O segundo foi o Conflito de Mari, no qual morreram onze pessoas, incluindo o contador da Usina São João e o presidente da Liga Camponesa de Mari. O último episódio foi a ocupação da Faculdade de Direito, numa manifestação contrária à vinda de Carlos Lacerda à Paraíba, no início de março de 1964. Diante da repercussão desses conflitos, Gondim instala inquéritos para apurar os casos e começa a utilizar a repressão policial, encabeçada pelo temido Cel. Luiz de Barros, rompendo de vez com as forças de esquerda que passam a tê-lo como um inimigo dos anseios populares. Com relação ao Golpe Civil-Militar, de acordo com Cittadino (1998), o governador paraibano foi pego de surpresa. Na noite de 31 de março de 1964, Gondim se encaminhou para o Palácio da Redenção, onde ficou até o amanhecer e durante a longa noite de vigília ainda não havia se posicionado, quando recebeu a visita do Cel. Ednardo D’Ávila Mello, do 15º RI – Regimento de Infantaria. Sob pena de ser deposto ou até mesmo preso, ele só publicou um documento de apoio às Forças Armadas por volta das 11:00h do dia 1º de abril. A sociedade paraibana também apoiou o Golpe Civil-Militar. Além de empresários e comerciantes, um forte esquema pré-revolucionário, encabeçado pelo usineiro Renato Ribeiro Coutinho, que mantinha relação muito próxima com o Exército, foi organizado para conter qualquer reação por parte dos camponeses ou do próprio governador do Estado. Instalado o Golpe, uma onda de prisão tomou conta do estado paraibano e as lideranças camponesas foram caçadas tanto pelo Exército quanto pelos latifundiários.

Elizabeth Teixeira, os passos de uma mártir Elizabeth Altino Teixeira, hoje com 88 anos, é a viúva de João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé. Viúva aos 37 anos e com onze filhos, Elizabeth teve

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que fugir após o Golpe Civil-Militar, porque passou a ser perseguida pelo Exército e pela Polícia a mando dos latifundiários. Tendo sido presa várias vezes por sua militância nas Ligas, ela passou mais de três meses detida no Grupamento de Engenharia da capital paraibana. Em liberdade provisória, para não cair nas mãos do temido Coronel Luiz de Barros, que estava à sua procura e que perseguia as lideranças camponesas para entregá-las ao Exército, ou mesmo para eliminá-las, Elizabeth fugiu para São Rafael, uma pequena cidade no Rio Grande do Norte, levando apenas um dos onze filhos enquanto o restante era dividido entre os seus irmãos (BANDEIRA, 1997, p. 108). Assim, por atrás do nome falso de Marta Maria da Costa que, como ela mesma diz, lembra mártir, Elizabeth entrou para a clandestinidade e conheceu bem o sentido da palavra sofrimento. Passou fome, trabalhou de sol a sol e chorou com saudade da família, dos amigos e principalmente dos filhos por longos dezessete anos. Entretanto, com a abertura política ela retomou a luta em favor da Reforma Agrária, da democracia e da efetivação dos direitos humanos. A história de Elizabeth Teixeira se confunde com a história das Ligas na Paraíba, tamanha é a sua importância. Sua trajetória de luta é evidenciada pelo cineasta Eduardo Coutinho em Cabra Marcado para Morrer, considerado um dos mais importantes documentários brasileiros, que teve as gravações interrompidas com o Golpe, sendo concluídas em 1984, com a abertura política.

Pedro Fazendeiro: prisão e desaparecimento Filho dos agricultores Pedro Antônio Felix e Ana Maria da Conceição, Pedro Inácio de Araújo nasceu na cidade de Itabaiana, Paraíba, no dia 08 de junho de 1909. Casado com Maria Júlia de Araújo, com quem teve cinco filhos, recebeu o nome de Pedro Fazendeiro porque vendia fazendas (tecidos) pela região da várzea paraibana. Foi vendendo tecidos que conheceu e se instalou como posseiro em Miriri, região que ficava entre Mamanguape e Sapé e que pertencia a Pedro Ramos Coutinho, irmão de Renato

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Ribeiro Coutinho, um dos maiores usineiros do Grupo da Várzea. Na medida em que andava a pé, vendendo tecidos em praticamente toda a Várzea do Paraíba, Pedro estabelecia amizades, adquirindo um grande conhecimento geográfico da área. Integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ainda jovem, Pedro tomou conhecimento dos ideais socialistas através do irmão mais velho e, indignado com a situação de abandono no campo, almejava uma transformação da condição de vida dos agricultores. O ano era 1955, quando realizou, ao lado de João Alfredo Dias (Nêgo Fuba), o primeiro encontro dos camponeses de Sapé, na casa de João Pedro Teixeira. Posteriormente, em 1958, assumiu o cargo de 2º Secretário na primeira Diretoria da Liga Camponesa de Sapé, consolidando sua permanência na mesma. A partir daí, se dedicou com paixão ao movimento e às campanhas de massa. O fato de conhecer bem a geografia da região facilitou o seu apoio na formação de várias Ligas Camponesas no Estado da Paraíba e a sua sabedoria e afetuosidade convenciam os mais rudes camponeses a aderirem ao movimento. A respeito da coragem que levava Pedro Fazendeiro aos lugares mais distantes e arriscados, Souza (2006), que militou ao seu lado, afirma que com sua bravura ele ajudou a fundar várias Ligas na Paraíba. No entanto, o desempenho e a astúcia de Pedro, que entrava nos canaviais para divulgar o movimento camponês, o colocaram na mira dos latifundiários. Desse modo, ele sofre o primeiro atentado, sendo atingido na perna esquerda por duas balas de uma arma privativa das Forças Armadas, evidenciando a parceria existente entre Exército e proprietários rurais. Nesse ataque, ocorrido em dezembro de 1961, Pedro teve o fêmur fraturado e, após algumas cirurgias, recebeu platina na perna, que lhe resultou em uma deformidade. O segundo atentado ocorreu em setembro de 1962, quando ele se encontrava com o amigo Assis Lemos, na sede da Liga de Itabaiana-PB. Na ocasião, teve o nariz quebrado e foi brutalmente espancado, mas os agressores não foram punidos (SOUZA, 2006). Ao contrário de muitos que buscaram na clandestinidade um caminho para fugir da onda de prisão, tortura e morte, que caracterizavam o movimento golpista, Pedro

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Fazendeiro não escapou. Após esconder-se por alguns dias na casa de um amigo, se entregou ao Exército para não ser preso pelo Coronel de Polícia Luís de Barros que, segundo sua filha Josineide Araújo, apavorava os camponeses e estava em busca do seu pai: Ele foi com as próprias pernas. Por que ele foi com as próprias pernas? Porque o Coronel Luís de Barros, que era o terror contra o movimento dos camponeses na época, tinha uma sede no meu pai. Então, o que é que o meu pai temeu? Temeu cair nas mãos de Luís de Barros, e achou que o Exército era mais íntegro. Então foi ao Exército para se apresentar, para prestar esclarecimentos. Foi, ficou e nunca mais saiu (ARAÚJO, J, 2006).

Cansado dos esconderijos e acreditando que responderia inquérito e voltaria para casa, Pedro se entregou ao quartel do 15º Regimento de Infantaria – RI, no dia 28 de abril de 1964. Ele não imaginava que, com aquela decisão, teria início o seu martírio e o da sua família. Após se apresentar, Pedro ficou detido. Enquanto esteve detido no 15º RI, sob as ordens do Major Cordeiro, Pedro Fazendeiro era submetido a interrogatórios acompanhados de sessões de tortura, mas nas visitas que recebia da família, não falava sobre o assunto. O líder aguardava a liberdade numa ânsia contida e mostrava otimismo quando indagado pela esposa sobre o dia em que sairia da prisão. Porém, de acordo com Josineide, na última visita ao marido, Maria Júlia perguntou se ele sabia quando sairia da prisão, mas Pedro, que sempre estava confiante, respondeu: “Eu estou achando que nunca, porque eles querem que eu descubra coisas que eu não sei” (ARAÚJO, J, 2006). No dia 07 de setembro de 1964, Pedro Fazendeiro foi liberado do 15º RI. Assis Lemos, que também estava preso, lembra que eram aproximadamente 19:00h quando um sargento anunciou que ele seria solto. Nesse período, em Recife, corriam notícias de que os presos libertos estavam sendo pegos na esquina e transportados para outro quartel. Por precaução, Antônio Bolinha, ex-prefeito de Rio Tinto, deu cinco cruzeiros para Pedro Fazendeiro, o orientando a pegar um táxi na frente dos guardas e ir direto para casa. Como Pedro não chegou em casa, Maria Júlia, sua esposa, foi com a filha Josineide ao 15º RI em busca de notícias. Nessa ocasião, um sargento respondeu que Pedro tinha

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sido liberado e, mostrando que ele havia assinado um livro de soltura, foi taxativo afirmando que, se ele não chegou em casa, deveria ter sido pego pela Polícia. Constatouse a triste notícia. Ao sair do 15º RI, Pedro Fazendeiro havia sumido, colocando-se entre as primeiras vítimas da terrível lista de desaparecidos políticos do Regime Militar. Mãe e filha ainda tentaram procurá-lo, mas por medo de represálias cessaram as buscas. Três dias após Pedro Fazendeiro ter sido posto em liberdade, em 10 de setembro de 1964, o jornal Correio da Paraíba publica uma foto de dois corpos carbonizados, encontrados à margem da rodovia BR-104, no distrito de Alcantil, Boqueirão, trazendo uma matéria em que responsabilizava o Esquadrão da Morte pela execução. Nesse período, era comum aos órgãos de repressão divulgar as notícias das mortes dos opositores do Regime Militar, denegrindo a imagem deles, contando versões de tiroteios, fuzilamentos e suicídios que disfarçavam os mais covardes assassinatos. Apesar de desfigurados estes corpos foram reconhecidos por amigos como sendo de Pedro Fazendeiro e de Nêgo Fuba, que também desapareceu do 15º RI, mas eles foram enterrados antes de um reconhecimento oficial. Na figura 1, evidenciamos a tentativa do Estado de ocultar a brutalidade dos crimes através de uma tarja:

Figura 1 - Corpos de Pedro Fazendeiro e de Nêgo Fuba Fonte: Jornal Correio da Paraíba. João Pessoa, 10 de setembro de 1964, p. 04.

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Com o sumiço de Pedro e tendo agora que criar os cinco filhos, Maria Júlia ainda foi forçada a suportar intimações enviadas pelo Exército que rastreava o destino do próprio marido, mesmo sabendo do paradeiro dele. A partir daí a perseguição e a discriminação se tornaram comuns à família do líder, pois as escolas não aceitavam seus filhos e suas filhas sofreram assédio sexual nos empregos.

A Lei de Anistia e a Lei nº 9.140/95 A Lei de Anistia de 1979 beneficiou tantos os opositores políticos quanto os algozes da Ditadura Militar, se constituindo num decreto para o esquecimento. Nas palavras de Teles (2013) essa Lei: garantiu a ampliação da atividade política e permitiu a volta dos exilados, mas ao impor obstáculos à investigação do passado recente, negou aos familiares de mortos e desaparecidos políticos a possibilidade de conhecer a verdade sobre esses crimes e de contar sua história, dificultando a constituição da memória (TELES, 2013, p. 2).

Com a Anistia, o Estado brasileiro esperava impedir o esclarecimento dos crimes ocorridos nos anos de repressão militar, mas em 1995, sob a pressão da sociedade civil para investigar as mortes e os desaparecimentos dos seus familiares durante a Ditadura, foi criada, com a Lei nº 9.140/95, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP. Como demonstra a figura 2, nesse mesmo ano, aquela imagem divulgada em 1964 é publicada sem tarja, onde se notam os corpos decapitados, evidenciando o terror que afligiu o país durante o Regime Militar, em que a tortura era uma prática comum:

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Figura 2 - Corpos de Pedro Fazendeiro e de Nêgo Fuba Fonte: Jornal Correio da Paraíba. João Pessoa, 02 de setembro de 1995

Sobre os últimos momentos de vida de Pedro Fazendeiro, Náugia Araújo, sua filha mais nova, relata que a família ficou sabendo das torturas que ele teria sofrido através do Cabo Chiquinho, policial atuante na época. Vinte anos após o desaparecimento do líder camponês o Cabo teria descrito as torturas que o levaram à morte numa conversa com a tia, ironicamente sogra da filha mais velha de Pedro Fazendeiro. O testemunho de Náugia complementa o que está exposto na figura 2: Pai foi muito torturado. Ele disse que pai foi queimado, enterrado vivo e que furaram os olhos dele. O amarravam com uma corda e puxavam o corpo dele para o alto de uma árvore e quando chegava no topo soltavam e ficavam repetindo essa tortura. Disse também que o castraram! Arrancaram seus testículos e o fizeram engolir, e mesmo assim ele pediu para vir pra casa terminar de criar os filhos. Mas continuar a vida pra ele não estava mais nos planos desses homens, desses miseráveis e terminaram de matá-lo (ARAÚJO, N, 2006).

Um grande silêncio se abateu sobre as mortes e desaparecimentos dos líderes camponeses durante o Regime Militar, mas com a Lei nº 9.140/95, Josineide Araújo constatou no Diário Oficial de 05 de dezembro de 1995, que o nome de Pedro Fazendeiro se encontrava na lista dos desaparecidos políticos. Em seguida, para garantir a busca, a exumação dos corpos e a liberação do atestado de óbito, formalizou um processo junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, levando todos os documentos que comprovassem o desaparecimento do seu pai logo após o Golpe.

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Formalizado o processo, foram feitas tentativas de escavações em Alcantil, onde os supostos corpos de Pedro Fazendeiro e de Nêgo Fuba haviam sido encontrados e enterrados. Durante essas tentativas, crescia a esperança da família de Pedro Fazendeiro, que desejava encontrar seus restos mortais para enterrá-los dignamente. Entretanto, a decepção tomou conta desta família porque, diante do fracasso da Polícia Científica e do Estado, os corpos dos camponeses não foram encontrados para a exumação prevista. Após as tentativas frustradas de escavações, que só mexeram com feridas nunca cicatrizadas da família Araújo, o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba liberou no dia 08 de fevereiro de 1996, portanto trinta e dois anos após o seu desaparecimento, o Atestado de Óbito de Pedro Fazendeiro. Em seguida, o governo propôs indenização para a família do líder, mas sobre essa medida do governo, Josineide desabafa, “nem cem mil reais, nem cem milhões de reais valem a vida do meu pai, nós queríamos ele perto da gente!” (ARAÚJO, J, 2006). Com esta indenização, o governo pretendia apagar os anos de escassez, medo, fome, discriminação e angústia que nortearam a vida dos filhos, filhas e da viúva do líder assassinado. No entanto, dinheiro algum poderia reparar esses danos e suprir a ausência de Pedro. A família havia desmoronado e só o tempo poderia erguê-la outra vez.

O Memorial das Ligas Camponesas Em Le Goff (2003, p. 471), temos que “a memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. Buscando essa liberdade proposta por Le Goff, no ano de 2008, no mesmo palco de conflitos por terra das décadas de 1950-1960, passou a existir, com o apoio de camponeses, de professores universitários e da Comissão Pastoral da Terra – CPT, o Memorial das Ligas Camponesas. Como mostra a figura 3, ele está localizado na comunidade Barra de Antas, município de Sapé/PB, na casa onde João Pedro Teixeira viveu com a esposa Elizabeth Teixeira e com os onze filhos. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 235

Figura 3 - Memorial das Ligas Camponesas Fonte: Acervo pessoal de Janicleide M. M. Alves

Aberto de segunda a sábado, duas pessoas da comunidade Barra de Antas zelam pelo Memorial recebendo estudantes, pesquisadores e turistas. As suas atividades não se restringem apenas ao resgate e a preservação das lutas camponesas no pré e no pósGolpe de 64, embora este seja um dos seus principais objetivos. A sua diretoria também se preocupa com a formação das crianças e dos jovens dos acampamentos e assentamentos da região de Barra de Antas, tendo como projeto a construção de uma Escola Familiar Agrícola – EFA, que visa manter os jovens trabalhando no campo, evitando que eles migrem para as periferias dos grandes centros. Dentre as metas que pretende alcançar, esta diretoria já concretizou duas de extrema importância: a desapropriação da casa em que hoje funciona o Memorial, concedida pelo governo do Estado e o seu tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – IPHAEP. Sobrevivendo de donativos, o Memorial das Ligas Camponesas, que também é uma ONG, ainda está em fase de organização. Ele é composto de um pequeno acervo de documentos, livros, fotos, carteira de um associado da Liga de Sapé, dissertações, quadros, exposição fotográfica, e recortes de jornais com matérias das Ligas e da repressão sobre os protagonistas que perderam a vida ou que sobreviveram ao Golpe Civil-Militar. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 236

Para manter viva a memória dos camponeses que lutaram e que tombaram enfrentando a aliança entre os latifundiários, a Polícia Militar e o Exército, o Memorial celebra – anualmente desde 2008, com apoio dos Movimentos Sociais do Campo e a presença marcante de Elizabeth Teixeira, com seus 88 anos – um ato público para lembrar a morte de João Pedro Teixeira e de todos os personagens daquele movimento de resistência. O sítio eletrônico ligascamponesas.org.br é outro meio utilizado pelo Memorial para receber e divulgar notícias, lembrando à sociedade das violações aos direitos humanos que ocorreram neste período recente da nossa história.

Considerações finais O poder dos latifundiários, com seus jagunços, foi ferozmente exercido na Paraíba antes e depois do Golpe Civil-Militar de 64. O Estado não controlava a violência dessa elite poderosa sobre os camponeses e suas tentativas de organização, especialmente com o fim do populismo do governo Pedro Gondim. Mas eles lutaram e sua batalha por direitos sociais e pela posse da terra não foi esquecida. O MST é sucessor das Ligas e tem sobrevivido conquistando direitos, embora seja criminalizado pelo Estado e vítima da violência dos proprietários de terras. O Memorial das Ligas Camponesas representa a luta do homem do campo contra a injustiça social e a repressão militar. Ele se ergue para que o Estado brasileiro não esqueça que obrigou Elizabeth Teixeira a abandonar dez filhos e viver a dor da clandestinidade. Para advertir que, após quarenta e nove anos, os familiares de Pedro Fazendeiro ainda esperam esclarecimentos sobre sua morte e desejam encontrar seus restos mortais para enterrá-los, chorar o seu luto e seguir adiante. Se o objetivo da Lei de Anistia foi levar a sociedade a perdoar e esquecer o período de torturas, mortes e desaparecimentos que ocorreram durante a Ditadura Militar, o Memorial nasce para lembrar que não dá para esquecer o que sequer foi revelado. Para quem o Exército entregou Pedro Fazendeiro? Em que circunstâncias ele morreu? Por que a CEMDP não encontrou os restos mortais desse líder? Estas são questões que o Memorial lança para o Estado e para os seus visitantes, sobretudo porque o que ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 237

aconteceu com aqueles camponeses ainda ocorre no nosso país, a exemplo do assassinato dos trabalhadores rurais que desafiam a estrutura de poder dominante. Resta-nos esperar que os trabalhos da atual Comissão Nacional da Verdade, criada para investigar os crimes do Regime Militar, apontem menos falhas do que a CEMDP e tragam respostas e alento para as vítimas e para os familiares dos mortos e desaparecidos políticos daquele regime tão temido.

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Notas 1

Mestranda em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pelo PPGDH/NCDH/UFPB.

2

O Grupo da Várzea era composto pelos proprietários de terras que, encabeçado por Aguinaldo Veloso Borges, dominava o cenário político na Paraíba.

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O arquivo da Direccion de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA): entre a memória histórica e a verdade judicial Marcos Oliveira Amorim Tolentino1

Resumo: Entre 1956 e 1998, a DIPBA – Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires - dedicou-se à espionagem, o registro e a análise da informação para a perseguição política e ideológica sobre a sociedade civil e política da província de Buenos Aires. Ao ser descoberto o seu arquivo, acreditou-se que a partir dele seria possível encontrar documentos que provassem a verdade sobre os desaparecidos. Consequentemente tem se explorado mais as suas possibilidades reparatórias e probatórias para as violações aos direitos humanos cometidos durante a mais recente ditadura civil-militar (1976-1983) do que a sua potencialidade para investigações históricas. Pensando nisso, o objetivo do nosso trabalho é problematizar as relações que se estabelecem na Argentina entre os arquivos e a aplicação da justiça a partir dos usos que são feitos do arquivo em questão. Palavras-chave: Argentina, memória; ditadura civil-militar; arquivos; DIPBA.

Abstract: From 1956 to 1998, DIPBA - Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires - was devoted to spying, recording and analyzing information in order to persecute the civil and political society of Buenos Aires ideologically and politically. When its file was discovered, it was believed that based on that it would be possible to find documents proving the truth about disappeared people. Consequently, reparatory and evidentiary possibilities have been explored for human rights violations committed during the latest civil-military dictatorship (1976-1983) rather than its potential for historical research. Thinking about it, the goal of our work is to discuss the relationships established in Argentina between those archives and the application of justice from the uses that are made of the archive in question. Keywords: Argentina; memory; civil-military dictatorship; archives, DIPBA.

Introdução Siempre décimos desde la Comisión: desarchivar lo archivado, mostrar lo oculto, exponer lo arrebatado, es la forma que tenemos de contribuir a la memoria, la justicia y la historia (Patricia Funes).

O acervo documental da DIPBA – Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires – é um dos arquivos referentes ao trabalho de repressão ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 240

política disponíveis para a consulta pública na Argentina.2 O seu processo de abertura iniciou-se em 1998 quando foi descoberta a preservação dos documentos produzidos e arquivados no edifício onde funcionara a central dos serviços de inteligência da polícia bonaerense, na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires (Página/12, 25/11/1998). Nesse mesmo ano, o Ministerio de Seguridad y Justicia dissolveu o órgão que desde 1956 dedicara-se à espionagem, seguimento, registro e análise das informações para a perseguição política e ideológica da sociedade civil e política provincial. O fim das atividades da DIPBA, em 1998, abriu também uma conjuntura que permitiu tirar das mãos da polícia o seu arquivo. Constatou-se então a urgência de se criar uma instituição responsável por sua custódia, pois ainda funcionava no prédio uma dependência policial, inclusive com antigos comissários que trabalharam para o órgão de inteligência, o que causava o temor de possíveis depurações. Assim, por iniciativa do Poder Legislativo, criou-se no ano 1999 a Comisión Provincial por la Memoria (CPM) (Lei Provincial 2.117/99). Em suas normas e objetivos, afirmava-se que ela deveria contribuir para manter viva a história recente do país na memória da sociedade bonaerense e para transmiti-la às futuras gerações. Entretanto, deixava claro qual memória e qual passado caberia a CPM: a sua atividade fundamental era esclarecer e tornar conhecida a verdade histórica dos acontecimentos vinculados com o autoritarismo e os golpes militares, em particular aqueles ocorridos durante os anos da última ditadura militar (Lei Provincial 12.483/2000). A criação da CPM este atrelada à vontade de se produzir um relato sobre um momento específico do passado recente argentino: a última ditadura civil-militar (19761983).3 Nesse sentindo, foram convidados para compô-la setores vinculados à luta em defesa dos direitos humanos - em uma vinculação recorrente na Argentina desta como algo relativo a ultima ditadura (Da SILVA CATELA, 2008) -, principalmente figuras de prestígio com uma trajetória publicamente reconhecida, como Estela de Carlotto, presidenta da Asociación Civil Abuelas de Plaza de Mayo; Laura Conte, madre de Plaza de Mayo da Línea Fundadora e vice-presidenta do Centro de Estudios Legales y Sociales; e

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Adolfo Pérez Esquivel, fundador do Servicio de Paz y Justicia (SERPAJ) e ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1981. Além disso, foi cedido a CPM o prédio onde a DIPBA funcionara (Lei Provincial 12.642/2000), constituindo-o como um espaço de memória, e tornando suas as tarefas de conservação, preservação e gestão do fundo documental e, desde 2003, a sua abertura para a consulta pública.4 Devemos ressaltar que esta ocupação é tida como pioneira na província de Buenos Aires ao ocupar um local onde funcionara um órgão repressivo. Assim, o atual prédio da CPM seria o primeiro espaço de memória referente a mais recente ditadura, sendo comparado ao que ocorria no momento de sua constituição com os prédios onde funcionaram os centros clandestinos de detenção, restringindo a história do órgão a este período histórico: Este es un poco el caso de la CPM. Un organismos que surge un poco anticipadamente a lo que van a ser los desarrollos de lugares como el espacio en la ex ESMA, o en el Olimpo. Son espacios de memoria que funcionan donde hubo centros clandestinos de detención, que se institucionalizan a partir de los 2000: 2003, 2004, 2005, 2006. En la provincia de Buenos Aires empezamos tempranamente (LENCI & RAGGIO, 2011, pp. 1-2).

Nesse processo, o Arquivo da DIPBA passou a ser significado como um arquivo da ditadura, tanto pelo caráter inicial da CPM, quanto pelo principal uso que passou a ser feito da sua documentação: elemento probatório nas causas judiciais contra os responsáveis pelas violações aos direitos humanos cometidas na última ditadura, reabertas a partir de 2003.5 A nosso ver gerou-se assim um esquecimento acerca das suas possibilidades para as investigações históricas, seja pela gama diversa de organizações da sociedade civil que se tornaram alvo de suas tarefas de vigilâncias; ou pela amplitude temporal que abarcam suas atividades, passando por distintos marcos institucionais da segunda metade do século XX argentino, incluindo sucessivos períodos ditatoriais e democráticos.

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Arquivos da repressão e justiça De acordo com Paulo Knauss e Camila da Costa Oliveira, os documentos de caráter permanente que encontramos nos arquivos públicos possuem valores primário e secundário relacionados ao seu ciclo de vida. Como documentos correntes, eles tiveram um valor primário no instante da sua produção, à espera da realização de ações decorrentes da decisão inscrita neles. Produzida e consumada tais ações, eles passam a ser o registro da memória de sua execução, o que para alguns os tornam inativos ou deixam e ter caráter utilitário. Porém, podem assumir um valor secundário relativo às novas possibilidades: por se tratar de suportes materiais de informação continuam sendo os mesmos documentos, mas ganham outra razão de ser a partir do interesse da sociedade na ação passada que eles registram (KNAUSS & OLIVEIRA, 2010, p. 291). Com o retorno às democracias nos países do Cone Sul latino-americano, a abertura dos arquivos das respectivas ditaduras tornou-se uma das principais bandeiras dos organismos de direitos humanos, e posteriormente dos pesquisadores sobre o período, que questionam as autoridades civis e militares sobre sua localização, conteúdo e acesso. Um dos traços comuns à ação da repressão estatal nas ditaduras da região foi o caráter clandestino de algumas de suas ações. Logo, tais documentos além de trazerem registros sobre a ação dos grupos responsáveis pelos sequestros, detenções ilegais, torturas e desaparecimentos, respaldam as denúncias há décadas promovidas por vítimas e familiares, questionadas por grupos sociais que ainda mantém uma memória positiva dos anos da ditadura (QUADRAT, 2012, pp. 201-203). Para eles, o sigilo dos arquivos impõe-se como um dos limites jurídicos e políticos à sua luta por verdade e justiça (TELES, 2006). Buscam assim não só esclarecer as violações sofridas, mas garantir o direito à informação - “[...] a possibilidade legal de ter e dar acesso à informação, tornar público, transparente, visível, algo antes obscuro e secreto” (COSTA, 2008, pp. 17-18). Os documentos dos arquivos da repressão seriam então uma ilustração significativa da transmutação do sentido dos documentos. Se no seu contexto de produção, serviram para incriminar e para imputar o cidadão considerado inimigo de Estado; no presente, tornam-se instrumentos da garantia de direitos dos cidadãos perante este mesmo Estado, podendo ser utilizados para reparações econômicas, ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 243

judiciais e simbólicas por perseguições sofridas. Logo, garantir o seu acesso é tido como uma condição fundamental para a consolidação da democracia no presente por romper com a cultura do segredo que caracterizou tanto períodos autoritários quanto democráticos no passado, reafirmando transformações nas relações entre Estado e sociedade civil (KNAUSS & OLIVEIRA, 2010, p. 291; QUADRAT, 2012, pp. 204-5). No caso do Arquivo da DIPBA podemos inserir a sua descoberta em uma história prévia de resistência à última ditadura civil-militar, como parte da luta por memória, verdade e justiça então assumida pelos organismos de direitos humanos, 6 que denunciaram a existência de arquivos repressivos e passaram a exigir a sua abertura para se aceder a informações sobre o destino final dos desaparecidos (LANTERI, 2011, p. 89). Porém, sempre esbarrava em um decreto militar de 1983 - a lei do decreto confidencial nº 2.726 - que determinava a destruição de documentos relativos à guerra contra a subversão no território nacional, e na reiterada negação da preservação de qualquer registro documental ao longo da democracia.7 Por esse motivo, Samantha Viz Quadrat afirma que a localização do acervo da DIPBA tratou-se na Argentina de uma vitória, à qual se seguiram outras descobertas paulatinas em outras províncias do país (QUADRAT, 2012, pp. 205-206). Podemos assim compreender o entusiasmo, a surpresa e a urgência por sistematizar a sua informação para torna-la pública apontados por Emmanuel Kahan como os sentimentos dominantes com a descoberta do arquivo: este era apontado como o primeiro repositório pertencente a um organismo de segurança vinculado à repressão e à violação aos direitos humanos durante a última ditadura ao qual a sociedade, o movimento de direitos humanos e as autoridades civis teriam acesso. Logo, como demonstrou uma nota publicada em 25 de novembro de 1998 no jornal Página/12, esperava-se que o arquivo da DIPBA pudesse revelar a dinâmica da inteligência e da perseguição a militantes políticos durante a década de 1970. Nas palavras de Emmanuel Kahan, “esta perspectiva se sostenía sobre la expectativa que depositaban en este fondo documental los actores que durante muchos años habían confrontado con el Estado nacional en pos de su recuperación y apertura (KAHAN, 2007).

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Durante a última ditadura civil-militar, a DIPBA utilizou-se de uma infiltração que já possuía na dinâmica político-social das cidades da província de Buenos Aires. Criada em 1956 com a Revolução Libertadura, num momento político marcado pela tentativa de proscrição do peronismo, no início, as atividades da DIPBA voltavam-se à investigação de todo inimigo político e social sobre o genérico discurso anticomunista, numa tradição que remontava às leis anticomunistas dos anos 1930, exacerbado no contexto da Guerra Fria. A preocupação com a infiltração comunista levou, nesse momento, a uma sobreposição entre peronistas e comunistas como se fosse uma coisa só. A partir da ditadura civilmilitar iniciada em 1966, a DIPBA passou por um processo de militarização e subordinação às Forças Armadas, e suas atividades passaram a se pautar na Doutrina de Segurança Nacional. Consequentemente, as atividades tidas como de questionamento à ordem tornaram-se atividades subversivas, causadoras da desagregação da nação, e um desafio para a defesa da civilização ocidental e cristã. Com a lei anti-subversiva de 1974, o delinquente subversivo tornou-se o delinquente terrorista, que para alcançar a finalidade dos seus postulados ideológicos utilizava-se de meios inconstitucionais e ilegais que perturbavam a paz social da nação, como, por exemplo, a violência armada (FUNES, 2006, pp. 205-218). Segundo Patricia Funes, tratava-se de um panóptico de vigilência e catalogação e uma infra-estrugura profissionalizada que, após ter funcionado por quase vinte anos, ficou sob a jurisdição do coronel Ramón Camps, em 27 de abril de 1976, enviando informações que alimentaram os sequestros e desaparecimentos no chamado Circuito Camps (FUNES, 2006, p. 19).8 Além disso, fazia parte de uma comunidade de informações em coordenação com serviços de inteligência de outras forças de segurança - a Polícia Federal, as demais polícias provinciais, os Poderes Executivos provinciais e as Forças Armadas -, brindando e recebendo informações de outras partes do país (JASCHEK, 2003; LANTERI, 2011, p. 89). Contudo, tratou-se de um órgão legal criado previamente à ditadura e adaptado às suas estratégias repressivas. Consequentemente, não é possível encontrar no seu arquivo documentos que tragam informações claras e significativas sobre os aspectos clandestinos da repressão, como, por exemplo, os desaparecimentos (LANTERI, 2011, p.

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95; LENCI & RAGGIO, 2011, p. 16). Segundo Sandra Raggio, tal constatação de alguma maneira frustrou as expectativas iniciais colocadas sobre o Arquivo: Yo me acuerdo cuando estuve por primera vez con el subcomisario de ese entonces, cuando nos estaban por entregar la casa. Y él me dije: “Información sobre los desaparecidos no van a encontrar, peor para los historiadores este archivo es fabuloso”. En ese momento estaba la fantasía de que el destino final de los desaparecidos estaba en esas fichas que habían en el Archivo (LENCI & RAGGIO, 2011, p. 16).

Por outro lado, é possível encontrar documentos que apontam indícios que permitem compreender a sistematização de algumas práticas repressivas clandestinas, “falando mais sobre o comportamento dos órgãos de repressão e informação do que sobre as pessoas vigiadas” (QUADRAT, 2012, p. 202). Por esse motivo, reconheceu-se o importante aporte probatório que o acervo documental da DIPBA poderia trazer para as causas sobre as violações cometidas durante a última ditadura.9 Nesse sentido, logo após sua descoberta, ele foi confiscado pela Cámara Federal de La Plata que então levava adiante os Juicios por la Verdad.10 Com a retomada das causas judiciais, a CPM formou um projeto de investigação no qual são analisadas informações já produzidas sobre a repressão clandestina ditatorial e os seus alcances em determinadas áreas e localidades. Uma vez cruzadas com a documentação encontrada no arquivo da DIPBA, permite-se comprovar elementos que conformaram alguns dos crimes cometidos pela ditadura, negados ou omitidos através de versões falsas, viabilizando a aplicação da justiça e a identificação de vítimas e responsáveis, como podemos perceber na seguinte declaração de Magdalena Lanteri, coordenadora do Centro de Documentação da CPM: Entonces no es directa la prueba en el sentido de que no hay un documento policial que diga: “el grupo de tareas conformado por mengano, fulano, esse día secuestró a…y lo llevaron a…”, eso no está, pero si aparece documentación que da cuenta de la persecución previa a estas personas, que de cuenta de un enfrentamiento entre fuerzas de seguridad y subversivos un día tal, un 27 de octubre, cuando cruzándolo con el “Nunca Más” esas personas estaban secuestradas hace tres o cuatro semanas. Entonces es posible advertir que ese documento es fraguado, y que de algún modo la propia policía “limpia”, transforma en un operativo legal un secuestro (LANTERI, 2011, p. 96).

De acordo com a página na Internet da Area de Justicia do Arquivo, tal estratégia permite revelar e comprovar o papel desempenhado pela informação produzida pelo

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órgão, uma vez em posse do Estado e do seu aparato repressivo; datar o início das atividades repressivas em determinada zona da província; apontar a cooperação entre distintas forças nos sequestros; e identificar quem foram os informantes e/ou responsáveis diretos pelos casos de desaparecimento. 11 Dentre as causas de maior repercussão pública nas quais foram utilizados os aportes probatórios da DIPBA estão os julgamento que condenaram à prisão perpétua o antigo diretor de investigações da polícia da Província de Buenos Aires, Miguel Etchecolatz, em setembro de 2006; e o sacerdote da Igreja Católica Cristian Von Wernich, em outubro de 2007. Em 2011, Caludia Bellingeri, perita do Arquivo, prestou testemunho no julgamento que investigava o Plano sistemático de apropriação de bebês, na qual apresentou documentos de vigilância sobre as atividades realizadas por Abuelas de Plaza de Mayo e sobre as ações judiciais realizadas por elas, em um demonstrativo de que havia a cooperação de tribunais de menores que lhe enviavam a DIPBA expedientes completos baseados nos pedidos realizados pelos familiares; uma lista com 103 jovens grávidas cujos bebês nasceram em cativeiro com sua data de sequestro, montada por um informante através de dados segundo ele parciais; além de pastas individuais de avós, filhos e netos desaparecidos, todos catalogados sob mesma a categoria de delinquentes subversivos (Página/12, 12/05/2011). Podemos observar que na cobertura midiática dos julgamentos pelos crimes de lesa humanidade cometidos durante a última ditadura a apresentação dos documentos da DIPBA pelos peritos do Arquivo recebe o mesmo destaque que alguns dos testemunhos realizados por sobreviventes e familiares de desaparecidos. Acreditamos que assim se reforça a ressignificação deste como um arquivo da ditadura.

O Arquivo da DIPBA: perspectivas de investigação Apesar de ter sido aberto à consulta pública em 2003, ao longo do nosso trabalho com o Arquivo notamos que ainda são poucos os trabalhos de investigação realizados a partir da documentação da DIPBA. Aqueles aos quais tivemos acesso nos permitem vislumbrar principalmente o alcance da vigilância e do registro realizado; porém, há uma ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 247

escassez de análises sobe as funções assumidas pelo órgão de inteligência e as possíveis mudanças e continuidades de sua lógica interna ao longo do seu funcionamento. Um dado que nos ajuda a compreender a escassez de trabalhos é o fato de ainda não ter sido produzido um guia temático do acervo do Arquivo. Nesse sentido, o catálogo sobre a vigilância aos movimentos estudantil e sindical disponíveis na sede do Arquivo podem estimular futuras investigações, assim como as coleções documentais lançadas em cd-room que visam difundir publicamente o seu acervo12. Para Emmanuel Kahan os poucos avanços produzidos no Arquivo por investigações acadêmicas, caso comparados aos resultados dos informes realizados com o intuito de colaborar com a Justiça, relacionam-se ao processo de abertura do Arquivo ter tido como protagonistas as organizações defensoras de direitos humanos, voltando-se assim para a expectativa dele se tornar um canal de informação privilegiado para se buscar a verdade sobre os desaparecidos, e causando, em contrapartida, um esquecimento acerca da riqueza do seu fundo documental. Riqueza esta que estaria no fato de que, em sintonia com a amplitude temporal do seu acervo, o arquivo da DIPBA pode dar conta de como foram executadas as tarefas de controle e registo sobre uma gama diversa de organizações da sociedade civil. Ao mesmo tempo em que a vigilância se estendeu no tempo, ela recaiu sobre distintos atores sociais, não só os diretamente vinculados com a atividade política, como os sindicatos, os partidos políticos e as organizações político-militares, mas setores envolvidos em atividades de organizações de bairro, de comunidades étnicas e de produção cultural. Através do seu acervo, poderíamos recuperar fontes documentais primárias produzidas por eles que foram conservadas como consequência do trabalho de campo policial (KAHAN, 2007). Além disso, os trabalhos realizados a partir dos arquivos da repressão nos países do Cone Sul latino-americano tem se caracterizado nos últimos anos por analisar as características da repressão política efetuada durante as mais recentes ditaduras civismilitares. No caso da DIPBA, esta tarefa encontra-se dificultada, pois para ter acesso à documentação produzida entre os anos de 1973 e 1983 é necessário fazer um requerimento à Justiça. Consequentemente, notamos como tal medida reafirma que se

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trata de uma documentação de interesse primordial da justiça, em detrimento do trabalho de investigação histórica. Apesar de tais dificuldades, a nosso ver, as possibilidades do Arquivo da DIPBA para se trabalhar o tema da mais recente ditadura civil-militar argentina não estaria apenas na documentação referente a tal período: o fato da DIPBA ter continuado com a vigilância no período democrático que segui à mais recente ditadura, entre 1984 e 1998, faz com que o seu acervo seja uma porta de entrada para a recuperação das relações entre distintos setores da sociedade civil e o Estado argentino com o passado ditatorial. A partir do seu acervo, por exemplo, é possível mapear as distintas iniciativas realizadas pelos organismos de direitos humanos ao longo de quinze anos de democracia. A produção de informação sobre suas atividades conservou documentos que muitas vezes nem os próprios organismos conservam mais, tendo em vista que a criação de arquivos históricos que preservem a sua memória institucional a partir da organização de panfletos, de cartazes e do registro fotográfico de seus atos públicos, tem se afirmado como uma preocupação recente. Além disso, no acervo da DIPBA podemos encontrar pastas temáticas voltadas para a vigilância de comemorações ligadas a datas do calendário de datas da última ditadura. Acerca das comemorações do 16 de setembro, por exemplo, data na qual se homenageia a um grupo de estudantes secundaristas de La Plata desaparecidos em 16 de setembro de 1976, há uma pasta temática de título: Mesa “A” Estudiantil: Estudiantes Secundarios “La noche de los lápices.” Nesta pasta encontram-se documentos reunidos, produzidos e preservados sobre as distintas práticas de rememoração ocorridas na Província de Buenos Aires, entre os anos de 1990 e 1996. Tal sistematização nos permitiu analisar de que maneira tal data foi ressignificada ao longo desses anos, e como ela se manteve na memória coletiva da sociedade argentina, num período marcado por políticas de conciliação com o passado ditatorial. Outra possibilidade que se coloca é a análise dos efeitos de discursos e práticas do período ditatorial sobre a democracia, através de possíveis continuidades. Permite-nos assim questionar a representação da mais recente ditadura como uma experiência

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política radicalmente distinta e isolada historicamente, um parêntesis histórico ou uma noite de pesadelo que se iniciou subitamente em 24 de março de 1976, com o qual a eleição de Raul Alfonsín rompeu completamente; alheia à dinâmica política das décadas que a antecederam e que a seguiram. (FRANCO, 2011). O fato da DIPBA, um órgão de vigilância político-ideológica próprio de uma ditadura, ter iniciado suas atividades antes de 1976, e ter continuado com as mesmas após o seu fim, é um claro demonstrativo de que se trata de uma produção de memória passível de ser problematizada; além de um demonstrativo de que a violência política na Argentina deve ser pensada na longa duração de sua trajetória política (QUADRAT, 2012, p. 212). O perfil do outro vigiado pela DIPBA é historicamente datado, o que gera deslocamentos quanto aos setores privilegiados pela ação da vigilância. Sobre este setores constroem-se estereótipos que os tornam suspeitos de delitos de antemão; estereótipos que justificam a vigilância que recaía sobre eles. Tratava-se, sobretudo, de uma espionagem preventiva, como expressou uma das autojustificativas produzidas pelo próprio órgão sobre sua atuação: “El postulado parte de la base de saber quién es quién, tener registrado a los buenos, para saber quiénes son cuando dejan de serlos” (FUNES, 2006, p. 203). A DIPBA acumulava então uma gama de informações sobre pessoas e setores potencialmente perigosos para, a partir delas, prevenir possíveis contestações públicas às ordens cultural, econômica e política (FUNES, 2006, p. 204). A ideia da existência de uma ameaça interna que deveria ser prevenida visava o controle social; logo, nenhum coletivo ou indivíduo estaria livre de suspeitas, já que um projeto em defesa dos valores nacionais deveria abarcar a sociedade como um todo, e não apenas um setor. Os mais atuantes como os peronistas, os sindicalistas de qualquer tendência e aqueles que se vinculavam a ideais e práticas mais à esquerda, tornavam-se alvos imediatos e óbvios, principalmente tendo em vista o contexto de criação da DIPBA. Porém, ao longo de suas atividades, e em compasso com sucessivas leis repressivas, essa teia multiplicou-se e passou a abarcar como suspeitos qualquer um que desenvolvesse práticas tidas como questionadoras. Consequentemente, os informes produzidos por ela expressam as noções prévias que constroem o lugar que o vigiado ocupava na ótica do poder público, e as representações que se produzia sobre ele que justificavam e davam sentido ao próprio trabalho de vigilância (FONTES & NEGRO, 2001). ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 250

Logo, a continuidade das atividades de um órgão policial de inteligência como a DIPBA leva-nos a questionar os limites institucionais que se colocaram na transição, sobretudo a permanência de algumas práticas na relação entre Estado e sociedade civil. Nesse sentido, em uma democracia que afirmava o respeito ao pluralismo, ao espaço público e à liberdade de expressão e de pensamento, devemos nos perguntar qual inimigo interno seria este que passaria a justificar as atividades de vigilância da DIPBA. A partir de 1995, por exemplo, a DIPBA passou a vigiar com atenção a formação de um organismo de direitos humanos no qual se reuniram os filhos de desaparecidos em cidades como La Plata e Mar del Plata - HIJOS (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio).13 O material produzido encontra-se hoje reunido na Mesa DS, a mesma na qual desde a mais recente ditadura civil-militar passou a se reunir a informação sobre os delinquentes subversivos.14 Nesta mesa encontramos, por exemplo, o material sobre as atividades realizadas por Madres e Abuelas de Plaza de Mayo durante os últimos anos da ditadura. Trata-se, portanto, de um indicativo de que pouco pode ter mudado na relação entre os órgãos de segurança argentino e os organismos de direitos humanos com o fim da ditadura, pois sua atitude questionadora de demandar do Estado respostas para as suas demandas continuaram sendo vistas pela DIPBA como possíveis perturbações à ordem. Podemos, assim, perceber que afirmar que o Arquivo da DIPBA é um arquivo da ditadura, cujo potencial estaria no seu caráter probatório de violações aos direitos humanos cometidas durante a última ditadura civil-militar, gera um esquecimento sobre as possibilidades de investigação que podem ser feitas a partir de seu acervo. Com isso não questionamos a sua importância para os julgamentos em curso, tanto pelo peso condenatório e reparatório de alguns dos seus documentos, quanto pela possibilidade de se produzir conhecimento histórico a partir das informações surgidas ao longo das sessões judiciais e de suas sentenças. Algumas causas recentes trouxeram a tona questões poucos exploradas na Argentina como, por exemplo, a violência de gênero e como esta se configurou em uma prática específica da tortura nos centros clandestinos de detenção (MEMORIA ABIERTA, 2012).

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Porém, como afirmou Samantha Viz Quadrat, devemos diferenciar o uso desses documentos como fonte de pesquisa histórica do seu uso jurídico (QUADRAT, 2012, pp. 202-203). Podemos assim perceber que na Argentina a mesma vontade política de se aproveitar o potencial probatório dos arquivos referentes ao período da mais recente ditadura civil-militar não se reflete em uma política nacional de arquivos (QUADRAT, 2012, p. 206). No caso da DIPBA, o potencial do ser acervo parece subordinado a um período específico do funcionamento do órgão, contribuindo-se assim mais para a justiça e para uma memória, do que para a história.

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Notas

1

Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas. Esta reflexão é parte da minha dissertação de Mestrado “O 16 de setembro sob a ótica da DIPBA – Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (1990-1996)”, apresentada em agosto de 2012, sob orientação do Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto. Correio eletrônico: [email protected] 2

Para uma discussão acerca dos arquivos repressivos argentinos, o seu processo de abertura e os seus acervos ver: KARABABIKIÁN, 2004; Da SILVA CATELA, 2007; LORENZ, 2007; QUADRAT, 2012. 3

As relações entre as sociedades dos países do Cone Sul latino-americano e as respectivas ditaduras têm sido problematizadas por pesquisadores que buscam desconstruir uma memória recorrente nas democracias que as sucederam segundo a qual o autoritarismo só teria sido possível em função de instituições e práticas coercitivas e manipulatórias. Buscam assim compreender as ditaduras como produtos sociais, e não como fruto da vontade de poucos, geralmente tidos como algozes frente a sociedades

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vitimizadas, analisando os correlatos a nível social de algumas das estratégias utilizadas pelas ditaduras, em uma dupla dimensão que abarca as ações e convocatórias dirigidas à sociedade, e os comportamentos exibidos por elas durante esses anos (QUADRAT & ROLLEMBERG, 2010). No caso argentino, produziu-se uma memória na qual as práticas efetivas do terror sobre os indivíduos parecem ter ocorrido distante deles. A ação da ditadura, sobretudo das Forças Armadas, aparece como a de um exército de ocupação, gerando um esquecimento do fato de que o seu programa de intervenção sobre o Estado e sobre amplos setores sociais não era alheio a tradições, ações e representações políticas compartilhadas, o que gerou expressões diversas de apoio civil (VEZZETTI, 2009, p. 39; 2011, p. 53). Logo, optaremos por utilizar a denominação ditadura civil-militar para nos referirmos a tal experiência, apesar da produção acadêmica no país ainda não adotar o termo civil, mesmo que algumas investigações já terem demonstrado o consentimento golpista de setores da sociedade nos meses prévios ao golpe e a sua adesão à luta anti-subversiva durante a ditadura (FRANCO, 2012, pp. 25-26). 4

Após a cessão do Arquivo da DIPBA para a CPM, os documentos até então secretos, confidenciais e reservados foram desclassificados. Surgiu então o dilema entre a difusão da documentação que então se tornava pública, e os dados sensíveis que poderiam constar em seus papéis, sobretudo aqueles que difamariam os alvos das investigações. No caso da DIPBA, era comum que no seu trabalho de campo os agentes policiais realizassem tarefas denominadas ambientales, nas quais um policial era enviado ao bairro do investigado para perguntar aos vizinhos e comerciantes o que sabiam sobre ele, documentando assim comentários sobre a sua vida privada (LENCI & RAGGIO, 2011, pp. 12-13). Para resolver tal impasse, foram reunidos historiadores, cientistas sociais e membros da CPM para brindar opiniões sobre o quê e como se estabeleceria uma relação entre o arquivo e a sociedade, principalmente em relação aos níveis de acesso aos documentos. No final, decidiram que este seria público e indireto: apesar de ter se possibilitado a sua consulta pública, o acesso ao fichário que o organiza é restrito aos peritos que trabalham no local. A busca no acervo é feita por eles a partir de palavras-chaves sugeridas pelo consultante e a este são dadas fotocópias dos documentos originais. Prontuários pessoais só podem ser consultados através de uma autorização legal da pessoa fichada ou de seus familiares. Além disso, nomes de pessoas quando vinculados a uma filiação político-ideológica são tarjados (Da SILVA CATELA, 2007, p. 212; FUNES, 2010, p. 104). 5

Em agosto de 2003, o Congresso Nacional aprovou a lei 25.779 que declarou a nulidade legislativa das leis de Punto Final e de Obediencia Debida e outorgou a imprescritibilidade dos crimes cometidos durante a última ditadura inserindo-os na convenção de crimes de lesa humanidade. Esta medida foi ratificada em 15 de junho de 2006, quando a Cámara de Casación Penal, instância máxima do Poder Judicial argentino, considerou que os Indultos concedidos eram inconstitucionais (MEMORIA ABIERTA, 2010, pp. 134-137). 6

A violação massiva e sistemática aos direitos humanos durante a mais recente ditadura fez com que a ação do movimento argentino pelos direitos humanos assumisse como eixo de ação comum entre os distintos organismos a estreita relação entre três componentes: o reclamo pela verdade sobre o destino das vítimas e a informação sobre os atos cometidos; a demanda de justiça que apontavam para a necessidade de que dessa vez, diferentemente das ditaduras anteriores, os responsáveis não ficassem impunes; e a memória, coletiva e histórica, contra as políticas institucionais de negação dos atos cometidos e esquecimento. Nesse plano de uma luta pela informação e pela verdade desenvolve-se um enfretamento e uma resistência decisivos com a ditadura, pautados na necessidade de fazer com que a sociedade e a opinião pública internacional conhecessem a magnitude do que ocorria no país (JELIN, 1995: p. 104; VEZZETTI, 2009, pp. 21-22). 7

Para Raul Molina, presidente do Archivo Nacional de la Memoria, apesar de ainda não ter sido encontrados, há arquivos que não foram destruídos e que teriam sido microfilmados e depositados no exterior. As resoluções aprovadas em 1983 teriam sido um pretexto para tirar a documentação do controle estatal (MOLINA, 2008). 8

Em algumas cidades da província de Buenos Aires, e principalmente na cidade de La Plata e seus arredores, funcionou durante a ditadura o chamado Circuito Camps. A metáfora do circuito era utilizada para se referir aos centros clandestinos de detenção que funcionavam sob a responsabilidade de uma força, em determinada zona territorial, pelos quais se faziam circular os detidos. O Circuito Camps era assim dependente da Polícia da Província de Buenos Aires e se tornou um dos maiores centros de operações repressivas do país, tanto pelo território geográfico que compreendia como pela densidade populacional ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 255

que abarcava. Baseou-se no funcionamento de mais de vinte centros clandestinos, e foi responsável por alguns dos casos de desaparecimento mais notórios na memória coletiva da sociedade argentina, como, por exemplo, o episódio conhecido como La Noche de los lápices (CAVIGLIA, 2006, p. 39; MANEIRO, 2009). 9

Este não se trata do único uso judicial feito do Arquivo da DIPBA: os seus documentos constituem em muitos casos uma prova imprescindível para que cidadãos argentinos conquistem indenizações econômicas baseadas nas Leyes de reparación a las víctimas de la última dictadura militar. 10

Após uma sentença da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre Honduras, que afirmou a obrigação dos Estados em investigar e julgar os casos de desaparição forçada de pessoas, e a apresentação de um caso na Argentina à CIDH pelo Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), o Estado argentino comprometeu-se a garantir o direito à verdade dos familiares de desaparecidos durante a ditadura, viabilizando os Juicios por la Verdad. Através de audiências públicas, eram levados adiantes processos nos quais se investigavam todas as circunstâncias relacionadas com um desaparecimento. Apesar de não contemplarem a possibilidade de condenação judicial, eles tiveram grande importância por reunir uma gama de informações que, após a declaração de inconstitucionalidade e nulidade das leis de Indulto, em 2003, viabilizaram as novas causas ou a reabertura de outras iniciadas na década de 1980 (MEMORIA ABIERTA, 2010, pp. 124-134). 11

http://www.comisionporlamemoria.org/archivo/?page_id=193 (Última consulta em: 28/07/2013).

12

Até o momento, a CPM produziu e disponibilizou na sede do Arquivo quatorze coleções documentais digitalizadas. A escolha dos temas recaiu sobre os que geram mais interesse de acordo com as consultas feitas ao Arquivo. De acordo com Magdalena Lanteri, a ideia de produzi-las surgiu da necessidade de garantir uma democratização da documentação, sem descuidar da proteção da identidade daqueles que foram vítimas da perseguição político-ideológica (LANTERI, 2009). 13

Em maio de 2004, a revista Puentes, editada pela CPM, publicou o discurso lido por representantes de HIJOS durante o ato de entrega da documentação encontrada no arquivo, referente a uma vigilância iniciada em 1995, ano de sua criação (“Nuestros viejos siguen molestándolos” In: Puentes, nª 11, Ano 4. La Plata: CPM, maio de 2004). 14

A División de Archivo y Fichero da DIPBA, sistematizada a partir de 1957, está organizada em mesas. que se referem a diferentes fatores: a Mesa A contém informação produzida e reunida em torno do fatores político, estudantil, comunitário e imprensa, nos quais é possível encontrar a vigilância detalhada de distintas organizações políticas da sociedade civil; a Mesa B reúne informação sobre os fatores sindical, econômico e trabalhista, referentes às atividades de sindicatos, colégios e associações de profissionais e empresários; a Mesa C refere -se aos considerado pelo órgão como comunistas; a Mesa DE contém as mais diversas organizações da sociedade civil, como as de caráter religioso; a Mesa DS refere-se à denominação Delinquente Subversivo, reunindo informações sobre as atividades consideradas pela própria polícia como atividades subversivas, como as organizações político-militares, as ações realizadas por familiares de desaparecidos durante a última ditadura civil -militar, e o trabalho desenvolvido pelo movimento argentinos pelos direitos humanos, entre as décadas de 1960 e o fim das atividades da DIPBA; por último, a Mesa Doctrina contém documentação interna da polícia provincial.

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Sessão 6

ARQUIVOS DA REPRESSÃO

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O Ministério do Trabalho e o trabalhador: a atuação de Arnaldo Sussekind

Heliene Nagasava1

Resumo: O artigo busca destrinchar a atuação de Arnaldo Sussekind, como ministro do Trabalho, na promoção de ações voltadas para os trabalhadores durante o contexto de disputa de interesses com os outros ministérios, especialmente aqueles da área econômica, assim como discutir como o governo via os trabalhadores na ditadura civilmilitar. Nesse sentido, a problematização dos expurgos sindicais, da lei antigreve e do arrocho salarial insere-se na conjuntura de formação de uma classe trabalhadora moldada de acordo com os interesses do novo regime. Palavras-chave: Ministério do Trabalho; ditadura civil-militar; Arnaldo Sussekind.

Abstract: The article tries to unravel the role of Arnaldo Sussekind as Labour Minister in promoting actions for workers during the context of a dispute of interest with other ministries, especially those facing economic area, as well as discuss how the government saw workers in the civil-military dictatorship. In this sense, the problematization of the purges, of the law against strike and of the wage squeeze is part of the conjuncture of the formation of a working class shaped according to the interests of the new regime. Keywords: Ministry of Labour; Civil-military dictatorship; Arnaldo Sussekind.

Em novembro de 1930 foi criado o Ministério do Trabalho, integrado à pasta da Indústria e Comércio2, com a intenção de aproximar o movimento sindical do Estado. O Ministério se manteve com sua denominação original até 1960, quando foi renomeado para Ministério do Trabalho e Previdência Social3. Esta mudança, realizada quase no final do mandato de Juscelino Kubitscheck, estava relacionada com a criação e regulamentação da Lei Orgânica da Previdência Social.

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Com o golpe militar em abril de 1964, uma das primeiras ações do presidente em exercício, Ranieri Mazilli, foi a exoneração dos ministros ligados ao governo João Goulart e a nomeação de partidários vinculados às doutrinas dos golpistas. Arnaldo Sussekind foi convidado a fazer parte do governo por Mazzilli, recomendado pelo corregedor Júlio Barata para Costa e Silva, neste momento, membro do Comando Supremo da Revolução. Barata tornou-se posteriormente o ministro do Trabalho no governo Médici. Como a eleição indireta de Castelo Branco para a presidência, o nome de Sussekind foi referendado, pois, apesar de tido como jovem, tinha apenas 46 anos em 1964, ele entendia bem a estrutura do ministério, tendo trabalhado em diversos setores da pasta e participado da criação da CLT e da instalação da Justiça do Trabalho (VIANA FILHO, 1975, p.117). Viana Filho, chefe do Gabinete Civil do governo Castelo Branco, afirma que Sussekind e Octávio Bulhões foram escolhidos por não terem vinculação partidária, "demonstração que o presidente quisera libertar-se das influências partidárias” (VIANA FILHO, 1975, p.69). Desde o início, existia a preocupação de evidenciar que o governo não era composto apenas por militares, sendo ressaltado o interesse em convidar civis, na figura de empresários, técnicos e políticos. Arnaldo Lopes Süssekind esteve na cabeça do Ministério de abril de 1964 a dezembro de 1965. Viana Filho, chefe do Gabinete Civil de Castelo Branco, descreve que: uma das primeiras sugestões de Sussekind, para captar a confiança dos operários, foi o desarquivamento, no Senado, do projeto que regulava o direito de greve, há muito paralisado. (...) Através de emendas por intermédio dos líderes do governo no Congresso, ajustou o projeto aos objetivos da Revolução, contrário às greves políticas e às deflagradas sem a responsabilidade do sindicato (VIANA FILHO, 1975, p.118).

Em 23/02/1949, foi apresentado pela Comissão Mista de Leis Complementares, o projeto de lei que dispunha sobre os dissídios coletivos de trabalho, regulando o artigo 123, § 2º e o art. 158 da Constituição Federal de 1946, sendo o primeiro tópico do projeto: “Da greve”. A despeito de ter subido para discussão no Plenário, em março do mesmo ano, o processo iniciará um longo caminho entre comissões, emendas, pareceres e novas discussões no plenário, sendo adiada a sua votação por diversas vezes.

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Não nos cabe analisar detalhadamente o caminho, motivos e interesses na nãoaprovação, pois as disputas que perpassaram a sua apresentação em 1949 e a sua aprovação em 1964 são símbolos das lutas trabalhistas e precisam ser analisadas dentro do contexto social nacional. No entanto, a compreensão de alguns elementos sobre as transformações da legislação sobre greve aponta os motivos para apresentação do projeto na Comissão Mista. Alison Doppra indica que: Na constituição de 1932 a Greve deixou de ser classificada como crime e foi transformada em delito, para então na Constituição de 1937 ser considerada um movimento anti-social que “fazia mal do trabalho”. Esse tipo de enquadramento durou até a Constituição de 1946. Alteração que deve ser creditada a força que o movimento grevista demonstrou ao longo de 1945. [...] As forças conservadoras “prevendo” que a Greve seria incorporada como um Direito pela nova Constituição articularam-se e em 15 de Março de 1946 aprovaram o Decreto-lei nº 9.070, impondo diversos limites ao novo Direito que seria reconhecido em setembro do mesmo ano. Nestas circunstâncias a Greve não poderia ser aplicada nas atividades consideradas essenciais e seu exercício dependia de uma grande burocracia (DROPPA, 2012, p. 1511).

O argumento do autor é que, em 1949, diante do questionamento da legalidade do Decreto-lei n.º 9070, os trabalhistas encaminham um projeto de lei, que levou o número 1471, visando a regulamentação do dispositivo constitucional que criava o Direito de Greve. O projeto apresentado manteria os “trâmites burocráticos do Decreto-Lei 9070, [mas] excluía definitivamente o conceito de atividades essenciais, ou seja, a greve poderia ser aplicada em todas as categorias de forma legal” (DROPPA, 2012, p.1514). No entanto, no dia 04/04/1964, apenas três dias depois do golpe e ainda diante de muita instabilidade, o processo volta para a pauta do Senado, e a fala de Viana já indica as intenções do governo em resgatar essa discussão, a busca de uma despolitização das reivindicações trabalhistas e a necessidade de controlar quem poderia convocar paralisações. A lei antigreve, como ficou conhecida, estava combinada com o Ato Institucional n.º1, que iniciava o expurgo de milhares de sindicalistas da política. 4 Se a greve só poderia ser deflagrada pelo sindicato, a saída das suas lideranças colocava em xeque sua mobilização. Com a oposição trabalhista sendo neutralizada, o governo lança o seu plano de estabilidade, o Paeg – Programa de Ação Econômica do Governo – 1964-1985, formulado

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por Roberto Campos, ministro do Planejamento, e Octavio Gouveia de Bulhões, da Fazenda. O programa apontava os déficits no setor público, excesso de crédito para o setor privado e os aumentos salariais como principais causas do excesso de demanda, que por sua vez geravam inflação, maior empecilho para o desenvolvimento do país (SKIDMORE, 1988, p. 69). Se os aumentos salariais eram uma das causas do desajuste econômico, o governo implementou medidas para contê-los. No setor público os salários só poderiam ser reajustados a cada 12 meses, seguindo regras específicas, e o setor privado logo seguiu o seu exemplo. Com a inflação incontida e os salários congelados, o custo de vida disparou. Ao ser questionado sobre a reivindicação de reajustes, o governo respondeu que “reajustar os salários simplesmente aplicando índices de aumentos de custo de vida é incompatível com a política anti-inflação” (SKIDMORE, 1988, p. 81). Na primeira reunião ministerial em que foi apresentado o Paeg, é o então ministro e futuro presidente, Costa e Silva, que levanta o problema do custo de vida e as consequências políticas que essa medida teria (MELO, 1979, p. 90). A preocupação com a área trabalhista era evidente e Viana destaca que seria “difícil convencer os trabalhadores da, no mínimo, insensibilidade do governo com a liberação dos aluguéis e aumentos dos preços com a eliminação dos subsídios ao petróleo e ao trigo” (VIANA FILHO, 1975, p.116). Na ótica da ditadura, a área trabalhista era sensível e precisava de atenção, tendo em vista a atuação e poder que havia tido no governo João Goulart e no pós-golpe a articulação com os estudantes e grupos de esquerda. Tratados paternalisticamente, o governo afirmava que os trabalhadores “precisavam ser desintoxicados a fim de compreenderem quanto haviam sido iludidos com promessas irrealizáveis” (VIANA FILHO, 1975, p. 116). Preocupação, vale dizer, apenas no campo da repressão, pois nenhuma ação que atrapalhasse os planos econômicos seria levada em consideração. Além da opressão aos sindicatos, o que estava fazendo o Ministério do Trabalho diante dessas medidas econômicas? Seus ministros apoiavam cegamente a ação dos

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ministérios do Planejamento e da Fazenda? A alteração do pagamento do 13º salário fornece pistas sobre esse relacionamento. A dupla Campos-Bulhões expõe ao presidente Castelo Branco a preocupação com o ônus que o 13º salário causava as empresas, dobrando as folhas de pagamento, em dezembro, “obrigando-as a empréstimos bancários, com repercussão no custo da produção”, além disso causava expansão monetária e consequente empuxe inflacionário. Havia ainda um complicador de ordem psicológica, pois como nos descreve Viana “transmitia a impressão de salário sem esforço”, argumento que revela muito sobre a imagem sobre os trabalhadores que os novos detentores do poder possuíam (VIANA FILHO, 1975, p. 119). Três foram às soluções apresentadas pela dupla financeira: 1) gratificação por produtividade, mas que apresentaria na prática dificuldades administrativas de avaliação; 2) acréscimo mensal, correspondente ao fracionamento do 13º, eliminando a duplicada da folha no final do ano, mas teria a desvantagem de, talvez no futuro, despertar a reivindicação de restauração do 13º salário; 3) pagamento parcelado do 13º. Pretendendo reduzir os atritos com a classe trabalhadora, o presidente chama o ministro do Trabalho e solicita uma saída. O modo de entender os trabalhadores pode ser depreendido dessa pequena ação. Se os assuntos atribuídos à pasta do Trabalho resumiam-se à organização profissional e sindical, ao mercado de trabalho e à política de emprego e salarial, dentre outros, a fala do presidente permite-nos acrescentar mais um: atender os objetivos da área econômica evitando um maior desgaste com os trabalhadores. A solução de Sussekind foi dividir a gratificação em duas parcelas, uma sendo paga em dezembro e outra por ocasião de férias do trabalhador se requerida em janeiro, ou entre fevereiro e novembro, a critério do empregador. De forma contraditória, Viana argumenta que Castelo Branco “convicto de ser mais importante convencer e conquistar opiniões do que usar a força da autoridade, [...] procurando apoio para as iniciativas que lhe pareciam benéficas aos trabalhadores” condicionou às Confederações Nacionais dos Trabalhadores a postulação da proposta de ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 262

divisão do 13º. Se era tão benéfica ao trabalhador, porque manobra-la e fazê-la parecer que as próprias Confederações haviam proposto? O próprio Viana argumenta que o presidente estava preocupado com a possibilidade de críticas e não queria se desgastar ainda mais diante dos trabalhadores (VIANA FILHO, 1975, p. 120). A questão econômica, que permeou as falas dos presidentes nos primeiros anos da ditadura civil-militar, deixava claro o papel das classes trabalhadoras para o governo. O exemplo citado, o fracionamento do 13º salário, nos fornece indícios que se o país estava envolto numa situação financeira caótica e a solução encontrada, o Paeg, pressupunha o arrocho para conter a inflação, a classe trabalhadora deveria adequar-se e compreender que os aumentos salariais que receberam dos governos anteriores não eram saudáveis para o país, e que muitas vezes, ao serem beneficiados com uma melhoria na qualidade de vida, não perceberiam o quanto estariam sendo manipulados. Citarei três falas que expõem que visão o governo tinha dos trabalhadores. A primeira é uma parte do discurso de posse de Castelo Branco: Creio firmemente na compatibilidade do desenvolvimento com os processos democráticos, mas não creio em desenvolvimento à sombra da orgia inflacionária, ilusão e flagelo dos menos favorecidos pela fortuna, e ninguém pode esperar destruí-lo sem dar a sua parte no trabalho e no sacrifício, fonte única de onde poderá fluir o bem estar e a prosperidade de todos. Portanto, que cada um faça a sua parte e carregue a pedra, nesta tarefa de soerguimento nacional (MELLO, 1979, p. 212).

Se Castelo Branco estava indicando que haveria custos com a reforma proposta para estabilização econômica, as duas falas de Viana Filho nomeiam quem ‘carregaria a pedra’: Dadas as contingências, contudo, que obrigaram medidas impopulares, e a necessidade de corrigir erros acumulados durante muito tempo, perdurou a imagem desfavorável do Governos entre os operários. Dificilmente estes compreenderiam os malefícios de que tinham sido vítimas inconscientes e indefesas, e após vários anos de desordem salarial, com os prazos de reajustamento a se encurtarem gradativamente, sem que os operários tivessem noção dos prejuízos advindos da progressiva diluição dos salários, fora difícil conter as reivindicações oriundas de todos os setores, inclusive das autarquias governamentais (VIANA FILHO, 1975, p. 138).

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O que quero destacar é o contraste do discurso dirigido aos trabalhadores. Antes eles seriam beneficiados com políticas populistas que levaram o país à beira do caos econômico. No momento pós-golpe, eles sofrem restrições econômicas, tendo que assumir sua parte no sacrifício para a estabilização econômica. Até esse momento, podemos perceber que as ações do governo foram permeadas pela necessidade de controlar a atividade sindical, através dos expurgos e da lei antigreve, e implantar a nova política econômica, que se sustentava no arrocho salarial. No entanto, a necessidade desta política ser referendada pelas Confederações Nacionais dos Trabalhadores indica a preocupação em legitimá-la aos olhos dos trabalhadores. Volto então ao meu questionamento principal: como o governo militar viu o desempenho do ministro do Trabalho diante dessa tarefa de equilibrar interesses tão antagônicos? O trabalho de Sussekind foi avaliado por Viana como positivo: podia-se considerar terminada a tarefa de saneamento, [...] graças ao conhecimento dos problemas e habilidade com que os encaminhara sem maiores atritos. Atendera-se aos interesses dos trabalhadores, ao tempo em que se iniciara um programa de reformas, que transformariam o ministério, retirando-lhe a condição de instrumento de pressão sobre os sindicatos e autarquias a serviço da política (VIANA FILHO, 1975, p. 121).

O presidente avaliou que, com a atuação do ministro, os trabalhadores pareciam começar a compreender a seriedade do esforço de recuperação da economia. O cenário descrito é de plena conciliação. A despeito das consequências econômicas que o governo os submetia, a conscientização estava realizada e, mesmo sacrificados, teriam entendido o seu papel no novo regime. A fala oficial pode indicar um caminho de acomodação e conformismo, mas o principal indício do descontentamento dos trabalhadores com as ações repressivas, com os expurgos nos sindicatos e com o arrocho salarial, foram as eleições estaduais, em 1965, quando o governo sofreu uma massiva derrota, desencadeando o Ato Institucional n. 2 (BADARÓ, 1998, p.113), e as eleições sindicais, conforme Santana, mobilizaram a formulação de chapas independentes, que concorreram com interventores. “Esta mobilização em termos da cúpula sindical tinha como lastro as mobilizações, ainda que surdas, nos locais de trabalho” (SANTANA, 2008, p. 283). ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 264

Após AI-2, o presidente Castelo decide fazer modificações no seu ministério, pois pretendia que este tivesse “uma certa tonalidade política”. Em dezembro de 1965, Sussekind é convidado para o Superior Tribunal do Trabalho e Walter Peracchi Barcelos, escolhido com a intenção de “arregimentar novas forças”, vai para a pasta do Trabalho. (MELLO, 1979, p. 299). Vinculado ao PSD gaúcho, Peracchi apresentava um passado de lutas contra Goulart e Brizola, “brigara na trincheira do inimigo” e sua nomeação era claramente política (VIANA FILHO, 1975, p. 363). A intenção de se constituir um ministério civil e apartidários, expressa, por exemplo, na indicação de Arnaldo Sussekind, gradualmente iria se modificando com a posse de Peracchi e de Jarbas Passarinho. No entanto, o expurgo nos sindicatos não arrefeceu a luta e a ascensão do movimento estudantil irá conferir fogo novo às lutas trabalhistas.

Referências ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1989. DOPPRA, Alison. O Movimento Sindical Brasileiro de 1958 a 1964: a luta dos trabalhadores nos tribunais trabalhistas e a conquista do direito de greve. In XI Encontro Estadual de História: História, Memória e Patrimônio, 2012, Rio Grande, RS. Anais eletrônicos. Rio Grande: FURG, 2012. p. 1508-1520. Disponível em: . Acesso em: 25/06/2013. MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e Velhos Sindicalismos no Rio de Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998. MELLO, Jayme Portella. A Revolução e o Governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, c1979. SANTANA, Marco Aurélio. Ditadura Militar e resistência operária: O movimento sindical brasileiro do golpe à transição democrática. Política & Sociedade: Dossiê Atualidade do Mundo do Trabalho: tendências da pesquisa sociológica. Florianópolis, v.7, n. 13. p. 279309, out/2008.

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SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. VIANA FILHO, LUIS. O Governo Castelo Branco. Vol.1. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exercito: J. Olympio, 1975.

Notas

1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC/FGV e servidora do Arquivo Nacional. 2

Decreto nº 19.433, de 26 de novembro de 1930. Como o Ministério do Trabalho teve alterada a sua denominação diversas vezes, assumindo outras pastas, irei tratá-lo apenas como Ministério do Trabalho, tendo em vista que estamos lidando com a sua atribuição essencial, o trabalho. 3

Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960.

4

A pesquisa desenvolvida por Maria Helena Moreira Alves indica que "em 1964, existiam 7 confederações, 107 federações, 1948 sindicatos de trabalhadores urbanos. Durante o primeiro ano do Estado de Segurança Nacional, a "Operação Limpeza" afastou membros de 452 sindicatos, 43 federações e 3 confederações. Três outros sindicatos sofreram intervenções brancas pelas quais líderes eleitos foram afastados sem publicação de decretos específicos. Uma eleição foi cancelada por alegadas atividades subversivas, e o governo extinguiu totalmente um sindicato" (ALVES, 1989, p. 69-70).

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Nos arquivos da polícia política: reflexões sobre uma experiência de pesquisa entre os papéis do Dops do Rio de Janeiro Luciana Lombardo Costa Pereira1

Resumo: O artigo procura refletir sobre as possibilidades de pesquisa abertas com os arquivos do Dops do Rio de Janeiro a partir de uma trajetória de pesquisa no Fundo Polícias Políticas do Aperj. Ao longo dos últimos anos, esta análise atravessou os campos da História e da Antropologia e se voltou para diferentes objetos de pesquisa sem, contudo, deixar de lado a questão dos arquivos policiais. Espera-se contribuir para a compreensão das peculiaridades destes arquivos através da análise do processo histórico de formação da polícia política; da lógica interna de atuação dos órgãos de repressão; das condições de produção da documentação e das lutas políticas pelo acesso aos arquivos policiais. A documentação investigada revela práticas similares de acompanhamento policial sobre o cotidiano dos sindicatos de trabalhadores e das editoras de oposição, dois espaços de resistência frente aos órgãos repressivos brasileiros. Palavras-chave: Dops; Arquivos policiais; Polícia política; Antropologia e História.

Introdução: sobre miragens, mergulhos e o poder da escrita É necessário tomar cuidado com as “miragens” dos arquivos policiais, alerta Étienne François ao escrever sobre os arquivos da Stasi, pois “inclusive os mais secretos, encobrem tanto quanto revelam” (FRANÇOIS, 1998, p. 157). O autor propõe então, para controlar o excessivo entusiasmo com o acesso a fontes outrora secretas e contornar certa tendência a se deixar levar por elas, que o historiador retorne às regras elementares do ofício: a crítica dos documentos, a interrogação das fontes e a consciência de que estas não podem dizer tudo. Ele deveria começar perguntando: “Quem constituiu as fontes? Em que condições? Para quê? O que expressam? O que dizem, o que não dizem?”. Procurando refletir sobre as questões colocadas pelo historiador francês, nesta comunicação gostaríamos de problematizar as condições de produção dos arquivos policiais e, mais especificamente, o processo de constituição dos arquivos do Dops no Rio ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 267

de Janeiro. Para tanto, buscaremos discutir brevemente o processo histórico de formação dos órgãos de polícia política que produziram tal documentação, além das lutas políticas pela abertura e acesso aos arquivos policiais a partir de minha própria trajetória entre a História e a Antropologia na pesquisa do Fundo Polícias Políticas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj)2. Um renovado interesse voltado para o trabalho em arquivos vem sendo observado entre os antropólogos nos últimos anos. A singularidade da pesquisa arquivística, terreno quase exclusivo dos historiadores, desperta também boas questões para os antropólogos. Assim, vem se renovando métodos de investigação e maneiras de pensar a relação entre o campo e o arquivo e se buscando desnaturalizar a posição tradicional do usuário que enxergava no arquivo um mero repositório de documentos, transformando-se a própria experiência do “estar lá” no arquivo em uma oportunidade de coleta de dados etnográficos. Para a antropóloga Annelise Riles, por exemplo, os documentos são artefatos etnográficos ainda pouco explorados, embora sejam os artefatos paradigmáticos do conhecimento moderno e estejam disponíveis hoje em toda parte, além de serem elementos tecnológicos cruciais nas organizações burocráticas e por isso mesmo um excelente meio de entrada para os antropólogos se acercarem dos problemas contemporâneos (RILES, 2006, pp. 2-12). Antoinette Burton, historiadora, segue na mesma direção e nos leva ainda mais adiante quando afirma que os arquivos, eles mesmos, são artefatos da história. Diversas “histórias de arquivos” reunidas por ela procuram historicizar as próprias coleções existentes nos arquivos e aquilo que delas está excluído, refletem sobre as consequências políticas da “febre de arquivo” e relativizam as fronteiras do espaço oficial onde começam e onde acabam os arquivos (BURTON, 2005, p. 6). Como artefatos da história, os arquivos são produto de operações humanas que perduram através do tempo, monumentos do passado que guardam, dentre infinitas possibilidades, uma seleção possível e finita de materiais. Se há um movimento de antropólogos rumo a novos campos, os arquivos brasileiros também estão sendo cada vez mais povoados por suas questões. É relevante para os antropólogos, por exemplo, saber por que alguns documentos foram guardados e ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 268

outros descartados, como os fundos são organizados e qual a hierarquia atribuída às diferentes coleções de um acervo. Recentemente, pesquisadores interessados nas possibilidades de se lançar um olhar antropológico sobre os arquivos reuniram-se no Rio de Janeiro nos seminários Quando o campo é o arquivo de 2004 e 2008, organizados por Celso Castro e Olívia Cunha. Na ocasião, Celso Castro relatou sua experiência com a organização de uma coleção existente no Museu de Astronomia, propondo uma observação desses arquivos como um “campo” repleto de “sujeitos, práticas e relações suscetíveis à experimentação antropológica”. Para o autor, cada arquivo é resultado de uma convergência de fatores que garantiram sua transmissão através do tempo e o que “resta” em um arquivo resulta diretamente das pessoas que, em diferentes momentos, definem quais materiais devem ser guardados ou descartados. Essa lógica de acumulação nem sempre é consensual entre os responsáveis por um arquivo: por que guardar isso e não aquilo? Onde guardar? E em que ordem? (CASTRO, 2005, p. 36). Além da complexa questão da seleção e do estabelecimento do acervo, a própria organização dada aos materiais nos arquivos nada tem de natural e é, portanto, objeto para a reflexão etnográfica. Olívia Cunha se dedica a essa questão quando se depara com “usos, arranjos, classificações e indexações” complexos nos arquivos etnográficos sobre as populações afro-americanas em Cuba, Brasil e EUA nos anos 1930. A lógica subjetiva e confusa do colecionador e do arquivista leva a antropóloga a fazer a passagem de uma “etnografia nos arquivos” a uma “etnografia dos arquivos” (CUNHA, 2005, p. 42). E sua reflexão se estende ainda à lógica classificatória presente nos arquivos e nos artefatos criados para ordená-los e controlá-los, como inventários, catálogos e cronologias. Pesquisar arquivos policiais sob uma perspectiva antropológica significa, de início, questionar a própria existência de tais artefatos e suas condições históricas e materiais de produção, ou seja, enfrentar o desafio de compreender não só o que dizem as fontes produzidas pelos órgãos policiais, mas também a intencionalidade e as finalidades políticas específicas de sua produção. As dificuldades são muitas, mas estão longe de ser uma exclusividade nossa. Outras experiências com arquivos policiais e judiciais “sensíveis” têm despertado o interesse de historiadores em outras partes e podem apontar caminhos ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 269

para nossa reflexão. Um exemplo é o trabalho de Sonia Combe, que toca em um dois pontos delicados da história francesa: a abertura dos arquivos relativos à Argélia e Vichy (COMBE, 2001). A primeira edição de seu livro, em 1994, coincide com o desenrolar de um debate na França acerca da revisão da legislação regulamentadora do acesso a arquivos secretos de Estado e uma grande crise institucional nos Archives de France. Apesar do debate, pouco mudou na lei e, para Combe, a política de arquivos francesa teria optado pela retenção da informação e pela limitação do acesso, à revelia das exigências dos cidadãos. Permaneceram retidos os arquivos “sensíveis”, negando-se aos cidadãos o direito aos arquivos e ao olhar da pesquisa histórica. A publicação do livro causou violentas controvérsias no meio acadêmico e a comunidade de arquivistas se sentiu ultrajada pela crítica de que sua legitimidade repousaria na força do hábito e no interesse do Estado. Uma experiência distinta marcaria o início dos anos 1990 no Brasil, quando os arquivos das polícias políticas estavam começando a ser disponibilizados para os pesquisadores após um longo processo de abertura marcado por lutas políticas que sobrevivem até hoje. Outra historiadora francesa que reflete sobre as peculiaridades de tais arquivos é Arlette Farge. Sua investigação dos arquivos do judiciário francês do século XVIII aponta semelhanças com os arquivos policiais que vão além da intensa produção e acumulação de papéis, processos, relatórios e informes. A autora sugere que a documentação guardada em arquivos judiciais e policiais difere fundamentalmente dos outros impressos em geral, por se tratar de um conjunto de informações obtidas à revelia dos cidadãos investigados ou acusados e sobre as quais esses não têm controle algum (FARGE, 2009, p. 13): O impresso é um texto dirigido intencionalmente ao público. É organizado para ser lido e compreendido por um grande número de pessoas […]. Nada a ver com o arquivo; vestígio bruto de vidas que não pediam absolutamente para ser contadas dessa maneira, e que foram coagidas a isso porque um dia se confrontaram com as realidades da polícia e da repressão.

A autora observa o lado pessoal da experiência de pesquisa e compara a imersão nos arquivos a um “mergulho nas profundezas” do mar, uma experiência que absorve e envolve totalmente o historiador. Para ela, as muitas metáforas ligadas à fluidez do ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 270

arquivo não são meras comparações fortuitas, mas dizem respeito à própria natureza absorvente do trabalho em arquivos. As mesmas associações e imagens estão presentes na língua portuguesa, quando falamos em “imersão” nos fundos, “profundezas” do arquivo e outras mais. O “mergulho” nos arquivos do Dops vem sendo possível há quase duas décadas, “trazendo à tona” valiosas séries documentais com informações a respeito dos mesmos movimentos que o órgão se encarregava de reprimir. A vasta documentação reunida nos arquivos policiais evidencia que parte considerável do poder da polícia política resulta da eficácia dessa operação de produção, acumulação e organização de documentos, pois são nos seus fichários e prontuários que se encontram inscritos e classificados os “criminosos políticos”, as “carreiras criminais” e a “vida pregressa” dos “subversivos reincidentes”. Trata-se, antes de tudo, de um poder de escrita. O antropólogo Jack Goody chama atenção para as transformações decorrentes do processo de letramento nas sociedades cuja lógica passa a ser organizada pela escrita. Goody observa que a escrita é essencial para a organização do Estado burocrático em que o desempenho das funções requer o domínio das letras, bem como para a constituição de inquéritos e processos baseados em provas documentais (GOODY, 1987). Sua análise nos permite entender os policiais que estudamos como parte desse universo de homens letrados cujas tarefas burocráticas demandam a produção de farto volume de materiais escritos. Tanto Michel Foucault (1997) como Michel de Certeau (1998) refletem longamente sobre a gênese de um poder de escrita ou “poder escriturário”. Para Foucault, os arquivos de registros escritos seriam uma peça central do poder de polícia, um poder que classificaria, catalogaria e organizaria o mundo social. E o exame que colocaria os indivíduos em um campo de vigilância, os situaria igualmente em uma rede de anotações escritas, comprometendo-os em toda uma quantidade de documentos que os captariam e fixariam. Os procedimentos do exame deveriam ser, portanto, acompanhados por um sistema de registro intenso e de acumulação documentária. Um “poder de escrita” seria constituído como uma peça essencial nas engrenagens da disciplina (FOUCAULT, 1997, p. 157). Michel de Certeau definiria de maneira similar o poder da “escritura”: “Designo por escritura a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual ele foi previamente ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 271

isolado” (CERTEAU, 1998, p. 225). Os arquivos policiais apresentam suas próprias peculiaridades e colocam desafios específicos para aqueles que os analisam. Um desses desafios é justamente compreender essa operação de escrita intensa e consciente que coloca algumas armadilhas para o pesquisador. Cabe ao observador atento desnaturalizar os arquivos policiais que “escondem tanto quanto revelam” e questionar o processo dinâmico de constituição do corpus, os princípios de classificação e catalogação adotados, as escolhas dos indexadores utilizados e as atribuições hierárquicas de valor dadas a cada série de documentos pelos arquivistas e pesquisadores que organizaram os fundos. Um esforço de compreensão e crítica dos agentes que produziram e ordenaram tais arquivos é crucial quando se lida com uma documentação produzida para uso das agências encarregadas da repressão aos dissidentes políticos e que hoje serve a uma função inteiramente diversa. Os documentos produzidos pelos órgãos de informação que investigavam os cidadãos, hoje são visitados por pesquisadores de diferentes partes do país e por muitos daqueles que foram alvo da repressão e que buscam provas documentais para abertura de processos de reparação por parte do Estado. A documentação policial relativa ao Deops/SP foi disponibilizada online há apenas alguns meses pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo, e se espera que o exemplo seja seguido pelos demais arquivos estaduais. Da mesma maneira, o processo de recolhimento dos documentos e seu tratamento por diversas gerações de arquivistas e pesquisadores que se ocuparam da catalogação dos materiais são dados importantes para a compreensão do estado atual em que se encontra a documentação, sua (des)organização, a abundância ou escassez de determinados tipos de material, as formas de acesso e consulta. Portanto, cabe aos pesquisadores que se debruçam sobre essa documentação refletir também sobre o intenso trabalho de produção e acúmulo de documentos que constituiu um poderoso e eficiente arquivo vivo de informações e classificações de indivíduos, eternizando em seus fichários “vidas que não pediam absolutamente para ser contadas dessa maneira”.

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Polícia e política no Rio de Janeiro Se entendermos que os arquivos do Dops/RJ nos revelam mais a respeito da própria polícia do que sobre os objetos que investigamos, nosso esforço de desnaturalização dos arquivos policiais deve começar com a reflexão sobre as origens da própria instituição policial, suas estratégias de atuação e sua lógica interna. Sabemos que a criação de uma força policial institucionalizada e administrada pelo Estado data do início do século XIX, com a criação da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil através de decreto de 10 de maio de 1808. De início, a instituição se encarregava das mais diversas funções, sendo uma delas a manutenção da ordem pública. A partir de meados do século, o intenso processo de urbanização e a maior mobilidade da população trouxeram novas atribuições aos policiais. Além de crimes comuns como furtos e homicídios, a ação policial passou a se dirigir a ofensas à ordem pública como “vagar fora de horas” e as Casas de Correção se encheram de acusados de vadiagem, desordem, capoeira, embriaguez, desobediência, jogos proibidos, obscenidades, mendicidade, além de outros comportamentos julgados indesejáveis (HOLLOWAY, 1997, p.196). O fim da ordem escravista da Corte imperial levou um grande contingente de trabalhadores livres à capital da República. A centralidade político-administrativa e econômica fez do Rio de Janeiro também o polo propulsor das transformações nas instituições policiais que se tornaram referência para o restante do país. A manutenção da ordem na capital era tarefa que agora extrapolava as dimensões locais e assumia um caráter exemplar. Até os anos 1930, uma grande confusão resultava da superposição dos poderes local, regional e nacional sobre a cidade. Diferentes guardas e corpos policiais civis e militares foram criados, havendo sobre a cidade uma confluência de autoridades, diversas e hierarquizadas, que viviam em frequente tensão entre as missões de fazer “cumprir a lei” ou “manter a ordem”. (NEDER, 1981, p. 260). O exercício da função de polícia política no Rio de Janeiro data de 1900, como atribuição do Chefe de Polícia do Distrito Federal através do decreto nº 3 610, de 14 de abril. No entanto, somente nos anos 1920, uma polícia política seria de fato organizada como uma especialização da polícia comum. Nos primeiros anos do século XX, a força policial da capital passaria por várias mudanças, adotando uma formação preocupada em ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 273

justificar e orientar seus discursos e práticas no sentido de ampliar a vigilância, prestar assistência e garantir o cumprimento da lei. Ao mesmo tempo, seguia orientada a não poupar meios para garantir a manutenção da ordem pública. Os cargos policiais passaram a ser remunerados e a polícia foi gradativamente integrada ao poder público. A exigência de uma escolaridade mínima e a admissão por meio de concursos públicos favoreceu o processo de institucionalização dos corpos policiais. Paralelamente, verificou-se um esforço no sentido da profissionalização e da especialização do policial, com destaque para os investimentos em cursos e planos de carreira, além de um aumento considerável do efetivo. Na mesma direção, em 1912 a criação da Escola de Polícia foi um marco importante na reorientação dos currículos de formação policial, emprestando um ar de cientificidade a seus métodos de trabalho. A polícia científica e burocratizada começa a pensar a criminalidade, a buscar um conhecimento do crime capaz de permitir sua prevenção. A introdução de disciplinas de inspiração positivista como a Criminologia, a Psicologia e a Antropologia Criminal refletia uma mudança no enfoque policial: não era mais o crime, mas o indivíduo criminoso e seu comportamento que se tornavam objeto do exame criminal. Em vez do “castigo ao crime”, a polícia discutia como mecanismo de ação a “defesa social preventiva ou repressiva ao criminoso” (CANCELLI, 2001, p. 33). Foi através do decreto no 14 079, de 25 de fevereiro de 1920 que se modificou o regulamento da Inspetoria de Investigações e Segurança Pública para que esta se adaptasse às transformações. Além da incumbência de vigiar anarquistas e administrar a expulsão de estrangeiros, a Inspetoria passou a enfatizar a investigação policial e o desenvolvimento da polícia técnica. Ao ser compartimentalizada em seções, manteve a Ordem Pública e Social em um lugar especial como atribuição direta do Inspetor. No entanto, a maior mudança se deu com a transformação da Inspetoria em 4ª Delegacia Auxiliar, em 1922. A nova delegacia era a única que podia manter a prática herdada dos tempos da inspetoria de nomear como delegado um oficial da polícia militar e não um bacharel em advocacia (BRETAS, 1997, p. 38) e era encarregada da repressão aos chamados crimes políticos e sociais, o que naquele momento significava o controle dos grupos dissidentes da política oligárquica, dos anarquistas e das “classes perigosas”. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 274

Apoiada nas novas teorias científicas sobre o crime, a polícia procurava identificar os “tipos sociais” para antecipar-se ao crime, corrigindo as virtualidades do comportamento e as atitudes suspeitas. Desse modo, diversos grupos sociais urbanos seriam pouco a pouco estigmatizados e submetidos à constante vigilância, de caráter “preventivo”. Ao lado da construção de tipos, ganhava espaço também na Criminologia a construção de “carreiras criminais” a partir dos antecedentes dos “tipos suspeitos”. A força do passado e do histórico de reincidências é precisamente o que confere aos registros e narrativas arquivados em prontuários policiais o seu enorme poder. Em 1933, instituiu-se a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), com a função única de polícia política, exercida principalmente pela Seção de Ordem Política e Social (Sops). A instituição especializou-se na perseguição aos opositores políticos do presidente e teve sua atuação ampliada consideravelmente após 1935, com a primeira Lei de Segurança Nacional, quando se voltou para a perseguição a comunistas e integralistas. Em 1938, a Sops foi ampliada e se transformou em uma Delegacia (Dops), subordinada ao chefe de Polícia e mais tarde à Secretaria de Segurança Pública. Além do Distrito Federal, os Estados também contavam com suas Delegacias de Ordem Política e Social. Em março de 1944, a DESPS foi extinta e criou-se a Divisão de Polícia Política e Social (DPS), subordinada ao Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP). A transferência da capital do país para Brasília não desarticulou a instituição que manteve praticamente toda sua estrutura anterior de órgão federal no Rio de Janeiro, embora seu efetivo policial e seus arquivos tenham sido transferidos para o governo do Estado da Guanabara pela lei federal nº 3752 de 1960. A lei nº 263, de 24 de dezembro de 1962, extinguiu a DPS e instituiu o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e no ano seguinte, o decreto “N” no 28 de 15 de julho de 1963 organizou as atividades do novo departamento. Após o golpe de 1964 a estrutura do Dops sofreu uma série de modificações e reorientações que pouco inovaram em relação aos métodos de investigação e às práticas de repressão da polícia política. Durante a ditadura, houve, contudo, um crescimento exagerado na estrutura do órgão e no número de agentes, que passaram a trabalhar ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 275

conjuntamente com as Forças Armadas nas operações militares e se tornaram parte do sistema de segurança. Com relação ao serviço de informações e espionagem, o Dops se tornou secundário em relação aos órgãos de inteligência militares, abastecendo de informes a chamada “comunidade de informações”. Em 1975, o antigo Dops foi reorganizado para se tornar o Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), último nome pelo qual foi conhecido o órgão até 1983, quando suas funções de polícia política foram oficialmente extintas. No longo período de existência das instituições policiais no Rio de Janeiro, notamos uma forte continuidade das práticas repressivas dirigidas às margens da sociedade, assim como um discurso centrado na segurança e na defesa de certa ordem das coisas. Por isso mesmo, aqueles que recusam a adesão à ordem estabelecida ou não fazem parte dela são chamados de “marginados” ou “marginais” e classificados pela polícia como vadios, mendigos, bêbados, prostitutas, menores, estrangeiros, judeus, anarquistas, agitadores, comunistas ou subversivos. A lista é grande e muito já se escreveu a respeito dessa longa trajetória de atuação policial e de cada um dos grupos acima que foram objeto da repressão em períodos distintos. Uma contribuição que merece destaque é a da antropóloga e historiadora Adriana Vianna sobre o esforço de classificação policial na construção da categoria menoridade, fundamental para sua reflexão sobre a atuação policial sobre os menores no Rio de Janeiro entre os anos de 1910 e 1920. A autora demonstra como as categorias sociais explicativas e distintivas resultam de um complexo processo de identificação e classificação pela polícia e são centrais para a organização lógica, a inteligibilidade e o controle social (VIANNA, 1999, pp. 30-32). Esse processo, como nos diz Paulo Sérgio Pinheiro, sempre se fez acompanhar de “novas ideologias sobre o crime, os criminosos e o próprio trabalho policial” e jamais foi neutro, apesar da profissionalização da polícia e de sua aparente cientificidade (PINHEIRO, 1998, p. xi). Tentar compreender, portanto, os alicerces políticos e ideológicos que sustentam as visões de mundo dos policiais responsáveis pela produção dos documentos que estudamos é uma etapa necessária no trabalho de todo pesquisador interessado nos arquivos policiais.

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No pós-guerra, por exemplo, o eixo ideológico da atuação da polícia política é sua filiação à política de contenção ao avanço dos países socialistas. Seguindo a criação da Comissão Nacional de Segurança e da CIA nos EUA em 1947, leis anticomunistas são aprovadas em 1948 no Chile, em 1949 em Portugal, no Canadá, na Austrália e na África do Sul em 1950. No Brasil, a cassação do registro do PCB em 1947, a criação da Escola Superior de Guerra (ESG) em 1949 e a nova Lei de Segurança Nacional de 1953 estão inseridas no mesmo contexto generalizado de “caça ao comunismo”. A internacionalização das preocupações com a Guerra Fria se traduz com clareza na organização de congressos internacionais e intercâmbios diversos para cooperação entre as polícias nos anos 1950. Martha Huggins mostra como se intensifica a aproximação entre os EUA e os organismos policiais na América Latina a partir dos anos 1960, como resultado da revolução cubana e do fracasso da invasão da baía dos Porcos financiada pela CIA em 1961. O policiamento anti-insurrecional teria então se profissionalizado ainda mais e se internacionalizado no governo Kennedy com a criação da OPS (Office of Public Safety), em novembro de 1962. Consultores de segurança americanos da OPS-Brasil “encaravam o próprio trabalho como uma espécie de missão religiosa, como ‘verdadeiros crentes’ que faziam equivaler agitação social a comunismo e consideravam a força como método legítimo para acabar com a desordem brasileira”. Ainda segundo Huggins, a agência americana tornara o instrumentalismo um fim em si mesmo, apoiando a “organização modernizada da polícia, coleta aprimorada de informações, tecnologias aperfeiçoadas de controle e de investigação e práticas de interrogatório mais ‘eficientes’” (HUGGINS, 1998, p. 200). Dessa forma, em nome da “meta manifesta” que seria a “segurança dos EUA” e de suas “liberdades democráticas” a OPS-Brasil teria ignorado as contradições de seu apoio ao uso de toda força necessária para impor a ordem social e controlar os conflitos no Brasil (Idem: 201). Para a autora, a doutrina de segurança nacional que ao longo da ditadura passaria a ocupar cada vez maior espaço entre policias e militares estava fortemente calcada nessa política dos EUA para a América Latina.

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Da abertura ao acesso aos arquivos policiais A Constituição que consolidou o lento processo de abertura política no país em 1988 durante o governo Sarney, seguida pela primeira lei de arquivos em 19913, já no governo Collor, deram os primeiros passos em direção à abertura dos arquivos nos estados onde funcionaram as extintas Delegacias de Ordem Política e Social. Há pelo menos vinte anos, portanto, tem se lutado por transparência e liberdade de acesso às informações produzidas sobre cidadãos brasileiros por órgãos públicos, sobretudo no período da ditadura. No texto constitucional estava presente o recurso jurídico do habeas data, ação constitucional que pode ser impetrada para que se tome conhecimento ou se retifiquem as informações a respeito de alguém nos registros e bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público4. Através da lei 8 159, em janeiro de 1991, que dispunha sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, tornou-se dever do Estado a proteção especial e a gestão documental dos arquivos, tanto “instrumento de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico” como “elementos de prova e informação”. Dada a polissemia do termo arquivo, há ainda no texto legal uma distinção entre “arquivo”, entendido como a entidade custodiadora, o órgão encarregado da guarda e gestão dos documentos; e “arquivo”, entendido como “conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos”5. Em São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul, os arquivos foram recolhidos no mesmo ano em que foi promulgada a lei. No Rio de Janeiro, o processo foi um pouco mais demorado e somente em março de 1992 o material produzido pelas polícias políticas foi localizado na sede da Polícia Federal na zona portuária da cidade e teve início o processo recolhimento. Uma lei estadual de 1994 assegurou o direito de acesso aos documentos públicos que pertenceram ao DGIE sob a custódia do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj).

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O caso mais longo de luta pela abertura dos arquivos policiais foi o de Minas Gerais, em que somente após a instauração de uma CPI, em 1997, se deu o recolhimento dos documentos microfilmados ao Arquivo Público Mineiro, em 1998, através de longo processo de disputas iniciado com o “aparecimento” de fichas e atestados de antecedentes que a polícia e o governo do Estado alegavam terem sido incinerados (MOTTA, 2003). De volta ao caso do Rio de Janeiro, os depoimentos reunidos a respeito do processo de entrada do Fundo Polícias Políticas no Aperj destacam invariavelmente as condições desfavoráveis criadas pela Polícia Federal para que se desse o recolhimento, o mau estado geral de conservação em que se encontravam as caixas de documentos e a existência de um amontoado indistinto de papéis e publicações apelidado de “lixão” pela equipe técnica que os recebeu e tratou no primeiro momento. Além do consenso geral sobre essas dificuldades iniciais, nas primeiras visitas ao material feitas pela presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM), a psicóloga Cecília Coimbra constatou a retirada de documentos sobre os desaparecidos políticos ao falar sobre as áreas de atuação do grupo em entrevista a Virgínia Fontes e Angela de Castro Gomes: Conseguimos inclusive acesso ao arquivo do Dops, que estava sob a responsabilidade do governo federal [...] Em 1992 conseguimos acesso por pressão de parlamentares. [...]. Vimos claramente, nos arquivos do Dops/RJ, como os documentos sobre os desaparecidos foram retirados pela Polícia Federal. Não há nenhuma prisão, é como se eles não tivessem existido. Conseguimos dados sobre alguns mortos, fotografias, um material importante sobre a prisão de alguns deles, e essa documentação toda que juntamos está sendo muito importante hoje, porque desde janeiro está se reunindo no Ministério da Justiça uma Comissão Especial, em virtude de uma lei sobre a indenização para as famílias dos mortos e desaparecidos políticos. (COIMBRA, 1996, pp. 9-10).

As indenizações mencionadas acima estavam previstas na lei no 9 140 de dezembro de 1995, assim como o estabelecimento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos a que Cecília Coimbra se refere. Apesar de reconhecer pela primeira vez a morte dos desaparecidos políticos, a lei não resolve o problema dos familiares exclusivamente através de indenizações. Ainda de acordo com a presidente do GTNM, a lei deixa muita gente de fora, como os argentinos mortos no país e os brasileiros mortos fora do território nacional, além de não tornar explícita a responsabilidade do Estado pelos crimes

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cometidos durante a ditadura militar. Até meados dos anos 1990, portanto, a luta pelo reconhecimento dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo Estado brasileiro estava longe do fim. Ainda no governo FHC, a lei no 9 507 de novembro de 1997 regulamentou o direito de acesso a informações e o habeas data, previsto na Constituição. A polêmica que se seguiu com relação a sua aplicabilidade aos documentos sigilosos até hoje permanece em aberto assim como a maior parte dos arquivos militares, fechados. Apesar da prévia retirada de documentos, ainda eram muitos os documentos existentes no prédio da Polícia Federal e processo de recolhimento do acervo do Dops/RJ, transcorreu entre os meses de março e junho de 1992 quando teve então início o processo de identificação e tratamento do material. Um projeto foi apresentado à Faperj por pesquisadores ligados ao Aperj e foram obtidos os recursos para a mobilização de esforços necessária. Como resultado desse trabalho, dois materiais impressos foram produzidos logo nos anos seguintes pela equipe então à frente do projeto: uma primeira descrição do acervo acompanhada de uma coletânea de textos dos pesquisadores responsáveis (Aperj, 1993) e um guia de fundos, com resumos do conteúdo dos setores até então organizados (Aperj, 1994). Nas publicações mencionadas acima, tanto o acervo como o processo de recuperação da documentação para integrar o Aperj são descritos pelos pesquisadores encarregados do recolhimento. Já no texto de apresentação do primeiro volume, a historiadora Waldecy Catharina narra as inúmeras dificuldades que se seguiram à lei de 1991. Em um primeiro momento, o desafio era localizar a documentação supostamente desaparecida. Quando localizada, foi necessário contar com a ajuda ao Corpo de Bombeiros para transportar o imenso volume de materiais dentro das condições impostas pela Superintendência Regional da Polícia Federal. Esta determinara que o trabalho deveria ser realizado exclusivamente à noite, em um prazo exíguo e por meio de um elevador precário. A documentação estava lá em um depósito “secreto” desde a extinção do DGIE, em 1983, sob a alegação de que precisava ser protegida da destruição. Segundo Eliana Rezende, diretora do Aperj em 1992, o material recolhido consistia

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em “750 metros lineares de documentos textuais, cerca de 2 milhões e 500 mil fichas, cartazes, impressos, microfilmes, objetos tridimensionais e 200 mil itens de documentos especiais, a saber, fotografias, negativos de vidro e de acetato, cópias-contato, filmes, fitas audiomagnéticas e videomagnéticas” (MENDONÇA, 1998, p. 369). Junto com o material, também foram transferidos para a Polícia Federal todo o mobiliário e um efetivo de duzentos policiais encarregados da manutenção do serviço de arquivo. Seis anos mais tarde, José de Moraes, um dos policiais-arquivistas, foi entrevistado ao lado de Cecil Borer por pesquisadores do Aperj interessados em entender os sistemas de arquivamento e a organização dos setores. Moraes exercera na polícia as múltiplas funções de investigador, papiloscopista, identificador, detetive e chefe do Serviço de Processamento ao qual os arquivos estavam subordinados quando o DGIE foi extinto. Na ocasião da entrevista, demonstrava ainda um profundo orgulho do trabalho realizado nos arquivos ao afirmar: “Fazia o serviço completo. E com satisfação, com tranquilidade. Fazia daquilo uma distração. Eu me sentia realizado. Meu trabalho está aí. Mostro tudo o que fazia. E fiquei na Polícia Federal, segurando aquele arquivo para ninguém destruí-lo” (Aperj, 1998, p. 58). A última frase merece reflexão, pois nela o policial declara um zelo extremo pelos arquivos dos quais era encarregado e acredita que ao permanecer na Polícia Federal ele os teria “segurado” e impedido sua destruição. O trecho para nós elucida o espectro que ronda as operações de arquivamento e acumulação, o fantasma da destruição e do desaparecimento dos arquivos, que é também o que temem os policiais encarregados de arquivar. A imagem da “queima de arquivo” talvez seja mais dramática no caso dos arquivos policiais porque sua destruição apagaria carreiras criminais construídas tão obsessiva e cuidadosamente nos fichários. Como no caso simbólico da queima dos arquivos da Bastilha, não se trataria somente de libertar – ou anistiar – os criminosos políticos, mas também de anular os crimes passados, os históricos de antecedentes. A alegação de que o material seria destruído é bastante expressiva do contexto de lutas políticas que orientaram a lenta abertura após a lei de Anistia em 1979. De acordo com outros policiais responsáveis pelo arquivo, o motivo da transferência às pressas do arquivo para o depósito da Polícia Federal era resultado da eleição do governador Leonel Brizola,

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por exemplo. Ao fantasma da destruição invocado pelos policiais, é preciso acrescentar um outro temor mais profundo e não declarado, o da abertura ao olhar público de documentos até então sigilosos. Apesar de não dito, o medo é evidente nas diversas tentativas de dificultar o acesso aos mesmos. Ao contrário do que se poderia supor também pela declaração de José de Moraes, o zelo intenso pelo arquivo não se verificou no cuidado e na preservação da integridade dos conjuntos documentais: muitos foram retirados, sobretudo os mais “sensíveis” relativos aos desaparecidos políticos, como declara Cecília Coimbra. Sabemos que esse mesmo temor ainda está presente entre aqueles que temem os trabalhos atuais das Comissões da Verdade Nacional e Estaduais. Contrariando as versões que insistiam que tais esforços seriam infrutíferos, documentos estão sendo descobertos e espera-se que os relatórios possam fazer avançar o conhecimento histórico sobre o período.

Referências Aperj. A Contradita: Polícia Política e Comunismo no Brasil (1945-1964). Rio de Janeiro, 2000. (mimeo.). (Entrevistas de Cecil Borer, Hércules Corrêa dos Reis, José de Moraes e Nilson Venâncio a Leila Menezes Duarte e Paulo Roberto Pinto de Araújo, em 1998). ____. DOPS: A lógica da desconfiança. Rio de Janeiro: Aperj, 1993. ____. Os arquivos das polícias políticas. Rio de Janeiro: Aperj/FAperj, 1994. BRETAS, Marcos Luiz. Polícia e polícia política no Rio de Janeiro dos anos 1920. Arquivo e História. Rio de Janeiro, n.3, out. 1997, p.28. BURTON, Antoinette. Archive stories. Durham: Duke University Press, 2005. CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. Brasília: EdUnB, 2001. CASTRO, Celso; CUNHA, Olívia. Quando o campo é o arquivo. Estudos Históricos. v. 2, n. 36, 2005. p.4 CASTRO, Celso. A trajetória de um arquivo histórico: reflexões a partir da documentação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. Estudos Históricos, vol.2, n.36, 2005. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. COIMBRA, Cecília. Tortura: Nunca Mais. (Entrevista a Virgínia Fontes e Angela de Castro ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 282

Gomes). Tempo, n.1, 1996, pp.9, 10. COMBE, Sonia. Archives interdites: les peurs françaises face à l'histoire contemporaine. Paris: La Découverte, 2001. CUNHA, Olívia. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos. Estudos Históricos, v.2, n.36, 2005. FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Trad. de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2009. GOODY, Jack. A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa: Edições 70, 1987. FRANÇOIS, Étienne. Os “tesouros” da Stasi ou a miragem dos arquivos. In: BOUTIER, J. e JULIA, D. (Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1998. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1997. HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdFGV, 1997. HUGGINS, Martha. Polícia e política: relações EUA/ América Latina. São Paulo: Cortez, 1998. MENDONÇA, Eliana Rezende Furtado de. Documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro. In: Estudos Históricos, vol. 12, n. 22, 1998. MOTTA, Rodrigo Patto Sá et al. República, política e direito à informação: os arquivos do Dops/MG. Varia História. Belo Horizonte, n. 29, 2003. NEDER, Gizlene et al. A polícia na Corte e no Distrito Federal. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1981. PEREIRA, Luciana Lombardo Costa. A lista negra dos livros vermelhos: uma análise etnográfica dos livros apreendidos pela polícia política do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. ____. Caça às bruxas nos sindicatos: polícia política e trabalhadores entre 1945-1964. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Prefácio à edição brasileira In: HUGGINS, Martha. Polícia e política. São Paulo: Cortez, 1998. RILES, Annelise Riles. Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2006. STEEDMAN, Carolyn. Dust: the Archive and Cultural History. Manchester: Manchester University Press, 2001. VIANNA, Adriana. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro (19101920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.

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Notas 1

Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional/ UFRJ e professora do Departamento de História da PUC-Rio. A pesquisa apresentada aqui contou com financiamentos da Capes e do Programa Bolsa Nota 10 da Faperj. 2

Minha experiência de pesquisa nos arquivos do Dops/RJ teve início em 1998, ainda durante a graduação em História na UFF quando participava de um projeto sobre sindicatos e greves no Rio de Janeiro. A repressão aos trabalhadores e suas organizações que mobilizara parte expressiva dos esforços policiais entre 1945-1964 foi também objeto da minha dissertação de mestrado, em 2004. Entre 2006 e 2010, um olhar etnográfico sobre o arquivo e sobre a coleção de livros apreendidos pela polícia política no Rio de Janeiro foi o tema da minha tese de doutorado (Cf. PEREIRA, 2004; PEREIRA, 2010). 3

Lei Federal 8 159, de 8 de janeiro de 1991.

4

Alíneas a e b do inciso LXXII do artigo 5º da Constituição.

5

Cap. I, art. 2º, da Lei 8 159, de 8 de janeiro de 1991. As definições legais são as mesmas que encontramos nos Subsídios para um Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, Arquivo Nacional, 2004.

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“Comunicar acto controlado”. Un análisis del Partido Comunista según el servicio de inteligencia policial de la Argentina, en la Provincia de Buenos Aires María Eugenia Marengo Hecker1

Resumen: El siguiente trabajo se propone indagar en las nociones de los agentes de inteligencia de la policía de la provincia de Buenos Aires sobre los comunistas, en función del análisis sobre distintos legajos del ex archivo de la Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires -DIPBA- (1), entre los años 1949 y 1959. Se comprende a estos acervos de información como archivos de la represión/control social, y como territorios de la memoria social e histórica de la represión. Palabras clave: comunismo; inteligencia policial; archivos; memoria.

Abstract: The following paper aims to look into the notions of intelligence agents of the police in the province of Buenos Aires on the communists, based on the analysis of different documents of the ex Intelligence Directorate Buenos Aires Police’s Archive DIPBA-2, between 1949 and 1959. These documents are understood as repression and social control files, and as a territory of the social and historic memory’s repression. Keywords: communism; police intelligence; files; memory.

Las fuentes de la represión: el archivo de la DIPBA Los archivos de las fuerzas de seguridad del Estado se configuraron como mecanismos de represión, control y vigilancia sobre distintos actores políticos y sujetos de la sociedad civil enmarcados, en su mayoría, en gobiernos de factos de diferentes períodos históricos a lo largo del siglo XX. El concepto de “archivos de la represión”, es utilizado para referirse a aquellos documentos que son testigos y evidencia de las atrocidades de las dictaduras militares en América Latina que competen al pasado reciente, (KARABABIKIÁN, 2004). El archivo de la Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires es uno de los pocos que se encontró con una estructura archivística originaria. Sus fechas extremas datan de 1932 a 1998. En el marco de la primera intervención civil de la ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 285

policía de la Provincia de Buenos Aires en el año 1997, mediante el Decreto Nº 4506 y convalidado luego por la Ley Nº 12.068 del 23 de diciembre del mismo año, la Dirección General de Inteligencia -con aproximadamente 700 policías en actividad- fue finalmente disuelta el 30 de abril de 1998. A partir del 10 de junio de 1999, la Cámara Federal de Apelaciones de La Plata dictó una medida de “No Innovar” sobre el Archivo de la DIPBA, al contener documentos de valor probatorio para las causas judiciales en el marco de los Juicios por la Verdad. En el año 2000, por medio de la Ley provincial Nº 12.642 la Comisión Provincial por la Memoria recibió el archivo. En el 2003 se levantó parcialmente el secuestro de la Cámara Federal de Apelaciones, exceptuando el material que abarca el período 19761983, que se constituye como prueba en los juicios vigentes de lesa humanidad. Desde esa fecha está abierto para consultas personales o por familiares directos de personas fallecidas o desaparecidas, siendo además este repositorio documental una fuente utilizada por investigadores/as de diversas ramas de las ciencias sociales. La DIPBA, pone al descubierto un sistema de control que fue ejecutado en toda la región. Comenzar a dar a conocer la existencia de este tipo de archivos genera un afianzamiento con respecto a la memoria del pasado dictatorial: tal como lo fueron los testimonios durante los juicios, donde se comprobó la violación sistemática a los derechos humanos, la revelación de estos documentos refuerza esa verdad sobre el pasado y comprueba que existió un proyecto político de exterminio y desaparición forzada. Históricamente la policía accedió a la vigilancia para el control social, por esta razón el acceso al archivo de la DIPBA en la actualidad se constituye en una fuente primaria y privilegiada para el presente trabajo. Los relatos que conformaron los diversos informes de inteligencia policial, fueron producto de la necesidad por parte del Estado de complementar el control sobre los sujetos y organizaciones perseguidas, desde la construcción de la información que los mismos “observados” generaban. Este trabajo intenta ser un aporte inicial al estudio de la vigilancia policial como práctica cotidiana en la Provincia de Buenos Aires, siendo sólo una muestra del

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funcionamiento de la inteligencia de la policía provincial. La propuesta no radica en corroborar la veracidad de los informes policiales, sino en expresar los relatos y las construcciones sobre el “delincuente político comunista”. Interesa indagar en los imaginarios que se pusieron en práctica y los supuestos sobre los que la mirada policial se basó a la hora de detectar al comunista, donde tal como refiere Lucía Eilbaum (2004), la categoría de la sospecha, más que fundar o dar origen a la intervención policial, la legitima a posteriori. La documentación seleccionada para la elaboración de este trabajo perteneció a la “Mesa C comunismo”, del archivo de la DIPBA y abarca distintos momentos de los primeros dos gobiernos peronistas (1946-1955); el Golpe de Estado de 1956 y legajos de los años 1958 y 1959 que fueron parte de algunos años del período del gobierno constitucional electo -con el peronismo proscripto-, de Arturo Frondizi, quien representó la fórmula por la Unión Cívica Radical Intransigente (1958-1962). Por lo tanto, el análisis devendrá en una mirada selectiva sobre lo que significó la totalidad del acervo registrado y acumulado en la “Mesa C”, como del resto del Archivo de la DIPBA.

De la orden a la ejecución Para combatir eficientemente al comunismo, es indispensable conocerlo; y para ello se lo debe estudiar en los hechos (Archivo DIPBA, Mesa Doctrina).

El registro de personas y organizaciones vinculadas al comunismo aparece en los archivos a partir de la década del ’40, en la provincia de Buenos Aires. La División de Orden Público surge luego de que se suprimiera a la Sección Orden Social, y de que se creara la Oficina de Movimiento Político, entre los años 1945 y 1946. A partir de junio del ‘46, la recopilación de información referente a las organizaciones sociales y políticas de la provincia de Buenos de Buenos Aires, quedó en manos de la recién creada División de Orden Público, dependiente de la Jefatura de Policía provincial. Según los distintos legajos, se pone de manifiesto que el traspaso de la información se manejaba desde las distintas delegaciones de la provincia que

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funcionaban en comisarías, haciéndose más fluido este intercambio con el transcurso de las décadas. En la búsqueda del control individual sobre las posibles personas “comunistas”, se encuentran formularios catalogados como, “Anexo confidencial” y de carácter “estrictamente confidencial”, cuya finalidad era establecer datos biográficos y políticos sobre determinados sujetos sospechados por su filiación ideológica. En una ficha del 7 de agosto del año 1949, por ejemplo, puede leerse este tipo de registros. En el análisis de los datos del Secretario General del Partido Comunista Argentino (PCA) se visualizaba información sobre su comportamiento vinculado a su activismo político en relación al gobierno, como así también su lugar de trabajador “[…] apoyando las obras de Gobierno, siempre que las considere justas, goza de buen concepto y moralidad”(Archivo DIPBA, 1949). Lo mismo se traslucía para el caso del Secretario de Organización del PCA, al manifestar consideraciones del tipo, “[…] goza de buen concepto y moralidad. Estas personas reciben órdenes directas de la Central sita en calle 12 nº 1073 de la ciudad de La Plata”. Los registros de la policía durante el gobierno peronista se orientaban particularmente hacia la detección de grupos y/o personas comunistas y se focalizaban en averiguar sobre su comportamiento político. En el caso del Secretario General del Partido, se ve cierta dualidad en la interpretación, pues el informe resalta como característica del sospechado, su apoyo a las obras del gobierno. En este afán por la detección comunista se encuentran varios registros de tipo estadístico, o cuya orden superior suponía establecer la existencia o no de Comités, o locales del PCA. La práctica de los “censos estadísticos” que corroboraban si hubiera entidades comunistas o “colaterales” al mismo, en las distintas dependencias de la policía de la Unidad Regional La Plata, fue recurrente. Las órdenes impartidas desde la jefatura de la División Orden Público de la policía de la provincia de Buenos Aires se constituían bajo el carácter de “reservado”. El levantamiento de la prohibición al PCA durante el gobierno peronista no significó que se anulara el control permanente. Interesaba saber, en particular, los nombres de quienes conformaban las comisiones directivas y tenían cargos importantes en lo que significaba la estructura propia del Partido. Por ejemplo, en un informe que data del 16 de abril de 1951, se interpretaba el “hermetismo que caracteriza

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a los miembros del PCA”, al encontrarse el propio Comisario titular de la Sección 3ra. de la Plata, ante la negativa de quienes conformaban el Partido Comunista, para dar información sobre quiénes integraban la Comisión Directiva. Sin embargo, se obtuvieron los nombres y la dirección postal de los integrantes de dicha Comisión por medio de “otras fuentes”, que no aparecen explicitadas en el informe. En una primera instancia, el medio por el cual se pretendió obtener información, aparentemente, correspondía a un procedimiento no clandestino, que descartaba el secuestro de material o la vigilancia encubierta. Sin embargo, los mecanismos utilizados para el recaudo de la información incluyeron la búsqueda de “informantes” de la zona, quienes no aparecen literalmente en el escrito. A pesar de cumplir con el objetivo, el Comisario puso en duda la veracidad de la información, al no poder ser constatados los datos con los propios integrantes del Partido Comunista local. Durante estos años del peronismo, el PCA era reconocido y permitido por la legislación vigente como el resto de los partidos políticos. El factor ideológico funcionaba como un elemento de diferenciación con el resto, lo cual implicaba la constante vigilancia policial hacia el mismo. Estos métodos de control se contradecían con la propia ley que habilitaba su funcionamiento. En este sentido, el pedido de autorización a las autoridades competentes -policía- para la realización de actos y eventos, donde se debía detallar el lugar, la fecha y la hora de los mismos, dejaba a merced de las definiciones policiales la última palabra en la posibilidad de hacer alguna actividad o acto público. Muchas veces, estas iniciativas del comunismo local eran abortadas desde las autoridades policiales que consideraban a priori, su “natural negativa por razones de orden público”. Esta situación, denunciada por el propio Partido, era analizada desde la policía como una forma aplicada por los comunistas para autolegitimarse, es decir, se argüía que el propio Partido buscaba la censura para luego utilizar esos argumentos contra las políticas del gobierno. De este modo, la propia policía reconocía que existía un amparo legal que los protegía, comprendiendo que por razones ideológicas el Partido Comunista no debía resguardarse bajo las mismas garantías legales que el resto de los partidos políticos. Resulta interesante la interpretación relevada en este legajo que hace referencia a la situación política y a las acciones del Partido Comunista, cuando “lo legal” y “lo ilegal”,

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estaban enmarcados por las políticas que el gobierno provincial y nacional dictaminaba; siendo la propia policía el actor que determinaba el falso matiz de legalidad con el que se encubría el comunismo: […] esta aparente faz legal, que es sin embargo un simple escudo tras del cual oculta sus verdaderos móviles y que le permite subsistir como organización; tiene su reverso de carácter internacional que persigue su expansión en el campo ideológico, como objetivo real (Archivo DIPBA, 1951).

Esta mirada inducía a fortalecer los argumentos que legitimaban al control permanente de cada acto que el Partido realizaba en la ciudad de La Plata; como la autorización o no para que éstos se llevaran a cabo. Es decir, los términos de la legalidadilegalidad, respondían a construcciones propias del mundo de los agentes de seguridad, conducidos por las órdenes jerárquicas que acataban, excediendo la letra propiamente de la ley: En la fecha, siendo las 21 horas en el Comité del local del Partido Comunista, sito en la calle 12 entre 54 y 55, se constató una reunión ilícita, de la que participaban alrededor de doscientas personas pertenecientes a dicha agrupación, parte de las cuales, se retiraron antes de llegar la Policía, lográndose la detención del apoderado del Partido XXXXX3, y setenta y ocho personas más, quienes se habían guarecido en el interior del local, negándose en primer momento al acceso del personal policial (Archivo DIPBA, 1953).

Este “Memorandum” con fecha del 22 de abril de 1953, daba cuenta de la continuidad en este tipo de control y de la práctica contravencional como medio de prohibición y detención de personas, “detenidos los nombrados fueron sometidos a proceso contravencional, siendo alojados en la Seccional 3ª. Habiendo intervenido en el procedimiento del personal de Seguridad y de esta División, a las órdenes del Jefe Regional y del suscripto respectivamente” (Archivo DIPBA, 1953). Una vez más, este tipo de procedimientos constitutivos de la vigilancia policial sobre los grupos políticos disidentes, puede interpretarse, “como la obligación operativa permanente de la policía: la producción de sospechosos identificados por su nombre (BRODEUR, 2011, p. 238). Durante el peronismo, la policía estuvo provista de otros insumos legales que amparaban este tipo de prácticas de control, como el decreto del Poder Ejecutivo provincial, mediante el cual las actividades y reuniones públicas debían ser autorizadas y ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 290

supervisadas por la policía. En este caso, era el apoderado del Partido Comunista de la provincia de Buenos Aires, quien efectuaba la nota a la policía dando explicaciones de la realización de determinado acto, la temática y sus oradores. Esto indicaba que el propio PCA accedía a las normas impuestas por el gobierno para la realización de sus actos, a sabiendas del carácter restringido y controlado de los mismos, e incluso esto era evidenciado a tal punto que el mismo apoderado se encargaba de indicar, mediante una nueva nota, si hubiera cambios de fecha u oradores en el evento. Un ejemplo de ello aparece en el legajo Nº 75, con fecha del 28 de julio de 1955: [...] Tengo el agrado de dirigirme a Ud. en mi carácter de Apoderado General del Partido Comunista de esta Provincia a fin de comunicarle lo siguiente: a) Con relación al acto del día sábado próximo: A raíz de otros actos similares a realizarse en otros lugares, se sustituirán dos de los oradores registrados en la comunicación anterior: los ciudadanos XXXX y XXXX se reemplazan por los compañeros XXXX y XXXX, confirmándose los restantes ya conocidos por Ud. b) Con relación a la Dirección local de esta agrupación: informo a Ud. a sus efectos y satisfaciendo el pedido efectuado por esta seccional que la Dirección local del Partido la constituyen los siguientes compañeros: -XXXX-XXXX e XXXX (Archivo DIPBA, 1955).(4)

En esta carta enviada por el apoderado del Partido al Comisario de la Sección Tercera, se deja constancia también de los procedimientos del PCA para llevar a cabo sus actividades públicas. A pesar de sus denuncias contra el aparato represivo del gobierno, no rechazaba enviar información a la misma policía que efectuaba las detenciones a sus militantes en determinadas actividades. La misma carta tiene un destacado en el punto “b” que efectúa la policía. Esta intervención de la policía en el documento, brindando datos de los integrantes de la Comisión Directiva del Partido, fue una práctica recurrente que obedecía a las órdenes que se efectuaban hacia los agentes policiales en las distintas secciones. El interés de la policía radicaba en el conocimiento de los principales referentes comunistas en La Plata. Este registro lo efectuaban mediante la obligación al Partido de aclarar en cada acto quiénes hablarían y quiénes conformaban la Comisión Directiva del Partido local. A su vez, esta información era ampliada con el mismo informe de inteligencia relevado desde la observación y escucha de determinado acto. Esta obligación estaba amparada por la Ley Nacional 14.400, “Actos o reuniones públicas” de

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1954, desde donde se podía impedir o reprimir, aquellos actos o propaganda política, que tendiera a la alteración del orden y la tranquilidad pública. La continuidad de la Ley de Residencia del año 1902; el Decreto Nacional de Delitos contra la Seguridad del Estado del año 1945, aplicados para ilegalizar huelgas obreras y la puesta en vigencia de los edictos policiales, siguieron siendo los recursos habilitantes para efectivizar la vigilancia policial. A pesar de la existencia de este dispositivo normativo, los agentes muchas veces entraban a los actos como infiltrados, a los fines de lograr, quizás, el detalle más minucioso de lo acontecido, intentando pasar desapercibidos entre la multitud. Este dispositivo legal tuvo su continuidad en los sucesivos gobiernos durante la primera mitad del siglo XX, fortaleciendo el poder policial y las decisiones arbitrarias habilitadas desde la orden superior a los policías que efectuaban en la interpretación de los actos que debían controlar. El resultado de todo ello, se materializaba en la confección de legajos que pronto se ordenarían con más rigor en los estantes del Archivo y Fichero de la Central de Inteligencia. Luego del intento de Golpe de Estado del 16 de junio de 1955, donde el pronóstico para el gobierno comenzaba su derrotero, el Partido Comunista realizó un acto en que enfatizó con preocupación el conflictivo y violento contexto político que se avecinaba. Se denunciaba el asesinato del dirigente azucarero de Tucumán, Carlos Aguirre en 1949 y la desaparición del médico Juan Ingalinella, de la ciudad de Santa Fé, en 1955, ambos militantes comunistas. Desde la jefatura de Vigilancia General, de la División de Orden Público, se pidió el control del acto y la posterior confección de un informe de lo sucedido al Oficial Sub Inspector, Luis Luna, de la Comisaría 3ra. de La Plata. En la redacción del informe, puede verse cómo el uso de la primera persona se combinaba con las aclaraciones del propio redactor, que respondían literalmente a la misma jerga del orador, es decir, del controlado: Se refirió al Comisario LOMBRILLA que no es ajeno la torturas y que cómo otros jefes en lugar de recibir el castigo merecido, han sido ascendidos […]. Que se ponga fin a esta negra historia de torturación policial y se supriman las secciones de Orden Social y Orden Público, como así también la Sección Especial, que se restablezca el recurso de hábeas corpus.- que se suprima la llamada justicia policial, que se entreguen los restos de INGALINELLA […].

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[…] hemos asistido a un hecho sangriento y así hemos visto como los aviones arrojaban bombas contra el pueblo indefenso, sin aviso de las sirenas de alarma y donde vimos que todo un pueblo salió a luchar contra los aviones asesinos […]. Aludiendo a los rumores que circulan manifestó que no son sólo rumores, sino que el pueblo debe estar alerta para aplastar otro Golpe de Estado, para defender la entrega de la riqueza del país al imperialismo yanqui.- No queremos que el Gobierno converse a espaldas del pueblo, queremos como en 1810 que el pueblo sepa de lo que se trate (se refiere a los tratados comerciales y a la entrega del petróleo a los yanquis) (Archivo DIPBA, 1955).

En el mismo informe se daba cuenta de la denuncia a la propia policía por “torturadora”, denominando el momento como “la era de la picana eléctrica”, concadenando los crímenes de los militantes comunistas con el intento de Golpe de Estado durante el 16 de junio de 1955, que dejó cientos de civiles muertos en la Plaza de Mayo. A su vez, durante el acto se expresó el repudio a la clausura de locales, la libertad a los presos políticos y el procesamiento y exoneración de todos los funcionarios policiales “que han actuado y actúan como torturadores”. El motivo que movilizó la orden del informe de inteligencia se involucraba también con el interés por parte del gobierno peronista ante el llamado a la “conciliación nacional” y la posición que tomara el comunismo al respecto. No obstante, la relación de dicho Partido con la policía, resulta por momentos paradójica -quizás estratégica- cuando por un lado se ponía en conocimiento a la policía de todo acto y quiénes lo integraban, mientras que por el otro se la denunciaba y reconocía como artífice directa de las torturas y persecuciones políticas a militantes: “Debo informar al señor Jefe que antes de iniciarse el acto se voceaba por los altoparlantes pidiendo la suspensión de Orden Social y Sección Especial de Rosario y de esta ciudad y el castigo a los torturadores: OHIVALLE, BLANCO, LUNA, y REYMUNDO” (Archivo, DIPBA, 1955). En este marco, cada informe estaba signado por la identificación de los principales referentes comunistas, o de quienes hacían declaraciones consideradas por el informante como trascendentes para el control: “Conste que entre la concurrencia se pudo individualizar a los dirigentes XXXX, XXXX, con sus hijos, XXXX, XXXX y los hermanos XXXX […] A continuación debo informar la numeración de chapas de autos: 317-190 y 100-778 y 415-371.-Lo expuesto es cuanto puedo informar a usted” (Archivo DIPBA, 1955).

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Luego del golpe de Estado de septiembre de 1955 por la autodenominada “Revolución Libertadora”, el contenido de los informes de inteligencia vinculados al comunismo empezó a comprender variables impregnadas de una subjetividad “antiperonista” propia del gobierno provisional. El foco de atención de los redactores se centraba en los análisis políticos- económicos de los actos del PCA, su influencia y detección o no de “elementos” ideológicos que pudieran ser considerados como parte del ideario del gobierno derrocado. A su vez, las denuncias sobre torturas y la exigencia por la disolución de las dependencias policiales encargadas de la vigilancia política, continuaron siendo la base de los discursos y actos del Partido Comunista. Con motivo de informar quién organizaba un acto en la Plaza San Martín de la ciudad de La Plata, para entrevistarse con el Interventor de la provincia de Buenos Aires, Coronel Ossorio Arana, el Jefe de la Sección Vigilancia, Oficial Principal Juan Carlos Sánchez, elevó un informe donde se detallaban los autores del acto a realizarse frente a la Casa de Gobierno provincial: […] titulándose ciudadanos torturados, sería organizado por el Partido Comunista, quien se presentaría en la Casa de Gobierno portando cartelones con inscripciones con los nombres del personal de esta Dirección. También se ha tenido conocimiento, que algunos procuran obtener nombres del personal de esta Dirección, sin distinción de jerarquía a los efectos de acusarlos como torturadores y así influir a la disolución de esta dependencia, lo que sería el motivo principal que los guía. También ha trascendido, que los mismos se propondrían efectuar una manifestación, por distintos lugares de la ciudad, lo que traería aparejado una posible alteración del orden público, cosa que podría ser aprovechada por partidarios del régimen depuesto (Archivo DIPBA, 1955).

En este caso, el nuevo escenario político comenzaba a habilitar a la policía la incidencia en reflexiones de índole político, previendo circunstancias que pudieran alertar nuevos controles policiales. Si bien el “blanco comunista” siguió siendo vigilado, se destacaba un interés especial por detectar posibles conexiones de origen peronista, en el hipotético escenario donde un caudal importante de la militancia peronista pudiera ser proclive a acercarse al tipo de ámbitos opositores que generaba el PCA. Para esta época los análisis doctrinarios, plasmados en estos informes de inteligencia policial, confluían en la asociación peronismo-comunismo-marxismo. El correlato de este vínculo en la realidad pudo haber sido de muy dudosa veracidad, aunque desde la militancia comunista se ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 294

reconocía en el obrero peronista un potencial activista que pudiera encausarse en el terreno de la lucha reivindicativa y política si abrazaba la causa del comunismo. Desde este espacio se pensaba más en términos de “conversión” que de alianza entre obreros peronistas y comunistas. Este tipo de “sospecha policial” que vinculaba una posible articulación peronistacomunista desde el análisis doctrinario, se desarmaba muchas veces en los hechos. Tal fue el caso, cuando el mismo apoderado del Partido Comunista reclamó al gobierno provisional ante las limitaciones dispuestas por las autoridades policiales a las reuniones públicas preparadas por el PCA a lo largo del territorio bonaerense, durante el gobierno depuesto. Nuevamente, el PCA, a contra mano de los estereotipos efectuados por los “analistas” de la fuerzas de seguridad, insistía por la vía formal para comunicarse con la autoridades del gobierno provisional. En este caso, se descalificaba al gobierno anterior por las restricciones que había aplicado a la realización actividades políticas. En esta oportunidad se adjuntaron dos “memorándum” sobre el control de actos públicos y la información de la clausura de un local del Partido Comunista en Avellaneda desde el año 1953. Allí, se expresaba el descontento hacia el gobierno peronista, pues “existía un orden legal que autorizaba la existencia y actividad de los partidos políticos, pero en la práctica esta autorización se traducía a la administración por gotas de los derechos básicos de la constitución” (Archivo DIPBA, 1956). A su vez, el apoderado del PCA elevó una carta que acompañaba a este legajo, donde manifestó el reclamo por las restricciones impuestas para celebrar el Día del Trabajo. En la carta dirigida al Jefe de la policía provincial del gobierno dictatorial, retomaba la argumentación anterior, señalando síntomas positivos en el orden de las garantías políticas. Esta valoración tuvo como correlato el discurso de la propaganda oficial de “la Libertadora”, que condenaba las prácticas del peronismo depuesto en relación a las prohibiciones para realizar reuniones públicas de determinados partidos. Buscando marcar una diferencia en este sentido, el gobierno golpista se mostraba disponiendo lo contrario: A lo largo de la Provincia se ha comunicado por intermedio de las seccionales policiales a las autoridades locales que los actos públicos preparados para el primero de mayo estaban autorizados en ‘local cerrado y sin parlantes al exterior’. Mientras que todas las ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 295

agrupaciones políticas y sindicales tienen la vía pública, sin restricción de lugar ni de parlantes para efectuar sus reuniones. Discriminación que no aceptamos en absoluto por infundada e ilegal (Archivo DIPBA, 28/4/1956).

Sin embargo, a partir de disposiciones como estas, desde el PCA se repudiaban las contradicciones entre las palabras y los hechos. En este caso, por ejemplo, el apoderado del Partido informaba los lugares donde se habían restringido los actos y reuniones a los fines de rectificar dicha decisión. Una muestra más de los métodos que se utilizaban desde el comunismo partidario para acceder a las garantías políticas, como cualquier otro Partido, alejándose estas actitudes de las interpretaciones policiales y militares sobre el comunismo. En el plano local, el partido en la ciudad de La Plata otorgó, en este período, las propias fuentes que burocratizaron su control. De este modo, durante el año 1956 desde el gobierno de “la Libertadora”, se continuó con las órdenes por reconocer en el territorio de la ciudad de La Plata la existencia o no de Comités del Partido Comunista o entidades consideradas “colaterales”, como así también, se ejerció el control sobre quiénes lo integraban y la realización de algún acto que los identificara. La vigilancia tuvo claramente una continuidad, por la cual no se prohibió ni se proscribió de manera absoluta al PCA, para poder garantizar un registro minucioso de sus integrantes y sus organizaciones afines. Las órdenes impartidas comprendían un registro sobre la existencia de partidos en todas las Seccionales que eran parte de la ciudad de La Plata, extendido a las localidades aledañas, como Ensenada y Berisso, de fuerte concentración obrera por las fábricas allí instaladas. Estos pedidos, eran parte de la actualización de datos y “cruce de información en el tiempo”. Un ejemplo de ello se puede apreciar en la solicitud de informe sobre el Partido Comunista en Ensenada con fecha del 30 de abril de 1956, donde se expresaba que el Partido se hallaba desorganizado, identificando a la persona más destacada dentro de las filas comunistas locales. Un obrero cervecero de dicha localidad era el dirigente al que se le adjudicaba ser la persona con más “ascendencia” dentro de los afiliados, consideración que se sustentaba con un anexo documental del año 1949, es decir de la anterior dependencia de inteligencia perteneciente al gobierno depuesto. En el informe se detallaba que el local de Ensenada, “se encuentra aparentemente desorganizado no ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 296

habiendo en la actualidad comisión directiva; dependiendo en consecuencia sus afiliados del Partido Comunista de La Plata” (Archivo DIPBA, 30/4/1956). La custodia para la obtención de información requería de un tiempo extra en la búsqueda de un dato para el agente encargado de la inteligencia. Una tarde de enero de 1957 la calle 12, entre 54 y 55, de la ciudad de La Plata, se vio rodeada por personal policial de civil. Desde una terraza la vigilancia se hacía permanente hacia el interior de una casa donde funcionaba el Comité Central del Partido Comunista de dicha ciudad. Según el registro policial, más de setenta personas pasaron por allí, sin quedarse en el lugar. Las formas que adquirió el control, también derivaron en interpretaciones del informante nutridas por el contexto socio espacial de la zona. Suposiciones y miradas impregnadas por el concepto de que este tipo de reuniones desobedecían al “sentir nacional”, convertían al relato en un juego de espionaje, donde se dejaba la sensación de que el “otro” vigilado y perspicaz daba cuenta de su control, por lo que evadía la mirada invisible de varios civiles de la fuerza, apostados en la casa lindera. El control de los movimientos impregnó el relato policial de sobreentendidos, donde como en una película muda, la grafía y las señas confluían en una nueva reunión de los custodiados, con menos personas y en otro lugar, burlando el panóptico itinerante que montaba la policía para producir información sobre cada acto que programaba el Partido Comunista. Los informantes ajenos a las fuerzas de seguridad eran fuentes imprescindibles para la construcción del relato, […] después de averiguaciones practicadas entre el vecindario, se ha podido establecer lo siguiente: que la reunión de figuración no se realizó dentro del local social de dicho partido, pues dicha finca fue atentamente observada desde una casa lindera, domicilio de un Señor Oficial de esta repartición. Que en esta última finca se hicieron presentes empleados de la seccional 1ra., quienes también vigilaron el cumplimiento de la prohibición impuesta a la realización del acto por la Superioridad (Archivo DIPBA, 20/1/1957).

Durante toda la jornada vespertina, el agente pudo detectar cómo los y las militantes lograron franquear los obstáculos impuestos por el gobierno para la realización de reuniones políticas. Las averiguaciones lograron revelar que la reunión efectuada en un restaurante de la zona estaba solicitada para el personal del frigorífico Swift de la ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 297

localidad de Berisso, aledaña a La Plata. Sin embargo, no pudo acceder a la obtención del contenido de las conversaciones, mientras que el principal informante, reconocido en el vendedor de cigarrillos de enfrente, no se encontraba. El objetivo truncado, era poder establecer la existencia o no de un vínculo entre las personas que se retiraron del local del Partido Comunista, al tener conocimiento de la suspensión del acto, y las alrededor de 40 personas que se dirigieron luego al restaurante mencionado. Este ejemplo indica cómo en verdad existían limitaciones en el trabajo policial y pone de manifiesto las estrategias dadas por los mismos vigilados quienes, al parecer avisados, evadieron el control entorpeciendo el resultado esperado por las fuerzas de seguridad. Se podría presumir, al menos, que los mismos militantes tenían su “contrainteligencia”, o sus “informantes”, y para evitar que sus acciones y palabras llegasen al conocimiento policial, generaban falsas reuniones, o montaban falsos escenarios políticos. Esto es sólo una hipótesis, que simplemente apunta a relativizar esa custodia policial que muchas veces no se correlacionaba con la maquinaria de inteligencia montada en los documentos de doctrina, donde desde extensos organigramas y conferencias, el enemigo demonizado parecía estar minuciosamente estudiado y siempre bajo un perpetuo estado de control y vigilancia. Hasta 1959, año en que se dictó el decreto-ley que prohibió las actividades del Partido Comunista, las órdenes en relación a dicho Partido, consistieron preferentemente en el control de cada acto detectado por la policía y en el relevamiento de la existencia de locales y comités del Partido Comunista a lo largo de las distintas jurisdicciones de las comisarías de la ciudad de La Plata y sus delegaciones. Muchos de los “memorándums”, en los que se requirió este tipo de información fueron elaborados bajo el carácter de “estrictamente confidencial y secreto”. Hacia finales de la década del ’50, se podría decir que existía un registro actualizado sobre los distintos locales comunistas, sus integrantes, antecedentes y caracterizaciones del sujeto político. Por ejemplo, se subrayaba que en Tolosa, localidad que depende de la ciudad de La Plata, la Comisión Directiva del Partido Comunista estaba integrada mayoritariamente por el “elemento ferroviario”. Como así también, a partir de este conocimiento, una alerta de control permanente se establecía

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sobre estos locales, de los cuales también se brindaba información sobre su funcionamiento y características edilicias: A la sede del Partido Comunista, arriban unos a pie y otros descienden de transportes públicos (taxis, micros o troylebuses), y luego de permanecer por espacio de algunas horas se retiran de la misma sin los paquetes, cuando los ingresan, o bien con ellos, si no han introducido al local bulto alguno. Se presume que el contenido de tales paquetes o bultos, pueden contener propaganda ideológica roja con la que se persigue envenenar las mentes de nuestros jóvenes incautos. También podrían contener armas o material para construir artefactos explosivos de intimidación pública con fines terroristas” […]. En general, los concurrentes, son jóvenes de ambos sexos aunque en su mayoría son varones, y al parecer estudiantes universitarios, que por ahora no han sido individualizados por tratarse de activistas nuevos en el ámbito local (Archivo DIPBA, s/f).

Es interesante cómo el “se presume”, constituía la base de la sospecha que a priori los condenaba de “terroristas”, siendo parte de la construcción del agente que elaboraba el informe, como síntoma de una subjetividad policial que los formaba en estas tareas. En esta lógica, tanto los explosivos, como la propaganda roja, se colocaban en un mismo nivel de peligrosidad; una por su impacto de destrucción material; la otra por su destrucción emocional e intelectual. En este caso, el agente no sólo se remitió a describir los sucesos según su “observación”, sino que arriesgó interpretaciones que claramente, se condescendían con el espíritu anticomunista de los materiales de doctrina. El registro de la vigilancia policial era solicitado no sólo por la Central de Inteligencia provincial sino también por otras agencias, como la Dirección de Informaciones Antidemocráticas, de carácter nacional. En este sentido, para el período pos “Libertadora”, sin dejar de perder el objetivo por desperonizar el país, se traslucía una creciente preocupación ante “el problema comunista”, desde las esferas de seguridad nacionales. Adentrados en el gobierno de Frondizi, bajo la sanción del Decreto Nº4965/59, por medio del cual se creó una comisión dependiente de la presidencia de la Nación encargada de planificar, dirigir y supervisar las acciones del Estado en materia de comunismo y otros “extremismos”, las atribuciones policiales para la clausura y persecución a comunistas, se amplió notablemente. Es decir, si antes el trabajo se podía denominar, en términos policiales, como “preventivo”, ahora bajo el nombre de la “ley”, ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 299

el control pasó a convertirse en la detención y clausura directamente de los locales del PCA. Con motivo de la aplicación del mencionado decreto, el siguiente informe detalla cómo fue el procedimiento formal realizado para la clausura de la sede central del Partido Comunista en la ciudad de La Plata, calle 12 Nº 1073: […] penetramos al interior del local ocupado por el referido Partido Político, procediendo a la clausura de los ambientes que se detallan a continuación: habitación nro. 1: Depósito de materiales de propaganda de la Agrupación; habitación nro.2 Secretaría de la Juventud del Partido; habitación nro.3: Tesorería; habitación nro.4: Biblioteca de la Juventud Partidaria; habitación nro.5: Secretaría del Partido; habitación nro.6: Salón de reuniones; como asimismo las puertas intermedias que se mencionan: una en la Secretaría de la Juventud; una puerta en la Secretaría del Partido y tres puertas en el Salón de Reuniones, colocándose en ellas las respectivas fajas con la inscripción “Clausurado-Decreto 4965/59” firmadas y selladas”. No habiendo otra diligencia que cumplimentar nos trasladamos al asiento de esta Comisaría, donde es labrada la presente, dejándose constancia que no se clausura la puerta de acceso al local, en virtud de habitar al mismo el casero de la finca, quién no posee otra entrada (Archivo DIPBA, 9/5/1959).

Estos ejemplos dan cuenta de cómo incidieron las órdenes en la vida política del PCA. Si bien las clausuras comenzaron a registrarse a partir de 1959, donde ya directamente fue prohibida su existencia como Partido, todo un registro minucioso le antecedía, sobre la vida íntima de sus militantes, el contenido de los discursos en los actos, generando la detección anticipada de quienes podrían ser los principales cuadros políticos del Partido. Este material se activó, en función de las determinaciones de los distintos gobiernos de turno, por lo que hacia fines de los ‘50, con un dispositivo jurídico en su contra, existía un estudio que fortalecía la detección de quienes, en gran parte, se convertirían en “delincuentes subversivos”, para el archivo y fichero de la DIPBA.

Consideraciones finales Estos ejemplos son apenas una aproximación a la construcción del organismo de control; para esto se procuró contextualizar estos informes en el marco de un proceso de conformación de la inteligencia en la provincia de Buenos Aires, sustentado en el

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presente con la acumulación de registros del pasado, para garantizar la persecución en el futuro a personas, organizaciones y/o partidos políticos. En la relación de los integrantes del Partido Comunista con la policía, puede comprenderse el esfuerzo partidario por su legalización, en términos de legitimidad estatal. Es decir, independientemente de la ley que los prohibiera a ejercer su derecho como partido político, su relación con las autoridades gubernamentales y policiales peronistas, respondieron a vínculos institucionales para el reconocimiento y aprobación de sus actos. Señalando, luego, en las misivas hacia las autoridades militares, síntomas de autoritarismo en el gobierno depuesto, en un intento por fortalecer su posición y la importancia de que exista un momento transicional hacia el respeto de las garantías constitucionales. De esta manera, mediante su apoderado legal, los integrantes del Partido Comunista en La Plata apostaban a la vía formal para hacer cumplir sus derechos políticos. No obstante, desde una mirada macro, el “comunismo” siempre fue representado como un enemigo vertebral para la Nación, cuya identificación diferencial fue utilizada por los diversos gobiernos para estructurar un modelo político hegemónico. La existencia de un discurso binario para caracterizar al otro “enemigo comunista”, y construir identidad desde la oposición y la diferenciación, fue utilizado históricamente, homologando la representación de este enemigo en el pueblo para garantizar consenso en la aplicación de la represión en pos de mantener el orden, los valores patrios y la moral cristiana. La necesidad del control y la vigilancia, a merced de la letra de la ley, se manifestó de manera continua, expresándose bajo la intervención militar una intensidad en estos controles, en el afán por detectar también al “enemigo peronista”. En las caracterizaciones sobre los actos y sus contenidos, se destacó siempre un registro condicionado por la perspectiva ideológica comunista, por parte de los agentes policiales. La importancia de los “informantes” también apareció como algo clave en un intento por comprender al sujeto en su entorno ambiental. Estas prácticas cobrarían sistematicidad con los informes ambientales4 (6), maximizando las formas del control, construyendo un imaginario de culpabilidad en el perseguido dentro de su propio vecindario y entorno social.

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El proceso de individualización de personas fue otro aspecto típico del registro de actos. Hacia 1955, ese registro policial cobró la dimensión de lo secreto y confidencial en muchos casos. Esto determinaba una identidad figurada en el agente, que debía pasar de ser un observador visible e identificable a un espía, cuya práctica exigía no sólo la atención de aquello que se veía, sino comprenderse a sí mismo como una persona clandestina. En estos casos, podemos pensar en la categoría de “la policía de las apariencias”, mientras que el ojo de la policía, en cuanto ojo de la censura, decide lo que debe o no debe ser, instituye una policía de las apariencias” (L’HEUILLET, 2010, p. 203), donde incluso aquella mirada intrusiva, no sólo abusiva, podía ser fácilmente engañada y burlada. En 1957, con la incorporación del Archivo, esta información comenzó a tomar un orden, dentro del orden, es decir, un orden que respondía a lo espacial y a una necesidad de ganar en tiempo y eficacia para el control. El surgimiento del fichero indicaba no sólo la necesidad del control de la vida de las personas, sino la de garantizar el contenido de estos registros en un “Archivo y Fichero”, que paradójicamente generara un orden de “criminalidades”, “peligrosidades”, o posibles amenazas a la paz social. No es posible pensar la realización de este tipo de armados burocráticos de la policía, sin visualizar sus antecedentes en el examen, que incorpora el registro individual al campo documental. En términos de Foucault, se puede comprender en esta técnica como cada dato del examen individual puede repercutir en los cálculos del conjunto, (FOUCAULT, 2009, p. 221). De este modo, el informe policial incorpora en la organización de un archivo un lugar de poder que responde al registro que deviene en escritura, en texto de control, como parte de una pieza más que se institucionaliza a medida que se consolida la policía de inteligencia. En tal sentido, como alude Foucault, el ojo se conforma como la metáfora de la policía. La práctica de la inteligencia materializada aquí, en los “archivos de la represión”, despliega una dimensión simbólica de la disciplina de los cuerpos en un sentido figurado: un extenso fichero que clasifica, ordena y jerarquiza el nivel de “peligrosidad” de aquellos “cuerpos” políticamente incorrectos, transformados en expedientes que conformaron la identidad de la institución de control.

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Aquellas “narrativas del control”, que se desplegaban en los informes, incorporando las técnicas del registro minucioso, nos inducen a una serie de interrogantes que pueden aportar a un debate que lejos está de ser cerrado, como, por ejemplo, si fue posible que aquella subjetividad del agente de inteligencia haya respondido con el tiempo a la consolidación de una racionalidad particular dentro de la policía; y cómo repercutieron realmente estas prácticas en la vida de las y los “vigilados”. Estos interrogantes nos llevan a continuar pensando este archivo como un gran disparador sobre la historia de la construcción cotidiana que compete a los mecanismos disciplinarios de las instituciones del Estado. Estas y otras preguntas que consideren también las fallas, límites y grietas del registro, serán parte de la continuidad de trabajos que brindarán nuevos análisis e interpretaciones sobre lo que supo ser este gran “armazón documental”, que registró durante más de medio siglo la vida de las personas.

Fuentes Archivo DIPBA, Mesa Doctrina, “Tema Comunismo”, Archivo y Fichero, Legajo Nº167, 1956, s/f. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 76, La Plata Sección 4, Ensenada, 7 de agosto de 1949. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 16 de abril de 1951. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 22 de abril de 1953. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 1951, folio 28. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, Eva Perón, Sección 3, 28 de julio de 1955. La ciudad de La Plata, fue llamada durante el año 1952 hasta 1955, como ciudad “Eva Perón”. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 30 de julio de 1955. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, año 1955, s/mes y día. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 27 de abril de 1956. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 28 de abril de 1956. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 76, La Plata Sección 4, 30 de abril de 1956. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 20 de enero de 1957. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 303

Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 78, La Plata Sección 6 - Tolosa, 7 de mayo de 1958. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 81, La Plata Sección 9, s/f. Archivo DIPBA, Mesa C, Carpeta 2, Legajo Nº 75, La Plata Sección 3, 9 de mayo de 1959. Ley Nacional 14.400, “Actos o reuniones públicas”, Anales de la Legislatura Argentina, Tomo XIV-A, La Ley: Bs. As, 1954, pp. 267-269. Comisión Provincial por la Memoria: .

Referencias BRODEUR, Jean-Paul, Las caras de la policía: prácticas y percepciones. Buenos Aires: Prometeo, 2011. DA SILVA, Ludmila Catela. Etnografía de los archivos de la represión en Argentina, en FRANCO, Marina y LEVÍN, Florencia (comps), Historia reciente. Perspectivas y desafíos para un campo en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. pp. 183-220. EILBAUM, Lucía. La sospecha como fundamento de los procedimientos policiales, en Cuadernos de Antropología Social. N. 20, pp. 79-91, 2004. FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar: nacimiento de la prisión. Buenos Aires: Siglo XXI, 2009. KAHAN, Emmanuel. Unos pocos peligros sensatos. La Dirección de Inteligencia de la provincia de Buenos Aires ante las instituciones judías de la ciudad de La Plata. La Plata: EDULP, 2008. KARABABIKIÁN, Graciela. Archivos y derechos humanos en la Argentina. Boletín del Archivo General de la Nación, año LXIX, Vol. XXXIII, Núm.119, 2004. L’HEUILLET, Hélene. Baja política, Alta policía. Un enfoque histórico y filosófico de la policía. Buenos Aires: Prometeo, 2010.

Notas 1

Lic. en Comunicación Social, Universidad Nacional de La Plata -UNLP-. Magister en Historia y Memoria, (UNLP). Becaria doctoral del CONICET con sede en el Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales (IdHICS/ UNLP). Alumna avanzada del doctorado en Ciencias Sociales (UNLP). Integrante del Centro de Estudios para el Cambio Social (CECSO) y del proyecto “Leyes, justicias e instituciones de seguridad en Argentina y América Latina”, (FaHCE/UNLP). 2

La dependencia policial de inteligencia obtuvo su jerarquía de Dirección General en el año 1978; a lo largo de su historia fue variando sus nominaciones y jerarquías, como se verá en este trabajo con los pasajes de “Orden” a “División” y “Central”. Sin embargo, en la siguiente ponencia se hará referencia a dicha institución policial con las siglas DIPBA, cuando no se nombre como Central de Inteligencia. Esta decisión compete, a que desde el año 2003 con la apertura de su archivo y la transformación de éste en un lugar de la memoria, es así como se lo conoce y se lo referencia públicamente. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 304

3

Para proteger la identidad de quienes aparecen en los registros policiales nombrados, desde la Comisión provincial por la Memoria, se definió que sean tachados aquellos nombres que datan hasta los 50 años de antigüedad. No obstante, los nombres se revelan cuando éstos hayan figurado públicamente como los que aparecían en volantes, prensa partidaria; los que identificaban a funcionarios públicos; o aquellos nombres personales que pertenecían a corrientes políticas o sindicales. Para el caso que compete al siguiente trabajo, en el período estudiado la mayoría de los nombres no están suplantados por cruces, pero se optó, de igual manera, por evitar exponer aquellos nombres que fueron criminalizados en los expedientes policiales. 4

Los informes ambientales correspondieron a las “Mesas G y S” del archivo de la DIPBA. Estas mesas “se encargaban de realizar informes generales y "ambientales", respectivamente, sobre la base de distintos requerimientos de organismos del Estado. Dichos informes eran luego incorporados a los legajos confeccionados por el resto de las mesas. La Mesa S cumplía la misma función que la Mesa G pero, a diferencia de ésta, era la receptora de los requerimientos que incluían informe de ambientales, ya sea de personas, entidades o sociedades”, .

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Os arquivos do aparato repressivo do Rio Grande do Sul e o monitoramento da fronteira Brasil-Uruguai Marla Barbosa Assumpção1

Resumo: o presente artigo se propõe a mapear e analisar algumas políticas de controle e monitoramento, por parte do aparato repressivo, que tinham como foco a fronteira do Rio Grande do Sul durante a ditadura civil-militar brasileira. Nesse sentido, é importante destacar que a região fronteiriça sul-rio-grandense tinha um papel central na mobilidade empreendida pela oposição política, visto ser o estado gaúcho o único a fazer fronteira com o Uruguai, país de destino de um número considerável de exilados. Esse trânsito fronteiriço despertou a desconfiança das autoridades brasileiras, que passaram a monitorar a região. Os aspectos supracitados foram analisados a partir da documentação das Seções de Ordem Política e Social (Sops), que foram instaladas em delegacias regionais do interior do estado e estavam subordinadas ao Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (Dops/RS). Palavras-chave: arquivos repressivos; Sops; Rio Grande do Sul; fronteira.

The archives of the repressive apparatus of Rio Grande do Sul and the monitoring of the Brazil-Uruguay border

Abstract: this article intends to map and analyze some control and monitoring policies by the repressive apparatus, which had focused on the border of Rio Grande do Sul during the Brazilian civil-military dictatorship. In this sense, it is important to note that the sul-rio-grandense border region had a central role in the mobility undertaken by the political opposition, since it is the unique state doing the border with Uruguay, country of destination of a considerable number of exiles. This transit border aroused the distrust of the Brazilian authorities, who began to monitor the region. The above aspects were analyzed from the documentation of Sections of Political and Social Order (Sops), which were installed in regional police station in the state and were subordinate to the Department of Political and Social Order of Rio Grande do Sul (Dops/RS). Keywords: repressive archives; Sops; Rio Grande do Sul; border.

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Introdução Em primeiro lugar, é necessário levar em consideração, ao se trabalhar com qualquer fonte, que tudo aquilo que chegou até nós não chegou por acaso. Todo documento envolve saberes, poderes e intencionalidades. Nesse sentido, a objetividade do documento – o qual parecia apresentar-se por si mesmo como uma prova histórica, desde que fosse testada a sua autenticidade –, que se opunha à intencionalidade do monumento, é uma ideia superada. Jacques Le Goff, em seu célebre estudo, no qual reflete sobre as questões supracitadas, destacou que O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 1996, p. 545).

Dessa forma, ao se trabalhar com os documentos que servem de subsídio para a pesquisa, é importante encontrar as condições de produção histórica desses (que, no presente estudo, está ligada ao rompimento da ordem democrática e à exacerbação da metodologia repressiva) e, assim, analisar as implicações e intencionalidades que estes documentos-monumentos carregam: O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. Os medievalistas, que tanto trabalharam para construir uma crítica – sempre útil, decerto – do falso, devem superar esta problemática porque qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem (LE GOFF, 1996, p. 548).

À luz das reflexões de Le Goff, acreditamos ser importante analisar a documentação levando-se em consideração o contexto de produção e os atores que “falam” nos documentos, assim como o conteúdo da mencionada “fala”. Não obstante, os silenciamentos podem ser bastante elucidativos também. Nesse sentido, é mister empreender uma reflexão sobre o lugar de onde se “fala” e, por decorrência, as implicações que estão imbricadas nessa posição. Nas fontes em questão, trata-se do olhar ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 307

vigilante da repressão sobre uma sociedade, ou parcela da mesma, potencialmente subversiva. Dessa forma, conforme destacou Carlos Bacellar, o historiador não pode se submeter à sua fonte, julgar que o documento é a verdade [...]; antes de tudo, ser historiador exige que se desconfie das fontes, das intenções de quem a produziu, somente entendidas com o olhar crítico e a correta contextualização do documento que se tem em mãos (BACELLAR, 2005, p. 64).

Considerações sobre a documentação produzida a partir da deflagração do golpe de Estado de 1964 no marco das discussões sobre arquivos repressivos Para falar mais especificamente dos arquivos produzidos pela repressão, é necessário tecer alguns comentários a respeito da repressão propriamente dita ou, ao menos, reconstituir a estrutura burocrática – como os sistemas de informações – que produziu os mencionados documentos. Segundo os historiadores Caroline Bauer e René Gertz, ao longo da história da República brasileira, sobressaem-se dois períodos nos quais a repressão política adquiriu um novo papel e um redimensionamento dentro do aparelho estatal. São eles: o primeiro governo Vargas (1930-1945) e a ditadura civilmilitar deflagrada com o golpe de 31 de março de 1964. Tendo em vista os objetivos do presente trabalho, centraremos a análise apenas nesse último período. A produção de informações possuía um papel de destaque durante os regimes de Segurança Nacional no Cone Sul, visto que estas orientavam a execução de operações por parte do aparato repressivo. Em relação à importância dos órgãos de informação, no caso brasileiro, vale ressaltar os apontamentos feitos por Alfred Stepan no tocante ao grau extraordinário de prerrogativas legalmente sancionadas e de autonomia burocrática que teve o Serviço Nacional de Informações (SNI), experiência esta que não possui equivalente nos demais regimes autoritários. O autor vai ainda mais longe ao afirmar que a combinação de prerrogativas que o SNI possuía não tinha paralelo em nenhuma das principais agências de inteligência do mundo (STEPAN, 1987, p. 30-36). A centralidade do sistema de inteligência para o regime é atestada pela criação do SNI menos de três meses após a deflagração do golpe de Estado no Brasil. Tal agência teve como principal autor do decreto de criação e primeiro chefe o general Golbery do Couto e Silva. Essas colocações ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 308

sobre o poder da comunidade de informações, no caso brasileiro, são corroboradas por Pio Penna Filho, quando este afirma que “não há paralelo ao sistema de informações montado pela ditadura brasileira, pelo menos não na região do Cone Sul.” (2009, p. 55). Ainda que as origens dos arquivos da repressão remontem aos tribunais inquisitoriais da Idade Média, a discussão a respeito da conservação e preservação, assim como sobre a disponibilização e especificidades dos mesmos, data do final da Guerra Fria na Europa e da redemocratização de países latino-americanos durante a década de 1980. A despeito de não existir consenso sobre essas questões, os arquivos da repressão, em uma definição ampla, são caracterizados como “conjuntos documentais produzidos pelos órgãos de informação e segurança do aparato estatal em ações repressivas, durante períodos não-democráticos.” (BAUER; GERTZ, 2009, p. 177). Quanto à composição desses arquivos, destaca-se a existência de registros elaborados a partir da ação policial cotidiana, materiais roubados das vítimas, interrogatórios obtidos, muitas vezes, sem o respeito ao código penal, assim como a documentação produzida ou obtida pelas organizações de Direitos Humanos. No tocante ao conteúdo, por serem fruto de situações-limite, as informações obtidas nesses documentos são, normalmente, bastante imprecisas. É necessário também desmistificar essa documentação no que tange à metodologia repressiva e atentar para os “eufemismos” utilizados nos relatos: Raramente um documento demonstrará, de forma explícita, práticas como o seqüestro como forma de detenção; a tortura física e psicológica como fonte de informações e punição; e mortes e desaparecimentos como políticas de extermínio. Assim, torna-se imprescindível estar atento às sutilezas que essas fontes possuem, e às evidências que trazem subentendidas (BAUER; GERTZ, 2009, p. 190).

Esta documentação possibilita o acesso tanto ao funcionamento de um importante instrumental de repressão utilizado durante o período, delineando assim a lógica do regime militar, como ao potencial e ao caráter da resistência. Segundo Maria Aparecida de Aquino: Os relatórios dos “agentes infiltrados” mostram a que eles estavam atentos e quais os seus procedimentos de vigilância e controle. Exibem, também, graças ao conhecimento, que, no exercício de sua função, precisavam adquirir em relação às ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 309

pessoas/instituições/atividades que acompanhavam, o funcionamento e a lógica que ditava o seu procedimento. Além disso, o farto material apreendido nessa atuação repressiva fornece uma radiografia das diferentes expressões de oposição ao regime (2001, p. 179).

Uma das principais discussões suscitadas por esse tipo de documentação, em especial aquelas relativas ao período analisando, diz respeito à privacidade e à preservação da intimidade de inúmeras pessoas, uma vez que parte dos protagonistas ainda está viva. Entre outros aspectos, essa documentação possui valor histórico e também judicial, afetando diretamente a sociedade em que foram recuperados: Esses arquivos possuem uma especificidade intrínseca, chamada por alguns pesquisadores de “efeito bumerangue”: os documentos que compõem os acervos provenientes das forças repressivas servem, no presente, para atividades opostas à sua origem – produzidos para coordenar ações repressivas, agora podem ser usados para compensar vítimas por arbitrariedades e violações a seus direitos (BAUER; GERTZ, 2009, p. 178).

No tocante aos cuidados indispensáveis no tratamento e análise das referidas fontes, é necessário estar atento a algumas questões que, de forma geral, em maior ou menor grau, se aplicam ao trabalho com outros tipos de documentos. Destaca-se, nesse sentido, o conhecimento relativo ao funcionamento do órgão de informação ou repressão responsável pela produção da fonte analisada; o exame da data de produção do documento, cotejando e relacionando o seu conteúdo com a conjuntura em questão; o indispensável e correto cruzamento de informações provenientes de diferentes origens; e, por fim, mas não menos importante, o devido cuidado com aspectos de cunho ético, como a divulgação de nomes, entre outras questões. Percebe-se, pois, que essas fontes sensíveis exigem por parte dos historiadores uma série de cuidados não apenas de cunho teórico-metodológicos, mas também éticos.

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A documentação das Seções de Ordem Política e Social (Sops) e o alcance da vigilância sobre o estado do Rio Grande do Sul No trabalho em questão, optou-se pela análise da documentação disponível no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), instituição vinculada à Secretaria de Estado da Cultura. Ainda que sua história se inicie no início dos anos 1900, foi apenas em meados da década de 1950 que surge como instituição independente. O AHRS tem sob sua custódia documentos concernentes ao âmbito político, econômico e administrativo do Rio Grande do Sul, datados do século XVIII até a contemporaneidade2. Em relação especificamente às fontes referentes ao período analisado no presente trabalho, segundo o Meio de Busca do Arquivo, os documentos que compõem o acervo do Centro de Memória Documental da Ditadura Militar (antigo Acervo da Luta Contra a Ditadura3) foram produzidos por órgãos do Poder Executivo Estadual. Este Centro conta também com acervos particulares, tais como o de Omar Ferri – que reuni documentação referente ao sequestro dos uruguaios, ocorrido em Porto Alegre, nos marcos da Operação Condor –, e o Acervo Lícia Peres – concernente ao Movimento Feminino pela Anistia –, entre outros. O Sistema de Arranjo, no tocante aos órgãos ligados ao Executivo, é constituído por dois fundos, quais sejam, a Secretaria de Segurança Pública e a Secretaria da Justiça. Verifica-se que existem algumas lacunas, o que caracteriza que o acervo registra apenas uma parcela da produção documental desses órgãos, e não a sua totalidade. Em relação ao âmbito e ao conteúdo dessas fontes, abrange o controle individual de presos, identificação pessoal, civil e criminal, coleta e processamento de informações: controle de indivíduos/grupos estrangeiros suspeitos, grupos suspeitos brasileiros, associações civis, movimentos sociais, partidos políticos, meios de comunicação e divulgação suspeita, estabelecimentos de ensino. Controle de armas, munição e explosivos – vigilância e segurança bancária, crimes contra a economia popular, etc.4.

No que concerne à presente pesquisa, analisou-se o Fundo Secretaria de Segurança Pública e, mais especificamente, o Subfundo Polícia Civil referente às Seções de Ordem Política e Social (Sops). Estas eram órgãos das delegacias regionais de polícia do interior do estado que cumpriam funções semelhantes ao Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (Dops/RS), sendo a ele subordinadas. Tem-se acesso ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 311

à documentação das Sops sediadas em Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Erechim, Lajeado, Lagoa Vermelha, Osório, Rio Grande e Santo Ângelo. Ainda que a região fronteiriça estudada esteja contemplada apenas de forma tangencial, é possível ter acesso a informações referentes a esse espaço, já que a Divisão Central de Informações, ligada à Secretaria de Segurança Pública, replicava as informações que chegavam de alguma região policial, difundindo-as para as demais Sops. Nesse sentido, é possível ter acesso a informações referentes aos municípios localizados nas mais variadas regiões do estado. Esse conjunto documental é formado por ofícios, memorandos, radiogramas, entre outros, assim como relatórios de exilados brasileiros e pedidos de informações sobre movimentação de pessoas que cruzavam a fronteira, permitindo vislumbrar um olhar diferenciado sobre a região e acompanhar algumas políticas específicas de controle e monitoramento. A partir da fonte em questão, é possível analisar os olhares da repressão sobre o espaço fronteiriço, lembrando que o estado do Rio Grande do Sul possui uma localização de suma importância nesse contexto – visto que possui, simultaneamente, uma extensa faixa de fronteira com a Argentina e o Uruguai –, tanto do ponto de vista da repressão quanto da resistência que emergiram nos países do Cone Sul. Nesse sentido, a promulgação de uma lei, em 1968, que declarava área de interesse da segurança nacional 68 municípios brasileiros, dos quais 21 eram gaúchos (ou seja, quase um terço do total), acentuou a percepção de que a região fronteiriça era um espaço crítico de defesa da segurança nacional, lembrando que os municípios gaúchos atingidos foram aqueles que são caminho para a fronteira e os que fazem fronteira direta com o Uruguai e a Argentina.5

Os órgãos repressivos do Rio Grande do Sul e as ações de controle e monitoramento da fronteira O surgimento dos primeiros Departamentos de Ordem Política e Social (Dops)6 data das décadas de 1920 e 1930, período marcado por intensas movimentações políticas. Estes órgãos especiais, criados no âmbito das polícias civis, estavam vinculados

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às Secretarias Estaduais de Segurança Pública de inúmeros estados brasileiros. Sobre as motivações que levaram à sua constituição, Caroline Bauer destacou que: Os Dopss surgiram da necessidade de implementação de um amplo aparato de cunho administrativo-legal a fim de controlar manifestações de descontentamento político. Assim, juntamente com a criação de Dopss em âmbito regional, diversas leis federais especialmente destinadas à repressão dos crimes políticos foram sancionadas. A partir desse período, evidencia-se o peso, a importância e o caráter decisivo que a organização policial teve para o Estado (2006, p. 53).

Com o advento do golpe de Estado, em 1964, foram levadas a cabo mudanças na estrutura e no funcionamento desse órgão. Diversas diretrizes presentes na Doutrina de Segurança Nacional estiveram no cerne desse processo: As mudanças que o Dops/RS sofreu a partir da deflagração do golpe contra-insurgente de 31 de março de 1964 e a institucionalização do regime de segurança nacional visaram a adequá-lo aos ditames da doutrina de segurança nacional e ao processo de militarização da sociedade, empreendido pelos militares ao tomar o poder. Essas reformas também visaram a ajustar a ação do órgão ao aprimoramento do aparato repressivo da ditadura brasileira, principalmente aos órgãos federais criados após o golpe (BAUER, 2006, p. 70).

As mencionadas modificações, consoantes com o novo regime, exigiram uma reformulação na estrutura do órgão, na composição de seus quadros e na ação de polícia política. Além disso, posteriormente, foram empreendidos diversos ajustes conforme a conjuntura. Cabe ressalvar, ainda, que “a militarização do Dops/RS não incluiu somente a presença física de militares em cargos importantes, mas também – e principalmente – a possibilidade de realização das doutrinas defendidas ou formuladas pelos militares e a transferência dos valores castrenses à administração pública” (BAUER, 2006, p. 70-71). No tocante à configuração do aparato repressivo do estado gaúcho, além do Dops/RS, que funcionava na capital, existiam ainda as Seções de Ordem Política e Social, que estavam subordinadas ao mesmo e foram instaladas em delegacias regionais de polícia do interior do Rio Grande do Sul, funcionando como suas filiais, pois cumpriam funções semelhantes àquele órgão, conforme anteriormente destacado. Nesse sentido, as Sops tanto forneciam importantes informações sobre as respectivas regiões ao Dops/RS, quanto recebiam deste ordens e instruções. A partir do intercâmbio e da colaboração entre esses órgãos, foi possível estender o alcance da repressão para as mais ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 313

diferentes áreas do estado, inclusive, para a região fronteiriça, que figurava como um espaço crítico de defesa da Segurança Nacional: “o Dops/RS elaborou uma série de estudos sobre as pessoas que faziam contato com os exilados, as rotas de entrada e saída do país e a infra-estrutura de apoio na zona de fronteira, entre outros” (BAUER, 2006, p. 201). Outra mudança efetuada a partir de 1964 foi a criação de uma estrutura paralela, vinculada ao Dops/RS, conhecida como Dopinha. Apesar de seu surgimento estar atrelado àquele órgão, era desvinculada funcional e hierarquicamente do mesmo, sendo integrada por membros das Forças Armadas e da polícia civil. Assim como a Dopinha, existem casos de outros centros clandestinos espalhados pelo Brasil. Não obstante, o fato de figurar entre os primeiros atesta a importância atribuída ao Rio Grande do Sul, tendo em vista as suas importantes e visadas fronteiras com os países do Prata: Logo após o golpe de 64, muitos exilados refugiaram-se no Uruguai e na Argentina através do Rio Grande do Sul, entre eles, o próprio ex-presidente João Goulart e o deputado federal e ex-governador gaúcho Leonel Brizola. A proximidade destas lideranças apressou o surgimento, no Estado, do primeiro órgão secreto oficioso da repressão política do país, logo após o golpe militar de 1964. Ficou conhecido como Dopinha (MITCHELL, 2007, p. 20).

Podemos perceber a preocupação com a região fronteiriça, bem como o tratamento diferenciado dispensado a essa, através da análise de um relatório datado de 1966, que trata do caso do Tenente Biscuby que, aparentemente, por suas vinculações com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), teria sido removido de uma cidade de fronteira do Rio Grande do Sul: "[...] soube o Cel. que o Tte. era inclusive PTB ferrenho, tendo sido por este motivo removido da fronteira para esta cidade após a Revolução." 7 O exame desse documento nos permite inferir uma série de elementos, entre os quais destacamos a influência do trabalhismo no estado sulino8, e também na fronteira deste, inclusive nos meios militares. Outro aspecto que podemos nos questionar é a razão pela qual um militar petebista, estando ele em um município de fronteira, representaria um desconforto maior para o regime, se comparado com a sua estada em alguma cidade de outra região do estado. A fragmentação constitutiva desse acervo documental não nos permite acompanhar e averiguar se o citado Tenente sofreu algum outro tipo de ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 314

retaliação posteriormente. O fato que podemos constatar, se nos limitarmos apenas à análise desse documento, é que ele permaneceu nos quadros das Forças Armadas, tendo sido apenas removido da fronteira, já que lá, possivelmente, era um fator de perturbação maior para o regime. Essa proximidade com a Argentina e, sobretudo, com o Uruguai e, por conseguinte, com lideranças perseguidas pela ditadura que lá se encontravam, era constante fonte de preocupação, já que estes eram vistos como potenciais desestabilizadores do regime. Assim, a formação da Frente Ampla9 e sua influência no Brasil incomodavam as autoridades. Tendo em vista os objetivos do presente texto, destacaremos, ainda que brevemente, seu impacto apenas sobre a região fronteiriça. Nesse sentido, houve a formação de núcleos frentistas na fronteira, os quais foram permanentemente infiltrados e vigiados, no intuito de combatê-los. Diversos são os documentos que encontramos no AHRS que atestam esse fato. Entre eles, destacamos uma reunião de representantes de municípios da fronteira, tais como Rio Grande, Bagé, Pelotas, São Gabriel e Santana do Livramento. Em relação a esse último, constam as seguintes informações: DR LÚCIO SOARES NETO, representante de LIVRAMENTO/RS, residente à rua Silveira Martins nº 742 e atualmente vereador pelo MDB. Atuou ativamente no conflito armado entre a Polícia e Comunistas em 1950 na linha divisória de Livramento com Rivera (ROU) onde morreram quatro comunistas. Após êste conflito homisiou-se no Uruguai. Homisiouse novamente em 3/64 antes mesmo que fôsse dado ordem de prisão. Por ocasião da eleição da mesa da Câmara de Vereadores, em Março de 66, o Cmt da Guarnição Federal de Livramento resolveu tirá-lo de circulação em virtude de haver o mesmo articulado um esquema para que não fôsse eleito para a Presidência da referida mesa um vereador da “Arena”. Exerce grande influência na Prefeitura Municipal de Livramento. Esteve recentemente em P. Alegre retornando para Livramento dia 9/Fev/68 (sexta-feira)10.

Essa fonte permite-nos perceber diversos elementos relativos ao espaço fronteiriço estudado, entre eles, a influência do Partido Comunista na cidade, a utilização da linha demarcatória como refúgio em diferentes conjunturas, assim como a força dos movimentos de oposição na região. No tocante aos mecanismos de controle do aparato repressivo, percebe-se a atuação deste, a partir da obtenção de informações tão precisas, bem como a preocupação com figuras de destaque da cena política fronteiriça.

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É válido ressaltar, mais uma vez, que a forte atração exercida pela região fronteiriça, e o decorrente trânsito bilateral, era fonte de preocupação para as autoridades constituídas, especialmente em conjunturas de conturbação política, quando a fronteira acabava atraindo os grupos sublevados: “También en el plano político, la frontera se asume como ‘refugio’: movimientos revolucionarios y dictaduras han movilizado la búsqueda del ‘otro lado’ en ese sentido” (BENTANCOR, 2008, p. 35-36). Este recurso foi historicamente utilizado em diferentes contextos, sendo válido também em relação aos anos que se seguiram à deflagração do golpe de Estado em 1964. Cruzar a fronteira representava, muitas vezes, a única alternativa de sobrevivência. Por essa e outras razões, milhares de pessoas foram impelidas, em maior ou menor grau, a deixar o território nacional, rumando para outro país através da fronteira. Evidentemente, esse trânsito despertava a desconfiança das autoridades brasileiras, que passaram a monitorar a região no intuito de freá-lo e de mapear as possíveis rotas utilizadas. Podemos perceber os aspectos supracitados através da análise do caso de Françual Terra Pires, cidadão brasileiro, que, já nos momentos seguintes à deflagração do golpe, com receio de ser preso, fugiu de Rio Grande com destino a Pelotas - ambas situadas a poucos quilômetros da divisa com o Uruguai. Após permanecer alguns dias nesta cidade, acabou rumando para a fronteira Jaguarão-Rio Branco, penetrando, assim, em território uruguaio. Depois de permanecer alguns meses no país vizinho, decidiu retornar ao Brasil, ainda naquele ano, onde foi preso e submetido a interrogatório. As perguntas que se seguem, feitas pela polícia política gaúcha, são bastante elucidativas no tocante à preocupação das forças repressivas, por um lado, com a utilização da fronteira sulina como meio de deixar o país, e, por outro, com as possíveis vinculações estabelecidas com os demais exilados: 1 – Com que documento se identificou ao entrar em território uruguaio ou ao solicitar o asilo territorial? 2 – Se durante sua permanência no URUGUAI, teve de informar a polícia uruguaia do seu domicílio e se o fez cada vez que mudou de residência? 3 – Quando deixou o território uruguaio? 4 – Por que ponto da fronteira? 5 – Deu conhecimento do fato às autoridades uruguaias? [a segunda folha do interrogatório está faltando] ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 316

11 – Que outros documentos de identidade tinha consigo ao deixar o Uruguai? 12 – Que documento apresentou na fronteira brasileira? [...] 14 – Enquanto estava asilado veio alguma vez ao Brasil? 15 – Sabe de algum outro asilado que tenha vindo? Qual? 16 – Como e onde passou a fronteira? Com que documentos? 17 – Havia alguma possibilidade de obter documentos que facilitassem uma viagem ao Brasil? Qual? Com quem? [...] 19 – Que meio ou meios de transporte utilizou o interrogado em sua viagem para o Brasil? Se de automóvel, quem era o proprietário? Marca, tipo, e se possível nº do carro? Matrícula brasileira ou uruguaia? Onde matriculado? Nome do condutor? 20 – Quais eram os asilados com quem mais conviveu no Uruguai? [...] 23 – Que meio ou meios de transporte utilizou o interrogado em sua viagem para o Uruguai? Quem o auxiliou nessa viagem? 24 – Que auxílios recebeu no Uruguai para sua manutenção? Por meio de quem? Quando? Como recebia? Se havia intermediários, quais eram?11

O documento acima nos ajuda a pensar quais as preocupações do regime militar implícitas em cada um dos questionamentos, bem como auxilia na compreensão das diferentes estratégias utilizadas por aqueles que, pelos mais variados motivos, não puderam permanecer em solo brasileiro, e que recorreram ao recurso do asilo em outro país, através da passagem pela fronteira. Outra preocupação bastante recorrente entre as autoridades brasileiras, e que se pode perceber, de alguma forma, na fonte acima destacada, era com a ligação entre os exilados e oposição interna através da atuação de intermediários. Entre esses, certamente figuravam os chamados pombos-correio, que eram vinculados a Leonel Brizola e atuavam conectando o exílio com a oposição e a resistência interna, destacadamente aquela situada no Rio Grande do Sul (FERNANDES, 2009, p. 93). O documento que se segue demonstra a preocupação das forças policiais com as suas ações, visto que esses atravessavam constantemente a fronteira. O informe, difundido pelo Dops/RS à delegacia de polícia de Cachoeira do Sul, atesta essa inquietação: "Consta que ERNESTO PERTILLE FILHO, amigo de BRIZOLA, residente na Vila Assunção, possui casa em MONTEVIDÉU, para onde seguido viaja. É diretor da Rádio Princesa do Jacuí Ltda., dessa cidade"12.

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Por fim, vale ainda destacar que o alcance da repressão se estendia para além dos limites circunscritos ao território nacional. Dessa forma, mesmo com todas as dificuldades relativas à imbricada tarefa de atravessar a fronteira, conseguir abrigo em um país vizinho não significava necessariamente que se estaria em segurança. Isso porque as ações do aparato repressivo se estendiam para além do traçado internacional. Conforme assinalou Ananda Simões Fernandes, “os órgãos brasileiros não se restringiam a obter informações somente de atividades ocorridas no Rio Grande do Sul. A amplitude dessa rede sofisticada chegava até o Uruguai.” (2009, p. 101). Cabe ressaltar também que essa rede não apenas se estendia para além das fronteiras brasileiras, como contava com o apoio de setores desses países, mesmo quando esses ainda viviam sob a égide de um regime democrático, como é o caso do Uruguai da década de 1960 e início dos anos 1970. Uma parcela da documentação disponível no AHRS nos permite vislumbrar o monitoramento de exilados na Banda Oriental. Entre as diferentes fontes consultadas, destaca-se uma “Relação do pessoal que frequentava reuniões de asilados no Uruguai”13, na qual constam quase quarenta nomes. O acesso a esse tipo de informação tão precisa nos possibilita inferir uma série de considerações: Na prática, tal monitoramento podia resultar da ação de vigilância de unidades de inteligência brasileiras que agiam com a conivência das autoridades policiais do país vizinho ou, então, tratava-se de informação fornecida pelo próprio Uruguai. De uma ou de outra forma, a fluidez de informação confirma a existência concreta de conexão (PADRÓS, 2005, p. 710).

O mencionado relatório data de maio de 1967, fato bastante elucidativo se levarmos em conta que, nesse período, o Uruguai ainda era um país democrático. Percebe-se, pois, que a ditadura brasileira se valeu de complexos órgãos de informação, civis e militares, para controlar os seus “inimigos internos” no seu território ou fora dele. Tendo em vista, portanto, os citados aspectos, sobressai-se a centralidade do Rio Grande do Sul enquanto um estado-chave no mapa da mobilidade empreendida pela oposição e pela repressão no período analisado.

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Considerações finais Acreditamos que os documentos selecionados possibilitam perceber algumas preocupações manifestas em órgãos do aparato repressivo do Rio Grande do Sul. Entre essas, buscamos destacar as tentativas de controlar o trânsito fronteiriço, seja através do mapeamento das rotas de fuga do país, com o objetivo de localizar a existência de redes fronteiriças de solidariedade e auxílio à passagem clandestina de pessoas, seja evitando o regresso de grupos de oposição já no exílio ou através do cerceamento das possibilidades de contatos estabelecidos através dos mencionados pombos-correio; podemos perceber também a preocupação existente com a atuação de grupos de oposição no espaço fronteiriço; e, ainda, analisamos o monitoramento da atividade de exilados, através da colaboração de setores dos países vizinhos com agentes do regime brasileiro, que agiam para além do espaço circunscrito ao território nacional, entre tantos outros aspectos que evidenciam a importância da região fronteiriça sul-rio-grandense na conjuntura estudada. Para finalizar, é importante destacar, ainda, que a disponibilização desses fundos documentais e o decorrente acesso a essas informações são imprescindíveis para a produção de estudos analíticos, os quais podem contribuir, em alguma medida, para o entendimento desse período e dos diversos questionamentos ainda tão presentes, que, inclusive, podem servir de subsídio para auxiliar na superação e na ruptura com esse passado recente traumático, atuando e concorrendo para a consolidação dos próprios regimes democráticos.

Referências ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. AQUINO, Maria Aparecida de. Jornalistas/Militantes na mira do DEOPS/SP. In: ____; et al. (Org.). No coração das trevas: O DEOPS/SP visto por dentro. V. 1. São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2001. (Dossiês DEOPS/SP). BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 319

BAUER, Caroline; GERTZ, René. Arquivos de regimes repressivos: fontes sensíveis da história recente. In: PINSKY, Carla; LUCA, Tânia de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. BAUER, Caroline. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (19641982). Dissertação (Mestrado em História) - PPGH, UFRGS, Porto Alegre, 2006. BENTANCOR, Gladys Teresa. Las fronteras en un contexto de cambios: la vida cotidiana en ciudades gemelas - Rivera (Uruguay) y Sant’Ana do Livramento (Brasil). Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n. 3, maio de 2008. CATELA, Ludmila da Silva; JELIN, Elizabeth (Comp.). Los archivos de la represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, Siglo Veintiuno de Argentina Editores, 2002. (Colección Memorias de la Represión). FERNANDES, Ananda. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História) - PPGH, UFRGS, Porto Alegre, 2009. LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007. NEVES, Evelisse. Comissão Especial de Indenização a ex-presos políticos do Estado do Rio Grande do Sul: significados e perfil dos atingidos. Dissertação (Mestrado em História Social) – PPGHIS, UFRJ, Rio de Janeiro, 2009. PADRÓS, Enrique. Como el Uruguay no hay. Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura Civil-Militar. Tese (Doutorado em História) - PPGH, UFRGS, Porto Alegre, 2005. ____. (Org.). As ditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: CORAG, Comissão do Acervo da Luta Contra a Ditadura, 2006. PENNA, Rejane (Org.). O tempo e o Rio Grande nas imagens do Arquivo Histórico do RS. Porto Alegre: IEL, 2011. PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty nos anos de chumbo – O Centro de Informações do Exterior (Ciex) e a repressão no Cone Sul (1966-1979). Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 52, n. 2, jul.-dez. 2009. STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à nova República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Notas

1

Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda com bolsa CNPq no Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. Correio eletrônico: [email protected]

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2

Para maiores informações: PENNA, 2011. Ver também: . Acesso em 30 mai. 2013. 3

O Acervo da Luta Contra a Ditadura foi criado, através do Decreto n. 39.680 de agosto de 1999, no marco das rememorações dos vinte anos da Lei de Anistia. Este acabou se configurando enquanto um importante espaço de pesquisas e de debates acerca da nossa história recente. Não obstante, em 2008, com a nova gestão do governo estadual, o Acervo sofreu, de forma arbitrária, um processo de despolitização. Por um lado, teve seu nome alterado para Centro de Memória Documental da Ditadura Militar, descaracterizando a conotação política presente desde sua criação. E, por outro, foi agregado ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, indo de encontro às recomendações e orientações referentes ao tratamento diferenciado dispensando pelos arquivos repressivos, as quais argumentam que essa documentação não pode ser diluída em outros arquivos, sobretudo enquanto for utilizada como comprovação documental para a reparação das vítimas ou como peça acusatória contra os responsáveis pela violência perpetrada. Cf. Fernandes, 2009, p. 27. 4

Meio de Busca Memórias Reveladas do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

5

A saber: Alecrim; Bagé; Crissiumal; Dom Pedrito; Erval; Horizontina; Itaqui; Jaguarão; Pôrto Lucena; Pôrto Xavier; Quaraí; Rio Grande; Santa Vitória do Palmar; Santana do Livramento; São Borja; São Nicolau; Tenente Portela; Três Passos; Tucunduva; Tuparendi e Uruguaiana. Cf. BRASIL. Lei nº 5.449, de 4 de Junho de 1968. Brasília, DF, 1968. Disponível em: .Acesso em: 30 jul. 2013. 6

Sobre a origem do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (Dops/RS) e, principalmente, sobre sua atuação durante a ditadura civil-militar de 1964, ver Bauer, 2006. 7

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. Sops/LV – 1.21.1.1. Lagoa Vermelha, 19/11/1966. 8

A percepção de que o estado gaúcho constitui um espaço diferenciado no contexto analisado é reforçada pelo estudo de Evelisse Neves, no qual a autora analisa e coteja dados referentes ao “perfil dos atingidos” traçados pelo Projeto “Brasil: Nunca Mais”, os quais corroboram com a ideia de que o Rio Grande do Sul tem que ser pensando como um estado atravessado por outras dinâmicas em relação às demais regiões. Um dos aspectos que se sobressai nesse estudo é a influência, o vínculo e a adesão ao PTB em muitas cidades gaúchas. Cf. NEVES, 2009. 9

Em 1967, foi firmado um acordo formal de cooperação entre Magalhães Pinto, Carlos Lacerda – ambos haviam desempenhado um papel de destaque na conspiração que levou ao golpe de Estado – João Goulart e Juscelino Kubitschek, que estabeleceu as bases de sua aliança. Este documento ficou conhecido como Pacto de Montevidéu e constitui o programa da Frente Ampla, a qual, paulatinamente, começou a adquirir características de um partido político de oposição, que possuía amplas bases. Entre as principais reivindicações do programa frente-amplista, estava a redemocratização do país. Contudo, já em abril de 1968, o governo baixou um decreto-lei proibindo a sua existência. Cf. Alves, 1987. 10

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. Sops/LV – 1._53.1.1. Lagoa Vermelha, 12/03/1968. 11

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Rio Grande. Sops/RG – 1.2.488.5.2. Rio Grande, 4/05/1965. 12

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. Sops/CS – 1.2.1286.17.5. Cachoeira do Sul, 13/04/1966. 13

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Erechim. Sops/E – 1.2.92.3.1. Erechim, 15/05/1967.

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Programa do seminário Período: 04, 05 e 06 de junho de 2013 Local: Arquivo Nacional – Praça da República, 173, Centro, Rio de Janeiro, RJ

Dia 04/06 18h - Abertura do evento: Jaime Antunes, diretor-geral do Arquivo Nacional – Auditório Principal. 18h30 - Conferência de Abertura – convidado: Claudio Fonteles, ex-procurador-geral da República e membro da Comissão Nacional da Verdade – Auditório Principal.

Dia 05/06 10h – Mesa redonda: “Arquivos da repressão e arquivos da resistência: experiências internacionais” - Auditório Principal Bruno Groppo (Centre d’Histoire Sociale du XX Siècle/ Université de Paris 1) Luciana Quillet Heymann (Fundação Getúlio Vargas) Fabiola Heredia (Universidad Nacional de Córdoba, Argentina) Nancy Nicholls (Universidad Academia de Humanismo Cristiano, Chile) Mediação: Marco Aurélio Santana (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ) Tarde: 14h-16h - Apresentação de comunicações de pesquisadores graduados, pós-graduandos e pósgraduados Coordenação: Angélica Müller (Universo) - Auditório Principal Ricardo Pimenta (IBCTI/PPGCI) – Mini-auditório, Bloco “C” Vicente Rodrigues – Sala 204, Bloco “E” 16:30h-16:50h – Exibição de filme curta-metragem – Auditório Principal. 17h – Mesa redonda: “Arquivos da ditadura e acesso à informação” – Auditório Principal Jaime Antunes (Arquivo Nacional) Paulo Knauss (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense) Paulo Abrão (Secretaria Nacional de Justiça/ Ministério da Justiça) Mediação: Icléia Thiesen (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) 19h – Lançamento de livros – Auditório Principal.

Dia 06/06 Manhã: 10h – Mesa redonda: “Arquivos dos movimentos sociais e ditadura” – Auditório Principal Aldo Escobar (Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro) Angélica Müller (Universo) Antonio Celso Ferreira (Centro de Documentação e Memória/UNESP) Maria Rosângela Batistoni (Universidade Federal de Juiz de Fora) Mediação: Inez Stampa (Arquivo Nacional e PUC-Rio) ARQUIVOS DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA - Comunicações do I Seminário Internacional Documentar a Ditadura Página 322

Tarde: 14h – 16h - Apresentação de comunicações de pesquisadores graduados, pós-graduandos e pósgraduados. Coordenação: Marcelo Thimotheo da Costa (Universo) – Auditório Principal Inez Stampa (Arquivo Nacional e PUC-Rio) – Sala 204, Bloco E Marco Santana (IFCS/UFRJ) – Mini-auditório, Bloco “C” 17h - Mesa redonda de encerramento: “Informação, documento e arquivo: a questão da verdade” – Auditório Principal Icléia Thiesen (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Vicente Rodrigues (Arquivo Nacional e Universidade Federal do rio de Janeiro) Benito Bisso Schimdt (Associação Nacional de História - ANPUH) Georgete Medleg Rodrigues (Universidade de Brasília) Mediação: Ricardo Medeiros Pimenta (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia)

19h



Encerramento

(Comissão

Organizadora

do

Seminário)



Auditório

Principal

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