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Papers GESEL n.º 01

Algumas observações sobre a definição das garantias físicas nos leilões de energia nova

Gustavo Kaercher Loureiro

Rio de Janeiro 4 de dezembro de 2013 1

Algumas observações sobre a definição das garantias físicas nos leilões de energia nova1

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Gustavo Kaercher Loureiro

INTRODUÇÃO

Encontra-se no site da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, o caso base dos Leilões de Energia A-3/2013 e 2º A-5/2013 utilizado para o cálculo das Garantias Físicas de Energia dos empreendimentos hidrelétricos e termoelétricos com CVU diferente de zero3. A leitura do texto do site deixa claro que foi incluído em tal cálculo o mecanismo de aversão ao risco CVaR – Conditioned Value at Risk4. A questão a ser tratada aqui diz respeito ao fundamento jurídico para a inclusão deste mecanismo de aversão ao risco. Em outras palavras, em base a quais normas a EPE (empresa pública vinculada ao MME e destinada a “prestar serviços na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético”, cfe. art. 2o da Lei 10.847/2004) realizou a alteração do parâmetro referido. Que fique bem claro o alcance e escopo deste breve texto: autor não é engenheiro, economista ou técnico do setor elétrico. Não opina sobre o mérito – se bom ou ruim – da nova forma de cálculo decorrente da introdução deste fator de aversão ao risco. O que o preocupa é saber se tal novidade está juridicamente justificada ou se manifesta, em um ponto absolutamente crucial do regime jurídico da geração de energia, um fenômeno que, por vezes, ocorre no setor elétrico: a relativa importância dada à correta institucionalização dos comandos e à procedimentalização adequada das manifestações da ação pública setorial. O exame é formal, mas não é menos importante do que a análise de conteúdo.

Com este artigo, o GESEL inicia nova linha editorial da sua produção científica, buscando assim contribuir para a análise e o debate de questões relevantes, mas conjunturais. A série Papers GESEL terá, inicialmente, periodicidade quinzenal, pretendendo-se em março passar a ser semanal. 2 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (licenciado), Pesquisador do GESEL/UFRJ, advogado (e-mail [email protected]). 3 http://www.epe.gov.br/leiloes/Paginas/2%C2%BA%20Leil%C3%A3o%20de%20Energia%20A5%202013/CasobasedosLeil%C3%B5esdeEnergiaA-32013e2%C2%BAA-52013C%C3%A1lculodasGarantiasF%C3%ADsicas.aspx?CategoriaID=6863) 4 “Foi utilizada a versão 3.2 do modelo MSUI e a versão 18.0 do modelo NEWAVE, com o mecanismo de aversão a risco CVaR habilitado com os parâmetros alfa = 0,50 e lambda = 0,25 e a restrição de atendimento a vazão mínima incorporada na política operativa penalizada ao valor de 3101,00 R$/MWh.” 1

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É que, por vezes, por meio do pouco respeito à forma, acaba-se por trazer a instabilidade ou confusão regulatórias, inimigas diretas da segurança jurídica. Admitir a não observância do procedimento (modo de fazer as coisas) ou à competência (sujeito legalmente capaz de fazê-las), ainda que em nome da adequada solução de um problema real, ou de um aperfeiçoamento setorial, pode desembocar na criação de uma prática regulatória em que não se sabe quem faz o quê, de onde vem o que deve ser feito nem, mais singelamente, qual norma deveria regular o tema. Nesse ambiente, a por vezes inocente e quase sempre tolerada observação de que “Portaria vale mais do que Lei” adquire um sentido dramático. Perdido o parâmetro, questões de enorme relevância para um setor estratégico como o elétrico podem ser decididas por meio de ofícios. O caso presente obviamente não tipifica esses extremos, mas parece padecer desse mal. Ao que se observa, a alteração não foi justificada explicitamente e essa lacuna, por si só relevante, obriga ao exame, de modo incompleto e superficial, das normas do ordenamento jurídico que supostamente poderiam dar suporte à novidade. E tal exame indica que (i.) as atuais Resoluções do CNPE e, em particular, Resolução CNPE 03/2013, não autorizam quem quer que seja – i.e., mesmo o sujeito supostamente competente - a se valer de seus comandos para alterar os critérios de cálculo de garantia física de novas usinas; (ii.) ainda que a Resolução de 2013 autorizasse, essa alteração deveria ser veiculada por ato administrativo normativo do Ministério das Minas e Energia, eis que a EPE não tem autonomia para alterar, por conta própria, tais critérios (ainda que meros parâmetros). Em síntese, parece haver um problema de fundamento jurídico e competência para a medida adotada. Só isso – sem o mérito – justifica gastar pestana no assunto. E não se acuse o presente estudo de formalismo ou bizantinismo, pois no Estado de Direito os fins não justificam os meios e a estabilidade regulatória também depende de um claro e transparente processo de produção de normas e de decisões públicas. Isso tudo vale ainda mais quando não se está tratando de uma sem importância troca de assinaturas em um documento de mero expediente. Está-se falando de competências trocadas entre entes com accountability técnica, política e institucional (Conselho Nacional de Energia Elétrica, Ministério das Minas e Energia) e ente executor (EPE), em um tema que, por sua importância (e pela quase certa afetação de direitos de terceiros), exige um procedimento específico previsto na legislação setorial. Se boa e adequada a medida – e não há motivo algum para se achar o contrário, considerando a excelência técnica dos quadros da EPE - sua implementação pode se ver obstaculizada ou mesmo impedida por um problema que poderia ser resolvido com pouco gasto de energia, caso se seguissem desde o início as regras que orientam o assunto. II – A GARANTIA FÍSICA Perdoe-se ao autor o uso confuso dos termos “garantia física”, “energia assegurada” e quejandos. Qualquer que seja a expressão, quer-se transmitir com esses termos a seguinte ideia fundamental: um determinado montante de energia e potência vinculado às instalações de cada agente gerador de energia elétrica o qual será considerado o limite

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máximo de energia e potência que este sujeito poderá contratar (vender). Trata-se, é elementar, de um elemento que define e individualiza – quase mais do que a própria infraestrutura - a outorga ou delegação recebida, seja ela concessão de serviço público, concessão de uso de bem público ou autorização (estes dois últimos casos, em regime de produção independente de energia). Sua importância é a mesma, seja qual for o regime jurídico de geração do sujeito. Sem adentrar em delicadas especulações acerca da existência ou não da necessidade de se preservar o equilíbrio econômico-financeiro em alguma modalidade de produção independente de energia, é certo que a definição e, sobretudo, alteração da garantia física devem ser cercados de cuidados de fundo e de forma. Além disto, este elemento tem relevância que ultrapassa os interesses singulares dos agentes produtores, eis que baliza a própria ideia de garantia do suprimento de energia no sistema elétrico nacional. Bem andou, por isso, a Lei 10.848/2004 ao dispor, logo de início, que a comercialização de energia no SIN seria realizada considerando-se “limites de contratação vinculados a instalações de geração ... mediante critérios de garantia de suprimento” (art. 1o, inc. IX); que estes critérios de garantia de suprimento seriam propostos pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, balizada a sua proposta pela conjugação da confiabilidade de fornecimento e modicidade de tarifas e preços (art. 1o, inc. X); e que tais critérios seriam considerados no cálculo das energias asseguradas e outros respaldos físicos (art. 1o, § 7o). Adicionalmente, determinou o art. 1o, § 4o, de modo abstrato (i.e., sem indicar o ente competente), que a operação do SIN deveria considerar “mecanismos de segurança operativa, podendo incluir curvas de aversão ao risco”. No cumprimento de sua missão de detalhar o conteúdo das diretrizes legais, o Decreto 5.163/2004 introduziu o conceito de “lastro” (art. 2o, inc. I), relacionando-o intimamente com a garantia física de energia e potência (art. 2o, § 1o), que definiu ser a grandeza estabelecida pelo MME e constante do contrato de concessão ou ato de autorização. Corresponderia essa garantia física “às quantidades máximas de energia e potência elétricas associadas ao empreendimento ... que poderão ser utilizadas para comprovação de atendimento de carga ou comercialização por meio de contratos.”

Reiterando e especificando comandos legais, dispôs ainda o art. 4o do referido Decreto:

Art. 4o O Conselho Nacional de Política Energética - CNPE deverá propor critérios gerais de garantia de suprimento, com vistas a assegurar o adequado equilíbrio entre confiabilidade de fornecimento e modicidade de tarifas e preços. § 1o O Ministério de Minas e Energia, mediante critérios de garantia de suprimento propostos pelo CNPE, disciplinará a forma de cálculo da garantia física dos empreendimentos de geração, a ser efetuado pela Empresa de Pesquisa Energética - EPE, mediante critérios gerais de garantia de suprimento. § 2o O Ministério de Minas e Energia poderá, assegurado o atendimento ao mercado do SIN, estabelecer condições específicas do lastro para a venda, ou sua dispensa, em caso de fornecimento temporário e interruptível, inclusive para exportação de energia elétrica.

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Resumindo, tem-se o seguinte: 1.) o máximo de energia que poderá ser comercializado por cada agente gerador integrante do SIN (a título de geração própria) é a sua garantia física; 2.) esta garantia física deve estar positivada no respectivo título (concessão ou autorização); 3.) para alcançá-la: a. o CNPE deverá propor (à Presidência da República), os “critérios gerais de garantia de suprimento” (estabelecimento de um parâmetro ou diretriz); b. o MME deverá incorporar estes elementos e disciplinar a “forma de cálculo” da garantia física dos empreendimentos de geração (estabelecimento de uma metodologia); c. a EPE realizará o cálculo (atividade executiva); d. o MME positivará o resultado no título do agente (atividade de autoridade concedente). Faltando um desses elementos, realizado por cada um desses entes (que são muito diferentes entre si, cada qual encarregado de uma parte do todo), o procedimento será juridicamente inválido. E foi o que, aparentemente, houve aqui, com a inclusão do CVaR no cálculo da garantia física das novas usinas: nem há respaldo (fundamento jurídico) em Resoluções do CNPE para tal procedimento, nem há ato novo do Ministério de Minas e Energia em matéria de metodologia do cálculo da garantia física que determine a incorporação da novidade (competência), conforme se passa a ver.

III – RESOLUÇÕES DO CNPE, PORTARIAS DO MME Já no mesmo ano da edição da Lei 10.848/2004, o CNPE atuou os comandos legais e regulamentares que lhe diziam respeito. Editou a Resolução CNPE 01/2004, cujo objeto era estabelecer o “critério geral de garantia de suprimento”. Nos termos do art. 1o, tal critério seria “baseado no risco explícito da insuficiência da oferta de energia nesse sistema, o qual deverá ser considerado: I - nos estudos do planejamento da expansão da oferta e da operação do sistema elétrico interligado nacional; e II - no cálculo das garantias físicas de energia e potência de um empreendimento de geração de energia elétrica”.

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Adicionalmente, resgatando antiga regra setorial5, determinou o CNPE que o MME avaliasse, “a cada cinco anos, ou na ocorrência de fatos relevantes, os parâmetros básicos da garantia de suprimento, propondo ao CNPE se necessário, a revisão do percentual estabelecido para o risco de insuficiência de oferta fixado nesta Resolução.” (art. 3o). A Resolução CNPE 01/2004, de modo analítico, deixava claro seu objeto distinguindo perfeitamente três objetos de regulação: o planejamento de expansão da oferta6, da operação do sistema e, ainda, a determinação das garantias físicas das usinas. Ato contínuo, e em observância ao comando do art. 4o do Decreto 5.163/2004, o MME publicou a Portaria MME 303/2004, que tomava por base explicitamente o critério lançado na Resolução CNPE 01/2004. Esta Portaria, dentre outros dispositivos que não cabe aqui analisar7, aprovava “a metodologia, as diretrizes e o processo para implantação da garantia física das usinas do Sistema Interligado Nacional – SIN (...).” (art. 1o, § 1o) A metodologia foi implementada e, expressamente, não se cogitou de nela considerar elementos de aversão ao risco8.

Em 2007, uma nova Resolução do CNPE (Resolução 08/2007), relacionada indiretamente com o tema aqui em análise, foi editada. Seu art. 1o delimitava o seu objeto e os agentes envolvidos na execução de seus comandos:

Um relato da regulação do tema da garantia física começar ainda antes das reformas de 2004, eis que já o chamado Novo Modelo cuidava do assunto, no mínimo para as usinas hidrelétricas, no art. 21 do Decreto 2.655/1998 (regulamento da Lei 9.648/1998). Eis seu teor: “Art. 21. A cada usina hidrelétrica corresponderá um montante de energia assegurada, mediante mecanismo de compensação da energia efetivamente gerada. (...) § 2º Considera-se energia assegurada de cada usina hidrelétrica participante do MRE a fração a ela alocada da energia assegurada do sistema, na forma do disposto no caput deste artigo. § 3º A energia assegurada relativa a cada usina participante do MRE, de que trata o parágrafo anterior, constituirá o limite de contratação para os geradores hidrelétricos do sistema, nos termos deste regulamento. § 4º O valor da energia assegurada alocado a cada usina hidrelétrica será revisto a cada cinco anos, ou na ocorrência de fatos relevantes. § 5º As revisões de que trata o parágrafo anterior não poderão implicar redução superior a cinco por cento do valor estabelecido na última revisão, limitadas as reduções, em seu todo, a dez por cento do valor de base, constante do respectivo contrato de concessão, durante a vigência deste. § 6º A alocação da energia assegurada, de que trata o caput, e as revisões previstas nos §§ 4º e 5º, propostas, em conjunto pelo GCOI e GCPS e seus sucessores, serão homologadas pela ANEEL.” 6 Cfe. também o quarto considerando: “a definição das garantias físicas de energia e potência de um empreendimento de geração de energia elétrica depende do estabelecimento dos critérios gerais de suprimento; os estudos de planejamento de expansão da oferta e da operação do sistema elétrico devem observar tais critérios com vistas ao equilíbrio adequado entre a segurança do abastecimento e a modicidade das tarifas e dos preços da energia; resolve: (...).” 7 Seria conveniente um exame destes dispositivos, relativamente às usinas então existentes. Ali determinava-se uma revisão geral das garantias físicas em 2015, bem assim uma implantação gradual dos métodos nela introduzidos, a partir de 2007. 8 “Ficam aprovadas a metodologia, as diretrizes e o processo para implantação da garantia física das usinas do Sistema Interligado Nacional - SIN, conforme Nota Técnica, Anexo I, produzida por este Ministério e pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS.” Neste Anexo I não há qualquer menção sobre a consideração ou não de mecanismos de aversão ao risco (à época, representados pela CAR – Curva de Aversão ao Risco, utilizada para estudos no âmbito do planejamento e programação da operação do sistema elétrico). 5

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Art. 1o Caberá à Agência Nacional de Energia Elétrica ANEEL disciplinar a utilização, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS, de Curva de Aversão ao Risco - CAR interna aos programas computacionais, para análise das condições de atendimento energético e para formação de preço, baseada na adoção, por submercado, de curva bianual de segurança de armazenamento dos reservatórios equivalentes das usinas hidrelétricas, revisada anualmente.

Para o que aqui interessa, algumas breves observações. Primeira: o elemento de aversão ao risco (previsto genericamente no art. 1o, § 4o da Lei 10.848/2004) poderia ser admitido, pela ANEEL9, como elemento interno aos programas computacionais utilizados pelo ONS, para fins de análise (i.) das condições de atendimento energético e (ii.) da formação de preços. Quanto ao primeiro ponto, em se tratando de condições de atendimento energético verificadas pelo ONS, significava o comando do art. 1o que o operador deveria calcular curvas bianuais de segurança operativa, revistas anualmente em função das condições do sistema, e apresentar o processo de obtenção delas à ANEEL a qual, após processo de Audiência Pública, regularia seu uso no planejamento da operação energética (Programa Mensal de Operação, no ONS) e na formação de preços de curto prazo (cálculo do Preço de Liquidação das Diferenças – PLD, na CCEE). Quanto ao segundo ponto, parecia-se querer estar atuando concretamente quanto disposto no art. 57 do Decreto 5.163/2004, que indicava, dentre os componentes formadores do Preço de Liquidação de Diferenças, um mecanismo de segurança operativa (possivelmente, curvas de aversão ao risco).10 Em síntese, não havia espaço, na Resolução CNPE 08/2007, para especulações acerca de seu uso em tema de definição métodos de cálculo de garantias físicas de usinas, muito menos acerca da introdução, aí, de elementos de aversão ao risco. Aliás, os destinatários do comando da Resolução do CNPE eram outros que não o MME (ANEEL e ONS). Nem a Resolução CNPE 08/2007 revoga ou mesmo altera a Resolução CNPE 01/2004. Tratam de coisas distintas. Tanto é assim que em 28 de julho de 2008, uma nova Resolução do CNPE, 09/2008, referindo expressamente a Resolução 01/2004, estabeleceu novo critério de cálculo das garantias físicas de energia e potência, a valer apenas para os novos empreendimentos de geração11. 9

O comando do § 4o do art. 1o da Lei 10.848/2004 finalmente ganhava um “responsável regulatório”, i.e., a ANEEL. 10 “Art. 57. A contabilização e a liquidação mensal no mercado de curto prazo serão realizadas com base no PLD. § 1o O PLD, a ser publicado pela CCEE, será calculado antecipadamente, com periodicidade máxima semanal e terá como base o custo marginal de operação, limitado por preços mínimo e máximo, e deverá observar o seguinte: I - a otimização do uso dos recursos eletro-energéticos para o atendimento aos requisitos da carga, considerando as condições técnicas e econômicas para o despacho das usinas; II - as necessidades de energia elétrica dos agentes; III - os mecanismos de segurança operativa, podendo incluir curvas de aversão ao risco de déficit de energia; IV - o custo do déficit de energia elétrica; (...).” 11 O art. 2o mantinha o critério anterior para os empreendimentos existentes.

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Nos termos do art. 1o desta norma, adotar-se-ia, para determinação das garantias físicas e do planejamento da expansão a “igualdade entre o Custo Marginal de Operação – CMO e o Custo Marginal de Expansão – CME, assegurando a otimização da expansão do sistema elétrico, respeitado o limite para o risco de insuficiência da oferta de energia elétrica estabelecido no art. 2o da Resolução CNPE no 1, de 17 de novembro de 2004.” Ato contínuo (no mesmo dia), o Ministério de Minas e Energia, seguindo o procedimento prescrito no Decreto 5.163/2004, editou a Portaria 258 que aprovava a metodologia correspondente ao novo elemento introduzido pelo CNPE12. E, mais uma vez, em seu Anexo I, indicava-se expressamente a não utilização das curvas de aversão a risco nas simulações para cálculo das garantias físicas (Tabela 1). Adicionalmente, tal Anexo declarava que, em caso de necessidade de alteração dos parâmetros de simulação vigentes “o MME indicará os modelos e a definição dos parâmetros de simulação a serem utilizados nos estudos.” Em 2010, nova Portaria do MME tratou de atuar um comando quase esquecido, o art. 21 do Decreto 2.655/1998. Cuidava a Portaria MME 861/2010 de identificar “os fatos relevantes e a metodologia para Revisão Extraordinária dos Montantes de Garantia Física de Energia de Usina Hidrelétrica despachada centralizadamente no Sistema Interligado Nacional – SIN” (art. 1o). Ali também não se refere à incorporação de mecanismos de aversão ao risco no trato do tema. Muito antes pelo contrário, o art. 8o da citada Portaria referia como base, exatamente, a Portaria MME 258/2008 que, como visto, determinava a não consideração da curva de aversão ao risco. Até aqui, respeito ao procedimento, à competência dos diferentes entes públicos e nada de mecanismos de aversão ao risco a serem tomados como elementos de determinação das garantias físicas. Por fim, em 06 de março deste ano, o CNPE editou a Resolução n. 03 que determinou que a “Comissão Permanente para Análise de Metodologias e Programas Computacionais do Setor Elétrico – CPAMP desenvolva e implemente metodologia para internalização de mecanismos de aversão a risco nos programas computacionais para estudos energéticos e formação de preço, realizando os ajustes necessários nas disposições referentes ao atendimento energético, à formação de preço e aos Encargos de Serviços do Sistema.”

A referência era expressa: “Seguindo os critérios de garantia de suprimento estabelecidos pelo CNPE, o processo é considerado convergido quando, no mínimo, um subsistema de cada sistema regional atende ao critério de igualdade entre o CMO e o CME, admitida uma tolerância pré-determinada, respeitado o limite de risco de déficit em todos os subsistemas. Os CMO de todos os subsistemas devem ser iguais ou inferiores ao CME.” 12

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Prima facie, está-se, com a Resolução CNPE 03/2010, no ambiente da Resolução CNPE 08/2007 e não naquele da Resolução CNPE 01/2004: a Resolução de 2013 não refere, como seu fundamento, qualquer dispositivo, legal ou regulamentar, relativo à garantia física; sequer a menciona ou fala de planos de expansão; seu ambiente é o dos “estudos energéticos” e da “formação de preços”, tal como no caso da Resolução CNPE 08/2007, que, diga-se, a Resolução CNPE 03/2013 refere e altera expressamente. O seu conteúdo – no que aqui interessa - é o de transformar aquilo que, na norma de 2007 era uma possibilidade submetida ao regulador (“caberá́ à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL disciplinar a utilização, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS, de Curva de Aversão ao Risco - CAR interna aos programas computacionais para análise das condições de atendimento energético e para formação de preço”), em uma determinação, agora à CPAMP (“desenvolva e implemente metodologia para internalização de mecanismos de aversão a risco nos programas computacionais para estudos energéticos e formação de preço”). Sequer se poderia tirar, esticando e puxando, de “estudos energéticos”, uma referência, implícita, à garantia física. Isto porque o § 3º do art 1º, indica que a abrangência da dita metodologia se restringe ao ONS e CCEE: “caberá à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL disciplinar a aplicação das disposições, a que se refere o caput, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS e pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE”. Nem mesmo da referência genérica para que a CPAMP realize “os ajustes necessários nas disposições referentes ao atendimento energético” seria possível extrair um remoto comando para que fosse, por aí, alterada a forma de cálculo das garantias físicas (alteração de parâmetro). Em primeiro lugar porque as regras e princípios do direito público brasileiro que determinam a fixação e atuação de competências públicas – e não só as boas práticas regulatórias - não admitem imputações implícitas e/ou meras sugestões de tarefas (nesse caso, a um ente, como a CPAMP, que sequer poderia receber formal e diretamente, delegações de competências). Fundar nesse tipo de cláusula a justificação para a mudança de um elemento no cálculo da garantia física é passar quase um “cheque em branco”, estimulando que todos aqueles que desejam adquirir mais relevância no cenário setorial passem a buscar disposições genéricas que lhes dariam competências de tipo fiscalizatório, regulatório, punitivo etc. Em segundo lugar, ambos os termos – “estudos energéticos” e “atendimento energético” – têm uma valência setorial estabelecida, que não aponta na direção da garantia física. Tais expressões encontram-se claramente situados no contexto do planejamento e programação da operação do sistema elétrico nacional.

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Veja-se, por exemplo, quanto se contém no Procedimento de Rede do ONS n. 23 Submódulo 23.4. - Diretrizes e critérios para estudos energéticos13. Ali encontra-se conceituado o que vem a ser um estudo energético, ainda que de maneira indireta: tratam eles das análises das condições ao atendimento energético do sistema ou ainda, utilizando os termos do próprio procedimento, análise das condições sistêmicas do atendimento à carga de energia e análise das condições de atendimento sistêmico à carga de demanda. Desses estudos energéticos resultam as “Diretrizes e Critérios Relativos à Programação Mensal da Operação Energética”, atividade que envolve uma série de outros estudos necessários para a operação do sistema elétrico brasileiro14. Se o cálculo da garantia física pudesse ser considerado como um “estudo energético” sua disciplina estaria contida no referido procedimento de rede. Como se constata, não parece haver espaço, na Resolução CNPE 03/2014, para entender-se que tenha tratado de garantia física de usinas. Entendimento diverso instauraria a concepção de que “qualquer coisa está relacionada com qualquer coisa”, o que é inadmissível jurídica e regulatoriamente. E, como já se viu, mesmo que tratasse ela desse tema, o ente competente para determinar uma mudança no cálculo da garantia física seria o MME. Por tudo isso, parece, de fato, haver na alteração promovida pela EPE, um problema de procedimento e de competência. Boa ou má a providência, algo que não se discute aqui.

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http://www.ons.org.br/download/procedimentos/modulos/modulo_23/Subm%C3%B3dulo%2023.4_R ev_1.0.pdf 14 Apesar de o Procedimento de Rede do ONS - Submódulo 20.1 Glossário de Termos Técnicos não trazer uma definição de “estudos energéticos”, o item 296 Planejamento da operação pode ser consultado para contextualizar tais estudos (grifo nosso): “Processo cujo objeto é a análise das condições futuras de atendimento ao mercado consumidor, com base no conhecimento específico requerido e na natureza das variáveis analisadas. Para tal processo, elaboram-se estudos especiais, analisa-se a proteção e o controle do SIN, bem como o desenvolvimento das atividades de hidrologia operacional. O planejamento da operação compreende a análise energética, elétrica e hidrológica da operação futura em diferentes horizontes – plurianual, anual, mensal, semanal e diário.

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