CMYK
Mundo
Editora: Ana Paula Macedo //
[email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155
18 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 1º de abril de 2012
MALVINAS / Três décadas após o início do conflito pelo arquipélago, a Argentina acusa o Reino Unido de enviar um submarino ao Atlântico Sul. Cristina Kirchner busca apoio regional para reconquistar a soberania das ilhas
A guerra não acabou Daniel Garcia/AFP - 13/4/82
Martin Bernetti/AFP
Soldados argentinos a caminho de capturar uma base britânica, em 13 de abril de 1982
Turistas caminham por cemitério de militares mortos em combate nas Ilhas Malvinas
» CAROLINA VICENTIN Argentina lembra, amanhã, os 30 anos do último conflito armado no qual o país esteve envolvido. Em 2 de abril de 1982, os primeiros soldados chegaram às Malvinas, com a ingrata missão de retomar o controle do arquipélago, nas mãos dos britânicos desde o século 19. Derrotados em 74 dias, os argentinos passaram a carregar uma cicatriz, que voltou a sangrar nos últimos meses. Em um imenso esforço diplomático, a presidente Cristina Kirchner tem aumentado a retórica para a retomada das discussões sobre a soberania das ilhas — o arquipélago esconde preciosas reservas de petróleo e de gás natural. O Reino Unido também recomeçou a batalha e fez questão de demonstrar que ainda é uma potência militar. A última cartada do jogo veio dos argentinos, que acusaram os britânicos de terem enviado um submarino nuclear à região. O vice-primeiro-ministro, Nick Clegg, rebateu as acusações, classificando-as de“sem fundamentos”.“Como meu colega da Argentina sabe, nós ratificamos o Protocolo da Zona Desnuclearizada”, afirmou Clegg, durante a 2ª Cúpula de Segurança Nuclear, em Seul, esta semana. “Verdade ou não, a mera possibilidade do envio de um submarino à região é um sinal claro do que os ingleses querem dizer: a Argentina não é páreo para o poderio militar do Reino Unido”, afirma Mark Jones, um estudioso de questões latino-americanas na Universidade de Rice, no Texas. No contra-ataque, Cristina tem procurado regionalizar o conflito em torno das ilhas. “As Malvinas deixaram de ser uma causa dos argentinos para se tornarem uma causa latino-americana e global”, assinalou ela, em um dos eventos que precederam o aniversário da guerra. A mesma opinião é ardentemente defendida por diversos especialistas, argentinos e de outras nações do continente. “O conflito dramatizou a vulnerabilidade dos países latino-americanos, não somente em matéria econômica como também em questões de segurança. Perdemos a guerra, mas não podemos perder seus ensinamentos”, aponta Claudio Briceño, um professor venezuelano que estuda as relações entre seu país e a Argentina na Universidade de La Plata. Os acadêmicos do país vizinho organizam um movimento que pretende consolidar o apoio da população ao pedido do governo pela volta das negociações bilaterais junto à Organização das Nações Unidas (ONU). No site pueblosporlasmalvinas.com, eles reúnem artigos que explicam, na visão argentina, a importância da defesa da soberania do arquipélago. “Buscamos que, a cada dia, mais cidadãos do mundo estejam conscientes da importância futura do vetor Malvinas/Antártida para o nosso desenvolvimento e prosperidade futuros”, explica Juan Recce, diretor do Centro Argentino de Estudos Internacionais e um dos idealizadores da iniciativa. A Argentina reclama a soberania do território, como parte do que foi herdado com a independência dos espanhóis. Já os britânicos se recusam a negociar e usam o princípio da autodeterminação dos povos para justificar a permanência por lá. Segundo eles, os 3 mil habitantes do arquipélago querem continuar sendo britânicos.
A
Sem um acordo sobre o diálogo, a presidente Cristina Kirchner segue fazendo o que pode para
Ao mesmo tempo em que a população do país vizinho insiste no lema “Las Malvinas son argentinas”, surgem acadêmicos com uma visão bastante crítica do assunto. Há dois meses, 17 estudiosos firmaram um manifesto no qual defendiam que as feridas da nação deveriam ser tratadas internamente, não como uma bandeira política do governo. Na última sexta-feira, eles publicaram um novo documento, agora assinado por 40 pessoas, entre elas, intelectuais como Beatriz Sarlo, Juan José Sebreli e Luis Alberto Romero. De forma sucinta, eles pedem para que seus compatriotas levem em consideração as motivações da Guerra das Malvinas — encabeçada por generais da ditadura que a usaram como uma forma de restabelecer o orgulho argentino. “A guerra deve ser condenada sem restrições. Como argentinos, desaprovamos que o 2 de abril tenha sido declarado como ‘Dia dos Veteranos e dos Mortos na Guerra das Malvinas’, como se isso pudesse esconder o fato de que, depois do feriado, é a causa
das Malvinas que está sendo reivindicada, como se fosse algo justo, mas em mãos bastardas”, alfinetam. É verdade que os acadêmicos não falam sobre a postura dos britânicos, o que mais incomoda o governo argentino atualmente. Mesmo assim, defendem que o nacionalismo da presidente Cristina Kirchner não vai levar a resultado algum. “De todos os modos, estou convencido de que, se eliminarmos a questão da soberania e nos propuséssemos a negociar sobre as questões reais, finalmente chegaríamos a um acordo”, disse ao Correio Luiz Alberto Romero. Historiador e membro do conselho diretor da Universidade de San Andres, Romero não acredita que a guerra diplomática entre Argentina e Reino Unido vá se prolongar por muito tempo, a ponto de causar problemas para seu país. “Na verdade, o governo está em uma batalha com a opinião pública local, justificando sua maneira de entender a política em termos de amigos e inimigos. Nesse sentido, nós já temos um problema”, reflete. (CV)
Três perguntas para LUIS ALBERTO ROMERO, HISTORIADOR E UM DOS AUTORES DOS MANIFESTOS QUE CRITICAM A POSIÇÃO DA ARGENTINA Arquivo pessoal
Como foi a repercussão dos textos? A maioria das pessoas está contra, mas temos a impressão de que há um setor importante (cerca de 15% da população) que viu no nosso documento a expressão de uma insatisfação até então à margem do discurso dominante. No começo, houve reações verbais violentas — o diário Crônica, por exemplo, nos dedicou uma capa catastrófica intitulada “Piratas. E, acima de tudo, argentinos”, com uma foto de Beatriz Sarlo e outros. Em seguida, surgiram opiniões do tipo “não concordo, mas é uma posição corajosa” ou “original”. Chegamos a ser convidados a expressar a nossa opinião em jornais, rádios e na tevê. Conseguimos cair no escopo do que é tolerável. que outros líderes mundiais deem apoio à causa. E ela já conseguiu importantes vitórias, como o suporte dos países do Mercosul e da União das Nações SulAmericanas (Unasul). Os países concordaram em restringir a navegação de embarcações com bandeiras Falkland (o nome inglês das ilhas), como forma de atrapalhar a vida dos britânicos. No entanto, a estratégia é limitada. “A Argentina está vencendo a batalha global de relações
públicas, conseguindo um apoio que só tende a crescer. No entanto, os aliados não vão tomar mais do que medidas simbólicas nessa briga. Ninguém quer prejudicar suas relações bilaterais com o Reino Unido e, em última instância, com a União Europeia”, aponta o professor Mark Jones. Além disso, a Inglaterra é membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que dá a seus representantes o poder de veto diante de qualquer
CMYK
Limitações
Cicatrizes abertas
resolução que prejudique o país. De mãos atadas na via diplomática, restaria, em tese, um novo conflito armado — algo proibido pela nova Constituição elaborada pelo governo de Cristina Kirchner. E, mesmo que quisessem, os argentinos não entrariam em guerra contra os ingleses. Desde o fim da ditadura militar, não houve investimentos do Exército argentino, que não teria chances em uma eventual batalha contra a moderna Força Aérea Real inglesa.
A sociedade argentina percebe o conflito pelas ilhas de forma homogênea ou existem classes sociais mais ou menos preocupadas com isso? Não me parece uma questão de classe. É mais profundo, pois afeta o imaginário, a cultura da nossa sociedade. É o resultado de um amplo trabalho de educação, para o qual contribuíram atores políticos e ideológicos importantes. Menciono três: as Forças Armadas, a Igreja e o peronismo.
Tudo isso deu origem a um sentido comum arraigado, latente, mas que pode ser convocado, tal qual fizeram os militares em 1982. De seu modo, é o que o governo está fazendo. Em resumo, não se trata de algo setorial, mas que afeta o país. É um trauma profundo. Os argentinos esqueceram os motivos que levaram os militares a declarar a guerra? Há um conflito: os argentinos querem recuperar as Malvinas, os militares fracassaram, os militares são maus. Não é fácil articular os três componentes. Eu temo que, se a Argentina tivesse capacidade militar, poderia reviver o espírito belicista, e nos esqueceríamos dos direitos humanos e outras coisas importantes. (CV)