UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Doutorado em Educação
“Digo Escuela del Sur, porque, en realidad, nuestro Norte ES el Sur” (Joaquin Torres Garrcia – 1874 - 1949, artista plástico, escritor e professor uruguaio)
CLAUDIO ANDRÉS BARRÍA MANCILLA
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Doutorado em Educação
CLAUDIO ANDRÉS BARRÍA MANCILLA
Pela poética de uma Pedagogia do Sul Diálogos e reflexões em torno de uma filosofia da educação descolonial desde a Cultura Popular da Nossa América
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção de Grau de Doutor. Área de confluência: Estudos do cotidiano da Educação Popular.
Orientadora Professora Dra. REGINA LEITE GARCIA
Niterói, Junho 2014
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B275 Barría Mancilla, Claudio Andrés. Pela poética de uma Pedagogia do Sul: diálogos e reflexões em torno de uma filosofia da educação descolonial desde a Cultura Popular da Nossa América / Claudio Andrés Barría Mancilla. – 2014. 233 f. Orientadora: Regina Leite Garcia. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2014. Bibliografia: f. 225-233. 1. Filosofia da Educação. 2. Colonialidade. 3. Descolonialidade. 4. Educação popular. 5. Cultura popular. 6. Epistemologia. 7. América do Sul. I. Garcia, Regina Leite. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 370.1
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A mis hijos Camilo, Lucca e Naomi que de encuentros con el mundo y con los otros van tejiendo sus trayectorias, reinventándose de vida y amores A todos e todas que, a pesar de tudo, tornaram-se capazes de aprender a amar, tornando-se parte do contínuo fluxo humano de fazer e criar e r-existir com os outros e com o mundo. Aos que sonham, aos que brincam, aos que se atrevem, aos que sentem, aos que se dão, Às crianças.
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RESUMO Esta tese consiste em um exercício de reflexão no cotidiano-mundo - um esforço de pesquisa transdisciplinar articulado a partir do campo da cultura popular da nossa América - sobre as possibilidades e a necessidade de se (re)pensar a educação, dentro e fora da Escola, como parte de um projeto de libertação dos oprimidos (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). Desde uma perspectiva crítica descolonial e assumindo um contexto de interculturalidade, as reflexões são urdidas e vinculadas diretamente a trajetórias, entendidas estas como fluxos contínuos e descontínuos de práticas sociais, políticas, estético/culturais e educativas em contextos de r-existência, na diferença colonial (MIGNOLO, 2003). É, pelas releituras propostas desde o pensamento descolonial, uma tentativa de articular aspectos que, ao menos discursiva e analiticamente, estiveram cindidos na tradição teórica ocidental. De um modo geral, estas releituras partem da inclusão de categorias espaço-temporais aplicadas a uma construção rigorosamente inter e transdisciplinar, de modo a contemplar o caráter tópico de qualquer pensamento e enunciação. Algumas das releituras referidas são: sobre o conceito de aura da arte (BENJAMIN, 1985) a partir da diferença colonial, articulada ao entendimento da cultura da nossa América como exterioridade ontológica (DUSSEL, 1980) do sistemamundo moderno/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000); do conceito de trajetória como lócus em movimento da pesquisa e como base de uma conceituação não essencialista dos sujeitos ou atores históricos, sua memória, sua identidade, sua ação no mundo em relação contínua e suas narrativas - para além da codificação da língua colonial, na paisagem, no gosto, nas práticas, no corpo, na produção estética e simbólica, etc.; e do poder, a partir das experiências insurgentes e instituintes em curso na nossa América, das que se desprende a noção de poder obedencial, proposta por Dussel (2007). O desejo último é o de indagar na direção de uma pedagogia descolonial, construída a partir do nosso lugar no mundo, uma práxis pedagógica que participe da ruptura das correntes subjetivas (memória, identidade, imaginário, enunciação, anunciação e denúncia) e objetivas (acumulação, exploração do trabalho, extrativismo, violência, militarização) da dominação, do modo como esta se dá nas sociedades da Nossa América na moderno/colonialidade deste século XXI. Em tempo, a tese propõe uma releitura possível do campo da Educação Popular desde a perspectiva descolonial. Isto é, assumindo, na sua narrativa e na sua prática, a diferença colonial como locus de enunciação. Desta última se desprende o que chamo de Pedagogia do Sul. Palavras Chave: filosofia da educação, colonialidade/descolonialidade, educação popular, cultura popular, epistemologias do sul.
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ABSTRACT This thesis is a reflection exercise in everyday life-world - one articulated transdisciplinary research effort from the field of popular culture of our America - about the possibilities and the need for education (re) thinking inside and outside the school, as part of a project of liberation of the oppressed (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). From a critical decolonial perspective and assuming a context of interculturalism the reflections are woven directly linked to trajectories understood as continuous and discontinuous flows of social practices, political, aesthetic/cultural and educational contexts of r-existence in colonial difference (MIGNOLO 2003). It is proposed by readings from the de-colonial thinking - an attempt to combine aspects that at least discursive and analytically were cleaved in western theoretical tradition. In general, these readings leave the inclusion of space-teporais categories applied to a strictly inter-and transdisciplinary construction, in order to include the character topic any thought and utterance. Some of these readings are about the concept of aura of art (Benjamin, 1985) from the colonial difference, articulated understanding of the culture of our America as ontological exteriority (DUSSEL, 1980) of the modern world-system/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO 2000); the concept of moving trajectory as the locus of research and as a basis for a non-essentialist conception of the subject or historical actors, his memory, his identity, his action in the world in their ongoing relationship and narratives - in addition to the coding of the colonial language, landscape, in taste, in practice, in body, aesthetic and symbolic, production etc..; and power, from the insurgents and instituting ongoing experiments in our America, that emanates from the notion obedencial power, proposed by Dussel (2007). The last wish is to investigate the direction of decolonial pedagogy, built from our place in the world, a pedagogical practice that participates in the rupture of subjective currents (memory, identity, imaginary, enunciation, annunciation and denunciation) and objective (accumulation , labor exploitation, extraction, violence, militarization) domination, the way this happens in societies of Our America in modern/coloniality this XXI century. In time, the thesis proposes a possible reinterpretation of the field of popular education since the de-colonial perspective. That is, assuming, in his narrative and in its practice, the colonial difference as a locus of enunciation. The latter comes off what I call Pedagogy of the South. Keywords: philosophy of education, coloniality / decoloniality, popular education, popular culture, Epistemologies of the South.
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RESUMÉ Cette thèse consiste en un exercice de réflexion dans un quotidien-monde - un effort d'investigation transdisciplinaire articulé á partir du champ de la culture populaire de notre Amérique- sur les possibilités et la nécessité de (re)penser l'éducation, á l'intérieure et en dehors de l'Ecole, comme faisant partie d'un projet de libération des opprimés (DUSSEL, 1977, 1977b; FANNON, 2006; FREIRE, 2005). Depuis une perspective critique décoloniale et assumant un contexte d' interculturalité, les réflexions sont tissées et liées directement aux trajectoires, celles -ci entendues comme flux continus et discontinus de pratiques sociales, politiques, esthétiques/culturelles et éducatives en contexte de r-existence, dans la différence colonial (MINGOLO, 2003). C'est, par les relectures proposées depuis la pensée décoloniale, une tentative d'articuler certains aspects que, pour le moins de manière discursive et analytique, furent scindées dans la tradition théorique occidentale. D'un mode général, ces relectures partent de l'inclusion des catégories espace-temporelles appliquées á une construction rigoureusement transdisciplinaire, de manière á contempler le caractère topique de chaque pensée et énonciation. Certaines des relectures concernées sont: sur le concept de aura de l'art (BENJAMIN, 1985) á partir de la différence coloniale, articulée á la compréhension de la culture de notre Amérique comme extériorité ontologique (DUSSEL, 1980) du système-monde moderne/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000); du concept de trajectoire comme locus en mouvement de recherche et comme base d'une conceptualisation non essentialiste des sujets ou acteurs historiques, leur mémoire, leur identité, leur action dans le monde en relation continue et leur récits - au delà de la codification de la langue coloniale, dans le paysage, le goût, les pratiques, le corps, dans la production esthétique et symbolique, etc.; et du pouvoir á partir des expériences insurgées et instituées en cours dans notre Amérique, de celles oú l'on désapprend la notion de pouvoir obéissant, proposé par Dussel (2007). L'ultime désir est celui d'investiguer dans la direction d'une pédagogie décoloniale, construite á partir de notre lieux du monde, une praxis pédagogique qui participe de la rupture des chaines subjectives (mémoire, identité, imaginaire, énonciation, annonciation, et dénonciation) et objectives (accumulation, exploitation du travail, extraction,violence, militarisation) de la domination, comme elle á lieu dans les sociétés de Notre Amérique dans la moderne/colonisation de ce siècle XXI. La thèse propose une relecture possible du champ de L'Education populaire depuis une perspective décoloniale. Celá est, assumant, dans son récit et dans sa pratique, la différence coloniale comme locus d'énoncé. De ce dernier se détache de ce que j'appelle Pédagogie du Sud. Mots Clefs: philosofie de l’éducation, colonialité/decolonialité, éducation populaire, culture populaire, epistemologie du sud.
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RESUMEN Esta tesis consiste en un ejercicio de reflexión en el cotidiano-mundo – un esfuerzo indagatorio transdisciplinar articulado a partir del campo de la cultura popular de nuestra América - sobre las posibilidades y necesidad de (re)pensarse la educación dentro y fuera de la Escuela como parte de un proyecto de liberación de los oprimidos (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). Desde una perspectiva crítica descolonial y asumiendo un contexto de interculturalidad, las reflexiones se urden y vinculan directamente a trayectorias, entendidas estas como flujos continuos y discontinuos de prácticas sociales, políticas, estético/culturales y educativas en contextos de r-existencia, en la diferencia colonial (MIGNOLO, 2003). Es, por las relecturas propuestas desde el pensamiento descolonial, un intento de articular aspectos que, al menos discursiva e analíticamente, estuvieron escindidos en la tradición teórica occidental. En general, estas relecturas parten de la inclusión de categorías espacio-temporales aplicadas a una construcción rigorosamente inter y transdisciplinar, de modo a contemplar el carácter tópico de cualquier pensamiento y enunciación. Algunas de las relecturas referidas son: sobre el concepto de aura del arte (BENJAMIN, 1985) a partir de la diferencia colonial, articulada al entendimiento de la cultura de nuestra América como exterioridad ontológica (DUSSEL, 1980) del sistema-mundo moderno/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000); del concepto de trayectoria como lócus en movimiento de la investigación y como base de una conceptuación no esencialista de los sujetos o actores históricos, su memoria, su identidad, su acción en el mundo en relación continua y sus narrativas – más allá de la codificación de la lengua colonial, en el paisaje, en el gusto, en las prácticas, en el cuerpo, en la producción estética y simbólica, etc.; y del poder, a partir de las experiencias insurgentes e instituyentes en curso en nuestra América (vinculadas de un modo u otro a nociones del orden filosófico, político, social de los pueblos originarios), de las que se desprende la noción de poder obedencial, propuesta por Dussel (2007). El deseo último es el de indagar hacia una pedagogía descolonial, construida a partir de nuestro lugar en el mundo, una praxis pedagógica que participe de la ruptura de las corrientes subjetivas (memoria, identidad, imaginario, enunciación, anunciación y denuncia) y objetivas (acumulación, explotación del trabajo, extractivismo, violencia, militarización) de la dominación, como esta se da en las sociedades da Nuestra América en la moderno/colonialidad de este siglo XXI. Concomitante, la tesis propone una relectura posible del campo de la Educación Popular desde la perspectiva descolonial. O sea, asumiendo, en su narrativa y práctica la diferencia colonial como locus de enunciación. De esta última relectura se desprende lo que he llamado Pedagogía del Sur. Palabras Clave: filosofía de la educación, colonialidad/descolonialidad, educación popular, cultura popular, epistemologías del sur.
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AGRADECIMENTOS Gracias a la vida, que me ha dado tanto Me ha dado el sonido y el abecedario Con él las palabras que pienso y declaro Madre, amigo, hermano y luz alumbrando Violeta Parra Yo digo que las estrellas Le dan gracias a la noche Porque en cima de otro coche No pueden lucir tan bellas Silvio Rodriguez
Somos movimento, trajetórias em relação, uma sucessão de encontros que nos definem e nos refazem de sentidos. É a partir desses encontros, com o mundo e com o outro, que projetamos tempos e espaços, definindo afazeres, compromissos e afetos. Todo fazer é ato coletivo, mesmo em solidão, somos parte desse contínuo fluxo, histórico, social e biocultural. Cada agradecimento é, então, um canto à própria vida, e a vida canta e se reconhece plural, diversa, contínua. Para além das formalidades que a institucionalidade impõe, agradecer é assumir o canto desse reconhecimento da própria existência-em-relação e, assim, da própria incompletude. É perceber, como disse o poeta Manoel de Barros – em cujo nome agradeço à poesia – que “o melhor de mim sou eles”. Este trabalho é, em boa medida, resultante de trajetórias de vida - sempre plurais, pois sequências de encontros - que definiram as narrativas das pessoas da minha pessoa, por tanto meu “canto geral” aos encontros que, em seu momento, me alimentaram de existires e de sonhares, à sua vertente infinita. Um Canto agradecido à ‘la mama Luisa’, María Luisa Mancilla Délano, gênese primeira da minha diversidade biocultural e vínculo indelével da minha ontogênese social. À sua intuição certeira e sua coragem admirável, ao seu amor indizível. E nessa mesma interface de trajetórias que se abrem e se reencontram renovadas de compromissos políticos e afetivos, aos meus amados hermanos mayores, com os quais aprendi cedo a me reconhecer na diversidade, a respeitar e admirar trajetórias diversas e, por vezes, aparentemente opostas, com amor, Cecília, María Angélica, Sergio y Reinaldo, gracias por ello. Em seu nome, um canto de fraternura a todos os primos, Juan, Manuel, Pablo e Gabriel Razeto, irmãos também na aventura de irmos descobrindo a vida, e no nome de Luis Razeto Migliaro e da “tía Pila” - em cuja casa me senti sempre acolhido, como na minha, um agradecimento a todos os “tios luchos”, cuja história tanto nos legou. Um Canto agradecido e alegre como de “Zorsal” aos meus filhos Camilo, Lucca e Naomi, com os quais vou aprendendo a cada dia novos sentidos para as palavras cuidado, respeito, autonomia, liberdade, carinho. Sem eles eu não seria nem sombra nem miragem. A Rosana Ilabaca Parry, que desde seu refúgio nos confins mais frios do sul mundo, foi companheira na mais difícil tarefa de reinventar a memória, o amor e o significado da palavra companheira. Pelo apoio constante na distância. x
À minha companheira Dani, Daniela Nunes Araujo, um canto inventado e puro, pelo encontro, pela coragem, pela alegria de viver, pela paciência e pela aposta diária, pela vida cotidiana e pela aventura, pelo desejo e, acima de tudo, pelo mergulho em picada no devir, no sem contorno definido, onde o único sisal é aquele que vamos tecendo, com amor, pelo Nada. Um agradecimento, como o canto que a terra devolve à chuva, à minha família carioca, construída em laços cotidianos de irmandade escolhida, de confiança e cumplicidades, de carinhos e afetos, de companheirismo profundo. Roberto Marques, pelo caminhar e o pensar juntos ou por perto. Elizabeth Serra pelo carinho incondicional, pela certeza da trajetória juntos, pelo exemplo de amor, coragem e luta. À Carla Sartor, à amizade e a busca de coerência, à Paula, pela persistência e pelo papel decisivo na minha entrada no programa de doutorado e nos debates que se seguiram. À Marcia Gatto, ao Helder e à Vitória; a Rômulo, Helene e à pequena Lívia, vizinhos do coração. À Monique pelo afeto, pelo cuidado e o exemplo de articulação corajosa entre saber, arte e resistência no campo acadêmico. À Fernanda pelo carinho e a delicadeza das palavras, e em nome deles a todas e todos que me ensinam os sentidos da palavra amizade; a eles, pelo encontro. À Juli, entre tantos outros cantos que trás seu devir, um agradecimento enorme pela leitura dos rascunhos, pelo pensamento instigante e os debates generosos, pela revisão de boa parte deste trabalho, pelo olhar amoroso e corajoso que seu estar no mundo lança à vida, e pelos pães e queijo partilhados. Um canto de lume, do chão, pela poesia e o fazer artesanal, a cada um e cada uma dos tearteiros e tearteiras, seres engajados e apaixonados como poucos, que vêm tecendo, fiando juntos um cotidiano trabalho engajado no afeto, no compromisso com a arte e com o Outro, com a educação, com a cultura popular brasileira e os saberes dos seus povos, e com a construção de práticas socioambientais ética e esteticamente sustentáveis. Com eles um agradecido abraço, com fraternura, à Denise, pelo aprendizado e a reinvenção da palavra e do fazer, do cuidado minuciosos e rigoroso da estética da terra, da fabulação, do canto e da brincadeira, pela confiança e a parceria no mergulho de tornar possível nossa teia TEAR. Às crianças da nossa terra, pela potência do seu imaginário, pelo despudor de brincar e abraçar, pela paixão da sua cultura, memória viva do nosso ser comunitário, elo esquecido com a nossa ontogênese descolonial. Aos professores-em-formação que partilharam comigo a experiência de reinventar a sala de aula nos cinco anos que lecionei na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, pelos diálogos, pela escuta, por se atreverem à curiosidade epistêmica, por semearem com suas trajetórias as, por vezes, frias paredes da academia. À professora Regina Leite Garcia, orientadora nesta pesquisa dialógica e reflexiva, pela instigação inicial de pensar os estudos desde o subalterno e do cotidiano, abrindo a possibilidade de um giro descolonial na pesquisa. Ao poeta e educador Carlos Brandão, pelo encontro e a palavra, pela humildade e a poesia, e em seu nome a todos os educadores e educadoras populares que, junto aos movimentos xi
sociais da nossa América, na contracorrente hegemônica e abraçados amorosamente à sorte dos condenados da terra, produziram um pensamento original e fértil como poucos no recém passado século, a eles um assovio enamorado de aprendiz de passarinho. A todos e todas que mantêm vivo e potente o sonho de uma universidade pública, gratuita e de qualidade, cuja força incentiva e fomenta a produção de conhecimentos que tanto precisa o Brasil e a nossa América.
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SUMÁRIO Um Prefácio - Carta ao sujeito da modernidade,....................................................................................15 ACHANDO OS (DES)CAMINHOS (E os meus lugares de ver)..........................................................16 [chegança e Walking bass - algumas pistas para andar] [sankofa - o lócus das minhas trajetórias como exterioridade e o encontro nelas com o pensamento social da nossa América] [Alguns elementos nodais da discussão proposta] Trajetórias, diálogos e reflexões epistêmicas: por uma metodologia da pesquisa, da narrativa e da prática educativa descolonizadoras. [a ilusão biográfica e o conceito de trajetória] [trajetórias-maaya como o devir das pessoas da pessoa - um antídoto desde a exterioridade ao perigo de uma única história]
Da CRISE (e outras ruas) .......................................................................................................................46 [Os novos fantasmas da velha Europa e a emergência de novos/velhos saberes] [Dos sentidos da revolta e da subversão que educa]
Da RAZÃO (e do lugar) .........................................................................................................................59
A colonialidade do saber e o saber dos nadies [O mundo pelo avesso ou, da ‘Verdade’ e do saber dos que sabem] [A erosão do saber dos que sabem e a emergência do saber dos outros] [Recuperação e emergência do saber dos nadies] Colonialidade do poder como violência simbólica: racismo e mérito no ensino “...todo mundo como se fosse branco” [e a história da gente, quando?] [O real aparente e a aparência natural da dominação: Violência simbólica e perspectiva descolonial] [Cotas, racismos e meritocracia]
DA CULTURA (e o lugar)...................................................................................................................100 Estética desde a marginalização e a barbárie, exterioridade da cultura popular e a heteronímia da Cultura popular da Nossa América. [a posição do campo da arte e da cultura e a ilusão da razão] [arte legítima, o poder simbólico e a expressão do outros] ["música é uma maneira de escutar" assim como às vezes, ciência é uma maneira de ensurdecer]
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[Contemporaneidade, tradição e Aura da cultura popular, para além da reprodutibilidade técnica no fazer das culturas subalternizadas] [sobre o(s) conceito(s) de Cultura popular, um debate e outras aproximações] [exterioridade da cultura popular e exterioridade da nossa América - a estética do invisível] [História, revoltas, morte e permanências na narrativa das memórias dos vencidos] [experiência, relação e imaginário nas culturas subalternas desde a periferia-mundo] [memória e rearranjos político-identitários no deslocamento epistêmico da descolonização do pensamento: Abya Yala e Nossa América] [A heteronímia da Nossa América como base da compreensão da vocação pluriversal do seu projeto político] Cultura, memória e identidade rebelde na Nossa América. Por um ato educativo contínuo que saiba ler paisagem e corpos e não apenas os códigos da língua oficial/colonial. [Cultura, memória e identidade na encruzilhada do púbico do espaço] [a paisagem que conta histórias e a Memória que reencanta a cidade] [a cidade imanente e a geopolítica da cultura e da razão] [de trajetórias subalternas e da reinvenção do espaço público] [trajetórias, da rua e outros platôs] [recapitulando]
DA EDUCAÇÃO (e outros lugares) ....................................................................................................191 [Forma, conteúdo e um olhar sobre o olhar e o narrar] [De novo as trajetórias – para pensar o público da escola pública] [Crise da Escola monocultural moderno/colonial e o pensamento da Nossa America, por uma pedagogia do Sul] [a pedagogia simplesmente e a pedagogia do Sul como uma antipedagogia do Ser desde a diferença colonial] [a heteronímia da Pedagogia do Sul, base de um projeto político-afetivo pluriversal para uma democracia radical] [uma noção de projeto e o sujeito descolonial, por um currículo insurgente da ação educativa] [a pedagogia do Sul como práxis do sujeito descolonial e o projeto de uma sociedade pluriversal] [uma leitura esquemática possível como síntese geral ou argumento implícito, isto é, a minha leitura e o meu projeto político neste diálogo]
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .....................................................................................................233
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Um Prefácio - Carta ao sujeito da modernidade O Ser, o Saber e o Poder no sistema-mundo moderno/colonial têm a sua História contada pelas tuas leis e pelas tuas instituições, e os livros que aprendemos a venerar relatam os heróis que se fizeram tais pelo teu olhar. Nunca nos viste e, hoje, incrédulo e atordoado pela cegueira do teu poder, sentes no ruir do teu orbe, o clamor do nosso potente canto improvável... Tu que professas verdades, que falas a língua dos deuses, que vens nos ensinando, por todos os meios, com o lápis e o fuzil, com a fé e o punhal, que somos apenas eternos aprendizes da tua sabedoria, apenas reprodutores da tua grandeza, eternos subalternos desprovidos do espírito civilizatório que alimenta a essência do Ser, na monocorde plêiade do Deus branco que não dança; Tu, portador das luzes que nos iluminaram e com as quais devemos iluminar os outros, ali onde disseste pureza, nós dissemos mistura, onde ensinaste a louvar a perfeição aprendemos a amar o erro e o acaso, enquanto defendias o ideal aprendíamos a nos fazer humanos no chão, onde disseste rigor, demos a ele outro tom a partir do inesperado, onde colocaste normas, as humanizamos dispersando o tempo, onde impuseste Apolo escolhemos a dança de Baco com o Curupira e todos os orixás, onde nos ensinavas a respeitar os direitos da Pessoa Humana, aprendíamos, sob o chicote e o olhar inquisidor de teus vassalos, que a dignidade pouco tem a ver com essa tal pessoa humana que desconhecemos, mas com o pão nas nossas mãos, a terra sob os nossos pés, o trabalho coletivo dos nossos, que volta ao leito do seu rio trazendo os frutos da própria pescaria; ali onde nos ensinaste e impuseste a tua monocultura religiosa, científica, filosófica, moral, ética, econômica, social, corporal e étnica, crescíamos teimosa e sub-repticiamente múltiplos, diversos, pluriversais, como filhas e filhos do Sol. Tu, que negaste a nossa língua e a definiste como “Barbara”; Denunciamos aqui a tua ciência como o ardil da ordem espúria dos pretensamente puros. Assim, nas nossas indagações e diálogos, haveremos de preferir caminhar no obscuro a continuar achando apenas aquilo que se pode ver onde as luzes estão; nós, do sul, los de abajo, les damné de la terre, os condenados do sistema, nós, los nadie, impuros, diversos, confusos e apaixonados, somos a sombra que a modernidade projetou, somos a vida que ela, sem vê-la, enxerga sempre 'menos', subalterna, somos o silêncio milenar que, transfigurado em grito, anuncia um novo-ancestral.
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ACHANDO OS (DES)CAMINHOS (E os meus lugares de ver)
(...) o modo como critérios hoje dominantes desvalorizam palavra e pensamento em nome do lucro fácil e imediato. Falo de razões comerciais que se fecham a outras culturas, outras línguas, outras lógicas. A palavra de hoje é cada vez mais aquela que se despiu da dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo diferente. O que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência, mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade está sendo negada nos dias de hoj e por um sistema que escolhe apenas por razões de lucro e facilidade de sucesso. (Mia Couto)
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[chegança e Walking bass 1- algumas pistas para andar]
O saber é inimigo da Reflexão, se sei não reflito. Daí a potência de refletir, porque a reflexão é um ato de saltar (Humberto Maturana)
Todo conhecimento há de conter em seu interior alguma pitada de contrassenso, ao igual que na Antiguidade os desenhos dos tapizes ou os frisos se desviavam um pouco em algum sítio a respeito de seu curso regular. […] o decisivo não é o avançar de um conhecimento a outro distinto, senão saltar sobre cada um. Esse salto é a marca do autêntico, o que distingue o conhecimento de una mercadoria feita em série, seguindo algum padrão preexistente. (Walter Benjamin)
O discurso (entenda-se discurso no sentido de curso que atravessa) que lhes proponho não vai partir da filosofia para interpretar a cotidianidade, mas vai partir da cotidianidade em direção à filosofia(...) A cotidianidade vigente significa o mundo da vida cotidiana; esse mundo concreto, agora e aqui (...). Esse é o ponto de partida do pensar filosófico e se o pensar filosófico partir de qualquer outro ponto, já partiria do ar e começaria perdendo o pé, de algo abstrato. A questão é justamente o saber partir da cotidianidade. (Enrique Dussel)
Esta tese consiste, antes de tudo, em um exercício de reflexão no cotidiano-mundo2 articulando o campo3 da cultura4 popular da nossa América - sobre as possibilidades e a necessidade de se pensar a educação, dentro e fora da Escola, como parte de um projeto de libertação dos oprimidos (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005).
A
reflexão proposta, desde uma perspectiva crítica descolonial e assumindo um contexto de interculturalidade, é urdida e vinculada diretamente a trajetórias, entendidas como práticas 1
O Walking bass (“baixo caminhando”, na tradução literal) é uma linha de baixo contínua, improvisada pelo contrabaixo nos grupos do jazz que, seguindo a estrutura harmônica de uma canção é a base sobre a qual os demais instrumentos desenvolvem seus improvisos. Uso aqui o termo como metáfora livre. 2 Com o conceito de cotidiano-mundo quero chamar a atenção para a relação intrínseca entre o tempo espaço local e o global, no sentido apontado por Milton Santos, “cada lugar é ao seu modo o mundo”, e no sentido de totalidade, de horizonte existencial, dado pela experiência no mundo, apontado por Dussel e trazido na epígrafe. Voltarei sobre o tema no decurso das reflexões apresentadas. 3 O conceito de Campo é utilizado no sentido apontado por Bourdieu (2000, 2001), na sua releitura aproximada por Dussel (2007). 4 Como veremos de modo mais extenso, no capitulo dedicado à cultura, parto do entendimento da sua simultaneidade e mútua articulação com os demais campos da vida humana (econômico, institucional, político, social, etc.), com o qual Dussel busca superar a questão da última instância.
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sociais, políticas, estético/culturais e educativas em contextos de r-existência5.
É, pelas
releituras propostas, uma tentativa de articular aspectos que, ao menos discursiva e analiticamente, estiveram cindidos na tradição teórica ocidental. De um modo geral, estas releituras partem da inclusão de categorias espaciais, ou melhor, espaço-teporais aplicadas a uma construção rigorosamente transdisciplinar6, de modo a permitir, nesta perspectiva, a inclusão do caráter tópico de qualquer pensamento e enunciação. Algumas das releituras referidas são: sobre o conceito de aura da arte (BENJAMIN, 1985) a partir da diferença colonial (MIGNOLO, 2003), articulada ao entendimento da cultura da nossa América como exterioridade ontológica do sistema-mundo7 (DUSSEL, 1980); do conceito de trajetória como lócus em movimento da pesquisa e como base de uma conceituação não essencialista dos sujeitos ou atores históricos, sua memória, sua identidade, sua ação no mundo em relação contínua e suas narrativas - para além da codificação da língua colonial, na paisagem, no gosto, nas práticas, no corpo, na produção estética e simbólica, etc.; e sobre do poder, a partir das experiências insurgentes e instituintes em curso na nossa América, das que se desprende a noção de poder obedencial, proposta por Dussel (2007).
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O conceito de r-existência refere-se à capacidade dos sujeitos (coletivos ou individuais em articulação a um processo coletivo) submetidos a condições de dominação material e simbólica de reinventarem seu cotidiano, não apenas resistindo à opressão, nem se limitando à sua reprodução. Ver Achinte (2007), Porto-Gonçalves (2008). 6 Sem demérito da ampla literatura existente sobre o fenômeno do multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, que atravessa os estudos da filosofia da ciência e ocupa lugar central nas tecnociências, para os efeitos do presente trabalho utilizarei como referência a compreensão proposta por Sotolongo e Delgado (2006), que nos alertam para a necessidade de entendê-los como esforços investigativos que, longe de se contradizer, se complementam. Dita complementaridade provem do fato das suas fronteiras serem difusas e flexíveis, embora existentes e delimitáveis enquanto tais. Para eles multidisciplina constitui um esforço de pesquisa convergente de varias disciplinas diferentes em torno de um mesmo problema ou situação a ser elucidado. A Bioquímica e a Biofísica, entre outras, são bons exemplos da multidisciplina. Já a interdisciplina, mais ambiciosa do que a anterior, é compreendida como o “esforço de pesquisa, também convergente, entre varias disciplinas - e, pelo mesmo, nesse sentido pressupõe a multidisciplinaridade – mas que persegue o objetivo de obter "quotas de saber" a respeito de um objeto de estudo novo, diferente dos objetos de estudo que pudessem estar previamente delimitados disciplinaria o inclusive multidisciplinarmente. A Engenharia genética e a Inteligência artificial, entre outras, surgem como exemplos da interdisciplina”. Por último, a trasndisciplinaridade é reconhecida como “o esforço de pesquisa que busca obter "quotas de saber" análogas sobre diferentes objetos de estudo disciplinares, multidisciplinares ou interdisciplinares - inclusive aparentemente muito distantes e divergentes entre si – articulando elas de modo a irem conformando um corpus de conhecimentos que transcende quaisquer disciplinas, multidisciplinas e interdisciplinas. O enfoque da complexidade, a Bioética global, o Holismo ambientalista, entre outros, aparecem como exemplos da transdisciplina”. Sobre esta questão ver, específicamente “La complejidad y el diálogo transdisciplinario de saberes”, em: SOTOLONGO, P. L., DELGADO, C. J. (2006) Cap. IV, págs. 65-77. 7 A categoria exterioridade, originalmente proposta por Emmanuel Levinas e a partir dele utilizada por Dussel, constitui o corpo central da Filosofia da Libertação latino-americana, na concepção deste, e da tese que aqui defendo, sendo por mim utilizada no seu sentido ontológico/epistêmico. Mais adiante desenvolverei mais largamente esta questão. Ver subtítulo [exterioridade da cultura popular e exterioridade da nossa América - a estética do invisível] pág. 127.
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O desejo último é o de indagar, articulando trajetórias e reflexões, na direção de uma pedagogia descolonial, construída a partir do nosso lugar no mundo, uma práxis pedagógica que participe da ruptura das correntes subjetivas (memória, identidade, imaginário, enunciação, anunciação e denúncia) e objetivas (acumulação, exploração do trabalho, extrativismo, violência, militarização) da dominação, do modo como esta se dá nas sociedades da Nossa América na moderno/colonialidade deste século XXI. Em tempo, a tese propõe uma releitura possível do campo da Educação Popular desde a perspectiva descolonial. Isto é, assumindo, na sua narrativa e na sua prática, a diferença colonial como loci de enunciação. Desta última se desprende o que chamo de Pedagogia do Sul. Este movimento só pode ser um movimento total, que busca a cada momento não separar a própria ação de pensar o mundo da sua pretensão de mudá-lo. Pretende ser, posto que entendido como parte de um projeto descolonial mais amplo e abrangente, a articulação de um pensamento, necessária e radicalmente, autocrítico. É nesse sentido que surge o fundamental caráter de exercício que adquire esta indagação, que é, ao mesmo tempo, uma tese, uma pesquisa, uma reflexão e uma aposta, um salto no desconhecido, uma tentativa de superar as próprias contradições no ato de conhecer e, no mesmo movimento, um ato comunicativo. Como tal, se propõe a estabelecer hiperlinks, enlaces que são ao mesmo tempo fonte e ampliação do texto para a leitura final: a do leitor. Muito embora assuma explicitamente um ponto de vista engajado com a libertação dos oprimidos, no sentido que se desprende da Filosofia da Libertação, e seja herdeiro do pensamento social da Nossa América, propõe-se um texto aberto, em cada parte e no todo, porque se afasta da ideia de síntese conclusiva como modo de aporte à produção do conhecimento. Parto, assim, do entendimento de que ao conjunto de sentidos definidos como leituras hegemônicas legitimadas8 no sistema-mundo moderno/colonial - incluindo aqui determinadas leituras contra-hegemônicas do sistema - se somam diversas redes de sentido e significação que operam principalmente nas camadas locais e regionais, mas que constituem, igualmente, todo o tecido do global.
A relação destas com a cultura hegemônica 9 é complexa e
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Os discursos legitimados em um determinado grupo social não são, nem por isso, menos arbitrários, como bem apontara Bourdieu ao longo da sua obra sociológica, notadamente em A reprodução (2000) e O poder Simbólico (1996). 9 Nesse sentido é interessantíssimo o trabalho de Antonio Gramsci sobre Cultura Hegemônica e Contra Cultura, bem como seus escritos sobre Cultura Popular, heteronomia e autonomia do pensamento subalterno e a questão do conformismo ativo e passivo (ver Cadernos do Cárcere 25 e 27).
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contraditória, ora nutrindo, ora minando suas bases10. Alimentado por essas redes de sentido e organização do saber e do fazer, este trabalho é, também, uma tentativa de ruptura da dicotomia entre o pensamento pragmático e o utópico. Aponta para fora do sistema de sentidos e relações materiais de poder e de saber justamente porque está inserido nele, como todas e todos, de modo tenso e crítico. Esta tese busca pensar no sentido da sua superação, mas não busca um método ou modo conclusivo de fazê-lo. Esta indagação surge de maneira explicitamente híbrida, interdisciplinar, e situada em um encontro de reflexões cuja genealogia provém e se alimenta, principalmente, de ao menos três fontes de produção de conhecimentos, quais sejam, o pensamento crítico ligado ao marxismo; o pensamento descolonial e, dentro dele no caso específico da educação, a perspectiva da interculturalidade crítica; e, por último, os chamados saberes subalternos11. Trata-se de vertentes intelectuais e/ou políticas intimamente entrelaçadas que vêm confluindo em teorias e práticas no campo da educação e da filosofia, dos estudos culturais, das ciências sociais e da política, mas também da economia e da ecologia, e cujo lócus articulador se encontra no próprio movimento de luta dos grupos na subalternidade pela sua libertação no sul do mundo, e especificamente na Nossa América12. Uma dessas vertentes no campo teórico encontra-se na contramão do pensamento hegemônico, alicerçada no chamado pensamento crítico, fortemente definido pelas
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Dizer que a chamada primavera árabe, tanto colocou em xeque interesses geopolíticos do grande capital e das potências imperiais do Ocidente, como alimentou seu discurso de liberdade, abrindo possibilidades objetivas para a ampliação dos seus mercados, é uma leitura plausível. Do mesmo modo, para esse exemplo e o de centenas de outras “explosões sociais” que têm acontecido nos últimos anos mundo afora, poderia se dizer que os valores de liberdade, mobilidade e comunicabilidade, tão alardeados pelo ocidente, têm sofrido releituras por meio das redes sociais e a web 2.0 contribuindo para inesperadas e massivas mobilizações. 11 A categoria de Subalternidade é utilizada por mim, neste trabalho, com base na tradição teórica do chamado Grupo de Estudos Subalternos (Guha, Chakravarty, Amin, Spivak, et ali.) surgido na década de 1980 no sul asiático a partir da produção de Ranahit Guha, que retoma o conceito de Subalterno do filósofo Antônio Gramsci para se referir aos grupos sociais discriminados por questões de raça, etnia, sexo ou classe social. Secundado dez anos mais tarde pelo grupo de Estudos subalternos latino-americanos, consubstanciam ambos os chamados estudos subalternos, e estão inseridos no movimento intelectual denominado Estudos pós-coloniais. Embora reconhecendo algumas importantes contribuições deste movimento, a perspectiva assumida nesta pesquisa se distancia, e mesmo se contrapões da assinalada, para assumir a crítica descolonial, que implica, como veremos adiante, não apenas a descolonização do pensamento científico moderno clássico (eurocêntrico e colonial), como também dos próprios estudos subalternos, cuja priorização do cânone ocidental (notadamente Foucault, Deleuze e o próprio Gramsci) para efetuar sua crítica da historiografia colonial, acaba por reproduzir a colonialidade do saber contida nele. Ver GROSFOGUEL, 2006, pág. 17 a 20. 12 Utilizo ao longo da presente tese “Nossa América” como um sintagma que faz referência ao imaginário social, político e cultural da chamada América Latina e do Caribe, como o definira José Marti, que o cunhara para delimitar uma diferença civilizatória com aquela que ele denominou de “América europeia”, a do norte.
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contribuições de Karl Marx, de tradição eurocêntrica, mas matizado e relido pelas experiências e produções decorrentes das lutas sociais no sul do mundo. A segunda vertente é constituída, como assinalado, pelo pensamento descolonial, de um modo amplo, cuja genealogia está intimamente ligada à Teoria Social Latino-americana, da África e da Ásia, em diálogo crítico com o marxismo e com a teoria pós-colonial, da qual se diferencia, como veremos posteriormente com maior detalhamento. O que, para efeitos deste trabalho, venho chamando de Pensamento Descolonial articula uma ampla gama interdisciplinar de contribuições que vão da sociologia, os estudos literários, os estudos sociais aplicados à educação, os chamados estudos culturais, à filosofia, a epistemologia e a estética. Na mesma linha, e assumindo o caráter intercultural da nossa sociedade, um conceito que também orienta estas reflexões é o da interculturalidade crítica (CANDAU 2009, WALSH 2006). O conceito de interculturalidade surge na América Latina no campo da educação, vinculado originalmente à educação escolar indígena. Já o de interculturalidade crítica surge em oposição àquilo que denuncia como uma ‘interculturalidade funcional’ - aquela que se ocupa da instrução dos indígenas para sua inclusão na sociedade eurocentrada - ao incluir na sua leitura da diferença entre as culturas as assimetrias econômico-sociais e as relações de poder em contextos de dominação, contrapondo-se assim também, ao conceito de multiculturalismo. É a partir das teses do Projeto Descolonial que temos acesso, de um modo mais franco, a um diálogo possível e frutífero com os saberes subalternizados. Em tempo, por uma opção política de coerência com a tentativa de pensar o mundo a partir da nossa América, proponhome a trabalhar, prioritariamente, com autores da América latina. Nesse sentido, e atentos ao chamado feito em 1996 pela Comissão Gulbenkian, de abrir as Ciências Sociais a outras Epistemologias (WALLERSTEIN, 1996), são fundamentais as contribuições da filosofia latino-americana, notadamente o trabalho de Enrique Dussel, mas também as oriundas da filosofia dos povos originários, como a Nahuatl, a Mapuche, a dos Quéchuas e Aimarás, entre tantos outros, bem como dos clássicos do pensamento social da Nossa América (José Martí, Simon Bolivar, Franscisco Bilbao, José Carlos Mariátegui), de modo intrinsecamente articulado às práxis de movimentos sociais.
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Da filosofia da libertação, em particular, extraí a categoria de exterioridade, que nos permite entender o lugar do outro da modernidade eurocêntrica. Também dela veio a concepção de pensar o cotidiano como modo de pensar a totalidade mundo. Proponho-me, afinal, a pensar as questões da educação e da transformação social, ou melhor, dos processos de ensino/aprendizagem em nosso mundo em permanente transformação, a partir do que se tem chamado “a reação crítica dos oprimidos” (GONZALES, et ali. 2011), invisibilizada pela própria matriz do pensamento social clássico ou moderno/colonial. A terceira fonte, de mais difícil apropriação, surge do cotidiano das classes populares e grupos sociais subalternizados, isto é, da exterioridade do sistema-mundo moderno, do Outro da ontologia do centro (DUSSEL, 1977b), cuja expressão histórica ganha destaque nos mais diversos movimentos sociais de luta pela libertação dos oprimidos na Nossa América, desde os de reivindicação de direitos civis, passando pelos movimentos da arte popular, até os movimentos insurgentes e libertários. Fonte historicamente subalternizada e negada como possibilidade de produção de conhecimento legítimo e pertinente pelas diversas tradições acadêmicas é também profundamente transversalizada pela sua relação com o pensamento crítico de tradição marxista, comumente tido como a única lente apropriada para interpretá-lo. Todavia, ancorado na práxis dos, mal chamados, novos movimentos sociais13, na subalternidade-mundo14, defendo o entendimento de haver neles muito mais do que apenas 13
Como apontam e sustentam historicamente Gunder Frank e Fuentes (1989) na primeira das suas “Dez teses acerca dos movimentos sociais”, “os novos movimentos sociais não são novos, ainda que tenham algumas características novas, e os movimentos sociais clássicos são relativamente novos e provavelmente temporários, (...)Os múltiplos movimentos sociais do Ocidente, do Sul e do Leste que hoje em dia são denominados "novos" constituem, com raras exceções, novas formas de movimentos sociais que existiram através dos tempos. Ironicamente, os movimentos "clássicos" da classe trabalhadora e sindicais surgiram principalmente no século passado e, com o passar do tempo, parecem ser mais um fenômeno transitório relacionado com o desenvolvimento do capitalismo industrial. Por outro lado, os movimentos camponeses, de comunidades locais, étnicos/nacionalistas, religiosos e até de mulheres/feministas existiram durante séculos e até milênios em muitos lugares do mundo.” 14 Utilizo a noção de subalternidade-mundo no intuito político de chamar a atenção para o fato do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial operar como produtor e reprodutor de subalternidades, como condição do seu próprio funcionamento. Por analógica, à economia-mundo (Braudel) e sua vocação universal, há uma subaternidade-mundo (de clara vocação pluriversal). O conceito alude a um campo formado por uma diversidade de grupos sociais submetidos a diversas formas de subalternização e dominação - objetiva e/ou simbólica decorrentes da organização do sistema-mundo moderno/colonial. Assim, o conceito não se refere a um grupo ou classe social definida, enquanto categoria de análise, identificável apenas a partir da sua relação com a organização dos modos de produção ou acesso diferenciado ao consumo ou aos modos de distribuição de renda. Trata-se de uma metáfora espacial que se articula conceitualmente às categorias de subalterno, proposta por Gramsci, exterioridade ontológica, em Dussel, à abordagem do Sistema-mundo Moderno/Colonial de Wallertein e Quijano, e em uma particular leitura, à luz da diferença colonial, das noções de experiência e Classe, de Thompson (Estes conceitos serão oportunamente tratados ao longo do presente trabalho). Nesse sentido, pode ser entendido como o alter-campo da modernidade eurocentrada, definido pelas dimensões concretas da exterioridade perante a Totalidade dominadora do sistema-mundo moderno: o lugar do outro, como definido por
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resistência ou reprodução, mas de que a sua contribuição última para a construção de uma práxis libertadora (necessariamente descolonial) precisa ser lida a partir de um pensamento produzido nesse mesmo movimento sócio histórico de lutas objetivas contra diversas formas de subalternização e opressão. No campo conceitual parto da tese de que o saber científico moderno, bem como a História universal e a filosofia escolástica, são particulares universalizados do sujeito eurocêntrico da modernidade, que projeta sua colonialidade sobre o seu “outro” subalternizado, como efeito da potência enunciadora da institucionalidade político-econômico-militar que dá sentido ao sistema-mundo moderno (SPIVAK, 2010; DUSSEL, 1980; QUIJANO 2000, MIGNOLO 2003, SANTOS, MENEZES, 2010); Todavia, a subalternidade no sistema-mundo moderno/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000) não é nunca apenas uma, nem homogênea15. Esta se constitui em uma multiplicidade de sujeitos, coletivos, grupos e movimentos sociais não objetiváveis a partir da metodologia que se desprende de tais discursos, pois a sua síntese em constante transformação se configura como uma intersubjetividade. Assim, configura-se um campo societário, múltiplo e fronteiriço, que não se esgota no seu ser híbrido - como assinalado por algumas correntes dos estudos Culturais e pelos Estudos pós-coloniais (BHABHA, SPIVAK et alli).
Nesse campo, como
assinalávamos, não há apenas resistência e reprodução, mas r-existências, isto é, uma fecunda gama de diversas formas de produzir conhecimento e modos de viver, que reinventam o estar no mundo dos grupos e classes em e a partir dessa subalternidade. Sob a convicção político-epistêmica de serem, esses saberes, de fundamental importância para uma mudança na direção de uma sociedade mais justa e digna 16, a pesquisa dialoga com Dussel. Desta maneira, a subalternidade-mundo apresenta-se como uma aproximação das relações de dominação como esta se dá nos níveis geo-econômico (periferia e semiperiferia com relação ao centro), socioeconômico (trabalhadores/as sub e desempregados, assalariados, moradores de periferias e favelas, moradores de rua, sem terra, etc.), étnico (povos colonizados, comunidades quilombolas, indígenas, etc.), culturais (artistas e mestres populares, circenses, pontos de cultura viva comunitária, artistas de rua, etc.), sexuais (subalternizados pela heteronormatividade machista e falocêntrica, mulheres, grupos homoafetivos, etc.) etário (jovens, crianças no mundo adultocêntrico), econômico/político (povo, proletariado, precariado) e sócio-cognitivo (analfabetos ou analfabetizados, cognariado, etc.), entre tantos outros. 15 Logo impossível de ser inteligida com base em uma única categoria analítica, como por exemplo, “classe trabalhadora”, o que no nosso entendimento não nega, de modo algum, a compreensão da sociedade capitalista como uma sociedade de classes, nem a importância do trabalho assalariado como parte central para o estabelecimento das relações de produção da vida e da exploração social dentro dela, como apontara Marx. 16 Muito além do uso puramente retórico ou abstrato da noção de dignidade, faço uso desse conceito aqui no sentido explícito de dignidad anunciado por movimentos sociais e insurgentes da nossa América, notadamente o dos povos originários em sua articulação com movimentos insurgentes, como os Zapatistas do sul do México ou de movimentos sociais com peculiares propostas de reorganização e mudança social a partir de saberes ancestrais, como os cocaleiros da Bolívia, o movimento indígena no Equador ou o Conselho de todas as terras e
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diversas experiências nos campos da cultura popular, das artes, da educação, da mobilização social, e se alimenta delas, de modo a estabelecer diálogos entre os saberes ali produzidos e o pensamento acadêmico clássico, escolástico ou moderno/colonial - diálogos transversais e necessariamente multi e transdisciplinares, que tencionam deslocar o lugar do discurso dominante a partir das percepções desse outro até então percebido como subalterno. Para tal diálogo é proposto um movimento explícito de reflexão a partir de experiências partilhadas no cotidiano de diversos espaços sociais em que o saber/fazer das classes populares e dos grupos na subalternidade emerge como elemento de produção de conhecimento e de processos de ensino-aprendizagem, em permanente disputa contrahegemônica. Definindo a própria trajetória como lócus em movimento desse devir dialógico que ao se envolver em uma práxis de co-construção do saber/fazer pretende superar, ao menos em parte, aquilo que Souza Santos (2000) vem chamando de o “desperdício da experiência” procuro um olhar interessado nos elementos que contribuam para ir redefinindo possibilidades para os processos de formação e de libertação. [Sankofa e o lócus da minha trajetória como exterioridade e o encontro nela com o pensamento social da nossa América] Mas, por paradoxal que possa parecer, mesmo se tratando de um trabalho acadêmico de reflexão/produção teórica, devo esclarecer que não é a partir do confronto de teorias que gostaria de desenvolver minha indagação, embora ao longo do texto o faça, conscientemente, por entender a importância de alguns elos de inteligibilidade que nos permitam caminhar juntos na reflexão que agora proponho. Para começar uma reflexão outra, sobre cultura, memória e identidade optarei, inspirado no espírito do Sankofa17, por arriscar uma primeira o intenso debate conceitual e político em torno da nação de bem viver. 17 O conceito de Sankofa (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer) origina-se de um provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim. Como um símbolo Adinkra, Sankofa pode ser representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro. Os Ashantes de Gana usam os símbolos Adinkra para representar provérbios ou idéias filosóficas. Sankofa ensinaria a possibilidade de voltar atrás, às nossas raízes, para poder realizar nosso potencial para avançar. [Ver Revista de História da África e de estudos da diáspora Africana – NECAP- FFLCH-USP in https://sites.google.com/site/revistasankofa/ último acesso em 07/11/2013]. Como representação mítica relacionada diretamente à memória e ao futuro, isto é, à história, é surpreendente a similaridade da imagem com o Ángelus novus, de Paul Klee (1922), no sentido dado por Wlater Benjamin na sua célebre Tese IX sobre o conceito de História: “Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
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aproximação a partir da memória do próprio fazer. Assim, assumo o lócus da minha fala como um continuum, uma trajetória em movimento, referenciado em experiências concretas na Nossa América, que nos impactam coletivamente, de um modo ou outro, recuperando o sentido dado à imagem do Sankofa pelos povos de língua Akan no dizer “se wo were fi na wosan kofa a yenki”, que pode ser traduzido por “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. E embora não tenha a pretensão de “fazer filosofia”, no mais largo e rigoroso sentido acadêmico ou escolástico, me acompanho da definição com que Dussel (1977c) abre sua “Introducción a una Filosofía de la Liberación Latinoamericana” ao definir a tentativa de ir pensando o nosso estar no mundo, a cotidianidade vigente significa o mundo da vida cotidiana; esse mundo concreto, agora e aqui (…). Esse é o ponto de partida do pensar filosófico, e se o pensar filosófico partisse de qualquer outro ponto, já partiria do ar e começaria perdendo pé. A questão é justamente o saber partir da cotidianidade. (pág. 14)18.
E ao tentar me aproximar, a partir também da própria práxis (em postura reflexiva diametralmente oposta ao proposto pela Escola de Frankfurt, que acreditava ser necessário um afastamento da práxis para não “contaminar” o pensamento crítico), amplio-me na minha trajetória, no fazer de artífices e artistas, educadores e, por que não, militantes; fazer de quem faz coletivamente. Trata-se de um fazer que, ao mesmo tempo, surge da revolta com a sua própria negação enquanto fazer legítimo, enquanto produção humana. Esta particular opção, longe de ser uma tentativa de desprezar a reflexão abstrata e suas conceituações sobre as diversas formas da prática humana, aparece, de um modo muito diferente, como um imperativo ético e político: uma necessidade. É a partir dela que se pode abrir a possibilidade de um diálogo epistemológico a partir da exterioridade19, na direção da necessária abertura das ciências sociais já referida, à qual retornarei no desenvolvimento do presente trabalho. 20
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”. BENJAIN apud LOWY, 2005. 18 No original em Espanhol: “La cotidianidad vigente significa el mundo de la vida cotidiana; ese mundo concreto, ahora y aquí (…). Ese es el punto de partida del pensar filosófico, y si el pensar filosófico partiera de cualquier otro punto, ya partiría desde el aire y comenzaría perdiendo pie. La cuestión es justamente el saber partir de la cotidianidad.” DUSSEL (1977c, pág. 14). Tradução própria. 19 Alguns conceitos e categorias aqui abordados como noções aproximativas são apresentados e discutidos ao longo do texto. 20 É também esta pertença a um coletivo de fazer, e do compromisso político afetivo que implica, a que evoco ao me permitir, em diante e me determinados momentos, a licença de fazer uso do coletivo para enunciar, lançando mão da primeira pessoa do plural, com base nessa necessidade, mesmo a risco de ser mal entendido, por alguns, como um populismo. Em outras palavras, neste caso, o uso do coletivo não nega o sujeito, mas o amplia,
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Olhando em retrospectiva, é interessante registrar, brevemente, como a aproximação da filosofia da libertação e de uma crítica da “razão indolente”21 se deu a partir de uma trajetória de reflexão não acadêmica, mas que se concretizou instigada pelo diálogo com o campo acadêmico. Isto me parece pertinente, não por um intuito de focar em questões autobiográficas22, mas por permitir a compreensão de que o pensamento descolonial é anterior à sua organização teórica no campo acadêmico, relativamente recente. É assim, pertinente refletir, autocriticamente e em retrospectiva, o modo como vínhamos fazendo uso - eu e muitos com quem tenho partilhado do fazer artístico, político e educativo nos meios populares - da noção de Outro, que traz implícitas as questões da exterioridade e da invisibilidade, mas de maneira relativamente intuitiva. Todavia, era esta uma perspectiva da qual se desconfiava, pois o senso comum ensina que ela pode estar coberta de um resentimento não resolvido ou revestida de certa arrogância, ao desprezar o arcabouço conceitual crítico. No debate contínuo com artistas e educadores, companheiros de caminhada, ao refletirmos sobre a necessidade de se estender essa “ponte” com a academia, ficava ainda um sentimento de frustração ao não encontrar nem na Escola, nem na academia, na grande mídia ou no discurso legitimado, reflexões por meio das quais pudéssemos nos ver refletidos. Ao não encontrarmos, aliás, sequer analisada a estética da qual nos sentíamos parte (como modo de representação do nosso estar no mundo). Os artistas que considerávamos como os maiores artífices da nossa Cultura, da Cultura da Nossa América, não apreciam, ou então, o faziam dentro de um debate conceitual que mais os velava do que os reconhecia. E ainda, muitos dos textos cujos autores nos inspiraram raramente figuraram em uma bibliografia acadêmica. Então, a partir desse sentimento, ainda bastante confuso, começamos a construir modos próprios de expressar nossa própria análise. Quando desenvolvi uma reflexão sobre o Circo Social, durante o curso de Mestrado23, depois de anos fazendo parte de uma organização da sociedade civil 24 que colocou as bases desse peculiar conceito junto a artistas populares, educadores e à garotada nas ruas, a ideia era justamente tecer aquela ponte com a academia. A motivação estava posta pelo objetivo tornando politicamente explícita sua pertença e identidade a partir da qual enuncia. 21 Ver Santos, Boaventura de S. A sociologia das ausências e uma sociologia das competências, disponível em http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf 22 Por considerá-lo importante para os estudos do cotidiano, no sentido da construção de uma teoria não essencialista, que permita fugir aos determinismos e à reificação do sujeito, em contraposição à ideia de Biografia, e que permita assim também sua extrapolação para reprensarmos a memória, a história e a Cultura, desenvolverei adiante uma reflexão sobre a categoria de trajetória. Ver pág. 24 23 Ver BARRÍA, 2007. 24 Trata-se da ONG Se Essa Rua Fosse Minha, na qual trabalhei entre 2000 e 2012.
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explícito de pegar emprestada parte da legitimidade do espaço acadêmico para fortalecer o trabalho desenvolvido no meio popular, como educadores, ativistas e artistas populares. Ao chegar ao programa de pós-graduação me parecia que quanto mais nos embrenhávamos nas metodologias colocadas pelo método científico clássico, utilizado por mim em trabalhos anteriores, mais nos distanciávamos do que pensávamos buscar. Negava-me a aceitar, ao menos, dois dos pressupostos: ‘tornar-se objeto’ da indagação e fingir não fazer parte dele. Aquele mesmo sentimento de frustração tomou por momentos a nossa reflexão, ao sentirmos que muitos dos pressupostos centrais do pensamento científico e da racionalidade instrumental moderna pareciam negar sistematicamente aquilo que intuíamos como sinais de algo especial e diferente. Em tempo, as contribuições do pós-estruturalismo, que abriam alguns novos diálogos, apresentavam também novos ocultamentos. A existência daquele ‘algo’ que, para nós, orientava as práticas da nossa organização parecia ser, paradoxal e justamente, sua principal contribuição, mesmo que tal percepção fosse, como assinalado, uma ‘intuição sobre a prática’. Toda a metodologia sacralizada pela academia como o seu modus operandi, negava o que tínhamos de mais rico e parecia estar nos colocando “de fora” da experiência a ser “estudada”. Para além de todo o debate que os estudos subalternos (SPIVAK, 2010), algumas correntes da filosofia da ciência (SOTOLOGO, DELGADO, 2006; CASANOVA, 2006) e o Projeto Descolonial, entre outras, vêm colocando à matriz de legitimação do pensamento social clássico, mas de um modo muito mais íntimo, apontarei apenas que, para as reflexões que me interessava colocar a partir da experiência coletiva da qual vinha e desde a qual pensava o mundo, a questão teórico metodológica aparecia como uma camisa de força da qual seria quase impossível se despir. Percebia logo que a nossa palavra como produtores de cultura e conhecimento não tinha condição de dialogar, pois não possuía o mesmo status. Não por incapacidade de construção discursiva ou intelectual, mas por estarmos situados, epistemicamente, em um lugar outro. Deparávamo-nos, pela primeira vez de modo consciente, com aquilo que Grosfoguel (2006), seguindo as pegadas de Franz Fanon (2008), enuncia e denuncia como a “corpo-política do conhecimento”, que junto à “geopolítica do conhecimento” descrita por Dussel (1977), compõem a cartografia da racionalidade no Sistema-mundo moderno/colonial. Estávamos de fato situados em um lugar totalmente diferente do lugar da academia, o que traz consigo uma construção de linguagem diferente, um modo de reflexão diferente e, principalmente, pressupostos diferentes para a produção de saber. 27
O engajamento político e afetivo, não mais com o ato de descrever o mundo, mas com os sujeitos concretos com os quais tínhamos construído até então, constituía-se em uma urgência, que intensificava a suspeita da incompletude de uma descrição, qualquer descrição, por mais apurada que fosse. A ela faltaria sempre a voz ativa daquilo, ou melhor, daquele(s) que está(ão) sendo descrito(s) na sua relação com o mundo e os outros, mesmo que essa voz fosse citada como referência. A alma25, a Aura dos que fazem e do feito, parecia ficar sempre ausente nas pesquisas com que nos deparamos; A compreensão-de-mundo do “objeto” pesquisado nunca poderá aparecer senão como relato sobre ela, logo, morta, já que ele, o “objeto”, não sendo um Sujeito, só pode ser descrito nas suas propriedades, embora saibamos por experiência que não se esgota nelas. Percebemos que a integração desse objeto, sua transformação em sujeito do conhecimento, era impossível naquele contexto, pois ele era externo à ontologia científica, era o outro, e como tal, só objeto poderia ser. Isto me levou a dedicar boa parte do trabalho da dissertação a expor e debater esta questão e buscar alternativas para a produção do conhecimento desde o que já então chamávamos de uma perspectiva outra. A partir daí veio a minha aproximação com os Estudos Subalternos, com o Pensamento Descolonial e, posteriormente, com a Filosofia da Libertação (a qual eu conhecia apenas em termos gerais, como parte da “paisagem” conceitual do nosso horizonte político da America Latina). Estes sim, pensamentos em direto diálogo com os saberes oriundos da Educação Popular e o pensamento social da Nossa América. Os contínuos debates sobre a prática docente, a sociologia da educação e a cultura com os e as jovens professores-em-formação, durante os cinco anos que lecionei na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, significaram para mim um enorme aprendizado e enriquecimento dessa reflexão, no sentido de ampliar a possibilidade de articulação entre o cotidiano escolar e as perspectivas descolonial e da filosofia da libertação. A própria descrição que aqui faço não é alheia à suspeição que levanto. Até aqui tenho descrito um percurso de reflexões sobre a teoria em termos mais ou menos formais, acadêmicos. Todavia, a aproximação com esses referenciais é de outra ordem, que não apenas do racional analítico, mas também da ordem do afetivo, envolvendo a memória, a intuição e, também, outras racionalidades. De fato foi uma espécie de reconhecimento, um encontro, um achar-se dentro desse arcabouço conceitual. A questão é que esse sentimento de se achar ali, de se sentir à vontade, identificado, se deve, em grande medida, ao fato de que ele faz sentido 25
Não num sentido metafísico, mas no claro sentido etimológico de aquilo que anima.
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para nós porque fazemos parte do mesmo contexto social, político, estético, afetivo, do mesmo imaginário, que é o processo de produção de conhecimento do pensamento social da nossa América. Refiro-me a um contexto de luta pela libertação das mais diversas opressões, contexto partilhado por quem está nos movimentos sociais, na Educação Popular, nas lutas sociais, nos movimentos insurgentes na Nossa América, em diferentes tipos de engajamento político-afetivo. Talvez retroceder um pouco mais nessa retrospectiva permita compreender melhor esse percurso para a questão que quero levantar. Lembro que ao ingressar, ainda muito novo, no Conservatório Nacional de Música, da Faculdade de Artes da Universidade do Chile, para estudar Interpretação Superior em Violão Clássico, os universos da arte ‘erudita’ e popular se encontraram na minha percepção de mundo, frontalmente, como dois trens desgovernados. Instigado pela primeira negação da técnica e da estética que trazia do campo popular, comecei minhas primeiras indagações, ainda que muito desordenadamente, sobre o gosto musical e as relações entre arte e dominação. Essa fase, entretanto, não esteve em nada afastada dos movimentos sociais e da militância política insurgente, das quais já participava desde muito antes. Pelo contrário, a década de 1980 foi a época em que a luta contra a ditadura militar26 mais se ampliou e radicalizou, se vendo fortalecida pela mobilização popular e o enfretamento frontal ao fascismo. Desta maneira, o compromisso com o desenvolvimento dos processos sociais e de ensinoaprendizagem nos setores populares, assim como sua relação com a criação, a arte e a cultura está ligado intimamente, desde minha infância e juventude no Chile, a uma participação ativa nesses movimentos sociais e a uma militância política. Esse foi o pano de fundo do meu próprio desenvolvimento no período escolar, marcando não só os limites do que era possível ou não ser feito, como jovens em formação, mas também o nosso modo de pensar, sentir e
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Refiro-me ao período em que o Chile foi governado por uma Junta militar liderada pelo então General Augusto Pinochet, que chegara ao poder traz derrocar, com apoio dos EUA e por meio de um violento Golpe de Estado, o governo da Unidade Popular, presidido por Salvador Allende. À maneira de contexto para os mais jovens, cabe apontar que o regime militar ficou afamado pela crueldade da repressão perpetrada que, segundo dados oficiais, cobrou 40.018 vítimas entre prisões ilegais, torturas, execuções e desaparecimentos. Isto considerando que o mesmo informe oficial, apresentado em agosto de 2011, reconhece não ter registrado mais de 22.000 outras denúncias, por não ter condição de comprová-las, podendo ter o número total elevado a mais de 80.000 vítimas (dados da Comissão Valech entregues ao presidente da República Sebastian Piñera). Além destes crimes, a ditadura queimou e proibiu sistematicamente livros e discos que considerava “sediciosos”. Cabe também lembrar que a aceleração do processo de globalização e a imposição do modelo neoliberal no mundo, tiveram como ponto de partida, justamente, a ditadura do Pinochet no Chile. Ver CASANOVA, Pablo G. Capitalismo corporativo y Ciencias sociales. Disponível em http://alainet.org/active/59821&lang=es Ver também, MOULIAN, Tomas, Chile actual: anatomía de un mito, Santiago: Lom editores, 1997.
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produzir culturalmente. Este complexo contexto de participação e militância contra o horror do fascismo influiu, de um modo ou outro, não só nas nossas lutas, mas também nas nossas músicas, nossa poesia e nossa ludicidade. Foi também uma época em que a atividade política ia instigando constantes descobertas e aprendizados - foram os primeiros estudos sistemáticos da obra de Marx e de textos que marcaram a minha leitura de mundo, como os de Mariategui, Martí e Galeano e também os primeiros passeios pela literatura latino-americana. Na música, a Nossa América se fazia ainda mais presente, em discos e fitas que circulavam clandestinamente, enquanto nos meios, por imposição da ditadura militar, só se ouvia música de mercado norte-americana e, em menor grau, inglesa. Além delas, versões oficiais de um folclore pasteurizado que visava fazer contraponto à força de uma música de matriz popular subalterna (urbana e camponesa), que entre as décadas de 1950 e 1970, tinha arquitetado um projeto estético claro e coerente de uma modernidade outra. Assim, ouvir clandestinamente Violeta Parra, Victor Jara, Inti-illimani, Silvio Rodriguez, Pablo Milanés, Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui e também Chico Buarque, Milton Nascimento e tantos outros, era um ato indissociavelmente estético e político. Longe de serem “músicas de protesto”, como se costumou chamá-las, tratava-se de expressões de uma estética particular que dá conta do mundo visto de um outro lugar, com suas contradições, alegrias e dores, uma estética marcada pela potência criativa de um movimento social que se insurgia com força naquele então. A minha trajetória de músico iria se encarregar de misturar, naturalmente, estas fontes com a música afro-brasileira, afro-norte-americana, ameríndia e africana. Mas esse é já outro assunto. Daquele tempo, marcado também por inúmeras ações coletivas de luta e de criação, vem a minha primeira curiosidade por entender a arte e os processos culturais para além do simples fazer e reproduzir em contextos sociais predeterminados. Uma vez no Brasil, mais de uma década depois, o contato cotidiano com a miséria e o abandono da infância nas ruas, somado à experiência de lecionar em uma escola pública numa favela carioca, marcaram profundamente minha trajetória, dando uma nova leitura ao compromisso do qual falava anteriormente. A articulação do engajamento na luta por direitos com o fazer artístico veio naturalmente, mais uma vez, ao ser convidado, em 2000, para trabalhar como arte/educador nas ruas de Copacabana, na ONG Se Essa Rua Fosse Minha. Essa singular experiência me fez compreender não só a crueza daquela realidade, mas o incrível potencial criativo e transformador desses meninos e meninas que têm a rua como principal referência de socialização. Foi durante esses dez anos em que mais pude ampliar 30
uma reflexão a partir da prática que articulasse em um mesmo eixo cultura, educação popular e luta por direitos. Foi lá também que apreendi a importância de articular todos os saberes com o cotidiano do qual emanam e ao qual voltam. Esse trabalho me permitiu, também, conhecer de perto diversas experiências de educação popular, arte e cultura, no Brasil e em outros países da Nossa América, onde o circo assumia um papel articulador de diversas linguagens, conceitos e propostas temáticas entrelaçadas segundo as especificidades locais. O meu posicionamento, ao encarar a pesquisa no âmbito acadêmico do curso de Mestrado, era então projeção dessa trajetória, solidária com o lugar das crianças e jovens das classes populares, notadamente aqueles que estavam em situação de rua: o Outro da cidade e do sistema socioeducativo, porque o é, antes, de todo o sistema de ensino escolarizado e também da arte e da cultura, pois é considerado como incapaz de produzir a primeira e desprovido da segunda. Todavia, justamente pela experiência desse contato político, lúdico, pedagógico, solidário e afetivo, cujo efeito em mim foi um primeiro giro epistêmico na perspectiva dos oprimidos, chegava absolutamente convencido da sua força criativa. Era aquela trajetória o meu lócus em movimento, que assumia então como ponto a partir do qual olhar o mundo. Em outras palavras, é essa trajetória a que definiu, até agora, o meu horizonte, a minha totalidade mundo. E essa totalidade é, como veremos, uma exterioridade que, pelo mesmo, para não subsumir à razão científica moderna e toda sua ontologia, tem por condição do seu ato de indagar e produzir conhecimento, uma atitude insurgente de desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008. Pag. 287). Enfrentado a uma serie de entraves burocrático-institucionais, durante os cinco anos que lecionei na Faculdade de formação de professores, na UERJ (2007 a 2012), foi a partir do entrelace dessas trajetórias (de militância, de ativismo, de fazer no campo da arte e do trabalho intelectual) que busquei articular os saberes trazidos pelos educandos e colegas, tensionando a ocupação/reinvenção dos espaços delimitados pelo universo acadêmico escolar, para uma descolonização das nossas práticas ético-estéticas e político-pedagógicas. A tensão entre o instituído e o instituinte achava ali outros modos, colocando novos desafios ao fazer e à produção teórica. Assim, reafirmando o posicionamento assumido durante a elaboração da minha dissertação de Mestrado, em 2005, entendo o nosso fazer de educadores populares e a prática artística e cultural como historicamente ligados ao lugar que ocupamos como coletividade no mundo, carregando nele nossas contradições, nossas necessidades e nossa revolta. É também neste lugar que está sua legitimidade enquanto fazer propriamente humano. Esta é uma questão 31
política e epistêmica, que traz implícita uma questão de identidade que não pode ser resolvida a partir da ideia de identidade imposta, como unidade simbólica unificadora anterior aos sujeitos e ao seu fazer social específico (como os símbolos pátrios, ou mesmo a ideia de raça27 ou nação, por exemplo), mas requer elementos simbólicos cujo referente de materialidade são condições objetivas, de uso e produção social do espaço, que historicamente dão unidade a determinados grupos sociais, definidos como tais a partir da própria experiência dos sujeitos, que assim recriam imaginários, lutas e memória, relacionados tanto ao seu fazer social quanto às representações (fator subjetivo) sociais desse fazer. Motivado a uma construção dialógica das reflexões sobre o mundo, optei, assim, por escrever o texto, não debatendo apenas as teorias e os seus autores para “entender” a educação e a escola, mas contando diretamente e articulando, quando possível, a partir de trajetórias que se narram e reflexionam, refletem a si e interagem com as práticas criativas e educativas, provocando outros debates e reflexões. De fato, esta interação, necessariamente interdisciplinar, se dá com os mais diversos espaços, a cidade, a paisagem, e também a escola e ali onde quer que a racionalidade moderno/colonial reproduza e projete a sua institucionalidade. É uma interação que traz implícita uma disputa contínua, por vezes frontal e violenta, por vezes silenciosa. A ideia de narrar-refletir-dialogar articulando forma e conteúdo (ética e estética da escrita) me interessa, mesmo ciente dos riscos que implica, pois de um modo ou outro, permite resgatar, minimamente, parte da subjetividade perdida no debate acadêmico clássico, onde apenas a razão clássica reina. Quem dera a vida fosse como se conta ou se pensa no mais complexo e emaranhado texto acadêmico sobre a realidade humana. Assim, tão simples, tão linear, tão formal, tão com os limites claramente definidos, a luta no seu lugar de luta, a cozinha no seu lugar de cozinha, as relações afetivas na novela, a sexualidade entre quatro paredes, as epopeias no romance, as reflexões sobre a vida no 'paper' de filosofia, as análises sociais no de sociologia, as coisas da educação dentro da escola e as da política, sempre esvaziadas da sua potência urgente e insurgente ou então afastadas das demais. Entre tanta e tanta coisa que a gente vive e tenta entender, a vida vai se emaranhando com arranjo a uma simultaneidade (com seus movimentos sincrônicos e diacrônicos definidos pelos tempos desiguais que a modernidade
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Cabe lembrar que o surgimento do conceito de raça se encontra ligado ao processo de colonização da América e, assim, à ideia de colonização/civilização dos povos, que acompanhou a expansão dos mercados europeus e colocou a Europa como centro e paradigma da civilização ocidental. Ver Quijano, 1992, 2000 e Lander, 1993.
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produz) e uma complexidade de vasos comunicantes cuja porosidade nem o mais ousado cientista da complexidade arriscou descrever. Não será esta a minha pretensão. Apenas a de buscar coerência, na indagação e na explanação, com esta percepção a escala humana da nossa cotidianidade, tensionado as “caixinhas” herdadas da dura disciplinaridade científico-moderno-colonial, vazando conceitos, saberes, correntes e estilos, pegando emprestados sentidos da linguagem popular e da autodenominada erudita, segundo a demanda de comunicabilidade que o propósito político da pesquisa impõe. Todavia, explicitando que essa transgressão, que é por si um ato de desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008), não se esgota em uma opção escolástica por seguir novas metanarrativas na contramão da ordem hegemônica (como alguns acadêmicos interpretam a perspectiva descolonial). Mais além, impõe-se pela impossibilidade de dar coerência a um conjunto de saberes apreendidos e regurgitados num processo contínuo e dialógico de produção de conhecimento, delimitado por todos os flancos pelos mais diversos engajamentos político-afetivos; a uma produção de saberes que outrora passariam despercebidos aos olhos do mais agudo e honesto cientista social sob o véu da ‘experiência’, categoria da qual, ainda hoje, muitos apenas pegam emprestados os fatos para ilustrar suas verdades teóricas, do mesmo modo que o jornal ilustra sua versão do que entende por importante com as fotos de fatos que assim, nesse contexto narrativo midiático, ficam despidos da sua cotidianidade. Talvez o leitor mais acadêmico possa se sentir, por vezes, desconfortável com o entrelaçar dos textos que vão do relato à reflexão mais ou menos autônoma e ao diálogo, com vivos e mortos, com autores de dentro e de fora da academia, entre os quais também aparecem testemunhos e opiniões. E falo de incômodo, pois o lugar de conforto relativo perante uma ideia ou uma narrativa outra está definido pelas expectativas que a pessoa (agente ou sujeito, enfim) tiver com relação ao texto lido, com arranjo ao lugar que ocupa num determinado Campo. Pelo próprio processo de institucionalização/ escolarização/ consolidação dos modos de produção de conhecimento no sistema-mundo moderno/colonial, como veremos mais adiante, a escrita desde esta nossa América periférica, como exterioridade ontológica do Ser Hegeliano, isto é, desde a diferença colonial como loci de enunciação (MIGNOLO, 2003) que constitui de fato, epistemicamente, um outro lugar de enunciação, com seu universo categorial e suas referências e imaginários também outros - produz um forte efeito de incomunicabilidade com o pensamento social clássico e, portanto, com a academia. 33
Nesse sentido, esta breve explicação introdutória constitui uma tentativa explícita de estender uma ponte de inteligibilidade, definindo não apenas o lugar a partir do qual falo, mas este como um lugar em movimento, e em constante relação com o mundo e com o Outro. Trata-se, afinal, de costurar um texto reflexivo e dialógico, em que caibam outros textos. Um texto cuja pretensão única é fazer parte de um processo de transformação em que estou tão envolvido, como produtor e como leitor, quanto aquele que por ventura venha dialogar com ele. Assim, é um texto que reescreve a si mesmo, que tenta neste movimento se desmarcar da modernocolonialidade (não necessariamente da modernidade, como veremos adiante). Um texto que não nasce de si, mas que se projeta como parte de um movimento mais amplo e dialógico e que, desse modo, consciente da sua exterioridade, busca se somar ao fluxo contínuo de produção coletiva da nova ontologia da libertação na Nossa América, fluxo histórico no qual estamos todos nós, do Sul, imbricados.
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[Alguns elementos nodais da discussão proposta] O início da reflexão: A Crise. Não mais como parte da narrativa que descreve uma excepcionalidade ou como categoria de análise que defina alguma ruptura de uma continuidade ou do fluxo linear de um suposto tempo histórico que, no seu percurso definido (sempre a priori) ora se desgasta, ora se tensiona ou fortalece. Mas sim como imanência e potencialidade sistêmica, contexto e permeabilidade do cotidiano em uma rede altamente complexa formada pelos diversos modos em que interagem - ora em tensão crítica, ora em complementariedade - os diversos sujeitos nos grupos e campos sociais. Todavia, uma crise cuja leitura se torna inteligível e pertinente a nós - e a todos os sujeitos que a constituem pela luta contra a dominação nas diversas formas constitutivas do sistema-mundo moderno/colonial. No caso da presente indagação, a crise surge como ponto de partida da reflexão, do modo como é vivenciada na subalternidade/mundo, isto é, a reflexão como negação de uma realidade opressora. Pensando com Freire (2005) em que “a cabeça pensa onde os pés fincam”, o ponto onde meus pés fincam é o do fazer criativo e dos processos formativos no campo da cultura popular. Todavia, afirmar este ponto de vista, ao contrário de afirmar uma perspectiva esclarecedora, é um ato que está ligado ao entendimento de que cada ponto de vista é a vista de um único ponto28. Assim, além de ser o lugar definido pela minha própria trajetória, busco nele uma perspectiva obliterada pela lógica que entende a Cultura como um aspecto subordinado aos campos da Economia e da Política, por exemplo. Este ‘lugar’ no qual finco meu olhar sobre o mundo, do qual surge e se alimenta a narrativa da minha análise como ponto de vista, então, é o da Cultura como expressão da pulsão vital dos seres humanos na sua experiência coletiva, determinada e determinante de específicos fazeres, e como modo de conferir sentido e razão de ser aos diversos modos de produção e reprodução da vida das diversas comunidades locais, na sua relação complexa com o sistema-mundo29.
Nesse sentido, trata-se mais
especificamente da cultura popular da nossa América, um entre-lugar (SANTIAGO, 1978), não claramente definido pelas narrativas coloniais do centro, nem pelo seu olhar sobre as periferias, como tentarei detalhar mais aprofundadamente ao longo deste trabalho. Não apenas no simbólico na sua estrutura formal, mas como expressão de longas tradições de fazer social 28
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha, a metáfora da condição humana. 40 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997 É importante lembrar que a concepção do sistema-mundo diz respeito à forma de organização do capitalismo mundializado, como forma de divisão internacional do trabalho, apontando o imperialismo como culminação do processo de expansão do capital. Na concepção do sistema-mundo a economia mundial opera de forma articulada e inter-relacionada entre Centro, periferia e semiperiferia. 29
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e de múltiplas e diversas trajetórias de produção da vida na subalternidade/mundo em sua materialidade, a cultura popular como exterioridade ontológica do sistema de sentidos naturalizados pela modernidade/colonialidade, buscando um giro epistêmico descolonial (CASTRO-GOMEZ, GROSFOGUEL et all, 2007) que, ao se posicionar nessa exterioridade, aporte a sua vitalidade de releituras à nossa compreensão de mundo. É importante frisar que esta particular perspectiva não pretende negar, desconsiderar e ou mesmo menosprezar a importância fundamental de outros postos de vista (topoi epistêmicos). Neste contexto, a memória emerge como elemento aglutinador, reordenador e redefinidor não só das práticas sociais e dos currículos sobre a História e sobre as ciências da sociedade, mas da Cultura, no seu sentido lato e, assim, das identidades e do imaginário (GLISSANT, 2005) como dispositivo mobilizador do sujeito da transformação social. Memória dos vencidos e Cultura Popular como nodos de uma identidade epistêmica e ontologicamente rebelde. Daí, a reinvenção da Escola, da prática educativa, da nossa modernidade, do cotidiano, da luta. Não se trata de reinventar a partir apenas de um sonho, de modo caprichoso e autoritário, mas de mudar a nossa percepção (giro epistêmico descolonial), de modo a percebermos de que maneira a reinvenção do cotidiano das classes populares e dos movimentos de luta social produz elementos que tensionam a cultura hegemônica do poder nas sociedades do capital. Esta reflexão se insere assim, ou tenta se inserir, em um movimento mais amplo de rearticulação das forças que se contrapõem à dominação e à hegemonia a partir das definições que a opressão e a injustiça adquirem para quem as sofre, e que desdobram em lutas locais, recobertas de sentidos universais em cada comunidade. Estas comunidades entendidas como tais, na medida em que se constituem em microuniversos de sentido para cada grupo social e societário (classes e grupos redefinidos por suas trajetórias em condições sociais, econômicas e culturais determinadas), não definidas em contraposição aos poderosos, supondo estes como grupo coeso que redefine os outros, mas em contraposição à própria lógica da dominação – da qual somos também hospedeiros - como ela se dá no mundo hoje, isto é, a lógica do capital e do poder, a moderno/colonialidade.
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Trajetórias, diálogos e reflexões epistêmicas: por uma metodologia da pesquisa, da narrativa e da prática educativa descolonizadoras.
Lembremos que os paradigmas que moldaram até agora nossa formação profissional têm sido constructos socioculturais de origem europeu. Tentamos, hoje, inspirar-nos em nosso próprio entorno e construir paradigmas mais flexíveis de natureza holística e participativa. Para chegar a estas metas, a arrogância acadêmica é um obstáculo: deveria ser arquivada. Fals Borda, 2007: 21 Perante a redução da vida, haveria que ensaiar a destruição das estratégias e das formas de disciplinamento e pertença às formas do poder do capital contemporâneo. Um passo em tal destruição poderia ser uma desconstrução dos seus pressupostos e fundamentos intelectuais, atacar analiticamente a sua naturalidade e demonstrar a contingência da sua existência histórica, a artificialidade das suas construções, assim como também a desta crítica que se articula para fazê-lo. Luís Tapia, 2008, p. 11.
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[a ilusão biográfica e o perigo de uma única história] A partir dos diálogos e reflexões ocorridos no curso de Doutorado em Educação, na UFF, entendo hoje ser impossível desenvolver uma produção de conhecimento sem que esta, na sua forma e no seu conteúdo, tensione ao máximo o próprio papel do pesquisador, lançando um olhar profundamente questionador sobre as verdades político-metodológicas da pesquisa científica. Tento me aproximar assim da indagação munido de uma atitude de ‘suspeição crítica’ com relação aos valores e princípios colocados como universais, tendo em mente o alerta que Bourdieu nos faz, e que dialoga com a nossa perspectiva descolonial, “a suspeição crítica lembra que todos os valores universais são, de fato, valores particulares universalizados, portanto, sujeitos à suspeição (a cultura universal é a cultura dos dominantes etc.)”30. A nossa diferenciação com a perspectiva de Bourdieu talvez consista em aplicarmos - a partir da análise do processo histórico de universalização da matriz de racionalidade eurocêntrica e seu viés de colonialidade (DUSSEL, MIGNOLO, QUIJANO) - a noção de suspeição crítica à própria matriz de legitimação da racionalidade científica moderna, no centro da sua estruturação epistêmica axiomática. A suspeição crítica nos leva, na sua articulação descolonial, isto é, na perspectiva de uma geopolítica do conhecimento, a nos questionarmos sobre o lugar de onde falamos, para assim repensarmos com quem e para quem falamos. É esta reflexão que nos ajuda a encontrar o nosso interlocutor prioritário no processo de construção dialógica do conhecimento. Desta maneira, não estou mais inserido em um processo de construção discursiva que, como intelectual, estabeleceria a minha relação com o outro que, por ventura, venha me ler, em um movimento de mão única que ao mesmo tempo abstrai e sublima a minha relação com o mundo – como na tradição intelectual eurocentrada da moderno-colonialidade. Pelo contrário, inserido em um processo contínuo de fazer, de mudanças e de produção dialógica de conhecimento, constituído nele como sujeito dialógico em interação que, assim, se refaz na sua relação com o outro, posso produzir apenas nessa interação, mediatizado pelo mundo, como nos ensina Paulo Freire.
É esse para quem
permanentemente imbricado no a partir de onde, posto na sua radicalidade histórica e epistêmica, isto é, sob o viés da contraluz da modernidade/colonialidade, que redimensionará, em definitivo, a nossa narrativa e a nossa construção metodológica. Em tempo, ao me colocar como sujeito em movimento da construção dialógica do conhecimento, emerge a minha 30
BOURDIEU, Pierre, Outline of a theory of practice. Cambridge, 1977, apud HARVEY, 2004. Pág. 191.
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trajetória - sem pretensão biográfica alguma - como nodo articulador de experiências, saberes, conhecimentos, desejos e relações que se incorporarão, assim, na trama do texto a ser tecido na pesquisa. Colocar o lugar da fala é, assim, radicalizar a narrativa assumindo também as trajetórias individuais e coletivas que antecedem o momento da escrita. Dei-me conta que o que busca o pesquisador delimita em grande medida o que virá encontrar, pois toda indagação é movida por um desejo (sublimado e/ou obliterado) e por leituras a priori que são produto de trajetórias. Por sua vez, tais trajetórias trazem releituras e discursos imbricados, que se concretizam num devir pesquisa, discurso, ação - vir a ser constante da ação engajada. Negar o desejo, o interesse (definido por relações de poder) e as trajetórias (como geopolítica do saber do sujeito) é uma das funções que com mais zelo exerce a lógica da produção acadêmica no padrão de legitimação do pensamento social clássico ou científico/moderno/colonial31. Trata-se então, não apenas de evidenciar a trajetória e assinalar a impossibilidade da neutralidade valorativa, tão anunciada por Weber, mas também de avançar nessa perspectiva entendendo serem essas trajetórias o elo em movimento que pode articular a experiência humana, no sentido de produzir um conhecimento significativo cujo valor está justamente na articulação local/global. No artigo “A ilusão biográfica”, Bourdieu (1996) nos alerta sobre a “entrada de contrabando” no universo científico da noção de história de vida e dos relatos biográficos, questionando o pressuposto de coerência e linearidade que fariam parte de um relato testemunhado. No mesmo artigo ele propõe a noção de trajetória de vida, entendida como “serie de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço em que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (pág. 74). Motivado pela procura de um rigor científico para o trabalho de descrição sociológica, Bourdieu busca nessa definição um conceito que inclua a contextualização histórica dada pela redefinição das leituras dependendo do lugar de quem relata uma trajetória, com relação aos diferentes campos pelos quais transita, e em relação ao próprio habitus. Embora a partir de uma motivação diferente, partilho da crítica à ilusão biográfica e da busca por um distanciamento da ideia de biografia, linear, unívoca e supostamente depositária de sentido per se. Toda historia contada é sempre o apagar de muitas outras. A construção de uma biografia é necessariamente a eleição arbitrária de elementos pinçados da vida de um
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A este respeito ver capítulo “do saber dos que sabem”.
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sujeito ou de um grupo, elementos eleitos sempre a posteriori e por critérios que dependem do lugar que, quem conta, está ocupando naquele momento dentro de um campo determinado. Motiva-me uma busca por aquilo que na experiência vivenciada antecede sua descrição analítica, à procura da exterioridade de cada sujeito enunciador. Da minha parte intuo, em uma perspectiva dialógica, e como tinha já apontado anteriormente, a necessidade de incluir na costura do texto a intencionalidade política, sempre afetiva e sempre ingenuamente intencionada e por isso complexa, dos agentes envolvidos, dentre os quais o próprio pesquisador. No caso de uma indagação que objetiva a libertação, o compromisso político afetivo é fator indissociável do próprio ato dialógico da pesquisa e do ensino-aprendizagem. É um ato engajado no compromisso com o outro, em vez de embasado em uma determinada concepção de verdade, definida pelo método. [trajetórias-maaya como o devir das pessoas da pessoa - um antídoto desde a exterioridade à única história] Para nos aproximar da noção que busco, um olhar a partir de outras epistemologias ajuda, seja na sua transposição, como metáfora, seja para perceber que não se esta inventando nada, mas sim buscando perceber algo que está ai, mas que o ponto de vista da nossa epistemologia eurocêntrica oblitera. No seu texto “A noção de Pessoa entre os Fula e os Bambara” Amandou Hampêté Ba (apud JARDIM, 2008) diz, Nas tradições fula e bambara dois termos servem para designar a pessoa. Para os fulas, são eles Neddo e Neddaaku. Para os bambaras, Maa e Maaya. As primeiras palavras significam “a pessoa” e, as segundas, “as pessoas da pessoa”. A tradição ensina que existe antes Maa, a “pessoa receptáculo” e depois Maaya, ou seja, os diversos aspectos de Maa, a pessoa receptáculo. Como diz a expressão bambara Maaa ka Maaya ka ca a yere kono: “As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa”.32
Se lidas a partir da míope perspectiva do animismo indigenista - que permeou praticamente toda a produção intelectual do Ocidente sobre a vida nas colônias – estas palavras perderiam qualquer potência comunicativa sobre o sentido da formação do ser (ontogênico), obliterando o que nos dizem sobre a complexidade da nossa existência em relação com o mundo e com o outro. Como metáfora extraída do seu contexto, maaya ou as pessoas da pessoa poderia remeter a uma noção essencialista da que busco também me afastar.
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Texto originalmente editado em francês como capítulo do livro Aspects de la Civilization Africaine, Paris: Présence Africaine, 1972. Tradução de Daniela Morceau. In JARDIM, 2008, p. 56.
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Entretanto, em entrevista com Juliana Jardim, o ator e Griôt, Sotigui Kouyaté33 dá uma pista sobre o movimento constante e relacional dessas pessoas da pessoa: só conhecemos as pessoas da pessoa no encontro com outras pessoas. Naquilo que está fora de nós e que nos mostra quem podemos ser (op. Cit. p. 57). Duas noções se entrelaçam: a construção do em Ser-em-relação com o outro e com o mundo, o seu caráter dialógico, e a multiplicidade de trajetórias que possuem sentido em si na relação com o mundo. Ao avançarmos na reflexão sobre a cultura da nossa América a noção de Maaya permitirá um alargamento do sentido das pessoas da pessoa ao pensar o caráter heteronímico da nossa identidade34. Trajetória é uma categoria espaço-temporal e é nesse sentido que a utilizo. Com ela busco delimitar o campo de uma determinada teoria do conhecimento, diretamente ligada a uma pedagogia35.
Parto do princípio (em diálogo com J. P. Sartre e M. Santos) de que a
compreensão do mundo se dá pelos objetos e pelo período, isto é, por um tempo qualificado (SANTOS, 2008). Mas indo um pouco além, como exporei mais detidamente adiante36, com Dussel [e ele a partir de Heidegger], entendo que aprendemos não apenas em inter-ação com as coisas e o mundo, mas também com o Outro - como em Maaya. Pensando desde a perspectiva de quem narra ou se situa no ato de produção de conhecimento, quero propor uma outra noção, que toma a proposta por Bourdieu como ponto de partida e busca complementá-la: a de trajetórias-maaya como um acúmulo contínuo de sentidos que antecedem o ato analítico enunciativo (o logos da racionalidade moderna), com o qual se complementam mutuamente no próprio ato da enunciação (trajetória como vir a ser das pessoas da pessoa). Isto é, na interfase, a trajetória como sequência contínua e não linear de atos e aprendizados, afetos, leituras e releituras que definem a intervenção de um sujeito no mundo, o que inclui, é claro, além dos feitos, o acúmulo e a produção de conhecimento e saberes.
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O Griôt Sotigui Kouyaté, nascido e criado na região do Mali e Burkina Faso, de onde migrou para a Europa, onde se desempenhou, por mais de 22 anos, como ator do Centro Internacional de Pesquisa e criação Teatral, na frança, dirigido por Peter Brook. Sotigui esteve no Rio de Janeiro em 2003 para participar do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro (pois “o sério não está separado da brincadeira e a brincadeira não está separada do sério”). 34 Ver pág. 150. 35 Sobre o conceito de Pedagogia utilizado nesta tese ver o capítulo DA EDUCAÇÃO (e outros lugares), no subtítulo [a pedagogia simplesmente e a pedagogia do Sul como uma antipedagogia do Ser desde a diferença colonial], pág. 203. 36 Ver pág. 127
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Partindo, então, da noção proposta por Bourdieu, podemos pensar que, se ao longo da sua vida, uma pessoa (agente ou sujeito, singular ou coletivo) transita por diversos espaços sociais, inserindo-se em diversos campos, a sua história comportará inúmeras trajetórias (que são trajetórias-maaya, pois de fato constituem, todas elas, a pessoa). Nunca apenas uma. Isto porque não vivemos a vida toda dentro de um único campo, mas circulamos de modo contínuo, descontínuo ou fragmentário, por diversos deles, muitas das vezes simultaneamente. A nossa relação com os campos sociais é, necessariamente, complexa. A ela se soma e superpõe o encontro com o outro, diversos outros em cada campo. Este outro aporta à nossa experiência, no dizer de Bakhtin, alem da polifonia de vozes que carrega na sua palavra, também o seu excedente de visão estética sobre nós37. Nunca uma vida se reduz apenas a uma trajetória, nem pode ser apropriada em uma única História. Carregamos um emaranhado de trajetórias-maaya que guardam memórias, afetos, sentidos, coerências, habitus que são ativados no momento em que entramos em contato com um espaço social que nos relacione objetiva, política e afetivamente a um determinado campo. Nesse sentido, se à definição de habitus, como dispositivo para a ação definido como a internalização das regras e normas de cada campo, é aplicada a noção de trajetória-maaya alargando o habitus como o acúmulo residual de sentidos, afetos, leituras e releituras que definem a intervenção de um sujeito no mundo, no entendimento da interação com os mais diversos campos e/ou espaços ao longo da sua vida e, assim, de encontros e interações com o outro – pode se intuir o alto grau de complexidade da noção de trajetória-maaya e a sua potência como instrumento de compreensão. Nesse sentido, ela se relaciona diretamente com a questão da memória, do sentido, da identidade e, assim, da cultura. Paulo Freire (1988) nos ensina que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Assim, cada leitura se dá pelo estar em interação com o mundo, isto é, pelas trajetórias no seu sentido complexo (relação com o outro, com o mundo, os campos, o cotidiano e a totalidade contida nele). Do mesmo modo que essa leitura de mundo antecede a leitura da palavra, antecede também a escrita do mundo e a sua representação em códigos próprios a uma cultura e uma racionalidade hegemônicas determinas, notadamente em contextos de sociedades profunda e tensamente interculturais. A questão é: de que modo se produz essa leitura? E qual o lugar nela daquilo que é tido por toda a gnosiologia e a epistemologia moderna como exterior? 37
Voltarei sobre a questão do excedente de visão na página 208.
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O que quero enfatizar é que o modo como produzimos o conhecimento, como agimos politicamente, tomamos decisões e mesmo como pesquisamos cientificamente, não opera, nunca, apenas a partir de uma leitura racionalizada do mundo e de uma posterior sistematização lógica desta leitura. Fazê-lo seria uma impossibilidade porque o pensar é parte de um agir no mundo e pelo mundo, é um ato de mediação da nossa interação com o mundo e com o outro.
O agir no mundo, que é ao mesmo tempo o apreender e o produzir o mundo, é
contínuo e vai se dando nessa continuidade, é um devir, que se refaz se refazendo de sentidos operacionais em múltiplas trajetórias. Assim, a possibilidade de pensarmos e agirmos apenas com base na razão, no logos, é por si próprio, uma ilusão. E mais do que isso, um mito: o mito sobre o qual se ergue o pensamento científico moderno. O perigo de uma única história, sobre o qual nos alerta Adiche38, é, em boa medida, um perigo decorrente da ilusão da razão moderna/colonial e das suas narrativas sobre o que lhe é externo: a subalternidade, o trabalho vivo, a periferia do sistema-mundo moderno/colonial. Esta leitura não tem nada de mística ou sequer abstrata ou idealista, como poderia se pensar a partir de um certo fundamentalismo racionalista, marcadamente herdeiro do iluminismo. Pelo contrário, consciente de que “A escrita retira a prática e o discurso do fluxo do tempo”39 e de que, no dizer de David Harvey (2004), “todo sistema de representação é uma espécie de espacialização que congela automaticamente o fluxo da experiência e, ao fazê-lo, destrói o que se esforça por representar”, busco uma noção que contribua com a atualização da experiência, no seu movimento contínuo de produção da vida.
Trata-se, assim, de
compreender a indissolubilidade da nossa experiência de vida como totalidade sensível no cotidiano, ou seja, de perceber a sua integralidade racional, intuitiva, afetiva, corporal, sensível, estética, biológica, erótica e política, e buscar reconstituir, ao menos em parte, a fratura do tempo e da experiência que se perde no ato da escrita. Em tempo, ao assumir a produção de conhecimento não mais como um ato isolado e puro da razão, mas como totalidade sensível, assumimos também o entendimento, apontado por diversos estudos da neurociência e da biologia cultural, de que não é apenas o sistema cortical que opera como
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Faço referência à palestra da escritora nigeriana Chimamanda Adiche sobre o perigo de uma única história. Ver: http://www.ted.com/talks/lang/por_pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html ou transcrição disponível na web desde 2010 e acessado por última vez em 23/09/2011: http://meujazz.files.wordpress.com/2010/05/adichie-chimamanda-ngozi-o-perigo-de-uma-unica-historia.pdf 39 BOURDIEU, 1977, Outline of a theory of practice. Cambridge, apud HARVEY D. A condição pós-moderna 2004, Ed. Loyola. São Paulo. P 191.
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produtor de conhecimentos, mas este em articulação íntima com o límbico, como dupla interface corpórea que lê o mundo e se amplia no social, econômico, ecológico e cultural. Esta leitura se contrapõe à concepção que estabelece a relação Sujeito – Objeto do conhecimento. A nossa compreensão do mundo, da totalidade, se dá a partir dessa relação com as coisas e com o Outro, no movimento contínuo de estar no mundo. Por isso, quando a trajetória de uma pessoa (o sujeito ou o agente social) fala, tal fala não é, nem pode ser, apenas a resultante de um ato analítico racional. Do mesmo modo, nunca é unívoca nem uníssona. Pelo contrário, como apontava Bakhtin (2003) com o seu conceito de polifonia, cada fala carrega uma multiplicidade de vozes e sentidos, e assim, de trajetórias que convergem nela no ato da enunciação. Não proponho trabalhar com a ideia de trajetória-maaya no sentido de anular, necessariamente, o Sujeito (como sujeito do conhecimento ou da mudança histórica), mas sim de, por um lado, entendê-lo em constante movimento e interação com as coisas do mundo e com o Outro, como um vir-a-ser-em-diálogo - parte de uma comunidade intersubjetiva - e, por outro, tentar de maneira explícita tornar conceitualmente inviável a reificação desse Outro - também intersubjetivo, em-relação. Provavelmente a trajetória, como proposta aqui, torne indescifrável o sujeito na sua totalidade.
Não é esta a minha preocupação.
Todavia,
portadora de múltiplas formas de se apropriar do mundo, de um conhecimento que é ao mesmo tempo mitos, logos, affectio40 e experentiae em interações concretas na relação com o mundo, a fala a partir de uma trajetória-maaya, ou assim considerada, nos força a uma escuta mais ativa, desprovida da indolência do saber científico moderno, ou seja, a uma construção dialógica e reflexiva. Parece-me que esta abordagem implica em desdobramentos que constituem um giro epistêmico no campo da educação, no sentido de perceber e resituar o lugar da fala e da experiência das crianças, e dos educandos em geral nos processos de produção de conhecimento e de ensino-aprendizagem. Mas seu giro epistêmico também se extrapola aos campos da história e da teoria da cultura e da pesquisa como um todo. Para não escamotear a questão do sentido no contexto da noção apresentada, parto da ideia de que a pertinência ou o sentido de “verdade” legítima de uma narrativa a partir de uma trajetória determinada é 40
No sentido atribuído por Spinoza (segundo Deleuze), de alteração que ocorre simultaneamente em dois corpos, um tendo como propriedade a ação exercida por outro. Ver http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5
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político e intersubjetivo, logo, será dado sempre, a posteriori, pela comunidade comunicativa41. Em outras palavras, fará sentido conforme as posições que os sujeitos ocupem nos determinados campos, em cada momento e lugar. Nenhuma trajetória carrega um sentido absoluto nem a sua enunciação um sentido de verdade imanente, pois trajetória e enunciação adquirem sentido no seu estar em relação com o mundo e com o outro. Esta questão vale para os sujeitos, indivíduos ou coletivos, ou mesmo institucionais, culturais, povos ou nações, pois são todos sujeitos históricos. O momento único da produção de um saber com potência de escapar aos universalismos deterministas do saber/poder opressor nasce e morre no instante da articulação teoria - prática, ou seja, na práxis, no exato sentido apontado por Marx na sua célebre tese número II, das Teses sobre Feuerbach42. Esta reflexão sobre a trajetória, no momento em que assumida como lócus em movimento, interação indelével da espaço-temporalidade do ser, para além de qualquer reificação metafísica, vem ressignificando assim o próprio lócus da minha pesquisa e seus atravessamentos temáticos e conceituais. Em tempo, vem deslocando o fio condutor da sua construção discursiva para a própria trajetória vivenciada nos diversos espaços em que tenho me envolvido no meu que-fazer de artista, educador, militante e pesquisador. É também esta perspectiva que me leva a buscar um deslocamento do ponto a partir do qual pensamos a forma Escola. Nesse sentido, e entendendo a importância da construção dialógica freiriana para a libertação, parece-me fundamental uma práxis educativa capaz de ler trajetórias, ou, ao menos, direcionada a dialogar com seus sentidos e saberes, pois é por meio delas e suas diversas formas de emergir em narrativas, que poderemos nos aproximar dos saberes subalternizados pela racionalidade científica moderno/colonial.
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Utilizo o conceito de Comunidade Comunicativa como base do poder político da comunidade, como definido por Dussel, em uma articulação dos conceitos de Campo em Bourdieu e de “Poder comunicativo”, em Harent. Ver Dussel, 20 teses de política, São Paulo: expressão popular, 2007. 42 “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.” Ver MARX, 1996/1970.
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Da CRISE (e outras ruas)
A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de historia que de conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; (...) O espanto com o fato de que os episódios que vivemos "ainda" sejam possíveis (...), não é nenhum espanto filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o de constatar que a concepção de história da qual emana semelhante espanto é insustentável. (Tese VIII, sobre o conceito de história. W. Benjamin)
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[Os novos fantasmas da velha Europa e a emergência de novos/velhos saberes]
Los estudiantes, sin habérselo propuesto expresamente, eran los voceros del pueblo. Subrayo: no los voceros de ésta o aquella clase, sino de la conciencia general (OCTAVIO PAZ, Posdata). A era está parindo um coração Não aguenta mais, morre de dor E há que acudir correndo Pois se cai o porvir, (Silvio Rodriguez)43
Há pouco mais de um século um pequeno texto cuja finalidade era a de arengar os trabalhadores para se somarem à luta contra a exploração capitalista sob a bandeira de uma das maiores organizações operárias internacionais já vista assombrou, literalmente, a vida de governantes e empresários, especuladores financeiros, grandes burgueses e nobres por todo o Norte: “Um fantasma percorre Europa...”, abria ameaçador suas páginas o texto para anunciar a utopia possível da sociedade sem classes e “o fim da exploração do homem pelo homem” (MARX e ENGELS, 1998). Hoje, aparentemente cegos e surdos ao desencanto da História recente, parecem se multiplicar os espectros que surgem a esmo nos mais recônditos cantos do planeta, tirando o sono de mais de algum guardião da ordem, inquietando os mercados, alimentando a roda-viva das grandes redes da mídia internacional e seus telejornais, perante a perplexidade de cientistas sociais, filósofos e dirigentes político-partidários.
Em tempo,
inseridos na cotidianidade de milhões de pessoas no mundo todo, graças à função social que “a telinha” assumira paulatinamente nos últimos cinquenta anos, o discurso moralizante e de contensão, pautado pelos telejornais, invade nossos sonhos, redesenhando medos e expectativas futuras, preparando, nem sempre de modo sutil, o colchão conceitual de uma subjetividade hegemônica para a aceitação da reação. Hoje, entretanto, à diferença do marco conceitual que aquele Manifesto inaugurava para a luta dos trabalhadores e para as análises sociais subsequentes, parece não haver teoria articulada nos salões do saber no velho continente que possa dar conta, de modo minimamente 43
Do original em espanhol, tradução própria: “la era está pariendo un corazón / No puede más, se muere de dolor / Y hay que acudir corriendo / Pues se cae el porvenir” de Rodriguez, Silivio,
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satisfatório, da complexidade dos acontecimentos que parecem delimitar um novo e insuspeitado momento histórico. Elementos em aparência novos apontam a existência de novas espaço-temporalidades, as que, contudo, não esvaziam, como alguém poderia ter suposto, a luta pelos espaços públicos e seus usos, mas parecem reinventá-la, com arranjo a diversos modos de complementaridade que ao (se)articular (em) redes sociais as mais diversas (digitais ou não), cria ações cuja sinergia impacta mercados e ateia o fogo de novas velhas lutas. Como semelhança com a época antes referida, apenas o fato de que, assim como cento e cinquenta anos atrás, subalternos pelo mundo afora, olham com brilho nos olhos, mais expectantes do que assustados. Renovados de vigor e vontade de mudança se lançam às ruas à caça da dignidade perdida. O censo comum e as instâncias do poder hegemônico se apressam em condenar a desordem. Entretanto, não apenas a aparente falta de projeto político definido ou o caráter ora fragmentário ora insuspeito das insurreições que se sucedem, mas o próprio fato de terem em comum a ausência de uma organização político partidária ou sindical institucionalizada como referência de poder central de liderança e agente de mobilizações, assusta não apenas conservadores e dirigentes políticos, policiais e âncoras de telejornais, mas também intelectuais de esquerda e de direita e, inclusive, aqueles que negam estas categorias se lançando em novas releituras que anunciam há algumas décadas já o fim da modernidade e mesmo da história e do sujeito. Quem são, afinal, estes sujeitos que desatam tempestades sociais que colocam em xeque a sagrada percepção de normalidade e estabilidade das sociedades do capital nesta, dita, “modernidade tardia”? Como articulá-los na definição conceitual de um único sujeito emergente? Não é acaso a ideia de multidão44 uma reinvenção da velha procura pelo sujeito da revolução que, no mesmo movimento que afirma, nega a alteridade múltipla e inapreensível daqueles que sempre estiveram, mas apenas hoje, e por motivos mais de quem vê do que de quem está, passamos a enxergar? Velhas renovadas questões vêm alimentar nossas ansiedades indagatórias. Se não há um sujeito coletivo claro e coerente, como garantir que os conflitos que ocupam hoje ruas, manchetes e debates mundo afora não sejam os sintomas de um retrocesso social gigantesco na direção da reafirmação de um fascismo social (como definido por Souza Santos45) que ameaça a cada dia se instalar
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Como proposto por Negri e Hart nos livros “Multidão” e “Império”. Ver também o artigo “Para uma definição ontológica da Multidão”, LUGAR COMUM No19-20, pp.15-26, publicado originalmente em Multitudes n.9, Ed. Exils, Paris com o título "Pour une definition ontologique de la multitude", p. 36-48. 45 Ver Poderá o direito ser emancipatório? Artigo publicado em Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, maio 2003: 3-76. Disponível em http://rccs.revues.org/pdf/1180.
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como fascismo institucional democrático, posto que contando com a cumplicidade das instituições democráticas, da grande mídia e, assim, com a anuência das maiorias apavoradas pela possibilidade iminente do caos e da barbárie? O que significa esse desprezo demonstrado aqui e lá para com a classe política e com as instituições republicanas de modo geral? É a própria democracia burguesa e sua ideia de representatividade a que está em questão? A partir de 2011, nos mais insuspeitos lugares do orbe, a população tem se mobilizado com rara decisão e clareza levantando demandas de fundo, cujo ponto em comum se encontra justamente em estarem totalmente ausentes da agenda política pactuada pela classe política, escancarando assim uma democracia tutelada ou a chamada democracia dos acordos, a cuja mesa de negociações o movimento popular rara vez é convidado. E se estes são desconsiderados pela maioria das democracias na hora de definir os rumos da sociedade, muito mais fundo, o sentimento de desconforto e frustração experimentado cotidianamente pelos homens e mulheres comuns, pelas promessas não cumpridas pela modernidade, encontra-se relegado à mais radical invisibilidade. Vale destacar que os movimentos de revolta aos que me refiro, possuem como características em comum, observáveis sem maior aprofundamento, a) serem enormemente massivos (tratase de mobilizações que levam centenas de milhares e em alguns casos milhões de pessoas às ruas); b) acontecerem de forma inesperada por parte do campo político, incluindo nisso partidos de oposição e sindicatos; c) não possuírem referente político ideológico claramente definido (ou ao menos não apenas um); e d) serem mobilizações descentralizadas, articuladas por meio de redes digitais e de modo independente às centrais sindicais ou mesmo a outros tipos de movimentos sociais, embora estes últimos estejam sempre, de um modo ou outro, com maior ou menor protagonismo segundo questões pertinentes a cada caso, envolvidos nelas. Entre outras coisas, esta relação um pouco mais íntima dos movimentos sociais vem demonstrando serem, dentre os modos de organização mais ou menos institucionalizados, os de maior mobilidade e capacidade de diálogo no novo quadro sociopolítico que estas revoltas têm colocado. Sem animo de exaurir um levantamento mais apurado, mas de modo ilustrativo para denotar a abrangência e impacto do fenômeno, cito apenas aqueles países de cujos movimentos tenho notícia a través dos meios de comunicação (grande mídia e da chamada mídia alternativa via internet), apontando a bandeira que, dentre muitas outras, destacou, em cada caso, como a principal demanda. Podemos, assim, assinalar alguns casos exemplares, pelo impacto e 49
comoção provocada a partir de dezembro de 2010, na Tunísia, e se prolongando com intensidade em 2011, continuando em aparente ascensão até hoje, quase acabando o ano de 2013: Tunisia: contra a corrupção, por transparência e democracia. Ben Ali é deposto após 24 anos no poder; Egito: contra o autoritarismo institucionalizado, pela democracia radical. Renúncia de Hosni Mubarak; A estes dois seguiu uma série de revoltas no que deu em se chamar a “Primavera Árabe”; Espanha: o movimento de ocupação dos indignados contra a corrupção e os cortes orçamentários nas políticas sociais, que mobilizou milhares de pessoas na Praça Porta do Sol em Madri e que se espalhou pelo país todo, assumindo diferentes formas; Italia: Estudantes contra os cortes orçamentários, por uma educação para todos e de qualidade; Grécia: contra as políticas de austeridade impostas pelo banco mundial e a União Europeia, por uma economia mais humana que garanta os direitos de todos; Inglaterra: contra a truculência racista da repressão policial, por uma cidadania intercultural; Portugal: contra a OTAN e sua lógica de guerra e dominação, pela paz e autonomia dos povos; Islândia: Contra as grandes corporações que destroem as economias locais; Chile: contra o lucro na educação, pelo direito à educação pública, gratuita e de qualidade e por uma constituição cidadã que garanta os direitos de todos e todas e não apenas o lucro e enriquecimento de alguns; EUA: Movimento Occupy Wall-Street, contra o sistema financeiro e por um mundo melhor, em que o controle cidadão imponha limites ao lucro e acabe com a exploração e o abuso; Colômbia: estudantes por uma educação mais democrática. Em 2012 as protestas e os distúrbios se prolongaram, com destaque para Europa, onde teve lugar a primeira greve internacional de trabalhadores da história. Já em 2005 protestos de jovens das periferias das grandes cidades na França geraram comoção ao queimarem milhares de carros durante semanas seguidas. Após aquele evento, embora a tentativa de manter uma aparência de calma e normalidade, por parte dos governos e dos meios de comunicação, alguns dados demonstram a tensão social silenciada: só na França, em 2011 foram registrados pela polícia 42.135 veículos queimados e, em ato de ira juvenil que é praticamente uma tradição de fim de ano, foram queimados, no último dia 31 de dezembro, 1.193 carros, 46 a mais do que em 2009 (último ano em que tinha se tornado pública esta estatística). Em 2013, além de desdobramentos das mobilizações de 2011 em alguns países, e de outras onde a mobilização social tem já um acúmulo histórico, como no México onde o movimento dos Educadores tem enfrentado a dura repressão do Estado neoliberal, novas e inesperadas mobilizações eclodiram em outros onde nem o mais ousado analista ousaria imaginar que viessem a ocorrer. Têm-se três exemplos paradigmáticos do insuspeitado da ruptura de um 50
suposto contínuo de tranquilidade aparente: Turquia, país caracterizado por uma relativa estabilidade política e econômica. Lá, a tentativa de construir um memorial e um Centro Comercial em uma das poucas áreas verdes da cidade de Istambul – o parque Taksim, foi o estopim para uma revolta popular que levou milhões às ruas contra o presidente Edorgan; Colômbia, onde o conflito social encontra-se, a mais de cinquenta anos, centrado na guerrilha, provocando um efeito desmobilizador nos setores populares urbanos. Com menor intensidade, mas já em larga escala, estudantes e povos originários se levantam pelo direito à educação pública e pela dignidade dos povos. E no Brasil, cuja história recente desconhecia este tipo mobilização massiva de rua, comum em alguns países vizinhos. Aqui, também de modo totalmente inesperado, centenas de milhares de pessoas foram tomando as ruas em uma mobilização que começou contra o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus, mas que rapidamente se ampliou a uma revolta de pauta difusa e generalizada, na qual podemos distinguir com clareza ao menos três elementos: a mobilidade urbana, relativa ao direito à cidade; a Educação e a corrupção da classe política, para além da capitalização política que setores instituídos tenham feito, à posteriori, desta pauta.46 A fragmentária mobilização setorial no Brasil e mesmo a aparente inópia da grande maioria perante as questões da política oficial - bem como as definidas por esta como questões sociais - pareciam, já antes das chamadas “jornadas de junho”, ter também em comum o desprezo, a rejeição ou, minimamente, a total falta de credibilidade da população para com a política institucionalizada, notadamente para com a figura emblemática dos políticos de carreira. Durante as jornadas de junho este descontentamento veio rapidamente à tona, afetando inclusive aos partidos da esquerda, mais expostos pela grande mídia corporativa. O mesmo fenômeno ocorreu em diversos países. Multidões mundo afora parecem intuir com clareza (e se revoltar contra) aquilo que Dussel chamara de corrupção originaria do [campo] político e que define como Fetichismo do poder47. Esta é uma questão que vá muito além de questões específicas da contingência local, mas se atrela diretamente a um dos elementos constitutivos do modelo de sociedade democrática moderna e capitalista. Em tempo, qual o significado do abismo, aparente ou real, que há entre tais movimentos (seu surgimento inesperado, seus modos de organização descentralizados e suas reivindicações ora
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Cabe esclarecer que omito deste breve levantamento o caso da Síria devido à rápida intervenção externa e a militarização do conflito, envolvendo assim outros interesses regionais e globais, e conferindo a ele características que fogem ao escopo da análise exposta. 47 DUSSEL, 2007.
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radicais, ora conservadoras48, ora inominadas) e as (pouco expressivas) respostas dadas pelos cientistas sociais, dentre os quais os intelectuais engajados parecem ficar à reboque, tendo de assumir também, que seu tempo, o da escrita reflexiva, caminhará sempre um passo atrás da história? Para alem da manipulação que, com o uso das novas tecnologias aliadas ao discurso hegemônico das mídias corporativas, possa haver do direcionamento político desta ou daquela manifestação popular – notadamente contra governos locais - as mesmas, são um ato inegável, assim como o crescente descontento que elas refletem com relação ao próprio Sistema-mundo moderno. O impacto e, reitero, o inesperado dos protestos e seus diversos graus de confronto com o sistema, dão conta da enorme potência daquilo que o olhar da ciência social e política clássicas, atravessadas pelo olhar do Estado, como objeto e lócus de enunciação, invisibilizam: as vozes e feitos que emergem do subsolo político 49 (TAPIA, 2008) e da experiência vivenciada no cotidiano na subalternidade-mundo.
Perante a
dificuldade da teoria social clássica de dar conta do momento, cabe se questionar pela pertinência e pela urgência de um giro epistêmico que possa construir reflexões, análises e mesmo modelos complexos a partir dessas vozes. Por sua vez, as respostas desde o lugar do discurso hegemônico, contido nas instâncias institucionais e veiculado pela grande mídia, parecem reproduzir o velho pacto social iluminista, reforçado pelo discurso competente do novo consenso neoliberal: em 2011, por exemplo, cegos e surdos à resposta massiva da população chilena contra um sistema educacional injusto e excludente, ouvimos, dos intelectuais orgânicos do stablishment brasileiros, que o Chile se encontraria “dez anos à frente do Brasil em matéria de educação” (sic), segundo dados dos organismos internacionais50. Dois anos mais tarde centenas de milhares de pessoas nas ruas das principais capitais do Brasil se levantariam pela educação51 e, conscientemente ou não, contra a tentativa de se ‘alcançar o Chile’ seguindo seu modelo de
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Sobre o caráter aparentemente conservador e, todavia, revolucionário das classes subalternas ver, THOMPSON, E.P. 1998. Págs. 13 a 24. E GRAMSCI, 49 Para Tapia, o Estado moderno comporta uma epistemologia, um modo complexo de ver o mundo que delimita e redefine todo o campo da teoria política. Segundo aponta, o pensamento político colapsa ante a noção de Estado: pensa-se que não há vida política fora dele e assinala que a partir da configuração histórica em diversos países na América latina, pode-se perceber que há outras formas além do Estado, propondo as categorias de subsolo político e política selvagem, utilizadas neste trabalho, entre outras, na busca do descentramento do Estado. 50 Comentário ouvido de um “especialista”, cujo nome não consegui reter, no programa de radio “a hora do Brasil” no início da noite de 21/09/2011. 51 Além de a educação ter sido uma das principais pautas, se não a principal, durante as jornadas de junho, no dia 15 de outubro uma manifestação de apoio aos professores em greve a 60 dias, levou ao redor de 100.000 pessoas às ruas do Ri de Janeiro, segundo os organizadores, e outras dezenas de milhares se manifestaram em outras cinco capitais do Brasil, em solidariedade aos professores do Rio.
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municipalização, terceirização e privatização dos seus serviços, mesmo que ainda se esteja longe de atingir, aqui, a radicalidade daquele modelo. Pouco mais de um mês após as jornadas de junho de 2013, o Rio de Janeiro foi palco da que seria provavelmente a maior mobilização de professores da rede pública, estadual e municipal, pela educação. Uma longa greve decretada e defendida em assembleias de entre cinco a dez mil professores, deflagraram sucessivas mobilizações que chegaram a congregar, em 07 de outubro deste ano, mais de cinquenta mil pessoas. De um modo geral, aqui e lá, os discursos padronizados se reproduzem: perante as explosões da raiva popular, a condenação a “toda forma de violência”; perante o imobilismo e o desinteresse pelo político, as denúncias de uma suposta alienação e da ignorância, um problema da educação (o discurso do povo ignorante e alienado); perante a pressão social organizada, a acusação de um radicalismo exacerbado que não dialogaria com “os interesses da nação”. Um paralelo arriscado para com as avaliações feitas perante o chamado “fracasso escolar”, a deserção e as situações de indisciplina e violência de alunos/as em sala de aulas, balizaria, talvez, estreitas relações entre o poder e o saber nas sociedades atravessadas pela colonialidade. A urgência em repensar nossos referenciais se abre passo para além das formas consolidadas na sua institucionalidade. A surpresa de todos e todas surpreende também, dando conta do fracasso da concepção de história por meio da qual olhamos nosso mundo, como apontou com lucidez Walter Benjamin. Esse espanto só faz constatar que a concepção de história da qual emana semelhante espanto é insustentável (BENJAMIN, 2005). E para mais além do discurso oficial de mandatários, jornalistas e acadêmicos, restam assim as próprias inquietações perante a busca de uma compreensão que dê minimamente conta da demanda por entender/fazer. Renova-se o debate levantado há alguns anos sobre o silêncio dos intelectuais52, sobre o papel do intelectual engajado, tão debatido na Europa dos anos de 1960 (Merleau-Ponty/J. P. Sartre, Foucault/Bourdieu). Obliterado pelo eurocentrismo endêmico da academia é este também um debate que permeia de modo transversal e urgente, praticamente toda a genealogia do pensamento social da Nossa América, de José Martí, Simon Rodriguez, J. C. Mariategui e Francisco Bilbao a F. Fannon, P. Freire e E. Dussel, entre tantos outros. Enquanto isso,
52
A este respeito vale revisar os textos produzidos no ciclo de conferências intitulado “O silêncio dos intelectuais” organizado por Adauto Novais em agosto de 2005, dentre cujos conferencistas cabe destacar a participação de Marilena Chauí, que apresentara um trabalho sobre O intelectual engajado, questionando se seria este uma figura em extinção.
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oculto ou criticado, o sujeito ativo das análises acadêmicas e dos discursos políticos, o “enunciador” das narrativas midiáticas e das sociopolíticas continua a ser o clássico sujeito da modernidade, que define, distingue e denuncia, com a sua fala moralizante e pretensamente universal. O questionamento de Gayatri Spivak (2010) assume a tonalidade de um grito urgente, ensurdecido pelo barulho das sirenes e dos carros lança água: “pode o subalterno falar?”. Para além de uma figura retórica, carregado de significado político epistêmico, o questionamento lançado pela investigadora indiana descortina interessantes pistas ao apontar o lugar do pensamento crítico pós-estruturalista ocidental como anunciador do sujeito soberano europeu, no mesmo movimento em que constrói a sua crítica. Deparamo-nos, assim, com o paradoxo do denunciar/anunciar, negar/afirmar53 posto no centro do debate sobre a modernidade e a crítica possível -ou da possibilidade da crítica- à sua enunciação universalizante a partir da subalternidade. Na arguição da Spivak, construída sobre um diálogo entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, o sujeito soberano, oculto na sua própria narrativa, tem a sua história contada pela lei, pela economia política e pela ideologia do ocidente, negando assim qualquer determinação geopolítica - a história da Europa é a história linear da humanidade, a filosofia, a mitologia, as narrativas ficcionais e mesmo as que se desprendem do pensamento científico moderno reproduzem um discurso sobre si e sobre o outro (nós, do Sul) tendo ela, a Europa, como sujeito e paradigma da narrativa da humanidade, da civilização universal, com tudo que isso implica de tecnologias, metodologias, lógicas, pedagógicas e definição de processos e mecanismos de planejamento, monitoramento, avaliação de ações, nos mais diversos aspectos da produção e reprodução da vida. Desse modo, a crítica desse sujeito é, de fato, a sua inauguração, posto que o afirma nesse lugar.
Assim, nas suas próprias palavras, “algumas das críticas mais radicais
produzidas pelo Ocidente hoje são o resultado de um desejo interessado em manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como sujeito” (SPIVAK, 2010. Pág. 20), isto é, na sua posição de poder hegemônico global, nos mais amplos e diversos sentidos. [Dos sentidos da revolta e da subversão que educa]
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Voltarei sobre este tema ao falar da memória dos vencidos. Pág. 131.
54
Muito mais além da geopolítica e suas relações de poder global, esta questão é, para nós, educadorxs/pesquisadorxs54, de vital importância. Ela nos ajuda a perceber o processo de construção da nossa própria cegueira perante o “momento histórico que estamos vivendo”, segundo nos denuncia um morador da periferia londrina, cuja fala de “velho imigrante negro das índias ocidentais” entrou a contrapelo em uma cobertura da BBC de Londres sobre os conflitos que ocorram em 2011 no Reino Unido55. Por alguns breves minutos, a BBC deixou entrever uma das vozes que ninguém quis ouvir até agora: “os lideres políticos não faziam ideia, a polícia não tinha ideia, mas se você olhar nos olhos de um jovem negro, ou de um jovem branco, e prestar atenção no que eles estão dizendo... mas não os escutamos..” O pensamento científico social clássico, parece tampouco fazer ideia do que está acontecendo. Só a barbárie nos redimirá? Só na barbárie nos libertaremos? Será, afinal, deseducar o papel da escola engajada em ser parte de uma sociedade que se reconstrói a partir da libertação dos diversos? Talvez, em parte, sim, mas não só. Dos movimentos de revolta que têm surgido desde 2011 no mundo inteiro, chama a atenção o caso do movimento estudantil chileno, tanto pela sua motivação – a mudança do sistema educacional neoliberal – quanto pela abrangência das mobilizações sociais que têm colocado em xeque o Governo local e, especialmente, pelo ineditismo da sua bandeira principal, a luta contra o lucro na educação. Munidos de saberes insurgentes, e extremamente bem embasados nos seus argumentos, adolescentes e jovens de entre 17 a, no máximo, 24 anos de idade, lideram um processo de mobilização social massivo que vem colocando um debate que vai muito além de demandas setoriais, mas tem posto em questão o próprio modelo de uma das primeiras sociedades pautadas no mais radical livre-mercadismo. Assim, da exigência do fim ao lucro na educação e a retomada de antigas bandeiras, como a apropriação por parte do Estado de um sistema educacional público, gratuito e de qualidade, o movimento ampliou seu apoio social ao ponto de desenvolver gigantescas marchas56 e multitudinárias manifestações57.
54
Pego emprestado aqui, das redes digitais, o uso da substituição da vocal de gênero pelo x, para englobar todos eles, sem ter de ordenar/hierarquizar a sua referência. Esta prática, bastante comum, busca evitar o uso genérico do masculino para se referir a toda e qualquer pessoa, como nos ensinara a epistemologia feminista. Todavia, não me obrigo ao seu uso em todas as referências. 55 Ver http://www.youtube.com/watch?v=6Fgdpww5DpI 56 Ver http://es.wikipedia.org/wiki/Movilizaci%C3%B3n_estudiantil_en_Chile_de_2011#cite_note-1 57 Além de diversas marchas populares que mobilizaram mais de 400.000 pessoas, no dia 21 de agosto o movimento concentrou em torno de um milhão (1.000.000) de pessoas em defesa da educação pública e contra o lucro, no Parque O’Higgins, na cidade de Santiago, segundo cifras oficiais. Ver http://www.rebelion.org/noticia.php?id=134993 e http://www.youtube.com/watch?v=1XBqMEdjoxw
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Ampliando suas bandeiras à exigência de uma reforma constitucional, desta vez com o apoio da Central Única de Trabalhadores, o movimento chega a deflagrar duas greves nacionais. Ao assistir com mais atenção às intervenções desses garotos e garotas na televisão, nas ruas, em assembleias ou mesmo na comissão de educação do Senado, onde deram uma verdadeira aula de análise socioeconômica e de políticas públicas para a educação, apresentando seu “projeto país”, pergunto-me: esses alunos que lutam e ensinam, onde eles aprenderam? Franz Fanon e Paulo Freire chamaram a atenção para o fato de que a luta ensina, de que nos educamos “em comunhão mediatizados pelo mundo”58. A escola, cega de colonialidade, não vê. No entanto, seja em Santiago, Rio de Janeiro ou Bogotá, nos gestos, nas ações, nos corpos em rebeldia nas ruas ou nas escolas, bem como nas salas de aula das escolas aqui e lá e em debates organizados a contrapelo da racio/institucio/nalidade acadêmico/moderno/colonial, os subalternos insistem em falar e é, o próprio ranger das fendas que se abrem na coerência entre a narrativa e a vida na modernidade ocidental(izada), o que dá à sua fala, ora muda ora emudecida pelo saber/poder do ocidente, um lugar inesperadamente abrangente e subversor. Herdada diretamente da própria matriz de legitimação da racionalidade científica moderna, a metodologia que busca separar, distinguir e analisar a parte para, com base no acúmulo de saberes especializados disciplinarmente, compreender o todo, contribui decisivamente para a cegueira que a teoria produzida pelo pensamento social clássico tem demonstrado. E pelo mesmo, também para dar conta da complexidade social do momento que vivemos. Assim como no caso de aqueles que buscam enquadrar um fenômeno complexo, porém – em certo sentido – isolado, como a explosão da raiva de moradores da periferia londrinense e do Reino Unido, o mesmo podemos concluir ao tentar analisar movimentos sociais inesperados, como os ocorrido no Egito, na Grécia ou mesmo no Chile, partindo apenas das historiografias desenvolvidas a partir de cada desenvolvimento local. Isto parece dar-se por considerarem, ditas metodologias, cada história local como o desenvolvimento linear de eventos que se sucedem, seguindo as pegadas das velhas estruturas da matriz de legitimação do pensamento científico clássico, como a casuística, o ponto de distanciamento para a neutralidade e a própria linearidade temporal.
58
FREIRE 2005.
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Nesse processo contínuo de esquecimentos e memórias, as trajetórias na subalternidade vão se tecendo como palco de uma intensa disputa por renomear e apagar, na qual a Escola, ou mais especificamente, o currículo monocultural da escola moderno/colonial cumpre um papel privilegiado. Memória, conflitividade da sociedade do capital, binarismos que esgotam suas análises, complexidade e emergência de saberes subalternos, potência das classes populares, saberes insurgentes que se reatualizam, e no mesmo contexto, a tendência a buscar o novo para compreender o atual [marca indelével da modernidade], são questões que assumem um caráter urgente e vital nesses dias em que o conflito social parece se reinventar a partir de milhares de vozes que emergem em movimentos populares de revolta ou de contestação, movimentos que exigem mudanças no mais diversos sentidos e que, nesse mesmo movimento, escancaram a violência do sistema-mundo moderno/colonial e suas mil caras: a extinção da noção do direito à educação que obriga no Chile a milhões de famílias a se endividarem com bancos privados para seus filhos acederem a um ensino que, por sua vez, pouco garante; o tratamento violento, discriminatório, arbitrário com que os Estados europeus, de modo geral, e a França, a Espanha e a Inglaterra em particular, tratam imigrantes das antigas colônias; Uma revolta generalizada contra a classe política, expressa das mais diversas formas, desde os pequenos boicotes, as campanhas pela rede de computadores até movimentos espontâneos de insurreição popular, no Brasil e no mundo, por citar alguns dos exemplos mais cáusticos. No paradoxo ardente, estas emergências da subversão parecem conviver de um modo escancarado, com a normatividade dos corpos, a anestesia social do consumo e a exponibilidade da vida cotidiana, já consolidada no final do recém passado século com o advento da massificação dos meios de comunicação, potencializados pelas novas tecnologias.
Junto com eles, ampliou-se ou,
melhor, materializou-se a utopia auto-realizável da universalização da cultura do capital, vazando para o Sul do mundo a normatividade cotidiana do poder do Norte. Torna-se necessário desler, como nos convida Mario Quintana, como condição de ir além do aparente esgotamento da teoria que é, em verdade, o esgotamento da narrativa de um único ponto de vista, o ponto de vista da única história59, que é o ponto de vista da Razão Indolente (SOUSA SANTOS, 2000) e do grande costume60 e ao mesmo tempo, a urgência por uma teoria que dê conta, construída no movimento da mudança/da luta/do cotidiano. Nesse 59 60
ADICHE, op. Cit. Em N.d.R pág. 29. No original “La gran costumbe” constitui uma metáfora e uma analogia central nos escritos de Julio Cortazar. Ver CORTAZAR, 1963. Cap. 73 e “Del sentimiento de no estar del todo”, CORTAZAR 1992. Pág. 32 -36.
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sentido, movimentamo-nos à procura do nós ontogênico, isto é, não apenas da nossa história, mas munidos de suspeição crítica sobre o olhar lançado oficial e escolásticamente sobre a(s) nossa(s) história(s) para singularizá-las e sintetizá-las em uma única história, lançamo-nos ao abismo da busca das nossas epistemologias perdidas, das nossas lógicas abandonadas, esquecidas ou escravizadas, subalternizadas pela racionalidade científico-moderna/colonial. Seguindo os passos de Leopoldo Zea, Enrique Dussel, Franz Fannon, Paulo Freire e também Julio Cortazar, Fela Kuti, Sartre, Vian e Jarrí, este é um texto desde a barbárie.
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Da RAZÃO (e do lugar)
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A colonialidade do saber e o saber dos nadies
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[O mundo pelo avesso ou, da ‘Verdade’ e do saber dos que sabem] Até o mapa mente. Aprendemos a geografia do mundo num mapa que não mostra o mundo como ele é, senão tal e como os seus donos mandam que seja. N planisfério tradicional, o que é usado nas escolas e em todas as partes, o Equador não está no centro, o Norte ocupa dois terços e o Sul, um. América latina abrange no mapa-múndi menos espaço que a Europa, e muito menos que a soma de Estados Unidos e o Canadá, quando na realidade América latina é duas vezes maior do que Europa e muito maior do que os Estados Unidos e o Canadá. O mapa, que nos diminui, simboliza tudo o restante. Geografia roubada, economia saqueada, história falsificada, usurpação cotidiana da realidade: o chamado terceiro mundo, habitado por gentes de terceira, abrange menos, come menos, lembra menos, vive menos, diz menos.61
A noção de normalidade é a grande aliada do poder e seu discurso normativo e monocultural. É nela que assenta e descansa o discurso do sujeito da modernidade, cuja história e visão do mundo nos permeiam desde que nascemos por meio da ordem posta, dos objetos, dos instrumentos e das instituições, das verdades ditas e das implícitas.
Nada é neutro.
Aprendemos assim a discriminar, a segregar e a obedecer, a nos menosprezar e a venerar. Mandela disse certa vez, que ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, que para odiar, as pessoas precisam aprender. A sua conclusão é clara, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.
Tentar entender como se dá esse aprendizado, como se
constroem e reproduzem as verdades que apagam sistematicamente a memória dos subalternos e dos oprimidos, assim como do que há de subalterno e oprimido em cada um e cada uma de nós, é parte importante, creio, do necessário desaprender para aprender pelo avesso da normatividade. E, sim, isto não é normal. Alguns anos atrás, meu filho Lucca, então com uns nove anos de idade, olhando para uma foto-de-satélite do planeta terra que eu tinha colado na porta da geladeira disse, “Pai! Você colocou ao contrário”. Sem pensar muito argumentei que no universo não há em cima e embaixo, que ele não tem teto. A imagem não tinha, de fato, nenhuma inscrição que indicasse sua posição “correta”. Tratava-se de uma bola azul no meio do imenso vazio. Entretanto, imediatamente el retrucou, “Tudo bem, pai, mas eu estou falando aqui na terra, todo mundo sabe que o norte fica em cima”. Ao ver a normalidade se fazendo amalgama na sua percepção, como na de todos e todas acontece, lembrei, com certa saudade, daquele garoto que, alguns anos antes, ainda com uns 61
O Texto acompanha um planisfério em que o Sul está na parte superior, elaborado pelo grupo dominicano “Proyecto SUR” publicado como anexo in LANDER (2005). Tradução própria.
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cinco anos de idade, fazia o verbo delirar – como dizia o poeta – ao me dizer, por exemplo, no meio da tarde sob um sol de verão daqueles do Rio de Janeiro, assim, do nada: “A sombra é uma estratégia do sol”. Como assim? Perguntei, na minha douta ignorância. “É sim pai, a sombra é uma estratégia do sol para não morrermos de calor, é obvio!”. Sabido ele da nossa intrínseca relação de cuidado mutuo com a natureza da qual fazemos parte. Mas a questão agora era outra. O fato é que meu filho, já bem mais habituado à ‘normalidade’, estranhava, do mesmo jeito que todos nós, algo que parecia fora da ordem ‘natural’ das coisas. A criatividade, o encantamento e a poesia que trazem consigo as crianças parece ir subsumindo perante a normatividade do ensino escolarizado. O mesmo que nos faz assumir como natural a ordem inversa e reduzida da vida que o disciplinamento e as formas do poder e da lógica do capital impõem. Na contramão, a arte e a ludicidade se apresentam, certamente, como instrumentos de ver pelo avesso dita normatividade, abrindo-se como vias possíveis de se transitar para um conhecimento outro. As palavras de Eduardo Galeano descrevem com eloquência uma situação que, para além da subordinação e a dependência econômica e política, implica na falsificação da nossa história, o encobrimento da nossa memória e, por meio da legitimação do saber científico, na usurpação cotidiana da realidade, que é negação dos saberes populares e da nossa memória. O simples ato de olhar para o mapa desde qualquer outra perspectiva que não a que aprendemos na Escola, com o Norte sempre por cima e esticado na perspectiva, é um convite a se perguntar por algumas “verdades” que constituem o que entendemos por mundo e, logo, pelo nosso lugar nele. Tentar o olhar estranhado de uma criança e questionar com ela pode ser instigante e urgente: O relógio mede ou inventa o tempo? Há mesmo uma única linha do tempo histórico? Por que nos horrorizamos com o genocídio nazista dos judeus, mas não hesitamos em nos sentir identificados com o mocinho que aniquila nações inteiras de povos originários da América nos filmes do far west hollywdiano?
Há alguma relação na
racionalidade que levou a ambos os horrores? Como e quando nasce a ideia de modernidade como estágio mais “elevado” do “desenvolvimento” humano? Como se deu a transformação do pensamento científico moderno em modelo “universal” de racionalidade? Quer dizer, o mundo todo aceitou sempre que só europeu pensa bem? Ou tem o seu surgimento e legitimação alguma relação com a subalternização das outras culturas do planeta, em particular da América Latina? Qual a materialidade, isto é, a historicidade desse processo? Existe uma cultura e um pensamento social latino-americano? A razão entende ou inventa o mundo? Algumas das respostas a estas questões podem ser perturbadoras. 62
Para tentar uma aproximação de algumas delas e sua inter-relação, me proponho refletir sobre a base epistemológica do saber científico moderno e, portanto, do pensamento social clássico e sobre a historicidade desta matriz de pensamento, isto é, das condições geopolíticas, espaço/temporais e históricas do seu surgimento e desenvolvimento, bem como sobre o processo de sua legitimação enquanto forma moderna de saber científico universal único. Em outras palavras, uma brevíssima, porém necessária revisão das bases conceituais e formais do modelo clássico de legitimação do ideal de saber hoje. Dentre os elementos básicos da racionalidade clássica encontramos,
O primado da razão, entendida esta como fundamento de coerência para produzir um conhecimento científico novo pela sua formulação e justificação.
A ideia da objetividade do saber, entendida como estudo de uma realidade exterior, com posicionamentos rígidos para o sujeito e o objeto do conhecimento como entidades separadas e centrais da cognição;
O método como meio apropriado para se atingir o saber sobre o mundo exterior; e, por último,
A noção do conhecimento posto ao serviço do ser humano, para o bem, em prol de alcançar o domínio sobre a Natureza.
A equação legitimadora clássica se fecha em três elementos essenciais que conformam, de maneira reducionista, o ideal de saber, isto é, da ciência como produtora de verdades e do conhecimento científico: a) a certeza no conhecimento exato garantido pela ciência; b) a noção política do domínio do homem sobre a Natureza, e c) o elevado fim de atingir assim o bem-estar humano62. Este axioma legitimou não apenas um ideal de racionalidade científica, mas a depredação da natureza e a dominação do homem pelo homem, como reafirmado na declaração da Cúpula dos Povos, durante a Conferência Rio+20, em 2012. 62
SOTOLONGO e DELGADO (2006).
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A Filosofia ratifica este ideal e assume assim a capacidade e o imperativo ético e moral do homem, agora munido das poderosas ferramentas da razão científica, de descobrir os segredos do mundo e assim completar a criação ali onde ela era entendida como falha. A tarefa poderia ser assim empreendida a partir de certos princípios que garantissem a independência, hegemonia e supremacia da ciência com relação a outros modos de se obter conhecimento. Este aspecto, somado à concepção linear do tempo histórico e à ideia de evolução e progresso, relegava - e relega ainda - as demais formas do conhecimento humano a diferentes categorias entendidas como estágios desse desenvolvimento, analisados pela distância com relação ao próprio ideal descrito. Este princípio é base para a invenção do outro, e dele se desprendem também as categorias básicas e fundamentais do processo cognitivo: o sujeito cognoscitivo e o objeto cognoscível, entendidos como entidades separadas e autônomas. Desprende-se daqui a concepção da pesquisa como o conhecimento das propriedades do mundo por parte desse sujeito, mundo cujas propriedades encontrar-se-iam ocultas como essências, porém existentes de maneira independente a ele, de modo objetivo. Desta maneira, o sujeito encontra-se, nesta tradição, objetivamente, pelo seu caráter cognoscitivo, fora da natureza. Dos princípios antes assinalados cabe salientar aquele que diz respeito ao modo como a racionalidade se articula para realizar sua missão, garantindo os demais pontos assinalados e a confiabilidade dos resultados cognoscitivos: o método, sua existência prévia à pesquisa e sua rigorosidade. Assim, a objetividade estava definida como a isenção do sujeito, ética e metodologicamente impossibilitado de operar qualquer interferência no descobrimento ou na descrição das suas propriedades. Supunha-se garantir assim a consecução dos objetivos do ideal clássico do pensamento científico: o domínio da natureza pelo homem para provê-lo de bem-estar. Ao assumir-se esse modelo como metodologia de apreensão do real pela ciência e como ideologia cognitiva na vida cotidiana, o mesmo passa a operar como dispositivo de reprodução da lógica que lhe deu origem, isto é, não são suas conclusões as que continuam a se reproduzir (a ciência pode, de fato, superar diversos mitos anteriormente estabelecidos por ela própria), mas a sua peculiar forma de conhecer o mundo, que redefine os saberes restantes compelindo-os à subalternidade. Como nos lembram Sotolongo e Delgado (2006), a legitimação moderna do saber científico consiste em 1) apelar para a razão e para o método como princípios universais; 2) a orientação para o pressuposto clássico de objetividade; e 64
3) uma relação dual e contraditória com relação à vida cotidiana. Ao assumir-se esse modelo como metodologia de apreensão do real pela ciência e como ideologia cognitiva na vida cotidiana, passa a operar como dispositivo de reprodução da lógica que lhe deu origem. Assim, a vida cotidiana foi considerada como elemento receptor passivo, incapaz de produzir conhecimento competente. Essa relação dual justificou a inferioridade cognoscitiva da cotidianidade e depreciou a competência de qualquer conhecimento oriundo dela. O restante dos saberes sofreu a mesma sorte. Por uma parte, considerou-se à ciência como via para dotar o ser humano de um conhecimento certeiro sobre a Natureza, que o colocasse em posição de dominá-la e controlála. Inicialmente orientada para a melhora da vida cotidiana a ciência era compatível e contribuía com o seu ethos humanista.
Entretanto, a produção de conhecimentos foi
delimitada como uma atividade específica e rigorosa, que não só se afastava da vida cotidiana e seus critérios, como também podia se opor totalmente a ela. A vida cotidiana passou a ser considerada como elemento receptor passivo, incapaz de produzir um conhecimento competente com o conhecimento científico ou, em todo caso, enormemente inferior àquele. Esta relação dual justificou a inferioridade cognoscitiva da cotidianidade e desvalorizou a competência de qualquer conhecimento proveniente dela. O resto dos saberes correra a mesma sorte. A razão, o método e o pressuposto clássico de objetividade garantiam a supremacia do saber científico por cima de qualquer outro saber, enquanto a vida cotidiana, tida como destinatária dos resultados científicos, contribuía para sua legitimação social.63
O conhecimento humano que brota da ciência é assim investido de poder absoluto a partir da revolução científico/técnica. Não é mais um saber ligado às formas comunitárias de vida, mas se ergue como instrumento da dominação do humano e do natural pelo homem ou, mais exatamente, por alguns homens64. A ciência tem conseguido, de fato, provocar profundas mudanças no cotidiano das pessoas, permitindo a melhora efetiva da qualidade de vida de parte da população. Entretanto, no mesmo movimento, cada “avanço” conquistado carrega um preço difícil de pagar: a padronização da vida humana e a perda da sócio-diversidade e da diversidade biocultural. A cotidianidade subvertida pela ciência tende a se tornar única e dependente de elevados
63 64
SOTOLONGO e DELGADO (2006) pág. 98. SOTOLONGO e DELGADO (Op. Cit.) nos lembram bem que não são de fato os seres humanos que exercem tal dominação, mas trata-se de um tipo de perfil definido: homem, branco e/ou europeu.
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consumos de recursos naturais, o que incrementa sua fragilidade, agregando a destruição do meio ambiente e da biodiversidade. Desse mesmo modelo moderno de legitimação da ciência se desprende a dicotomia que consiste na contraposição entre as ciências naturais e as ciências sociais, expressa pelo positivismo. O modelo moderno de legitimação do saber científico, a dicotomia das duas culturas (científica e humanista) e o “atraso relativo” do conhecimento social estão ligados pela base comum que confere a eles a legitimação moderna do saber científico sobre outros saberes. O ideal do conhecimento positivista é a quintessência do modelo descrito, o qual, aplicado às ciências sociais, impõe a seguinte doutrina axiológica do saber: a) a sociedade é regida por leis naturais, invariáveis e independentes da vontade humana. Existe uma harmonia natural na vida social; b) a sociedade pode ser estudada pelos mesmos métodos e processos das ciências da natureza (conhecidas como “ciências duras”); c) as ciências devem se limitar à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra e livre de julgamentos de valor ou ideológicos, descartando previamente prénoções e preconceitos. A sua influência atinge quase todos os pilares do que até o recém passado século conhecemos como pensamento social científico, mesmo muitos que lhe foram críticos ou que parecem afastados, como Max Weber, e o seu postulado da neutralidade axiológica das ciências sociais, e até muitas correntes de pensamento marxista. Como nos lembra Diego Palma, a investigação social, nas correntes dominantes da formação e em boa parte do exercício, tem se desenvolvido seguindo as orientações e os princípios do positivismo. E agrega, Isto não foi gratuito. Quando surge a aspiração de atingir um trato "científico" do social, essa forma de proceder já está ocupada pelos princípios positivistas, legitimados pelo sucesso demonstrado a través das ciências "duras" para conhecer e controlar as coisas. Daí a recomendação de Emile Durkheim aos aprendizes de cientistas no social: “tem que tratar os fatos sociais como se fossem coisas”. ( PALMA, 2009)
Até agora me referi a uma determinada matriz do pensamento humano que, embora se erga como universal, surge num determinado e específico espaço/tempo: a Europa de finais do 66
século XV e inícios do XVI. Para Porto-Gonçalves (2008), a primeira condição para aparecer como universal é justamente a de aparecer como um saber de lugar algum, atópico que surge negando saberes locais e regionais construídos a partir de múltiplas histórias locais e regionais, pois traz por condição a ideia de Uma Única História, à qual todas as outras lhe são subalternas. As referências à mitologia grega perpassam todas as ciências e acabam sendo introduzidas no imaginário do homem e da mulher comum. Essa tradição tem sua base na ideia de uma sequencia linear – do tempo, da racionalidade e da história, constitutivos de uma linhagem filosófica – que iria da Grécia antiga, passando pela Roma pagã e cristã, o mundo cristão medieval, até chegar ao mundo europeu moderno, constituído como o “ocidente” e cuja história aparece assim com centro do desenvolvimento evolutivo do pensamento da humanidade. Esta sequencia constitui uma das faces da ideologia eurocêntrica moderna, pois, de fato, não se sustenta sobre argumentos históricos. Nunca houve de fato uma história mundial senão até o início do que Wallerstein (1974) chamaria de sistema-mundo, com a expansão dos mercados do Atlântico norte, no século XV, cuja data simbólica é justamente 1492. Esta data marca, junto à consolidação de novos mercados para a metrópole, o início da modernidade como novo “paradigma” da vida cotidiana, do modo de compreender a história (negando as outras histórias) e assim do tempo, da ciência e da religião, com arranjo a uma concepção espaço/temporal regionalista e eurocêntrica. Assim, no processo de expansão dos mercados nos séculos XV ao XVII a metrópole constrói, com base numa extrapolação arbitrária do pensamento social da Grécia clássica, o discurso da civilização contra a barbárie para justificar sua ação nas novas colônias, seus crimes e a imposição ética da dominação, construindo a ideia da diferença pela ideia de raça e pelo próprio processo de construção de uma racionalidade moderna que entende a civilização como o ponto alto do desenvolvimento do ser humano na sua luta pela dominação da natureza – processo que teria seu ápice na Europa dos séculos XVII ao XIX. Este processo encontra-se historicamente atrelado à estruturação do axioma legitimador do pensamento científico moderno, que se constitui assim como pensamento científico modernocolonial, de clara pretensão universalista. A modernidade constitui de fato uma ideia eurocêntrica, pois nela se colocam como ponto de partida fenômenos intraeuropeus e para o seu desenvolvimento posterior não se necessita mais do que da Europa para explicar o processo. Para Anibal Quijano65, a reestruturação da ordem 65
Ver QUIJANO in LANDER, 2005. Pag. 227 a 277.
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mundial decorrente da conquista do Atlântico – não apenas dos mercados, mas das relações geopolíticas e das formas de produção com base no extrativismo escravocrata que constituem a modernidade - imprime uma característica indissociável de colonialidade ao desenvolvimento do capitalismo a partir do século XVI. Este momento da construção do imaginário colonial (MIGNOLO, 2000) não aparece na história do capitalismo, contada sempre com referência à Europa ou a partir dela, tornando assim a colonialidade do poder um fenômeno invisível. A colonialidade do poder é, desta maneira, característica constitutiva do sistema-mundo moderno/colonial. A estreita ligação dessa reestruturação com o processo descrito de consolidação da matriz de legitimação do saber científico moderno impõe a ela a homóloga colonialidade do saber, isto é, uma característica intrinsecamente colonial na forma em que apreendemos e percebemos o mundo; essencialmente colonial, pois marcada pelo processo de colonização e sua subsequente subalternização dos saberes outros. A colonialidade do saber opera, nesse sentido, como um dispositivo de racionalidade que reproduz as relações de poder e dominação.
Os estudos subalternos latino-americanos
apontam para a relação historicamente desenvolvida entre a ideia de modernidade, o processo de colonização e a subalternização do conhecimento. As gnoses dos povos indígenas, negros, das classes populares, construídas de forma diferente à da “epistemologia moderna”, na diferença colonial, foram assim subalternizadas em nome de um falso processo de “civilização”. O mesmo acontece com todos os grupos na subalternidade, como as mulheres e os homossexuais. Não se trata, porém, de uma disputa entre gnoses puras onde, reificadas ambas, uma agiria de maneira ativa, a dominante, e a outra passiva, apenas reproduzindo a anterior, num processo de morte lenta. O encobrimento das classes populares e dos grupos na subalternidade, alimentado pela invenção constante do outro, e reforçado pelo discurso pretensamente neutro da técnociência que despolitiza as questões sociais mais complexas, movimento também intrínseco ao ethos científico clássico, provoca um “esquecimento” da própria história, obliteração das memórias locais por meio da qual nos reproduzimos no discurso eurocêntrico, como único possível. [A erosão do saber dos que sabem e a emergência do saber dos outros] No contexto globalitário (SANTOS, 2004), que compreende desde a subordinação dos Estados à lógica globalizada do capital até a circulação das ideias e das mercadorias – incluídos aqui os bens culturais sob o discurso de um multiculturalismo homogeneizante–, surgem novos atores sociais, lutas sociais de longa tradição local que se reinventam em seus 68
discursos e nas relações estabelecidas entre seus fazeres e os projetos globais em que se encontram imbuídos. Da sua práxis, das racionalidades que emergem do subsolo político (TAPIA, 2009) se desprende uma outra Razão, ainda incipiente, que vem se consolidando na sua produção do espaço local (SANTOS, 2004, TORRES, 2005). O caráter fronteiriço dessas práticas – definidas na sua complexa relação entre a hegemonia e a contra-hegemonia política, social e cultural, mas que vão mais além atravessando a própria lógica da racionalidade do sistema-mundo moderno/colonial –, bem como do pensamento social que intrinsecamente carregam, recoloca não só projetos locais de luta pela universalização/garantia de direitos e pelo reconhecimento de determinadas formas de expressão cultural, isto é, não apenas a necessidade do reconhecimento da diversidade cultural, mas vem recolocando o debate sobre as matrizes de uma racionalidade não eurocêntrica. Para Sotolongo e Delgado (op. Cit.), que refletem sobre o campo da filosofia da ciência, quatro linhas de ruptura permitem constatar a existência de uma mudança na direção de um saber de novo tipo: a) a formulação de problemas de novo tipo nos limites do conhecimento científico e na vida social; b) a aproximação mútua do conhecimento científico social e natural nos novos questionamentos teóricos sobre os limites da ciência ocidental; c) a recolocação do objeto da ciência como assunto metodológico e ético; e d) as soluções teóricas inovadoras da Bioética Global, o Holismo Ambientalista, a Nova Epistemologia e o enfoque ‘da Complexidade’. (Pág. 31 e 32), A este último podemos agregar, f) o deslocamento epistemológico do projeto descolonial, a perspectiva da libertação latinoamericana e as epistemologias do Sul (SOUSA SANTOS, 2000). O chamado Projeto Descolonial, ou também Grupo ou Rede descolonial, cujos mais destacados expoentes são o professor de Estudos literários Walter Mignolo, o sociólogo Anibal Quijano e o filósofo Enrique Dussel, e que inclui também importantes nomes como Ramon Grosfoguel, Edgardo Lander, Luis Tapia, Nelson Maldonado Torres, Santiago CastroGomez e Catherine Walsh, entre outros, representa um esforço de articulação intelectual 69
interdisciplinar consideravelmente novo no campo acadêmico, cujas principais referências datam das últimas três décadas do século XX. A respeito desta corrente é importante salientar que o projeto epistêmico descolonial se diferencia, na sua genealogia, dos estudos pós-coloniais.
Enquanto estes decorrem
diretamente do pós-estruturalismo francês, no epicentro do pensamento europeu, a genealogia do pensamento descolonial está entrelaçada à práxis descolonial que vem ocorrendo desde o primeiro contato com os colonizadores europeus. A descolonialidade é, em outras palavras, a descolonização epistêmica do modo como percebemos a totalidade-mundo a partir do nosso lugar nele. A partir desse entendimento, e em decorrência de uma série de contribuições específicas em diversos campos do saber ocorridas a partir da segunda metade do século XX, como a teoria da dependência, a filosofia da libertação e a teoria do sistema-mundo moderno, o pensamento descolonial se reorganiza como projeto político epistêmico a partir de um texto inaugural de Anibal Quijano (1992; e QUIJANO & WALLERTEIN 1992) intitulado Colonialidad y Modernidad/Racionalidad66, onde o sociólogo peruano propõe a sua concepção da colonialidade do poder, como modo racializado da dominação no sistemamundo moderno/colonial67. Parte considerável dos estudos descoloniais tem tendido a desenvolver suas reflexões a partir de, ou com base na vivência de grupos ditos étnicos cuja identidade não-branca permanece com um alto grau de significação política, tendo incidência de modo mais ou menos explícito nas práticas sociais e nas dinâmicas e mecanismos de coesão social do próprio grupo. Seja por um relativo isolamento com relação aos grandes centros da produção material e simbólica da modernidade eurocêntrica, em função das mais diversas estratégias de resistência, seja pela emergência e/ou retomada de processos emancipatórios coletivos desses povos face aos estados nacionais, seus modos de organização da vida parecem acarretar, com muito mais clareza e força, uma produção de conhecimento sustentada em uma racionalidade diferente e distante da matriz de legitimação da racionalidade científica moderna/colonial. Nesse sentido, a implícita desobediência epistêmica e o caráter explicitamente descolonial de experiências 66
No mesmo ano Quijano publica, junto a Wallerstein, Americanity as a Concept or the Americas in the Modern World System. Consolidando o conceito de Sistema-mundo moderno/colonial. Sobre colonialidade do poder é importante o artigo, também publicado no Journal of world-systems research, coordenado por Immanuel Wallerstein, em 2000, Colonialidad del Poder y Clasificación Social, que foi recentemente lançado em português como parte do livro “Epistemologias do Sul”, organizado por Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Meneses. Ver SOUSA SANTOS, 2000. 67 Tratarei com mais detenimento sobre este ponto ao longo do presente trabalho;
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como a dos povos Quéchua e Aimará, na Bolívia e experiências como a do Equador e do sul do México, adquirem uma força contingente em outros momentos inimaginável. Esta força (política e viva por direito conquistado) opera como uma força centrípeta dos estudos póscoloniais e descoloniais. Todavia, engana-se quem pensa que a perspectiva descolonial ou os estudos da colonialidade esgotam-se em sociedades mais explicita ou evidentemente multiculturais, onde a potência política dos povos originários tem se tornado atual (notadamente Bolívia e Equador, pelos processos políticos atuais, mas também o Peru e de certo modo a região andina e toda a costa do pacífico, pela sua configuração majoritariamente ameríndia, são entendidos no senso comum acadêmico como lugares onde as teorias da colonialidade “fariam algum sentido”, assim como regiões específicas onde o conflito dito “étnico” tem emergido assumindo contornos de atualidade política, como na região de Chiapas, no sul do México). Esta leitura seria, de fato, apenas possível pelo ocultamento da relação tensa em que se encontram, no cotidiano das classes populares, as mais diversas matrizes culturais e seus imaginários. Ocultamento que a colonialidade do saber provoca na nossa própria percepção daquilo que nos constitui como sociedades pós-coloniais e histórica, social e culturalmente interticulturais. Essa mesma leitura, que busca compreender os processos sociais a partir de estruturas de análises categoriais universais, desconhece que a atual constituição das sociedades na América Latina (e isto inclui inegavelmente os países da costa atlântica onde há uma aparente ausência da atualidade epistêmico/política desta interculturalidade) é o produto de um complexo processo no qual as identidades, os imaginários, as racionalidades e modos de estruturação societal têm sido, e são, obliterados pela hegemonia do discurso, das institucionalidades e da organização da produção da vida capitalista/moderna/eurocêntrica. A múltipla gama de formas cognitivas
deslegitimadas
pelo
discurso
científico
moderno/colonial, concomitante à organização da produção da riqueza na região, com base no extrativismo e posteriormente no desenvolvimentismo – também extrativista, não se constitui apenas pelo produto - reificado e/ou folclorizado - de culturas e civilizações seculares relegadas no processo de expansão dos mercados a partir do século XVI, que consolidaria a Europa como paradigma da modernidade mundo. Também não se reduzem unicamente à produção de conhecimento que emana dos movimentos sociais pela cidadania, da qual tanto tem se falado e cujo papel é preponderante na evolução do pensamento social na Nossa América. 71
De um modo diferente e geralmente inadvertido, elas emergem do cotidiano da experiência humana sob as mais diversas condições materiais e históricas, tanto nas fronteiras dos impérios, (MIGNOLO, 2000), como ‘dentro’ deles. É lá, na vivência na subalternidademundo dessa latino-americana periferia, que confluem as mais diversas trajetórias seculares, onde se reinventam e produzem sentidos-em-relação, no movimento de ir sendo, sob condições desiguais, mas em permanente e contínua relação direta com a totalidade-mundo. Assim, certamente as conclusões sociopolíticas que vierem se desprender da perspectiva do pensamento descolonial em regiões como a Bolívia dos quíchuas e aimarás, o Wallmapu do sul do Chile, o alto Xingu no Mato Grosso subamazônico ou na selva lancandona no leste de Chiapas, não serão as mesmas que as que se desprenderem de análises e reflexões nos grandes Centros urbanos da costa atlântica. Todavia, sem dúvida alguma, não serão menos pertinentes se o que nos interessa é compreender o movimento de significação das práticas e dos saberes ditos populares. Em uma perspectiva sócio-histórica, entende-se que todo pensamento sobre a realidade é produzido no contexto, e a partir, de uma determinada realidade espaço-temporal, de um determinado conjunto de relações de sentido que permitem a inteligibilidade e a coesão do tecido social para a manutenção de uma determinada forma de organização material das relações sociais de produção e reprodução da vida. Esse conjunto de relações constitui o que, em definitiva, costuma-se chamar de Sistema.
Todavia, não basta apenas descrever os
elementos estruturados e estruturantes do sistema, como vem fazendo a sociologia como um todo. Se o que de fato nos interessa é ir alem do que está posto, isto é, a compreensão desse sistema para sua transformação, essa concepção nos alerta também para a importância fundamental da particularidade e peculiaridade do modo em que é percebida essa determinada realidade espaço-temporal, logo, de como ela mobiliza ou contribui para mobilizar os sujeitos que a compõem e a leem, e assim, do modo em que esta se organiza e se transforma. Em outras palavras, o modo como os indivíduos (e os grupos de indivíduos) percebem, a cada momento e em cada lugar, a sua própria história, passa de ser um elemento complementar da definição de um determinado modo de organização social, a ser um elemento constitutivo e definidor de cada grupo ou classe social (THOMPSON, 1963). Esta compreensão recoloca a importância da cultura popular, notadamente no contexto das lutas sócias na nossa América, no exato sentido apontado por Dussel, quando, remetendo-se ao conceito de mais-valia cultural, afirma, 72
o povo produz símbolos; também a oligarquia pode se apropriar deles. Se um projeto revolucionário não é simbólico no nível concreto da crença do nosso povo, nunca poderá ser realmente revolucionário nem popular. A cultura popular, nascida desde a exterioridade do sistema é real, é nossa. Porém é ignorada, é negada e se considera como analfabeta; a sua simbologia não é compreendida.
A afirmação de Dussel em “La pedagógica Latinoamericana” (1980) aponta explicitamente para toda a simbólica popular na nossa América, desde a religiosidade popular e seu sincretismo inapropriável, até as produções estéticas de uma cultura de resistência e rebelde de larguíssima produção. Trata-se não apenas do trabalho vivo, do qual nos fala Marx nos seus Grundrisse, mas do trabalho vivo desde a exterioridade do sistema, produzido pelo nãoSer, o ser negado como tal pela razão científica moderna. E é dessa perspectiva que o filósofo latinoamericano afirma que “A cultura popular, longe de ser uma cultura menor, é o centro menos contaminado e o mais irradiador de resistência do oprimido contra o opressor. Não é por acaso que essa perspectiva se encontra também implícita no pensamento de Paulo Freire, cuja práxis foi, na época da sua Pedagogia do Oprimido, a fins da década de 1960, vista por muitos como uma contraposição ao marxismo, naquele então hegemonicamente marcado pelas leituras do estruturalismo soviético. Da perspectiva assinalada, podemos observar a emergência de saberes outros, produtos da experiência cotidiana, no sentido apontado por Thompson, mas também por Dussel. Sinais claros de estes saberes, que surgem e se reinventam em constante diálogo com os saberes hegemônicos e com as culturas subalternizadas com os quais se encontram em relação, mas não a eles limitados, podem ser percebidos no quefazer de professores e professoras nas escolas públicas dos grandes centros e do campo, tanto nas suas experiências cotidianas como nos seus processos de organização e de luta; na experiência dos jovens das favelas, subúrbios e periferias, mais autônoma justamente porque abandonada ou ignorada como tal pelas elites e pelo Estado; no cotidiano nas comunidades indígenas e quilombolas em interação com a lógica colonial/institucional da cidades; nos coletivos que buscam implantar práticas socioambientais numa perspectiva da diversidade biocultural; nas inúmeras experiências locais de economia popular solidária e nas experiências desterritorializadas de articulação de coletivos autogestionários para a produção cultural, ambos fenômenos desmonetarizando relações de mercado; na revolta decidida e criativa, embora confusa e de difícil compreensão por parte da teoria social moderna e contemporânea, dos indignados que têm lotados as ruas do Brasil e dos grandes centros urbanos mundo afora; mas também nas práticas vistas como 73
apenas de sobrevivência das crianças e jovens nas ruas dessas cidades e nas experiências da arte popular de rua, cujas condições impõem a seus artífices desafios de criatividade e compromisso totalmente diferentes aos que estão colocados para a reflexão estética abstrata, entre tantos outros exemplos. Isto é, surgem da complexidade da experiência humana no seu mais amplo sentido. É dessa experiência humana cotidiana na subalternidade que se alimentam – e, na concepção que proponho, devem se alimentar – os movimentos sociais que buscam a superação de determinadas condições sociais vivenciadas como injustas, bem como a transformação da sociedade num sentido mais amplo. O mesmo desafio está posto para a produção teórica que pretenda acompanhar essa prática. E é, em particular, nesse espaço de r-existência da juventude das classes populares dos grandes centros urbanos da nossa América que nos parece fundamental aprofundar a indagação, visando a construção de um projeto pedagógico descolonial cuja prática educativa se volte para, e se alimente justamente com/de esses mesmos jovens, frequentadores das escolas da rede pública. Para além do impacto provocado no seio do pensamento científico pelas diversas reações de homens e mulheres “leigos” perante as contradições que aparecem na vida cotidiana, produzidas, por sua vez, pelo agir da própria ciência sobre esta, emergem diversas formas de racionalidade ao interior desses movimentos, cujo alicerce é a vivência da subalternidade. Estas se diferenciam também das respostas surgidas ao interior do pensamento científico perante a crise anteriormente assinalada e com elas dialogam.
A inclusão desses
conhecimentos de maneira ampla seria, ao que me parece, uma das tarefas fundamentais no processo de abertura das ciências sociais. A enorme dificuldade ou mesmo a aparente impossibilidade de articular a diversidade de conceitos e práticas sob uma única égide conceitual/ideológica universal tem sido, comumente, argumento para desconsiderar completamente sua existência, pertinência e contribuição aos estudos sociais acadêmicos e político/institucionais. Todavia, partilhando da leitura de Dussel à concepção de Marx, exposta com maior clareza nos Grundrisse, percebe-se a importância da sua ênfase na exterioridade: (…) Marx, entretanto, propõe uma utopia desde a exterioridade do trabalho, o outro, afirmação metafísica que funda a possibilidade da negação da alienação na totalidade. Isto é, não é apenas (como pensa certo mecanicismo panteísta da Matéria infinita e eterna) desde o seio do capitalismo (e é interessante notar que o “etapismo” staliniano se
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funda num “mecanicismo” necessitante) que surgirá o socialismo, por passagem da potência ao ato. Não. A nova sociedade surgirá desde as experiências, desde os momentos, desde a cultura do “pleno nada”, desde o “não-ser”, desde o trabalho improdutivo, desde o trabalho vivo e dos “pobres”, desde a afirmação da exterioridade, e por orgânica conjugação com a negação da negação do capital.68 [grifos meus].
[Recuperação e emergência do saber dos nadies] (…) Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos: Que no son, aunque sean. Que no hablan idiomas, sino dialectos. Que no profesan religiones, sino supersticiones. Que no hacen arte, sino artesanía. Que no practican cultura, sino folklore. Que no son seres humanos, sino recursos humanos. Que no tienen cara, sino brazos. Que no tienen nombre, sino número. Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local. Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.69
O surgimento da modernidade e suas categorias de conhecimento e relações de poder, atrelado ao processo de consolidação do sistema-mundo moderno/colonial, torna a categoria de raça central no modo da dominação na modernidade. Essa racialização do padrão de poder moderno compele os grupos sociais na diferença colonial a se definirem pela sua relação ao imaginário da metrópole. Nesse contexto, e em um consciente movimento descolonial, cabe se questionar, quem deve então estudar o saber dos nadies? Onde, se na História ou não apareceram ou aparecem como os perdedores, geralmente extintos ou estéreis de saber atual? Por que há uma ciência moderna especializada no estudo das pessoas de cor, ditos índios, negros, mongóis, indianos, enquanto a história oficial estuda os “grandes” acontecimentos da “História”?
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No original em español, (tradução própria) “Marx, en cambio, propone una utopía desde la exterioridad del trabajo, el otro, afirmación metafísica que funda la posibilidad de la negación de la alienación en la totalidad. Es decir, no es meramente (como lo piensa un cierto mecanicismo panteísta de la Materia infinita y eterna) que desde el seno del capitalismo (y es interesante anotar que el “etapismo” estaliniano se funda en un “mecanicismo” necesitante) surgirá el socialismo, por pasaje de la potencia al acto. No. La nueva sociedad surgirá desde las experiencias, desde los momentos, desde la cultura de la “plena nada”, desde el “no-ser”, desde el trabajo improductivo, desde el trabajo vivo y los “pobres”, desde la afirmación de la exterioridad, y por orgánica conjugación con la negación de la negación del capital. DUSSEL (1985). 69 GALEANO, 1991.
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Entendo a pertinência de se questionar pela historicidade dos povos e grupos na subalternidade latino-americana, pela aura contida nas suas formas de expressão e no pensamento social que lhe é próprio. Sem nenhuma intenção de negar a importância do pensamento de raiz eurocêntrica, é fundamental voltar-se para a história do fazer e do pensar da nossa América, para assim retomar o debate sobre sua existência e sobre a pertinência do seu estudo para a prática social atual. Trata-se de compreender como grupos e classes sociais na subalternidade, culturas, países e regiões, afinal, as diversas coletividades humanas, a partir da percepção de uma memória comum, constroem imaginários específicos, novas, ou melhor, outras histórias. Para entender como se dá o processo de reprodução da subalertnização de saberes na nossa sociedade há de se entender como se configurou o imaginário dos povos na América Latina, marcado pela diferença colonial. Existe um único imaginário na região? Uso “imaginário” como “a construção simbólica mediante a qual uma comunidade (racial, nacional, imperial, sexual, etc.) define a si própria”, sentido proposto pelo martinicano Édouard Glissant (2005) e trabalhado por Mignolo (2000). No seu estudo sobre a conformação do imaginário do circuito do Atlântico, o qual chegaria após diversas reconversões a constituir a base da imagem atual da civilização ocidental, Mignolo aponta que esse imaginário não é apenas constituído no e pelo discurso colonial, mas “pelas respostas (e a falta delas) das comunidades (impérios, religiões, civilizações) que o imaginário ocidental envolveu em sua própria autodescrição”.70 O processo de construção do imaginário dos povos das “colônias” na sua entrada na modernidade não esteve dissociado desse processo de construção do imaginário do discurso colonial. O ponto de intercessão é dado pela diferença colonial, que gera o que Du Bois (1999) identificou como dupla consciência, que nos obriga a nos reconhecer pelo discurso do colonizador. Seria esta uma característica do imaginário do mundo moderno/colonial. Assim, o crioulo, descendente do europeu que ocupa o lugar da elite ilustrada nas colônias, vê-se impelido a se definir na sua relação com a cultura da metrópole. É ocidental, mas é latinoamericano. Ao se negar na história do sistema-mundo moderno/colonial a sua característica de colonialidade, o imaginário na periferia do sistema, de quem vivencia a diferença colonial, é duplo porque subalterno. Esta mesma relação é reproduzida naquilo que denominamos de colonialismo interno, que obriga o negro a se reconhecer, por exemplo, brasileiro e ocidental, mas cuja consciência não é, em absoluto, contemplada apenas por esse imaginário.
70
MIGNOLO, in LANDER Op. cit. pag. 72.
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Definido desde a chegada dos europeus, por um movimento de resistência e r-existência, o pensamento social da Nossa América tem feito, no seu contínuo movimento descolonial em busca da libertação, aportes importantes que vêm rompendo com a dicotomia entre teóricos e práticos ou entre acadêmicos e ativistas. Essas contribuições vêm do cotidiano das lutas pela democratização, pela universalização de direitos e pelos processos de formação dos mais diversos movimentos sociais e vêm contestando, nas mais diversas disciplinas a matriz da racionalidade científica moderno/colonial. É importante frisar que, no caso específico do pensamento social latino-americano, essas contribuições teórico-metodológicas têm surgido, na sua quase totalidade, sob o signo de lutas contra a dominação do capital e de um claro e histórico caráter anti-imperialista, surgidas como uma necessidade para os grupos subalternos perante o desafio de dar organicidade e sustentabilidade a suas lutas. Dentre elas, encontramos contribuições específicas como, a) a Educação Popular e as Pedagogias Críticas, com suas diversas experiências e desdobramentos teóricos e práticos em diversos campos e correntes da educação; b) a Teologia da Libertação, que conseguiu unir na práxis as bases do pensamento marxista e da ética cristã num momento histórico no qual tudo indicava a impossibilidade de tal façanha; c) uma corrente de pensamento marxista peculiarmente latino-americano, cujo referencial fundador o encontramos em José Carlos Mariátegui, que articula aspectos sociais e culturais para se contrapor ao determinismo economicista, propondo a ideia de um socialismo indoamericano; d) a Filosofia da Libertação latino-americana, que desvenda o lado obscuro da ética e da moral das luzes, encontrando no povo oprimido o contraponto do ideal da modernidade eurocêntrica; e) a Economia Popular Solidária ou de Solidariedade que, independente das suas conceituações, constitui hoje um amplo fenômeno inegável em todo o continente graças, em boa medida, ao conhecimento produzido a partir dessas práticas – no qual destacam as produções de Luis Razeto Migliaro71 e Paul Singer, entre muitos outros – e à sua articulação em redes autogestionárias de economia popular, incluindo micro circuitos de troca e bancos 71
Parte importante da basta obra de Razeto Migliaro se encontra referenciada em http://www.luisrazeto.net/category/contenido/teor%C3%ADa-econ%C3%B3mica-comprensivaeconom%C3%ADa-solidaria-desarrollo-sustentable/libros
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populares com moeda local solidária (como, por exemplo, o Banco popular de Palmas, que serviu de modelo a experiências deste tipo em todo o Brasil). f) a Teoria da dependência que, se contrapondo à visão etapista do desenvolvimento econômico, propôs uma relação entre países centrais e periféricos com parte estruturada do capitalismo mundial, colocando as bases para a teoria do sistema-mundo moderno colonial. g) a Pesquisa-Ação Participante, do colombiano Fals Borda, que rompe na prática a separação entre sujeito e objeto do conhecimento, posta pela racionalidade científica clássica ou moderno/colonial; h) o Planejamento Estratégico Situacional (PES) cuja referência é o economista chileno Carlos Matus e introduz no campo do planejamento e da gestão os elementos da democracia participativa; i) a Comunicação Popular, de amplo espectro no continente, tem no trabalho do argentino Kaplún, uma referência, e articula educação popular e comunicação a partir da imagética das classes populares, redefinindo os lugares de produtor e consumidor de informações e conteúdos; j) a Sistematização de Experiências, como instrumento de produção de conhecimento a partir da experiência de grupos na subalternidade, com desdobramentos para o fortalecimento de organizações populares. Tem no trabalho de Oscar Jara e Cendales suas referências. k) Por último a já referenciada Colonialidade do Poder e do Saber, teoria sociológica desde a nossa América que denuncia a geopolítica do conhecimento e dá conta da racialização do padrão de dominação no Sistema-mundo moderno/colonial, como veremos no capitulo a seguir. É claro que em outros níveis de abrangência encontramos toda uma constelação de contribuições para além das aqui assinaladas, mas são estas, sem dúvida, as que, nas últimas décadas do passado século e no inicio do novo, mais amplamente têm se consolidado como contribuições para a ação e a reflexão de ativistas e indagadores sociais. O fértil campo da cultura na nossa América seja talvez o que mais tem produzido contribuições à cultura ocidental, na contramão, no movimento de destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza (SANTIAGO, 1978), postos como base do discurso 78
filosófico da cultura do Centro. Na medida em que a produção cultural vai contaminando a cultura ocidental, unidade e pureza vão perdendo gradativamente sua potência de superioridade cultural. Este trabalho contínuo de transmutação e desvio da norma feita e imutável, exportada pelo imperialismo cultural eurocêntrico, foi sempre condição de poder falar na nossa América, pois em um contexto em que a norma é o código semiótico do Centro, o esperado é a repetição ou o silêncio. Assim, como aponta Santiago, “falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” (pág. 15). Isto explica, na minha leitura, em parte, a empatia da produção estética latino-americana com o movimento, múltiplo e diverso, da sua libertação, empatia esta que, se bem não é unanimidade, permeia com certeza de modo hegemônico o imaginário dessa produção. Sendo o foco deste capitulo a questão do pensamento social não me alongarei nesta questão, que pretendo abordar mais adiante. Todavia, antes de retomar a questão sobre os elementos de uma possível racionalidade construída no movimento descolonial do pensamento social da nossa América, cabe apontar algumas das produções que no campo da cultura têm surgido, seja como propostas estéticas de uma outra modernidade, desde a exterioridade, seja como articulações desde o campo da cultura para a libertação. Dentre elas, podemos citar, - A literatura latino-americana - com certo destaque para o chamado Boom latino-americano, mas não apenas - que marca por si só esse entrelugar (Santiago, 1978) de uma cultura que inegavelmente é, embora não seja pura e unitária, nem da tradição ocidental eurocêntrica nem apenas da sua tradição indígena ou afro. - O movimento das artes plásticas com destaque para o movimento muralista latinoamericano e que significaram a primeira grande escola estética de Nossa América, mas também das que lhe seguiram. - O Grafitti que, de um modo diferente e, em aparência, desvinculado do muralismo, vai, na nossa América, muito além da simples reprodução da estética do rap e da street-art dos subúrbios norte-americanos, e está recolocando a cena estética, intervindo o espaço público e ganhando espaços de legitimação; - Os movimentos de música popular da segunda metade do século XX, que tiveram no Chile, Cuba, México, Nicarágua e Brasil seus epicentros de resignificação da cultura popular desde
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uma perspectiva não folclorizante e de atualização estético-política, como a Nueva Canción Chilena, a Nueva Trova Cubana, a Tropicália, etc.; - O movimento de Teatro do Oprimido, como exemplo paradigmático de um amplo movimento de teatro de rua e teatro popular. - O Circo Social que, já na década de 1990, articula as técnicas, a arte e o imaginário circense como plataforma de diálogos pedagógicos para a cidadania.72 - Os Pontos de Cultura Viva comunitária, uma iniciativa que se origina no Brasil, com a política de implantação de Pontos de Cultura no programa Cultura Viva, durante a gestão de ministro Gilberto Gil, mas que alcança desdobramentos inesperados - e independentes da própria política pública inicial, assim como o próprio movimento da rede brasileira de ponteiros - em todo o continente, cuja capilaridade mobiliza e articula as mais diversas expressões da arte popular da nossa América.73 - Toda a originalidade e criatividade dos movimentos sociais da Nossa América, como o MST, o MAB, os de Quilombos, Griots, Povos originários em geral e o Congresso de todas as Terras em particular, etc. que com a sua força não apenas continuam a produzir esteticamente, como alimentam simbolicamente boa parte do fazer criativo antes assinalado. Os processos inerentes às produções assinaladas acham sua unicidade e historicidade, isto é, sua aura na práxis social da Nossa América, mas não ocorrem sob um signo determinado, nem crescem à sombra de qualquer bandeira flamejante de clara e definida orientação ideológica, embora sua clara orientação para a libertação. Do mesmo modo tampouco se dão em espaços pré-determinados de estruturas de participação social. De um modo diferente e em aparência aleatória, vêm ocorrendo em movimentos sociais os mais diversos, de grande abrangência ou de territorialidade estreita e definida, em grupos sem territorialidade específica, como jovens migrantes nos grandes centros urbanos ou pequenas cooperativas de camponeses, com moradores de rua ou grupos de mulheres, em grupos autônomos de
72 73
Ver BARRIA, 2007. O impacto deste recente movimento, além das fronteiras do Brasil, pode-se constatar na abrangência da mobilização suscitada pelo I Congresso latino-americano Cultura Viva comunitária, realizado em maio de 2013, em La Paz, na Bolívia. O evento reuniu mais de 600 representantes de todos os países do continente, participantes de redes de organizações de Cultura Viva Comunitária - Pontos de Cultura, Centros Culturais, Bibliotecas Populares, Grupos de Teatro Comunitário, Coletivos de arte de rua, Muralismo, Grafitti, Circo Social, Música, Dança, Cultura Digital, Software Livre, Hip-Hop, Rádios e Canais de Tvs Comunitárias, Escolas populares de Arte e transformação Social, etc. .
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homossexuais, mas também em experiências municipais de projetos de governo com participação popular, em projetos desenvolvidos por organizações não governamentais, e mais. Em definitiva, eles ocorrem ali onde brotarem quaisquer tipos de organizações que possibilitem, de qualquer maneira, a reflexão sobre o fazer dos grupos na subalternidade. Seja esta talvez a sua única condição prévia para dali brotar o conhecimento. Têm de comparecer, na vivência, os nadies. Entretanto, eles ocorrem num mesmo espaço/tempo determinado: aquele que venho chamando, não por acaso, de Nossa América, e dos processos de resistência cultural, política, econômica e social que vêm se dando nela desde que o colonizador a nomeou pela primeira vez. Pensar nessas contribuições como produto de um mesmo e largo processo sócio-histórico de lutas em um contexto geopolítico determinado, significa, em tese, que podemos procurar nelas antecedentes que apontem no sentido de uma confluência metodológica e/ou epistemológica. Isto é, se falamos de contribuições do pensamento social latino-americano quer dizer que nelas podemos encontrar ao menos alguns dos elementos que constituem este pensamento e definir se existe nele, ou não, uma matriz metodológica ou epistemológica. Acompanhando esse caminho poderia se abrir caminho para ulteriores indagações sobre uma racionalidade latino-americana. Uma primeira questão que salta à luz ao pensarmos nesta perspectiva é o fato destas contribuições serem construtos orgânicos que se elaboram a partir de saberes extraídos do cotidiano das lutas e movimentos sociais, ou bem apontam nesse sentido. Isto é, têm, metodologicamente, um cuidado com a preservação dos saberes comumente negados pelo observador ou pelo educador/professor/instrutor. Já neste ponto se diferenciam, todas elas, da matriz do pensamento clássico. Dessa tentativa de superação da (a) separação entre sujeito cognoscitivo e objeto cognoscível, identificada como primeiro elemento constitutivo dessas diversas expressões do pensamento social latino-americano, se desprendem diversos elementos que apontam para a gênese das mudanças epistemológicas implícitas nessas formas do pensamento social, num sentido oposto ao ideal clássico. Esse cuidado metodológico com os saberes populares surge como uma necessidade imposta pela premissa ético-política da mudança. Isto é, a necessidade vivenciada e/ou aceita da superação das condições materiais de opressão impõe a necessidade de uma metodologia, um caminho a seguir, logo, um tipo de pensamento científico determinado, o que coloca a questão do (b) papel da utopia e do fazer como base epistemológica. Isto está na centralidade da pedagogia da autonomia de Paulo 81
Freire e sua crítica ferrenha ao “ensino bancário” que nega o outro, ou nas dinâmicas participativas do PES e nas metodologias que busca a pesquisa/ação. E é a isso que se refere o educador peruano Oscar Jará ao dizer que a Educação Popular, mais do que uma metodologia específica constitui um fenômeno político inegável em todo o continente. Mas ao negar o objeto a ser pesquisado ou formado ou organizado ‘de fora’, ao assumir a construção do conhecimento como um diálogo entre sujeitos do conhecimento e ao fazê-lo a partir do imperativo de mudança antes assinalado, coloca-se em questão uma ideia vital para o pensamento social clássico: (c) a [negação da] ideia da razão e do método como princípio universal, anterior ao objeto a ser conhecido. Vale lembrar que esta é uma das bases do axioma de legitimação do saber científico moderno. Um quarto e fundamental elemento, que podemos identificar como decorrência dessa práxis, se relaciona à (d) negação da compreensão do cotidiano como elemento receptor passivo, incapaz de produzir conhecimento. Esta ideia tinha sua origem, por sua vez, na concepção científica moderna, na delimitação da produção de conhecimento como uma atividade específica e rigorosa, alheia à vida cotidiana e seus critérios, podendo mesmo se opor a estes. Proponho, assim, a existência de ao menos dois elementos centrais constitutivos da práxis do pensamento social da Nossa América cuja contribuição aparece como de fundamental importância para o processo de produção de conhecimento no sentido de abrir as ciências sociais. Um deles mais invisível, no entanto o mais real de todos. O outro, talvez intangível, um espectro, porém o mais combatido no campo das ciências:
O saber dos sujeitos na subalternidade e
O caráter eminentemente atual e político da utopia (do desejo coletivo de uma vida melhor para todos e todas e da viabilidade de uma mudança nesse sentido) como base epistemológica de conhecimento e transformação.
No processo de legitimação e institucionalização desse conjunto de saberes mais ou menos sistematizado, e sobre os quais tem se escrito não pouca teoria, via de regra os debates que os questionam ou defendem enquanto saberes legítimos os apresentam como o produto de pensadores, intelectuais ou cientistas, aos quais se questiona ora sua ideologização ora sua virtude de pensar a sorte dos pobres da terra. Entretanto, esquece-se que todos e cada um desses saberes, ou na sua grande maioria, surgiram, como disse Oscar Jara, “de, para, por e com os que viveram a experiência”. É a partir dessa construção “de, para, por e com” que Paulo Freire descobre o caráter ontológico do diálogo. Para ele, o diálogo não deve ser 82
entendido como uma questão metodológica nem didática, mas compreendida na sua real dimensão ontológica, isto é, constitutiva do ser humano. É nesse sentido que pode se dizer que vivemos um estado de exceção onde o diálogo contínuo é rompido pela separação entre objeto e sujeito, que tem se constituído no modo em que percebemos o mundo e cuja característica essencial é a colonialidade. Esta ruptura é, por sua vez, a forma que assume a ruptura do fazer social, do contínuo processo de produção da vida pelo ser humano. Até aqui apontamos como exemplo algumas contribuições do pensamento social da Nossa América a um pensamento social de novo tipo, no que possam significar uma abertura das ciências sociais. Levantamos alguns elementos, como construções axiomáticas que rompem, por sua vez, com o axioma de legitimação do saber científico moderno, como forma única de apreender a realidade. Arriscamos apontar aqueles elementos como base de uma racionalidade que seria base do pensamento social da Nossa América. Este simples exercício de reflexão pode ser visto como parte de um esforço coletivo de compreensão da nossa própria racionalidade, no que ela comporta, no próprio movimento contraditório de se pensar a partir da negação de se ser/estar na sociedade do capital, de razão prática da libertação, isto é, como parte do projeto descolonial, movimento de reafirmação histórica da vida na subalternidade, à luz da diferença colonial, ou melhor, à contraluz da modernidade-mundo/colonial e sua onisciente e universal perspectiva da verdade.
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Colonialidade do poder como violência simbólica: racismo e mérito no ensino
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[e a história da gente, quando?] “(...)a gente estava dando essas coisas das guerras do Napoleão, da invasão acho que lá na Espanha e um monte de coisas dessas. Ai eu pedi a palavra (que na escola é assim né, não que nem aqui na roda), pedi a palavra e falei com o professor: - professor, sabe? Eu acho super legal o senhor nos contar essas histórias todas lá da Europa, das guerras, dos impérios, das batalhas e tal, serio mesmo, mas... e da história da gente? Quando vamos aprender sobre a história da gente?. ...foi um colega que devolveu a pergunta dizendo, - mas como assim, a historia da gente? - uê, assim, (disse ele), teu avô era Francês? Porque o meu não, nem português tenho, eu acho, ...algum dos teus avôs lutou nessas guerras, montou naqueles cavalos e tal? Você tem algum conhecido que seja descendente de príncipes e tudo mais? Porque eu não conheço ninguém... então é assim, mas tranquilo, pô - e se virando na direção do professor disse - eu só queria saber se vai ter algum momento em que, aqui na escola, vão falar da gente... se não, tudo bem, tá tranquilo mesmo, mas o senhor poderia nos dizer por quê?”74
O relato é do Cazé, um jovem cuja trajetória o levara a reencontrar a escola com certo olhar de estranhamento, após uma longa vivência nas ruas. Ele conta ainda que na sua turma de eram todos e todas negros e negras, inclusive o professor, mas ele era o único artista - Cazé é circense e educador em Circo Social na ONG Se Essa Rua Fosse Minha75, e o único com vivência como “menino de rua”. O professor teria respondido, “eu também não concordo
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Depoimento extraído de uma conversa pessoal com um jovem do Circo Social, a inícios de 2008, na sede da ONG Se Essa Rua Fosse Minha. Não gravado. Utilizo um nome de fantasia. 75 Se Essa Rua Fosse Minha é uma Organização Não Governamental que trabalha com crianças, adolescentes e jovens de classes populares. Ainda menino, Cazé participou do trabalho da ONG nas ruas de Copacabana, mediado pela equipe de abordagem de rua, hoje Núcleo de Educação Popular a Partir da Rua – NEPaR. A organização, à época, iniciava uma experiência pedagógica de educação popular tendo no Circo sua principal ponte de diálogo pedagógico com os meninos e meninas que lá estavam. O Circo Social deveio posteriormente a se tornar uma concepção metodológica de trabalho utilizada e debatida nos cinco continentes. Nesta organização desempenhei diversos papeis como arte-educador e ativista pelos direitos humanos entre 2000 e 2012, e tem sido lócus de muitos aprendizados. Sobre o trabalho de Circo Social, ver: BARRIA MANCILLA, 2007. Ver também http://www.seessarua.org.br
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com isso, sabe? mas eu tenho que fazer o meu trabalho, não sou eu que define os conteúdos curriculares”. É claro que a situação relatada é apenas um caso particular, uma anedota, a partir da qual não poderíamos fazer uma leitura generalizante que lançasse apenas uma ‘única história’ sobre a realidade dos cursos de EJA, cegando assim a nossa reflexão sobre inúmeras experiências de educadores e educadoras que, organizados em movimentos sociais ou mesmo dentro da Rede pública de ensino, vêm desenvolvendo com coragem e ousadia, um importante trabalho de ensinoaprendizagem a contrapelo da história oficial e seu currículo. Entretanto, e ao mesmo tempo, a situação nos lembra que a forma Escola carrega em si a sua crise de sentido, crise que, sublimada nas sociedades industriais do ocidente pelos instrumentos de distinção de que nos falam Bourdieu e Passeron (1975), reaparece ao ver-se defrontada na perspectiva da diferença colonial. Em outras palavras, colocado que a crise de uma determinada forma social, como a Escola (ou a concepção de ensino escolarizado moderno), está ligada a crises maiores ou de outras formas/modos/estruturas sociais às quais é correlata, e entendendo assim que a crise da escola representaria parte da crise do modelo de sociedade democrática ocidental/moderna/colonial, como este se apresenta hoje, podemos nos questionar pelos processos estruturais que vêm originando dita crise. Em tempo, cabe nos perguntarmos pelo lugar de outras formas de produção e transmissão de conhecimento oriundas de epistemologias subalternizadas no processo de consolidação do ideal moderno de saber. Na década de 1960, no seu livro A pedagogia do oprimido, Freire (2005) já alertava sobre a perspectiva de uma geopolítica do conhecimento ao dizer que “a cabeça pensa onde os pés fincam”. Entretanto, assumir os dizeres de Paulo Freire para além da ordem da retórica, mas da epistêmica e da produção/transmissão do conhecimento implica em assumir uma leitura que coloca o acento no movimento, no processo contínuo de produção da vida em sociedade, ou como diria o J. Holloway (2003), no fluxo social do fazer, que é objetivação e subjetivação indissociáveis. E isto inclui o pensar e toda produção simbólica e/ou material, que é o modo como transformamos, como seres humanos, o nosso estar no mundo e, deste modo, o próprio mundo. O que importa deste debate, para a questão que aqui trago, é que a valorização dos saberes dos educandos no contexto da educação nas classes populares não passa, de maneira alguma, por uma questão paternalista ou menos ainda, populista, como alguns grupos pretendem denunciar em Freire (LOVISOLO, 1990). 86
Trata-se, sim, de uma teoria do conhecimento cuja base epistemológica nega radicalmente a concepção do conhecimento implícita na matriz de legitimação do saber científico moderno/colonial. E o faz justamente porque inclui de modo radical a geolocalização da sua produção, bem como a materialidade dos processos históricos de libertação [A razão e o lugar; o ser e o outro, mediatizado pelo mundo]. Isto é, inclui a questão da diferença colonial como lócus de enunciação do mundo e como parte central do processo de (trans)formação dos sujeitos. Pelo mesmo, o pensamento de Paulo Freire se insere, porque fincado no chão da Nossa América e mais especificamente, no cotidiano da luta dos trabalhadores da cidade e do campo, no conjunto de saberes produzido à contraluz da moderno-colonialidade, ou se preferirmos, à luz da diferença colonial. Caminha na contramão da geopolítica da razão hegemônica. A leitura crítica de Cazé sobre o papel da escola, que demonstra o seu sentido de pertença com a história a partir da busca da própria memória, num movimento franco e autenticamente descolonial, me instigou a refletir não apenas sobre os conteúdos programáticos, mas sobre a possibilidade de se continuar pensando a partir do padrão do pensamento ocidental, cuja história única e linear alimenta ainda hoje o mito da única história “do homem”, e sobre a questão da “inclusão”. Walter Mignolo (2003) nos inquire ao afirmar, Não é mais possível, ou, pelo menos, tornou-se problemático, pensar a partir do cânone da filosofia ocidental, mesmo quando parte desse cânone é crítico da modernidade. Fazê-lo seria reproduzir uma cegueira epistêmica etnocêntrica que complica, se não torna impossível, qualquer filosofia política de inclusão.
Nesta questão, e com a ajuda das novas tecnologias e plataformas colaborativas para ir pensando junto, o meu amigo Sandro Felix, contribui com esta reflexão parafraseando Mignolo e agregando que, ‘complica, se não torna impossível, qualquer filosofia política que, ao contrário da tradicionalmente conhecida, não estabeleça, defina e conserve os lugares que deseja reservar aos diferentes grupos’. Em sua opinião, então, nem se trata de incluir ou excluir, mas sim de prescrever ou não, pois, sob o estatuto desse cânone, cada qual estaria corretamente em seu devido lugar, sem exclusões. O debate me instiga mais no diálogo do que na divagação. As palavras de ambos me levam a pensar que, se bem a própria ideia de inclusão, no contexto filosófico do ocidente - aplicado indiscriminadamente a noções de políticas públicas ou mesmo de reforma do Estado - é uma tautologia tão ocidental e colonial quanto universalizante, por outro lado as concepções de lugar e pertencimento não estão definidas apenas pela sua condição local, mas por um estatuto definido justamente pelo 87
(violento) processo de universalização dessa racionalidade (ao mesmo tempo falsa e objetivamente universalizante – efeito ideológico) em que se constitui a modernidade. Ou seja, trata-se de considerar o processo tópico de expansão do capital e das suas lógicas intrínsecas. Isso tudo coloca uma polissemia de sentidos que devolvem ao mundo moderno sua condição de Babel que tanto incomoda os defensores do discurso único. Em uma perspectiva histórica e epistêmica que olha a partir do Sul (giro epistêmico), a questão é a da diferença colonial, e não a existência, apenas, da diversidade ou do multiculturalismo abstrato e globalizado - tão caro às leituras do estruturalismo antropológico, que resolve assim sua velha busca de invariantes universais, assim como ao pós-estruturalismo francês, que ao fragmentar o sistema-mundo moderno desconhece absolutamente a historicidade da condição geopolítica da sua colonialidade. No horizonte descolonial, há uma interculturalidade crítica, tensa e tensionada, que se afirma e se nega no movimento de ressignificação permanente da nossa lógica, da nossa poética, da nossa histórica, nos nossos modos de organização e produção da vida e da nossa estética, com arranjo à própria colonialidade do nosso estar no mundo (o local e o Global moram promiscuamente na nossa cidade, no nosso bairro e na nossa psique). E no dizer de Édouard Glissant, “no panorama atual do mundo, a questão capital é saber-se como ser um eu mesmo sem sufocar o outro, e como abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo.” (GLISSANT, 2005). No meio desse debate, que é mais candente e atual nas salas de aula, nos corredores da faculdade e nas redes sociais na internet do que poderíamos supor a partir da parcimônia dos seminários e congressos acadêmicos, percebo que a afirmação ou reconhecimento dessa multiplicidade de histórias e de epistemes que constituem esse nosso sistema-mundo moderno/colonial, e em especial a nossa América morena, mestiça e heteronímica, não implica em uma defesa radical de um ‘relativismo antropológico’ [como gostam de nos acusar os adeptos da razão e da verdade]. Implica, sim, um deslocamento epistêmico a partir do qual não concebe mais sequer uma unicidade teleológica do discurso universal (por tanto não pode conceber o relativismo), negando assim o discurso único da modernidade eurocêntrica e universalizante, ao propor um discurso pluriversal da experiência humana. Um dos desafios, entretanto, é o de vencer a invisibilidade.
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[“todo mundo como se fosse branco” - O real aparente e a aparência natural da dominação: Violência simbólica e perspectiva descolonial] “cada lugar é, a seu modo, o mundo” Milton Santos
Certa ocasião, debatendo sobre cotas raciais, racismo e as maneiras em que ele aparece na Escola, uma professora disse assim, “na minha sala de aula não tem essa de racismo não, eu faço questão de tratar todo mundo como se fosse branco”. Costumava citar este “causo” para instigar o debate nas aulas de sociologia da educação, na Faculdade de Formação de Professores e em diversos colóquios e seminários. Ao ouvi-la, invariavelmente, as pessoas têm rido. Às vezes com aquele riso incômodo de quem intui, no paradoxo exposto, uma fissura que corrompe aquilo que entendemos por real, para além do que estaríamos dispostos a aceitar sem nos alterar, no sentido etimológico de deslocamento e mudança. Mas é justamente o escancaro desse paradoxo naturalizado que consegue engatilhar uma sequência de questionamentos que, parece-me, vêm se tornando cada vez mais urgentes e pertinentes para pensarmos a nossa Escola e a formação dos nossos professores. A partir de que lugar pensa o mundo o professor formado nas nossas universidades? Aquilo que chamamos ‘Ciência’ é, com efeito, e como se pretende, uma produção universal do conhecimento? Consegue o modelo clássico de legitimação do ideal de saber científico realizar a façanha de tornar o conhecimento a-tópico e a-temporal? Isto é, a nossa ciência e a nossa história, são mesmo nossas? Ou, estando aprisionados na caverna de Platão, vivemos fadados a nos ver pelo discurso de uma única história sobre nós, descrita por alguém, fora daqui e antes mesmo da nossa leitura? Dentre tantas, uma pergunta me calou e tem costumado calar o riso de alunos e alunas, em meio às nossas conversas sobre colonialidade: não é, por acaso, isso mesmo - “tratar todo mundo como se fosse branco” - o que fizeram com todos e cada um de nós e que continua a ser feito? E ainda o que nós mesmos continuaremos a fazer caso não acharmos o modo de alterar nossa práxis? Muito para além da proibição, em quase toda nossa América, do uso das línguas não coloniais - assim foi no Chile, na Argentina, como no Peru e no Brasil, como na maioria dos outros - não fomos, acaso, acalentados com contos de fada europeus? Qual a mitologia que sustenta os nossos ensinamentos mais profundos, senão a helênica? Alias, não é esta a única conhecida pela imensa maioria de nós?76 Essa ausência de referenciais míticos 76
Atrevo-me a dizer, sem ter os dados consolidados com rigor e apenas a modo ilustrativo, que nas conversas tidas ao longo dos cinco anos trabalhando em que trabalhei com formandos das licenciaturas da FFP/UERJ,
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não eurocentrados não se vê por acaso reforçada pela proibição - ora implícita ora explícita de qualquer referencial oriundo da mitologia africana, tão criminalizada e demonizada nos espaços públicos, notadamente o escolar? Quantos poderão dizer nunca ter ouvido os alertas histéricos “macumba”!! ou “macumbeira”!! levantados como acusação ante qualquer sinal de referência a algum Orixá ou à forma que for de representação das cosmogonias africanas. Isso para tocarmos apenas nos aspectos entendidos pelo senso comum como culturais. O imaginário do ocidente eurocêntrico permeia nosso cotidiano e narra nossas memórias, se travestindo de universalismo, como se a racionalidade científica possuísse, de um modo que só poderíamos chamar de ‘mágico’, uma áurea que a isentasse de qualquer tipo de relação local ou “étnica”. Uma primeira reflexão pautada na própria experiência, na própria memória como alunos dessa mesma Escola, parece bastar para se perceber que o que a professora em questão fez, foi apenas explicitar o indizível, o óbvio com toda sua violência histórica, com toda sua carga de preconceito e discriminação, com toda sua colonialidade, ou melhor, a nossa colonialidade. Por outro lado, cabe deter-se brevemente para destacar que a importância de aliar nossas reflexões a elementos de compreensão das estruturas sociais de dominação, bem como dos mecanismos de sua reprodução, radique, talvez em boa medida, na possibilidade de nos afastar das leituras que naturalizam, via de regra em termos binários, a intencionalidade dos sujeitos em sua função social. Por trás da fala apresentada, por exemplo, o paradoxo se coloca, pois é também inegável a ‘boa intenção’ da professora que busca dar um tratamento igualitário, que dê as mesmas oportunidades a todos, “mesmo que alguns sejam negros”. Todavia, junto ao viés de colonialidade, que abordarei a seguir, que leva a perceber a reparação e a equalização como discriminação (o chamado racismo às avessas), o ocultamento da memória coletiva da luta dos movimentos sociais, em particular do chamado movimento negro, por garantir seus direitos negados, leva por sua vez à percepção das cotas não passarem de uma artimanha populista do governo de turno. Este sentimento, que mobiliza uma desconfiança histórica e razoável dos subalternos pelas classes dirigentes, desconfiança que, embora sustentada em uma longa história de dominação comandada ou por meio do Estado euro/nacional, é, não raras vezes, confundida, desde a perspectiva de cientistas sociais e militantes de uma esquerda também tradicional e eurocêntrica, como pura e simples
pelo menos um 70% não consegue citar sequer um conto infantil não europeu, nem fazer referência alguma à mitologia africana ou de povos originários da nossa América.
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alienação, ignorância e apatia política dos “pobres”77. A mesma Escola que faz parte do processo de esquecimento, dado seu currículo monocultural, é a que contribui com a fetichização dos padrões sociais assinalados. Até aqui me referi algumas vezes à Escola, com maiúscula, de modo genérico. Entretanto, estou certo, como os meus colegas de estudo no campo do cotidiano, de que toda generalização é extremamente perigosa e ilusória. De fato não quero com isso desconhecer nem desmerecer as riquíssimas experiências desenvolvidas por professoras e professores em diversas escolas da rede pública no Brasil e na nossa América.
Pelo contrário, como
anunciado, essas experiências são parte importante do que inspira a procura por práticas educativas que se contrapõem, de fato, à dominação e à submissão. Entretanto, parece-me sempre oportuno chamar a atenção sobre a importância para os estudos do cotidiano, de perceber os movimentos históricos e do modo como se constroem os significados, ou melhor, as verdades que dão sentido, e de como se reproduzem algumas estruturas sociais, mesmo considerando o grau relativamente autônomo dos sujeitos e dos grupos sociais, bem como a capacidade de outros modos de se organizar a vida e se produzir conhecimento, existente nas fronteiras de sentido produzidas pelo contacto do discurso hegemônico da modernidade com as mais variadas trajetórias dos sujeitos e grupos na subalternidade-mundo. As histórias locais produzem, de fato e das mais diversas formas, leituras sobre o mundo todo. Todavia, a existência de uma única história, moderna e eurocêntrica, para além de ser uma pretensão neocolonial, mas apresentada e legitimada como uma verdade incontestável pelo sistema de ensino escolarizado, pois revestida de impecável cientificidade, é uma realidade facilmente comprovável ao lembrarmos os conteúdos curriculares trabalhados na formação de cada um de nós, em qualquer um dos países do ocidente. A leitura de mundo da cultura dominante permeia nossas leituras cotidianamente. As relações de poder são o produto e ao mesmo tempo produzem discursos que rapidamente se tornam hegemônicos e, quase sem percebermos, se tornam consenso no cotidiano, mas não apenas isso. No mesmo movimento, produzem pensamento descolonial. Algumas das questões levantadas nos alertam para a importância de pensar os discursos sobre a educação e o processo de mudança da sua função social, buscando entrever como esse processo se articula de modo altamente naturalizado e com insuspeita familiaridade com o cotidiano escolar. 77
As aspas, neste caso, visam apenas salientar a dupla significação implícita na ideia de pobre, como conceito que distingue e discrimina, para muito além da condição de classe ou nível de renda, mas que implica a carência generalizada de cultura, educação, consciência, afinal, pobreza de espírito.
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Aprendemos da sociologia das formas simbólicas que, contribuindo para a criação de hierarquias e de distinções, bem como para o processo de legitimação das mesmas, a cultura dominante ajuda a manter e legitimar a ordem estabelecida.
Este efeito, propriamente
ideológico, é alcançado ao dissimular sua função de divisão, geradora de distinções, numa função de comunicação: “...a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como sub-culturas) a se definirem em relação à cultura dominante”. (BOURDIEU, 2000, pág. 11). O poder simbólico - de imposição de verdades e de dominação - não reside nos “sistemas simbólicos”, mas na relação estabelecida entre os que o exercem e os que lhe estão sujeitos, com a aceitação e a ignorância do seu caráter de violência por parte de ambos. Assim por exemplo, seria impossível a dominação exercida pela mídia sem a aceitação e legitimação social do seu caráter de “veículo de veracidade”. Da mesma maneira, o poder das palavras, de convencer ou subverter, depende em boa medida da crença na legitimidade das palavras e de quem as pronuncia. A produção desta crença não é da competência das palavras, o poder de convencer ou impor, que elas possam demonstrar, não está contido nelas, do mesmo modo em que o poder simbólico da mídia não está contido nos sistemas tecnológicos que permitem sua difusão, mas nas relações estabelecidas pelos sujeitos que interagem nesse campo, como produtores e não produtores. Por sua vez a construção da crença na legitimidade de um agente (sujeito, grupo social ou instituição) é, no contexto intercultural da modernocolonialidade, um longo e complexo processo de transferências ao longo da história, de modo em que diversos elementos e fenômenos sociais se articulam possibilitando submissões e subversões em cada espaço local determinado. Todavia, essas relações de poder e dominação - historicamente construídas -, reproduzem por sua vez, modos específicos de produção e controle da subjetividade e, acima de tudo, do conhecimento (QUIJANO, 2006). Vale salientar que busco aqui, explicitamente, um afastamento de algumas escolas sociológicas que, ao entender a dominação apenas no seu sentido estruturante das relações sociais, tendem a naturalizar tais relações, sob o argumento da coesão social. Nesse sentido, parece-me importante compreender a dominação enquanto sistema simbólico estruturado e estruturante das relações sociais, que transmuta assim a força material de dominação em consensos, mas de modo a considerar explicitamente o caráter histórico, tópico, espaço/temporal desse sistema simbólico. Esta consideração, nos termos antes assinalados, de 92
uma História pluriversal construída na articulação de produções de espaços a partir das historias locais, nos empurra para o giro epistêmico de perceber a colonialidade das relações sociais, dos Estados nação e de quase todos os aspectos da nossa cotidianidade, não apenas nas sociedades ditas periféricas, mas também nas metrópoles. Em outras palavras, o nosso mundo é assim, porque assim se deram as condições para ele estar sendo assim, e não porque só poderia ser da maneira que é, pois, de fato, ele é também outros mundos. Este aparente eufemismo torna-se fundamental para realizar o exercício de articular as leituras do estruturalismo-construtivista, que aponta as relações sociais como formas de dominação (BOURDIEU, 2000; WACQUANT, 2007), com as leituras a partir da perspectiva da diferença colonial, que assume a existência hoje, de um padrão de poder fundado na racialização das formas de dominação no sistema/mundo moderno, definido assim pelo seu viés de colonialidade. Vejamos: para Anibal Quijano (2006), a experiência colonial deixou como alguns dos seus principais produtos, a)
A racialização das relações sociais de maneira que o conceito de raça - uma ideia moderna até a época da colonização nunca antes usada como modo de categorizar seres humanos em termos de superioridade - passa a operar como naturalizador das relações de dominação, passando a subordinar sobre sua hegemonia estruturante, todas as outras formas de dominação precedentes entre sexos, identidades e, notadamente, socioeconômicas;
b)
O surgimento de um novo sistema de organização de todas as formas de exploração e de controle do trabalho (escravidão, servidão, pequena produção simples, etc) voltado para a produção de mercadorias para o mercado mundial sob a égide do Capital.
c)
O eurocentrismo como modo de produção e controle da subjetividade e do conhecimento.
d)
O estabelecimento de um novo sistema de controle da autoridade coletiva em torno do Estado e, posteriormente, do Estado Nação, que mais tarde daria origem ao sistema de nações. 93
Não podemos esquecer que essa experiência colonial, surgida no processo de expansão dos mercados do Atlântico Norte no final do século XV, é também o ponto de partida do processo de expansão do Capital a partir da Europa que viria se consolidar no que Wallerstein (1974) chamaria de sistema-mundo moderno. A reestruturação da ordem mundial decorrente da conquista do Atlântico imprime uma característica indissociável de colonialidade ao desenvolvimento do capitalismo a partir do século XVI. Este momento da construção do imaginário colonial, a cargo dos intelectuais orgânicos da burguesia dos séculos XVII a XIX não aparece na história do capitalismo, contada sempre com referência à Europa ou a partir dela, tornando assim a colonialidade do poder um fenômeno invisível. Desta maneira, a colonialidade do poder se torna uma característica constitutiva do sistema-mundo moderno. A estreita ligação dessa reestruturação não apenas dos mercados, mas das relações geopolíticas e das formas de produção com base no extrativismo escravocrata que constituem a modernidade, impõem a ela a homóloga colonialidade do saber, isto é, uma característica intrinsecamente colonial na forma em que apreendemos e percebemos o mundo.
A
colonialidade do saber opera, nesse sentido, como um dispositivo de racionalidade que reproduz as relações de poder e dominação. Podemos dizer assim, que a colonialidade do poder se coloca, no contexto da configuração do sistema-mundo moderno/colonial, como o modo de ser da violência simbólica no seu sentido historicizado, ou se preferir-se ia, à contraluz da diferença colonial. Nessa perspectiva, a violência simbólica, no seu viés de colonialidade, assume um caráter global de organização de significados e estruturação de relações de poder a partir da racialização das formas de dominação. Sua função é assim correlata à reorganização das forças produtivas, obliterando a cadeia de exploração contida na contramão da cadeia de produção do capital, em cujos extremos opostos se encontram a natureza e o homem branco proprietário. O conceito de Violência Simbólica, como definido por Bourdieu (2000), torna-se importante para articular com esta compreensão, pois ao considerar aspectos ativos do papel dos sujeitos, que interagem ativamente nas relações de comunicação e dominação, leva a compreensão de que a violência simbólica só é aplicável graças à nossa cumplicidade, com a nossa complacência. De qualquer maneira, mesmo evitando as leituras estruturalistas que reificam o papel dos sujeitos dentro delas ou daquelas leituras essencialistas que despolitizam qualquer ação/relação social, pareceria fundamental afirmar a dominação para entendê-la e daí superála. Não desde o lugar que articulamos a razão: Um pensamento descolonial que se constrói e 94
reconstrói como releituras do mundo a partir da diferença colonial, isto é, na subalternidade imposta, como exterioridade ontológica do centro, desde o Ser negado, é, assim, no exato momento da enunciação, a sua negação como tal. Parece-me que nesta perspectiva a verdade metodológica antes assinalada perde sentido. Assim, partimos da negação da dominação, afirmando sua existência de modo inseparável da necessidade da sua superação. É no próprio ato em que a subalternidade-mundo (no nosso caso latino-americana, mas isto faz sentido para toda a periferia do Sistema-mundo) fala/escreve o mundo a partir do local, afirma sua existência no mesmo movimento que nega a dominação, e não como parte de um processo metodológico de etapas subsequentes. Isto é, a tese XI - “até agora os filósofos não fizeram mais que pensar o mundo, trata-se é de mudá-lo” (MARX, 1996) - não é uma opção política que independe da análise científica feita, mas torna-se uma condição epistêmica, produto da historicidade do modo de estarmos no mundo, nós, os do sul. Trata-se de tensionar, ao máximo possível, com relação à cultura dominante ou hegemônica, o olhar para as leituras baseadas nas possibilidades e improbabilidades surgidas da relativa autonomia que temos como sujeitos, cujos devires traçam, com efeito, desenhos inimaginados. Entretanto, essa tensão do olhar do pesquisador para tecer as reflexões que acompanharão o movimento das gentes no seu dia a dia, não pode cair na tentação de desvincular essas trajetórias do movimento maior do qual fazem parte, dos fluxos históricos e do seu componente coletivo.
Se o fizer, arrisca esvaziar todo seu conteúdo político e
enveredar de volta à metafilosofia do individuo, entrando, pela porta dos fundos, na ilusão do estruturalismo idealista e sua busca de invariantes universais, bem como na ideia de saber puro, ahistórico, atópico e atemporal, logo universal, pedra angular da própria colonialidade do saber. É essa mesma colonialidade - que naturaliza como atuais velhas formas de dominação -, a que atravessa nossa noção de normalidade e nos faz suspeitar e reagir a questionamentos como os apresentados até aqui, colocando nas nossas vozes um suposto desprezo pela riqueza da cultura ocidental (europeia) que de fato não existe. Vale citar as palavras de Quijano (1992) ao se referir à urgência da crítica do paradigma europeu de racionalidade/modernidade, mas negando qualquer postura de descartar sua importância, A crítica do paradigma europeu da racionalidade/modernidade é indispensável. Mais ainda, urgente. Porém é duvidoso que o caminho consista na negação simples de todas as suas categorias; na dissolução da realidade no discurso; na pura negação da ideia e da perspectiva de
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totalidade no conhecimento. Longe disto, é necessário se desprender das vinculações da racionalidade-modernidade com a colonialidade, em primeiro término, e em definitivo com todo poder não constituído na decisão livre de gentes livres. É a instrumentalização da razão pelo poder colonial, em primeiro lugar, o que produziu paradigmas distorcidos de conhecimento e malogrou as promessas libertadoras da modernidade. A alternativa, consequentemente, é clara: a destruição da colonialidade do poder mundial.78
[Cotas, racismos e meritocracia: o viés de colonialidade no centro da contingência política] É, no mínimo, sintomático da naturalização da racialização dos papeis sociais, o fato da fala citada, da professora que diz tratar todo mundo como se branco fosse, para comprovar não ser racista, ter se dado em meio a um debate sobre as cotas raciais para o ingresso às universidades públicas. Sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, cabem algumas breves reflexões tomando o contexto da política de cotas (recentemente começado a ser implementado no Brasil), para articular algumas questões conceituais que nos interessam. Como se desprende da análise apresentada, o racismo é um fenômeno social decorrente de longos processos de dominação colonial que, estruturados historicamente operam como elementos estruturantes de sua própria lógica e passam a fazer parte do habitus de classe. Em outras palavras, racismo não é um desvio de caráter, do mesmo modo que o insucesso dos não-brancos no sistema escolar não é uma característica do sujeito, mas um efeito estruturado, produto da racialização de antigas formas de dominação. Ao igual que no debate sobre o machismo e a heteronormatividade, o debate sobre o racismo é, antes de qualquer coisa, um debate sobre o poder na nossa sociedade. Seus efeitos atravessam a totalidade das relações sociais hoje, cobrando milhares de vítimas a cada dia. Parece haver uma ideia bastante naturalizada, que considera que a questão do acesso ao ensino público superior por parte das classes subalternas possa se resolver apenas pelo investimento no ensino público básico. Esta perspectiva se sustenta na ideia de que princípios universais abstratos, como a igualdade, devem aplicar-se à revelia das condições históricas e materiais em que se deem as desigualdades. Isto significa desconhecer absolutamente a 78
Original em espanhol: “La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/modernidad es indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso que el camino consista en la negación simple de todas sus categorías; en la disolución de la realidad en el discurso; en la pura negación de la idea y de la perspectiva de totalidad en el conocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitiva con todo poder no constituido en la decisión libre de gentes libres. Es la instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las promesas liberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuencia es clara: la destrucción de la colonialidad del poder mundial”. Tradução própria.
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colonialidade do poder, nos termos apresentados anteriormente, e a diferença colonial - uma questão epistêmica. É assim, desconhecer a existência de um sistema de ensino que segrega alunos e alunas das classes populares pela imposição de um modo de conhecimento baseado em códigos eurocentrados e em um sistema lógico abstrato - alienado e alienante da realidade dos educandos, um sistema de ensino que busca, no melhor dos casos, formá-los para a subalternidade. Deste modo, responsabilizar esses alunos e alunas pelo fracasso que a instituição escolar lhes impõe, é reproduzir, com força e modos atualizados, a crueldade com que o colonizador os situou pelo uso da força bruta. A discriminação racial hoje, da qual a disparidade de acesso às universidades é um dos efeitos evidentes, é uma forma eufemizada daquela mesma violência brutal dos tempos do tráfico negreiro. A medida compensatória se apresenta como necessária, hoje, justamente porque não consensual. Opera assim com uma lógica totalmente avessa à que estrutura a democracia burguesa, pois, certamente, se o senso comum da sociedade acreditasse ser necessário e urgente equalizar as desigualdades raciais estruturais, uma política de cotas em favor de negros, indígenas e filhos da classe trabalhadora não seria necessária. Apresenta-se, entretanto, necessária porque o chamado "senso comum" - isto é, o pensamento hegemônico na sociedade, em permanente disputa por parte dos diversos grupos e classes sociais que partilham de uma comunidade semiótica - é, malgrado suas nuances, marcado pelo ponto de vista dominante, ideologia dominante que é percebida como natural pelo conjunto da sociedade; daí que o sentimento de "auto-superação" das classes subalternas, do oprimido de Paulo Freire ou do colonizado de Fanon, esteja e se estimule na medida em que consegue atingir metas definidas pelo pensamento dominante na sociedade - metas que parecem naturais, pois a sociedade se apresenta como neutra e não como produto da dominação colonial. Dentre as ideias centrais desse pensamento hegemônico na nossa sociedade (efeito ideológico da violência simbólica) está o de liberdade e determinação individual, de competência e de meritocracia [faça por onde parecer mais "culto", mais "elegante" e mais "educado", onde cultura, elegância e educação são definidas historicamente pela cultura e racionalidade eurocêntrica, que é a dominante, ou seja, branca].
Assim, segundo o ‘senso comum
hegemônico’, o negro e o não-branco em geral, o colonizado, afinal, tenta, pela norma, se integrar à sociedade, fazer parte, ser cidadão, defendendo a ideia de ser mais um, igual ao
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padrão universal de igualdade posto socialmente pelos conceitos relatados acima (de cultura, comportamento e educação que definem o que seja, afinal, o mérito). A meritocracia - como a crença em que o que determina alguém ter sucesso pessoal e profissional ("chegar lá") é o seu esforço pessoal e a nota em uma prova padronizada, como se todos os que não o conseguem fossem incompetentes, preguiçosos ou coisa pior - é, assim, a armadilha de legitimação da colonialidade do poder e do saber, pois coloca os subalternos e dominados em defesa do sistema que os segrega e em disputa uns contra os outros. Um projeto pedagógico descolonial não pode ser meritocrático, mas ousado ao ponto de redefinir os critérios do mérito social e acadêmico. Provas nacionais padronizadas, como o ENEM e o Vestibular, operam, afinal, como filtros étnico/culturais/sociais, dispositivos historicamente naturalizados, dessa máquina produtora de desejos de integração e de dominação (ao mesmo tempo), que é a sociedade moderna/colonial, seja aqui no Brasil, nos Estados Unidos, no Chile, no México ou na França. Nesse contexto, a política de cotas não é um programa de educação, mas educa, não é uma solução milagrosa para mudar a estrutura da sociedade, que continua discriminatória e racista, mas como política, ajustada a um direito constitucional emergente, destinada a garantir o direito de quem tem seus direitos objetivamente negados, abre a possibilidade a milhares de jovens de fazerem parte do processo de produção de conhecimento legítimo dentro da sociedade (o lugar da universidade na concepção de ensino, pesquisa e extensão) e, em tempo, levanta debates até agora ocultos sob a ideologia da suposta democracia racial brasileira. É neste último ponto que se torna de grande impacto uma política de compensação como a citada, não por ser ela a mudança social esperada, mas por serem os sujeitos formados ao calor desses debates os que poderão sim mudar a sociedade. As cotas são, nessa perspectiva, além de um mecanismo de equalização de desigualdades estruturais (limite da perspectiva liberal do direito), uma política de mediação de um processo social de ensino aprendizagem para a mudança social. Afinal, como aprendemos com Paulo Freire, “ninguém liberta ninguém, ninguém educa ninguém, as pessoas aprendem e se libertam em comunhão, mediatizadas pelo mundo”. A presença de muitos “José” nas salas de aula das universidades, questionando-se perante a assombrosa presença da ausência da sua própria história no currículo estudado, e questionando seus professores como o ele o fez, é sem dúvida um movimento no sentido da descolonização do pensamento, do currículo e da prática educativa no ensino escolarizado. 98
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DA CULTURA (e o lugar)
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Estética desde a marginalização e a barbárie - exterioridade e heteronímia da Cultura popular da Nossa América.
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[a posição do campo da arte e da cultura e a ilusão da razão] “Libertar as pessoas é o objetivo da Arte. Arte pra mim é, então, a ciência da Liberdade”. Joseph Beuys
Lecionando na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, no início do semestre de 2011, em uma turma de “Educação, Arte e Ludicidade III” - que é parte do currículo da carreira de Pedagogia - propus aos educandos e educandas que postassem no grupo de discussão da internet79 suas percepções sobre um texto em que se relatava a experiência de prática de ensino de música em escolas da Rede pública, nas favelas do Rio de Janeiro80. A minha intenção ao propor aquele texto buscava abrir com eles um diálogo sobre arte, cultura e educação a partir de uma reflexão sobre a imposição dos saberes hegemônicos e a negação da cultura popular, com o decorrente desperdiço da experiência criativa das crianças. Ao ler os trabalhos postados me chamou a atenção o fato de muitos utilizarem conceitos como “projeto”, “inclusão”, a ideia de que “’esse tipo de ação’ é muito legal para ajudar a ‘resgatar’ as crianças das favelas, da violência e do tráfico” e inclusive a reiterada ideia de que os “projetos sociais com arte são importantes porque ajudam a acalmar essas crianças”, e por aí vai. A minha surpresa veio de que no texto não há uma só referência a projetos sociais nem a ações de assistência, o contexto era o ensino de artes nas Escolas da rede pública. A resposta espontânea me fez compreender que, entre eles e elas, estava naturalizado, de maneira bastante hegemônica, o mito de que a arte, nas classes populares, só pode ter uma função de assistência e, no melhor dos casos, apontar no sentido de ser facilitadora da formação para o “mercado de trabalho”.
Naquele momento não pensei que, muito
provavelmente, na vida desses professores e professoras em formação da FFP-UERJ, campus São Gonçalo, onde, se não todos, a grande maioria provêm das classes populares, a música e a arte em geral tinham entrado nas suas vidas provavelmente do lado de fora dos muros da Escola. Com os anos, a percepção que tive sobre a dificuldade de se retomar o trabalho com
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Como parte da metodologia de trabalho proposta, está a criação de grupos virtuais de trabalho para ampliar a comunicação e interação com/de/para os educandos. Esta metodologia opera como um “esticador do tempo participativo”, ampliando a possibilidade de troca e construção de conhecimento com base em uma plataforma colaborativa. 80 Refiro-me ao trabalho monográfico “A violência simbólica e o ensino de música nas favelas do Rio de Janeiro”, apresentado como pré-requisito para conclusão de curso de Licenciatura em educação artística na UNIRIO em 2001.
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arte nas escolas para além de um sentido estritamente utilitarista, viu-se reforçada por sucessivas experiências em que o curso de seis meses de duração passava a dedicar, ao menos os três primeiros, a um intenso trabalho político-lúdico-pedagógico, não isento de reflexões e leituras diversas, cujo objetivo era apenas o de vencer resistências ao trabalho estético em sala de aula. Como não sentir a presença entre nós (NUNES, 2000) de Anísio Teixeira, em cuja obra/vida a Arte surge como o momento de criação, como momento de realização do humano? Convencido de ser pela educação que a utopia atua sobre a política e a economia para provocar transformações sociais que eliminem privilégios, hierarquias e desigualdades, Anísio Teixeira entendia a educação para além da ciência, mas como uma Arte permeada pela filosofia, que encontra na ciência um modo de tornar mais seguro o fazer pedagógico. Assim, tem o fazer, a prática educacional transversalizada interdisciplinarmente pela ciência, a arte e a filosofia, como lócus privilegiado de uma utopia que se encarnava desta maneira no ato pedagógico (TEIXEIRA, 2006, p. 67-86.). Não por acaso ele defendia, já na década de 1930, o ensino de artes de modo integrado ao currículo escolar. Entrelaçado também a essa linhagem de educadores brasileiros que tiveram a coragem de (re)pensar a educação para além das cegueiras da escolástica disciplinar e das cegueiras das ideologias [haja vista que todo ponto de vista implica necessariamente em vários pontos de cegueira], Durmeval Trigueiro (1972) soma-se a esse diálogo com a sua concepção em busca de uma consciência original, no entendimento de que, A arte é a expressão mais forte de originalidade de cada cultura. Sem apoio e inspiração na arte, a técnica, que é a força dominante em nossa época, poderá apagar as diferenças culturais, promovendo um nivelamento que, em vez de ajudar, pode prejudicá-la, sobrepondo aos valores específicos do homem os interesses da Máquina, do Lucro, do Poder e da Dominação, lançando grupos, classes e nações uns contra os outros. O segredo da Arte, como fonte de cultura, é que ela diversifica unindo.
Nesse contexto de reflexão contínua de que falava no início, me vi assim envolvido pela urgência de tirar o debate sobre a arte das fronteiras em que tem sido aprisionado, notadamente no âmbito institucional ou escolar, em que parece subsumido a uma lógica utilitarista ou então ao discurso diletante da arte elevada. Embora em algumas correntes dentro da Educação Artística possamos encontrar interessantes contribuições quanto à função de mediação da arte em uma perspectiva emancipatória, me interessa antes, pensar a arte, a 103
questão estética, para se pensar a política e a pedagógica, e não no sentido oposto. Mas é esta uma questão das mais polêmicas. Sabemos que Schiller81 e os românticos, consideravam que a estética era mais importante do que a política, porque era a que de fato ensinava a viver. Para ele o reino da liberdade era um reino estético, e para eles a estética era a entrada à ética e à política. Mas não é neste sentido que proponho focar nossa reflexão a partir da produção estética e da cultura. Penso, junto com Dussel (2013) e Grosfoguel (2002), que estas, ética, estética e política, são simultâneas, e mutuamente articuladas. Mais ainda, a ética, a estética, a política, e também a econômica e a ecológica. Não há uma última instância. Os desdobramentos desta concepção são inúmeros para se pensar todo o conhecimento produzido no ocidente ate aqui e, deste modo, fundamentais para se pensar uma pedagogia descolonial, mais ainda uma que olhe para o sistema-mundo desde o Sul. Um dos efeitos mais marcantes da modernidade no pensamento científico é a disciplinarização82. Esta, não apenas secciona áreas do conhecimento para seu estudo e ensino e produz o mito das duas culturas - humanista e científica - como também, e com isto, projeta e naturaliza a separação da vida em grandes esferas cuja relação seria irreconciliável e hierarquizada. Para o Marxismo tradicional83, por exemplo, a última instancia é a economia e depois a política, e para os pós-modernos o seria a Cultura, as representações discursivas, a subjetividade. Já para Dussel, e a partir dai para o grupo descolonial, todos os campos se articulam mutuamente e são mutuamente determinantes. Nas suas palavras84, então, “também na estética, na política e na economia não há ultima instância. São três atitudes perante a realidade, que se complementam. A Economia é a relação prático-produtiva, a relação com a natureza do produto para a vida; a Política é a que gere as relações humanas, e fala da distribuição dos excedentes, mas é mais formal, o anterior é mais material; já a estética, 81
Refiro-me a Friedrich Schiller (1759-1805), poeta e filósofo alemão que junto com Goette e Herder fora um dos principais representantes do Romantismo alemão (séc. XVIII). 82 A este respeito ver SOTOLONGO e DELGADO (2006) e CASANOVA (2006). Tenho também refletido a este respeito em BARRÍA MANCILLA (2007). 83 Por marxismo tradicional quero me referir, de modo aproximado, às correntes do marxismo que se consolidaram como hegemônicas neste campo ao longo do século XX, ligadas ao campo do chamado estruturalismo soviético. Algumas características centrais desta concepção são o economicismo, acima referido, a concepção de classe social como categoria analítica, a crença no determinismo histórico, resultante de uma leitura estruturalista/mecanicista da concepção materialista da história, um racionalismo exacerbado e, no campo metodológico, a priorização da ideia de síntese na concepção dialética, desenvolvida a partir de critérios de análise preestabelecidos. 84 Enrique Dussel em entrevista pessoal com o autor (registrado em áudio. Não publicado. Transcrição própria), em visita ao Brasil com ocasião do Congresso Internacional Diálogos sobre Diálogos, organizado pelo campo de Estudos do Cotidiano da Educação Popular, da FE/UFF, em setembro de 2012.
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refere-se à beleza das anteriores e é a felicidade, a sua possibilidade material”. Para ele, a Estética, a Econômica e a Política, são modos objetivos - isto é, materiais - de se relacionar com a vida. Esta noção é interessante, pois não separa, de fato, o simbólico do material, o objetivo do subjetivo; em cada esfera da vida a atitude perante ela significa, comporta, uma relação íntima e indissociável de materialidade e subjetividade. É também intuindo esta relação profunda entre racionalidade e afetividade, que venho falando de "compromisso político-afetivo" ao me referir ao engajamento dos sujeitos em um processo de transformação social, em qualquer esfera da vida. Diria indissoluvelmente político-afetivo. Mesmo em aqueles que se aproximam aos movimentos políticos por via do estudo e da racionalidade e agem neles com base em princípios de racionalidade.
Nas reflexões
desenvolvidas por mim e pelo grupo de pesquisa Nós do Sul, durante a minha pesquisa de Mestrado, optei por enunciar desta maneira as relações das pessoas com os movimentos sociais, políticos e de luta por direitos, com a intencionalidade explícita de me contrapor à ideia, que considero fortemente marcada pelo ranço positivista, de que dito engajamento, e assim, a própria emergência da subversão se daria a partir de um processo de “esclarecimento”, isto é, puramente racional.
Para além de certo senso comum – em
aparência progressista, mas bastante conservador nos seus efeitos - que atribui à informação, ou mesmo à educação - em uma acepção reducionista de acúmulo de informações - a potência de mobilização necessária às mudanças, não é raro encontrarmos esta ideia naturalizada em alguns dos principais expoentes das ciências humanas. No campo acadêmico esta ideia é amplamente desenvolvida, inclusive em um pensador da importância de Bourdieu, cuja obra se insurgiu contra os determinismos do estruturalismo idealista e do chamado estruturalismo soviético, como pode se constatar nesta colocação, introduzida em nota de rodapé, ao tratar do seu conceito de Violência Simbólica, É na medida em que o discurso heterodoxo destrói as falsas evidências da ortodoxia, restauração fictícia da doxia, e lhe neutraliza o poder de desmobilização, que ele encerra um poder simbólico de mobilização e de subversão, poder de tornar atual o potencial das classes dominadas. (BOURDIEU, 2000. pág. 15 n.rp).
Sem dúvida, está concepção - decorrente da racionalidade científica moderna e a implícita ideia da sua capacidade única de desmistificar a vida por meio do logos, ideia que é, por si, um mito -, em nada desmerece as fundamentais contribuições da sociologia das formas simbólicas, de Bourdieu. Sem elas, a nossa compreensão sobre as produções simbólicas e a sua relação com as formas de dominação seria extremamente limitada. Tampouco busco, ao 105
tensionar esta contradição, negar o papel e sequer a importância da compreensão, por meio da razão, dos processos de opressão, como condição da sua superação. De um modo diferente, busco frisar que esta não opera de modo isolado, como já apontado. Mas é no entendimento da materialidade intrínseca das produções simbólicas (a cultura, a arte, a religião e as subjetividades mais íntimas, o afeto), sem por isto subsumi-las aos demais campos (o político institucional, o econômico) que podemos nos aproximar da sua potência objetivável. Quando Dussel se refere a que o material do poder é o ‘querer viver’, ele diz "querer", e isso é vontade, é emotividade. “O querer é um amar. É o sistema límbico que opera, não o cortical”85. Embora desde uma perspectiva epistêmica bastante diferente, assim como para o biólogo chileno Huberto Maturana, também para Dussel todas as atividades antes consideradas "anímicas" são realizadas pelo cérebro.
Entendemos a partir de uma
corporeidade humana, "somos o efeito da vida", por tanto o que mais nos chama é aquilo que possibilitou a vida. Este ponto, da indissolubilidade dos aspectos objetivos, a materialidade, e dos subjetivos ou simbólicos, dinâmicos, de cada âmbito da vida, recoloca o debate sobre cultura e produção estética ao se pensar um projeto de transformação social e um projeto de educação, no seu sentido lato. Não mais no sentido relativo, dependente de outras instâncias que seriam anteriores, nem no sentido assumido mais recentemente por algumas correntes dos estudos culturais que buscam a importância da área da cultura nas suas cadeias produtivas, buscando quantificar o impacto que elas têm na economia como um todo. Sem desprezo algum por estes aspectos, o que quero salientar é que, se o que um determinado projeto de educação com/das/para as classes populares busca é a transformação social, ou mais especificamente, a libertação das mais diversas formas de opressão - o que implica necessariamente a transformação da sociedade no seu modo de ser opressora, e não deste ou aquele sujeito -, seja na escola ou ao interior de movimentos sociais os mais dissimiles, a questão da memória, da cultura e da identidade, isto é, do imaginário, tornam-se parte inseparável, e não cosmética nem complementar, da formação crítica dos educandos.
Em tempo, a ideia do
desenvolvimento criativo é, nesse contexto, por meio das suas práticas e metodologias, um dispositivo de produzir r-existências que dialoga claramente com o pensamento de Trigueiro. Para ele,
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Idem.
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(...) a arte (...) não é o fazer à parte de todos os nossos fazeres, como alguma coisa artificial, de reservado a iniciados e predestinados; mas é o fazer de todos os nossos fazeres, desde que obedeçam ao sopro livre da criação. O importante é recriar o objeto por uma consciência que se assume inteiramente, e se torna capaz de descobrir, dentro de si própria, a visão inaugural de cada ser, de cada coisa ou pessoa. Uma consciência que se liberta do nivelamento e da opacidade dos adultos. Trata-se de opor a criação à convenção, a liberdade que renova o mundo ao freio que lhe impõe antigas mordaças. (TRIGUEIRO MENDES, 1972).
Desta maneira, a arte passa a fazer parte inseparável do currículo a ser desenvolvido, mas não já a arte como a conhecemos, não a arte dentro do seu campo definido pelos modos de produção e circulação, não no sentido de formar artistas para disputarem este campo, mas a arte para além do próprio campo, como produção estética da relação dos sujeitos com o mundo, como produção histórica das mais dissimiles noções de beleza, da memória e da vontade de viver. A relação profunda e íntima entre Cultura, Memória e Identidade se articula em processos de significação numa estética da libertação, que é sempre, uma estética da rebeldia e da transgressão, embora, é claro, a compreensão da arte como potência subversiva, de libertação, não é nova nem necessariamente latino-americana. Para o artista plástico e performático alemão Joseph Beuys - um dos mais influentes na segunda metade do século XX e provavelmente quem melhor representa a revolução na arte ocidental que teve lugar então - “o objetivo da arte é a libertação” e pelo mesmo, “a arte é a ciência da Liberdade”. Na linha de Trigueiro, e ao igual que para Gramsci na filosofia, para Beuys, todo mundo é um artista, pelo que, paradoxalmente, desconhecia a função social profissional do artista especialista. Por isso não gostava de ser chamado de artista, via-se como um professor, um educador, pois entendia a relação íntima entre educação e libertação. Não da educação no sentido de acumular conhecimento e se enquadrar, mas no sentido ético-estético da ruptura. Na perspectiva da libertação86, trata-se da produção estética dos oprimidos, de ser coprodutores da “boniteza”, como nos ensinou Paulo Freire, do ato, necessariamente coletivo e mediatizado pelo mundo, de aprender e de se libertar. O foco na produção simbólica, estética e/ou cultural, do povo oprimido ou subalterno, não é dado então por uma ideia abstrata que considere este aspecto do nosso estar no mundo como prioritário ou superior (não há uma última instância). De um modo diferente, é dado por um movimento dialético de
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No sentido do “princípio Libertação” proposto pelo filósofo Enrique Dussel em seu livro “Ética da Libertação”, DUSSEL 2012.
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descolonização de uma racionalidade que historicamente tem subsumido o campo da estética e da cultura aos campos da economia e da política, sob os mais rígidos e predeterminados preceitos da racionalidade científica moderna. O ato criativo está diretamente vinculado ao contexto social que lhe dá sentindo e o torna inteligível. A criação é, assim, parte da totalidade-mundo (cultura, cotidiano, economia, ecologia, etc.) em que está inserida. Uma personagem do filme “El lado oscuro del corazón”, do diretor Argentino Eliseo Subiela (1992), observando as esculturas de um amigo preso justamente por expô-las, dizia que “o artista deve viver onde a arte seja movida pela esperança de ser subversiva, do contrário é apenas terapia ocupacional dentro de um manicômio onde é permitida”. Todavia, o que é o subversivo de uma obra de arte? Seria a ruptura com determinados padrões estéticos definidos pela academia o que determina o seu caráter revolucionário ou subversivo, o seu papel dentro de um processo transformador mais abrangente? Com certeza para a academia o é, para o mundo escolástico que pensa a realidade a partir das suas próprias definições e relações de poder. Pelo contrario, creio que essa possibilidade está dada pela sua relação ‘político/afetiva’ com a exterioridade. Entretanto, não se trata da arte que assuma um programa definido pela própria forma ou por um discurso explícito ‘politicamente engajado’ ou ‘rebelde’, por meio do qual ficaria atrelada a uma institucionalidade, mesmo que insurgente e, assim, presa fácil do dogma e da reificação de uma determinada formalidade estética. Tampouco se trata da produção estética que se propõe apenas a romper com os cânones formais definidos pela academia e o establishment. Trata-se sim, de uma arte que assuma para si a subversão da normatividade desde a memória que emerge das narrativas do próprio espaço habitado, tecida no tempo lento da relação dos sujeitos com seu espaço local, de maneira complexa, pois em relação com o mundo, implicando releituras deste e de si. Em outras palavras, é quando a arte se torna expressão de atualização do Outro negado, dentro do espaço legitimado pela normatividade opressora, e se coletiviza, retornando ao fluxo do fazer coletivo da comunidade, em relação com mundo, que encontra sua efetiva potência subversiva, de libertação. Essa expressão estética não é privilégio de determinados movimentos sociais ou políticos, sua condição é insurgente e, por tanto, impossível de ser institucionalizada. Todavia, observando a nossa história à contrapelo, como nos convida Benjamin, nossa memória negada, podemos constatar que essa expressão estética, que subverte e reinventa imaginários, redesenhando as redes de afetos com potência de provocar sentidos insurgentes, costuma acompanhar os movimentos de libertação, como parte do seu tempo. 108
[A Arte legítima, o poder simbólico e a expressão dos outros] Envolvido de muito cedo com atividades ligadas ao campo da arte me encontro há algum tempo também numa reflexão continua, na tentativa de entender o campo da cultura e o campo da arte para além do campo profissional da arte e da sua economia de trocas simbólicas87. Não no sentido de desconhecer a existência e pertinência do estudo desta economia, mas no de tensionar estas análises a uma compreensão da arte como fazer, no seu sentido mais intimamente ligado a uma necessidade concreta de expressão estética. O assunto é polêmico, mais ainda se o ligarmos à educação, onde imediatamente assume contornos formativos de projeto de nação e de prioridades disciplinares. Antes de pensar a escola, dependendo da matriz analítica ou mesmo disciplinar que for utilizada, pensar a cultura pode nos aproximar de mundos totalmente diferentes e por vezes, aparentemente opostos. A economia, no melhor dos casos, tratará de analisar as cadeias produtivas que envolve o campo profissional, e assim quantificar seus custos e impacto nos sistemas de produção e circulação de riqueza como um todo.
A sociologia tentará conhecer suas relações de
produção e circulação buscando entender sua função social focada na produção de homogeneidades e desigualdades, enquanto a antropologia, de modo geral, conhecer as diferenças e, nas correntes mais estruturalistas, buscar invariantes nas diversas culturas de modo a estabelecer axiomas estruturais universais.
De um modo ou outro, todos estes
movimentos de racionalização do fenômeno estético, que é a racionalização da necessidade de produção de beleza, têm dialogado pouco com os próprios agentes da criação. Esta questão se deve, entre outras, ao fato do fazer artístico, do trabalho de produção estética, estar muito ligado, na maioria das culturas que conhecemos, se não todas, ao campo do mítico e do simbólico. É a atividade de materialização do subjetivo, por excelência. Uma tradição de pensamento fortemente marcada pela ideia da produção de verdades ditas ‘objetivas’, vê no caráter intrinsecamente polissêmico da arte um perigo ou, no melhor dos casos, um sentido incógnito a ser desbravado, traduzido a verdade objetiva. Quando se trata de um contexto intercultural, o panorama fica exponencialmente mais complexo e complicado, pelo que envolve de relações de poder e dominação, naturalizadas pelos próprios códigos da cultura hegemônica. 87
No seu livro homônimo, Economia das trocas simbólicas, o sociólogo Francês Pierre Bourdieu descreve ampla e aprofundadamente o campo profissional da Arte, nos seus modos de transferência de sentidos de legitimidade e de disputa ao interior do campo, pelos modos de expressão legítimos, os que podem vir a se tornar, segundo seus modos de circulação, o modo legitimo para o conjunto de uma sociedade determinada. Ver Bourdieu, 2001.
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Neste sentido cabe observar que justamente a tendência ao universalismo das teorias sociais clássicas na análise sobre o campo da cultura, isto é, tendência escolástica a estabelecer constructos teórico-axiomáticos, e por vezes tautológicos, nega e invisibiliza importantes questões de significado e sentido que só podem ser apreendidas no local, no cotidiano do qual se faz parte ou com o qual se estabelece uma relação vinculativa. A música, por tomar a que me é mais próxima como exemplo, em tese e arriscando um universalismo, faz parte da totalidade da experiência humana em toda a sua diversidade, e é uma forma altamente complexa de expressão da sua subjetividade, da relação do ser humano com o mundo, no sentido mais profundo, daí a sua infinita diversidade de modos e a sua intrínseca polissemia. Não se tem notícia de uma única cultura, nacional, local, urbana, étnica, subalterna ou hegemônica, em que a música não tenha um papel central na coesão do tecido social e de conferir ‘sentido’ à vida. O maior ou menor grau de especialização na sua produção depende de diversos fatores relativos ao modo de organização de cada sociedade, porém não se restringe, de modo algum, apenas aos agentes envolvidos nos campos específicos de produção da mesma. Parafraseando a Gramsci (1982, 2000), estive sempre intuitivamente convencido de que é preciso destruir o julgamento de que a música é algo sumamente difícil por ser a atividade criativa própria de uma determinada categoria de artistas especializados ou de músicos profissionais e sistemáticos. Assim, podemos concluir, ainda extrapolando o dizer do pensador italiano sobre os intelectuais, que não todos cumprem uma função profissional de músicos, mas o fenômeno estético auditivo é parte da experiência de qualquer ser humano, em qualquer sociedade. Todavia, no mundo globalizado, no sistema-mundo-moderno, marcado pela ética e pela estética herdadas de um longo e doloroso processo de colonização (ou de expansão do capital a partir da Europa do sec. XVI), o olhar atravessado pela colonialidade que reproduzimos para a cultura e para a escola, faz com que nos espaços definidos para o ensino escolarizado se valorize, quase que exclusivamente, a chamada “Música erudita” ou “Clássica”, tida como máxima expressão do espírito humano, pois supostamente construída a partir de processos lógicos racionais.
Embora não seja recente nem escassa a literatura nos campos da
musicologia, da etnografia ou etnomusicologia ou nos da antropologia e da sociologia que questionam o ensino de música na sua forma como no seu conteúdo, isto é assim, lamentavelmente, na imensa maioria das escolas da Nossa América.
Quando não se
restringem as aulas ao repasse de biografias de um reduzido número de importantes músicos 110
da tradição europeia, organizadas pelos critérios de periodização estética também inerente à história local daquela parte do mundo. É claro que a realidade é sempre mais complexa e diversa e existem inúmeras experiências que assumem outras perspectivas, algumas delas com importantes desdobramentos. Mas a questão é que esse olhar, digamos hegemônico, opera como um mecanismo de geração de distinções que reordena todas as outras expressões musicais não-eurocêntricas, negando-as ou subalternizando-as com arranjo ao seu próprio conjunto de normas e valores estéticos. Esse é o efeito último dessa prática, a naturalização da existência de uma cultura superior (a europeia) com potência única de produzir uma arte elevada. No campo pedagógico esta concepção significa que o ensino de música nas escolas públicas - justamente estas em que seus educados se encontram em contato com uma enorme e rica diversidade de formas de expressão musical - passa a ser entendido, no melhor dos casos e quando há, como o desenvolvimento, no aluno, de capacidades que lhe permitam reconhecer, apreciar e reproduzir apenas “esse” tipo de música, sua técnica, sua ética e sua estética. Cabe salientar que falo de uma prática educativa hegemônica nas escolas, embora e mesmo à revelia de um relativamente amplo campo de produção intelectual e acadêmica em torno do ensino de arte, que se contrapõe ou vai além da perspectiva assinalada, bem como do chamado ‘ensino a través da Arte’ e da Arte-educação cuja práxis se abre campo em diversos espaços conquistados pelo trabalho contínuo de grupos engajados política e afetivamente. De um modo geral estas correntes de reflexão e produção de conhecimento têm estado mais ligadas às artes Plásticas e às artes cênicas do que à música. Paradoxalmente, poderia se dizer que estas práticas de produção estética e de ensino aprendizagem ligadas a outras tradições estéticas (populares, etnicizadas ou folclorizadas, de tradições locais enfim) ou a formas emergentes de reinvenção do campo estético, o fazem a contrapelo, como parte de um amplo movimento contra-hegemônico (ainda em Gramsci), e mesmo quando se dão dentro do campo escolar, poderia se dizer que o fazem “a pesar da Escola”. Mesmo nesses campos, a Escola parece constituir um bastião do passado, deixando o presente e o futuro do lado de fora. No entanto, embora poucas vezes percebida como potência, a rebeldia dos garotos guarda uma enorme capacidade de resistência cultural e de r-existência. A colonialidade do saber, permeando sua violência simbólica na produção simbólica e sua hierarquização, produz, no contexto da escola das classes populares, um abismo de incomunicabilidade entre educandos e educadores. Todavia, e muito para além da tentação de tirar conclusões apologéticas da 111
estética das culturas marginalizadas, deixar as razões desta defasagem entre o professor e os alunos serem reduzidas a um simples desencontro na procura de pontos geradores, uma questão didática ou disciplinar, ou bem atribuí-la a uma questão de percepção estética naturalizada, seria pior do que deixá-la ao acaso, pois implica no ocultamento da diferença colonial que a origina. A aplicação não refletida de um dado repertório implica, de fato, na ideia de estar trabalhando com um sujeito que carece absolutamente de um repertório próprio, ou que o mesmo não é válido. O primeiro caso é inconcebível dado que a atividade musical é intrínseca a qualquer cultura ou grupo cultural.
O segundo traz implícita uma distinção, uma estruturação
hierárquica. A escolha por um determinado repertório em detrimento daquele que é próprio aos alunos é, em si mesma, o que Bourdieu chamou de violência simbólica. Esta violência consiste na aplicação naturalizada e legitimada de determinados critérios de distinção alheios ao grupo no qual serão aplicados. Uma forma eufemizada de outros tipos de violência objetivada (econômica, militar, colonial, etc). O repertório de domínio da maioria dos alunos da escola pública, podendo-se estabelecer entre estes e aquele uma relação de identidade, não costuma ser totalmente desconhecido pelos seus professores. O que existe de fato é uma rejeição implícita e não poucas vezes, explícita do dito repertório. Esta rejeição tem sua base na ideia naturalizada de um determinado mecanismo de distinção; da existência de uma forma musical superior às outras. Não seria necessário ir muito longe para coligir a partir daí, a existência de uma Cultura superior às outras e, logo, de uma racionalidade superior às outras. Contudo, o problema é extremamente complexo, pois não se reduz ao puro e simples reconhecimento de identidades culturais diversas nem à exaltação da cultura dos dominados, elevando-a ao nível de proto-cultura. Há a necessidade de uma análise das estruturas e mecanismos de reprodução e dominação estabelecidos na sociedade e, especificamente no campo da música e da educação88. Todavia, para estabelecer um diálogo que permitisse perceber a diferença, de modo crítico, é preciso compreender o que há para além da aparente desordem e do caos, da suposta falta de senso estético depurado, da barbárie, que justificaria e negação do outro. É preciso haver um giro epistêmico. A este respeito é importante lembrar que, embora nossas arrogantes pretensões acadêmicas, a análise, a classificação e a
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Bourdieu e Löic Wacquant analisam a função velada contida no discurso do multiculturalismo, surgido no campo acadêmico nos Estados Unidos e que esconde sérios problemas sociopolíticos, reduzindo-os à simples necessidade de reconhecimento das culturas marginalizadas no âmbito acadêmico, num artigo publicado no jornal Le monde diplomatique edición Chile, dezembro de 2000, pág 22-23
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distinção de culturas subalternizadas significam, de modo algum, a possibilidade da sua emergência como cultura legítima, nem muito menos nos aproxima da possibilidade de apreender seu significado e seu sentido.
Sem dúvida estamos em contexto de uma
interculturalidade tensionada ao extremo na experiência de vida dessa garotada e dos próprios professores. Assim, por exemplo, sobre a importância do ensino de música nas Escolas da rede pública, me parece não ser, hoje, apenas questão de apontar essa necessidade como um todo, mas, em tempo, torna-se urgente complexificar a concepção de “educação musical” no sentido de uma “musicalização” (uma alfabetização dialógica, como proposta por Paulo Freire, mas em música, uma alfabetização sonora) que permita aos educandos desenvolverem suas habilidades auditivas e de expressão sonora, com arranjo ao desenvolvimento das suas próprias formas de expressão musical no sentido mais largo possível, permitindo as condições para a emergência das suas trajetórias pessoais e culturais. Não me parece demasiadamente utópico pensar também, quanto à questão do repertório, partir do gosto musical, como ele de se dá hoje em cada grupo, como ponto gerador, e daí mergulhar nas diversas tradições musicais alargando o repertório dos educandos a partir da enorme diversidade existente, oculta trás a monocultura do mercado. Sem dúvida, seguindo a línea mencionada, esta perspectiva ampliaria o campo da chamada música de fronteiras89. Neste caso o risco passa a ser a reificação, por parte do educador, da forma de expressão entendida como desse Outro, tolhendo assim a potência criativa e de invenção. Sem dúvida, trata-se de um processo de ensino-aprendizagem dialógico que deve começar na própria formação de professores. O Ensino de música nas escolas passa a ser importante para as classes populares, na medida em que por música não se entenda uma única estética musical. Esta mesma questão pode ser aplicada a qualquer área do conhecimento e de fato, já que me refiro à música por escolher uma porta de entrada qualquer a um tema mais largo, ao ensino escolarizado como um todo. Mas para isso parece haver um abismo enorme, um grande déficit teórico não apenas sobre o modo de produção, transmissão e significação, mas notadamente sobre o valor atribuído a estas produções ao interior de cada grupo e pelos próprios artífices da estética dos grupos subalternos, de modo articulado aos modos de organização social, política e econômica da 89
Ver o artigo de Perrone,Marcela, Música de fronteiras, 2008, disponível em http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2008/comunicas/COM293%20-%20Perrone.pdf
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nossa sociedade, embora as importantes contribuições dos estudos culturais nas últimas três décadas e mais especificamente da perspectiva da interculturalidade crítica. Há ainda muito caminho a se percorrer. ["música é uma maneira de escutar" assim como às vezes, ciência é uma maneira de ensurdecer] Aproveitando o exemplo da música para abordar esta questão, permito-me uma brevíssima reflexão, quase um parêntese, sobre ela e sua escrita, para propor uma metáfora como paralelo com o pensamento científico e os saberes outros. Paul Schaefer (1996) diz que "música é uma maneira de escutar." Há a leitura, a execução da mesma, e o som que se espalha. Há um texto, aquele que executa e o interpreta, e o ouvinte que escuta e também interpreta, numa linha subjetiva extremamente larga e complexa. São muitas as leituras extraídas de uma mesma tessitura. Na verdade a pauta escrita não é, em si, música, não soa. Ela precisa do intérprete e do ouvinte para virar coisa no mundo. A polifonia de sentidos e leituras possíveis nasce nesse ato. Mas a ilusão da razão tem nos convencido de que é diferente com a palavra e com o pensar o mundo. Mesmo sem som, como essas aqui, elas só adquirem sentido(s) na interpretação polífônica que se produz no encontro das leituras, como nos propõe Bakhtin. Agora, se como Shaeffer, mudarmos a postura lendo/escutando o mundo de maneira a fazer dele música, podemos, em tese, fazer a mesma coisa ao "escutar" filosofia e sociologia, por exemplo, nas diversas formas de um ser humano estar no mundo, muito pra além de achar que a realidade está no escrito sobre elas e nos seus "modelos de interpretação" e sair por aí apenas aplicando essas pautas para definir o que é e o que não é. Do mesmo modo que a música de origem europeia se autodefine como "douta", "erudita" ou "de arte" com relação às outras, e, é claro, Universal, sustentando assim sua suposta distinção (Bourdieu, 2001) com arranjo a critérios de racionalidade utilizados na sua forma de composição e escrita (só quem nunca curtiu um samba, ou jazz, um tango ou um flamengo para achar isso sem suspeitar de nada), do mesmo modo, as ciências sociais, montadas sobre o branco prédio univeralizante e eurocênctrico da racionalidade científica moderna e seu viés de colonialidade, reordenam mundo afora as outras epistemologias segundo o grau de
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semelhança ao modelo dito clássico, hierarquizando e subalternizando, quando não, negando e criminalizando. Assim, como "música é uma maneira de escutar", se operarmos um giro epistêmico que nos permita ouvir a polifonia de sentidos que o mundo oferece, perceberemos que, às vezes, o saber é uma maneira de ensurdecer, pois na sua relação histórica e promíscua com o poder, ergue-se como uma enorme barreira acústica que busca negar a pluriversalidade da experiência humana. [Contemporaneidade, tradição e Aura da cultura popular, para além da reprodutibilidade técnica no fazer das culturas subalternizadas] No debate contemporâneo sobre a crise das representações, que ganha força nas últimas três décadas do recém-passado século, notadamente nas teorias denominadas de pós-modernas, não é novidade lançar mão das ‘lógicas’ e construções discursivas da arte para questionar a racionalidade científica moderna e sua cristalizada retórica linear. Todavia, a que arte se faz referência naqueles argumentos? Sem dúvida, os moinhos de vento da estética francesa são outros que os que assombram o universo simbólico da arte equatoriana, por exemplo. Obliterar essa diferença, desconhecendo as diversas matrizes epistêmicas inerentes a cada cultura, significaria assim, combater a racionalidade moderna com um discurso do mesmo modo epistemologicamente eurocêntrico, logo, carregado da sua própria colonialidade. Mas onde se encontra afinal essa arte, essa cultura, no mais amplo sentido da palavra, indígena, africana e afro/brasileira após quinhentos anos de epistemicídio? Nas sociedades miscigenadas da Nossa América, qual o lugar da tradição e qual o da nossa contemporaneidade? Uma velha pergunta que atravessa o fazer criativo ligado geopolítica e afetivamente às classes populares na nossa América recobra atualidade, redesenhada de sentidos e transversalidades neste século XXI globalizado e mais tensamente intercultural do que nunca antes: seria o preço de acedermos com legitimidade e voz ativa à modernidademundo o aceitarmos a cultura de massas que ela tem produzido ou então subsumir ao classicismo estético eurocêntrico? A diferença colonial, ou melhor, a colonialidade do saber, como geopolítica da razão, não se reduz a uma questão puramente geográfica ou étnica, no sentido folclorizante e subalternizante que conhecemos, mas atravessa de modo complexo nossa contemporaneidade. Podemos entender a própria globalização – enquanto ponto culminante da expansão do capital 115
a escala planetária – como um rearranjo geocultural, no qual incidem das mais diversas formas, ora impostos, ora subalternos, ora hegemônicos, ora emergentes, todos os projetos estéticos e os complexos de significação da vida de cada cultura, inter-relacionados de maneira tensa, crítica.
O elo condutor desse rearranjo geocultural do sistema-mundo
moderno, como subjetividade hegemônica, objetivada pelos discursos e, principalmente, pelas instituições, está dado pelo projeto da modernidade eurocênctrica/colonial e a sua hierarquização de fazeres e saberes, isto é, pela própria colonialidade do poder, do saber e do Ser. Daí a importância e a centralidade de voltar a reflexão e a prática para descolonizar essa geopolítica do gosto e da estética. Esse movimento de deslocamento crítico estético passa necessariamente por fugir aos purismos binários que buscam em um suposto momento préindustrial o ‘estado natural’ desta ou daquela expressão artística popular. Não é esta a proposta nem a minha perspectiva90. Também não proponho, ao buscar uma relação factual e mais ou menos historicizada entre produção estético-cultural e identidade na Nossa América, uma estética do que ainda não é, do que ‘deveria ser’, com base num suposto determinismo histórico revolucionário. Entendo ser justamente a tradição do pensamento liberal ocidental que projeta um discurso teia que nos prende na sua falsa dicotomia binária entre a liberdade de expressão (sempre definida com arranjo aos cânones estéticos da sua tradição, que inclui, é claro, os debates críticos decorrentes da sua própria história local) e o autoritarismo estatista, como única alternativa aos que pretendam vincular arte e política. Ao longo da já mencionada trajetória de debates e reflexões sobre o lugar da cultura popular e a relação entre arte e dominação, deparei-me, durante a elaboração da dissertação de mestrado, com um encontro inesperado entre as leituras sobre tradição e contemporaneidade em Walter Benjamin e José Carlos Mariátegui. Este encontro me fez levantar a tese de uma resignificação do conceito de Aura (em Benjamin) a partir de Mariátegui. No intuito de articulá-la às questões ora levantadas, de modo a podermos avançar nesta contínua reflexão, sintetizo brevemente a tese proposta, alargando-a com base nos estudos desenvolvidos por Anibal Quijano91 na perspectiva da colonialidade do saber.
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Mais adiante abordarei esta questão mais detidamente, debatendo as teorias críticas sobre a cultura de massas que a sustentam. 91 O sociólogo peruano Anibal Quijano é considerado a principal referência no estudo do pensamento de Mariategui. Por sua vez, a sua teoria sociopolítica é uma clara articulação a partir de releituras de influência gramsciana inspiradas na fecundidade das ideias de Mariategui.
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Benjamin propõe o conceito de Aura para refletir sobre o papel da tradição na obra de arte e no fazer artístico, e as categorias de valor de exposição e valor de culto para definir sua função social e sua relação com as formas de produção de cada período histórico. A história da obra de arte compreende desde sua estrutura física e transformações no decorrer do tempo, até as relações de propriedade das quais fez parte. É na sua unicidade que vive sua história. A partir desse postulado, define-se a autenticidade de um objeto como a quintessência de tudo que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, da sua duração material até o seu testemunho histórico (BENJAMIN, 1985. Pág. 168). O aqui e agora da obra de arte autêntica é definido como sua Aura. Pois bem, Benjamin desenvolve sua teoria em um contexto marcado pela ascensão do Nazismo na Alemanha, cujo projeto consistia, precisamente, na estetização da sociedade a partir do cânone clássico, aliado a uma forte veneração da tecnologia, partilhada pelo fascismo italiano. Esta mistura fazia surgir uma nova estética da modernidade clássica levada ao extremo, cujos efeitos diretos escancaravam de modo cruel e profundo o lado mais assustador da arte, o lado horrível da beleza.
A realidade vivenciada leva Benjamin a
perceber que, [a] existência [dos bens culturais] não se deve somente ao esforço dos grandes gênios, seus criadores, mas também, à corvéia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. (BENJAMIN, apud LOWY, 2005. p. 70).
Em tempo, Benjamin percebe, com base na sua concepção de Aura e aos estudos históricos que dela fez, que ao ser reproduzida, perde-se junto à materialidade da obra de arte também o seu testemunho histórico: na era da reprodutibilidade técnica o que se atrofia é a sua aura. Ou seja, a reprodução técnica de um objeto o desvincularia da sua tradição. Assim sendo, e dado o contexto histórico mencionado, o pensador alemão se insurge contra a tradição cultural, presente no modo de ser aurático da obra de arte, advogando pela reprodutibilidade técnica. Para embasar o conceito da destruição da aura, Benjamin parte da premissa de que a forma de percepção das coletividades humanas se transforma através de grandes períodos históricos como seu modo de existência. Especificando a definição de aura como uma singularidade espaço-temporal, como “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, Op.Cit. P. 170), parece ficar mais claro de que maneira e quais fatores sociais condicionam o declínio da aura. 117
Com efeito, é fácil hoje constatarmos na difusão e intensidade da cultura de massas92 a apaixonada preocupação por fazer as coisas ficarem mais próximas, assim como a tendência à superação dos fatos através da sua reprodução. Isto último adquire níveis extremos com a superexposição da informação na mídia, totalmente desvinculada do seu invólucro, descontextualizando fatos e situações. Porém, este fenômeno se faz também extensivo a todo tipo de bens de consumo e objetos de arte. A possessão da cópia, a imagem, ou melhor, a reprodução do objeto é hoje indiscutivelmente mais importante do que a própria existência do objeto autêntico. Um extremo desse processo pode se encontrar hoje na superexposição de imagens e conteúdos fragmentados nas redes sociais de internet. O filósofo da nostalgia, como alguns o chamaram, percebeu que na reprodução se associam a transitoriedade e a repetibilidade. Todavia, naquele então, jamais poderia ele ter imaginado a saturação de imagens veiculadas pela grande mídia televisiva e a digital, invadindo todos os espaços do cotidiano, para muito além do seu papel na sala de estar, denunciado por Adorno e Horkeimer já na década de 1960. Com efeito, como em um filme de ficção científica, a reprodução de imagens satura ininterruptamente o cotidiano urbano, por meio de aparelhos de televisão dispostos em restaurantes, bares, cafés, centros comerciais, repartições públicas, delegacias de polícia, ônibus, hospitais, aeroportos e até banheiros. Benjamin reconhecia na sua época, uma nova forma de percepção caracterizada pela extração do objeto do seu invólucro, pela capacidade de reconhecer “o semelhante no mundo” a ponto de, através da reprodução, conseguir fazê-lo no fenômeno único (Op cit. P. 170). Benjamin propõe a relação dialética entre Valor de Culto e Valor de exposição para uma análise da história da arte a partir do estudo da importância conferida a cada um destes polos nos diferentes períodos históricos. Ao colocar que a mudança de polo produzida naquele então, era radical a ponto de ser comparada à produzida na pré-história, diz, quase profeticamente: (...) assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje ao seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a 92
Vale reiterar que uso aqui o conceito de “cultura de massas” no sentido dado pela escola crítica de Frankfurt, referido à industria do entretenimento e seus mecanismos de fruição por parte do povo e não à cultura popular. Mesmo as críticas que apresentarei ao conceito frankfurtiano, preferi mantê-lo enquanto estivermos referindo- nos às ideias expostas por Benjamin, preservando a localização das suas reflexões em um contexto histórico determinado.
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única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária. (idem.).
Na visão benjaminiana, uma destas novas funções, que viria a assumir a preponderância, seria a função política, num sentido transformador, revolucionário. É, sem dúvida, uma leitura válida, especialmente se feita na Europa dos anos de 1930 a 45, embora não tenha se projetado no sentido esperado. Conserva-se sim o sentido revolucionário da transformação radical do modo de percepção, no entanto determinado por uma revolução não esperada nem prevista naquele momento: a revolução capitalista neoliberal que transformou, nas últimas três décadas do recém-passado milênio, a forma de acumulação de capital. Refiro-me à transformação do modo de acumulação de capital industrial, que tinha como referente político estrutural o estado bem-estar, vigente até a crise do petróleo no início da década de 1970, para o modo de acumulação de capital especulativo, que impôs seu referente ideológico: o neoliberalismo. Todavia, não foi, apenas, a mudança de fase do capital o que provocou a mudança mais profunda, mas, como aponta Manuel Castells (1999a, p. 411), a convergência de três processos independentes. O primeiro, de reformulação da sociedade capitalista somado à chamada revolução das tecnologias da informação e ao apogeu de movimentos sociais e culturais, - como os libertários, os antiglobalização, de direitos humanos, o feminismo e o ambientalismo - teriam feito surgir, nas três últimas décadas do recém-passado milênio, uma nova estrutura social dominante: a sociedade em redes. Nas palavras do sociólogo catalão, “uma nova economia, a economia informacional/global; e uma nova cultura, a cultura da virtualidade real. A lógica inserida nessa economia, nessa sociedade e nessa cultura está subjacente à ação e às instituições sociais em um mundo interdependente” (idem). Sem dúvida alguma, este complexo processo operou profundas transformações na forma de percepção, circulação e consumo das produções artísticas e da cultura de um modo geral, nas sociedades inseridas no sistema-mundo moderno, mesmo nas mais atávicas. As tradições imanentes nas práticas sociais nos lugares passam a se ver mais agredidas e ameaças do que nunca antes. Parece-me ser este um fator fundamental para se compreender a relação do referido processo de transformações, com as produções culturais e artísticas na subalternidade-mundo, num contexto de globalização, notadamente na América latina e Caribe. São modos da relação local/global, tempo lento/tempo rápido (SANTOS, 1994), tradição/fugacidade imagética, eu/nós-eu (Elias, apud TORRES, 2005), centro/periferia, metrópole/ex-colônias, e suas 119
variantes locais/regionais de colonialismo interno, definidas pela colonialidade do saber, inerente ao sistema-mundo moderno. Relações estas que se fazem sentir no cotidiano das pessoas e das comunidades. Aquela função nova e superior, ou preponderante, da obra de arte (e por extensão, da estética e da cultura), apontada por Benjamin, é hoje hegemonicamente dada pelas formas de inserção adotadas pelos fluxos do mercado. Unívoco e onipresente, o mercado, como fetiche implícito e central da sociedade do capital, exacerbado ao extremo na globalização neoliberal, passa a impor sua dinâmica à relação do indivíduo com todos os elementos da sua realidade social. Do mesmo modo, tensiona sob a sua lógica o fazer dos coletivos, compelindo-os a absorverem seus critérios de competência e exponibilidade - e seus códigos de competitividade, consumismo e individualismo - como condição de reconhecimento e inserção na chamada cadeia produtiva da cultura.
Assim, uma obra de arte é avaliada
justamente pelo seu grau de exponibilidade, segundo critérios e condições sociais determinadas, ou seja, pela capacidade de ser comercializada. É claro que as sociedades atuais são complexas e multiformes, e atravessadas por tensas relações interculturais que as alargam de sentidos. Porém, como nos alerta Ana Clara Torres (2005), é justamente essa subjetividade hegemônica do capital financeiro, sustentada na crença de que a rapidez, o consumo personalizado, o acesso a objetos sofisticados, o usufruto de corpos hiperproduzidos e o conforto das grandes redes hoteleiras sejam metas potencialmente partilhadas por todos os povos e culturas, a que vem agredindo o tecido de relações societárias e seus acervos culturais de longa e lenta decantação – sentido comunitário, solidariedade e partilha, identidade cultural e seus imaginários, redes parentais e locais, etc. Não é difícil hoje, constatar, por exemplo, a preponderância da reprodução de espetáculos cênicos para sua teledifusão, determinando em grau cada vez maior a estética e os critérios de exponibilidade dos próprios artistas em cena. Não é raro encontrar situações onde a própria possibilidade de sucesso ou fracasso de uma peça teatral dependa de que seus atores pertençam a elencos de telenovelas de grandes redes de televisão. Para Mariátegui (1990ª), contemporâneo de Benjamin, “a arte encontra-se num período de modas”, e não errava, embora não tivesse como imaginar sequer que “essa moda pegaria”, ao ponto da sua ética e sua estética se tornarem parte de uma complexa estrutura simbólica estruturante. A função última e indiscutível da obra de arte na cultura de massas na sociedade pós-industrial é a de 120
ser vendável. Qualquer produção estética tem de navegar, neste contexto, a contrapelo da saturação imagética e da manipulação do desejo que invade o cotidiano, e assim da barreira de ininteligibilidade posta pela superficialização das relações sociais. A memória recua como nunca antes. Paulo Freire percebia claramente a radicalidade da mudança trazida pela gobalização neoliberal: a sua usurpação da memória e da identidade dos comuns e, assim também, a importância disso tudo para a prática educativa, Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado.93
Contudo, estas forças encontram-se ainda hoje em constante luta. Benjamin constatou, já na sua época, o recuo do valor de culto em todas as frentes, diante do valor de exposição, verificando como ele se refugiou no culto da saudade. Até os nossos dias parece refugiar-se numa espécie de romantismo melancólico com que assumimos a relação entre os objetos e a memória. A mesma memória que Proust acreditava se achar escondida neles. Estética, memória e constituição do tecido social formam um entrelaçado indissolúvel. Parto assim do entendimento de que a memória coletiva é estimulada, construída e preservada pelas experiências compartilhadas, pelos sabores e os gestos, laços sociais, políticos e afetivos tecidos em longos e lentos processos de diretas relações copresenciais que vão se redefinindo e constituindo o nós ontogênico que dá sentidos de existência a uma comunidade comunicativa94 ou grupo social, tornando-se, em tempo, um aspecto vital da ação educativa. Em tempos de fugacidade imagética, a memória é um fardo pesado demais para se carregar. Todavia, a disputa pela memória dos povos parece não se dar mais apenas na disputa pela versão oficial, mas pela superexposição que a través da reprodutibilidade técnica transmuta a sua historicidade, esvaziando qualquer símbolo da sua atualidade política. Benjamin, ao identificar, na sua época, esse poder da técnica de fazer recuar o valor de culto, se propôs a voltar sua força contra a aura. Entretanto, não é somente a compreensão do efeito profundamente transformador da coincidência histórica dos três processos antes assinalados o que permite o deslocamento 93 94
FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e terra, 1996. Pag. 128. Como em Dussel (2007), a partir de Habermas.
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epistêmico capaz de perceber uma nova função social da aura no atual contexto. Isto porque o que está em questão não é apenas o contexto, mas o lugar a partir do qual vivenciamos e interpretamos ditas mudanças e seus efeitos. É preciso tensionar a perspectiva, desde a periferia do sistema-mundo moderno/colonial.
Não apenas desde a complexidade da
condição de sociedades atravessadas pela colonialidade do poder e do saber, mas da exterioridade do sistema. Sendo a nossa exterioridade ontogênica, não basta com a nossa percepção imediata, mas, também, escovar a história a contrapelo, como propõe o próprio Benjamin e simboliza o Sankofa da mitologia africana, que voa com a cabeça voltada para trás, segurando no bico o ovo do futuro. Interessa aqui o lugar da cultura popular como lócus de enunciação, sua memória, sua tradição, seus sentidos, sua ontogênese. Na contramão da ação fragmentadora de sentidos de pertencimento local e de mercantilização da cultura, a saturação imagética associada ao controle, provocadas pela articulação entre o capital e as tecnociências, encontram a oposição tanto de práticas sociais enraizadas nos lugares como dos conhecimentos acumulados pelo denominado, por Milton Santos (1994), homem lento (TORRES, 2005). Para Santos, este é aquele que conhece os lugares e precisa deles para sua sobrevivência, contrapondo-se com sua ação continua de produção de vida e sentidos ao tempo rápido imposto pela ação global do capital. Esta oposição às mudanças descritas não é, como muitos gostam de pensar, apenas uma reação conservadora ao “necessário” progresso e ao desenvolvimento. Em um sentido diferente e oposto, constitui o ponto culminante, atual, de seculares trajetórias (segundo a definição proposta neste trabalho) dos povos na nossa América. Os saberes acumulados por essas trajetórias, ou melhor, por essa trajetória heteronímica, múltipla e em aparência fragmentária, agora atualizada pelas lutas por identidades, dignidade e vida (que são de certo modos lutas territoriais), emergem carregadas de sentido, contidas nas práticas sociais enraizadas nos lugares.
Trata-se então, de trajetórias que, em sociedades pós-coloniais,
trazem inscritas no seu tecido a marca da dominação colonial. Entretanto, a relação com a cultura dominante que os povos colonizados e daqueles que foram sequestrados das suas terras para serem aqui escravizados, tem sido por muito tempo desconsiderada ou então lida não como relação, mas como entidades culturais estanques, que se excluem mutuamente. Todavia, é a estirpe delas a que veio configurar as classes populares na nossa América - de diversos modos em cada país, mais miscigenados em um, mais hegemônicos em outro, mas de forma transversal e consistente em todo o continente, por mais 122
que a colonialidade do saber faça muitos se perceberem mais brancos do que de fato somos. O fato é que historicamente, as classes populares na nossa América têm sofrido a dominação colonial dos mais diversos modos, sendo especialmente para os mais excluídos do sistema, ainda hoje, as mudanças estruturais/institucionais que os países experimentaram, apenas cosméticas. De certo, em geral, a miséria, o trabalho aviltante, a falta de acesso a serviços básicos, etc. têm sofrido poucas mudanças ou mudanças pouco expressivas no seu cotidiano, afetando de modo peculiar a percepção subjetiva sobre esta realidade. Trago esta questão no intuito de colocar alguns elementos que adiante retomarei na construção do argumento sobre a relação entre a subversão e a cultura popular na nossa América. O tempo longo da colonialidade do poder que, como nos lembra Quijano (2001), ainda não conclui, significou para “índios”, “negros” e “mestiços” - segundo as categorias coloniais - a experiência de se verem presos entre o padrão epistemológico próprio e o padrão eurocêntrico, forçados a uma dupla consciência (DU BOIS, 1999) que se transformou em racionalidade instrumental ou tecnocrática (QUIJANO, 2001).
Um certo senso comum
acadêmico, atravessado de colonialidade, considerando o fato destas populações terem sido submetidas por tantos anos a tamanha alienação, acredita que estas, fora algumas expressões remanescentes de culturas arcaicas (logo desprovidas de atualidade estética e política), apenas se limitariam à imitação dos cânones eurocêntricos. Assim, as diferenças entre os cânones estéticos hegemônicos na modenidade/colonialidade e as produções simbólicas dos colonizados e seus herdeiros, dever-se-iam a erros ou incompetências na sua arte de imitar. Todavia, com já apontamos anteriormente, não há apenas imitação e reprodução nas culturas subalternas, na nossa América, mas a constante subversão dos cânones impostos.
Para
Quijano, A expressão artística das sociedades coloniais dá clara conta dessa contínua subversão dos padrões visuais e plásticos, dos temas, motivos e imagens de alheia origem, para poder expressar a sua própria experiência subjetiva, se não a prévia, original e autônoma, sim, entretanto, uma nova, dominada sim, colonizada sim, porém subvertida o tempo todo, convertida assim em espaço e modo de resistência.95
Esta condição de reinvenção de padrões estéticos devido ao seu desenvolvimento em relação, atravessa praticamente toda a história da arte e da cultura da nossa América e pode ser facilmente observada muito antes dos movimentos que, no século XX, assumiram 95
QUIJANO 1998. Quijano desenvolve a questão da relação entre Colonialidade do poder, cultura e conhecimento na América Latina, em artigo publicado em 1988 no Anuario Mariateguiano, posteriormente revisado e compilado em MIGNOLO, 2001.
123
abertamente essa postura. No, Brasil, o movimento antropofágico, assim como, na música popular, a Tropicália e mais tarde o Mangue bit, são exemplos paradigmáticos de vanguardas artísticas e intelectuais que perceberam esta condição. O movimento antropofágico, plasmado no Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, em 1928, usa a antropofagia como metáfora para significar essa atitude estético-cultural de “devoração” e assimilação crítica dos valores culturais estrangeiros transplantados para o Brasil, bem como realçar elementos e valores culturais internos que foram reprimidos pelo processo de colonização: “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” (...) “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro” (ANDRADE, 1976).96 Todavia, ao contrário do que possa se pensar, a fonte da qual beberam estes movimentos de vanguarda tem uma longa tradição no continente. A subversão dos padrões estéticos, sua reapropriação ‘desde cá’, para a produção de uma arte original, defendida por nomes como Helio Oiticica, Mario de Andrade ou os próprios tropicalistas entre tantos outros, pode ser conferida nas danças populares, nas vestes, nos adereços e nas festas de brasileiros, antilhanos, mexicanos ou no planalto andino. Do mesmo modo, essa subversão dos padrões pode ser observada na obra do mineiro Aleijadinho, ou na monumental igreja de Potosí, nos quadros da escola de Quito e Cuzco e mais recentemente nos murais dos mexicanos Siqueiros, Rivera, Orozco, como também, e de um modo diverso, nas obras de Guayasamin e Portinari, como também na obra literária de Garcia Marquez, Carpentier e Guimarães Rosa, por citar os mais expressivos. E, por mais que custem a aceitá-lo as elites intelectuais locais e os puristas defensores da tradição, esta característica de reinvenção profundamente criativa, esta postura culturalmente antropofágica, continua presente no fazer da cultura popular nas periferias dos grandes centros. Não é, acaso, um ato antropofágico de subversão estética o chamado Funk Carioca? Como escreveu o próprio Caetano Veloso, Da eleição do repertório de hits se dando de forma totalmente independente da programação radiofônica e dos interesses das gravadoras à predominância da batida umbanda-maculelê sobre o Miami bass, o funk carioca é uma história de liberdade inventiva cuja importância ainda 97 havemos de saber reconhecer.
96
Copia do manifesto Antropofágico e do Manifesto do Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, comentados, disponíveis em http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf Último acesso em 10/10/2013. 97 Disponível em http://www.caetanoveloso.com.br/blog_post.php?post_id=1455 Acesso pela última vez em 10/10/2013.
124
De um modo outro, talvez uma das mais prolíficas fontes de produção estética e simbólica da cultura popular da América latina e do Caribe, como expressão da sua implícita subversão cultural, encontre-se nos cultos, rituais, festas e as mais diversas práticas religiosas de um cristianismo subvertido de sentidos ao ponto de reinventá-lo profundamente, seja no sincretismo religioso, seja nos modos e na estética de um religião que, até então, não aceitava sequer a palavra vernácula nem os instrumentos musicais, que dirá as danças ou quaisquer expressões do corpo em trance. Para os modernistas, Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. (...)Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. (ANDRADE, 1976)
Todavia, o espírito do Manifesto antropofágico, absorvido pela elite local moderna e sua noção eurocêntrica de exotismo, em tempo que inserido como fragmento de memória no contexto da saturação imagética potenciada pela tecnociência midiática, foi dissociado de qualquer leitura dinâmica da potência de subversão de cânones estéticos inerente à cultura popular, tirando assim sua atualidade política.
Aqui como em toda América latina, a
colonialidade do poder continua operando na perpetuação do ocultamento e/ou da subalternização das culturas populares. Assumindo então um necessário giro epistêmico, pode-se perceber o caráter revolucionário e essencial da aura de um modo diferente ao encontrado em Benjamin: uma transmutação do próprio conceito de aura. Na leitura bejaminiana, na primeira metade do século XX, a necessidade de politizar a arte, em contrapartida à estetização da política num sentido fascista, o levou a advogar pela reprodutibilidade e pela eliminação do conceito de originalidade. Da mesma maneira, neste século XXI que se abre passo aceleradamente, é colocado ante nós, pela consolidação do sistema-mundo moderno e pelo avanço do neoliberalismo em todos os campos da cultura, o imperativo de reconstruir a aura da arte popular como a constatação de que há vida fora das fronteiras da monocultura do mercado. O elo não percebido pelo filósofo alemão se encontra na potência criativa, de apropriação e de subversão que possui a arte popular, múltipla, inventiva, ancestral e antropofágica. Potência esta que lhe permite não apenas sobreviver e resistir, mas criar onde menos se espera, r-existir. Há uma história, uma tradição, um momento único contido em cada evento da arte popular e negado pelo culto ao astro, ao pop-star, montado pela mídia e denunciado por Benjamin. 125
Empurrados contra o espelho desfigurador do mercado, condenados culturalmente ao mito de Dorian Gray, buscamos uma tábua que nos permita navegar, sobreviver na vertigem mutante da cultura globalitária. Essa tabua encontra seu élan na aura da produção estética das classes populares, na cultura popular que resiste e r-existe em vilarejos e subúrbios dos ditos países periféricos, como parte da memória viva de um povo. Memória negada pela cultura dominante. Entretanto, há hoje, uma tendência à procura por raízes, como reação perante um mundo globalizado que parece absorver as múltiplas produções simbólicas, subalternizando-as. Impõe-se a elas a lógica de um suposto multiculturalismo des-historicizado e asséptico, cujo marco geral é dado pela ideia de uma neutralidade insossa que opera, de fato, à escala planetária, como uma gigantesca máquina de pasteurização do fazer de povos, grupos e classes sociais. É a ideia da igualdade universal, igualdade a um modelo que nega ou subalterniza a diversidade. Em uma contramão aparente, a procura pela pureza das culturas atávicas (GLISSAN), ou das formas pré-industriais das culturas populares, não apenas dificulta a vida em relação, mas opera também, não raro, como mecanismo de distinção que desqualifica o fazer criativo das classes populares, hoje. No mesmo movimento em que redefine o seu fazer a partir de critérios delimitados pelo ideal de pureza (de qualquer cultura), retira também sua atualidade ético-estética e, assim, sua potência política e epistêmica imanente. Mais próxima da perspectiva da interculturalidade crítica, pensar a aura do fazer popular significa caminhar num sentido diferente.
Trata-se de descobri-la contida, mesmo que
transmutada ou oculta - suja e antropofágica - nas formas atuais da arte popular; de achá-la não somente nas suas formas pretensamente puras, mas em todas as expressões que se abrem passo fora do alcance dos holofotes e dos grandes salões, fora do eixo do grande mercado, do show-bussines e dos megaeventos. Ou então, na sua periferia, misturando-se, achando modos de continuar sendo, reinventando-se e subvertendo padrões. Para tal, é preciso, tanto na critica, na indagação como no fazer, operar um giro epistêmico à procura de categorias e critérios outros, ancorado próprio quefazer criativo. É preciso partir do Sul, em direção ao Sul. É necessário aqui frisar que a atualidade política da aura da arte popular não se define por critérios de eficácia e eficiência do político. De um modo diferente, esta ação seria radicalmente alheia a esses critérios, pois estão estes atrelados à utilização das técnicas de 126
reprodução a serviço de interesses particulares, dentro da lógica do capital: é esta sua origem e função social no contexto da modernidade capitalista/colonial. As ações de pesquisa, crítica e criação em um movimento descolonial, teriam, sim, seu alicerce no valor de exposição, enquanto direito do povo a se reconhecer na própria expressão artística, que reflete e contém sua historicidade, como apontou Benjamin, mas não pode ser submetida aos critérios de reprodutibilidade que potenciam este valor destituindo a obra da sua aura. No mesmo movimento dialético, esta tem no valor de culto à história contida na obra de arte popular, a restituição da sua atualidade política. É uma tarefa voltada assim também para a memória e implica em uma releitura da tradição. Porém, e pelo exposto, o caráter político da tarefa parece ser implícito, não explícito. A questão, hoje, não seria, assim, a politização da arte no intuito de torná-la mais eficaz, e sim de atualizar politicamente o valor de culto ao articular memória e expressão no fazer cotidiano. A grande mídia, quintessência da era da reprodutibilidade exposta, é hoje veículo privilegiado que transmite a imagem da cultura e do fazer artístico popular no mesmo movimento que a oculta, enquanto reordena seus valores éticos e estéticos sob critérios próprios, que determinam o que é mostrável e de que modo pode sê-lo. É lócus privilegiado e desigual da disputa pela memória da cultura popular, sua ressignificação e sua reificação, como esvaziamento da sua potencia de identidade e mobilização. Assim, quando vemos nela o fazer artístico e cultural dos pobres, por exemplo, o que costumamos ver, longe de serem pontes de aproximação real e comprometida, são imagens dissociadas do processo de sua elaboração e do significado último que possuem para o grupo que as produziu, apresentadas dentro de um contexto construído por um discurso cujos objetivos, interesses e pertinência, pouco ou nada têm a ver com o fato exposto aos telespectadores. Porém, a história de cada expressão artística da cultura popular da nossa América é parte da história das lutas, dos conflitos, das relações sociais que a implicaram. A ela e à comunidade que lhe deu origem. Essa história secreta do povo brasileiro e latino-americano emerge nas expressões da sua cultura popular. Desta maneira, o trabalho de pesquisa, produção, difusão e fruição da tradição popular local/regional, num momento de globalização dos modos de produção e percepção capitalistas, implica necessariamente em se inserir num ato contínuo de r-existência cultural. Entretanto, não no sentido de encará-la como uma espécie de peça de um museu vivo, mas no de resgatar sua aura de uma forma vívida, contínua e em relação com o mundo com o outro. 127
A ideia da transfiguração da aura da obra de arte nos permite compreender que ao conceito negativo da aura, como visto por Benjamin, corresponde também uma contrapartida positiva, no novo contexto globalizante, numa perspectiva crítica da interculturalidade na nossa América: a aura como elemento essencial da historicidade e unicidade de um determinado grupo subalternizado, como potência de afirmação e negação da identidade. Negação do que somos, como cultura “folclorizada” e restrita a um suposto passado pré-industrial; e afirmação do nós negado, ao assumir a alteridade, na que continuamos sendo a partir do momento em que fazemos. E fazemos de uma determinada forma que muda, porém conservando o modo de ser aurático das nossas tradições, isto é, a forma de ser hoje, aqui e agora das trajetórias dos povos. Era contra a tradição contida na Cultura com C maiúsculo, herdeira da longa tradição que dera origem à arte com nome e sobrenome que habita os grandes salões, à que Benjamin buscava superar-lhe o sentido religioso e subverter-lhe o político. Entretanto, e apesar dessa História, com H maiúsculo, à qual ele faz referência, dessa “História dos vencedores”, aquela corveia sem nome vinha também criando e fazendo arte a contrapelo do que a Historia com maiúscula registrou. Refiro-me à monumental obra secular oculta na subalternidade-mundo, que a História dos historicistas registrou não como obra de artistas, mas de anônimos artífices e artesãos, como obra de “los Nadies”, “que não fazem arte, senão artesanato, que não praticam cultura, senão folclore”. É essa não-história, porque negada, de uma estética do invisível aos olhos do Ocidente, que assume um lugar outro, insurgente e subversivo, na nossa América, produto das trajetórias do seu povo, expressa na sua tradição. Assim, proponho a tese de uma função da Aura diferente à de Benjamin, não por considerar errada sua postura com relação à tradição, mas por termos diante de nós não apenas um contexto histórico diferenciado senão, e principalmente, por estarmos falando a partir de lugares diferente, de uma história construída na diferença colonial. Nesse sentido, o nosso pensamento com relação à tradição se aproxima da visão de José Carlos Mariátegui (1990), para quem a tradição é viva e móvel. É nesse entendimento que afirma, criam-na [a tradição] os que a negam para renová-la e enriquecê-la. Matam-na os que a querem morta e imóvel, prolongamento do passado num presente sem forças, para nela incorporar seu espírito e nela transfundir seu sangue.98
98
MARIÁTEGUI, J. C. Tópicos de Arte Moderno, artigo publicado originalmente Mundial, Lima, 22 de Março de 1930, e compilado em MARIATEGUI, 1990a.
128
Pensando a tradição como patrimônio e continuidade histórica, Mariátegui diferencia a tradição da concepção aprisionadora do conservadorismo tradicionalista, entendendo que “a tradição é particularmente evocada, e até ficticiamente monopolizada, pelos menos capazes de recriá-la” (Idem.). Esta concepção se torna uma das teses transversais a toda a reflexão apresentada sobre a cultura popular. É também, a partir dela que diferenciamos o conceito de Cultura Popular dos tantos que a apresentam como resíduo social subalterno. E é esse o sentido que me leva a indagar pela aura de r-existência, não nos redutos guetizados onde, pelo mesmo, a tradição possa se ter “preservado”, de algum modo, reificada, mas sim na hexis corporal das festas em praça pública, na memória recriada pelo ato coletivo, no habitus99 de jovens artistas contemporâneos, no seu modo de ocupar o espaço público, de subverter e reinventar a cidade e sua estrutura colonial e mais além, na memória e na paisagem. Como veremos adiante, trata-se de uma estética, ou melhor, de uma poética que não encontra sua expressão em culturas atávicas e puras, mas que estão em relação constante e permanente, num movimento de ir sendo, reinventando-se, r-existindo. Será o entendimento desse modo de ser aurático contido nas tradições populares e na ocupação do espaço público, a que permitirá, adiante, repensar sua relação com o público do espaço. Todavia, antes se faz necessário refletir brevemente sobre o próprio conceito de cultura popular, um debate ainda em aberto. [sobre o(s) conceito(s) de cultura popular, um debate e outras aproximações] Produto do encontro violento entre a cultura africana e a do norte europeu, o Jazz nasce no coração escravista da América do Norte, nos prostíbulos do bairro do porto em Nova Orleans. De lá, em menos de cem anos, a música que surgiu de um misto dos cantos de trabalho dos escravos negros, do blues e de uma releitura de canções populares europeias, se consolidou e espalhou pelo mundo todo, tornando-se um dos maiores fenômenos da chamada cultura de massa no século XX. Foi também palco de importantes debates sobre a cultura popular. No seu ótimo livro “História social do Jazz”, o historiador inglês Eric J. Hobsbawm (1990) chama nossa atenção para os limites de uma visão que considera a cultura popular nos países industrializados como puro entretenimento padronizado, transmitido e manipulado via mídia e que produziria o empobrecimento cultural, em uma clara referência crítica - implícita - ao pensamento da Escola de Frankfurt, notadamente de Adorno e Horkeimer, e sua ideia de 99
Hexis e Habitus são aqui utilizados nos sentido proposto por Bourdieu (2000) e voltarei a eles de modo específico no final deste capítulo.
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regressão da cultura de massa. A crítica não é gratuita, especialmente sendo a música o tema em questão. Um texto de Adorno sobre a música popular toma explicitamente como modelo de comparação a música clássica, a qual considera como uma produção "séria" que se contrapõe a um tipo de música degenerada. O mesmo pode ser dito de suas análises sobre o jazz, que o qualificam como uma música bárbara e regressiva (ADORNO, 1941 e 1982). Esta análise frankfurtiana tem a sua base no entendimento da arte, da cultura e da teoria crítica como elementos que negam a ordem social vigente (no caso, a da sociedade burguesa, como consolidada a partir dos séculos XVII e XVIII). Desconhecendo na prática a questão de classe100, ou em todo caso, desvinculando totalmente Arte e classe social, entendiam as seguintes oposições, teoria crítica – positivismo; cultura - civilização; arte - cultura de massa. Esta leitura explica, em boa medida, a conhecida aversão de Adorno a qualquer expressão da Cultura Popular. Em uma entrevista a um programa de televisão, Adorno comenta a canção de protesto, naquela época no contexto das lutas pelos diretos civis e contra a guerra do Vietnam. Ele diz: (...) acredito que as tentativas de reunir protesto político e música popular – ou seja, música de entretenimento – estão arruinadas desde o início pelas seguintes razões: Toda a esfera da música popular, mesmo onde se reveste de roupagens modernistas, é tão inseparável do caráter de mercadoria, da míope fixação com o divertimento, do consumo que as tentativas de atribuir-lhe uma nova função permanecem inteiramente superficiais. E tenho de dizer que quando alguém se envolve, e por qualquer razão, acompanha os choramingos musicais, cantando uma coisa ou outra sobre o Vietnam ser insustentável, eu acho, em verdade, ser essa canção a insustentável. Porque ao pegar o horrendo e torna-lo de certa forma consumível, ela acaba arrancado dele algo como qualidades consumíveis.101
A afirmação de Adorno parece se alargar de sentidos e tensão ao pensarmos que, do lado do “horrendo”, ficariam as obras de Bob Dylan, Joan Baez, Paco Ibañez, Joan Manuel Serrat, Violeta Parra, Victor Jara, Silvio Rodriguez, Vinicius de Morais, Chico Buarque, entre tantos e tantos outros, e só para nomear alguns que, à data dessa fala, assumiam abertamente o fazer da sua arte uma forma de luta. De fato, a declaração de Adorno em nada destoa das análises sobre a cultura popular de massa, vertidas em textos expressivos como Mínima Moralia (2001), Indústria Cultural e 100
É notória a pouca resonância da categoria classe nas análises da Escola de Frankfurt, inclusive chama a atenção a sua ausência no livro “Temas Básicos de Sociologia”, escrito por Adorno e Horkeimer. 101 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=skI0JC2s-aU mas sem data nem referência precisa, (Áudio em Alemão. tradução feita a partir da legenda em inglês em: http://www.youtube.com/watch?v=5U3-I10_rr0
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Sociedade (2009), e seu polêmico Teoria Estética (1993). Para ele não há possibilidade de Arte, de produção estética, no seu sentido “puro” ou autêntico, no âmbito da cultura popular na sociedade industrial, pois este campo estaria definido pela sua imersão na negatividade degenerativa da Indústria Cultural. O entendimento da arte como uma esfera independente, com maior grau realtivo de autonomia e liberdade, que se opõe à cultura de massa, e o pessimismo característico do pensamento frankfurtiano, levam a entender tudo como se a realidade social fosse portadora de uma qualidade degenerescente que contaminaria as instâncias culturais autênticas, transformando-as em utilidade técnica.
Daí que muitos,
ligados afetivamente à forma de expressão da cultura popular, e influenciados por essa perspectiva e/ou por visões folclorizantes, olhem para a arte popular em busca de suas raízes, isto é, na sua forma “original”, “sobrevivente”, anterior à sociedade industrial e, assim, livre da contaminação do mercado. Para Hobsbawm, que não deixa de encontrar uma boa dose de razão na leitura frankfutiana, a perspectiva que busca resgatar as formas pré-industriais da expressão popular estaria marcada por “um irremediável romantismo”. Seria, aproximadamente, aquilo que Canclini chamaria de "invenção melancólica das tradições" (CACLINI, 2000. Pag. 207). O curioso é que a grande maioria dos estudos desenvolvidos desde finais do Sec. XVIII e inícios do XIX até a segunda metade do XX, relativos às culturas populares que se desenvolvem ao interior da sociedade industrial, mas que têm claras raízes na cultura popular pré-industrial, está atravessada por esta visão. Embora seja inegável o enorme peso da mídia e da indústria do entretenimento, e seu efeito nefasto em diversos sentidos, o fato é que a leitura que totaliza a cultura de mercado como sinônimo de cultura popular, hierarquizando-a em uma estrutura rígida e mecânica, impede compreender melhor toda e qualquer manifestação cultural surgida ou desenvolvida ao interior da denominada “cultura de massa”. De um lado, é importante lembrar que a indústria do entretenimento somente “descobre o que é mais lucrativo processar e processa” (HOBSBAWM Op. Cit.), e é justamente da própria tradição popular de onde são extraídos os elementos a serem processados, cujas raízes se encontram, em muitos dos casos, na sociedade pré-industrial. Muitas destas expressões da cultura popular, posteriormente processadas pela indústria do entretenimento, existem hoje de um modo quase irreconhecível, produto da natural evolução de uma arte que se mantém viva. Ao se debruçar sobre o seu tema - o campo do Jazz como produção artístico-cultural de origem pré-industrial que sobreviveu e se diversificou -, Hobsbawm resalta que a “história das 131
artes não é uma única história, mas, em cada país, pelo menos duas”. Para ele, estas seriam “a das artes praticadas e usufruídas pela minoria rica, desocupada ou educada, e aquela praticada ou usufruída pela massa de pessoas comuns”.
É nesse contexto, no campo da produção e
fruição dos “comuns”, que ele trava sua disputa conceitual, se opondo à visão que contrapõe, apenas, alta cultura e cultura do entretenimento. Para o Historiador marxista, a condição de classe, definida de modo binário e como categoria constitutiva das sociedades modernas, define estes dois grandes campos de produção e fruição artística. Ambos aparentemente revestidos de um invólucro essencialista que os define estruturalmente. No campo, genérico por antonomásia, da cultura popular, e movido pela sua paixão pelo Jazz, Hobsbawm busca conceitualmente um lugar que explique o fenômeno do desenvolvimento e disseminação da música negra norte-americana, e inclusive a sua posterior legitimação nos salões da elite. Todavia, embora reconhecendo que o acesso do próprio Jazz à tradição comum da cultura permanece em obscuridade analítica102, o historiador não questiona sequer esta classificação e sua linearidade, trabalhando ainda com a categoria de folclore, para se referir às formas artísticas ditas de origem pré-industriais, as quais se manteriam em “estado natural”. Para conseguir seu objetivo, o Historiador inglês adere à “teoria” da supervivência. Não é dito, mas o campo do chamado ‘folclore’ parece ser externo ao conjunto das duas histórias da Arte, como uma tartaruga gigante das ilhas Galápagos, que sobreviveu aparentemente intacta desde a pré-história, sem maiores vínculos com o presente, alem da sua inegável, e teoricamente incômoda, existência, é claro. De fato, para os estudos culturais, desenvolvidos nas últimas décadas do recém-passado século XX, a ideia de supervivência é um bom exemplo do fracasso teórico dos folcloristas (CANCLINI, Op. Cit. Pag. 210). O fato de a questão da produção estética dos subalternos e a sua relação com a cultura legitimada como patrimônio permaneceu, como apontou Hobsbawm, em obscuridade analítica, para usar as suas próprias palavras, durante muito tempo, o que parece sintomático, quando não insólito, se visto ‘do lado de cá’. É, no mínimo, curioso que uma civilização com uma enorme institucionalidade voltada para a produção - e acumulação - do conhecimento, como é o caso da ocidental, não tenha se aprofundado na compreensão de fenômenos tão abrangentes e impactantes na vida das pessoas e que incidem inclusive, na economia a grande escala. Este estado de isolamento analítico esteve dado, provavelmente e em grande medida,
102
E o mesmo poderia se dizer de outros fenômenos estéticos menos estimados pelo autor, como o Samba, o Tango, a Salsa (Son) e o Flamengo, somente no campo da música.
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pela sua própria existência como categoria. A época de consolidação dos Estados nacionais, como projeto da sociedade burguesa, na Europa do 1800, a necessidade de abranger toda a sociedade produz o que Martin-Barbero (2006) chamou de um complexo dispositivo de “inclusão abstrata e exclusão concreta”, que significava, na prática, que o povo entrava em cena para legitimar a hegemonia cultural burguesa, ilustrada, mas poderia ser mantido à distância no que incomodava, pelo que a ele faltava, do ponto de vista dessa mesma concepção. O conceito de folclore fornece essa possibilidade e se torna, assim, parte central desse dispositivo. Nos dias de hoje, continuamos de fato a aprender - na Escola, nos livros legitimados pela hegemonia do saber, na mídia - a pensar que a Arte, de um modo geral, mas também especificamente nas nossas sociedades periféricas, se define e enquadrada, na sua forma e na sua função, majoritária e hegemonicamente por estes dois grandes ambitos da sua produção, segundo a periodização, problemática e conceituação estética dita “ocidental”. De um lado estariam os campos da arte definida como clássica e/ou contemporânea, na sua definição radicalmente eurocêntrica, o que confere a ela um status de “arte elevada” ou de alta cultura: a música de câmara e de concerto, a pintura e as artes plásticas em geral, o teatro e as artes cênicas, de palco italiano e suas variantes, a dança Clássica e a Contemporânea. Cada um deles carregando um peculiar debate entre tradição, classicismo e contemporaneidade, e inseridos em campos específicos do fazer, no exato sentido apontado por Bourdieu, na sua célebre ‘Economia das Trocas Simbólicas’.103 Em contraposição, o já mencionado campo da Indústria Cultural, do entretenimento, e suas versões destas artes, entendidas assim como a produção e fruição dos comuns, afinal, dos subalternos, receptores passivos de uma cultura degenerescente. Embora o critério quantitativo não caiba como arguição neste debate, cabe lembrar que a imensa maioria do planeta fica absolutamente excluída desta categorização, a não ser no movimento em que se integre ou se assimile aos padrões estéticos definidos pelo campo específico do que é, assim, definido como Arte. De fato, ambos os campos têm em comum uma ausência: seja relegada à categoria de folclore, ou das expressões residuais de uma cultura pré-industrial, a cultura das classes populares e da periferia-mundo, a sua produção estética e a sua arte, ou é absolutamente negada como tal, invisibilizada, ou então explicitamente deslegitimada, negada e considerada como 103
Talvez possamos fazer uma resalva no caso do Circo, pela sua trajetória diferenciada e mesmo para o cinema e a fotografia, pela particularidade destas com relação à reprodutibilidade técnica e seu desenvolvimento mais recente, em comparação às ditas “artes clássicas”.
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degradação. O mesmo vale para toda a arte e a cultura latino-americana como um todo, da qual se dúvida, como veremos, a própria existência, fora a ressalva antes mencionada da relativa proximidade aos padrões definidos pela Arte legitimada que opera, assim, como mecanismo de distinção. Esta exterioridade do campo da cultura popular, da arte dos nadies, para retomar a metáfora de Galeano, a joga no campo da barbárie: é, assim, uma estética do não ser da modernidade, uma estética dos invisíveis. A mencionada invisibilidade é provocada por um ponto cego produzido pela colonialidade do saber que atravessa a visão liberal burguesa sobre o campo da estética, da arte e da cultura. Mas não só. Malgrado a sua enorme contribuição para a crítica da indústria cultural, da qual não tenho dúvida temos ainda muito a extrair, este ponto cego é também produzido, e exatamente pelo mesmo motivo, pela própria teoria crítica da cultura, desenvolvida pela Escola de Frankfurt, mais especificamente por Adorno e Horkeimer. O próprio conceito de ‘Massa’ torna quase inaccessível qualquer reflexão ao universo múltiplo, complexo, dinâmico e atual da produção estética das classes subalternas, mais ainda se for considerado o sentido negativo dado a este conceito pelos frankfurtianos, dos quais, é bom lembrar, Benjamin se diferenciava radicalmente. Esta questão aparece de modo radical e premente, mesmo sem sequer considerar ainda a diferença colonial como elemento constitutivo das relações sociais na modernidade/colonialidade. Não tem como não olhar para este debate sem nos sentirmos atravessados por enorme estranhamento, sob-risco de nos negarmos como possibilidade e como existência. Com efeito, para nós, fazedores da cultura popular, trabalhadores da estética e educadores populares do sul do mundo, comprometidos política e afetivamente com a libertação, assumir a perspectiva analítico descritiva significaria assumir um olhar extrínseco sobre nós mesmos, cujo resultado seria a própria negação da nossa potência humana, logo, cultural, ética, estética e econômica, no sentido de relação com o mundo. Assim, o chamado giro descolonial é, neste caso, não uma opção intelectual, mas uma condição sine qua non, e uma urgência. Pensar esta questão a partir da nossa experiência, das nossas trajetórias de resistência e criação, urdidas de encontros, compromissos, afetos e reflexão, da história negada ou negligenciada da nossa América, introduz elementos de complexidade que redefinem necessariamente os conceitos vertidos até aqui. A teoria não apenas não dá conta, como assume um papel antagônico.
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[exterioridade da cultura popular e exterioridade da nossa América - a estética do invisível] Há sem dúvida uma questão anterior às análises lançadas sobre esta ou aquela realidade social que nos impedem, efetivamente, apreender a nossa própria realidade.
Ao falar em
exterioridade e sobre uma estética do não-ser, o que em princípio surgiu como uma metáfora mais ou menos ingênua, aproximou-nos, em verdade, de uma questão epistêmica de fundo. É neste ponto que se encontra no Movimento da Filosofia da Libertação Latino-americana e no pensamento social da nossa América uma linha de reflexão que aproxima, ou ao menos, permite vislumbrar uma compreensão do que venho chamando de cultura popular na nossa América, cultura de r-existência (ACHINTE, 2007; PORTO-GONÇALES, 2008) e mesmo, cultura rebelde ou subversiva.
Esta concepção permitirá entrever os desdobramentos
conceituais da “voz” desta(s) Cultura(s) no sentido estético, político, pedagógico e epistemológico. Para me aproximar desta questão é preciso apontar muito brevemente o contexto do desenvolvimento da filosofia da libertação e, em particular, do pensamento de Dussel nesse sentido. Embora a risco de me afastar brevemente do foco da reflexão proposta, e longe de qualquer intuito enciclopédico, considero fundamental tentar contextualizar minimamente a teoria proposta no seu sentido filosófico, isto é, situar as noções de exterioridade e/ou outredade do não-ser, no seu sentido ontológico, e dar substância à noção, já utilizada ao longo deste trabalho, de o Outro do sujeito da modernidade, aproximando-nos, em tempo, das categorias de Horizonte cotidiano como Totalidade, que me permitem alargar de sentido a noção de trajetória-maaya como já proposta, para além da análise sociológica. A filosofia da libertação latino-americana é um movimento filosófico cujo surgimento se dá em uma conjuntura histórico-mundial de crise filosófica, cultural, política e econômica de contornos explosivos, a fins da década de 1960 (notadamente marcada pelos acontecimentos de 1968 - París, Berkeley, Tlatelolco no México e o "Cordobazo" da Argentina). À escala global constitui o surgimento, na periferia, de um pensamento crítico que irá se desenvolver até o presente. Trata-se de um agudo e radical processo de toma de consciência da realidade no mundo periférico, no horizonte dos países que foram colônias da Europa, onde as ciências em geral, e as ciências sociais e a filosofia em particular, tiveram igualmente um caráter
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colonial, de repetição do horizonte categorial e metódico das ciências metropolitanas104. Tratou-se de uma ruptura epistemológica.
Como demonstram Solís, Zúñiga, Galindo e
González (Op. Cit. Pag. 340) a filosofia da libertação é, de fato, o primeiro movimento filosófico que começa a descolonização epistemológica da filosofia em si, desde a periferia mundial, criticando a pretensão de universalidade do pensamento moderno europeu e norteamericano, situado no centro do sistema-mundo. Como guia de aproximação me utilizarei de uma pequena citação extraída da introdução da “Filosofia de la Liberación”, em que Enrique Dussel afirma, Contra a ontologia clássica do centro, desde Hegel até Marcuse, por mostrar o mais lúcido de Europa, levanta-se uma filosofia da libertação da periferia, dos oprimidos, a sombra que a luz do ser não tem conseguido iluminar. Desde o não-ser, do nada, o outro, a exterioridade, o mistério do sem sentido, irá partir o nosso pensar. É, então, uma “filosofia bárbara”.105 (grifos meus),
Nesta frase, aparentemente simples, e que poderia ser interpretada por alguns como pura metáfora poética, encontra-se a síntese sobre a qual Dussel se propõe a construir uma filosofia que nega, afirmativamente, toda a ontologia da filosofia moderna. Não há uma palavra por acaso nesse pequeno parágrafo: Centro/periferia, oprimidos, sombra/luz, não-ser, o Outro, a exterioridade e a barbárie são todos conceitos chave não apenas da sua filosofia, como do pensamento social da nossa América. Ao posicionar seu pensamento como uma filosofia que se levanta da Periferia contra o Centro o pensador latino-americano faz uma referência explícita à teoria da dependência106. Desenvolvida na década de 1960 por intelectuais como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Orlando Caputo, entre outros, a teoria da dependência constitui um marco na história do pensamento social da nossa América e a partir daí, do mundo. Ela estabelecia pela primeira vez, em termos socioeconômicos formais, uma inter-relação de dominação e subordinação entre os países ditos desenvolvidos e os subdesenvolvidos ou, como nomeados à época, entre o primeiro e o terceiro mundo. 104
Bello Ortiz, Zúñiga et alli, in DUSSEL, et allí, 2011. Pag. 399. Texto original em español em (DUSSEL, 1977 (1.1.8.7.2), pag. 26): “Contra la ontología clásica del centro, desde Hegel hasta Marcuse, por mostrar lo más lúcido de Europa, se levanta una filosofía de la liberación de la periferia, de los oprimidos, la sombra que la luz del ser no ha podido iluminar. Desde el no-ser, la nada, el otro, la exterioridad, el misterio de lo sin sentido, partirá nuestro pensar. Es entonces, una “filosofía barbara”” Tradução própria. 106 A este respeito ver DOS SANTOS, 2000, em que Theotônio dos Santos faz um balanço e analisa as perspectivas da teoria da dependência. 105
136
Contrariando as leituras hegemônicas do marxismo oficial107 e da CEPAL108, e a ideia, amplamente difundida na época, de que o desenvolvimento econômico dos países de dava por etapas, o que originaria anomalias na economia de alguns, este novo corpo teórico propunha uma relação entre países centrais e periféricos com o capitalismo mundial. A teoria da dependência viria fazer parte, principalmente a partir do trabalho de Gunder Frank e dos Santos, das formulações teóricas que dariam origem à teoria do Sistema-Mundo (Wallesrtein, Amim, Arrighi, além dos próprios dos Santos e Frank). O enfoque de análise crítico dos Sistemas-mundo propõe uma leitura à escala planetária de mecanismos de distribuição de recursos entre o Centro, a semiperiferia e a periferia, articulando uma relação sistêmica entre as regiões pobres (periferia e semiperiferia) e as que, por meio deste, acumulam maiores riquezas (centro). O desenvolvimento da abordagem dos Sistemas-mundo é ainda um campo aberto, em cujo debate mais aprofundado não entraremos por questões de foco. Cabe sim apontar que esta perspectiva serviu, por sua vez, de base para a concepção de Sistema-mundo moderno/colonial, e daí do chamado projeto descolonial. Ao fazer esta referencia (Centro-Periferia) Dussel está colocando sua filosofia no contexto de uma geopolítica do conhecimento, intrínseca à colonialidade do poder e do saber (QUIJANO, 2000, 2005). Nesse sentido, poderíamos dizer que a filosofia da Libertação é uma ontologia do ser descolonial.
Com um pensamento geo-contextualizado, Dussel define seu topoi,
descrevendo o horizonte da América latina como sua totalidade universal vigente, (…) cada um de nós, é um ser no seu mundo. Isto é, vivemos em um mundo; o mundo de uma cidade (…), o mundo do nosso bairro, ou o mundo de uma classe social. (…)Isto é, estamos dentro de um certo horizonte (…) O mundo é a totalidade dentro da qual tudo que nos acontece nos avança. (…) a totalidade da nossa experiência está situada dentro de um horizonte, que faz com que tudo que se encontra no meu mundo seja “compreensível” para mim. (DUSSEL, 1977c, pág. 14) 109
107
Na segunda metade do século XX e até a queda do muro de Berlim, as teses defendidas pelos partidos comunistas eram apresentadas como as únicas e verdadeiramente marxistas por este campo, cuja posição era hegemônica no campo da esquerda internacional. 108 Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. 109 No original em espanhol, “cada uno de nosotros, es un ser en su mundo. Es decir, vivimos en un mundo; el mundo de una ciudad (…), el mundo de nuestro barrio, o el mundo de una clase social (…)Es decir, estamos dentro de un cierto horizonte (…) El mundo es la totalidad dentro de la cual todo lo que nos acontece se nos avanza. (…) la totalidad de nuestra experiencia está situada dentro de un horizonte, que hace que todo lo que se encuentra en mi mundo me sea “comprensible””. Tadução própria.
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Todavia, ao falar em “mundo”, na última conferência das que viriam compor o texto de “Filosofia de la Liberación”, o filósofo argentino/mexicano propõe a superação da ontologia proposta até ai, como um horizonte que constitui um sou-no-mundo, a totalidade-mundo de Heidegger. Partindo dela, e indo além, por estar na sua exterioridade, compreende que essa totalidade, aparentemente neutra, ingênua, é uma totalidade politizada e opressora. (…) é a totalidade europeia do século XV ao século XX que colocou a outros homens como si fossem coisas em seu mundo; os “compreendeu” em sua cotidianidade e os pensou em sua filosofia ontológico-dialética. Este mundo se pensou único, neutro, natural, incondicionado e exclusivo ponto de apoio de todo pensar possível. O Outro foi reduzido a ser um ente dentro de tal mundo. (Op. cit. Pag. 124)110
É neste ponto que pode se compreender a centralidade do conceito de exterioridade para toda a filosofia da libertação. Isto é, a necessidade do questionamento de todas as categorias como convidara Marx - de toda a ontologia, porque América latina é exterior a esse mundo (Sistema-mundo) que tem por centro um Eu europeu. E o é justamente porque, ou mesmo que, vista pelo pensamento eurocêntrico como dentro dela, como objeto de estudo e de ação (colonização, imperialismo, ajuda). Como anunciava ao discorrer sobre o conceito de trajetória-maaya, esta questão - ao apontar que aprendemos não apenas com as coisas e o tempo, mas também com o outro e a partir da interação com esse outro, que é a sua exterioridade - se constitui como base de uma teoria do conhecimento desde a exterioridade, e é determinante para compreender nossa ruptura com a perspectiva puramente analítico-descritiva.
Essa exterioridade do Outro da razão
moderna/colonial é incluída no sistema-mundo como objeto de estudo, a ser analisado, compreendido, porem reificado. Assim no conhecimento não acadêmico (dos movimentos sociais e políticos de libertação), assim na cultura popular, assim na estética engajada e rebelde que teima em contrapor relações de sentido dinâmicas às instauradas pela hegemonia. A categoria de exterioridade é a mais importante para a Filosofia da Libertação e, de fato, é a que aqui me interessa, pois permite um necessário e urgente deslocamento epistêmico na compreensão da cultura e da educação (e da sua potência libertadora). É a partir dela que o cotidiano passa a fazer sentido como espaço-tempo único capaz de produzir um conhecimento
110
No original em espanhol, “es la totalidad europea del siglo XV al siglo XX que colocó a otros hombres como si fueran cosas en su mundo; los “comprendió” en su cotidianidad y los pensó en su filosofía ontológicodialéctica. Este mundo se pensó único, neutro, natural, incondicionado y exclusivo punto de apoyo de todo pensar posible. El Otro fue reducido a ser un ente dentro de tal mundo”. Tadução própria.
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significante e transformador da realidade. Um olhar sobre o mundo radicalmente ancorado no nosso lugar nele. Ao ser questionado sobre se a sua seria uma filosofia que se aplique à realidade, o filósofo latino-americano respondeu: o que tento não é uma filosofia que se aplique à realidade, senão um pensamento que parta da realidade. Por qué? Porque o que me interessa é a cotidianidade; que é o único que vale a pena ser pensado.111 (Op.Cit. pág. 123).
É nesse contexto de horizonte-cotidiano como totalidade-mundo, e que introduz a questão da espaço-temporalidade - no exato sentido em que Milton Santos dizia que “cada lugar é, ao seu modo, o mundo” - que a categoria de exterioridade adquire sentido para nós. Esta categoria vem de Emmanuel Levinas, quem dá a ela o sentido de alteridade. “A exterioridade, como essência do ser, significa a resistência da multiplicidade social à lógica que totaliza o múltiplo”112 (LEVINAS, 1977: 296). Para Dussel o conceito de exterioridade propõe uma metáfora espacial, que indica semanticamente a transcendentalidade do sujeito, aquilo que não é puramente estrutural nem está "fundado" como momento interno de um "sistema", de uma "totalidade"113. Todavia, busca ir além, ao conferir concretude a esse Outro,
uma
concretude
que
é
constituída
por
sujeitos
reais,
marcados
pela
objetividade/subjetividade das relações materiais que forjaram suas histórias, dando concretude histórica e política à noção levinasiana de exterioridade. (…) nunca pensou (Levinas) que o outro pudesse ser um índio, um africano, um asiático. O outro para nós é América Latina com relação à totalidade europeia; é o povo pobre e oprimido latino-americano com relação às oligarquias dominadoras e, entretanto, dependentes. (Dussel, 1977b-II: 161).114
É esta concepção do outro, nas dimensões concretas da sua alteridade, a base que confere sentido prático à ética da libertação. Assim, a exterioridade assume diversas formas perante a 111
No original em espanhol: lo que intento no es una filosofía que se aplique a la realidad, sino un pensamiento que parta de la realidad. ¿Por qué? Porque lo que me interesa es la cotidianidad; que es lo único que vale la pena ser pensado. Tradução própria. 112 Traduzido por mim de “La exterioridad, como esencia del ser, significa la resistencia de la multiplicidad social a la lógica que totaliza lo múltiple”. 113 Dussel discorre sobre os pontos polêmicos do conceito, debatendo sobre o pensamento de Marx, em um artigo intitulado El trabajo vivo fuente creadora del plusvalor (Dialogando con Christopher Arthur) em resposta à resenha do pensador marxista Christopher Arthur publicada na Revista Historical Materialism, núm. 11/2 e em Herramienta, núm. 26. Sobre, Dussel, E. 1988, Hacia un Marx Desconocido. Un Comentario de los Manuscritos del 61-63, México: Siglo XXI.. Disponível em http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-27/eltrabajo-vivo-fuente-creadora-del-plusvalor-dialogando-con-christopher-ar 114 No original, em espanhol, “nunca ha pensado (Levinas) que el otro pudiera ser un indio, un africano, un asiático. El otro para nosotros es América Latina con respecto a la totalidad europea; es el pueblo pobre y oprimido latinoamericano con respecto a las oligarquías dominadoras y sin embargo dependientes”
139
totalidade dominadora, nos níveis geopolítico e geoeconômico (periferia-centro), econômico (trabalho
vivo-trabalho
morto)115,
político
(povo-oligarquia),
religioso
(posição
infraestrutural-posição superestrutural), erótico (mulher oprimida-homem dominador) e pedagógico (cultural popular-cultura imperialista y de massa) (DUSELL, 1977, 1977b). A produção estética dos oprimidos do sistema, dos nadies, assim definidos pela sua exterioridade ontológica à modernidade eurocêntrica, é lida somente sob critérios de interioridade ao sistema, sendo, portanto, uma estética do invisível, aquela que é herdeira da sua memória, inserida na sua cultura e como projeção desses sujeitos e da sua libertação. Mas é importante frisar que estas estéticas, estas culturas e suas formas de se expressar, não se encontram isoladas, mas estão em permanente relação. Relação centro/periferia, relação hegemonia/contra-hegemonia,
relação
culturas
atávicas/culturas
híbridas,
exterioridade/interioridade, relação tradição/modernidade, subalternidades/totalidade, como emergências, sempre em constate ir sendo, reinventando-se. Nesse contexto, a memória e a identidade produto da experiência do subalterno e dos subalternos, produzidas nessa relação, tornam-se tão vital quanto o próprio ato de existir. Mas de que modo? Não seria isto regredir a uma ideia de arte apenas como denúncia? Memória, identidade e cultura, a partir da experiência da exterioridade, começam a se entrelaçar na direção de uma reflexão não essencialista, mas que contemple a complexidade em relação, como veremos mais adiante.
115
Sobre estas categorias, baseadas na teoria marxista da mais-valia, vale ler atentamente os artigos citados na nota de rodapé anterior (n.Rp. 102).
140
[História, revoltas, morte e permanências na narrativa das memórias dos vencidos] Em março de 2010, no recém-criado Blog do núcleo de pesquisa Nós do Sul116, um dos companheiros lançou um diálogo a propósito do aniversário da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e do estranhamento que provocava assistir à comemoração dos 446 anos de fundação de uma cidade já ocupada pelos franceses pelo menos 10 anos antes dos portugueses chegarem, sob o comando de Estácio de Sá, estranhamento mais intenso ao pensarmos em se tratar da data de “fundação de uma cidade sobre uma terra que já contava com milhares de Tupinambás e Tamoios, expulsos, mortos e escravizados ao longo de todo o período do que chamamos de "colonização"”117. Aquele diálogo me fez pensar no quanto a afirmação da morte, da derrota e do aniquilamento tem sido quase a nossa única afirmação contundente, tanto da memória dos vencidos, que se perpetuam assim na sua condição de negação de potencialidade, quanto dos aniquilamentos cotidianos que constituem hoje, por extensão e por definição, a colonialidade do poder como modo de dominação no mundo moderno colonial. Entrevia um paradoxo enviesado na nossa afirmação que negava, uma armadilha oculta da colonialidade do saber, como tantas que nos habitam. Tem, de fato, um elemento interessante, porém complicado e paradoxal, na ideia do aniquilamento dos Tupinambás, dos Guaranis, dos Tamoios [ou de qualquer referência à ideia de "índio", categoria colonial que tão passivamente herdáramos] e que, sem querer, ainda passamos: a ideia da morte, que traz a finitude (o que é limitado, o que acaba), que é, neste caso, superado pela ação potente do dominador. Venho pensando, assim, que a finitude é apenas um viés da eternidade, nós é que não percebemos (e sem perceber também, vejo agora, vou me entrelaçando em um diálogo com Espinoza, ou talvez achando uma condição histórica para sua metafísica da Substância e dos seus atributos, estes sim infinitos118).
É esse
movimento ora invisível, silencioso, subterrâneo, ora estourado, saturado que invade os espaços públicos redefinindo-os, um movimento contínuo de transferências e transmutações de memórias e afetos que constituem e se reconstituem de modo substancial à memória dos (supostamente) vencidos, recriando-a e reinventando assim também os limites do possível no imaginário social. A nossa obsessão pela denúncia da derrota reafirma o sujeito potente do 116
O Grupo de Pesquisa Nós do Sul, Nosotros los del Sur é coordenado pela Prfa. Dra. Regina Leite Garcia (UFF/CNPq). 117 Ver http://gruponosdosul.blogspot.com/2011/03/1-de-marco.html 118 Ver Chaui, Marilena, A nervura do real, São Paulo: Cia das Letras, 1999.
141
vencedor, ou, neste caso, o movimento anunciador do extermínio dos povos originários reforça, com sua força simbólica inesperada, o ato inaugural patriarcal do colonizador como artífice do novo mundo, como parte natural do ato de descobrir. Deste modo, ao denunciar desvela o sujeito soberano do Ocidente moderno e eurocêntrico. Um par de anos atrás, na cerimônia de premiação do Festival de Cinema Sundance, a cineasta chilena Carmen Castillo foi questionada por uma jornalista que queria entender por que fazer um filme sobre a derrota, sobre os vencidos. O filme Calle Santa Fé é um documentário que se volta sobre a história da casa na qual Miguel Henriquez, um dos lideres e fundadores do Movimento de Esquerda Revolucionária - MIR, na sigla em espanhol, cai morto em combate com a DINA, a polícia secreta do regime ditatorial de Augusto Pinochet. Carmem era sua esposa e estava junto a ele naquele dia. Olhando nos olhos da jovem jornalista, Carmem diz a ela “é porque estou convencida de que embora o caminho até a vitória final esteja semeado de derrotas, é a memória dos vencidos que move as molas da História”. Embora na época essa frase tenha me parecido extremamente lúcida e anunciadora, no sentido Benjaminiano de escovar a História a contrapelo, vejo agora - de modo paradoxal, pois sem negar a sua potência e lucidez -, a partir da reflexão traçada, que a ideia da derrota histórica, da aniquilação, do sumiço e da submissão é também, e antes de mais anda, um fardo pesadíssimo para se carregar junto com uma língua que nos é imposta com o triunfo do orgulho alheio (como nos lembra Fanon em Les damnés de la Terre). Mas, qual é essa memória? Pergunto-me se nesse movimento não estamos acaso, contribuindo com a nossa fala legitimada para concluir o lento epistemicídio em curso a 500 anos, restando assim a força vital contida na memória das classes subalternas. Mas ao mesmo tempo, como não denunciar? Como calar? E, no entanto, o que anuncia a denúncia? Questiono-me se esta perspectiva não implica na armadilha de crer que a memória dos vencidos deva necessariamente ser a memória da sua derrota, a afirmação de uma finitude, a constatação da sua sempiterna subalternidade. No movimento paradoxal e dialético entre a denúncia e a anunciação é a própria denúncia a que nos empurra na sua contramão, para a descontinuidade. Entretanto, a afirmação de uma permanência não é nem pode ser apenas birra de quem se apega saudosamente ao que (ou a quem) perdeu na História, sem querer assumir essa perda no sentido de morte propriamente dita: os tamoios foram extintos, os guaranis viraram lenda ou romantização da vida que serve de material antropológico para museus e efemérides nas escolas. Entretanto, o apego afetivo, logo político, à subalternidade contemporânea ou ao 142
indígena da era colonial é sim, também e de fato, em si uma afirmação que tem suas bases históricas em um movimento substancial (ainda em Espinoza), em que algo que nos constitui ontogenicamente, mesmo que negado e subalternizado em nós, emerge com a sua aura restituída no cotidiano e na luta que r-existem. Não é apenas nos nomes com que o invasor e o criollo - este no processo de cristalização da sua própria colonialidade - batizaram inúmeras ruas das cidades da nossa América que se concentra o legado dos povos originários. Do mesmo modo, não é apenas no samba emblematizado como símbolo de um emergente Estado/nação euro/brasileiro que se afirma na sua miscigenação, no mesmo movimento que oculta sua diferença colonial - que vive a potência das culturas de matriz africana no Brasil hoje. Muito menos é apenas a memória de algo acabado e morto o que alimenta cotidianamente a rebeldia e sua dignidade. Nos corpos, na fala, no jeito, em tanto vocabulário, na indignação, nas práticas, nos usos, na comunitaridade, na solidariedade, mas também na afetividade, no gosto, na musicalidade, nas estéticas ocultas que por vezes emergem impensadas e, é claro, na desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008) e política, na rebeldia que se organiza e se desfaz para se refazer de um modo sempre inesperado, é que vive e se reinventa aquilo que, por padrão, tendemos a entender como unicamente morto ou oprimido, preso, coagido. Ouvi diversas vezes, em debates, discussões informais e em sala de aula, quando lecionava na Faculdade de Formação de Professores, questionamentos sobre este tipo de reflexões restringirem por demais o espaço para legítimas tomadas de partido: “não seria, por acaso, a só critica ao colonizador já assumir a defesa do ‘índio’?” Sim, em parte, mas não só, nunca apenas isso. Pode de fato ser exatamente o contrário, haja vista que a pergunta mal esconde certo paternalismo intrínseco à colonialidade do saber.
Entretanto, o questionamento é
pertinente no que sinaliza que falar sobre o aniquilamento de um povo é também denunciar os aniquilamentos cotidianos que fazem parte da mesma matriz que produziu esse passado, enquanto essa matriz se encontre atual e vigente. De qualquer modo, o que me parece preciso frisar é que, em todos nós, por sermos criaturas do nosso tempo, logo, malgrado nossas intenções e convicções, simbolicamente herdeiros do Estácio de Sá, há um viés de colonialidade que aparece em uma frase ali, em outra razão por lá, e que faz parte. Todavia, não é necessariamente ruim, pecaminoso, ser o que somos, mas trata-se de salientar o fato de estarmos completamente inseridos em uma teia discursiva que produz coerências, que por vezes fortalece o próprio discurso e a lógica da dominação colonial, por restar potência ao 143
que, embora subalternizado, ainda é vivo em nós. É nesse sentido que penso ser talvez mais urgente voltar nossos olhares indagadores para a potência criativa, para as lógicas outras que fluem nos espaço-tempos da subalternidade. Daí a importância de se abrir o pensamento social clássico, e as nossas próprias consciências aos modos de pensar, organizar e fazer das classes populares, não como movimento romântico de afirmação, mas como condição de aceder a um saber produzido pela modernidade mundo, mas negado para a perpetuação da sua lógica aviltante. Mas o paradoxo se afirma e se defende na sua relação dialética, em um ponto onde a lógica se emaranha até se perder, desnorteada. Bom sinal, esse de se desnortear, talvez a nossa bússola comece a apontar para qualquer lugar outro, mais próximo do sul. E é que não deixa de me parecer de fundamental importância resgatar a ideia de que há a produção de um passado hegemônico como condição de controle e perpetuação de um modo de se viver em sociedade, baseado na opressão constante do diverso, do outro.
E essa perpetuação, essa reprodução,
essa lógica cuja episteme eurocêntrica herdáramos malgrado nossa própria existência, deve sim, ser denunciada, sob condição de emancipação ou, melhor, de libertação. No debate suscitado a partir da provocação no Blog do Nós do Sul, um dos companheiros de pesquisa nos alertava para o fato do projeto colonial não existir fora dos sujeitos, de não ser uma entidade, mas de ser relacional. Assim se expande e se alimenta. Considero importante frisar que aquilo que alguns denominam “projeto colonial” entendo como o movimento contínuo de reprodução da ‘lógica do capital’, a sociabilidade do capital, o saber hegemônico que dá a sua (in)coerência e amalgama ao (que entendemos por) real hoje. É um movimento que nasce e morre nessa afirmação/negação, a cada dia, das mais diversas maneiras, com arranjo ao modo em que, cotidianamente, se dá a vida em cada lugar. Com certeza não é uma “entidade” nem é externa a nós, mas uma estrutura estruturada e estruturante que faz parte do nosso habitus. Daí a grande dificuldade de encarar uma luta na qual somos, parafraseando Fannon, Memi e Freire, hospedeiros do inimigo, cuja doxa, no sentido de concepção da realidade, se projeta nas, e a partir das, nossas próprias consciências. A concepção da colonialidade do saber se aproxima em muito à noção de ideologia proposta por Marx e desenvolvida por diversos autores como falsa consciência de si ou como efeito ideológico das produções simbólicas (BOURDIEU, 2000), na tradição sociológica ocidental. Entretanto, o conceito de colonialidade busca superar a problemática colocada pela universalização dos conceitos desenvolvidos por essa tradição, isto é, a noção de uma ideologia que entorpece a consciência de si traz consigo a existência de uma única consciência permeada pelo fantasma essencialista 144
do Ser hegeliano. O debate sobre a essência do Homem, como debate atrelado à questão da modernidade e, logo, do desenvolvimento, é assim, um debate intrinsecamente eurocêntrico. Pelo mesmo fio, parece-me a cada dia mais importante frisar os aspectos diversificados e relativos a cada local em que opera a dominação na sociedade globalitária, ao afirmarmos o problemático de entendermos o sistema capitalista de modo unívoco, reificado e coerente, como um sistema fechado que operaria do mesmo modo no mundo todo. Poder-se-ia, sim, falar em um sistema-mundo moderno/colonial que reinventa as sociedades do capital e as suas estruturas de dominação das mais diversas maneiras. Que esta estruturação se dê com base na racialização das formas de dominação, não significa na existência de um sistema fechado cujas estruturas de classe, uma vez analisadas, poderiam ser aplicadas como axiomas para a compreensão das relações sociais, culturais e mesmo dos modos de produção da vida em qualquer lugar do sistema-mundo, por mais globalizado que se queira este. De fato, a leitura sociológica que insiste em buscar invariantes estruturais que nos permitam conhecer o modo universal da dominação, definindo modos de consciência para sua perpetuação, seu aperfeiçoamento ou mesmo a sua superação, constitui-se, deste modo, em condição para a reprodução da própria lógica do pensamento social clássico moderno, eurocêntrico e atravessado pelo viés da colonialidade.
Nesse sentido, a teoria do
desenvolvimento desigual e comparado, de Florestan Fernandes, bem como a teoria da dependência e a abordagem do Sistema-mundo, apontam elementos fundamentais para compreender, não só a distribuição das riquezas e a relação capital/trabalho à escala global, como também as relações de uma cultura hegemônica atrelada ao capital globalizado. Entretanto, esta compreensão pode parecer apenas uma ponta de iceberg se pensarmos a complexidade de relações estabelecidas em cada campo local, se invertermos o olhar a partir desse local e tentarmos nele enxergar o global (como nos propunha o Milton Santos e também os Zapatistas de Chiapas e o binóculo rebelde com que Marcos 119 metaforiza a lógica do Capital).
119
Refiro-me ao subcomandante insurgente Marcos, do Exercito Zapatista de Libertação Nacional, em Chiapas, sul do México, e seu texto “Otra Geografía” México, março de 2003, disponível em http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/2003/2003_03_b.htm (acessado por última vez em 10/10/2013). Nele diz: (…)El dogma primero respalda a la causa, después la deforma y la convierte en destino. En el largavistas del poder, el horizonte es siempre el mismo, inmutable y eterno. El lente del poder es un espejo. Lo diferente será siempre inesperado y a lo inesperado siempre se opondrá el miedo. Y el miedo siempre se hará fuerte en el dogma para aplastar lo inesperado. En el largavistas del poder, el mundo es plano, deslavado y sucio.
145
Voltando à instigação do debate inicial, sem dúvida reduzir a conflitividade da vida na sociedade do capital à lógica binária da guerra, do combate, do eles e nós seria, na nossa perspectiva, abrir mão da complexa riqueza que os contextos interculturais nos oferecem. Todavia, afirmar isso não significa, de maneira alguma, negar o conflito, quanto mais a luta. Muito pelo contrário, torna atual a potência enunciadora e emancipatória dos subalternos – e do subalterno em nós, possibilitando a conversão de rebeldia em insurgência - toda vez que uma perspectiva intercultural crítica se distingue justamente por assumir a diferença colonial, que é matriz do conflito na modernidade/mundo. Ainda, a absolutização da lógica binária da guerra seria também, hoje, cair de vez no discurso dos apologistas da impotência, que usam a onipresença do poder bélico do norte como desculpa para a impossibilidade de um mundo melhor aqui e agora. Contudo, não estou tão certo de ser a noção do “relacional”, como conceito abstrato, suficiente para explicar, ou ajudar a entender, o dinâmico e mutável modo em que se dão as estruturas de dominação simbólica, notadamente no que se refere às estruturas epistêmicas que nos oprimem como opressores de nós mesmo e dos outros. Essa tensão entre o estrutural e o dinâmico, entre o fatalismo e o autônomo, entre a reprodução, mesmo que mutante, e o novo que emerge inesperado, continua a se configurar em um dos emaranhados mais complexos para se entender a vida na sociedade do capital neste século que parece ter começado mais acelerado ainda que o anterior. [Experiência, relação e imaginário nas culturas subalternas desde a periferia-mundo] A noção de relação, como posta por Thompson (1963) para definir Classe Social, salienta a importância de se observar o fluxo histórico, o movimento dinâmico de algo que não está dado por definição, mas que pode ser observado nesse movimento, “como qualquer outra relação, é algo fluído que evade a análise se tentarmos imobilizá-la a qualquer momento determinado e dissecarmos sua estrutura”120. Trata-se, como apontávamos nas reflexões iniciais deste trabalho, de algo que não existe sem as pessoas concretas e do modo como estas percebem a si mesmas e a sua condição. Para Thompson a classe acontece quando algumas pessoas, como o resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de interesses entre si, e contra outros cujos interesses diferem e se
120
THOMPSON, 1963, pág. 9. Texto original em inglês, traduções próprias: “Like any other relationship, it is a fluency…
146
contrapõem aos seus121.
Assim, é interessante para nossa reflexão, perceber como ele
diferencia claramente a experiência de classe da consciência de classe, A experiência de classe é determinada, em boa medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou foram introduzidos involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas como tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, a consciência de classe não. (THOMPSON, Op.cit. pág. 10)
Cabe se perguntar, pensando “desde este lado do mundo”, com nos convidara Milton Santos, pelas experiências comuns aos homens e mulheres das classes subalternas nos últimos, digamos, quinhentos anos: onde foram parar? Pensando estas relações históricas no contexto da nossa América emerge a necessidade de enfrentar o ocultamento historicamente produzido pela colonialidade do poder e do saber, decorrente do papel dado à região no longo processo de consolidação do Sistema-Mundo moderno/capitalista/colonial. Observar a nossa história, considerando as mais diversas trajetórias dos povos originários na sua relação com as diversas formas que adotou a expansão dos mercados europeus até a consolidação das sociedades moderno/coloniais, passando pela invasão/colonização até o imperialismo e seus desdobramentos no mundo globalitário, permitir-nos-ia perceber que para analisar as condições de classe nas nossas sociedades é preciso conhecer e estudar o desenvolvimento dessas trajetórias, enquanto experiências específicas que conferem sentido de vida e de luta às atuais relações sociais. O conjunto de imaginários e sentidos dados a partir das experiências vivenciadas por essas trajetórias subsistem, de forma explícita ou imanente, no cotidiano do povo hoje, produzindo e reinventando a vida-em-relação na totalidademundo. Perceber-se em-relação com essas trajetórias, e assim partilhar do sentido último dessas
experiências
é,
para
o
educador/pesquisador
engajado
no
processo
de
descolonização/libertação, tão importante quanto o estudo e o conhecimento antes assinalado. Não basta apenas com introduzir a noção Thompsoniana de experiência se a restringirmos ao contexto, suposto, de uma normalidade moderna uniforme e universal, isto é, se cedermos ao imaginário122 da moderno-colonialidade, desconhecendo os efeitos diretos ou indiretos do contexto multicultural em que estamos inseridos, no cotidiano vivenciado por homens e mulheres comuns. 121
Idem. Cabe lembrar, embora já assinalado anteriormente, que utilizo aqui o conceito de imaginário no sentido apontado por Edouard Glissant, na sua “Poética da relação”, como a construção simbólica por meio da qual uma comunidade (racial, nacional, imperial, sexual, etc) define a si própria. 122
147
O cuidado demonstrado por Thompson para com o estudo de povos tão próximos à realidade por ele estudada (como os escoceses e os galeses com relação à classe trabalhadora inglesa), dado o seu entendimento - que partilho completamente - de que “classe é uma formação tanto cultural quanto econômica”123, não tem impedido, curiosamente, que parte da literatura acadêmica que tem no seu trabalho uma referência, utilize suas categorias sem dar a necessária atenção às experiências de homens e mulheres dos povos e grupos sociais subalternos que formaram a força de trabalho no Brasil e na América Latina. Para certa ortodoxia marxista a classe trabalhadora parece ser apenas isso, uma classe definida pela sua inserção em determinado modo de produção. Parece se crer indiferente se as pessoas que se encontram inseridas no modo de produção capitalista, como trabalhadores, estão por sua vez inseridos, ou não, nem de que modo, em longas tradições comunitárias para cuja formação convergiram povos originários, africanos escravizados, libertos, quilombolas, etc. Ou se são imigrantes ou filhos de imigrantes da nossa América ou da Europa, de onde vieram após traumáticas experiências homólogas de inserção nos modos de produção nos seus locais de origem. Dá-se por suposto - um suposto que não encontra nenhum sustento lógico, histórico ou sociológico - que as longas trajetórias históricas destes povos, no seu processo de inserção forçada e subalterna no mundo do capital, urbano ou rural, deixaram num passado longínquo todas suas cosmovisões, sua cultura, suas ideias e modos de organização da vida. O homem ou a mulher guarani-kaiowá, por exemplo, que por diversos motivos migra à cidade, desaparece em meio à multidão, junto com o desaparecimento da sua língua, da sua história, da sua tradição, da sua experiência. A comunidade Quilombola que viu a cidade grande crescer até transformar suas terras em periferia de um centro cuja força centrípeta na exploração do trabalho e no consumo e centrífuga quanto a direitos e dignidade, passa a ver seus membros atraídos/expelidos por esta força e sua experiência coletiva também desconsiderada pelos que sabem, sua cultura invisibilizada. Os milhares de soldados negros e indígenas, sobreviventes das empreitadas militares brasileiras na segunda metade do S. XIX e de Canudos, a fines do mesmo, recém-libertos que passaram a ocupar os morros das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, assim como aqueles que por anos e anos trabalharam nas plantações de cacau, café e açúcar, indo depois superlotarem as periferias e morros de Salvador, na Bahia, em que momento exato perderam absolutamente toda a sua experiência secular acumulada? Trata-se de um esquecimento ou de um apagamento epistêmico?
123
Op.Cit. pág. 13.
148
Embora sua riqueza e diversidade, embora seus saberes ancestrais que claramente conferem modos de organização da vida específicos em cada local, passam todos e todas, como num passe de mágica, a serem vistos, considerados e estudados, não apenas na perspectiva do grande capital explorador, mas para todos os fins que interessam à questão social (seja para o estudo dos processos de estruturação socioeconômica das sociedades, como para a formulação e implementação de políticas públicas) e inclusive por boa parte da escolástica de esquerda, como mais um trabalhador assalariado, sub ou desempregado.
Trabalhador ao qual
corresponderia determinado conhecimento e educação para cumprir sua função econômica subalterna ou, então, e do mesmo modo, ao qual corresponderia uma consciência de classe determinada para assumir seu papel na revolução social. Se estes fossem casos isolados, poderiam se tecer diversas considerações ao respeito, mudando o rumo desta reflexão, mas sabemos que tanto os processos de formação da força de trabalho e das classes populares em geral nas nossas cidades como no campo, apontam para um padrão histórico nos qual bem se enquadram estes e outros exemplos. A ortodoxia opera, no sul do mundo, atravessada por uma colonialidade que impõe crua e radicalmente sua cegueira sobre a complexidade da vida no nosso continente. As categorias das ciências sociais, no mesmo movimento em que desvelam saberes e provocam aproximações, produzem novos ocultamentos no ato de nomear e estabelecer distinções. Talvez a categoria colonial por excelência seja a de índio. Convencido de ter achado um caminho alternativo até as índias, na época centro do comercio e da cultura no mundo conhecido por eles, o colonizador denomina o continente de Índias ocidentais, nome que ficara em vigor até o século XVIII. Assim, nomeava seus habitantes como índios. O termo, tornara-se categoria racializada que definia, e ainda define, a infinita diversidade cultural existente no continente ao momento da sua chegada. O termo não apenas distingue, no movimento em que nega e discrimina, mas passa a ser constitutivo do imaginário moderno/colonial no sentido em que nos define, enquanto ocidentais, pela diferença, isto é, como não índios, não de rua, não negros, etc. embora ao mesmo tempo sejamos em parte tudo isso. No referente à questão étnico-racial, o próprio discurso da miscigenação pode operar, e em muitos casos opera, como véu que encobre também a colonialidade ao ocultar, como discurso homogeneizador, a subalternização, isto é, como discurso que esconde o caráter contraditório e conflitante da diversidade social. A diferença colonial, estruturada e estruturante do mundo moderno, aparece como simples diversidade no universo ocidentalizado. 149
O que significa, afinal, ter a miscigenação como conceito de identidade nacional se se está compelido a definir a própria identidade a partir de um imaginário colonial que nega toda memória que não a matriz colonial? A lógica disciplinar contribui também com o processo de ocultamento ao separar a cultura da sociopolítica e da economia. O holocausto dos povos originários na nossa América é um fato negado, mas inegável. Entretanto, o mesmo não foi, nem de longe, total, ao ponto de apagar a experiência dos seus herdeiros. Centenas de milhares de homens e mulheres destes povos sobreviveram e continuaram sua caminhada como povos. Outras tantas se miscigenaram fazendo parte do que hoje somos. A ideia do extermínio serve, todavia, para reforçar a falsa ideia de que a experiência de vida dos povos originários se perdeu num passado hoje totalmente folclorizado, desprovido assim de atualidade política. É curioso, desde uma perspectiva histórica que acompanhe a trajetória dos povos da nossa América, perceber como os debates sobre os modelos de sociedade e da possibilidade de emancipação ou superação do capitalismo, encontram-se, no âmbito acadêmico, político e tecnocrático, totalmente restritos à análise das condições intrassistema ou a elementos que podem se desprender das contradições estudadas com base numa produção intelectual eurocentrada, relegando toda a tradição da nossa América mais profunda ao campo do folclórico, pitoresco ou mesmo esotérico.
No entanto, a tradição comunitária, ou
comunitarismo, por citar apenas um exemplo, constitui nas suas mais diversas formas a base da organização societal dos povos originários e, não por acaso, encontra-se presente nas suas demandas e no seu projeto de sociedade. Nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano, A comunidade, o modo comunitário de produção e de vida, é a mais remota tradição das Américas, a mais americana de todas: pertence aos primeiros tempos às primeiras gentes, porém também pertence aos tempos que vêm e pressente um novo Novo Mundo. Porque nada há menos forâneo do que o socialismo nestas terras nossas. Forâneo é, entretanto, o capitalismo: como a varíola, como a gripe, veio de fora.
Todavia, este modo peculiar de produção e de vida não se encontra apenas nas comunidades remanescentes de indígenas ou quilombolas, ou ali onde os povos e nações do Abya Yala conseguiram reatualizar politicamente sua luta. Independentemente da identidade que se tenha da origem de determinadas práticas sociais, bem como de todo um léxico reltivo a elas e que implica um modo de enunciação do mundo, muitas delas permanecem nas periferias e comunidades populares urbanas. Relativas ao modo comunitário, seguindo o exemplo, podemos encontrar em Oaxaca, no sul do México, o Tequio, (palavra de origem Zapoteca), 150
que se refere ao trabalho comunitário. O Tequio, junto com a Guelaguetza, têm servido de pilares para uma reorganização dos modos de participação nos municípios autônomos. O conceito seria o equivalente ao de “mutirão” no Brasil (palavra de origem Tupi, adaptada ao português brasileiro) ou “Malón” no Chile e no Sul da Argentina (palavra do Mapudungun, língua dos Mapuche). É interessante observar que encontramos unicamente em línguas dos povos originários palavras relativas a esse significado, que se assemelha à ideia ocidental de trabalho solidário, mas que inclui um importante componente comunitário e de reciprocidade, não encontrado em nenhum vocábulo das línguas coloniais.124 O tipo de trabalho ao qual faz referência o Tequio, bem como o Malón e o Mutirão, não é concebido como doação de trabalho “gratuito” a outrem, mas como trabalho destinado à própria coletividade da qual se faz parte, isto é, tem como base e ponto de partida a ideia do nós como célula social básica. Elevado a sustentáculo de uma organização política como no caso dos municípios autônomos, no sul do México, é reatualização do poder político da comunidade, base do poder obedencial125. Estes exemplos no alertam, entre outras coisas, para a importância das noções de experiência e relação histórica, em Thompson, assim como as de subalterno, cultura popular, contracultura e hegemonia em Gramsci: Se no contexto das sociedades capitalistas do Centro são fundamentais para fugir a uma leitura tosca e mecânica de classe e consciência, no contexto da nossa América, dado o papel que o extrativismo ocupa no Sistema-mundo (desde a invasão europeia até os nossos dias) e dada a colonialidade do saber que lhe é intrínseca, a inclusão da experiência nos estudos sociais se torna vital, notadamente para encontrar um lugar de enunciação que permita a descolonização do pensamento. Já o alargamento do conceito de relação, considerando a diferença colonial, aparece como condição para a superação das identidades atávicas que trazem consigo a intolerância e a perpetuação da negação do outro. Trata-se de entender que, para além das matrizes culturais que confluem em cada momento histórico - a ocidental eurocêntrica, as dos povos originários, ameríndios, africanos, asiáticos – todas elas se encontram, hoje, em Relação (GLISSANT, 1990), em um movimento de ir sendo e se refazendo nessa relação, reinventando cotidiano e tradição e, assim, sua relação
124
Caberia, sem dúvida, realizar um estudo mais abrangente e aprofundado sobre a questão, que por motivos de foco e espaço não desenvolverei no presente trabalho. 125 Mais adiante voltarei sobre a questão do poder obedencial como base do projeto político de uma Pedagogia do Sul.
151
particular consigo e com o outro. Para nos aproximarmos da estética e da poética da nossa América me parece fundamental esta compreensão, como condição de fugir aos atavismos e às categorizações de caráter universalista. É instigante perceber a compreensão de Glissant a este respeito, quando aponta, na sua Poética da relação, que Não abdicamos às nossas identidades quando nos devemos ao Outro, quando realizamos nosso ser como participante de um rizoma cintilante, frágil e ameaçado, mas vivaz e obstinado, que não é uma concentração totalitária onde tudo se confunde no todo, senão um sistema não sistemático de relação onde adivinhamos o imprevisível do mundo.126
Todavia, é preciso frisar que para qualquer relação, não apenas conceitual, mas constituída por sujeitos concretos, vir a se estabelecer frutífera para todos e todas que nela estão envolvidos, o seu constante ir sendo deve estar baseado, primeiramente, na existência do Outro, definido na sua alteridade como um legítimo Outro. É aqui que radica um dos principais empecilhos para a poética de Glissant emergir na sua potência civilizatória, sobrisco de se tornar ou ser utilizada – mesmo contra toda sua intenção e sustentação teórica como uma utopia essencialista que, obliterando os imaginários subalternizados pela colonialidade do saber, contribua para a consolidação do projeto universalista da modernidade eurocêntrica. Não seria questão, então, de afirmar a pureza das culturas dos povos originários ou africanos, nem de negar o hoje onipresente imaginário do Ocidente, menos ainda de atribuir a ele a autoria exclusiva e excludente do Norte, mas, justamente, de perceber o papel dessas culturas na construção do imaginário da modernidade desde este específico lugar que, por norma ou omissão, chamamos América latina. [memória e rearranjos político-identitários no deslocamento epistêmico da descolonização do pensamento: Abya Yala e Nossa América] A nossa autêntica identidade coletiva nasce do passado e se nutre dele – pegadas sobre as que caminham nossos pés, passos que pressentem nossos andares de agora – mas não cristaliza na nostalgia. Não vamos encontrar, de certo, o nosso escondido rosto na perpetuação artificial de trajes, costumes e objetos típicos que os turistas exigem aos povos vencidos. Somos o que fazemos, e sobre tudo, o que fazemos para mudar o que somos: a nossa identidade reside na ação e na luta. Por isso a revelação do que somos implica na denúncia do que nos impede ser o que podemos ser. (Eduardo Galeano - Defensa de la Palabra)127 126 127
GLISSANT, 1990. Traduzido do espanhol: "Nuestra auténtica identidad colectiva nace del pasado y se nutre de él – huellas sobre las que caminan nuestros pies, pasos que presienten nuestros andares de ahora – pero no se cristaliza en la nostalgia. No vamos a encontrar, por cierto, nuestro escondido rostro en la perpetuación artificial de trajes, costumbres y objetos típicos que los turistas exigen a los pueblos vencidos. Somos lo que hacemos, y sobre todo lo que hacemos para cambiar lo que somos: nuestra identidad reside en la acción y en la lucha. Por eso
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Cada grupo social na subalternidade-mundo, cada coletivo, cada povo tem suas próprias dinâmicas de reorganização da memória e, assim, da luta. Estas são decorrentes do modo como foi se dando, e ainda se dá, a sua relação com o espaço-tempo e, nessa relação, com os outros. Para além das nossas próprias reflexões sobre o lugar da memória e da luta dos povos originários e de como suas tramas formam parte importante da urdidura da nossa própria memória rebelde, esses povos têm continuado seu processo de reorganização e resignificação da vida face ao enfrentamento da colonialidade do poder, do saber e do Ser. Enquanto tecemos nossas reflexões inseridos no complexo contexto das megalópoles multiculturais deste início de século, e articuladas no entremeio da nossa dupla consciência (ao mesmo tempo colonial e de r-existência), os povos originários da nossa América tem feito esse enfrentamento no extremo mais radical da diferença colonial, que atravessa e permeia o convívio até hoje nunca pacífico com os Estados-nação euro-americanos. Em 1992, Takir Mamani, líder aimará boliviano, cofundador do Movimento Revolucionário Tupak Katan – MRTK, convocava todos os povos originários das Américas a utilizarem a denominação "Abya Yala" em suas declarações oficiais, para se referirem ao continente, argumentando que “aceitar os nomes estrangeiros em nossos povoados, nossas cidades e nosso continente equivale a subjugar nossa identidade à vontade de nossos invasores e seus herdeiros”. Abya Yala era o modo como o povo Kuna, da região da Serra Nevada na Colômbia e que habita atualmente a costa do caribe Panamenho, nomeava o continente antes da chegada dos europeus, e significa “terra madura” ou “terra em florescimento” (PortoGonçalves, 2006).
A partir da II Cumbre Continental de los Pueblos y Nacionalidades
Indígenas de Abya Yala, ocorrida em 2004 em Quito, Equador, o termo passa a ser a utilizado e, gradativamente, vai substituindo o conceito eurocêntrico de América. Porto-Gonçalves (2009) nos alerta para o fato da substituição do nome de América por Abya Ayala indicar não apenas outro nome, como também a presença de outro sujeito enunciador de discurso, um sujeito até então sem voz, subalternizado em termos políticos e epistêmicos. Abya Yala configura-se, portanto, como parte de um processo de construção político-identitário em que as práticas discursivas cumprem um papel relevante de descolonização do pensamento e que tem caracterizado o novo ciclo do movimento indígena, cada vez mais um movimento dos povos originários. A compreensão da riqueza dos povos que aqui vivem há milhares de anos e do papel que tiveram e têm na constituição do sistema-mundo, vem alimentando a construção desse la revelación de lo que somos implica la denuncia de lo que nos impide ser lo que podemos ser."
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processo político-identitário. Considere-se, por exemplo, que até a invasão de Abya Yala (América) a Europa tinha um papel marginal nos grandes circuitos mercantis, que possuíam em Constantinopla um dos seus lugares centrais.128
Invisibilizados na sua riqueza e diversidade por quinhentos anos sob a categoria subalternizante de índios, categorial colonial por excelência, os diversos povos originários do Abya Yala encontraram na luta política e epistêmica pelo território (entendido aqui como a relação indissolúvel entre o espaço habitado e a cosmogonia que lhe dá sentido), a sua unicidade. Em tempo que destaca a diversidade biocultural específica dada a cada trajetória coletiva, nos espaço-tempos em que se deram ao longo dos anos – e que definem a cultura, a cosmogonia e os modos de produção e reprodução da vida de cada povo - o movimento de unificação político identitário descortina também a similaridade conferida a todos eles pela opressão secular, pela usurpação dos territórios, pela subalternização aviltante e pela resistência, pela sua relação análoga com o colonizador e com as estruturas econômicas, políticas, culturais e epistêmicas que a dominação colonial deixara no continente. O ato inaugural de nomear os diversos na sua unicidade cria uma narrativa com capacidade de contrair o tempo histórico, tornando politicamente atual uma história milenar que, assim, reduz a onipresença do presente colonial a um intervalo dessa longa trajetória. É no se resignificar que a força criativa e libertadora de saberes ancestrais se recobrem de dignidade e emergem com força política de mudança. Se bem o Abya Yala permeia toda a América - de modo transversal aos seus costumes e rearranjos identitários -, o conceito não a contém.
A diversidade de trajetórias que se
entrelaçam formado núcleos de memória e sentido, práticas e culturas locais insuspeitas, é difícil de apreender em uma única narrativa. Entretanto, essa diversidade, assim como a mistura, la mezcla, são características próprias deste, mal chamado, “novo mundo”. Esta característica é assimilada de modo diferente pelas trajetórias do que poderíamos identificar com grandes blocos históricos que, em face de projetos societários e civilizatórios, aparecem como produtores de metanarrativas com potência e vocação de identidades gerais no continente: Abya Yala, América Latina e Nossa América. - Abya Yala, ao qual já me referi, de matriz ameríndio-afro-latina, constitui uma narrativa insurgente, solidária entre os povos não-brancos colonizados, com hegemonia dos povos originários. Embora seja o movimento societário que tenha levantado a bandeira, no Equador 128
PORTO-GONÇALVES (2009), Pág. 28.
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e na Bolívia, da proposta de Estados plurinacionais, articulando-se a uma perspectiva de interculturalidade crítica, o Abya Yala remete ao que Glissant (2005) denomina de culturas atávicas. Estas, pela opressão sofrida pelo processo de invasão colonial europeia apresentariam uma ação mais afirmativa da sua identidade cultural, remetendo à ideia de pureza. Nomes como Tupak Amaru, Takir Mamani e o próprio presidente Evo Morales, são referências desta narrativa; - América Latina, narrativa hegemônica no poder continental. De aparência neutra, tem o seu desenvolvimento ligado ao fortalecimento dos Estados nacionais e ao extrativismo. Este bloco histórico foi se definindo, com relativa e escassa autonomia, com referência aos valores do discurso colonial, assumindo de modo mais escancarado o ideário da luta da Civilização contra a Barbárie que significa, de fato, entender o processo civilizatório como processo de homogeneização étnica e cultural, segundo a matriz eurocêntrica. Dentre os diversos nomes que representam este bloco e sua narrativa podemos destacar o argentino Domingo Faustino Sarmiento e o chileno/venezuelano Andrés Bello, entre outros. Ambos foram grandes promotores e defensores da ideia de civilizar as terras “desocupadas” com base na importação de colonos europeus e no extermínio de povos nativos. Também davam central importância ao papel da educação nesse processo civilizatório, de clara orientação eurocêntrica. Como exemplo, pode-se citar parte do discurso de Bello na inauguração da Universidad de Chile, em 1843, A missão civilizadora, que caminha como o sol de oriente a ocidente, e da qual Roma foi o agente mais poderoso no mundo antigo, a Espanha a exerceu sobre um mundo ocidental mais distante e mais basto” e agrega “(…) comparemos a Europa e a nossa afortunada América com os sombrios impérios da Ásia ou com as hordas africanas em que o homem é apenas superior aos brutos.
Não por acaso, esta linha de pensamento cumpriu um papel preponderante na constituição de objetivos e currículos nos projetos para a educação formal nos países da região. Também se encontra nesta perspectiva a sustentação “ética” para o genocídio de povos originários perpetrado, principalmente, por países como o Chile, a Argentina e o Brasil, ao longo da nossa história recente. A sua narrativa é contada pela história oficial, pelas instituições e as legislações, com exceção dos países que iniciaram processos de descolonização do Estado, como a Bolívia e o equador, ou então processos insurgentes anti-capitalistas, como Cuba e Venezuela. Neste casos essa leitura é tensionada, porém não ainda superada.
155
- e, por último, Nossa América, como narrativa atrelada aos processos de luta pela libertação em diversos momentos e níveis da vida social, política e econômica do continente. Esta narrativa traz implícita a utopia da unidade latino-americana e do Caribe. Foi o poeta, pensador e político cubano José Martí quem, inspirado em Simon Bolivar, começou a se referir a Nuestra América como forma explícita de se diferenciar da que ele chamou de América europeia, a do norte. Este outro pensamento social, negado ou distorcido nos livros da história ensinada nas escolas, vem se desenvolvendo de modo complexo e diverso ao calor das lutas sociais em todos os países da região. Importantes pensadores, como Simon Rodriguez, Francisco Bilbao e José Carlos Mariategui, além do próprio Bolivar, entre tantos outros, representam uma longa linhagem de um autêntico pensamento de claro caráter antirracista, antioligárquico, anti-imperialista e anticolonialista. Pensamento peculiarmente fértil que se desenvolve ao longo do século XIX, em momentos em que os projetos de expansão do capital, no seu viés extrativista e oligárquico, exterminavam milhares de indígenas, submetendo outros tantos à exploração, sob o discurso civilizatório de ocidente, para a consolidação dos Estados-nação recentemente tornados independentes da Espanha ou, no caso da América lusa, para a consolidação do Império Euro-Brasileiro, sob o mesmo ideário. Bilbao, que encara frontalmente a falácia da dicotomia entre Civilização e Barbárie, insurgiu-se contra a ideologia eurocêntrica que busca “cobrir todos os crimes e atentados com a palavra civilização”, tendo de enfrentar o exílio até a sua morte. A este respeito, num claro movimento descolonial, já em 1884, José Marti denunciava o discurso civilizatório como, o pretexto de que alguns ambiciosos que sabem latim têm o direito natural de roubar sua terra a uns africanos que falam árabe; o pretexto de que a civilização, que é o nome vulgar com que corre o estado atual do homem europeu, tem direito natural de se apoderar da terra alheia, pertencente à barbárie, que é o nome que aqueles que desejam a terra alheia dão ao estado atual de todo homem que não é da Europa ou da América europeia129
A radical defesa que estes pensadores e lutadores latino-americanos empreenderam dos povos originários, não apenas defendia a sua legitimidade e humanidade, mas apontava que o inaugural da Civilização latino-americana estaria justamente no fato de surgir da mistura dos seus diversos povos. Entretanto, a mesma adquire viés dramático se lembrarmos que foi, justamente, entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do recém passado 129
No original em espanhol (trad. minha): “el pretexto de que unos ambiciosos que saben latín tienen derecho natural de robar su tierra a unos africanos que hablan árabe; el pretexto de que la civilización, que es el nombre vulgar con que corre el estado actual del hombre europeo, tiene derecho natural de apoderarse de la tierra ajena perteneciente a la barbarie, que es el nombre que los que desean la tierra ajena dan al estado actual de todo hombre que no es de Europa o de la América europea”. Martí, 1975a: VIII, 442, Apud RETAMAR: 2006.
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século que os Estados nacionais, notadamente no sul do continente130, concluíram o longo genocídio da população indígena, enquanto, no coração da Europa - Paris, Londres, Berlin, Marselha - milhões de franceses teriam seu primeiro encontro com o Outro, nos Zoológicos Humanos. Estes, que apresentavam nativos das colônias e de outros cantos do mundo em jaulas, funcionaram abertos ao público entre os anos de 1877 e a década de 1930, apenas oitenta anos atrás131. Este chocante dado, somado às assustadoras cifras do que é considerado hoje o maior genocídio da história da humanidade, estimado, segundo diversas fontes, entre 30 e 70 milhões de pessoas132, dá uma noção da atualidade desta questão, invisibilizada pelo efeito direto da colonialidade do saber. Entretanto, como nos lembra Galeano, No começo, o saqueio e o outrocídio foram executados em nome do Deus dos céus. Agora se cumprem em nome do deus do Progresso. Todavia, nessa identidade proibida e desprezada fulgem ainda algumas chaves de outra América possível. América, cega de racismo, não as vê.133
Parte dessa identidade proibida encontra-se no pensamento de Martí e de Mariategui, por citar os mais expressivos, que são, junto aos outros, marcos no pensamento social de Nuestra América, e cuja influência se entrelaça em sua relação com os movimentos estéticos e rearranjos identitários. A narrativa da Nossa América contempla, histórica e politicamente, o Abya Yala pela sua condição descolonial e por estar seu imaginário permeado dos imaginários ameríndio e afrolatino. A sua construção como projeto civilizatório passa assim, necessariamente, não apenas pela inclusão das demandas dos povos originários, mas pela construção dialógica de todas as matrizes civilizatórias em relação, no próprio projeto pluriversal que ela comporta. 130
O Brasil, a Argentina e o Chile desenvolveram a partir do século XIX campanhas de extermínio de indígenas e de expulsão das suas terras aos remanescentes e seus casos representam bem o contexto histórico do qual falamos. No Brasil, a Carta Regia de 13 de maio de 1808, assinada pelo príncipe regente D. João VI a dois meses da sua chegada ao Brasil, deu origem, com a guerra ofensiva de extermínio dos Botocudos em Minas Gerais, a uma política de “civilização forçada dos índios mansos e extermínio dos índios brabos”. Na época, tanto o Chile quanto a Argentina se encontravam envolvidos na guerra da independência do domínio espanhol, conquistada precisamente em 1810. No sul de ambos os países se encontrava o Walmapu, território dos Mapuche, reconhecido oficialmente pelo reino da Espanha em 1641, após o qual tratados comerciais foram assinados. Foi em 1869 que a República do Chile lança a chamada Guerra da Conquista ou “pacificação da Araucania”, homóloga à “campanha do deserto” que buscava, igualmente, conquistar os territórios dos pampas para a expansão territorial de mercados, na Argentina. A este respeito ver: BENGOA, José: Historia del pueblo mapuche. Santiago: Sur, 1985 e La emergencia indígena en América latina. Santiago, Fondo de cultura económica, 2000. 131 A este respeito ver o artigo de Bancel, Blanchard, Lemaire publicado no Lemonde Diplomatic em 01 de agosto de 2000, http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=186 acesso em 08/11/2013. 132 Diversas fontes apontam que um 95% da população total da América - estimada por entre 70 e 80 milhões de habitantes à chegada dos europeus - morreria nos primeiros 150 anos da chamada colonização. Ver: Dobyns, H. F. Their number become thined: Native American population dynamics in Eastern North America, Knoxville (Tenn.): University of Tennesee Press, 1983. Cook, S. F. y W. W. Borah The indian population of Central Mexico, Berkeley (Cal.): University of California Press, 1963. e Charles. 1491; Madrid: Taurus, 2006. 133 GALEANO, 1992.
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Defini estas três grandes trajetórias históricas como metanarrativas por contemplarem, no seu imaginário, cada uma delas e ao seu modo, as diferentes áreas culturais de modo transversal (mesoamericana, ameríndia, Amazônica, Atlântica, Caribenha, etc.). Como toda narrativa identitária, estas constituem imaginários substanciais que correspondem também a projetos em disputa e não é possível afirmar qual possui mais pertinência, se dissociada do contexto histórico e do sentimento de pertença, no sentido político e afetivo, que infundem. Mas estão, também, em relação com o cotidiano das gentes no continente, e tanto a elas permeiam como por elas são relidas. Das três, só o Abya Yala, por ter suas raízes na cultura dos povos originários, que antecedem a invasão europeia, projeta-se com maior abrangência territorial, do Alaska à Terra o fogo. Já os outros dois respondem a uma territorialidade mais ou menos difusa que exclui a parte anglo-saxã do norte, abrangendo até o Caribe, e incluindo a população latina nos Estados Unidos. [A heteronímia da Nossa América como base de compreensão da vocação pluriversal do seu projeto político] Quanto mais no aproximamos das trajetórias sociais, políticas e culturais que foram definindo, ao longo da nossa história continental, imaginários com potencia totalizadora para a região, mais nos deparamos com os dois elementos já assinalados, postos de forma radical e expressiva: a diversidade e, como diversidade-em-relação, neste mesmo movimento, a mistura. Excluo de propósito a diferença (que como tal se distingue da diversidade)134, embora a mesma seja definidora das relações e, em si, determinante das formas de dominação, por entender que esta não constitui um elemento de significação de um imaginário próprio, mas o movimento reflexo, extrínseco, parte do projeto globalitário da modernidade eurocêntrica. A “diferença cultural” (Bhabha) está, no modo como a entendo aqui, definida pela relação entre Centro e Periferia no sistema-mundo. E aqui é preciso perceber, além da relação, o sentido ativo em que ela se dá historicamente. Assim, diversidade e mistura emergem como modos de ser em relação e como narrativas em um movimento no sentido Periferia-Centro, como elemento ativo com potencia civilizatória pluriversal. Já a diferença
134
Como aponta Hommi Bhabha, é preciso pensar a diferença como algo contraposto à diversidade. Embora seja uma característica do liberalismo ocidental o reconhecimento da diversidade cultural como “uma coisa boa e positiva que deve ser incentivada”, a perícia do Ocidente como conhecedor e colecionador de diversas culturas consiste na “capacidade de compreender e localizar culturas numa moldura de tempo universal, que reconhece seus vários contextos históricos e sociais apenas para afinal transcendê-los e os tornar invisíveis” (BHABHA, 1996. Pág. 35).
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cultural/colonial135 constitui um movimento histórico no sentido Centro-Periferia, de coesão das relações de dominação. Embora o caráter cosmopolita da cultura do Centro no Sistemamundo moderno/colonial, construído, na sua materialidade a partir de e, simbolicamente, sobre narrativas da diversidade, trata-se, no meu entendimento, de um modo de ser atávico dessa diversidade mundo, pois reifica e nega a alteridade da periferia-mundo, isto é, o poder de enunciação a partir da diferença colonial136. O meu intuito ao me alargar nestas reflexões sobre a memória, as trajetórias que produzem narrativas históricas como rearranjos político-identitários e seus imaginários na periferiamundo, notadamente no nosso continente, e o seu ir sendo em relação, é o de encontrar elementos que permitam uma aproximação do lugar, o caráter e a unicidade daquilo que chamamos de cultura latino-americana. Trata-se de uma procura explícita de articular um imaginário, uma ideia-conceito que se constitua como uma unicidade sem ser unívoco, uma metanarrativa regional que não negue nem protele a sua condição paradigmática: a diversidade-em-relação, em constante fluxo no contexto crítico e tensionado de uma interculturalidade produzida e transversalizada pela colonialidade do poder e do saber. Falta a palavra que enuncie aquilo que não foi dito, mas se encontra imanente em nós. A necessidade da metáfora, como modo de dar um pouco de inteligibilidade a uma realidade em aparência caótica. No seu livro “O sul e os trópicos” a pesquisadora chilena Ana Pizarro nos propõe, a partir de uma análise das diversas formas de expressão artística, dos movimentos e das articulações da cultura latino-americana no século XX, a instigante metáfora de heteronímia para se referir à relação de unidade na multiplicidade, que chegamos a experimentar devido a nossa história (PIZARRO, 2006). Ela pega a sua metáfora emprestada, é claro, dos heterônimos do poeta luso Fernando Pessoa, os quais percebe como “o autor fora de sua pessoa”, de modo, entretanto, que o mesmo está contido neles, sendo cada heterônimo uma extensão de si mesmo.
Tomarei a metáfora emprestada para articular minha reflexão na direção da
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Utilizo a articulação Diferença cultural/colonial de modo a, primeiro, explicitar que a diferença cultural, como definida por Bhabha (1996, 1998), dá-se daquele modo graças à colonialidade do saber e do poder (QUIJANO, 2000 e 2005), como parte do Sistema-mundo moderno/colonial. Em segundo lugar, para estabelecer uma diferença entre este conceito e o de diferença colonial, definido como loci de enunciação, como posto por Mignolo (2003), também utilizado por mim nestas reflexões. 136 É importante destacar que o uso do conceito de diferença Colonial – e não diferença cultural, como em Bhabha – refere-se a um lugar de enunciação definido pela colonialidade do poder e do saber, como proposto por Mignolo, com base em Quijano e Dussel.
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articulação da cultura popular da nossa América com o seu projeto de libertação e a vocação do seu projeto civilizatório. Por espaço e foco não me deterei na revisão das escolas e movimentos de expressão artística, nas suas diversas linguagens, que marcaram a experiência dessa busca pela identidade latino americana, mas salientar que aquele intenso movimento da crítica e do fazer artístico, que ganha destaque nos anos de 1960, respondia a toda uma história e um modo de pensamento. Uma outra modernidade, carregada de símbolos da América profunda, aparecia nas telas, na dança, nas esculturas, nos textos e nas músicas, notadamente na música popular. Por toda a América latina e o Caribe a noção de identidade aparecia como uma revelação e passava a ser tratada como “uma entidade orgânica unitária”, que convergia em sua diversidade (PIZARRO, op.cit p. 14). Para Pizarro aquilo que a Europa descobrira como sendo o perfil do ser humano no final do século XX, nós já teríamos experimentado como modo de existir na periferia-mundo. Pela nossa própria condição na diferença colonial, o nosso imaginário é o de uma identidade em construção, porque em relação, no encontro, um ser que está sendo. A unidade na diversidade não é para nós uma opção contra as metanarrativas totalizantes nem uma reação tardia ao choque cotidiano com os imigrantes indesejados – como acontece na Europa deste início de século -, mas uma condição histórica, uma característica que nos define. Nas palavras de Ana Pizarro, A heteronímia que faz com que América Latina seja a área andina, mas não apenas ela, mas outras áreas, simultaneamente; que se expresse na irreverência cultural de Borges, própria do mundo do Atlântico sul, zona de imigração, embora não o seja ao mesmo tempo, e costume se dizer dela que é a parte “europeia” da América, desconsiderando que é um dos modos desta cultura o de se apropriar criativamente, entre outros, da Europa. (que faz com) que o Caribe se inscreva numa cultura latinoamericana e se integre, por outro lado, a um conjunto de viés propriamente caribenho ou, às vezes, parcialmente metropolitano. Esta heteronímia que faz com um indígena da selva amazônica tenha pouco a ver com um descendente da imigração italiana em Buenos Aires, mas que, entretanto, estejam articulados por padrões vinculantes, às vezes rizomáticos, às vezes com base em uma matriz centralizada, mas perfiladas em histórias de desenho relacional.137
Assim, passamos a assumir que, pela sua peculiar condição histórica, a característica principal da Cultura da nossa América é a heteronímia. É esta a sua condição de unicidade, uma unicidade que, definida pela sua exterioridade, é histórica, dinâmica e tensamente 137
PIZARRO, Op. Cit. P. 15.
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intercultural, no sentido crítico de ter se desenvolvido a contrapelo da colonialidade do poder e do saber, mas também no de vir sendo e se fazendo na relação que sua multiplicidade lhe impôs.
Trata-se de um pluriverso cultural geopoliticamente articulado como trajetória
heteronímica - composta por heterônimos que são, assim, as pessoas da pessoa: maaya da nossa América maa. E neste sentido, geopoliticamente significa que construída na diferença colonial, como loci de enunciação. A heteronímia, como metáfora, dá conta, com algumas licenças e com arranjo a um universo categorial que refere ao simbólico e ao estético, daquilo que Quijano (1988) chamou de ‘a nova heterogeneidade estrutural da América Latina’. Esta característica intrínseca da Cultura da nossa América, e em especial da cultura popular como vimos anteriormente -, pela sua empatia com os movimentos de libertação, é portadora de uma potência descolonial e se projeta como base de um projeto político para uma sociedade pluriversal, em contraposição ao projeto da universalidade moderno/colonial. Desta maneira, a cultura popular é parte imbricada da luta pela libertação e, assim, de qualquer prática educativa descolonial. Por ser a nossa palavra, a nossa escrita, na diferença colonial, necessariamente uma enunciação “contra”, como nos apontou Silviano Santiago, trata-se de um dizer que denuncia, pelo simples ato de ser. Daí lhe vem essa potência transgressora do cânone estético e da institucionalidade moderna/colonial, da normatividade eurocentrada à qual contesta sua pureza, sua estética pasteurizada, sua louvação do apolíneo e seu apego ao racional e ao estruturado, que por vezes expressa a Arte nestas terras e que, de algum modo, carrega sempre, e de forma imbricada, a cultura popular. Traz, assim, implícita certa identidade rebelde, imaginário construído ao longo dessa sua história a contrapelo da modernocolonialidade. Entretanto, mais do que a denúncia explícita, é a Memória o elemento aglutinador, reordenador e redefinidor desse imaginário, que redefine e reordena, assim, não só as práticas sociais e os currículos sobre a História e sobre as ciências da sociedade, mas da Cultura, no seu sentido lato, isto é, da identidade como dispositivo central do sujeito da transformação social. Deixa-se entrever, ao longo da sua história e costurando-a, uma identidade rebelde que se reinventa mantendo, entretanto, um discurso relativamente coerente sobre o mundo a partir da Nossa América. É essa identidade rebelde a que nos define na diversidade, e produz, cria, r-existe e semeia. A memória dos vencidos e a Cultura Popular constituem nodos dessa identidade rebelde, heteronímica e pluriversal, cuja expressividade e potência criativa teriam 161
de estar na base de qualquer projeto de descolonização da Educação, notadamente da Escola das classes populares, seu currículo e sua gestão.
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Cultura, memória e identidades rebeldes na Nossa América. Por um ato educativo contínuo que saiba ler paisagem e corpos e não apenas os códigos da língua oficial/colonial
Ao historiador que quiser reviver uma época, Fustel de Coulanges recomenda banir de sua cabeça tudo o que saiba do curso ulterior da historia. Não se poderia caracterizar melhor o procedimento com o qual o materialismo histórico rompeu. É um procedimento de identificação afetiva. Sua origem é a indolência do coração, a acedia, que hesita em apoderar-se da imagem histórica autêntica que lampeja fugaz. Para os teólogos da Idade Media ela contava como o fundamento originário da tristeza. Flaubert, que bem a conhecera, escreve: "Peu de gens devineront combien il a fallu etre triste pour ressusciter Carthage.". A natureza dessa tristeza torna-se mais nítida quando se levanta a questão de saber com quem, afinal, propriamente o historiador do Historicismo se identifica afetivamente? A resposta é, inegavelmente: com o vencedor. BENJAMIN, Sobre o conceito da História138
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BENJAMIN, 2005. Pag. 70.
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[Cultura, memória e identidade na encruzilhada do público do espaço]
Todos foram saindo, de mansinho tão calados, que eu nem sei se fiquei mesmo só. Não trouxe mensagem e não me deram senha... Disseram-me que não iria perder nada, Porque não há mais céu. E agora, que tenho medo, e estou cansado, mandam-me embora... Mas não quero ir para mais longe, desterrado, porque a minha pátria é a memória. Não, não quero ser desterrado, Que a minha pátria é a memória... (JOÃO GUIMARÃES ROSA – Revolta. Magma)
Há uma relação profunda e íntima entre Cultura, Memória e Identidade; para negar a terceira, as duas primeiras são o lugar de uma intensa luta. Toda memória é uma narrativa dessa memória. Da mesma maneira, nos lembra o professor Carlos Walter Porto-Gonçalvez, quem nomeia possui, e o poder de narrar, o lugar da enunciação, é também palco cuidadosamente zelado. Em uma sociedade grafocêntrica, como a nossa, é natural que a memória escrita assuma certa simpatia com aqueles que dominam o código139. Todavia, a nossa sociedade não é apenas uma, ocidental por antonomásia, como a pretendem suas elites, e não se narra apenas com palavras. Enquanto o sujeito hegemônico do Ocidente tem a sua história - e, logo, a sua leitura das histórias subalternas - contada pelas instituições, pelo direito e mesmo pela ciência (SPIVAK, 2010), registrada nos textos de História (com maiúscula), os subalternos e oprimidos carregam a sua história inscrita no corpo, no gesto, nos atos, nas ações, na paisagem e também na palavra. Privada de “notoriedade” e legitimidade institucional, e por vezes perseguida como fonte de subversões, a memória encontra refúgio no âmbito do cotidiano da vida privada e de lá emerge em momentos inesperados, saltando do espaço privado ao público.
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Como na conhecida sentença de Walter Benjamin que está na epigrafe deste capítulo, a resposta é inequívoca...
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Até as mais coletivas das gestas ocorrem sempre no local, dentro do Horizonte onde se define, para cada um e cada uma, a totalidade-mundo (DUSSEL, 1977c) que lhe confere sentido. Assim, embora todas as determinações e implicações macro sociais e macro políticas que envolveram, por exemplo, os anos de terror imposto pelas ditaduras militares na maioria dos países da Nossa América, entre as décadas de 1960 e 1990, o medo, o silêncio imposto, a autocensura, a dor da perda de um amigo ou de um familiar, e mesmo experiências tão radicais e dissimiles como a clandestinidade, o exílio e o trabalho coletivo em organizações de resistência, são vivenciadas, objetivamente e em última instância, no cotidiano, na esfera do mais íntimo, do privado, do pessoal e afetivo. E é justamente dessa vivência, desse sentimento objetivado e dessa reconfiguração da política no campo do pessoal e do afetivo, que mana com maior força o tecido da memória e suas narrativas. Assim, as “Madres de la Plaza de mayo” por exemplo, sobre as que, em seu “direito ao delírio”, Eduardo Galeano diz: “as loucas de Plaza de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória”140. A íntima dor da perda de seus filhos e filhas, a angústia de não saber do seu paradeiro, ante o silêncio impávido do Estado e da sociedade assustada ou cúmplice, foi se reconfigurando em uma narrativa de corpos circulando na praça, no espaço público, ritualizando e, assim, reatualizando uma potência política que, por sua vez, ampliou sua capacidade mobilizadora. O corpo subvertendo o espaço público se transforma em símbolo. O lenço branco nunca mais foi apenas um lenço braço e as simples histórias particulares tornaram-se antídoto para a amnésia coletiva em grande parte da Nossa América. [a paisagem que conta histórias e a Memória que reencanta a cidade] A indagação e produção estética não fogem a esta dinâmica e, por vezes, a arte aliada aos invisíveis fios da memória dos comuns, cumpre um importante papel nessa disputa cotidiana. No sul do Chile, o povo Mapuche (gente da terra, em Mapuzungun, a sua língua ancestral) conta, a través da paisagem, da geografia, inúmeras histórias. Cada Rio, cada lagoa, cada montanha, transmite significados insuspeitos para o olhar acadêmico ocidentalizado. Estas histórias fazem parte hoje do imaginário da região, no campo e nas cidades. Muitas delas sequer são mais reconhecidas pelas pessoas da cidade na sua origem Mapuche, nas regiões de Concepción e ao sul, pela Araucanía. Uma delas conta a história de uma lagoa, em cuja 140
Em español no original, tradução própria: “las locas de Plaza de Mayo serán un ejemplo de salud mental, porque ellas se negaron a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria”. GALEANO, 1998.
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superfície poderia se ver, em certas noites, cabeças de negros emergindo. Segundo manda a tradição científica moderna/colonial, cada história contada, cada lenda é descrita como um mito, com base no princípio do animismo indígena, descartando qualquer possibilidade aproximação do que o relato possa trazer como memória, como testemunho e como sentido ôntico (relativo às coisas, os objetos) e ontogênico (relativo à história de formação do ser). Ou seja, nos afasta de qualquer possibilidade de compreensão desse outro. Esquecida por muitos a lenda, na paisagem urbana da região de Penco ficou o nome, “La laguna de los Negros” e os relatos da sua memória. Recentemente, entre os anos 2006 e 2007, um grupo de teatro141 da região, especializado no trabalho com a memória oral, empreendeu uma investigação interdisciplinar142 para realizar uma montagem teatral com o mesmo nome. Com base em um trabalho de levantamento da memória viva, transmitida de forma oral pelos moradores, e acompanhada de um levantamento historiográfico143, a peça relata a história que remonta a inícios do século XIX144. Setenta e dois senegaleses, na sua maioria mulheres e crianças, que sequestrados da sua terra pelo então oficial comércio de escravos negros das colônias, tinham sido embarcados no porto de Valparaiso, no navio Espanhol “La Prueba” com rumo ao Porto de Callao. Liderados pelo velho Babo, secundado pelo seu filho Mure, o grupo conseguiu romper as correntes e na sublevação assumir o controle do navio. Na luta, o Capitão Benito Cerreño teve sua vida poupada em troca de levá-los a porto seguro. A intenção de Babo era conduzir o navio, pelo estreito de Magalhães de volta a terras africanas (Vicuña Mackenna, 1869. Pag 433). No trajeto ao sul, o navio encontrou outro de bandeira norte-americana. Este, capitaneado por Amasa Délano, que ao perceber a situação abordou o 141
Trata-se da companhia Teatro del Oráculo, autodefinida como coletivo humano que explora espaços cênicos do “teatro físico”, cujo universo temático se encontra vinculado ao entorno humano e social, a partir da historia oral e da memória privada dos sujeitos populares, de onde extrai um rico leque de crônicas, sensibilidades e acontecimentos que desde a sua particularidade falam do mundo total. Ver: http://www.teatrodeloraculo.cl/ 142 Documento de Edgardo Quezada Arias disponível em http://www.teatrodeloraculo.cl/montajes/negros/documentos/Las_Negras_Lagunas_de_la_Memoria_Penquista.p df acessado por última vez em 11/01/2013. 143 Principalmente utilizando fontes oficiais da época e fontes historiográficas como a História de Valparaíso, de Benjamin Vicuña Mackenna e Barros Arana. 144 O acontecimento que passo a relatar, foi também registrado no livro de memórias do Capitan Amasa Delano, A Narrative of Voyages and Travels in the Northern and Southern Hemispheres: Comprising Three Voyages Round the World; Together with a Voyage of Survey and Discovery in the Pacific Ocean and Oriental Islands, (Boston: E.G. House, for the author, 1817 [Facsimile print, Upper Saddle River, New Jersey: The Gregg Press, 1970] ), especificamente no capítulo XVIII. O escritor norte-americano Herman Melville (1819 – 1891) – famoso pelo seu Moby-Dick -, utilizou este relato para escrever, de modo romanceado, o seu conto “Benito Cereno”, onde relata o mesmo acontecimento, do ponto de vista do Capitão Amasa Delano. Herman Melville, The Piazza Tales and Other Prose Pieces, 1839-1860. The Writings of Herman Melville, ed. Harrison Hayford, Alma A MacDougall, G. Thomas Tanselle (Evanston and Chicago: Northwestern University Press and the Newberry Library, 1987), p. 47. A personagem de Melville, Benito Cereno, é na verdade o capitão Benito Cerreño, ou Don Bonito, como era chamado pela tripulação.
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navio. Da batalha que duraria um par de horas, sobreviveram apenas oito. Estes, entregues ao poder local na baia de Talcahuano, foram condenados à morte, enforcados na praça de armas da cidade Concepción, e lançados seus corpos no fundo da Lagoa. Na época, era o costume dos espanhóis afundar os executados, pois considerados seres sem alma não poderiam ser enterrados em solo sagrado. Na pesquisa, os atores encontraram, além de inúmeros relatos transmitidos oralmente, canções populares e contos que relatam, inclusive, falas de Babo ao momento da condena, justificando sua ação pela crueldade dos seus captores e pela falta de direito de se “roubar homens livres dos seus lares”. Anos depois, a laguna e seu testemunho de horror foram aterrados. Assim, os corpos e os nomes de Babo, Mure, Matiluque, Atafal, Natu, Quamoba, Mopenda, Yambazo e os outros, protagonistas todos e todas de uma de tantas e tantas batalhas pela liberdade, foram enterrados junto à lagoa sem nome, sob a cidade que crescia e se expandia de concreto e amnésia. A peça de teatro que originou o levantamento, apresentada em praças e escolas públicas - entre outras a própria praça de armas em que fora um dia montado o cadafalso – não apenas denunciava o horror, senão que cantando e contando, anunciava a potência da memória coletiva do povo, que mais uma vez saltava do âmbito da vida privada, reinventado o espaço público e a memória coletiva. [a cidade imanente e a geopolítica da cultura e da razão] “Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço” Paulo Freire
Em 2010, visitando Santiago do Chile, após alguns anos morando fora do país, me defrontei também, no foro mais íntimo, com a violência do embate de imaginários em disputa no próprio espaço urbano, vivenciando a mesma perda de sentidos de pertencimento ao ter a paisagem e o passado usurpados, a memória oculta. O meu país foi sempre vários países. Alguns totalmente antagônicos e, embora a intrínseca colonialidade da contingência política me obrigasse a viver sob a hegemonia deste ou daquele, sempre soube encontrar, nos seus interstícios, o país da minha pertença. Com arranjo a um complexo sistema de significados e sentidos que intercambiavam seus valores de uso segundo as relações em tensão, “achava-me” com relativa facilidade, constituindo a minha dupla consciência (Du BOIS, 1999) crioulizada (GLISSANT, 2005).
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Ao chegar, a estrada do aeroporto ao subúrbio de Santiago me chamou a atenção. Uma moderna via expressa anunciava o redesenho da urbe, tido por alguns como parte do “progresso que o modelo trouxe ao país”. “A terra do ‘bip’” teria batizado o Chile que então começava a (re)conhecer; De tantos em tantos metros um “bip” anunciava o encargo ao cartão de crédito do motorista. Vias como esta, que circunda toda a capital, cruzam-na mesmo por baixo do principal rio, o Mapocho, unindo o centro da cidade ao bairro financeiro e ao nobre. Um olhar atento descobre vias paralelas que acompanham seu traçado com menos infra-estrutura e uma quantidade considerável a mais de trafego. Nessas, ônibus lotados do sistema de transporte público, Transantiago, acolhem as massas de trabalhadores em troca do respectivo ‘Bip’ no cartão de cada um. Por sua vez, o Metrô, moderno e eficiente, porém, hoje, sempre lotado, cobre quase toda a capital. Junto dele a cidade mudou sua configuração, fazendo surgir nova atividade comercial em bairros periféricos, onde foram erguidos imponentes “Shopping Centers”. A propaganda e o clima de consumo são onipresentes no novo Chile, como cumprindo as profecias de Ridley Scott em Blade Runner145 e George Orwell, em 1984. Assim também é a propaganda das Universidades, privadas ou ‘tradicionais’ – o conceito de educação pública foi banido do debate, assim como a ideia de haver um direito à educação, que bane por sua vez qualquer “serviço” de ensino superior não pago. Em 2010 a chamada “indústria” da educação faturou mais de US$ 15 bilhões. O Chile da minha memória, do meu imaginário, alimentou meu desterro casual e prolongado com imagens de um povo cindido, mas apaixonado, engajado em diversos projetos de se construir como nação, articulador de sonhos coletivos, amante da sua violenta, contrastante e bela geografia, paisagem rebelde como seu caráter historicamente libertário, gente de um romantismo nobre e espartano. As fachadas da velha Valparaiso chegaram a ser ícone de uma cultura encantada pela capacidade de homens e mulheres de reinventar pobreza material em dignidade e poesia.
Santiago, com quase quinhentos anos e mais de seis milhões de
habitantes, tem inscrita nas suas ruas e construções, as principais lutas que fizeram a nação: as epopeicas e as cotidianas, as que encheram páginas de livros e telas de cinema e as que, invisibilizadas pelos devaneios do poder, se erguem passo a passo construindo a vida de um povo. Na juventude, ao caminhar pelos bairros sempre pensava, como desvincular a estética
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Ver HARVEY, 1992.
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das velhas ruas dos sonhos que se teciam silenciosamente nas suas casas? Sem dúvida, aquela cidade me ensinava. Dessa vez, fui caminhar pelas ruas de Ñuñoa, o meu velho bairro, em busca de memórias que alimentassem novos futuros possíveis. Caminhei horas, perdido e isolado na fronteira entre as ruas da minha memória e as que ora encontravam-se sob os meus pés. No lugar, arrogantes torres de apartamentos, condomínios residenciais de luxo e novos empreendimentos imobiliários. Onde tinham ido parar, em tão pouco tempo, os velhos vizinhos? Onde seus sonhos, seus projetos de vida, suas lutas? Todo retorno é um revisitar - conceitos, histórias, territórios e sujeitos, a cada volta surgem novos estranhamentos, novos olhares. Agora uma relação íntima entre a abrupta mudança estrutural da cidade e os usos que as pessoas fazem dela, surgia chamando-me a atenção sobre sua incidência na própria noção de cidadania e democracia, escancarando um paralelo entre a cidade oculta e a construção de um discurso sobre a realidade, tecnocrático e pragmático, que oblitera conceitos outrora fundamentais para se pensar a sociedade.
Com traçados de
modernidade eurocêntrica, colocam-se os limites do que é possível ser proposto ou mesmo sonhado. O ensurdecedor silêncio da nova metrópole que se levanta sobre o túmulo da própria memória, ostenta a sua organização do espaço urbano homóloga ao discurso neoliberal que lhe deu origem e razão de ser. Por baixo dela, quantas foram enterradas? Quantas Lagunas de negros foram aterradas? Quanta amnésia é preço cobrado pelo projeto da modernidade? Santiago é hoje uma cidade que nega seu passado, a risco de escancarar a sua colonialidade ontogênica. Mas os mercados se reinventam, e assim também os usos da cidade. A política implícita nas ruas parece, assim, tão eficiente e pragmática quanto a da gestão dos grandes negócios do capital. Senti urgente lembrar os debates sobre a Cidade educadora na década de 1990, que sociedade ensina Santiago hoje? Qual o projeto de mundo que propõe? Como educar sem memória? Como antes, uma cidade parecia ter se erguido ante meus olhos por cima das histórias locais, do imaginário coletivo, se impondo sobre a produção social do espaço dos subalternos. Esta mesma situação, a diversas escalas, é vivenciada de modo radical, hoje, por milhares de pessoas de comunidades Mapuche, no Chile, dos povos da Amazônia, na região da Raposa Serra do Sol, no Brasil; nos antigos bairros cujas populações resistem à especulação imobiliária em Santiago, como em São Paulo e na Rio de Janeiro dos megaeventos, nas favelas e “poblaciones” removidas, nos museus e prédios históricos demolidos para a 169
construção de estacionamentos e onde quer que o grande capital estenda seus empreendimentos. Porque a questão da interculturalidade é crítica, não cosmética, urgente e vital, cotidiana e macro social, e não apenas uma questão teórico discursiva ou de metanarrativas sobre o mundo (e sim, justamente por se falar em cultura, é que se trata de um aspecto material e concreto da vida, não apenas de uma diletância simbólica).146 Não, em definitiva, não estou propondo, é claro, que a disputa pela memória e a questão do imaginário coletivo de um grupo social subalternizado possa resolver, por si só, questões tão sérias, urgentes e complexas como as citadas a modo de exemplo aqui, cujo efeito devastador sobre a vida dos comuns é provocado pelo desenvolvimento desenfreado das forças do grande capital. Em cada caso específico, as comunidades se articulam, em âmbito local e em redes, ou melhor, como comunidades comunicativas em rede – que partilham de um determinado horizonte que dá sentido à totalidade-mundo. Em cada situação é dada uma luta frontal, que hoje é livrada das mais diversas formas, para conter o avanço dessas forças. É pela dinâmica dessas lutas que o cotidiano se reordena em movimentos sociais os mais diversos. Assim com os atingidos por barragens, com os sem terra, assim com as comunidades indígenas, os “desplazados” em situações de conflito, os reféns imprensados entre a lógica binária da guerra às drogas e a do mercantilismo radical e mercenário dos que as comerciam nos bairros populares, ambas criminosas por sobreporem seus interesses ao direito à vida, etc. Entretanto, a só possibilidade dessas lutas acontecerem irá depender da existência dessa comunidade, como uma coletividade ligada por uma percepção integrada e dinâmica de si e da sua potência enunciativa e política. É o que chamamos antes de constituição do nós, para o qual a memória coletiva, somada à percepção de necessidades objetivas, relidas a partir desse particular ponto de vista da comunidade, é condição sem a qual não há sequer a possibilidade dessa luta. A questão central que me traz é a busca de elementos que permitam não apenas questionar os modos em que se dão as leituras dos sentidos atribuídos ao campo da cultura popular (do
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Alguns nomes emblemáticos desta interculturalidade em plena ebulição crítica nos dias de hoje são: Conflito Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro; Territórios do povo Guaraní-Kaiowá, da Nación Mapuche, Raposa Serra do Sol, jovens imigrantes das ex-colônias na periferia das metrópoles europeias, retomada colonialista da França no Mali, espaldas mojadas atravessando o Muro EUA/México, mas também juventudes de favelas na luta por direitos, juventudes conectadas nas novas tecnologias colaborativas, Quilombolas, Populações sem domicilio e nômades nas cidades, Mobilização indígena Zapatista, no Sul do México, Pontos de Cultura Viva Comunitária (no Brasil e na América latina), Griôts, movimentos de luta pela reforma urbana, contra a gentrificação e os diversos movimentos de hortas urbanas e permacultura nos grandes centros urbanos, entre tantos outros exemplos.
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povo, no sentido ontológico e dos diversos grupos e classes sociais na subalternidade – negros, indígenas, comunidades pauperizadas de cada região, grupos de jovens nas periferias, coletivos de arte popular, etc.), mas fazê-lo desde a afirmação de que a disputa pelos sentidos do popular (diferente do populismo e do mercado) está marcada, no campo acadêmico, pelo esvaziamento político decorrente da negação do subalterno como sujeito ativo da sua própria produção simbólica. E esta questão irá incidir diretamente na definição da história e função social da arte, ao definir a sua inteligibilidade. A disputa política pelo sentido da cultura de uma comunidade, pela memória coletiva, isto é, por aquilo que é reconhecido e assim preservado como a história de um determinado grupo social, pode se dar também no campo das ideias, da palavra escrita e da pesquisa acadêmica, mas tem, principalmente, no cotidiano daqueles que são seus atores diretos, o seu lócus privilegiado. A compreensão desta questão me parece importante no sentido de perceber o giro epistêmico de um projeto de construção dialógica do conhecimento, que assuma, como base, o papel dos sujeitos na subalternidade como agentes de um conhecimento libertador, com potência de releitura dos conhecimentos produzidos no âmbito acadêmico e da cultura dominante. Isto significa também que essa disputa está diretamente ligada aos usos e à produção do espaço. Não apenas, mas principalmente ao espaço público. Esta feroz e desigual luta pela memória, pela cultura e pelos sentidos de pertencimento, à qual vinha me referindo, e cuja importância parece vital para um projeto de educação libertadora, se dá assim, na sua materialidade, não apenas na construção de narrativas e na produção de sentidos, mas tem a sua materialidade atravessada pela inter-relação entre os sujeitos e a produção espaçotemporal. Em outras palavras, há uma geopolítica da cultura, homóloga à geopolítica da razão, que define a moderno-colonialidade, a ser considerada e que opera como mediadora dos processos sociais de dominação e socialização. [Uma trajetória e um encontro de lugares desencontrados] Era uma vez um corpo desbotado que habitava acima das luzes da cidade. Acontecia muita coisa nesse lugar. Apesar da localização, inexistiam trevas e marasmos no dia-a-dia dos habitantes. Nada parecia tédio ou sina. No local onde morava muita coisa acontecia: derrotas, combates, vitórias, estratégias faziam-se incansavelmente. Ausentes de calmaria, inventavam e reinventavam particulares modos de defesa e de ataque. Destinos e histórias avolumavam-se em díspares versões de fatos sem sossego. (...) as luzes lá em baixo ofuscavam os combates e as heterogêneas versões como se nada estivesse acontecendo. Traduzia-os em sombras. Luzes de neon, do humanismo, da eletricidade, da razão, entre outras, não chegavam até lá. Ficavam em seus postos projetando
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penumbra, sombreando pra cima. Quando o sombreado aumentava, a cidade se partia como se fosse composta por dois mundos, por dois desejos. (BAPTISTA, 2001)
José147 tinha poucos anos no corpo e já muitas marcas duramente inscritas nele quando deixou sua casa, cansado da mesmice que, na sua leitura, o cercava. O Zequinha, como foi apelidado ainda muito novo, pelo seu jeito miúdo, habitava “acima das luzes da cidade148” e ‘descer’ foi um movimento de acúmulo intenso de desejos e saberes até poder fazê-lo. Herdeiro de um traficante local, o disparador do seu voo ao asfalto, desse ousado descenso para cima, foi, de fato, no último momento, uma releitura do poder que poucos, e só em momentos de extremo perigo, podem experimentar. De qualquer maneira, o fato é que para além ou aquém ou talvez levemente deslocado a um lado disso tudo, algo se fazia parecer finito e sem sentido no cotidiano da sua vida. Como se esquecido estivesse das marcas que o pior lado da violência social deixara no seu corpo, para sempre, narra a visão que o empurraria a uma busca além do que para ele estava posto como natural: “o pessoal tava lá no ‘movimento’, aquela coisa, vendia, tirava onda, às vezes subia a polícia, morria alguém, às vezes na guerra se matava também, mas era sempre a mesma coisa. Eu me negava a acreditar que a vida fosse apenas isso”. Olhando os sonhos pelo avesso da grande cidade, com suas narrativas atravessadas no desejo de ser de cada um, o menino José repete para si: “...não podia ser apenas aquilo”. E o sonho de ir além, de viajar, “de conhecer pessoas novas, um mundo melhor” acabou tomando conta até o momento em que seu medo de perdê-lo foi maior do que o de ganhar qualquer outra coisa. Foi, então, ainda criança, para as ruas de Copacabana, e por lá foi ficando um bom tempo. Lá, o Circo o encontrou e ele foi atrás, primeiro porque tinha comida, gente nova e outras acrobacias, além dos amigos da rua que curtiam muito se jogar pelos ares, dando cambalhotas e mortais149. Zequinha foi descobrindo aos poucos o encanto e outras paixões lhe renasceram. Descobriu por exemplo que algumas brincadeiras de criança na comunidade e nas ruas tinham no circo outros nomes que as faziam parecer tanto mais importantes e belas, como a 147
A trajetória relatada aqui como ponto gerador de reflexões sobre encontros e narrativas do espaço e do saber, foi construída a partir de depoimento pessoal, não registrado. Como apontado anteriormente, o nome foi modificado para evitar o efeito que uma possível única história pudesse ter sobre as trajetórias de “José”. Embora todos os elementos do relato sejam verídicos, não estão dispostos de modo descritivo ou biográfico. O estilo da narrativa consiste num exercício que parte do entendimento de que a fabulação compõe a realidade, alargando-a de sentidos. 148 Em referência ao belo texto “A Fabula do garoto que quanto mais falava mais sumia sem deixar vestígios” de Luis Antonio Baptista. 149 O encontro relatado faz referência à participação de Zequinha nas atividades do NEPaR – Núcleo de Educação Popular a partir da Rua, da ONG Se Essa Rua Fosse Minha, na cidade do Rio de Janeiro. As atividades do NEPaR se desenvolvem na rua, em especial na orla de Copacabana.
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estrelinha, que se chamava agora pantana, ou plantar bananeira que era parada-de-mão,. Alguns anos mais tarde se perguntaria se não aconteceria igual com as outras coisas da vida, com as coisas que o pessoal sabia da vida na rua e na comunidade. E assim, da cambalhota ao salto-leão, foi construindo com a galera, um novo modo de estar no mundo. Em tempo, a rua, amada indócil com seus caprichos por vezes incompreensíveis, parecia ir se reinventando também. “O impossível é apenas aquilo que ainda ninguém fez”, tinha ouvido um velho circense dizer, e tinha feito maior sentido para ele. O pequeno Zequinha, agora Cazé, sempre gostou de palavras, mas não se sentia muito bom com elas, conhecia-as pouco, de viés. A escola tinha ficado para trás quando decidiu largar a mesmice e ir atrás de conhecer o mundo. No circo sua vida foi se reescrevendo e outras palavras vieram. Como todos por lá, gostava de bater tambor e de cantar e tudo isso junto foi se articulando em um modo peculiar de fazer os espetáculos, de criar e de apreender. De repente estava por ali escrevendo para criar roteiros, para ajudar na divulgação da Trupe, ou simplesmente por dizer. Sujeito tranquilo, despido de alardes, passou a desenvolver a arte de caminhar tecendo pontes.
Depois, no momento em que todos já estavam em idade de
trabalhar e construir novas histórias, os companheiros foram escolhendo seus caminhos - a Escola Nacional de Circo, a vida de artista de rua, uma companhia de Circo lá fora, um emprego qualquer de carteira assinada – Cazé, ainda jovem, e junto a alguns poucos que curtiam o papel de Circuladores150 que o Se Essa Rua151 lhes instigara a desenvolver, optou por se tornar um educador em Circo Social, um caminho ainda sendo traçado, cuja construção vem ajudando a fundar desde então. Em 2008, a trupe de Circo Social, com a qual Cazé já havia se apresentado em espaços tão diversos como o Largo do Machado, um Festival na Noruega, espaços comunitários em diversas favelas, escolas públicas e colégios particulares e em diversas capitais Brasil afora, era pela primeira vez convidada a se apresentar em uma Universidade. Lá foram eles, todos jovens entre 20 e 25 anos, a maioria com experiência de vivência nas ruas, todos negros, todos de comunidades do Rio de Janeiro, a montar o seu trabalho de Circo Social na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, em São Gonçalo, onde eu lecionava 152. A 150
O Conceito de Circuladores de saberes, ligado ao de espaços de convivência pedagógica, faz parte da concepção metodológica participativa do Se Essa Rua nos processos de formação de adolescentes e jovens, em que os elementos da arte popular, em especial do Circo, se unem aos ensinamentos da tradição ancestral dos Griôts em um contexto de educação popular. 151 Se Essa Rua é o modo corriqueiro de se referir à Organização não governamental Se Essa Rua Fosse Minha. 152 Nesta parte a narrativa é construída a partir da minha própria experiência, no encontro de trajetórias
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inusitada chegada do Circo, com seus cuspidores de fogo e seus saltos acrobáticos, quebrou algo mais do que a rotina do espaço acadêmico, abrindo fendas no grande costume. O sociólogo José de Souza Martins, no seu livro “A aparição do demônio na fábrica” nos chama a atenção sobre como sons e cheiros fazem parte da normatização dos espaços e de como um som permitido em um espaço pode ser extremamente perturbador quando no “espaço errado”. Não é difícil perceber que nos espaços institucionalizados, e talvez mais ainda nos espaços públicos, a normatização dos usos cotidianos e o controle dos corpos são levados ao extremo, articulando-se em uma biopolítica de longa tradição no Estado liberal, tão estudada por Foucault153. Assim que os garotos da trupe começaram sua performance, sem anúncio nem programação prevista, como é de praxe no circo e no teatro de rua, nas artes performáticas, nos happenings e também do Circo Social, alunos e alunas/professores e professoras-em-formação começaram a se aproximar, seduzidos pelo espetáculo. Rapidamente a área de convivência, como é chamado um espaço coberto que fica na entrada da faculdade, entre o prédio do auditório principal e as salas dos departamentos e da secretaria de ensino, ficou cheia e o clima de espetáculo circense tomo conta de tudo. Um pequeno grupo de alunos e professores, entretanto, começou rapidamente a se mobilizar para interromper a atividade, considerada como “inapropriada para um espaço como esse”, e foram até a diretora da Faculdade, a professora Teresa Goudart, solicitando que intercedesse.
Ignoravam ou desconheciam a
intima relação da diretora com o campo da educação popular. Profundamente incomodados com a aparente subversão das funções do espaço público, destinado ao culto ao conhecimento, não viam o que estava acontecendo na sua frente, ignorando também que a concepção político pedagógica do Circo Social contempla a integração de cronotopos que no ensino escolarizado, na sua matriz hegemônica, são estanques: o do aprender e o do brincar. Assim, a sala de aula e o recreio se encontraram no picadeiro imaginário que surgia perante os olhos atônitos de alguns colegas, propondo a reconciliação insuspeita do prazer, do saber e do desejo de fazer. O espetáculo correu sem maiores percalços. A garotada, experiente na sua arte, manteve firme a atenção oscilando entre a tensão do risco da queda, o encantamento com a beleza de um movimento e a descontração do riso que traz, por si, sua própria razão de ser e dizer de individuais. As falas foram registradas e transcritas. 153 Ver FOUCAULT, Michel, Nascimento da Biopolítica, São Paulo: Martins Fontes, 2008, pag. 30 – 70 e 297 – 328. Ver também A história da Sexualidade, vol. I
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cada um de nós. Ao terminar o último número, após os aplausos, o público improvisado começava a se dispersar, como que sentindo a urgência de reconstituir a rotina cotidiana. Entretanto, para a Trupe isso não fazia menor sentido, faltava a melhor parte ainda, e assim o fizeram saber, chamando em alto e bom som para todos e todas voltarem a se aproximar. O convite foi feito. Cazé, com a sua voz calma, propunha aos professores/as-em-formação se sentarem na roda com eles para “trocar uma ideia”. Lá estavam, alunos e alunas da Faculdade de Formação de professores da UERJ de um lado, e a garotada da rua e do Circo, do outro, em duas meias luas que custou um pouco integrar. Nenhum professor se sentiu à vontade para ficar. Na conversa, os mais variados temas começaram a fluir. Os meus “alunos/as” da faculdade me olhavam de tanto em tanto como esperando alguma “orientação”.
Em alguns podia perceber o constrangimento de não
saberem como abordar o debate, receosos de demonstrarem algum preconceito. Todavia, pouco a pouco foram se deixando levar pela conversa dos meninos/as do circo, mais acostumados
estes
a
exercerem
seu
papel
de
circuladores
de
saberes,
como
educandos/educadores. O que vocês acharam do espetáculo? Vocês fazem sempre isso aqui ou é primeira vez? Porque você decidiu estudar para professor? As perguntas iam caindo no colo dos alunos e alunas da faculdade e, na medida em que as respostas foram cedendo ao bate papo aberto e franco, começaram a vir as contrapartidas. Perguntas sobre a rua foram as principais. Os alunos e alunas em geral pareciam entre encantados com a conversa e incrédulos de se tratar de “ex-meninos-de-rua”. Do nada, uma menina do 8º período da faculdade, perguntou, e a escola? Vocês foram à escola? A questão abriu a caixa de pandora de uma serie que, na minha expectativa, esperava desde o início: a reflexão aberta sobre a relação entre Escola e Educação. Cazé foi logo se aventurando, - claro, pó, em geral o pessoal da rua que eu conheci fez pelo menos até a quinta série. - mas, assim, é porque vocês parecem bastante articulados e tal, vocês concluíram o segundo grau? - Eu estou concluindo agora, no supletivo (Cazé se referia a uma turma de EJA em uma escola Municipal que ele frequenta no Rio de Janeiro), - mas você gosta da Escola? 175
Cazé fica pensativo, com o olhar distante, parece que inúmeras imagens da sua vida na escola passam pela sua memória nesse momento, como ele estava já nesse debate os outros da Trupe ficam olhando para ele, esperando sua resposta. Ele continua, - Eu sempre achei muito estranho, sabe? Porque se supõe que é um lugar para aprender coisas, né? E lá, você tem que ficar preso numa cadeira, sem poder se mexer nem falar, só quando pedem pra você, e fica lá na frente um cara falando e falando sozinho e você tem que decorar o que o cara diz... pra mim isso é estranho, entende? Porque não é assim que a gente apreende na vida. Após um breve silêncio alguém do outro lado da roda balbucia um “é, né?”.. - Mas ai, vocês que vão ser professores, o que vocês acham disso? É assim mesmo que tem que ser? Porque eu ainda não acho, sabe? É claro que é importante terminar a escola, se não fica tudo mais difícil, mas... sei lá, né, o que vocês acham? Perguntou. Entre algumas respostas encontradas e muito “sei lá, é assim que é”, Fernando, um jovem formando da Licenciatura em História, assumiu o debate e disse a ele diretamente, “cara, é porque a escola tem um papel na nossa sociedade e o professor é responsável de transmitir conhecimentos que os alunos não têm, entende? A educação é o que falta para que a sociedade melhore, tipo, pra a galera entrar no mercado de trabalho e tal. Eu acho que a educação é fundamental para a inclusão social, até para tirar as crianças da rua e do tráfico. Por isso eu acho importante os projetos sociais assim, como o de vocês. Algumas falas reforçaram a posição de Fernando em duas vertentes, a dos conteúdos que deveriam ser ensinados e do papel da escola como “alternativa de prevenção de violência e exclusão”. Confesso que fiz um enorme esforço para não me meter no debate, mas entendia que o momento desse diálogo não era o meu e que o melhor eu já tinha feito: conseguir ficar quieto de maneira que o calor do debate me tornasse invisível, anulando meu lugar de “professor” e, nesse momento, inclusive de mediador. Por alguns instantes me perdi em devaneios pensando no quanto escutara essa leitura em sala de aulas na faculdade. Foram algumas dessas situações que motivaram a reflexão apontada anteriormente, no início deste capitulo154.
154
Ver o subtítulo [a posição do campo da arte e da cultura e a ilusão da razão], na página XX
176
Mais alem dos detalhes do debate na roda do circo improvisado na Faculdade, as posturas, as falas, a situação em si, onde dois mundos aparentemente muito diferentes se encontravam e aos poucos iam ficando mais e mais semelhantes, pareciam sinalizar o emergir, no debate, de outros mundos antes invisibilizados, mundos de releituras e reinvenções. A experiência da trajetória relatada e os diálogos daquele entardecer na FFP/UERJ me fizeram lembrar das palavras de Paulo Freire na sua Pedagogia do oprimido, Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se", em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se “seres para si”. Este não pode ser, obviamente, o objetivo dos opressores. Dai que a “educação bancária”, que a eles serve, jamais possa orientar-se no sentido da conscientização dos educandos. Na educação de adultos, por exemplo, não interessa a esta visão “bancária” propor aos educandos o desvelamento do mundo, mas, pelo contrário, perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu”, para depois dizer-lhes enfaticamente, que não, que “Ada deu o dedo à arara” FREIRE (2005). Ao final dos debates, todos e todas se envolveram em improvisadas oficinas de acrobacias e malabares, nas quais os e as jovens da Trupe ofereciam generosamente os seus saberes. Alguns alunos se aproximaram, após disso, querendo participar das oficinas e cursos de Circo Social oferecidos pela organização, como aprendizes. A dinâmica espontânea com que se encerraram as atividades daquele dia constituiu um exercício de troca de saberes, que é base de uma concepção dialógica da educação, como no jogo proposto por Freire a uma turma de trabalhadores que não se convencia facilmente de que o educador também tinha muito a aprender com eles. Freire propôs que educador e educandos lançassem perguntas e, na brincadeira acabam empatando dez a dez155. Para o processo de formação dos futuros professores e professoras que lá estavam - e para se reprensar a escola das classes populares - ficou a questão: onde entra, na atual forma escolar, o saber produzido pelas trajetórias-maaya do Cazé e dos demais que lá estavam? E de um modo mais amplo, qual o lugar das narrativas que decorrem das diversas trajetórias da 155
FREIRE, (1992).
177
Cultura popular numa educação comprometida com a libertação? Como for, inesperados encontros colocavam trajetórias diversas em relação, anunciando o incipiente redesenho do espaço, por algumas horas totalmente reinventado. [De trajetórias subalternas e da reinvenção do espaço público] Setembro de 2010, Goiás, no centro-oeste brasileiro, em um movimentado Shopping Center da capital, Goiânia, adolescentes e jovens de classes populares, vindos de diversas cidades do país, misturam-se silenciosamente à multidão ávida de consumo. Aos poucos, a normalidade é alterada. A sutil amalgama que dá sentido ao cronotopo156 do templo do consumo parece fender, ao ver-se o espaço urbano interferido; jovens em ‘segunda altura’157 descem as escadas rolantes, contrariando algo à mais do que a gravidade e o bom senso, enquanto um transeunte ganha uma sombra-viva158, que o segue de vitrine em vitrine e o abandona no exato momento em que ele a percebe, e outros passam, sem querê-lo, a servir de ponte para as claves dos malabaristas159 que as fazem voar em círculos concêntricos, por cima das suas cabeças. Duas meninas descem dependuras das alturas em tecidos coloridos160, chocando de beleza, plasticidade e risco o olhar dos ‘potenciais clientes’ e das vendedoras e vendedores que, colados nas vitrines pelo avesso, viam também.
Dando cambalhotas, pequenos
acrobatas161 aparecem e somem pelos corredores, justo antes dos guardas chegarem para garantir que as coisas voltem ao normal. Ouvem-se alguns gritos isolados, urras, e tem quem chegue a bater palmas, mas sem saber muito ao certo se deveria. Assim, sem palavras, sem figurinos e sem cenografias nem iluminação especial, e sobre tudo de maneira inadvertida, trajetórias coletivas e individuais de fazeres criativos e engajados a
156
O Conceito de cronotopo é aqui usado no sentido proposto Mikail Bakhtin (1980) de indissolubilidade entre tempo e espaço e como centro organizador dos eventos narrativos, os quais podem coexistir se articulando na trama narrativa. 157 Número circense em que um artista fica de pé sobre os ombros de outro denominado como “portô”. Geralmente usado para construção de pirâmides humanas ou para o jogo de malabares. 158 Modalidade da pantomima muito utilizada por artistas de rua em que o artista segue um transeunte e repete exatamente os movimentos dele, sem que este o perceba. 159 O Malabarismo consiste em manter objetos no ar, lançando e executando manobras e truques. Os mais comuns são bolinhas, claves, caixas, facões e lenços. 160 O tecido é uma modalidade aérea circense, também denominada tecido acrobático, tecido aéreo ou tecido circense. Ao contrário de outras centenárias modalidades do circo, como o malabares, as acrobacias e o trapézio, o tecido apresentou seu desenvolvimento nos últimos anos. 161 A acrobacia se encontra entre as mais antigas modalidades circenses. A sua origem ainda é uma incógnita, mas estudos apontam para o uso dessa técnica a partir de pinturas de 5000 anos atrás na China. Existem também registros que assinalam a existência de jogos acrobáticos nas culturas mesoamericanas, 6000 anos atrás. A figura de acrobatas é comum no Circo Romano e na antiguidade europeia era praticada por saltimbancos e atores da Comédia dell’Arte.
178
partir de diversas subalternidades, invadiam a estética de uma hegemonia adormecedora, onde a ‘estética anestésica’, no dizer de Augusto Boal (2009), parecia, por alguns segundos, se quebrar. Seja pela ousadia do ato físico, pelo lugar recolocado do corpo antes submisso, seja pela cor da pele da garotada que reinventava ali o cotidiano subvertendo a sua colonialidade, seja pelo simples fato de presentear a tarde de domingo com um quê de desconcerto e vida; anunciava-se, dessa forma inesperada, uma re-estetização do tecido social a partir da inesperada emergência no cotidiano da estética do invisível. No cartaz deixado para trás, liase: “REEEESPEITÁVEL PÚBLICO! dos morros e periferias desse Brasil trasns-moderno, das ruas e vielas reinventadas pelo sorriso irresistível e encantador da garotada subalternizada pela história única que se conta, e pelo grande costume... ... chega ai o maior evento da REDE CIRCO DO MUNDO BRASIL, que comemora seus 10 anos de Vida!! ..É o I FESTIVAL DE CIRCO SOCIAL DA NOSSA AMÉRICA!! Espetáculos, seminários, troca de experiências, formação de educadores em Circo Social, cerca de 150 jovens artistas, militantes, educadores, agitadores dando SENTIDO ÉTICO E ESTÉTICO a sua AÇÃO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL e VALOR SOCIAL a sua ARTE DE REIVENTAR”.162
Os jovens artistas que intervinham/invadiam, com as suas performances, o cotidiano público/privado do Shopping não pertenciam a uma única trupe ou organização, mas também não estavam lá continuando uma tradição cultural, como nas festas populares. O ato deles era inaugural e o fato de estarem ali respondia a uma articulação em rede que mobilizou, em nível nacional, organizações, trupes, profissionais, educadores, artistas, além de crianças, adolescentes e jovens de classes populares em torno de um conceito chave, o Circo Social. Mas essa re-estetização não estava, é claro, na simples apresentação de técnicas circenses para anunciar um evento que iria acontecer na cidade, mas em um fato que só podemos perceber de modo dinâmico, no movimento complexo das trajetórias-maaya que se entrelaçam nesse ato. Recortado agora como um quadro de velho filme, o relato daquele ato permite apenas intuir o que só poderia ser percebido na sucessão contínua dos quadros em movimento.
As
trajetórias-maaya de sujeitos individuais e coletivos, de práticas sociais, ideias e leituras de 162
Texto produzido pela Rede Circo do Mundo Brasil, com ocasião do I Festival de Circo Social da Nossa América, em 2010. Ver: http://pombasurbanas.org.br/blog/wp-content/uploads/2010/09/Fest_NossAmericaRCMBr.jpg
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mundo, de metodologias e construções discursivas que ali convergiam, implicam de fato, em um reordenamento dos usos, não apenas dos espaços públicos, mas da própria ideia de espaço público e assim, da noção de cidade e de cidadania, logo, de direitos e de educação. Em esta reflexão, a produção social do espaço ocupa um lugar preponderante, pois permite entrever as alterações, potenciais ou reais - mesmo que residuais -, definidas pelas trajetórias e pelas práticas sociais e culturais de cada grupo, dentro de um complexo intercultural definido a priori, pelo discurso hegemônico, como minimamente homogêneo. Segundo esse mesmo discurso hegemônico, o complexo intercultural dos grandes centros urbanos da nossa América - e em princípio, o dos grandes centros do Sul subalternizado do sistema-mundo moderno - é entendido, no pior dos casos, não homogêneo devido apenas a disfunções ou anomalias no modo de ser moderno de cada grupo social subalterno - e de fato, subalternizado por esse mesmo discurso hegemônico que, assim, reforça o poder simbólico das práticas sociais, econômicas e políticas correlatas aos grupos dominantes-, onde o modelo do não anômalo é o da modernidade, ou melhor, na definição do filósofo argentino Henrique Dussel, da segunda moderno-colonialidade: eurocêntrica, branca, burguesa, fálica e cristã (DUSSEL, 2005). Parece-me hoje, fundamental o reconhecimento do espaço como produto de inter-relações, em busca de uma política anti-essencialista. Esta urgência é a de se contrapor a uma concepção, ainda largamente hegemônica nas escolas e no imaginário do mundo ocidental moderno/colonial, que entende a história de forma linear, com base na ideia da diferenciação dos espaços em uma temporalidade reificada, onde as coisas sempre são e os espaços, seus usos e a produção de sentidos na sua organização delimitam a interação, condenando-nos à repetição compulsória dos padrões de comportamento e de expressão, e até mesmo de percepção no seu sentido mais íntimo, já traçados e apresentados como naturais ou, no mínimo, necessários ao “bom convívio social”. Trata-se do Grande Costume, de que nos fala Julio Cortazar, o Grande Costume que mostra cegando, e cria uma espécie de prisão existencial que impõe a vida sob as férreas normas do não dito, dentro do tijolo de cristal, para continuar com a metáfora que emerge das páginas dos seus livros como o espelho quebrado de Alice. No contexto, a velocidade das mudanças estéticas postas pela chamada sociedade da informação, em que as novas tecnologias vêm invadindo o cotidiano das pessoas nos grandes centros urbanos, provocando novos usos, com arranjo, supostamente, à dinâmica revolucionária do mercado globalizado esconde os mais diversos processos de produção de 180
saberes, decorrentes de novos usos, releituras e trajetórias dos sujeitos (adolescente, jovens, profissionais, artistas das classes populares e grupos na subalternidade) que emergem em diversos modos de serem submersos. Estes reinventam sua relação com a cidade e seus usos dos espaços e das novas tecnologias, de modos inesperados, acelerando e retardando o tempo da modernidade, reafirmando e redefinindo, em um mesmo movimento múltiplo e dinâmico, suas identidades e suas lutas.
A questão com relação ao espaço/tempo consiste na
necessidade de compreender a coexistência de histórias múltiplas que produzem espaço, logo, culturas, saberes, com sua própria base epistemológica. Essas histórias, que são de fato trajetórias, se entrelaçam, se interferem, provocando-se. Essas outras histórias da História constituem, na perspectiva da diferença colonial, a introdução das “Epistemologias do Sul” no debate sobre as ciências sociais e a educação. Este debate, muito mais além de um devaneio intelectual acadêmico, reaparece a cada momento nesta reflexão como condição da busca permanente de coerência epistêmica com o nosso lugar de educadores/pesquisadores, comprometidos com a produção de conhecimento para a mudança e o bem viver163. E é condição pela urgência de lembrarmos a cada momento de onde e para quem se fala ou escreve. Repensar as diversas trajetórias de sujeitos na subalternidade, e a sua consequente produção de conhecimento, saberes, práticas sociais e societais, se torna condição de repensar a educação que se quer, ou melhor, que educação se precisa para a sociedade que se sonha e para aquela que os desejos, a potência e as necessidades dos que vivenciam a subalternidade demandam. Penso o espaço humano, na procura daquelas trajetórias subalternas. Com elas, tensiono incluir esta reflexão/indagação no movimento contínuo e coletivo de repensar e reinventa o projeto de mundo. Ao pensar o espaço público, indago, junto com Adolfo Albán Achinte que, ao refletir, justamente, sobre a presença da arte e dos artistas no espaço público em uma cidade da nossa América, propõe fazê-lo a partir de se questionar pelo que seria o público do espaço, (…) o que é o público do espaço? Desta perspectiva, “o público” está constituído pelas relações sociais e pelas práticas culturais realizadas nesses espaços, que o desenvolvimento urbano moderno definiu como “áreas comuns”: a rua e os parques. Assim as coisas, o espaço, além das suas características físicas, é uma construção social e histórica, tão
163
Sobre conceito de bem viver, ver página 207.
181
mutável como as culturas, tão dinâmica como as tradições e tão complexa 164 como as identidades. (ACHINTE, 2008).
Entretanto, e justamente por essa mutabilidade da sua construção social e histórica, a própria definição do espaço urbano em que ruas e praças se definiam como espaços comuns, lugares de encontro, vêm sendo redefinidos, cerceados, reduzidos sob a lógica de controle da sociedade neoliberal, onde o elo do ‘comum’ se define pelo consumo e pelo medo, ambos, produto de um Estado mínimo e policial. O medo generalizado e glorificado pela mídia fortalece medidas disciplinares e de controle punitivo. A gestão penal do conflito social tem por alvo, contraditoriamente, às principais vítimas da violência: crianças, adolescentes e jovens pobres negros das periferias urbanas. A representação social da violência estimula medidas contra aqueles que mais a sofrem. A nossa América, após um período de algumas décadas de implantação de políticas neoliberais de reestruturação do Estado, cujo impacto reverbera nas instituições, no espaço público e nas relações as mais diversas, assim como no apagamento da memória, é hoje palco de uma profunda mudança na correlação de forças sociais pela disputa do espaço e da própria definição do público e da memória coletiva. Esta mudança se vê de modo mais explícito, em países como a Bolívia, o Equador, a Venezuela, entre outros.
Todavia, as políticas
neoliberais, ideologias de law and order, tolerância zero e variantes como o choque de ordem165 têm sido, e em muitos casos ainda são, força motora de políticas de recrudescimento penal e ordenamento urbano. Políticas que em casos como o do Brasil veem reforçar velhos anseios das elites que, desde o século XIX e ao longo de todo o processo de reorganização da sociedade a partir da libertação dos escravos, vinham impondo à cidade e à cidadania sua concepção sustentada em uma profunda racialização das formas de dominação, cujo exemplo paradigmático sejam, talvez, as concepções eugenistas contidas na reforma Pereira Passos. Hoje, tais políticas de controle dos corpos e do espaço afetam diretamente os jovens, que, em contrapartida são empurrados ao consumo desenfreado.
Em tempo, limitam-se
progressivamente os espaços públicos, cercando praças e parques, limitando e redefinindo assim também o lugar da produção artística de/na rua. Enquanto isso, o surgimento de 164
No original em espanhol: “(…) ¿qué es lo público del espacio? Desde esta perspectiva, “lo público” está constituido por las relaciones sociales y las prácticas culturales que se realizan en esos espacios, que el desarrollo urbano moderno definió como “áreas comunes”: la calle y los parques. Así las cosas, el espacio, más allá de sus características físicas, es una construcción social e histórica, tan cambiante como las culturas, tan dinámica como las tradiciones y tan compleja como las identidades. (ACHINTE, 2008). 165 Política de ordem urbana aplicada pelo Governo municipal de Eduardo Paes na cidade do Rio de Janeiro.
182
propostas de toque de recolher para adolescentes, redução da idade penal, leis especiais (tipo anti-gangues), bem como políticas de assistência redefinas pela lógica da criminalização do uso de drogas por parte de crianças e adolescentes nas ruas, se mostram como claros exemplos dos acertos institucionais e dos mecanismos do Estado penal (Wacquant).
O
discurso de hiper representação da violência juvenil é usado para legitimar tais medidas. Do outro lado, teorias de corte psicopatológico ocupam boa parte dos debates sobre o comportamento de crianças, adolescentes e jovens de classes populares, estabelecendo relações de causa e efeito que justificariam sua pouca auto-estima e o fatalismo estatístico do seu fracasso escolar. Em debate sobre o espaço público e a arte, junto a professoras e professores pesquisadoras/es no programa de pós Graduação da UFF, pude perceber, no depoimento de uma colega, a sutil fronteira que é transpassada na usurpação da experiência privada que ocorre quando o Estado intervém os espaços públicos.. “quando cercaram aquela praça, o prefeito não me pediu licença, e ali estava a minha história, os meus namoros, as minhas brincadeiras; as minhas memórias estavam sendo enjauladas junto com as grades que agora cercavam a praça”. O violento choque dos tempo que convivem e relacionam tensamente na modernidade: o tempo lento da vida “feita à mão”, em cujo cotidiano cada momento é tecido e cuidado minuciosamente, como uma horta, e tempo rápido do grande capital especulativo que pressiona o poder público para garantir as condições do seu desenvolvimento, que vai da questão fundiária/imobiliária aos temas de segurança pública e infraestrutura urbana. Nesse complexo contexto, o espaço público recua para o refúgio por excelência do cidadão médio na virada do século XXI, a praça de alimentação do Shopping Center, onde narrativas de consumo e segurança se articulam sob o imaginário da ascensão social. Lentamente, as práticas artísticas legitimadas pelos critérios de exponibilidade definidos pela fetichização da vida na sociedade do capital, isto é, pelo mercado, vão se deslocando também para o interior dos Shoppings. O cinema é o primeiro a sair do agora “perigoso” espaço da rua. Junto a ele o teatro infantil em um formato de área-de-convivência, e depois teatros e casas de espetáculo, mas também cantores e suas bandas ocupam as praças de alimentação e mesmo exposições de quadros que outrora estavam em praças, tudo sob a censura explícita da estética do vendável. O artista de rua - o saltimbanco, a trupe itinerante – foi o último a chegar, mas não recebeu convite, restou-lhe a intervenção astuciosa em busca do “seu público perdido”.
183
O aspecto público de um espaço não é dado apenas pela normativa definida pelo Estado (no caso das praças e ruas) ou mesmo pelo setor privado166 (no caso dos Shoppings), mas também, e em definitiva, pelos usos sociais que nele se desenvolvem, os quais subvertem e reinventam a função social, alargando-a de sentido. Para Achinte (2008), o público do espaço passa pelos imaginários e pelas representações que se fazem dele os que o utilizam, assim como pelas negações e/ou afirmações que dele se façam e, poderíamos dizer que passa também, pelas legitimações que se elaborem de acordo com a luta de interesses socioculturais. Mais além, o lócus dessa (re)definição do público está ontologicamente atravessado pelas disputas
inerentes
e
pelas
tensões
decorrentes
do
acelerado
processo
de
urbanização/modernização ocorridos no Brasil a partir da segunda metade do século XX, isto é, pela produção do próprio espaço urbano em sua materialidade. A cidade acaba definindo a vida das pessoas, e em condições desiguais, estas tentam se mobilizar para definir a cidade, isto é, a vida que desejam. Um bom exemplo de como este mesmo processo, comandado pela especulação imobiliária, central à organização da riqueza e seus excedentes no Brasil moderno, intervém na relação entre arte e espaço público é caso do Grande Circo de lona itinerante. Foi, com efeito, o processo de ampliação desenfreada da especulação imobiliária, paradoxal e perversamente, o responsável pela expulsão do grande circo de lona do espaço urbano das grandes capitais. Embora notadamente acelerado a partir das últimas duas décadas do recém-passado século, foi este um lento e doloroso processo que sangrou a mãe de todas as artes durante esse mesmo período. [Trajetórias, da rua e outros platôs] De trajetórias íntimas ou particularizadas da minha experiência, definidas ora pela indagação da razão, ora pela intuição não desprovida de afetos e memórias corpóreas, emergiu a lembrança nítida de uma noite de verão em Recife, na Praça de São Pedro, em uma Terça Negra167. Passei aquela noite pulando ao som dos tambores africanos, animados nas mãos destes particulares brasileiros negros pernambucanos. Os corpos, a cidade iluminada, o suor, o povo reunido em sacra comunhão em torno ao batuque ancestral me fizeram pensar e sentir muitas coisas. Pensar, por exemplo, na crueldade de uma sociedade que tira dos seus filhos o 166
Neste caso o conceito de privado, definido assim pela ciência econômica como setor, refere-se à propriedade e lucro privados, de modo muito diferente à noção de privado utilizada por mim até aqui, no sentido do espaço do mais íntimo, familiar ou pessoal, a chamada vida privada. 167 Festa popular da cultura afro-brasileira que ocorre toda terça-feira na Praça de São Pedro, centro de Recife.
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que de mais rico possuem, submetendo-os à repetição compulsória das técnicas de produção alheias, esvaziando os corpos da voluptuosa e subversiva vida que, às vezes, ainda ecoa nos cantos ancestrais. Assim, aquela noite me fez pensar de que maneira essa liminariedade do pensamento subalterno, forçado à dupla consciência, se dá nas formas de relação social e, principalmente, na corporeidade, e de como eles - corpo e pensamento - mudam quando se produz o espaço necessário ao fazer criativo ancorado na tradição viva, no sentido apontado por Mariategui (1990a). Não era acaso a aura da própria diáspora afro-brasileira que dançava junto a nós naquela noite? Nada vi que fizesse lembrar os tímidos corpos da empregada doméstica que vai de Caxias à Zona Sul do Rio de Janeiro, nem o do menino magricelo que se esconde atrás de um foguete para dar o sinal quando a polícia for subir o morro. Vida e incrível sentimento de pertença vi espalhados na Praça de São Pedro, no centro de Recife. Mas que espaço é esse próprio a essa r-existência tão aparentemente emancipatória? Que trajetórias, articuladas em processos de r-existências, compuseram a tessitura não institucionalizada que reinventa a cidade, reordenando desejos, saberes, usos e poderes? O lugar da cultura, como elemento articulador de identidade, ou melhor, de pertencimento, opera como marca corporal que aparece na postura, no caminhar, nas roupas, pertencimento que carrega vida e dignidade. Assim no Maracatu, na Capoeira, assim no Jongo, assim no Circo. Esta hexis corporal, no conceito de Bourdieu (2000), faz parte do habitus168 que permite aos sujeitos um desenvolvimento relativamente autônomo dentro dos diversos campos sociais. Este habitus do qual falamos não opera no sentido de estruturas invariantes, mas como uma matriz geradora, historicamente constituída, que funciona como operador de racionalidade, dentro dos limites das suas estruturas. No meu argumento, a compreensão dos limites das racionalidades geradas pelo habitus histórico dos diversos sujeitos169, grupos e classes sociais, com relação a uma ‘racionalidade universal’, da qual estariam afastadas justamente pelo seu caráter eminentemente prático, é uma questão político-epistêmica da qual tentamos nos aproximar ao compreender o conceito de colonialidade do saber, que escancara a arbitrariedade da pretensa separação entre os saberes científicos e os gerados no cotidiano das relações sociais pelos grupos na subalternidade. 168
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Na explicação de Loïc Wacquant o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente. Sejam estes coletivos individualizados pela incorporação social ou indivíduos biológicos incorporados pelo processo de socialização.
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Como apontávamos nos estudos e reflexões desenvolvidos na pesquisa intitulada “O Trampolim da Razão Subalterna” (BARRIA, 2007), a prática dos jovens do Circo Social tem esse “quê” de magia que reinventa espaços, resignifica a rua. Numa noite de dezembro de 2006, no Largo do Machado, zona sul do Rio de Janeiro, adolescentes e jovens da trupe circense “Daki que nós vem”170 protagonizavam uma cena, no mínimo, inusitada. Em meio à praça vários grupos de transeuntes, dentre os quais se misturavam donas de casa, funcionários que voltavam para casa, moradores de rua e crianças em uniforme escolar e outras descalças, sentados em rodas, debatiam sobre o espaço público e as diversas formas da violência nos dias de hoje. Tinham acabado de assistir a metade de uma peça de circo-teatro-de-rua sobre a violência na sociedade, apresentada pela trupe. A proposta dos jovens era exatamente essa: apresentar o espetáculo inconcluso e convidar os transeuntes a se posicionar para, nesse processo de pesquisa, recolher elementos para a construção do final.
Entre marombas,
piruetas e malabares, o misto de ludicidade e precisão técnica do circo introduzia a temática recolhida nos debates que viriam depois, animados pelos jovens artistas. Mais uma vez a arte popular convocava os transeuntes recolocando a questão do direito à cidade. É no mínimo curioso o fato de serem justamente jovens que tiveram durante anos a rua como moradia e experimentaram nela o lado mais obscuro da cidade e da modernidade, os que agora instigavam a reflexão e a convivência. Ao vermos a descrição que Frantz Fanon faz da divisão da cidade colonial, com um território para os colonos, definido pela abundância e o luxo, e outro, sujo, sem estrutura, abandonado pelo Estado, para os colonizados, é difícil não traçar o paralelo exato com as nossas metrópoles, mais ainda se percebemos que nas enormes extensões de territórios favelizados “são quase todo negros, ou quase negros, de tão pobres..”, como cantavam Caetano e Gil171. Esta relação estreita entre território, raça e condição social é a própria colonialidade do poder e parece-nos fundamental incorporá-la nas nossas indagações sobre a condição social da produção simbólica na nossa sociedade, de maneira a ampliarmos nossa compreensão do lugar da cultura nos processos formativos e de transformação social. Concordo com PortoGonçalves (In, CECEÑA, 2008, p.154) quando alerta que dizer colonialidade significa dizer que há outras matrizes de racionalidade subalternizadas resistindo, e agrega
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Trata-se de um dos grupos operativos de criação que surgiram a partir do trabalho da ONG Se Essa Rua Fosse Minha. 171 Do disco Tropicália II, Caetano Veloso e Gilberto Gil, Polygram, WR. 1993.
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“aqui, mais do que resistência (...), temos r-existência, é dizer, uma forma de existir, uma determinada matriz de racionalidade que age nas circunstâncias, inclusive reage, a partir de um topoi enfim, de um lugar próprio, tanto geográfico como epistêmico. Na verdade, age entre duas lógicas.” (idem)
Da compreensão do caráter arbitrário do pensamento social clássico, enquanto forma legitimada como saber moderno, percebe-se que no pensamento subalterno há mais do que pura submissão e resistência, mas práticas sociais de interação e conhecimento que surgem na fronteira entre o pensamento e as práticas sociais modernas legitimadas e as relativas a esses grupos e culturas que vêm resistindo na subalternidade.
Essas formas de pensamento
fronteiriço emergem de maneiras diversas e implicam em formas diversificadas não só de dinâmicas sociais, mas também de pensamento e de relações com o poder. Sua relativa invisibilidade se deve também em parte, ao fato de terem permanecido justamente como formas de resistência e sobrevivência, não como formas de disputa pelo poder, misturando-se às relações colocadas pela racionalidade civilizadora de matriz eurocêntrica.
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[Recapitulando] (síntese do argumento sobre o entre-lugar da cultura da nossa América, pra ordenar as ideias.): A cultura não se sobrepõe à economia nem ao político, mas também sua relação com estes não é subordinada ou dependente. Existe é uma simultaneidade e mutua articulação entre os campos da vida: Cultura, Política, Economia, Ecologia; A cultura pode operar e opera como mecanismo de dominação, como poder simbólico; A colonialidade do ser e do saber, são os modos que assume a violência simbólica – eufemização de outras formas de dominação – no Sistema-mundo moderno/colonial; Cultura Popular difere da noção de cultura de massas; A categoria folclore é uma categoria eurocêntrica que reifica a produção simbólica das classes subalternas no Sistema-mundo; Cultura Popular difere também desta categoria; A perspectiva de “resgate da cultura popular”, ou então, da busca e preservação das suas raízes, pode se incluir na perspectiva romântica que reifica a expressão popular com arranjo a uma noção de pureza pré-industrial; A estética da cultura popular na nossa América é a exterioridade da modernidade/mundo, da moderno-colonialidade; a sua contemporaneidade autêntica é uma alter-modernidade, pela sua exterioridade ela não pode ser pós-moderna, pois constitui per se, uma estética transmoderna (no sentido apontado por Dussel para a Filosofia da Libertação). Assim, é apreensível dentro do sistema apenas como exterioridade, como negação, como “objeto” de estudo ou contemplação reificado (desprovido de potência política – folclorizado, subalternizado, etc.); A expressão estética dos povos colonizados, e seus rearranjos identitários posteriores, já como classes popualres na nossa América (periferia do Sistema-mundo moderno/colonial), se bem tende a reproduzir o cânone estético da metrópole (do centro), o subverte de sentidos e formas, sendo produtor e portador de uma narrativa estéticopolítica própria e inaugural. 188
A sua potência política reside nessa sua condição ontogênica (exterioridade da modernidade-mundo) e não no seu discurso explícito nem no uso político contingente que se faça dela [a possibilidade dessa potência se tornar atual é dada a cada momento, pela sua articulação à capilaridade dos diversos movimentos populares insurgentes, do modo como se configuram nos momentos de política selvagem]; A memória coletiva dos comuns se refugia no cotidiano das classes populares, nos modos, na héxis corporal, nos usos, na paisagem, nos signos e nos símbolos e, iclusive, no consumo, retroalimentado seus modos de organização da vida e sua produção estética, de maneira relativamente autônoma; De lá emerge, com atualidade política, em momentos de tensão; Esta produção estética se mistura, em aparente hibridização, com as mais diversas expressões simbólicas e usos dados pela sociedade de consumo; Ao conceito de aura da obra de arte, assim definida pela estética hegemônica da modernocolonialidade, se contrapõe o conceito de aura da estética da cultura popular na nossa América, que carrega toda a memória, a historicidade e as trajetórias dos comuns, como potência da sua identidade mobilizadora. Ambos os conceitos de aura são elementos identificáveis de uma disputa histórica de projetos societários, decorrentes de necessidades objetivas e de modos de organizar a produção da vida, dispostos em relação dialética; Esta disputa (aura arte clássica/aura cultura popular) é, no contexto intercultural, um espaço de disputa que tensiona o projeto de imposição da monocultura da modernidade ocidental, cujas frentes principais são a monocultura do saber (epistemologia do conhecimento), do poder (política do controle dos corpos, naturalização da competência, estado autoritário, estado punitivo e falsa democracia), do ser (religiosidade, estética e imaginário) e a monocultura do fazer (lógica do capital, acumulação de riqueza, produção de excedentes, cadeia produtiva baseada na sua contramão como cadeia de exploração de recursos naturais, força de trabalho e imaginário do consumo). A indústria cultural opera no sentido de extrair a aura das culturas subalternizadas;
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A cultura popular da nossa América é o aspecto autenticamente próprio da cultura na America latina, por ser portadora da sua aura, expressão da sua exterioridade e negação dos princípios de pureza e unidade, postos pela Cultura do Centro. Para apreendê-la é preciso perceber, não o resgate de formas determinadas, mas o modo de ser aurático das suas diversas formas de expressão como se dão hoje, o seu entre-lugar atual; A sua característica principal é a heteronímia. Sua unicidade, definida pela sua exterioridade, é histórica, dinâmica e criticamente intercultural, no sentido crítico de ter se desenvolvido a contrapelo da colonialidade do poder e do saber. Trata-se de um pluriverso cultural geopoliticamente articulado como trajetória heteronímica (ou maaya); Esta característica intrínseca é portadora da sua potência descolonial e base do projeto político de uma sociedade pluriversal, em contraposição ao projeto da universalidade moderno/colonial; Desta maneira, a cultura popular é parte imbricada da luta pela libertação e, assim, de qualquer prática educativa descolonial. “Se um projeto revolucionário não é simbólico no nível concreto da crença do nosso povo, nunca poderá ser realmente revolucionário nem popular. A cultura popular, nascida desde a exterioridade do sistema é real, é nossa. Porém é ignorada, é negada e se considera como analfabeta; a sua simbologia não é compreendida".172
172
DUSSEL, 1980b.
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DA EDUCAÇÃO (e outros lugares)
Tenho preferido falar de coisas impossíveis, pois do possível sabe-se demais (Silvio Rodriguez)
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[Forma, conteúdo e um olhar sobre o olhar e o narrar] Perante a redefinição e reorganização da ordem econômica e política que restaura hierarquias, concentra riqueza e poder, e reduz a razão humana ao dogma dos indivíduos racionais e egoístas, e que em seu conjunto os quer disciplinar com crenças e estruturas que fazem com que trabalhemos para outros, é saudável e vital para a indisciplina intelectual, moral e política, articular um ruído dissonante, antiautoritário e antieconômico no espaço das celebrações e da monotonia neoliberal.173 (Luis Tapia)
No lento caminhar da indagação e da delimitação do que, afinal, venham ser os nossos desejos objetivados quando pensamos/sonhamos/reinventamos uma escola das, para e com as classes populares, me deparo com processos de continuidade e descontinuidade, de memórias e esquecimentos onde, em meio ao desconcerto dos sábios do ocidente, os nadies continuam a operar milagres174. Mais além do cotidiano invisibilizado, os movimentos de protestos pelo mundo afora recolocaram em 2011, com urgente atualidade, não apenas a fragilidade do sistema-mundo moderno, mas o aparente esgotamento da teoria social clássica para dar conta de compreender os acontecimentos e traçar prospectivas. Em 2013 o Brasil parece ter entrado violentamente nesta modernidade tardia, somando suas vozes ao coro dos descontentes que cobram dela as promessas jamais cumpridas. Embora com uma aparência totalmente nova, pelo inesperado e ainda indecifrável movimento que comportam no momento de política selvagem (TAPIA, 2008)175, as memórias do descontento têm raízes fundas aqui e as trajetórias traçadas no subsolo político (TAPIA, idem) são também de longa data. A memória dos de baixo176, dos condenados do sistema, como diria Florestan Fernandes, parece operar de um modo oculto e misterioso aos olhos incrédulos dos eruditos e letrados, re-
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No original em espanhol (tradução própria): “Ante la redefinición y reorganización del orden económico y político que restaura jerarquías, concentra riqueza y poder, y reduce la razón humana al dogma de los individuos racionales y egoístas, y que en su conjunto quiere disciplinarlos con creencias y estructuras que hacen que trabajemos para otros, es saludable y vital para la indisciplina intelectual, moral y política el articular un ruido disonante, antiautoritario y antieconómico en el espacio de las celebraciones y monotonía neoliberal”. TAPIA, 2008. 174 Em janeiro de 1998 Bourdieu faz uma fala ante uma plateia de trabalhadores em greve, registrada no livro Contrafogos, declarando sua admiração e surpresa perante a organização dos trabalhadores desempregados, definindo-a como um ‘milagre social’. BOURDIEU 1998, pág. 128. Com efeito, a organização das classes subalternas (trabalhadores desempregados, favelizados, sem terra, em situação de rua, etc.) era totalmente invisível até então, quando estas eram tidas por muitos como Lumpem proletariado, seres da desesperança cuja única razão de existir, nas fronteiras da barbárie, era a sobrevivência, parafraseando a imagem descrita pelo Escritor alemão Alfred Döblin no seu romance Berlin Alexaderplatz, de 1929. 175 Tapia propõe a categoría “Política Selvagem” para pensar um “conjunto diverso de práticas que não se realizam para organizar e reproduzir a dominação, mas que mais precisamente se desdobram para questionála, atacá-la e desmontá-la. 176 Referência ao romance “Los de abajo” de Mariano Azuela, romance por antonomásia da literatura revolucionária mexicana e latino-americana.
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emergindo inesperadamente em momentos de tensão177, como flores do deserto178. Emergências que parecem recompor velhos tecidos, renovando-os, anunciam saberes insuspeitos, desmantelando mais uma vez o desesperançado silêncio dos intelectuais, cujo fatalismo ensurdeceu as lutas sociais após a queda do muro de Berlin e a consequente reorganização, não apenas da geopolítica mundial, mas dos sentidos do real e do que hegemonicamente nos permitimos a definir como limites do possível. Nesse contexto, os nossos sonhos se refazem e atualizam ou apenas reeditam nossas velhas utopias? Qual a relação entre essas utopias e a sociedade que nos permitimos a considerar ao pensarmos políticas públicas? E qual, em definitiva, o lugar dessa contingência crítica ao pensarmos em educação num sentido amplo? Qual a escola que sonhamos afinal? Qual o lugar do desejo nela? Como ela dialoga com o que está acontecendo além dos seus muros? Quais os seus saberes? Qual o lugar de uma memória construída a contrapelo daquela História oficial que ainda é ensinada nas nossas escolas? Como percebemos sua continuidade, nossa perenidade em potência? Que conteúdos e quais metodologias deveriam ser contemplados pela utopia de educar para a libertação, tão sonhada pelos educadores e lutadores sociais da nossa América? Assim como sabemos que não é possível para nós, do Sul, continuar a pensar o mundo a partir do cânone da filosofia ocidental e que se torna extremamente problemático pensar a pesquisa e o ensino sem tensionar um giro epistêmico em direção ao Sul, como poderíamos pensar a escola sem repensarmos a sociedade histórica na qual ela se insere de modo radical e profundo? Isto é, por exemplo, como pensar a gestão democrática, em momentos em que a própria democracia, como a conhecemos, parece estar sendo profundamente questionada desde a subalternidade? Como pensar os conteúdos, quando a crise das representações estoura o poder de convencimento do discurso científico moderno face às contradições que o mesmo impõe à vida cotidiana, contradições ora violentamente contestadas por movimentos descoloniais nas periferias e nas academias?
Como reduzir, hoje, as discussões sobre
alfabetização a uma questão de método? Como, afinal, continuarmos a querer consolidar o 177
Para o filósofo alemão Walter Benjamin é justamente nos momentos de perigo que a história se mostra, relampeja. Esta percepção é importante, toda vez que Benjamim trabalha com o conceito de salto original, segundo o qual algo inexistente passa a existir, por ruptura num processo dialético e ainda acredita que um fragmento singular não deve ser pretensamente explicado baseado na sua inserção num amplo fluxo histórico, posto que cada singularidade possui uma significação universal própria referida à nossa vida, contrariando claramente as concepções lineares do tempo histórico: “Nossa vida é um músculo que tem força suficiente para contrair o tempo histórico na sua totalidade” 178 A metáfora, que ouvi do companheiro José Guilherme Gonzaga, faz referência às flores do deserto de Atacama, no Norte do Chile, que permanecem durante 10 anos encapsuladas sob o chão, até a mínima gota de chuva cair, momento em que florescem cobrindo com suas cores toda a superfície da região mais árida do planeta.
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sonho moderno da escolarização universal, em momentos em que a modernidade demonstra, acima de tudo, a sua incapacidade de cumprir suas promessas de uma vida decente para todos e todas? Nesse lento e complexo processo de apropriação do nosso estar no mundo hoje, para melhor pensar/agir caminhamos, assim, pelo intuitivo ou pelo afetivo, politicamente amarrados à frágil noção de projeto de uma educação outra, engajada esta com a libertação das classes populares da sua subalternização, isto é, da dominação exercida pelo modo em que se organiza a produção da vida no sistema-mundo moderno/colonial e pelos sistemas simbólicos que lhe são intrínsecos. O desafio posto pelas novas configurações sociais e pela revolta, em aparência fragmentárias, das gentes, em diversos pontos do globo, isto é, o desafio que emerge da crise e aparente fragmentação do sistema-mundo moderno/colonial e da radicalidade da necessidade da sua consolidação/totalização, impõe uma redefinição conceitual não apenas no campo pedagógico, mas nos força, com urgência, a repensar o próprio conceito do político e do democrático para, assim, repensarmos o escolástico. Dita redefinição implica na revisão prospectiva das relações entre forma e conteúdo dos modos em que o ensinoaprendizagem tem se dado e no que viria a ser, se em diálogo com os educandos e educadores das classes populares. Isto nos coloca o desafio de pensarmos não apenas a forma escolar de se ensinar e aprender, mas sobre o modo como entendemos a própria relação entre forma e conteúdo e do espaço que achamos nas leituras postas sobre a escola para articular novas, ou melhor, outras configurações sociais nela. A professora Regina Leite Garcia, em um texto sobre o currículo monocultural que se impõe às nossas escolas, multiculturais como as nossas sociedades, nos alerta, “Embora um cientista da estirpe de Milton Santos nos alerte para a importância da imaginação como possibilidade de chegarmos a compreender o desconhecido, a escola brasileira, seja de que nível for, vem se pautando desde sempre em certezas na formulação de seus currículos, como se pudéssemos ter certezas quando lidamos com a complexidade do cotidiano. Já Bachelard, (...) enfatizara a intuição do instante. E ambos se referiam à complexidade e ao desafio de criar, experimentar, ousar caminhar por caminhos ainda não caminhados, a fazer incursões pelo ainda não conhecido. E Wanderley Geraldi, quando discute com os defensores do “rigor”, com a sua ironia costumeira afirma – “por ali` talvez esteja o rigor; mas `por ali`, seguramente, não está a invenção, a possibilidade, a aventura”. E eu acrescentaria – pobre de quem ao pretender pesquisar, não se aventura pelo mundo ainda desconhecido, o que afinal nos leva a pesquisar, pois se assim não fosse,
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nos limitaríamos a apenas confirmar o já sabido. O que não me parece poder justificar nos afirmarmos pesquisador@s.”179
Assim como as certezas no currículo e o rigor acadêmico – na sua acepção mais limitada de apego irrestrito a um método preestabelecido e aos procedimentos burocráticos - são modos do instituído na forma escolar clássica, na sua contramão, invenção, imaginação, intuição, o experimentar e o ousar estão dispostos como modos de tensionar o intituinte nela. Ter entrado com relativa profundidade nos debates sobre a forma escolar e as diferentes concepções sobre a educação no Brasil180 foi o que me instigou, em 2010, a pensar essa desentranhável relação entre forma e conteúdo, tanto da forma/institucionalização dos processos de ensinoaprendizagem como da sua representação, a escrita da pesquisa e a reflexão sobre ela. Esta é uma reflexão sobre o modo como vemos, o olhar que lançamos, ora desatentos, ora convencidos de sua objetividade, sobre o real aparente. No texto “Sobre a história e a teoria da forma escolar” (VINCENT, et all. 2001), seguindo a tradição acadêmica da sociologia e seu particular modo de organizar a observação e o pensamento sobre a realidade, Vincent, Lahire e Thin se lançam sobre uma revisão das teorias produzidas no velho continente sobre as noções de forma para analisar as estruturas sociais. Este método, sacralizado como necessário ao conhecimento certo, vai da teoria legitimada à prática da descrição, e é tido como condição sine qua non para a análise da realidade. Entretanto, aos olhos de quem quer se aprofundar na indagação sobre a própria realidade numa perspectiva emancipatória, parece antepor uma lente que, desde posta, muda a perspectiva, deixando de fora do enquadramento muito do que pode haver de mais enriquecedor. Lembrei-me da conversa, contada por Ítalo Calvino, entre Marco Polo e o Kublai Khan, na qual nos alerta, como uma parábola, para um sentido indissolúvel entre a forma e sua materialidade, Marco Pólo descreve uma ponte, pedra por pedra. -Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. -A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra, – responde Marco – mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: -Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Pólo responde:
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GARCIA, 2011. Foram estes debates propostos à turma de Teorias e Educação II, do curso de doutorado na UFF, no segundo semestre de 2010, pela professora Clarice Nunes. 180
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-Sem pedras o arco não existe.181
Entretanto, pode-se dizer que a ponte existe apenas porque as pessoas precisaram atravessar. Assim, o desejo interessado desses sujeitos intersubjetivos, mas anônimos, desejo que surge de alguma necessidade material, demandada e sentida por uma comunidade local, é que foi capaz de transformar a imaterialidade do arco e a inércia das pedras em ponte. Assim, parafraseando o Kublai Khan, pode-se arriscar: só os sujeitos interessam. Todavia, a ideia de sujeito, herdada por nós da tradição filosófica eurocêntrica, consiste em uma representação sempre parcial e incompleta de uma realidade mais complexa, uma imagem cristalizada e fixa e, pelo mesmo, em parte falsa, em parte insuficiente de uma trajetória humana em permanente movimento e mudança (trajetória maaya), que inexiste fora da dinâmica de (inter)relações materiais e simbólicas que estabelece com o mundo. É necessário tensionar a ideia de Sujeito. É claro que nesta perspectiva não há interesse em ficar apenas nos sujeitos, a risco de reificar assim trajetórias dinâmicas interligados às mais diversas histórias, mas sim partir deles, dos seres concretos no que têm de relações objetivas e intersubjetivas com o mundo, e do meu compromisso político afetivo em busca do nós ontogênico do qual nos fala Enrique Dussel (1977b, 1977c). A intenção então, é a de pensar a escola, a educação, em seu sentido mais lato, e suas formas, partindo desse lugar outro ao qual vim me referindo ao longo deste trabalho, convencido de que a mudança do ponto de vista é, por si, já uma abertura a novas questões invisibilizadas pelo olhar institucionalizado e pela própria teoria. A noção de teoria implícita à enorme maioria do pensamento filosófico ocidental dos últimos séculos encontra-se dominada pela teoria do conhecimento, pela lógica e pela metodológica (LUCKACS, 2010). Embora em franca crise, a teoria, nesta perspectiva, teima em nos convencer de que a verdade se encontra nela, de um modo meta-humano, isto é, acima e independente das particularidades, chamadas à tona apenas para ilustrar o que o método antevia. Esse lugar outro, o da experiência, do cotidiano e das próprias trajetórias dos sujeitos na subalternidade, buscaria olhar a escola a partir “da ponta”, para usar um dizer dos educadores populares que trabalham com as crianças nas ruas da cidade, para se referir ao seu lugar de fazer/pensar. Por sua vez, o pensamento social clássico ao analisar, por exemplo, as formas de dominação ou, notadamente, a forma escolar como parte de estruturas estruturantes que reproduzem seu poder simbólico como instrumentos de distinção, subordina a complexidade de trajetórias e 181
CALVINO, 1991.
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narrativas produzidas pelos sujeitos - ativos, intersubjetivos, que operam nessa realidade - à lógica analítica da própria narrativa sociológica que, assim, se nega como tal. Por outro lado, a leitura sociológica que insiste em buscar invariantes estruturais que nos permitam conhecer o modo universal da dominação, definindo modos de consciência para sua perpetuação, seu aperfeiçoamento ou mesmo a sua superação (que constituem os matizes entre as sociologias de Weber, Durkheim e Bourdieu, por citar os mais expressivos), constitui-se, deste modo, em condição para a reprodução da própria lógica do pensamento social clássico moderno, eurocêntrico e atravessado pelo viés da colonialidade, tendo como consequência o “desperdício da experiência”. [Sobre o saber-contra e a produção do espaço como produção de outras racionalidades] Quando Silviano Santiago dizia que a nossa fala - a palavra enunciada desde a América latina - é uma fala contra, pois o só ato de enunciar desde cá, e com autenticidade, é uma negação do cânone imposto (pela modernidade/colonialidade), o fazia no contexto de um debate estético sobre o que ele mesmo chamou de “entre-lugar” da cultura latino-americana. Todavia, a mesma questão é pertinente para todas as esferas da vida, notadamente para compreendermos, desde o sul, a relação íntima entre política e ciência; razão e colonialidade do poder; movimentos instituintes de luta por direitos, dignidade e/ou libertação (mesmo ou principalmente a partir do lugar que define o horizonte cotidiano) e normatividade/legalidade instituída. Nesse sentido, por exemplo, os movimentos sociais de luta por moradia e por ocupação do espaço público em geral - desde a arte de rua aos de luta por mobilidade urbana e pelo direito à cidade e daqueles que buscam com seu quefazer formas de produção do espaço e da vida de modo mais sustentável, com base na diversidade biocultural -, deparam-se, no cotidiano com a normatividade vigente, expressa na legislação, nos procedimentos burocráticos e no senso comum que orienta as práticas. Das mais diversas formas, a normatividade vigente se contrapõe aos saberes produzidos por esses movimentos, de modo gradativamente mais radical quanto maior o acumulo de experiências destes. Estas experiências, pelo seu sentido comunitário, coletivo e solidário, decorrente de uma percepção vivenciada das suas próprias demandas, são portadores de uma cultura que tensiona a lógica do capital e da modernocolonialidade.
Trata-se
de
um
brutal
e
desigual
enfrentamento
de
universos
vivenciais/conceituais que produzem sentidos e que, postos assim em relação de modo tenso e crítico, carregam a potência da produção de saberes capazes de mudar a cultura institucional 197
ao inseri-la em um movimento instituinte. Todavia, é importante salientar que não se trata de construções discursivas coerentes as que afirmam esse caráter anticapitalista ou revolucionário. Os movimentos sociais não costumam marcar posição ideológica para além do seu campo de ação e de influência direta, do que a eles diz respeito a partir das trajetórias vivenciadas. Pelo contrário, têm se mostrado férteis na sua capacidade de produzir leituras críticas das teorias e das práticas que se desprendem das metanarrativas históricas. Pensar que isto os torna impotentes como força de mudanças mais profundas e radicais na sociedade, ou que, de algum modo enviesado, dada sua aparente fragmentariedade, assumir alguma dessas lutas implicaria em um tipo de renúncia à luta de superação do capitalismo, tem sido um dos principais equívocos de boa parte da esquerda político-intitucional e de certo marxismo escolástico mais ortodoxo. Tendo a ordem instituída a linguagem do poder normatizante como própria, em um contexto de radical assimetria de poder, descobrir como compreender/construir processos de resistência e de r-existência a partir de formas do saber que já sejam, em si, resistência e reinvenção é uma questão urgente posta a todos os diversos movimentos sociais contra-hegemônicos. Este desafio constitui em si o processo de atualização política dos saberes desenvolvidos no subsolo político, e carrega consigo a potência da insurgência à normatividade moral, ética, legal, estética e político-institucional vigentes: os povos originários e suas lutas territoriais perante a expansão dos megaempreendimentos energéticos e o desenvolvimentismo; a luta pelo direito à moradia, pelo direito à cidade e à mobilidade urbana perante a especulação imobiliária, a questão fundiária e o processo de gentrificação; a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos perante a heteronormatividade falocêntrica e a moral do homem branco, cristão; a luta pelo direito à saúde publica do povo nas periferias dos centros urbanos e no campo perante o saber científico médico e o pensamento abissal, entre tantas outras. Todas estas lutas, como modos-em-relação de produção do espaço, constituem trajetóriasmaaya específicas que carregam memórias e, nesse mesmo movimento, produzem narrativas com potência única de se tornarem saberes pertinentes à libertação, no processo tenso de se defrontar com o discurso normativo instituído em cada campo como parte da malha do poder moderno/colonial. E é que, como já assinalado, é o sujeito da modernidade/colonialidade quem fala através das instituições, da história e das leis (SPIVAK). A sua é a palavra instituída, por definição, a palavra da ordem, da disciplina e, assim, de toda a normatividade social, política, econômica, racial, estética, ecológica e sexual no sistema-mundo. 198
A potência de enunciação de um saber genuinamente insurgente, isto é, com potência e pertinência de superação de determinadas condições de opressão, é sempre do subalterno e, este, encontra-se sempre na sua relação indissociável com o espaço local que ele mesmo produz no horizonte cotidiano que dá sentido a sua totalidade. É este o maior entrave colocado ao pesquisador formado nas academias do pensamento abissal e da razão indolente (de
Souza
Santos):
aceitar
que,
se
bem
o
pensamento
produzido
pela
modernidade/colonialidade possibilita a produção de análises totalizantes e narrativas descritivas, é incapaz de produzir respostas concretas aos processos locais e suas lutas se dissociado das práticas e da construção dialógica com os saberes que delas se desprendem. É na experiência coletiva, local e regional/cultural, em camadas que se superpõem sem se excluir [comunidade, lugar no mundo do trabalho, bairro, cidade, região definida por determinado imaginário cultural182, continente], que se articulam a memória e os sentidos que definem o que venha a ser a classe social, a cultura e a luta, isto é, o imaginário, a noção de pertencimento e identidade que nos torna parte de um ir sendo coletivo - comunidade comunicativa - como parte de uma trajetória comum (e heteronímica, maaya), em movimento e relação constantes. [De novo as trajetórias – para pensar o público da escola pública] Como metáfora espacial, relativa à espaço-temporalidade, a noção de trajetórias (e assim também a noção proposta de trajetórias-maaya) tem por base a concepção do espaço como produto de inter-relações (relações entre) e assim como a esfera da possibilidade da existência da multiplicidade, a esfera na qual distintas trajetórias coexistem (MASSEY, 2004) e se interpolam. Na conceitualização proposta por Doreen Massey, o espaço é, (...) a esfera da possibilidade da existência de mais de uma voz. Sem espaço não há multiplicidade; sem multiplicidade não há espaço. Se o espaço é indiscutivelmente produto de inter-relações, então isto deve implicar na existência da pluralidade. Multiplicidade e espaço são coconstitutivos.
Mais além,
182
Em recentes debates unto a pesquisadores da geografia em uma perspectiva descolonial - especificamente os Núcleos de pesquisa NETA e LEMNTO, vinculados ao PPGEO/UFF e o NEGRA/FFP/UERJ - percebi a urgência de aprofundar esta questão, haja vista a não correspondência das cartografias existentes sobre as chamadas “regiões culturais” da nossa América, atreladas, via de regra, a à lógica fronteiriça dos Estados/Nação moderno/coloniais. A perspectiva hegemônica invisibiliza todo um pluriverso de regiões culturais que teimam em ultrapassar fronteiras. Para identificá-las é preciso uma pesquisa desde a perspectiva complexa da diferença colonial como loci de enunciação.
199
(...) é justamente porque o espaço é o produto de relações-entre, relações que são práticas materiais necessariamente embutidas que precisam ser efetivadas, ele está sempre num processo de devir, está sempre sendo feito. (MASSEY, 2004)
A importância desta noção para a compreensão das trajetórias, na acepção proposta neste trabalho, radica justamente em que permite perceber a multiplicidade em constante relação, de um modo aberto à possibilidade e ao futuro, buscando fugir à inexorabilidade que costuma caracterizar as metanarrativas ligadas à modernidade. Neste sentido, na contramão dos determinismos históricos, entendo, junto com Laclau e Massey, que “somente se concebermos o futuro como genuinamente aberto poderemos seriamente aceitar ou nos engajar em uma noção genuína de política” (MASSEY, op. Cit.). O sermos latino-americanos, que significa sermos na nossa América, por exemplo, não constitui uma essência, mas um ser aqui, e assim, um ver desde cá. Mas, um ser em movimento e relação – e, nesse movimento e relação, produtor do espaço habitado, de identidades e de sentidos éticos e estéticos e de modos específicos de lidar com os modos de produção da vida impostos pelo capital na modernidade/colonialidade – isto é, um vir a ser no lugar, atrelado a um topoi. Como vir a ser tópico e em relação, é o produto de diversas trajetórias que fazem com que, em diferentes esferas da espacialidade, esta conceitualização não essencialista da identidade e sua potência possa ser aplicada a cada identidade local decorrente de cada trajetória coletiva de luta e/ou socialização, como os citados acima, mas também das culturas em relação (povos originários, remanescentes de quilombos, etc.) ou mesmo de grupos não territorializados (como as redes de coletivos articulados via web, como o caso do movimento Fora do Eixo183, no Brasil). Junto com Ana Clara Torres e parte do mais lúcido da geografia humana brasileira (Santos, Porto-Gonçalves, etc.) acreditamos que “existe uma outra razão, em elaboração, nos interstícios das territorialidades e dos novos rumos tomados pela práxis”. Como assinala Torres (2005),
183
Segundo a definição que consta do Documento elaborado em 2009, durante o seu II Congresso, o Fora do Eixo é “uma rede colaborativa e descentralizada de trabalho constituída por coletivos de cultura pautados nos princípios da economia solidária, do associativismo e do cooperativismo, da divulgação, da formação e intercâmbio entre redes sociais, do respeito à diversidade, à pluralidade e às identidades culturais, do empoderamento dos sujeitos e alcance da autonomia quanto às formas de gestão e participação em processos sócio-culturais, do estímulo à autoralidade, à criatividade, à inovação e à renovação, da democratização quanto ao desenvolvimento, uso e compartilhamento de tecnologias livres aplicadas às expressões culturais e da sustentabilidade pautada no uso e desenvolvimento de tecnologias sociais”. Para mais informações ver: http://foradoeixo.org.br/ acessado pela última vez em 03/12/2013.
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Esta razão tem sido formada pelas contribuições trazidas por racionalidades alternativas à cena política latino-americana. Ainda tênue, esta razão reconhece os seus próprios limites e a fragilidade dos conhecimentos que sustentam os seus conceitos e métodos. É esta clareza com relação a limites que permite distingui-la da lógica que sustentou (e sustenta) tantos projetos de modernização desenhados para a região. Esta razão, que ora começa a reconhecer os seus contornos, inclui os muitos “outros”, já que estes também participam da sua construção.
Esta razão, que é produto articulado da multiplicidade de saberes dos nadies (na metáforapoética de Galeano,) resiste a sua reificação. Como nos lembra Torres, para esta razão ainda incipiente, o “outro” não é somente o diferente, aquele que é reconhecido como, quando e da forma que convém à ideologia dominantes. De um modo diferente, para ela, o “outro” é parte intrínseca do “nós-eu”. É esta a aliança que constrói novas territorialidades e que conduz a ação solidária espontânea, resistindo aos comandos da globalização, reinventando seu espaço desde a subalternidade-mundo, descolonizando a práxis. Esta questão, trás implícito o desenvolvimento de toda uma linha de produção no campo da filosofia, de modo mais específico da ética. Este campo vem conformando um campo fértil de reflexões, notadamente e não por acaso, na nossa América, em torno da ideia de uma ética intercultural.184 É a partir desta percepção da relação profunda entre a produção do espaço e a produção de racionalidades pelas trajetórias dos sujeitos coletivos que vêm se articulando em uma razão outra, incipiente, mas efetiva, que vejo a necessidade de se repensar a espacialidade do campo da educação. Isto é, assim como nos questionamos pelo público do espaço ao refletir sobre a relação da arte e o espaço público, repensar também, por exemplo, o público da escola pública a partir das racionalidades emergentes que as trajetórias dos grupos, comunidades, movimentos sociais e o cotidiano da comunidade escolar trazem (estendida esta, também, como a confluência de trajetórias portadoras de narrativas em relação). A questão da relação público/privado nos processos de ensino e aprendizagem nos diferentes espaços sociais, se pensado na perspectiva do esquecimento histórico dos saberes subalternizados, exige ir além da aparente dicotomia entre Estado e sociedade civil. De um 184
A este respeito é interessante o trabalho de SALAS ASTRAIN, Ricardo, Ética Intercultural, Ensayos de una ética discursiva para contextos culturales conflictivos. (Re) Lecturas del pensamiento latinoamericano, Quito: Ediciones Abya-Yala, 2006. Na mesma linha, está toda a obra de Enrique Dussel, em particular, seu trabalho recentemente publicado no Brasil: DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis. Vozes: 2012. Ver também: ACOSTA Yamandú, Las nuevas referencias del pensamiento crítico en América Latina. Ética y ampliación de la sociedad civil, Montevideo: Universidad de la República, 2003. SCANNONE Juan Carlos, “Normas éticas en la relación entre culturas”, in Filosofía de la Cultura, D. Sobrevilla (Ed.), Madrid, Ed. Trotta-CSIC, pp. 225-241. 1998.
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modo diferente, é preciso perceber como os diferentes espaços são produzidos por trajetórias de sujeitos ativos (grupos de interesse, classes sociais, comunidades, movimentos sociais e grandes grupos econômicos, etc.), postos em relação, permeando, em constante disputa, as diferentes esferas e instituições da sociedade. Assim como a lógica e a subjetividade do capital financeiro, aliadas ao viés de colonialidade que atravessa toda nossa racionalidade, permeiam a institucionalidade vigente definindo os usos do espaço e os limites do público, também as racionalidades emergentes dos novos sujeitos políticos vêm reconfigurando dos mais diversos modos esses usos e limites. Um sério entrave para articular esses saberes em sua potência política, de modo a permitir uma reatualização do debate sobre a Escola pública, consiste justamente na influência provocada nos estudos sobre a temática dessa aliança entre lógica do capital e colonialidade do saber científico moderno. Na concepção neoliberal, globalizada pela expansão absoluta do capital, o debate sobre a educação é totalizado e despolitizado sob o véu da eficiência técnica e administrativa ao se conceber a educação como um serviço, como um bem de consumo, portanto submetido às leis do mercado. A intensa circulação de ideias associadas à concepção neoliberal espalha-se no intuito da criação de consensos básicos sobre a gestão das questões democráticas na era da globalização; discursos elaborados por especialistas que reduzem complexas questões sóciohistóricas à linguagem econômica ou matemática geram, mundo afora, a linguagem que delimitará as fronteiras do que ‘pode’ ser discutido, numa realidade que ao mesmo tempo em que fala de diversidade, fragmentariedade e flexibilidade, torna-se de fato cada vez mais fechada. Assim, toda uma nova linguagem feita de lugares comuns funciona como base para a construção desses consensos. No dizer de Bourdieu: Esses lugares comuns –no sentido aristotélico de noções ou teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais nunca se argumenta- devem o essencial de seu poder de convicção ao prestigio recuperado do lugar de onde manam, e ao fato de que, circulando intensamente de Berlim a Buenos Aires e de Londres a Lisboa, estão presentes simultaneamente em todo lugar. Com efeito, em todos os cantos são retransmitidos com força pelas instâncias pretensamente neutras do pensamento neutro, que são os grandes organismos internacionais: Banco Mundial; Comissão Europeia; Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico; pelos laboratórios de ideias conservadores, pelas fundações de filantropia, pelas escolas do poder e pela mass mídia. A mídia é fonte inesgotável desta língua franca apta a todo serviço, adequada para dar uma ilusão de
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ultramodernidade aos editorialistas apurados e aos especialistas solícitos do import-export cultural.”185
A imposição simbólica por meio desta “nova vulgata planetária” é, para o sociólogo francês, parte central da estratégia de dominação exercida na chamada nova ordem mundial: (…) a colonização mental que é operada através da difusão destes conceitos, só pode levar a uma espécie de “Washington consensus” generalizado e até espontâneo, como é visto hoje em matéria de economia, filantropia ou ensino da gestão. Este discurso duplo, baseado na crença, arremeda a ciência, investindo o fantasma social do dominante com a aparência da razão (fundamentalmente econômica e politológica).
...e pontua: (...) Presente na mente dos responsáveis das decisões políticas e econômicas e no seu público, dito discurso serve de elemento de construção de políticas públicas e privadas, ao tempo que de instrumento de avaliação das mesmas.186.
Complementarmente ao processo descrito se encontra um largo processo de pequenas e grandes modificações na regulamentação para a educação, não só no Brasil, mas em todos os países do Sul global, operado por meio de cláusulas impostas em acordos multi e bilaterais de comércio, segundo as normativas de organismos internacionais como o Grupo Banco Mundial, suas referentes regionais como o BID, além da OMC e do FMI. Entre eles, podemos destacar o Acordo Geral sobre Comércio em Serviço, GATT – na sigla em inglês –, em fase de negociação no contexto da OMC187. Como se pode desprender do estudo dos documentos oficiais desses organismos, o modo da formatação, negociação e, principalmente, da implementação destes acordos significa uma virada profunda e radical do papel atribuído à educação na sociedade. Em pouco mais de vinte anos assistimos a um processo, à escala global, de quase total consolidação da metamorfose da identidade histórica da educação, de direito de cidadania a bem privado ou mercadoria. Ditas transformações estavam no cerne dos projetos em questão ao se debater, por exemplo, sobre a 185 BOURDIEU, P. & Wacquant, L. “UMA NOVA VULGATA PLANETÁRIA, A língua franca da revolução neoliberal”, traduzido do espanhol de artigo publicado em LE MONDE diplomatique edición Chile, dez. 2000, pp. 22-23, tradução própria. 186 Op. cit. 187 A respeito é interessante o artigo “A regulamentação do enfoque comercial no setor educacional via OMC/GATS”, de Ângela Siqueira, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n26/n26a11.pdf (acessado em 05/12/2013) e “Individual Behavior and Social Dilemmas”, disponível em http://www.indiana.edu/~workshop/publications/materials/conference_papers/Y673_Siqueira.pdf acessado em 10/04/2014.
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nova Lei de Diretrizes e Bases, aprovada em 1996188, e continuam seu avanço nas recentes propostas de regulamentação do ensino, notadamente nas esferas municipal e estadual. Ao perceber, hoje, as profundas transformações pelas quais passa a educação, quanto ao seu lugar nas sociedades contemporâneas, pode-se observar que, para além do fato de o Estado brasileiro apresentar uma história que o coloca como espaço privilegiado das classes dominantes, desde a colônia ao império, desde a república escravocrata à das oligarquias dos coronéis, ele é, ainda hoje, um Estado privatizado. Nessa perspectiva, não há como esgotar a discussão sobre educação no tocante aos seus mecanismos de financiamento e às políticas públicas da sua expansão, seja por meio da ampliação da rede pública ou do incentivo a iniciativas privadas, sob a perspectiva da possibilidade de o Estado ser o detentor de um ensino neutro, básico, laico, necessário à formação de todo e qualquer cidadão (matriz liberal), sem que isto signifique desconhecer o seu papel instrumental essencial na implementação do projeto social das classes dominantes. E
sem que isto signifique, acima de tudo, renunciar de fato, à luta por um ensino qualitativamente comprometido com a construção de uma sociedade estruturalmente mais justa e solidária. Na contramão, assistimos ao aparente (re)surgimento de uma variedade de movimentos sociais cujas experiências trazem claras implicações nas concepções sobre educação (recolocando de fato a questão do debate do público e do privado a partir de uma perspectiva outra). Para Torres, Os sujeitos sociais e a ação política apresentam, agora, maior complexidade, confrontando paradigmas que orientaram, até há pouco tempo, os projetos de transformação social. Estes sujeitos propõem novos híbridos institucionais, atuam em várias escalas, exigem a releitura do Estado, defendem diferentes sentidos de nação, rejuvenescem tradições e impedem a sua completa absorção em instituições da modernidade. (TORRES, 2005)
Este aparente ressurgimento é um efeito, no qual um processo histórico de criação e transformação constante de dinâmicas sociais dos grupos na subalternidade passa a adquirir uma maior relevância nos processos de disputa pelo espaço e, em tempo, maior visibilidade relativa no campo acadêmico e político da esfera estatal (ainda incipiente), devido a condições historicamente determinadas: a crise da razão clássica como forma única e legítima de aferimento da realidade e a subsequente revolução contemporânea do saber (SOTOLONGO e 188
Lei de diretrizes e bases da educação nacional, lei federal M 9394/96.
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DELGADO , 2006); a mudança de fase do capital antes assinalada e o surgimento da sociedade em redes, apontado por Castells (1999), com a conseguinte mudança geopolítica no contexto do Ocidente; e o acúmulo histórico de um pensamento social na nossa América – que é, por sua vez, produto de diversas lutas sociais na diferença colonial. Nesse contexto, cabe se questionar: de que modo percebemos, enquanto educadores, o avanço da lógica do capital e sua razão instrumental/privatizante no cotidiano da prática educativa? Num debate centrado na aparente dicotomia Estado = Público / Não Estatal = Privado, qual o lugar dos processos educacionais e de formação desenvolvidos por movimentos sociais, sindicais e comunitários? Em outras palavras, qual o lugar dos saberes subalternizados no debate e na construção de um outro projeto de sociedade? Qual o papel da sociedade civil no processo, necessariamente autônomo, de formação de novos sujeitos sociais capazes de desenvolver projetos contra-hegemônicos? Ou seria este um papel do Estado? afinal, o que torna ‘pública’ a escola pública, para além do financiamento decorrente do citado processo internacional de regulamentação dos mercados e a sua influência direta na ação do Estado liberal que a sustenta? A reflexão sobre o público do espaço e, neste caso específico, sobre o público da escola pública, permite visualizar e refletir sobre as diversas experiências, tensionando a institucionalidade normativa. Partindo dessa reflexão, voltar o olhar para o cotidiano das práticas educativas, assume outra e nova dimensão: a de se pensar quais práticas contribuem para a reprodução da lógica da dominação e da subalternização dos saberes e quais aparecem como um espaço de construção de um novo sentido civilizatório libertador. Isto, no entendimento dessas práticas como modos de enunciação de trajetórias que confluem na produção do espaço público (a Escola). O exercício de repensar o público da Escola pública, das suas políticas e das práticas contidas nela, nos termos assinalados, é condição para evitar a sua fetichização, isto é, a compreensão da escola pública e da educação como um valor em si, reificado, dissociado do contexto histórico em que é produzido e dos interesses a que serve. [Crise da Escola monocultural moderno/colonial e o pensamento da Nossa America, por uma pedagogia do Sul] Colocados assim, perante o complexo quadro de crises, explosões sociais, reemergências de memórias coletivas insurgentes, reinvenções na disputa pelos sentidos e usos do espaço urbano, e junto com a investigadora Moçambicana Maria Paula Meneses que, em 2003, se 205
questionava pelo sentido de se alfabetizar na língua do colonizador, podemos nos perguntar, qual a ciência que deve ensinar uma escola a serviço das classes populares, classes subalternizadas pela colonialidade do poder, submetidas à lógica do capital? Qual a função semiótica de uma alfabetização que encara, ainda hoje, o ensino de português às classes subalternas com se a língua mãe fosse, desconhecendo assim todas as matrizes linguísticas imanentes? Isto é, que apaga o imaginário das culturas dos educandos ao apagar sua potência como enunciadores da própria palavra? Em momentos em que o aparente esgotamento das teorias para dar conta do transe histórico que vivemos cede espaço ocupado por lúcidos questionamentos escancarados pelo agir e pelo dizer dos subalternos, pode o educador continuar convencido de serem os seus saberes os únicos chamados a produzir o ‘pensamento crítico’ necessário aos processos de mudança para a libertação? De que fonte deve se alimentar uma concepção para uma prática educativa política e afetivamente engajada num projeto descolonial? Ao pensar a Escola189 para/das classes populares é preciso se perguntar, de que Escola falamos? Em momentos em que a forma ‘Escola’ é questionada pela teoria social 190 e pela prática educacional, dada a própria crise da racionalidade que lhe deu origem e a decorrente crise de legitimidade dos agentes da educação, podemos minimamente perguntarmos até que ponto a educação, nas sociedades ocidentais e ocidentalizadas, não está aprisionada à forma escolar, aprisionando assim, por sua vez, o pensamento crítico sobre educação. A partir de uma outra perspectiva que assuma abertamente uma intencionalidade prospectiva sobre a sorte dos educandos das classes populares e a possibilidade de incluir a Escola na construção de um outro mundo possível, cabe se questionar: qual o preço de não arriscarmos pensar a educação para além da Escola? Para além de teorias que, a priori, propõem a supressão da instituição escolar191, não levanto aqui discutir educação sem pensar a Escola, muito pelo contrário, discutir Escola porque pensamos educação no mundo, hoje.
189
É importante frisar que, ao falar de Escola, assim, como uma, com maiúscula, faço referência à forma escola moderno/colonial, construída sob os princípios do iluminismo e do positivismo, que herdamos da tradição europeia como parte da institucionalidade do Estado Euro/Brasileiro (como aprendemos a definir com Ramon Grosfoguel a entender a natureza dos Estados-nações da Nossa América), e que reproduz a sua forma/função com base nessa herança colonial, isto é, que exerce seu poder e sua autoridade, como estrutura estruturada e estruturante, como viés da sua moderno/colonialidade. 190 Neste sentido é interessantíssimo o já citado texto dos sociólogos Vincent, Lahire e Thin (2001) “Sobre a história e a teoria da forma escolar”. Os originais foram extraídos do capítulo introdutório da obra coordenada por Guy Vincent, L ´Éducation prisonnière de la forma scolaire? Scolarisation et socialisation dans les societés industrielles. Lyon: PUL, 1994: 11-48. 191 Refiro-me a teorias como a do educador austríaco, ligado à corrente anarquista-cristã, Ivan Illich, que, na década de 1970, passou a propor “uma sociedade sem escola”.
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Debato sobre a Escola, penso a Escola, mas me interessa a Escola não por considerá-la fundamental em si, como se natural fosse, na sua forma atual, materialização da moderno/colonialidade, mas porque é nela que estão, hoje, as crianças, adolescentes e jovens das classes populares, bem como os homens e as mulheres trabalhadoras e trabalhadores, e são eles e elas que estão no centro da nossa preocupação. É assim, do compromisso político afetivo, humanizado na relação educador/educando que nasce a possibilidade de uma renovação ético-política para a ação/reflexão. São, e serão, os sujeitos insurgentes produto dessa construção dialógica os atores privilegiados do processo de reinvenção das escolas da libertação. Posicionando-me como parte de um coletivo de educadores situados, assim, no mundo nessa perspectiva, posso dizer que, se nos ocupa a Escola, é porque nos preocupa é a educação e o modo como ela pode contribuir com a libertação efetiva dos nossos. Nasce daí também uma perspectiva da pesquisa que percebe a complexidade e diversidade de escolas que cotidianamente se reinventam dentro da forma Escola moderno/colonial que conhecemos. Pois é o trabalho diário de professoras e professores, educandos e comunidades que fazem de algumas escolas, formais e não formais, espaços interculturais que tensionam, com a sua práxis, o currículo monocultural (GARCIA, 2011). Não se trataria então de pensar uma educação sem Escola, nem de pensar a educação apenas na Escola, mas de pensar a Escola para além da Escola, inserida como está no complexo devir de sociedades contraditoriamente atravessadas pela lógica do capital. De qualquer modo e para além de boas intenções, e de ufanismos messiânicos salvacionistas, o desafio urgente de se pensar a prática pedagógica em movimento contínuo de produção de uma teoria/prática da educação em coerência com as mudanças que o mundo vem apresentando, está posto para todos nós, educadores e educadoras engajados na construção de um mundo melhor. Para se contrapor ao efeito de universalização que se desprende da condição do pensamento ocidental no sistema-mundo moderno/colonial, a construção dialógica proposta exige um rigoroso movimento de reconversão epistêmica, no sentido de repensar o lugar teórico/prático. É neste contexto que cobra importância a articulação de uma Filosofia da Libertação da perifeira ao projeto de uma pedagogia do Sul, que é uma pedagogia da exterioridade (DUSSEL, 1980).
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Para Boaventura de Souza Santos, em artigo publicado recentemente192, “a democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não parece que a derrota seja reversível”. Por tanto, e haja vista que o imaginário democrático entrou no imaginário da emancipação social, após um século de lutas, mais do que combater a democracia junto com o capitalismo, seria preciso “converter o ideal democrático numa realidade radical que não se renda ao capitalismo”. Trata-se então de lutar por uma “democracia radical que seja, além de anti-capitalista, necessariamente anti-colonialista e anti-patriarcal”. Pelos processos que veem vivendo alguns países da nossa América, isto significa a descolonização do Estado e, consequentemente da sua epistemologia. Em coerência com esta perspectiva e acolhendo a demanda urgente de repensar a teoria para interpretar as profundas transformações que os nossos povos estão vivendo, Dussel (2007) nos convida, nas suas 20 teses sobre política, a reformular o político e o democrático, perante o desgaste da sociedade do capital e a burocratização das suas instituições. Para tal coloca aos setores mais progressistas o desafio de entrar em uma decidida “renovação ética, teórica e prática”, que nos permita passar ao que chama de “a responsabilidade democrático-política” de exercer uma nova forma de poder. Esta nova forma de poder é a do “Poder Obedencial”, ancorada em bases epistêmicas que se desprendem de experiências de luta e de governo na nossa América, bem como da narrativa e da orgânica societal de alguns dos seus povos originários. Assim, inspirado no exemplo do pensamento social Aimara e Quíchua, que é base da refundação da Bolívia como “Estado plurinacional unitário, social e economicamente de socialismo comunitário”193 ou dos Zapatistas de Chiapas no sul do México, na sua estreita construção com os povos Zapotecos, Dussel amplia a sua filosofia política a partir do “mandar obedeciendo”, proposto e defendido por estes e outros grupos no continente. Consciente da dificuldade do desafio lançado, Dussel (op. Cit. Pág 10) aponta que a responsabilidade democrático-política de exercer o poder obedencial é “intrinsecamente participativa; sem vanguardismos, tendo aprendido do povo o respeito por sua cultura milenar, por suas narrativas míticas dentro das quais desenvolveu seu próprio pensamento crítico, suas instituições que devem se integrar a um novo projeto”. 192
Disponível em http://revistaforum.com.br/blog/2013/11/boaventura-democracia-ou-capitalismo/ acessado pela última vez em 02/12/2013. 193 Extraído do discurso de Evo Morales em 07 de fevereiro de 2009 em El Salto, no lançamento da nova Constituição do Estado Plurinacional de Bolivia, em espanhol, Buliwya Mama Ilaqta, em Quéchua, Wuliwya Suyu, em Aimará e Tetã Volívia, em Guarani (as quatro línguas oficiais do Estado). Estado herdeiro de Tupac Katari e Simón Bolívar. Ver: http://www.jornada.unam.mx/2009/02/08/index.php?section=mundo&article=022n1mun
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Assim, trata-se de uma perspectiva claramente afinada com o que podemos entender como um desejo interessado em descolonizar o campo político e a sua institucionalidade (poder), onde o público-privado é compreendido como diversas posições ou modos da intersubjetividade e o público como a res pública (republicae), como tudo que é comum à comunidade (Ibidem, pág. 21). É interessante perceber como Dussel amplia a concepção de campo, elaborada por Bourdieu, introduzindo a noção de sistemas e subsistemas próxima à de N. Luhmann194 e a de redes de M. Castells195. Deste modo, O mundo cotidiano não é a soma de todos os campos, nem estes são a soma dos sistemas, mas sim os primeiros (o mundo, o campo) englobam e superabundam sempre os segundos (os campos ou subsistemas), como a realidade sempre excede todos os possíveis mundos, campos ou sistemas; porque no final, os três abrem-se e se constituem como dimensões da intersubjetividade. E é assim porque os sujeitos estão imersos desde o início em redes intersubjetivas, em relações funcionais múltiplas nas quais desempenham o papel de nós viventes e materiais insubstituíveis.196
O importante desta concepção, é que, mesmo que possa se considerar analítica e abstratamente um sistema como se não houvesse sujeito, nela, fica explícito que não há como existir campos nem sistemas sem sujeitos, e estes sujeitos são ativos, com vontade e certo poder, isto é, seres desejantes, com demandas concretas surgidas das suas necessidades, cujas ações são interessadas e relacionadas em diversas e complexas estruturas de poder; são sujeitos intersubjetivos. Aos poucos a filosofia e a teoria sociopolítica apresentada por Dussel parece dialogar também com Slavoj Žižek (2006), ao entender que a única universalidade é a construída a partir da luta dos diversos, no transcurso da qual descobrem um fundo comum e metas partilhadas (muito embora este último desconheça e desacredite do poder potencial do subsolo político e da subalternidade, como exterioridade do sistema). Os alcances teórico/práticos possíveis para se pensar uma educação voltada para a libertação, interessada na descolonização da Escola, do currículo, da gestão, são instigadores e insuspeitos ainda para nós. Mas é a própria reflexão desenvolvida no contexto da construção dialógica no/com o cotidiano, a que tensiona uma indagação interdisciplinar sobre o poder, em busca de uma síntese teórico-metodológica de uma prática educativa que contribua com a 194
Ver Poder (Luhmann, 1995). Ver Manuel Castells A era da informação: economia, sociedade e cultura.2000. Capítulo I: a sociedade em redes. 196 DUSSEL, Op. Cit. PP 17-18. Ver também Por uma filosofia política crítica (DUSSEL, 2001, PP.319ss). 195
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reorganização das relações de poder, de saber e de sentido comunitário. Nesse sentido, caminho na busca de uma dialógica da desobediência epistêmica para uma pedagógica da práxis descolonial que, chamarei de Pedagogia do Sul, articulada no político à concepção de Poder Obedencial (Dussel 2007), e no ontológico à de exterioridade e de restauração do poder-fazer (Holloway, 2003). Dizer que é, no político, uma pedagogia do poder obediencial significa que, colocada perante o desafio permanente de redefinir os lugares do poder e do saber, mediatizados pelas trajetórias encontradas dos sujeitos intersubjetivos inerentes ao ato educativo (educadores e educandos mobilizados pela luta em prol da reatualização do seu poder legítimo [potestas]), é chamada a tornar-se elemento articulador da necessária renovação ético/estético/política da práxis educativa – e assim da escolar. Deste modo, a pedagogia do sul, na sua articulação matricial ao poder obedencial parte da compreensão radical de que a autoridade, o poder – e assim também o poder/saber – do professor/educador é um poder delegado, em sua legitimidade e na sua essência ético política, pela comunidade, isto é, pelos educandos, que são assim, seus detentores últimos e legítimos. É assim, uma perspectiva que, desde o epistêmico ao metodológico, aponta para o fortalecimento das estruturas sociais de participação popular democrática, e está voltada para a formação crítica dos sujeitos dessa participação. A professora Regina Leite Garcia (2011), comprometida com a descolonização da Escola, nos instiga a pensar para além da teoria, em uma formação que abranja todos os níveis de escolarização em uma perspectiva rebelde, que parta da perspectiva dialógica com os saberes subalternizados. Assim, nos propõe que, (...) embora importante, não é suficiente formar novos cientistas sociais numa outra perspectiva. Mas que também haja a preocupação com a formação de professores e professoras que atuam no ensino fundamental, capazes de criar currículos que ponham em diálogo os diferentes saberes presentes na escola, desde a educação infantil e passando por toda escolaridade, embora até então silenciados pelos currículos monoculturais que uniformizam desde o planejamento até as avaliações nacionais. Se assim o fizermos não mais estaremos formando professores e pesquisadores que pensam e atuam como se europeus ou norte-americanos fossem, que tanto se orgulham de citar autores que se valem das línguas de poder acadêmico. E, se compreenderem ser o espaço acadêmico e a escola seja de que nível for, um espaço de luta ideológica por hegemonia, estarão comprometidos por formar subjetividades rebeldes e não mais objetividades paralisantes.
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O chamado que se desprende da emergência de “novos movimentos sociais” e a urgência de pensarmos a escola das classes populares nesse contexto, somado ao chamado da professora Regina a formar subjetividades rebeldes, e entendendo a exterioridade ontológica da America latina e dos oprimidos e subalternizados197, nos instiga ao desafio de pensar uma ‘pedagogia do Sul’ como uma articulação pluriversal das práxis educativas em movimento que, no âmbito das lutas territoriais, venham surgindo, em articulação com as necessidades, desejos e demandas dos comuns.
A urgência e pertinência desta empreitada, assim como a sua
possibilidade, radicam justamente no fato de ditas práxis educativas existirem e serem tão reais e antigas com a própria dominação do capital desde a sua expansão nestas terras e, desde então, serem a potência do projeto civilizatório da nossa América: são a Pedagogia do Sul em devir. Uma pedagogia do Sul, contra a pedagogia normatizadora e disciplinar da totalidade da moderno-colonialidade do Norte, ergue-se, parafraseando a Dussel, desde a sombra que a luz do Ser não tem conseguido iluminar, desde o não-ser, do nada, o outro, a exterioridade, o mistério do sem sentido. É então, uma “pedagógica barbara”. Trata-se de uma pedagogia cujas bases - já lançadas pela práxis da educação popular e pelo pensamento dialógico de Paulo Freire, que se desenvolve no contexto dela, e por uma larga trajetória de correntes de pedagogias crítico-transformadoras emancipadoras/libertadoras - se constituem numa releitura permanente de uma prática educativa, múltipla e diversa, em que a voz do subalterno possa, com base numa plataforma dialógica e colaborativa (ampliando o potencial do uso das novas tecnologias articuladas em redes humanas de troca de experiências, de tecnologias sociais leves e de saberes subalternizados ressignificáveis), se constituir em elemento chave de uma prática curricular efetivamente multicultural; prática curricular em movimento que, pelo seu caráter ativo e insurgente, seria assim capaz de produzir um conhecimento pluriversal ou, com Žižek (2006), universal porque na/da luta. É importante frisar que não é uma pedagogia do Sul por alguma pretensão essencialista sobre o caráter das sociedades do Sul do mundo, mas porque ancorada no mundo hoje e consciente da sua outredade epistêmica, da sua exterioridade. Assim, partindo de uma concepção que entende a colonialidade do poder como característica constitutiva do sistema-mundo moderno/colonial, hoje, assume a materialidade da sua condição epistêmica em busca da
197
É importante frisar que, com base na Ética da Libertação (Dussel, 1977b) os oprimidos e subalternizados do sistema-mundo se definem como o Outro de toda a ontologia do Ser na filosofia moderna.
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superação dessa colonialidade. Tendo aprendido com Memmi, Fanon e Freire, que essa superação não é mais a de ocupar o lugar do colonizador, que neste caso significaria assumir para si a ontologia do Norte como própria, mas de - como já anunciado - aprender a partir do Sul e com o Sul. Assim, assumindo a linhagem dos saberes ancestrais desenvolvidos na nossa América ao fragor dos movimentos sociais, reatualizados pelas lutas por educação, justiça, trabalho e dignidade que se espalham pelo Brasil e pelo mundo, e fazendo-se parte de uma perspectiva de desobediência epistêmica face ao saber científico moderno/colonial, assume o projeto político de Libertação. [a pedagogia simplesmente e a pedagogia do Sul como uma antipedagogia do Ser desde a diferença colonial] Todavia, assumir os princípios de uma filosofia da libertação latino-americana, ou mesmo a exterioridade otológica do ser descolonial, se bem constitui uma aproximação de uma política não constitui nem define, necessariamente, uma pedagógica. Neste sentido, consciente da necessidade de delimitar alguns conceitos-chave, e independente de qualquer outra leitura possível ou legítima que as ciências da educação tenham produzido sobre o conceito de Pedagogia, proponho-me a trabalhar aqui no tensionamento de duas leituras do conceito, uma positiva, extraída do pensamento de Paulo Freire, e a sua negação. Assim, tomo como ponto de partida a noção freiriana de pedagogia, no sentido de uma prática educativa que é sempre, necessariamente, uma certa teoria do conhecimento posta em prática. Deste modo, o que tenho em mente ao refletir sobre uma pedagogia descolonial ou do Sul, é justamente, a teoria do conhecimento implícita nas diversas práticas educativas negadas pelo ensino escolarizado e pela concepção hegemônica do conhecimento científico moderno/colonial dentro dele, à procura de uma teoria do conhecimento descolonial que contribua com uma práxis educativa libertadora. E, é claro, os elementos dessa teoria do conhecimento nem sempre estão na Escola. A noção apresentada, se colocada na perspectiva da diferença colonial como loci de enunciação, como apontado anteriormente, implica uma necessária releitura do próprio conceito de pedagogia. De origem grega - paidós (criança) e agogé (condução) – o termo pedagogia significa na tradição da civilização ocidental, por extensão, “conduzir ou levar pelas mãos”. O termo carrega ainda, no conceito de Agogé, todo o peso da educação espartana, na qual a obediência era o princípio reitor de uma sociedade cuja característica era a militarização da vida coletiva e privada. Na tradição ocidental o conceito de pedagogia 212
carrega de modo implícito, junto da potência enunciadora do sujeito que profere as verdades, a ideia do outro, como objeto da ação educativa (paidós, que é também o alumnus: o incapaz e dependente que não se alimenta por si próprio, e assim, o não-saber, o nada). Trata-se da base do que Paulo Freire (2005) chamou de ensino bancário. Ora, toda vez que pensada e construída justamente a partir desse outro, a ação educativa, como práxis dialógica do processo de ensino-aprendizagem/libertação, implica na conversão – do conceito e dos seus sujeitos – em um “levar-nos pelas próprias mãos”, mediatizados pelo mundo. Mundo este que é, neste momento e na perspectiva descolonial, o movimento dialético da sua negação e da sua reinvenção. Assim, do ponto de vista da modernidade ocidental eurocêntrica, a pedagogia descolonial/do Sul, é uma antipedagogia. No seu sentido radical, pode se dizer então, que o educador comprometido política e afetivamente com a libertação, o educador insurgente da nossa América, sensível à beleza do novo e do diverso da vida, rebelde à normatização e à cultura do controle centralizado do Estado neoliberal, o educador radicalmente dialógico e amoroso (Freire), é, e só pode ser, como pedagogo da libertação, um antipedagogo. Seria assim um militante da antipedagogia porque da pedagogia descolonial, da pedagogia do Sul, tão empenhado em desaprender como em aprender/ensinar, e é isto que queremos vir a ser. E é que a pedagogia do Sul é, necessariamente, uma pedagogia radical do aprender, do vir-aser ancorado na relação ético-estética com o Outro, de uma alteridade radical, pois se propõe a educar desde o não-Ser do sistema de sentidos proposto pela moderno-colonialidade. Isto significa que busca educar colaborativamente para a participação e, nesse processo, transformar, no cotidiano, toda a subjetividade do sistema-mundo moderno/colonial: a subjetividade do consumo, da relação com o outro, dos sujeitos ilhas, do materialismo messiânico, e da subjetividade normativa do sujeito da modernidade: homem, heterossexual, branco, proprietário, cristão, cuja onipresença reordena distinguindo e compelindo tudo que é diverso a se redefinir com relação a essa representação, a lutar pela sua dignidade. Significa, por tanto, aceitar o desafio lançado por Marx de fazer a crítica de todas as categorias. [a heteronímia da Pedagogia do Sul, base de um projeto político-afetivo pluriversal para uma democracia radical] Cabe salientar, insisto, pois seja talvez esta uma questão central em todo meu argumento, que a pedagogia do Sul - como projeto político atrelado a uma prática educativa para a libertação 213
na América latina - não é, nem poderia ser, pela própria definição, apenas uma. De um modo íntimo e imbricado, ela emerge do que Carlos Rodrigues Brandão (2009), ao pensar a educação popular no Brasil e na América latina, chamou de Cultura Rebelde. É neste ponto que se diferencia de qualquer outro programa social de ação junto às classes populares. Por ser e só poder ser, na e a partir da Cultura Rebelde da nossa América - isto é, a exterioridade da ontologia do Ser que alimenta de conceitos e instituições toda a pedagógica oficial -, a sua condição é a alteridade e a pluriversalidade, e o seu modo, como vimos anteriormente, a heteronímia. Como bem nos lembram Brandão e Assumpção, modelos institucionais e hegemônicos de educação “para o povo” são sempre uma pedagogia do outro (2009, pág. 45). Trata-se da dimensão dominante de um trabalho mediador, que na sua fala mascara a dominância. Como instrumento sutil de reprodução compensatória da desigualdade, o modelo de educação “para o povo” naturaliza esse outro e sua condição, fundando o seu ser “na distância da diferença entre o lado do educador e o lado do educando; entre a fonte de poder a que serve e o sujeito popular que controla, parecendo servir” (Idem.). O intuito último é o de fazer do sujeito popular um outro educado, “produto da imagem antecipada que dele fazem a retórica e o interesse da agência: um sujeito instruído e participante, desde que ordeiro e subalterno” (Ibid.). Todavia, como exposto anteriormente, partir da negação desse outro, naturalizado pela pedagogia oficial como subalterno, significaria esmagar também, a sua potência insurgente, pois esta reside, paradoxal e justamente, na sua alteridade. Assumir a própria outredade como parte do nosso ser-em-relação torna-se fundamental para a mobilização de um projeto libertador. Trata-se de partir da aliança nós-eu, de que nos fala Ana Clara Torres. A pedagogia do Sul, como grande parte da Educação Popular, da qual faz parte e a partir da qual se expande e radicaliza, surge, constrói e se projeta desde e com esse outro. Assentada na compreensão da subalternidade a partir da colonialidade do poder e do saber, e da exterioridade, assume a diferença colonial como lócus de enunciação, isto é, constrói sua fala desde o subalterno, articulando o que há de subalterno em nós. Pelo seu caráter político intrinsecamente ligado a um pertencimento identitário (a exterioridade da cultura da nossa América e sua condição heteronímica), ela é o lugar do educador militante - palavra que a burocracia teme e tenta esvaziar - engajado estética, política, criativa e afetivamente na reinvenção do próprio espaço a partir do horizonte cotidiano – nos termos apresentados ao longo desta tese. Isto permite sua compreensão como plataforma de construção dialógica a 214
partir da articulação de diversas trajetórias inseridas em uma mesma comunidade comunicativa no movimento da sua libertação. Pelo mesmo, não é o lugar do técnico, como nos programas sociais compensatórios que esvaziam a atualidade política potencial das classes subalternas. Entretanto, tampouco é o lugar do doutrinador esclarecido e messiânico que busca “conscientizar” esse outro a partir de uma narrativa sobre a dominação particularmente própria. A afirmação da existência do que chamo de pedagogia do Sul, e da sua potência, não surge apenas da crítica à normatividade da escolástica ocidental e à matriz de legitimação do saber clássico, mas do acúmulo de uma longa e concreta experiência da educação - nos seus mais amplos sentidos, dos instituídos aos instituintes, dos cotidianos informais aos insurgentes - na nossa América. Assim, muito mais do que programática e anunciadora, a ideia de uma pedagogia do Sul tem uma pretensão dialógica, de sistematização de experiências e de síntese de uma multiplicidade em movimento, com um claro compromisso político insurgente. Constitui uma plataforma conceitual que nos permita pensar o pluriverso das pedagogias da exterioridade latino-americana - que de fato existem e continuarão a ser produzidas - em busca de uma prática insurgente e descolonial. Assim como o pensamento descolonial vem acumulando saberes desde a chegada dos europeus ao continente, também há já um considerável acúmulo de produção teórico prática, epistêmica e metodológica no campo da educação, dentro e fora do âmbito escolar, na cidade e no campo, no mundo do trabalho assalariado, no da produção estética e simbólica, nas comunidades subalternizadas pela lógica do capital. Esta diversidade, longe de responder a uma suposta incompetência na produção de um único saber universal aponta para a multiplicidade de realidades e para a riqueza de experiências que a monocultura do conhecimento moderno/colonial é incapaz de perceber.
Ceder à tentação de atrelar o
programa de uma educação para libertação à necessidade de uma totalização universalizante dessa diversidade seria sucumbir aos desígnios do pensamento abissal com o decorrente desperdiço das experiências locais. Daí a importância de uma articulação do pluriverso das práxis educativo libertárias na subalternidade-mundo, em torno de um projeto também pluriversal. Dentre as inúmeras contribuições do campo popular, dos movimentos sociais e dos povos originários em sua luta por terra e dignidade, algumas contribuições teóricas a-partir-daprática se destacam pela capacidade de síntese e de universalidade a partir do trabalho 215
cotidiano ou local. A estas podemos definir como transversais, dentro do mapa das práticas e teorias educativas às que nos referimos. Entre elas cabe citar a Pedagogia do Oprimido do educador brasileiro Paulo Freire, o entendimento de Enrique Dussel da sua filosofia da libertação latino-americana como uma pedagógica198, a sistematização de experiências de Oscar Jara Holloway e também as importantes contribuições de Fals Borda e a Pesquisa-Ação Participante e os princípios fundadores legados por Simon Rodriguez, Bolivar e Martí. Junto a elas se encontram as propostas de reorganização do político e do saber a partir da noção de “Buen vivir” e “buen gobierno”. “Sumac Kawsay” no Quíchua do sul peruano e da Bolívia ou Allin Kghaway no do norte do Peru e do Equador, pode ser traduzido em português como Bem viver ou, então, Bom Viver e constitui a noção mais divulgada nos debates dos ditos novos movimentos sociais na nossa América, notadamente os da população indigenizada. É, provavelmente, a formulação mais antiga na resistência “indígena” contra a colonialidade do poder, como nos lembra Quijano (2014, pag. 847). Esta noção foi cunhada no vice-reino do Peru aproximadamente en 1615199 e adotada em progressiva intensidade pelos povos originários do Abya-Yala (heterônimo originário da Nossa América), chegando, nos dias de hoje, a constituir parte importante do debate das plataformas políticas de governos da região, como os do Equador e da Bolívia. No pluriverso-em-relação da cultura da nossa América, a Educação é um fenômeno que emerge e se reinventa das mais diversas formas, como heterônimos de um mesmo projeto de libertação e r-existência. A potência destas experiências, se inseridas numa perspectiva de reinvenção da Escola pública, é inestimável se articuladas, como fontes privilegiadas de saber pedagógico, a uma metodologia que se articule por sua vez ao cotidiano do quefazer educativo, ponto de partida de toda e qualquer reflexão. A ideia de uma pedagogia do Sul contempla essa diversidade de experiências e sistematizações conceituais e metodológicas. Mais do que a síntese de um conceito teórico metodológico fechado, constitui um convite aberto ao aprendizado a partir da construção dialógica e radicalmente transdisciplinar entre, principalmente, três níveis de relação com o saber: aquele que mana de (a) o cotidiano da práxis educativa direta e, aqueles que acessamos como fontes de conhecimento por meio do 198
DUSSEL (1977b, 1977c, 1980b) Guamán Poma de Ayala, aproximadamente en 1615, inclui o conceito em sua Nueva Crónica y buen gobierno. Ver o interesante artigo de Anibal Quijano “Bien vivir: entre el ‘desarrollo’ y la Des / Colonialidad del poder”. Em: QUIJANO, Aníbal, Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder, Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2014. Pág. 847 - 859. Sobre o texto de Guamán Poma de Ayala, ver: Ortiz Fernández, Carolina 2009 “Felipe Guamán Poma de Ayala, Clorinda Matto, Trinidad Henríquez y la teoría crítica. Sus legados a la teoría social contemporánea” en YUYAYKUSUN (Lima: Universidad Ricardo Palma) N° 2, diciembre. 199
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estudo, em diversos graus de aprofundamento, entre os que se distinguem (b) as experiências partilhadas, mais ou menos organizadas como produção de conhecimento desde a exterioridade, e (c) a produção de conhecimento legitimada como tal. Dentro destes três níveis de aproximação com o saber, podem se identificar diversas esferas da produção de conhecimento, que são fontes para a Pedagogia do Sul: a) o cotidiano da práxis educativa direta: i. as trajetórias dos agentes (sujeitos individuais e/ou coletivos do conhecimento) diretamente envolvidos no cotidiano da ação educativa, como momento privilegiado do ato de aprender/ensinar no âmbito local (momento único e irrepetível, singular, que adquire assim, potência universal, isto é, seu lugar no pluriverso do conhecimento humano); ii. atrelado ao anterior, mas com especificidades que é preciso observar, está a experiência estética na relação com o mundo e com o outro no cotidiano/mundo, especialmente no que venho chamando de subalternidade-mundo
(diversidade biocultural, inter-relações de
produção de sentido – valores de uso, troca, signo e símbolo, estéticas do urbano, do rural e da natureza e suas interações); b) as experiências partilhadas desde a exterioridade i. a práxis heteronímica no campo da Educação Popular (EP), entendida aqui como o acumulo de experiências, sínteses teóricometodológicas
e
conceituações
em
uma
perspectiva
crítico
emancipatória ou de libertação, produto dos processos de ensinoaprendizagem dos movimentos sociais, de luta por direitos e de libertação. Nesta esfera se encontra também uma grande diversidade de experiências que, mais do que focar sua ação em uma crítica explícita à normatividade capitalista, constituem-se como práxis alternativas ao sistema pelas práticas de construção de autonomia e sua orientação baseada em princípios como a solidariedade, a partilha e o trabalho associativo (comumente este aspecto fica de fora dos debates
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sobre a EP, que fica assim restringido às chamadas Pedagogias Críticas); ii. As pedagógicas dos povos originários, dentre as quais não apenas aquelas que têm alcançado graus de institucionalização como processo de ensino/aprendizagem escolarizado, mas junto delas, e mais além, a própria pedagógica dos povos do Abya Yala; iii. Os processos de ensino/aprendizagem, produção e transmissão de conhecimentos inerentes às práticas atuais dos grupos na subalternidade-mundo (educação de rua, organizações comunitárias, remanescentes de quilombos, pontos de cultura viva comunitária, grupos de jovens nas periferias, etc.); iv. a articulação de novas redes de produção de conhecimento, de sentido e de cadeias produtivas solidárias, que têm se tornado possíveis a partir da inclusão, no cotidiano, de novas tecnologias de informação e comunicação (web 2.0 e 3.0, redes de coletivos autogestionários, o recente fenômeno do chamado midialivrismo, o desenvolvimento de software-livres que tem permitido a produção de aplicativos a partir de demandas locais de coletivos, comunidades e movimentos sociais, etc.); c) a produção de conhecimento legitimada como tal: i. o pensamento científico clássico ligado à matriz clássica de saber, cuja incalculável acúmulo de conhecimentos guarda ainda insuspeitas contribuições para o bem estar das pessoas, se articulado aos saberes oriundos de outras epistemologias (da arte, dos povos originários, do cotidiano nos grandes centros urbanos e no campo, bem como, notadamente, das classes populares); ii. o pensamento crítico surgido das ciências, como modo de produção de conhecimento contra-hegemônico, tensionado sua apertura ao diálogo epistêmico com a emergência/atualização de saberes de novo tipo (como tenho tentado fazer neste próprio trabalho, o pensamento 218
crítico surgido das ciências carrega um enorme potencial de articular os diversos campos do saber antes assinalados); Cada uma destas fontes - que constituem, em si, potenciais matrizes de racionalidade - abre-se como linhas de pesquisa para o educador/pesquisador descolonial. Somente no campo do que chamei aqui de práxis heteronímica no campo da educação popular existe uma extensa e aprofundada literatura, que sustenta um ainda intenso debate sobre suas concepções e lineamentos políticos, programáticos e metodológicos. Sem nenhuma pretensão de exaurir uma análise sobre elas, cabe conceitualizar aqui o campo da EP. Para tal, extraio dois trechos da definição apresentada por Carlos Rodrigues Brandão (Op. Cit.), cujos princípios são base da concepção proposta para uma pedagogia do Sul: A educação popular é a negação da negação. Não é um “método conscientizador”, mas é um trabalho sobre a cultura que faz da consciência de classe um indicador de direções. É a negação de uma educação dirigida “aos setores menos favorecidos da sociedade” ser uma forma compensatória de tornar legítima e reciclada a necessidade política de preservar pessoas, famílias, grupos, comunidades e movimentos populares fora do alcance de uma verdadeira educação. Ela procura ser, portanto, não a afirmação da possibilidade de emergência de uma nova educação “para o povo” – o que importaria a reprodução legitimada de “duas educações” paralelas, condição da desigualdade consagrada –, mas a afirmação da necessidade da utopia de transformação de todo o projeto educativo a partir do ponto de vista e do trabalho de classe das classes populares.
Um aspecto relevante da EP está no fato dela não se realizar apenas como trabalho escolar, pois é ela mais um modo de presença assessora e participante do educador comprometido do que um projeto próprio de educadores a ser realizado sobre pessoas e comunidades populares. É na reflexão sobre a prática de movimentos sociais e movimentos populares -as “escolas” em que tem sentido uma educação popular, no dizer de Brandão -, que encontra seu lócus. Isto é, tem lugar ali onde as pessoas trocam experiências, recebem informações, criticam ações e situações, aprendem e se instrumentalizam. A educação popular não é uma atividade pedagógica para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou seja, é o momento em que a vivência do saber compartido cria a experiência do poder compartilhado (Brandão, 2009). Para Brandão e Assumpção o que caracteriza a Educação Popular é o seu esforço em recuperar como novidade a tradição pedagógica de um trabalho fundado em, pelo menos, quatro pontos: 219
a) o mundo em que vivemos pode e deve ser transformado continuamente em algo melhor, mais justo e mais humano; b) esta mudança contínua é um direito e um dever de todas as pessoas que se reconheçam convocadas a participarem dela; c) a educação possui aqui um lugar não absoluto, mas importante, pois a ela cabe criar possibilidades para que as pessoas sejam destinadas a se verem como coconstrutoras do mundo em que vivem, o que significa algo mais do que serem preparados para viverem no limite dos produtores de bens e de serviços em mundos sociais que conspiram contra as suas próprias humanidades; d) aos excluídos dos bens da vida e dos bens do saber, o direito à educação, que, além de ser uma educação de qualidade, seja também um lugar em que a cultura e o poder sejam pensados a partir deles: de sua condição, de seus saberes e de seus projetos sociais.
Todavia, não falo simplesmente ‘Educação Popular’, mas ‘práxis heteronímica no campo da educação popular’. Não no sentido de me contrapor a este campo ou pretender “superá-lo”, pois nele estou inserido e, como dito antes, a partir dele reflito o mundo. De um modo diferente, esta categorização busca salientar dois aspectos que considero importantes: primeiro, o alargamento de um campo, bastante institucionalizado, que vem se consolidando a partir de um corpo teórico - atrelado à teoria crítica - sobre a prática, em torno da alfabetização, a educação de adultos e da assessoria ao movimento popular organizado. Segundo, o intuito de destacar a multiplicidade de práxis-em-relação que poderiam ser, e efetivamente são, ordenadas sob a categoria de Educação Popular. Assim, dito alargamento se dá no sentido das práticas menos institucionalizadas que, com diversos graus de relação com a teoria crítica (à qual propõe também diversas releituras), desenvolvem-se de modo mais autônomo no novo e complexo contexto social já descrito. Em outras palavras, o objetivo é tensionar o movimento instituído/instituinte, de modo a permitir uma reflexão sobre a EP que mantenha viva sua vocação de acompanhar as mudanças sociais e, notadamente, a percepção que os sujeitos desta mudança tenham dela. Para tal, a desobediência implícita no giro epistêmico (a indisciplina de que nos fala TAPIA (op.cit.)) para se situar na diferença colonial – o que significa se perceber no cotidiano em relação com o sistema-mundo e assumir uma narrativa a partir da diferença colonial como lugar de enunciação – é condição fundamental da necessária descolonização do pensamento político e da práxis educativa. De fato, cada experiência de luta produz uma relação específica com a educação, e assim, uma pedagogia própria, como uma certa teoria do conhecimento a partir do lugar dessa luta.
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Da síntese apresentada se desprende que a pedagogia do Sul só possa ser concebida no seu caráter heteronímico (como uma educação Maaya), isto é, como um pluriverso articulado. Urge assim, a articulação de estudos e pesquisas descolonizadas - como nos propõem Xochitl Leyva, Burguete e Speed (2008) e sua interessante experiência de co-labor – investigações produzidas desde e com as mais diversas experiências de educação no campo popular de modo que, a partir delas, tornem viáveis releituras inéditas sobre o já produzido no campo popular. Proponho, mais para exemplificar e balizar do que para exaurir, um brevíssimo arrolamento de algumas destas experiências, com diversos graus de institucionalização e de sistematização teórica, como cartografia prévia para futuras investigações que venham contribuir no contínuo processo de construção de saberes para a reinvenção da escola das classes populares. A disposição destas experiências por campo de ação não propõe delimitações estanques, mas aproximações para sua exposição. Cabe resaltar que está síntese sacrifica necessariamente a interação de muitas dessas experiências em diversos campos. No campo da Educação Popular: o complexo teórico-prático desenvolvido por e em torno da obra de Paulo Freire, que podemos denominar de Pedagogias do Oprimido (da Autonomia, da esperança, da indignação, etc.); o amplo movimento de Educação de Jovens e Adultos; o Movimento de Educadores Democráticos no México, a Educação Popular Comunitária; a Pedagogia Social de Rua; o Planejamento Estratégico Situacional - PES (C. Matos) e; a Sistematização de Experiências (O. Jara), entre muitas outras. Cabe salientar que, pelo grau de desenvolvimento teórico e de institucionalização das suas práticas, este campo permeia com a sua influência, em diversos graus, quase todos os demais. No campo da Educação e da Arte: Teatro do Oprimido; Circo Social; Movimento de Educação pela Arte; animadores culturais e mediação cultural; Movimento continental dos Pontos de Cultura Viva Comunitária e, mais recentemente, a concepção de Arte/educação ambiental. No campo da Educação no campo: Pedagogia da Terra (MST), Pedagogia da alternância (experiência no Brasil). No campo da Educação dos povos do Abya-Yala: Pedagogia Mapuche (proj. Universidade Mapuche); Escolas indígenas e interculturais no Equador e na Bolívia, Universidad Intercultural de las Nacionalidades y Pueblos Indígenas del Ecuador AMAWT, entre outras.
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No campo da Educação e comunicação: Comunicação Popular (Kaplun); Educomunicação e mídia-educação; plataformas colaborativas e movimentos sociais na web 2.0 e 3.0 (Creative Commons, plataformas Wiki, Blogosfera, movimento copyfight. etc.); Tevês e Rádios comunitárias. No campo da Educação insurgente: Escola Zapatista de Chiapas, no sul do México. No campo da Educação de gênero: Movimento feminista, movimento gay, luta por direitos LGBT. No campo da Educação e Direitos Humanos: Pedagogia da memória (Chile), Universidad de las Madres de la Plaza de mayo. Entre muitos e muito mais. Entretanto, para alcançar o objetivo proposto - a articulação de uma pedagogia do diverso, que torne politicamente atual o poder da comunidade comunicativa para uma democracia profundamente participativa - não basta apenas inventariar.
É preciso construir
dialogicamente, articulando aos saberes dos educandos no cotidiano da ação educativa essas experiências concretas e as contribuições teóricas já produzidas, justamente, pelo próprio campo da educação popular, dos movimentos sociais e também das comunidades indígenas e de experiências em que estes movimentos sociopolíticos - e em alguns casos, como na Bolívia, no sul do México e no Equador, societários - têm assumido um papel na reformulação do Estado200. Trata-se de aprender das pedagogias de baixo, até inverter a relação em cima / embaixo. De fato, por possuir uma base filosófica que conceitua o Outro e busca uma construção a partir dessa exterioridade, da sua alteridade, os elementos para essa construção contínua podem ser achados tanto no tipo de movimentos de sujeitos coletivos já constituídos, como, de fato, e quem sabe prioritariamente, no cotidiano daqueles que entendemos, junto com Freire, Dussel e tantos outros, como sujeitos privilegiados do ato da libertação: os oprimidos, no modo como definido anteriormente. É a partir desse alargamento da experiência humana considerada como fonte e memória do conhecimento, e do conseguinte emergir de um novo
200
A este respeito (de diversos graus de interação entre projetos populares insurgentes e o Estado, na direção de uma democracia participativa) podem ser consideradas experiências como a da Bolívia, das comunidades chiapanecas do Caracol, no sul do México, a do Equador, e de outras experiências ao longo da história, como o processo de EP correlato ao orçamento participativo em alguns municípios no Brasil, e outras de construção de poder popular e de processos de alfabetização a grande escala, como no Chile (1970) na Nicaragua (em 1979), na Venezuela (desde 2000) e em Cuba (desde 1959), entre tantas outras.
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sujeito enunciador, que poderá se dar o giro epistêmico para o necessário reequilíbrio entre os três níveis de aproximação ao saber, antes assinalados como fontes de uma Pedagogia do Sul. [uma noção de projeto e o sujeito descolonial, por um currículo insurgente da ação educativa] De um modo totalmente diferente dos parâmetros postos pelo debate sobre o sujeito do conhecimento (que é também o debate sobre o sujeito da transformação social), na tradição ocidental eurocêntrica, o sujeito descolonial é, por definição, um sujeito insurgente. Como tal, é inapreensível pela teoria social clássica, mas apenas intuído pelas pegadas que deixa nos saltos históricos em momentos de tensão, como percebera Walter Benjamin (2005). O sujeito insurgente emerge do cotidiano da subalternidade-mundo, do subsolo político em tempos de política selvagem. Surge e é projetado no próprio movimento insurgente, que é permanente, mesmo que nem sempre organizado, e posto em relação dialética à institucionalidade vigente, constituindo-se em elo e mediação da descontinuidade dos processos históricos de emancipação e libertação existentes. Ora, todo projeto [político e pedagógico], se bem não é a transformação em si, anuncia e projeta, no mesmo movimento, o sujeito da construção da sociedade desejada, isto é, traz implícito um sujeito a ser “formado”. Nisto radica tanto sua potência (enquanto desejo objetivado, atualização de uma vontade política coletiva, da utopia de uma comunidade comunicativa) quanto o seu principal perigo, qual seja a reificação do sujeito-desejado, uma construção a priori projetada assim como imposição abstrata do ideal ao real concreto dos sujeitos ou agentes dessa transformação. A ideia de uma pedagogia do Sul constitui também um projeto de sociedade, e um projeto que, como tal, inaugura um sujeito insurgente. Este sujeito implícito, como sujeito-potência do projeto coletivo, no caso do projeto descolonial, para
alcançar
a
produção
de
um
conhecimento
atualizado
como
potência
insurgente/comunitária, deve, a cada momento, dialogar com os sujeitos insurgentes em sua concretude, ou melhor, com o insurgente de cada sujeito [é importante frisar que, assim como a colonialidade do poder está em todos nós, habita em nós também um sujeito-insurgentepotentia – relação colonizador/colonizado em Fanon, opressor/oprimido em Freire, superada pelo movimento comum de libertação, etc.]. Uma pedagogia do Não-Ser (o não-Ser da modernidade), do Ser negado que, na perspectiva do giro epistêmico, torna-se o Ser-potentia, o ser em si do u-topos atualizado, tem como sujeito da ação educativa - ação de
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libertação/descolonização - um devir sujeito-descolonial, que surge do movimento dialógico entre o sujeito-potência e os sujeitos concretos como agentes da própria libertação. Propõe-se assim, a seguinte construção axiomática: [Sujeito-Potência (desejo coletivo projetado) =/= Sujeito Concreto Insurgente que, em interação dialógica mediatizada pelo ato educativo/reflexivo/criativo, imbricado na relação com o outro e com o mundo, emergem como devir sujeito-descolonial]. O projeto descolonial deve ser, necessariamente projeto, porque movimento de objetivação de uma intencionalidade política, desejo intencionado voltado para a mudança e a libertação, mas não programático, porque empurrado à constate mudança, à insurgência definida pelo movimento que, à escala local, os diversos sujeitos emergentes realizam pela sua libertação. É o Não-Ser no movimento de ir-se tornando. É, então, um movimento que busca uma institucionalidade outra, negando-a; que surge de uma reação concreta e cotidiana à institucionalidade
moderno/colonial
vigente,
imposta
(escolar,
estatal,
policial,
médico/hospitalar, artístico/cultural, etc.) pelo que esta nega o que há de saberes, potências e pulsões de vida no cotidiano das comunidades locais. Desta maneira, e por isso, se bem a só ideia de projeto define objetivos curriculares e modos do fazer pedagógicos, pelo mesmo motivo, o projeto de uma pedagógica descolonial esquivase da idealização/institucionalização desse projeto. Mais além, uma postura política de construção do projeto descolonial, assentada no princípio radical democrático do poder obedencial, precisa tensionar a cada momento sua própria institucionalidade com base no movimento dinâmico dos comuns que nele se encontram, de modo a avançar nos processos de construção de autonomia e na democracia participativa. Trata-se assim de uma antipedagogia que projeta um currículo cuja condição traz implícito o movimento da sua negação, pois é movimento contínuo e dialógico de irmos sendo. Nesse sentido, um projeto pedagógico descolonial não pode se reduzir a uma simples substituição de conteúdos ou histórias contadas do ponto de vista dos oprimidos que, nesse movimento, tornar-se-iam opressores. Todavia, deve necessariamente contemplar esse projeto de reconstrução da história contada a contrapelo (como nos convidara Walter Benjamin). Mas como militantes da antipedagogia e educadores da própria libertação, não podemos nos acomodar na denúncia e parar por aí. O compromisso programático não pode se ancorar em sua definição anterior e abstrata, nem se limitar ao que está posto como realidade, sob 224
condição de impedir seu movimento criativo ao novo. Mas, se em movimento, a denúncia é fundamental para não nos acomodar no ostracismo gosmento do Grande Costume, na cegueira autocomplacente da vida morna e o vidro fechado. Mais uma vez a questão da memória, tensionada para a construção curricular entre a afirmação e a negação da existência na subalternidade-mundo (negar o que há de subalterno em nós é condição de supervivência e inclusão nas sociedades capitalistas moderno/coloniais. E neste caso, o uso desse “nós” vale tanto no seu sentido de coletivo social e cultural, isto é, para pensarmos do ponto de vista socioantropológico, socioeconômico e sociopolítico, bem como para se referir a cada um de nós, no sentido mais íntimo e intersubjetivo). Para Gramsci alterar a linguagem é alterar o pensamento, logo, a nossa experiência subjetiva no mundo. Em uma perspectiva análoga, na sua Estética da criação verbal, Bakhtin (2003) fala do “excedente de visão estética”. Este se refere a tudo aquilo que a visão do outro permite ver de mim que eu não posso enxergar, por estar justamente olhando na sua direção. Assim, meu rosto, partes do meu corpo e o meu entorno, fazem parte do excedente de visão desse outro. Do mesmo modo acontece ao olhar para quem está situado fora e diante de mim. Para Bakhtin, é preciso considerar esse excedente de visão estética, que é condicionado pela singularidade e pela insubstituibilidade do lugar de cada um no mundo. Este possibilitaria, na construção de conhecimento, a articulação de dois universos diferentes, mas complementares. Repensar essa concepção bakhtiniana da construção de conhecimento desde a diferença colonial, e considerando que a nossa visão de educadores está atravessada pelo viés da colonialidade do saber, como a de qualquer um, permite propor a noção de excedente de colonialidade. Se colocado diante do sujeito-potência do qual falamos, este perceberia que há no olhar do educador um excedente de visão sobre o educando que é permeado pela sua própria colonialidade. Isto é, um excedente de colonialidade que (como viés de colonialidade nas leituras do educador e do educando como sujeitos concretos) faz com que (1) se desconheça a colonialidade do seu próprio excedente de visão e (2) impeça assim perceber as trajetórias-maaya de cada educando e a percepção singular que elas projetam. Em outras palavras, posto que a colonialidade do saber é constitutiva da minha racionalidade, não posso me despir dela pelo simples desejo da mudança, mas no encontro com o outro e com o mundo. Esta colonialidade “excedente” ao educador engajado no projeto descolonial é, nesse encontro dialógico, parte do excedente de visão estética desse outro que é o educando. Isto significa que, dada a assimetria de poder implícita nos processos de ensino aprendizagem, 225
mais ainda os escolarizados, o excedente de visão estética do educando em relação dialógica com o educador é fonte privilegiada de saber descolonizador em qualquer relação educador/educando.
O necessário espírito autocrítico da práxis descolonial, inerente ao
educador militante da antipedagogia, mais do que um valor abstrato e puritano, tem seu fundamento, assim, na relação com os educandos como coconstrutores de um saber libertador novo, sustentando-se, como práxis, em uma escuta ativa das narrativas que suas trajetórias carregam e produzem. As trajetórias-maaya de cada sujeito se consolidam em sua percepção própria das relações dele com o mundo e com cada campo. Todavia, estão constituídas por diversos modos de estar no mundo, inseridos e, de certo modo, determinados pelas trajetórias culturais de cada grupo social (classe ou etnia, entre outros). Uma aproximação dos modos de significação ou de produção de sentidos destas trajetórias-maaya (heterônimos da cultura da nossa América e do sujeito), se bem não nos levará, como educadores, à compreensão total do excedente de visão de cada educando, aproximar-nos-ia, certamente, da possibilidade de sua inclusão no processo dialógico da construção do conhecimento no cotidiano. Daí a importância de uma reflexão cuidadosa sobre o lugar do mito e do mágico na constituição do sujeito colonial, póscolonial e descolonial, da constituição do seu imaginário em constante relação consigo [relação com os diversos modos de consciência decorrentes das suas trajetórias e da sua percepção/representação de si] e com o outro, em um contexto tensamente intercultural, como assinalado anteriormente. O currículo tem como lócus o ato educativo como processo contínuo e dialógico, no qual, como percebeu Bakhtin, não há significados, mas sentidos. Implica em uma mudança radical da postura do educador em diálogo com os educandos, no sentido de, por exemplo, mudar todo o modo em que nos relacionamos com as crianças quando, imbuídos pela ideia do “ser”, do “deve ser”, do “tem que ser”, entendemo-nos como portadores de uma missão como educadores. É nesse momento, cotidiano, em que nossos atos educativos vêm-se atravessados pela ética do Ser (hegeliano e eurocêntrico) e operam como imposição; é nessa convicção messiânica implícita que o professor, armado de uma fé cega nos conteúdos curriculares formais/institucionais, pode se tornar, ele próprio, instrumento de reprodução da normatividade vigente, do poder surdo da palavra legitimada e, assim, da colonialidade do saber e do poder.
226
[a pedagogia do Sul como práxis do sujeito descolonial e o projeto de uma sociedade pluriversal] Aprender a aprender é uma necessidade cada vez maior em um mundo em que o acúmulo de conhecimento cresce de maneira exponencial, forçando-nos a dominar novos e diversos métodos de aprendizagem, como bem nos lembra Gonzales Casanova (2006). Entretanto, trata-se de um mundo em crise cujo modelo globalizado se baseia justamente no acúmulo sem limites, no crescimento linear e na produção de excedentes e lucro, que submete enormes parcelas da população mundial ao trabalho aviltante, decorrente da lógica extrativista que descuida a dignidade da vida, destrói a diversidade biocultural e o equilíbrio vital da natureza, da qual somos parte e de onde viemos. Esta imagem coloca a urgência de buscar outros pontos de vista para rever conceitos e objetivos já naturalizados no senso comum acadêmico. Não, a nossa urgência não advém da ilusão de desenvolver competências técnicas ou intelectuais para o mercado de trabalho e assim alcançar determinados índices de crescimento e desenvolvimento econômicos. Se aprendemos com os povos do Abya Yala da importância do bem viver, como um equilíbrio, e focamos nosso projeto civilizatório na direção do respeito à vida e a sua dignidade, podemos perceber que essa máxima, “aprender a aprender”, somente faz sentido se a aplicarmos não apenas aos ditos ignorantes ou analfabetos, não apenas às crianças e jovens das classes populares, nem menos somente aos pobres e oprimidos, pois aprendemos que a pobreza e a opressão não são o produto de sua suposta incompetência em acompanhar as mudanças que a tecnociência vem produzindo de modo cada vez mais acelerado. Pelo contrário, vemos que, para a construção de uma educação que saiba valorizar a diversidade e retome a sua potência civilizatória tão anunciada nos séculos passados, é justaente a Escola quem precisa, urgentemente, aprender a aprender. A Pedagogia do Sul é o tensionar da ação educativa - e assim do modo de produção de sentidos e saberes - a partir da exterioridade do sistema mundo, do Outro da racionalidade moderno-colonial, cujo efeito institucionalizado maior, neste campo, é o sistema de ensino/aprendizagem escolarizado, como o conhecemos, e cujo espaço paradigmático é a sala de aula da Escola, espaço reificado no tempo, desde o século XIX, com seus bancos enfileirados e o silêncio dos alunos (do latim alumni – o lactante, aquele que depende de outrem para se alimentar) como pano de fundo do protagonismo pretensamente autopoiético do paradigma-professor. Nesse sentido, é também uma metodológica. Porque ancorada na
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exterioridade, no outro, que é um devir outro, ela é um instrumento de ver pelo avesso, uma pedagógica da Libertação (Dussel). Neste último sentido, se desloca do âmbito do puramente relativo à pedagogia, para além das questões relativas ao ensino/aprendizagem escolar.
Alarga-se de sentidos alcançando a
pedagógica (Dussel, 1980), isto é, relativa a todas as relações de produção, reprodução, superação e reinvenção de saber/poder na sociedade.
Torna-se assim inseparável da
reflexão/ação sobre o projeto sociopolítico epistêmico. Trata-se de uma práxis que emerge da relação cotidiana e tensa entre o mundo que vivemos e o que desejamos, como comunidade comunicativa. Como parte de uma narrativa sobre o mundo desde sua exterioridade, tendo a diferença colonial como lugares de enunciação, a pedagogia do Sul, como uma pedagógica, constitui o giro epistêmico que desloca o olhar a partir do qual vemos, entendemos e nomeamos. Mais do que uma mudança de ponto de vista constitui um deslocamento epistêmico a partir do outro, como lócus privilegiado para se pensar a política e a metodológica, e assim, descolonizá-la: a cidade, desde o ponto de vista dos que moram nos setores periféricos, nas favelas e na rua; o campo, sua cultura e sua riqueza ao serviço da humanidade, desde o ponto de vista dos sem terra e a produção alimentar do ponto de vista da agricultura familiar; a heteronormatividade falocêntrica desde o feminino e o homoafetivo; a Escola vista, não apenas do lugar dos alunos, da consideração dos seus interesses, desejos e necessidades objetivas, mas inclusive daqueles que são a ela mais arredios, dos que não conseguem, por diversos motivos, submeter-se à sua disciplina – assim como o “menino de rua” para a cidade, ou o “menor infrator” para o sistema socioeducativo e o judicial, o garoto bagunceiro, que vive suspenso ou “de castigo”, que atrasa e não presta atenção em sala de aula é o outro do outro por excelência da Escola; Entre tantos e tantos outros exemplos possíveis. Cabe insistir que não se trata de reificar esses sujeitos nem as suas narrativas como portadoras e portadores de uma verdade outra, por si própria, nem de colocá-los no lugar de uma protocultura salvadora. Trata-se sim, de entendê-los em seu lugar privilegiado no processo de construção dialógica de um projeto de educação para a libertação, lugar dado pelo seu excedente de visão estética que é fonte de saber descolonizador, como apontado anteriormente. Este giro epistêmico não implica na destruição do que é hegemônico, mas sim do seu lugar de universal determinador da totalidade. Implica no seu tensionamento para a emergência do novo, em uma perspectiva pluriversal. Não se trata, então, de uma ação 228
paternalista nem de louvar a priori a conduta social de nenhum dos sujeitos propostos como exemplo. Trata-se sim, de uma questão epistêmica baseada na própria ontologia do não-Ser na modernidade-mundo.
Em um sentido muito distinto, e ancorado nos mais diversos
aprendizados da Educação Popular e da perspectiva da interculturalidade crítica (WALSH, 2010, 2006) e do pensamento descolonial, consiste em efetuar um giro epistêmico possibilitado, justamente, pela potência do privilegiado ponto de vista da exterioridade que, como lugar de ver, é uma estética. Deste desafio se desprende, por sua vez, também o da elaboração de um programa de estudos e pesquisas que venha mapear os elementos constitutivos dessa pedagógica, no acúmulo secular de produção de saberes ocultos pela nossa própria colonialidade do saber, redesenhando assim, as narrativas sobre a memória, mas também sobre a potência, a técnica, a metódica e a história ontológica dos povos, grupos e classes sociais na subalternidade da nossa América. Mas não apenas quanto às experiências de educação a pedagogia do Sul é diversa. Também o é conceitualmente. Assim, como vimos, a Pedagogia do Sul é, ao mesmo tempo e de modo imbricado, varias pedagogias: é uma pedagogia do não-saber ou pedagogia radical da autocrítica docente, [que permite aflorar] uma pedagogia do não Ser, do “Outro” e a partir desse Outro (a antipedagogia do ser). Como pedagogia descolonial, voltada para a superação da colonialidade do saber e do poder, busca, a cada momento, produzir conhecimentos e saberes de modo dialógico, por/com indivíduos e coletivos, mediatizados pelas relações de produção da vida (na sua materialidade) e de comunicação, no modo em que estas são percebidas por esses indivíduos em suas diversas formas de subjetivação e socialização, mas a partir do Sujeito negado pela modernidade/colonialidade, isto é, a partir do que há de subalterno e rebelde em cada um e cada uma a cada momento determinado. No político (a questão do poder do Estado), é uma pedagogia do poder obedencial que, situada no poder da comunidade, educa para a participação social e política. É uma Pedagogia insurgente do Ser descolonial (sujeito que carrega, consciente, o seu comunitarismo ontológico, relacional e cognoscente).
É, nesse mesmo sentido lato, uma pedagogia que se propõe a ser parte
articulada de um projeto pluriversal e dialógico, a partir da nossa América. As questões em aberto são muitas e, ao contrário do que manda a lógica mais tradicional da ciência clássica, a função de uma pergunta não é aqui, necessariamente, ser respondida, pois toda resposta é um ponto de chegada, uma porta que se fecha. Pelo contrário, quero entender a 229
dúvida como um motor, como uma instigação que nos leve a compreender, no cotidiano de cada prática engajada, a mais ampla gama de respostas possíveis para a produção de um conhecimento outro. Assim por exemplo, ao propor a questão, A partir de que lugar pensa o mundo o professor formado nas nossas universidades? A pergunta não busca construir tautologias que definam de modo genérico quem é “o professor” que formamos e o que ele pensa. Indagação tão ingênua quanto arrogante. De um modo diferente, ela vale muito mais no que pode nos instigar a buscar uma relação crítica a respeito do próprio conhecimento adquirido nos espaços acadêmicos, conhecimento sempre relido com arranjo aos nossos saberes do senso comum. De um modo ou outro, tensionar o olhar no movimento descolonial que busca na memória dos que têm ainda sua história não contada, ou contada pelo avesso, torna-se condição de possibilidade de formação de educadores capazes de se insurgirem perante o currículo monocultural, assumindo o caráter intercultural das escolas públicas do Brasil e da nossa América. Estou convencido de que uma educação libertadora precisa dar conta do desejo, notadamente do desejo dos subalternos e dos desejos objetivados no movimento coletivo das comunidades comunicativas pela sua própria libertação. Esta dinâmica aponta para uma educação que seja movimento, logo, que no seu movimento dialógico seja denúncia e anunciação, nunca acomodação, mas uma que seja capaz de ouvir e não apenas dizer, uma educação sem alumnus, onde todos e todas tenham a sua capacidade reconhecida, que denuncie com a sua escuta ativa e radical, todos os discursos, todas as verdades como imposições, uma que se entenda tecido polifônico de construção da nova trama coletiva do saber. Somente deste modo, seria instituinte e não reprodutora. E somente em uma educação instituinte, em movimento, caberá o mundo que os simples e os rebeldes queremos construir para todos e todas: um mundo onde caibam muitos mundos. ----
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[uma leitura esquemática possível como síntese geral ou argumento implícito, isto é, a minha leitura e o meu projeto político neste diálogo] Buscando contribuir com a urgente descolonização da práxis educativa e com a libertação, tendo, a) o campo da cultura, na sua relação de mútua interdependência com os demais campos (econômico, político, ecológico, social, etc.), entendido como totalidade definidora de sentidos de pertencimento e coesão social legitimadora e, na sua exterioridade, a cultura popular da Nossa América, entendida na sua unicidade heteronímica e impura, como fonte legitimadora do poder potencial de cada comunidade local; b) a produção contínua de um pluriverso simbólico regional e de noções de beleza desde a subalternidade-mundo latino-americana, produto de trajetórias de r-existência e sua memória rebelde, que se configuram, no momento da sua enunciação, em uma estética da ruptura e de subversão dos cânones da modernidade/colonialidade; c) a Educação Popular, como produto objetivado dos processos de ensino aprendizagem das lutas pela libertação na Nossa América, a partir dos saberes locais, e as suas experiências sistematizadas e relidas, como trajetórias de produção de conhecimento e reinvenção da luta, no movimento contínuo dos mais diversos grupos sociais na subalternidade; d) e tendo o entendimento político da centralidade da participação popular nos mais diversos processos de transformação social atualmente em curso na Nossa América, e da sua importância vital para a construção de um projeto de sociedade radicalmente democrática e popular, com Estados plurinacionais articulados de maneira criticamente intercultural, capaz de superar a (re)produção das desigualdades sociais e das condições objetivas e subjetivas da dominação; considerando ainda, e) que este projeto não poderia, sob condição de perder seus princípios mais vitais, ser definido, na sua forma e no seu conteúdo último, a priori, nem ser realizado por nós, apenas, mas pela soma da ação beligerante de todos os sujeitos (agentes sociais) envolvidos política e afetivamente nesses processos de mobilização participativa; 231
esta tese aponta para a articulação, a partir da Cultura Popular [como em (a) e (b)] e da Educação Popular [como em (c)], como bases de uma práxis educativa descolonial de reinvenção da Escola, cuja perspectiva ético/estética [como em (b)] entrelace ciência e arte para a formação de sujeitos insurgentes da radicalização democrático-participativa na Nossa América (no sentido descrito em (d)) e a correlata descentralização do Estado: a Pedagogia do Sul, cuja condição de ser é um constante ir-sendo [como em (e)] em-relação, ancorado na nossa memória rebelde [como em (b)] e alimentado pela razão tópica subalterna e insurgente.
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