Violência de gênero contra mulher: uma demanda à justiça restaurativa? Paola Stuker Cientista Social pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Resumo A violência de gênero contra a mulher é uma temática que ocupa centralidade na sociedade contemporânea, devido ao alto índice de casos e as recentes modificações do sistema judiciário diante desses conflitos. Este trabalho visa analisar se a criminalização da violência contra a mulher vigente na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) condiz com a prática das vítimas ao registrarem uma ocorrência, através de um estudo sociológico na Delegacia de Polícia Especializada de Atendimento à Mulher de Santa Maria, RS. Ao final, verificou-se que a criminalização da violência contra a mulher não atende a demanda da maioria das vítimas, que desejam soluções para seus conflitos íntimos que não impliquem na punição do agressor. Assim, a justiça restaurativa surge como uma possibilidade interessante à administração judicial da violência de gênero contra a mulher. Palavras-chave: Justiça Restaurativa; Lei Maria da Penha; Violência Contra Mulher. Abstract Gender-based violence against women is an issue that occupies centrality in contemporary society, due to the high rate of cases and the recent changes to the judiciary on these conflicts. This paper aims to examine whether the criminalization of violence against women in the current Law 11.340/06 (Maria da Penha Law) consistent with the practice of the victims when doing a police occurrence, through a sociological study in Precinct Police Specialized Care for Women of Santa Maria, RS. At the end, it was found that the criminalization of violence against women does not meet the demand of the majority of the victims, who want solutions to their inner conflicts that do not involve the punishment of the aggressor. Thus, restorative justice emerges as an possibility interesting judicial administration of gender-based violence against women. Keywords: Restorative Justice, Maria da Penha Law, Violence Against Women.
Introdução A violência de gênero contra mulher é um tema que ocupa centralidade na sociedade contemporânea. Cotidianamente vê-se esta temática como protagonista de reportagens,
noticiários, atividades civis, governamentais e acadêmicas. Seu destaque enquanto tema de discussão é resultando do seu alto índice de casos, comparado com a violência contra outros grupos sociais, e das recentes mudanças e adaptações do sistema judiciário brasileiro diante deste conflito, em especial a criminalização deste tipo de violência através da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. Apesar do crescente reconhecimento deste conflito como problemática social, a violência de gênero contra a mulher é ainda naturalizada, sendo uma expressão da sociedade patriarcal na qual estamos inseridos. Nesta sociedade existe uma tolerância de que os homens podem exercer sua virilidade baseada na força e dominação, que caracterizam o gênero masculino (SAFFIOTI, 2004). Embora a violência contra a mulher ainda seja muito disseminada, parece haver uma crescente preocupação com esta problemática social, visto que há constantes adaptações do sistema judiciário no enfrentamento desta questão, como a substituição da Lei 9.099/95 pela Lei 11.340/06 que criminalizou a violência doméstica e familiar contra a mulher, tornando-a responsabilidade da justiça retributiva. Diante disso, o objetivo deste trabalho é analisar se a criminalização da violência contra a mulher, através da Lei Maria da Penha, atende a demanda das vítimas de violência conjugal. Para tanto, observou-se com que frequência as mulheres desejam representar criminalmente contra seus cônjuges, através de uma pesquisa na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Santa Maria, RS, que contemplou os boletins de ocorrência e inquéritos policiais do ano de 2012.
Desenvolvimento A criminalização da violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil, através da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), tornou este tipo de violência responsabilidade da justiça retributiva, representada pelo sistema penal tradicional, atendendo as reivindicações dos movimentos sociais, em especial do movimento feminista, que exigiam maior rigidez na aplicação de penas aos acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher (DIAS, 2012). Nesse sentido, a Lei Maria da Penha rompeu com o sistema consensual de Justiça ao instituir a condenação do agressor através de detenção, não se aplicando mais a Lei 9.099/95 dos Juizados Especiais Criminais, que propunha a conciliação entre os envolvidos e reparava o dano através de pena não privativa de liberdade.
No entanto, passados 7 anos da promulgação da Lei Maria da Penha os impactos sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher são insuficientes. Segundo dados divulgados em setembro do ano corrente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Lei Maria da Penha não diminuiu a mortalidade de mulheres por agressão.
Além disso, pesquisas têm
indicado que a detenção do acusado não é o desejo das vítimas de violência conjugal (AZEVEDO, 2011). Seguindo em um sentido contrário, alguns países da Europa têm aplicado a Justiça Restaurativa aos casos de violência doméstica, que reconhece a centralidade das dimensões interpessoais dos conflitos, com vistas na redução de danos e na restauração de laços sociais. Conforme Zehr (2008) a justiça restaurativa é o sistema que percebe o crime como uma violação de pessoas e relacionamentos e que cria a obrigação de corrigir os erros; esta justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança. Enquanto na justiça restaurativa o foco sugestivamente está na restauração das relações, na justiça restributiva a centralidade é a punição do infrator, onde o crime é visto como uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa; a justiça retributiva determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas. Diferentemente da justiça retributiva, na justiça restaurativa as necessidades e direitos das vítimas e as dimensões interpessoais entre os envolvidos são a preocupação central. Sobre esta perspectiva que Zehr consagra sua abordagem de que “a justiça precisa ser vivida, e não simplesmente realizada por outros e notificada a nós” (2008, p. 191). Acredita-se que a centralidade na vítima, que caracteriza a justiça restaurativa, contemplaria as mulheres que registram um boletim de ocorrência de violência conjugal nas delegacias, uma vez que estas desistem da representação criminal (ou mesmo não optam por esta) quando não têm suas necessidades atendidas.
Resultados Como já referido, a Lei Maria da Penha prevê a condenação do agressor, não havendo mais a possibilidade de conciliação entre os envolvidos. Desse modo, este conflito é matéria criminal, sendo responsabilidade do sistema penal tradicional. Sendo assim, no momento em que a vítima registra a denúncia ela opta por representar ou não contra seu suposto agressor. Se ela optar pela primeira alternativa é gerado um inquérito policial e agendada uma audiência; se
comprovado o fato, o réu pagará de três meses a três anos de prisão. Mas, e se ela optar por não representar criminalmente contra o agressor? Durante a pesquisa na Delegacia de Polícia Para a Mulher de Santa Maria, constatou-se que quando a mulher opta por não representar criminalmente contra o acusado o registro de ocorrência é arquivado e não se trabalha no caso. Como o enfrentamento da violência contra a mulher tem se dado através de uma política criminal, as mulheres que não requerem representar criminalmente, não contam com uma política social. No gráfico a seguir verifica-se que a cada 184 mulheres que registraram um boletim de ocorrência contra seus cônjuges em 2012, apenas 40 desejaram representar, sem renunciar a representação depois de instaurado o Inquérito Policial, o que totaliza apenas 21,74% dos casos. Ou seja, em média 78,26% das mulheres que registram um Boletim de Ocorrência na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Santa Maria (RS) não desejam ver o acusado processado, como pode ser visualizado no gráfico a seguir.
Gráfico 1 – A vítima optou por representar, sem desistir da representação?
Fonte: elaboração própria através de pesquisa na DEAM de Santa Maria
O fato das mulheres não desejarem representar criminalmente contra os acusados não significa que elas não desejam soluções para seus casos. O que acontece é que elas desejam soluções para seus conflitos íntimos que não impliquem na punição do agressor, que é uma pessoa com quem têm ou tiveram envolvimento afetivo.
Conclusões Os resultados desta pesquisa nos levam a questionar a criminalização da violência contra a mulher e a considerar pertinente a avaliação de formas alternativas de enfrentamento a esta problemática social, já que 78,4% das mulheres que registraram um Boletim de Ocorrência na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Santa Maria (RS) em 2012 não desejaram ver o acusado processado. Ao final da pesquisa, constatou-se que a Lei Maria da Penha não tem conseguido promover os resultados pretendidos. A proposta punitiva da Lei Maria da Penha não atende a demanda da maioria das vítimas de violência conjugal, que desejam soluções para seus conflitos íntimos que não impliquem na punição do agressor. Assim, diante da incompatibilidade entre o sistema penal tradicional e as expectativas das vítimas de violência conjugal, deve-se pensar em formas complementares de se tratar estes conflitos, diante dos quais a justiça restaurativa apresenta-se uma proposta interessante.
Referências Bibliográficas: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (org.). Relações de Gênero e Sistema Penal: violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Disponível em: Acesso em: setembro 2013. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 1ºed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Athena, 2008.