A ÉTICA DE TOMÁS DE AQUINO (1225? - 1274) Ramiro Marques Professor Coordenador com Agregação do Instituto Politécnico de Santarém
A Vida Tomás de Aquino, à semelhança de Aristóteles, foi, durante muito tempo, denominado "o filósofo". Poucos filósofos merecem tanto essa designação. De família lombarda, nasceu no castelo de Roccasecca, situado junto da localidade de Aquino, a norte de Nápoles. Oriundo de uma família da alta nobreza, Tomás de Aquino fez os seus primeiros estudos na abadia do Monte Cassino e ingressou, quando adolescente, na Universidade de Nápoles. Contrariando a vontade da família, Tomás ingressou, em 1243, com apenas 18 anos de idade, na ordem dominicana, onde permaneceu até à sua morte prematura, com apenas 49 anos. Em 1245, foi estudar para a Universidade de Paris, respondendo ao chamamento de um intelectual de grande craveira, chamado Alberto Magno. Aí esteve até 1248, participando activamente em todos os grandes debates intelectuais do seu tempo. Depois de estudar durante quatro anos, na Universidade de Colónia, para onde foi com o seu mestre, Alberto Magno, regressa a Paris, onde ensina como leitor e recebe o título de Mestre em Teologia. Em 1259 volta à Itália, ensinando em Agnani, Ovieto e Roma. Entre 1269 e 1272, ensina, de novo, em Paris, após o que regressa a Nápoles para organizar os estudos teológicos da ordem dominicana. Faleceu, subitamente, quando viajava para Léon, a fim de participar no Concílio, a pedido do Papa Gregório X. Obras principais: Do Ente e da Essência (1242-1243); Questões Disputadas Sobre a Verdade (1256-1259); Comentários às Obras de Aristóteles (1259-1272); Suma Contra os Gentios (1259-1260); Suma Teológica (1265-1274). A Suma Teológica ocupa vários volumes, num total de 3.800 páginas, escritas com o objectivo de servirem o ensino da Teologia e da Filosofia e de mostrarem a superioridade da filosofia aristotélica e cristã face a todas as outras interpretações e comentários, incluindo as desenvolvidas pelos filósofos islâmicos, como Avicena (falecido em 1037) ou Averrois (falecido em 1198). Tomás de Aquino dedicou toda a sua vida ao conhecimento. A primazia dada ao saber, levou-o a recusar a nomeação para cargos importantes na Ordem Dominicana e no Arcepispado de Nápoles, como que reconhecendo a incompatibilidade entre uma vida dedicada ao conhecimento e uma vida preenchida com cargos de direcção e gestão. Nesse aspecto, Tomás de Aquino foi o protótipo do intelectual e só teve paralelo em Aristóteles, cujo pensamento, tanto o influenciou. A Obra Na Suma Teológica, Tomás aperfeiçoa o método escolástico, levando-o ao apogeu. Em primeiro lugar, Tomás anuncia um tópico principal, sob a forma de questão para análise, interpretação e disputa. Cada questão é abordada sob a forma de várias teses, as quais são objecto de discussão, com o objectivo de mostrar que, de todas as teses, apenas uma é verdadeira. Neste processo de análise e discussão das teses, Tomás faz uso de uma grande manancial de citações e referências, dando a palavra a todos os autores com obra escrita sobre o assunto. Depois de comparar e discutir as interpretações dos vários autores, Aquino apresenta a sua tese e demonstra a sua superioridade, em relação às outras posições. O método escolástico, tal como foi
desenvolvido por Aquino, tem muito pouco a ver com a caricatura que dele quiseram fazer alguns autores iluministas dos séculos XVIII e XIX, ansiosos por substituírem a influência da Igreja Católica, na educação e na cultura, pelo Estado laico e pela escola pública. A escolástica aquiniana, tal como é desenvolvida na Suma Contra os Gentios e na Suma Teológica, constitui uma das maiores empresas intelectuais de sempre, no domínio das Humanidades, pois ela é o produto de uma vida inteira dedicada à pesquisa intelectual, marcada pela necessidade imperiosa de enfrentar todas as grandes questões que se colocavam ao Homem, no século XIII, e dar-lhes respostas. E que respostas, Aquino foi capaz de dar! Para cada questão, Aquino encara todas as posições conhecidas do seu tempo, dá-lhes voz e, de seguida, procede à sua crítica, para, finalmente, apresentar e defender as suas teses e soluções. Há, no método escolástico de Aquino um paralelo com o método de Aristóteles. Basta lembrar que o estagirita, quando pretendia analisar e discutir um problema, começava sempre por apresentar as teses dos autores que surgiram antes dele, para, de seguida, as criticar e refutar, criando as condições para apresentar e defender a superioridade das suas teses. Com este método de trabalho, Aquino envolveu-se em conversações intelectuais com todos os mestres do seu tempo e com a maior parte dos que o precederam. Por feliz acaso, Aquino teve conhecimento das traduções das obras de Aristóteles, principalmente as que chegaram até ele, graças ao trabalho de Boécio e dos comentários às obras do estagirita, por parte dos intelectuais judeus e islâmicos dos séculos XI e XII. Embora, Aquino não tivesse lido Aristóteles em grego, foi capaz de proceder à exegese e comentário da sua obra de uma forma muito mais profunda e completa do que o tinham feito os comentadores islâmicos, um século antes. Esta empresa intelectual é tanto mais digna de apreço, quanto se sabe que Aquino teve de lutar contra a preponderância intelectual das concepções agostinianas e neoplatónicas, as quais gozavam, ainda no século XIII, da primazia nos planos de estudos das Artes Liberais nas Universidades, sobretudo na Filosofia e na Teologia. Os conflitos por que passou a Universidade de Paris, no século XIII, nos quais Aquino teve oportunidade de participar, como defensor de uma nova concepção cristã, ancorada filosoficamente no pensamento aristotélico, foram episódios marcantes do combate cultural entre essas duas tradições, que Aquino seria capaz de sintetizar de forma altamente inovadora e criativa. E essa nova síntese, a que se pode dar, muito justamente, o nome de tomismo, foi capaz de influenciar os curricula universitários durante mais de três séculos, até que o racionalismo cartesiano abriu, neles, as primeiras brechas. Contudo, a capacidade criativa do tomismo permaneceu incólume até hoje, sobrevivendo às críticas do iluminismo enciclopedista, nos séculos XVIII e XIX, e à corrosão imposta pela genealogia pós-nitzscheana das correntes pós-modernas. A resistência do tomismo à crítica iluminista e à corrosão pós-moderna, manifesta na sua permanência viva na actualidade, é a prova da sua enorme vitalidade intelectual. O que é mais admirável na empresa intelectual de Aquino - provavelmente a mais admirável obra filosófica da História, após Platão e Aristóteles - não são apenas as muitas milhares de páginas que ele escreveu, numa vida tão curta, as quais permanecem actuais, mas sobretudo o facto de ele ter criado uma comunidade intelectual para si próprio e para todos aqueles que têm tido o privilégio de o ler, numa época em que era tão difícil a comunicação. Todo o pensamento ético de Aquino radica na aceitação dos princípios cristãos, através da razão e da fé, em perfeita harmonia, num processo de clarificação dos conceitos e procura de significados, para fazer da escuridão, luz e da confusão, clareza. Com esse processo, Tomás de Aquino procura estudar o lugar e a natureza dos seres humanos na ordem cósmica criada por Deus. Em ordem a solucionar esse problema,
procura respostas para as seguintes questões: Como podemos descobrir uma verdade? Como pode a pessoa ordenar a sua vida em função do Bem? Consciente de que a ética deve ser fundada no conhecimento teológico e no conhecimento filosófico, na fé e na razão, Aquino procura conciliar a visão aristotélica com o conhecimento profético e revelado dos Evangelhos. O caminho da verdade passa tanto pela razão como pela fé. É nesta posição radical que Aquino se afasta da tradição agostiniana que via na fé e na graça o único caminho da verdade. A razão e a fé são, para Aquino, caminhos complementares para a verdade. A razão lida com as realidades físicas do mundo natural e a verdade, descoberta pela razão, é a verdade acerca deste mundo. O conhecimento racional ajudanos a conhecer algumas características de Deus, mas só iluminado pela fé nos permite encontrá-Lo. A fé, mediada pela Igreja, lida com as realidades sobrenaturais e, por isso, a verdade da fé é, principalmente, uma verdade revelada, inacessível à razão sem a participação da fé. As verdades reveladas pela fé, e as verdades descobertas pela razão, não podem contradizer-se (1). Para Aquino, há duas formas de ser: o natural e o sobrenatural. "O primeiro é contingente e é, em termos aristotélicos, um composto dinâmico de matéria e forma. É ordenado hierarquicamente, da matéria inanimada às plantas, dos animais aos seres humanos. Cada um dos níveis mais baixos do ser ( e Tomás não hesita em pensar em termos de baixo e alto) é uma preparação para o mais alto, o qual, contudo, está separado do mais baixo, por uma descontinuidade real. Nada nesta ordem do mundo natural criado teria existido sem Deus. Nada neste mundo contingente continuaria a existir sem Deus, o Ser necessário. Nada nestes graus hierárquicos do ser teria valor sem a direcção de Deus, o Ser-valor perfeito" (2). Aquino retoma o conceito de ser humano desenvolvido por Aristóteles, mas adapta-o à verdade revelada da Bíblia. Como é sabido, para o estagirita, estão presentes três níveis na vida humana: o vegetativo, responsável pela nutrição e reprodução; o animal, onde se alojam as características que nos permitem o movimento e a percepção sensorial; o racional, com as respectivas funções intelectuais da memória, imaginação, concepção e juízo. Estes níveis formam uma unidade, na qual os mais baixos contribuem para o desenvolvimento das actividades mais elevadas. Quer isto dizer que a memória, a imaginação e o raciocínio, para se exercerem, carecem das actividades sensoriais que lhes fornecem os materiais da realidade. A vontade depende, igualmente, dos materiais fornecidos pelo nível animal, composto pelos instintos, apetites, desejos e emoções. Quando o nível animal é guiado pela razão, isto é, obedece à ordem estabelecida pelo intelecto, estão criadas as condições para uma vida moral correcta. Esta visão da unidade intelecto/corpo e dos três níveis da vida humana é profundamente aristotélica e é bastante estranha à concepção tradicional, vigente nos curricula das Artes Liberais das Universidades do século XIII, os quais estavam, ainda, impregnados, da visão agostiniana da independência da vontade e da alma face à realidade sensorial. Tomás de Aquino procede a uma inteligente síntese da concepção aristotélica com a concepção cristã, incorporando e ultrapassando a visão agostiniana da separação do corpo e da alma. "A vida humana é uma unidade da alma e do corpo. A alma é o primeiro princípio da vida, a qual não pode pertencer às coisas materiais, uma vez que, se pertencesse, toda a matéria seria viva. A alma de cada indivíduo é incorpórea, e, porque o indivíduo é real, a alma é subsistente. O intelecto é a alma, embora este intelecto deva ser concebido como a totalidade e a unidade, quer dizer, como a fonte de todas as actividades intelectuais e não apenas da razão teórica. Tal união da alma com o corpo constitui a vida real da pessoa. A alma não está sepultada num corpo, mas sim dotada de um corpo e tem um destino eterno" (3).
A ética aquiniana é eminentemente teleológica. Aquilo que todos os seres humanos procuram é a felicidade, uma conceito polissémico, cuja complexidade semântica o filósofo enuncia nos seguintes termos: "é uma certa completude, e uma vez que diferentes espécies de coisas estão equipadas com vários graus de perfeição, o termo admite vários significados" (4). A felicidade exige uma finalidade última apropriada, isto é, uma finalidade iluminada pelo Bem. À semelhança de Aristóteles, na Ética a Nicómaco, Aquino defende que só pode haver uma única finalidade última. Embora haja muitas finalidades que podem contribuir para a finalidade última, a verdade é que as riquezas, a honra, a fama, o poder, a saúde e os prazeres dos sentidos, sendo coisas boas, não são finalidades últimas. Senão repare-se: uma pessoa pode usar o poder para oprimir os outros, a saúde para matar um inocente ou as riquezas para explorar o seu semelhante. Podíamos, ainda, perguntar: como é que foi criada a riqueza? Como é que se adquiriu a honra? Como é que se conquistou a fama? Como é que se conquistou o poder? Aquino ultrapassa este paradoxo, afirmando que, esses bens só são elementos constituintes da felicidade, quando são ordenados correctamente em função da razão e da fé. Quais são, então, as características que tornam a felicidade possível? A primeira condição é a existência de uma vontade boa, isto é, correctamente orientada, ordenada e controlada pela razão e pela fé. A compreensão e o prazer, não sendo prérequisitos, andam associados à felicidade, pois os amigos, os bens materiais essenciais à vida e a saúde são necessários à felicidade, mas não são suficientes. O realismo prático de Aquino é particularmente evidente na sua teoria da acção. Para Aquino, o ser humano age sempre para atingir um fim e todo o acto humano possui uma determinada estrutura lógica.
Espírito 1. Percepção
3. Juízo 5. Deliberação 7. Decisão 9. Comando
A Estrutura do Acto Humano (5) Acto Vontade 2. Desejo Actividade Imanente em Ordem de Intenção Acerca de uma Finalidade Acerca dos Meios 4. Intenção Acerca dos Meios 6. Consentimento Acção Prática em Ordem 8. Escolha à Execução 11. Performance 10. Aplicação 12. Finalização
A estrutura do acto humano, tal como é apresentada por Aquino, exige um envolvimento profundo, tanto do intelecto como da vontade, isto é, do conhecimento e do afecto. Por outro lado, cada estádio do acto humano pode falhar ou ser bem sucedido. Em terceiro lugar, para um acto ser considerado moral ou imoral, deve ser voluntário. O que é um acto voluntário? Para Aquino, tal como para Aristóteles, um acto voluntário é aquele em que o sujeito está na posse das suas faculdades para poder deliberar e escolher em conformidade. Só um ser humano capaz de deliberar e escolher é capaz de actos voluntários. Um acto forçado ou exercido sem o conhecimento da sua finalidade não pode ser considerado um acto verdadeiramente voluntário. Para que um acto humano possa ser objecto de apreço ou de censura, o acto tem de ser voluntário, não podendo, por isso, ser determinado compulsivamente por uma força exterior ao sujeito. Embora a fonte da sua teoria do acto moral seja profundamente aristotélica, Aquino deu-lhe um sentido ligeiramente diferente. Para Aristóteles, o acto moral
depende do conhecimento e da vontade. Para Aquino, depende, também, do afecto, ou seja, do amor. A vontade funciona como o detonador da vida moral. É o órgão excecutivo. O intelecto é o órgão legislativo. O amor constitui um impulso para o objecto, mas o conhecimento clarifica o amor. Segundo Aquino, todo o ser humano tem a faculdade de distinguir o bem do mal, tal como é possível separar a verdade do erro. Esta faculdade é denominada pelo filósofo de "synderesis". Para além disso, todos os seres humanos têm a faculdade de distinguir entre bens particulares e males particulares. Aquino chama a esta faculdade de "conscientia". Esta faculdade desenvolve-se com o tempo e com a experiência. Se todos os seres humanos possuem estas faculdades, então é porque tem de haver um padrão objectivo de avaliação dos actos morais. Esse padrão objectivo é a "Lei Eterna", da qual parte a "Lei Natural". Para Aquino, a bondade de um acto humano depende da sua conformidade à "Lei Eterna", pois quando um acto humano se dirige para um fim que respeita a ordem racional e a ordem da Lei Eterna, então é um acto correcto, mas quando não respeita, então surge o pecado (6). É a partir da Lei Eterna, criada por Deus e plasmada nas Escrituras, que é possível deduzir os vários tipos de leis. A lei natural define os termos da acção racional. Quando um acto moral respeita a lei natural, podemos dizer que o acto é moral. Quando não respeita, estamos perante um acto imoral. As leis humanas, quando justas, respeitam a lei natural, e podem assumir o carácter de leis civis (direito positivo) e costumes. As leis civis são legítimas sempre que obedecem à lei natural, partem da iniciativa das autoridades com competência para cuidarem da comunidade e visam o bem comum. Para se compreender, correctamente, a teoria da virtude, em Aquino, é preciso estabelecer a diferença entre bens interiores e bens exteriores. A principal característica dos bens exteriores ( riqueza, fama e poder) é que são sempre propriedade de alguém. Quando o seu possuidor os divide com outras pessoas, fica automaticamente com menos. Os bens exteriores são, por isso, objectos de competição e uma comunidade, interessada apenas na aquisição de bens exteriores, nunca pode aspirar à virtude. Os bens interiores, (conhecimento, sabedoria, inteligência, prudência, temperança, justiça, fé, esperança e caridade), pelo contrário, nunca são excessivos e quanto mais bens interiores eu tiver mais benefícios posso dar à minha comunidade (7). Com esta distinção, Aquino está apto a dar a sua definição de virtude, a qual, como se verá, em muito se assemelha à definição dada por Aristóteles: uma virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício tende a tornar-nos capazes de conseguir os bens interiores. A ausência da virtude impossibilita-nos de adquirir os bens interiores. Nas sociedades que sobrevalorizam os bens exteriores, as virtudes tendem a desaparecer. Num certo sentido, é o que acontece nas modernas sociedades tecnologicamente e materialmente desenvolvidas do Ocidente. O vazio espiritual que ameaça afogar as sociedades actuais do Ocidente num utilitarismo sem virtude é fruto da incapacidade para valorizar os bens interiores. Esse vazio não é mais do que a ausência da finalidade última (do "telos" aristotélico). Quanto mais vazio se está de bens interiores mais se compete pela aquisição dos bens exteriores (riqueza, fama e poder). É este consumismo desenfreado, fruto da falta de bens interiores, que explica a enorme dependência dos tóxicos e dos bens materiais supérfluos, por parte do Homem contemporâneo. Se aceitarmos que se é tanto mais livre quanto melhor se for capaz de ordenar e controlar as necessidades, então estamos em condições de avaliar a angustiante falta de liberdade do Homem contemporâneo. Incapaz de resistir ao continuado e vertiginoso acréscimo de falsas necessidades, o Homem contemporâneo vive na ilusão da liberdade, num simulacro de independência e de autonomia e numa
fuga para a frente na demanda de cada vez mais direitos sem o ónus das correspondentes obrigações e deveres. Incapaz de colocar a sua vontade e os seus apetites, constantemente manipulados e excitados pelos fabricantes de falsas necessidades, sob a dependência e o controlo da razão, o Homem contemporâneo vai perdendo a noção do que é a integridade e vai afastando-se, cada vez mais, da verdadeira felicidade. À medida que se afasta da virtude e dos bens interiores, o Homem contemporâneo, e as suas instituições, vão-se tornando mais corruptos, mais manipuláveis e menos livres. À medida que o Homem contemporâneo reduz a sua imersão comunitária, quebrando os laços que o ligam à sua comunidade e à tradição cultural que ajudou a formar a sua identidade pessoal, abre espaço para a crescente intervenção do Estado e das instâncias burocráticas em todos os espaços da sua vida. Ao contrário da concepção aquiniana de Homem, a qual vê o ser humano profundamento ligado à sua comunidade e à sua tradição cultural e encara a vida humana como um todo e uma unidade inseparável, a moderna concepção individualista de Homem espartilha a vida humana em vários segmentos, cada um dos quais com as suas normas, papéis e comportamentos. Essa atomização obriga a uma crescente regulamentação da vida humana, tendo em conta os diferentes papéis que se espera que o Homem desempenhe nas diversas esferas em que divide e espartilha a sua vida. É assim que, na sociedade moderna, "o trabalho é separado do tempo livre, a vida privada da vida pública, aquilo que é profissional daquilo que é pessoal. Assim, tanto a infância como a velhice foram arrancadas do resto da vida humana e transformadas em distintos domínios" (8). O iluminismo enciclopedista, e em particular a ética utilitarista e empiricista de John Locke e de David Hume, levaram o pensamento moderno a olhar para o Homem de uma forma atomista e a analisar a complexidade das acções humanas em termos dos seus componentes. Esta atomização da vida humana conduziu à liquidação do "self" e reduziu o espaço de afirmação de uma ética das virtudes, tal como Aristóteles e Tomás de Aquino propõem. Enquanto Aquino olha para o indivíduo como um ser humano inseparável dos laços comunitários e de uma determinada herança cultural, a ética moderna, nomeadamente a ética kantiana, vê-o de forma isolada e encara-o como um sujeito moral autónomo, capaz de tomar decisões racionais, libertas do contexto, da herança cultural e das circunstâncias. Para Aquino, não é possível separar a identidade pessoal de cada um da sua identidade social e histórica. A ética kantiana julga poder fazê-lo. Para Tomás de Aquino, aquilo que é bom para mim, tem de ser, também, bom para a minha família, para a minha comunidade e para a minha nação. É impossível haver uma noção de vida boa para mim que colida com a noção de vida boa para a minha família e para a minha comunidade. Enquanto Aquino realça os laços de continuidade e de pertença, a ética kantiana acentua a autonomia do sujeito moral. É, por isso, que, para o tomismo, a educação do carácter é inseparável da imersão numa tradição. Do ponto de vista do individualismo moderno, eu sou aquilo que escolho ser. Na concepção aquiniana, a história da minha vida é sempre dependente da história das comunidades (família, clã, tribo ou nação) a quem eu devo a minha identidade. A posse de uma identidade pessoal coincide com a posse de uma identidade social e histórica. Para a ética cristã prémoderna, a pessoa é tanto mais livre quanto mais confortável se sentir na sua comunidade e com a sua herança, e tanto menos livre, quanto mais separada estiver da comunidade. Daí que a excomunhão fosse considerada uma pena mais pesada do que a própria prisão. E isto é válido tanto para a tradição cristã como para a tradição judaica ou grega. Quando a comunidade judaica de Amsterdão resolveu excomungar o filósofo Espinosa, ele ficou isolado e separado, não só da sua tradição, mas também, de todos os laços comunitários, tendo de sair da cidade, para sempre. Quando Sócrates optou por
enfrentar a pena de morte, em vez da fuga de Atenas, tão laboriosamente preparada pelos seus amigos, fê-lo, porque considerou a sua separação definitiva da comunidade uma pena maior do que a morte e porque considerava ser preferível sofrer uma injustiça do que cometer uma injustiça. A definição de virtude, proposta por Aquino, faz-nos lembrar o paradoxo enunciado, por Platão, no Meno. Nesse diálogo, Platão faz-nos crer que para podermos apreciar as virtudes, nomeadamente a justiça, temos de ser já, em certa medida, virtuosos. Então, a virtude só pode ser ensinada a quem já a possuir, pelo menos em parte. Quem não é virtuoso, dificilmente pode aprender a sê-lo. Se a virtude nos torna capazes de adquirir os bens interiores e se estes são necessários para a aquisição da virtude, ficamos perante o paradoxo evidenciado, por Platão, no Meno. Para Aquino, como para Aristóteles, as virtudes são componentes essenciais de qualquer prática que integre os bens interiores. As virtudes comuns aos dois filósofos são a coragem, a justiça, a prudência e a temperança. Tomás de Aquino, profundamente devedor da tradição cristã, acrescenta-lhe as virtudes teologais da caridade, da fé e da esperança. A caridade é uma virtude estranha a Aristóteles e a toda a Grécia Clássica. Implica saber perdoar quem nos ofende. A tábua de virtudes de Aquino inclui, ainda, a paciência e a humildade. A virtude da paciência não é mais do que saber aguardar cuidadosamente e sem queixume. Ter paciência é ser capaz de esperar que a dor passe ou que o bem chegue. A humildade é uma virtude tipicamente medieval e completamente estranha a Aristóteles. Ser humilde é reconhecer a nossa pequenez e impotência face à omnipotência e omnisciência de Deus. Poderíamos acrescentar, ainda, a pureza e a integridade, duas qualidades cristãs igualmente presentes na ética de Tomás de Aquino. A ausência destas virtudes essenciais na linguagem contemporânea é o reflexo da sua supressão nas narrativas individuais e comunitárias do Homem moderno. Quando as sociedades esquecem e ignoram a tradição é porque passaram a desvalorizar os bens interiores e quando isso acontece deixa de haver espaço para as virtudes. É, por isso, que a paciência, a humildade, a pureza, a sinceridade e a integridade passaram a ser olhadas com escárnio e desprezo pelo discurso ético dominante, marcado pelo individualismo, utilitarismo e atomização do "self". Na verdade, a ausência das virtudes na linguagem e nas narrativas modernas não é mais do que o reflexo da sua supressão na vida das sociedades tecnologicamente e materialmente desenvolvidas do Ocidente (9). Para Tomás de Aquino, todo o acto moralmente bom deve possuir quatro características: 1) possuir uma realidade activa; 2) visar um objectivo apropriado; 3) ser adequado às circunstâncias; 4) visar um fim que não contrarie a Lei Natural. A pessoa moral é aquela que é capaz de acções moralmente boas. Não é suficiente a detenção de virtudes intelectuais. Ser bom não é só possuir um intelecto prático e especulativo perfeito. É preciso, também, possuir as virtudes morais, capazes de ordenar e aperfeiçoar os níveis vegetativo e animal da vida humana. As virtude morais podem existir sem a sabedoria, mas não na ausência da prudência. As virtude morais são caracterizadas por uma disposição recta, uma habilidade para fazer a escolha certa e a tendência para fazer o bem. É agora possível sintetizar o pensamento ético de Tomás de Aquino. Em primeiro lugar, a defesa da unidade do ser humano e da inter-relação entre a identidade pessoal e a identidade social e histórica. Em segundo lugar, a ideia de que o verdadeiro significado da vida humana é espiritual. Em terceiro, o lugar central ocupado por Jesus Cristo, pelos Evangelhos e pela Igreja na forma como cada pessoa ordena a sua vida. Por último, a noção de que a vida boa depende do reconhecimento de uma realidade espiritual superior e na livre aceitação da sua autoridade.
Resulta deste quadro teórico um conjunto de teses sobre o papel do indivíduo na família e na comunidade. A família é vista como a forma original de vida. Constitui um grupo perfeito, baseado na Lei Natural. A finalidade da família é gerar, proteger e educar os filhos e este propósito conduz à defesa da monogamia, estabilidade do casamento, propriedade privada e herança. Toda a propriedade pertence a Deus. Cada um é apenas usufrutuário da propriedade, devendo tomar bem conta dela sem ignorar a sua função social. Embora o lucro seja legítimo, a especulação financeira constitui uma actividade imprópria. Ganhar dinheiro, através do empréstimo com juros, é considerado, à luz do tomismo, como moralmente inaceitável. A finalidade do Estado é manter a paz e a ordem. Os súbditos devem obediência à autoridade estatal sempre que essa autoridade se exerce de forma legítima e justa. Quando as leis positivas contrariam a Lei Natural, o indivíduo está moralmente autorizado a desobedecer. Quando a autoridade estatal se exerce por meios ilegítimos, assumindo um carácter tirânico, justifica-se a desobediência civil e a revolta, desde que haja a possibilidade de a rebelião conduzir a uma ordem política e social justa. Notas 1) Ashby, W. (1997). A Comprehensive History of Western Ethics: What do We Believe?. Amherst: Prometheus Books 2) Idem, p. 230 3) Idem, p. 231 4) Tomás de Aquino (1964). Summa Teologiae. (Tradução de Thomas Gilby). Nova Iorque: McGraw-Hill, p. 65 5) Idem, p. 211 6) ibid, 18: 105 7) Ver a este propósito, MacIntyre, A (1984). After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press e, também, MacIntyre, A (1990). Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopedia, Genealogy and Tradition. Notre Dame: University of Notre Dame Press 8) MacIntyre, A (1984). After Virtue. Notre Dame: Notre Dame University Press, p. 204 9) A opção pela designação de "sociedades tecnologicamente e materialmente desenvolvidas do Ocidente" parece-me preferível às designações habituais de "sociedades democráticas" ou "sociedades liberais". Dessa forma, evita-se a referência ao regime político ou ao sistema económico, uma vez que é possível conciliar o desenvolvimento espiritual e ético com a democracia e o liberalismo. O que acontece em grande parte das sociedades tecnologicamente e materialmente desenvolvidas do Ocidente é que o progresso tecnológico e material não foi acompanhado, antes pelo contrário, pelo desenvolvimento espiritual. Se aplicarmos a concepção tomista das virtudes e dos bens interiores ao estudo da decadência espiritual das sociedades do Ocidente, verificamos que o fascínio pelos bens
exteriores, típico dessas sociedades, as impede de colocar, no devido lugar, a importância que os bens interiores têm para a vida boa e para a felicidade.