Sono profundo
Aquele sacolejo. Sim, aquele eterno sacolejo lento, suave, constante, infindável. Quando Matheus se dava por si, ele já estava engatado no sono e o carro na quarta marcha. O motor mal roncava, pois ele fazia questão de escolher os carros mais silenciosos do mercado. Ali, aquele carro é antigo, não vai rolar. Vamos esperar o próximo. É, esse também. Muito barulho externo e pouca vedação. Opa, esse! Sim, sim! Esse é dos bons, eu lembro. Já andei num parecido uma vez. A madrugada do Rio de Janeiro também era bem silenciosa e totalmente propícia para essa vontade gritante de dormir que Matheus carregava como uma cruz. Seu apartamento na esquina da Carlos Góis com a General San Martin também era extremamente propício. Uma volta saindo pelo Leblon, Gávea, subindo Lagoa, Rebouças, Tijuca, volta pela Presidente Vargas, desce a Rio Branco e contorna o Flamengo, Botafogo, Copacabana, Ipanema e chega no Leblon outra vez. Matheus gastava uma quantidade significante de dinheiro, pelo menos uma vez por semana, pois esse trajeto, feito de táxi, não saía pouco nas altas bandeiradas do taxímetro carioca. Os taxistas sempre olhavam com uma cara desconfiada quando ele indicava, rapidamente, o caminho a ser feito e já pagava metade da corrida em adiantamento. A outra metade ele dava uns 40 minutos depois, dependendo da hora e do trânsito. - O senhor quer o quê? – o taxista indagou. – Você quer que eu gaste tempo fazendo esse trajeto todo só pra você dormir? - Exatamente. Matheus já nem discutia com os taxistas. Ele sabia que discutir com taxista no Rio de Janeiro era perda de tempo. Ou eles tentariam estar sempre certos ou fariam questão de alongar a corrida para provar que você deveria ter dado razão a eles antes. Era o táxi sair da frente do prédio, um sacolejo, dois sacolejos, tr--Dormiu.
Ele ainda iria tentar entender por que aquilo era tão confortável. Por que estar num carro em movimento era uma das poucas coisas que o fazia dormir? Não por menos, Matheus tinha uma insônia fenomenal. Será que era o café? Mas ele precisava do café, diariamente! Não haveria outra coisa para poder suprir sua falta de energia de noites mal dormidas, ou melhor, de noites em claro. Se fosse realmente o café, isso já era um ciclo vicioso e ele não fazia ideia de onde era a saída. Os taxistas costumavam olhar fixamente pelo retrovisor, tentando entender o que estava acontecendo. Nada acontecia: era só Matheus dormindo feito um anjo; a cabeça apoiada no encosto, sem roncar, sem babar, sem fazer qualquer barulho, apenas o peito subindo e descendo. Matheus jamais iria entender a mágica, mas nenhum taxista tentou lhe passar a perna uma vez sequer. Será que a inocência do sono profundo deixava alguns deles desestabilizados? Alguns tinham certeza que era filmagem para algum quadro jornalístico da TV, para testar a boa-fé das pessoas. Não importava, Matheus só queria dormir. Às vezes ele pedia uma rota mais longa, dependendo de quão cansado estava. Uma vez, pediu para ir até a Barra, voltar pelo RioCentro, subir a Linha Amarela e contornar pela Linha Vermelha, de volta para o Centro do Rio e descer pelo Flamengo. Nesse dia ele teve que fechar um contrato bem difícil na empresa que trabalhava. - Tá sabendo desse novo aplicativo? – Jorge perguntou, durante um almoço de comemoração de aniversário de algumas pessoas da empresa na qual ambos trabalhavam. – O Uber. Dizem que veio para acabar com os taxistas. Não!, Matheus pensou, não! Os taxistas não podem acabar. Onde eu vou dormir? Eu preciso dormir! - Eles não puxam papo – Jorge continuou –, não tentam burlar nada. São maneiros. Eu peguei um essa semana, o cara me ofereceu água. O banco era muito confortável e o cara ainda insistiu em abrir a porta no fim da corrida. Sultão! E foi então que numa fatídica noite de inverno, sem conseguir pegar um táxi de silêncio moderado, que Matheus abriu o Uber pela primeira vez. Ele precisava dormir o mais rápido possível, senão iria enlouquecer.
Selecionou o destino e viu que seria complicado traçar uma rota, então colocou para irem até Santa Cruz. Lá, pediria para ser acordado e voltaria. Se o serviço fosse bom mesmo, o motorista do Uber nunca iria reclamar. - Boa noite, senhor. Aceita uma água? Matheus negou e disse que só precisava ir. O motorista não trocou uma palavra, em momento algum, e Matheus nunca havia dormido em um banco tão confortável em todas as suas viagens de táxi. Dizem que aquele sedan preto de vidros fumês ainda ronda o Rio de Janeiro, à noite, com um motorista e um passageiro no banco de trás. Eles nunca param. Nunca parecem chegar a qualquer destino. Acho que o motorista não trocou qualquer palavra com Matheus.