Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

Corpos escritos na internet: Representações do corpo em blogs Marta Cristina Friederichs (FACED/UFRGS) Blogs; Corpo; Gênero ST 53 - Gênero e sexualidade na escola e na mídia. Até pouco tempo atrás, para mim, o corpo significava músculos, pele, ossos, gorduras, órgãos, articulações que meus olhos e mãos de fisioterapeuta estão acostumados a observar, tocar, manipular, reabilitar. Corpos materializados através da sua anatomia, que a fisiologia encarregava-se de explicar. Entretanto, através do atendimento dos/as meus/inhas pacientes e de diversas leituras essa visão essencialista do corpo foi sendo perturbada e hoje, quando olho os corpos, não é apenas a morfologia que está em jogo. Os corpos são construídos, educados e significados na cultura da qual fazem parte. Mais do que sua anatomia, eles são também os adereços, as roupas, a maquiagem que os decoram, a “linguagem” que os constituem e significam, que definem o que é ou não normal, o que pode ser considerado belo (GOELLNER, 2003). Processos de significação e relações de poder moldam os corpos ensinando as posições sociais a serem desempenhadas, as formas de ser e viver os corpos. Basta consultar um site, ligar a televisão, abrir o jornal, olhar uma revista ou ler um blog que haverão corpos representados através de imagens, textos, sons. Por articularem saberes, ensinarem formas de ser e estar no mundo e de experimentar e significar o corpo, mostrarem posições sociais para o homem e para a mulher desempenhar, os blogs podem ser pensados como artefatos culturais. Os blogs são páginas pessoais na internet, muito mais dinâmicas que os sites. Apresentam grande facilidade para serem criados e/ou acessados, assim como, rapidez na hora de veicular saberes e representações na internet. Possuem baixo ou nenhum custo para a manutenção da página, uma vez que a maior parte dos diretórios que hospedam os blogs não cobra para manter a página on line. Portanto, tornaram-se bastante populares desde o final da década de 1990. Hoje, estima-se que existam aproximadamente seis milhões de blogs veiculados por brasileiros/as na internet. Há os que tratam de política, de futebol, de culinária, de poesias, dentre outros, mas há também aqueles onde a blogueira1 escreve sobre si e se assemelham ao diário íntimo, são blogs desse tipo que me interessam. Pensando os blogs como um espaço no qual se exercem pedagogias culturais. Assim, lanço mão de recortes que fiz em trechos de três blogs, escritos por mulheres brasileiras, a fim de comentar as

2 representações de corpo nas suas articulações com o gênero e a sexualidade. Para tanto, aproximei-me da análise cultural, dos estudos feministas e dos estudos de gênero, numa perspectiva pós-estruturalista de análise. Porém, antes, traço breves considerações sobre a internet, espaço no qual os blogs são publicados.

Login A série de mudanças culturais e tecnológicas que possibilitaram que a escrita de si no diário de papel ganhasse uma versão na rede relaciona-se ao momento em que o computador conectado à internet passou a ocupar um lugar importante no ambiente individualizado do trabalho ou no espaço privado dos lares, garantindo à/ao usuária/o o passaporte para entrar no ciberespaço e ali contar seu cotidiano, para alguns/mas (ou muitos/as) leitores/as na rede. A internet aceita que qualquer sujeito possa difundir nela informações e saberes, sem levar em conta o sexo, a etnia, a sexualidade, a idade, a condição socioeconômica. Porém, é fundamental pensar que a internet não está distribuída de maneira igualitária em nosso país e que ainda são poucas as pessoas com acesso a rede. Lucília Romão (2006) nos lembra que por mais heterogênea que a internet possa parecer, não são todos os discursos que estão presentes na rede. O que indica um direcionamento feito, geralmente, pelo/a próprio/a internauta, na seleção do que será exibido ou acessado, assim como pela blogueira que determina o que será publicado na sua página, processo que não diz respeito apenas ao tamanho e extensão de arquivos, mas que é engendrado pelo sujeito que legitima certas verdades, apagando outras. Tal questão pode ser pensada como política e ideológica. Dessa forma, mesmo que não se perceba como tal, a escrita da blogueira pode ser considerada como um “ato político”, se pensarmos que as blogueiras lançam mão de um espaço público (que é a internet) e ali se assumem como mulheres. Há muitos anos, as mulheres vêm lutando para que a história seja narrada levando-se em conta as suas experiências, invisibilizadas das disciplinas do conhecimento e da arte ocidental. Com isso, buscam quebrar a hegemonia do discurso que alicerçou a sociedade patriarcal e instituiu a biologia como fundante das diferenças sociais entre os sexos, responsável por binarismos e hierarquias. Numa entrevista concedida à Carmem Rial, Mara Coelho Lago e Miriam Pillar Rossi, em 2004, a francesa Michéle Perrand2 chama atenção ao fato de que nascemos em uma sociedade definida pelas relações de gênero e passamos a atuar na produção e reprodução dessas posições sociais. Para ela, as relações de gênero permitem “mostrar como a dominação masculina resulta de um duplo processo: ‘biologização do social’ e a ‘socialização do biológico’; ou seja, que o social interpretava o sexo biológico, conferindo-lhe um determinado sentido” (p. 681). Nessa escrita contemporânea de si, que sentidos as

3 blogueiras instalam na rede quando falam do seu e de outros corpos? Quais discursos estão em jogo quando os corpos são representados nas narrativas desses blogs? O modo pelo qual os corpos são representados nesses blogs desestabiliza as noções de gênero e sexualidade percebidas como tradicionais?

Mãos, cutículas e esmaltes: apontamentos sobre gênero e sexualidade as comparações que torturam a irmã mais nova de uma lindíssima garota começavam a despontar. Olhava as pernas macias e as mãos de mulher da mais velha e pensava que seus joelhos pontudos e unhas sujas jamais conseguiriam. Esperava a outra sair para entrar num mundo só dela. Sorrateira, ganhava o quarto, mexia nos adornos da penteadeira, fazia festa. [...] Achou também um esmalte, mas não pincelou as unhas porque a cor era forte demais, sua mãe brigaria. Mas, delicadamente, bordou uma quase imperceptível flor na unha do mindinho [...] com aquela poeira toda na cara e um batom que mais fazia parecer uma palhacinha, num instante cansou da brincadeira, "deixa essa coisa toda pra outro dia", deu uma piscadinha pro espelho e voltou a ser menina arteira.(JOANA)3

Muitas vezes, parte-se do preceito que o corpo da mulher “nasce” com “tudo” o que representa o feminino: a delicadeza, a docilidade, a obediência. Esquece-se dos investimentos sociais e culturais que dão forma aos corpos, adestram os gestos. À medida que os sujeitos vão sendo interpelados por processos de diferenciação/identificação, implicados em relações de poder, as identidades sexuais, de gênero, bem como étnicas, de classe e de nacionalidade, ou seja as identidades sociais, vão se constituindo e assim vamos nos identificando com grupos sociais de referência. Contudo, “nada há de simples ou estável nisso tudo” (p. 12), nos lembra Guacira Lopes Louro (1999). Feministas pós-estruturalistas atentam para os discursos oriundos da sociedade ocidental patriarcal que tratam o corpo das mulheres como objetos para o prazer dos homens e significam aspectos da cultura que correspondem ao privado como de domínio das mulheres. Joana fala da “menina” que, com um olhar atento ao seu e a outros corpos, vai tendo percepção das diferenças e deixando-se interpelar por esses discursos que, por articularem e produzirem saberes, vão moldando seu corpo e, nesse caso, sua identidade de gênero. Constituem-se corpos dóceis para as disciplinas que a beleza contemporânea exige. Na narrativa da blogueira, em terceira pessoa, percebemos que é ensinado “à menina” o que fazer para ser linda como sua irmã mais velha. Os cuidados com o corpo, nessa narrativa, aproximam-se da produção de um corpo belo a fim de deixar uma imagem bonita para a posteridade, distanciando-se da preocupação ética em busca de uma estética da existência, a fim de deixar um belo legado. Na sociedade contemporânea, uma mulher “bela” deve saber lançar mão das

4 maravilhas que a indústria de cosméticos promete lhe proporcionar. Então, em busca de uma aparência melhor, investe-se financeiramente na compra de cremes para a face, para o corpo, de maquiagem, de corretivos, de tinturas para os cabelos, produtos para clarear os dentes etc. Georges Vigarello (2006) aponta a beleza física ainda como um atributo do feminino. Mesmo destacando o crescimento da indústria que produz cosméticos direcionados ao consumo dos homens, ressalta que as mulheres permanecem sendo mais cobradas que eles em relação aos cuidados que embelezam seu corpo. Assim como “a menina arteira”, que pisca para o espelho deixando de lado a produção de sua feminilidade, muitos corpos já experimentam atributos de gênero que não eram os esperados para o seu sexo: meninas já disputam com os meninos o espaço das quadras de futebol; mulheres fazem manobras ousadas no trânsito; homens trocam as fraldas e preparam as mamadeiras de seus/uas filhos/as; cresce o número de mulheres na política. No entanto, ainda é mais fácil para as mulheres vivenciarem posições sociais destinadas aos homens do que o contrário. Para um homem, fazer um comentário de um assunto culturalmente instituído como de domínio das mulheres sem pôr em xeque a construção da sua masculinidade nem sempre é fácil. Vejamos o pos 4 de Renata5: “Cena da vida real: Contexto: Gatíssimo liga pra madrasta: - Alô [...] desce aí! [...] - Machucou mesmo? - machuquei, olha aqui, tá tudo doendo, esse dedo aqui então... - hum...mas o pé tá lindo. - rs. - (pega a mão) - acabei de tirar o esmalte, vou fazer unha amanhã de manhã. - mas a cutícula está boa! - ?!!!!!!!!!!!!!!!!!!Come again?! "A cutícula está boa?!"Que tipo de comentário é esse?!!!!! Não, meu filho, isso é brochante...como é brochante!!!!rs No coments [...]”(Renata).

Esmaltes, acetona, batons, maquiagem são parte de um “universo” construído para as mulheres embelezarem seu corpo a fim de deixá-lo sedutor ao olhar dos homens. “Delicadamente” é a palavra que Joana usa para representar o momento de lidar com o esmalte. Observamos a pressa da justificativa de Renata quando Gatíssimo segura a sua mão: “acabei de tirar o esmalte, vou fazer unha amanhã de manhã”. Mãos macias e bem cuidadas, na nossa cultura, são atributos da feminilidade assim como a delicadeza necessária para lixar, tirar a cutícula, pintar as unhas. Sujeito desses discursos, Renata faz uso da expressão “brochante” para demonstrar seu desapontamento com o comentário do Gatíssimo sobre suas cutículas. Num sentido popular, “brochar” significa dizer que o homem não foi capaz de manter a ereção. Considerando que na perspectiva pós-estruturalista a linguagem institui um jeito de conhecer (LOURO, 2004), observo o quanto a linguagem popular utiliza expressões ligadas ao corpo

5 para instituir saberes. A esse respeito, vale lembrar que Jeffrey Weeks (1999) chama atenção ao fato de a linguagem da sexualidade ser derivada da experiência sexual dos homens. O post de Renata leva a pensar também o modo como as relações de gênero aparecem em articulação com o sexo e a sexualidade. É como se, em razão do comentário a respeito das cutículas da moça, a masculinidade, ou seja, o gênero do Gatíssimo devesse ser colocado em xeque ao mesmo tempo em que se questionava sua sexualidade. Em 1991, Michael Warner cunhou o termo heteronormatividade. Ele buscava se referir ao sistema binário que pressupõe dois modelos, dicotômicos, de caracterização sexual baseados na genitália e a partir daí estipulam-se comportamentos esperados para o masculino e o feminino, ancorados na heterossexualidade compulsória. Portanto, este é um conceito que está relacionado com a heterossexualidade como um padrão de sexualidade, com a força de uma norma, próxima do que é supostamente “natural” ser (SANTOS, 2007). A heteronormatividade “atua através de um sistema de relações de poder que produz tanto práticas quanto instituições que, ao assumirem e legitimarem a suposta naturalidade da norma heterossexual e das relações heterossexuais, instituem determinados modos de ser que não precisam estar ditos de forma explícita, mas que operam em distintas redes na cultura (nas relações sociais, nos currículos, nas pedagogias culturais). Enfim, a heterossexualidade está na ordem das coisas” (ibid. p. 05). O comentário do Gatíssimo surpreende Renata que vê perturbada a relação entre sexo, gênero e sexualidade. Como refere Guacira Lopes Louro (1999), na nossa sociedade são feitos vários investimentos na tentativa de assegurar a heterossexualidade que, se tomada como algo biologicamente dado, despensaria essa vigilância sobre os corpos. Então, “meninos e meninas aprendem, também desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem” (ibid., p. 29). Desde o século XVI, delineou-se, na sociedade ocidental, um movimento que foi, lentamente, deslocando o discurso da sexualidade proferido pela Igreja, para outras instâncias. Com a reforma da pedagogia, no século XVIII, e da medicina, no século XIX, a confissão passou a ser utilizada nas relações entre o médico e o/a paciente, entre o pedagogo e seus alunos, entre pais e filhos/as. Assim, a sociedade foi incitada a falar sobre o sexo e uma ciência apoiada nesses discursos foi sendo firmada (FOUCAULT, 2006). A relação sexual, para as mulheres, era destinada como modo de procriação e como forma de proporcionar prazer aos homens, sendo que o seu prazer não era o que interessava. As mulheres eram educadas para serem passivas, sedutoras e submissas aos desejos e vontades dos homens. As transformações sociais, como se sabe, afetam as formas de viver e construir as identidades de gênero e sexuais. A sexualidade, conforme Guacira Lopes Louro (1999), além de uma questão pessoal é social e

6 política. Após a década de 1970, estimuladas pelo Movimento Feminista e Movimento de Gays e Lésbicas, uma série de transformações nos comportamentos sexuais de homens e mulheres passou a ocorrer. Desde então as mulheres experimentam um maior número de parceiros sexuais, bem como, prolongaram sua vida sexual, pois a menopausa deixou de sinalizar o fim da sua vida sexual, como era comum ocorrer até a década de 1960. As novas forma de contracepção (que contribuíram para desvincular a relação sexual da reprodução) e as mudanças nos relacionamentos conjugais contemporâneos oportunizaram à mulher um papel mais ativo e exigente nas formas de se relacionar sexualmente. Hoje, revistas impressas, sites na internet, dentre outros, ensinam “as posições sexuais mais prazerosas”, diversas formas de gozar a sexualidade com ou sem parceiro/a (s). Mulheres falam, mais abertamente, do prazer que experimentam e buscam através do seu corpo. No caso dos blogs, falam para quem acessar a página. “Tenho pena das mulheres que não gozam [...] Desconhecem a meninice dos dedos Que pulam de um mamilo ao outro E brincam de esconde-esconde Sob a chuva de mil estrelas”(Mônica Montone)6

No caso da poesia de Mônica, as mãos das mulheres, muito mais do que “delicadas” e “bem cuidadas”, devem ser precisas na busca de um prazer tão seu.

Referências Bibliográficas FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. V.I, Rio de Janeiro: Graal, 2006. GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In. LOURO, Guacira; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 28-40. GROSSI, Miriam Pillar; LAGO, Mara de Souza; RIAL, Carmen. Relações sociais de sexo e relações de gênero: entrevista com Michéle Ferrand. In. Estudos Feministas. Vol. 13. n.03, set-dez, Florianópolis, 2005, p. 677- 689. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: _____. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 7-34. ________. Conhecer, pesquisar e escrever. 2004 (mimeo). ROMÃO, Lucília. O cavalete, a tela e o branco: introdução à autoria na rede eletrônica. Delta: Documentação em estudos de lingüística teórica e aplicada, v.22, n.2, 2006. SANTOS, Luis Henrique Sacchi. Heteronormatividade e educação. 2007. (no prelo).

7 VIGARELLO, Georges. História da beleza:o corpo e a arte de se embelezar, do renascimento aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: _____. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 7-34. 1

Autora do blog. Entrevista publicada pela Revista de Estudos feministas, Florianópolis, n. 13 v.3, setembro-dezembro, 2005. 3 Joana Rizério é a autora do blog la vien close < http://la-vie-en-close.blogspot.com> e o post é do dia 25/10/2007. Último acesso em 13/02/2008. 4 Texto do blog. 5 Renata é autora do blog Devaneios e desabafos e em 2.11.2007 escreveu aquele post, no qual, muitas vezes refere-se a si como “Madrasta”. Disponível em: < http://dd-devaneiosedesabafos.blogspot.com/>. Último acesso em 13/02/2008. 6 Trecho de um posts do blog Fina Flor, escrito por Mônica Montone. Disponível em :< http://finaflormonicamontone.blogspot.com/2007_04_01_archive.html>. Último acesso 13/05/2008. 2