ISSN 1984-5588
Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Regional Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser
Textos Para Discussão FEE Texto n° 131
Relações internacionais: conceitos básicos e aspectos teóricos
Bruno Mariotto Jubran Ricardo Fagundes Leães Robson Coelho Cardoch Valdez
Porto Alegre, maio de 2015
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL
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Relações internacionais: conceitos básicos e aspectos teóricos Bruno Mariotto Jubran
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Ricardo Fagundes Leães
Mestre em Relações Internacionais e Pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE) Mestre em Ciência Política e Pesquisador da FEE
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Robson Coelho Cardoch Valdez
Mestre em Relações Internacionais e Pesquisador da FEE
Resumo O presente Texto Para Discussão visa a difundir o conhecimento teórico sobre a área de Relações Internacionais. O trabalho, com o objetivo de explicitar os conceitos fundamentais e os principais determinantes teóricos para os seus pesquisadores, está dividido em três seções. Assim, na primeira parte, analisamos as origens desse campo de estudo, recuperando as fontes originais, os autores clássicos e o desenvolvimento histórico que possibilitou e impulsionou o seu surgimento. Em seguida, estudamos o debate teórico das Relações Internacionais, dando centralidade à dualidade realista-liberal, basilar para os pesquisadores dessa matéria. Por fim, na última seção, damos continuidade à discussão teórica, elencando as teorias alternativas às clássicas, algumas das quais, nos últimos anos, têm sido alçadas à condição de “mainstream” das Relações Internacionais, como o marxismo e o construtivismo. Não se pretende, aqui, esgotar as controvérsias sobre o assunto, mas sim levá-las adiante e popularizá-las perante estudiosos de outras áreas das Ciências Sociais.
Palavras-chave: Relações Internacionais; teorias convencionais; teorias alternativas. Abstract This paper aims at publicizing the theoretical knowledge on the field of International Relations. The work, whose goal is to expose the basic concepts and the main theoretical determinants to researchers, is divided into three sections. Firstly, we discuss the origins of this field of study, recapturing the original sources, the classical authors and the historical development which enabled and boosted its emergence. Next, we analyze the theoretical debate of International Relations, focusing on the duality Realism-Liberalism, crucial for researchers on the topic. Finally, in the last section, we continue the theoretical discussion, contrasting the classical views to the alternative theories, some of which have been raised to the condition of mainstream within International Relations in recent years, such as Marxism and Constructivism. We do not intended to exhaust all the controversies surrounding the subject, but rather to take them forward and to make them known to the researchers of other fields of Social Sciences.
Keywords: International Relations; conventional theories; alternative theories. Classificação JEL: N4, Z00. *
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1 Introdução Neste Texto para Discussão, abordaremos algumas das principais questões relacionadas à área de Relações Internacionais (RI), cuja delimitação epistemológica permanece bastante desconhecida mesmo nos círculos acadêmicos. É nosso objetivo, portanto, salientar quais são suas origens, conceitos básicos, fundamentos teóricos e aplicações práticas. Consideramos essa empreitada necessária porque possibilita disseminar as ferramentas de que dispõe o analista de Relações Internacionais. Nessas circunstâncias, o leitor que ainda não está acostumado com os jargões e teorias desse campo do conhecimento terá mais subsídios para se inteirar dos assuntos relativos às RI e para compreender melhor as análises que foram e são feitas a esse respeito. Acreditamos que esse processo pode ser muito útil para favorecer a interdisciplinaridade, indispensável para a avaliação de fenômenos sociais. Este trabalho está dividido em três partes, que abordam paulatinamente os tópicos de Relações Internacionais, desde sua construção epistemológica enquanto disciplina de Ciências Sociais até o seu uso nos dias de hoje. Na primeira, traçamos as fontes básicas das RI, procurando observar quais foram os autores que lhes serviram esteio teórico. Da mesma forma, tratamos de desenvolver as razões históricas pelas quais o campo evoluiu, enfatizando a criação do Estado nacional moderno como sustentáculo do atual sistema internacional. Em seguida, na segunda seção, apresentamos o eixo do debate teórico nas RI, entre realistas e liberais, com o fito de destacar as transformações desta discussão de seu princípio à atualidade. Por fim, examinamos as teorias que se contrapõem à díade realismo/liberalismo, como o marxismo, a teoria da dependência, a teoria crítica e o construtivismo, que também contribuíram significativamente para o debate nas Relações Internacionais.
2 Origens, conceitos básicos e fundamentos teóricos 2.1 O início Levando-se em consideração a centralidade do Estado no debate dos estudos de Relações Internacionais, faz-se necessário entender a evolução teórica acerca desse tema. Nesse sentido, a Ciência Política, de forma geral, concentra sua literatura nos trabalhos de Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau. Pode-se dizer que, de uma forma ou de outra, as teorias das Relações Internacionais utilizam esses autores como base para diversas de suas argumentações, principalmente quando se trata das correntes liberal e realista. Ao trabalhar a ideia de interesse nacional, Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de O Príncipe, defendeu o argumento de que para defender os interesses do Estado, a política não pode submeter-se aos valores morais. É sabido que as ideias de Maquiavel influenciaram profundamente o surgimento e a consolidação do absolutismo europeu. Para Thomas Hobbes (1588-1679), o homem é um ser mau por natureza, que não mede esforços para garantir sua sobrevivência e defender seus interesses. Assim, nessa luta incessante de homem contra homem, a morte é uma ameaça constante à vida dos indivíduos. Partindo-se, então, do medo da morte, surge a necessidade de todos abrirem mão de seus direitos em benefício de um Estado (Leviatã) que garanta paz, segurança e prosperidade. Isso 4
posto, Hobbes utiliza a figura do Leviatã para legitimar o Estado como ator que age em benefício de todos. Discute-se que os postulados de Hobbes embasam os estudos sobre o contrato social. Trabalhando na releitura dos conceitos de Hobbes, John Locke (1632-1704) ponderou sobre os limites ao poder das monarquias absolutistas. Nesse sentido, Locke defende a ideia de que a liberdade não pode ser entendida como o preço a ser pago pela instituição do poder estatal. Nesse caso, ficaria estabelecido o direito da sociedade rebelar-se contra o Estado, pois sua liberdade seria o contraponto ao próprio poder do soberano. É dentro desse contexto que surge a separação entre as esferas públicas e privadas. A partir das ideias de John Locke, Barão de Montesquieu (1689-1755) tratou da separação dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) em sua obra O Espírito das Leis. O contrato social ganhou forma na estrutura de uma democracia representativa. Edificaram-se, então, os pilares do Estado liberal que rivalizaria com o poder absolutista dos reis. Por fim, Jean Jacques Rousseau (1712-78), na contramão do pensamento hobbesiano, embasou seu pensamento na figura do bom selvagem. Enquanto para Thomas Hobbes o homem era um ser mau e egoísta por natureza, inserido em um contexto de anarquia e caos, Rousseau argumentou que, na verdade, o homem é um ser originalmente bom. Desse modo, sua transformação, na figura hobbesiana, dá-se a partir do surgimento da propriedade privada que o leva à violência e escravidão. Para Rousseau, o contrato social ideal seria aquele que a soberania popular, expressa na forma da democracia direta, fosse o pilar principal sobre o qual se estabeleceria o Estado. As ideias de Rousseau são identificadas como embrionárias do pensamento comunista.
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É importante perceber que o debate acerca da legitimação do Estado como instituição gestora de conflitos e interesses domésticos não acontece de forma autônoma em relação aos eventos externos às fronteiras nacionais. Assim, na medida em que os grupos políticos dominantes encontram certo grau de coesão doméstica, a própria manutenção da estrutura do poder estatal torna-se paulatinamente sensível à dinâmica política e comercial no âmbito das relações interestatais. O período de consolidação das monarquias europeias deu-se, então, no contexto da articulação dos agrupamentos humanos em torno de Estados que respondessem por suas demandas políticas, econômicas e sociais. Alcançada a legitimação do poder doméstico, os Estados passaram, em maior ou menor grau, a se projetar internacionalmente, no sentido de garantir recursos que assegurassem sua sobrevivência ou expansão territorial. Essa dinâmica de poder entre os Estados absolutistas europeus fomentou a consolidação do sistema estatal moderno. Na medida em que o Estado absolutista ia sendo substituído pelo Estado liberal (legitimado pela soberania popular), o sistema internacional consolidou-se como palco de luta de interesses nacionais divergentes. Vale ressaltar que o sistema internacional surge antes mesmo da consolidação do capitalismo como um sistema de alcance global. Argumenta-se que, na verdade, o sistema capitalista beneficiou-se das diversas estruturas estatais anteriormente estabelecidas. Desse modo, o processo de acumulação capitalista passou a ser paulatinamente instrumentalizado como recurso de poder nas Relações Internacionais. Ainda que o dinamismo do processo de acumulação capitalista seja, para muitos, a principal fonte de atrito do sistema internacional, vale ressaltar que o ambiente conflituoso entre as potências europeias é anterior ao surgimento do capitalismo. 1
Para uma leitura simples e sistematizada sobre a influência desses pensadores da Ciência Política na formação dos Estados nacionais, ver o Manual do Candidato: política internacional, de Demétrio Magnoli.
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2.2 Sistema internacional, geopolítica e Relações Internacionais Estudos sistêmicos, a partir das dinâmicas e circunstâncias históricas, geográficas, políticas e econômicas do sistema internacional, impulsionaram o surgimento de conceitos e teorias que compõem, hoje, o campo de estudo das Relações Internacionais. Já é de amplo conhecimento que o atual sistema internacional é fruto dos desdobramentos da Guerra dos Trinta Anos (1618-48) e dos Tratados de Vestefália, que puseram fim ao conflito. De 1648 a 1792, o sistema de Estados europeus consolidou-se com uma dinâmica própria de equilíbrio de poder. No entanto, as guerras impulsionadas pela Revolução Francesa (1792-1815) provocaram mudanças fundamentais no equilíbrio de poder até então estabelecido. Após a derrocada de Napoleão Bonaparte, o Congresso de Paz de Viena (1815) estabeleceu um período de aproximadamente um século de “paz” no continente europeu. A razoável estabilidade, no continente, ficou comprometida com os acontecimentos que precederam a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Nesse sentido, a defesa do equilíbrio de poder europeu pela Grã-Bretanha, entre França, Prússia, Áustria e Rússia, favoreceu a adoção de uma política externa, ao mesmo tempo, isolacionista na Europa e imperialista no âmbito global. Torna-se importante ressaltar que a supremacia mundial britânica (Pax Britannica) representou a vitória do seu poder naval sobre o poder terrestre do Império Napoleônico. A marinha britânica não só contribuiu para a derrota de Napoleão e do expansionismo francês, como manteve o ímpeto expansionista dos demais impérios europeus, em especial o russo. Adicionalmente, a frota naval britânica foi fundamental na consolidação de seu império ultramarino e de seu poder sobre as rotas comerciais mundiais. A expansão territorial dos Estados nacionais e o controle sobre recursos naturais existentes em territórios além das fronteiras nacionais são os ingredientes latentes, em grande parte, dos conflitos interestatais. Nesse sentido, muitas vezes, negar o acesso a recursos estratégicos, ou conter a expansão imperialista de um Estado (ou grupo de Estados), no interior do sistema internacional, torna-se a lógica dos grandes players da política internacional. Foi dentro desse debate sobre os recursos de poder, território e acesso a recursos naturais que surgiram as primeiras observações teóricas no campo das relações interestatais. Trata-se, mais especificamente, da geopolítica, campo de estudos que analisa as relações entre Estados a partir da perspectiva histórica e geográfica. A geopolítica, que precedeu a consolidação das Relações Internacionais como um campo de estudo científico, estruturou-se a partir da teoria do poder terrestre e, posteriormente, das teorias do poder naval e aéreo. Em 1904, o geógrafo britânico Halford John Mackinder argumentou, a partir do estabelecimento de um nexo de causalidade entre Geografia e História, que havia uma secular disputa pela supremacia mundial entre dois poderes antagônicos: o poder terrestre e o marítimo. Segundo Mello (1999), Mackinder acreditava na existência de um poder terrestre eurasiano que buscava, por meio de uma expansão centrífuga, dominar as regiões periféricas da Europa com o objetivo de garantir acesso aos mares quentes. Já o poder antagônico, marítimo, situado em ilhas próximas e regiões marginais à Eurásia, controlava a linha costeira dessa região com o intuito de manter o poder terrestre no interior eurasiano, recorrendo ao exercício de uma força centrípeta. Apesar de tratar o poder marítimo como força antagônica ao poder terrestre, Mackinder notabilizou-se como o principal intelectual da teoria do poder terrestre. Ao defender a existência da disputa secular entre poder terrestre e poder marítimo, Mackinder pôs fim à dominante visão eurocêntrica das análises internacionais. 6
No que diz respeito ao poder marítimo, em que pese à supremacia naval britânica, foi um almirante norte-americano quem, em 1880, deu inteligibilidade à teoria do poder marítimo. Alfred Thayer Mahan elaborou importante trabalho sobre a influência do poder marítimo na história no período de 1660 a 1783. O impacto dos estudos de Mahan foi decisivo na consolidação do Destino Manifesto como política de expansão do poderio norte-americano na região do Caribe e do Pacífico (Porto Rico, Filipinas e Cuba). A teoria do poder naval, na política estadunidense, propunha o completo controle do território norte-americano, a contenção do expansionismo japonês na região do Pacífico e a retirada da supremacia dos mares dos britânicos mundialmente. Mello (1999) ressalta que as ideias de Mackinder e Mahan foram muito influentes na configuração do sistema mundial no período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial, assim como no período da Guerra Fria (194591). Após a Primeira Guerra, o ocidente acreditava na necessidade de se estabelecer um cordão sanitário no entorno da União Soviética com o objetivo de conter a influência e o avanço bolchevique no resto da Europa. Já no pós Segunda Guerra Mundial (1939-45), a consolidação de Estados-tampões junto às fronteiras soviéticas atendiam mais aos interesses do Kremlin, no sentido de dificultar qualquer tentativa de expansionismo por parte dos países ocidentais. Igualmente, na visão das potências ocidentais, a expansão e a influência do poder terrestre soviético, no coração da Eurásia, era um forte argumento da necessidade de se encampar este tipo de estratégia. Isso posto, coube à influência do poder naval norte-americano a criação de Estados-tampões nas fronteiras soviéticas, assim como a instalação de bases militares, navais e terrestres, para conter o expansionismo soviético por terra e mar. A ideia da rivalidade secular entre poder terrestre e naval influenciou e segue influenciando as análises internacionais. Nesse sentido, é comum o uso da metáfora da luta secular entre o país baleia (supremacia do poder naval) e o país urso (supremacia do poder terrestre). Tal metáfora é bastante utilizada para retratar o conflito entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (EUA-URSS) no âmbito da Guerra Fria e nos posteriores contenciosos envolvendo a Rússia e os Estados Unidos. Desse modo, como a teoria do poder terrestre foi importante para os estudos do poder naval, as obras de Mackinder e Mahan, consideradas pilares dos estudos geopolíticos, também contribuíram para trabalhos que passaram a enfatizar a influência do poder aéreo para o equilíbrio de poder no sistema internacional. O próprio termo geopolítica traz em si a ideia da influência de questões geográficas na política. Isso posto, faz-se necessário ressaltar, também, que os estudos pioneiros na área das Relações Internacionais se beneficiaram tanto da análise histórica do sistema internacional, a partir dos desdobramentos da Paz de Vestefália até os dias atuais, como das primeiras análises geopolíticas encampadas por Mackinder e Mahan.
2.3 O campo de estudo das Relações Internacionais: atores e níveis de análise O estudo das Relações Internacionais visa à compreensão de eventos pertinentes às relações entre os Estados dentro de um recorte temporal determinado. Nesse sentido, faz-se necessária a construção do contexto ou da realidade em que se dão os temas — objetos de estudo das RI. Partindo do pressuposto de que as RI iniciam suas 7
abordagens mediante a construção de conjunturas e estruturas em que seus objetos de pesquisa estão inseridos, o primeiro desafio do pesquisador do campo das Relações Internacionais é o de construir tal realidade. Esse desafio é potencializado pelo fato de cada pesquisador observar seu objeto de pesquisa a partir de sua própria perspectiva, podendo, facilmente, divergir de seu colega que, por coincidência, estuda o mesmo tema. Nesse sentido, as questões que se impõem são ontológicas, epistemológicas e teórico-metodológicas. Ao se aprofundar nessas questões, Sarfati (2005) busca identificar os elementos, atores e proposições que compõem a realidade dos estudos das Relações Internacionais (ontologia). O autor questiona a forma como o conhecimento, na área das RI, é gerado, no sentido de identificar aquilo que pode ou não ser privilegiado nas análises (epistemologia). Por fim, Sarfati pondera sobre as formas de pesquisar Relações Internacionais (metodologia quantitativa e/ou qualitativa). Enquanto a abordagem quantitativa busca elementos mensuráveis para explicar uma realidade, a qualitativa vale-se de elementos não necessariamente quantificáveis, mas que ajudam a compreender a realidade do objeto de estudo. Daí a pertinência, no estudo das Relações Internacionais, das teorias que buscam explicar, identificando relações de causa e efeito, e de outras que buscam entender a realidade. Outro aspecto relevante no estudo das Relações Internacionais refere-se ao nível de análise. Nesse caso, trata-se do foco dado à pesquisa. Assim, para Sarfati (2005), a análise pode buscar a explicação ou a compreensão de determinado evento internacional a partir de determinados níveis, quais sejam: o individual, o societal, o estatal, o supraestatal e o do sistema internacional. O nível individual apropria-se do estudo da natureza humana para explicar/compreender seu objeto de estudo. Nesse caso, poder-se-ia, por exemplo, buscar a explicação de um evento internacional a partir da análise cognitivo-comportamental de um presidente ou autoridade governamental e sua respectiva influência sobre os processos decisórios do país. No nível societal, por outro lado, consideram-se os interesses de segmentos da sociedade ou da burocracia estatal como foco da pesquisa em RI. No nível estatal, tem-se o estudo dos interesses e sistemas de governo (democracias, ditaduras, economia, segurança, política) dos Estados como um ente unitário nas relações interestatais. Já no nível supraestatal, o pesquisador privilegia o estudo de organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) ou a Organização Mundial do Comércio (OMC), assim como organismos internacionais não governamentais (multinacionais, organizações terroristas, grupos ambientalistas, etc.) como foco de seu trabalho. Finalmente, tem-se o nível do sistema internacional. Nesse tipo de análise, a pesquisa avalia os padrões sistêmicos das relações mútuas entre todos os atores das Relações Internacionais. A análise sistêmica argumenta que os Estados são entidades políticas soberanas, não existindo um governo central nas Relações Internacionais, o que daria a característica anárquica do sistema. Porém é comum a contra-argumentação de que, na verdade, a aparente anarquia esconde a hierarquia dos países dentro do sistema internacional. A hierarquia desse sistema seria determinada pelo exercício dos recursos de poder dos Estados (território, população, exércitos, tecnologia, riqueza, etc.) no interior do mesmo. Vale ressaltar, porém, que o nível de análise não se confunde com os atores das Relações Internacionais, outro conceito relevante abordado pelas teorias de RI. Tem-se como consenso, entre as correntes teóricas das RI, que os atores são os protagonistas em cada um dos níveis analisados. Contudo o debate em torno do tema recai sobre a primazia dos atores (protagonistas) no estudo das Relações Internacionais. Desse modo, como foi colocado na 8
discussão sobre os níveis de análise das pesquisas de RI, o rol de atores engloba indivíduos, órgãos governamentais, Estados, Organizações Internacionais (OI), organizações internacionais não governamentais (ONGs) e atores não estatais como grupos terroristas ou empresas multinacionais. Percebe-se, então, uma diferenciação clara entre níveis de análise e atores no estudo das Relações Internacionais. Ainda que se queira compreender, por exemplo, o apoio do Governo Federal no processo de internacionalização de empresas brasileiras a partir da análise do nível sistêmico das Relações Internacionais (oligopolização de setores da economia mundial e reordenação do sistema produtivo global), os protagonistas, nesta análise, podem ser as grandes empresas brasileiras, o Estado brasileiro e os países onde atuam as empresas nacionais. De outra forma, pode-se analisar esse objeto a partir do nível societal, levando-se em conta os interesses de segmentos sociais (empresários) e políticos (o partido do governo), onde os protagonistas (atores) seriam a burocracia estatal, como, por exemplo, o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), o partido do governo, as grandes empresas nacionais e o Estado brasileiro.
2.3.1 Conceitos pertinentes ao estudo das Relações Internacionais Nas Relações Internacionais, o processo de entendimento dos eventos internacionais passa pelo debate acerca de conceitos que são transversais às teorias desse campo do conhecimento. O universo conceitual das RI, longe de esgotar as possibilidades analíticas, trabalha com definições e conceitos inerentes à dinâmica das relações interestatais. Nesse sentido, é comum a discussão sobre o comportamento individual de Estados em relação aos demais. Faz-se necessária uma explanação sobre o que se entende acerca das expressões sistema estatal ou sistema internacional. O sistema internacional é caracterizado pela não existência de um Governo central. Não existe um governo supranacional, pelo menos em tese, que determine as regras de governança globais, ou que seja capaz de impor punições a Estados que “descumpram” tais regras. Entende-se que o sistema internacional é composto por Estados soberanos, política e territorialmente constituídos, que buscam maximizar seus interesses de forma legítima. A ideia de que Estados soberanos buscam maximizar interesses nacionais em um sistema internacional marcado pela inexistência de um governo central leva à constatação de que a política internacional opera em um ambiente anárquico. Dessa forma, a anarquia seria a principal característica do sistema internacional. Ainda que alguns teóricos das RI percebam a anarquia do sistema internacional como característica secundária, para muitos, a primazia da mesma parte da convicção generalizada de que a maximização dos interesses nacionais é reflexo da característica egoísta do ser humano. Assim, da mesma forma que o homem é um ser egoísta que busca, acima de tudo, a garantia da própria sobrevivência, os Estados nacionais também agem de forma egoísta para assegurar sua existência no sistema internacional. No entanto, é importante ressaltar que, ainda que o sistema internacional seja anárquico, existe um conjunto de imposições, sanções e regras implícitas que norteiam o comportamento dos Estados no sistema internacional. Adicionalmente, chama a atenção o fato de que o ambiente anárquico do sistema não restringe possibilidades de cooperação bi ou multilateral entre os Estados.
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A análise do sistema internacional abre, ainda, espaço para a abordagem de outros dois conceitos importantes das Relações Internacionais, quais sejam, soberania e recursos de poder. A soberania diz respeito à legitimidade política e territorial do Estado sobre suas ações no âmbito doméstico e internacional. Desse modo, o conceito de soberania trata do exercício da autonomia do Estado sobre a condução de sua política interna ou externa, assim como seus efeitos sobre a dinâmica do sistema internacional como um todo. Já os recursos de poder tratam das capacidades dos Estados em exercitar seu poder soberano dentro e fora de suas fronteiras nacionais. Em RI, o exercício do poder diz respeito ao gerenciamento das capacidades assimétricas dos países dentro do sistema internacional, seja por meio da coerção hard power (poder duro), da influência soft power (poder brando) ou da combinação de ambos. A dinâmica, no interior do sistema internacional, é, na verdade, reflexo do gerenciamento das estratégias de maximização dos interesses dos Estados. Tais estratégias levam em consideração a disposição assimétrica dos recursos de poder dos países no sistema internacional. Nesse contexto, Keohane (2001) constata graus diferentes de sensibilidade e vulnerabilidade dos países em relação a tudo que acontece no interior do sistema internacional. Em vista disso, a sensibilidade de um país em relação ao cenário externo pode revelar sua dificuldade para formular novas políticas em um curto espaço de tempo, dado o comprometimento de sua política interna ou acordos internacionais. No tocante à vulnerabilidade, evidencia-se a capacidade dos países em efetivamente formular novas políticas e encontrar alternativas, em curto espaço de tempo, frente a uma situação adversa no contexto internacional. Assim, observa-se que, enquanto a sensibilidade identifica o grau de dependência do país em relação às dinâmicas do sistema internacional, sua vulnerabilidade trata de sua efetiva capacidade de reação em cenários internacionais desfavoráveis (KEOHANE, 2001). A observação das capacidades sistêmicas dos Estados, no sistema internacional, levou ao surgimento de conceitos que caracterizam a dinâmica das interações dos países em diferentes recortes temporais. Isso posto, os estudiosos das RI entendem que o sistema internacional pode operar sob a lógica da hegemonia ou dos polos de poder. Para Arrighi (1996), a hegemonia trata da capacidade de um Estado soberano exercer, simultaneamente, seu poder de coerção e de liderança moral e intelectual no núcleo do sistema internacional. O país hegemônico mobiliza esse poder por meio da possibilidade ou ameaça de uso combinado de seus recursos de poder (território, população, recursos naturais, tecnologia, exércitos, finanças) com o fim de garantir o consentimento dos demais Estados em relação às suas políticas dentro do sistema internacional. Ainda que discordem, os demais Estados sentem-se coagidos a aceitar as políticas do país hegemônico. De forma complementar, o país hegemônico pode obter o consentimento dos demais Estados por meio de sua liderança dentro do sistema internacional, que se dá pela sua influência cultural, moral e intelectual. Consequentemente, as políticas encampadas pelo país hegemônico podem ser percebidas como benéficas pela totalidade dos países. Consequentemente, a existência de um país hegemônico, no interior do sistema internacional, fomenta o debate sobre polos de poder. Os polos de poder, nas RI, referem-se à percepção generalizada de que alguns países, isolada ou conjuntamente, possuem capacidades para influenciar e liderar a política internacional de forma sistêmica. Destarte, pode-se dizer que a análise das Relações Internacionais leva em consideração a uni, a bi ou a multipolaridade do sistema internacional. 10
No caso de um sistema unipolar, pode-se usar como exemplo os contextos históricos do império romano (Pax-Romana) e do império britânico (Pax-Britânica). Nesses exemplos, ainda que outros Estados possuíssem capacidades, Roma e Inglaterra exerciam a hegemonia do sistema internacional (MAGNOLI, 2004). Quando se percebe que a hegemonia do sistema é exercida de forma compartilhada entre dois Estados, tem-se a bipolaridade como característica patente do sistema. Em vista disso, é consolidada a ideia de que o período da Guerra-Fria foi marcado pela bipolaridade (URSS/EUA) do sistema internacional. Por fim, as últimas três décadas têm sido caracterizadas pelo debate recorrente sobre a multipolaridade, a unipolaridade ou uni-multipolaridade do sistema internacional. Essa constatação dá-se pelo fato de que embora os Estados Unidos sejam a maior potência militar e econômica do planeta, os custos financeiros e políticos do exercício da hegemonia sobre o conjunto do sistema internacional são muito elevados. Dessa forma, abrem-se espaços para que outros Estados considerados potências locais utilizem sua influência hegemônica regional como forma de atingir seus respectivos interesses em suas relações globais. Percebe-se, então, que a configuração do atual sistema internacional reflete os interesses de polos de poder consolidados: Estados Unidos, Europa, China, Japão e Rússia. Por conseguinte, os demais Estados buscam maximizar seus interesses a partir de análises estruturais e conjunturais do sistema. Nesse panorama, torna-se compreensível o agrupamento de países sob a lógica de grupos de geometria variável (VIZENTINI, 2006). A estratégia de inserção internacional por meio desse tipo de aliança estratégica está latente na formação de grupos como o Fórum de diálogo Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o G4 (Alemanha, Brasil, Índia e Japão) e o G20 (Grupo dos 20 no âmbito do sistema financeiro internacional).
3 Principal debate teórico: realismo versus liberalismo A discussão teórica nas Relações Internacionais está, tradicionalmente, pautada pela disputa entre duas correntes principais e suas variações: o realismo e o liberalismo. Naturalmente, não se trata de duas escolas perfeitamente coesas e cristalizadas, mas sim de tradições de pensamento que evoluem e se modificam com o tempo e com as circunstâncias. Essa oposição, em larga medida, começou com o surgimento do debate sobre as Relações Internacionais após o término da I Guerra Mundial. Nessa conjuntura, um grupo de pensadores vinculados à tradição liberal começou a pensar em alternativas para dirimir as possibilidades de uma nova guerra acontecer. Esse pensamento bebia do liberalismo econômico e político, que apregoava o direito natural à vida, à liberdade e à propriedade, e reputava o Estado como um potencial destruidor desses direitos. Destaca-se, portanto, o interesse na construção de uma sociedade calcada no indivíduo, que lhe pudesse assegurar as melhores condições para a fruição de sua liberdade. No tocante à política internacional, a grande preocupação dos liberais era em relação à criação de um ambiente propício à paz mundial. Esse panorama tornar-se-ia possível na medida em que fossem criadas e impulsionadas instituições que coibissem os vícios e os maus costumes, de forma a promover uma sociedade mais equilibrada e bem ordenada. Na visão liberal, o Estado era, muitas vezes, responsável por perpetrar distorções nocivas ao bem comum, que acabavam fazendo com que se sobrepusessem interesses individuais à vontade geral. A guerra, por exemplo, seria fruto desse processo, uma vez que ela decorria da disputa política de determinados grupos, ainda que 11
fosse travada em parâmetros nacionais. Para os liberais, o uso da razão — que todos possuímos — viabilizaria a construção de uma ordem internacional mais pacífica, pois os custos da guerra excederiam largamente os seus eventuais benefícios. Seria imperativo, logo, propiciar mecanismos que dessem vazão aos desejos dos indivíduos, que atentariam mais à prosperidade moral e material do que às rusgas interestatais. A percepção dos liberais a respeito da guerra pode ser sintetizada pela afirmação do filósofo Immanuel Kant (1989), que dizia que esta era “o esporte dos reis”, pois era praticada sem levar em consideração os benefícios da população. Assim, considerava-se que o sistema de Estados era caracterizado pela anarquia, aqui entendida não como sinônimo de caos, mas de ausência de autoridade superior aos Estados. Pairava no ar a possibilidade de que um simples desentendimento pudesse desencadear um conflito armado. Desse modo, se, por um lado, era prerrogativa estatal a defesa da integridade física do seu território e de seus habitantes, também era verdade que muitas das violações partiam dos próprios Estados, configurando um dilema de segurança. No entanto, esse quadro poderia ser alterado se os cidadãos fossem ativos na política e propusessem soluções que tornassem o sistema internacional mais cooperativo e pacífico. A perspectiva liberal — que considerava o mundo como um ambiente hostil em virtude da anarquia, mas plenamente possível de ser aperfeiçoado pelas instituições e pelas ideias adequadas — foi duramente criticada por um grupo de analistas que veio a constituir a escola rival: o realismo. De acordo com os realistas, o componente anárquico da sociedade internacional não só potencializa as chances de guerras, mas também as garante. A inexistência de uma instância supranacional, que coordene e limite a ação estatal, faz com que cada um seja livre para perseguir os seus próprios objetivos. Eventualmente, então, é inevitável que ocorram disputas entre as nações, uma vez que frequentemente os interesses são conflitivos. Ademais, ressalta-se o fato de que a anarquia é também um desincentivo à cooperação, pois há sempre um elevado risco de que um lado trapaceie, o que acabaria com a colaboração mútua. Cientes desse cenário, segundo o realismo, os Estados seriam reticentes às iniciativas de promoção da paz e tratariam de priorizar sua própria segurança. A crítica realista em relação à abordagem liberal era bastante dura, na medida em que essas interpretações eram reputadas como normativas e não avaliativas. Edward Carr (1981), por exemplo, dizia que os pensadores de Relações Internacionais se dividiam entre os idealistas — termo vulgarmente utilizado para denominar os liberais — e os realistas. Para Carr, enquanto estes estariam preocupados em entender o mundo tal como era, aqueles teriam uma “visão rósea” da política internacional, ignorando dinâmicas essenciais que eram fonte de disputas entre as grandes potências. Fundamentalmente, Carr assentava suas premissas no contexto histórico em que vivia, quando o mundo rumava para a II Guerra Mundial, pondo um termo definitivo à ideia de que a Grande Guerra pudesse ter sido a “guerra para acabar com todas as guerras”. Além disso, a falência da Liga das Nações em acomodar interesses distintos e impedir o uso da força como recurso de poder também ia de encontro às premissas liberais, sinalizando a necessidade de problematizar o tema de maneira menos normativa. Embora tanto o realismo quanto o liberalismo tenham mudado significativamente ao longo dos anos, é possível observar, com a classificação proposta por Carr, algumas diferenças importantes nas duas tradições. Em primeiro lugar, salienta-se que realistas e liberais concordam em relação ao ordenamento do sistema internacional, entendido como anárquico. Novamente, ressalta-se que a anarquia contrapõe-se à hierarquia e não implica uma condição de caos permanente. Malgrado esse ponto de encontro, é elementar recordar que a anarquia do sistema não tem os 12
mesmos efeitos para as duas escolas. Para os realistas, dada a inexistência de uma instância supranacional capaz de acomodar interesses e solucionar contendas, trata-se de um elemento causador de desequilíbrios e de confrontos: como os Estados só têm a si mesmos para atingir seus objetivos, não há como evitar a ocorrência de guerras. Já os liberais, por outro lado, não negam a relevância da anarquia como motivador de disputas, mas lembram que instituições desenhadas com base na racionalidade humana têm condições de atenuar desconfianças e promover a cooperação. À desavença em relação às consequências da anarquia, soma-se a discórdia sobre o papel do Estado nas Relações Internacionais. Esse ponto é absolutamente basilar para realistas e liberais e pauta suas discussões até hoje. Na perspectiva realista, os Estados são os atores precípuos das Relações Internacionais. Ainda que empresas, organizações não governamentais (ONGs), organizações internacionais, fóruns multilaterais, etc. tenham alguma pressão sobre o sistema internacional, é somente no âmbito interestatal que se dão as lutas por poder. A fim de esclarecer seu ponto de vista, os realistas frequentemente recorrem à imagem do jogo de bilhar para explicar o comportamento estatal: os Estados seriam como bolas de bilhar no tabuleiro geopolítico mundial, ou seja, até poderiam variar em termos de tamanho e cor, mas desempenhariam basicamente as mesmas funções. À primeira vista, essa perspectiva soa imprecisa, uma vez que se admite que há conflitos internos nos Estados sobre o que constituiria o interesse nacional. No entanto, para os realistas, esses antagonismos seriam resolvidos internamente, de modo que, ao final, somente uma posição tivesse primazia. O entendimento liberal sobre o Estado diverge, em muitos aspectos, da visão realista. Acima de tudo, observa-se que, para os pensadores liberais, as Relações Internacionais estão compostas por inúmeros atores expressivos, não somente os Estados. Enfatiza-se, então, que as instituições estatais são palcos de grandes contendas, o que faz com que nem sempre seja possível visualizar uma postura única em relação a temas complexos. Enquanto alguns grupos de pressão atuam em um sentido, outros vão em direção oposta, e o Estado, muitas vezes, não consegue escapar a essa dubiedade. Na mesma linha, frisam os liberais, as organizações internacionais também são mecanismos indispensáveis, pois limitam a atuação dos Estados (punindo os transgressores de regras e recompensando quem as obedece) e facilitam a cooperação, pois a presença de um canal de comunicação poderia diminuir a descrença generalizada e favorecer o entendimento mútuo. Ainda sobre o tema do Estado, nota-se que os realistas não fazem distinção entre o sistema político-econômico que cada país adota, não observando diferenças entre socialismo e capitalismo, ditadura e democracia. Na ótica realista, todos os Estados têm as mesmas funções: garantir sua sobrevivência e velar por seus próprios interesses. O regime político pode ser importante para determinar os meios pelos quais uma nação escolhe agir, mas não altera suas funções básicas. Na Guerra Fria, por exemplo, Estados Unidos e União Soviética, a despeito de suas discrepâncias institucionais e econômicas, eram sempre colocados em um mesmo patamar: ambos eram superpotências e procuravam expandir sua área de influência no mundo. Novamente, portanto, os realistas retomam a metáfora das bolas de bilhar, que até podem não ser iguais em termos de tamanho e coloração, mas comportam-se de modo idêntico. Na visão liberal, caso haja uma dessemelhança representativa no que tange à política e à economia, não é correto considerar todos os países como se fossem iguais. Em alguma medida, para os liberais, existem Estados melhores e piores: aqueles são democráticos e encampam o livre-comércio, ao passo que estes se comportam de 13
maneira contrária. Essa distinção não se deve apenas a questões morais e normativas, mas também dizem respeito à conduta empregada pela nação para resolver os seus conflitos. Isso porque, segundo os liberais, as democracias não tendem a entrar em guerra entre si, ainda que eventualmente possam entrar em um confronto armado com uma ditadura. Essa análise remete à paz republicana de Immanuel Kant, que via nas repúblicas as virtudes necessárias para a concórdia mundial, em oposição ao belicismo das monarquias absolutistas. Em virtude disso, convencionou-se chamar de “paz democrática” essa faceta do pensamento liberal. A ideia de que democracias não guerreiam entre si merece algum crédito, uma vez que, de fato, não se registram muitos conflitos armados entre Estados com regimes democráticos. De acordo com os liberais, esse fenômeno ocorre em função do peso da opinião pública nesses países, que teria muito mais importância para a formulação da política externa do que nas ditaduras. Desse modo, enquanto governos autoritários podem prescindir do apoio popular para se aventurar em uma investida militar, as democracias são muito mais responsivas às demandas da população, o que seria um desincentivo à guerra. Entretanto, embora a hipótese liberal tenha respaldo empírico, o elo causal apresentado é frágil em termos de coerência interna. Afinal, questionam os realistas, se a opinião pública desempenha um papel proeminente na manutenção da paz, por que países democráticos iniciaram inúmeras vezes guerras contra ditaduras? Ademais, muitas vezes as hostilidades começaram com o apoio da opinião pública, como atesta a Guerra do Iraque (2003). Como o realismo trata os Estados independentemente de seu regime político, a teoria da paz democrática é terminantemente rechaçada por expoentes realistas, que argumentam não haver qualquer incompatibilidade para uma guerra entre dois países democráticos. Os realistas salientam a incapacidade dos liberais em explicar o nexo causal entre a paz e o sistema de governo, objetando que o peso da opinião pública não é suficiente para legitimar a paz democrática. Todavia, ainda que os realistas tenham êxito em apontar as falhas teórico-metodológicas nas explicações dos liberais sobre o assunto, não têm o mesmo sucesso no tocante à refutação da hipótese per se. Dada a intransigência do realismo em apontar, nas diferenças internas de cada Estado, a razão para seu comportamento externo, é lógico que os autores dessa corrente não veem nenhuma impossibilidade em uma guerra entre duas democracias. Porém, como inexistem exemplos significativos que demonstrem o contrário, a paz democrática permanece inexplicada pelo realismo. Outra aposta dos liberais para dirimir os riscos de um conflito armado interestatal é o livre-comércio. Esse seria um mecanismo fundamental porque criaria estímulos para que empresários e consumidores pressionassem seus Estados a não entrarem em guerra, com receio de que a contenda desvirtuasse o fluxo de bens e serviços, prejudicando a economia local. Mais uma vez, essa interpretação é rejeitada pelos pensadores realistas, que asseveram que as questões de segurança nacional têm primazia sobre os aspectos econômicos, o que reduziria drasticamente os efeitos positivos de uma interdependência comercial. A esse respeito, realça-se que esse assunto pode ser analisado de duas formas, cada uma favorável a uma escola. De fato, a história documenta fartamente guerras entre países que tinham intenso fluxo comercial, com destaque para a I Guerra Mundial, o que parece corroborar o pressuposto realista. Contudo, os liberais sublinham a dificuldade para se estabelecer uma contraprova, visto que muitos conflitos podem ter sido evitados por pretextos comerciais, sem que isso possa ser definitivamente provado.
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Realistas e liberais também discordam em um elemento-chave das Relações Internacionais: o poder. Enquanto o realismo costuma tratar o poder como a variável máxima da disputa interestatal, o liberalismo ressalta que esse conceito tem de ser problematizado à luz da crescente interdependência econômica e política entre os Estados. Assim, observa-se que os realistas veem o poder como a soma relativa das capacidades dos países em termos políticos, militares, econômicos e tecnológicos, enfatizando o poder em seus aspectos relativos, ou seja, o poder que uma nação tem sobre a outra. A política internacional, logo, seria um jogo de soma zero, pois o ganho que um país tem seria uma perda em comparação ao outro: o poder é a capacidade de influenciar o sistema mais do que ser influenciado por ele. Destaca-se, ainda, o caráter político-militar da noção de poder para os realistas. Isso porque, como vivemos em uma sociedade anárquica e a sobrevivência é o objetivo último de todos os Estados, os recursos disponíveis que cada um tem para assegurar sua integridade territorial são os seus meios de exercer pressão no sistema internacional. Sendo a política internacional um campo de disputa por poder, como pensam os realistas, a chave para entendê-la seria analisar a balança de poder entre as grandes potências, a qual resultaria, sobretudo, da capacidade militar de cada um. Os liberais, no entanto, não compactuam com aspectos fundamentais dessas premissas, ainda que não discordem de tudo. Estão de acordo, por exemplo, com a ideia de que todos os Estados buscam aumentar seu poder na esfera internacional, cientes de que isso é crucial para a obtenção de suas metas. Não obstante, os liberais creem que a preocupação com a segurança nem sempre é prioritária para os países, que só dariam relevância ao tema quando realmente ameaçados por um competidor. Na maioria dos casos, o propósito principal teria um fundo econômico. Assim, nem seria o poder um conceito predominantemente militar, nem seria um jogo de soma zero, pois benefícios econômicos podem ser usufruídos por todas as partes, sem que ninguém saia prejudicado. Por fim, o liberalismo prevê que a interdependência gera ganhos de margem de manobra para os Estados teoricamente mais fracos, que se podem valer de suas vantagens comparativas para pressionar as grandes potências, como atesta a crise do petróleo de 1973. Em termos cronológicos, nota-se que o primeiro autor que dotou o realismo de um senso teórico organizado e bem acabado foi o germano-americano Hans Morgenthau (2003), em seu livro Política entre as Nações. Nessa obra, considerada o ponto de partida para o estudo da teoria de Relações Internacionais, o autor sublinha seis princípios básicos que norteariam o sistema internacional: (a) a política, tal como a sociedade, é regida por leis objetivas, que espelham a natureza humana; (b) o poder é o objetivo comum de todos os Estados; (c) o poder é um conceito universalmente definido, mas que se expressa diferentemente de acordo com o tempo e o espaço; (d) os princípios morais são fundamentais para as Relações Internacionais, mas são subordinados aos interesses da ação política e à prudência do estadista; (e) os princípios morais não são universais, mas particulares; (f) a esfera política é autônoma em relação a outras esferas sociais. O estudo seminal de Morgenthau sobre as Relações Internacionais foi, naturalmente, alvo de apreciações, elogios e críticas, mesmo entre pensadores realistas que o sucederam. John Herz (1950), por exemplo, enalteceu o esforço de Morgenthau para levar adiante o realismo, mas também apontou as fraquezas de sua obra. Herz acreditava que Política entre nações pecava ao tratar a busca por poder como variável residual das ambições humanas: na visão de Morgenthau, os Estados queriam ser poderosos porque as pessoas têm essa característica. Herz concordava com a premissa de que a procura por poder era um elemento definidor das Relações Internacionais, 15
mas argumentava que a causa não derivava de questões psicológicas, e sim do componente anárquico do sistema internacional. Afinal, como todos os Estados somente dependem de si para garantir sua sobrevivência, é natural que exista uma corrida para obter os meios necessários para tanto. O problema é que a única maneira de se proteger é se armar, e, naturalmente, isso é percebido como uma ameaça pelos demais. Essa situação configura um dilema da segurança, pois o sucesso individual depende do mal-estar coletivo. A crítica de Herz foi assimilada por outro realista, Kenneth Waltz, em O Homem, o Estado e a Guerra (1959). Esse trabalho, sob o ponto de vista metodológico, é de suma relevância para as Relações Internacionais, pois reúne e categoriza um conjunto de visões sobre as origens da guerra no sistema interestatal. Na perspectiva de Waltz (1959), a literatura costuma dividir as razões pela disputa de poder em três imagens. A primeira, enunciada por Morgenthau e outros autores, pressupõe que há conflitos porque os seres humanos têm uma necessidade inata e insaciável de obter mais poder, impedindo a manutenção da paz entre as nações. A segunda, por sua vez, vê os Estados como responsáveis pelas guerras, dadas as suas necessidades e interesses individuais. Finalmente, a terceira imagem (que se baseia no dilema da segurança) dá conta da anarquia do sistema internacional como a motivação básica pela qual os países têm de acumular poder, uma vez que a ausência de um órgão supranacional capaz de garantir a ordem faria com que os Estados tivessem de elevar os recursos à sua disposição, não por veleidades individuais, mas devido à insegurança estrutural do sistema. O avanço do realismo deveu-se, em boa medida, à conjuntura internacional dos anos 1950-60, quando a hostilidade entre Estados Unidos e União Soviética acentuou-se vigorosamente. Esse panorama conflituoso parecia confirmar as principais hipóteses dos realistas, que viam com desconfiança as perspectivas de cooperação entre os Estados e davam especial relevância aos temas de poder e de competição militar. Contudo, esse cenário se alterou substancialmente na década de 70, quando a détente entre Moscou e Washington começou a dar frutos, dirimindo as tensões e abrindo margem para o diálogo entre as grandes potências. Além disso, esse período foi profícuo em termos de parcerias interestatais, e a crise do petróleo de 1973 indicava que os liberais estavam certos ao enfatizar as questões econômicas e o tema de interdependência como um eixo basilar das Relações Internacionais, que sempre foi menosprezado pelos teóricos realistas. Foi nessa conjuntura favorável que, em 1977, os liberais Robert Keohane e Joseph Nye publicaram Poder e Interdependência: política mundial em transição (2001), no qual argumentavam que os processos transnacionais estavam alterando as dinâmicas do sistema internacional. Em sua visão, os países cada vez mais se deparavam com problemas que se originavam em espaços que estavam fora do seu controle. Na mesma linha, os atores não estatais tornaram-se mais relevantes para a política internacional, complexificando as Relações Internacionais. Esse quadro acelerava a interdependência entre os Estados, o que proporcionava uma nova agenda de discussões sobre conflito e cooperação. Diferentemente dos liberais anteriores, porém, Keohane e Nye (2001) tinham uma interpretação menos normativa da interdependência, que sempre fora reputada como um fator de estabilidade e concórdia pelo liberalismo. Para esses acadêmicos, embora a interdependência pudesse favorecer a cooperação, ela também era um fator de disputa e um recurso de poder. Observa-se, portanto, uma tentativa de conciliar aspectos da teoria realista com os preceitos liberais. A obra de Keohane e Nye (2001) está assentada em três fundamentos que norteiam a configuração da política internacional a partir da interdependência complexa: (a) existência de múltiplos canais de comunicação e 16
negociação: os Estados não têm o monopólio das negociações internacionais, que são feitas com vários atores (estatais ou não) em circunstâncias formais e informais, o que diminui as incertezas e a assimetria de informações; (b) agenda múltipla: contrariamente a outros períodos, os temas de segurança já não são hierarquicamente superiores às questões econômicas, sociais, ambientais e tantas outras, fazendo com que as vantagens comparativas de cada Estado não sejam absolutas, mas relativas; (c) utilidade decrescente do uso da força: dado o envolvimento e a intensa comunicação entre os atores globais, a possibilidade de recorrer à força torna-se cada vez menor, ainda que não desapareça. Essa situação aumenta os recursos à disposição dos Estados mais fracos militarmente, reforçando sua margem de manobra perante as grandes potências. O estudo de Keohane e Nye (2001) suscitou um grande interesse por parte dos acadêmicos de Relações Internacionais, que os classificaram como neoliberais, na medida em que sua teoria, ainda que compartilhasse do legado da tradição liberal, acrescentava elementos novos à análise, aproximando-a da vertente realista em alguns pontos. Curiosamente, na sequência, deu-se um processo semelhante no realismo, com o lançamento da Teoria da Política Internacional, de Kenneth Waltz (1979). Esse autor dedicou-se a responder às críticas que a vertente realista vinha sofrendo ao longo dos anos 70, quando a teoria da interdependência complexa ganhava força na academia. Para tanto, Waltz (1979) realizou um estudo cujo objetivo era dar uma base mais sólida e científica ao realismo, com a ideia de que a teoria ainda tinha uma grande capacidade de explicação das Relações Internacionais, desde que adequadamente estruturada. Há, então, discordâncias em relação aos realistas clássicos, razão pela qual Waltz (1979) é considerado o fundador do neorrealismo. O intuito de Waltz (1979) era fazer uma análise estrutural do realismo, com a perspectiva de que a causa das guerras está no aspecto anárquico do sistema internacional. O autor, assim, rejeita a primeira e a segunda imagem da política internacional, asseverando que é a terceira a fonte de conflitos entre as grandes potências. Em sua ótica, toda estrutura era composta de três atributos básicos: princípio ordenador, características de suas unidades e distribuição de capacidades. O primeiro, segundo Waltz (1979), diz respeito à natureza do sistema: anárquica ou hierárquica. Nas Relações Internacionais, portanto, é a anarquia que rege os Estados. Já o segundo está relacionado à produção de recursos. Diferentemente de uma economia de mercado, onde cada um se especializa no que faz de melhor, a política internacional é marcada pela autoajuda: cada Estado conta somente consigo mesmo para realizar suas tarefas. Enfim, a distribuição das capacidades trata dos meios relativos que cada país tem, ou seja, quantas são as grandes potências. Nesse livro, Waltz (1979) afirma que o sistema é bipolar ou multipolar, não abrindo espaço para a unipolaridade que se seguiu à queda da União Soviética. Como vimos, o debate nas Relações Internacionais está fortemente ligado à conjuntura, com o avanço e o retrocesso das escolas refletindo o clima político entre as grandes potências. Assim, os anos 80 foram de predomínio realista, em decorrência da Segunda Guerra Fria. No entanto, com a derrocada da União Soviética, viu-se um refluxo do realismo, acompanhado de um progresso do ideário liberal. Isso porque o triunfo do bloco ocidental foi perseguido pelos liberais como um sintoma da superioridade do capitalismo e da democracia, que nunca mais seriam seriamente questionados. Então, seria inaugurada uma nova era das Relações Internacionais, na qual os países não mais lutariam entre si, mas competiriam por mercados e investimentos. Essa perspectiva foi consubstanciada no livro O Fim da História e o Último Homem, de Francis Fukuyama (1992), que via no êxito dos Estados Unidos uma vitória
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da civilização ocidental, que seria emulada por todos os países que aspirassem ao desenvolvimento econômico e social. Na década de 90, por conseguinte, floresceram teorias que pressupunham o fim dos conflitos militares, na medida em que os Estados se tornavam capitalistas e democráticos. Nesse quadro, as guerras ficariam circunscritas a regiões “atrasadas”, que ainda não haviam tomado o rumo do “progresso”. Essa hipótese se assentava nas noções anteriormente mencionadas, para as quais, os confrontos armados se deviam às características internas dos Estados. Desse modo, como todos os países teriam o interesse em aderir ao capitalismo e à democracia, acentuar-se-ia o processo de interdependência. Esse, por sua vez, não implicaria ausência de tensões interestatais, mas dirimiria os riscos de uma guerra, dado o crescente peso das instituições internacionais, o papel dos atores extraestatais e a convergência de interesses, fazendo com que o recurso à força passasse a ser contraproducente. Ou seja, seria inevitável o crescimento dos Estados “bons”, que fariam do sistema internacional um ambiente mais pacífico. Com o passar dos anos, a crença liberal em um mundo sem guerras foi-se diluindo — movimento acompanhado por um ressurgimento da tradição realista. Em 2001, John Mearsheimer publicou A Tragédia das Grandes Potências, que foi considerado por muitos como o exemplo mais bem acabado do realismo em termos teóricos. Nessa obra, Mearsheimer tratou de demonstrar que sua corrente ainda era muito útil para as Relações Internacionais, ainda que não fosse a única capaz de explicar fenômenos políticos relevantes. Mais do que criticar o liberalismo, porém, o autor procurou levar adiante o neorrealismo de Kenneth Waltz (1979), que Mearsheimer definia como um realismo defensivo. Isso porque, embora Waltz, em Teoria da Política Internacional, tivesse dado uma grande contribuição ao realismo nos aspectos metodológico e científico, sua visão não explicava por que as grandes potências iniciavam guerras. Para Mearsheimer, Waltz (1979) havia adotado uma postura conservadora, que não dava conta de que os Estados tinham, muitas vezes, motivos para encetar um confronto armado. Segundo esse acadêmico, as Relações Internacionais são marcadas pela anarquia internacional e são estruturadas em torno de atores racionais, os Estados. Assim, há uma competição entre eles, e o principal objetivo é a sobrevivência. Esse ponto é chave, pois considera que o poder não é uma meta, mas sim um meio para atingir um propósito. Além disso, Mearsheimer salienta que o elemento que representa uma grande potência é sua capacidade militar. Dessa forma, ainda que os recursos tecnológicos e econômicos sejam importantes, eles somente o são quando podem ser convertidos em termos militares. Nessa linha, Mearsheimer também é cético quanto às possibilidades da diplomacia na política internacional, que é insuficiente quando há um risco de intervenção militar. Na realidade, em sua interpretação, o que ocorre é que todas as grandes potências querem ser únicas no cenário internacional, o que faz com que elas balanceiem o poder com suas rivais, a fim de eliminá-las e certificar sua sobrevivência. A teoria de Mearsheimer, que ficou popularizada como o realismo ofensivo, constitui o último esforço de grande repercussão de sua escola, por mais que muitos artigos realistas tenham sido publicados desde então. A corrente, conquanto seja respeitada e replicada cotidianamente nas Relações Internacionais, já não goza do mesmo prestígio que teve ao longo do século XX, sobretudo nos períodos em que havia uma crise aguda entre as grandes potências do sistema internacional. Atualmente, o realismo é alvo de duras críticas, inclusive de autores não liberais, mas tem seguidores nas teorias pós-modernas como o construtivismo e a teoria crítica. Do mesmo modo, os pensadores liberais também parecem anestesiados com os principais eventos políticos do século XXI, que mostraram que o seu 18
otimismo em relação à paz entre as nações e a interdependência era precipitado, na medida em que os conflitos ainda estavam na agenda dos Estados.
4 Visões alternativas: marxismo, teoria da dependência, teoria crítica e construtivismo O marxismo, no campo das Relações Internacionais, procurou estabelecer-se como um contraponto tanto ao realismo como ao liberalismo. Curiosamente, seja exatamente por esse motivo, seja por questões metodológicas, essa corrente jamais logrou o status de mainstream nas discussões sobre teoria das Relações Internacionais, especialmente nos Estados Unidos. Como veremos, o pensamento marxista, em Relações Internacionais, teve maior repercussão nas academias fora do eixo América do Norte-Europa Ocidental. É o caso do marxismo-leninismo, que chegou a ser a doutrina oficial de nações de orientação socialista e da teoria da dependência, que teve expoentes em vários pontos do chamado Terceiro Mundo. Apesar de não ter elaborado análises diretas sobre as Relações Internacionais, e de ter dado pouca atenção ao papel do Estado no plano mundial, Karl Marx inspirou um abrangente e bastante diversificado conjunto de visões em diversos campos das Ciências Sociais. Um aspecto comum a quase todos os desdobramentos do pensamento marxista, especificamente nas RI, é o primado em pensá-los como um produto do desenvolvimento das relações de produção em dado período histórico. Nessa leitura, o sistema de Estados contemporâneo seria apenas uma forma peculiar de organização das comunidades políticas, calcadas no princípio da territorialidade e no conceito de nação, e não na formação “natural” de entidades políticas com base na comunhão de valores, como etnia, raça ou história comum. Os autores marxistas, em RI, não compartilham da visão predominantemente benigna dos liberais acerca do capitalismo e do comércio internacional como um jogo de soma positiva para os atores envolvidos. De forma semelhante aos realistas, são, em geral, bastante céticos em relação à possibilidade de cooperação equânime e mutuamente benéfica entre os agentes que a praticam. Em relação aos realistas, os marxistas questionam a premissa de que os Estados agem autonomamente no sistema internacional, sem considerar as disputas e os interesses das classes sociais. Esses conflitos sociais, ademais, não necessariamente se limitam às fronteiras nacionais, e podem-se alastrar em compasso com a conformação do capitalismo global. As classes sociais, assim, precedem os Estados na escola marxista. A seguir, abordaremos algumas das principais subdivisões do marxismo nas RI, tendo-se em mente o contexto em que surgiram: o leninismo, as teorias da dependência e, mais recentemente, a teoria crítica. Apresentaremos algumas visões mais representativas de cada uma dessas divisões, e, na medida do possível, contrastaremos com outras teorias, tanto com as de outras escolas de pensamento (realismo e liberalismo), como com as de outros ramos do próprio marxismo. Como vimos anteriormente, tanto liberais como realistas tendem a caracterizar o sistema internacional como anárquico, em função da inexistência de uma autoridade central que se sobreponha aos Estados. No marxismo, premissas como a inexistência de um governo mundial, ou a preeminência dos Estados como principais atores não 19
seriam suficientes para entender a ordem global. Tampouco seria útil, nessa visão, o emprego da categoria analítica anarquia internacional. Quase todos os autores marxistas compartilham da visão de que a ordem global é essencialmente hierárquica, coabitada por atores mais poderosos (ou centrais) que restringem o campo de ação dos mais fracos (ou periféricos).
4.1 Lênin e a teoria do imperialismo Vladimir I. Lênin elaborou aquilo que se tornaria a primeira e decisiva contribuição marxista ao pensamento nas Relações Internacionais. Sua principal contribuição teórica, a obra Imperialismo como a Fase Superior do 2
Capitalismo, foi publicada em 1917 , meses antes da Revolução de Outubro na Rússia, e pouco menos de um ano antes da anunciação dos 14 Pontos pelo então presidente americano Woodrow Wilson, os quais embasariam a vertente liberal nas RI. Na análise leninista, a fase monopolista do capital (a que ele chama de imperialismo), visível já no final do século XIX, envolve a expansão das empresas monopolistas nacionais para o exterior, cujo resultado é a contradição observada entre os Estados que as representam. Podemos destacar alguns pontos de contato do leninismo com outras grandes tradições teóricas em RI. Com o realismo, Lênin poderia concordar que o sistema internacional é composto por Estados nacionais, detentores de diferentes capacidades de poder. No entanto, suas divergências são mais relevantes: a desigualdade entre os Estados, para Lênin, é explicada pela evolução desigual do sistema econômico e dos meios de produção. O interesse nacional, além disso, deve ser entendido conforme os interesses econômicos dos grandes conglomerados e dos monopólios nacionais, e não como algo dado. O autor russo vai além: os principais Estados monopolistas disputam entre si colônias e áreas de influência como consequência da expansão de suas atividades econômicas; por esse motivo, as relações entre eles tendem ao conflito. Esse aspecto foi a principal disputa travada com outro autor influenciado por Marx, Karl Kautsky, para quem as potências capitalistas poderiam evitar a guerra e cooperar, de maneira a reduzirem os gastos com defesa e se contraporem ao movimento revolucionário dos trabalhadores. Analisado tanto por Lênin como pelos primeiros autores liberais, o conceito de autodeterminação significava a luta dos povos contra a dominação ou opressão por parte de potências estrangeiras. Mas a autodeterminação, para Lênin, era expressão da luta nacionalista (que visava à emancipação política) e anti-imperialista (refratária à dominação econômica), ao passo que na linha de raciocínio liberal significava apenas a conquista da soberania política por parte dos povos que tivessem alcançado determinado grau de maturidade e civilização. 3
O leninismo tornou-se a ideologia oficial com a vitória da revolução socialista na Rússia, em novembro de 1917 , ainda que seu legado tenha sido alvo de importantes disputas após a morte de Lênin, em 1924. No que se refere à política externa da URSS, com a chegada de Josef Stalin ao poder em 1929, coube ao governo soviético a tarefa de atenuar o isolamento internacional imposto pelas potências ocidentais e precaver-se do anticomunismo das potências 2
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Uma versão online da obra e traduzida para o português pode ser encontrada no portal marxists.org (). Aqui cabe uma nota a respeito de detalhes da Revolução Socialista na Rússia, em 1917. Em primeiro lugar, até 1918, o referido país fazia uso do Calendário Juliano, que diferia em aproximadamente duas semanas em relação ao Calendário Gregoriano, utilizado, atualmente, por todos os países. Em segundo lugar, a Rússia, em 1917, testemunhou a eclosão de duas importantes revoluções: a primeira, ocorrida em março (ou em fevereiro do calendário antigo), derrubou a Monarquia e instaurou uma República Parlamentar. A segunda ocorreu em novembro (ou outubro do antigo calendário) e significou a ascensão dos bolcheviques ao poder, instaurando, efetivamente, o governo Socialista.
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fascistas, especialmente Alemanha e Japão. A Guerra Fria era vista, na academia soviética, não apenas como um conflito interestatal, mas também — e, principalmente —, como interclassista: os países capitalistas representavam os interesses burgueses, ao passo que os socialistas, o do proletariado no poder. No entanto, como forma de garantir a sobrevivência do sistema social, a URSS buscou, com diferentes graus de intensidade, a defesa do princípio da coexistência pacífica entre os diferentes sistemas socioeconômicos. Essa postura seria alvo de fortes críticas na China, especialmente a partir de meados da década de 50. Com a chegada ao poder de Nikita Khrushev em 1953, a URSS passou a defender mais claramente a tese da coexistência pacífica com os países capitalistas, enquanto a China sob o mando de Mao Zedong passou a arguir a necessidade de ampliar a luta anti-imperialista nos países periféricos, favorecendo, inclusive, a aliança entre os comunistas e a burguesia local mais progressista4. Como resultado, já em 1959 observa-se uma deterioração progressiva das relações entre os dois países, a ponto de colocá-los à beira de uma confrontação militar aberta em 1969.
4.2 As RI na periferia: a teoria da dependência Parte dos autores da chamada teoria da dependência, também chamados de dependentistas radicais, tinha como referência teórica o marxismo, dentre os quais se situam, entre outros, Andre Gunder-Frank, Theutônio dos Santos, Samir Amin e Immanuel Wallerstein. Diferentemente de Lênin e Marx, esses autores têm uma posição em geral mais cética sobre o efeito civilizador do capitalismo nas economias coloniais. Nesse sentido, a própria inserção das colônias e dos países recém-emancipados no capitalismo internacional é um fator para o subdesenvolvimento da periferia ou posição dependente desta em relação ao centro. Embora a preocupação central desses autores tenha a ver com os desdobramentos internos da condição de subdesenvolvimento, e não exatamente com sua política externa, observa-se a importante análise da relação entre os países do centro e da periferia como uma relação de dependência. As análises desses autores convergem parcialmente com o estruturalismo realista de Waltz (1979), especialmente no que se refere à premissa de que a ação dos atores é condicionada pelo sistema internacional. As divergências, no entanto, são bastante evidentes: se, para os realistas, o que diferencia os países são, sobretudo, seus recursos materiais, para os dependentistas, a dialética centro-periferia, na economia mundial, funciona como um ponto de partida. Em linhas gerais, os países periféricos permanecerão explorados pelo centro devido à deterioração dos termos de troca no comércio internacional e à ampliação dos influxos de investimentos externos diretos, o que gera desequilíbrios crescentes em seu balanço de pagamentos.
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Os teóricos dependentistas radicais rejeitam a concepção típica dos realistas, a de que os Estados se comportam racionalmente no sistema internacional, de acordo com sua agenda de interesses nacionais. Samir Amin (1987), por exemplo, argumenta que a dependência é construída entre o capital internacional e a burguesia nacional governante, e é a partir dessa relação entre classes sociais de diferentes países que se deve entender a exploração das massas 4
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Além dessa divergência ideológica, outros fatores políticos e práticos culminaram para a ruptura sino-soviética. Os limites impostos pela URSS à cooperação nuclear bélica, assim como os desentendimentos sobre fronteira, tiveram relevância. A questão que subjaz essa tese é a de que os investimentos externos diretos, após serem internalizados, voltam ao país de origem na forma de lucro. Para o investidor que os executa, esses lucros devem ser maiores do que o valor inicial ingressado, o que pode comprometer a posição da conta corrente no balanço de pagamentos do país em questão.
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no Terceiro Mundo. Para estancar o processo de transferência de valor da periferia para o centro, ele defende a ruptura dos países periféricos com o capitalismo central por meio de uma revolução socialista. Esse é um contraponto em relação às teorias menos radicais, como as de Celso Furtado e Raúl Prebisch, os quais defendiam o desencadeamento da industrialização, principalmente pelo mecanismo de substituição de importações, como forma de superar o subdesenvolvimento econômico. A teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein (1974) é uma das mais influentes na escola marxista. O conceito de sistema-mundo proposto é uma estrutura econômica integrada, a qual apresenta um componente dinâmico, a lógica da acumulação de capital. Por meio dessa lógica dinâmica, os espaços diferenciam-se ao longo do tempo em três categorias: os centros de poder econômico, as periferias, e as semiperiferias, as quais se estabelecem em uma posição intermediária entre as duas anteriores. Enquanto as regiões centrais apresentam atividades econômicas mais intensivas em capital e tecnologia, as periféricas acabam por se especializar na produção e na exportação de produtos básicos. A semiperiferia atinge determinado grau de industrialização e estabelece uma relação de dependência sobre a periferia, da qual importa insumos básicos. Porém, tanto a tecnologia como o capital permanecem dependentes do centro. Alguns países da América Latina, que haviam passado por um significativo processo de industrialização, como o Brasil e o México, já eram enquadrados como semiperiféricos na década de 70, quando a teoria foi proposta. Alguns analistas argumentam que a teoria da dependência falhou em não prever a ascensão econômica dos chamados Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong), que teriam deixado para trás o fardo do subdesenvolvimento por meio de uma estratégia de promoção das exportações e de integração nas cadeias produtivas globais. É possível concordar com esse questionamento na assertiva de que a estratégia de desenvolvimento autárquico (ou voltado para dentro) apresenta limites, especialmente em se tratando de países com mercado interno reduzido. Além disso, em uma economia internacional bastante interconectada e dinâmica, essa estratégia de desenvolvimento pode comprometer a competitividade do país que a adota por um período muito extenso, especialmente em uma economia global cada vez mais integrada. Entretanto as teorias da dependência foram (e continuam) pródigas ao apontarem que países ou regiões que se especializam em exportar insumos básicos correm o risco de perpetuar ou mesmo acentuar seu subdesenvolvimento face aos demais players da economia mundial. E, mais além, países que se industrializam por meio da estratégia de internalização da produção de itens de médio valor agregado, como sugere Wallerstein, não deverão atingir os níveis de desenvolvimento dos países mais avançados.
4.3 A teoria crítica Ainda que a leitura dos sistemas-mundo de Wallerstein permaneça bastante atual, a partir dos anos 80, observa-se o aparecimento de trabalhos de inspiração marxista, mas que se apresentavam críticos tanto às escolas realista e liberal das RI, como às próprias proposições mais clássicas do marxismo. Esses autores, influenciados pela chamada Escola de Frankfurt, vieram a constituir o que se denomina teorias críticas das RI. Diferentemente dos demais subgrupos do marxismo, as teorias críticas têm seu epicentro em universidades da América do Norte e da Europa Ocidental. É interessante frisar que essas teorias reflexivas de forma alguma foram e são peculiaridades das RI; mas 22
integram um movimento que já encontrava ampla ressonância em outras Ciências Sociais décadas antes. No entanto, é apenas com o fim da Guerra Fria e o súbito desmonte dos regimes comunistas na Europa Oriental que elas ganharam adeptos na academia ocidental. Os críticos sustentam que o realismo teria falhado ao observar apenas a questão da distribuição das capacidades materiais, sobretudo bélicas, entre as duas superpotências. Na década de 80, com efeito, a paridade estratégica nuclear pouco havia alterado; mas um exame mais aprofundado acerca da quebra da legitimidade de instituições soviéticas, como o Partido Comunista, por exemplo, poderia dar pistas acerca das mudanças que se sucederam no final daquela década. O principal alvo dos autores críticos é, entretanto, a tradição realista. Robert Cox (1987), autor canadense, questiona o caráter científico tanto do realismo como do liberalismo (tidos por ele como visões positivistas). Segundo esse autor, o realismo acabou tornando-se uma teoria “resolução de problemas”, isto é, realiza o diagnóstico da situação internacional e prescreve sugestões para o poder constituído dos Estados, no sentido de fortalecê-los. É uma teoria conservadora, uma vez que não se compromete com o ideal de emancipação humana, algo que toda teoria social deveria considerar. O realismo, assim como qualquer outra teoria social, deve ser contextualizado no tempo e espaço, e serve aos interesses de determinada audiência. Por esse motivo, jamais pode ser considerado neutro e universal. Por outro lado, Cox e outros autores críticos reconhecem que suas teorias têm abrangência limitada, decorrente da própria condição de ciência social das mesmas. Os críticos retomam o raciocínio comum a quase todos marxistas das RI, de que não faz sentido pensar o sistema de Estados atual como uma realidade dada, sem considerar os processos históricos que o configuraram. No entanto, um dos focos de disputas com o marxismo ortodoxo refere-se à importância das ideias e de outros elementos não materiais para o exercício da liderança de determinado polo de poder. Nesse caso, os autores reabilitam o conceito gramsciano de hegemonia, o qual relaciona o poder físico ou bélico com a construção da legitimidade. Transplantado para as Relações Internacionais, a força militar dos Estados é levada a se justificar constantemente, mesmo nos casos menos defensáveis: a Alemanha nazista, por exemplo, conduziu uma linha de argumentação para atacar a Polônia, em 1939, com base na defesa de seus cidadãos frente a um crescente militarismo polonês. Outra disputa com as demais correntes marxistas é o questionamento ao determinismo e ao excessivo materialismo nas análises sobre a realidade social. Sobre o conceito de hegemonia, os autores realistas a associam com a noção de supremacia militar de determinado poder sobre os demais; para os críticos, o termo envolve também o consentimento geral de que a ordem dada, imposta pelo agente hegemônico, é benéfica a todos os partícipes. Assim, a construção do sistema de Bretton Woods, sob a hegemonia dos EUA, foi possível não apenas graças à supremacia militar sobre seus aliados ocidentais, mas também graças ao esforço de convencimento de que aquela ordem era do interesse não apenas de seu líder, os EUA, mas também de todos seus membros. A análise de Cox, especificamente, não aposta na predominância do componente material, ou do componente das ideias para entender a política internacional. Para ele, existe certa circularidade entre formas de produção (ou forças sociais), organizações políticas nacionais e política internacional: elas influenciam-se reciprocamente, e não de forma unidirecional, como defendem as teorias tradicionais (realistas, liberais e marxistas clássicos). As teorias críticas denunciam a falta de componente dinâmico nas teorias positivistas de RI, porquanto estas apresentam compromisso com a manutenção dos mecanismos de dominação social do Estado-nação, que são 23
reproduzidos em âmbito global via a formulação analítica do sistema internacional interestatal. O poder, na visão das teorias mais tradicionais, tem como compromisso apenas a segurança (ou sobrevivência) daqueles que o exercem, os Estados, e não para a promoção de mudanças sociais. Um aspecto comum a vários autores críticos é o de pensar as Relações Internacionais não como um campo autônomo nas Ciências Sociais, como outros campos também não o são. Economia e política, por exemplo, não devem ser dissociadas ao se analisar determinado contexto social e histórico. Essa visão é compartilhada por autores críticos como Cox, e por autores da chamada Economia Política Internacional (EPI), como Susan Strange. Demais autores críticos reforçam o argumento de que o atual sistema de Estados não é perene, tampouco natural: é fruto de processos históricos complexos, marcados pela superposição de lutas sociais. A noção de soberania territorial, como defendem alguns autores, é algo bastante recente e tem seu início datável no século XIX, após a Revolução Francesa. A premissa dos neorrealistas (corroborada por parcela considerável dos liberais) de que os Estados são funcionalmente semelhantes seria falaciosa, como indicam estudos empíricos de História e de Sociologia. Os teóricos críticos, em virtude de seus posicionamentos bastante desafiadores, apesar das inovações colocadas em prática, sobretudo a partir da década de 90, permanecem bastante marginalizados na academia dos países ocidentais. Com raríssimas exceções, têm sido empregados como professores em universidades de menor prestígio acadêmico, seus trabalhos sofrem menor divulgação nas revistas mais bem avaliadas, e seus projetos de pesquisa têm mais dificuldades em obter recursos de financiamento.
4.4 A “virada” construtivista A partir dos anos 90, tem havido um grande debate em torno das chamadas teorias construtivistas em Relações Internacionais, especialmente na América do Norte e, em menor grau, na Europa. São dois os autores considerados pioneiros nessa agenda de estudos: Nicholas Onuf, por meio da obra World of Our Making: rules and rule in social theory and International Relations, de 1989, cunhou o termo construtivista, e Alexander Wendt, autor do artigo Anarchy is What States Make of It, de 1992. Esses autores configurar-se-ão, também, em duas das principais subdivisões do construtivismo: a primeira, mais à esquerda, detém maior aproximação com as visões pós-modernas ou pós-coloniais, enquanto a segunda apresenta uma agenda de pesquisa mais próxima às visões mais tradicionais (realismo e liberalismo). A questão fundamental que veio à tona, com o advento do construtivismo nas Ciências Sociais, foi o papel das ideias e dos valores na realidade social, e as Relações Internacionais não passaram incólumes a esse debate. O fim da Guerra Fria e o súbito desmonte dos sistemas socialistas, no Leste Europeu, certamente deram impulso às visões não realistas, em especial ao construtivismo, ao liberalismo e, em menor grau, às teorias genuinamente pós-modernas. De acordo com essas visões, o realismo falhou não apenas em não prever os acontecimentos do início dos anos 90, como também teria sido incapaz de observar tendências internas desses países que, ao menos em parte, foram responsáveis pelas transformações na ordem global.
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Apesar de ser uma tarefa bastante difícil agrupar e caracterizar o construtivismo como se fosse um grupo único, dadas as divergências marcantes entre os autores, um aspecto que os aproxima é, justamente, seu viés crítico em relação ao realismo (mesmo que, como veremos, o tom das críticas varie bastante). Wendt, considerado um autor mais moderado do construtivismo, questiona a ideia de a estrutura anárquica levar, inexoravelmente, ao conflito ou à competição entre os seus agentes. Seria necessário observar o comportamento dos agentes para precisar possíveis tendências de conflito ou cooperação; ou seja, a anarquia, como diz o nome de seu famoso artigo, é o que os Estados fazem dela. Outro aspecto fundamental, nessa visão, é o papel da identidade como variável para entender a política externa. Wendt aponta que as cerca de 200 armas nucleares do Reino Unido são consideradas bem menos ameaçadoras para os EUA do que uma única ogiva em posse da Coreia do Norte. A razão para esse problema seria o compartilhamento de uma identidade comum entre EUA e Reino Unido, estabelecida a partir de um histórico de amizade e confiança recíproca, algo não imputável às relações EUA-Coreia do Norte. Nicholas Onuf, ao rejeitar o primado da realidade não como dada, mas socialmente concebida por meio da construção de discursos, representa a parcela mais crítica dentro do construtivismo. Com o conjunto desses discursos predominantes, tem-se a hegemonia cultural, termo que o aproxima das teorias críticas neomarxistas, que veremos adiante. Mais próximos à abordagem de Wendt, outros autores oferecem visões construtivistas para entender o comportamento de determinados Estados. Peter Katzenstein, por exemplo, defende a necessidade de se entenderem a cultura e as normas internas acerca da segurança nacional — essa é a explicação para entender a passagem de uma política militarista para uma pacifista por parte do Japão no pós-II Guerra. Outra abordagem construtivista aplicada a países específicos é levada a cabo por Ted Hopf, que analisa a política externa soviética e russa. Para esse autor, as visões internas sobre o próprio país e sobre seus “rivais” externos, compartilhadas tanto pela elite quanto pela sociedade em geral, são um ponto de partida para entender a política externa em dado momento. Os autores construtivistas têm fornecido interessantes análises sobre o fenômeno da integração econômica e da formação de blocos regionais, em especial o caso europeu no pós-II Guerra Mundial. De acordo com a referida visão, a crescente integração política e econômica, no caso europeu, foi possível não apenas tomando em consideração o interesse nacional dos Estados, mas também graças aos processos de interação social. As estruturas criadas no âmbito dos esquemas de integração, sejam elas formais ou não, ajudam a ampliar o espaço de comunhão da intersubjetividade não apenas entre os Estados, mas também entre as próprias sociedades a que essa integração se dirige, como alegado nessa perspectiva. É interessante destacar que o construtivismo, e mais especificamente o da vertente mais pragmática de Wendt, conseguiu atingir o status de mainstream na academia norte-americana em períodos recentes, diferentemente das outras visões alternativas ao debate realismo/liberalismo. Em uma recente pesquisa publicada pelo jornal Foreign Policy, Alexander Wendt foi considerado, de longe, o autor estadunidense mais influente nas RI nas últimas duas décadas, superando, inclusive, nomes bastante consagrados, como Kenneth Waltz e Robert Keohane.
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Conclusão Como se pôde perceber, o campo de estudo das Relações Internacionais vem se consolidando como instrumental teórico e analítico que busca compreender os fenômenos políticos, econômicos e sociais em âmbito mundial. Embora tenha conquistado o status de ciência social somente no pós-Segunda Guerra Mundial, os primeiros estudos sistemáticos acerca das relações interestatais datam do final do século XIX. Foi nesse período que as teorias geopolíticas do poder terrestre e do poder naval de Mackinder e Mahan passaram a tratar as relações internacionais como resultados da interação de variáveis econômicas e políticas a partir de uma leitura histórico-geográfica da política internacional. Nesse sentido, os principais debates no âmbito da política e da economia formaram o pano de fundo teórico na área das Relações Internacionais. No campo político, em que pesem suas diferenças mais evidentes, as teorias liberais e conservadoras (liberalismo e realismo) fazem oposição à influência do marxismo político no campo teórico das RI. No que tange à análise econômica, o debate acerca do desenvolvimento econômico capitalista aproximou teóricos liberais e realistas em argumentações que se contrapõem aos teóricos marxistas. Nos últimos anos, observou-se uma espécie de contemporização teórica no campo das RI. Assim, a sensibilidade do sistema internacional em relação à dinâmica da história, da política e da economia vem fomentando espaços para a complementaridade teórica nas Relações Internacionais. Isso se explica na medida em que as teorias são contestadas e os autores tendem a encontrar algum ponto em comum com outras argumentações teóricas. É o caso, por exemplo, da interdependência complexa, em que premissas liberais e realistas se aproximam. Igualmente, pode-se dizer o mesmo da Teoria Crítica das relações internacionais, onde a perspectiva internacional é interpretada a partir da consideração de pressupostos marxistas e realistas. Depreende-se, assim, a relevância do instrumental teórico das Relações Internacionais como ferramenta de análise da dinâmica política, econômica e social em nível global. A sua importância respalda-se nas possibilidades analíticas que as Teorias das Relações Internacionais dispõem para compreender os mais variados temas internacionais. Isso posto, dada a alta interação política e econômica dos países, compreender o cenário internacional de forma sistêmica e com profundidade é o primeiro passo para enxergar até mesmo as complexidades cotidianas das sociedades.
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