REDUZIR A IDADE PENAL NÃO É SOLUÇÃO

Munir Cury Procurador de Justiça aposentado

Freqüentemente setores da sociedade e a imprensa sensacionalista insistem no rebaixamento da idade da responsabilidade penal para 16 anos, apresentando-o como resposta para o problema da violência urbana. A primeira pergunta que se nos apresenta é: por que, de tempos em tempos, esse tema ganha tanta evidência? A banalização da violência na sociedade mundial, incluindo, no caso, o nosso país, é um dos principais motivos que trazem à cena a controvertida questão do rebaixamento da idade da responsabilidade penal. Adolescentes envolvidos na prática de atos infracionais graves entre os quais assaltos, estupros, homicídios, etc. - agindo isoladamente ou em gangues, sobretudo nos grandes centros, povoam nos últimos tempos os noticiários de jornais e da televisão, gerando o binômio que se convencionou denominar de jovens violentos e adultos inseguros. O caminho à delinqüência não é provocado apenas pela miséria. Lugares bem mais pobres do que o Harslem (Nova Iorque), Cali (Colômbia), Palermo (Itália), a periferia do Rio de Janeiro ou de São Paulo, têm índices várias vêzes menores de violência e criminalidade. O caminho é feito pela permanente sensação de exclusão, a começar pela casa. Famílias desestruturadas e conflituosas tendem a provocar filhos desajustados, que buscam nas ruas a solidariedade e o respeito que não encontram em casa. Aderir a uma quadrilha não é apenas uma questão monetária. É a vontade de sentir-se respeitado, apoiado, temido. A arma é apenas um instrumento desse respeito, conforme determinam as regras do jogo.

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A escola é o segundo cenário da exclusão. Não sabe como lidar com alunos rebeldes, seus currículos são distantes da realidade, quando não ultrapassados. Os professores, desmotivados. Para manter a disciplina, punem ou reprovam. O que representa mais uma agravante no problema da auto-estima. Laços frágeis na família, na escola, atração pelas gangues, acabam produzindo um círculo vicioso no qual entram as drogas. E, como é sabido, com baixo nível escolar, empregos qualificados tornam-se praticamente impossíveis. As perspectivas de estudo e trabalho vão, desta forma, se fechando: a marginalidade torna-se a única fonte de aceitação. Romper esse ciclo tem sido um verdadeiro desafio para o próprio Estado, o qual, historicamente, tem se demonstrado impotente no oferecimento de políticas sociais básicas que possibilitem uma vida digna para suas crianças e adolescentes. Pelo contrário, o afunilamento de oportunidades tem multiplicado a marginalidade e reproduzido a violência. Ouve-se dizer, até de forma persistente, que os adolescentes que cometem infrações graves não são punidos ou responsabilizados. Mas, não é verdade que existe essa propalada impunidade. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, os adolescentes que tenham praticado tais atos estão sujeitos à medida de internação, cuja característica é a privação de liberdade, tanto quanto a reclusão ou detenção prevista para os adultos. E mais: a medida de internação deve ser cumprida em regime de contenção e segurança, garantindo ao pessoal técnico e auxiliar do estabelecimento a possibilidade de desenvolver um trabalho sério e efetivo que promova a reeducação do infrator, como também cerceando a possibilidade de fugas e indisciplinas que inviabilizem qualquer proposta pedagógica, e coloquem em risco a segurança da comunidade. E ainda: embora a medida de internação tenha a duração máxima de três anos, caso não comprovada a ressocialização do infrator, poderá ele permanecer mais três anos em regime de semiliberdade; e, se persistir a dúvida quanto ao seu retorno à comunidade, ser-lhe-á aplicada a medida de liberdade assistida por mais três anos. Totalizam, por conseguinte, nove anos as etapas de submissão do infrator à intervenção do Estado.

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É preciso ressaltar, no entanto, que o adolescente submetido a esse regime de privação de liberdade, deve receber do Estado o acesso à escolarização e ao aprendizado de uma profissão que o prepare gradualmente ao retorno à sociedade. Isso não vem acontecendo ou ocorrendo de forma absolutamente insatisfatória: confirma-o a característica reincidência dos adolescentes infratores, normalmente com inúmeras passagens anteriores pelas entidades de internação. Argumento que atualmente se propõe é a ampliação do prazo de internação de 3 (três) para 8 (oito) anos, o qual nos parece um ledo engano, posto que o Estado que não desenvolve programas efetivamente ressocializadores dos adolescentes no regime atual o fará no caso de dilatação da medida? Finalmente, não há dúvidas de que em certos aspectos a legislação relativa ao adolescente infrator é mais rigorosa do que a destinada ao adulto. A título de exemplo: se um adulto pratica um roubo a mão armada, a pena que vai receber deverá se situar em torno de 5 anos e 4 meses de reclusão, observados os critérios do Código Penal. Dada a sistemática da Lei de Execução Penal, o infrator cumprirá preso apenas um terço dessa pena, ou seja, mais ou menos 2 anos. O adolescente que praticar o mesmo ato, sujeita-se à medida de internação de até três anos, e sucessivamente, como vimos acima, de mais três anos de semi liberdade e três anos de liberdade assistida. Com este singelo mas significativo exemplo, desmistifica-se o clamor popular de impunidade dos adolescentes infratores. No nosso entendimento, a imputabilidade penal, assim entendida como a capacidade do Estado de atribuir responsabilidade frente à legislação penal comum, não incide em duas hipóteses: em razão da pessoa não ter completado dezoito anos ou por ausência da capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de se determinar segundo esse entendimento. No primeiro caso não se leva em conta, como pensam alguns, o discernimento (a capacidade de entender e querer), mas exclusivamente a idade. O limite de 18 anos, fixado pelo artigo 228 da Constituição Federal, baseia-se em critério de política criminal, nada tendo com a capacidade ou incapacidade de entendimento. É claro que o jovem e mesmo a criança têm o necessário discernimento, sendo ambos capazes de perceber que é reprovado furtar, danificar, matar, e não se

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submetem às regras penais, não só porque a Criminologia concluiu resultar inconveniente aos próprios fins de prevenção e repressão da criminalidade submetê-los ao sistema reservado aos adultos, como e sobretudo em razão da política criminal , considerando a falência do sistema carcerário, propor como alternativa ao método rígido das penas criminais um sistema flexível de medidas protetivas e/ou sócio-educativas capazes, conforme o caso, de proteger, educar, e até punir, melhor prevenindo práticas anti-sociais. O Ministério Público do Rio Grande do Sul, liderando nada mais que 60 (sessenta) entidades que há decadas discutem essa questão, assim se manifestou: “Defender a maioridade penal é caminhar na contramão da maioria das nações.” E prossegue: “Analisando a legislação penal de 57 países, a pesquisa Crime Trends, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) constatou que apenas 17% adotam idade menor a 18 anos como definição legal de adulto. A Alemanha que tinha baixado a idade penal, fez retornar a maioridade para 18 anos e criou, inclusive, uma sistemática diferenciada para o tratamento de infratores entre 18 e 21 anos. O Japão, ao se surpreender com um súbito aumento de criminalidade entre seus jovens, ampliou a maioridade penal para 20 anos, por entender que é educação que se prenive a violência.” (n.g.) Há pontos de identidade e de diversidade na aplicação da pena de reclusão ou detenção ao adulto e da internação ao adolescente. Em ambas as hipóteses, o Estado pune e castiga porque houve uma conduta humana reprovável que atentou contra os valores primordiais e básicos da convivência social. Pune e castiga, nos casos graves, privando de liberdade, em regime de contenção e segurança. Todavia, se até aqui existe identidade entre ambas, a distinção fundamental da internação, como medida sócio-educativa preconizada pelo Estado ao adolescente infrator, é a sua finalidade pedagógica e ressocializadora, tendo em vista a condição da personalidade em desenvolvimento do seu autor. É exatamente em função dessa dinâmica interior peculiar da adolescência que o Estado intervém com uma proposta educativa, considerando que "dedicados a atividades lícitas e socialmente úteis, orientados rumo à sociedade, e considerando a vida com critérios humanistas, os jovens podem desenvolver

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atitudes não criminais" (Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil. Diretrizes de Riad. Princípio nº 1). E mais, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê uma série de medidas precedentes à internação, consagrada e historicamente reconhecida por suas características de violência, represssão, massificação e, por conseguinte, geradora da reincidência, medidas essas que, se aplicadas e executadas corretamente, romperiam a espiral de criminalidade a que fatalmente se submete o adolescente. É comum certos setores da sociedade argumentarem que, se o adolescente pode votar aos dezesseis anos, deve, da mesma forma, ser responsabilizado criminalmente, pois tem discernimento para ambas as situações. Isso, na verdade, não implica no reconhecimento da plena capacidade política do eleitor em questão, uma vez que se reveste de característica restritiva, pois, o adolescente maior de 16 anos tem a faculdade e não o dever de votar. Além disso, não pode ser votado e permanece inelegível até completar 18 anos de idade. Pergunta-se: como extrair de uma capacidade política tão limitada, a ilimitada responsabilidade penal? A opinião pública deve estar atenta e desenvolver sempre o necessário juízo crítico ao receber verdadeiros bombardeamentos de discursos e afirmações políticas equivocadas e oportunistas que, na realidade, não enfrentam corajosamente a difícil questão do abandono a que está relegada a nossa infância e juventude. Como dissemos, não se trata exclusivamente de uma questão de discernimento, pois, uma criança de dez anos de idade não sabe que, ao acionar o gatilho de um revólver, pode matar uma pessoa? Se formos seguir o raciocínio do rebaixamento da idade, chegaríamos às mais baixas faixas etárias, onde se acha presente o discernimento do ato praticado. E daí a corrente se desencadearia... dezoito... dezesseis... doze... oito... seis... Trata-se, na verdade, do enfrentamento sério, consciente e corajoso da grave questão da marginalidade precoce e conseqüente aplicação de medidas previstas na lei. O clamor popular pela segurança, diante da crescente onda de violência de adolescentes, não pode legitimar, por si só, o rebaixamento da idade de

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responsabilidade penal, mesmo porque, se este ocorrer, haverá, sem dúvida, um significativo aumento do quadro de violência na sociedade. Se os nossos presídios já se acham superlotados, gerando freqüentes rebeliões e fugas, rebaixada a idade penal, onde serão colocados os infratores? E em que condições? Inclusive, em que condições de segurança para a própria população? Se, de um lado, a segurança exigida pela população deve ser garantida pelo Estado através de um aparelho policial próprio e adequado, antes mesmo de qualquer reivindicação do cidadão lesado no seu direito, cabe também ao Estado manter os adolescentes autores de atos infracionais em estabelecimentos de contenção e segurança. E, considerando a personalidade em desenvolvimento do adolescente, estimular propostas e implantar programas nesses estabelecimentos que possibilitem a sua reintegração na sociedade. A verdadeira onda de violência, na qual se insere a criminalidade juvenil, não atinge somente o nosso país. Ela é conseqüência de uma sociedade injusta e da descrença nos valores e princípios que lhe são impostos por autoridades e governos que são os primeiros a não respeitá-los. Trata-se, portanto, de uma mudança estrutural da sociedade, no seu mais amplo sentido. Mudança possível, realizável, porém, lenta, profunda e gradual. A curto prazo, no entanto, a resposta do Estado deve ser um insubstituivel e grande investimento em educação, ao mesmo tempo em que executa a medida de internação rigorosamente da forma prevista na lei. Nós não precisamos de novas leis para a solução desse grave problema. O nosso país já tem legislação suficiente para o seu enfrentamento. Basta que seja aplicada. Para isso, são poucos os homens efetivamente comprometidos com o bem comum.