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PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E SAÚDE: TEMAS CONTEMPORÂNEOS Centro Universitário La Salle - Unilasalle Reitor: Paulo Fossatti Vice-Reitor: Cledes Antonio Cas...
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PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E SAÚDE: TEMAS CONTEMPORÂNEOS

Centro Universitário La Salle - Unilasalle Reitor: Paulo Fossatti Vice-Reitor: Cledes Antonio Casagrande Pró-Reitora Acadêmica: Vera Lúcia Ramirez Pró-Reitor de Desenvolvimento: Luiz Carlos Danesi Editora Unilasalle Conselho Editorial: César Fernando Meurer, Cristina Vargas Cademartori, Evaldo Luis Pauly, Rafael Kunst, Tamára Cecília Karawejszyk, Vera Lúcia Ramirez, Zilá Bernd, Ricardo Figueiredo Neujahr (Secretário). Produção: Editora Unilasalle Preparação dos originais: Prisla Calvetti e Denise Quaresma Capa: Fernanda B. Guimarães e Ricardo F. Neujahr Projeto gráfico: Fernanda B. Guimarães e Ricardo F. Neujahr

Diagramação: Fernanda B. Guimarães e Ricardo F. Neujahr

Prisla Ücker Calvetti Denise Quaresma da Silva (Organizadoras)

Editora Unilasalle Av. Victor Barreto, 2288 | Centro | Canoas | RS | 92.010-000 [email protected] 51 3476.8603 / 3476.8626

Prisla Ücker Calvetti Denise Quaresma da Silva Organizadoras

PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E SAÚDE: TEMAS CONTEMPORÂNEOS

Canoas, 2014

Sumário Apresentação / 7 Parte I – Interfases do desenvolvimento humano Fatores de risco e de proteção ao desenvolvimento infantil / 13 Andrea Rapoport, Sabrina Boeira da Silva A pele e o toque no desenvolvimento humano: da prevenção em saúde aos aspectos biopsicossociais implicados no adoecimento / 27 Prisla Ücker Calvetti Gênero, psicologia e educação: notas sobre a subjetivação/construção da sexualidade normal/anormal / 41 Denise Quaresma da Silva Parte II – Das teorias às práticas Reprodução assistida: revelar ou não revelar aos filhos? / 57 Gisleine Verlang Lourenço, Daniela Knauth, José Roberto Goldim, Luiz Eduardo T. Albuquerque, Ana Rosa Detílio Monaco, Maria Lucia Tiellet Nunes, Eduardo Pandolfi Passos Violência na infância: um olhar a partir da prática clínica / 69 Lúcia Belina Rech Godinho Uso de drogas na contemporaneidade: perspectivas de compreensão e práticas de intervenção / 87 Luciane Raupp

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Parte III – Olhares contemporâneos Contribuições de Freud à psicoterapia / 103 Julio Cesar Walz Donald Winnicott: para pensar saúde e educação / 117 Cleber Gibbon Ratto Autores / 139

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Apresentação O séc. XXI estava prestes a engatar e já se encontrava delineado certo sentimento de que a psicologia repensava os processos humanos na contemporaneidade. Nessa assertiva, profissionais da Psicologia apresentam nesta obra questões pertinentes a este repensar e lançam múltiplos olhares sobre a interlocução com a saúde e a educação, dialogando desde as interfaces do desenvolvimento humano às teorias e práticas, culminando esta proposta acadêmica com a exposição de alguns olhares contemporâneos. Ao elencarmos as interfaces do desenvolvimento humano como ponto de partida deste livro, propomos o entendimento da infância apresentando subsídios par a compreensão dos fatores de risco e de proteção no desenvolvimento infantil, bem como na prevenção em saúde e os aspectos biopsicossociais implicados no adoecimento do bebê humano, reiterando a importância do toque na pele para seu desenvolvimento sadio. Sabemos que essa não é uma equação simples para predizer resultados, ou seja, considerando-se vários aspectos podemos falar em probabilidades e que as influências sobre o desenvolvimento provêm tanto da hereditariedade quanto do ambiente. Neste sentido, assinalamos que a escolarização tem papel fundamental na vida de uma criança, não apenas por todo potencial que a educação terá na sua vida, mas também porque na escola muitas crianças em situação de vulnerabilidade social, desestruturação familiar, pobreza e maus-tratos estão em contato com profissionais que podem intervir em seu desenvolvimento servindo como fatores de proteção e que, muitas vezes, são capazes de redirecionar os caminhos destas crianças. A educação também é ponto de reflexão na continuidade, quando propomos olhares sobre a interlocução entre Gênero, Psicologia e Educação: notas sobre a subjetivação/construção da sexualidade normal/ anormal. Cada pessoa fala a partir de um lugar que expressa o cruzamento de características específicas de gênero, raça/etnia, classe social, religião, orientação sexual, localização, geração etc. Referindo-se ao gênero, essas características remetem às construções sobre o papel de homem e de mulher em nossa sociedade que se relacionam com determinadas normas, regras e papéis sociais. A Psicologia, enquanto campo de pesquisa, formação e atuação relacionada ao ser humano tem muito a contribuir no que se refere à desconstrução das 7

desigualdades sociais e de gênero. Para tanto, esse estudo tem que ser efetivado em um terreno transversal, pois estudar gênero no âmbito da Psicologia perpassa o entendimento de que categorias transversais de gênero, raça/etnia, classe social, orientação sexual e geração se cruzam construindo sujeitos com certas especificidades que precisam ser observadas. Os estudos de gênero têm confirmado que existem padrões ou ideais de masculinidades e feminidades hegemônicas e que esses padrões que se instituem como normas e expectativas são, de maneira acentuada, os mais valorizados e aceitos socialmente, sendo os demais comportamentos considerados anormais. Na continuidade, seguimos indagando questões pertinentes a contemporaneidade ao problematizar: reprodução assistida: revelar ou não revelar aos filhos? Apontamos que estima-se que a cada ano 3.5 milhões de crianças nascem através de processos de reprodução assistida, o que torna a temática relevante e atual. Mergulhando nas famílias atuais, propomos para além da problemática sugerida que possamos pensar nas violências vivenciadas na infância. A experiência clínica leva o profissional a se deparar com realidades que vão de um extremo a outro completamente oposto quando se trata da educação de crianças e é justamente nestes extremos que dialogamos sobre as violências praticadas, sejam físicas, psicológicas, negligências, violência sexual, Síndrome de Münchausen por procuração ou Síndrome do bebê sacudido. Propomos entendimentos e discussões sobre seus efeitos na e para a infância. Todas estas problemáticas relevantes nos levam a pensar no mal estar social vigente e por isso, nossas reflexões dirigem-se ao uso de drogas na contemporaneidade, discutindo perspectivas de compreensão e práticas de intervenção, pensando sobre a questão do uso de substâncias psicoativas na atualidade sob uma perspectiva histórico social, destacando a forma de compreensão das Ciências Humanas e Sociais acerca da relação dos seres humanos com as drogas, assim como as transformações nas práticas de uso e prejuízos a elas associados. Em um segundo momento, articula-se essa perspectiva com as modalidades de compreensão e intervenção sobre os problemas decorrentes do abuso de drogas, destacando as concepções que orientam as políticas públicas que regulam o setor. Finalizamos nossa tarefa acadêmica entregando para os/as leitores/as subsídios teóricos advindos de Donald Winnicott para pensar saúde e educação e da teoria freudiana, com as contribuições de Freud à psicoterapia, onde pos8

tula-se que a psicoterapia foi um passo importante na história da humanidade. Formula o autor: trata-se de uma chance real de podermos nos tornar mais humanos, sem dúvida nenhuma, pois a neurose é o oposto disso, ela é uma obturação completa da capacidade de aprender com a experiência da vida como ela é. Tomamos emprestadas essas palavras para sintetizar nosso pensamento ao finalizarmos esta apresentação: falar, discutir, aproximar a Psicologia da Saúde e da Educação, trata-se de uma chance muito importante de tornarmos a vida mais humana, mais saudável e com muito mais potência de vida.

As Organizadoras

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Parte I – Interfases do Desenvolvimento Humano

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Capítulo 1 FATORES DE RISCO E DE PROTEÇÃO AO DESENVOLVIMENTO INFANTIL Andrea Rapoport

Currículo Lattes

Sabrina Boeira da Silva Ao se abordar o tema sobre fatores de risco e de proteção ao desenvolvimento infantil torna-se importante explicar que esta não é uma equação simples para predizer resultados, ou seja, considerando-se vários aspectos podemos falar em probabilidades. Segundo Papalia, Olds e Feldman (2006) durante muito tempo se discutiu o que influenciaria o desenvolvimento humano, se os aspectos do ambiente, a maturação ou os fatores hereditários. Embora tenham existido explicações ambientalistas que sugeriam que as pessoas seriam resultado de suas experiências ou as inatistas que explicavam as características de uma pessoa a partir da hereditariedade, hoje é praticamente consenso que estes não podem ser separados embora ainda se discuta o peso que cada um tem. Dessa forma, as influências sobre o desenvolvimento provêm tanto da hereditariedade quanto do ambiente. Buscando-se prevenir e também reduzir riscos, assim como intervir de forma adequada nos casos de crianças já afetadas por fatores que possam prejudicar o seu desenvolvimento torna-se importante o conhecimento de quais são os fatores que podem afetá-las negativamente e quais, de forma contrária, podem servir de proteção. Este conhecimento não deve restringir-se aos profissionais da área da saúde, mas deve ser realizado um trabalho de formação constante com aqueles que em seu cotidiano trabalham com as crianças que estão frequentando as escolas, embora saibamos que muitas ainda estão fora delas. A escolarização tem papel fundamental na vida de uma criança, não apenas por todo potencial que a educação terá na sua vida, mas também porque na escola muitas crianças em situação de vulnerabilidade social, desestruturação 13

familiar, pobreza e maus-tratos estão em contato com profissionais que podem intervir em seu desenvolvimento servindo como fatores de proteção e que, muitas vezes, são capazes de redirecionar os caminhos destas crianças.

Vulnerabilidade social O termo vulnerabilidade social tem recebido diversas definições, assim como tem sido empregadas outras denominações para o mesmo tema, como famílias em situação de risco, famílias pobres, famílias de baixa renda, famílias de camadas populares entre outros para denotar o mesmo sentido (Prati, Couto e Koller, 2009). O estudo desses termos apontou para um único foco: trata-se de famílias que se apresentam vulneráveis por estarem fragilizadas e suscetíveis a fatores de risco. A vulnerabilidade social pode ser identificada em uma única família ou em uma comunidade inteira, o que é mais comum e é definida por Prati e colaboradores (2009, p. 404) da seguinte forma: Vulnerabilidade social é uma denominação usada para caracterizar famílias expostas a fatores de risco, sejam de natureza pessoal, social ou ambiental, que coadjuvam ou incrementam a probabilidade de seus membros virem a padecer de perturbações psicológicas. A pobreza extrema seguidamente acompanha a vulnerabilidade, no entanto não é o que a define. Vulnerabilidade caracteriza-se também pela impossibilidade de modificar a condição atual em que se encontra (Kaztman apud Silva, 2007). Geralmente estas pessoas ou grupos sobrevivem em condições precárias no que se refere à alimentação, higiene, educação e saúde, sem acesso a melhores oportunidades de emprego.

Fatores de risco ao desenvolvimento infantil O impacto no desenvolvimento das experiências vivenciadas pelas crianças, em situação de vulnerabilidade social ou não, será influenciado pelo que chamamos de fatores de risco e de proteção. Fatores de risco são todas as adversidades que podem interferir no desenvolvimento humano, seja na infância, na adolescência ou qualquer outra fase da vida (Sapienza & Pedromônico, 2005). A possibilidade de danos é agravada pelo o que Sapienza e Pedremônico chamaram de riscos cumulativos e também da 14

associação de vários fatores de risco. Coll et al., 2004) referem uma diversidade de fatores que incluem fatores da criança, do microssistema familiar, do microssistema de iguais, da escola, a conexão entre estes sistemas e por fim fatores do macrossistema. Ou seja, esta criança que tem suas próprias características como sexo, idade, tipo de temperamento, ausência presença de problemas evolutivos está inserida em uma família que também tem sua forma de funcionamento e especificidades, a criança está numa escola ou não, tem um determinado tipo de relações com outras crianças e está inserida num contexto socioeconômico e cultural. Esta gama de fatores tem polos positivos (fatores de proteção) e negativos (fatores de risco). Grande parte dos fatores de risco encontra-se no próprio lar da criança e na comunidade em que esta habita. Alguns destes são identificados como pobreza extrema, violência física e/ou psicológica, desestruturação familiar, vulnerabilidade social, maus-tratos, negligência (Amparo et al., 2008), assim como criminalidade, drogas ilícitas, álcool, desemprego e baixa escolaridade (Siqueira & Dell’aglio, 2010). Algumas situações vivenciadas no próprio lar da criança caracterizam-se como fatores de risco comuns em comunidades em situação de vulnerabilidade social, por exemplo, os maus-tratos físicos e/ou psicológicos. Segundo Sapienza e Pedromônico (2005, p. 210) “aquelas crianças com dificuldades socioeconômicas cujas mães sejam também jovens, solteiras e pobres ou que tenham vindo de famílias desorganizadas, ou ainda crianças que tenham pais com desordens afetivas [...] são vulneráveis a eventos estressores”. Entre as modalidades de maustratos, as que apresentam maior ocorrência nas comunidades vulneráveis são o abuso físico, o abuso sexual, a negligência e a violência psicológica. O abuso físico envolve maus-tratos corporais e está presente principalmente no ambiente familiar ou em seu entorno, sendo geralmente praticado por pessoas que possuem laços afetivos ou sanguíneos. Utilizando castigos físicos, coercivos e práticas violentas para a “educação” dos filhos, pais/responsáveis que apresentam um modelo familiar com relações agressivas, adotam o discurso de estarem educando, porém não percebem que a violência por eles praticada contra seus filhos poderá causar sérios danos ao desenvolvimento desta criança (Ferreira & Marturano, 2002). Em estudo realizado com professoras que possuíam em sua sala de aula crianças vítimas de abuso físico e violência familiar, verificou-se que o desempe15

nho escolar dessas crianças é inferior ao dos outros alunos, assim como foram observados comportamentos agressivos e indisciplina (Pereira e Williams, 2008). Esses problemas de comportamento causados pelo abuso físico trazem danos ao desenvolvimento psicológico também em outras fases da vida, pois o comportamento da criança com características antissociais que repercute nas relações na escola e no desempenho possivelmente conduzirá o jovem a um grupo de amigos de risco e a uma posterior delinquência (Bee, 1997). Dessa forma, muitas vezes, a família, que deveria ser a primeira a proteger de agressões e situações de conflito e violência, acaba sendo a responsável por uma futura delinquência que poderá decorrer da vivência e da violência sofrida quando criança. Segundo Maia e Williams (2005) a negligência refere-se ao fato de privar a criança de algo que ela necessita, quando isto é fundamental para um desenvolvimento sadio. Por exemplo, alimentação, vestuário, segurança, estudo, afeto, etc. Esta pode ser decorrência de fatores que fogem à vontade da família, mas que se relacionam a falhas do Estado em lhes prover condições que são direito como cidadãos. Por outro lado, podem estar diretamente ligadas a falhas na atuação da família como cuidadora e protetora da criança, responsável por seu desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social (Bérgamo & Faleiros, 2010). A violência psicológica refere-se tanto às ameaças e humilhações como também à privação emocional. O Conselho Americano de Pediatria (Maia & Williams, 2005, p. 94) elenca prejuízos em várias áreas decorrentes deste tipo de violência: Pensamentos intrapessoais (medo, baixa autoestima, sintomas de ansiedade, depressão, pensamentos suicidas, etc.), saúde emocional (instabilidade emocional, problemas em controlar impulso e raiva, transtorno alimentar e abuso de substâncias), habilidades sociais (comportamento antissocial, problemas de apego, baixa simpatia e empatia pelos outros, delinquência e criminalidade), aprendizado (baixa realização acadêmica, prejuízo moral), e saúde física (queixa somática, falha no desenvolvimento, alta mortalidade).

Já o abuso sexual, uma das modalidades que implica mais seriamente no desenvolvimento da criança, refere-se ao fato de um ou mais adultos buscarem prazer sexual utilizando a criança. Há uma relação de poder da pessoa agressora, geralmente mais velha, de quem a vítima depende intelectual, emocional ou economicamente. De acordo com Williams (apud Meira & Williams, 2005, p. 95) a criança vítima de abuso sexual pode manifestar comportamento sexualizado, ansiedade, depressão, queixas somáticas, agressão, regressão no seu desenvolvi16

mento, autoagressão, problemas na escola, entre outras manifestações a curto prazo. Os prejuízos não são apenas a curto prazo, a longo prazo podem ocorrer “depressão, ansiedade, prostituição, problemas de relacionamento sexual, promiscuidade, abuso de substâncias, ideação suicida entre outros”. Por outro lado, algumas vezes a criança vitimizada pode apresentar manifestações minimamente perceptíveis (Inoue & Ristum, 2008). De acordo com Inoue e Ristu (2008), estudos demonstram que a escola tem papel significativo para a descoberta de casos de abuso infantil, já que é lá que a criança passa boa parte do dia. As professoras são mencionadas como quem mais identifica a violência sexual, seja através da verbalização das crianças ou comportamentos que indiquem o abuso, e por isso seria importante oferecer a estas uma formação para que a abordagem e encaminhamento sejam feitos de forma correta e não prejudiquem ainda mais a criança. Vê-se a importância de abordar também a questão do trabalho infantil como fator de risco, pois esta realidade está fortemente presente no cotidiano das comunidades que apresentam situação de vulnerabilidade social. Gomes (1998) trata o trabalho infantil como um adoecimento da família e não só da criança, referindo que não se pode querer culpar somente os pais pela situação, já que estes são também vítimas muitas vezes de um sistema que os deixa sem opção ou sem conhecimento dos danos que estão causando ao desenvolvimento dos filhos, já que esta prática pode ser vista como natural por estes pais. Muitas vezes pobreza extrema faz com que o grupo familiar se mobilize, todos em prol da sobrevivência, para prover o seu sustento (Gomes, 1998). No entanto, existe ainda a exploração do trabalho infantil, que se diferencia pelo caráter nocivo à saúde física e psicológica da criança e do adolescente, e também por estar relacionado ao benefício de um sobre o outro, no caso da exploração do trabalho infantil, do adulto sobre a criança, no intuito de obter vantagem ou lucro. Diferindo do trabalho em prol do núcleo familiar, a exploração pode estar explícita em casos onde pais que não trabalham exploram seus filhos para que estes promovam o sustento do lar (Gomes, 1998). A exploração do trabalho infantil, segundo escolarização regular, tão imprescindível à preparação deles para a cidadania plena. Uma das sérias consequências trazidas pelo trabalho infantil é, então, a evasão escolar, pois a criança abandona a escola para dedicar-se somente à atividade remunerada. Para contrapor essa necessidade, os programas que buscam 17

erradicar o trabalho infantil e incentivar a frequência escolar são de fundamental importância. Entretanto, Kassouf (2007) analisa que os programas governamentais de auxílio financeiro para que as crianças frequentem a escola não inibem o trabalho das crianças, pois não garantem que no turno inverso à escola estas crianças deixarão de trabalhar.

Fatores de proteção ao desenvolvimento infantil Ao pensar em casos de crianças que passaram por maus-tratos e vivem em situação de vulnerabilidade social nem todas são igualmente afetadas por estas situações. Como uma possível resposta a esse questionamento se apresentam os fatores de proteção, que se caracterizam das mais diversas formas, contribuindo para o desenvolvimento e para a redução dos traumas sofridos. Segundo Branden (apud Amparo et al., 2008, p. 167) se dividem em três categorias: (1) Fatores individuais, tais como autoestima positiva, autocontrole, autonomia, características de temperamento afetuoso e flexível; (2) fatores familiares, como coesão, estabilidade, respeito mútuo, apoio/suporte; (3) e, fatores relacionados ao apoio do meio ambiente, como bom relacionamento com amigos, professores ou pessoas significativas que assumam papel de referência segura à criança e a faça sentir querida e amada.

De acordo com o autor, estão envolvidos nos fatores de proteção características pessoais, influenciadores familiares e sociais. A criança poderá buscar não somente em si, mas principalmente na família e na escola apoio para desenvolver-se adequadamente. Os fatores de proteção pessoais estão diretamente relacionados à forma como se dá o desenvolvimento da criança. Por exemplo, quando ela desenvolve relações seguras de apego com os pais ou cuidadores, principalmente no primeiro ano de vida, estará mais fortalecida para enfrentar as adversidades, tornando a criança menos suscetível a danos decorrentes do meio social (Bee, 1997). Segundo Sapienza e Pedromônico (2005) o bom relacionamento dos pais com os filhos pode ser considerado importante fator de proteção, talvez o mais relevante, pois influenciará diretamente a criança. Por constituir-se em um importante fator de proteção para a criança, derivado das relações familiares, mas que depois se transforma numa característica que acompanhará o indivíduo pelo resto de sua vida, entendemos ser importante explicar sobre a teoria do apego. 18

Bowlby (1989) ao abordar a teoria do apego refere a importância dos primeiros três anos de vida, mas em especial do primeiro, para o desenvolvimento de uma pessoa segura, tendo um desenvolvimento emocional saudável e estando mais apta para enfrentar as adversidades da vida. Para o autor, o bebê e a criança pequena precisam contar com cuidados adequados, que respondam às suas necessidades afetivas, de proteção, assim como as necessidades básicas, transmitindo-lhes que têm com quem contar quando necessitam e que o mundo é bom e confiável. O autor descreveu em sua obra três tipos de apego e relacionou-os às condições familiares vivenciadas pela criança. Segundo Bowlby (1989) os tipos de apego são: apego seguro e inseguro ansioso ou inseguro com evitação. No apego seguro, a criança tem confiança de que os pais estarão disponíveis, oferecendo ajuda em caso de situação adversa ou amedrontadora. É promovido por um dos pais, especialmente a mãe, que nos primeiros anos se mostra disponível, sensível aos sinais da criança e com respostas amáveis quando esta busca conforto e/ou proteção. O apego inseguro e ansioso caracteriza-se pela incerteza da criança na disponibilidade dos pais para ajudá-la caso necessite. Devido a isto, ela tende a ficar grudada, demonstrar ansiedade de separação e dificuldade de explorar o mundo. É promovido por pais que se mostram instavelmente disponíveis e prestativos, por separações e ameaças de abandono usadas como forma de controle. Já o apego inseguro com evitação ocorre quando a criança não tem nenhuma confiança de que se procurar ajuda e cuidado irá recebê-lo, esperando ser rejeitada. Este modelo é promovido por uma mãe que rejeita constantemente a criança, sempre que ela a busca para conforto e proteção. Por fim, o apego desorganizado, descrito posteriormente por Main e colegas foi observado em crianças que sofreram abuso físico ou foram completamente negligenciadas pelos pais.

Resiliência Mesmo passando por situações múltiplas de adversidades algumas pessoas permanecem resistentes e são pouco afetadas de forma negativa em seu desenvolvimento. Esse tipo de fenômeno passou a ser estudado, uma vez que desperta, no mínimo, estranheza o fato de alguns indivíduos serem capazes de superar os traumas e outros não. A resiliência configura-se pela capacidade que um indivíduo ou um grupo possui de se recuperar psicologicamente após vivenciar situações extremas (Amparo et al., 2008). Segundo Sapienza e Pedromônico 19

(2005) a resiliência configura-se como um fator de proteção para a adaptação do indivíduo às demandas cotidianas, estando relacionada à autoestima e ao autoconceito de cada um, pois dependerá da forma como este recebe e interpreta as situações de risco. O indivíduo resiliente passa por situações adversas, porém com perspectivas otimistas, apresentando estratégias de enfrentamento eficazes que os tornam capazes de superar e progredir apesar dos obstáculos que lhes são postos. Silva, Elsen e Lacharité (2003) citam uma pesquisa longitudinal realizada por Werner (1995) em que foram acompanhadas durante trinta e dois anos 698 crianças nascidas na ilha de Kauai-Hawaii. Os resultados desta pesquisa mostraram que as crianças que se desenvolveram adequadamente contaram com fatores de proteção como laços afetivos positivos dentro da família com pelo menos um cuidador, especialmente durante o primeiro ano de vida e encontraram suporte emocional fora de casa, geralmente de um professor na escola, de amigos ou outra pessoa que as apoiavam, principalmente nos períodos de maior estresse. A pesquisa confirma a importância dos laços familiares e redes de apoio, sejam elas na escola, amigos ou qualquer outra pessoa ou instituição que acolha esta criança em momentos de conflito. Está explicitado ainda que o apego desenvolvido no primeiro ano de vida torna o indivíduo mais confiante e seguro, capaz de enfrentar situações adversas e desenvolver resiliência. O estudo sobre resiliência traz ainda questões relativas às possibilidades de reversão do quadro social em que o resiliente está inserido, pois nega o conceito de que uma criança que se desenvolve em uma comunidade vulnerável, em uma família desestruturada ou passa por qualquer outra adversidade estará destinada a viver tal como foi criada e reproduzir a violência que sofreu (Silva, Elsen, & Lacharité, 2003). Entretanto, não se pode desprezar o fato da pobreza extrema ser identificada como um fator de risco capaz de reduzir a possibilidade de a criança ser resiliente, pois acarreta diversos outros fatores adversos já amplamente citados acima.

A família, a escola e a criança em situação de vulnerabilidade social Sabe-se que grande parte das escolas, onde existem as queixas em relação ao desempenho dos alunos, encontram-se situadas em comunidades carentes e vulneráveis e, segundo Ferreira e Marturano (2002), neste contexto as crianças tendem a apresentar mais problemas de desempenho escolar e de comportamen20

to. Talvez, devido ao fato de muitos dos pais ou responsáveis por essas crianças apresentarem baixa escolaridade e não reconhecerem na escola uma oportunidade de ascensão social (Pereira, Santos, & Williams, 2009). Em um estudo realizado foi constatado que mães com mais anos de estudo se envolvem mais com a escolaridade de seus filhos, e que esse maior envolvimento está associado a um melhor desempenho da criança (Stevenson & Backer, apud D’avila-bacarji, Marturano & Elias, 2005). O incentivo dos pais e a importância que estes direcionam à escola são fatores que contribuirão para o comprometimento da criança com a educação de forma que pais que acompanham seus filhos, que se preocupam com seu desempenho e disponibilizam algum tempo para verificar as atividades da escola junto com as crianças aumentam as chances de seus filhos obterem um bom desempenho (Marturano, apud D’avila-bacarji, Marturano, & Elias, 2005). O bom relacionamento com os pais ou cuidadores também pode ser um fator importante no interesse e na preocupação da criança em realizar as tarefas da escola, observam D’avila-Bacarji, Marturano e Elias (2005). Existem ainda outros fatores que dependem da família e que poderão influenciar no desempenho escolar das crianças. Crianças cujos pais não possuem hábitos de leitura, não costumam ler ou contar histórias a seus filhos, podem influenciar seu interesse. O fato de muitas crianças estarem distantes de formas de estimulação intelectual, que poderiam lhes despertar interesse e curiosidade, pode acarretar altas taxas de problemas e de fracasso escolar, principalmente em bairros pobres (Bee, 1997). Na vida de uma criança a escola desempenha funções imprescindíveis. Neste ambiente serão proporcionadas vivências que farão parte do desenvolvimento e contribuirão para a aprendizagem, podendo significar ainda local de proteção, onde a criança se sentirá acolhida. Os laços formados com professores e colegas servirão para que a criança sinta-se inserida em um grupo onde ela poderá aprender a reelaborar seus sentimentos de medo, agressividade, frustração, bem como seus colegas e professores (Sampaio, 2004). Acredita-se que, principalmente em comunidades vulneráveis, a escola assume funções que vão além do ensino. A carência afetiva e social das crianças obriga o corpo docente a oferecer mais do que a legislação delega à escola (Sampaio, 2004). Segundo a autora, a escola acaba assumindo funções que antes eram ocupadas pela família, mas que com a desestruturação que nos dias de hoje é 21

quase comum à maioria dos alunos, recaem sobre a instituição escolar. É necessário considerar ainda a qualidade do trabalho e o comprometimento investido na escola por aqueles que a compõe. Sabe-se que o modo como o ensino é conduzido, a estrutura da escola, a metodologia usada pelo professor e o investimento destes em relação aos alunos serão fatores determinantes na aprendizagem das crianças que lá estudam. Mais do que recursos financeiros e boa estrutura, para a escola funcionar bem são necessários também profissionais motivados, preocupados com a formação de seus alunos. Dessa forma, quando o foco do ensino é a qualidade que se oferece ao aluno, mesmo com poucos recursos torna-se possível a escola proporcionar um ambiente favorável ao desenvolvimento e à aprendizagem. Quando a escola encontra-se situada em um bairro onde a vulnerabilidade social faz parte da vida das famílias, o professor tem pela frente ainda mais um desafio que se caracteriza pelas dificuldades em lecionar em uma classe que une especificidades em um único núcleo. Nessas comunidades podem ser encontrados em uma mesma sala de aula alunos que passaram por experiências extremas, muitos deles com privações e déficits que se colocam como empecilhos ao desenvolvimento e à aprendizagem. Entretanto, o professor que se dispõe a trabalhar com este perfil precisa ter o cuidado de não determinar a capacidade de seus alunos pela situação em que estes vivem. Silva (2011, p. 69) refere que muitos professores criam rótulos da capacidade intelectual segundo a classe social dos alunos. A partir disso, os professores seguindo uma visão determinista deixam de investir nesta criança e aí poderá se perder um grande talento, uma possibilidade de sucesso e superação. Por outro lado, um professor que atua em uma comunidade vulnerável possui nas mãos a possibilidade desenvolver um trabalho diferenciado com estes alunos, que certamente é privado de muitas outras possibilidades.

Considerações finais São muitos os fatores que interferem no desenvolvimento de uma criança, principalmente quando esta vivencia situações traumáticas e permanece em situação de vulnerabilidade social. Conhecer esses fatores e compreender a forma como influenciam no seu desenvolvimento é fundamental para aqueles profissionais que atuam com estas crianças. Embora não tenha-se abordado, no pre22

sente artigo, fatores de risco como negligência e maus-tratos físicos, psicológicos e abuso sexual não são exclusivos de comunidades que vivem em situação de vulnerabilidade social, embora sejam mais prevalentes pelo acúmulo de fatores de risco ao qual estão submetidas. Neste espaço também não foi possível enfatizar todos os fatores de risco e de proteção, pois é uma temática bastante ampla. Por exemplo, a idade em que a criança é submetida a um evento adverso, características de seu temperamento, condições de saúde incluindo deficiências físicas e psicopatologias são alguns fatores que deixaram de ser abordados podendo constitui-se em uma limitação do presente estudo, mas também em um convite para outras leituras. Outro aspecto que merece atenção é o trabalho de prevenção que pode ser feito não apenas na escola, mas também na esfera da saúde pública através de ações de prevenção primária em saúde mental intervindo diretamente com as famílias e fortalecendo os laços afetivos e orientando para práticas parentais que promotoras de um desenvolvimento saudável.

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Capítulo 2 A PELE E O TOQUE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO: DA PREVENÇÃO EM SAÚDE AOS ASPECTOS BIOPSICOSSOCIAIS IMPLICADOS NO ADOECIMENTO Prisla Ücker Calvetti

Currículo Lattes

A pele é o maior órgão de percepção no momento do nascimento, sendo um órgão de comunicação visível e se tornando meio de contato físico e para a transmissão de sensações físicas e emoções (Müller, Cenci, Hoffmann, Boschetti, Kim, Redivo, & Ludwig, 2001). É o espelho do funcionamento do organismo: sua cor, textura, umidade, secura, e cada um de seus demais aspectos refletem nosso estado de ser, psicológico e também fisiológico (Montagu, 1988; Gascon, 2012). Órgão sensorial primário, a pele divide-se entre a epiderme, constituída de tecido epitelial, é formada por células mortas na camada mais externa. A derme, formada por tecido fibrilar que proporciona a sua elasticidade e o hipoderme, tecido celular subcutâneo, também chamado panículo adiposo. Originase da mais extensa das três camadas embriônicas, a ectoderme de onde derivam também a epiderme e os sistemas nervosos periféricos e central. Conforme Caminha, Soares e Kreitchmann (2011) a pele humana é composta de diferentes classes de receptores que são sensíveis a fatores como calor, pressão, temperatura e movimento (entre outros), mas cujas respostas são processadas e depois unificadas para criar a sensação do toque. A pele é como um sistema de abrigo de nossa individualidade, atuando como limite dentro-fora, eu e o outro, eu e o mundo. Ao mesmo tempo em que nos protege, é a fachada que nos expõe (Strauss, 1989, p. 1221).

Toque e desenvolvimento humano saudável É importante salientar que a pele tem origem embrionária, desde a 27

gestação a ectoderme é formada interligada ao sistema nervoso, mostrando a relação entre este órgão e o psiquismo. Em relação ao desenvolvimento humano o toque tem importante papel na promoção da saúde desde o início da vida até o envelhecimento. Na gestação o toque da mãe na barriga proporciona fortalecimento do vínculo com seu bebê. Desde então, o toque é promotor de saúde. A amamentação posteriormente ao nascimento, além de proporcionar nutrientes necessários para o desenvolvimento da criança, é importante para melhorar as funções respiratórias e a oxigenação do sangue, além de receber o toque carinhoso da mãe. O sistema imunológico do bebê é fortalecido. Efeitos fisiológicos do toque também são manifestos em relação a sexualidade. O tato é a verdadeira linguagem do sexo. A presença ou ausência apresenta-se relacionada a experiências prévias ligadas ao tato. A privação cutânea no início da vida nas relações podem estar implicadas na dificuldade de casais ao contato físico e afetivo. O toque está diretamente relacionado a experiências de prazer, elemento de intimidade. Ainda discorrendo sobre o desenvolvimento humano, o tato é uma das experiências mais negligenciadas ao envelhecer, em especial na terceira idade. Sabe-se que o contato físico é inclusive preventivo de depressão, em especial nesta etapa do ciclo da vida. Portanto, pode-se observar que a presença ou ausência do toque desde o início da vida tem suas repercussões na saúde e na doença. A seguir apresento os aspectos biopsicossociais implicados no desenvolvimento humano quando a pele é acometida pelo adoecimento.

A pele e o adoecimento De acordo com Gupta e Gupta (1996), é estimado que pelo menos um terço dos pacientes com doença dermatológica apresenta aspectos emocionais associados. Os prejuízos em suas vidas são evidentes, incluindo sofrimento psíquico, como referido no estudo de Taborda, Weber e Freitas (2005), em que foram avaliados pacientes dermatológicos do espectro psicocutâneo através do Self Reported Questionnaire (SRQ-20), instrumento de triagem de doença mental. Verificou-se presença de sofrimento psíquico em 25% da amostra. O estudo de Ludwig (2007) também encontrou sofrimento psicológico em pacientes dermatológicos. Avaliando 205 pacientes com diferentes dermatoses, os resultados 28

demonstraram que 65,9% apresentavam sintomas de estresse. A maioria dos pacientes estava na fase de resistência (50,7%) e apresentava predominantemente sintomas psicológicos (46,8%) se comparados aos físicos (10,2%). Sabe-se que o estresse é um fator que está relacionado com o surgimento e desenvolvimento de doenças, desde os estudos de Selye em 1936. Muitos pesquisadores têm buscado aprofundar os conhecimentos sobre a relação entre o estresse e as doenças de pele. Rodríguez, Celis e Sosa (2002) referem que extensos estudos indicam que o estresse emocional pode exacerbar alguns eventos, como na psoríase, por exemplo. A questão psicossomática está implicada no adoecimento da pele, já que o estresse é uma variável psicológica importante, influenciando tanto no surgimento, quanto no desenvolvimento de uma manifestação orgânica, neste caso a doença de pele. A constante relação entre mente e corpo nas doenças, neste caso as dermatológicas, tem suscitado interesse de médicos internacionalmente. Panconesi (Grimalt & Cotterill, 2002), dermatologista italiano, menciona a importância de uma relação estreita entre médico e paciente, de forma que o primeiro se coloque à disposição do segundo, podendo escutá-lo e verificar os fatores de estresse e as questões emocionais envolvidas. Refere também que certas doenças, dentre elas as de pele, são influenciadas, desencadeadas ou causadas por fatores que pertencem à esfera psíquica, podendo ser genericamente definidos como fatores emocionais. Os dermatologistas Azulay e Azulay (1992) falam que a necessidade de resolver conflitos psíquicos pode transformar-se em doenças e manifestações psicossomáticas “onde o papel do psiquismo torna-se bastante mais complexo”. No Brasil, existem produções de dermatologistas que abrangem os aspectos emocionais envolvidos. Azambuja (2000) discorre sobre a Dermatologia Integrativa como a psiconeuroimunologia aplicada a atentar aos aspectos físico, mental e emocional do indivíduo, podendo reduzir o estresse e aumentar a eficiência dos tratamentos através de recursos complementares. O mesmo autor refere que é impossível fragmentar o ser humano e cuidar só de seu corpo ou apenas de sua mente, porque um aspecto depende do outro, um influencia o outro o tempo todo, e ambos compõem uma unidade (Azambuja, 2001). Uma de suas considerações é de que “medicina e psicologia deverão buscar juntas as origens mais remotas das doenças para não só delas tratar, mas para primordialmente expandir a saúde”. 29

Rocha (2003) menciona a validação de aspectos fisiológicos, comportamentais, cognitivos, afetivos, sistêmicos e ecológicos, presentes na abordagem integrativa em relação ao paciente, tendo como objetivo “alcançar a excelência no relacionamento médico/paciente”, não só na dermatologia, mas em toda a medicina. A autora refere ainda a importância da precaução de se cuidar emocionalmente bem como de verificar suas próprias questões pessoais antes de abordar estes aspectos no paciente. Também conforme depoimento verbal, esta dermatologista, Tânia Rocha, a avaliação do estresse é feita na primeira consulta. Considerando o sofrimento psíquico envolvido, Hoffmann, Zogbi, Fleck e Müller (2005) mencionam estar o vitiligo associado a fatores psicológicos, visto que, em estudo da última autora, o aparecimento da doença se deu após situação de estresse emocional. Neste estudo, comparou-se dois grupos de pacientes com vitiligo, um recebendo tratamento médico por 6 meses, e o outro, tratamento médico e psicológico durante o mesmo período. Os resultados demonstraram que o grupo que obteve os dois tratamentos teve melhoras bem mais representativas do que o outro. Os temas de ansiedade e depressão também estão sendo estudados na sua relação com as doenças de pele por diversos autores. Amorim-Gaudencio, Roustan e Sirgo (2004), numa pesquisa sobre a evolução da ansiedade nas dermatoses crônicas, avaliando diferenças entre os sexos, encontraram relação entre o impacto psicológico produzido pelo problema de pele e sua condição crônica com o alto nível de ansiedade nesses pacientes. O’leary, Creamer, Higgins e Weinman (2004) estudaram as causas atribuídas pelos pacientes psoriáticos à sua doença, verificando a relação entre estresse percebido, qualidade de vida, bem estar psicológico e severidade da psoríase. Os resultados demonstraram que do total da amostra, 61% acredita no estresse e em atributos psicológicos como fatores causais da psoríase, e esta crença foi significativamente associada a altos níveis de ansiedade, depressão e estresse percebido. As pessoas têm formas diferentes de interpretar as situações de vida, assim como distintas formas de lidar com elas, como estudado por Silva, Müller e Bonamigo (2006), avaliando estratégias de coping e níveis de estresse em pacientes com psoríase. Desta forma, aponta-se à necessidade de conhecer as estratégias utilizadas pelos pacientes para enfrentar a sua doença de pele, sendo possível, através disto, ensinar maneiras mais adequadas e que possam beneficiá-lo. Qualidade de Vida (QV) é um dos construtos que diz respeito a elemen30

tos do sentir-se bem; pode ser definida como a harmonização de diferentes modos de viver e dos níveis: físico, mental, social, cultural, ambiental e espiritual (Fleck, Borges, Bolognesi, & Rocha, 2003). É compreendida como sendo “a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (Fleck, Louzada, Xavier, Chachamovich, Vieira, Santos, & Pinzon, 2000). A preocupação com a QV se refere a um movimento nas ciências humanas e biológicas destinado a valorizar parâmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou aumento da expectativa de vida. A importância de novos estudos, principalmente no Brasil, que busquem avaliar a influência dos aspectos biopsicossociais presentes em pacientes com doenças de pele são relevantes devido a escassos estudos na área a fim de elaboração de propostas para a melhora da qualidade de vida desta população. Mello filho (2002) menciona que toda doença humana é psicossomática, já que incide em um ser provido de soma e psique, inseparáveis, anatômica e funcionalmente.

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Dermatoses na infância e suas implicações no desenvolvimento hu-

A pele pode ser compreendida como espelho das emoções, e como tal pode estar implicado nela manifestações de conflitos que aparecem por meio de alguma dermatose. É possível encontrar conexões entre as relações iniciais mãe-bebê e a pele, uma vez que os primeiros modelos de vinculação com o mundo externo começam a ser “impressos no corpo, e a partir disso, no psiquismo da criança”. Desta forma, as dificuldades experienciadas pela díade podem ter diferentes vias de manifestação, sendo a doença de pele uma delas. A dermatose pode representar, de alguma forma, a “não existência de um limite claro entre eu e não-eu”, tanto pelo excesso quanto pela falta de estímulo (Jorge, Muller, Ferreira, & Cassal, 2004). A Dermatite Atópica (DA), ou eczema, é  uma doença crônica de pele que acomete entre 10 a 20% da população infantil mundial. Caracteriza-se pela presença de episódios cíclicos de prurido, com alterações imunológicas cutâneas que causam inflamação. Ocorre com mais frequência em famílias em que há rinite alérgica, asma e alergia alimentar, e em países industrializados (Alvarenga & Caldeira, 2009; Ricci, Dondi, & Patrizi, 2009; Myssior, Fontes, Ferreira, & 31

Marques, 2008). Sua etiopatogenia não está completamente esclarecida, entretanto, observa-se que há uma complexa inter-relação envolvendo fatores imunitários, genéticos, infecciosos, ambientais, alimentares e psicossomáticos. Ferreira, Müller e Jorge (2006) acreditam que a DA está associada com o aumento do nível de ansiedade, assim como os próprios sintomas da dermatose geram ansiedade e causam um grande impacto na qualidade de vida. Após o surgimento dos sintomas de DA, as famílias precisam se reorganizar, e a vida familiar gira em torno desta doença de pele, de modo que esta instituição passa a evitar situações que possam desencadear crises. As origens das crises provêm de diferentes fatores, como mudanças climáticas, ingestão de alimentos, exposição à alérgenos e situações emocionais (Ferreira, Müller, & Jorge, 2006). A DA, devido a sua cronicidade, ao intenso prurido, a perturbações no sono e nas atividades diárias e pela associação potencial com doenças respiratórias, pode ser considerada como uma dermatose social e psicologicamente relevante, pois além de acometer o próprio paciente, todo o ambiente familiar e profissional é afetado. É relatado, também, um impacto financeiro, social e emocional na família do acometido por esta doença de pele. Pais com crianças portadoras de DA possuem dificuldade na disciplina e no cuidado delas, especialmente devido à exaustão, à privação do sono, a dificuldades no custo e na administração da medicação tópica e sistêmica. Não obstante, esta sobrecarga gerada pelos cuidados das crianças com DA gera conflitos entre o casal e entre os irmãos saudáveis, alterando a estrutura familiar (Alvarenga & Caldeira, 2009; Ferreira et al., 2006). Os pacientes crianças com DA sofrem com o prurido, enquanto a mãe sente-se culpada por relutar em tocar o bebê, afastando-o de si. Quando a família apresenta altos escores de independência e organização, a área corporal acometida por DA é significativamente mais baixa (Ferreira et al., 2006). Torna-se necessário compreender o significado da pele para um melhor entendimento da dermatose. Jorge, Muller, Ferreira e Cassal (2004) corroboram com esta afirmação ao crer que a doença de pele pode ser reflexo das relações iniciais da criança. Isso denota a importância tanto da pele quanto do contato inicial com o outro para a constituição psíquica da criança. As relações iniciais entre a mãe e seu bebê têm grande importância para o desenvolvimento emocional deste, visto que a partir da atitude emocional da genitora e de seu afeto, ela 32

orienta a criança, cujo aparelho perceptivo e discriminação sensorial se encontra imaturo. Não obstante, a formação das primeiras relações entre esta dupla serve como modelo para as futuras relações sociais do infante (Thomaz, Lima, Tavares, & Oliveira, 2005). Muitos sintomas físicos infantis, tais como cólica, eczema, hostilidade materna, manipulação fecal, entre outros, são advindos da relação mãe-bebê, como forma patológica decorrente das relações objetais. Pode-se dizer que a criança fica contaminada pelo clima afetivo materno, e, quando a mãe depressiva se afasta, a criança fica impossibilitada de completar a fusão, necessária nesta etapa do ciclo vital, e, se estiver no período de formação do psiquismo, estes distúrbios deixam cicatrizes tanto na estrutura quanto no funcionamento do aparelho psíquico (Pio, 2007). Piccinini, Marin, Alvarenga, Lopes e Tudge (2007) acrescentam ser crítico o primeiro ano de vida para o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social da criança. Desta forma, é imprescindível que os pais respondam com afeto e sensibilidade ao comportamento do filho, a fim de favorecer a formação do apego e seu desenvolvimento sócio-emocional. O apego representa a propensão de os seres humanos construírem “fortes vínculos afetivos com outros e de explicarem as diferentes formas de consternação emocional que ocorrem quando da separação ou perda involuntárias do outro, é construído a partir do processo de interação entre o bebê e o círculo maternante” (Piccinini, Moura, Ribas, Bosa, Oliveira, Pinto, Schermann, & Chahon, 2001). Do ponto de vista evolucionista, o sistema de apego aumenta as chances de sobrevivência do bebê, por permitir ao cérebro imaturo da criança a utilização do funcionamento maduro de seus pais, a fim de atender suas necessidades vitais. O vínculo materno adequado é crucial para o surgimento do apego seguro, o qual necessitará da retro-alimentação do comportamento do bebê (Motta et al., 2005; Pio, 2007). Filhos de mães mais sensíveis e responsivas tendem a ter um apego seguro, caracterizado pela confiança na disponibilidade emocional e responsividade materna, bem como na promoção de uma orientação positiva e confiante da criança em relação à mãe, ao mundo e a si mesma. Entretanto, quando o bebê recebe cuidados com pouca sensibilidade e baixa responsividade materna, ele tende a desenvolver um apego inseguro, o qual representa uma falta de confiança na disponibilidade emocional da mãe e acarreta em uma atitude negativa e 33

pouco confiante em relação à genitora, ao mundo e a si mesmo (Piccinini et al., 2007; Motta et al., 2005). É necessário salientar que a responsividade corresponde a um domínio, o qual consiste de um complexo de construtos e variáveis relacionadas, tais como empatia, sensibilidade a pistas sociais, não-intrusividade, capacidade de previsão, disponibilidade emocional e envolvimento positivo (Piccinini et al., 2007). Deve-se valorizar elementos saudáveis referentes aos padrões de parentalidade, tais como cuidados físicos, promoção de experiências iniciais, favorecimento do desenvolvimento físico e psíquico, defesa da vida e da saúde, entre outros. Entretanto, é necessário identificar, também, os aspectos de omissão, depreciação, rejeição, descontinuidade, abandono, os quais correspondem à parentalidade patogênica, que conduz a desajustes e a sintomas psicofuncionais na criança, ou, ainda, psicopatologias mais graves (Piccinini et al., 2001). As configurações familiares que, além da mãe, contam com a presença e auxílio de outros adultos favorecem a maternidade e o desenvolvimento infantil, especialmente quando o pai é a figura presente, pois este também compartilha com a esposa a responsabilidade da criação, incluindo êxitos e fracassos. Estudos realizados constataram a existência de uma relação positiva entre a presença do pai e o cuidado maior da mãe pelo filho, favorecendo o desenvolvimento infantil saudável. Em pesquisa realizada por Piccinini et al. (2007) verificou-se que mães casadas demonstram maior responsividade, principalmente nas questões referentes ao desconforto ou aflição de seus bebês do que mães solteiras. Assim, inferiu-se que o apoio da figura paterna e a relação desta com a genitora pode favorecer o aumento da disponibilidade da mãe para atender, de forma sensível e contingente, os desconfortos do filho. Outro fator de grande relevância é a questão de haver menor impacto de depressão materna quando não há outros fatores de risco associados, tais como baixo apoio marital ou familiar e baixo status socioeconômico (Motta et al., 2005). Esses achados só reforçam a importância de a mãe poder contar com uma rede de apoio no cuidado com o filho, pois, desta forma, ela poderá exercer sua maternagem de forma mais adequada (Rapoport & Piccinini, 2006). É necessário ressaltar que além da mãe, a criança está cercada de outras pessoas que a influenciam emocionalmente, como irmãos, parentes, amigos, podendo ou não ter algum significado emocional (Pio, 2007). 34

A partir do explanado, percebe-se a importância de uma relação familiar para a saúde da pele e do desenvolvimento da criança. Dentro disso, cabem as práticas educativas parentais, as quais podem ser compreendidas como conjuntos de condutas dos pais no processo de educação e socialização dos filhos. Essas práticas estão associadas a vários indicadores de desenvolvimento psicossocial e comportamental, tais como a autoestima, a depressão, a ansiedade, psicopatologia, desempenho escolar, entre outros (Teixeira, Oliveira, & Wottrich, 2006; Teixeira & Lopes, 2005; Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003). Teixeira e Lopes (2005) salientam que os estilos parentais referem-se a metas ou valores considerados importantes pelos genitores tanto em suas vidas quanto na educação de seus filhos. Os pais que conseguem ser mais amorosos, acolhedores, encorajadores e aceitadores das perspectivas singulares de cada indivíduo e de seus desejos, satisfazem as necessidades psicológicas da pessoa, como autonomia e relações interpessoais, aumentando a probabilidade de que esta possa se expressar e sentir mais confiante. Por outro lado, quando o ambiente de desenvolvimento é frio, controlador e rejeitador, o sujeito procura aprovação e segurança por meio do estímulo externo, pois há maior dificuldade de relacionamento interpessoal e de autonomia, especialmente se os genitores exercem excessivo controle, sem apoio emocional, de forma a prejudicar a internalização, isto é, as metas e os valores são buscados a partir de uma autoridade externa, valorizando mais a opinião alheia do que a sua própria (Teixeira & Lopes, 2005). Quando a pele adoece em qualquer etapa do desenvolvimento humano a pessoa e família se depara com as repercussões que este órgão reflete na vida. Se uma criança desencadeia a dermatite atópica esta doença impacta além dos pais, a família. Inclusive dermatologistas que atuam na perspectiva interdisciplinar da compreensão da relação entre pele e psiquismo recomendam que a mãe da criança ao aplicar a medicação tópica (na pele) faça carícias na mesma. Desta forma, a criança sente o contato mais prazeroso. Este aspecto tende a auxiliar na recuperação da saúde integral da pessoa, além do fortalecimento imunológico e vínculo.

Considerações finais A pele sendo o maior órgão do corpo, reflete nela o mundo interno e 35

externo. Emoções são manifestadas na pele desde o nascimento e durante todo o ciclo vital. A cada etapa do desenvolvimento, o toque repercute na promoção do fortalecimento do sistema imunológico e das relações interpessoais. Destaca-se que são escassas as pesquisas sobre a relação entre Psicologia e Dermatologia no Brasil, sendo necessário o avanço de novos estudos sobre esta inter-relação entre pele e aspectos psicológico no desenvolvimento humano. Novas pesquisas permitem o diálogo entre pesquisadores brasileiros com outros internacionais para a produção de conhecimentos sobre o processo saúde-doença implicado na saúde da pele. O desenvolvimento de novas pesquisas poderá contribuir para a prevenção e tratamento de dermatoses e promoção da qualidade de vida do nascimento ao envelhecimento no âmbito da saúde da pele. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de aprofundamento de estudos no que diz respeito às questões de intervenções terapêuticas relacionadas as dermatoses. Além disso, a importância dos profissionais da área da saúde trabalharem de forma interdisciplinar, como promover um melhor resultado no tratamento das doenças de pele crônicas. Cumpre salientar que existe uma ligação muito forte entre a pele e os fatores psicológicos, os quais acabam desencadeando o surgimento ou agravamento das dermatoses.

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Capítulo 3 GÊNERO, PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: NOTAS SOBRE A SUBJETIVAÇÃO/CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE NORMAL/ANORMAL

Denise Quaresma da Silva

Currículo Lattes

A proposta deste capítulo é trazer a discussão da temática de gênero para o campo da Psicologia, discorrendo sobre a conceitualização do termo, o seu caráter relacional, o estudo junto a outros campos do conhecimento humano e implicando a Psicologia nessas discussões, mais especificamente propondo uma articulação com o campo da Educação, onde centro minhas pesquisas. Cada pessoa fala a partir de um lugar que expressa o cruzamento de características específicas de gênero, raça/etnia, classe social, religião, orientação sexual, localização, geração, etc. No que se refere ao gênero, essas características remetem às construções sobre o papel de homem e de mulher em nossa sociedade que se relacionam com determinadas normas, regras e papéis sociais. O termo gênero foi conceitualizado numa perspectiva feminista em fins da década de 1970 (Sardenberg, 2004). Inicialmente, era uma palavra usada apenas em oposição a sexo, como construção social das identidades sexuais, descrevendo o que é socialmente construído. Já nas décadas de 70 e 80, de acordo com Sorj (1992), os estudos de gênero passaram a envolver duas dimensões: a ideia de que o gênero seria um atributo social institucionalizado e a noção de que o poder estaria distribuído de modo desigual entre os sexos, subordinando a mulher. Com o avanço nas discussões, o termo gênero passou a ser considerado como categoria múltipla e relacional que abarca códigos linguísticos institucionalizados e representações políticas e culturais (Butler, 2003). Scott (1995) conceitua o gênero como uma categoria de análise histórica que implica em quatro elementos: 1) símbolos culturais disponíveis (da tradição cristã ocidental) – que evocam representações múltiplas e contraditórias, por 41

exemplo, Eva e Maria como símbolos de mulher; 2) conceitos normativos – que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos, limitando e contendo suas possibilidades metafóricas; 3) inclusão da noção do político – como referência às instituições e organizações sociais; e 4) identidade subjetiva – referenciada pela psicanálise lacaniana que concebe a formação da identidade de gênero a partir das relações objetais estabelecidas com o Complexo de Édipo, nas primeiras etapas do desenvolvimento humano. Ampliando o conceito, De Lauretis (1994) propõe pensar o gênero como produto de tecnologias sociais, discursos, epistemologias e de práticas institucionalizadas que o sustentam dentro de um aparato social e representacional absorvido subjetivamente por cada pessoa. A autora também traz quatro proposições sobre o gênero: 1) o gênero é uma representação; 2) a representação do gênero é a sua construção; 3) a construção do gênero vem se efetuando hoje nos aparelhos ideológicos do Estado; e 4) a construção do gênero se faz por meio de sua desconstrução. Postulo que as/os diversos profissionais e a sociedade como um todo precisam refletir sobre os impactos nas produções de subjetividade para homens e mulheres que se entrecruzam com relações de poder. A Psicologia, enquanto campo de pesquisa, formação e atuação relacionada ao ser humano tem muito a contribuir no que se refere à desconstrução das desigualdades sociais e de gênero. Para tanto, esse estudo tem que ser efetivado em um terreno transversal, pois estudar gênero no âmbito da Psicologia, perpassa o entendimento de que categorias transversais de gênero, raça/etnia, classe social, orientação sexual e geração se cruzam construindo sujeitos com certas especificidades que precisam ser observadas. Ocupo-me da articulação da Psicologia com a Educação, a partir de pesquisas no campo da Educação sexual. Os temas da sexualidade, da educação sexual e das diversidades de gênero estão ocupando crescentemente diversos espaços da mídia, da política, acadêmicos e da sociedade civil brasileira. A amostra mais evidente da extensão destes temas pode ser a atual polêmica dentro e fora do Congresso Nacional sobre a pertinência de uma proposta do Ministério da Educação para incluir temas de homofobia e a respeito da diversidade da instrução da educação sexual nas instituições escolares. A articulação deste debate e seus desenlaces confirmam a consolidação da educação sexual como um campo de interesses e lutas, onde diferentes discursos participam de uma disputa política de gênero e sexualidade 42

que envolve relações desiguais de poder por legitimar ou estigmatizar algumas identificações e práticas (Furlani, 2008). Estes enfrentamentos destacam um acentuado interesse pela educação sexual que transcende a preocupação pela higiene do corpo, a prevenção do HIV/AIDS, o aumento da gravidez na adolescência e o início cada vez mais cedo das relações sexuais; falam de um acentuado interesse por produzir- ou nãocorpos e subjetividades ajustados aos ideais sexuais e de gênero predominantes. Minhas indagações vêm se fundamentando ultimamente dentro desta perspectiva da análise e tem seu início a partir de um estudo com adolescentes grávidas em situação de risco social que revelou as limitações das famílias para dialogar sobre sexualidade (Quaresma da Silva, 2007). Na sequência, desenvolvi uma pesquisa institucional onde entrevistei professores e estudantes das escolas públicas municipais de ensino fundamental da cidade de Novo Hamburgo/RS, objetivando analisar as práticas de educação sexual e a sua transversalidade no currículo escolar. Nesta direção, examinar as práticas de educação sexual com uma perspectiva de gênero nas instituições escolares de nível fundamental em Novo Hamburgo/RS significa revelar as pedagogias de gênero que ali são articuladas, descrever o que elas ensinam sobre como ser homens e mulheres, analisar os discursos de gênero que circulam nestas práticas, verificar como são significadas, representadas, valorizadas e ordenadas diversas identidades e quais homens e mulheres são legitimados, estigmatizados e marginalizados. Concluí, através das análises das entrevistas, que quando as/os professoras/es explicam a importância e a finalidade da educação sexual, destacam preocupações e propósitos que não tem a ver somente com a prevenção das doenças e da prevenção da gravidez adolescentes. Em suas explanações se evidenciam que nas práticas de educação sexual se ensina muito mais que órgãos e partes do corpo, muito mais do que como colocar um preservativo, muito mais que infecções de transmissão sexual. Acompanhando estes temas, circulam discursos e representações sobre gênero e sexualidade que indicam como devem ser homens e mulheres e quais comportamentos, atitudes, gestos e práticas sexuais são adequadas para cada um (Quaresma da Silva, 2011). As reflexões que apresento neste texto, podem ser úteis para justificar ações dirigidas a sensibilizar e implicar a todos/as no questionamento das suas 43

práticas cotidianas sobre como nos posicionamos frente à questão da sexualidade humana, na análise dos efeitos de inclusão-exclusão, aceitação-discriminação, legitimação-desaprovação e normalidade-aberração que elas nossas posturas produzem. Entendo a subjetividade como o encontro do social e do individual, formando a teia que constitui o sujeito e se manifesta nas suas relações, na práxis. Reitero a importância de (re)conhecer como se institucionalizam as práticas sociais, visto que estas são responsáveis pela transmissão de valores, incorporados nas subjetividades. Não podemos pensar em relações que se efetivem entre sujeitos que não estejam inseridas em determinado contexto, e que não sofram influência deste. Neste sentido, as subjetividades, são compostas de determinantes estruturais e singularidades. Minha concepção é de que aquilo que se traduz nas interações entre sujeitos é o reflexo de valores culturais internalizados no processo de socialização, embora nas relações se expressem de forma única. Desta forma, assumo a posição de que o gênero, na construção das subjetividades se efetiva nas interações singulares, no âmbito social, cada caso se configurando de forma única, mas tendo como “pano de fundo”, as práticas histórico/culturais onde os sujeitos se constituem. Postulo que toda educação é sexual e que a educação sexual constitui um espaço onde circulam identidades de gênero valorizadas e desacreditadas e para este propósito, são ativadas diversas táticas regulamentares para registrar nos corpos características de gênero e sexualidade legitimadas e dominantes na lógica heteronormativa. Louro (2010, p. 15) afirma: O ato de nomear o corpo acontece no interior da lógica que supõe o sexo como um ‘dado’ anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse ‘dado’ sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo.

Neste sentido, Roudinesco (2003, p. 117) destaca que “quando se considera que o sexo anatômico prevalece sobre o gênero, a unidade se esfacela e a humanidade é dividida em duas categorias imutáveis: os homens e as mulheres. As outras diferenças são então desprezadas ou abolidas”. Diversas instâncias (escola, família, lei, igreja, mídia, ciência, cinema, organizações) participam ativamente e suportam esta lógica para produzir os 44

corpos – e as subjetividades – acordes à norma que privilegia a heterossexualidade. Nessas instâncias podem ser desconstruídos processos articulados que privilegiam identidades e práticas hegemônicas enquanto negam, desvalorizam e marginam outras identidades e práticas. Louro (2010) descreve este “fazer os corpos” como um trabalho pedagógico ininterrupto, reiterado e ilimitado que é desenvolvido para inscrever nos corpos o gênero e a sexualidade legítimos. Refiro as pedagogias culturais que nos ensinam hábitos, formas de comportamentos e valores através de diferentes artefatos como os filmes, a moda, as revistas, os programas de televisão, a literatura, a publicidade e a música. Através das pedagogias de gênero se ensinam quais comportamentos se devem valorizar, quais atitudes e gestos são adequados para cada gênero, bem como se deve ser e fazer (Louro, 2008). Quando falamos destas identificações ensinadas, valorizadas, permitidas e estimuladas, é impossível não ter em conta a participação da mídia nesse processo, e especificamente das revistas como mídia impressa. As revistas, segundo Bassanizi (1996, p. 16): [...] tentam corresponder à demanda do público leitor, considerando seu modo de agir e pensar, ao mesmo tempo em que procuram discipliná-lo e enquadrá-lo nas relações de poder existentes, funcionando como um ponto de referência, oferecendo receitas de vida, impingindo regras de comportamento, dizendo o que deve e principalmente o que não deve ser feito.

Ou seja, as revistas, transmitem conselhos e recomendações que indicam caminhos, atitudes, comportamentos a serem seguidos pelos homens e pelas mulheres, algumas vezes na lógica heteronormativa, outras vezes na direção da legitimação da diversidade. Isso confirma a convergência de diversas representações sobre como devem ser homens e mulheres. Por isto, as/os pesquisadoras/es envolvidas/os neste campo buscam apontar: [...] os modos pelos quais características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pelas quais se re-conhece e se distingue feminino de masculino, aquilo que se torna possível pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico (Meyer, 2003, p. 14).

Nesse sentido, torna-se um imperativo com altas implicações políticas a problematização da constituição cultural e o governo das identidades de gênero 45

através das revistas, buscando desconstruir tais representações para desestabilizar ou interpelar as “verdades” sobre gênero, que ali são veiculadas. Para Foucault (2003), a sexualidade é um dispositivo histórico muito concreto de poder. O dispositivo de sexualidade é uma criação social e inscrevem-se nas mais variadas relações de poder existentes na sociedade, do pai para o filho, do homem para a mulher, do professor para o aluno, do médico para o paciente, do governo para a população, etc. Este autor descreve um conjunto de técnicas e táticas com a finalidade de produzir corpos dóceis e úteis para o sistema onde eles se encontram inseridos, configurando-se, segundo ele, uma anatomia política do detalhe. É assim como meninos e meninas vão apropriando se de um conjunto de ‘mandamentos’ sobre como devem ser homens e mulheres para ser aceitos, respeitados e valorizados. Através do discurso, as crianças e jovens aprendem quais comportamentos devem valorizar, quais as atitudes e gestos adequados a cada um dos gêneros, bem como o que podem e devem fazer cada um deles. Esse processo complementa-se com o reconhecimento dos sujeitos em uma identidade frente às constantes interpelações confrontadas no cotidiano. O reconhecimento implica sempre a identificação e a negação do seu oposto desde uma posição social determinada, o que condiciona ordenamentos e hierarquias. Isto confirma que as masculinidades e as feminilidades são construídas e produzidas nas relações de poder de uma sociedade e estão marcadas pelas particularidades do contexto histórico cultural onde elas emergem. Elas não existem como uma essência constante e universal, em todo caso, elas são um conjunto de significados e comportamentos atravessados por outras marcas de identidade. Por isso, um mesmo sujeito pode vivenciar situações de identidade desvalorizada ou aceita em contextos culturais/sociais diferentes. Quando interpretamos as identidades como posições de sujeito, pensamos no entrecruzamento que se produz entre masculinidades e classe, raça, nacionalidade, sexualidade, profissão, religião, moradia, idade, escolaridade. O resultado é uma contínua variação de fronteiras, reconhecimentos, interpelações, e de possibilidades carregadas de contradições, ambiguidades e incoerências (Bessa, 1998). Nessa perspectiva, gênero torna-se uma categoria analítica das relações de poder, ou seja: […] um mecanismo heurístico com funções positivas e negativas em um programa de pesquisa. Como heurística positiva, gênero

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elucida uma área de indagação, perfila um conjunto de perguntas […] identifica problemas que se devem explorar e oferece conceitos, definições e hipóteses para guiar a pesquisa, especialmente para sondar o terreno das relações humanas. A heurística negativa da análise de gênero permitiria impugnar a naturalização das diferenças de sexo em diferentes âmbitos de luta, ou para desafiar atitudes que assumem como naturais determinados comportamentos marcados pelo gênero (Chiarotti, 2006, p. 12).

Distancio-me de posturas teóricas que estabelecem uma sinonímia entre gênero e mulher e que, por tanto, restringem a potência analítica da categoria gênero. Talvez porque o conceito gênero é uma ferramenta de análise que tem marcado as lutas e o pensamento feminista, tem sido difícil superar este reducionismo na compreensão e uso da categoria gênero, inclusive na atualidade, como apontam Corrêa e Vianna (2007, p. 10): “na dinâmica da militância feminista ainda existe grande resistência no que se refere a abrir mão deste ‘patrimônio’, ou seja, do capital político construído ao redor da categoria mulher”. Segundo Lamas (2000), o uso da categoria gênero foi estimulado pelo feminismo anglo-saxão nos anos setenta com a finalidade de mostrar que as mulheres aprendem a ser mulheres, mediante um complexo processo individual e sociocultural de caráter político. Posteriormente, se estendeu o uso do termo para nomear os estudos de mulheres, dando um matiz mais neutro, científico e objetivo às pesquisas nesta área, tal e como exigem os pressupostos positivistas (Rey, 1997). Não obstante, reconheço que a pertinência atual da categoria gênero, para explorar outras identidades discriminadas, tem sido resultado dos próprios avanços, contribuições e limitações dos estudos sobre mulheres, o que possibilitou o deslocamento do objeto de gênero, passando “do objeto empírico mulheres para o objeto teórico gênero” (Alencar-Rodrigues, Strey, & Espinosa, 2009). Por tanto, defendo que: [...] não se pode apenas estudar as mulheres, pois o objeto dos estudos de gênero é mais amplo, e, sendo assim, faz-se necessária uma análise em todos os níveis, âmbitos e tempos, das relações mulher-homem, mulher-mulher, homem-homem para se alcançarem maiores resultados (Barbieri apud Medrado & Lyra, 2008, p. 819).

Este deslocamento não deve ser interpretado como uma simples ampliação dos sujeitos de estudo, passando agora a incluir aos homens. A transcendência é muito mais profunda, pois significa um salto epistemológico para uma 47

compreensão muito mais complexa dos ordenamentos e desigualdades resultantes dos diversos modos como são representadas as diferenças de gênero, sem ignorar as pluralidades, contradições e ambiguidades que emergem do entrecruzamento com outras representações (classe, etnia, crença religiosa, profissão, sexualidade, idade, maternidade/paternidade, dentre outras). Nesta visão, os homens não são identificados como executores de desigualdades senão como parte e objeto dos mecanismos que produzem desigualdades. Desta forma, o grande desafio é dar visibilidade às desigualdades de gênero, sejam entre homens e mulheres, entre mulheres ou entre homens. O campo dos estudos de gênero no qual se localizam e transitam minhas inquietações, se distinguem por constituir um enfoque interpretativo que examina a ordem das coisas existente na história, sociedade, cultura, política e na economia, desarticulando as verdades que (re)produzem, legitimam e perpetuam essa mesma ordem, na qual as representações das diferenças femininas e masculinas terminam classificando sujeitos e limitando seus espaços e destinos. Não são nossos genitais e anatomias que determinam as relativas posições que ocupamos nos sistemas de relações sociais, é tudo o que se diz sobre nossos genitais e anatomias o que nos constitui e articula nossos vínculos; ao mesmo tempo convertem-se em argumentos para explicar o caráter hierarquizado destes vínculos. Em outras palavras: “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos [...] gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1995, p. 86). É isto precisamente o que está sendo repensado no campo dos estudos de gênero: hierarquias e desigualdades, as representações que as fundamentam e os mecanismos que as produzem culturalmente. As diversas maneiras de serem homens e mulheres são construções produzidas nas relações de poder de uma sociedade, validadas por inúmeras ‘verdades’ cientificas e míticas e marcadas pelas particularidades do contexto histórico cultural onde elas emergem (Beauvoir, 1990). Ou seja, as significações de gênero configuram modos diversos de pensar, sentir e agir e determinam espaços, funções e destinos na sociedade. Como expressa Louro (1995, p. 106): “ser do gênero feminino ou do gênero masculino leva a perceber o mundo diferentemente, a estar no mundo de modos diferentes – e, em tudo isso, há diferenças quanto à distribuição de poder”. 48

Os significados que se constroem sobre os corpos de homens ou mulheres trasbordam os próprios corpos para transitar ilimitadamente por tudo, dando a impressão de viver em um mundo classificado em masculino e feminino. Por isso, escutamos os relatos das/dos professoras/es preocupadas/dos com o menino de gestos femininos, os comentários da vizinha sobre a colega de trabalho que caminha como um homem, o cliente de uma loja que não gostou de uma gravata, por entender que parece feminina, a vendedora que sugeriu um perfume com uma fragrância masculina, a decoradora que não gostou daquela cor masculina, o pai decepcionado com o filho que escolheu uma profissão de mulher, o gay que é muito feminino e assim por diante. Nesta direção, os estudos de gênero têm confirmado que existem padrões ou ideais de masculinidades e feminidades e que esses padrões que se instituem como normas e expectativas são, de maneira acentuada, os mais valorizados e dignos de ser exibidos. É imprescindível que as possibilidades de serem homens e mulheres sejam ensinadas e aprendidas. Diversos estudos, localizados na interseção de gênero e educação, revelam os contínuos processos e mecanismos de formação de homens e mulheres, segundo os padrões estabelecidos em cada contexto históricocultural. Escola, família, igreja, mídia, ciência, cinema e organizações de diversas índoles estão ativamente envolvidos na tarefa de produzir identidades de gênero, privilegiando umas enquanto marginam outras. Louro (2004) descreve um trabalho pedagógico ininterrupto, reiterado e ilimitado que é desenvolvido por cada uma de estas instâncias para inscrever nos corpos os gêneros e as sexualidades legítimas. Assumo uma noção não tradicional da categoria pedagogia, que permite pensar no pedagógico além dos limites físicos escolares, porque compartilho que ensina e aprende-se muito também fora da escola. Articulam-se pedagogias, como expõem Giroux e McLaren (1995, p. 144): “[...] em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades, mesmo que essas verdades pareçam irremediavelmente redundantes, superficiais e próximas ao lugar-comum”. A partir das pedagogias de gênero, se ensinam quais aparências corporais, comportamentos, acessórios, atitudes e gestos são mais ou menos adequados para cada gênero. Brincadeiras e brinquedos constituem acessos efetivos para ir conhecendo os lugares e destinos estabelecidos para homens e mulheres 49

na sociedade, na família e em outros âmbitos. Sob constante orientação, vigia e controle, meninos e meninas ‘escolhem’ como e com o quê brincar. É assim que meninos e meninas se vão apropriando de um conjunto de ‘mandamentos’ sobre como devem ser homens e mulheres, para obter aceitação e respeito. Porém, é impossível nomear e descrever o normal sem apresentar o anormal. Por isso, circulam continuamente diversas representações sobre gênero, tanto representações hegemônicas, tradicionais ou instituídas quanto representações desvalorizadas, transgressoras, emergentes ou dissidentes, resultando um universo de significados diversos, ambíguos, socialmente produzidos e em conflito, mas com significativos efeitos de inclusão-exclusão e aceitação-discriminação. Ao se falar de identidades valorizadas nas diversas instâncias sociais, se abre espaço para as identidades desacreditadas, indicando o que não pode ser: o punido, o proibido, mesmo que nunca seja enunciado verbalmente. Ao se ignorar, ao se fazer de conta que não existe, se define o lugar em que são colocadas algumas identidades. Identidades estigmatizadas e demonizadas pelo distanciamento com os ideais hegemônicos são produtivas, úteis, para evidenciar os limites entre o respeitado e o desestimado. Toda matriz excludente “[...] pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres adjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito (Butler, 2010, p. 155)”. Essa autora evidencia o caráter relacional e complementar das representações de identidades que circulam culturalmente: o que somos se define a partir do que não somos. Examinar as identidades de gênero sem ignorar esta particularidade, multiplica as possibilidades de problematizar as lutas por legitimação que se estabelecem entre as identidades. Sendo assim, representações de feminidades se encontram interligadas com representações de masculinidades, representações hegemônicas de feminidades indicam as feminidades estigmatizadas e novas masculinidades revelam o menosprezado nas masculinidades tradicionais. Numerosos estudos vêm mostrando que ao pensar em pedagogias podem ser múltiplos os espaços onde ela se pode articular. Além do espaço propriamente escolar, encontramos, em diferentes locais e contextos, as mais variadas e singulares pedagogias, muitas delas nomeadas como pedagogias do gênero e da sexualidade. Em programas de educação em saúde se observam pedagogias da 50

maternidade (Meyer, 2003), algumas revistas estão muito interessadas em ensinar como os homens heterossexuais devem procurar e obter prazer (Câmara, 2007) enquanto outras oferecem lições sobre como serem homossexuais (Lopes, 2011). Os centros de tradição gaúcha investem em ensinar como ser um verdadeiro homem gaúcho (Nunes, 2003), filmes infantis constituem recursos pedagógicos para garantir a heterossexualidade como norma (Sabat, 2003), um programa de TV desenvolve uma pedagogia amorosa/sexual (Soares, 2007) e um programa social ensina as crianças a viverem em família de determinadas formas (Fernandes, 2008). Estes autores/as assumem que podemos encontrar pedagogias culturais em “qualquer instituição ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido em conexão com relações de poder- no processo de transmissão de atitudes e valores” (Silva, 2000, p. 89). Estas produções teóricas têm possibilitado a extensão das noções de educação, ensino, aprendizagem, pedagogia e currículo para além dos contornos físicos das escolas. Nessa assertiva, ao finalizar este texto, reitero a fundamental importância de um exame crítico de como todos/as estamos permanentemente produzindo e sendo produtos nas designações de gênero e nas constituições subjetivas, cabendo a cada um se perguntar: o que significa ser homem ou ser mulher? Que coisas são designadas como sendo de homem ou de mulher? Existem coisas que um homem pode fazer que uma mulher não possa ou vice-versa? Como aceito a diversidade de escolhas sexuais para além da determinada em minha cultura como sendo a correta? O consideramos normal ou anormal no campo da sexualidade? Como olhamos, entendemos, interpretamos, analisamos a sexualidade humana?

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Parte II – Das Teorias às Práticas

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Capítulo 4 REPRODUÇÃO ASSISTIDA: REVELAR OU NÃO REVELAR AOS FILHOS?

Gisleine Verlang Lourenço

Currículo Lattes

Daniela Riva Knauth

Currículo Lattes

José Roberto Goldim

Currículo Lattes

Luiz Eduardo Albuquerque Ana Rosa Detílio Monaco

Currículo Lattes

Maria Lucia Tiellet Nunes

Currículo Lattes

Eduardo Pandolfi Passos

Currículo Lattes

Estima-se que a cada ano 3.5 milhões de crianças nascem através de processos de reprodução assistida (Goossens et al., 2008). O desenvolvimento de técnicas de Reprodução Assistida, que consistem em todos os tipos de tratamento que incluem a manipulação in vitro (no laboratório) em alguma fase do processo, de gametas masculinos (espermatozóides), femininos (oócitos ou embriões) tem favorecido com que casais inférteis tenham a possibilidade de alcançar a gravidez (Passos, 2003). Estas técnicas permitiram a doação de óvulos, doação de sêmen, adoção de embriões ou útero de substituição, o que na prática, favoreceu o surgimento de novas formas de parentalidade e conjugalidade (paternidade homoparental, famílias uniparentais, produção independente, filho de reprodução assistida). Na fertilização in vitro, a transição para a parentalidade tem um caráter bastante particular. Estudos têm sugerido que o problema da infertilidade e as técnicas de reprodução assistida podem estar associados a longos períodos de estresse parental, o que poderia afetar negativamente a adaptação ao papel parental, o comportamento dos pais, a qualidade de a relação pai/mãe-filho, e sub57

sequententemente o desenvolvimento emocional e social das crianças (Colpin, 2008). Entre o casal se interpõe a tecnologia reprodutiva, com sua linguagem e técnicas específicas (Aggleton, 2001). O desejo de ter um filho passa a ser uma decisão necessariamente consciente e que implicará em um grande investimento emocional e financeiro. Neste contexto é preciso atentar para duas situações delicadas. Ter filhos através da medicina reprodutiva significa enfrentar as exigências impostas pelos procedimentos, repetibilidade de tentativas para aumentar a chance de êxito, elaboração do luto da capacidade de facilmente conceber, inclusão de uma equipe médica na privacidade do casal. A outra situação, o de se tornarem mães e pais de forma “não natural” ou com a marca da infertilidade (Lourenço, 2010). Com o crescimento das crianças, os pais precisam tomar a decisão acerca da revelação (ou não) do procedimento realizado para o seu nascimento. Poucos estudos investigaram os padrões de divulgação entre os pais que tiveram filhos após tratamento de fertilidade com o uso de gametas dos próprios, através de fertilização in vitro (FIV), injeção intracitoplasmática de espermatozóides (ICSI) ou inseminação intra-uterina (IUI-H) (Rosholm, 2006). Os resultados publicados demonstram que a idade da criança parece interferir na revelação do método de fertilização, em estudos que envolviam crianças com até 11 anos de idade, a maioria dos pais afirmou ainda não ter revelado o método de concepção. No entanto, os mesmos afirmaram a intenção de informar a criança no futuro (Braverman, 1998; Sundby, 2007). Corroborando com esses dados, Colpin (2008) em um trabalho recente, relatou que mais da metade dos pais (66%) informou seus filhos entre 15 e 16 anos de idade a respeito da fertilização in vitro. No Brasil, o impacto destas tecnologias sobre a vida dos casais, das mulheres e dos filhos ainda é pouco estudado (Chachamovich, 2009; Urdanpiletta, 2002). O presente estudo se propõe a compreender uma das dimensões do impacto da reprodução assistida sobre a parentalidade de famílias brasileiras, quer seja, a revelação aos filhos sobre a forma de concepção realizada.

Método Trata-se de estudo transversal desenvolvido em quatro centros de re58

produção assistida tanto públicos como privados em São Paulo e Porto Alegre. Foram incluídos no estudo, os casais que procuraram atendimento nos quatro centros no período de 1997 a 2006 e que obtiveram sucesso no tratamento. O critério de exclusão escolhido foi crianças com presença de algum tipo de malformação. Em função de que essa variável torna a revelação ainda mais complexa. Os convites foram feitos via telefone, momento em que uma explicação detalhada do objetivo da pesquisa era dada pela pesquisadora. Após o aceite, a pesquisadora ia ao encontro do casal, levando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o questionário. Cada integrante do casal respondia o questionário separadamente. O instrumento foi constituído de uma coleta via questionário de uma parte com dados quantitativos e outra com dados qualitativos. Os dados dos pacientes incluídos no estudo foram inseridos em um banco de dados, onde sua identificação era protegida pelo anonimato, sendo que uma correspondência numérica era atribuída a cada participante. A estratégia de investigação foi solicitar aos participantes a se expressar por linguagem escrita através de um instrumento auto-aplicado, semi-estruturado contendo cinco questões abertas (descritivas) e fechadas (de múltipla escolha). Nas questões abertas foi perguntado ao entrevistado se revelou ou se há intenção de contar ao filho sobre seu método de concepção; a quem caberá ou coube esta tarefa, como e quando isso ocorreu; se há concordância por parte do casal sobre a intenção de revelação do método de reprodução assistida ao filho. Também buscamos investigar quais outras pessoas do relacionamento social e familiar tiveram conhecimento sobre o método de concepção, e as razões para esta revelação ou não. O presente estudo utilizou-se de uma metodologia qualitativa de coleta e análise dos dados. A técnica da análise foi análise de conteúdo. Os dados coletados foram inseridos em um banco de dados e sistematizados através do programa Sphinks Léxica® que analisa dados qualitativos. O referencial da abordagem qualitativa deste sistema é de autoria de Jean Moscarola. A análise levou em consideração as recorrências e divergências dos discursos dos entrevistados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (GPPG 06-058) aceito pelas instituições participantes. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O desenvolvimento do projeto está de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 196/96 que regulamenta a pesquisa com seres humanos. 59

Resultados No total foram convidados a participar do estudo 200 casais, 56 pessoas aceitaram participar do estudo, sendo 37 mulheres e 28 homens, parceiros destas mulheres. Foi possível observar que em todas as famílias que o pai aceitou participar, também a mãe aceitou. Em relação ao tipo de serviço, 20 (54% dos casais e/ ou mulheres) frequentavam os serviços públicos e o restante 17 (46% dos casais e/ou mulheres) buscaram clínicas privadas. Em termos de trajetória no uso das técnicas de reprodução assistida observa-se que 40% (15 pacientes) da amostra já tinham realizado mais de uma tentativa de concepção através de reprodução assistida. No que se refere à revelação sobre a forma de concepção a outros membros das diferentes redes de relações sociais dos casais, a análise dos dados indica que, no universo estudado, é possível identificar três maneiras distintas de lidar com este tema. Um pequeno número de entrevistados revela esta informação a um grupo bastante restrito de pessoas, visto que este é considerado um assunto que interessa somente ao casal ou a familiares muito próximos. Para este grupo, a forma de concepção constituise em segredo, como indicam os relatos abaixo: Não, nem uma pessoa sabe, é tudo segredo. (Homem, 35 anos, pósgraduação) Não. Acreditamos ser uma particularidade do casal. (Mulher, 41 anos, ensino superior completo) Uma segunda atitude em relação à forma de concepção e que foi adotada pela maioria dos entrevistados é a revelação para um grupo mais amplo de pessoas que incluem familiares, amigos e conhecidos mais próximos. Esta revelação se dá, na maioria dos casos, já no momento mesmo do recurso à técnica, visto que o apoio desta rede social próxima é considerado como um elemento importante para o enfrentamento da situação, como evidenciam os depoimentos: Toda a família e amigos sabem e sabiam dos tratamentos que realizamos. Contamos e dividimos nossas ansiedades com as pessoas queridas desde o início, nossos medos e alegrias. Comemoramos o sucesso da fertilização com um churrasco para familiares e amigos. Não contei para vizinhos e colegas de trabalho por falta de vínculo com eles. Como não contaria qualquer outra coisa que diz respeito a minha vida pessoal. (Mulher, 39 anos, pós-graduação)

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Sim. Não escondemos isto de ninguém. Logo que tomamos a decisão contamos aos mais próximos e depois que confirmamos a gravidez contamos aos outros. (Homem, 48 anos, ensino superior incompleto) Mas além do apoio, outro aspecto que determina a revelação são as dinâmicas das próprias redes familiares, como indica o relato abaixo: Sim. Pais, irmãos e tios. Para os pais e irmãos acabamos contando, afinal nos viam angustiados. Os tios receberam a notícia através do jornal familiar, aquele que circula de boca em boca. (Mulher, 34 anos, ensino superior completo) Há ainda um grupo de entrevistados que não faz questão em esconder o método de concepção utilizado seja porque não veem problemas nesta revelação, especialmente porque consideram que ela pode auxiliar outras pessoas que vivem situação semelhante. Sim, sempre que comentamos sobre o assunto falamos. Também há uma curiosidade das pessoas em relação a filhos gêmeos, perguntam se foi hereditário ou tratamento. Não vejo problemas em falar, muito pelo contrário, penso que deva ser um estímulo a outros casais que procuram o método. Também vejo que o método nos ajudou a realizar um sonho, e teve sucesso também pela persistência do casal. (Mulher, 40 anos, pós-graduação) No que diz respeito à revelação para a criança, os entrevistados são praticamente unânimes em afirmar que esta deva ser realizada. Apenas dois entrevistados referiram não ter a intenção de revelar ao filho a forma de concepção e cinco participantes (duas mulheres e três homens) mencionaram que o casal ainda não havia pensado sobre o assunto. A tarefa de revelação aos filhos é vista pela maioria dos entrevistados como uma atribuição do casal e está condicionada a um conjunto de aspectos, dentre os quais a idade, a maturidade ou capacidade de compreensão da criança. Os relatos abaixo evidenciam estes condicionantes: Caberá contar aos pais na hora oportuna quando ela entender do assunto. (Mulher, 30 anos, ensino superior incompleto) Quando estiver na adolescência, idade escolar, provavelmente pai e mãe [irão contar] quando ela estiver estudando sobre assuntos (Mulher, 35 anos, fundamental completo) Para nós [casal] isto é muito natural. Assim que nosso filho ti61

ver idade para entender contaremos. (Homem, 48 anos, ensino superior incompleto) E mais: a revelação do método de concepção é vista por parte dos entrevistados como uma coisa natural que se dará a partir do momento em que surgir interesse e questionamentos por parte das crianças. [Caberá contar] ao casal, em conjunto, no momento em que surgir o questionamento, de maneira adequada a idade do questionador. (Mulher, 41 anos, ensino médio completo.) Entretanto, apesar de salientarem a naturalidade da revelação, alguns entrevistados indicam, ao mesmo tempo, os elementos que distinguem esta forma de concepção, tais como o esforço, as dificuldades, o desejo intenso por um filho. O depoimento de uma entrevista evidencia esta perspectiva, e destaca como a concepção é parte da história da família e das filhas: Nossa intenção é fazê-lo na medida em que as crianças já tiveram algum entendimento e demonstrarem interesse em saber sobre seus nascimentos e concepção. Acho linda nossa história e não vejo motivo algum de esconder delas o esforço que fizemos para concebê-las. Escrevi um diário durante a gestação onde conto todos os momentos e fases, tenho um histórico que pretendo entregar a elas quando compreenderem. Faz parte da nossa história, da nossa vida e das histórias de vida de minhas filhas. (Mulher, 39 anos, pós-graduação) Ou ainda outra entrevistada que afirma: Como mãe gostaria de contar a ele o quanto foi esperado e desejado. Não sei exatamente qual a idade, talvez uns 10-12 anos. (Mulher, 33 anos, fundamental incompleto) Apesar da maioria dos casais e mulheres entrevistadas enfatizar, no nível do discurso, que a revelação da forma de concepção não é algo problemático, o fato de grande parte dos entrevistados manifestarem que não haviam ainda refletido sobre o tema antes da pesquisa, é um indicador de que este é um tema delicado. A revelação sobre a forma de concepção implica em admitir o recurso a um processo diferente do normal, que por sua vez necessita da mediação da técnica e de um terceiro, o médico, como relata uma entrevistada: Na minha geração, quando adolescente, a gravidez pressupunha o contato sexual, ou seja, a concepção natural. Era uma ligação espontânea ao coito. Quando o meu filho estiver na fase 62

de entender de sexo, gravidez, não sei (não sabemos como sociedade se o diferente disto será visto tão somente como mais uma forma de se dar origem a vida ou como um método que discriminará as crianças). Sinto curiosidade e bastante receio. Espero que o fato de ter sido concebido fora do útero como meio de maior proteção não lhe traga nenhum tipo de dissociação. (Mulher, 34 anos, ensino superior completo) É desta forma que para grande parte dos casais e mulheres entrevistadas, a revelação sobre a forma de concepção implica necessariamente em dois aspectos tidos como centrais: o primeiro é o detalhamento dos complexos procedimentos técnicos utilizados e o segundo é a confiança depositada no médico e na equipe de profissionais da saúde. A necessidade da descrição da tecnologia utilizada para a concepção é um dos fatores colocado como empecilho à revelação às crianças pequenas. Falar que a criança foi concebida através de Reprodução Assistida é, assim, falar sobre as técnicas utilizadas, como evidenciam os relatos abaixo: Vou explicar que papai e mamãe fizeram um procedimento: tentando explicar que foi tirado um óvulo meu, levado ao laboratório e que o papai deu seus espermatozoides para que este óvulo nascesse o nenê. Ai esse óvulo foi posto dentro da mamãe e a barriguinha foi crescendo e 9 meses depois nasceu a Maria Eduarda. (Mulher, 35 anos, fundamental completo) Tentarei explicar que foi feito de forma diferente do normal, feito em laboratório, fecundado in vitro, pois meu organismo não tinha condições. (Mulher, 33 anos, ensino superior completo) A mediação da tecnologia no processo de concepção impõe, por sua vez, a mediação do médico e da equipe de profissionais da saúde. Há, entre os casais e mulheres entrevistados, um forte sentimento de gratidão para com os profissionais que participaram do processo. A presença deste terceiro elemento entre o casal é também um dos fatores que deve ser revelado e justificado, visto que difere do normal. A equipe de profissionais da saúde e mais particularmente o médico, é sempre apresentada como idônea e “de confiança”, atributos esses que conferem legitimidade ao processo de concepção. Já [revelou a forma de concepção]. Desde que minha filha é bebe de colo eu falo para ela assistindo a fita do parto e as fotos do parto que foi o “anjo” [médico que fiz tratamento] que colocou ela lá em minha barriga e depois fez o parto. Que a “fada” ajudou [assistente dele]. (Mulher, 36 anos, ensino superior com63

pleto) Eu estou muito satisfeita por este trabalho maravilhoso da equipe que nos abençoou de dar uma linda filha. (Mulher, 32 anos, ensino superior completo) Como evidenciam os dados acima, os argumentos de ordem tecnológica ocupam o centro da discursividade na maior parte dos entrevistados. Falar sobre a concepção através do aparato tecnológico permite, de certa forma, desviar o foco das atenções do casal para a medicina, ou melhor, da infertilidade para a tecnologia. Revelar o recurso à reprodução assistida é, necessariamente, revelar a infertilidade do casal ou de um de seus membros. O preconceito em relação à infertilidade é ainda um dos aspectos que dificultam a revelação, seja para familiares ou para as próprias crianças, da forma de concepção. Segundo nossos dados, esta dificuldade é maior quando a causa da infertilidade é masculina. Poucos foram os casais e mulheres entrevistadas que ao falar sobre a revelação da forma de concepção enfatizaram aspectos afetivos. Os dois depoimentos abaixo indicam esta outra forma de revelação possível: Os pais não deveriam ter preconceito nenhuma para contar a família e aos filhos, pois os bebês de fertilização são concebidos com muito mais amor ainda. (Mulher, 40 anos, fundamental completo) Sim, já sabe [sobre a forma de concepção]. O pai e a mãe contaram. Com 5 anos lendo o jornal, contando que sempre foi desejado, sempre sonhamos em tê-la. (Mulher, 45 anos, ensino superior incompleto) É interessante notar que a infertilidade é um aspecto tão marcante para os casais e mulheres entrevistados que poucos foram aqueles que estabeleceram a demarcação entre o momento da concepção e o nascimento. A necessidade do uso de técnicas de reprodução assistida é percebida como um diferencial que se impõe na relação dos pais com os filhos, visto que apesar desses serem crianças normais após o nascimento, os pais continuam com a condição de inférteis. Ter um filho pode reduzir o estigma da infertilidade, mas certamente não o elimina por completo.

Discussão As mães e os pais brasileiros que participaram desta pesquisa manifesta64

ram a clara intenção de revelar aos filhos sobre a forma de concepção e acreditam que esta revelação deva se dar no momento em que a criança tenha mais idade, maturidade e capacidade de compreensão. Comparando com estudos internacionais, os resultados obtidos corroboram dados de Colpin (2008) e outros autores (Braverman, 1998; Peters, 2005; Sundby, 2007), que afirmam que a maioria dos casais pretende informar aos filhos acerca do método de concepção utilizado. Entretanto, estudo busca avaliar a intenção de revelação, enquanto outros estudos avaliam a revelação propriamente dita. Estes estudos observam que existe um aumento na revelação com o aumento da idade dos filhos, os pais tendem a revelar o método de concepção a partir da idade escolar, quando as crianças supostamente terão maior capacidade de compreensão e interesse sobre o assunto. A partir do contexto da infertilidade os achados revelaram uma temática latente na discursividade dos participantes de pesquisa. Que exista também na vivência da infertilidade um “estigma” assim como o experimentado pelos pacientes portadores da síndrome da imunodeficiência humana (HIV) (Aggleton, 2001). Nesse sentido, Chachamovich (2009) e colaboradores demonstraram que mulheres com infertilidade possuem escores significativamente mais baixos na saúde mental, funcionamento social e comportamento emocional. Das respostas abertas, foi possível depreender que tenha havido a presença de mecanismos psicológicos de defesa, como o da negação, que consideramos ser um elemento que pode interferir na espontaneidade dos casais na questão da revelação, na medida em que a temática da técnica se sobrepõe ao discurso de ser pai e mãe. Os padrões de gênero se sobrepõem à infertilidade (Augusto, 2002) e, neste sentido, quando a causa é masculina, o estigma aparece com mais intensidade e a forma de concepção permanece ainda como um “não dito” (Heritier, 1996). Apesar da maioria dos entrevistados brasileiros manifestarem clara intenção de revelar ao filho acerca do método de reprodução assistida, tal vivência tende a deixar marcas e na discursividade destas pessoas que o fator infertilidade é revelado. (Lourenço, 2010). Sob este aspecto, considerar certa discrepância entre a espontaneidade da revelação e o poder de constrangimento que pode gerar na discursividade dos pais em relação aos filhos e mesmo familiares. Esta constatação sugere que o apoio psicológico preventivo torna-se necessário no auxílio das diversas etapas reprodutivas a serem vivenciadas, desde a adesão ou não aos tratamentos, destino de embriões congelados até a transição para a parentali65

dade há novas exigências de fertilidade e subjetividade. Além destes aspectos já caracterizados, que o estigma da infertilidade é um tópico de real importância a ser trabalhado pela equipe e/ou profissional que acompanhe, com a finalidade de que ele não se interponha na relação dialógica entre pais e filhos concebidos através da reprodução assistida. O valor deste estudo está em nos dar uma ideia de que os brasileiros têm uma tendência a querer tratar do assunto revelação assim como os indivíduos estudados em outros países. Ao mesmo tempo, revelou um discurso subjacente que eventualmente possa contradizer ou dificultar esta tendência de revelação, ou seja, o tema do estigma da infertilidade.

Considerações finais O presente estudo sinaliza a importância de outros estudos, tanto qualitativos como quantitativos que aprofundem os aspectos relacionados da infertilidade, estudos que contemplem famílias homólogas e heterólogas, e estudos que acompanhem ao longo do tempo as diferentes implicações sociais e psicológicas do uso de tecnologias reprodutivas sobre os casais e filhos. Por fim, ainda são necessários estudos longitudinais que avaliem quais as consequências dessas novas configurações familiares na constituição dos sujeitos, também na comparação entre famílias homólogas e heterólogas. Ou seja, a avaliação da possível ocorrência de uma ressignificação do lugar da mãe, do pai e do bebê que fora concebido através de reprodução assistida.

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Capítulo 5 VIOLÊNCIA NA INFÂNCIA: UM OLHAR A PARTIR DA PRÁTICA CLÍNICA Lúcia Belina Rech Godinho

Currículo Lattes

Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão importante durante a infância de uma pessoa que a necessidade de sentir-se protegido por um pai. (Sigmund Freud)

Na prática clínica, o profissional que atua na área da psicologia defronta-se cotidianamente com inúmeras situações de sofrimento mencionadas nas falas dos pacientes que buscam ajuda. Entre as queixas mais comuns referidas pelos pacientes adultos estão os relatos de vivências infantis como abandono, negligência, maus tratos e abuso sexual. Na fala ou na representação das crianças atendidas na área clínica também não é incomum a menção feita ao mesmo tipo de vivências que estão na memória dos pacientes adultos. Frequentemente, muitas dessas informações são confirmadas pelos próprios pais das crianças durante as entrevistas iniciais ou mesmo posteriormente, quando a criança já se encontra em atendimento psicoterápico. Há pais que, orgulhosamente, afirmam nunca ter batido no filho, apenas imprimem-lhes “castigos”. Porém, existem castigos que sem dúvida, parecem aterrorizantes. É possível exemplificar com alguma breve referência extraída de exemplos clínicos. Deixar o filho trancado no quarto durante horas, não permitir que o filho se alimente ou cortar suas refeições durante as horas de castigo. Existem também pais que admitem ameaçar ou mesmo colocar pimenta na boca do filho para que esse não mais mencione palavrões. Surras de vara ou cinto ainda são muito mais comuns do que se possa imaginar. Observa-se que não há uma ligação direta entre a prática da violência no ambiente doméstico e a classe social, raça e nem mesmo grau de instrução das pessoas envolvidas. Alguns pais que aplicam esses castigos aos filhos são pes69

soas com nível de escolaridade superior. Frequentemente pode se observar uma forte predominância em relação à repetição do modelo de educação e disciplina a que os próprios pais foram submetidos em suas infâncias. Os maus-tratos contra crianças podem ser praticados pela omissão, supressão ou transgressão dos seus direitos definidos por convenções legais ou normas culturais (Gomes, Deslandes, Veiga, Bhering, & Santos, 2002). Esses autores concluem que pais que “apanham” da vida podem acabar “batendo” nos filhos. A experiência clínica leva o profissional a se deparar com realidades que vão de um extremo a outro completamente oposto quando se trata da educação de crianças. De um lado estão pais que não conseguem dar limites aos seus filhos, inclusive apanhando dos filhos adolescentes ou até mesmo de crianças, sentindose intimidados e temendo a reação agressiva dos filhos. Afirma Cyrulnik (2006) que existem lares onde as crianças fazem a lei, por mais improvável que isso possa parecer, existem sim pais que apanham dos seus próprios filhos e isso constitui um verdadeiro desastre afetivo. Esses seriam os pais que se auto definem com “moles” ou “bonzinhos” demais. Há pais que justificam essa atitude com argumentos como “amamos muito nosso filho” ou “não queremos repetir a educação dura e repressora que tivemos”, referindo-se à disciplina que receberam de seus próprios pais. Em outro extremo, temos pais tirânicos, agressivos, intolerantes, perfeccionistas, repressores e que agem impulsivamente e violentamente diante de qualquer deslize da criança. Nesse último caso, quando o profissional escuta esses pais, sabe que muitos lamentam posteriormente as suas atitudes, mostram arrependimento e sentimentos de culpa, alegando que “agiram sem pensar” e só puderam refletir sobre o ocorrido num momento posterior à violência praticada contra o filho. Alguns desses pais parecem indecisos sobre a melhor maneira de educar os filhos e justamente por isso estão buscando ajuda profissional. De acordo com Godinho e Ramires (2011), a infância nem sempre foi compreendida com as características atualmente reconhecidas. Ao longo dos séculos, os castigos, as humilhações e até mesmo o assassinato de crianças foram “tolerados”. Os pais, muitas vezes, pareciam ter o poder de vida ou morte sobre os seus filhos, tal a violência com que era praticada a disciplina na infância. As autoras mencionam que apenas nos dois últimos séculos a relação entre pais e filhos passou a ser permeada por uma maior afetividade. Há alguns anos, nosso país ficou estarrecido com o caso veiculado nos meios de comunicação sobre a morte da menina Isabella Nardoni de cinco anos 70

de idade, ocorrido em março de 2008, no estado de São Paulo. A suspeita era de que o pai havia jogado a filha do sexto andar do prédio onde ele residia com a madrasta e os irmãos de Isabella. A madrasta de Isabela é acusada de ter matado a menina por esganadura antes de o pai atirá-la pela janela. E mais: suspeita-se que a menina ainda estivesse viva ao ser lançada do edifício. Esse é apenas um entre tantos casos veiculados na mídia nos últimos anos. O caso ganhou notoriedade e tornou-se comum ouvir a opinião das pessoas sobre o mesmo, arriscando palpites sobre quem seria o culpado: o pai, a madrasta ou ambos? Nas ruas, nas escolas e em conversas entre amigos e vizinhos, em muitos cantos de nosso país, parece que as pessoas opinaram também sobre o castigo para o crime. Para alguns, a pena de morte. Para outros, cadeia para os assassinos. O fato faz refletir sobre o tema da violência na infância. Faz pensar porque o caso Isabella ganhou tamanha repercussão na mídia. Muitos outros casos de violência ou possível violência contra crianças aparecem na mídia diariamente, em diversos lugares do mundo, como o desaparecimento da menina inglesa Madeleine McCain, ocorrido em Portugal em maio de 2007. Apesar da hipótese de tratar-se de um crime, nada ficou comprovado, o episódio McCain ganhou visibilidade internacional e ficou a dúvida: trata-se realmente de mais um crime contra a infância? E quanto às crianças anônimas que diariamente são vítimas silenciosas e indefesas da violência? Parece que, ao menos na nossa realidade, é assim se apresenta a tragédia no que diz respeito à violência doméstica infantil. Provavelmente existem milhares de crianças que cotidianamente são vítimas da agressividade de adultos desestruturados emocionalmente e que, possivelmente, num dado momento de suas infâncias, podem ter sido também vítimas de outras violências, repetindo assim um ciclo transgeracional duradouro, que pode persistir por muitas e muitas gerações familiares (Weber, Viezzer, Brandenburg, & Zocche, 2002). Existe concordância entre diversos autores no que diz respeito à conceituação de maus tratos. A violência contra a criança pode ser compreendida como qualquer ação ou omissão que provoque danos, lesões ou transtornos a seu desenvolvimento. Pressupõe uma relação de poder desigual e assimétrica entre o adulto e a criança (UNICEF, 2006). Pode implicar em negligência, abandono, abuso físico, emocional ou social (Weber et al., 2002). Maus tratos ou abusos ocorrem quando um sujeito em condições de superioridade (idade, força, poder) comete ato capaz de causar danos físicos, psicológicos ou sexuais, contrariamente à vontade da vítima ou por sedução enganosa (Sociedade Brasileira de Pediatria, Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da Justiça, 2001). Para Azevedo 71

e Guerra (1997), a infância vítima de violência é tão variada, quanto os meios de violentar crianças. Encontram-se infâncias pobres, exploradas, torturadas, fracassadas, vitimizadas em âmbitos que podem ser sociais, institucionais, no trabalho, na escola e na vida doméstica. A seguir são descritas as formas de maus-tratos mais comumente citadas na literatura sobre o assunto: a) Violência física: ocorre quando alguém causa ou tenta causar dano por meio de força física, de algum tipo de arma ou instrumento que possa causar lesões internas, externas ou ambas (Day, Telles, Zoratto, Azambuja, Machado, Silveira, Debiaggi, Cardoso, & Blank, 2003). Outros autores usam expressões como abuso físico (Pires & Miyazaki, 2005; Albornoz, 2006), acrescentando que esse tipo de ocorrência, na maioria das vezes, deixa marcas como hematomas, escoriações, queimaduras, intoxicações, sufocação e espancamento. Albornoz (2006) exemplifica o tipo de força física citando o “bater, castigar, sacudir, submeter à situação física violenta e desnecessária” (p. 24), cujas marcas são justificadas como medidas educativas (Pires, 1999). b) Violência psicológica: inclui toda a ação ou omissão que causa ou visa a causar dano a auto estima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa (Day et al., 2003). É toda forma de rejeição, discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança (Gomes et al., 2002; Pires & Miyazaki, 2005). Pode envolver comportamentos como punir, humilhar, aterrorizar com graves agressões verbais ou cobranças exageradas. Também pode envolver isolamento, privando de brincar, de ter amigos ou indução à prostituição (Pires & Miyazaki, 2005). As repetitivas e inapropriadas respostas emocionais e comportamentais às experiências infantis caracterizam-se como abuso emocional (Albornoz, 2006). Maus tratos psicológicos podem ser um padrão repetitivo de danos interacionais entre pais e filhos que se tornam típicos em um relacionamento (Kairys et al., 2002). c) Negligência: Parece ser a forma mais amplamente descrita. Para Day et al. (2003), é a omissão de responsabilidade de um ou mais membros da família em relação a outro, sobretudo àqueles que precisam de ajuda porque são pessoas dependentes. No entanto, Pires e Miyazaki (2005) associam negligência a outros fatores, como é descrito a seguir: Negligência e abandono: Envolve a omissão de cuidados básicos e de proteção à criança. Exemplo: deixar de oferecer alimentação, medicamentos, cuidados de higiene, proteção a alterações climáticas, vestimentas e educação. O 72

abandono é uma forma grave de negligência que evidencia a ausência de vínculo adequado dos responsáveis com seus filhos. A negligência física pode incluir abandono ou expulsão de casa por rejeição ou deixar a criança sozinha e sem cuidados por longos períodos. Negligência emocional: inclui exposição crônica à violência doméstica, permissão para o uso de álcool e drogas, permissão e encorajamento de atos delinquentes e recusa a não procurar tratamento psicológico quando recomendado. Negligência educacional: permissão para faltar aulas ou não realização de matrícula em idade escolar. Para Albornoz (2006), a negligência ocorre quando os pais ou responsáveis falham em prover as necessidades básicas de uma criança. Há desatenção quanto a aspectos importantes do cuidado, da proteção ou descaso para com suas necessidades evolutivas. A compensação através da oferta de presentes, da inclusão em atividades de lazer, atitudes superprotetoras e permissivas, podem encobrir sentimentos de descaso e de falta de comprometimento dos pais para com o filho. Nessas situações, as relações de cuidado são inexistentes ou inadequadas e a falta de atenção muitas vezes fica justificada pela falta de tempo dos pais (Pires, 1999). d) Violência sexual: é toda ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga outra à realização de práticas sexuais, utilizando força física, influência psicológica ou uso de drogas ou armas (Day et al., 2003). Para Pires e Miyazaki (2005), este tipo de violência ocorre quando a vítima tem desenvolvimento psicossexual inferior ao do agressor. O abuso pode ser intrafamiliar, extrafamiliar ou institucional e, na maioria dos casos, o abusador é conhecido e tem acesso fácil à criança. e) Síndrome de Münchausen por procuração: ocorre quando os responsáveis, geralmente a mãe, provocam ou simulam na criança, sinais e sintomas de doenças, com falsificação de exames laboratoriais, administração de medicamentos ou substâncias que causam sono ou convulsões, simulando quadros que envolvem sofrimento físico e psicológico (Sociedade Brasileira de Pediatria, Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da Justiça, 2001; Pires & Miyazaki, 2005). Nesses casos, a criança pode ser levada para receber cuidados médicos devido aos sintomas inventados ou provocados por seus cuidadores (Gomes et al., 2002). Esses últimos autores exemplificam citando situações onde a criança é 73

submetida a vários exames médicos por longos períodos de tempo, ou ainda, os pais contam histórias mirabolantes não compatíveis com o estado da criança. f) Síndrome do bebê sacudido: como diz o nome, denomina uma forma de violência que não deixa marcas. O agressor geralmente é o pai, que se irrita com o choro da criança pequena, podendo causar graves danos cerebrais e até a morte (Sociedade Brasileira de Pediatria, Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da Justiça, 2001; Pires & Miyazaki, 2005). Acidentes e agressões são as primeiras causas de morte de crianças de um a seis anos de idade no Brasil (UNICEF, 2006), porém alguns autores (Pires & Miyazaki, 2005; Weber et al., 2002) com base nos dados levantados por Azevedo (1996) referem que, na verdade, nosso país ainda carece de dados estatísticos fidedignos. Segundo levantamento do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), a modalidade de violência contra crianças e adolescentes até 19 anos que apresenta maior incidência é a negligência (LACRI/IPUSP, 2007). Diante dessa grave realidade, é importante discutir as repercussões que os maus tratos podem ocasionar no desenvolvimento psicológico e nos vínculos afetivos das crianças, e que tipo de rupturas podem ser determinadas a partir dessas vivências. A criança inserida em um contexto de maus tratos, principalmente no meio intrafamiliar, mostrase vulnerável às situações de risco que o seu meio proporciona. É importante compreender que a infância é uma fase que alicerça o desenvolvimento e a formação de sua personalidade (Frota et al., 2011). Há mais de um século, a violência contra a criança tem sido reconhecida como uma questão social (Weber et al., 2002) que envolve complexos mecanismos sociolegais que pretendem regulá-la (Sibila, 2001). Portanto, parece importante considerar que a violência contra a criança se apresenta, desde os tempos primitivos até hoje como um fenômeno cultural de grande relevância (Minayo, 2001). A família contemporânea que ainda se expressa pela violência ou pelo abandono traz consigo uma manifestação que é histórica e prevalente em todas as épocas, desde a mais remota Antiguidade. Tal manifestação pode ocorrer ainda sob a forma de infanticídio/filicídio, num grau que vai desde as formas mais sutis até as mais extremadas, como a concretização do assassinato (Maltz, Zavaschi, Lewcowicz, Bugin, Lahude, Suarez, Soibelmann, Sordi, & Fortes, 2008). Os autores concordam, de forma geral, que a violência doméstica é um fenômeno universal e extremamente complexo (Araújo, 2002; Day et al., 2003; 74

Guerra, 2001). Nas diversas conceituações trazidas pela literatura, pode-se perceber o uso de diferentes terminologias que parecem falar, em seu núcleo, de uma mesma questão. Assim, encontramos definições sobre violência doméstica ou violência intrafamiliar usadas, muitas vezes, como sinônimos. Segundo Guerra (2001), a violência doméstica é um tipo de violência de natureza interpessoal, na qual se verifica uma transgressão do poder disciplinador e coercitivo do adulto. Consiste numa negação da liberdade exigindo da criança que seja cúmplice do adulto, num pacto silencioso. Nesse caso, ocorre um aprisionamento do desejo e da vontade da criança que fica submetida aos interesses e expectativas do adulto. Do ponto de vista de Caravantes (2000), a violência intrafamiliar pode ser entendida como qualquer ação ou omissão que resulte em dano físico, emocional, social ou patrimonial de um ser humano, onde exista vínculo familiar entre vítima e agressor. A violência pode ficar encoberta por longo período de tempo sem ser denunciada (UNICEF, 2006). Ao abordarmos a questão da violência doméstica nos deparamos inicialmente com a dificuldade de sua definição. Os limites desse conceito vão desde uma punição leve até o espancamento, esbarrando assim em parâmetros éticos e pedagógicos. Alguns autores afirmam que o entendimento mais aprofundado do fenômeno da violência doméstica passa principalmente pelo entendimento da dinâmica familiar (Neves & Romanelli, 2006). No entanto, outros autores consideram que bater nos filhos insere-se num continnum de violência que vai desde a simples palmada até o espancamento (Azevedo & Guerra, 2001; Webber, 2001). Existem quatro formas mais comuns de violência intrafamiliar ou doméstica: a violência física, a violência psicológica, a negligência e a violência sexual (Day et al., 2003; Guerra, 2001; Lisboa & Koller, 2000). “O tipo mais frequente de maus-tratos contra a criança ou adolescente é a violência doméstica, que ocorre, na maioria das vezes, dentro dos lares ou no convívio familiar” (Pires & Miyazaki, 2005, p.44). Muitas vezes, esses episódios ficam camuflados como acidentes em geral que ocorrem principalmente no espaço do lar, embora se reconheça que nem todo tipo de acidente caracterize violência doméstica. Alguns deles podem estar associados à falta de cuidado em relação à criança (Gomes, Silva, & Njaine, 1999). A violência doméstica costuma prolongar-se por muito tempo, uma vez que a família é considerada agente protetor da criança e tende a silenciar ou encobrir o ato por cumplicidade dos 75

adultos ou pelo medo que as vítimas sentem de denunciar o seu agressor (Pires & Miyazaki, 2005). Silva, Coelho e Caponi (2007) postulam que existe certa concordância na literatura quanto à presença da violência psicológica em praticamente todos os outros tipos de violência sofrida pelo sujeito no contexto familiar. De forma geral, parece que persiste ainda a ideia de que a punição corporal é uma prática educativa aceitável e, muitas vezes, considerada adequada (Cecconello et al., 2003; Guerra, 2001; Weber et al., 2002). Silva, Coelho e Caponi (2007) mencionam o termo “violências domésticas”, para descreverem os acontecimentos no âmbito familiar ou doméstico, entre quaisquer membros da família, justificando que essas ações podem ser referidas no plural por tratar-se de diversas formas de violências ocorridas nesse espaço. Trata-se de um fenômeno universal e endêmico, parecendo que nenhuma etnia, classe social ou religião está imune. Não é característico apenas das classes mais pobres e ainda pode envolver, de forma cíclica, várias gerações na sua reprodução (Guerra, 2001; Tardivo, Junior, & Santos, 2005). Neves e Romanelli (2006) concordam que a violência doméstica pode estar presente em todas as camadas sociais em diferentes momentos históricos, mas acreditam que, nas camadas populares, ela se torna pública devido à denúncia e intervenção de órgãos públicos, enquanto que as camadas mais altas da sociedade mantêm o anonimato e a discrição através de atendimentos particulares, quando o fazem. Black, Trocmé, Fallon e Maclaurin (2008) salientam que as políticas públicas voltadas para o bem-estar da criança, de forma geral, indicam que crianças submetidas à violência doméstica estão em situação de risco e de falta de proteção, sujeitas a danos físicos permanentes. Para esses autores, como a violência doméstica ocorre em um espaço privado, é provável que as famílias não denunciem e nem recorram à busca de auxílio especializado, o que leva a pensar que o fenômeno da violência doméstica tenha uma prevalência pelo menos quatro vezes maior do que realmente é informado. No Brasil, o conhecimento sobre a violência doméstica ainda é escasso, mas existem muitas evidências que apontam para um cenário que necessitaria de intervenção imediata (Reichenheim, Hasselmann, & Moraes, 1999). Nosso país apresenta graves deficiências em matéria de dados epidemiográficos (Oliveira & Flores, 1999) e as políticas públicas parecem ainda pouco sensibilizadas sobre a questão dos maus-tratos à infância (Weber et al., 2002). Essas mesmas políticas parecem não estar dando conta da prevenção da violência (Sacramento & Rezende, 2006). É provável que os casos não notificados superem em muito os casos 76

notificados (Romaro & Capitão, 2007) porque o fenômeno seria muito mais frequente do que se possa imaginar (Viezzer, Brandenburg, & Zocche, 2002). Para a maioria dos casos de violência cometida contra a criança ainda paira certo silêncio. Estima-se que apenas 20% dos casos de maus-tratos são denunciados (Weber, Viezzer, & Branderburg, 2004; Weber et al., 2002). Na literatura encontram-se inúmeros estudos sobre o tema da violência doméstica na infância, alguns deles revelando dados sobre o perfil das vítimas, das famílias e a prevalência da violência contra a infância. O desafio é que a violência doméstica nem sempre é claramente identificável e a vítima, inerte, assujeitada, sofre, tem dificuldade de encontrar alternativas de ajuda, seja pela ameaça sofrida, seja pela ausência de elementos norteadores de auxílio, como a escola, a creche e os vizinhos, esclarecem Neves e Romanelli (2006). O autor da infração é o sujeito que transgride não somente as normas sociais, mas invade a intimidade e a organização afetiva e corpórea do outro. Para as mesmas autoras, o agressor utiliza-se de persuasão e de controle para manter o outro na condição de dominado e subjugado. O estudo sobre a violência doméstica é, na sua forma mais profunda, um estudo sobre a família (Rosa, Tassara, & Oliveira, 2006), uma vez que grande parte dos agressores são pais ou parentes (Gomes et al., 2002). Na cena da violência doméstica existem três formas de desempenhar o papel no enredo familiar: como vítima, ator e/ou testemunha (Koller, 2000). A criança é facilmente a vítima nesse cenário da violência doméstica, que pressupõe uma relação de poder desigual e assimétrica com o adulto. O cenário é a casa e os personagens deste triste enredo são os membros de sua própria família, uma vez que a violência é exercida na intimidade do lar que, ao estabelecer normas, valores, costumes determina também como os indivíduos se relacionarão de acordo com a distribuição do poder (UNICEF, 2006). De acordo com Neves e Romanelli (2006), a análise do sujeito e a análise da família consistem em inserirmos a discussão do homem como um sujeito em que a história e a violência imprimiram suas marcas em espaços privados como a família. Características predominantes nesse meio familiar dizem respeito a disfunções como manifestações de agressividade, má integração social e familiar, rechaço aos filhos e irresponsabilidade no cuidado e atenção aos mesmos (Noroño Morales, Segundo, Cadalso Sorroche, & Fernández Benítez, 2002). Entre as diversas hipóteses acerca das razões da violência no meio familiar, o uso de álcool e de outras substâncias psicoativas é apontado como uma delas (Gomes et al., 2002; Noronho Morales et al., 2002; Zilberman & 77

Blume, 2005). Outras justificativas utilizadas para explicar a violência doméstica dizem respeito a argumentos baseados na negação da crueldade como: “a criança pediu uma surra” ou “as mulheres gostam de ser machucadas”, como se a violência pudesse ser exercida para o “bem”, ocorrendo assim uma verdadeira distorção da realidade (Lamano-Adamo, 1999). Para Gomes et al. (2002), a busca pela explicação de por que as crianças são maltratadas encontra parcialmente a resposta na questão da repetição transgeracional e na sua influência sobre a educação dos filhos, pois parece que a situação presente revive o passado em termos de violência familiar. Embora exista um questionamento sobre o que distingue os pais que sofreram violência e não as repetem com os seus filhos, parece que esses passaram por outras vivências capazes de favorecer a resiliência e adotarem um comportamento que supere os traumas sofridos, existindo algum potencial que permita a reorganização da experiência de violência. Porém, parece que a capacidade de ser resiliente não é o padrão esperado para a difícil vivência, ficando assim os sujeitos, em grande parte, expostos às consequências da violência doméstica. A violência doméstica contra a criança pode representar um fator de risco ao processo do desenvolvimento, trazendo sérias consequências para a vítima, implicando em dificuldades ou problemas de ajuste ao seu meio, perturbação da noção de identidade e outros distúrbios de personalidade (Mc Donald, Jouriles, Briggs-Gowan, Rosenfield, & Carter, 2007; Tardivo, Junior, & Santos, 2005). Existe uma crescente consciência de que os maus-tratos contra crianças trazem frequentemente consequências negativas significativas àqueles que são vítimas, sendo um importante preditor de problemas comportamentais, especialmente os maus tratos físicos e sexuais (Malik, Ward, & Janczewski, 2008; Pesce, 2009). Quanto mais precocemente a criança é submetida à violência, mais suscetível ficará aos efeitos da mesma (Sternberg, Lamb, Guterman, & Abbott, 2006). Crianças que experimentaram a violência na relação com seus cuidadores, em geral, têm uma história pessoal de problemas de apego, com ausência ou fragilidade nos vínculos (Lisboa & Koller, 2000). Das variadas formas de violência, os maus tratos físicos constituem uma das principais formas de morbidade entre crianças e adolescentes apontadas pela literatura (Junqueira & Deslandes, 2003). Independente da forma de apresentação da violência, seja física ou psicológica, um expressivo número de autores aponta que as principais consequências de sua ocorrência durante a infância 78

ocorrem no desenvolvimento nas esferas social, comportamental, emocional, cognitiva e geral (Reichenheim, Hasselmann, & Moraes, 1999; Weber et al., 2002; Wolfe, Crooks, Lee, Mc-Intyre-Smith, & Jaffe, 2003). Alguns indicativos de sintomas em crianças que testemunharam violência doméstica são apontados na literatura: um alto nível de tensão pós-traumática associada à depressão (Reynolds, Wallace, Hill, Weist, & Nabors, 2001). A experiência pode levar a danos como auto estima baixa, dificuldade de manter vínculos afetivos, isolamento, agressividade, falta de confiança, dor emocional e ressentimento. Além disso, pode perpetuar o círculo vicioso existindo a possibilidade de o agredido tornar-se o agressor. A agressão pode ser em relação ao outro ou a si próprio, pois as vítimas da violência possuem um maior risco de cometer suicídio (Weber et al., 2002). O impacto decorrente da experiência de submissão à violência no contexto familiar pode ser imprevisto, pois depende de uma série de variáveis, como a idade da criança, a natureza e severidade da violência e a existência de outros fatores de risco na vida da criança, como por exemplo, pobreza, abuso físico e abuso de substância por parte das figuras parentais. Em geral, a exposição da criança à violência doméstica pode ser associada com aumento de comportamento agressivo, problemas emocionais como ansiedade e depressão, baixos níveis de competência social e baixo nível de escolaridade, conforme Fantuzzo e Mohr (1999). A intensidade do problema depende ainda da conjunção de outros fatores como o desenvolvimento psicológico e a capacidade intelectual da criança, o vínculo afetivo da criança com o seu agressor e a natureza e duração do abuso (Reichenheim, Hasselmann, & Moraes, 2006). Há indícios de que 60% de mulheres e 20% de homens que apresentam desordens que envolvem dor crônica tiveram história de abuso durante a infância, o que mostra que essa vivência aumenta a suscetibilidade da pessoa para a dor (Rubin, 2005). Experiências adversas na infância surgem como fortes indicadores de problemas emocionais e físicos na vida adulta (Broad & Wheeler, 2006). A descrição desse cenário que envolve profundas consequências para o desenvolvimento do indivíduo leva a refletir sobre qual é o papel do profissional da área da saúde no contexto da violência doméstica. Como ocorre o enfrentamento dessa realidade? Como vimos anteriormente, a subnotificação dos casos de crianças vitimizadas pela violência doméstica é uma realidade. Isso pode ocorrer como consequência do despreparo dos profissionais (Azambuja, 79

2005) ou como refere Gomes (2002), os profissionais preferem não notificar por acreditarem que o procedimento pode produzir efeito negativo para a vítima. Outros profissionais, informa o último autor, ainda não conseguem “ver” os diferentes tipos de maus-tratos por sentimentos associados à omissão ou medo, sentindo-se emocionalmente inseguros para realizar a denúncia. No entanto, de acordo com Saliba, Garbin, Garbin e Dossi (2007), quando a violência doméstica é informada pelos profissionais que trabalham nessa área, existe uma maior possibilidade de avaliação epidemiológica do problema, o que contribui para o desenvolvimento de programas que visem mudar o cenário e proteger prioritariamente a criança. Além disso, é dever legal informar os casos de violência doméstica que chegam ao conhecimento do profissional. De forma geral, parece que os profissionais da área da saúde associam violência à conjuntura econômica, social, política e cultural (Gonçalves & Ferreira, 2002). Em suas concepções, muitos desses profissionais acreditam que os atos violentos são parte do ciclo intergeracional e da dinâmica familiar (Nunes, Sarti, Ohara, & Silva, 2008). Desvelar a violência doméstica representa romper um complô de silêncio e deparar-se com a vítima, o agressor e a família em um mesmo e único núcleo com uma dinâmica perigosa e destrutiva (Tardivo, Junior, & Santos, 2005). Ainda assim, cabe ao profissional da área da Psicologia levantar as evidências sobre a possibilidade da violência sofrida e de sua natureza, avaliando a gravidade do acontecimento, seu impacto sobre a vítima e os demais membros da família, buscando identificar o risco e o funcionamento psíquico do indivíduo que foi vítima da violência doméstica (Tardivo, Junior, & Santos, 2005). Portanto, é muito importante que os profissionais em geral que atuam na área estejam preparados para identificar e atuar adequadamente sobre os casos de violência contra a criança. A ação efetiva desses profissionais pode contribuir para a redução do problema, de modo a interromper o circuito vicioso de violência dentro da família (Lamano-Adamo, 1999). Para essa autora, numa perspectiva psicanalítica, é preciso considerar uma certa complexidade na tarefa de trabalhar com esse perfil de família que maltrata. Esse tipo de trabalho exige do profissional muito estudo, supervisão e conhecimento, correndo ainda o risco de ser alvo das identificações projetivas das famílias, sendo capaz de acolhê-las, decifrá-las, nomeá-las, propiciando que as experiências emocionais provenientes das fantasias inconscientes possam ser pensadas e evoluídas e não atuadas ou encenadas com a violência. A vivência da violência acarreta danos a curto e a longo prazo e a intervenção psicoterápica pode se mostrar eficaz para aumentar 80

a autoestima e diminuir os índices de depressão (D’Affonseca & Willians, 2003). A partir do que foi discutido, é possível constatar que a violência na família ainda perdura em certa medida, fazendo refletir principalmente sobre as estratégias disciplinares utilizadas na educação de crianças e que perpassam os séculos. Pensando na forma como a sociedade familiar se estrutura, parece necessário repensar os discursos familiares, bem como os papéis de cada um e sua participação enquanto promotores da saúde ou da doença emocional e de transmissores de um legado que também perpassa gerações. Existem inúmeras discussões sobre o tema, mas até agora não foram suficientes para explicar o que e o porquê do que se passa de fato na intimidade do “lar doce lar”. Considerando a complexidade dos fatores que determinam a violência doméstica contra a criança, conclui-se que a sua ocorrência não pode ser explicada através de percepções que consideram pontos de vistas parciais. Isso significa que logicamente um único modelo teórico não pode ter a pretensão de esgotar o assunto ou explicá-lo plenamente. As pesquisas já realizadas sobre o tema certamente contribuem para uma melhor compreensão do fenômeno. No entanto, existe certo consenso entre os autores sobre a necessidade de mais atenção, maior produção literária e pesquisas sobre a violência doméstica na infância, bem como a contínua divulgação de seus resultados.

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Capítulo 6 USO DE DROGAS NA CONTEMPORANEIDADE: PERSPECTIVAS DE COMPREENSÃO E PRÁTICAS DE INTERVENÇÃO Luciane Marques Raupp

Currículo Lattes

Este trabalho visa refletir sobre a questão do uso de substâncias psicoativas na atualidade sob uma perspectiva histórico social, destacando a forma de compreensão das Ciências Humanas e Sociais acerca da relação dos seres humanos com as drogas, assim como as transformações nas práticas de uso e prejuízos a elas associados. Em um segundo momento, busca-se articular essa perspectiva com as modalidades de compreensão e intervenção sobre os problemas decorrentes do abuso de drogas, destacando as concepções que orientam as políticas públicas que regulam o setor.

Substâncias psicoativas: história e atualidade As substâncias que entram em nosso corpo, por qualquer via de absorção, podem ser assimiladas e convertidas em matéria para novas células, embora possam também resistir a essa assimilação imediata. Aquelas que são imediatamente assimiladas merecem o nome de alimentos, pois graças a elas a vida orgânica se conserva. Entre as que não são assimiladas imediatamente, há dois tipos básicos: o primeiro é composto por aquelas que são expulsas intactas de nosso organismo; e o segundo por substâncias que provocam alguma reação intensa. Nesse segundo grupo encontra-se o que se chama, em geral, de drogas1, pois afetam o organismo de forma notável, mesmo que tenham sido absorvidas quantidades mínimas (Escohotado, 1996). Chame-se essas substâncias de medicamentos ou drogas, são compostas 1

Utilizarei os termos ‘drogas’, ‘substâncias psicoativas’ e ‘psicoativos’ para designar tanto as substâncias legais como ilegais que afetam o sistema nervoso central, alterando uma ou mais de suas funções.

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por princípios ativos, a maioria derivados de plantas com características tóxicas que, em quantidades relativamente pequenas, podem causar danos ao organismo ou até mesmo sua morte. O consumo de drogas acompanha a história da humanidade. Desde a pré-história são utilizadas para fins terapêuticos, recreativos ou rituais. Nas mais antigas culturas do planeta, a dos caçadores e coletores, os sujeitos absorviam e reafirmavam sua identidade cultural através de rituais nos quais o uso de substâncias psicoativas ocupava lugar central (Schultess & Hofmann, 2000). Isso levou diversos autores a concluir que o ser humano jamais viveu apenas a dimensão real do cotidiano, pois todas as culturas desenvolveram formas de transcendência regulamentadas socialmente nas quais o uso de drogas tinha um lugar definido, não representando risco para os indivíduos e sendo até mesmo divinizadas (Neri Filho, 1995; Carneiro, 2002; Escohotado, 1996, 1998; Schultes & Hofmann, 2000). Nesse sentido, consideram que a influência que exerce a aceitação ou o rechaço sobre a forma de consumir determinada substância pode ser tão decisiva como suas propriedades farmacológicas, pois essas são substâncias às quais, cultural e historicamente, foram acrescidas determinadas características e qualidades (Escohotado, 1998; Neri Filho, 1995; Carneiro, 2002). Ou seja, a alteração de consciência provocada pelo uso de substâncias psicoativas ocupou diferentes funções na história da humanidade, de acordo a cultura e o efeito desejado. Escohotado (1996) fornece exemplos sobre como os valores de cada sociedade influenciam as ideias sobre as drogas e sua utilização. Por exemplo, no Peru pré-colombiano as folhas de coca eram um símbolo da nobreza Inca, reservadas exclusivamente à corte. Já na Roma pré-imperial, o uso livre de vinho estava reservado aos homens maiores de 30 anos, sendo permitido executar qualquer homem ou mulher jovem que fosse visto perto de uma bodega. Na Rússia, beber café foi, durante meio século, um crime castigado com tortura e mutilação das orelhas. Fumar tabaco foi condenado entre os católicos sob a pena de excomunhão (Escohotado, 1996). No Ocidente, foi a partir do final do século XIX que o consumo regular de álcool e outras drogas iniciou um aumento progressivo. No início do século XX a circulação e o consumo dessas substâncias passaram a ser regulamentados, com algumas sendo permitidas e outras proibidas por serem consideradas ameaças à ordem social e estarem relacionadas a problemas de saúde pública e 88

violência urbana. Segundo autores como Epele (2010) e Bourgois (1995), a persistência no uso de drogas, apesar dos riscos individuais e sociais aos quais estão expostos os usuários, articula-se com questões econômicas e políticas macroestruturais. Segundo os autores, através de processos sucessivos de expropriação de formas tradicionais de bem-estar - que anteriormente eram responsabilidade do Estado, de tradições comunitárias e das redes sociais -, o prazer na sociedade atual foi resumido a um mercado repleto de promessas de satisfação imediata e fugaz meio do consumo de produtos. Nardi (2003), referindo-se às características da contemporaneidade, aponta o deslocamento da ética do trabalho, hegemônica na modernidade, para a ética do consumo, caracterizada pela necessidade de satisfação imediata. Para o autor essa nova forma de reflexão ética, que teria como princípio a auto referencialidade, conduziria a uma transformação dos cuidados de si, os quais teriam como modelo a satisfação imediata, transformando a temporalidade em um presente contínuo e apresentando novas formas de individualismo. Ainda segundo Epele (2010), a rapidez desses câmbios acarretou amplas consequências nos modos de expressão da vulnerabilidade, da fragilidade, do prazer e do sofrimento nos corpos sociais e subjetivos. Birman (1993), demarca o início dos anos 1960 como o marco de um processo significativo de mudança nos hábitos de consumo de psicoativos, na medida em que, impulsionadas pelo movimento da contracultura, tais substâncias passaram a ocupar uma posição estratégica, simbolizando uma forma privilegiada de acesso a um outro mundo e a negação dos valores dominantes. Nesse contexto, os jovens consumidores, principalmente de alucinógenos, inscreviam as experiências que lhes eram reveladas pelas drogas em inovadores códigos éticos e estéticos. Para eles, o consumo regular dessas substâncias estava integrado a uma visão de mundo que contestava os valores tradicionais e almejava a construção de novos horizontes culturais. É também nesse momento histórico que ocorre uma mudança decisiva nesse campo, com a formação de cartéis ligados ao tráfico mundial de drogas, com ramificações internacionais diversificadas. A partir de então, assiste-se a um crescente processo de criminalização e a um aumento da violência relacionada à venda e uso de drogas (Birman, 1993). Ao fornecer chaves para a leitura das relações entre as microdinâmicas das relações contemporâneas e os traços característicos das macrorrelações so89

ciais na contemporaneidade, Bauman (2000, p. 70) destaca que o que denominou de modernidade líquida2 seria efeito de um processo dinâmico de “derretimento de todos os sólidos” - referindo-se ao peso da moral ocidental tradicional, atrelada à tradição - o qual, aumentando a margem de liberdade dos sujeitos, deixou-os, por outro lado, em uma situação de agudo desamparo. Conforme o autor, na atualidade: “Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades auto evidentes” (Bauman, 2000). Destaca que, enquanto no passado esse desmanche de verdades também ocorria, mas para ser seguido pela institucionalização de novos paradigmas, agora diversas práticas e tradições sociais - empregos, relacionamentos, saberes e fazeres - tendem a permanecer em fluxo constante: voláteis, desregulados, flexíveis de forma que, virtualmente, todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive o momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido (Bauman, 2000). Nesse contexto, movidos pelo principal imperativo da sociedade capitalista: Consuma e seja feliz!, o mundo se transforma em: “(...) uma mesa de buffet com tantos pratos deliciosos que nem o mais delicado comensal poderia esperar provar de todos” (Bauman, 2000, p. 75). Ou seja, os cidadãos viraram consumidores vorazes cuja necessidade de estabelecer prioridades configura-se quase impossível, frente ao desejo permanente de explorar todas as possibilidades à disposição. Movidos incessantemente pelo apetite voraz do consumo, o preço a pagar é a incerteza perpétua e um desejo que dificilmente se saciará (Bauman, 2000). Segundo Bauman (2000), a compulsão ao consumo levaria cada vez mais à individualidade e ao isolamento afetivo como formas de proteção, ao mesmo tempo em que diminuiria a convivência comunitária e as formas tradicionais de socialização. De acordo com Conte (2001), as drogas são mais um produto incentivado, mesmo que indiretamente, pelo mercado de consumo ao fornecerem a promessa de satisfação e alívio para enfrentar a realidade objetiva das necessidades orgânicas e dos conflitos subjetivos. Dessa forma, inserem-se perfeitamente no movimento social da nossa cultura, o qual fornece bens de consumo de todo o tipo, capazes de, supostamente, preencher os vazios e evitar o sofrimento. Desde meados dos anos 1970, autores como Illich (1975 apud 2

Termo cunhado pelo autor para referir-se ao estágio atual da cultura ocidental, visando evitar as polêmicas ligas ao termo pós-modernidade.

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Bucher, 1995, p. 40), o qual utilizou a expressão “sociedade drogada”, denunciavam a medicalização da vida, destacando nossa sociedade como enfraquecida e vulnerável em consequência da sobrevalorização da produção e do consumo, do desempenho e da competição, deixando de lado outros aspectos e dimensões fundamentais da vida afetiva e comunitária (Bucher, 1995, p. 40).

Em suma, a sociedade contemporânea e seu apelo ao prazer pela via do consumo, conjugado à aceleração do tempo e perda de referenciais, produziram mudanças na relação milenar da humanidade com o consumo de drogas. Além disso, a expansão internacional do mercado das drogas, aumentando a disponibilidade e inserindo novos e mais potentes tipos de drogas – como demonstrado pela expansão do uso de crack no Brasil e de substâncias sintéticas em países da Europa e nos Estados Unidos, como a metanfetamina – se relacionam ao aumento exponencial do número de dependentes, muitos dos quais apresentam graves prejuízos sociais e à saúde. Além dos fatores aludidos que relacionam características da contemporaneidade ao aumento do uso nocivo de drogas, pesquisadores têm destacado a importância de se considerar a influência da dimensão socioeconômica na propagação do uso de drogas entre jovens de camadas populares (Epele, 2010; Raupp & Adorno, 2011; Murphy & Rosenbaum, 1997; Zaluar, 1994). Por exemplo, Zaluar (1994), relacionou as falhas do Estado em promover cidadania por meio da distribuição adequada de recursos, benefícios e serviços, os quais se fazem particularmente visíveis na precariedade da educação e na falta de oportunidades no mercado de trabalho para jovens sem qualificação, ao aumento do abuso de drogas entre esse público. A autora ressalta que a pobreza não explica a entrada no mundo das drogas e do crime, mas que esta pode, em conjunção com as falhas do Estado na criação de possibilidades de ascensão social, assim como a cultura hedonista que faz parte da sociabilidade jovem contemporânea, facilitar a adesão às culturas de uso de drogas e ao mundo da ilegalidade (Zaluar, 1994). Conforme Murphy e Rosenbaum (1997), classe social é uma variável tão importante quanto a potência farmacológica da substância utilizada para o aumento das chances de desenvolvimento de problemas relacionados ao uso, considerando-se que entre pessoas com vidas “convencionais” e maior acesso a capitais econômicos, sociais e culturais é maior a chance do autocontrole ou mais acessíveis os meios para uma maior regulação ou mesmo parada no uso abusivo 91

de drogas. Raupp e Adorno (2011), em um estudo com usuários de crack em situação de rua em duas capitais brasileiras, destacaram que o predomínio do padrão de uso compulsivo entre os sujeitos pesquisados ligava-se a um complexo de relações que, além das propriedades aditivas da substância, unia questões estruturais e trajetórias de vida. Nesse contexto, o uso de crack era utilizado como artifício capaz de transformar uma vida marcada pela falta, discriminação e ausência de perspectivas em uma busca constante por prazer, focada no presente (Raupp & Adorno, 2011).

Concepções e práticas de atenção: da dependência à autonomia As referências até aqui aludidas visaram destacar a questão do uso de drogas como permeada por dimensões históricas e sociais que influenciam as práticas de uso dessas substâncias tanto quanto as variáveis biológicas e psicológicas, geralmente destacadas de forma isolada na análise de fatores relacionados ao encontro do ser humano com essas substâncias e aos prejuízos dele decorrentes. A diversidade de influências e entendimentos sobre essa questão demonstra o caráter multifacetado e complexo da problemática. De acordo com o enfoque que oriente a investigação, a questão das drogas pode ser abordada em seus aspectos bioquímicos e farmacológicos, jurídicos, de segurança pública, de saúde pública, de prevenção ou ainda de tratamento aos dependentes. Em especial em relação ao campo de tratamento da drogadição, distintos vieses e teorias predominaram em diferentes épocas, elegendo distintas modalidades de atenção como as mais influentes em cada momento histórico. Na verdade, até os dias atuais não há uniformidade nessa área, a qual é repleta de concepções de recuperação e de práticas distintas, e muitas vezes incompatíveis, o que leva à existência de programas e serviços ligados a diferentes modelos, os quais tendem a funcionar sem integração, dificultando assim o trabalho em rede - uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) que deveria orientar essas ações. Se nos reportamos à história das práticas de atenção aos problemas aqui enfocados, encontramos a concepção chamada de Moral como a primeira a fornecer uma visão geral sobre o usuário de substâncias e suas motivações intrínsecas. Segundo Marlatt e Gordon (1993), o “modelo moral” de tratamento constitui o viés mais tradicional no campo do tratamento ao abuso e depen92

dência de drogas. Nesse modelo, o uso excessivo de qualquer substância é visto como um problema de controle do impulso, no qual falta ao indivíduo força de vontade para exercer controle sobre si. Dessa forma, um dependente de drogas lícitas ou ilícitas é compreendido como uma pessoa a quem falta “fibra moral” para resistir à tentação. De acordo com essa visão, os indivíduos são considerados responsáveis pelo “início, desenvolvimento e solução dos seus problemas, necessitando apenas de motivação apropriada para isso” (Marlatt, 1999, p. 13). Pillon e Luis (2004) enfatizam o efeito de culpabilização presente nessa abordagem, pois o “modelo moral” levaria as pessoas a sentirem-se culpadas pelo seu comportamento compulsivo e a pensarem que, de alguma forma, lhes falta força de vontade ou “fibra moral” para alterar sua situação, desconsiderando questões físicas, psicológicas, econômicas ou sócio culturais relacionadas à instalação ou desenvolvimento do problema. Atualmente, modelos de tratamento baseados predominantemente na autoajuda, assim como modalidades de atenção presentes em algumas Comunidades Terapêuticas, seguem premissas desse modelo. De acordo com um a investigação conduzida por Raupp e Sapiro (2008) em uma comunidade terapêutica localizada na cidade de Porto Alegre/RS, apesar do potencial do local pesquisado para acolher uma demanda que dificilmente encontra espaço em outros lugares, não havia formas de reconhecimento e valorização das singularidades dos usuários, pois todos deviam adequar-se às verdades pré-estabelecidas pela instituição, padronizando as possibilidades de desenvolvimento dos sujeitos e não fornecendo preparo ou alternativas de socialização fora da internação. De forma bastante distinta da abordagem chamada moral, outra forma de compreender a tratar os problemas relacionados à drogadição que ocupa um espaço majoritário nas práticas atuais de atenção pode ser compreendida a partir do que Marlatt e Gordon (1993) conceituaram como “Modelo de Doença” ou “Modelo Médico”. De acordo com essa abordagem, o abuso ou dependência de álcool e outras drogas fundamenta-se em uma dependência física subjacente, salientando a importância dos fatores biológicos predisponentes, geneticamente transmitidos. Assim, o foco de atenção centra-se na substância psicoativa e seus efeitos farmacológicos, não levando em conta as questões psíquicas singulares de cada sujeito ou mesmo suas circunstâncias sociais. De acordo com Cruz (2000), nessa abordagem procura-se estender para o campo da drogadição paradigmas que obtiveram êxito no tratamento em outras formas de adoecimento: “No caso das toxicomanias, as tentativas de explicação se ligam à ação das 93

drogas no sistema nervoso central, provocando quadros como a intoxicação e a abstinência” (Cruz, 2000, p. 235). O predomínio do “paradigma médico” se faz presente na maioria das unidades de internação de hospitais ou clínicas especializadas nos problemas relacionados ao que, segundo esse paradigma, é denominado de dependência química – denominação que alude ao predomínio da influência química, portanto orgânica, na compreensão das causas do problema. Nesses espaços especializados, a grande maioria das atividades terapêuticas têm por objetivo o alcance ou manutenção da abstinência total de drogas – objetivo também seguido nos locais influenciados pelo chamado modelo moral. Historicamente, a adesão majoritária dos serviços ao “modelo de doença” trouxe muitas vantagens em relação à abordagem “moral”, pois colaborou para remover estigmas e encorajou muitas pessoas a buscar tratamento, tal qual o fariam com qualquer outro transtorno biológico. Além disso, trouxe inegáveis avanços científicos na compreensão dos efeitos cerebrais e físicos da dependência e seus mecanismos internos. Contudo, apesar desses avanços, Marlatt e Gordon (1993) sublinham a existência de um paradoxo importante nessa abordagem, pois, se por um lado, afirma-se que o sujeito é incapaz de exercer controle sobre o seu comportamento, por outro lado, o único modo seguro de evitar o problema é a abstinência total por um período indefinido, o que supõe a capacidade de autocontrole. Dessa forma, produzir-se-ia uma restrição dicotômica acerca dos possíveis resultados do tratamento: ou o sujeito está abstinente, ou sofreu recaída. Conte (2003), comenta que a aplicação da concepção de doença nos tratamentos traz como consequência a produção de um descompromisso dos sujeitos com sua vida psíquica, pois, a ideia de sofrer de uma doença incurável acarretaria a inibição das possibilidades de mudança em seu registro sintomático, sustentando uma relação imaginária dual, que os mantém vinculados ao produto-droga. Outro possível desfecho se ligaria à produção de uma divisão entre a vida do sujeito durante e depois do uso de drogas, o que poderia produzir uma alienação de sua subjetividade e uma dissociação, na medida em que o sujeito deve negar o passado para construir um novo homem (Conte, 2003). Segundo a autora, a ideologia fundamental dessa visão é centrada na busca da contenção e do controle sobre o sujeito, dificultando a consideração de motivações mais profundas/inconscientes ou sociais relacionadas ao seu padrão de uso. Apesar do predomínio do modelo citado acima no campo de pesquisa e 94

tratamento, no campo das políticas públicas que regulam as práticas de atenção no país outros paradigmas se fazem presentes. Representante principal das concepções do Ministério da Saúde sobre a questão, a política de “Atenção Integral ao Usuário de Álcool e outras Drogas” tem nas diretrizes do SUS seus eixos centrais, sob os quais trabalha as especificidades de seu público-alvo. Um dos pontos fundamentais dessa política refere-se à assunção do compromisso presente nas diretrizes do SUS de fortalecer o trabalho em rede, proporcionando uma atenção integral nos moldes da intersetorialidade, incitando outras instâncias à conexão em torno da mesma problemática: O uso de álcool e outras drogas, por tratar-se de um tema transversal a outras áreas da saúde, da justiça, da educação, social e de desenvolvimento, requer uma intensa capilaridade para a execução de uma política de atenção integral [...]. As articulações com a sociedade civil, movimentos sindicais, associações e organizações comunitárias e universidades, são fundamentais para a elaboração de planos estratégicos dos estados e municípios, ampliando-se significativamente a cobertura das ações dirigidas a populações de difícil acesso. Tais articulações constituem-se em instrumentos fundamentais de defesa e promoção de direitos (advocacy) e de controle social (Ministério da Saúde, 2004, p. 20).

Buscando viabilizar os princípios de integralidade e intersetorialidade, uma das estratégias enfatizadas nas políticas atuais consiste em buscar a integração regional entre diferentes secretarias, através de projetos intersetoriais que viabilizem uma rede de atenção. Assim, a política do Ministério da Saúde enfatiza a importância do estabelecimento de vínculos e da construção da corresponsabilidade pelo tratamento. Segundo o Ministério da Saúde (2004), comprometer-se com a formulação, execução e avaliação de uma política de atenção a usuários de drogas requer a ruptura com a lógica binarizante que separa e detém o problema do abuso de drogas em fronteiras rigidamente estabelecidas. De acordo com Traverso-Yepez e Pinheiro (2002), faz-se necessário romper com a visão unidimensional que impera no campo da saúde pública, na qual o modelo é o médico e os problemas são avaliados apenas por sua dimensão orgânica e biológica. Essa visão, aplicada ao campo do tratamento da drogadição, produz como efeito principal a ênfase hospitalocêntrica nos tratamentos, os quais reduzem-se a inúmeras internações para desintoxicação sem que seja dada a devida importância à continuidade 95

do tratamento pós-alta (Conte, 2001). Para a autora, ao invés de o indivíduo ser apenas hospitalizado para desintoxicação e depois voltar ao seu cotidiano, deveria seguir vinculado a um ambulatório, posto de saúde ou a um CAPSad, além de outros dispositivos da rede municipal capazes de facilitar o acesso a programas de geração de renda, profissionalização, participação comunitária, etc., seguindo o objetivo de sua recuperação integral. Embasada por uma visão unilateral do problema da drogadição, a perspectiva da abstinência imperou por muito tempo, e ainda é bastante forte. No entanto, de acordo com o Ministério da Saúde (2004, p. 21), a abstinência não deveria ser o único objetivo de um tratamento: Quando se trata de lidar com vidas humanas é necessário que se tenha em primeiro plano o respeito às singularidades e diferentes possibilidades de escolha possíveis. As práticas de saúde, em qualquer nível, devem levar em conta essa diversidade.

Buscando alcançar essa meta, a política do Ministério da Saúde elege a abordagem da Redução de Danos como método de trabalho, visando adequar o tratamento à singularidade dos pacientes e incentivar sua autonomia para então serem traçadas estratégias voltadas para a defesa de sua vida. A Redução de Danos é um método de tratamento que não exclui outros, pois está vinculado primordialmente ao direcionamento do tratamento. A abordagem da Redução de Danos vem se consolidando como uma alternativa às abordagens baseadas nos modelos moral, criminal ou de doença. Seu foco visa aos efeitos e consequências do comportamento aditivo, ao invés de priorizar o uso de drogas em si e a meta da abstinência. Dessa forma, a ideia básica que orienta as ações desse modelo baseia-se na compreensão de que ao invés de direcionar todos os esforços para prevenir o uso de drogas, devemos buscar evitar o seu abuso, ou seja, o mau uso que pode resultar em ameaças ao bem estar do sujeito e da sociedade (MacRae, 2003). Apesar dessa abordagem apelar menos para um ideal de saúde do que para aquilo que é viável ao sujeito e, portanto, não exigir a abstinência para a existência de um tratamento, Marlatt (1999) ressalta que essa é uma meta desejável, porém, situada em um continuum que não dicotomiza as possibilidades de recuperação. Assim, a abordagem de redução gradual estimula os indivíduos com comportamentos de risco a “dar um passo de cada vez”. No Brasil, a Redução de Danos surgiu junto aos avanços promovidos 96

pela reforma psiquiátrica, visando ao reconhecimento dos direitos e deveres dos usuários de drogas, suas demandas, o tempo de elaboração de suas experiências e a flexibilidade no contrato. Conte (2003) ressalta que esses aspectos viabilizam uma escuta no contexto de condições preliminares à formulação de uma demanda, favorecendo o reconhecimento de riscos e a construção de estratégias de autocuidado. Como vimos acima, o Ministério da Saúde reconhece esse paradigma como a diretriz a ser implementada na rede nacional de atenção. Contudo, constata-se que essa orientação é ainda incipiente e convive com uma diversidade de paradigmas e abordagens terapêuticas. Na opinião de Cruz (2003), vive-se no Brasil uma disputa no campo das políticas públicas: se, por um lado, vem sendo desenvolvida uma série de iniciativas dentro da perspectiva da Redução de Danos por parte dos poderes executivos, por outro, no poder judiciário e em muitos locais de internação aplica-se um modelo que retira a autonomia dos sujeitos, compreendendo-os apenas a partir da perspectiva de sua dependência (química).

Considerações finais Dada à complexidade e polifonia das questões relacionadas ao uso de drogas, compreendemos que não é possível abordar os problemas decorrentes do encontro dos sujeitos com essas substâncias apenas através de uma única dimensão. Segundo Velho (1997), a ideia básica de que a realidade é complexa e se dá em múltiplos planos, confere ao uso de substâncias como as drogas significados particulares definidos a partir das lógicas das diferentes culturas, sociedades e grupos que as utilizam. Nesse sentido, modalidades de atenção e/ou tratamento que considerem apenas uma dimensão do problema, como a dimensão biomédica - focada nas alterações que o uso continuado produz no organismo - têm se mostrado insuficientes, o que é atestado pelas altas taxas de recaídas e insucesso nos tratamentos. Por outro lado, apesar da mudança nas legislações, a realidade dos serviços de atenção em saúde mental ainda deixa muito a desejar no tocante a sua adequação aos novos paradigmas vigentes. Se considerarmos o número de CAPSad, os dados demonstram que a oferta de tratamentos está ainda aquém da demanda, principalmente em face do aumento do que já vem sendo chamada de 97

uma “epidemia” de uso de crack. Considerando as consequências psicossociais do uso abusivo de drogas, tal quadro é alarmante e justifica medidas urgentes na área da saúde, baseadas na necessária ação intersetorial nos cuidados com a drogadição (Fefferman, Raupp, & Salum Morais, 2011). Ao invés dos grandes investimentos voltados sobretudo à repressão ao uso, a prioridade deveria ser o investimento em espaços capazes de propiciar acolhimento, continência, escuta e meios de simbolização dos conflitos psíquicos que levam um sujeito à compulsão ao uso de drogas (Raupp & Sapiro, 2009). Da mesma forma, dever-se-ia investir em mecanismos que garantissem a real efetivação de um trabalho em rede entre os distintos equipamentos públicos e sociais, a fim de viabilizar o acesso do usuário a atividades lúdicas, artísticas, de reforço escolar e profissionalizantes, visando ampliar suas perspectivas de vida a partir da descoberta de novas potencialidades, ao mesmo tempo em que lhes instrumentalizam para uma inserção social diversificada. No entanto, grande parte dos serviços que oferecem tratamento para drogadição tendem a considerar o uso de drogas como o problema principal, desconsiderando o papel desempenhado pelas formas de relação com o consumo propostas socialmente e seus efeitos subjetivos. Nesse sentido, ressaltamos que o predomínio do “modelo de doença” nos tratamentos leva a uma ênfase excessiva na química – na dependência química - e tende a desconsiderar o sujeito e suas motivações profundas. Segundo Rotelli (1990), o problema enfrentado sempre, e de modo errado, é o da droga e não o da drogadição, pois não é interessante ouvir o parecer dos sujeitos que o enfrentam; o que interessa é normatizar o “fenômeno droga”, e não o confronto com as histórias singulares. Ressaltamos que esse é um campo ainda permeado por concepções do “modelo moral” presentes, de forma direta ou indireta, em muitas práticas de prevenção e tratamento, assim como nas políticas que seguem tratando a questão sob uma ótica repressiva que, a despeito de toda a produção atual sobre o tema.

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Parte III – Olhares Contemporâneos

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Capítulo 7 CONTRIBUIÇÕES DE FREUD À PSICOTERAPIA Julio Cesar Walz

Currículo Lattes

Psico-análise é a arte de restituir a uma pessoa a alma que ela tem (ou a possibilidade de não sentir mais vergonha de si mesmo). (Paulo Sérgio Rosa Guedes)

Iniciando a conversa... A Psicoterapia é o tratamento pela palavra. Isso significa uma perspectiva de tratar doenças mentais de caráter psicogênico (ou seja, de origem emocional) através da conversa. Essa forma terapêutica estabeleceu-se no mundo médico e psicológico a partir das investigações de Sigmund Freud no final do século XIX. A psicoterapia, propriamente dita, assim como conhecemos hoje em suas mais variadas compreensões e técnicas, tem no máximo 120 anos de existência. Em 1896, Freud criou uma expressão para nomear o tratamento pela conversa. Tal termo era “Talking Cure” (Roudinesco & Ploom, 1998, p.603). Reforço essa ideia do tratamento pela fala como sendo algo novo na história da humanidade. Ninguém, até então, havia conseguido sistematizar uma maneira de usar a fala como um tratamento ou uma cura psicológica (da alma). Esse tratamento ele denominou de psico-análise. Destaco essa grafia para acentuar o termo “psico”, com ênfase na alma e não na análise, e espero poder esclarecer melhor ao longo do texto tal distinção. Foi essa ênfase de Freud sobre a alma (psique) que tornou sua análise diferente de todas as outras até nossos dias (Bettelheim, 1984, pp. 24-25). Com palavras minhas, definiria, para efeitos deste texto, que a psicoterapia é o lugar de encontro para que a pessoa em sofrimento mental possa estabelecer um vínculo humano com a finalidade da construção de espaços mentais onde não fique restrita ao sofrimento nem mantenha ou sustente a ilusão da 103

onipotência. Esse encontro visa, na medida do possível, favorecer que a pessoa recupere a si para si mesma e volte a oxigenar sua vida mental.

Os começos do psicoterapeuta Freud... Freud formou-se em Medicina em 1882, após oito anos de estudo. Durante o curso foi um aluno muito destacado. Além dos estudos normais, dedicou-se profundamente a conhecer o darwinismo com Ernst Haeckel e filosofia com Franz Brentano, além de ter recebido uma bolsa para estudar glândulas sexuais das enguias machos de rio. Nesse período, como bolsista (hoje seria bolsista de iniciação científica), criou uma teoria sobre o funcionamento das células nervosas e neurônios. Quando terminou a faculdade, e sem condições de seguir como pesquisador por razões de falta de apoio financeiro institucional, entrou em contato com Joseph Breuer e acompanhou o caso “Ana O.” (Berta Pappenheim). Jovem (21 anos) inteligente acometida de perturbações histérico-orgânicas (paralisias, perturbações visuais, desordens de linguagem, fobias, etc.), submetida a hipnoterapia é tida como o primeiro caso da Psico-análise. Com Breuer, Freud descobriu a técnica psicoterápica mais usada na época, a hipnose. Quando sob hipnose, parece que a paciente “liberava” algo que a incomodava com grande melhoria de sintomas, dizia Breuer. Este denominou tal técnica de “katharsis” (do grego “purgar-se”) e a hipnose que o acompanhava de “hipnose catártica” (do grego “kathartikos”; latim “catharticus”). Freud trabalhou quatorze anos com Breuer. Em termos históricos, é interessante notarmos que apenas em 1882, na França, foi criada a primeira cátedra de clínica de doenças nervosas, onde Jean Martin Charcot foi o titular. A neurologia fica reconhecida como disciplina autônoma, e o estudo das doenças mentais começa a ganhar visibilidade e autonomia. Num certo sentido, as doenças mentais estavam saindo do campo da bruxaria e dos maus espíritos. Charcot foi um dos maiores clínicos e professores de Medicina da França, juntamente com Guillaume Duchenne, o fundador da moderna neurologia. Suas maiores contribuições para o conhecimento das doenças do cérebro foram o estudo da afasia, a descoberta do aneurisma cerebral, causas de hemorragias cerebrais. Charcot também concluiu que a hipnose era um método que permitia tratar diversas perturbações psíquicas, em especial à histeria. Charcot foi tão famoso quanto seus alunos: Sigmund Freud, Joseph Babinski, Pierre 104

Janet, Albert Londe e Alfred Binet. Em 1885, Freud viajou a Paris para iniciar um estágio com Charcot de 19 semanas. Esse estágio terá papel fundamental na formação do jovem Sigmund. As várias cartas que trocaram estão traduzidas no livro “Lições da Terça-feira”. Ali pôde aprender toda a técnica da hipnose e estar no centro da efervescência e das discussões acerca das doenças mentais, especialmente a histeria. Essa era um enigma para o conhecimento: tinha a figuração de um quadro neurológico, sintomas físicos importantes, mas não se inscrevia completamente num quadro orgânico degenerativo, ou mesmo seus sintomas não apresentavam diagnóstico mensurável ou visível clinicamente. Em 1886, Freud volta a Viena, onde se estabelece como médico e dirige o Departamento de Neurologia, primeiro instituto público para crianças. Entre 1886 e 1890, exerce medicina como especialista em doenças nervosas. Freud foi incansável, com o desejo profundo de poder ajudar seus pacientes a poderem viver melhor. Usava de todos os recursos possíveis na época: banhos, pressão na cabeça, passeios nas montanhas, eventualmente choques e a hipnose. Com esta técnica, a hipnose, iniciou uma série de tratamentos psicoterápicos, sempre auxiliado pelas outras técnicas, quando achava que seria benéfico ao paciente. No início tinha grande estima pela hipnose e considerava-a de grande valor terapêutico. Via suas pacientes histéricas melhorarem de seus sintomas, chegando a afirmar a cura da histeria pela hipnose. Aos poucos foi percebendo que alguns sintomas retornavam ou que não conseguia avançar em muitas lembranças pela hipnose, na tentativa de buscar a causa ou fator desencadeante das crises nervosas. Certa vez, uma de suas pacientes, Elisabeth, não estava melhorando com hipnose e nem se deixava hipnotizar. Freud, então, começou a usar a técnica da pressão na cabeça da paciente com o objetivo que ela pudesse desfocar de seus pensamentos circulares. Diz Freud (1893, p. 194): “Realizei isso instruindo a paciente para que me informasse fielmente tudo o que aparecesse em sua imaginação ou se lembrasse, no momento da pressão”. Destaco que esta passagem foi decisiva na história da humanidade e da psicoterapia. Qual passagem? Freud estava trocando a inquisição, o questionamento, o rastreamento ou a relação linear entre causa e efeito, com suas suposições para que a paciente pudesse falar qualquer coisa, aquilo que viesse à cabeça dela espontaneamente. Provavelmente essa passagem foi um misto de intuição com o apoio do que suas 105

pacientes normalmente lhe diziam vez ou outra, que ele deveria ficar mais quieto e as deixasse falarem um pouco mais.3 No caso da Elizabeth, quando ela começou a falar, digamos assim, sem o norte das perguntas de Freud (1893, p. 195), constatou ele: “abriu-se uma nova corrente de ideias”. Ou seja, novas memórias, novos conteúdos, novas emoções, aparentemente inusitadas e sem nenhuma relação com o seu sofrimento mental. Isso causou um espanto, digamos assim, em Freud. Afinal, surgiram saberes, informações e emoções que não estavam acessíveis de maneira direta ao paciente e muito menos ao médico. Dessa constatação surge uma questão: teria realmente valor terapêutico deixar o paciente falar livremente? E em que termos?

Das originalidades fundamentais... Para efeitos de tentar esclarecer o que considero central na contribuição de Freud à psicoterapia, vou me valer do roteiro do caso descrito por Freud acercado tratamento da Elisabeth (1893) para tentar transmitir os fundamentos da genialidade de Freud, em termos clínicos. Quando procurou Freud, Elisabeth tinha 24 anos de idade. Na ocasião da procura, estava com paralisia e dores na perna sem nenhum resultado positivo em seus tratamentos há mais de dois anos. Sua situação de vida era de muitas perdas familiares: recentemente a irmã falecera após longa afecção cardíaca; a mãe tinha realizado uma cirurgia dos olhos e o pai morrera, após longo cuidado dedicado por ela. Aliás, boa parte da sua juventude estava envolvida em cuidar do pai e de todos os familiares, abdicando praticamente de toda e qualquer atividade para si própria. Conclui Freud (1893, p. 193), após investigar a vida de Elisabeth: Eis aqui, portanto, a infeliz história dessa moça orgulhosa, que queria amor. Incompatibilizada com o seu destino, amargurada pelo fracasso de todos os seus pequenos esquemas para o restabelecimento das antigas glórias da família [...] vivera 18 meses numa reclusão completa, não tendo nada a ocupá-la senão os cuidados com a mãe e com suas próprias dores. 3

Podemos encontrar observações assim em quase todos os casos descritos por ele nesta época. Cf. Freud, 1893.

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Na época usava a hipnose para encontrar fatores desencadeantes enterrados na memória. Dizia ele (Freud, 1893, p. 188) o que pretendia com a técnica: Desembaraçar o material psíquico patogênico camada por camada, e gostamos de compará-lo à técnica de escavar uma cidade soterrada... Todo o trabalho era baseado, naturalmente, na expectativa de que seria possível estabelecer um grupo perfeitamente adequado de determinantes para os fatos em causa.

Ou seja, no início desse tratamento Freud tinha a mesma convicção dos seus pares da época, que era: existe uma relação linear entre causa e efeito. A razão para o sofrimento mental ou a histeria de Elisabeth (ou de qualquer outro paciente) poderia ser encontrada em sua vida e em alguma memória oculta, e bastaria associar o sofrimento atual a algum fato ocorrido anteriormente que a descarga poderia ser feita (ab-reação), e sua mente estaria livre. No entanto, tal esquema começou a ruir definitivamente com Elisabeth. Ou melhor, Freud aprendeu com Elisabeth que o sofrimento mental não se processa nessa forma linear e não está relacionado diretamente com a vida, ou ainda uma memória esquecida que ao ser acessada libertaria a pessoa. Vejamos. Pressionada na cabeça pelas mãos de Freud e solicitada a falar tudo o que lhe ocorresse, “abriu-se uma nova corrente de ideias”. No caso, a situação era a seguinte: Elisabeth estava cuidando do pai incessantemente, dia após dia. Um moço jovem e talentoso estava interessado em Elisabeth e convidou-a para um baile. A moça recebeu o apoio de todos na família, inclusive de seu pai. Cheia de reticências, foi ao encontro. Mas quando chegou em casa nesse feliz estado de espírito, encontrou o pai pior e recriminou-se amargamente por haver gasto tanto tempo divertindo-se. Esta foi a última vez em que deixou o pai doente por uma noite inteira. (Freud, 1892, p. 195)

No contexto do tratamento dessa jovem, a lembrança desse dia que terminara penoso foi a de um amor proibido (apenas por ela), por assim dizer. Este assunto, o seu interesse por aquele jovem rapaz, não havia sido falado em nenhum momento com Freud, nem em estado hipnótico. Estamos aqui diante da primeira originalidade de Freud, no caso, da sua técnica: estava dado o início da aplicação da ideia da associação livre.4 Freud 4

Quando Freud tinha 14 anos recebeu de presente as obras completas de um escritor chamado Ludwig Börne (1786-1837). Num dos livros havia um texto denominado “Como se tornar um escritor original em três dias? No artigo ele recomendava que se deveria anotar, por três dias seguidos, sem falsificação e

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observa que uma nova corrente de ideias surgiu. E, no caso, era um segredo, a sensação de um amor proibido. Enfim, a associação livre começa cada vez mais fazer parte do trabalho de Freud, com o nítido ganho de o paciente poder livremente seguir seus próprios caminhos discursivos. Em sentido literal, a associação livre é, na realidade, o resultado final ou aquilo que se busca de um tratamento. Afinal, quando alguém está mentalmente enfermo, diz Freud, ele “sofre de ideias fixas”, “ou sofre de reminiscências”, ou “sofre de ideias excessivamente intensas ou aprisionadas”. Dessa forma é impossível associar livremente. Nesse estado de aprisionamento, a vida mental enferma baseia-se na ilusão do controle ou do poder, como veremos adiante. Ele quer explicar e ser explicado. E acolher-se a si mesmo, respeitar suas ideias e sensações, enfim, a sua humanidade, passa a ser um horror. A base da associação livre é o auto respeito. Da neurose é a autocrítica. Voltando a técnica. O efeito típico do aparecimento inusitado de algum material ou mesmo a lembrança de algo jamais esperado, ou ainda a evocação e uma vivência dolorosa na vida mental de fatos reais, levou Freud a definir uma segunda originalidade, ainda mais decisiva e genial: a noção de conflito, conflito psíquico. Essa segunda originalidade, a do conflito psíquico, deu a ele uma nova dimensão acerca da vida mental. Começava agora uma nova compreensão acerca da questão da origem do sofrimento mental. Ou seja, a origem do sofrimento mental é intrapsíquico. Ele é decorrente do efeito de ideias antagônicos ou opostas e que se digladiam permanentemente. A noção de ideia aqui não se restringe simplesmente a pensamentos conscientes, mas refere-se a “forças” antagônicas que se digladiam dentro do indivíduo, na sua cabeça (Laplanche & Pontalis, 2001). Trata-se de uma situação de incompatibilidade, ou vivida assim. Mais tarde ele usa essa noção para construir a noção de aparelho psíquico e de que o conflito estava na incompatibilidade entre os sistemas psicológicos denominados de Consciente, Pré-Consciente e Inconsciente. Posteriormente ele denominou de Id, Ego e Super-Ego (ou literalmente: Isso, Eu e Super-Eu respectivamente). hipocrisia tudo o que passasse na cabeça. Disse ele: “Escreva o que você pensa de você mesmo, de suas mulheres, da guerra da Turquia, de Goethe, do juízo final, de seus superiores e, depois de três dias, você ficara surpreso com quantos pensamentos novos, jamais expressos, surgiram em você”. Anos mais tarde, numa carta a Ferenczi ele reconhece que esta leitura pode ter sido a influência de sua originalidade técnica. Cf. Sousa, 2005, p. 32.

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No caso de Elisabeth, ele (Freud, 1893, p. 213) cita o conflito da seguinte maneira: [...] círculo de ideias que abrangia seus deveres para com o pai enfermo, entrou em conflito com o conteúdo do desejo erótico que sentiu na época. Sob a pressão de vividas auto censuras, ela decidiu em favor das primeiras, e ao fazê-lo provocou a dor histérica.

Elisabeth, como todos os seres humanos, teve as dificuldades naturais da vida. Poderíamos achar que esses seriam os problemas mentais dela, as dificuldades da vida. Mas o que Freud foi percebendo é que a raiz do sofrimento não eram, em si, os fatos da vida, mas sim as ideias incompatíveis e não aceitas pela pessoa ou pelo seu sistema psicológico ou moral, inclusive em relação à própria vida. Podemos esclarecer melhor a relação entre vida real e vida mental. A compreensão que Freud nos traz é fantástica (talvez um pouco esquecida ou, na maioria das vezes, mal compreendida). Parece a mesma maneira de ver da Física Quântica acerca da realidade, que nos ensina teoricamente que aquilo que percebemos como sendo massa sólida e compacta (uma mesa, por exemplo) de fato não é em sua essência. Ou melhor, ele tem uma ideia muito interessante sobre a relação sujeito e ambiente. Na neurose, a origem e a manutenção de sofrimento não é direta e imediata. Tal compreensão e sua aplicação nos indicam questões terapêuticas e o lugar de nossa atenção e cuidado. O que diz ele (Freud, 1918, p. 68): A concepção, portanto, que estamos colocando em discussão é a que se segue. Sustenta que cenas da primeira infância, tais como as que são construídas por uma análise exaustiva das neuroses (...), não são reproduções de ocorrências reais, às quais seja possível atribuir uma influência sobre o curso da vida posterior do paciente e sobre a formação dos seus sintomas. Considera-as, antes, como produtos da imaginação, que encontram estímulo na vida madura, que pretendem servir como uma espécie de representação simbólica dos verdadeiros desejos e interesses e que devem sua origem a uma tendência regressiva, a uma fuga das incumbências do presente.

O que Freud está dizendo não é que não ocorram eventos na infância ou na vida, mas sim que o que fazemos ou pudermos fazer com os fatos ocorridos (internos e externos), ou seja, com nossa capacidade imaginativa é que terá influência decisiva para o surgimento ou não de perturbações emocionais. Quer 109

dizer, o passado no presente não são as memórias conscientes ou esquecidas do passado, ou as memórias rancorosas conscientes ou do sofrimento vivenciado e mantido como lembrança intensa. Seguindo uma sugestão do Dr. Paulo Sérgio Rosa Guedes (Guedes, 2010, p. 91), diz ele: [...] me parece muito útil considerar “produtos da imaginação”, nesse contexto, como intensos desejos de poder alcançar a onipotência. E sublinhar enfaticamente, que Freud não afirmou ser o chamado trauma infantil a causa da neurose, mas sim a configuração que cada um pode criar em torno de determinado evento como “produtos da imaginação”.

Trata-se de uma revolução conceitual ímpar na história, à primeira vista, estranha e longe da percepção imediata que temos de nosso sofrimento, pois sempre queremos atrelá-lo a fatos, digamos, reais. E os usamos para justificar nosso sofrimento ou a sua existência. Esse procedimento corriqueiro confunde nosso pensar de maneira quase crônica. Ou melhor, Freud nos ensinou que parte do que pensamos, em estado mental de sofrimento é confuso em razão de tentarmos compatibilizar tudo ou de não aceitarmos as oposições ou que elas fazem parte da nossa vida, intrinsicamente. O ser humano não é unívoco, nem uníssimo. E a sua “loucura” está na tentativa de curar o incurável. Aliás, jamais deveríamos esquecer: a vida não tem cura. Apenas a neurose. A terceira originalidade é a noção de defesa. Ela é o resultado do conflito psíquico ou da experiência de incompatibilidade vivida pelo indivíduo. Ou seja, quando algo é incompatível ou percebido como tal, o sistema tende a rejeitá-lo em favor de outra. No caso da Elisabeth, o efeito descrito por Freud (1893, p. 196) foi o seguinte: “O resultado deste conflito foi que a ideia erótica foi reprimida da associação e a emoção ligada àquela ideia foi utilizada para reviver uma dor física que se achava presente simultaneamente, ou pouco antes.” A ideia de defesa é muito forte para Freud. Vem do termo alemão Abwehr e refere-se a situações de guerra. Ou seja, o conflito psíquico, na imagem de Freud, parece uma guerra. E um dos mecanismos da defesa é a repressão. A repressão é o resultado de uma incompatibilidade (intrínseca ao ser humano) que gera a defesa, e tem por finalidade impedir o avanço de uma ideia supostamente ameaçadora ou diferente. Sempre que ocorre esse impedimento, a força que vinha para a consciência precisa retornar ao seu local de origem. E aí surge uma questão: o que acontece com essa energia psíquica que buscava escoamento, mas 110

que precisou ser contida? Aqui temos a quarta contribuição original de Freud. A noção de sintoma. Diz ele sobre Elisabeth (Freud, 1893, p. 206): Os conceitos de desvio de uma ideia incompatível, da gênese dos sintomas histéricos através da conversão de excitações psíquicas em algo físico e a formação de um grupo psíquico separado, através do ato de vontade que conduziu ao desvio – todas essas coisas, naquele momento, apareceram diante dos meus olhos de forma concreta.

Ou seja, o sintoma é o resultado de uma ideia ou impulso original que foi desviada dentro do aparelho psíquico e que ganha nova roupagem para poder ser aceita, digamos assim, pela consciência ou ego. Assim, podemos dizer que na própria doença encontramos a saúde oculta e que não consegue manifestar-se efetivamente. Conforme Freud (1913 p. 69): Se os neuróticos são dotados da característica prejudicial de desviar o seu interesse do presente e de vinculá-lo a esses substitutos regressivos, os produtos da sua imaginação, então o que há a fazer é seguir a sua trilha. [...] eles são os portadores e possuidores do interesse que queremos libertar.

Pensando a neurose... Interessante percebermos o que Freud estava descobrindo e levando em curso durante o trabalho com Elisabeth. Disse ele a certa altura que a neurose são (Freud, 1893, p. 209): “casos que escrevo que parecem contos”. Aparentemente simples, esta afirmação pode dar uma dimensão importante às descobertas que ele vinha construindo. Sua extrema capacidade investigativa e criadora levou-o a demonstrar que o sofrimento psíquico é, num certo sentido, criação da própria pessoa. E mais: o sofrimento é mantido por ela. E mais ainda: cultivado como se fosse necessário (Guedes & Walz, 2011). A cura pela palavra ou a psico-análise se apoia nessa magistral descoberta. Torna-se fundamental, então, o ato de conversar. Justamente porque na neurose ocorre um enclausuramento na convicção profunda de que se é a maior vítima da vida. Na conversa terapêutica o objetivo não é a conservação, e sim a abertura de novos mundos, a oxigenação. Nesta conversa surge necessidade de ir demonstrando ao doente que a criação de seu sofrimento é mesmo obra sua. 111

Sem ele perceber, óbvio. A pessoa foi construindo essa condição, e se fechando em torno de si mesma, de certa forma numa tentativa ilusória de cura. Afinal, no sintoma está a saúde ocultada, como vimos acima. A neurose, então, é uma tentativa de cura. Nada mais do que isso. Diz Freud (1913, p. 109, grifos meus): [...] a investigação analítica revela a mesma coisa em todas as neuroses. Em todas elas, o que determina a formação dos sintomas é a realidade, não da experiência, mas do pensamento. Os neuróticos vivem num mundo à parte, onde, como já dissemos antes, somente a ‘moeda neurótica é a moeda corrente’; isto é, eles são afetados apenas pelo que é pensado com intensidade e imaginado com emoção, ao passo que a concordância com a realidade externa não tem importância.

Com base nessa formulação de Freud trago aqui uma proposição do Dr. Paulo S. R. Guedes (2011) acerca do sofrimento mental. Podemos afirmar que a neurose é a “ausência” (aparente) da paixão na vida, ou seja, a onipotência em carne viva tentando se manter e mantida pela pessoa a todo custo de desgaste humano e psicológico. Mas para ela, a pessoa, torna-se o centro, fundamental mantê-la e sem a percepção de que pode largá-la com ganhos imensos. A paixão seria a capacidade humana baseada em curiosidade, investigação, expansão. Afinal, o universo é expansão. O oposto da paixão é a onipotência. A pessoa sabe tudo. Ora, quem vai querer largar esse estado de convicção profunda de que sabe tudo e dá conta de tudo? Por isso, não podemos nos esquecer de que, quando alguém em sofrimento mental neurótico busca um tratamento para aliviar seu estado de miséria, em primeiro lugar o que ele busca é um aprimoramento do seu sentimento de poder ou da sua onipotência. O seu sofrimento é este: ele não está dando conta de tudo e quer melhorar-se a si mesmo para poder fazer tudo, vencer tudo. Ele não quer ser um ser humano. Ele quer ser deus ainda mais. Para esclarecer melhor esse ponto fundamental, vou recorrer às palavras de Nelson Boeira acerca do tema da onipotência (Guedes & Walz, 2011, p. 36): Nietzsche distingue entre o sofrimento e a interpretação do sofrimento. Há uma dor que é própria da condição humana, da qual não escapa homem algum, seja ele atingido por maiores ou menores reveses nesta vida. Esse sofrimento pode resultar do 112

infortúnio, do acaso ou das limitações que a realidade impõe a qualquer ser humano. Contudo, não significa uma imperfeição, mas parte constituinte da experiência humana, que em nada lhe retira o valor. Há, no entanto, um segundo sofrimento, a dor autoinfligida. Nasce da interpretação que fazemos de nosso sofrimento primário ao tratá-lo como algo injusto e imerecido, como um sinal de desvalor ou culpa. Ao proceder assim, atribuímos a nós mesmos a responsabilidade por dores inevitáveis, como se fôssemos causadores das infelicidades “naturais” que sobre nós se abatem. Para Nietzsche, o que torna o sofrimento insuportável, doentio e apequenador não é a dor e as perdas que contém, mas a interpretação que fazemos dessa dor e dessas perdas. Do sofrimento enquanto parcela da vida não nos podemos “curar”, mas podemos libertar-nos de crenças doentias sobre o sofrimento, do sofrimento como má consciência, como sublimação, como desvalorização da experiência humana.

Sofrimento mental para o neurótico, então, é a crença de que é a falta de poder ou de controle que ocasiona o sofrimento. Desta forma busca a pessoa, incessante e persistentemente, alcançar um estado verdadeiramente onipotente que possa – fantasticamente – livrá-la da situação de sofrimento. Por este caminho afunda-se cada vez mais na angústia, perpetua cada vez mais intensamente sua confusão mental, envergonha-se cada vez mais de si mesma. Afinal, cria tarefas impossíveis e usa sua impossibilidade como mais combustível para se autocriticar severamente e envergonhar-se constantemente.

Considerações finais... Amar é o preço que o enamorado deve pagar à vida para poder se reconciliar com ela. (Roland Barthes)

O mundo aumentou em muito seus conhecimentos nos últimos cem anos. Em todas as áreas. No nosso caso sobre o desenvolvimento humano e o sofrimento mental. Entendemos bem mais sobre as influências do dentro e do fora, do interno e do externo, das questões relacionadas aos traumas infantis e suas repercussões. Claro que hoje já temos um quadro de evidências consistentes em relação às alterações cerebrais quando das separações precoces entre mãe e bebê, do abandono, maus tratos, doenças, etc. Também sabemos como fatores estressores externos (ambiente de vivências ou mesmo alimentares) e a alostase influenciam no desgaste do cérebro e no organismo. Ou ainda as novas formula113

ções de genética e epigenética. Temos também muito mais evidências sobre a importância do cuidado parental sobre a vida mental das crianças e o futuro desses cérebros e psiquismos. Mais ainda, descobrimos e sabemos sobre a plasticidade cerebral, as recognições, as proteínas neuroprotetoras e oxidativas e, inclusive, que na vida adulta existe neurogênese em muitas áreas cerebrais. Diante de tantas conquistas do conhecimento e de terapêuticas para situações específicas, cabe uma pergunta: a psicoterapia e no nosso caso, a psico-análise, ainda têm algo a dizer ou a propor em termos de terapêutica para as questões relacionadas ao psiquismo ou às neuroses propriamente ditas? Ou seja, da presença do passado no presente enquanto amarra sintomática? A psicoterapia foi um passo importante na história da humanidade. Trata-se de uma chance real de podermos nos tornar mais humanos, sem dúvida nenhuma. A neurose é o oposto disso. Ela é uma obturação completa da capacidade de aprender com a experiência da vida como ela é. Considero que compreender esta fantástica ideia de Freud acerca do que seja a neurose ou de como se mantém a presença do passado no presente ou do que seja o sofrimento mental pode nos situar em relação a todas as discussões sobre o cérebro ou os avanços científicos. E em relação à vida moderna, crescente e desenfreada em sua ilusão de poder. Esta proposição, de que no sofrimento mental encontramos ocultada a saúde, é de uma significação estrondosa. Ou seja, nosso tema é a onipotência, a grande doença mental. Ela tira ou deixa o ser humano intolerante com a efetiva vivência de aprendizado emocional ou com a vida. Na neurose, não se aceita a vida. Luta-se contra ela. Em outras palavras, a onipotência é uma cruel emoção interpretativa que assumimos como verdade e que sentimos como sendo realmente necessária e real para a manutenção da nossa vida. A psico-análise se propõe a olhar e a resgatar o ser humano como ser humano. Seres humanos não são perigosos. Deuses sim. Seres humanos amam. Deuses sabem tudo. Para concluir, tomo uma preciosidade na vida de Elisabeth e diria que psico-análise é, “em segredo, tomar aulas de canto...” (Freud, 1893, p. 220).

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Referências Barthes, R. (1981). Fragmentos de um Discurso Amoroso. (3a ed.) Rio de Janeiro: Francisco Alves. Bettelheim, B. (1984). Freud e a Alma Humana. São Paulo: Editora Cultrix. Freud, S. (1893). Caso 5: Fraulein Elisabeth, in: Obras Completas. vol II. Freud, S. (1913). Totem e Tabu, in: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. Vol XIII. Freud, S. (1918). Uma neurose infantil e outros trabalhos, in: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII. Guedes, P.S.R., WALZ, JC.(2011).O Sentimento de Culpa. (3a ed.) Porto Alegre: Ed. do Autor. Guedes, P.S.R. (2010). A Paixão: Caminhos e Descaminhos – Os Fundamentos da Psico-Análise. Porto Alegre: Ed. do Autor. Laplanche, J., Pontalis, L. (2001). Ed. Vocabulário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. Roudinesco, E., Ploom .M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, JZE. Sousa, E. (2005). Freud. São Paulo: Editora Abril.

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Capítulo 8 DONALD WINNICOTT: PARA PENSAR SAÚDE E EDUCAÇÃO Cleber Gibbon Ratto

Currículo Lattes

Partindo de uma análise das condições culturais contemporâneas, notadamente marcadas pela fragmentação dos saberes, desengajamento político e vazio dos projetos existenciais coletivos – marcas do capitalismo globalizado – o texto discute a validade do sentido de confiança como dispositivo ético de passagem do sentimento de vazio à existência criativa e da vida urbana como clichê à imaginação. Está apresentado na forma de três blocos de notas, a saber: Confiança e subjetividade que recoloca o ambiente como condição ontológica de constituição do humano enquanto instância imaginativa e de criação; Do público ao coletivo em saúde onde são apontadas as condições para a passagem de um projeto de normalização biopolítica à construção da saúde como bem coletivo e valorização da normatividade e; Educação ético-estética no qual se pauta a discussão sobre as possiblidades da educação como dispositivo de desmonte dos clichês existenciais contemporâneos e abertura para afirmação da singularidade. Em última análise, o artigo explora a sintonia entre o paradigma psicanalítico de Donald Winnicott e a afirmação do valor ético e estético da existência humana, numa perspectiva pós-metafísica.

Confiança e subjetividade Donald Winnicott, psicanalista inglês que viveu entre os anos 1896 e 1971, constitui uma das mais importantes contribuições ao pensamento psicanalítico contemporâneo. Um dos mais citados autores na área, especialmente quando se trata de pensar o tema do ambiente na constituição da subjetividade, Winnicott foi um dos mais célebres integrantes e presidentes da Sociedade Britânica de Psicanálise, ao lado de Melanie Klein e Anna Freud. Integrou o Círculo de 117

Bloomsbury, do qual fizeram parte, entre outros artistas e intelectuais britânicos, Virgínia Woolf, E. M. Forster e Lytton Strachey. Talvez por ter vivido de perto as experiências traumáticas da Segunda Guerra Mundial, Winnicott foi um dos psicanalistas mais fortemente ocupados das vivências de privação e desamparo características do século XX. Durante a Segunda Guerra, Winnicott foi nomeado psiquiatra consultor do Plano de Evacuação Governamental de uma área de recepção da Inglaterra e, segundo Clare Winnicott, que fazia parte de sua equipe como assistente social, o exercício dessa função teve um profundo efeito sobre ele. Winnicott teve que ver-se frente a frente, em larga escala e de modo concentrado, com o desfazimento dos lares, com a desintegração maciça da vida familiar e pôde observar os efeitos, nas crianças e nos adolescentes, da separação e da perda. (Dias, 2002, p. 115)

Mais que uma abordagem decorrente das revolucionárias formulações freudianas do final do século XIX, quando a consciência humana é desalojada de seu lugar de soberania, Winnicott constitui um novo paradigma em psicanálise, justo por representar uma alteração na ortodoxia freudiana, fazendo incidir suas diferenças justo naquilo que constituiu a pedra de toque da institucionalização psicanalítica ao longos dos anos: a sexualidade como fundamento pulsional do humano, o Complexo de Édipo como força organizadora da subjetividade e a pulsão de morte como força antinômica instituidora da dialética subjetiva e cultural. É sobretudo com Zeljko Loparic, um dos mais importantes pesquisadores da filosofia da psicanálise, que encontraremos a ideia de que a psicanálise passou por várias reformulações pelo próprio Freud e seus seguidores, efetuadas no mais das vezes sob pressão de fatos clínicos. Nas pesquisas de Winnicott, contudo, o paradigma freudiano como tal entra em crise, dando lugar à busca por um novo paradigma. (Loparic, 2006, p. 04)

Tal variação implica, antes de tudo e de maneira destacada, a afirmação da noção de singularidade, um modo de instituição subjetiva que se constitui nas primeiras experiências de relação com o ambiente, antes de qualquer significação sexual ou representação edipiana. Para ele [Winnicott], muito antes de o bebê constituir um si próprio, um self unificado e coeso, ele já se define por um estilo próprio de estar no mundo. Ou seja, o “próprio” precede o “si”, 118

designado pela maneira peculiar e única que cada bebê possui de aglutinar uma herança biológica e articulá-la de forma viva perante aquele ambiente singular que lhe dá sustentação. Esse “próprio”, inicialmente incipiente, fragmentário, que Winnicott denomina gesto espontâneo ou criatividade (no seu sentido mais primário), indica o eixo principal que definirá a singularidade daquele ser humano durante toda a sua vida e, no melhor dos casos, o núcleo de onde ele se desenvolverá rumo à maturidade. A interação entre essa criatividade primária do bebê e o seu ambiente acolhedor produz experiência, a noção mais fundamental a todo o pensamento de Winnicott, já que é a partir dela que toda a sua psicanálise será descrita. (Naffah Neto, 2005, p. 439, grifos meus)

É nessa perspectiva que o paradigma winnicottiano abre-se como uma nova interpretação da contrbuição psicanalítica ao pensar as formas de sofrer no mundo contemporâneo, especialmente aquelas advindas de uma constante ameaça à integridade subjetiva, numa sociedade do risco e da insegurança ontológica (Guidens, Beck, & Lash, 1997; Giddens, 1991). O que está em jogo em nossas formas atuais de sofrer, e que bem se expressa nas crises que vivemos, seja naquilo que nomeamos como crise ambiental, crise da saúde ou crise da educação, é a impossibilidade de existir de modo criativo garantindo um sentido de continuidade existencial. A noção de risco (acidente, desastre) veio a caracterizar as sociedades ocidentais contemporâneas. Como “sociedade de risco”, nossas formas de sociabilidade exibem uma infinidade de manifestações: fala-se em grupos de risco, áreas de risco, investimentos de risco, comportamentos de risco, e essas são expressões que se aplicam às mais diversas condições e situações. (Figueiredo, 2007, p. 83)

A crise ambiental tão propalada entre nós, está ancorada basicamente na desconfiança em relação às condições de continuidade da existência no planeta, implicando uma sensação quase ininterrupta de medo diante do futuro. A crise da saúde, para além da falta de condições infraestruturais de garantia da assistência sanitária às populações pobres do planeta, revela-se por uma crise de legitimidade diante do grande desenvolvimento técnico-científico que não foi capaz de erradicar as marcas históricas da desigualdade econômica e social entre os povos. E a crise da educação, por sua vez, cada vez mais se apresenta como uma crise de sentido, onde a notável ampliação do acesso aos equipamentos educacionais e às tecnologias correspondentes não acompanha, definitivamente, a 119

ampliação das capacidades criativas capazes de oferecer respostas aos dramas existenciais crescentes numa cultura cada vez mais individualista, competitiva e homogeneizada. Na base de tais crises está um colapso generalizado no sentido de segurança ontológica, não mais encontrada nas narrativas metafísicas do ser ou da subjetividade, mas diretamente dependente de experiências criativas das coletividades humanas, possíveis apenas num ambiente favorável onde o rosto e o olhar do outro (alteridade) são nosso único alento diante do sem-fundo caótico do mundo. O que está em jogo, portanto, diferentemente da restauração das agências históricas garantidoras de segurança (Deus, a Igreja, o Estado, o Legislador, o Pai etc.) é a construção francamente humana de ambientes de confiabilidade, onde o jogo com o outro é nossa única condição de continuidade da existência e produção de sentido. Para Winnicott, quando um problema de integração existencial não pode ser equacionado – o que geralmente se relaciona com condições ambientais pouco acolhedoras e produtoras de desconfiança e paranoia – o indivíduo trava em seu processo de singularização e, então, adoece, vítima das significações hegemônicas (clichês) injetadas na subjetividade sem o concurso da experiência. O vazio surge como uma espécie de resposta regressiva de dependência que denuncia não a falta de algo já pressuposto ou um conflito e/ou fantasia inconscientes (edípicas, por exemplo), mas um movimento de existir que não se realizou. Com uma dimensão francamente existencialista, o gesto criativo ou espontâneo – assumido como marca distintiva do humano na psicanálise de Winnicott – é apresentado como condição ontológica diretamente dependente das condições ambientais. É do próprio existir, enquanto gestualidade criativa em jogo com alteridades também humanas, que nos tornamos o que somos. Mas esse existir singular depende diretamente de condições ambientais favoráveis, acolhedoras da singularidade humana que busca se realizar na forma de uma “biografia” própria. O que temos aí é uma braçada de anatomia e de fisiologia e, acrescentado a isto, um potencial para o desenvolvimento de uma personalidade humana. Existe uma tendência geral voltada para o crescimento físico, e uma tendência ao desenvolvimento na parte psíquica da parceria psicossomática; existem, tanto na área física quanto na psíquica, tendências hereditárias, e estas, do lado da psique, incluem as tendências que levam à integração ou à conquista da totalidade. A base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a 120

linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimento efetivo do bebê [...]. (Winnicott, 1988, p. 79)

Experiência nesse contexto é definida pelo próprio psicanalista como “um trafegar constante na ilusão, uma repetida procura da interação entre a criatividade e aquilo que o mundo tem a oferecer” (Winnicott, 1987, p. 38) construindo um sense of trust [sentido de confiança] (Winnicott, 1971), que potencializa o gesto criativo do humano na busca por existir de modo singular e suprindo o vazio de sentido que está na base de toda ação. Tal sentido de confiança não está garantido por qualquer transcendência metafísica, mas se constrói na própria cultura humana, através de jogos intercambiáveis de oferta e acolhida da alteridade. Winnicott recusou explicitamente o naturalismo e o determinismo. [...] mudou os pressupostos essenciais da psicanálise tradicional, operando a transição do modelo naturalista e objetivante do ser humano, característico da psiquiatria e da psicanálise tradicional (Freud, Klein, Bion, Lacan) para um modelo decididamente não-naturalista. (Loparic, 1999, p. 21)

Assim, o ambiente aparecerá nessa perspectiva psicanalítica como fundo inextorquível da subjetividade humana, mais que um fator, elemento ou dimensão. É a própria concepção da subjetividade moderna que está em questão numa clara ultrapassagem da metafísica da subjetividade oriunda do pensamento de Kant. A subjetividade pensada com Winnicott, a partir de sua teoria do amadurecimento humano, encontra grande sintonia com a perspectiva existencialista de Heidegger, sobretudo em sua postulação do cuidado enquanto categoria ontológica. Tais aproximações são largamente desenvolvidas por Loparic ao longo de seus trabalhos exploratórios. (Loparic, 1995, 2001a, 2001b e 2007) Assim, há uma diferença filosófica fundamental entre os dois autores: enquanto Freud ainda pensa em termos da teoria da subjetividade, iniciada pelos filósofos por volta do século XVII e representada paradigmaticamente por Kant, Winnicott concebe os seres humanos numa chave teórica completamente distinta, que em minha opinião tem uma grande afinidade com a ontologia fundamental de Heidegger, conforme apresentada em Ser e tempo (1927). (Loparic, 2001, p. 51)

Assim como em Heidegger, para Winnicott o homem é uma emergência ético-estética do próprio mundo, resultante do cuidado. Concebido aqui o cuidado como ação política [sorge], espaço de construção humana no encontro 121

com o outro, uma ética do cuidado implica necessariamente a construção de espaços intersubjetivos. A inevitabilidade da angústia, como condição do próprio ser-no-mundo, não coaduna nessa perspectiva com a desconfiança ou o medo de existir que paralisa a “acontecência” humana. Angustiar-se é uma condição do próprio existir em meio aos outros. Angustiar-se, aqui, é a própria condição do mover-se, do estar vivo, do devir existencial. (Ratto, 2012) Diferentemente disso, a desconfiança ou o medo de existir, marca do capitalismo globalizado, constituem modos de controle biopolítico que impedem a existência, despotencializam a singularidade humana e nos relegam à mera reprodução dos clichês existenciais, imagens (modelos) de vida pré-fabricadas pelas grandes máquinas do capitalismo atual (midiáticas, econômicas, culturais, subjetivas), destinadas ao consumo pelas massas. Quanto mais se acentuam a sensação de insegurança e medo no contexto ambiental contemporâneo – caracterizado basicamente pela vida nas grandes cidades – mais nos vemos privados de experiências efetivamente criativas, aquelas que para serem vividas dependem de um ambiente sustentador e confiável, capaz de nos incitar à aventura (angustiante) do encontro com a alteridade. Trata-se, segundo Winnicott, de um espaço potencial para emergência da criatividade originária, esse ser-no-mundo e ser-para-a-morte em termos existencialistas, que nos caracteriza. Localizei esta importante área de experiência no espaco potencial entre o indivíduo e o ambiente, que inicialmente tanto junta quanto separa o bebê da mãe quando o amor materno, exercitado ou tornado manifesto em termos de confiabilidade [reliability] humana, que de fato dá ao bebe um senso de confianca [a sense of trust or of confidence] no fator ambiental. […] O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade depende da experiência que leva à confiança. Ele pode ser visto como sagrado pelo indivíduo na medida em que é aqui que ele experimenta o viver criativo. (Winnicott, 1971, pp. 74-75).

Na base da constituição subjetiva como singularidade existencial, encontra-se um senso de confiança no próprio ambiente, uma confiança na possibilidade de existir e ter seu gesto acolhido pelo olhar do outro. Zigmunt Bauman (2009), ao examinar a questão do medo nas sociedades contemporâneas, especialmente nos grandes centros urbanos – palco privilegia122

do das nossas “novas” formas de sofrer – afirma que o medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável. (Bauman, 2007, p. 32, grifos meus)

Entenda-se por sociedades abertas as coletividades organizadas em torno do desengajamento e do enfraquecimento do laço social. Formas de sociabilidade bastante precárias, marcadas pela partilha de projetos fragmentados e fugazes, nada semelhantes a projetos existenciais coletivos que possam nos encorajar ao agir criativamente. A algo semelhante Anthony Giddens, fortemente influenciado por Winnicott, refere-se ao examinar o desencaixe (ou desengajamento) típico das transformações do final do século XX. Diz ele: Que me seja permitido agora considerar o desencaixe dos sistemas sociais. Por desencaixe me refiro ao `deslocamento´ das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. (Giddens, 1991, p. 29)

O ambiente potencialmente sustentador de experiências de singularização existencial parece ser substituído muito frequentemente por “ambiências” frágeis, pouco convincentes para emergência de um sentido de realidade e confiança que nos faça querer continuar existindo. Grosso modo, as condições ambientais da atualidade não parecem favoráveis à construção de um senso de confiança capaz de nos incitar à existência. Vivemos sob os signos da insegurança, do medo, da desconfiança em relação a tudo e a todos. O que mais amedronta é a ubiquidade dos medos; eles podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta. Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos entraram em contato. (Bauman, 2008, p. 12)

É nesse sentido que a psicanálise contemporânea se vê desafiada a pensar novas formas de intervenção no campo social, para além da subjetividade privatizada oriunda da metafísica moderna, favorecendo condições ambientais 123

capazes de potencializar nossa confiança e vontade de continuidade da existência, em contraste com a pobreza das formas de vida propagadas pelo capitalismo globalizado. Não se pratica psicanálise no vácuo cultural e histórico e muito menos contra as forças da história. A psicanálise não é uma seita, e, menos ainda, uma seita conservadora e reformista. É preciso apoiar-se nos fenômenos e processos da vida – da vida cotidiana – para operar com alguma eficácia. (Figueiredo, 2007, p. 85)

O que terão a ver com isso, a saúde e a educação enquanto práticas sociais? Seremos capazes de imaginar formas de vida efetivamente criativas no ambiente das grandes cidades, ultrapassando o clichê da vida urbana como misto repetitivo de excitação e consumo?

Do “público” ao “coletivo” em saúde A saúde enquanto prática social tem servido tradicionalmente ao espírito da normalização biopolítica, típica da modernidade no Ocidente. Marcada por uma nova forma de racionalidade no governo das populações humanas, a Saúde Pública nasce junto com o Estado Moderno, buscando produzir homogeneidade social com vistas ao estabelecimento de uma nova economia política, pautada no gerenciamento de grandes massas humanas. Enquanto na cultura da Antiguidade a relação entre as condições de saúde e os fatores sociais não foi priorizada, no Renascimento essa relação ganha importância, marcando a emergência de uma medicina social (Rosen, 1983; Foucault, 1999). Tal fenômeno se deu de diferentes maneiras conforme os países, compartilhando, no entanto, a moderna política de normalização orientada por uma racionalidade esquadrinhadora do espaço social, com vistas ao controle dos movimentos das populações. Trata-se do nascimento de uma biopolítica. Na França e na Inglaterra o propósito foi o controle da natalidade e morbi-mortalidade, além da preocupação com o aumento populacional, sem qualquer intervenção inicial efetiva ou organizada sobre as condições sanitárias. Entretanto, é na Alemanha que se desenvolverá, por primeira vez, uma prática sanitária objetivando a melhoria das condições de saúde da população (Foucault, 1999). A concepção e operação de uma chamada “polícia sanitária” transformou-se progressivamente numa prática da administração pública, ganhando 124

força especialmente na Alemanha. No começo do século XIX os diferentes estados alemães já haviam incorporado todas as atividades para o bem-estar da população como norma que cabia ao Estado. Portanto, “com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão médica, a subordinação dos médicos a uma administração central e, finalmente, a integração de vários médicos em uma organização médica estatal, tem-se uma série de fenômenos inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a medicina de Estado” (Foucault, 1999, p. 84). Estamos diante de uma reorganização dos poderes, com o propósito de instituir os Estados Modernos em sua função de propagação da ideologia liberal, elemento chave de expansão do capitalismo. Assim, o interesse pela saúde da população, e isso não está muito distante do movimento de escolarização na modernidade, dá-se em relação direta com o interesse por governo das cidades e instauração organizada das forças produtivas. A necessidade de constituir a cidade como unidade responde a interesses políticos e econômicos, na medida em que a cidade se torna um lugar importante para o mercado e para a produção, ao mesmo tempo em que o aparecimento de uma classe operária pobre (o proletariado) aumenta a tensão política entre os diferentes grupos que integram a cidade. É a necessidade de controlar esta concentração de uma grande população em um só lugar que leva à escolha de um modelo de intervenção, que Foucault (1999) denomina “o modelo da peste”. Ele considera a existência de dois grandes modelos de organização médica na história europeia: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. No primeiro, o doente é excluído fisicamente, mandado para fora da cidade, em uma tentativa de purificação do espaço urbano. No segundo, as pessoas permanecem em suas casas, mas são meticulosamente observadas e vigiadas, em um esquadrinhamento e controle permanente dos indivíduos, em um modelo mais próximo à revista militar do que à purificação religiosa. (Ramminger, 2008, p. 72)

No Brasil, tal tendência marca as perspectivas de saúde pública desde a Primeira República, na forma de uma medicina sanitária capanhista, higienista, normalizadora e de inspiração cientificista. Na Primeira República, em torno desse modelo se estruturou o discurso dominante na política de saúde, simultaneamente às políticas de urbanização e de habitação. Consolidou-se uma estrutura administrativa de saúde centralista, tecnoburocrática e 125

corporativista, isto é, ligada a um corpo médico em geral proveniente da oligarquia de origem agrária que dominou a República Velha. (Luz, 1991, p. 79)

Importa destacar que esses “traços configuraram o perfil autoritário que ainda hoje caracteriza, em grande parte, o conjunto das instituições de saúde pública e dos sistemas de decisões em política de saúde no Brasil”. (Luz, 1991, p. 79) As políticas de saúde, de modo geral, instalaram-se sob a influência teórica e programática da medicina social urbana francesa e da medicina de estado alemã, mas foi sobretudo com a influência do modelo inglês (decorrente do avanço industrial capitalista) que se constituíram efetivamente como um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes ricas (…) e assistência médica ao pobre, controle da saúde da força de trabalho e esquadrinhamento geral da saúde pública (Foucault, 1999, p. 97)

Assim, a história da saúde pública remonta ao modelo fisicalista, biológico e organicista típico da racionalidade científica moderna, onde o modelo da normalidade biológica estatística constituiu o parâmetro hegemônico de julgamento acerca dos limites entre saúde/doença. A saúde é, assim como a educação, um campo problemático, complexo, onde “diferentes modalidades de discurso, com fundamentos epistemológicos diversos e com origens históricas particulares” (Birman, 2005, p. 11) entram em confronto e disputa. Uma marca característica de tal perspectiva é a dicotomização subjetividade/ambiente, a fragmentação dos saberes e a supervalorização da racionalidade técnica. O modelo sanitário médico, com a supervalorização da técnica em detrimento das diferentes formas de produção de sentidos acabou por soterrar uma pluralidade de discursos e práticas sociais em torno das questões sanitárias. Em nome da ciência moderna vimos marginalizados diferentes segmentos sociais, com a consolidação de práticas higienistas que, ao silenciarem dimensões simbólicas e históricas na compreensão das condições de vida e saúde das populações, nos levaram a crer que não exista uma escolha, antes de tudo, política, ideológica e ética nas práticas sanitárias. (Birman, 2005) Numa tentativa de ruptura com a tradição naturalista e pretensamente neutra da Saúde Pública foi que o movimento da reforma sanitária, não somente no Brasil, mas em toda a América Latina, coincidente com as lutas populares por abertura democrática, favoreceu a emergência de um novo campo de saberes da 126

saúde – não mais da massa informe da população, mas das singularidades culturais, políticas, sociais e econômicas que compõem as sociedades: o campo da Saúde Coletiva. Desse modo, o campo de saberes da Saúde Coletiva, gestado nas lutas populares das décadas de 70 e 80 no país, buscou problematizar as concepções e práticas da Saúde Pública, questionando a hegemonia dos discursos biológicos e incluindo as dimensões ética, estética e política na discussão sobre as condições de saúde da população, além de buscar ultrapassar a fragmentação dos saberes em especialismos técnico-científicos. Nessa esteira, a oposição subjetividade/ambiente será fortemente questionada, buscando-se constituir um campo de saberes complexos, onde ecologias ambientais, políticas e subjetivas precisam ser pensadas indissociavelmente (Guattari, 2005), com importantes repercussões sobre o conceito de saúde. A reforma sanitária implicou a luta não apenas por uma nova organização dos poderes sobre a saúde enquanto política social, sua defesa como direito de cidadania, como também uma reformulação na própria concepção de saúde, tributária das epistemologias positivistas, do mecanicismo técnico-científico e da razão de Estado investidora dos saberes biomédicos. De modo que o lema “Saúde, direito de cidadania, dever do Estado”, implica uma visão desmedicalizada da saúde, na medida em que subentende uma definição afirmativa (positiva), diferente da visão tradicional, típica das instituições médicas, que identifica saúde com ausência relativa de doença (Luz, 1991, p. 88).

O que se colocou em cena na segunda metade do século XX, no âmbito das questões de saúde, foi uma profunda redefinição do fenômeno saúde/doença, implicando um questionamento radical das epistemologias que sustentam sua compreensão. No contexto dessa nova definição, a noção de saúde tende a ser socialmente percebida como efeito real de um conjunto de condições coletivas de existência, como expressão ativa - e participativa -do exercício de direitos de cidadania, entre os quais o direito ao trabalho, ao salário justo, à participação nas decisões e gestões de políticas institucionais etc. Assim, a sociedade tem a possibilidade de superar politicamente a compreensão, até então vigente ou socialmente dominante, da saúde como um estado biológico abstrato de normalidade (ou de ausência de patologia). (Luz, 1991, p. 88)

A psicanálise, por sua vez, nascida na aurora do século XX, não passa ao 127

largo de tais movimentos. Isso se deve ao fato de a psicanálise freudiana ter sido construída nos moldes de uma ciência natural e Freud não ter jamais abandonado a ideia de assentar as suas descobertas na biologia, tendo mantido com essa ciência, em muitos aspectos da teoria, um vínculo estreito (Dias, 2002, p. 136).

Apesar de reconhecer e reverenciar o mérito de Freud ao superar as hipóteses organicistas da psiquiatria de sua época e as posições ambientalistas dos psicólogos acadêmicos, Winnicott tem clareza das bases epistemológicas do pensamento freudiano e as aponta com nitidez, encaminhando sua posição diferencial em relação a este. Freud aí lida com a natureza humana em termos de economia, simplificando deliberadamente o problema, com o propósito de estabelecer uma formulação teórica. Existe um determinismo implícito em todo esse trabalho, a premissa de que a natureza humana pode ser examinada objetivamente e que podem ser a ela aplicadas as leis conhecidas em física (Winnicott, 1983, p. 20).

É justamente esse determinismo biológico, pressuposto por uma economia pulsional presente no pensamento teórico freudiano, que Winnicott recusará, ao optar por assentar sua psicanálise na experiência clínica direta, distanciandose dos modelos metapsicológicos. A abertura fenomenológica do psicanalista inglês permitiu-lhe aproximar-se de uma concepção de saúde bastante sintônica com as formulações do campo da saúde coletiva, afastando-se dos fundamentos mecanicistas e funcionalistas da tradição psicanalítica. [...] é preciso admitir o fato de que o clima da pesquisa neurológica no final do século XIX induzia Freud a conceituar a psique humana e seu funcionamento nos moldes da máquina; daí as suas teorias do aparelho psíquico, das catexias energéticas e das estruturas intrapsíquicas através das quais ele figurou, diagramaticamente, o ego, o id e o superego; e mais, o esquema topográfico do consciente, do pré-consciente e do inconsciente (Khan, 2000, p. 41).

É no contexto de uma crítica às bases funcionalistas e às pretensões metafísicas da psicanálise que Winnicott formula sua singular concepção de saúde, na qual o que está em jogo, fundamentalmente, é o sentimento de continuidade da existência como viver criativo sustentado pelo ambiente, e não 128

a equilibração de forças pulsionais. Pautado por uma ampla experiência clínica com crianças em situação de extrema vulnerabilidade e em meio aos psiquiatras de seu tempo, Winnicott, um pediatra de formação, fez de perto a experiência da inadequação de se pensar a saúde e a doença em termos puramente organicistas. Ele parece ter sido, muito cedo, despertado para o fato de que a saúde, e mais do que a saúde, o sentir-se vivo, não pode resumir-se ao bom funcionamento dos órgãos e das funções, e que separar o físico do psíquico é um procedimento intelectualmente possível, mas altamente artificial. (Dias, 2002, p. 112)

Sua concepção de saúde está muito próxima da concepção de normatividade oriunda do pensamento de Georges Canguilhem, importante referência no campo da Saúde Coletiva. Para Winnicott a saúde consiste na condição singular de existência, onde se pode afirmar um modo particular de enfrentar as adversidades e viver criativamente. A saúde consiste em sentir-se vivo, real e capaz de gestualidade espontânea. Com esse horizonte a normatividade enquanto valor existencial ultrapassa o valor na normalidade como padrão estatístico. Além disso, uma contemporaneidade os aproxima. Resistindo cada um por seu lado durante a Segunda Guerra Mundial, Donald Woods Winnicott e Georges Canguilhem jamais se encontraram efetivamente. Enquanto o psicanalista agia para proteger crianças em abrigos antiaéreos ou participava dos debates sobre a criança na sociedade britânica de psicanálise, o filósofo lutava nos subterrâneos da resistência e preocupava-se com o conceito jurídico de norma e com as doenças da humanidade (Estellita-Lins, 2007, p. 384).

A definição de normatividade em Canguilhem (2006) aponta na direção de uma valoração singular da experiência feita por cada organismo vivo, segundo a qual a vida ganha um valor próprio, não redutível aos padrões sociais da normalidade. Essa potência normativa de cada organismo vivo consiste na sua potência de saúde, condição de adaptação e recriação das normas ante as contingências que se lhe apresentam. Para Canguilhem, a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, [...] a vida é, de fato, uma atividade normativa. Em filosofia, entendese por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento está subordinada, no fundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo é o que institui as normas (Canguilhem, 2006, p. 86). 129

É com Canguilhem e Foucault que encontraremos no âmbito da saúde coletiva a possibilidade de pensar a saúde como valor existencial e não apenas como valor estatístico. Trata-se de reconectar a existência humana ao seu caráter ético-estético, devolvendo-lhe a potência criativa e agonística de construir-se a si própria, no jogo árduo e interminável de sua própria ultrapassagem. “Tanto para Canguilhem como para Foucault o limite entre o normal e o patológico se torna impreciso, e só quem deveria determiná-lo é aquele que vive a experiência de uma vida” (Ramminger, 2008, p. 89). Assim, alguém se torna doente somente em relação a si mesmo, e não em relação a uma média ou a alguma frequência estatística, ou a algum comportamento esperado socialmente. O doente sente sua potência diminuída em relação a si mesmo, e é isto que deveria ser o ponto de ancoragem das práticas de saúde (Ramminger, 2008, p. 90).

Tal perspectiva coaduna com as formulações da psicanálise pós-metafísica de Winnicott, na qual o “cuidado” aparece como condição da saúde, para além da terapêutica hermenêutica ou estruturalista. Antes de tudo, trata-se de um modo de estar junto, de acompanhar, de existir-com-o-outro, sustentando sua capacidade imaginativa de novos mundos e novas formas de vida. Nesse sentido, o cuidar aparece como intervenção terapêutica e, normal e patológico – noções científicas modernas – dão lugar à saúde e doença, noções comuns, como experiências existenciais. Com Winnicott a questão do tratamento psicanalítico recebe um novo alento e novos ares. A reflexão sobre o cuidado materno abre caminho para uma ruptura com a ideia consagrada de que os efeitos terapêuticos da psicanálise consistem na intervenção interpretativa (hermenêutica ou estruturalista). A prática psicanalítica desde Freud consagra o ato psicanalítico como seu padrão-ouro. No lugar de uma interpretação que desata, ilumina, reorganiza, ressignifica, escande ou pontua, Winnicott concebe um processo intensivo e inesgotável, crescendo por justaposição e tecido na continuidade – trata-se do cuidar como intervenção terapêutica (Estellita-Lins, 2007, pp. 382-383).

É nesse sentido que as contribuições da psicanálise de Winnicott abrem um promissor horizonte para pensar a articulação entre ambiente e saúde na cultura atual. O mal-estar contemporâneo responde, como vimos na seção anterior, ao sentimento crônico de desconfiança que marca nossas relações num mundo desamparado pela falência das grandes concepções metafísicas. Entretanto, tal 130

desamparo não pode significar uma ruptura completa com a tradição, mas uma abertura para sua recriação e para o embate com o problema crucial da continuidade da existência, ao modo como Heidegger pensou seu próprio tempo. Desde seu encontro com Hölderlin e Nietzsche, Heidegger foi dominado praticamente pela ideia de superação da metafísica. Mas isto não deveria significar uma ruptura com a tradição mas sim um tomar a si a tarefa do pensamento que ela nos impõe (Stein, 1997, p. 60).

No plano social, os problemas com a “segurança ontológica” têm consequências bastante importantes. Vê-se a emergência de uma forte angústia existencial, um sinal de alerta que, não raro, se torna contínuo por sobre os sentimentos crônicos de vazio. Observamos, igualmente, movimentos individuais e coletivos de entrega indefesa (melancólica) e /ou triunfante (maníaca) ao “incerto” e ao “desconectado”; “de tais movimentos – e na lista vamos do unsafe sex e da promiscuidade aos esportes radicais” – esperam-se, ao que parece, efeitos excitantes, mas no fundo jaz a questão da desconfiança, aqui colocada “de forma paradoxal: confiar-se ao não-confiável como modo de se defender – pela via da negação – da desconfiança básica” insuportável num ambiente sem sustentação. (Figueiredo, 2007, p. 84) Além disso, podemos nos reportar a outros sintomas sociais que desafiam as políticas e práticas da saúde e da educação no mundo atual: a epidemia dos comportamentos adictos e compulsivos, situados na mesma esteira daquilo que se dá além do princípio de prazer. Finalmente, a apatia, a “falta de apetite existencial”, a pouca disposição para os investimentos afetivos que podem tornar a vida mais vibrante e ‘encantada’, dão testemunho da mesma desconfiança básica. No caso, essa desconfiança se traduz em uma atitude acomodada e conservadora (Figueiredo, 2007, p.85).

Enfim, estamos diante de um quadro onde a desproporção entre excitação e continência se alastra, fazendo da desconfiança um dos ingredientes básicos do mal-estar contemporâneo e produzindo [...] uma série de movimentos psíquicos: alguns serão as manifestações da própria desconfiança, enquanto outros figuram como defesas contra ela (Figueiredo, 2007, p. 85).

Desse modo, os velhos e ainda inescapáveis temas da saúde “pública” dão lugar a uma preocupação com a saúde como evento coletivo, envolto em toda a rede de sentidos e afetos que lhe constituem. Para além da gestão biopolítica da 131

normalidade populacional, a discussão da saúde coletiva abre-se aos temas do mal-estar na atualidade, hoje assumido como condição subjetiva e cultural básica de desamparo e desengajamento. Assim, pensar a produção de saúde numa perspectiva pós-metafísica não implica recair num individualismo estético exacerbado que abomina toda e qualquer forma de projeto coletivo. Antes, implica recriar as condições ambientais, sobretudo as condições de vida nas grandes cidades, para que uma imaginação criativa de outros modos de vida e uma potência de normatividade possam emergir. Trata-se de recriar o próprio papel do Estado, assumido como garantidor da res-pública, favorecedor do espaço da ação política, e não apenas como gerente biopolítico das “liberdades” individuais. Numa instigante aproximação entre o pensamento de Foucault e Winnicott, com aquilo que compartilham de uma vontade criativa dos modos de vida, Mizrahi (2010) aponta na direção dessa necessária reconstrução do papel do Estado na contemporaneidade. Nesse sentido, podemos entender que o Estado Social não foi apenas um mero instrumento de controle e apropriação das forças vitais, mas também ofereceu, aqui e ali, um certo lugar para a sua manifestação criativa: ajustou-se a certas reivindicações compartilhadas, permitindo aquele interjogo transicional no qual a objetividade das coisas é parcialmente alterada pela ação dos sujeitos. Ao mesmo tempo, ofereceu estabilidade suficiente para que as pessoas exercessem sua capacidade crítica na política sem medo de abandono ou retaliação. É esse o quadro que hoje se desfaz, deixando o sujeito, muitas vezes, temeroso demais quanto ao próprio lugar para que arrisque o gesto espontâneo (Mizrahi, 2010, p. 201).

E quando falamos de recriação das funções do Estado, referimo-nos ao jogo inesgotável de recriação humana de suas instituições, historicamente reféns da técnica e da racionalidade burocrática. A saúde e a educação são, em grande medida, locus privilegiados para pensar a reinvenção das práticas e dos modos de existir e conviver. Isso implica, entretanto, o reconhecimento da materialidade dos processos envolvidos, para além de qualquer pretensão metafísica. As práticas sociais em saúde e educação são produzidas por nós, gente de carne e osso, em meio às agruras de um mundo em desalento. O que poderá a Educação diante disso?

132

Educação ético-estética Assim como a saúde pública, a educação na Modernidade é tributária do projeto de autonomia humana, característico da Ilustração. A modernidade se define, basicamente, pelo advento da razão esclarecida, instituída em movimentos culturais, políticos e intelectuais desde o século XVI. Nessa esteira, a razão ilustrada pretendeu-se ordem e medida de todas as coisas e trabalhou pela consumação de uma forma “oficial” de constituição da verdade, assegurada pelos princípios da técnica: a Ciência. A ciência moderna, por sua vez, corolária da duplicação empírico-racionalista do sujeito (Foucault, 2002), torna-se a política privilegiada de produção das verdades, funcionando a partir daí como a principal agência de produção dos saberes. Indicar a razão instrumental como marca predominante da modernidade, implica referir-se à sua impregnação pelo sonho da Aufklärung, do esclarecimento que permite melhor governar. Curiosa e ironicamente, o projeto da Ilustração viu-se subsumido ao império da técnica, a serviço da expansão capitalista. Daí o formidável e incessante desenvolvimento da técnica preso ao crescimento econômico e largamente financiado por ele. Daí também o fato de que o aumento do poder dos homens sobre o mundo tornou-se um processo absolutamente automático, incontrolável e até mesmo cego, já que ultrapassa asa vontades individuais conscientes. É simplesmente o resultado inevitável da competição. Neste ponto, contrariamente às Luzes e à filosofia do século XVIII que, como vimos, visavam à emancipação e à felicidade dos homens, a técnica é realmente um processo sem propósito, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido: na pior das hipóteses, ninguém mais sabe para onde o mundo nos leva, pois ele é mecanicamente produzido pela competição e não é de modo algum dirigido pela consciência dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de uma sociedade que, ainda no século passado, podia se chamar res publica, república, etimologicamente negócio ou causa comum (Ferry, 2007, p. 247).

Diante de uma crise generalizada dos fundamentos metafísicos sobre os quais repousavam as mais estimadas crenças educacionais da civilização ocidental, a Educação se vê forçada a reinventar suas práticas, encontrando justificativa não mais nas pretensões civilizatórias universalizantes, mas nas próprias urgências de um mundo cada vez mais desafiador, onde crescem o individualismo e a falta de sentido existencial coletivo. 133

Para tanto, precisamos considerar as novas oportunidades de continência e de ligação que esse mesmo regime social engendra. Isso requer observação não preconceituosa e pesquisa. Novas subjetividades e novas formas de existência social, novos dispositivos de estimulação e de continência – e não apenas `novas patologias´ – precisam ser conhecidos e considerados (Figueiredo, 2007, p. 85).

Abdicar dos fundamentos metafísicos que até então orientavam o projeto emancipatório do homem moderno, entretanto, não deverá servir como uma carta de alforria para toda e qualquer exigência de rigor ético, validade coletiva e definição programática. Na educação, especialmente, a necessidade de continuar pensando, tensionados por todas as mudanças da racionalidade, muito antes de ser um exercício tranquilizador e sereno, é um trabalho árduo de tentar conciliar a necessária justificação da ação educativa com um mundo onde os ideais metafísicos de liberdade e emancipação já não encontram bases políticas e sociais para sua sustentação. A possibilidade de liberdade ou criatividade existencial que se nos oferece se dá na condição de prática agonística, na relação com os outros e em meio às contingências. Essa dimensão francamente ético-estética da existência e dos projetos educacionais, no entanto, não pode prescindir de um horizonte existencial comum, sob pena de recairmos num exacerbado e vazio esteticismo. A perspectiva do homem tornar-se criador de leis e costumes, ao produzir esteticamente um estilo de vida, traz em si uma tensão constitutiva: por um lado, requer a ideia de construção e originalidade e com frequência também oposição às regras morais, e por outro lado, requer também uma abertura a um horizonte de significados, uma forma de vínculo social (caso contrário, a autocriação recairia no individualismo exacerbado). O reconhecimento dessa tensão é condição necessária para não permanecermos no exagero da moralidade abstrata ou do esteticismo superficial (Hermann, 2005, p. 110).

É nesse sentido que queremos pensar a necessária construção de práticas educativas ético-estéticas, onde os limites entre crise ambiental, sanitária e educacional sejam definitivamente borrados, para dar lugar à saúde e à educação como práticas ecosóficas (Guattari, 2005). E isso implica, necessariamente, uma nova forma de conceber o valor do ambiente-mundo, o sem fundo de onde emergimos como consciência e seres de linguagem, para o que contribui de modo bastante fértil o pensamento de Donald Winnicott. 134

O reconhecimento da necessidade de um ambiente que, por um lado, resista com estabilidade às expressões de vitalidade do indivíduo e, por outro, se deixe transformar por seus gestos nos permite pensar de outra forma as instituições sociais (Mizrahi, 2010, p. 204).

Na perspectiva psicanalítica ora sustentada, vemo-nos diante do desafio de empreender transfigurações de nossas formas institucionais, dando margem a novas práticas e saberes. Assim, a constância e a permanência [das instituições] não necessariamente congelam a criatividade, mas podem servir-lhe de base e sustentação. Com isso, estamos mais livres para pensar as políticas sociais sem temermos, em princípio, a sua transformação em práticas que desconsiderem a singularidade, a fluidez e a multiplicidade da vida (Mizrahi, 2010, p. 204).

O trabalho do qual a educação não se pode furtar é o do efetivo exercício do pensamento ante a falência de nossos consolos metafísicos, mas num mundo onde o reconhecimento do rosto do outro é nossa própria condição de existência. Já em 1931 Heidegger comenta que a superação da metafísica inclui a consumação da metafísica e esta não implica qualquer retorno a Kant ou Goethe, Platão ou Aristóteles. Mas um compreender daquilo que hoje é. No seu encontro com Nietzsche esta tarefa da superação da metafísica se tornou um desafio para pensar de modo radical que toda metafísica deveria ser questionada e, com isto, também a ciência e mesmo o conceito de verdade (Stein, 1997, p. 60-61).

Tal perspectiva não implica, contudo, um desconhecimento do horizonte de vida humana comum. Nossa condição de ser-no-mundo nos obriga à inalienável tarefa de enfrentar-nos com o olhar do outro, em suas distâncias e diferenças. A defesa da autonomia da criação do eu como se fosse a autonomia da criação artística, que não tem nenhuma finalidade exceto ela mesma, resulta num processo de estetização que projeta um ideal de vida, mas que exclui a relação com o outro. (Hermann, 2008, p. 26)

Em termos winnicottianos, a continuidade de nossa existência depende diretamente de condições ambientais favoráveis, sustentadoras, capazes de excitar e conter nosso impulso vital. Tais condições, no entanto, não estão garantidas a priori, mas se constroem, isto sim, no jogo entre estados de integração e não-integração perpétuos, onde a diferença e a familiaridade são termos inextorquí135

veis de uma mesma e insolúvel equação. Com a relevância dada por Winnicott ao ambiente e sua compreensão a respeito de suas funções de facilitação, o autor não nos deixa mais confundir o sofrimento solitário do sujeito em sua doença com o viver criativo e afirmativo. Este último sim desponta como resistência, mas é ao mesmo tempo sempre dependente da presença, nem sempre possível, de um outro acolhedor (Mizrahi, 2010, p. 131).

Os desafios de uma educação em tempos pós-metafísicos nos faz reencontrar o próprio dilema da continuidade do ser em um mundo despedaçado. Restamos nós, uns aos outros, como possibilidade de afirmar novas formas de vida e novos horizontes para continuidade da vida no planeta. Uma educação ético-estética apoiada em estratégias da arte de viver, como atenção aos casos particulares, às emoções e à sabedoria prática, pode, como anunciado no início desse texto, esclarecer a relação recíproca entre o universal e o particular. Evita uma orientação puramente abstrata, sem abandonar princípios universais, pois a educação pressupõe um processo de inserção num mundo compartilhado de valores e crenças, sem o qual qualquer dialética entre individualização e socialização estaria condenada ao fracasso. E atua como limite a uma estética de si mesmo que, centrada apenas em critérios individuais, pode estimular a indiferença, o egoísmo e a frivolidade (Hermann, 2008, p. 26).

Em tempos de universalização do acesso à educação e à saúde, assumidas como direito do cidadão e dever do Estado, estas se apresentam como importantes agências de transformação dos nossos modos de existir. Isso se tratarmos as práticas educativas e sanitárias como dispositivos potentes para o desmonte dos clichês existenciais contemporâneos e abertura para a afirmação das singularidades humanas. É nestes termos que o estudo sobre ambiente, saúde e educação constitui um sentido comum, fortemente imbricado, que nos dá um horizonte e um alento. O encontro com a perspectiva pós-metafísica de Winnicott é, também, uma forma de dar futuro à própria psicanálise em tempos de desconfiança quanto às possibilidades humanas de imaginar e recriar-se coletivamente. Oferecer-se ao outro como ambiente sustentador e encontrar nele uma ancoragem minimamente duradoura para o nosso gesto espontâneo, no que mais poderia consistir a saúde e a educação, como práticas de liberdade, na tórrida paisagem do capitalismo contemporâneo? 136

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Autores Ana Rosa Detílio Monaco Psicóloga. Especialista em Psicoterapia Breve Psicodinâmica pelo Instituto Paulista de Psicologia Estudos Sociais e Pesquisa. Docente do Curso de Psicologia da Universidade São Marcos. Psicóloga Hospitalar do Centro de Referência de Saúde da Mulher - Hospital Pérola Byington. Psicóloga do Centro de centro de Reprodução Humana FERTIVITRO - SP. Andrea Rapoport Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialização em Terapia cognitivo-comportamental em andamento pela Wainer & Piccoloto Centro de Psicoterapia cognitivo-comportamental. Docente do Curso de Psicologia do Unilasalle/Canoas/RS e do Curso de Pedagogia do Cesuca Faculdade Inedi. Cleber Gibbon Ratto Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Psicólogo pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Atualmente é pesquisador e coordenador adjunto do Mestrado em Educação do Unilasalle/Canoas/RS e docente do Curso de Psicologia. Daniela Riva Knauth Graduada em Ciências Sociais, Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Etnologia e Antropologia Social - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professora associada do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuando também como docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e no Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. 139

Denise Quaresma da Silva Pós-doutora em Estudos de Gênero (UCES, Argentina) e doutora em Educação (UFRGS, Brasil). Professora do Programa de Mestrado em Educação, do Curso de Psicologia e pesquisadora do Centro Universitário Unilasalle, Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil. Professora da Universidade Feevale, Brasil. Psicanalista Membro do Círculo Psicanalítico RS. Eduardo Pandolfi Passos Professor adjunto do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal Rio Grande do Sul. Chefe do Setor de Reprodução Assistida do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do HCPA. Diretor da SEGIR.(Serviço de Ecografia, Genética e Reprodução Humana), Doutor em Medicina. Gisleine Verlang Lourenço Psicóloga. Mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal do rio Grande do Sul. UFRGS. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pelo ESIPP Estudos Integrados em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica. Professora da graduação do UNILASALLE/Canoas . Pesquisadora do Serviço de Ginecologia e Obsterícia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. José Roberto Goldim Biólogo. Doutor em Medicina. Professor de Bioética da UFRGS e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. Julio Cesar Walz Psicólogo. Psicanalista. Professor do curso de Psicologia da Unilasalle. Professor do Mestrado em Saúde e Desenvolvimento Humano Unilasalle. Pesquisador do INCT em Medicina. Pós doutor em Ciências Médicas - Psiquiatria (UFRGS). Doutor em Ciências Médicas - Psiquiatria (UFRGS). Mestre em PSicologia Social (UFRGS). Autor dos livros: O sentimento de Culpa e Aprendendo a Lidar com os Medos:A Arte de cuidar das crianças.

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Lúcia Belina Rech Godinho Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Psicóloga pela Universidade de Caxias do Sul. Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Colaboradora na Pesquisa “Processo da Psicoterapia Psicanalítica de Crianças” - Linha de Pesquisa Infância e Adolescência - Unisinos. Docente dos Cursos de Psicopedagogia e Psicologia do Unilasalle/Canoas/RS. Luciane Marques Raupp Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é docente do curso de Psicologia no Centro Universitário Unilasalle e do curso de Psicologa do Centro Universitário UNIVATES . Luiz Eduardo T Albuquerque Pós Graduação “Lato Sensu” em Ginecologia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro - RJ. Título de Especialista em Ginecologia e Obstetrícia (TEGO) pela FEBRASCO. Especialista em Reprodução Humana pelo Instituto Dexeus Barcelona - Espanha. Membro da American Society of Reproductive Medicine - USA. Membro da European Society of Human Reproductive and Embriology - Belgica. Mestre em Ginecologia pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. Diretor do centro de Reprodução Humana FERTIVITRO - SP. Maria Lucia Tiellet Nunes Psicóloga, Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba e doutorado em Psicologia Tratamento e Prevenção pela Freie Universität Berlin(1989). Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e 2ª Vice-presidente dasASBRo do Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos.

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Prisla Ücker Calvetti Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Residência Integrada em Saúde Coletiva com ênfase em Projetos Assistenciais em Dermatologia Sanitária. Especialista em Terapia Cognitiva-comportamental pela Wainer & Piccolotto – Centro de Psicoterapia Cognitiva-comportamental. Psicóloga pela PUCRS. Docente do Curso de Psicologia e Pesquisadora do Mestrado Saúde e Desenvolvimento Humano do Unilasalle. Sabrina Boeira da Silva Graduada do Curso de Pedagogia do Cesuca Faculdade Inedi. 

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