Os jovens e o policiamento nas favelas cariocas, hoje - cadeiras.iscte.pt

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Resumo: Em virtude dos processos seculares de segregação socioterritorial, nas favelas do Rio de Janeiro concentra-se a maioria dos pontos fixos do varejo de algumas drogas ilícitas (maconha e cocaína, principalmente), as “bocas”. Sendo uma atividade ilegal, porém altamente lucrativa, seu funcionamento é garantido através da defesa armada de suas áreas de atuação. Por outro lado, a secular brutalidade policial no tratamento das camadas populares é estimulada pela violência criminal, de modo que há décadas os moradores estão espremidos entre dois fogos, a violência criminal e a violência policial. Dessa população (entre 15 e 20% dos habitantes da cidade, que somam cerca de 6 milhões de pessoas), os jovens compõem o segmento mais diretamente afetado, tanto por constituírem a grande maioria dos traficantes quanto por serem o foco central da ação repressiva da polícia. Em fins de 2008, alegadamente visando por um freio na letalidade dos confrontos entre traficantes e entre estes e a polícia, começou a ser implantado um novo programa de policiamento nas favelas, denominado UPP – Unidades de Polícia Pacificadora, que se transformou no polêmico centro do debate público em torno da manutenção da ordem e do controle social rotineiro. Baseado em pesquisa empírica de inspiração etnográfica (observação in locu, grupos focais, entrevistas, etc.) com jovens até 29 anos, o texto propõe-se a discutir as avaliações do estrato social mais imediatamente envolvido nas práticas que concretizam, nas diferentes localidades, esta nova modalidade de policiamento ostensivo. O pressuposto da análise a ser desenvolvida é que, dado o conflitivo padrão de relacionamento acima esquematizado, as tendências das generalizações construídas pelos jovens através da combinação entre sua percepção dos acontecimentos e os respectivos julgamentos morais serão decisivas para o sucesso do programa recém implantado.

OS JOVENS E O POLICIAMENTO NAS FAVELAS CARIOCAS, HOJE* Luiz Antonio Machado da Silva [email protected]

Observação inicial Para iniciar este pequeno comentário, gostaria de fazer duas observações: a primeira se refere aos termos mais amplos de meu interesse nas questões que abordarei, e a segunda, quanto ao material empírico de referência. O foco geral do argumento é a produção da sociabilidade ou, mais especificamente, a regulação do processo interativo, da qual me aproximo desde uma perspectiva situacionalista que evita o individualismo metodológico, mas considera que os agentes são atores competentes. É como parte deste horizonte que discutirei uma das dificuldades do processo de democratização no Rio de Janeiro, a política de segurança. O material empírico a sustentar a argumentação é proveniente de duas pesquisas coletivas em andamento1, ambas com financiamento da FAPERJ. Uma delas, que constituirá o centro da atenção deste texto, é uma ampla avaliação socioantropológica das UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, modalidade de policiamento comunitário que vem sendo implantada nas favelas cariocas pelo * O presente texto é uma versão ligeiramente modificada do trabalho originalmente apresentado na IX RAM (Curitiba, 2011), Mesa Redonda ”Violencia de Estado, Políticas de Seguridad Pública y Derechos Humanos. Experiencias regionales de intervención y activismo universitario”, coordenada por Roberto Kant de Lima, que também é coordenador da coletânea (no prelo) dela derivada. Agradeço os comentários recebidos durante a exposição oral. 1 Integro um grupo de pesquisadores que trabalha em conjunto há cerca de oito anos, o CEVIS – Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade. Agradeço a colaboração, críticas e sugestões de todos os membros durante a elaboração do presente texto. Evidentemente, os erros são de minha exclusiva responsabilidade.

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governo estadual desde 2008. A outra propõe analisar a circulação de jovens pela cidade, com especial atenção à existência, percepção e maneiras de lidar com eventuais barreiras à sua movimentação. Trata-se de pesquisas independentes, apesar da óbvia complementaridade entre elas.

Pressupostos. Quadro de referência. Acelerada e aprofundada em particular depois da 2ª Guerra, a linguagem dos direitos se consolidou na Europa e se expandiu pela América Latina. No espaço deste artigo, não cabe detalhar as variações nacionais desse processo e suas vicissitudes, que correspondem ao desenvolvimento mais recente da cidadania no Estado burguês. Esquematicamente, porém, acho possível apresentar o processo histórico de constituição dessa linguagem na forma “telegráfica” de quatro proposições interrelacionadas: a) seu pano de fundo foi a articulação entre um forte crescimento econômico e a produção de vários dispositivos estatais de proteção do trabalho, canalizando as demandas sociais e garantindo a legitimidade da regulação institucional dos conflitos; b) nesse espaço, os conflitos que geravam a dominação de classe se configuraram de uma forma orgânica, includente, negociada e, assim, relativamente pacífica. “Proteção social” e “direito” significavam-se mutuamente e constituíram a gramática que organizava o debate público; c) apesar do autoritarismo tradicional da região e de momentos mais intensos de violência institucional, esta combinação estendeu-se por toda a América Latina, objetivada ao menos como ideal normativo; d) nesse quadro, a questão da segurança pública era discutida basicamente como um tema que superpunha os direitos civis e políticos e definida, de um lado, em termos dos limites aceitáveis do exercício das “garantias externas” pelos aparelhos de Estado em sua função de regulação das relações sociais e, de outro, dos repertórios que poderiam ser considerados legítimos na publicização das demandas coletivas. Os problemas relativos à manutenção da ordem pública e ao controle das atividades rotineiras constituíam um tópico secundário da agenda pública e eram percebidos como derivações dos conflitos estruturais. Afinal, esses problemas eram entendidos como produzidos pelas práticas desviantes do lumpen, que não passava da ponta mais visível do iceberg das “classes perigosas”. Apenas para manter uma referência temporal, pode-se dizer que, no Brasil, o auge desse processo corresponde à promulgação da constituição de 1988, a Constituição Cidadã, como tem sido qualificada, a qual também coroou o fim da conjuntura constituída pelos governos militares. Contraditoriamente, porém, já no início da década de 1980 se consolida outra gramática articuladora do debate público que, por falta de melhor expressão, tenho denominado de “linguagem da violência urbana”, formada justamente pela tematização específica do que era de menor

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importância na linguagem dos direitos, qual seja o controle das relações interpessoais indispensáveis à continuidade das rotinas cotidianas. Penso que ela constitui a compreensão de uma característica vista como central na vida nas cidades contemporâneas, a “violência urbana”, explicada como decorrente da existência de novas formas de vida, e não mais como simples práticas intersticiais, atomizadas e desviantes, do lumpen. No caso do Rio de Janeiro, os agentes dessa “sociabilidade violenta” costumam ser associados aos traficantes surgidos com a expansão do comércio a retalho de cocaína em pontos fixos localizados nos territórios da pobreza, cujo exemplo mais típico no imaginário popular são as favelas2. Mas se generaliza e se torna dominante na configuração do debate público com a hiper-politização da questão da segurança provocada por medidas tomadas ainda no começo do primeiro governo Brizola (1983-86), que foram consideradas por parcela significativa das camadas médias como proteção de criminosos comuns. Essas medidas consolidaram o clima de polarização político-eleitoral que sempre marcou as ações do governador e constituíram a pá de cal no já enfraquecido (por vários outros processos que não cabe aqui analisar) consenso tácito que associava proteção social e direito(s) – um resultado completamente diferente do almejado pelo governador e seu grupo político. A partir daquele momento, a linguagem dos direitos cede espaço, no tratamento da questão da segurança pública, à linguagem da violência urbana, uma gramática cujos repertórios expressam o abandono do universalismo que sustentava o debate sobre os direitos, em favor do afastamento a qualquer preço de agentes que são definidos como ameaçando a continuidade das rotinas cotidianas3. Em resumo, no início dos anos 1980 constitui-se no Rio de Janeiro uma espécie de “enclave de significado” que separa da linguagem dos direitos as questões relativas à manutenção da ordem pública. Esta passa a ser compreendida de uma forma restritiva e repressiva, como afastamento das ameaças à integridade física e patrimonial embutidas nas práticas do dia-a-dia. A relação entre proteção social e direitos não desaparece, mas na gramática da violência urbana passa a ser

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Evidentemente, estas observações não são consensuais. Proponho-as como uma tomada de posição em um campo de debate constituído por uma literatura que não para de crescer, cujo tratamento, entretanto, não cabe nos limites de artigo. Tenho escrito vários artigos a respeito da relação entre a “linguagem da violência urbana” e a “sociabilidade violenta”; a fim de poupar o leitor, cito apenas os textos em Machado da Silva (2008). Grillo (2008) e Rafael (1998), por exemplo, oferecem análises etnográficas sobre o comércio ambulante de drogas ilícitas, que indicam práticas muito diferentes em relação à venda em pontos fixos. 3 Sobre o impacto da política de segurança do governo Brizola na constituição da linguagem da violência urbana, cfr. Machado da Silva (2010). Ver também, entre os vários trabalhos a respeito da atuação desse político, a discussão de sua política de segurança, a partir de outro enquadramento analítico, em Buarque de Holanda (2005). É útil explicitar que não considero que a linguagem da violência urbana limita-se à cidade do Rio de Janeiro e nem mesmo às fronteiras nacionais. Mas acho que os repertórios que a constituem conservam especificidades que devem ser levadas em conta, de modo que só um trabalho comparativo que ainda não foi feito será capaz de propor generalizações empiricamente sustentadas que ultrapassem os casos particulares como o que é aqui tratado.

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explicitamente tematizada e o debate se inverte, passando-se a discutir quem (pessoa e/ou grupo) não se qualifica como portador de direitos (Freire, 2010). A propósito, veja-se a seguinte afirmação, feita em editorial do, à época, segundo jornal de maior circulação no Rio de Janeiro: “(...) Não há como invocar ‘direitos humanos’ quando eles só beneficiam homicidas e drogados” (Jornal do Brasil, “A guerra da lei”, 9/05/1995, apud Machado da Silva, 2010:292). Note-se também, no supracitado título do mesmo editorial, a retórica bélica que é característica da linguagem da violência urbana (Leite, 2009). As implicações desta mudança são, é claro, multifacetadas. Aqui, porém, interessa uma discussão das atividades policiais que, na linguagem da violência urbana, se confundem com a redução do debate sobre a segurança pública à dimensão repressiva do controle social nas atividades cotidianas, tão bem exemplificada no mencionado editorial. De fato, apesar do amplo processo de democratização que se seguiu ao fim dos governos militares, com a constituição da linguagem da violência urbana os aparelhos policiais mantiveram seu papel tradicional de exercício do “trabalho sujo” – porque realizado através do uso de força excessiva, não sancionada legalmente (Brodeur, 2004) – de contenção e disciplinamento das camadas populares, o que ocorria por meio de grandes incursões nas favelas da cidade, envolvendo muitas dezenas de agentes, quase sempre provocando mortes e aterrorizando a população local. Apesar do profundo descontentamento popular, essa forma de atuação policial contava com a aceitação tácita de boa parte da população (Machado da Silva, 2011), de modo que não se constituiu uma crítica pública organizada capaz de alterar significativamente os repertórios da linguagem da violência urbana. Não obstante essa ausência e apesar da dificuldade de demonstrar empiricamente, acho plausível sugerir que décadas de violência policial descontrolada produziram um certo cansaço coletivo, informe e subterrâneo, que veio a se manifestar na forma das reticências com que foram recebidas as primeiras medidas de “endurecimento” da política de manutenção da ordem tomadas logo depois da fácil reeleição do atual governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Este descompasso entre o governo e sua ampla base eleitoral coincidiu com o retorno do Secretário de Segurança, Mariano Beltrame, de uma visita à Colômbia, a qual, segundo ele mesmo afirmou em recente seminário, lhe sugeriu a possibilidade de adaptar ao Brasil a experiência de polícia comunitária em curso nas cidades daquele país4. Foi como variante dessa experiência que surgiu a proposta das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), apresentadas como um novo programa de policiamento para o

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Esta não é a primeira tentativa de implantar o policiamento de proximidade no Rio de Janeiro, mas a experiência anterior não passou de um projeto-piloto que não obteve apoio político interno e, assim, não se consolidou. É interessante lembrar que a inspiração para uma nova experiência esteja ligada à Colômbia, justamente quando o sucesso desta modalidade de policiamento dá mostras de estar declinando.

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conjunto das favelas cariocas. As repercussões de sua implantação, bem como suas tendências de desenvolvimento no curto prazo, são o objeto da próxima seção.

As UPPs. Breve avaliação sociológica5 Desde a implantação da primeira unidade, na favela de Santa Marta, as UPPs foram alçadas ao centro das atenções no debate sobre a manutenção da ordem pública no Rio de Janeiro. Por isso mesmo seus repertórios estão fortemente polarizados. De um lado, militantes (favelados ou não) e uma parte dos pesquisadores têm defendido que as UPPS são apenas um novo nome-fantasia para as mesmas práticas policiais de sempre, arbitrárias, corruptas e violentas. De outro lado, alguns oficiais superiores (não todos) da Polícia Militar, à qual as UPPs estão subordinadas; os demais pesquisadores; grande parte da opinião pública, incluída a população favelada; e quase toda a mídia, consideram as UPPs um sucesso tão grande que parece uma verdadeira panacéia. Em outras palavras, os críticos pensam que, enquanto a gramática da violência urbana não for substituída pela gramática dos direitos nas práticas de manutenção da ordem pública, tudo continuará na mesma. Quanto aos defensores das UPPs, estes defendem que com a redução das mortes e da escala dos confrontos entre criminosos e entre estes e a polícia, independente de outras ações que fortaleçam o tecido social através da retomada do exercício da alteridade, a segurança pública estará consolidada. A fim de evitar os exageros de ambas as posições, vale a pena abrir estas notas a respeito do impacto das UPPs na configuração da sociabilidade no Rio de Janeiro com algumas observações gerais que servem para enquadrar e estabelecer os limites do impacto que provocam: a) As evidências sugerem que, apesar da retórica oficial e do título generalista, a atuação dos agentes das UPPs está longe de ser homogênea, de modo que as unidades devem ser pensadas como experiências autônomas, mais do que como exemplos de um programa integrado e unívoco de policiamento6. Isso não impede, 5

Parte dos comentários desta seção e da próxima está baseada em minha interpretação pessoal das informações contidas em Soares et allii (2011). Gostaria de deixar explícito que a responsabilidade pelo uso que faço deste documento é estritamente minha. 6 Os repertórios de aprovação e crítica às UPPs constituem-se por referência a uma compreensão abstrata-geral destes dispositivos, de modo que o debate relativo a cada unidade remete aos critérios totalizadores da linguagem da violência urbana. Esta “desindexação” das UPPs, que compreende cada caso como simples exemplar de uma política pública homogênea, confere consistência e continuidade às relações sociais que se constituem por seu intermédio. Por outro lado, entretanto, empobrece a reflexão sobre o alcance e os respectivos limites das inovações que, em sua diversidade, as UPPs produzem concretamente. A variedade de organização concreta, de funcionamento, de resultados, a intensidade de aprovação ou repúdio local, as diferenças na visibilidade pública das ações de cada unidade, são de tal ordem que me levam a insistir na necessidade de evitar a polarização e a generalidade das tomadas de posição correntes, o que não significa negar a existência de algumas (em geral vagas) orientações comuns. Creio que a reflexão que proponho pode ser qualificada como um pequeno conjunto de anotações sobre tendências dominantes diferencialmente distribuídas entre as favelas onde foram implantadas UPPs até o presente (outubro de 2011).

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é claro, a presença de alguns pontos em comum entre as unidades em funcionamento. Há, de fato, alguns valores, análises e objetivos gerais que são compartilhados pela administração central como, por exemplo, a necessidade de uma reforma das práticas policiais que passe pela modernização e democratização do ethos corporativo7, o esforço para elevar o nível de civilidade no tratamento da população ordinária pelos agentes operacionais e, em particular, a meta de reduzir a letalidade nas favelas8, inclusive, e talvez mesmo com mais ênfase, a derivada diretamente da ação dos próprios policiais. b) No entanto, como se verá adiante, a adesão dos agentes a esses princípios gerais, inclusive do próprio oficialato, tem sido problemática e reticente, de modo que a prática das UPPs acaba por depender da postura individual dos responsáveis locais e dos contextos sociopolíticos particulares que definem a recepção das unidades pelas favelas em que são implantadas. Reproduz-se, assim, uma característica secular dos aparelhos policiais brasileiros. Em texto anterior (Machado da Silva, 2011), sugeri que as polícias brasileiras permanecem como as únicas organizações estatais pré-modernas, cujo conhecimento profissional não foi expropriado e burocratizado, tornando-as verdadeiros amálgamas de interesses segmentares de grupos e cliques internas, muito difíceis de gerir, apesar de (ou por isso mesmo) se tratarem de estruturas jurídico-administrativas fortemente hierarquizadas. c) A retórica militarizada constante do próprio título das unidades – “polícia pacificadora” – é uma demonstração cabal de que elas permanecem como repertórios da linguagem da violência urbana, pois só faz sentido uma forma pacificadora de policiamento se a alternativa for o enfrentamento em uma guerra. E, de fato, a logística que tem precedido a implantação das UPPs lembra uma atuação deste tipo: seja a realização efetiva de grandes operações para “limpar o terreno” (o caso emblemático é o “Complexo” – termo de origem militar usado pela polícia para designar áreas cobertas por grupos de favelas territorialmente interligadas – do Alemão, que conta inclusive com a participação do exército); sejam avisos, amplamente divulgados na mídia e tidos como forma de evitar o confronto armado com os criminosos locais (avisados, eles fugiriam antes do 7

A vocação “civilizatória” das idéias sobre a reforma da(s) polícia(s) contém, como sub-texto poucas vezes explicitado na fala dos próprios policiais, o reconhecimento da necessidade de coibir a corrupção entre os agentes. O esforço de moralização das atividades das UPPs se expressa nos concursos que recrutam os novos agentes que vão atuar nelas, em uma tentativa de evitar ao máximo o deslocamento de pessoal, que “contaminaria” as unidades com velhos métodos de atuação, bem como no curso especialmente criado para os novos quadros. Internamente, os defensores das UPPs lamentam que o curso seja curto demais para criar o “novo homem” da polícia, como eles gostariam, devido à urgência de expansão das unidades. 8 Um ponto forte contido no horizonte dessas idéias genéricas é a moderação – note-se bem, não o abandono – da conhecida e muito discutida ideologia oficial de “guerra às drogas” (entendida como combate ao tráfico, isto é, aos agentes individuais e coletivos de produção e comercialização de produtos definidos como ilícitos) representada por uma nova ênfase na redução da letalidade, a qual tem se demonstrado inerente às práticas que tal ideologia origina.

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enfrentamento inescapável), de que em tal data as “forças da ordem” ocuparão a localidade. Esta dinâmica de implantação das UPPs, que explicita a continuidade com a linguagem da violência urbana, tem levado a militância de esquerda a negar que elas possam constituir uma nova conjuntura na concepção e na prática da política de segurança. Dessa maneira, boa parte da crítica produzida por estes grupos torna-se anacrônica e goza de pouca repercussão pública. d) Finalmente, um último elemento de continuidade no enquadramento das discussões que constituem a política de manutenção da ordem pública no Rio de Janeiro está relacionado ao próprio horizonte manifesto das UPPs. Esta experiência de policiamento comunitário é especificamente formulada e dirigida às favelas, não ao conjunto da cidade. Ainda que sem intenção, o caráter particularista da proposta converte-a em poderoso dispositivo de segregação socioterritorial, o qual é reforçado, também de forma não intencional, pelas reiteradas especulações sobre para onde irão, e como continuarão sua vida no crime violento, os traficantes que não podem mais atuar com a desenvoltura anterior nas favelas ocupadas pelas UPPs. Essas especulações, por sinal, dão corpo à reprodução da desconfiança generalizada quanto à continuidade de políticas governamentais em geral, e têm levado a interpretações de que as UPPs durarão apenas até ocorrência dos dois grandes eventos previstos para o Rio nos próximos anos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Dessa maneira, a famosa dualização do imaginário da cidade, entre a favela e o “asfalto”, torna-se objetivada tanto na atuação institucional quanto em sua crítica. Entretanto, apesar de todas estas indicações sobre a continuidade das UPPs em relação às práticas anteriores, gostaria de sugerir, com base no material das pesquisas mencionadas no início deste texto que, muito embora não configurem uma ruptura com o período anterior, como a propaganda oficial e a maior parte da mídia tentam fazer crer, elas contem, em sua diversidade, inovações suficientes para configurar uma nova conjuntura no processo de manutenção da ordem pública no Rio de Janeiro9. Na base desta afirmativa está a constatação de que a letalidade nas favelas, que era uma decorrência dos seguidos confrontos entre os bandos de criminosos e entre estes e a polícia, parece ter diminuído sensivelmente. A mensuração estatística de fenômenos como este, que está no centro do debate público, será sempre objeto

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É claro que na base destas inovações estão tentativas de reformular as práticas policiais, de modo que os processos internos à instituição são muito importantes. Quero reiterar, entretanto, que meu foco não é propriamente a polícia, mas os resultados de sua atuação na configuração da sociabilidade no Rio de Janeiro. Neste sentido, meus comentários concentram-se nas relações dos agentes com a população ordinária, especialmente no que diz respeito ao feedback entre as interações concretas e o debate público que elas suscitam. A aposta teórica é que esta interdependência é decisiva, pois é neste espaço de indeterminação que os repertórios constitutivos de uma linguagem reproduzem-na e/ou a transformam.

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de questionamento, pois, como é sabido, implica em muitas dificuldades técnicas10. No entanto, justamente por ser tema de discussão, interessa mais sua construção na compreensão social dominante. Deste ponto de vista, há uma crença generalizada de que as mortes de fato diminuíram, e a aprovação maciça não deixa dúvida quanto aos efeitos favoráveis que as UPPs podem estar provocando, os quais serão objeto dos comentários finais. Reitero, porém, que, mesmo sendo forte o reconhecimento do sucesso da iniciativa governamental de alterar o policiamento nas favelas, ele tem limites bastante claros, que podem ser resumidos sob a forma de três conjuntos interdependentes de idéias em circulação: a) Uma já mencionada desconfiança bastante generalizada a respeito da continuidade de qualquer política governamental, derivada da experiência secular de incontáveis mudanças e/ou suspensões abruptas dos programas, inclusive dos bem sucedidos. No caso das UPPs, sempre se especula que os grandes eventos de 2014 e 2016 seriam os prazos máximos para a presença permanente de policiais circulando pelas favelas. Lembre-se que, antes delas, seu policiamento ficava a cargo de poucos agentes, em geral acusados de corrupção, conluio com os traficantes locais e brutalidade nas relações com os moradores e quase sempre passivamente estacionados em postos nas fronteiras dessas localidades. b) Uma intensa onda de boatos a respeito de armamento escondido pelos traficantes expulsos nas favelas de origem, o que obviamente significaria uma intenção de retorno, reforçando a desconfiança acima comentada. Esses boatos estendem-se para especulações a respeito de como sobreviveriam os traficantes que, por não possuírem armas (deixadas nas favelas de onde saíram), não são aceitos pelos bandos junto aos quais procuram refúgio. Ninguém sabe ao certo se é significativa a redistribuição territorial da violência criminal provocada pela implantação das UPPs, muito menos quais seriam suas características. Mesmo assim, este tópico tem sido objeto de comentários apaixonados, quase todos apontando para a penalização dos territórios da pobreza. Neste ponto, não é ociosa uma digressão para acrescentar que estas idéias constituem uma dupla crítica popular aos dispositivos estatais. 10

Um bom exemplo destas dificuldades encontra-se na reportagem de Elio Gaspari, um dos mais reputados jornalistas cariocas, intitulada “Pacificaram as estatísticas da morte no Rio” e publicada n’O Globo, o jornal de maior circulação no Rio de Janeiro. (Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=412853&ch=n. Acessada em outubro de 2011. Agradeço a Susana Durão esta referência.) A matéria constitui uma interpretação pessoal do autor sobre o significado dos dados contidos em trabalho de Daniel Cerqueira (IPEA/Ministério do Planejamento), "Mortes violentas não esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro". O texto publicado n’O Globo, além de um duro questionamento das estatísticas que indicam a redução da letalidade com a implantação das UPPs, pode ser tomado como indicação de que as críticas a elas começam a receber mais atenção da grande mídia e a ser feitas em tom mais agressivo.

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Primeiro, quanto à sua insuficiente abrangência como recursos na manutenção da ordem pública. Neste aspecto, uma vez que ninguém sugere uma verdadeira extensão universalista das UPPs que cubra também as áreas ocupadas pelos estratos superiores, trata-se de uma forma seletiva de denúncia de um sistema que seria do tipo “cobertor curto”. O segundo aspecto da crítica expressa através da intensa rede de boatos diz respeito ao sentimento de injustiça de um padrão de manutenção da ordem que sempre acaba por penalizar os mais pobres. Exagerando um pouco, talvez se pudesse reler nesses boatos uma percepção implícita e difusa do caráter de classe dos dispositivos estatais. c) Finalmente, as informações disponíveis sugerem que são crescentes as acusações de corrupção dos agentes das UPPs. Aqui, uma vez mais a versão é socialmente mais importante do que o fato, já que a identificação de uma retomada da tradicional corrupção policial – popularmente explicada como decorrente da adaptação das orientações tradicionais dos agentes às novas regras de atuação – desqualifica as intenções de reforma da polícia da qual as UPPs seriam uma espécie de ponta de lança na concepção de seus formuladores. Em resumo, nestes primeiros anos de implantação das UPPs, constituiu-se uma delicada balança entre, de um lado, uma forte aprovação, justificada pela eficácia de um policiamento repressivo que, reduzindo a letalidade, mantém o afastamento dos agentes que poriam em risco a continuidade das rotinas cotidianas; e, de outro, uma ampla desconfiança quanto à sua continuidade e consolidação. Esta maneira generalizada de avaliar a situação como sendo ambígua e indefinida inspira uma certa cautela das camadas populares, em especial dos favelados, que relutam em arriscar-se a ser vistos como defendendo a polícia ou os criminosos. Dessa maneira, reproduz-se a seletividade do engajamento da população no debate público. Neste caso, o motivo não está na falta de recursos de poder ou no desinteresse pela política das pessoas comuns, mas no medo, pois é desnecessário lembrar que o custo da manifestação das idéias dos representantes institucionais, aí incluídos os meios de comunicação, e dos segmentos abastados é menor do que o da maioria das pessoas. De qualquer modo, a enorme atenção do conjunto da população da cidade à experiência das UPPs acaba por conviver com um debate público não propriamente rarefeito, mas desequilibrado. Talvez esteja aí a explicação para a crença de uma parte dos pesquisadores e militantes de que as eventuais inovações nos procedimentos de manutenção da ordem não passam de um espetáculo midiático. Uma situação indefinida como a que acabo de descrever depende, evidentemente, do sucesso dos esforços de convencimento da população pelos “empresários morais”, mas a verdadeira dificuldade está nas condições contextuais que favorecem ou não, e a quais segmentos sociais, a disposição para o engajamento

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no debate público. Na medida em que as tematiza, o debate público repercute – e desta maneira fiscaliza e orienta – as práticas concretas dos policiais, sua forma e seus resultados substantivos. Neste sentido, quanto mais unilaterais forem as avaliações e menos diversificadas as críticas, menores serão as chances de sucesso na reformulação da atuação policial pretendida com as UPPs, que é justamente o ponto fundamental que tem garantido sua aprovação popular. Antes de passar à próxima seção, vale a pena um comentário adicional a respeito desta última afirmativa. Como é mais do que sabido, críticas à violência policial não são novidade. Sua capacidade de publicização e seu peso no debate coletivo, entretanto, durante muito tempo foram particularmente limitados. Em geral iam pouco além da denúncia comentada “à boca pequena”, de divulgação restrita e sem maiores consequências. Entretanto, com o peso conferido à continuidade das rotinas cotidianas pela linguagem da violência urbana, a atividade policial torna-se objeto de atenção da coletividade. Desse modo, têm surgido entre os meios intelectuais críticas mais orgânicas e propositivas, contendo indicações de solução para a violência e a corrupção policial. Talvez reconhecendo as limitações dos recursos de poder disponíveis, elas se apresentam como “não-ideológicas”, pragmáticas e pontuais, quase sempre mencionando medidas jurídicas e técnico-administrativas de reforma institucional, na suposição de que, com a alteração das condições formais de trabalho, modificar-se-ia também a cultura profissional. A estrutura lógica dessas críticas parece ser a combinação da coerção dos novos procedimentos formais e o consentimento derivado de melhores condições de trabalho. Este não é o local apropriado para discutir sua absorção pela estrutura decisória. Aqui, basta sugerir que várias das medidas propostas têm sido de fato incorporadas. Infelizmente, porém, este aparente sucesso, só tem demonstrado a resiliência das práticas tradicionais, que exercem uma espécie de “canibalização” das novas regras, de modo a torná-las adaptadas aos antigos conteúdos adotados pelos agentes. Creio que tanto a lógica dessas propostas de transformação burocrática, mais racionais do que políticas, quanto sua inviabilização pela resistência das práticas conservadoras, têm a mesma explicação: o persistente desinteresse pela atividade policial da parte dos estratos dominantes, que só estão interessados na imposição de formas de controle social que evitem a interação com agentes classificados como ameaças à sua integridade física e patrimonial. Mas o sucesso da implantação das primeiras UPPs – grandemente reverberado pela mídia, é verdade – parece ter gerado uma drástica mudança neste quadro. Por um lado, incrementou de maneira significativa os recursos de poder que as sustentam, tanto dentro da própria Polícia Militar quanto do conjunto do governo estadual (com extensões no nível federal). Isso não ocorreu com tentativas anteriores de implementar formas de policiamento comunitário nas favelas, que foram boicotadas ou desprezadas e não se consolidaram,

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como a experiência já mencionada do GPAE. Por outro lado, o sucesso provocou um súbito interesse público pela atividade policial. Ao tornar-se objeto de atenção da coletividade, fica bastante limitada a antiga autonomia, condição indispensável do arbítrio tradicional. Neste sentido, o alcance de um eventual sucesso das UPPs ultrapassa o horizonte da manutenção da ordem no qual ele se coloca atualmente, pois poderá significar o início da modernização e da accountability da prática policial como um todo.

Considerações finais O presente texto dedica-se a comentar em que medida a experiência das UPPs afeta a constituição da sociabilidade no Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de uma abordagem “para fora” (cfr. nota 9) das práticas policiais, em que são privilegiadas as relações dos agentes com a população ordinária. Os inúmeros aspectos que constituem as práticas organizacionais – os conflitos de interesse, os jogos de poder, as regras técnico-administrativas, econômico-financeiras, de gestão de pessoal, jurídicas, etc. – que são a retaguarda dos procedimentos policiais que afetam as pessoas comuns, apesar de obviamente muito relevantes, foram deixados em segundo plano em benefício da concisão, da simplicidade e da clareza do argumento central. No entanto, há um tópico ligado às questões que não foram aqui tratadas que considero indispensável mencionar, ainda que esquemática e superficialmente, pois sua compreensão mais abrangente é indissociável de uma análise específica do funcionamento interno da instituição. Trata-se do grau de envolvimento dos policiais nas atividades relativas às UPPs. Reconheço que estarei apresentando uma pequena radiografia do momento presente de uma experiência que é processual e tem pouco tempo de existência. Mas a adesão ativa e/ou o repúdio dos policiais expressam o “espírito” da iniciativa que constitui o dispositivo e, portanto, são decisivos para as características que ele vier a assumir. Não creio que seja possível falar do impacto das UPPs, presente ou tendencial, sem considerar a natureza do engajamento dos policiais envolvidos. Esquematicamente, os agentes se distribuem por três posições: a) A grande maioria do oficialato não ligado às UPPs é descrente quanto à sua eficiência como aparatos de controle social. Independente de interesses particulares que a proposta das UPPs, ou qualquer outra mudança nos procedimentos policiais, pode ameaçar, este grupo continua a achar que “bandido bom é bandido morto” e que a população dos territórios da pobreza é criminosa ou conivente com a criminalidade. Talvez seja possível acrescentar que este contingente é o que melhor encarna o ethos corporativo. A propósito, uma questão que mereceria pesquisa específica é em que medida o ethos policial contem uma inversão do princípio de que ninguém pode ser culpado sem prova. O operador dessa inversão seria a crença, tácita mas quase canônica, de que um agente cuja

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função precípua é controlar o comportamento dos populares e não desconfia deles, não tem condições mínimas para realizar sua tarefa. Essa desconfiança a priori das intenções da população ordinária costuma ser graduada segundo as tipificações correntes da estratificação social (desconfia-se mais de certos lugares, de certas atividades, de homens, jovens, pretos, pobres, etc.). Uma vez que essas tipificações são compartilhadas com o conjunto da população, os policiais podem interpretar corretamente a delegação que recebem das camadas mais abastadas para manter a continuidade das rotinas cotidianas, afastando os riscos de interação com indesejados. No limite, a desconfiança pode chegar à certeza das intenções criminosas antes mesmo das pessoas agirem, dependendo de como elas se enquadram nessas tipologias. b) O oficialato responsável pela implementação da experiência das UPPs, que considera que elas podem ser um dispositivo “civilizatório” da própria polícia, caso consigam demonstrar concretamente que a redução da brutalidade policial não é incompatível com a manutenção da ordem e pode favorecer a moralidade da corporação. Este grupo aposta nas UPPs e parece ter atrelado a elas a progressão nas respectivas carreiras individuais. O termo “aposta” não é gratuito, pois combina a motivação e o engajamento pessoal do “empresário moral” com a exploração de uma capacidade política de intervenção que seus membros não tinham antes da repentina decisão de cúpula que constituiu a proposta da UPPs. Se a miríade de práticas dos agentes, que concretizam as UPPs como modalidade de policiamento, não obtiverem uma avaliação pública favorável, este contingente corre o risco de um ostracismo que lhe colocará em posição muito desconfortável na corporação. c) A tropa e os postos subalternos. Este grupo, amplamente majoritário, mas com quase nenhum poder na formulação das políticas institucionais, está muito desconfortável nas UPPs11. A maior parte preferiria estar alocada nos batalhões, funcionando como verdadeiros burocratas do patrulhamento e exercendo sua atividade no conforto da atividade policial rotineira, tradicional. Claro que as chances de corrupção e a maior liberdade de recurso à violência podem ser motivos desta preferência, mas quero sugerir uma explicação mais prosaica: a massa dos policiais simplesmente não tem “vocação civilizatória”, nem para uma “reforma intelectual e moral” da corporação, parafraseando Gramsci, nem para a “sociabilidade violenta”. Talvez se possa dizer que os agentes, em geral, são como a 11

Candidamente, um policial alocado em uma UPP comentou, com certeza pensando estar falando sobre o cumprimento do dever: “Agora que a gente não pode mais bater nas pessoas, fica difícil ser respeitado e manter a ordem”. Este é um pequeno exemplo, relevante por causa da clareza. Menos explícitos, porém mais indicativos das dificuldades de produzir internamente um envolvimento positivo dos agentes com a orientação geral que os responsáveis querem imprimir às UPPs, são os frequentes comentários sobre a substituição dos casos reportados como “auto de resistência” (mortes produzidas por policiais alegadamente em legítima defesa) por casos apresentados como “desacato à autoridade” (para justificar agressões e prisões arbitrárias). A letalidade diminuiu, mas as demais formas de violência policial não seguem o mesmo caminho, ao menos na opinião de uma parte da população da cidade.

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maioria dos seres humanos, pecadores veniais que preferem o conforto e a mediocridade dos procedimentos convencionais de sua área de atividade. Para suscitar-lhes firme adesão, novidades precisam ser muito valorizadas ou estar tão claramente estabilizadas a ponto de não serem mais novidades. Este último grupo corresponde aproximadamente ao que Richard Nixon chamou de “maioria silenciosa” da política americana. Proponho que, mesmo sem ser propriamente um protagonista, até porque não dispõe dos recursos de poder para isso, suas orientações práticas acabarão por decidir o destino das UPPs e do debate sobre a segurança pública. Pelo menos no curto prazo, duvido que ele venha a ser convencido a engajar-se nas virtudes do policiamento comunitário e se torne um entusiasta das inovações que as UPPs pretendem representar. Não porque se trata de um grupo passivo, mas simplesmente porque seus interesses pessoais, sendo predominantemente extra-profissionais, o tornam moldável pela pressão dos ativistas da polícia. Por seu peso quantitativo e pelo fato de que é ele que mais de perto interage com a população ordinária, creio que esse contingente será o fiel da balança. Isto significa que, se as UPPs vierem a se consolidar como dispositivo de manutenção da ordem nos territórios da pobreza, ou seja, se os “empresários morais” representados pelo segundo grupo de oficiais vencerem as disputas internas, a mudança que elas produzirem terá, durante o tempo necessário para que se rotinizem em definitivo, um viés autoritário. Mesmo virtuosas, serão práticas expressivas do mero cumprimento de ordens superiores, sem o convencimento subjetivo e a mobilização pessoal da tropa. Apresentado de forma minimalista, o argumento contido nestas observações é que a “mesma” polícia defronta-se com um novo contexto que ela própria criou com a implantação das UPPs. O sentido social dessa novidade ainda não está claro. Porém, qualquer que venha a ser, não está mais apenas nas mãos da própria polícia; ele dependerá também da avaliação pública dos resultados concretos das práticas dos agentes. O que vier a acontecer com a organização do policiamento no Rio de Janeiro, pelo menos até segunda ordem, não decorrerá apenas de processos internos, como foi o caso do longo período em que os policiais atuaram sob uma cega delegação social para interpretar como – e contra quem – deveriam manter a ordem pública. Até aqui, falei da UPP “militar”, voltada para os aspectos repressivos de manutenção da ordem que inspiraram a proposta de policiamento comunitário que ela representa. Ultimamente, porém, estão sendo implementadas idéias que incorporam às práticas das UPPs outras dimensões, menos explícitas, do controle social e têm sido denominadas de UPP “social”. Essa modificação do escopo da experiência de policiamento comunitário corresponde a uma tentativa ainda mais recente e pouco clara do que a proposta original. Mesmo assim, acho necessário terminar estas notas arriscando-me a uma referência tentativa, dado o caráter crucial deste desdobramento.

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Em meados do século XX constituiu-se um dispositivo político que canalizava as demandas sociais dos territórios da pobreza, especialmente das favelas, que se tornou um importante elemento da esfera pública. Era a associação de moradores, entidade tradicional de representação do conjunto de interesses que não estavam diretamente ligados aos interesses laborais. Com o esvaziamento mundialmente generalizado da contestação política e, no caso brasileiro, o retorno pleno das atividades políticopartidárias, as associações de moradores se enfraqueceram. Este esvaziamento tem sido agravado pelos processos relativos à constituição do par linguagem da violência urbana/”sociabilidade violenta”. A dificuldade das associações de permanecerem como um dispositivo político relevante neste contexto afeta a sociabilidade nos territórios da pobreza em um sentido que interfere com as práticas das UPPs, como veremos. Cumpre, portanto, uma palavra a mais sobre esse ponto. O descenso das associações de moradores está relacionado à crescente relevância dos “projetos” – práticas pontuais, no tempo e no espaço, de promoção social, que cada vez mais tendem a ser as únicas formas de obtenção de recursos, públicos ou privados. Note-se que as justificativas dos projetos contemplados constituem claras extensões das práticas de controle social visando a manutenção da ordem pública, pois sempre se propõem como barreiras à expansão da criminalidade violenta nos territórios da pobreza (Moraes, 2008). Parece que a chave da liberação de recursos para atividades sociais é sua compatibilização com a linguagem da violência urbana. Esse estilo de financiamento das práticas de proteção social favorece as ONGs, que preconizam políticas focais, em detrimento da orientação mais geral de contestação política através de demandas aos aparelhos de Estado de ampliação dos serviços públicos, tradicionalmente adotada pelas associações de moradores. Estas se vêem forçadas a também aderir à formulação de “projetos”, porém parecem estar menos preparadas para a competição neste campo de financiamento do que as ONGs. Com dificuldades de carrear benefícios materiais para as localidades que representam, as associações têm perdido boa parte do apoio social, com isso se enfraquecem ainda mais, e assim por diante, em uma espiral de perda de poder. Esta tendência é ainda mais agravada pela dificuldade de acionar os dispositivos convencionais de mobilização política, especialmente reuniões coletivas com moradores, devido ao medo generalizado provocado pela contiguidade com a “sociabilidade violenta”. Além dessa resistência passiva às convocações, as associações também perdem legitimidade na medida em que quase sempre sua atuação precisa ser negociada com os representantes locais do crime violento. Isso, é claro, implica uma demonstração de que parte de sua autoridade passa a depender do aval indireto

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da “sociabilidade violenta”12. Vale lembrar que os “projetos” quase sempre também precisam da permissão do crime violento, porém as ONGs parecem gozar de mais graus de liberdade de atuação, talvez porque a mobilização política seja capaz de atrair mais atenção dos aparelhos estatais de controle social, o que repercute na maior vigilância dos bandos de criminosos. Assim, forma-se uma espécie de vazio tem que sido preenchido pelos policiais, aos quais os moradores cada vez mais se dirigem para demandar recursos que anteriormente eram considerados da alçada das associações. Isto leva as UPPs, ainda que não intencionalmente, a acrescentar à sua atuação o papel de mediação política. De passagem, diga-se que isso é realizado um pouco a contragosto, pois os agentes não consideram este aspecto de suas práticas como parte das “verdadeiras” tarefas de controle social. Foi neste contexto que, durante seu breve momento como ex-Secretário Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Ricardo Henriques, um misto de gestor e acadêmico especializado na análise de políticas públicas, criou uma proposta de extensão das atividades originalmente previstas para as UPPs, que denominou de “UPP social”. Em resumo, a lógica subjacente é que, com a “pacificação” – que ele compreende como uma retomada da soberania estatal nos territórios antes controlados pelos bandos armados – torna-se possível, e mesmo indispensável para sua consolidação, a expansão da oferta de bens de cidadania para os moradores das localidades onde há UPPs. Isso seria realizado por uma parceria das unidades (o policiamento ostensivo é atribuição do estado) com o município, através da secretaria mencionada, que disponibilizaria, ao lado das UPPs e não subordinados a ela, técnicos que levantariam as demandas locais e estabeleceriam a ponte com os dispositivos estatais pertinentes. Logo depois que as “UPPs sociais” começaram a ser implantadas, seu idealizador deixou a secretaria com toda a sua equipe. A sigla permanece, mas ainda é muito nebuloso o conteúdo substantivo das práticas que o novo responsável pretende favorecer. Tudo que, no momento, pode ser dito sobre a proposta de criar um braço “social” acoplado à implantação das UPPs “militares” é que, intencionalmente ou não, ela constituiria uma blindagem contra a extensão do poder local dos policiais que, além de agentes de manutenção da ordem, estão se convertendo em atores políticos. Neste sentido, além de todas as indefinições e ambiguidades que cercam a inovadora experiência de implantação de policiamento comunitário representada pelas UPPs, as questões levantadas a partir de sua extensão “social” deixam uma dúvida no ar. As UPPs estão em uma encruzilhada: converter-se-ão em braço político 12

A necessidade de estabelecer relações, mesmo esporádicas, com uma forma de vida intrinsecamente violenta aumenta o risco pessoal envolvido nas práticas dos militantes das associações de moradores. Têm sido comuns os casos de diretores mortos, expulsos da localidade, etc., o que contribui para o afastamento dos moradores.

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de reivindicação de bens de cidadania, abrindo chance para consolidar a militarização do que resta das práticas de proteção social, ou aceitarão dividir o poder nas localidades onde estão implantadas, aceitando compartilhá-lo com representantes civis de outros aparelhos de Estado? Suspeito que a solução deste dilema passa mais pelos resultados do debate público das práticas policiais do que pelos processos internos da sociabilidade nos territórios da pobreza, uma vez que são muito limitadas as condições da ação coletiva local. Esta é outra contradição, e com ela fecho meus comentários. Sugeri, ao longo do texto, que a participação no debate público dos segmentos subalternos, que são mais diretamente afetados pela violência policial e criminal, é fundamental para o controle das práticas de manutenção da ordem e, dessa maneira, para o sucesso das UPPs. Mas como isso pode ocorrer, se as condições para a formação autônoma da ação coletiva nos territórios da pobreza (leia-se definição, organização e expressão na esfera política das demandas locais) são cada vez mais restritas, inclusive devido ao próprio sucesso das UPPs? Como se vê, uma avaliação do impacto das UPPs suscita mais perguntas do que respostas. Bibliografia citada Buarque de Holanda, Cristina. (2005) Polícia e Direitos Humanos: Política de Segurança Pública no Primeiro Governo Brizola (1983-1986). Rio de Janeiro: Revan. Brodeur, Jean-Paul. (2004) “Por uma sociologia da força pública: considerações sobre a força policial e militar”, Caderno CRH, vol. XVII, nº 42. Freire, Jussara. (2010) “Agir no regime de desumanização: Esboço de um modelo para análise da sociabilidade urbana na cidade do Rio de Janeiro”, Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Vol. 3, nº 10, out/dez, pp. 119-142. Grillo, Carolina Christoph. (2008 ) “Fazendo o doze na pista: Um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe média”. Dissertação de mestrado, IFCS/UFRJ. Leite, Márcia da Silva Pereira. (2009) Para além da metáfora da guerra: violência, cidadania, religião e ação coletiva no Rio de Janeiro. São Paulo: Attar Editorial/CNPq. Machado da Silva, Luiz Antonio. (2010) “Violência urbana, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual”. Caderno CRH, vol. XXIII, nº 59, pp. 283-300. (2011) “Polícia e violência urbana em uma cidade brasileira”, Etnográfica , vol. XV, nº 1, pp. 67-82, 2011 Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). (2008) Vida sob cerco – violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Moraes, Pedro Ribeiro Bodê de. (2008) “Juventude, medo e violência”. In: Vânia Mercer & José Antonio Peres Gediel (orgs.): Violência, paixão e discursos: o avesso dos silêncios. Porto Alegre: CMC. Rafael, Antônio. (1998) Um abraço para todos os amigos. Algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF. Soares, Bárbara Musumeci et allii.

17 (2011) Unidades de polícia pacificadora: o que pensam os policiais. Disponível em http://www.ucamcesec.com.br/category/estatisticas/dados-destaque/. Acessado em outubro de 2011.