O Regime Contábil nos Demonstrativos de Resultado Fiscal no Brasil

O Regime Contábil nos Demonstrativos de Resultado Fiscal no Brasil: uma Visão Crítica Selene Peres Peres Nunes Mestre em Economia, Doutoranda do PPGCO...
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O Regime Contábil nos Demonstrativos de Resultado Fiscal no Brasil: uma Visão Crítica Selene Peres Peres Nunes Mestre em Economia, Doutoranda do PPGCONT, Universidade de Brasília-UnB, [email protected].

Ricardo da Costa Nunes Mestre em Economia, Auditor Federal de Finanças e Controle, da Secretaria do Tesouro Nacional-STN, [email protected].

Gileno Fernandez Marcelino Professor Dr. do PPGCONT/FACE, Universidade de Brasília-UnB, [email protected].

Resumo O trabalho apresenta uma visão crítica da adoção do regime de caixa nos demonstrativos de resultado fiscal no Brasil, mostrando que o regime contábil pode contribuir para explicar os desequilíbrios das contas públicas. São analisados também a abrangência conceitual, a consistência metodológica no âmbito da LRF e as fontes de informação utilizadas para apurar os resultados fiscais no Brasil. A teoria neo-institucionalista é utilizada para explicar como a tradição, ou o conceito de path dependence, promove a resistência à adoção do regime de competência e como o conceito de resultado fiscal foi sendo alterado ao longo do tempo sem que a LRF mudasse. É apresentada uma metodologia alternativa, com a utilização do regime de competência, visando à redução das possibilidades de gerenciamento de resultados. Palavras-chave: regime de competência, convergência, resultado fiscal, contabilidade criativa, Lei de Responsabilidade Fiscal

Abstract The paper presents a critical view on the adoption of cash accounting in fiscal results in Brazil, showing that the accounting method may contribute to explain the imbalances in public accounts. The conceptual scope, the methodological consistency within the FRL’s framework and the sources of information used to determine the fiscal results in Brazil are also analyzed. The neo-institutional theory is used to explain how tradition, or the concept of path dependence, promotes the resistance to the adoption of the accrual accounting and how the concept of fiscal result was changed over time without the LRF changing. An alternative methodology is presented, using the accrual accounting, aiming to reduce the possibilities of results management. Key words: accrual accounting, convergence, fiscal result, creative accounting, Fiscal Responsibility Law Método de Pesquisa: MET5 – Ensaio Teórico. Área do Conhecimento da Pesquisa: AT 7 – Contabilidade e Setor Público.

1. Introdução A teoria contábil consagra a adoção do regime de competência para o reconhecimento de receitas e despesas, permitindo evidenciar os custos que serão necessários, em determinado período, para alcançar as receitas esperadas. No setor público, não obstante a teoria contábil seja a mesma, há questionamentos que remontam à necessidade de cumprir a legislação de cada país e à dificuldade de romper com a tradição de apresentar informações orçamentárias ou obtidas pelo regime de caixa. A experiência internacional mostra que a escolha do regime contábil não é trivial e pode enfrentar dificuldades na sua implementação (Flynn, Moretti, & Cavanagh, 2016; Adhikari & Garseth-Nesbakk, 2016; Botelho & de Lima, 2015). O processo de convergência da contabilidade pública brasileira aos padrões internacionais, a partir da Portaria MF nº 184/2008 e do Decreto nº 6.976/2009, resgata a base da teoria contábil. Seria de esperar que, a partir da adoção do regime de competência, fossem geradas as condições necessárias para o cumprimento integral da Lei Complementar nº 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, que foi concebida como uma lei mais patrimonial que orçamentária, mais preocupada com o equilíbrio intertemporal das contas públicas que com o equilíbrio orçamentário em um exercício (Tavares, Manoel, Afonso, & Nunes, 2000, p. 8). No entanto, embora o regime de competência integre o conjunto de regras contábeis da LRF, até 2017, o Manual de Demonstrativos Fiscais-MDF continha padrões de demonstrativos diferentes para a União e para estados e municípios. No caso da União adotava-se o regime de caixa integral; nos estados e municípios, regime de caixa para a receita e despesa liquidada ao longo do exercício, mais próxima do regime de competência. A partir de 2018, o MDF adota o regime de caixa integral para todos (Brasil, 2017, p. 222), aumentando o distanciamento da previsão legal. A Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Informação Contábil de Propósito Geral pelas Entidades do Setor Público, editada pelo Conselho Federal de Contabilidade-CFC em 2016, informa que o objetivo principal do setor público não é gerar lucro, mas prestar serviços à sociedade. Em consequência, a informação mais relevante para subsidiar processos decisórios, prestação de contas e responsabilização não está nas Demonstrações Contábeis, as quais se concentram na evidenciação da situação patrimonial, mas em um conjunto mais amplo de relatórios com base contábil, os Relatórios Contábeis de Propósito Geral das Entidades do Setor Público (RCPGs). Nesse conjunto, se incluem os demonstrativos previstos na LRF, em especial, o Demonstrativo do Resultado Primário e Nominal, que está entre os mais monitorados por formadores de opinião. A literatura, até o momento, não analisou criticamente os demonstrativos da LRF e sua compatibilidade com a legislação, nem a correlação entre esses demonstrativos e a necessidade de evidenciar tempestivamente a situação fiscal do setor público, de modo a subsidiar decisões. Pelas razões expostas, a pesquisa poderia dar uma contribuição efetiva para preencher essas lacunas teóricas. O objetivo do trabalho é analisar a abrangência conceitual, a consistência metodológica, o regime contábil e as fontes de informação utilizadas para apurar os resultados fiscais no Brasil, quais sejam os resultados primário e nominal, apresentando uma proposta metodológica alternativa que reduza as possibilidades de gerenciamento de resultados e aumente a transparência fiscal.

O trabalho é um ensaio teórico, uma investigação de caráter teórico-opinativo, cuja metodologia é, inicialmente, exploratória, conforme Selltiz, Jahoda, Deutsch, & Cook (1974, p. 59). Após esta introdução, a segunda seção do trabalho apresenta um breve histórico do regime contábil na contabilidade pública, discutindo suas vantagens e riscos. Com base em análise da pesquisa bibliográfica, normativa e documental, a terceira seção analisa o efeito da adoção do regime de caixa sobre o Demonstrativo do Resultado Primário e Nominal, bem como a mudança do conceito de resultado primário de 2000 a 2017, destacando as diferenças em relação ao previsto na LRF originalmente. Na compreensão desse processo, é utilizada a teoria neo-institucionalista, notadamente o conceito de path dependence de North (1990) e a taxonomia de Mahoney e Thelen (2010) para mudança institucional gradual, além da terminologia de Sabatier e Weible (2007) para formação de coalizões. Na quarta seção, sugere-se uma metodologia alternativa que reduza as possibilidades de gerenciamento de resultados com o cálculo pelo regime de competência. A quinta seção apresenta as principais conclusões do trabalho. 2. Breve histórico do regime contábil no setor público do Brasil Até a edição da LRF, a Lei nº 4.320, de 1964, havia sido a única norma geral de finanças públicas. No seu art. 35, instituíra um sistema misto em que eram consideradas no exercício financeiro as receitas arrecadadas e as despesas empenhadas: “Art. 35. Pertencem ao exercício financeiro: I - as receitas nele arrecadadas; II - as despesas nele legalmente empenhadas.” (Brasil, 1964). A vantagem desse critério é o respeito ao princípio de prudência, evitando que o gestor considere como pertencentes ao exercício receitas que foram apenas previstas, mas não chegaram a ser arrecadadas, bem como limitando a possibilidade de empenho no orçamento aprovado. É, portanto, o critério mais adequado para o balanço orçamentário, considerando as especificidades da elaboração do orçamento no Brasil. A adoção desse sistema misto aliada à ênfase dada pela Lei nº 4.320/64 às classificações orçamentárias ensejou uma interpretação de que o foco da contabilidade pública deveria estar no orçamento e, não, no patrimônio. Na prática, a difusão dessa interpretação fez com que alguns, equivocadamente, procurassem associar o art. 35 a um “regime contábil”, embora a Lei nº 4.320/64 não utilizasse essa denominação, nem fizesse menção a regime de caixa ou de competência. Além disso, muitos contadores relegaram a segundo plano os aspectos patrimoniais, ignorando até disposições explícitas da própria Lei nº 4.320/64 que se referem ao patrimônio, notadamente os arts. 83 a 105: Art. 83. A contabilidade evidenciará perante a Fazenda Pública a situação de todos quantos, de qualquer modo, arrecadem receitas, efetuem despesas, administrem ou guardem bens a ela pertencentes ou confiados. (...) Art. 85. Os serviços de contabilidade serão organizados de forma a permitirem o acompanhamento da execução orçamentária, o conhecimento da composição patrimonial, a determinação dos custos dos serviços industriais, o levantamento dos balanços gerais, a análise e a interpretação dos resultados econômicos e financeiros. Art. 86. A escrituração sintética das operações financeiras e patrimoniais efetuar-se-á pelo método das partidas dobradas. (...) Art. 89. A contabilidade evidenciará os fatos ligados à administração orçamentária, financeira, patrimonial e industrial. (...) CAPÍTULO III

Da Contabilidade Patrimonial e Industrial Art. 100. As alterações da situação líquida patrimonial, que abrangem os resultados da execução orçamentária, bem como as variações independentes dessa execução e as superveniências e insubsistência ativas e passivas, constituirão elementos da conta patrimonial. (...) Art. 104. A Demonstração das Variações Patrimoniais evidenciará as alterações verificadas no patrimônio, resultantes ou independentes da execução orçamentária, e indicará o resultado patrimonial do exercício. Art. 105. (...) § 5º Nas contas de compensação serão registrados os bens, valores, obrigações e situações não compreendidas nos parágrafos anteriores e que, imediata ou indiretamente, possam vir a afetar o patrimônio. (Brasil, 1964) (grifos nossos) Assim, na interpretação predominante à época da elaboração da LRF, a principal função da contabilidade pública era registrar e evidenciar os atos e fatos em cada uma das etapas da execução orçamentária. Mesmo depois de iniciado o processo de convergência da contabilidade pública brasileira aos padrões internacionais, Dutra e Jesus (2012, p 14) afirmariam que “a maioria dos autores considera o orçamento como a principal referência para a tomada de decisão gerencial e política no setor público”. Na interpretação da equipe que havia elaborado o Projeto da LRF, eram parte integrante do diagnóstico fiscal as deficiências intertemporais do processo orçamentário que permitiam que os governos assumissem dívidas das mais diferentes formas, nem sempre transparentes, absorvendo o bônus presente da despesa e transferindo o ônus para o futuro mais distante possível: o exercício seguinte, o mandato seguinte ou, se possível, as gerações seguintes. Tudo indicava que era preciso fortalecer o orçamento como instrumento de controle do gasto, evitando a recorrente geração de despesas não orçadas que se convertiam em passivos não contabilizados, conhecidos como “esqueletos”, e periódica e tardiamente eram assumidos (Nunes, 1998; Tavares et al., 2000, p. 8). Ao longo do tempo, essa realidade não parece ter se alterado substancialmente, pois Cruvinel e de Lima (2011, p. 83) afirmam que “o que se observa é que no Brasil a Contabilidade do setor público vem evoluindo apenas nos registros eminentemente orçamentários, ela não evidencia todas as contas e “esconde” passivos e despesas devido a formalidades legais e interpretações orçamentárias”. A LRF pretendia atacar as causas estruturais dos desequilíbrios fiscais que escapavam ao controle orçamentário em uma sequência de exercícios, pois independentemente de quão bem elaborado fosse o orçamento, variáveis importantes sempre extrapolavam os controles orçamentários, seja porque já chegavam dadas à elaboração do orçamento (renúncia de receita, despesas obrigatórias de caráter continuado e despesas com pessoal), seja porque tinham efeitos plurianuais não capturados pela anualidade orçamentária (dívida e restos a pagar). Além das variáveis que transcendiam o orçamento no tempo e no objeto, o próprio conceito de equilíbrio orçamentário apenas garantia que para cada despesa de um exercício houvesse uma fonte de receita suficiente, mas, dentre essas fontes, encontravam-se as receitas de operações de crédito e as receitas de privatização, o que permitia a coexistência de equilíbrio orçamentário com dívida em trajetória explosiva e alterações patrimoniais relevantes. Pode-se dizer que o orçamento não era um instrumento suficiente para assegurar o equilíbrio fiscal, nem este poderia ser confundido com o equilíbrio orçamentário.

Desse modo, o objeto da LRF é o equilíbrio intertemporal das contas públicas e não apenas o equilíbrio orçamentário em um exercício. Uma análise sistêmica revela que as variáveis-chave ultrapassam o orçamento. A renúncia de receita refere-se a um não ingresso de receitas no orçamento, não sendo passível de ser por ele controlada e as despesas obrigatórias de caráter continuado já chegam dadas ao orçamento, não sendo passíveis de cortes ou alocações discricionárias. O controle de ambas, tanto em termos de estoques como de fluxos, se dá na margem, no momento da criação da renúncia ou da despesa, sendo fundamental acompanhar os atos que lhes dão origem. A dívida pública é um estoque, um passivo, que ultrapassa o orçamento no tempo - refere-se a vários exercícios – e no objeto – o orçamento prevê a receita e fixa a despesa, mas não contém ativos e passivos. As bases e períodos de cálculo descritos revelam que a LRF ultrapassa a anualidade orçamentária. A receita corrente líquida e a despesa total com pessoal são calculadas numa base móvel de 12 meses, e o limite em relatórios quadrimestrais. As operações de crédito, as antecipações de receita orçamentária e as garantias são controladas, tanto em termos de estoques como de fluxos, na margem, isto é, importa saber qual é o impacto para fins de limite de uma operação de crédito adicional no momento em que está sendo autorizada, antes da sua realização, e não apenas se está autorizada pelo orçamento. Com essas motivações, a LRF foi concebida como uma lei mais patrimonial que orçamentária. Desse modo, embora a contabilidade não fosse o objeto central da lei, a LRF exigiu que a despesa fosse reconhecida por competência para evitar que atrasos de pagamentos do funcionalismo público e dos fornecedores ou postergações de pagamentos em geral promovessem, respectivamente, um ajuste artificial aos limites da despesa com pessoal e à meta de resultado primário, por exemplo. O regime de competência figura como norma imprescindível ao seu cumprimento: Art. 18. (...) § 2º A despesa total com pessoal será apurada somando-se a realizada no mês em referência com as dos onze imediatamente anteriores, adotando-se o regime de competência. Art. 50. (...) II - a despesa e a assunção de compromisso serão registradas segundo o regime de competência, apurando-se, em caráter complementar, o resultado dos fluxos financeiros pelo regime de caixa. (grifos nossos) Já no que se refere à receita, considerou-se mais prudente, para a apuração de limites e metas fiscais, o regime de caixa para evitar que o Estado “criasse” receitas que ainda não ingressaram como forma de se ajustar artificialmente. A opção foi, assim, pelo critério mais rígido, conservador, considerado mais prudente, visto que ofereceria menos espaço à contabilidade criativa. Borges, Mario, Cardoso, & Aquino (2010) consideram o regime contábil adotado na LRF um regime misto. O Anteprojeto original, encaminhado em dezembro de 1998, já continha referência ao regime de competência, com texto bastante similar ao que seria convertido no art. 50 da LRF, conforme se observa na primeira coluna da tabela 1. Observa-se, ainda, que, na redação do Anteprojeto, havia uma conexão explícita entre despesas por competência, resultados fiscais e patrimônio líquido. Durante a discussão do Projeto na Câmara dos Deputados, no entanto, ocorreu uma tentativa de recuperação de algumas propostas do Projeto de Lei Complementar

(PLP) nº 135, de 1996, que visava substituir a Lei nº 4.320/64 e estava em tramitação. Diferentemente do Projeto da LRF, a organização desse texto seguia a ordem cronológica do ciclo de gestão, iniciando no planejamento e indo até o controle. Embora o Poder Executivo tenha atuado no sentido de manter o conteúdo original do Projeto da LRF, o desagrupamento de dispositivos alterou a forma final do texto. Assim, a redação da lei sancionada passou a exigir do leitor uma compreensão mais sistêmica. É preciso, por exemplo, compreender que o art. 50, que estabelece normas de contabilidade pública, exceto por ressalva expressa, aplicase à lei como um todo, inclusive ao estabelecimento de metas fiscais. Tabela 1: Comparação entre o Anteprojeto da LRF e o texto da LRF sancionado Texto do Anteprojeto, em 1998

LRF, em 2000

Art. 61. A apuração, a quantificação e a Art. 50. Além de obedecer às demais classificação das transações governamentais normas de contabilidade pública, a observarão os seguintes preceitos gerais: escrituração das contas públicas observará as seguintes: I- os registros, as classificações e as declarações e relatórios devem atender aos princípios e práticas contábeis geralmente aceitos; II- a despesa, inclusive com o serviço da II - a despesa e a assunção de compromisso dívida, e a assunção de qualquer serão registradas segundo o regime de compromisso pelo poder público serão: competência, apurando-se, em caráter complementar, o resultado dos fluxos a) registradas segundo o período de financeiros pelo regime de caixa; competência em que são realizadas e assumidas, devendo, em caráter complementar, ser apurado o resultado global de seus fluxos financeiros; .... III- os resultados fiscais devem: a) evidenciar, em um período, as diferenças entre receitas e despesas e as variações da dívida e do patrimônio líquido, bem como demonstrar a consistência e a coerência entre tais resultados; ....

Art. 4º, §2º, II - demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional;

V- a situação do patrimônio líquido deve ser evidenciada ao final de cada período de competência, bem como suas variações e os efeitos decorrentes das transações realizadas durante tal período.

Art. 4º, §2º, III - evolução do patrimônio líquido, também nos últimos três exercícios, destacando a origem e a aplicação dos recursos obtidos com a alienação de ativos;

Fonte: LRF e Anteprojeto da LRF. Elaboração própria. (grifo nosso)

Constata-se que, tanto no Anteprojeto da LRF como no texto da LRF sancionado, admitia-se a utilização do regime de caixa para despesas apenas de forma complementar. A ideia era que o conhecimento dos fluxos de caixa poderia auxiliar na circularização, permitindo o confronto de informações. Poderia, ainda, ser interesse para a política monetária, pelo fato de os fluxos de recebimentos e pagamentos do setor público afetarem a liquidez da economia. Na apuração dos resultados fiscais oficiais, no entanto, deveria prevalecer o regime de competência. Entretanto, a adoção do regime de competência para despesas, suscitou muitas dúvidas entre gestores, contadores e auditoresi, especialmente pelo confronto com a visão orçamentária predominante na cultura do setor público. Como, então, iriam conviver as duas leis, já que a LRF não havia revogado a Lei nº 4.320? Como utilizar informações por competência se esse registro sequer existia à época? Como cumprir a LRF nesse contexto? E, finalmente, por que o legislador da LRF havia buscado uma ruptura tão radical? A convivência entre as duas leis seria buscada pelo entendimento de que a coexistência de duas abordagens, uma orçamentária e outra patrimonial apenas ampliaria as informações disponibilizadas ao usuário, permitindo avançar na transparência da gestão fiscal. É claro que isso exigia a separação conceitual entre o orçamento e o patrimônio, na medida em que os regimes contábeis utilizados em cada caso deveriam estar claramente estabelecidos. Um obstáculo a essa separação foi o fato de haver uma sinonímia na contabilidade pública, onde se atribui a mesma nomenclatura a variáveis conceitualmente distintas. A origem é a própria Constituição Federal que, na seção sobre orçamentos, faz várias referências a receitas e despesas que não têm conteúdo semântico patrimonial; dizem respeito a receitas orçamentárias e despesas orçamentárias. Para solucionar o impasse, a Secretaria do Tesouro Nacional – STN, ao editar o MDF, optou por referir-se às receitas e despesas no sentido patrimonial como variações patrimoniais aumentativas e diminutivas. Ressalte-se, no entanto, que, no Brasil, a adoção do regime de competência na contabilidade patrimonial não teve nenhum efeito na contabilidade orçamentária, onde continuou sendo utilizado o regime de caixa para receitas e o empenho para despesas. A adoção de regime de competência, não requer que sejam eliminadas as informações obtidas pelo regime de caixa. Isso é verdade quando o regime de competência é utilizado apenas na contabilidade patrimonial, como no Brasil, ou quando é usado também no orçamento, como no Reino Unido. Ao contrário, como prevê a LRF, o uso complementar do regime de caixa é altamente recomendável. Nesse sentido, observa Hoek (2005, p. 37): Notably, accrual accounting does not require the abolition of cash-based appropriations. Some critics point out that an accrual budgeting system cannot be the system for a government for two reasons. First, budgetary laws often require the legislature to authorize cash payments. Second, an accrual system is tailored to income formation: it matches revenues and cost. In the public sector, however, it is impossible to match tax revenues with production cost. Ao longo dos dezessete anos de vigência da LRF, ocorreram transformações importantes que impulsionaram o fortalecimento da contabilidade pública e a adoção do regime de competência integral. O processo de convergência da contabilidade pública brasileira aos padrões internacionais, a partir da Portaria MF nº 184/2008 e do Decreto nº 6.976/2009, impôs a perspectiva patrimonial e a adoção do regime de competência integral, conforme a IPSAS 1– Apresentação das Demonstrações Contábeis (IFAC, 2010).

A adoção do regime de competência no Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público-MCASP foi objeto de análise e de intenso debate no Tribunal de Contas da União, que apreciou a pertinência do processo de convergência para as normas internacionais de contabilidade pública no âmbito do Acórdão TCU nº 158/2012. A decisão foi pela adoção do regime de competência mas, no processo, debateu-se os riscos para a gestão fiscal. A análise técnica demonstrava receio de que o regime de competência abrisse novas possibilidades de descumprimento da LRF, pela superestimação de receitas: “Com a alteração do regime contábil, os ‘haveres financeiros’ passarão a incorporar itens cujo valor será registrado por estimativa, possibilitando que os entes federados controlem seu endividamento líquido por intermédio de receitas ‘superestimadas’.” (TCU, 2012). Sabe-se que o gerenciamento de resultados e o recurso à contabilidade criativa não são uma exclusividade do setor público, nem do Brasil. A prática no setor privado foi analisada por diversos autores estando associada ao regime de competência (ver, por exemplo, Baraldi (2012) e Martinez (2008)). Então, essa experiência demonstra que a mera adoção do regime de competência certamente não é suficiente para evitar a contabilidade criativa. No entanto, tampouco se pode afirmar que a convergência às normas internacionais, com a consequente adoção do regime de competência, seja responsável por gerar contabilidade criativa. As normas contábeis, por melhores que sejam, não afastam o risco da má gestão, especialmente se a cultura de responsabilidade fiscal não estiver consolidada. A próxima seção analisa as consequências da utilização do regime de caixa no Demonstrativo do Resultado Primário e Nominal. 3. Efeitos do regime de caixa no demonstrativo do resultado primário e nominal O objetivo do resultado primário é medir o esforço fiscal do governo no momento atual, medir o quanto o governo atual contribui para a sustentabilidade da política fiscal, ou seja, desconsiderando o peso da dívida contraída no passado. O resultado primário não é uma “economia para pagamento de juros”, não é poupança, mas permite medir a capacidade do governo de pagar suas dívidas. Por essa razão, o resultado primário é o componente nãofinanceiro do resultado fiscal e seu cálculo se dá excluindo receitas e despesas financeiras, além de receitas de privatização. Porém, o resultado primário não é a melhor medida fiscal, pois a dívida e os juros que incidem sobre ela deverão ser pagos independentemente da gestão em que tenham se tornado compromissos. A melhor medida da situação fiscal presente é, portanto, o resultado nominal. Para obtê-lo, devem ser consideradas as receitas e despesas financeiras. A LRF previu que o projeto de lei de diretrizes orçamentárias, que precede a elaboração do orçamento, deveria conter um Anexo de Metas Fiscais, com metas anuais para três exercícios relativas receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública. O cumprimento das metas fiscais deveria ser monitorado ao longo do exercício e, quando verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderia não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal, deveria ocorrer limitação de empenho e movimentação financeira, restringindo a execução orçamentária e financeira de modo a assegurar o cumprimento das metas. Também no caso de o limite da dívida consolidada ser ultrapassado ao final de um quadrimestre, deveria ser gerado o resultado primário necessário à recondução ao limite, inclusive por meio de limitação de empenho. A cada bimestre, o Relatório Resumido de Execução Orçamentária evidenciaria, dentre outros, os resultados primário e nominal, bem como as justificativas da limitação de empenho e da

frustração de receitas, quando ocorressem. Há, portanto, uma coerência interna que une o estabelecimento de metas fiscais, o seu monitoramento, as medidas de gestão necessárias ao cumprimento e, por fim, a evidenciação (Brasil, 2000, arts. 4º, §1º, 9º, caput, 31, caput e §1º, II e 53, III e §2º). Quando a LRF entrou em vigor, o cálculo dos resultados primário e nominal precisou utilizar os sistemas e as informações disponíveis, naquela ocasião, restritas às receitas e despesas orçamentárias, bem como a informações geradas pelo regime de caixa e obtidas junto ao sistema financeiro. Seria de esperar que, a partir da adoção do regime de competência para ativos, passivos, patrimônio líquido, variações patrimoniais aumentativas e diminutivas, fossem geradas as condições necessárias para o cumprimento integral da LRF. Contudo, paralelamente ao desenvolvimento da contabilidade patrimonial, proliferaram várias interpretações que se distanciaram da interpretação original da LRF e os modelos dos Demonstrativos nem sempre acompanharam a disponibilidade de informações. Por algum tempo, a alegação em prol da utilização do regime de caixa era de que o País ainda estava em fase inicial do processo de convergência para as normas internacionais de contabilidade pública e o regime de competência ainda não estava plenamente implantado. Contudo, o Sistema de Informações de Custos (SIC) do Governo Federal já utilizava uma metodologia que se aproximava do regime de competência, partindo das informações na fase de liquidação das despesas. Uma possível explicação para a tradição de utilizar o regime de caixa está no conceito de path dependence de North (1990), que mostra como o conjunto de decisões que se enfrenta para qualquer circunstância é limitado pelas decisões que já realizou no passado, mesmo que as circunstâncias passadas possam deixar de ser relevantes. Por tradição, os resultados fiscais mais consultados por formadores de opinião, inclusive investidores do mercado financeiro, são os divulgados pelo Banco Central, que utiliza o conceito abaixo da linha, mostrando como o resultado foi financiado, com base em informações dos credores. Por muito tempo, esse sistema foi considerado uma fonte mais confiável que a contabilidade porque captava a informação dos credores e, não, dos devedores. Então, mesmo após o desenvolvimento da contabilidade, os usuários poderiam sentir-se mais confortáveis em utilizar estatísticas abaixo da linha, simplesmente por estarem familiarizados. O Banco Central mantém o Sistema de Registro de Operações de Crédito com o Setor Público- Cadip, onde as instituições financeiras informam, mensalmente e por contrato, a variação da dívida de todas as entidades públicas junto aos bancos. O resultado nominal abaixo da linha corresponde à variação de dívida fiscal líquida no período. Como os contratos permitem identificar os indexadores associados e como sua variação no período é conhecida, calcula-se uma proxy dos juros incidentes sobre o montante da dívida. Chega-se, então, ao resultado primário. Antes da LRF, a STN já publicava mensalmente o Resultado do Tesouro Nacional, incluindo a Previdência Social e o Banco Central, conforme mostra a tabela 2. Neste caso, o resultado primário, item VI da tabela 2, é apurado pelo critério acima da linha, isto é, pelo método que permite explicar, pelo comportamento das receitas e despesas, como foi gerado o resultado, com informações da contabilidade.

Para compatibilizar esse valor com o resultado primário apurado pelo Banco Central, item IX da tabela 2, é acrescentado um ajuste metodológico referente a recursos transitórios da amortização de contratos de Itaipu com o Tesouro Nacional (informação extra-contábil) e, por diferença, uma discrepância estatística. Esta discrepância estatística tem como única função tornar o resultado primário acima da linha igual ao resultado primário abaixo da linha e não corresponde a nenhum conceito específico, sendo atribuída genericamente a diferenças de abrangência ou período da compilação (Brasil, 2012, p. 9). Tabela 2: Resultado do Tesouro Nacional

Fonte: Resultado do Tesouro Nacional, Secretaria do Tesouro Nacional. Sabe-se, pelo Manual de Estatísticas Fiscais, que as Necessidades de Financiamento do Setor Público-NFSP no conceito nominal correspondem à variação nominal dos saldos da dívida líquida, deduzidos os ajustes patrimoniais e metodológicos “para retirar dos fluxos valores que não representam esforço fiscal despendido durante o período em análise” (Brasil, 2012). O ajuste metodológico exclui a desvalorização cambial da dívida externa líquida e da dívida interna atrelada ao câmbio, justificando que “a variação do câmbio para o detentor do título atrelado à moeda estrangeira não significa incremento real na sua renda, ou seja, o impacto sobre a demanda tende a ser neutro”. Os Acórdãos nº 435/2009-TCU-1ª Câmara e 5403/2009-TCU-1ª Câmara, questionaram a utilização do resultado nominal sem desvalorização cambial. No caso de depreciação cambial, o resultado nominal com desvalorização é maior (mais negativo) do que o resultado nominal sem desvalorização. Assim, em cumprimento aos Acórdãos, a partir do 1º quadrimestre de 2010, os demonstrativos da LRF passaram a utilizar os dados do SIAFI, que incluem desvalorização cambial. ii O ajuste de privatização faz com que sejam excluídas receitas decorrentes da privatização de estatais, por se entender que não representam esforço fiscal do governo. No entanto, receitas de outras alienações de ativos, que podem ser observadas na contabilidade, são mantidas, o que não parece ser um critério muito rigoroso. Os ajustes de reconhecimentos de dívidas também são realizados para excluir dívidas que foram contraídas anteriormente e passaram a ser contabilizadas apenas no período (“esqueletos” e reclassificação de contas). É interessante constatar que o ponto de partida do conceito de Necessidades de Financiamento do Setor Público-NFSP no Governo Central, item XIX da tabela 2, o resultado nominal abaixo da linha, calculado pelo Banco Central, mistura regimes de caixa e competência, o que dá origem a um ajuste de caixa e competência “para compatibilizar estoques e fluxos”.

As NFSP apuram o resultado pelo regime de caixa, à exceção dos resultados de juros, que são apurados pelo regime de competência. Isso significa que as despesas públicas (exceto os juros) são consideradas como déficit no momento em que são pagas, e não quando são geradas. O mesmo vale para as receitas, que são computadas no momento em que entram no caixa do governo, e não no momento em que ocorre o fato gerador. (Brasil, 2012, p. 10) O Banco Central tem enforcement para solicitar das instituições financeiras informações sobre créditos e haveres do setor público. Contudo, essa informação não explica resultados, não é completa porque não inclui dívidas que não tenham sido contraídas junto aos bancos e, em virtude da confidencialidade garantida pelo sigilo fiscal, não é possível dar publicidade ao detalhamento dos cálculos. Atualmente, a contabilidade permite fornecer informações mais abrangentes que no passado, tanto acima da linha como abaixo da linha, tanto pelo regime de caixa como pelo regime de competência, com as vantagens de não utilizar proxies e de oferecer explicações sobre o comportamento dos resultados. No entanto, ao estabelecer padrões para os demonstrativos previstos na LRF, resistiu-se à ideia de adotar as informações acima da linha pelo regime de competência e buscou-se uma compatibilização entre os resultados acima da linha calculados pela STN com os resultados abaixo da linha, calculados pelo Banco Central. Como o Banco Central compara fluxos financeiros, o único regime contábil que permite essa compatibilização é o regime de caixa. Foi assim que o padrão do Demonstrativo de Resultado Primário adotou o regime de caixa. Isto é, a hipótese ad hoc bastante questionável é que o resultado primário calculado pelo Banco Central é o correto, o oficial, enquanto o que provém da contabilidade deve ajustar-se. No que parece ser uma extensão do raciocínio que diz ser possível a convivência da contabilidade orçamentária com a contabilidade patrimonial, propagou-se a interpretação que assume haver três mundos – orçamentário, patrimonial e fiscal (Brasil, 2016 b, p. 23/24). Essa tese, além de ter sido adotada no MDF, foi corroborada por Carvalho Júnior e Feijó (2015, p. 36-37) que, ao defenderem a apuração de resultados fiscais pela variação de endividamento abaixo da linha, assumem que nos três “mundos” deveriam ser utilizados critérios contábeis diferentes. A dificuldade básica consiste em ignorar que os “mundos” não são estanques, comunicam-se, e no caso da dívida, essencialmente uma variável patrimonial, o único regime que faz sentido é o de competência. Outro aspecto é a finalidade do Demonstrativo do Resultado Primário e Nominal. O MCASP parece ignorar que o objetivo desse demonstrativo é fornecer informações úteis para a tomada de decisão: (...) as demonstrações contábeis e as diretrizes para relatórios fiscais têm objetivos diferentes. O objetivo das demonstrações contábeis das entidades do setor público é o fornecimento de informações úteis sobre a entidade que reporta a informação, voltadas para fins de prestação de contas e responsabilização (accountability) e para a tomada de decisão. Os relatórios fiscais são utilizados, principalmente, para: (a) analisar opções de política fiscal, definir essas políticas e avaliar os seus impactos; (b) determinar o impacto sobre a economia; e (c) comparar os resultados fiscais nacional e internacionalmente. (Brasil, 2016 b, p. 23/24) A informação dos demonstrativos fiscais integra a prestação de contas e pode ensejar responsabilização do gestor. Pela LRF, a limitação de despesas orçamentárias é mandatória,

caso haja indicação de que as metas de resultado não serão cumpridas As outras possibilidades de utilização da informação citadas pelo MCASP são, na verdade, complementares. Essa pretensa separação parece ter sido uma forma de conciliar a exigência legal da adoção do regime de competência com a continuidade da prática de adoção do regime de caixa. Justificou-se que o regime de competência seria apenas para a contabilidade patrimonial, enquanto o regime de caixa integral continuaria sendo utilizado no cálculo dos resultados primário e nominal. Além da tradição, ou o conceito de path dependence, a resistência à adoção do regime de competência também pode ser, em parte, explicada por atitudes oportunistas de uma gestão pouco identificada com a responsabilidade fiscal. Não se pode ignorar que a alternância política na União, em 2003, fortaleceu a coalizão pró-gasto permitindo que retornasse com maior força ao embate. Numa aplicação da terminologia dos autores do Advocacy Coalition Framework-ACF, diante da impossibilidade de alterar a LRF pela via legislativa, enfrentando as policy core beliefs, os limites, metas e regras específicas da legislação, a contabilidade criativa pode ter permitido que os secondary beliefs, os aspectos operacionais e contábeis, alterassem a LRF na prática, sem mudanças legislativas (Sabatier, & Weible, 2007). Tal explicação está de acordo também com a taxonomia de Mahoney e Thelen (2010) para mudança institucional gradual. Os manuais editados pela STN e a edição anual de leis de diretrizes orçamentárias permitiriam um acréscimo em camadas (layering), adicionando novas interpretações às regras originais da LRF e mudando o seu impacto. Esse efeito foi amplificado quando a coalizão pró-gasto chegou ao poder, em 2003, e quando a mudança do cenário externo, em 2009, forneceu argumentos para o aumento do gasto público. Esse é o processo conhecido como deslizamento (drift), em que as regras continuam as mesmas, mas seu impacto muda devido a alterações no contexto/ambiente. Como se verá, a tese de que o resultado fiscal deveria ser calculado pelo regime de caixa pode gerar problemas de consistência interna no cumprimento da LRF. Um indício neste sentido é o fato de que, apesar da previsão explícita do regime de competência na LRF, até 2017, o MDF continha padrões de demonstrativos diferentes para a União e para estados e municípios. A União adotava, para o cálculo do seu resultado primário, o regime de caixa integral para receitas e despesas (ver conceitos de receitas realizadas e despesas pagas em Brasil (2013, pp. 242 e 245). Enquanto isso, a União normatizava o cálculo do resultado primário para estados e municípios pelo critério misto, ou seja, caixa para receitas e liquidação para despesas ao longo do exercício e empenho para despesas no fim do exercício (Brasil, 2013, pp. 228, 229 e 233). Durante o exercício, não deverão ser incluídos os valores das despesas empenhadas que ainda não foram liquidadas. No encerramento do exercício, as despesas empenhadas, não liquidadas e inscritas em restos a pagar não processados, por constituírem obrigações preexistentes, decorrentes de contratos, convênios e outros instrumentos, deverão compor, em função do empenho legal, o total das despesas executadas. Portanto, durante o exercício, são consideradas despesas executadas apenas as despesas liquidadas e, no encerramento do exercício, são consideradas despesas executadas as despesas liquidadas e as inscritas em restos a pagar não processados (Brasil, 2013, p. 233). Isto é, até a 5ª edição do MDF, o Governo Federal adotava explicitamente um critério contábil para si e outro para os demais entes da Federação. Na passagem da 5ª para a 6ª edição

do MDF, o texto acima referente às despesas foi suprimido, sem que nenhuma explicação fosse dada na Síntese das Alterações, divulgada no sítio da STNiii. Permaneceu, no entanto, o mesmo modelo de Demonstrativo, que identificava despesas empenhadas, liquidadas e pagas, agora sem esclarecer qual conceito deveria ser utilizado para o cálculo do resultado primário. Apenas na 8ª edição, o MDF passa a prever o regime de caixa para todos os entes unificando a metodologia de União, estados e municípios de maneira contrária ao que prevê a LRF. Paradoxalmente, o argumento utilizado pelo MDF é que o resultado apurado pelo regime de caixa seria o mais adequado aos propósitos da legislação porque permitiria identificar o impacto sobre a dívida: Nesse sentido, serão consideradas receitas primárias, para fins do arcabouço normativo criado pela LRF e pela RSF nº 40/2001, aquelas receitas orçamentárias que efetivamente diminuem o montante da DCL, ou seja, que aumentam as disponibilidades de caixa do ente sem um equivalente aumento no montante de sua dívida consolidada, excetuadas aquelas com características financeiras (como juros sobre empréstimos concedidos ou remunerações de disponibilidades financeiras) e aquelas fruto de alienação de investimentos. As receitas primárias são, portanto, receitas orçamentárias apuradas necessariamente pelo regime de caixa. Da mesma forma, são despesas primárias aquelas despesas orçamentárias, apuradas pelo regime de caixa, que diminuem o estoque das disponibilidades de caixa e haveres financeiros sem uma contrapartida em forma de diminuição equivalente no estoque da dívida consolidada (Brasil, 2017a, p. 218). O modelo do Demonstrativo dos Resultados Primário e Nominal da União acima da linha, definido pela 8ª edição do MDF, aplicável a 2018, evidencia as receitas e despesas orçamentárias pelo regime de caixa integral, segundo o conceito de pagamento efetivo, que corresponde ao valor do saque efetuado na Conta Única. As informações são extraídas do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal-SIAFI que registra, dentre outros, a contabilidade orçamentária e patrimonial. Na contabilidade orçamentária, há registro da receita arrecadada e das três fases da despesa (empenho, liquidação e pagamento). Para a apuração do resultado primário, basta que se considere as receitas arrecadadas e as despesas pagas do exercício, bem como os Restos a Pagar Processados e Não Processados, que se referem à execução financeira de orçamentos de exercícios anteriores, mas foram pagos neste exercício. A segunda parte do modelo, pela primeira vez, unifica os demonstrativos dos resultados primário e nominal da União e de estados e municípios, passando-se a adotar o regime de caixa integral para todos (Brasil, 2017, p. 222), o que poderá estender para a Federação os problemas que serão analisados a seguir. Ao comparar o acima da linha e o abaixo da linha, o demonstrativo deixa claro que há duas opções de resultado, conforme a fonte de informação, posto que, diferentemente do Resultado do Tesouro Nacional, a discrepância estatística não está contemplada. Um aspecto importante que não fica claro no MDF é qual será a fonte da informação oficial para fins de comparação com as metas de dívida e de resultados primário e nominal no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO. Ademais, tanto o acima da linha como o abaixo da linha adotam o regime de caixa, que tem gerado vários estímulos à irresponsabilidade fiscal. Tornou-se comum, principalmente de 2009 a 2012, a postergação de pagamentos de despesas, operacionalizada por vários

mecanismos. O principal deles foi o aumento exponencial dos Restos a Pagar, como se observa no gráfico 1. Gráfico 1: Restos a Pagar inscritos, em R$ bilhões

Fonte: TCU (2013, p. 118), referente às Contas de 2012. Uma das possíveis causas do crescimento de 87% na inscrição de restos a pagar entre 2008 e 2012 (TCU, 2013, p. 118) é o fato de que o atraso nos pagamentos elevava, sem nenhum esforço fiscal, o resultado primário apurado pelo regime de caixa. O não pagamento das despesas faz com que a execução financeira do exercício seguinte seja muito afetada porque, como o orçamento não reserva espaço fiscal para tal execução, ou outras despesas precisam ser cortadas para que estas sejam pagas, ou, o que é mais frequente, as despesas dos exercícios seguintes vão sendo roladas de forma crescente. Há também outro efeito perverso: vender para um governo que demora a pagar torna-se arriscado, o que tende a aumentar os preços praticados pela iniciativa privada nas contratações com o setor público. Tal proceder gera consequências para o cálculo dos resultados fiscais. O efeito das decisões fiscais não é conhecido no momento em que as decisões são tomadas e, em virtude da rolagem crescente, frequentemente, só é evidenciado muito tempo depois quando o pagamento dessas despesas impacta o cálculo do resultado primário. Na prática, pelo regime de caixa, as despesas podem continuar sendo geradas desde que não sejam pagas, o que não atende ao objetivo da LRF ao prever o estabelecimento da meta fiscal. As análises do TCU, no âmbito do Acórdão nº 825/2015, também indicaram que o Governo Federal vinha, há algum tempo, utilizando várias operações entre o Tesouro, o Fundo Soberano e o BNDES, bem como entre o Tesouro, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, para gerenciar resultados. Os subterfúgios conhecidos como contabilidade criativa ou “pedalada fiscal” envolvem mais de dez operações de antecipação de receita e postergação de despesa, de acordo com Roarelli, Ornelas Neto, & Brown Filho (2014). Safatle, Borges, & Oliveira (2016, p. 117) também descrevem o ritual de espera dos servidores responsáveis pela emissão de ordens bancárias, os quais deveriam aguardar o encerramento do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal- SIAFI, às 17h e 10 min, para fazerem pagamentos que, desse modo, só seriam computados no dia seguinte. Outra distorção é a geração de saldos financeiros vinculados (despesas com saúde e educação, por exemplo) que geram resultado primário pelo regime de caixa, mas não podem ser utilizados para pagar a dívida. O correto seria que apenas fossem computadas no cálculo do primário as diferenças entre receitas e despesas que podem ser utilizadas para abater a dívida, o que também seria solucionado pela adoção do regime de competência.

Além da perpetuação do regime de caixa, a edição anual de LDOs permitiu um acréscimo em camadas (layering) no conceito de resultado primário. Pela LRF, a abrangência do cálculo deveria ser o ente da Federação (que exclui empresas estatais não dependentes) em todas as etapas, da meta à apuração do resultado primário e da dívida. Isto porque o objetivo das estatais não dependentes deve ser o lucro e, quando a gestão das empresas funciona adequadamente, não dependem de recursos do Tesouro, mas apenas pagam dividendos ao seu controlador. A lógica, portanto, é distinta das demais organizações do Estado, e sobre elas se exerce menor controle e há menor condição de induzir a geração de resultados fiscais. No entanto, de 2001 em diante, passou-se a admitir nas LDOs a compensação de frustração da meta dos orçamentos fiscal e da seguridade social por excedente do resultado das empresas estatais não dependentes. Era uma forma de inflar o resultado primário. Contudo, quando, em 2009, os resultados das estatais começaram a ser afetados pela crise fiscal, a LDO passou a excluir as empresas do Grupo Petrobras da meta de superávit primário. Em 2010, passou a excluir também as empresas do Grupo Eletrobras. Em 2015, a LDO cria a meta de superávit primário para o setor público consolidado não financeiro, fixando em zero a meta das estatais não dependentes e criando uma meta para o conjunto de Estados, Distrito Federal e Municípios, passando a admitir uma compensação com o resultado desses entes, metodologia que vigora até 2017, último ano de análise. O que causa maior estranheza é que a União não tem nenhuma ingerência sobre os resultados fiscais de governos subnacionais. A abrangência variável das metas fiscais na LDO, ora incluindo, ora excluindo empresas estatais e até mesmo outros entes, é oportunista e gera inconsistências ao longo do tempo. Outro layering da LDO diz respeito ao conceito de resultado primário em si. À exceção dos anos de 2003 a 2008 e em 2012, em todos os outros anos a meta fiscal foi alterada explicitamente pela alteração da LDO. Frequentemente, porém, outras alterações implícitas tiveram lugar, como a introdução de redutores a partir de 2005, quando foi criado o inusitado conceito de “despesa primária que não impacta o resultado primário”. Desde 2005, passaram a ser excluídas despesas orçamentárias com investimentos, o orçamento de investimento das empresas estatais (em 2008 e 2010), o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (de 2009 a 2015), os respectivos restos a pagar, o excesso verificado em relação à meta de superávit primário no ano anterior (em 2007, 2010 e 2011) e as desonerações de tributos (em 2013 e 2014). Em 2015, foram também excluídas das despesas primárias: eventual frustração da receita estimada com receita de concessões e permissões relativas aos leilões das Usinas Hidroelétricas - UHEs não renovadas (estimadas em R$ 11,05 bilhões), o pagamento de passivos e valores devidos ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES a título de equalização de taxa de juros apurados até o final do primeiro trimestre de 2014, correspondente aos períodos anteriores ao segundo trimestre de 2014, ao Banco do Brasil relativos à equalização de taxas Safra Agrícola e Título e Créditos a Receber - Tesouro Nacional, exclusive os valores devidos referentes ao segundo semestre de 2014 e primeiro semestre de 2015, à Caixa Econômica Federal a título de remuneração bancária de serviços prestados (no total, R$ 57,013 bilhões). O ponto de partida para o estabelecimento das metas fiscais na LDO é a diferença entre a variação da dívida prevista e a variação da dívida desejada, que equivalem ao resultado primário requerido, ou seja, a meta de resultado primário requerido. Tradicionalmente, a fonte da informação tem sido a dívida apurada pelo Banco Central, pelo regime de caixa. Como se sabe, esse valor não é igual à dívida que consta da contabilidade, cuja abrangência é maior

porque não se restringe à dívida bancária, inclui desvalorização cambial e é apurada pelo regime de competência. O ideal seria apurar os resultados primário e nominal por competência, com base em informações contábeis, identificando claramente as variações de receitas e despesas que explicam o resultado. Autores como Pigatto (2004, pp. 156-157) argumentam que a ênfase do resultado primário pelo regime de caixa “está restrita ao curto prazo”, o que justificaria que “o GFS do FMI sugere uma análise fiscal de longo prazo a partir do uso de um regime de competência no sistema contábil, que serve de base para a elaboração dos indicadores fiscais.” Isso não impediria que os resultados continuassem a ser, complementarmente, apurados abaixo da linha pelo regime de caixa, como prevê a LRF, permitindo a circularização das informações fornecidas pelos devedores. 4. Efeito do regime de competência no demonstrativo do resultado primário e nominal O estabelecimento de padrões para os demonstrativos da LRF exige que se analise a funcionalidade intrínseca de cada demonstrativo previsto pela LRF, em aderência à análise sistêmica dos dispositivos da lei e adotando o regime contábil e os critérios de mensuração mais adequados aos seus propósitos, de modo a não comprometer os objetivos de controle e de transparência. Essa resistência em adotar o regime de competência pode ter consequências para a evidenciação da situação fiscal do setor público. Segundo Chan (2010, pp. 8-9), “A incapacidade de confrontação de ativos e passivos financeiros, em termos de quantidade e tempo, é uma das causas fundamentais dos problemas de liquidez e solvência, o que poderia se converter em uma crise fiscal de grandes proporções.” Isto porque a sustentabilidade da política fiscal está associada a uma medida do equilíbrio fiscal intertemporal, dado pela compatibilidade ao longo do tempo de receitas e despesas, considerando o pagamento da dívida. Assim, o comportamento de receitas e despesas deveria refletir-se na deterioração dos resultados fiscais. Não por acaso, principalmente após 2009, os desequilíbrios fiscais foram se tornando cada vez menos transparentes. Parte da responsabilidade pode ser atribuída aos conceitos de resultado adotados no setor público que apresentam várias deficiências e dificultam a mensuração correta. A adoção de critérios inadequados para a elaboração desses demonstrativos pode comprometer a essência da informação evidenciada para os usuários. Isso talvez ajude a compreender por que um aumento de despesa capaz de provocar desequilíbrios das contas públicas da magnitude verificada foi possível apesar das regras fiscais estabelecidas pela LRF. A tabela 3 apresenta uma comparação entre os resultados primário e nominal calculados pelo regime de caixa e a proposta deste trabalho de que ambos sejam calculados pelo regime de competência, com base em informações da contabilidade. A primeira coluna refere-se ao resultado primário pelo regime de caixa, com base em informações da contabilidade. Trata-se, resumidamente, do Resultado do Tesouro Nacional apresentado na tabela 2. A segunda coluna refere-se ao resultado nominal pelo regime de caixa, com base em informações do Banco Central. A terceira coluna foi obtida a partir da Demonstração das Variações Patrimoniais (DVP) do Balanço Geral da União. Para calcular o resultado nominal, pelo regime de competência, considerou-se que: a receita total corresponde às variações patrimoniais aumentativas; a transferência por repartição de receita corresponde

às transferências intergovernamentais; e a despesa total corresponde às variações patrimoniais diminutivas. Para calcular o resultado primário, pelo regime de competência, considerou-se que: as receitas financeiras que devem ser subtraídas das receitas totais são as variações patrimoniais aumentativas financeiras; e as despesas financeiras que devem ser subtraídas das despesas totais são as variações patrimoniais diminutivas financeiras. A discrepância estatística, neste caso, não existe. Seria possível, com base nos dados, subtrair das variações patrimoniais aumentativas os ganhos com alienação e das variações patrimoniais diminutivas as perdas com alienação. Contudo, optou-se por não fazê-lo porque não parece fazer muito sentido na metodologia atual a exclusão de receitas de privatização e a não exclusão de outras alienações. Uma limitação encontrada no cálculo é que não há no Balanço Geral da União dados do Fundo Soberano para fazer o comparativo. Contudo, como o valor não é expressivo, optou-se por excluí-lo. Tabela 3: Resultados Primário e Nominal pelos Regimes de Caixa e de Competência

Fonte: Resultado do Tesouro Nacional, Secretaria do Tesouro Nacional; Necessidades de Financiamento do Setor Público sem desvalorização cambial, Banco Central do Brasil; Balanço Geral da União, Secretaria do Tesouro Nacional. Notas: 1-Apurado pelo conceito de pagamento efetivo, que corresponde ao valor do saque efetuado na Conta Única; 2- Exclui duplicidades sem efeitos no resultado primário consolidado; 3- Recursos transitórios referentes à amortização de contratos de Itaipu com o Tesouro Nacional; 4- No caso do regime de caixa, apurado pelo critério abaixo da linha, sem desvalorização cambial. O cálculo assim realizado permite perceber que o déficit primário seria R$ 125 bilhões maior em 2015 e R$ 389 bilhões maior em 2016 caso tivesse sido calculado pelo regime de competência. Recomenda-se, no entanto, prudência na análise desses valores, tendo em vista que não estão descartados erros nos registros contábeis, em virtude da adoção relativamente recente desse regime, o que ainda exige treinamento dos servidores. Além disso, não foram realizados ajustes patrimoniais, hipótese que merece ser estudada, tendo em vista que no momento da adoção do regime de competência pode ocorrer o registro de passivos que antes não eram considerados. Além disso, é bem verdade que, ainda que utilizando a mesma abrangência e o regime de competência acima e abaixo da linha com informações extraídas da contabilidade, nem todas as inconsistências no controle de resultados fiscais seriam eliminadas porque o orçamento no Brasil não é elaborado por competência. Então, mesmo evidenciando os

resultados primário e nominal por competência, a meta fiscal estabelecida na LDO será observada no orçamento que, como demonstrado, é um instrumento imperfeito para controlar resultados fiscais. O monitoramento na execução orçamentária e financeira, bem como a limitação de empenho e pagamento, nos termos do art. 9º da LRF, utilizará controles orçamentários e financeiros, também imperfeitos. O espaço para inconsistências na relação dos mundos orçamentário-patrimonial-fiscal foi analisado por Ellwood e Newberry (2007, p. 556): The principles of fiscal responsibility specify the application of any operating surplus to repay debt until debt is reduced to an unspecified “prudent” level; and the need for balanced budgets after that. (...) In an accrual accounting environment a reported operating surplus is not necessarily cash and cannot, therefore, be expected to automatically reduce debt. Cabe ressaltar que embora haja países que elaboram o orçamento pelo regime de competência, essa opção não é a mais frequente, nem está imune a críticas. Os principais riscos são a superestimativa de receitas, tanto no Executivo como no Legislativo, e a dificuldade de fazer ajustes na execução orçamentária e financeira por caixa, limitando empenho e movimentação financeira. Esse é um dos principais mecanismos indutores do equilíbrio fiscal e poderia, assim, ser prejudicado pelo adiamento sucessivo de cortes de gastos. Monteiro e Gomes (2013) resumem na tabela 4, o que, na visão dos autores, seriam as vantagens e desvantagens do orçamento por competência. Tabela 4: Vantagens e desvantagens do orçamento por competência Vantagens

Desvantagens

• Aumento da transparência do custo dos • Aumento de estimativas contábeis no serviços públicos orçamento, podendo gerar incerteza sobre os números orçados. • Melhora a accountability pelos resultados • Geração de informações no mesmo regime • Aumento das informações contábeis orçamento

da

complexidade

do

• Melhora na alocação das despesas com • Controle parlamentar sobre o orçamento manutenção de ativos públicos é diminuído • Identifica melhor contingências que serão pagas no futuro Fonte: Monteiro & Gomes (2013, p. 110). 5. Conclusão O trabalho apresentou uma visão crítica da adoção do regime de caixa nos demonstrativos de resultado fiscal no Brasil, demonstrando que pode contribuir para explicar os desequilíbrios das contas públicas. Particularmente preocupante é a extensão do regime de caixa integral para estados e municípios proposta pela 8ª edição do MDF, aplicável a 2018. O risco é que estimule problemas fiscais adicionais nesses entes, que já têm uma cultura menos enraizada no monitoramento de metas fiscais.

No caso da contabilidade pública, a sustentabilidade da política fiscal é uma das informações de maior relevância e o demonstrativo dos resultados primário e nominal deve permitir tal accountability. Como a dívida é, essencialmente, uma variável patrimonial, o único regime que faz sentido é o de competência. O efeito das decisões fiscais precisa ser conhecido no momento em que as decisões são tomadas e, não, muito tempo depois quando o pagamento das despesas impacta o cálculo do resultado primário. O estabelecimento de metas fiscais e seu monitoramento ao longo do exercício exige tempestividade nos cálculos. Na análise, foram avaliados: a) a aderência ao disposto na LRF, inclusive no que tange à abrangência conceitual, à consistência metodológica e às fontes de informação utilizadas; b) o regime contábil mais adequado aos propósitos do demonstrativo; c) as influências exercidas pela variável em questão nos mundos orçamentário, financeiro e patrimonial, demonstrando em que medida eles não são estanques. Demonstrou-se que o regime de caixa tem consequências para a consistência metodológica no controle da LRF e, conjuntamente com a abrangência conceitual dos resultados fiscais, variável ao longo do tempo, e as fontes de informação utilizadas tem contribuído para reduzir o controle do gasto público. A teoria neo-institucionalista ajuda na compreensão desse processo. A tradição, ou o conceito de path dependence parece ser um elemento importante para explicar a resistência à adoção do regime de competência. Porém, não é demais lembrar que, no setor público, a assimetria de informações pode servir a interesses oportunistas do agente (governo) de utilizar o regime de caixa para antecipar recebimentos e postergar pagamentos de forma pouco transparente para o principal (cidadão), especialmente se a gestão está pouco identificada com a responsabilidade fiscal. A taxonomia de Mahoney e Thelen (2010) para mudança institucional gradual também ajuda a compreender como o conceito de resultado fiscal foi sendo alterado ao longo do tempo. O objetivo maior da contabilidade no setor público é a evidenciação de informações úteis ao usuário. A depender da necessidade de cada demonstrativo previsto na LRF, seja no Relatório Resumido de Execução Orçamentária – RREO, seja no Relatório de Gestão Fiscal – RGF, há que ter clareza sobre o objeto a ser evidenciado para compreender se o melhor conceito é orçamentário, patrimonial ou misto e se há necessidade de modificações adicionais. O regime contábil e os critérios de mensuração devem ser escolhidos de modo a não comprometer os objetivos de controle e de transparência. Nesse sentido, procurou-se também apresentar uma proposta de cálculo pelo regime de competência, com base em informações contábeis, identificando as variações de receitas e despesas que explicam o resultado. Recomenda-se cautela na utilização dos valores, pois a adoção do regime de competência é recente e, em nossos cálculos, não foram realizados ajustes patrimoniais. Como sugestão de continuidade, entende-se que a proposta deve ser aperfeiçoada identificando se há necessidade de ajustes patrimoniais e que fonte de informação poderia ser utilizada para tal fim. Também merecem maior estudo os impactos da adoção do regime de competência para a execução orçamentária e financeira, tendo em vista que o orçamento não é elaborado por competência. Seria, ainda, desejável que análise semelhante à deste artigo fosse realizada para o Demonstrativo da Despesa com Pessoal. O processo de convergência aos padrões internacionais resgata a base da teoria contábil no setor público, permitindo que se identifiquem práticas contábeis que geram inconsistência com os objetivos da LRF. Alerta-se, porém, que, embora o regime de competência seja o mais

adequado para a apuração dos resultados fiscais, não elimina o risco de contabilidade criativa e de má gestão, as quais não podem ser atribuídas nem à adoção de determinado regime contábil, nem à convergência às normas internacionais. Referências Adhikari, P., & Garseth-Nesbakk, L. (2016, June). Implementing public sector accruals in OECD member states: Major issues and challenges. In: Accounting Forum (Vol. 40, No. 2, pp. 125-142). Elsevier. Baraldi, P. A. (2012). IFRS -Contabilidade Criativa e Fraudes, Editora Elsevier, Rio de Janeiro, 1ª. Edição. Borges, T. B., Mario, P. D. C., Cardoso, R. L., & Aquino, A. C. B. D. (2010). Desmistificação do regime contábil de competência. Revista de Administração Pública-RAP, 44(4), 877901. Botelho, B. C., & de Lima, D. V. (2015). Experiências internacionais e desafios dos governos dos países na transição da contabilidade pública para o regime de competência. Revista Evidenciação Contábil & Finanças, 3(3), 68-83. Brasil (1964). Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Brasil (2000). Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Brasil. Banco Central do Brasil. Departamento Econômico (2012). Manual de Estatísticas Fiscais. Brasil. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional (2013). Manual de Demonstrativos Fiscais, 5ª edição (válida para 2014). _______ (2014). Manual de Demonstrativos Fiscais, 6ª edição (válida para 2015 e 2016). _______ (2016, a). Manual de Demonstrativos Fiscais, 7ª edição (válida para 2017). _______ (2016, b). Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público, 7ª edição (válida para 2017). _______ (2017). Manual de Demonstrativos Fiscais, 8ª edição (válida para 2018). Carvalho Júnior, A. C. C. D. & Feijó, P. H. (2015). Entendendo Resultados Fiscais: Teoria e Prática de Resultados Primário e Nominal. Brasília: Gestão Pública, 296 p. CFC. Conselho Federal de Contabilidade (2016). NBC TSP – Estrutura Conceitual para Elaboração e divulgação de Informação Contábil de Propósito Geral pelas Entidades do Setor Público. Chan, J. L. (2010). As NICSPS e a contabilidade governamental de países em desenvolvimento. Revista de Educação e Pesquisa em Contabilidade (REPeC), 4(1), 1-17. Cruvinel, D. P. & de Lima, D. V. (2011). Adoção do regime de competência no setor público brasileiro sob a perspectiva das normas brasileiras e internacionais de contabilidade. Revista de Educação e Pesquisa em Contabilidade (REPeC), 5(3).

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i

Tais questionamentos foram formalizados em eventos que reuniram técnicos de Tribunais de Contas, bem como na Jornada sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal, realizada na Escola de Administração Pública - ESAF, em Brasília-DF, de 05 a07 de junho de 2000. ii

O Banco Central também calcula o resultado nominal com desvalorização, que corresponde à variação nominal do saldo da dívida interna líquida mais a variação da dívida externa líquida em dólares, convertida para reais pela taxa média de câmbio. Este, entretanto, deixou de ser divulgado. iii

Ver http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/471139/CPU_Sintese_das_Alteracoes_6%C2%AA_Edica o_versao_19maio2016.pdf/2c0d3302-e76e-4d73-bbf9-2bff27d89e07 Acesso em 14/7/2017.