TÍTULO: O PROCESSO SAÚDE, DOENÇA E TRABALHO INFANTO-JUVENIL EM LIXÕES AUTORES: Carmen Maria Raymundo; Suyanna Linhales

Barker; Carmen Froes

Asmus INSTITUIÇÃO: UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (PSTA/NESA/UERJ) No Brasil, apesar dos direitos assegurados pelo arcabouço jurídico-legal, as crianças e adolescentes trabalhadores permanecem à margem da rede de proteção, tanto no que se refere à esfera dos direitos humanos, quanto às esferas social e trabalhista. Segundo a pesquisa nacional de amostragem domiciliar do IBGE, no ano de 1998 existiam 7,7 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos de idade trabalhando em zonas rurais e urbanas no país. No entanto, são poucos ou inexatos, os dados conhecidos acerca da ocorrência de doenças e acidentes de trabalho neste grupo populacional, assim como das situações de risco à saúde, as quais estão submetidos nas experiências de trabalho de que participam. O Programa de Saúde do Trabalhador Adolescente1 (PSTA) vem ao longo do tempo, através de sua produção científica, evidenciando a importância da construção de estudos, que identifiquem as implicações do trabalho na saúde de crianças e adolescentes em nossa sociedade. Corroborando a relevância

dos dados oficiais,

contidos nas PNADs do IBGE e demais órgãos oficiais de pesquisa, no que tange a participação da mão-de-obra infanto-juvenil na economia brasileira, os dados existentes no PSTA, oriundos do atendimento ao adolescente trabalhador, indicam que a grande maioria destes, iniciaram a vida laborativa ainda na infância. O que expressa, a gravidade da questão da entrada precoce no trabalho em nosso país. Cabe mencionar que, embora existam estudos acerca da participação infantil no mercado de trabalho, estes apontam apenas para os números desta inserção, e para os tipos de ocupação. Este conhecimento é portanto, ainda incipiente, na medida em que existem novas formas de ocupação, ou o fomento de antigas, introduzindo-se no processo de acumulação

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A estrutura do programa compreende: A assistência à saúde dos adolescentes trabalhadores, a investigação da relação saúde e trabalho (atividades de pesquisa do impacto do trabalho na população adolescente, em seus aspectos biológicos, psicológicos e sociais); a capacitação de recursos humanos; produção e difusão de conhecimento e informação.

A atividade desenvolvida no atendimento multidisciplinar à saúde de adolescentes trabalhadores, proporcionou à nossa equipe (do NESA), a atividade de assessoria ao Programa de Erradicação do Trabalho Infanto-juvenil, junto à Secretaria de Ação Social do Governo do Estado do Rio de Janeiro 2, na qualidade de membro das comissões estadual e municipal de prevenção e de erradicação do trabalho infantil 3. Nossa proposta de assessoria, junto a tais instituições, assenta-se na construção de um estudo acerca dos impactos na saúde originados dos processos produtivos, nos quais se inserem as crianças e adolescentes atendidos pelo Programa. Desse modo, este trabalho de pesquisa, também, nos proporcionará o mapeamento e análise da heterogeneidade, complexidade, diferenciação e particularidades do trabalho infanto-juvenil no Estado do Rio de Janeiro no final do século XX ,e início do século XXI. A primeira etapa deste estudo: a avaliação dos riscos à saúde decorrentes

da

atividade de catadores de lixo em depósito municipal de resíduos sólidos urbanos - em Itaoca, São Gonçalo , deu origem a este estudo. As crianças e adolescentes catadores de lixo de Itaoca foram incluídas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do Estado do Rio de Janeiro, em junho de 2000. Demonstrando a relevância desta forma de trabalho no universo do grupo populacional ora em estudo, de acordo com estimativas de pesquisa desenvolvida pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), em articulação com o Fórum Nacional Lixo e Cidadania, e a instituição de meio-ambiente Água Vida, no ano de 1999 existiam 45 mil crianças e adolescentes brasileiros vivendo e trabalhando nos lixões espalhados pelo Brasil. O estudo demonstra ainda que, cerca de 3.500 municípios brasileiros apresentam esta forma de trabalho infanto-juvenil. A metade destas crianças e adolescentes concentra-se na região nordeste, 18% na região sudeste, e 14% na região norte, 12% na região sul e, em menor proporção 7% na região centro-oeste. Dadas as vinculações históricas, entre o cotidiano das crianças e adolescentes das camadas subalternizadas, e a inserção precoce no trabalho em nosso país, esta pesquisa situa-se no âmbito dos estudos acerca da pobreza no meio urbano. A pesquisa de campo desenvolveu-se, de maio à dezembro de 2001 com todas as crianças e adolescentes, egressos da atividade de catadores de lixo, no pólo de 2

O PETI (programa de erradicação e prevenção do trabalho infantil) é desenvolvido pela Secretaria de Estado de Assistência Social, órgão do Ministério de Previdência e Assistência Social., em parceria com os governos estaduais e com as prefeituras. 3 As comissões estadual e municipal de prevenção e erradicação do trabalho infantil, e de fiscalização do trabalho protegido para o adolescente são órgãos consultivos e de assessoria à questão.

atendimento situado em Fazenda dos Mineiros, do Programa de Erradicação do Trabalho infantil no município de São Gonçalo. Deste universo constam 50 crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos de idade. A pesquisa constou das seguintes fases: •

Reuniões com as coordenações estadual, municipal e local do PETI e, com os familiares das crianças e adolescentes, para discussão de nossa vinculação com a temática, apresentação da proposta de pesquisa, e obtenção de consentimento para o desenvolvimento da mesma.



Realização de grupos focais com as famílias



Visitas ao lixão de Itaoca



Consultas aos cadastros das famílias atendidas pelo PETI



Consultas a documentos de análise do perfil social dos catadores do lixão de Itaoca, elaborados pelo Serviço Social da empresa responsável pela manutenção do aterro.



Entrevistas com lideranças locais, e com educadores do PETI

A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E AS CONDIÇÕES DE TRABALHO NO LIXÃO DE ITAOCA A partir dos relatos das crianças e adolescentes e de suas famílias, bem como das incursões pela equipe realizadas ao lixão de Itaoca, na companhia de lideranças comunitárias, fomos construindo a descrição que se segue referente à organização do trabalho e às condições de trabalho, na atividade de catar lixo, em depósitos de resíduos sólidos. “Lixão de Itaoca”, ou Boca de lixo são denominações do depósito de resíduos sólidos urbanos, do Município de São Gonçalo, gerido por empresa privada, no qual é depositado o lixo urbano domiciliar. Pode ser também usado por empresas, como local de refugo, mediante pagamento a operadora do espaço. A rotina de trabalho tem início, com os trabalhadores aguardando a chegada dos caminhões. Neste momento, amontoados, ainda com os veículos em movimento, dão início a coleta dos materiais: vidros, alumínio, plástico, restos de alimentos, brinquedos e detritos variados.

Os instrumentos de trabalho são: paus, facões, sacos, pás, gadanhos, utilizados para retirar e revolver os objetos dos montes de lixo, separá-los e guardá-los até a revenda ou consumo próprio (alimentos e utensílios variados) No local tem-se a presença de urubus, ratos, porcos, cachorros. Cheiro forte advindo de gáz sulfídico: decomposição de matéria orgânica, resíduos tóxicos de origem química que constituem o chorume No próprio espaço de trabalho são organizadas barracas, erguidas com plástico ou madeira, improvisados com produtos encontrados no lixão. Nestas ficam as crianças menores, para protegerem-se das intempéries ou para amamentação, guarda-se o material recolhido, e deposita-se água e alimentos. As formas de “proteção” utilizadas pelos catadores durante a coleta são precárias e improvisadas. Resumem-se em camisas de manga comprida, calça comprida, sapatos fechados, camisetas presas à cabeça complementadas por bonés, e várias meias grossas até os joelhos. Esta atividade de trabalho inclui ainda, o levantamento manual de peso com o material recolhido. Observamos no lixão que é muito comum os trabalhadores ingerirem os alimentos encontrados, o que aumenta a possibilidade de contrair doenças. Este aspecto, nos foi também descrito pelas crianças e adolescentes, e também por suas famílias. As refeições diárias são realizadas, em geral, no próprio local De uma maneira geral, não existem diferenças de tarefas por faixa etária ou sexo. O que vai definir a maior proximidade do caminhão, bem como a maior quantidade de materiais retirados, é a força física. Percebemos, ainda a existência de muitos conflitos em função da disputa pelos produtos de maior valor na escala do lixão. É um tipo de trabalho informal, e portanto sem qualquer direito trabalhista, ou previdenciário. A jornada de trabalho é ininterrupta, sem descanso semanal, pode ser diurna ou noturna, ocasião em que aumenta-se a probalidade de ocorrência de doenças do trabalho. Além disto, habitualmente toda família trabalha conjuntamente e as moradias são próximas ao aterro. Os rendimentos são obtidos por produção. A venda do material coletado é em geral, realizando no próprio local. Onde ficam os atravessadores, ou em locais distantes, com condições melhores de venda.

AS SITUAÇÕES DE RISCO À SAÚDE ORIGINADAS DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL NO LIXÃO DE ITAOCA O processo saúde e doença, em particular, em países como o Brasil, são resultantes da distribuição desigual dos recursos entre indivíduos e populações. Desta forma, a inserção de classe social determina a exposição a situações de risco à saúde, bem como o acesso a moradia, alimentação, saneamento e assistência à saúde. De acordo com as questões elucidadas neste estudo, não é casual que estas crianças e adolescentes sejam levados, pelas condições materiais de existência, a desenvolverem atividades de trabalho perigosas, insalubres e penosas. Vale mencionar que estes padrões são construídos, tendo como parâmetros, os trabalhadores adultos. Neste sentido, vários estudos e pesquisas epidemiológicos vêm ampliando o conhecimento da questão, evidenciando que a população infanto-juvenil está mais sujeita aos agentes ambientais, oriundos de ambientes de trabalho, tanto para agravos imediatos à saúde, quanto para aqueles que podem levar a incapacidades

físicas

permanentes ou temporárias, A respeito da matéria, ASMUS, RUZANY et alli (1995) destacam três amplos grupos de fatores, que vêm sendo identificados nos estudos sobre a maior vulnerabilidade destes grupos populacionais a situações de risco ocupacional: a exposição à agentes físicos e químicos4; os fatores ergonômicos referentes às limitações e à capacidade de trabalho, e os fatores psicossociais. Algumas situações de risco à saúde no trabalho são provenientes de um conjunto principal de agentes químicos nas formas de gases, vapores, poeiras, fumaças, névoas e neblinas; e agentes físicos como ruído, temperatura, radiação, vibração, ventilação e iluminação. Estes são potencialmente mais lesivos entre as pessoas em processo de crescimento. Existem também os fatores de risco à saúde, baseados na Ergonomia, ou seja no campo multidisciplinar do conhecimento, que estuda a natureza fisiológica, psicológica e anatômica da capacidade e limitação do homem ao exercício de qualquer atividade. Os 4

Considerando-se à exposição ao chumbo, os pesquisadores observaram que as crianças e adolescentes tendem a absorção de maiores quantidades deste, podendo desenvolverem complicações neurológicas irreversíveis. Outro estudo sobre os efeitos da silicose, revelou que a exposição à poeira de sílica, neste grupo populacional, apresenta maior taxa de letalidade. Além disto, no que se refere as suceptibilidades ao ruído, os estudos também indicam que crianças e adolescentes podem apresentar limites diferenciados dos adultos.

principais problemas de saúde relacionados a não utilização devida de práticas ergonômicas com às crianças e adolescentes trabalhadores, são a fadiga ocupacional, relevantes nos casos de exposição a altas temperaturas ambientais; e o trauma ocupacional, resultado de acidentes do trabalho. Segundo ASMUS e RUZANY (loc cit) estudos em andamento vêm demonstrando, que a população infanto-juvenil ao utilizar ferramentas de trabalho, elaboradas para o trabalhador adulto apresentam maiores riscos de fadiga e acidentes. Além disto, afirmam que os acidentes de trabalho se constituem na principal causa de morbimortalidade entre os trabalhadores jovens. Diante das ponderações elencadas, os impactos do trabalho na catação de resíduos no aterro sanitário, na saúde de crianças e adolescentes são visíveis pela forma como se organiza esta atividade laborativa. Determinados por um conjunto de cargas laborais do ambiente e, por condições de trabalho, que podem se materializar em doenças do trabalho, com grande ênfase na probalidade de ocorrência de acidentes de trabalho. Além disto, as crianças e adolescentes ficam em desvantagem num tipo de organização do trabalho que exige força física, e onde há disputas acirradas pela sobrevivência. É uma atividade de trabalho perigosa, insalubre, penosa, e estressante. Há possibilidades acentuadas de acidentes, intoxicações alimentares e químicas por metal pesado; infecções respiratórias, cutâneas, digestivas; desidratações; anemias por má nutrição; fadigas por esforço intenso e exposição altas temperaturas do ambiente Estes são agravos à saúde, que podem acometer todos os trabalhadores em lixões, independente de idade ou sexo. No entanto, conforme mencionamos, existem peculiriaridades na infância e na juventude, que podem potencialmente deixá-las mais expostas às situações de risco à saúde neste ambiente de trabalho. A existência de lixões interfere também no meio-ambiente, trazendo riscos de incêndio, desmoronamentos de encostas, poluição do solo, das águas, além dos gases tóxicos liberados a partir da queima irregular dos resíduos. O outro bloco de possibilidades de risco à saúde, refere-se às questões psicossociais, diante das quais, podemos avaliar ser este é um trabalho penoso. Convém ressaltar que, o conceito de trabalho penoso carece de construção de definições e de reconhecimento legal. A despeito das conceituações de trabalho insalubre e perigoso, dispostos em legislação em vigor.,dado que inserem-se no conjunto de privações de ordem material e espiritual, advindas da experiência da pobreza. Onde situam-se a carência de “direitos, de possibilidades, de esperança” Entendemos que possa ser definido como penoso, o

trabalho que: diminui o tempo disponível para as atividades de lazer, vida em família, educação e para os espaços de convivência com seus pares e demais pessoas da comunidade em geral. Sobretudo advém da não identificação do trabalhador com o seu trabalho. É um trabalho sem significado. É penoso, o trabalho que castra o direito à infância e à juventude. Refere-se ao aspecto já evidenciado por ADORNO (1991), no qual o caráter lúdico do modo de ser infantil é relegado ao esquecimento, através da dura disciplina do trabalho, que os convoca a assumirem responsabilidades do mundo adulto. Diante do exposto, é imprescindível reconhecer, que a inserção ‘da vida e do trabalho”, em ambientes e em condições de trabalho, como os do lixão se constituem numa forma cruel de exploração de crianças e adolescentes, podendo trazer danos irreversíveis à saúde. Configura uma forma de

socialização excludente, na qual

aprendem apenas a sobreviver nos limites da existência, e não a viver. Na qual o direito à infância e a adolescência, é catado no lixo. Desde as mais básicas necessidades de sobrevivência até o espaço do sonho, do lúdico. Esta talvez seja a face mais cruel deste atual modelo de exclusão.

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS ADORNO, S.A Experiência Precoce da Punição.In: SOUZA MARTINS, J. de S. (Coord.) O Massacre dos Inocentes: A Criança sem Infância no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 1991 ASMUS, C. F. & RUZANY, M. H. “ Riscos ocupacionais na infância e Adolescência. Uma Revisão”, Jornal Brasileiro de Pediatria. Rio de Janeiro, 1996. RAYMUNDO, C. M. O trabalho Infanto – Juvenil em Lixões. Expressão cruel das contradições da Modernidade brasileira. A Experiência da Itaoca - São Gonçalo (Dissertação do Mestrado em Serviço Social) Rio de Janeiro, UERJ, 2002).