O jovem, o livro e a avaliação artigo de Eneida Castro Formada em Letras pela Universidade de São Paulo, onde atualmente cursa Mestrado no programa de Literatura Brasileira. Atua como professora de Redação e Literatura há mais de 20 anos, com experiência em cursos pré-vestibulares e ensino médio, além de ter participado de banca de vestibular. Integra o corpo docente do colégio Bandeirantes há mais de 16 anos. É colaboradora na Primeira Escolha, compondo a equipe de desenvolvimento de conteúdo responsável por avaliações externas.
O envolvimento do jovem com a leitura é questão sempre inquietante entre aqueles que estão de alguma forma envolvidos com a educação desse público. Muito se fala a respeito do seu desinteresse, da sua falta de gosto pelo universo dos livros em geral; a internet e tudo o que ela oferece seriam os principais rivais quando se trata de disputar a preferência dos jovens hoje em dia. Sem que estejamos dispostos a negar veemente essas impressões, consideramos que é necessário, antes de mais nada, tomar ciência do que de fato tem caracterizado a relação de crianças e adolescentes com os livros com amparo de pesquisas e estudos de relevância. Dessa forma, poderemos deixar de lado as impressões que muitas vezes desestimulam uma tomada de atitude, e partir para medidas de ação concretas que possam frutificar o gosto pela leitura. Para esse propósito, tem sido de grande auxílio o cuidadoso trabalho do Instituto Pró-Livro, que, desde 2001, faz um estudo junto à população brasileira, mapeando quem é e quem não é leitor; o que se lê; por que não se lê, entre outros aspectos. A pesquisa, realizada pela primeira vez em 2001, foi repetida, com melhorias na metodologia em 2007 e 2011 e teve sua 4ª edição no ano de 2015, cujos dados vieram a público em 2016. Nessa quarta edição de Retratos da Leitura no Brasil1, a análise dos dados, como os próprios responsáveis apontam, pode ser interpretada para o bem ou para o mal. Na imprensa, houve quem quis olhar para os dados com otimismo, ressaltando avanços em relação às edições anteriores (“Os brasileiros estão lendo mais”), e também houve lugar para os pessimistas que enfatizaram o muito que ainda se tem de desafio nesse campo (“Quase metade dos brasileiros não lê”).
1. Disponível em http://bit.ly/2nxbdrz. Acesso em 19 jun.2017.
Indicadores são sempre úteis se usados de forma a se conhecer sua finalidade: retratar de modo objetivo uma determinada realidade. Eles não trazem soluções, não explicitam causas e consequências. Seus números, porém, oferecem a oportunidade de estudar a fundo uma situação e diante dela reconhecer o que tem obtido êxito e o que ainda precisa de aprimoramentos ou intervenções. Aqui, pautaremos nossa análise a respeito da relação entre os jovens e a leitura em alguns dos dados levantados pelo Instituto Pró-Livro, para, de posse de informações objetivas sobre a situação, mapear propostas de ação. Consideremos, por exemplo, o quadro a seguir:
GÊNEROS QUE COSTUMA LER: por faixa etária
%
2015
TOTAL
faixa etária 5 a 10
11 a 13
14 a 17
18 a 24
25 a 29
30 a 39
40 a 49
50 a 59
70 e +
2798
307
204
321
403
254
474
332
439
66
Bíblia
42
21
31
24
39
39
49
56
52
63
Religiosos
22
14
6
12
17
25
27
30
35
34
Contos
22
37
40
31
23
21
12
14
13
11
Romance
22
8
20
33
33
25
20
18
19
16
Didáticos, ou seja, livros utilizados nas matérias do seu curso
16
23
27
21
23
18
15
10
6
0
Infantil
15
41
22
9
8
18
15
11
6
4
História em quadrinhos, gibis ou RPG
13
29
21
15
11
12
10
9
6
3
Poesia
12
14
27
19
14
10
8
7
8
7
História, economia, política, filosofia ou ciências sociais
11
6
8
11
14
11
11
12
11
6
Ciências
10
22
21
15
8
9
6
8
5
3
Culinária, artesanato, “como fazer”
10
6
3
3
9
12
12
13
17
3
Técnicos ou universitários, para formação profissional
10
0
0
3
19
17
16
10
7
0
Saúde e dietas
8
3
3
5
8
10
11
10
13
5
Biografias
8
5
6
12
12
10
7
8
7
3
Autoajuda
8
1
1
3
6
12
12
13
10
3
Artes
7
16
11
8
8
6
3
5
5
0
Base: leitores
Juvenis
7
7
20
14
9
3
4
5
2
2
Educação ou pedagogia
6
5
5
4
9
5
9
7
2
0
Viagens e esportes
5
3
6
5
7
4
5
6
4
1
Línguas (inglês, espanhol, etc.)
5
6
9
6
7
7
5
2
3
4
Enciclopédias e dicionários
4
4
3
4
6
2
4
5
1
1
Direito
3
1
1
2
6
5
4
2
3
1
Escoterismo ou ocultismo
2
0
0
0
1
1
1
4
4
0
Não sabe/não respondeu Média de gêneros por entrevistado
5
10
4
9
5
4
5
4
4
4
2,8
3,1
3,0
2,8
3,1
2,9
2,8
2,8
2,5
1,8
Base baixa
P.37) Quais destes tipos de livros, seja em papel ou em formato digital, o(a) sr(a) leu no último ano? Fonte: Retratos da Leitura no Brasil
Fonte: Retratos da leitura no Brasil 4/ organização de Zoara Failla. Rio de Janeiro: Sextante, 2016, p. 217
Nele, explicita-se, por faixa etária, a distribuição percentual de leitores de acordo com a preferência de gêneros lidos no último ano. Sem negar a importância da experiência com qualquer tipo de leitura, valorizamos aqui a literária como uma experiência que condensa inúmeras habilidades e potencializações. Ela permite tanto o contato com as mais variadas áreas de conhecimento, como propicia o alimento para o imaginário, a possibilidade de criação nas lacunas propositadamente deixadas pelo texto, o aprendizado da sensibilidade estética, a riqueza da possibilidade de se colocar no lugar do outro, em outro lugar, em outro tempo e tantos outros benefícios que fogem à dimensão da presente análise. Diante disso, se restringirmos nosso interesse por “contos”, “romances” e “poesia”2 , gêneros inegavelmente enquadrados como literários, constatamos que os leitores que mais
consomem esse tipo de leitura encontram-se nas faixas etárias de 5 a 10 e 11 a 13. É muito provável que tais números se expliquem pelo contato que a escola propicia com esse tipo de leitura. Cabe, portanto, destacar a relevância da escola na experiência leitora; por outro lado, não há como negar a triste constatação de que a mesma relevância não tem exercido influência suficiente para criar o gosto permanente por esse tipo de leitura no público, como evidencia o recuo dos números nas faixas etárias seguintes. A pesquisa da 4ª edição do Instituto PróLivro traz ainda outras informações que chamam nossa atenção. Os entrevistados foram questionados com relação às razões para não terem lido mais. Apenas 23% não o fizeram por falta de vontade. A maioria, 77%, alega motivos variados, sendo o principal deles a falta de tempo. Vejamos:
Razão para não ter lido mais: entre os leitores Fonte: Retratos da leitura no Brasil 4/ organização de Zoara Failla. Rio de Janeiro: Sextante, 2016, p. 228
% Por que não leu mais?
Gostaria de ter lido mais
Pergunta nova
Pergunta nova
49
Por falta de tempo 23%
9
Porque prefere outras atividades
9
Porque não tem paciência para ler
8
Porque não há bibliotecas por perto 7
Porque acha o preço do livro caro
7
Porque se sente muito cansado para ler 77%
5
Porque não gosta de ler
5
Porque não tem dinheiro para comprar
SIM
NÃO
Base: leitores (2.798)
Porque tem dificuldades para ler
4
Por não ter um local onde comprar onde moro
3 3
Porque não tem um lugar apropriado para ler Porque não tem acesso permanente à internet
1
Não sabe/não respondeu Não gostaria de ter lido mais
1 23
Base: leitores (2.798)
P.13) O(a) sr(a) gostaria de ter lido mais livros do quPe o(a) sr(a) leu nos últimos 3 meses? P.14) (SE SIM) Qual destas razões é a principal para o(a) sr(a) não ter lido mais livros nos últimos 3 meses?
2. Vale ponderar aqui que há muito de literário entre livros infantis, juvenis e quadrinhos, mas restringimos a análise aqui também por uma questão de extensão do presente artigo.
Aliado às informações do quadro abaixo, no qual são indicadas as dificuldades que os leitores apontam como empecilhos para ler, podemos levantar uma hipótese: o ensino da prática leitora tem sido insatisfatório. Falta de paciência e falta de tempo podem ser obstáculos associados ao fato de a leitura não ser uma prioridade ou ao fato de que os leitores não aprenderam o quanto o hábito da leitura pode propiciar prazer, um prazer distinto daquele decorrente do entretenimento fácil, geralmente vinculado a imediatismo e informações simplificadas. Um prazer proporcionado por uma atividade livre, que não traça respostas e interpretações fechadas, uma atividade de alcances imprevisíveis, visto que nunca se sabe com precisão o rumo que pode tomar uma relação entre leitor e a obra.
Dificuldades para ler %
Base: amostra 2007 (5.012)/2011 (2.012)/2015(5.012)
11
Não tem paciência para ler
20 24 16
Lê muito devagar
19 20
Tem problemas de visão ou outras limitações físicas
8
Não tem concentração suficiente para ler
7
Não compreende a maior parte do que lê
13 17
7 8 8 48
Não tem dificuldade nenhuma Não sabe ler
2007 2011 2015
12 11
43 33 15 9 10
P.39) O(a) sr(a) tem algumas das seguintes dificuldades para ler?
A cada edição da pesquisa diminui a proporção dos que afirmam não ter nenhuma dificuldade para ler. As menções às dificuldades para ler, com exceção daquelas referentes a problemas Ésicos, coadunam com o INAF (Indicador do Alfabetismo Funcional). Os resultados deste estudo apontam que, apesar de ter aumentado o percentual da população alfabetizada funcionalmente entre 2001 e 2011, apenas 1 em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática. Fonte: Retratos da leitura no Brasil 4/ organização de Zoara Failla. Rio de Janeiro: Sextante, 2016, p. 231
Cabe então aos que mais diretamente se sentem responsáveis pela educação dos jovens assumir o compromisso de motivar a prática, tanto por meio do exemplo - sim, todos precisamos ler mais e conversar mais a respeito do que lemos -, quanto de indicações, presentes, ocasiões diversas em que um livro possa vir a ser apresentado. No universo escolar, oportunidades não faltam. O que pesa, porém, é o desserviço de leituras obrigatórias desmotivadoras, muitas vezes selecionadas para atender exigências de exames vestibulares. Enquanto essa restrição não desaparece de nossos horizontes, busquemos caminhos alternativos, paralelos. A obrigatoriedade de leituras de obras que não necessariamente seriam as mais atraentes para apresentar o universo literário aos alunos não impede que o professor trabalhe paralelamente com outras leituras. Semelhança temática ou divergência de opiniões, representação de comportamentos semelhantes em contextos sociais e históricos distantes
ou condutas distintas diante de situações semelhantes, um mesmo tema tratado com diferentes registros, do trágico ao cômico, por exemplo. São ocasiões para expor aos alunos textos dos mais variados gêneros, autores, épocas etc. Quanto maior a exposição, maior a chance de conduzir um ou outro a uma pesquisa própria, a uma leitura à parte, a uma curiosidade que pode ser a porta de entrada para a descoberta de quanto tempo se ganha na companhia de um livro. Por isso, toda aula é oportunidade para trazer textos literários, e outros que possam servir de ponte de acesso a textos literários por meio de relações intertextuais: resenhas, artigos de opinião, tirinhas etc. É também oportunidade para incentivar a leitura, a discussão, a troca de impressões, o compartilhamento de experiências prazerosas – ou não - de leitura. Não são poucos os professores de língua e
aparentemente despretensioso? Esse é um papel fundamental no que se refere ao letramento literário de nossos alunos. Ele significa, a meu ver, dar ao jovem o direito de ter sua própria experiência libertária de leitura, experiência isenta de regras, cheia de descobertas. E a avaliação? Como se encaixa nesse processo? As avaliações de linguagens - e não exclusivamente as avaliações de literatura - podem sim representar uma ocasião para atrair a atenção de alunos para a riqueza que o mundo das letras dá acesso. Uma prova constituída por grande diversidade de gêneros textuais - desde tirinhas e charges até crônicas, fragmentos muito bem selecionados de contos e romances, poemas, resenhas etc. pode se tornar muito mais do que um instrumento de avaliação. Tem o potencial de ser um chamariz de biblioteca, um mural de divulgação de textos os mais variados. Um texto impactante pode ficar na memória de um respondente; quem sabe despertar nele a curiosidade que mais tarde o levará ao livro na íntegra ou a textos que estabeleçam algum tipo de diálogo com o estímulo. Assim a importância de contextualização em uma avaliação de linguagens vai além da necessidade de usar o estímulo para mobilizar objetos de conhecimento. Essa, claro, é uma característica inerente a uma avaliação pautada em competências e habilidades, mas a oportunidade pode ser ainda mais aproveitada se, na elaboração dessa mesma avaliação, houver um claro direcionamento voltado para o propósito de conquistar leitores.
Toda aula é oportunidade para trazer textos literários, e outros que possam servir de ponte de acesso a textos literários por meio de relações intertextuais: resenhas, artigos de opinião, tirinhas etc. literatura que ouvem de seus alunos o quanto a sua paixão ao relatar o enredo de uma obra despertou no aluno ouvinte o interesse e o desejo por conhecer a mesma obra. Conheci uma colega que ao longo de anos iniciava as aulas escrevendo no quadro branco um pequeno fragmento de texto literário, seguido do seu autor e título. Quantas mentes curiosas não terão sido provocadas por esse gesto tão singelo,
Sob outra perspectiva, o uso de textos literários nas avaliações pode ser também revelador do desenvolvimento cognitivo dos alunos e retroalimentar a intensidade com que precisam ser utilizados nas aulas. Para ilustrar, consideremos o desafio de identificar as características de um item de avaliação para determinar o seu grau de dificuldade. É evidente que, no campo das avaliações padronizadas em larga escala, o índice de dificuldade se estabelece de modo empírico, por meio da testagem do item com amostras de alunos. Mas, uma linha de pesquisa mais recente vem tentando identificar quais são os elementos qualitativos presentes no item que podem revelar índices mais ou menos elevados de dificuldade, todos eles procurando traduzir a demanda cognitiva que ele exige. Tradicionalmente, taxonomias para os objetivos educacionais, como a taxonomia de Bloom, ajudam a descrever o processo cognitivo dominante em um item. Outros elementos, contudo, têm sido identificados como reveladores do grau de dificuldade de uma questão. Destacamos a seguir alguns deles, os três últimos mais relacionados a aspectos estruturais da língua: Carga de leitura: reflete não apenas o tamanho do texto usado como estímulo do item, mas também a complexidade do cenário que ele estabelece. O universo literário, por explorar o mundo ficcional, possibilita o contato com cenários os mais diversificados. Complexidade relacional: corresponde ao número de fatos, conceitos, processos, ideias etc. articulados no texto base do item. Em um poema, por exemplo, essa complexidade pode se associar tanto à exigência de se reconhecer o discurso intertextual (mais ou menos explícito) como também à de se levantar inferências que possibilitam melhor compreensão de informações muitas vezes aparentemente desconexas. Número de frases preposicionais: refere-se ao grau de complexidade criado pela articulação de palavras e expressões por meio de preposições variadas (de, sob, ante, para...). Esse tipo de construção exige maior atenção às relações estabelecidas para a exposição do raciocínio. Número de frases verbais: de maneira similar ao item anterior, a língua permite explicitar raciocínios mais sofisticados por meio de uma intrincada relação entre construções verbais que modulam o discurso. Uso da voz passiva: trata-se de uma sutileza da linguagem que permite matizar o discurso e que demanda uma maior complexidade de interpretação. Diante disso, percebe-se que o texto literário, se bem empregado em avaliações, permite ao professor investigar com mais propriedade a competência leitora de seus alunos.
Por fim, cabe observar que a oportunidade não se encerra no momento de aplicação da prova. A avaliação pode ser, nesse momento, o ponto de partida para introduzir, posteriormente, alguma contextualização sobre uma obra explorada como estímulo. O professor tem a chance de retomar alguns desses estímulos em aula, ampliar o conhecimento sobre eles, alimentar a curiosidade que venha a surgir, estabelecer paralelos, até mesmo levar o livro ou outro suporte para apresentá-lo ao aluno ou dar indicações claras de onde o estímulo pode ser encontrado na íntegra. É uma chance para mostrar aos alunos que os textos clássicos, por exemplo, não querem ficar aprisionados na solidão detorres de marfim; eles buscam, em companhia com releituras, ganhar dinamismo e vida inseridos que estarão nas questões sociais de épocas distintas ou nas paixões e conflitos que estremecem a alma humana em qualquer tempo e lugar. Instigar. Esse é o papel do agente que se preocupa em promover a leitura. Instigar a curiosidade, o interesse pelo livro e este terá uma chance de executar seu papel maior: instigar novamente, criando assim um movimento constante e ininterrupto em que uma leitura leva a outras. Afinal,
Uma obra não trabalha o leitor – no sentido do trabalho psíquico - se ela lhe dá somente o prazer do momento, se ele fala dela como de um feliz acaso, agradável, mas sem futuro. O leitor que começa a ser trabalhado pela obra estabelece com ela uma espécie de ligação. Mesmo durante as interrupções de sua leitura, ao se preparar para retomá-la, ele se entrega a devaneios, tem sua fantasia estimulada e insere fragmentos dela entre as passagens do livro; sua leitura é um misto, um híbrido, um enxerto de sua própria atividade de fantasmatização sobre os produtos da atividade de fantasmatização do autor.3
A prova pode sim tornar-se tema de conversa, muito mais do que momento de verificação de conhecimento. A cena – quase utópica - em que alunos sorriem enquanto leem um item de prova ou em que comentam elogiosamente uma ou outra questão que compôs uma avaliação pode ser mais próxima do real do que se imagina. Pode depender, em grande parte, da sensibilidade e da criatividade empenhadas no ato da elaboração. Não desperdicemos oportunidades!
3. ANZIEU, DIDIER apud PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: Uma nova perspectiva. Tradução Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 29.
Este artigo foi produzido, editado e revisado por Eneida Castro e a Academia Primeira Escolha.