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O direito à identidade genética versus o direito ao anonimato do doador do material genético na reprodução assistida 1
Priscila de Castro Morales
RESUMO O presente trabalho enfatiza a técnica de inseminação artificial heteróloga, no que tange ao anonimato do doador do material genético na reprodução assistida. Imposto pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.358/92, face à insuficiência de legislação pertinente, tem sido visto como dogma, afrontando direito quiçá maior, qual: o direito à identidade genética do ser humano. A proposta ora apresentada atenta para a necessidade de legislação sobre o assunto, objetivando, ao menos, harmonizar os direitos em questão. É necessária a valorização do direito em conhecer as origens biológicas, sem que com isto seja compelido abdicar da família afetiva. Em suma, o direito de conhecer a identidade biológica não é incompatível com a filiação afetiva. O indivíduo pode desfrutar de ambas sem prejuízo para quem quer que seja, desde que haja legislação séria a regular a questão.
Palavras-chave: reprodução assistida, anonimato, direito à identidade genética, princípio da dignidade da pessoa humana, colisão de direitos, necessidade de legislação.
RESUMEN Este trabajo se hace hincapié en la técnica de inseminación artificial heteróloga, en relación con el anonimato de los donantes de material genético en la reproducción asistida. Impuestos por el Consejo Federal de Medicina de la resolución nº 1.358/92, dada la falta de legislación pertinente, ha sido visto como un dogma, afrontando derecho tal vez más, que: el derecho a la identidad genética de los seres humanos. La propuesta ahora presentada atento a la necesidad de una 1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso de Direito, orientado pela Professora Laura Antunes de Mattos e apresentado à Banca Examinadora composta pela Professora Kadja de Menezes e pelo Professor Álvaro Vinícius Paranhos Severo.
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legislación sobre la cuestión, con el objetivo, al menos, armonizar los derechos de que se trate. Tenemos el reconocimiento del derecho a conocer los orígenes biológicos, a menos que se ve obligado a abandonar a la familia afectiva. En resumen, el derecho a conocer l identidad biológica no es incompatible con la partencia afectiva. El individuo puede gozar de ambos sin perjuicio de manera que sea, siempre hay graves legislación para regular la cuestión.
Palabras clave: reproducción asistida, privacidad de los datos, el derecho a la identidad genética, el principio de la dignidad humana, la colisión de los derechos, la necesidad de legislación.
SUMÁRIO: Resumo; Resumen; 1 Introdução; 2 Reprodução Humana Assistida e suas Principais Técnicas; 2.1 Inseminação Artificial; 2.2 Inseminação Artificial Heteróloga; 3 O Direito ao Anonimato do Doador do Material Genético; 3.1 Uma Análise dos Contratos de Inseminação Heteróloga; 4 O Direito ao Conhecimento da Origem genética; 5 Conclusão; Referências.
1 INTRODUÇÃO O avanço da ciência, sobretudo no campo da medicina, possibilita que casais, que não alcançam a procriação pelo processo natural, por inúmeros motivos, possam chegar ao filho tão desejado. Nesse contexto, é peça principal a reprodução humana assistida, a qual surge como meio legítimo de satisfazer o anseio de ter filhos em benefício de casal estéril ou infértil. A reprodução medicamente assistida vem ocorrendo no Brasil, a seu turno, por técnicas médicas, segundo regramento específico do Conselho Federal de Medicina com a Resolução n° 1.358/92. É necessária a existência de legislação pertinente ao assunto, mormente, porque os conflitos poderão surgir e, é bem possível que a Resolução, a qual tem o fito de ditar normas éticas sobre o assunto, não possa resolvê-los. As técnicas medicamente assistidas podem ocorrer de maneira homóloga ou heteróloga, conforme a proveniência do material genético utilizado. Grande controvérsia gera a heteróloga, tendo em vista que há intervenção de um terceiro, doador, participando do processo de inseminação.
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A Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1.358/92 assegura o anonimato desse terceiro que doa o material genético para possibilitar a fecundação da mulher. A identidade desse doador, portanto, em tese, não pode ser revelada à pessoa que nasce através da técnica de reprodução assistida heteróloga. Existe, no entanto, o direito ao conhecimento da origem genética, consagrado de modo implícito pelo ordenamento jurídico pátrio. Tem natureza de direito da personalidade e não cabe ser obstaculizado por quem quer que seja. O presente trabalho tem por objetivo examinar a colisão que há entre esses dois direitos. Para tanto, no primeiro capítulo, é feita breve abordagem acerca do conceito e das principais técnicas de reprodução humana assistida. São tecidos comentários sobre os questionamentos jurídicos decorrentes da aplicação dessas técnicas, especialmente sobre a espécie heteróloga. No segundo capítulo, são feitas referências acerca do posicionamento doutrinário sobre o direito ao anonimato do doador do material genético. Apontam-se divergentes entendimentos sobre o assunto. É feita, para tanto, uma incursão pelo Direito comparado. O capítulo terceiro é voltado para o direito ao conhecimento da origem genética. Tem-se o escopo de desvinculá-lo do Direito de Família, considerando sua natureza de direito da personalidade, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. O objetivo é mostrar que há direitos que possuem relevância, conteúdo materialmente significativo e que não estão positivados, merecedores, sem dúvidas, de proteção constitucional. As técnicas de reprodução assistida representam um alento para aqueles que buscam a realização de seu projeto parental, mesmo envolvidos na angústia e no temor de não conseguirem seu intento. Não é possível fechar os olhos para a evolução da ciência, nem, tampouco, diminuir-lhe a importância. É preciso atentar para a necessidade de regramento sobre o assunto para, ao menos, harmonizar os princípios em discussão.
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REPRODUÇÃO
HUMANA
ASSISTIDA
E
SUAS
PRINCIPAIS
TÉCNICAS Para a ocorrência da reprodução humana é mister que tanto a mulher quanto o homem estejam em condições de manter um ciclo reprodutivo completo, ou seja, desenvolver todas as etapas reprodutivas necessárias para obter a fecundação.2 Há situações, entretanto, em que esse processo natural de fecundação, por inúmeros motivos, não ocorre. Sendo necessário valer-se das modernas técnicas da ciência médica para se chegar ao filho tão desejado. 3 A reprodução humana assistida surge como meio legítimo de satisfazer o desejo de ter filhos em benefício de casal estéril ou infértil.4 Consiste na intervenção do homem no processo reprodutivo. Ocorre quando não há a possibilidade deste ocorrer naturalmente, ou seja, quando não há a possibilidade de pessoas com problemas de infertilidade ou esterilidade alcançarem o desejo da paternidade ou da maternidade pelo processo natural. De acordo com Maria Helena Diniz, “reprodução humana assistida é um conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano”. 5 Eduardo de Oliveira Leite assevera que o processo reprodutivo, o qual sempre foi tido como o ato mais íntimo do casal, com a procriação artificial, é lançado num ambiente de ampla participação, em que os óvulos e espermatozóides são tratados extracorporeamente, ou seja, em clínicas de reprodução humana assistida.6
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A fecundação ocorre quando há o encontro de um espermatozóide (célula sexual masculina) com o óvulo (célula sexual feminina), nas trompas de falópio, situadas no aparelho reprodutor feminino. 3 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1995. p. 26. 4 Por esterilidade, entende-se a incapacidade do homem ou da mulher, ou até mesmo de ambos, por causas funcionais ou orgânicas, fecundarem por um período conjugal de, pelo menos, dois anos, sem a utilização de meios contraceptivos eficazes contra a fecundação e com vida sexual normal. Quanto à infertilidade, caracteriza-se pela incapacidade, quer por causas orgânicas ou funcionais atuando na fecundação de um ou ambos os procriadores, de produzir descendência. 5 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p. 475. 6 LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit. p. 27
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A reprodução assistida justifica-se pelo direito ao planejamento familiar, assegurado constitucionalmente a todo cidadão e regulamentado pela Lei nº 9.263, de 12/01/1996. Esse direito tem como fundamento a paternidade responsável, paternidade consciente, e a dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal admite como um direito de livre decisão do casal, de modo que ao Estado só compete, como dever, propiciar os recursos educacionais e científicos para o seu exercício.7 Consoante José Afonso da Silva “a Constituição Federal não se satisfaz em declarar livre o planejamento familiar. Foi mais longe, vedando qualquer forma coercitiva por parte de instituições sociais ou privadas”.8 Nesse contexto, surgem as técnicas de reprodução assistida, as quais são consideradas formas de terapia da infertilidade. São apenas paliativos, são tratamentos capazes de dar filhos a quem a natureza os negou. Assim como a adoção, tradicionalmente admitida no terreno mais conservador e formal do mundo jurídico. Elas não curam o que as motivaram, visto que a impossibilidade de ter filhos se mantém. Também nem sempre alcançam êxito, podendo sua aplicação ser frustrante, no sentido de que não necessariamente irão conduzir ao filho tão esperado. 9 Dentre as principais técnicas, resumidamente, destaca-se a inseminação artificial (IA), que consiste na introdução, por meio de instrumento médico, de espermatozóides no aparelho genital feminino. A utilização das técnicas de reprodução assistida foram assimiladas por nossa sociedade. Contribuem, pois, para a melhoria da qualidade de vida e da saúde de inúmeras mulheres e homens que encontram nelas a esperança de construir uma família com prole própria.
1.1 Inseminação Artificial
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 848. Ibidem. p. 848. 9 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NEVES, Bruno Torquato de Oliveira (coordenadores). Bioética, biodireito e o Código Civil de 2002. Belo Horizonte, Del Rey, 2004. p. 89. 8
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A inseminação artificial é a obtenção da fecundação, que é sempre natural, por processos mecânicos e com utilização de recursos médicos, através da introdução do esperma no interior do canal genital feminino, sem que ocorra o ato sexual. 10 As questões no âmbito jurídico, acerca do emprego dessa técnica, situam-se, basicamente, no questionamento em relação à origem do sêmen utilizado, o momento da sua utilização e a necessidade de consentimento de ambos os cônjuges. É uma técnica que pode ser conduzida por duas, sendo elas a espécie homóloga e a heteróloga. A primeira, não traz grandes controvérsias, pois o material utilizado pertence ao marido ou companheiro da mulher receptora. A segunda, é aquela em que abre espaço para a utilização do material genético de um terceiro doador, ou seja, a hereditariedade jurídica diverge da biológica. A inseminação artificial seria, segundo Regina Fiúza Sauwen, um auxílio dentro do processo natural de fecundação humana, que poderá estar sendo prejudicado por causa da impotência masculina ou da incompatibilidade sexual entre o casal. Podem também ocorrer problemas quanto à qualidade do esperma (mobilidade ou morfologia anormal). 11 A inseminação artificial, portanto, é uma técnica realizada dentro do corpo da mulher. É necessário que seja introduzido sêmen do marido ou companheiro no canal vaginal da mulher. É preciso considerar, no entanto, questionamentos acerca da utilização da técnica em mulheres solteiras e em casais homossexuais.
1.2 Inseminação Artificial Heteróloga
Guilherme Calmon Nogueira da Gama esclarece que as técnicas de reprodução assistida podem ser adotadas nos casos em que ambos os cônjuges ou companheiros não tenham condições de contribuir com o material genético para a fecundação e, nessas hipóteses, a técnica
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BARBOSA, Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização in vitro. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 45. 11 SAUWEN, Regina Fiúza; HRYNIEWICZ, Severo. O direito in vitro: da bioética ao biodireito. Rio de Janeiro: Editor Lúmen Juris, 1997. p. 76.
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também será de reprodução heteróloga.
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Porém esta pesquisa, ressalta-se, tratará de questões
atinentes à doação de sêmen de terceiro, enquanto a mulher contribui efetivamente com seus gametas. Antes de tratar da inseminação artificial heteróloga, é de primordial importância estabelecer breve distinção entre esta técnica, aspecto central do presente estudo, e a técnica da inseminação artificial homóloga. A inseminação artificial homóloga é uma espécie que não envolve grandes controvérsias entre os pesquisadores do Direito acerca da sua utilização. O material biológico, utilizado para que a mulher venha a ser fecundada, é do próprio marido ou companheiro, ou seja, a paternidade biológica irá coincidir com a paternidade sócio-afetiva. Essa técnica ocorre somente entre o casal, no sentido de que não há, como ocorre na inseminação artificial heteróloga, a presença de um terceiro doador. Tudo ocorre dentro do casal, quando a mulher, por qualquer razão, não consegue conceber pelo processo natural, embora apta à gestação. Recorre, portanto, ao sêmen do marido, fresco ou criogenizado, procedendo-se à inseminação in vivo, recolocando o pré-embrião no útero da mulher. 13 Sobre a inseminação artificial heteróloga, é mister estabelecer o entendimento sobre esta técnica. Ela gera dissonância, principalmente no meio jurídico, sobretudo porque, entre outras questões, a paternidade biológica difere da sócio-afetiva. A reprodução medicamente assistida diz-se heteróloga quando o espermatozóide ou o óvulo utilizado provém de doador estranho ao casal. Nesses casos, é chamada doação de gametas. A prática da doação de gametas é atividade lícita e válida desde que não tenha um fim lucrativo ou comercial. 14 Essa técnica de inseminação artificial ocorre quando o material genético utilizado para que uma mulher venha a ser fecundada não é do marido ou companheiro e, sim, de um
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GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. A nova filiação e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 735-736. 13 DINIS, Joaquim José de Souza. Filiação resultante da fecundação artificial humana – Direito de família e do menor: inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. Coordenação por Sálvio de Figueiredo Teixeira. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1992. p. 45. 14 Constituição Federal Brasileira, art. 199, parágrafo 4°, e Resolução CFM n.° 1.358/92, item IV.
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terceiro doador. Percebível, pois a fragilidade dessa técnica desde pronto, tendo em vista que uma terceira pessoa ad quem, estranha à relação conjugal irá introduzir-se na intimidade do casal. Na França, para a doação de esperma, os CECOS, Centro de Estudos e Conservação de Ovos e Esperma Humanos, exige que o doador seja maior de idade, com menos de cinqüenta anos, casado e pai de, pelo menos, um filho, mais o consentimento da esposa. Somente selecionam doadores de fertilidade comprovada, portanto. 15 Observe-se que a legislação francesa prevê vários requisitos e condições que devem ser observados para que seja reconhecida a legitimidade do recurso às técnicas de reprodução assistida. Eduardo de Oliveira Leite justifica o requisito da prévia paternidade no caso francês: O requisito da prévia paternidade tem as seguintes razões: selecionam-se doadores que fizeram prova de sua fertilidade; eliminam-se os que tiveram filho anormal, diminuindose o risco de doença hereditária; garante melhor reflexão do ato do doador a parir da consideração de que aquele que já experimentou a sexualidade e paternidade tem melhores condições de avaliar o significado da doação. 16
Ainda no contexto francês, os doadores na reprodução assistida heteróloga são submetidos a exames, principalmente sanguíneos para que seja comprovada a normalidade do esperma e para descartar a possibilidade de alguma infecção sexualmente transmissível. Estando tudo correto nesse sentido, o esperma é preparado para o congelamento e após, verifica-se a mobilidade dos espermatozóides, o que torna decisivo nas taxas de sucesso desse tipo de inseminação. 17 No Brasil, a Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1.358, de 11 de novembro de 1992, que estabeleceu uma série de normas éticas atinentes à reprodução assistida, refere, em seu art. 7°, que o doador deve ter a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima compatibilidade com a receptora. A fim de evitar o risco de consangüinidade, no Brasil, limita-se a duas crianças por doador numa área de um milhão de habitantes, conforme dispõe o art. 5° da Resolução do
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LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit. p. 35. Ibidem p. 35. 17 Ibidem p.35.
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Conselho Federal de Medicina n° 1.358/92. Enquanto que na França, esse número é ampliado para cinco. 18 Juliane Fernandes Queiroz afirma que “o recurso à utilização da inseminação artificial deve ser conferido àqueles casais acometidos de infertilidade impeditiva da procriação natural, como meio excepcional para se atingir a plenitude da saúde reprodutiva”. 19 Mister fazer uma incursão no direito comparado acerca de alguns aspectos da presente temática, uma vez que “qualquer estudo jurídico somente ganha foro de cientificidade quando é realizado acima das regras de qualquer sistema jurídico nacional, como se verifica no direito comparado, por exemplo”. 20 A exemplo do que ocorre na Alemanha, a inseminação artificial heteróloga não deve ser proibida de maneira absoluta. Pode ser autorizada em condições restritas, como perturbação duradoura da fecundidade do marido, o qual deve consentir o procedimento de modo formal, como ocorre também na Suécia, nos Estados Unidos, Brasil etc. 21 Ainda na Alemanha, “é obrigatória a conservação centralizada dos dados relativos aos doadores. A criança tem total possibilidade de conhecer sua origem genética, com base nas informações guardadas nos Centros de Reprodução (clínicas ou hospitais)”.22 Ressalta-se que no Brasil, a Resolução n° 1.58/92 do conselho Federal de Medicina veda tal possibilidade, assegurando sigilo das informações tanto dos doadores quanto dos receptores envolvidos na reprodução assistida. Frisa-se que a regra, em quase todos os países que tratam do tema, é o anonimato acerca das informações do doador. É assim na França, na Suíça, em Portugal, no Canadá. Embora países como a Suécia e a Áustria, permitam que a pessoa concebida por meio de reprodução assistida heteróloga possa saber quem foi o doador do material genético, desde de que atinja a capacidade civil e que não busque nenhum vínculo jurídico com o doador. 23
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Ibidem p. 36. QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 87. 20 ZWEIGERT, Konrad e KTZ, Hein. Introduction to Comparative Law. Oxford: Clarendon Press, 1998. Apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op Cit. p. 182. 21 LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit. p. 283. 22 Ibidem. p. 283. 23 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 152. 19
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A pretensão não é esgotar as questões que podem surgir em relação à reprodução humana assistida. Foram apenas breves comentários em torno desse assunto para a melhor abordar o tema proposto.
3 O DIREITO AO ANONIMATO DO DOADOR DO MATERIAL GENÉTICO O princípio do anonimato é visto hoje como a pedra fundamental dos tratamentos de reprodução assistida. A Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1.358/92 estabelece que os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, mantendo-se o sigilo sobre os envolvidos, portanto. A Resolução, no entanto, permite que, em situações especiais, por motivos médicos, informações sobre o doador sejam repassadas a médicos, preservando a sua identidade. 24 São muitas as posições favoráveis ao anonimato do doador, principalmente no que se refere à possibilidade de vínculo jurídico paterno-filial. Eduardo de Oliveira Leite justifica o anonimato do doador da seguinte maneira: [...] a doação de gametas não gera ao seu autor nenhuma conseqüência parental relativamente à criança daí advinda. A doação é abandono a outrem, sem arrependimento sem possibilidade de retorno. É medida de generosidade, medida filantrópica. Essa consideração é o fundamento da exclusão de qualquer vínculo de filiação entre doador e a criança oriunda da procriação. É, igualmente, a justificação do 25 princípio do anonimato.
O autor, portanto, defende o anonimato do doador e, ainda, aduz que se a identidade do doador é revelada, este pode pedir uma reparação civil aos responsáveis pelos danos a ele acarretados. Para ele, “o anonimato é a garantia da autonomia e do desenvolvimento normal da família assim fundada e também a proteção leal do desinteresse daquele que contribui na sua formação”. 26
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Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º 1.358 de 1992. Itens 2 e 3 (capítulo 4). LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit. p. 145. 26 Ibidem p. 339. 25
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O autor, ainda, defende o direito ao anonimato do doador afirmando que “o anonimato respeita o princípio dominante no direito de família, ou seja, não dissocia as estruturas naturais de parentesco, isto é, não permite que a criança tenha um pai biológico e um pai socioafetivo”. 27 Eduardo de Oliveira Leite, também afirma que o anonimato evita que relações com vistas à obtenção de vantagens pecuniárias e responsabilidades oriundas da paternidade. É clara a preocupação do autor com a possibilidade de abalar a estrutura de uma família com a revelação da identidade do doador. Perceba que o autor refere a existência de dois pais para aquele que nasce por meio da inseminação artificial heteróloga. Do ponto de vista puramente biológico, realmente, a paternidade é definida por aquele que contribui com o seu material genético para que seu filho venha a nascer podendo ser, portanto, o doador. Ou, ainda, é aquele que quer por prática sexual, quer por intervenção médica irá, juntamente com sua mulher ou companheira, dar origem a um novo ser. Quando se fala em reprodução assistida heteróloga, no entanto, não há conflito em determinar qual dos pais irá assumir as responsabilidades decorrentes da paternidade, unicamente por uma simples razão: não há dois pais. Há apenas um pai e, de outro lado, um doador. O próprio Código Civil afasta a idéia de que aquele que contribuiu com o material genético para o nascimento da criança é pai desta. A paternidade socioafetiva há muito tempo vem ocupando lugar destacável em nosso ordenamento jurídico. Fica cada vez mais cristalina a prevalência desta sobre a paternidade biológica. Além disso – embora não seja possível determinar o que motiva um homem a doar – aquele que doa, muito provavelmente, não o faz com vistas em assumir a paternidade de um filho, de cuja mãe sequer conhece. Quanto à paternidade, vale mencionar o que refere Gustavo Pereira Leite Ribeiro: O clássico sistema de filiação era estabelecido por presunções ou ficções jurídicas praticamente inatingíveis. A maternidade era atribuída com exclusividade à mulher no exato momento do parto. Por sua vez, a paternidade era estabelecida a partir de um critério nupcialista, que objetiva nitidamente proteger o patrimônio e garantir a paz familiar. Desta forma, a paternidade do filho concebido por mulher casada era atribuída 27
Ibidem. p. 341.
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ao marido desta, que possuía o direito exclusivo de impugná-la em limitadíssimo prazo e circunstâncias. Por outro lado, a paternidade do filho concebido por mulher solteira era determinada somente por meio do reconhecimento voluntário ou judicial do suposto pai biológico.28
Leciona Fachin, “é possível afirmar que a filiação é uma moldura a ser preenchida, não com meros conceitos jurídicos ou abstrações, mas com vida, na qual pessoas espelham sentimentos”. 29 Voltando à questão do anonimato, Maria Cláudia Crespo Brauner afirma que: [...] a identidade do doador só pode ser revelada em casos de critérios médicos emergenciais, como, por exemplo, nas situações em que a pessoa tenha necessidade de obter informações genéticas indispensáveis à sua saúde, ou quando da utilização de gametas com carga genética defeituosa. 30
Tycho Brahe Fernandes entende que a lei deve prever a quebra do sigilo do doador do material genético por via judicial, mas as informações deveriam ser repassadas ao concebido por meio da inseminação somente quando este completasse a maioridade. Frisa que não seria admitido vínculo paterno-filial. 31 A seu turno, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, considera que o anonimato das pessoas envolvidas no processo de reprodução assistida deve ser mantido, mas quanto à pessoa que nasceu por meio da técnica heteróloga, diante do reconhecimento pelo Direito brasileiro dos direitos fundamentais à identidade, à privacidade e à intimidade, a ela deve ser possibilitado o acesso às informações sobre toda a sua história sob o prisma biológico para o resguardo de sua existência, com a proteção contra possíveis doenças hereditárias, sendo o único titular de interesse legítimo para descobrir suas origens. 32 Destacável no tocante à questão do anonimato, na obra de Luiz Roldão de Freitas Gomes, que na Suécia existe lei no sentido de permitir que o concebido por meio de inseminação
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Ibidem. p. 299. FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva: Belo Horizonte, Del Rey, 1996. p. 29. 30 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 88. 31 FERNANDES, Tycho Brahe. A reprodução assistida em face da bioética e do biodireito: aspectos do Direito de Família e do Direito das Sucessões. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. p. 112. 32 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp 803- 804.
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artificial, após ter atingido a maioridade e ser ouvido por assistente social, tenha direito de descobrir a identidade do doador, através dos documentos mantidos no hospital. 33 Quanto à questão do anonimato, percebível a fragilidade do assunto, no sentido de que há divergência explícita sobre a temática. Há autores que defendem o anonimato, de acordo com os princípios da intimidade e da privacidade; enquanto outros, como por exemplo, Selma Rodrigues Petterle, alegam que “o direto à identidade genética tem seu fundamento no princípio da dignidade humana, não podendo, pois, ser obstaculizado”. 34 Os posicionamentos desfavoráveis ao anonimato pairam no sentido de que não há a pretensão de constituir vínculo de filiação entre a criança e o doador, uma vez que é reconhecida a importância da paternidade socioafetiva; nem, tampouco, adquirir vantagens de ordem pecuniária. É somente um direito de buscar a identidade genética. Interessante a abordagem da questão do anonimato no site do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), na medida em que é possível encontrar ali inúmeras opiniões de profissionais da área da saúde e do Direito numa discussão quanto à identificação ou não dos doadores de sêmen. Destacáveis algumas opiniões: “Em primeiro momento, vejo mais desvantagens. Se pensarmos no risco e benefícios, pode trazer conseqüências de ordem jurídica como ações judiciais de pedido de pensão ou heranças. Alegar o direito de saber quem é o pai biológico é um endeusamento da biologia; é valorizar o laço biológico, quando ele tem cada vez menos importância. Quem é o pai? O sujeito que cria com amor e carinho ou aquele que, por motivos que desconhecemos, resolveu doar um pouco de sêmen? A identificação dos doadores fará com que ninguém mais queira doar” (Marco Segre – médico ex-conselheiro do CREMESP).35 Uma importante observação de Marco Segre é a possibilidade de diminuir o número de doadores nos bancos de sêmen. Considerando que muitos doadores não gostariam de 33
GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Questões jurídicas em torno da inseminação artificial. Revista dos Tribunais, ano 81, v. 678, p. 271, abr. 1992. 34 PETTERLE, Selma Rodrigues. Contornos do direito fundamental à identidade genética da pessoa humana na Constituição brasileira. 2003. 108f. Trabalho de conclusão de curso (grau de bacharelado em ciências jurídicas e sociais). Pontifícia Universidade Católica do rio Grande do Sul. 35 Doadores de sêmen devem ser identificados? Identificação dos doadores de sêmen: direitos em conflito. Disponível em: < http://www.cremesp.org.br/siteAcao=Revista&id=133> Acesso em 19/09/2007.
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ter sua identidade revelada, isso poderia desmotivar a doação. Ademais, no Brasil, ao contrário do que ocorre na Inglaterra, as doações de sêmen, conforme disciplina a Resolução do Conselho Federal de Medicina n.° 1.358/92, são gratuitas. Os doadores, portanto, não recebem nenhuma vantagem pecuniária em troca. Valiosa também a opinião de Nilson Donadio: “Ao pensar no benefício que representa aos casais que querem ter filhos, acredito que o sigilo deve ser mantido, ou ninguém mais vai querer doar. A Resolução do CFM prevê que não se pode utilizar o sêmen do mesmo doador mais de duas vezes numa determinada área. A possibilidade de casamento de consangüíneos é remota e não é maior do que a entre parentes gerados por relação sexual. Quanto ao direito de a pessoa saber quem é seu pai biológico, a forma como se faz inseminação hoje no Brasil não impede que isso seja possível no futuro. O laboratório ou clínica têm de preservar, sob sigilo, a identidade do doador. Se algum dia um juiz solicitar essa identificação, o médico pode consultar o Conselho de Medicina se deve ou não abrir o seu sigilo médico”. 36 Oportuno ressaltar que a Resolução n.° 1.358/92 prevê que o sigilo sobre a identidade do doador somente pode ser revelado em situações especiais, exclusivamente para médico. A seu turno, adota posicionamento favorável à manutenção do anonimato Gustavo Tepedino, aduzindo que “o anonimato é a única forma de se garantir que a doação de esperma seja um ato verdadeiramente desinteressado”. Consoante a opinião de Erikson Marques, “as soluções são boas, mas podem trazer mais problemas do que aqueles que se quer pretende evitar, podendo gerar uma série de situações constrangedoras. No afã de salvaguardar determinados direitos de alguns, não se pode deixar de preservar os de outros”. 37 Vale mencionar que, coerente com sua tradição liberal, diversos estados norteamericanos não enunciam norma de ordem pública sobre o tema, deixando à liberdade dos contratantes a decisão sobre o sigilo. Cabe ao doador declarar, quando catalogado no banco de sêmen, se permite sua futura identificação. Salienta-se, que cerca de 80% das pacientes, que 36 37
Ibidem. Ibidem.
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buscam as técnicas de inseminação heteróloga, optam pelos doadores que se manifestam positivamente quanto a isto. 38 É possível observar que existem diferentes correntes a respeito da defesa ou não do anonimato do doador. Há posicionamentos que defendem o anonimato absoluto, alegando que se os doadores pudessem ser identificados cairia o número de doações. Ressaltam que os doadores não gostariam de correr o risco de ter alguém cobrando direitos decorrentes da paternidade. Há correntes, todavia, que defendem que deve ser permitida a identificação do doador se a pessoa, que nasceu a partir da inseminação artificial heteróloga, assim o desejar. Existe, entretanto, uma corrente intermediária que entende ser cabível revelar a identidade do doador em casos de doenças hereditárias, por exemplo.
3.1 Uma análise dos contratos de inseminação artificial heteróloga
Em visita ao Centro de Reprodução Humana – Gerar, do hospital Moinhos de Vento, localizado à Rua Ramiro Barcellos, n.º 910 foi possível observar que não havia uma espécie de contrato de doação de espermas. Isso se justifica pois, segundo Helena Von Eye Corleta39 os gaúchos não têm o costume de realizar doações de espermas. Conforme a Helena Corleta, no Rio Grande do Sul não há registro desse tipo de doação, sendo necessário buscar esperma congelado em bancos de sêmen como, por exemplo, no hospital Albert Einstein. 40 Helena Corleta mencionou, no entanto, que a doação de óvulos ocorre com bastante freqüência. Frisou também que os homens, ao doarem esperma para inseminar suas mulheres ou companheiras, assinam um documento, o qual lhes é assegurado que a quantidade de esperma não utilizado no procedimento será descartada. Segundo Helena Corleta, os homens mostravam-se muito preocupados com a possível utilização de seu esperma para inseminar outras
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KONDER, Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos contratos de reprodução assistida. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, 2001. v. 7. p. 256. 39 Helena Von Eye Corleta é ginecologista e especialista em reprodução humana assistida, médica do Gerar, do hospital Moinhos e do centro de embriologia do hospital de Clínicas de Porto Alegre. 40 Dados fornecidos pela médica Helena Von Eye Corleta, em visita realizada dia 28 de setembro de 2007 à Gerar, clínica de reprodução assistida do hospital Moinhos de Vento à Rua Ramiro Barcellos, n.º 910, Bairro Moinhos de Vento. Porto Alegre/RS.
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mulheres. Isso, evidentemente, sem o consentimento deles e do marido ou companheiro da receptora, não seria possível. Em virtude da falta de doadores de esperma, não há formulado espécie de contrato desse tipo de doação, como há de doação de fertilização in vitro com doação de óvulos, por exemplo. No entanto, foram feitas indagações de como seria esse contrato, quais as particularidades que teria. A médica referiu que não fugiria muito do modelo de doação de óvulos. Obteria os seguintes dados: a quem se destina a técnica da inseminação artificial heteróloga; o compromisso da clínica ou do hospital com o sigilo da identidade das partes envolvidas; a descrição dos procedimentos para a preparação da receptora do esperma; as complicações mais freqüentes como, por exemplo, gravidez múltipla; os custos do procedimento; e, por fim, o termo de consentimento assinado pelo doador. Carlos Nelson Konder, refere que os contratos de reprodução assistida devem ser lidos e interpretados de acordo com as normas constitucionais. Ao ter por objeto gametas, embriões ou fetos, assim como a saúde dos pais, tais tipos contratuais tratam de valores como a vida, integridade física, privacidade, família e dignidade humana. 41 Em nosso ordenamento jurídico não é permitida a comercialização do material biológico (sangue, esperma, órgãos). Os doadores, portanto, não realizam as doações de esperma com fins lucrativos. Do mesmo modo a quantia paga ao banco de sêmen pela clínica que faz a intermediação se refere, supostamente, aos serviços de conservação e informação, nunca ao material biológico. 42 É possível observar na obra de Carlos Nelson Konder a possibilidade de coisificação da vida humana. É sabido que, ao buscar a reprodução assistida, o casal deseja ter um filho, acima de tudo, saudável. O que não se pode permitir é que seja feita seleção de como esse filho será fisicamente, pois, desse modo, o objetivo não será buscar um filho através das técnicas mas, sim, um produto feito sob medida. 43 Traçando um paralelo com o que foi exposto por Helena Von Eye Corleta, nos contratos de inseminação artificial heteróloga, assim como os demais de reprodução assistida, são inseridas, de modo esclarecedor, as complicações mais freqüentes que podem ocorrer como, por 41
KONDER, Carlos Nelson. Op. Cit. p. 250. Constituição Federal, art. 199, § 4º, in fine. 43 KONDER, Carlos Nelson. Op. Cit.p. 251.
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exemplo, defeitos de nascimento. Segundo a médica, a porcentagem de malformação dos recém nascidos não é muito diferente daqueles através do procedimento natural. É possível perceber que o anonimato tem por objetivo primordial garantir ao doador que não assumirá a paternidade, com os ônus dela decorrentes, especialmente os patrimoniais, dos filhos havidos da utilização de seu sêmen. Argumentam seus defensores que, caso não seja garantido o sigilo, não haverá doadores, restando inviabilizada a técnica de inseminação artificial heteróloga. Por outro lado, não há como negar que, com a manutenção do sigilo, existe a possibilidade de ocasionar, no futuro, uniões incestuosas, tendo em vista que a pessoa gerada por reprodução assistida poderá, desconhecendo os laços sanguíneos, unir-se sexualmente a seu pai ou irmãos, o que poderá gerar filhos com mazelas biológicas. É inegável a preocupação com o fato da criança tornar-se objeto de disputa entre doador e seus pais. Ou, ainda, que a vedação do anonimato impeça a autonomia e o desenvolvimento normal da família constituída com o auxílio da biotecnologia, porventura temerosa de ser importunada pelo doador ou vice-versa. Mas também não há como negar a existência do direito dessa criança conhecer suas origens biológicas. O anonimato, imposto pela Resolução ora mencionada, face à insuficiência de legislação pertinente, tem sido visto como dogma absoluto no ordenamento jurídico brasileiro, afrontando direito quiçá maior, qual: o direito à identidade genética do ser humano. É necessário atentar para a necessidade premente de harmonizar os princípios em questão.
4 O DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA
A identidade genética é a referência biológica de cada ser humano. E o conhecimento desse referencial biológico pode gerar conflito, na medida em que o anonimato do doador do material genético é assegurado. Como menciona Maria Christina de Almeida: [...] toda pessoa necessita saber sua origem – trata-se de uma necessidade humana – e desenvolver sua personalidade a partir da paridade biológica, não se podendo identificar no sistema jurídico brasileiro da atualidade, quando prevê a possibilidade de revelação
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da origem genética, seja em nível constitucional ou em nível infraconstitucional, um abrigo seguro do anseio de permitir à pessoa a construção de sua própria identidade. 44
Paulo Luiz Netto Lôbo afirma que “o direito ao conhecimento da origem genética não significa necessariamente direito à filiação. Sua natureza é de direito da personalidade, de que é titular cada ser humano”.45 O autor também afirma que: Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para a preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. 46
O direito à identidade genética não está expressamente consagrado no texto constitucional. Mas é um direito fundamental. Isso se justifica na medida em que o rol de direitos fundamentais na Constituição Federal não é taxativo, “restando aberta a possibilidade de identificar e construir outras posições jurídicas fundamentais que não as positivadas”. 47 Assim leciona Selma Rodrigues Petterle: Em que pese o direito fundamental à identidade genética não estar expressamente consagrado na atual Constituição Federal de 1988, seu reconhecimento e proteção podem ser deduzidos, ao menos de modo implícito, do sistema constitucional, notadamente a partir do direito à vida e, de modo especial, com base no princípio fundamental da dignidade humana, no âmbito de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais. De tal sorte, o fio condutor aponta o norte da continuidade dessa investigação: a cláusula geral implícita de tutela das todas as manifestações essenciais da personalidade humana. 48
Além da cláusula geral implícita de tutela dos direitos fundamentais, Selma Rodrigues Petterle considera também a dignidade da pessoa humana como um fundamento constitucional do direito à identidade genética. Selma Rodrigues Petterle, ainda, menciona que o fato de ter na Constituição Federal um rol não exaustivo se dá por causa da chamada cláusula aberta. Pois há direitos que 44
ALMEIDA, Maria Christina de. Dna e estado de filiação à luz da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 127. 45 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista brasileira de Direito de Família. 19:133-56. p. 153. 46 Ibidem. pp. 152 – 153. 47 PETTERLE, Selma. Op. Cit. p. 87. 48 Ibidem. p. 89.
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possuem relevância, conteúdo materialmente significativo e que não estão positivados, merecedores, portanto, de proteção constitucional. 49 Selma Rodrigues Petterle assevera que “o papel do hermeneuta na identificação e construção de direitos fundamentais, a partir desta cláusula aberta, assume, então, uma singular importância”.50 Em que pese o item dois do capítulo quatro (doação de gametas ou pré-embriões) da Resolução CFM 1358/92, determinar que “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”, e o item três, do mesmo capítulo, determinar que “obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas ou pré-embriões”, assim como dos receptores, não seria conveniente lembrar que o direito à identidade genética, inalienável, imprescritível como é, devesse estar a admitir exatamente o contrário do que dispõe a Resolução? 51
Destacável a fragilidade do tema, tendo em vista que há uma colisão de direitos fundamentais. Não há como estabelecer uma regra para determinar a prevalência de um sobre o outro, pois ambos de fundamental importância. Mas uma coisa é certa: assegurando um; estar-seá violando outro. Premente legislação sobre o tema para possibilitar a harmonia entre os princípios. A questão que envolve o direito ao conhecimento da origem genética é muito delicada, porque envolve o sentimento, o desejo e até mesmo a necessidade de conhecer suas origens para obter respostas para os mais variados questionamentos. Como bem aponta Paulo Luiz Netto Lôbo, “a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo”. 52 Oportuna observação do autor no sentido de que nada aponta para a atribuição da paternidade àqueles que fazem doação de gametas. Aquele que nasce através da inseminação
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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4 ed. rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 99. 50 PETTERLE, Selma. Op. Cit. p. 91. 51 Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.358 de 1992. Itens 2 e 3 do capítulo 4. 52 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Op. Cit. p. 153.
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artificial heteróloga poderia, para fins de direito da personalidade, procurar saber quem é o doador, mas não poderia fazê-lo com o escopo de atribuição da paternidade, portanto. Na medida em que é reconhecido que a origem biológica da filiação não é mais o dado crucial no estabelecimento da paternidade, é forçoso reconhecer que o direito ao seu conhecimento afeta de forma alguma o estado de filiação. Conhecer a origem genética não significa estremecer a relação paterno-filial constituída pelo vínculo civil derivado da reprodução assistida, mas tão somente dar concretude ao direito à identidade genética. A origem biológica da filiação deixou de ser a questão mais relevante para se tornar uma espécie, juntamente com a não biológica. A afetividade é o que se privilegia. Esta é a tendência atual do ordenamento jurídico. Não se pode negar, todavia, que, como acentua Paulo Luiz Netto Lôbo, os Tribunais vêm confundindo o que seja estado de filiação com origem genética. A distinção, contudo, é necessária para que, no confronto de interesses protegidos pelo Direito, seja possível escolher aquele que deve preponderar. 53 A Constituição Federal não tem uma cláusula geral de proteção aos direitos da personalidade. No entanto, embora não possua inserido em seu texto um dispositivo específico destinado a tutelar a personalidade humana, reconhece e tutela o direito geral de personalidade através do princípio da dignidade da pessoa humana, que consiste em uma cláusula geral de concreção da proteção e do desenvolvimento da personalidade do indivíduo. 54 Adriano De Cupis menciona que “inexistindo os direitos inerentes à pessoa humana, esta não seria mais a mesma, posto que para a existência de outros direitos subjetivos da pessoa, é essencial que os direitos da personalidade estejam presentes”. 55 Assegura Selma Rodrigues Petterle: Há bens jurídicos fundamentais a proteger, bens extremamente relevantes em termos de conteúdo, isto porque estreitamente vinculados à vida e a dignidade das pessoas humanas. Este parece ser, com o rigor que merece, o critério aferidor para identificar a
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Ibidem. p. 134. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 137. 55 DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalitá. Aput Almeida, Maria Christina de. DNA: estado de filiação à luz da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 66. 54
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identidade genética como um direito fundamental implícito na ordem jurídicoconstitucional pátria. 56
A Constituição Federal consagrou expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, princípio jurídico que visa proteger a pessoa humana na sua própria essência, confirmando-a como fundamento e fim da sociedade e do Estado brasileiro. 57 O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento para a maioria dos direitos elencados no catálogo de direitos fundamentais, conferindo unidade de sentido ao sistema desses direitos. 58 Selam Rodrigues Petterle afirma sobre a identidade genética: [...] a identidade genética, por sua relevância e conteúdo, foi elevada a posição de direito fundamental. Com o fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito fundamental à vida [...] guindou-se o direito à identidade genética à posição de direito fundamental implícito na ordem constitucional pátria. Isto, evidentemente, no âmbito de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, como cláusula geral de implícita de tutela de todas as manifestações essenciais da personalidade humana. 59
A autora aduz que é dever do Estado legislar sobre a matéria, estabelecendo os mecanismos
garantidores
da
identidade
genética
do
ser
humano,
via
legislação
infraconstitucional. Deverão ser concebidos os mecanismos legais para o aperfeiçoamento da proteção jurídica da identidade genética.
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O anonimato do doador na inseminação artificial heteróloga, embora tenha por fito a proteção e preservação da pessoa gerada por essa técnica, poderá tomar feições de inconstitucionalidade quando, no confronto de interesses, for prestigiado em detrimento do direito ao conhecimento da identidade genética. A regra do anonimato, ínsita na Resolução administrativa ora mencionada, no entanto, vem sendo aplicada indistintamente porque o legislador brasileiro ainda não erigiu satisfatória legislação pertinente ao tema.
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PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. pp. 91 – 92. 57 Ibidem. pp. 175 – 176. 58 Ibidem. p 176. 59 Ibidem. p. 176. 60 Ibidem. p. 177.
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É possível ter a certeza de que um corpo normativo eficazmente protetivo e assegurador de direitos será traçado, considerando que a norma estabelecida começa por tolher um dos mais expressivos direitos, denominado direito à identidade genética? Há necessidade premente do Direito cumprir seu papel, propiciando o regramento que possa, ao mesmo tempo, garantir a evolução científica e o respeito aos princípios constitucionais, sobretudo, ao princípio da dignidade da pessoa humana.
5 CONCLUSÃO
A reprodução assistida, sob a espécie heteróloga, assume relevância, pois gera controvérsia em diversos campos, destacando-se o ético, o moral, o religioso e o jurídico. Envolve a intervenção de uma pessoa ad quem ao casal em seu processo reprodutivo. A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.358/92, a qual contém normas éticas a serem seguidas pela classe médica na utilização das técnicas de reprodução assistida, não é norma cogente. Urge, portanto, a necessidade de regulamentação própria sobre o assunto, com o fito de atender os interesses da sociedade brasileira. De pronto, considerando que o anonimato é a regra nos países que versam sobre o assunto, é possível estabelecer uma posição intermediária quanto a ele, no sentido de não considerá-lo dogma absoluto, nem, tampouco, desconsiderá-lo totalmente. O anonimato pode ser relativizado para que, face aos interesses da pessoa gerada através da inseminação heteróloga, seja possível que essa pessoa conheça suas origens genéticas. Não há incompatibilidade entre o direito ao conhecimento da ascendência biológica e a filiação. Não há necessidade de desconstituir o vínculo afetivo ente pai e filho. Nem, tampouco, estabelecer vínculo algum entre doador e a pessoa gerada. É possível estabelecer uma harmonização entre o direito ao anonimato e o direito à identidade genética. Basta, para tanto, legislar seriamente sobre o assunto. Não há como ignorar a
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existência do direito fundamental à identidade genética em detrimento do direito ao anonimato do doador. É preciso surgir legislação que atente à garantia da pessoa, nascida por meio de técnica reprodutiva heteróloga, de conhecer sua origem genética, preservando, contudo, o parentesco civil decorrente dos laços de afeto construídos com seus pais jurídicos. O regramento do assunto parece ser o passo mais urgente e acertado no momento, em face da omissão legislativa hoje vivenciada.
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