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Nos horizontes lingüísticos do Iluminismo: A História do Brasil de Robert Southey André da Silva Ramos Universidade Federal de Ouro Preto 1 Resumo: ...
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Nos horizontes lingüísticos do Iluminismo: A História do Brasil de Robert Southey

André da Silva Ramos Universidade Federal de Ouro Preto 1

Resumo: ESTE TEXTO PRETENDE ANALISAR COMO ROBERT SOUTHEY UTILIZOU AS TEIAS LINGUÍSTICAS DAS MACRONARRATIVAS ILUSTRADAS EUROPÉIAS PARA NARRAR O ESTÁGIO DE DESENVOLVIMENTO DO BRASIL ATÉ O INÍCIO DO SÉCULO XIX. AS LINGUAGENS UTILIZADAS POR SOUTHEY EM SUA HISTÓRIA DO BRASIL, PUBLICADA ENTRE 1810 E 1819, JÁ ERAM EMPREGADAS POR HISTORIADORES E FILÓSOFOS EUROPEUS COMO EDWARD GIBBON E ADAM SMITH EM SUAS CLÁSSICAS OBRAS DECLINE AND FALL OF THE ROMAN EMPIRE E WEALTH OF THE NATIONS, PUBLICADAS EM 1776, E SE CONSTITUÍAM ENQUANTO MODELOS NARRATIVOS ATÉ A CONSOLIDAÇÃO DO ROMANTISMO NA ERA VITORIANA. GIBBON E SMITH, ASSIM COMO HUME E ROBERTSON, ESTAVAM EMERSOS NOS HORIZONTES LINGUÍSTICOS ILUSTRADOS E NARRARAM A DISSOLUÇÃO DAS CULTURAS CLÁSSICAS E MEDIEVAIS COM O INTUITO DE COMPREENDEREM PROCESSUALMENTE A FORMAÇÃO CULTURAL MODERNA. PARTINDO DE UMA PRÉVIA COMPREENSÃO DA HISTORIOGRAFIA ILUSTRADA PRETENDEMOS ANALISAR COMO A HISTÓRIA DO BRASIL DE SOUTHEY É UM PRODUTO LINGUÍSTICO DO FINAL DO ILUMINISMO. O NOSSO INTUITO É DEMONSTRAR COMO TAL NARRATIVA SE CONSTITUI ENQUANTO UM PROJETO DE UNIVERSALIZAÇÃO DAS VIRTUDES DO HOMEM MERCANTIL E CULTIVADO ATRAVÉS DA LIBERDADE DE IMPRENSA, DA FORMAÇÃO DE UMA ESFERA PÚBLICA CRÍTICA, DO ESTABELECIMENTO DE LEIS LIBERAIS E DA AMPLIAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA.

Palavras-chave: Iluminismo, linguagens, Robert Southey

O nosso objetivo neste texto é analisar como Robert Southey utilizou as teias lingüísticas das macronarrativas ilustradas européias para narrar acontecimentos da história do Brasil. Pretendemos demonstrar através do exame de alguns excertos da História do Brasil de Southey como o contexto discursivo do iluminismo ultrapassa as intencionalidades do historiador e poeta laureado britânico na composição da obra.

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Analisaremos a História do Brasil de Southey como um produto lingüístico do final do iluminismo.2 Certamente, as representações da historiografia iluminista sobre o passado não prescindiram da subjetividade dos historiadores, constituídas por suas preferências estéticas e políticas. Entretanto, não podemos separar a formação da consciência subjetiva dos autores das experiências sociais da linguagem. O historiador britânico John Pocock nos apresenta a autonomia dos contextos lingüísticos, expondo que estes são capazes de se auto-afirmarem e interagirem com crescente complexidade com o contexto da experiência (POCOCK, 2003: 41). A linguagem, segundo Pocock, não é apenas um reflexo ou um efeito das estruturas sociais, ela “interage com a experiência e fornece as categorias, a gramática e a mentalidade por meio das quais a experiência tem de ser reconhecida e articulada” (POCOCK, 2003: 55). O estudo da linguagem pelos historiadores permite a compreensão de como uma determinada sociedade vivenciava as experiências, quais eram passíveis de percepção e que respostas lingüísticas poderiam lhes ser formuladas (POCOCK, 2003: 56). As produções textuais de um dado contexto representam enunciações lingüísticas disponíveis a uma série de autores. As linguagens que constituem a História do Brasil de Southey também vigoram nas obras de historiadores e filósofos europeus do século XVIII como Edward Gibbon, David Hume, William Robertson, Adam Ferguson, Adam Smith e Edmund Burke.3 Estes intelectuais estavam emersos no mesmo contexto lingüístico e narraram a dissolução do mundo clássico e do mundo medieval, compreendendo processualmente a especificidade da formação cultural moderna perante outras experiências temporais. O desafio das macronarrativas era apontar como se poderia evitar a corrupção do mundo moderno e o seu conseqüente declínio. Para os historiadores e filósofos do iluminismo a virtude clássica dos antigos se corrompeu perante a grandeza desmesurada do Império Romano.4 O declínio do mundo clássico possibilitou a ascensão do feudalismo na Europa Ocidental, ou como Edward Gibbon apresenta a era de “barbarism and religion”. A fragmentação do poder soberano do Império, a dominação ideológica da Igreja Católica e o declínio do comércio são apresentados nas macronarrativas ilustradas como elementos que caracterizam o retrocesso temporal de uma civilização. Their narratives passed through – without always mastering – the period of the wars of Religion in the sixteenth and seventeenth centuries, to recount the emergence of a system of a strong sovereign states, both multiple monarchies and confederations, linked together by treaties and commerce to a point where ‘Europe’ could be considered (despite it wars) a republic or confederation, and practicing a reason of

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state which was an index to their capacity to conduct civil government undisturbed by papal monarchy or confessional anarchy. This system of states was supported by, and might be thought the outward expression of, a cultural system of shared manners, possible only in a deeply commercial civilization, which cement the relations between both Enlightened Europeans and Europeans states. The ‘Enlightened narrative’ thus set itself to be both a historiography of state and historiography of society, and took as its telos the ideally Enlightened system existing (roughly) between the wars of the Spanish succession and the American and French revolutions (POCOCK, 1999b: 2).

Para os pensadores iluministas a ascensão do comércio com a consolidação dos Estados Nacionais favorecia a interdependência e a solidariedade entre as pessoas. Essas novas relações sociais deveriam fomentar reflexões éticas que demonstrassem a preocupação do homem com o seu bem-estar e o do próximo (POCOCK, 2003: 192). Dessa forma, as macronarrativas ilustradas almejavam a aceleração de um futuro no qual as virtudes do homem mercantil e cultivado se universalizassem através da ampliação do livre comércio, da liberdade de imprensa, da formação de uma esfera pública crítica e da consolidação das constituições. Um dos elementos fundamentais para a sustentação do Império britânico nos séculos XVIII e XIX foi a expansão comercial. Tal expansão propiciou à emergente economia britânica o contato com pessoas e coisas em níveis globais. Flávia Varella apresenta como o inglês John Armitage em sua História do Brasil, publicada em 1836, mobiliza o vocabulário do “humanismo comercial” para explicar o estágio de desenvolvimento do Brasil. Segundo a autora, John Armitage relata como a colonização portuguesa gerou a impossibilidade de uma sociedade comercial no Brasil, país que não apresentava condições para o desenvolvimento de uma educação sentimental e para o refinamento das maneiras (VARELLA, 2009, passim). Assim como a obra de Armitage, a História do Brasil de Southey se apresenta crítica ao modelo de colonização portuguesa. Maria Odila da Silva Dias expõe em sua obra O fardo do homem branco como Southey se opunha à utilização do trabalho escravo, à administração fortemente centralizada, à concessão de monopólios, ao exclusivo comercial, aos antigos sistemas fiscais e as leis de navegação. Para Southey, as vantagens civilizadoras do comércio possibilitavam a diversificação das necessidades, o estímulo ao convívio, a vizinhança cordial, as comunicações entre as regiões inóspitas e a integração da colônia à civilização ocidental (SILVA DIAS, 1974, passim). O primeiro volume da História do Brasil foi publicado em 1810, o segundo em 1817 e o terceiro em 1819. A composição de parte significativa da obra foi simultânea à crise internacional provocada pelo bloqueio continental napoleônico e à transferência da Corte de

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Lisboa para o Rio de Janeiro, marco fundamental da crise do Antigo Regime português. Neste período João Paulo Pimenta e Valdei Araujo apontam que foi conferida uma nova dignidade histórica ao Brasil no conjunto do Império português, no qual se acentuou a idéia de especificidade da colônia. Neste momento de crise e aceleração do tempo os autores ressaltam que a experiência do presente se consolidou como um momento de transição para um futuro aberto que se procurava prognosticar. Com efeito, essa nova percepção de tempo foi acompanhada da necessidade de se escrever uma história geral e filosófica do Brasil imbuída do intuito de diagnosticar as causas e superar a crise (PIMENTA & ARAUJO, 2009: 127 128). O primeiro a assumir este desafio foi Southey e para acessarmos o campo discursivo iluminista vigente em sua obra examinaremos a fonte “Progressos do Brasil no correr do século XVIII, e seu estado ao tempo de passar-se para ali a sede do Governo”, capítulo que encerra o terceiro volume da História do Brasil. Centralizaremos nossa análise nas críticas presentes na fonte ao modelo de colonização portuguesa, especialmente com relação à política pombalina, considerada um retrocesso, e a sua valoração positiva da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, que por sua vez é considerada um avanço. Apesar de tecer elogios ao reformismo ilustrado de Pombal, certamente supervalorizados pela historiadora Maria Odila da Silva Dias, o texto de Southey apresenta críticas contundentes com relação às medidas políticas do ministro de Dom José. [S]obreviera a Pombal a parte pior da sua administração, tomando o governo em todos os seus ramos um caráter de despotismo oriental para o qual a má execução das leis e o jugo da Inquisição haviam preparado os portugueses. Viam-se os subalternos do governo investidos num poder que nem dos mais inteligentes e virtuosos dos homens devera confiar-se... que admiração se tão freqüentes eram os abusos? (...). A opressão a que andavam expostos os indivíduos parecerá incrível a quem tem a felicidade de viver debaixo da proteção de boas leis (SOUTHEY, 1997: 474).

As linguagens ilustradas vigentes na obra de Southey impunham críticas contundentes a formas de governos não regulamentadas por constituições e que não asseguravam a liberdade privada dos cidadãos, assim como o acesso dos mesmos às informações que os dignificavam ao debate público. Edmund Burke nas Reflexões sobre a Revolução em França apresenta a constituição consolidada na Inglaterra após a Revolução Gloriosa como um “corpo político”, concebido pelos cidadãos como fruto de um “acordo comum” e de um “pacto original”. Enredado nas teias lingüísticas ilustradas Burke, assim como Southey, rechaça a violência, identificando nas constituições a consolidação para a cultura ilustrada européia. A vivência sobre a proteção de boas leis possibilitaria aos cidadãos o cultivo das 4

liberdades privadas e a prática da solidariedade pública mediada pelo refinamento das maneiras. Nesse sentido, Burke expõe o compromisso dos cidadãos e do Estado com as leis constitucionais: As partes constituintes de um Estado devem respeitar as obrigações públicas que elas têm umas em relação às outras e em relação a todos os que derivam algum interesse sério de seus compromissos, da mesma forma que um Estado, como um todo, é obrigado a manter sua palavra face a comunidades separadas. De outra forma, competência e poder seriam logo confundidos, e as leis nada mais seriam que injunções da força vitoriosa (BURKE, 1982: 60).

O campo discursivo Iluminista ganhou maior autonomia na Inglaterra a partir de 1803, quando a imprensa garantiu seu espaço nas assembléias parlamentares. Com a institucionalização das críticas da imprensa às medidas da Coroa e as deliberações do Parlamento os avanços políticos passaram a ser medidos pelo grau de discussão entre Estado e imprensa. Os debates políticos também foram favorecidos pela dinamização dos espaços urbanos. No primeiro decênio do século XVIII existiam mais de 3000 cafés no centro de Londres. A cidade possuía cafés, teatros, museus, concertos, clubes de livros, círculos de leitura e uma imprensa atuante. Segundo Habermas, esses espaços se constituíam enquanto centros de crítica política e literária, na qual começa se efetivar uma espécie de paridade entre nobres e burgueses, já que os cerimoniais de hierarquias nobiliárquicas eram substituídos pela polidez da igualdade (HABERMAS, 1984, 58 - 59). Southey estava enredado no campo discursivo ilustrado e a amplitude das polêmicas que emergiram a partir das suas publicações na Quartely Review como nas suas obras Book of Church e History of the Peninsula War é representativa de um amplo mercado de periódicos, livros e resenhas críticas. Apesar do envolvimento em inúmeras polêmicas com personalidades notórias como Charles Butler, Lord Byron, os historiadores William Napier e Henry Hallam, Southey foi considerado como um completo homem de letras por muitos dos seus contemporâneos. Neste particular, podemos mencionar que Southey foi condecorado pelo príncipe regente, em 1813, como poeta Laureado. Foi eleito membro da History Society of Massachusetts, em 1821, assim como da American Antiquarian Society, em 1823. Em 1826 declinou ao convite para se tornar um membro do Parlamento. Em 1827 foi congratulado com uma medalha de ouro pela Royal Society of Literature. Suas publicações na Edinburgh Annual Register, um periódico de orientação política Tory, eram consideradas por seus rivais whigs Francis Jeffrey e Henry Brougham, editores da Edinburgh Review, como grandes obras de história contemporânea que deveriam ser debatidas no Parlamento. A opinião dos antagonistas da Edinburgh Review reforça a argumentação de um escritor anônimo da 5

Literary Gazzete, que em uma resenha publicada em 1823 afirma que o nome de Southey deveria ser imortalizado como os de Gibbon, Hume e Robertson (SPECK, 2006, passim). Emergentes em um horizonte discursivo enriquecido pela liberdade de imprensa e pelos debates entre os constitucionalistas whigs e tories as linguagens político-historiográficas que constituem a História do Brasil de Southey se opunham criticamente às medidas das políticas pombalinas impostas à colônia de Portugal. As medidas autoritárias do ministro são narradas por Southey enquanto impulsionadoras em potencial de ações políticas revolucionárias no território brasileiro (SOUTHEY, 1997: 459). Compartilhando um vocabulário político semelhante ao de Edmund Burke, Southey se apresenta contrário aos princípios da Revolução Francesa.5 Habermas expõe que o acesso de um público consciente às funções de controle das demandas políticas através da imprensa afastava decisivamente as elites econômicas e letradas inglesas de ideais revolucionários (HABERMAS, 1984: 81). Ao abordar as políticas pombalinas Southey expõe em seu texto que “o governo português antecipou as idéias de melhores tempos, indo além da meta que a opinião pública podia alcançar” (SOUTHEY, 1997: 415). Todavia, Southey enfatiza que o desconhecimento de Pombal com relação às particularidades da cultura e do povo foi decisivo para o ministro não alcançar o progresso almejando. Contrariamente ao progresso, medidas autoritárias como as de Pombal poderiam abalar a tranqüilidade do Estado. Quão fácil e eficazmente poderia ter servido este conhecimento do povo para a execução de boas leis! Mas o governo não sabia ainda que o seu primeiro dever era fazer a justiça e manter as leis, nem que a segurança de que o cidadão goza na sua pessoa e fazenda é o melhor penhor da tranqüilidade do estado (SOUTHEY, 1997: 475).

Southey expõe que a administração portuguesa não era adequada para o desenvolvimento de “sentimentos”, “virtudes”, “bons costumes” e “industriosidade” no povo brasileiro. Ao narrar eventos setecentistas Southey apresenta que em muitas regiões do Brasil os alicerces da sociedade civil ainda não tinham sido lançados. Nas províncias que se desenvolviam atividades mineradoras as “leis opressivas e vexatórias”, o “ócio” e a “devassidão” suspendiam o progresso. Em muitas regiões faltavam as “molas da ação” devido à ausência de capital, esperança, emulação e exemplo (SOUTHEY, 1997: 442). Ao narrar o despotismo e a arbitrariedade do poder absoluto português como um empecilho ao progresso civilizacional a História do Brasil de Southey descarta as revoluções como um caminho para a modernidade. Na narrativa de Southey no próprio passado do Brasil foram vivenciadas experiências de bons governos, nos quais as câmaras e a opinião pública se

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constituíam enquanto instâncias deliberativas efetivas. Southey apresenta a possibilidade de re-atualização dessas experiências políticas esquecidas pelo passar do tempo, sendo estas mais adequadas ao espírito da época que a “praga da revolução”. Nos antigos tempos quando para o serviço do estado se carecia de alguma contribuição nova, era a matéria proposta pelo governador ao senado da câmara, e resolvida com assentimento do povo: este direito continuaram as câmaras e o povo a exercê-lo até que em Portugal se apagaram os últimos vestígios de bom governo, estendendo-se então ao Brasil o sistema arbitrário sobre o qual definhava a mãe pátria. Tomou o governo colonial caráter meramente militar, sendo as câmaras convidadas não a consultar, porém a obedecer. Poucos anos antes da transmigração da corte tentara a câmara de Vila Boa opor-se a algumas medidas do governador de Goiás, e fora asperamente repreendida de Lisboa por não saber serem todas as câmaras do Brasil subordinadas aos governadores. Mas se foi ineficaz a oposição, provava serem ainda lembrados os antigos direitos das câmaras. Nestes últimos tempos assaz claramente se tem visto quão difícil é temperar com salutar mistura de democracia um governo desde remotas eras absoluto; mas onde boas leis e bons costumes antigos só caíram em desuso, restabelecê-los e restaurá-los é possível, é praticável, é coisa para fazer-se (SOUTHEY, 1997: 472).

A História do Brasil de Southey entra em confronto com as políticas centralistas de Pombal pelo fato da mesma estar enredada em um contexto lingüístico-social de enriquecimento da subjetividade. Perante a linguagem ilustrada que constitui a obra de Southey os vetos pombalinos à constituição das câmaras, ao estabelecimento da imprensa, à livre circulação de pessoas e mercadorias, significavam um veto ao esclarecimento. Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, a macronarrativa de Southey abre o futuro da nação para o progresso civilizacional. O texto de Southey apresenta que o comércio e a imprensa possibilitariam o enriquecimento da subjetividade através do encontro entre coisas, pessoas e informações, estimulando “sentimentos” e transformando-os em “bons costumes”. Assim, como expõe Pocock “um direito às coisas se tornava um caminho para a prática da virtude, já que a ‘virtude’ podia ser definida como a prática e o refinamento das maneiras” (POCOCK, 2003: 98). Anteriormente à vinda da Corte o texto de Southey apresenta que uma “prova de miserável ignorância política foi não se tolerar no Brasil tipografia alguma (...). Achava-se a grande massa do povo no mesmo estado como se nunca houvesse inventado a imprensa” (SOUTHEY, 1997: 475). Dessa forma, a força civilizadora do comércio e a circulação de notícias favoreceriam a abolição da escravidão, a integração do vasto território e a fusão de índios, negros e portugueses em um único povo, possibilitando um futuro glorioso aos brasileiros. A maior restrição sob a qual laborava o Brasil era o monopólio do seu comércio, em que tão rigorosa se mostrava a mãe-pátria. Este mal cessou como de necessidade havia de cessar com a mudança da sede da corte. Introduziu-se a imprensa; perceberam-se logo alguns erros da antiga política, e outros poucos mais duraram. Os agravos do povo fáceis são de remediar: à abolição do tráfico de escravos se seguirá a abolição da escravidão; os selvagens que ainda restam não tardarão a

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civilizar-se; e índios, negros e portugueses se irão fundindo gradualmente num só povo, que será por herança uma das mais formosas porções da terra. Bela perspectiva, e um futuro de glória se abre aos brasileiros, se escaparem ao flagelo da revolução, que destruiria toda a felicidade da geração atual, arrastando consigo a anarquia da guerra civil, e acabando por dividir o país numa multidão de estados mesquinhos e hostis, que teriam de atravessar séculos de miséria e de sangue derramado, antes que pudessem reerguer-se da condição do barbarismo em que se veriam mergulhados. Cego na verdade deve ser o governo, se não abraçar esse sistema generoso da verdadeira política que é o único que poderá conjurar esse perigo. Praza a Deus, na sua misericórdia, proteger o Brasil e dar-lhe que ali se estabeleçam a ordem, a liberdade, a ciência e a verdadeira piedade, florescendo por todas as gerações (SOUTHEY, 1997: 476).

As linguagens iluministas que constitui a História do Brasil de Robert Southey rompem com o vocabulário antigo da virtude republicana. Este último, ao postular a natureza do ser político, estabelecia a impossibilidade da distribuição das virtudes públicas, por procederem estas da “essência” do exercício da cidadania. As macronarrativas ilustradas repudiaram a atemporalidade do conceito clássico de cidadania, demasiadamente político e insensível ao alargamento das experiências sociais modernas, abertas à circulação de capitais, notícias, mercadorias, sentimentos e pessoas. A redefinição do conceito de virtude possibilitou o surgimento do conceito de “maneiras”, um termo que se abriu à dinâmica dos relacionamentos entre coisas e pessoas em escalas globais. Através da análise da teia lingüística ilustrada que constitui a História do Brasil de Southey podemos perceber que o refinamento das “maneiras” e a consolidação do progresso civilizacional se apresentavam enquanto um horizonte aberto para a nação. Southey expõe em sua obra que circunstâncias políticas específicas, como as medidas pombalinas, impediram a consolidação desse progresso anteriormente à vinda da Corte para o Brasil. Entretanto, a macronarrativa de Southey possibilitava a compreensão de que o Brasil não era formado por nenhuma natureza atávica e decadente, podendo o progresso se consolidar mediante a distribuição dos bens da civilização através do comércio e da imprensa.

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NOTAS: 1

Graduando pela Universidade Federal de Ouro Preto.

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O conceito de iluminismo será apresentado neste trabalho a partir da caracterização proposta por Pocock na introdução de Barbarism and Religion: “I intend to argue that Enlightenment may be characterised in two ways: first, as the emergence of a system of states, founded in civil and comercial society and culture, which might enable Europe to escape from the wars of religion without falling under the hegemony of a single monarchy; second, as a series of programmes for reducing the power of either churches or congregations to disturb the peace of civil society by challenging its authority” (POCOCK, 1999a: 7). 3

Ancorados em Pocock pretendemos demonstrar que não existe a História do Brasil de Southey fechada em si mesma, com seu dentro e seu fora. Pocock expõe que a “linguagem que um autor emprega já está em uso. Foi utilizada e está sendo utilizada para enunciar intenções outras que não as suas. Sob esse aspecto, um autor é tanto o expropriador, tomando a linguagem de outros e usando-a para seus próprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a induzir momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é usada” (POCOCK, 2003: 29). 4

Valdei Araujo e Flávia Varella apresentam o esforço de diferenciação presente nas macronarrativas ilustradas entre as expansões militares do Império romano e as expansões comerciais do Império britânico: “A expansão britânica tentou mostrar-se como o oposto da romana; enquanto o Imperialismo Romano buscava a soberania frente às suas colônias por meio de um governo arbitrário e de uma hegemonia imperial, a Inglaterra, por meio do comércio, levava a civilização para o resto do mundo. Esse foi um dos caminhos discursivos pelo qual parte do Iluminismo escocês tentou interpretar o Ato de União da de 1707, que abolindo os parlamentos da Escócia e da Inglaterra, fundou a Grã-Bretanha e expandiu as vantagens do império comercial inglês aos novos súditos escoceses” (VARELLA & ARAUJO, 2009: 247). 5

Edmund Burke, em suas Reflexões sobre a Revolução em França, se demonstra determinado em evitar que os princípios políticos da Revolução Francesa ganhassem adeptos na Inglaterra. Burke expõe que “[q]uando a casa do vizinho pega fogo, é recomendável que tomemos precaução para proteger a nossa” (BURKE, 1982: 52), o que o leva a diferenciar a Revolução Inglesa da Revolução Francesa, denotando o caráter tradicional e reformador da primeira: “Um Estado onde não se pode mudar nada, não tem meios de se conservar. Sem meios de mudança, ele arrisca perder as partes da sua Constituição que com mais ardor desejaria conservar. Os dois princípios da conservação e da correção agiram fortemente nos dois períodos críticos da Restauração e da Revolução, quando a Inglaterra se encontrou sem rei. Em cada um desses dois períodos, o fator de união do velho edifício nacional foi rompido: nem por isso a nação destruiu todo o edifício. Ao contrário, empregou-se as partes da antiga Constituição que nada tinha sofrido na regeneração daquela que faltava. Conservou-se as antigas partes exatamente como eram, a fim de que aquela que se reconstituía pudesse ser adaptada a elas. Agiu-se por meio das antigas instituições organizadas na forma tradicional de sua organização, e não por meio de moleculae e dissociadas de um povo desagregado” (BURKE, 1982: 61).

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FONTE: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Traduzida do inglês pelo Dr. Luís Joaquim de Oliveira e Castro, anotado por J.C. Fernandes Pinheiro, Brasil Bandecchi. 4 ed. Brás. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL. 1997, p. 381 – 476. BIBLIOGRAFIA: BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em frança. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. PIMENTA, João Paulo G & Araujo, Valdei Lopes de. História. In: FERES Jr, João (org). Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009. POCOCK, J. G. A. Introduction. In: ___: Barbarism and Religion. The Enlightenments of Edward Gibbon, 1737 – 1764. Cambridge University Press, 1999a. ___________________. Barbarism and Religion. Narratives of Civil Government. Cambridge University Press, 1999b. (Vol. II) ___________________. A mobilidade da propriedade e o nascimento da sociologia no século XVIII. In ____: Linguagens do Ideário político. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. ___________________. Introdução: O Estado da Arte. In ____: Linguagens do Ideário político. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. ___________________. O Declínio e Queda de Gibbon e a visão de Mundo do final do Iluminismo. In ____: Linguagens do Ideário político. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. __________________. Virtudes, Direitos e Maneiras: Um Modelo para Historiadores do Pensamento Político. In ____: Linguagens do Ideário político. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. SPECK, W. A. Robert Southey: entire man of letters. Yale University Press Publications, 2006. SILVA DIAS, Maria Odila da. O fardo do homem branco: Southey historiador do Brasil (um estudo dos valores ideológicos do império do comércio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. VARELLA, Flávia Florentino & ARAUJO, Valdei Lopes de. “As traduções do tacitismo no Correio Braziliense (1808-1822): contribuição aos estudos das linguagens

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